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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

DIRETORIA DE PÓS GRADUAÇÃO E PESQUISA


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

JOSÉ PASCOAL MANTOVANI

EDUCAR SEM (DE)FORMAR: CONTRIBUIÇÕES


FOUCAULTIANAS PARA A FILOSOFIA DA
EDUCAÇÃO

São Bernardo do Campo

2020
JOSÉ PASCOAL MANTOVANI

EDUCAR SEM (DE)FORMAR: CONTRIBUIÇÕES


FOUCAULTIANAS PARA A FILOSOFIA DA
EDUCAÇÃO

Tese de Doutorado apresentada às exigências


do Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade Metodista de São Paulo para
obtenção do grau de doutor em Educação.
Orientador: Prof. Dr. Marcelo Furlin
Área de Concentração: Formação de
educadores.

São Bernardo do Campo

2020
FICHA CATALOGRÁFICA

M762e Mantovani, José Pascoal.

Educar sem (De)Formar: contribuições foucaultias para a


filosofia da educação/José Pascoal Mantovani. 2020.
371 p.

Tese (Doutorado em Educação) –Diretoria de Pós


graduação e Pesquisa da Universidade Metodista de São
Paulo, São Bernardo do Campo, 2020.
Orientação de: Marcelo Furlin

1. Formação docente (educação) 2. Filosofia da educação


3. Michel Foucault - Educação I. Título.
CDD 370.71
4

A tese de doutorado sob o título “EDUCAR SEM (DE)FORMAR: CONTRIBUIÇÕES

FOUCAULTIANAS PARA A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO”, elaborada por José

Pascoal Mantovani, foi apresentada e aprovada em 5 de Março de 2020, perante banca

examinadora composta pelos professores Doutores Marcelo Furlin (Presidente/UMESP),

Vitor Souza Chaves (Titular/UMESP), Rui Josgrilberg (Aposentado UMESP) Sanny Silva

da Rosa (Titular/USCS), Alfredo José Veiga-Neto (Titular UFRGS).

__________________________________________

Prof. Dr. Marcelo Furlin

Orientador e Presidente da Banca Examinadora

__________________________________________

Prof. Dr. Marcelo Furlin

Coordenador do Programa de Pós-Graduação

Programa: Pós-Graduação em Educação

Área de Concentração: Educação

Linha de Pesquisa: Formação de Educadores


5

Esta Tese contou com o apoio PARCIAL da CAPES-


TAXA em forma de bolsa de estudo e bolsa funcional
da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP).

“No princípio era a Narrativa.


A Narrativa estava com Deus.
A Narrativa era Deus.”

Paráfrase de João 1.1


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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus por ter me dado força e condições para terminar esta tese. Diante de
tantos obstáculos que surgiram nestes últimos anos, senti o cuidado e o encorajamento do
d’Ele para prosseguir e concluir esta etapa; a Cristiane e Maria Júlia, que me inspiraram a
não desistir; a dona Nilva, mãe incansável, que me ensinou que com esforço e empenho é
possível chegar “lá”; Josué, pai de criação, muito responsável pelo homem que me tornei; a
meus familiares, que foram imprescindíveis para esta vitória, de modo especial a irmã
Pastora Rosangela e Tio Roque Bruno (sem vocês não teria chegado aqui); ao Programa de
Pós-Graduação em Educação e aos docentes que me deram um novo norte na jornada de
vida, principalmente aos profs. Rui Josgrilberg que me incentivou a retomar os estudos e
Marcelo Furlin por assumir o desafio de orientação; aos amigos de caminhada e pesquisa; à
Igreja Metodista, de modo especial a Igreja em Vila Alpina e Central em Santo André.
Agradeço aos amigos Ismael Forte Valentim, Paulo Borges, Ruy Rocha, André, Claudio
Ribeiro, Sérgio Tavares, Luiz Alceu, Elcio, Bárbara, Sidney, Luiz Alberto, Mateus Iuri,
Luiz Alberto, Daniel Camuçato, Mauro Maiorino, Carlos Guilherme, Tiago Valentim, que
mais que amigos, foram irmãos de caminhada: orientaram quando não havia rumo;
animaram quando faltava vida; acreditaram contra à própria esperança e, porque Deus foi
bom colocando vocês em minha vida, cheguei até aqui; agradeço ao apoio da revisão de
Lídia Germana que de modo generoso leu e corrigiu esta tese; Sou grato à profa. Sanny e ao
prof. Veiga-Neto por acolher tão carinhosamente e de modo generoso o convite para
participar da banca; Agradeço a parceria dos profs. Ademir, Rosana, Hélio, Vanessa e
Fátima Aparecida que me apoiaram prontamente; Ao Colégio Arbos, Escola João Galeão e
a Universidade Metodista de São Paulo por compreenderem o período intenso que foi a
escrita desta tese.
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RESUMO

O foco deste trabalho é relacionar a Filosofia de Michel Foucault


com o tema da Educação. A hipótese desta tese é: para compreender
a constituição da subjetividade do sujeito é necessário revisitar
narrativas do cotidiano de personagens que vivenciam o fenômeno
Educação. Tais narrativas auxiliam na percepção dos traços
deformativos inerentes a Educação contemporânea, bem como seus
desdobramentos e intencionalidades ao que se refere ao ato
formativo. Apresenta-se narrativas de discentes e docentes com o
intuito de compreender o impacto da Educação nesta atividade
constitutiva. Aferiu-se a necessidade da desconstrução de
subjetividades, a fim de que outra subjetividade do ser se viabilize. O
método que acompanhou esta tese foi o pós-estruturalismo e o
materialismo histórico dialético. Como referências bibliográficas,
contou-se com os textos de Foucault, além dos comentários de
Castro, Veiga-Neto, Deleuze, Gutting, Bakthin entre outros. Esta
pesquisa foi fracionado em quatro temas, mas, para fins didáticos,
dividida em cinco seções: o primeiro capítulo trata do conceito
Educação; a segunda e terceira seção tratam dos domínios
foucaultianos; a quarta seção apresenta a teoria narrativa que
auxiliará na hermenêutica nas narrativas; na quinta e última seção,
busca-se a dialética entre a filosofia de Foucault, a teoria narrativa e
as narrativas das personagens que corroboraram com este trabalho. A
peroração desta investigação circula no duplo formativo/deformativo
presente no impacto da educação na constituição da subjetividade. A
tese defendida é que o papel deformativo da educação
contemporânea está comprometida com elementos relativos ao
sujeito e não a formação e constituição do ser. A expectativa é que o
desfecho desta tese auxilie na interpretação e articulação da filosofia
de Foucault com o tema da educação, além de contribuir para futuras
pesquisas no campo da Filosofia da Educação e Formação de
Educadores.

Palavras-chave: Filosofia da Educação – Michel Foucault –


Formação – Hermenêutica do Sujeito – Educação brasileira.
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ABSTRACT

The focus of this work is to relate Michel Foucault's Philosophy to


the theme of Education. The hypothesis of this thesis is: in order to
understand the constitution of the subjectivity of the subject, it is
necessary to revisit the daily narratives of characters who experience
the Education phenomenon. Such narratives assist in the perception
of the deformative traits inherent in contemporary Education, as well
as its consequences and intentions regarding the formative act.
Narratives of students and teachers are presented in order to
understand the impact of Education on this constitutive activity. The
need to deconstruct subjectivities was assessed, so that another
subjectivity of being becomes viable. The method that accompanied
this thesis was post-structuralism and dialectical historical
materialism. As bibliographic references, Foucault's texts were
included, in addition to the comments of Castro, Veiga-Neto,
Deleuze, Gutting, Bakthin among others. This research was divided
into four themes, but, for didactic purposes, divided into five
sections: the first chapter deals with the concept of Education; the
second and third sections deal with Foucault's domains; the fourth
section presents the narrative theory that will assist in hermeneutics
in narratives; in the fifth and last section, we seek the dialectic
between Foucault's philosophy, narrative theory and the narratives of
the characters who corroborated this work. The investigation of this
investigation circulates in the formative / deformative double present
in the impact of education in the constitution of subjectivity. The
thesis defended is that the deformative role of contemporary
education is committed to elements related to the subject and not the
formation and constitution of being. The expectation is that the
outcome of this thesis will assist in the interpretation and articulation
of Foucault's philosophy with the theme of education, in addition to
contributing to future research in the field of Philosophy of
Education and Educator Training.

Keywords: Education Philosophy – Michel Foucault – Formation -


Subject hermeneutics – Brazilian education.
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RESUMEN

El objetivo de este trabajo es relacionar la filosofía de Michel


Foucault con el tema de la educación. La hipótesis de esta tesis es:
para comprender la constitución de la subjetividad del sujeto, es
necesario revisar las narraciones diarias de los personajes que
experimentan el fenómeno de la educación. Tales narrativas ayudan
a la percepción de los rasgos deformativos inherentes a la educación
contemporánea, así como sus consecuencias e intenciones con
respecto al acto formativo. Se presentan narrativas de estudiantes y
maestros para comprender el impacto de la educación en esta
actividad constitutiva. Se evaluó la necesidad de deconstruir
subjetividades, de modo que otra subjetividad del ser se vuelva
viable. El método que acompañó a esta tesis fue el
postestructuralismo y el materialismo histórico dialéctico. Como
referencias bibliográficas, se incluyeron los textos de Foucault,
además de los comentarios de Castro, Veiga-Neto, Deleuze (2005),
Gutting, Bakthin entre otros. Esta investigación se dividió en cuatro
temas, pero, con fines didácticos, se dividió en cinco secciones: el
primer capítulo aborda el concepto de Educación; las secciones
segunda y tercera tratan de los dominios de Foucault; la cuarta
sección presenta la teoría narrativa que ayudará en hermenéutica en
narrativas; En la quinta y última sección, buscamos la dialéctica
entre la filosofía de Foucault, la teoría narrativa y las narrativas de
los personajes que corroboraron este trabajo. La investigación de
esta investigación circula en el doble formativo / deformativo
presente en el impacto de la educación en la constitución de la
subjetividad. La tesis defendida es que el papel deformativo de la
educación contemporánea está comprometido con elementos
relacionados con el tema y no con la formación y constitución del
ser. La expectativa es que el resultado de esta tesis ayudará en la
interpretación y articulación de la filosofía de Foucault con el tema
de la educación, además de contribuir a la investigación futura en el
campo de la Filosofía de la Educación y la Formación de
Educadores.

Contraseñas: Filosofía de la educación - Michel Foucault -


Formación - Hermenéutica de la sujeto - Educación brasileña
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SUMÁRIO

Introdução ______________________________________________________________ 12
1. Horizonte Histórico: Das Vias Labirínticas da Filosofia da Educação ______________ 20
I.1 Educação na Antiguidade: Análise da Paideia______________________________ 27
I.2 Educação na Modernidade _____________________________________________ 34
I.2.1 Educação em Etienne de La Boétie e Michel de Montaigne _______________ 37
I.2.2 Educação em Jean-Jacques Rousseau _________________________________ 42
I.2.3 Educação em Immanuel Kant _______________________________________ 50
I.2.4 Arremate Conceitual da Modernidade ________________________________ 60
I.3 A Educação na Contemporaneidade: Interpretações e Críticas _________________ 61
I.3.1 Educação em Marx e Nietzsche _____________________________________ 64
I.3.2 Arremate Conceitual na Contemporaneidade ___________________________ 73
2. Os domínios Foucaultianos _______________________________________________ 76
II.1 Foucault: Vida, Obra e Conceitos chaves _________________________________ 78
II.1.1 Foucault e a Fenomenologia _______________________________________ 80
II.2 Arqueologia: O Primeiro Domínio Foucaultiano ___________________________ 82
II.3 Genealogia: O Segundo Domínio Foucaultiano ____________________________ 95
II.4 Considerações Preliminares – Arqueologia e Genealogia ___________________ 104
II.5 Ética: O terceiro domínio foucaultiano – aparato conceitual _________________ 105
II.5.1 Foucault e a Ética ______________________________________________ 106
II.5.2 Foucault e a Subjetividade________________________________________ 108
II.5.3 Foucault e a Verdade ____________________________________________ 110
II.4.4 Foucault e o Acontecimento ______________________________________ 113
II.4.5 Experiências em categorias foucaultianas ____________________________ 114
II.4.6 Foucault e a Governamentalidade __________________________________ 116
II.4.7 Arremate Conceitual: Possíveis interpretações do terceiro Domínio _______ 119
3. Hermenêutica do Sujeito: o Terceiro domínio Focaultiano _____________________ 122
III.1 O terceiro Domínio foucaultiano _____________________________________ 123
III.1.1 Fases da Epimeleia Heautou (cuidado de si) _________________________ 126
III.1.2 O conceito de Filosofia e Espiritualidade em Foucault _________________ 133
11

III.1.3 Foucault e a Estética da Existência como arte da vida __________________ 137


III.1.4 Considerações Hermenêuticas: Terceiro Domínio _____________________ 140
III.2 A função do Outro no cuidado de si ___________________________________ 141
III.3 A posição da Stultitia ______________________________________________ 143
III.4 A Parresia foucaultiana _____________________________________________ 149
III.5 O ato de Escutar __________________________________________________ 151
III.6 A Heterotopia no cuidado de si _______________________________________ 153
III.7 Arremate Conceitual: Hermenêutica do Sujeito __________________________ 154
4. Teorias Narrativas da Cotidianidade _______________________________________ 159
IV.1 Indício de uma teoria das narrativas de memórias ________________________ 159
VI.1.1 O Ato de Narrar _______________________________________________ 160
VI.1.2 A Memória Narrativa ___________________________________________ 161
VI.1.3 A Memória e a Narrativa do Eu ___________________________________ 163
IV.2 Teoria do Cotidiano _______________________________________________ 166
IV.3 Narrativas do Cotidiano: Memórias da cotidianidade______________________ 170
IV.4 Análise do Primeiro Alcibíades, de Platão ______________________________ 177
VI.4.1 Alcibíades Primeiro – Análise Sincrônica ___________________________ 177
IV.4.2 Alcibíades Primeiro – Análise Diacrônica ___________________________ 180
IV.4.3 Arremate Conceitual: Considerações Hermenêuticas ____________________ 203
5. Educar sem (de)formar: Contribuições Foucaultianas Para a Filosofia da Educação _ 205
V.1 Caminhos Dialógicos: Descrição Hermenêutica da Educação contemporânea. __ 206
V.2 Indícios de uma educação deformativa _________________________________ 219
V.3 Caminhos de resistência: O devir ontológico da Filosofia da Educação ________ 226
V.4 Pistas para uma Filosofia da Educação em práxis _________________________ 236
V.5 Arremate Conceitual: Contribuições foucaultianas para a filosofia da educação _ 242
Considerações Finais _____________________________________________________ 247
Referências Bibliográficas ________________________________________________ 254
ANEXOS ______________________________________________________________ 267
1. Discente R. L. ______________________________________________________ 267
2. Discente F. G. ______________________________________________________ 277
3. Docente R. M. ______________________________________________________ 285
4. Docente J. A. _______________________________________________________ 301
5. Docente H. F. ______________________________________________________ 323
6. Docente M.F.M _____________________________________________________ 343
7. Docente V.M _______________________________________________________ 349
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INTRODUÇÃO

Enquanto houver espíritos insurgentes persistirão horizontes heterotópicos. Essa


frase é a essência desta tese. O ponto inicial deste trabalho nasce a partir da sala de
aula; nasce do processo de aprendizagem e ensino tencionados pela imposição
arbitrária do currículo elaborado pelo Estado; das relações conflituosas típicas do
ambiente escolar, principalmente ao que tange a nuvem de violência que paira sobre
as escolas; do contraste antagônico entre satisfação e desespero típicos da vocação
docente.
O que provocou a laboração desta tese não foram as ditas soluções plásticas que
programas importados e nada sensíveis à realidade brasileira se propõem a responder;
em vez disso, o âmago desta tese se encontra em questionamentos, dilemas e
problematizações que assolam a vida de todos os sujeitos que permeiam o fenômeno
educação, ou seja, todas as pessoas (discentes, docentes, agentes administrativos) que
estão inseridas neste ambiente construído para o insucesso e o fracasso. A indagação
que sintetiza e perscrutará tal problematização é: até que ponto a educação rouba o
sujeito do próprio sujeito e, assim, o mantém em um cenário obscuro e de insipiência?
Pressupondo que a educação desenvolvida na escola é um constructo eficiente
de acomodação existencial, colonização de subjetividade e adequação dos atores
sociais ao nomos estabelecido; logo, a hipótese que perpassará este trabalho é que a
educação formal precisa, constantemente, revisitar as narrativas do seu cotidiano,
porque tais narrativas podem revelar muito sobre a constituição da subjetividade dos
sujeitos que atuam neste cenário.
13

A partir desse movimento, espera-se identificar quais são as charneiras que,


em alguma medida, podem levar o sujeito a um colapso existencial. Compreender a
constituição da subjetividade a partir das narrativas cotidianas é um viés de
desconstrução e reorganização da compreensão e interpretação que o sujeito faz de si
mesmo.
Tendo em perspectiva as contribuições do filósofo francês Michel Foucault
(2018) ao que se refere a constituição da subjetividade do indivíduo, esta tese
promoverá o diálogo entre a hermenêutica do sujeito foucaultiano com a educação.
Assim, será exposto análise do fenômeno educação, em viés comparativo e dialético
entre epistemologia e práxis, potencializando a instrumentalização e aplicação da
hermenêutica do sujeito foucaultiano na educação. O destaque deste trabalho
tangenciará a desconstrução da subjetividade a fim de alcançar a compreensão da
constituição do ser em perspectiva analítica e crítica, equacionada a asserção do
cuidado de si, presente na abordagem foucaultiana, sem perder de vista que a hipótese
deste trabalho circula na seguinte ideia: ao revisitar narrativas do cotidiano de
personagens que vivenciam o fenômeno da educação é possível compreender a
constituição da subjetividade do indivíduo.
Esta tese dialogará com estudantes, professores e agentes ligados à área
administrativa da Escola Estadual Senador João Galeão Carvalhal, localizada na
cidade de Santo André, com a finalidade de compreender o impacto da educação na
constituição da subjetividade desses atores. O propósito é compreender como as
personagens que partilham do mesmo espaço, mas com intuitos e funcionalidades
diferentes, compreendem o fenômeno educacional. Essa pesquisa não tem como
intento uma abordagem quantitativa, antes, a análise se fundamenta em reflexão
qualitativa em que se estabelece diálogo com as personagens, as quais serão
questionadas a partir de provocações adaptadas do texto Alcibíades Primeiro, de
Platão. Vale destacar que a escolha desse diálogo platônico é devida à escolha do
próprio filósofo francês, Michel Foucault, que faz da conversa entre Sócrates e
Alcibíades o paradigma da constituição da subjetividade do indivíduol..........llpç.
Como o intento desta tese é a compreensão da constituição da subjetividade em
relação ao fenômeno educacional, neste trabalho se usará o texto Hermenêutica do
sujeito (2018), de Michel Foucault, como base e fundamentação teórica, com a
intencionalidade de gerar as provocações relacionadas às ideias de verdade, escuta,
parresia, cuidado de si, estética da existência, entre outros termos abordados por
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Foucault e que estão diretamente ligados à ideia da constituição da subjetividade. A


fim de compreender esses termos, outros textos de Foucault serão apropriados com o
objetivo subsidiar este percurso compreensivo do sujeito.
O método desta tese está fundamento em revisão bibliográfica, método
hipotético-dedutivo, além da intersecção e paralelismo entre, de um lado, (i) o
método materialista histórico dialético e, de outro, (ii) rudimentos teóricos do pós-
estruturalismo. Ao que se refere à abordagem materialista histórico crítica, foi
privilegiado nesta tese a contribuição de Gramsci (1991) ao observar a história como
um processo dialético. Por este viés, fica claro que a educação está para corresponder
às expectativas impositivas de um sistema, de modo que a tecnificação da educação,
bem como toda a sua instrumentalidade como descrita pela Escola de Frankfurt, não
foi um acidente de percurso, mas, um evento programado, planejado e bem delineado.
Outra contribuição significativa para a organização do método desta tese foi de
Pires (1997) a qual aponta para a localização dos autores que compõem o mundo da
educação. A problematização desta autora é a discussão dos paradigmas constitutivos
dos sujeitos, de modo que “compreender a relação sujeito-objeto é compreender como
o ser humano se relaciona com as coisas, com a natureza, com a vida” (PIRES, 1997,
84). A abordagem de Otavio Ianni (1994) auxiliou, ainda na dimensão materialista
histórico dialético, a compreender o fenômeno da globalização e sua relação com a
educação. Para Ianni, conceber esta relação – globalização e educação – auxilia na
compreensão idiossincrática entre a dimensão local e o global, haja vista a
complexidade dialética presente no que se compreende por globalização. Ianni destaca
que a globalização “é um processo dialético porque tais acontecimentos locais podem
se deslocar numa direção inversa às relações muito distanciadas que os modelam. A
transformação local é tanto uma parte da globalização quanto a extensão lateral das
conexões sociais através do tempo e espaço” (IANNI, 1994, p. 151). Vale o destaque
que a noção de poder que será desenvolvido nesta tese não circula no âmbito negativo,
ou seja, “que o poder distorce, reprime, mistifica” (SILVA, 1994, p. 252), porém, será
privilegiado a abordagem pós-estruturalista.
Já o método pós-estruturalista, presente nesta tese, é característica da abordagem
foucaultiana de fazer filosofia. Os destaques pós-estruturalistas é que “para a
perspectiva pós-estruturalista, o poder constitui, produz, cria identidades e
subjetividades” (SILVA, 1994, p. 252), ou seja, o poder não é uma entidade
destrutiva, mas inerente a constituição do sujeito. Segundo Peeters “o que distingue a
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abordagem de Foucault é que ele está interessado na questão de como o poder é


exercido, criticando, assim, de forma implícita, a tendência contemporânea a
supervalorizar o lugar do Estado, reduzindo-o a uma unidade dotada de uma certa
funcionalidade”. (2000, p. 42). A contribuição que o pós-estruturalismo apresenta é
que não trata o sujeito como um simples ser binário, entretanto, “uma perspectiva pós-
estruturalista, inspirada na desconstrução, buscaria desmontar essas oposições naquilo
que um de seus elementos apresenta de pretensão de superação do outro” (SILVA;
1994, p. 253).
A contribuição do pós-estruturalismo está ligado com a premissa de transcender
com as arbitrariedades do capitalismo, bem como das lutas de classes, ou seja, O pós-
estruturalismo pode ser caracteriza como um modo de pensamento, um estilo de
filosofar e uma forma escrita, embora o termo não deva ser utilizado para dar qualquer
ideia de homogeneidade, singularidade ou unidade (PETERS, 2000, p. 28). A
densidade do pós-estruturalismo está em sua capacidade interdisciplinar, como aponta
Petters:
O pós-estruturalismo não pode ser simplesmente reduzido a um
conjunto de pressupostos compartilhados, a um método, a uma teoria
ou até mesmo a uma escola. É melhor referir-se a ele como um
movimento de pensamento – uma complexa rede de pensamento –
que corporifica diferentes formas de práticas crítica. O pós-
estruturalismo é, decididamente, interdisciplinar, apresentando-se
por meio de muitas diferentes correntes. (PETERS, 2000, p. 29).

O método pós-estruturalista em Foucault se evidencia quando, rejeitando as


determinações estruturalista que impõe a não autonomia dos sistemas que pressupõe
restrição do sujeito à estrutura apriorística, viabiliza o impacto do duplo na existência
e constituição da subjetividade do sujeito. Logo, seguindo Gutting (1989), se o
estruturalismo lança seus olhares sobre as consistências e solidez das estruturas, o pós-
estruturalismo demonstra que não há estabilidade alguma em qualquer sistema de
pensamento. Foucault, ao se apropriar do pós-estruturalismo, demonstra está
característica. Isso fica claro quando o próprio Foucault apresenta sua forma de fazer
filosofia: “é verdade que eu não falaria de uma bifurcação da razão, mas, antes,
sobretudo de uma bifurcação múltipla, incessante, de um tipo de ramificação
abundante. Não falo do momento em que a razão se tornou técnica. ” (FOUCAULT,
1983, p. 317).
16

A presença do pós-estruturalismo nesta tese se evidencia quando se busca


articular narrativas de discentes, docentes e agentes administrativos com o intuito de
mergulhar na constituição da subjetividade, haja vista que “o pós-estruturalismo
questiona o cientificismo das ciências humanas, adota uma posição antifundacionalista
em termos epistemológicos e enfatiza um certo perspectivismo em questões de
interpretação” (PETERS, 2000, p. 39), assim, o pós-estruturalismo que servirá como
base para esta tese tem como premissa a característica mutável do sujeito, da
sociedade. É o destaque para o devir existencial.
Quanto à metodologia utilizada, foi dividida em dois momentos: o primeiro de
revisão bibliográfica, em que se analisou, além do texto Hermenêutica do Sujeito
(2018), outros textos de Foucault, como por exemplo Doença mental e psicologia
(1975), História da Loucura (1978), As palavras e as coisas (2002), Arqueologia do
Saber (2005), Vigiar e Punir (2010), História da Sexualidade 1 (1999), História da
Sexualidade 2 (1998), além de comentários e textos relacionados aos temas de
constituição da subjetividade e educação que estão vinculados à abordagem
foucaultiana. A revisão bibliográfica esteve atenta a artigos, dissertações e teses, os
quais demonstraram, além da pertinência do tema em refletir sobre a constituição da
subjetividade relacionada à educação, também a dimensão da atualidade e relevância
da reflexão sobre a dialética entre educação e constituição da subjetividade.
Ainda ao que se refere à revisão bibliográfica, buscou-se investigar textos
relacionados às influências de Michel Foucault, como por exemplo Platão, Montaigne,
Rousseau, Kant, Nietzsche, Freud, Marx além, é claro, de autores que foram seus
professores, como George Camguilhem, Maurice Merleau-Ponty, Jacques Lacan. A
pesquisa desses autores auxiliou na hermenêutica do enfoque de Michel Foucault.
Como segundo passo metodológico, esta tese buscou narrativas de discentes, docentes
e agentes administrativos (coordenadora e diretora), tendo como ponto incipiente o
texto platônico Alcibíades Primeiro. É por meio desse diálogo que se identificam as
tangências, convergências e divergências das personagens.
O critério que marcou a delimitação do tema foi a experiência do autor em sala
de aula e seu espanto em observar até que ponto a educação exerce papel fundamental
na constituição da subjetividade. Ao que se refere aos entrevistados, os critérios foram
(i) a escolha de discentes engajados com a educação e que buscam nela o caminho de
transformação e mudança de suas vidas; (ii) docentes que se destacam por seu
empenho e comprometimento com a educação, apesar das circunstâncias e limitações
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inerentes ao próprio sistema; (iii) os agentes administrativos que atuam na parte


organizacional e burocrática.
O intento era ouvir a perspectiva dessas personagens sobre o mesmo território: a
experiência com a educação. Ainda que as narrativas apontem para pontos muito
semelhantes e dialogais, a peculiaridade interpretativa de sentido e significado ganha
adjacências que sintetizam os problemas descritos acima, porém, apontam para
horizontes de mundo bastante significativos.
Além disso, esta tese busca apresentar elementos epistemológicos para um
processo reflexivo da constituição da subjetividade do sujeito, bem como o papel da
educação nesse processo. Nesse sentido, optou-se por apresentar cinco capítulos que,
de modo sintético, buscarão apresentar (i) qual o recorte de educação feito pelo autor;
(ii) apresentação dos domínios foucaultianos; (iii) análise do livro “Hermenêutica do
sujeito”; (iv) proposta de análise narrativa; (v) dialética entre as narrativas dos
entrevistados com a ideia de constituição de subjetividade presente em Foucault.
Vejamos, pois, mais detalhados os temas propostos.
O primeiro capítulo, intitulado Horizonte histórico: das vias labirínticas da
filosofia da Educação, tem como intenção apresentar o que será o fundamento teórico
do conceito educação nesta tese, bem como a aproximação desse conceito com o texto
foucaultiano. Esse capítulo possui três movimentos basilares: o conceito de educação
na Antiguidade, em que se expõe a concepção da educação dos séculos VI a.C. até o
século IV d.C; a ressignificação da educação na Modernidade, em que se estabelece
um novo paradigma referente ao fenômeno educacional e; por fim, a compreensão da
educação na contemporaneidade, dialogando especificamente com autores que estão
no arcabouço teórico de Foucault, sendo eles: Marx e Nietzsche.
Após a dissertação sobre o conceito de educação, será apresentado um panorama
geral da abordagem filosófica de Michel Foucault no segundo capítulo, intitulado Os
Domínios foucaultianos. Nessa seção, serão estudados os três principais temas da
perspectiva filosófica de Michel Foucault, a saber: a arqué, a genesis e o éthos. A
compreensão desses três aspectos, bem como da influência da fenomenologia na
construção teórica de Foucault, é importante porque todos esses domínios são
entrelaçados nas narrativas foucaultianas. Pensar a história, o poder e a ética não é
possível de modo estanque e fragmentado, em vez disso, a articulação temática e
conceitual é o que traz novas perspectivas hermenêuticas sobre o sujeito e as variáveis
e os vetores que o compõem.
18

O terceiro capítulo da tese, Hermenêutica do Sujeito: o terceiro domínio


foucaultiano, parte do processo analítico e crítico do texto de Foucault Hermenêutica
do Sujeito (2018), em que se buscará aparato conceitual para pensar a constituição da
subjetividade. Na proposta foucaultiana, o cuidado de si é elemento imprescindível
para a constituição de si. Foucault, como mencionado anteriormente, dialoga com
textos da antiguidade, entre eles Platão, Sêneca e Marco Aurélio, com o intuito de
apresentar como o sujeito era compreendido na antiguidade, e as técnicas
desempenhadas sobre o si mesmo para a efetivação do cuidado de si.
Foucault destaca alguns pontos nevrálgicos para esse processo constitutivo,
entre eles o tempo para si mesmo, a filosofia como espiritualidade, a presença do
outro, a ciência da stultitia, a importância da escuta e a utopia. Ainda que esses termos
sejam tratados de modo específico na hermenêutica que o sujeito faz de si mesmo, são
conceitos que transitam de modo significativo no campo semântico da educação.
Outro ponto importante desse capítulo é a introdução do texto Alcibíades Primeiro, de
Platão, uma narrativa que trata especificamente do cuidado de si. O enredo da
narrativa articula os personagens Sócrates e Alcibíades em um jogo narrativo e
constitutivo de si mesmo
É a partir da análise foucaultiana sobre o Alcibíades Primeiro que se estabeleceu
um roteiro prévio de diálogo com os discentes, docentes e agentes administrativos que
compuseram parte da investigação desta tese. Para fundamentar a teoria narrativa que
a acompanhará, o capítulo quatro, Teorias Narrativas da Cotidianidade, apresenta o
que se entende por narrativa nesta tese, bem como a análise literária e narrativa do
texto platônico sobre Alcibíades Primeiro, a fim de estabelecer o viés que pautará o
diálogo com os discentes, docentes e agentes administrativos.
O quinto capítulo, Educar sem (de)formar: contribuições foucaultianas para a
filosofia da educação, é uma proposta de articulação teórica com as narrativas dos
alunos, professores, coordenadora e diretora. Neste processo reflexivo e
compreensivo, o esforço se atém na premissa de que existe um discurso relacionado à
educação que permeia todas as narrativas, o qual compõem a legitimação social, bem
como está articulado com a aura de normatização dominante.
Derivando da teoria foucaultiana, esta tese buscará algumas pistas para a práxis
da educação, ou seja, uma educação que compreenda a importância da desconstrução
da subjetividade reificada, para a proposta de uma subjetividade construída a partir do
19

contra-discurso ou da autenticidade do sujeito. A constituição da subjetividade que


prestigie a autonomia do ser é o ponto inicial de espíritos insurgentes.
Portanto, a proposta é dialogar com a epistemologia, com a teoria a partir do
mundo vivencial e da prática. A contribuição que se espera com esta pesquisa é que a
teoria não parta do idealismo, que de modo geral está distante da realidade, que traz
consigo a tendência de impor olhares e resoluções que não correspondam a nenhuma
necessidade factual. Em vez disso, o intuito é destacar como a educação tem tratado a
subjetividade e como pode se portar ao que se refere à constituição da subjetividade
do sujeito a partir do cuidado de si.
20

1. HORIZONTE HISTÓRICO: DAS VIAS LABIRÍNTICAS DA FILOSOFIA

DA EDUCAÇÃO

O que diferencia o ser humano dos outros animais é sua capacidade de


mergulhar em um oceano infinito chamado educação. Somente o ser humano tem a
vocação de adentrar nas peculiaridades do mundo, pensar e ressignificar seus sentidos
e significados e, assim, ter autonomia para assumir o protagonismo de si mesmo, de
sua história. Todo esse fenômeno está intimamente ligado com a educação. Não é uma
educação restrita às normas de conduta de uma sociedade, que estabelecem
paradigmas do vernáculo que será utilizado pelo sujeito, bem como todas as demais
ações relacionadas à prática moral e social. É uma educação transcendental, em outras
palavras: é o dispositivo que lança o sujeito para dentro de si em relação com o mundo
que está para além de si.
Ao considerar a educação como dispositivo que lança o sujeito para dentro de si,
se estabelece relação direta com o eixo desta tese que é perscrutar o fenômeno
educação, comparando as narrativas de discentes, docentes e agentes administrativos
com a narrativa platônica do “Alcibíades Primeiro”, com o intuito de encontrar
caminhos que auxiliem na desconstrução da subjetividade do sujeito, a fim de que
outra constituição do ser se viabilize. Logo, este ato é a retomada da hipótese desta
tese que circula na proposição de revisitar as narrativas do cotidiano da educação as
quais revelam caminhos constitutivos da subjetividade dos sujeitos.
O termo educação assumiu muitos conceitos e enfoques diferentes no decorrer
da história. Essa pluralidade conceitual está presente, por exemplo, na definição de
21

Abbagnano sobre educação como: “a transmissão e o aprendizado das técnicas


culturais, que são as técnicas de uso, produção e comportamento, mediante as quais
um grupo de homens é capaz de satisfazer suas necessidades, proteger-se contra a
hostilidade do ambiente físico e biológico e trabalhar em conjunto, de modo mais ou
menos ordenado e pacífico” (2007, p. 305). Luckesi descreve:
A educação é um típico ‘que-fazer’ humano, ou seja, um tipo de
atividade que se caracteriza fundamentalmente por uma
preocupação, por uma finalidade a ser atingida. A educação dentro
de uma sociedade não se manifesta como um fim em si mesma, mas
sim como um instrumento de manutenção ou transformação social.
Assim sendo, ela necessita de pressupostos, de conceitos que
fundamentem e orientem os seus caminhos. A sociedade dentro da
qual ela está deve possuir alguns valores norteadores de sua prática.
(1990, p. 30-31).

Nessa citação, a ideia de educação está diretamente associada com o ato criativo
do ser humano. A educação tem como teleologia a transformação do sujeito e do meio
em que ele está, não o inverso. Quando a educação serve para instrumentalizar o
sujeito e transformá-lo em espelho das expectativas sociais, a educação perde sua
função primeira. Para Luckesi, a educação carrega uma dimensão axiológica, pois tem
uma relação dialética com o meio em que está inserida, todavia, não é refém do
sistema em que está inserida. Os valores culturais são norteadores, não restritivos.
Segundo Abbagnano, a educação está intimamente ligada com a ideia de cultura,
isso porque a cultura é imprescindível para as formações sociais e, por outro lado, a
cultura só é transmitida por meio da educação. Torna-se impossível pensar educação
sem os meandres típicos da cultura. Nessa direção, a educação se evidencia de duas
maneiras: a primeira forma como transmissora de “técnica de trabalho e de
comportamento que já estão em poder no grupo social e garantir sua relativa
imutabilidade” (ABBAGNANO, 2007, p. 306); e a segunda forma, a partir das
técnicas ensinadas e apropriadas pelo grupo, encontrar meios para que o sujeito tenha
a aptidão para alterar e aperfeiçoar essas técnicas.
As diferenças entre as duas perspectivas são fundamentais e serão o mote da
problematização desta tese, pois, se a educação é simplesmente a transmissão de um
paradigma pré-estabelecido, que corresponde às expectativas das forças dominantes,
isto é, que está no controle da sociedade, a educação não passa de um adestramento
das subjetividades dos sujeitos – estabelecendo um paralelo com a primeira definição
de Abbagnano. Porém, se a educação tem como pressuposto a formação do sujeito, de
22

modo que este seja capaz de perceber-se e alterar a sua existência, alterar sua
história, alterar sua maneira de pensar e agir, a segunda definição é mais provocativa.
Portanto, a título preliminar, esta tese fundamentará seus esforços na ideia de que a
educação é a constituição de uma subjetividade ciente de si e, ao mesmo tempo, que
promova o constante devir sobre si, esboço de metanarrativas.
A articulação entre metanarrativa, educação e devir se aproxima da proposta que
Ghiraldelli aponta de filosofia da educação fundacionista, isto é, “se a metanarrativa
visa legitimar uma pedagogia que diz educar o homem para ser livre, ou seja, para que
ele venha a ser aquilo que é essencialmente, então tal narrativa filosófica, ou melhor,
tal metanarrativa é uma filosofia da educação” (GHIRALDELLI, 2006, p. 37).
Educação é a promoção dessa narrativa transcendental que faz o sujeito ter
consciência de si, do mundo, em um ato constante e ininterrupto de reciprocidade.
Parte significativa de influência sobre essa perspectiva metanarrativa presente na
educação se deve a Sócrates. É a partir desse filósofo grego que a dimensão
antropológica ganha destaque. Em vez das discussões em torno da cosmogonia ou
cosmologia, o filósofo se propõe a pensar sobre a política, a conduta moral, a verdade,
a justiça, a felicidade, o amor, enfim, temas inerentes à existência humana. Para
fundamentar sua arguição, Sócrates coloca o tema da educação como eixo fundante da
constituição do sujeito.
Sócrates é aquele que tem a vida voltada para a formação das pessoas. Seu
despertar se deu a partir do oráculo de Delfos que afirmou que ele, Sócrates, seria o
homem mais sábio de toda Grécia. Tal afirmação perturbou o filósofo de tal maneira
que ele passou a procurar os sábios da cidade a fim de inquerir, se, de fato, ele era
mesmo o homem mais sábio. Sua conclusão foi que, diferente dos sábios de sua época
que eram encharcados de certezas, Sócrates só tinha uma única certeza: a própria
incerteza. Ele só sabia que nada sabia (“só sei que nada sei”).
Esse despertar para a consciência da ignorância ocorre a partir da máxima
socrática “conhece a si mesmo” (tema que abordaremos no capítulo sobre o terceiro
Foucault), de modo que reconhecer a ignorância não é voto de permanência nessa
condição. Platão, responsável por registrar as memórias de seu mestre Sócrates,
descreve que toda a vida do seu mestre foi voltada para o ato do conhecer a si mesmo,
bem como auxiliar os outros neste movimento centrípeto (um lançar para dentro) e,
posteriormente, centrífugo, de lançar-se para fora de si, uma dialética entre o eu e o
mundo. Seu engajamento voltado à educação resultou em suas acusações, sedução dos
23

jovens e ateísmos, os quais lhe renderam a pena de morte. O próximo tópico tratará
com mais afinco desta temática da educação na Antiguidade, porém destacamos a
insistência de Sócrates em auxiliar que os sujeitos tenham suas subjetividades
decolonizadas.
A reflexão sobre o fenômeno educação exige a apropriação de epistemologias
filosóficas que contribuam para o ato de discernir, de modo claro e apurado, quais os
possíveis caminhos para uma educação potencializadora, não castradora. Tanto a
Filosofia como a Educação podem ser analisadas isoladamente, todavia, quando há o
vínculo entre essas duas abordagens, percebe-se um novo campo reflexivo e
perceptivo.
Para Ghiraldelli “a filosofia da educação se preocupa com a educação,
levantando observações que os outros setores do campo educacional não acham
pertinentes ou nos quais nem mesmo veem inteligibilidade” (2006, p. 30). Para esse
autor, há uma particularidade da filosofia da educação, pois esta não é nem atributo de
um cientista da educação que busca diagramar e equacionar os processos envoltos na
educação a fim de explicar os fenômenos atrelados à educação; bem como a filosofia
da educação não está a serviço do proselitismo religioso com o intuito de catequisar os
sujeitos a uma prática moral cristalizada. A filosofia da educação não despreza a
transcendência do religioso nem as contingências do cientista, mas não fica só nisso.
Segundo Ghiraldelli, é nesse ato que se cria discurso sobre a boa pedagogia. E esta,
em muitos casos, é a negação de uma pedagogia que vem sendo reproduzida durante
muitos anos. É um incomodo para aqueles que se negam a ver os reais problemas da
educação; “não é inimigo do pedagogo, mas o seu bom amigo, seu apoio, o seu outro
lado” (GHIRALDELLI, 2006, p. 34). Quando se compreende a boa relação entre a
filosofia da educação e o pedagogo, o sucesso se instaura:
O sucesso da filosofia da educação assim imaginada e assim
formulada é que ela, mostrando-se suficientemente normativa para
se apresentar como uma pedagogia completa, facilita a integração
entre a reflexão filosófica em educação e as necessidades práticas da
sala de aula e seus problemas cotidianos, tudo o que atinge mais
direta e imediatamente os professores e alunos. (GHIRALDELLI,
2002, p. 80).
Nessa citação, evidencia-se a superação dicotômica entre teoria e prática. A
filosofia da educação tem como pressuposto partir das demandas do cotidiano e, dessa
maneira, pensar em ações pertinentes para um devir construtivo referente à sala de
aula (AQUINO, 2003). Pensar a educação a partir dos seus dilemas corriqueiros,
24

sejam eles estruturais, políticos, sociais, econômicos ou quaisquer outros, faz com
que a filosofia da educação se despregue de um patamar passivo para uma ação ativa e
protagonista da realidade.
Estudar filosofia da educação é importante porque confronta a ideia de que
ensinar, educar e formar são sinônimos, e mais do que isso, o filósofo da educação é
aquele que percebe a ipseidade de cada sujeito e, para mantê-la, precisa agir de modo
plural, isto é: as pessoas são diferentes, logo, são únicas, não há coerência em tratar
pessoas díspares com metodologias idênticas. Cada sujeito possui tempo
diversificado, ritmos múltiplos, histórias de vida bem peculiares, enquanto a
pedagogia vigente vem com um molde pré-estabelecido, de modo que os que não se
adaptam ao que é proposto são excomungados ou colocados em um patamar de
inferioridade, o filósofo da educação, ao problematizar a boa (e má) pedagogia,
privilegia novos horizontes e possibilidades do potencializar a aprendizagem, como
destaca Ghiraldelli:
O filósofo da educação cria um invólucro teórico para acolher sua
pedagogia que, ele sabe, talvez seja irrealizável. Mas esse invólucro
é para deixar todos com dúvidas a respeito do que estão fazendo e
acreditam que é correto; é para tirar o tapete daqueles que agem sem
discussão – como gostam os dogmáticos – ou com discussão demais,
que não leva a mudança de rumo – como gostam os burocratas de
99% dos governos. (2006, p. 31).
Pensar a educação sobre o viés da filosofia é valioso em nossos dias, haja vista
a crise narrativa e a crise heterotópica que assolam a contemporaneidade. Diante do
pessimismo das contingências globais, em que a mudança não passa de espectro de
um devaneio típico das impossibilidades, o sujeito para de narrar sobre si e sobre os
sonhos, não há heterotopias que movimentem o sujeito (JOSGRILBERG, 2012). O
impacto de uma estrutura consolidada e imobilizada é extirpar as possibilidades de
ficcionar novos horizontes. Articular filosofia e educação é encontrar uma composição
de valores que dão ao sujeito rudimentos necessários para que ele consiga ser inteiro
em relação com as situações que estão em torno dele. Para ser livre, é necessário ter a
consciência de liberdade, como deverá ser observado posteriormente na ótica de
Boétie, e somente a educação pode promover esse despertar.

Encadear filosofia e educação não é um esforço em estabelecer teorias ou


métodos altamente eficazes, uma vez que o esforço dos responsáveis em pensar
educação tem se baseado em dimensões pecuniárias, nos resultados, em uma
instrumentalidade que transforma sala de aulas em um celeiro de produzir pessoas
25

informadas, as séries são condicionadas a lotes, os quais precisam atender às


demandas do mercado.
Dentro desse contexto, tem se tornado comum trazer pessoas que não vivenciam
a sala de aula, a rotina da educação, o cotidiano de uma escola para que criem teorias
fantásticas, com resultados sedutores, mas desprovida de sentido e significado para
quem, de fato, está na lida da educação. A história da educação recente (por exemplo a
Lei de Diretrizes Básicas) apresenta essa tendência tecnicista, um viés essencialmente
pragmático. Essa ideologia está em consonância com os pressupostos positivistas, em
que a ordem e o progresso estão atrelados com desenvolvimento e crescimento
tecnológico, sem ponderar o ser humano em sua integralidade (ILLICH, 1973).
Seguindo a perspectiva de Chaui (2016), existem, ao menos, dois arquétipos de
autores: de um lado, aqueles que se propõem a teorizar sobre a educação sem
vivenciá-la, são pessoas que falam sobre a educação; do outro lado, aqueles que se
propõem a falar da educação a partir da experiência educativa, um protagonista vivo e
ativo que descreve as nuances vivenciadas e experienciadas. Esta tese tenta apresentar
como este segundo ator é imprescindível para a constituição da subjetividade dos
sujeitos.
Conclui-se, dessa forma, que o paradigma de mercado estabeleceu um molde
que as instituições de ensino, sejam elas privadas ou não, respondam a tais demandas
(SUNG, 2005). Alguns acreditam que o ensino público está fora dessa algoritmização,
porém, ao analisar o discurso dos responsáveis pela educação em âmbito municipal e
estadual, o que se evidencia é que as narrativas são monossêmicas, isto é, querem
encontrar receitas para aumentar o número do Índice de Desenvolvimento da
Educação Básica, colocar as escolas no topo dos rankings, porém, a preocupação com
os sujeitos, com sua relação com a educação, com a constituição de sua subjetividade,
sua formação como indivíduo é descartada. A lógica do mercado violenta a lógica da
educação como destaca Silva:
A redefinição da educação em termos de mercado insere-se nessa
epistemologia social. A educação deixa de ser definida como um
espaço público de discussão, como uma instituição pertencente à
esfera política, e passa a ser redefinida como um bem de consumo,
no qual estudantes e pais figuram como consumidores individuais e
isolados em busca de seus supostos direitos de consumidores. Nesse
processo, tentem a ser suprimidas categorias e conceitos com os
quais tendíamos a encarar a educação institucionalizada – justiça,
igualdade –, deslocados em favor de outras categorias e conceitos –
mercado, consumidor, qualidade total (1994, p. 255).
26

Pode-se pensar, também, até que ponto não existe uma lógica de mercado na
educação? Ou seja, a educação é um produto altamente rentável na lógica capitalista.
O paradigma mercantilista se impôs fundamentado em altos resultados lucrativos e
quantificados. Fica difícil dissociar a tecnologia do próprio sujeito, haja vista que a
tecnologia, que era para ser uma extensão do indivíduo, passou a ser a própria prótese
do sujeito. Os papéis docentes e discentes estão corrompidos pela lógica mercantilista.
A construção do imagético sobre educação precisa ser refeita e ressignificada.

Outro ponto de tensão é a alta mutabilidade do globo terrestre (BAUMAN,


1998b). O mundo é alterado significativamente a cada minuto. A informação impacta
as relações sociais, desde as afetivas, profissionais, escolares até a relação consigo.
Ainda que o mundo viva em constante mutação, parece que a formação dos docentes
e, consequentemente, dos discentes estão em desacordo com as novas demandas da
contemporaneidade. A práxis da educação tem se tornado obsoleta, pois não tem se
atentado às demandas contemporâneas. Preparam-se sujeitos do século XXI com
paradigmas do século XVII para atender a demandas futuristas. Será que essa equação
dará certo? O docente é aquela pessoa que precisa ater-se aos movimentos da
atualidade. Seus olhos precisam ater-se ao fenômeno educativo e ao devir arbitrário
típico de uma sociedade fluida.

Para tratar melhor desse tema, os tópicos seguintes desta tese trilharão sob um
viés linear da história, pois tratarão da filosofia da educação como uma composição
fundamentada na história, porém, buscará se desprender dos limites históricos ao
problematizar cada período proposto. Para tal empreitada, o primeiro ponto a ser
analisado será a Antiguidade (que parte desde o século VII a.C – até o século IV d.C);
em seguida, apresentaremos alguns rudimentos da modernidade (do século XV até
século XVIII) e, por fim, a contemporaneidade (séc XIX-XXI). Não focaremos no
período medieval por compreender que a grande parte do que foi desenvolvido na
Antiguidade como mentalidade voltada à educação foi absorvida e aplicada no período
medieval, apenas cristianizando os conceitos e valores. Consideramos autores como
Agostinho e Tomás de Aquino, todavia, não será o esforço desta tese analisar a
produção desse período quanto ao que se refere à educação. Adentremos, pois, no
primeiro tópico.
27

1.1 Educação na Antiguidade: Análise da Paideia


Antes de tratar do conceito educação, formação e Paideia, é preciso destacar a
importância do termo aretê na sociedade grega. A ideia de aretê acompanha os nobres,
a elite, isso porque é um termo relacionado com a própria essência das divindades. Em
uma tentativa explicativa do termo “na sua forma mais pura, é no conceito de aretê que
se concentra o ideal de educação dessa época” (JAEGER, 2003, p. 25). O termo aretê,
em uma tradução livre, significa virtude. Para o mundo grego, a virtude era o tema
essencial da primeira formação do sujeito. É por meio dessa virtude que há o
descobrimento de si e do mundo vivencial. É por meio da aretê que se chega a
phronesis, isto é, a sabedoria prática. Revisitando categorias platônicas, tangenciar a
ideia de sabedoria prática é aludir ao ato de sair da caverna (PLATÃO, 2006). Apenas o
sujeito maduro, sábio e virtuoso chega no ápice da phronesis, que é um desdobrar da
aretê e que tem a seguinte conceituação:

Tanto em Homero como nos séculos posteriores, o conceito de aretê é


frequentemente usado no seu sentido mais amplo, isto é, não só para
designar a excelência humana, como também a superioridade de seres
não humanos: a força dos deuses ou a coragem e rapidez dos cavalos.
Ao contrário, o homem comum não tem aretê e, se o escravo descende
por acaso de uma família de alta estirpe, Zeus tira-lhe metade da aretê
e ele deixa de ser quem era antes. A aretê é atributo próprio da
nobreza. (JAEGER, 2003, p, 26).
O que salta na citação é que, da mesma forma que a aretê era condição restrita
a um grupo restrito, a paideia era fator determinante para a formação do sujeito,
portanto, a conclusão a que se chega é que a virtuosidade era aptidão de um grupo
seleto. Em outras palavras: os aristocratas. Posteriormente, esta tese apresentará como
esse fator de compartimentação da sociedade grega alcança, inclusive, Alcibíades, um
antigo discípulo de Sócrates que almeja adentrar na vida política. O que o texto deixa
evidente é que o inatismo presente na aristocracia é o passaporte direto tanto para a vida
política como para uma vida virtuosa (DIAS, 2015). À vista disso, torna-se inequívoco
que a arete acompanha o sujeito que vivencia a educação. Aflora, assim, outra
problematização.

Conceituar o termo educação na antiguidade grega é trilhar uma via paradoxal.


É comum na empreitada epistemológica tatear em vias etimológicas, porém, nem
sempre a busca arquetípica é suficiente para uma conceituação adequada. Jaeger (2003),
contrastando com essa tendência de definição, aponta a impossibilidade de definição do
28

termo paideia puramente pelo viés etimológico, haja vista sua amplitude conceitual e,
paralelamente, seu pragmatismo social. Essa dificuldade é nutrida devido à sinonímia
criada pelo senso comum em equiparar termos como educação, formação e paideia. A
antiguidade grega, por sua vez, carrega conotações específicas que precisam ser
contempladas e assimiladas, com a finalidade da melhor compreensão da complexidade
que é a educação, a formação, e, por fim, a paideia do grego da antiguidade. Toda e
qualquer definição da paideia seria apenas uma breve e simples caricatura do que, de
fato, é o que se denomina hoje como pedagogia e/ou educação. Antes, porém, de
aprofundar no campo semântico grego, vale definir, a fim de estabelecer fronteira entre
a concepção grega e a latina.

A palavra educação tem origem latina educare, que significa conduzir para fora
(CUNHA, 2010). Nessa direção, educar é preparar o indivíduo para viver para fora de
si, sem esquecer a si mesmo, em sociedade. Educação é, portanto, a ação de tirar a
pessoa de si a fim de que haja aproximação ao outro e consigo mesma, forjando um
novo cosmos. É importante destacar que o termo educare é posterior a aretê, a formação
ou paideia grega, logo, é possível induzir influência direta desses outros termos sobre a
ideia de educare.

Assim, como aponta Patrício, é possível definir que “educação não é sinônimo
de paideia” (2008, p. 290). Na paideia há amplitude conceitual, de modo que o ato de
educar seria uma das múltiplas facetas da paideia, pois este conceito está interligado à
ideia de civilização, de cultura, de tradição, de literatura, enfim, ao todo humano. Se por
um lado educar é um recorte da vida humana, a paideia, por sua vez, tem uma dimensão
holística, que abocanha a integralidade do sujeito, bem como todas as relações que
forjam e estabelecem a vida.

Segundo Jaeger, “os sofistas foram considerados os fundadores da ciência da


educação, com efeito, estabeleceram os fundamentos da pedagogia [...], e não foi
ciência, mas sim teknê que os sofistas chamaram à sua teoria e arte da educação”
(JAEGER, 1995, p. 348-349). O autor deixa claro que a educação, em seus traços
iniciais, traz em si uma conotação de técnica, algo produzido, manufaturado. Assim,
educação não se restringe apenas a uma parcela do sujeito, em vez disso, acopla o todo
da vida, como será visto em seguida. Essa é a conceituação da Antiguidade grega.

Seguindo os pressupostos de Jaeger, “não se pode utilizar a história da palavra


paideia como fio condutor para estudar a origem da formação grega, porque essa
29

palavra só aparece no século V [a.C]” (2003, p. 25). Conceituar educação ou paideia


não é elencar uma hierarquia de definições, pois esse esforço seria contrário à própria
noção grega de constituição do ser. Compreender a característica de cada palavra
proposta auxilia na compreensão dos desdobramentos, da progressão e da
complementariedade típica desses termos. A problematização dessas palavras ultrapassa
os limites etimológicos. Todavia, como um esforço de sistematizar os paradigmas
propostos acima, vejamos as definições propostas por Jaeger, iniciando sobre educação:

Antes de tudo, a educação não é uma propriedade individual, mas


pertence por essência à comunidade. O caráter da comunidade
imprime-se em cada um dos seus membros e é no homem, “zuon
politikou”, muito mais que nos animais, fonte de toda ação e de todo
comportamento. (2003, p. 4).
O primeiro ponto a ser destacado nessa citação é o paralelo entre individual e
coletividade presente na educação. Ainda que a educação seja uma força que toque o
sujeito, ela não fica restrita apenas ao indivíduo: é um chamado para pôr-se em
movimento. O segundo ponto enfatizado, como desdobramento ou continuação do
primeiro, é a capacidade que a educação tem em forjar o sujeito para atuar na sociedade,
isto é, ser um indivíduo que atua no singular plural. A ipseidade1 do sujeito é o que o
subsidia para interagir, espontaneamente, com o meio em que está inserido. A educação
é o que faz do sujeito um animal para além da animosidade, quer dizer:

A educação é uma função tão natural e universal da comunidade


humana, que, pela sua própria evidência, leva muito tempo a atingir a
plena consciência daqueles que a recebem e praticam, sendo, por isso,
relativamente tardio o seu primeiro vestígio na tradição literária. O seu
conteúdo, aproximadamente o mesmo em todos os povos, e ao mesmo
tempo moral e prático. (JAEGER, 2003, p. 23).
Mesmo que o educar seja simultaneamente ação sobre o singular plural, Jaeger,
partindo da constituição do homem grego, observa a inferência do meio social na
constituição do ser. O meio social é determinante tanto para a composição do ‘eu’ como
para as lentes que pautarão o sistema valorativo do indivíduo, de modo que o educar é
um acontecimento social:

Em nenhuma parte, o influxo da comunidade nos seus membros tem


maior força que no esforço constante de educar, em conformidade
com o seu próprio sentir, cada nova geração. A estrutura de toda
sociedade assenta nas leis e normas escritas e não escritas que a unem
e unem os seus membros. Toda educação é assim o resultado da
consciência de uma norma que rege uma comunidade humana, quer se

1
Por ipseidade seguimos o conceito de Abbagnano de indicar a singularidade da coisa individual.
Aquilo que particulariza o ser diante da pluralidade.
30

trate da família, de uma classe ou de uma profissão, quer se trate de


um agregado mais vasto, como um grupo étnico ou um Estado. (2003,
p. 4).
Fica claro que equalizar o sujeito com a axiologia vigente em sua cultura é um
elemento presente na construção educativa. Essa ideia de que a educação é “consciência
que rege a sociedade” demonstra, sobretudo, a dimensão ideológica encontrada na
educação. Ela, por natureza, é encharcada de valores e princípios que pautam as
decisões dos sujeitos e sua adequação às normas vigentes. Não seguimos, aqui, o
pressuposto marxista de que a ideologia é um elemento essencialmente negativo
(MARX; ENGELS, 2001), em vez disso, apontamos que não há neutralidade no ato de
educar, pois ele é o resultado do processo dialógico de uma comunidade, logo, a
ideologia, nessas categorias, é elemento sui generis da sociedade.

Neste imbróglio, a ideia de paideia é evidenciada. Na constituição de cosmos


na antiguidade grega, a paideia não ficou restrita, apenas, à criação de crianças. Em vez
disso, passou a ser interpretada como o todo do sujeito, isto é, além da dimensão
cultural os filtros pelos quais o indivíduo dá sentido e significado para toda a sua
composição existencial. Assim, educação faz parte da paideia, porém não sintetiza ou
restringe o que é a intencionalidade última da paideia. Para Jaeger, o cerne da paideia
está nas entranhas existenciais do sujeito, isto é, “a paideia não é, para o grego, um
aspecto exterior da vida, kataskeue tou biou, incompreensível, fluido e anárquico. Tanto
mais conveniente se torna, por isso, iluminar a sua verdadeira forma a fim de nos
assegurarmos do seu autêntico sentido e do seu valor originário” (2003, p. 8-9), em
suma, a ideia de paideia é uma técnica na vida para o despertar do eu rumo a verdade de
si mesmo em reciprocidade com o mundo e suas contingências.

O texto de Jaeger evidencia a seletividade presente na antiguidade grega ao que


se refere à noção de paideia, pois esse conceito era um privilégio para poucos, ou seja,
dos aristocratas. Constata-se a correspondência e harmonização direta entre as
expectativas dominantes com o modo de fazer e desenvolver a paideia de toda cidade.
Estudar a paideia grega é penetrar as diversas camadas sociais da antiguidade grega,
haja vista que “a importância universal dos gregos como educadores deriva da sua nova
concepção do lugar do indivíduo na sociedade” (JAEGER, 2003, p. 9). Nessa direção,
hierarquizar é garantir a manutenção satisfatória da pólis.

Esse ato de nomear quem é o sujeito e qual a sua função na sociedade grega
dialoga com a tensão típica da educação deste período, já que o locutor e a mensagem
31

não são dissociáveis, outrossim, fixos um no outro, pois “no que se refere ao
problema da educação, a consciência clara dos princípios naturais da vida humana e das
leis imanentes que regem as suas forças corporais e espirituais tinha de adquirir a mais
alta importância” (JARGER, 2003, p. 13), consequentemente, a educação não era para
qualquer pessoa. É nessa tensão entre o ideal e real, entre quem é o sujeito e sua função
na sociedade, que Jaeger destaca a importância dos gregos antigos para a composição do
imagético sobre educação, pois “os gregos viram pela primeira vez que a educação tem
de ser também um processo de construção consciente” (2003, p. 13). Uma premissa
paradigmática na antiguidade:

Podemos agora determinar com maior precisão a particularidade do


povo grego frente aos povos orientais. A sua descoberta do Homem
não é a do eu subjetivo, mas a consciência gradual das leis gerais que
determinam a essência humana. O princípio espiritual dos Gregos não
é o individualismo, mas o ‘humanismo’, para usar a palavra no seu
sentido clássico e originário. (JAEGER, 2003, p. 14).
Ao trabalhar o tema da paideia na antiguidade grega, Jaeger revela um novo
viés, não só da subjetividade (dimensão individual), mas do prisma humanista, ou seja:

Significou a educação do Homem de acordo com a verdadeira forma


humana, com o seu autêntico ser. Tal é a genuína paideia grega,
considerada modelo por um homem de Estado romano. Não brota do
individual, mas da ideia. Acima do homem como ser gregário ou
como suposto eu autônomo, ergue-se o Homem como ideia. A ela
aspiram os educadores gregos, bem como poetas, artistas e filósofos.
Ora, o Homem, considerado na sua ideia, significa a imagem do
Homem genérico na sua vaidade universal e normativa. Como vimos,
a essência da educação consiste na modelagem dos indivíduos pela
norma da comunidade. (2003, p. 14-15).
É impossível não relacionar a descrição de Jaeger com a alegoria da caverna de
Platão (2006). O filósofo ateniense aborda a perfeição das ideias e a imperfeição da
realidade. Refletir sobre o sujeito ideal é ponderar o que há de mais perfeito na
humanidade. Dessa forma, o sujeito será modelado pela normatividade que orienta a
sociedade, a qual tem a aura de perfectibilidade. Esse processo de conscientização sobre
quem é o ser humano como indivíduo e a disparidade do ser humano como ideia
proporcionou aos gregos um arcabouço com fôlego suficiente para “uma
fundamentação, mais segura e mais profunda que a de nenhum povo da Terra, do
problema da educação”. (JAEGER, 2003, 15).

Como se vê, a problematização sobre o tema da educação solapa a ideia do


isolacionismo do indivíduo e, em seguida, lança o sujeito para a esfera pública, logo, da
32

política. A paideia grega está acoplada ao âmbito político. O humanismo da paideia é


a exteriorização do imagético político típico dos gregos da antiguidade, tendo em conta
que “todo o futuro humanismo deve estar essencialmente orientado para o fato
fundamental de toda a educação grega, a saber: que a humanidade, o ‘ser do Homem’ se
encontrava essencialmente vinculado às características do Homem como ser político”
(2003, p. 17). É por meio da paideia que o grego político é manufaturado. É assim que
Jaeger introduz a noção de formação.

É comum, na atualidade, ler artigos ou participar de eventos que têm como


tema a formação. O propósito básico desses artigos ou eventos é subsidiar o sujeito de
ferramentas que garantam sua eficácia em seu respectivo trabalho. No caso da educação,
espera-se que o sujeito tenha a instrumentalidade necessária para formar outras pessoas.
Essa noção de formação contemporânea nada ou pouco se aproxima da intencionalidade
grega. Não poucas vezes, faz-se a apropriação de termos específicos da antiguidade
que, com o passar do tempo, sofreram desgastes e acomodações interpretativas os quais
não correspondem ao intuito originário do conceito. O exemplo dado por Jaeger (2003)
é a sincronia entre educação e formação. Mesmo que o campo semântico desses termos
transite em um mesmo plano, seus efeitos são extremamente peculiares. Assim, se a
educação é uma função natural do ser humano, sendo que ela só se torna possibilidade
por meio da formação, a formação é responsável por assegurar para o sujeito um ideal a
ser seguido. A educação é efetivada por meio da formação:

Da educação, neste sentido, distingue-se a formação do Homem por


meio da criação de um tipo ideal intimamente coerente e claramente
definido. Essa formação não é possível sem se oferecer ao espírito
uma imagem do homem tal como ele deve ser. A utilidade lhe é
indiferente ou, pelo menos, não essencial. O que é fundamental nela é
a kalón, isto é, a beleza, no sentido normativo da imagem desejada, do
ideal, contraste entre estes dois aspectos da educação pode ser
acompanhado através da história: é componente fundamental da
natureza humana. (JAEGER, 2003, p. 24).
A sincronia entre paideia e educação é efetivada pela formação. Se paideia
compõe as diversas facetas do sujeito, a educação é o aspecto inerente à própria
ontologia do ser, a formação é o ato que potencializa a virtuosidade – a aretê – no
sujeito. É possível, assim, afirmar que a formação tem uma dimensão holística. Este
todo não ocorre sem critérios, e o parâmetro estabelecido é dado pelo ideal que é a
própria aretê. Há um devir sinérgico entre estes termos, pois se a formação é o ato que
possibilita a potência da educação, todavia, a formação só se efetiva no ideal anteposto
33

pela educação. A independência etimológica destes conceitos não os isenta da


dimensão hermética e entrelaçada que os acompanha. Indo adiante, Jaeger afirma:

As palavras com que os designamos não têm importância em si, mas é


fácil ver que, ao empregarmos as expressões educação e formação
para designar estes sentidos historicamente distintos, educação e
formação têm raízes diversas. A formação manifesta-se na forma
integral do Homem, na sua conduta e comportamento exterior e na sua
atitude interior. Nem uma nem outra nasceram do acaso, mas são
antes produtos de uma disciplina consciente. (2003, p. 24).
Retomando o exemplo dos artigos e eventos voltados à formação, entende-se
que a formação é mais que um evento pontual; é, sobretudo, o todo do próprio sujeito. É
por meio da formação que o sujeito se apropria (ou não) da educação, de si mesmo e do
seu papel na sociedade. A ideia de formação não carrega uma aura isenta de críticas, “Já
[que] Platão a comparou ao adestramento de cães de raça. A princípio este adestramento
limitava-se a uma reduzida classe social, a nobreza” (JAEGER, 2003, p. 24), nota-se
que formar é adestrar as classes dominantes à postura dominadora ou equipar a
aristocracia para suas funções aristocráticas.

A crítica do filósofo ateniense se dá sobre o pressuposto de que formação está


restrita puramente a um sentido ético e moral. Sua finalidade é a vida política e social.
Faz, então, sentido relacionar a educação com disciplinas (isoladas) formais, isto é,
ciências específicas, as quais são ministradas aos nobres da pólis, respeitando, pois, o
intuito que é alcançar a perfeição estética; em outros termos, enaltecer ou representar a
verdadeira beleza por meio da sabedoria elitizada. Como será apresentado
posteriormente, Alcibíades aprendeu sobre as artes das “letras, tocar cítara e a lutar”
(DIAS, 2015, p. 71), disciplinas típicas da nobreza grega.

Essa crítica platônica coloca em xeque não só a qualidade ou tipo de formação


que se tem desenvolvido, mas, simultaneamente, o tipo de educação e, portanto, de
paideia vigente. O texto de Jaeger aponta para a ação de refletir sobre as intenções por
detrás das entoações narrativas. Esse esforço cogitativo é fundamental na medida em
que se tem em vista compreender os pormenores da constituição do sujeito, a qual é
gerada artesanalmente nessa dialética educação, formação e paideia. O resultado da
proposta de Jaeger sobre a análise do homem grego é percebido no ato de inquerir os
paradigmas vigentes da sociedade, refutar os agentes envolvidos no processo e
qualificar as finalidades auferidas.
34

Portanto, a antiguidade caracteriza a constituição do sujeito a partir de


quatro elementos indissociáveis e independentes. (1) O primeiro é a aretê, a virtude, a
qual é aquilo que caracteriza a nobreza. É por meio da virtude que se distinguem
aqueles que mais se assemelham às divindades gregas daqueles que existem para
cumprir as ordens postas. Percebe-se claramente que a virtuosidade é o divisor de águas
entre dominadores e dominados; (2) O segundo conceito é a educação, a qual faz parte
da natureza do próprio ser humano. A educação é parte inalienável daquele sujeito que
carrega em si a aretê; (3) o terceiro aspecto é a formação. Na antiguidade grega, a
formação não era restrita a momentos esporádicos que acometiam o sujeito, em vez
disso, a formação é a constituição total do sujeito. É por meio da formação que o sujeito
traz para o mundo de si a educação. (4) A formação é o ato sobre si e para si; por fim, o
quarto aspecto é a própria paideia termo caro para a antiguidade clássica. Como se
apresentou, a paideia não era acessível ou disponível para qualquer pessoa, haja vista
que para o tempo reflexivo era necessário o tempo de ócio; bem, este estava disponível
apenas para os ricos que faziam parte da aristocracia. A paideia é, por sua vez, essa
dimensão cultural, holística do sujeito. É por meio da paideia que o sujeito olha para si
mesmo e para o todo em que está inserido. A paideia demonstra a total dependência
entre partes e o todo, bem como a necessidade de autonomia e independência entre
esses elementos. A seção a seguir apresentará os temas da educação presentes na
modernidade.

I.2 Educação na Modernidade


Antes de adentrar no tema próprio desta seção, que é a modernidade, recorte
histórico que abarca o século XV até século XVIII, faz-se necessário explicar o porquê
de não apresentar os rudimentos teóricos da educação no período medieval. É notória a
relevância de pesquisas ao que tange à educação no período medieval. Segundo Reale e
Antiseri (1990), autores como Agostinho e Tomás de Aquino deram novo fôlego para a
teologia, a filosofia e a educação.

Foi nesse período que as universidades surgiram, sob a tutela do catolicismo,


bem como “é inegável o serviço prestado pelo monarquismo, que deixou como herança
as sete artes liberais, a saber: o trivium (gramática, retórica e dialética) e o quatrivium
(aritmética, geometria, música e astronomia)” (FERNANDES, 2012, p. 4629). Larroyo
(1982) evidencia como a educação formal, em um primeiro momento, era desprezada,
35

inclusive, pela elite medieval, pois o que se tinha em mente era o trabalho voltado
para o cultivo e produção da terra. Luzuriaga (2001) mostra que até mesmo nos
mosteiros a educação e a cultura ficavam abaixo da ênfase religiosa, a qual era
encharcada da moral e espiritualidade típicas do cristianismo.

Mais do que saber das coisas da vida, cabia ao sujeito se atentar aos mistérios
do céu. Assim, a subdivisão social segue a lógica determinista, isto é, as funções dos
sujeitos eram determinadas previamente, antes mesmo da existência, e cabia ao sujeito
submeter-se a sua respectiva atividade. Esse imaginário não era só propagado,
sobretudo era assimilado e aceito por todos. Cambi (1999) afirma que essa educação
informal era determinante para a construção das subjetividades, bem como os papéis
que cada sujeito iria desempenhar na sociedade, visto que, segundo Aranha (1989), a
condição do homem era determinada pela relação que ele tinha com a terra, fosse de
vassalo ou de soberano. Havia a concepção da interferência direta do divino na vida
cotidiana, era impossível separar teologia católica e educação, pois tornaram-se um
único tema. Em suma, a educação medieval é, por essência, teocêntrica.

O renascimento é responsável por apresentar novos contornos à educação.


Segundo Montaigne (1984), a Escolástica cristalizou a virtude do saber em um alto
monte, a qual é inacessível para o humano. A teologia católica já não conseguia
responder às questões emergentes do mundo, haja vista a nuvem de obsoletismo teórico
e prático que pairava sobre os dogmas católicos; segundo George (1993), as reformas
protestantes alteraram significativamente a forma como as grandes massas se
relacionavam tanto com a religião como com os poderes estatais vigentes. Chaui
conceitua esse período com algumas peculiaridades:

O Renascimento teria sido época de grande efervescência intelectual


e artística, de grande paixão pelas novas descobertas quanto à
Natureza e ao Homem, de redescobertas do saber greco-romano
liberado da crosta interpretativa com que o cristianismo medieval o
recobrira, de desejo de demolir tudo quanto viera do passado, desejo
favorecido tanto pela chamada Devoção Moderna (a tentativa de
reformar a religião católica romana sem romper com a autoridade
papal) quanto pela Reforma Protestante e pelas guerras de religião,
que abalaram a ideia de unidade europeia como unidade político-
religiosa e abriram as portas para o surgimento dos Estados
Territoriais Modernos. (2010, p. 2).
Seguindo a perspectiva analítica de Chaui (2010), o Renascimento tem como
marca ao menos quatro pontos: 1) nascimento das academias laicas e livres (as
acadêmicas redescobrem outras fontes teóricas do pensamento antigo que alteram
36

significativamente a forma de encarar a teologia/religião; 2) a preferência pelas


discussões em torno da clara separação entre fé e razão, Igreja e Estado etc.; há um
princípio de hermenêutica secularizada, isto é, sem utilizar de instrumentais religiosos
para explicar a natureza, o homem etc.; 3) interesse pela ciência ativa ou prática em vez
do saber contemplativo (técnica); 4) alteração da perspectiva da fundamentação do
saber, sair da teocêntrica e ir para a naturalista e humanista.

Na proposta interpretativa da história da filosofia de Chaui (2010) descrita


acima, dois eixos são perceptíveis no Renascimento e, posteriormente, na modernidade:
o primeiro fincado na discussão sobre a ontologia da alma e da racionalidade humana; o
segundo eixo é o debate pertinente aos rudimentos inerentes às teorias políticas
vigentes. Com essas bases, a reflexão filosófica e, consequentemente, da educação
assumem novos escalões, pois há uma transição da ciência especulativa para uma
ciência ativa; superação das explicações finalísticas e qualitativas para explicações
quantitativas e mecanicistas; ressignificação das explicações metafísicas para o âmbito
da temática da liberdade humana e vontade divina.

Os três séculos que molduram o período da modernidade concatenam dezenas


de autores que foram pertinentes às demandas de seu período. Para esta tese, foram
selecionados apenas quatro que sintetizam categoricamente este período histórico de
grandes rupturas e mutações paradigmáticas, além de ser autores caros à Foucault.
Como autor que problematiza o paradoxo da educação como fenômeno humanístico e
alienador, Boétie defende que a educação é aquilo que diferencia o ser humano dos
demais animais por apontar para o ser a imensidão da liberdade, porém, pode ser por
essa mesma educação que o sujeito se acomoda a uma práxis animalesca; o texto de
Montaigne sobre a educação de criança aborda uma dimensão da prática, ou seja, a
educação tem uma dimensão pragmática e revolucionária na vida das crianças; na
proposta rousseuauniana, a educação carrega um teor duplo, ou é moldura
estereotipada que torna o sujeito em cidadão ou é negativa ao perseverar ou almejar o
estado de natureza; por fim, para Kant a educação é o elemento que faz o sujeito
alcançar sua dimensão humana, com adornos positivistas. Esses autores serão
apresentados a seguir.
37

I.2.1 Educação em Etienne de La Boétie e Michel de Montaigne


A vida e obra de Etienne de La Boétie foram demasiadamente curtas. Mesmo
com a morte prematura aos 33 anos, o autor francês deixou a obra “Da Servidão
Voluntária” (2010) que tem como tema central o ser humano e suas contingências. É um
texto que se propõe a refletir sobre as diversas relações de que o sujeito está passível.
Estão presentes neste texto temas da filosofia política, por exemplo, a interrogação do
porquê muitos se sujeitam a tão poucos, até temas que perpassam a complexidade
humana como a concepção da liberdade. É a partir da concepção de liberdade que
Boétie se aproxima da educação.

Para introduzir o tema educação, o pensador francês afirma que “a liberdade é


a única coisa que os homens não desejam; e isso por nenhuma outra razão (julgo eu)
senão a de que lhes basta desejá-la para a possuírem; como se recusassem conquistá-la
por ela ser tão simples de obter (2006, p. 9). Nota-se que nessa alusão de Boétie há,
segundo Toneti (2009), um paradoxo: ao mesmo tempo que o sujeito não desfruta na
liberdade, ela, por si só, é fácil de ser adquirida, basta ser desejada. A falta de vontade
para ter a liberdade é que faz do sujeito um ser ignóbil quanto à liberdade. Desejar a
liberdade não é um processo instintivo ou biológico, é, aliás, um processo de
racionalização e subjetividade. Portanto, aprende-se a desejar a liberdade.

Boétie aponta que a condição de permanecer no patamar de submissão


acompanha o sujeito, o qual foi adestrado a servir irrefletidamente às estruturas
dominantes. A metáfora utilizada por Boétie é de chagas na consciência, em que está
naturalizado no princípio vital do sujeito aquilo que nunca deveria ter sido normalizado.
É preciso curar a alma que sofre da frigidez da vontade de liberdade. Só existe uma
servidão voluntária porque não há desejo pela vontade de liberdade. Contrastando a aura
do período medieval em que o sujeito estava cativo a uma determinação social, Boétie
afirma que o sujeito, independente de quem seja, de onde veio e para onde vai, pode
desejar a liberdade, pois esse desejo é demasiadamente humano. O filósofo francês
apresenta que, enquanto o sujeito for humano, poderá haver o desejo por liberdade.
Segundo Boétie, “uma coisa é certa, porém: os homens, enquanto neles houver algo de
humano, só se deixam subjugar se foram forçados ou enganados” (2010, p. 14).

Para Boétie, a ideia de submissão que foi impregnada na alma do sujeito é a


pior arma contra a própria existência, pois as pessoas se acostumam com a servidão
38

voluntária e não constroem sua existência para além dos cárceres impostos. Boétie
afirma: “incrível coisa é ver o povo, uma vez subjugado, cair em tão profundo
esquecimento da liberdade que não desperta nem a recupera; antes começa a servir com
tanta prontidão e boa vontade que parece ter perdido não a liberdade, mas a servidão”
(2010 p. 15). Como superar esse patamar de encarceramento da alma? Boétie realça, já
no século XV, que a educação é fator determinante para que a racionalidade do ser
esteja a serviço de sua emancipação, não da manutenção das estruturas de dominação.
Para Boétie, a educação é o viés que remove o sujeito da bestialidade e da ignorância e
o transporta para a própria humanidade, para a consciência da consciência. Para
introduzir a centralidade na emancipação do sujeito, Boétie descreve uma sucinta
anedota:

Não julgaria antes que saíra de uma cidade de homens para entrar num
curral de animais? Licurgo, reformador de Esparta, criara (diz-se) dois
cães que eram irmãos, alimentados com o mesmo leite, um deles
habituado a ficar na cozinha e o outro acostumado a correr pelo
campo, ao som da trompa e da corneta; querendo mostrar ao povo
lacedemônio que os homens são o que a educação faz de cada um,
colocou os dois cães no meio da praça e, no meio deles, uma sopa e
uma lebre. Um correu para o prato e o outro para a lebre. Muito
embora (disse ele) fossem irmãos. (2006, p. 16).
Este é o ponto em que Etienne de La Boétie rompe com a ideia medieval de
que os sujeitos são aquilo a que estão determinados. Para sustentar seus argumentos,
Boétie enfatiza que é a educação a responsável por fazer do sujeito o que ele é. Mesmo
que a anedota se restrinja a dois cachorros, o que o filósofo francês propõe é: a
educação está para garantir a preservação e continuidade de um sistema de abstração de
liberdade ou a educação, como processo, está para a suplantação das molduras que
privam o indivíduo em desejar a liberdade. Como um sujeito pode desejar aquilo que
não conhece? Boétie afirma: “Não era possível ao persa avaliar a liberdade, pois nunca
a tivera, nem ao lacedemônio aceitar a sujeição, depois de ter conhecido o gosto da
liberdade” (2010, p. 17). Em vista disso: é a educação que potencializa à vontade.

Ainda que esteja na potência da alma do ser a dimensão da liberdade, sem a


educação não há efetivação da própria liberdade, visto que “é natural no homem o ser
livre e o querer sê-lo; mas está igualmente na sua natureza ficar com certos hábitos que
a educação lhe dá” (BOÉTIE, 2006, p. 18). A problematização proposta por Boétie é
que na mesma proporção que a educação pode despertar para a liberdade, ela pode
acomodar para a servidão voluntária. Em suas palavras:
39

Diga-se, pois, que acaba por ser natural tudo o que o homem obtém
pela educação e pelo costume; mas da essência da sua natureza é o
que lhe vem da mesma natureza pura e não alterada; assim, a primeira
razão da servidão voluntária é o hábito: provam-no os cavalos sem
rabo que no princípio mordem o freio e acabam depois por brincar
com ele; e os mesmos que se rebelavam contra a sela acabam por
aceitar a albarda e usam muito ufanos e vaidosos os arreios que os
apertam. (2006, p. 18).
Nessa analogia proposta por Boétie, percebe-se que a educação pode ser um
dispositivo tanto para a acomodação do sujeito nas estruturas dominantes, pois ela se
naturaliza como um hábito, como ser um aparato indispensável para uma sociedade
emancipada. Segundo Paula e Maranhão (2009), a contribuição de Boétie se dá ao que
se refere à construção de uma subjetividade voltada à liberdade, a qual tem como ponto
fundante a educação. Só deseja ou tem vontade de liberdade quem, à priori, foi tocado
pela educação.

Há tangências conceituais entre Boétie e Montaigne (como o tema da


educação, da vontade e da liberdade), e não se pode esquecer que os dois foram amigos
próximos. Na perspectiva de Montaigne, a educação é a instrumentalidade que solapa
com as algemas da estagnação de si, conduzindo para uma postura emancipada e
autêntica, a qual muito se aproxima da abordagem de Etienne de La Boétie. Antes,
porém, de adentrar o texto de Montaigne sobre educação (1984), é preciso considerar
que sua obra é um empenho para encontrar o caminho para dentro de si. O que seria
isso?

Este viés introspectivo é notório em sua obra Ensaios (1984), que além de best-
seller da época, é um texto paradigmático para o movimento renascentista que
desabrochava em seu tempo. O livro não cria nenhum tipo de filosofia, apenas retrata
um pouco de uma alma do filósofo que busca por si diante dos barulhos da própria
existência. Além de ser considerado o autor que inaugurou um estilo ensaísta que
flertava entre poesia e filosofia, eram textos curtos e densos em relação ao conteúdo. Na
direção de Batista (2016), parece que o impacto que Montaigne teve sobre seus leitores
se dá pela sua irreverência em expor as perturbações humanas, em um estilo literário
novo, e insinuar uma nova maneira de fazer filosofia, consequentemente, do próprio ato
de gerar a ciência (epistemologia).

Devido ao seu caráter humanista, Montaigne valoriza a vida. A humanidade,


para ele, é inalienável e inegociável, logo, o ser humano deve passar pelo processo
educativo. Na perspectiva desse filósofo francês, a educação não pode ser impositiva,
40

mas ação que prestigia o sujeito, sobretudo a realidade da criança no ato de


construção do conhecimento. Esses tópicos caminham, paralelamente, às propostas de
Boétie e, portanto, excedem a aura puritana dogmatizada do renascentismo.

O ensaio mais volumoso de Michel de Montaigne é voltado para o tema da


educação. O título desse ensaio é “Da educação das Crianças” que é, ao mesmo tempo,
uma narrativa autobiográfica, bem como crítica às estruturas de seu tempo. Aliás, o
último parágrafo do texto é uma jornada para dentro de si em diálogo com o mundo,
como o próprio Montaigne descreve:

[...] direi que o melhor é atrair a vontade e a afeição, sem o que se


conseguem apenas asnos carregados de livros. Dão-lhes a guardar,
com chicotadas, um saco de ciência, a qual, para que seja de proveito,
não basta ter em casa: cabe desposar”. (1984, p. 89).
Para Montaigne, a educação não poderia ser uma técnica abstrata, descolada da
vida. Sua preocupação se dá na problematização interrogativa: até que ponto a educação
está submissa aos livros e, desse modo, indiferente à vida? Neste imbróglio, Montaigne
aponta para a ideia de que a educação teorética tem pouco proveito, mas aquela que se
atenta às contingências da vida, bem como seus meandres, é o tipo de educação que
transformará o sujeito e a sociedade. A preocupação do sujeito tem que ser, a priori,
sobre os temas da vida, como descreve Montaigne “[como] posso preocupar-me com o
segredo das estrelas, quando tenho sempre presente a meus olhos a morte ou a
escravidão?” (1984, p. 81). Não é um descaso do autor sobre o conhecimento formal,
mas sim um chamado a vocação da vida. Nesse sentido, Montaigne afirma:

É de um grande simplismo ensinar aos meninos o sentido dos Peixes,


do Leão resplandecente, ou Capricórnio que se banha nas águas da
Hespéria, a ciência dos astros e os movimentos da oitava esfera antes
de lhes abrir os olhos para os próprios sentido: que tenho a ver com a
Plêiade, e a estrela boiadeira? (1984, p. 81).
Já no século XVI, Montaigne percebe que o formalismo propagado pela
educação erudita dava ao sujeito instrumentais teóricos, porém não estabelecia conexão
com a prática. Se a educação para Etienne de La Boétie tem sua ênfase voltada para a
liberdade, pode-se presumir que o relevo da abordagem de Montaigne está voltado para
a prática, para a arte de viver. A beleza da abordagem de Montaigne não é temerária, em
vez disso, uma práxis transformadora, pois, transforma o sujeito e o mundo em que está
inserido. Esta ação não está no simples ato de memorização, como aponta o autor:

Saber de cor não é saber: é conservar o que se entregou à memória


para guardar. Do que sabemos efetivamente, dispomos sem olhar para
41

o modelo, sem voltar os olhos para o livro. Triste ciência a ciência


puramente livresca. Que sirva de ornamento, mas não de fundamento,
como pensa Platão, o qual afirma que a firmeza, a boa-fé, a
sinceridade, são a verdadeira filosofia, e que as outras ciências, com
outros fins, não são mais do que brilho enganoso. (1984, p. 78).
Montaigne rejeita a ideia de conhecimento visto apenas como decoração. Seu
texto está fincado na premissa de que tudo o que a criança aprende tem de estar
disponível para que ela possa trazer para o jogo da sua existência. Para o autor, cabe ao
docente estimular que a criança consiga ressignificar e aplicar conceitos aprendidos na
teoria no jogo da existência (a vida vivida). Só assim a criança sairá do degrau do
decorar para o degrau do aprender, como ressalta Montaigne:

Que não lhe peça conta apenas das palavras da lição, mas também do
seu sentido e substância, julgando do proveito, não pelo testemunho
da memória e sim pelo da vida. É preciso que o obrigue a expor de mil
maneiras e acomodar a outros tantos assuntos o que aprender, a fim de
verificar se o aprendeu e assimilou bem, aferindo assim o progresso
feito segundo os preceitos pedagógicos de Platão. (1984, p. 77).
O ensaio de Montaigne não segue receita pronta para o processo de ensino e
aprendizagem. Percorre, sim, a trilha misteriosa e essencialmente inédita que é o ato de
educar. Misteriosa porque a educação não está restrita às molduras conteudistas e
inéditas, ao passo que cada sujeito que vivencia a educação terá uma experiência
singular. Assim, ainda que seja possível conjecturar, quantificar e até mesmo qualificar
conteúdos e metodologias, a educação, segundo Montaigne, só faz sentido quando não
se descola da existência. Certezas e incertezas compõem a mesma canção do ato de
educar. O rumo e paradigmas que compõem a moldura da educação não são limites,
mas fronteiras para novos horizontes, como esclarece Montaigne:

O mesmo acontece na agricultura: o que precede à semeadura é certo e


fácil; e também plantar. Mas depois de brotar o que se plantou,
difíceis e variadas são as maneiras de tratá-lo. Assim os homens:
pouco custa semeá-los, mas depois de nascidos, educá-los e instrui-los
é tarefa complexa, trabalhosa e temível. O que se revela de suas
tendências é tão tênue e obscuro nos primeiros anos, e as promessas
tão incertas e enganadoras que se faz difícil assentar um juízo seguro.
(1984, p. 76).
Tanto Boétie quanto Montaigne dialogaram com os textos e autores da
antiguidade grega. A paideia do homem grego acompanhou esses autores da
modernidade, que repensaram o fenômeno educação de seu tempo. Retomado, se para
Boétie a educação estava entrelaçada com a noção de liberdade, Montaigne, por sua
vez, articula o conceito de educação com a prática, portanto, esses teóricos do século
XVI reorganizaram as estruturas de seu contexto histórico tendo como ponto de
42

largada a dinamicidade da educação, que é um chamado prático para a autonomia e


emancipação do sujeito. A próxima seção atenta para as peculiaridades da
modernidade. Apresentará, assim, a contribuição de Jean-Jacques Rousseau para a
educação.

I.2.2 Educação em Jean-Jacques Rousseau

Caminhando na história, encontramos o genebrino Jean-Jacques Rousseau,


nascido no século XVIII. Segundo Streck (2004), um período marcado pelo impacto
significativo do iluminismo o qual influenciou determinantemente muitas revoluções,
inclusive a própria Revolução Francesa. Rousseau está inserido nesse contexto de
turbulências, metamorfoses de paradigmas e de gênese de uma nova etapa histórica. A
biografia de Rousseau é estigmatizada por extremidades; isso se deve ao fato de que,
com a mesma intensidade que conseguiu extasiar positivamente seu público no século
XVIII, logrou, proporcionalmente, a antipatia de variados e distintos grupos, partindo
da elite intelectual até a política e o poder eclesiástico.

Na atualidade, é possível encontrar muitos adeptos das ideias rousseaunianas,


os quais validarão sua teoria política e, por conseguinte, educacional, como há,
também, aquelas pessoas que lidam com as teorias rousseaunianas com indiferença e
desdém. Muito dessa hostilidade advém da incoerência entre o Rousseau filósofo e o
Rousseau homem, haja vista que o mesmo sujeito capaz de escrever um tratado que
revolucionou a filosofia da educação foi o mesmo que abandonou na “roda” seus
cinco filhos.

Não cabe aqui juízo moral sobre a vida e produção de Rousseau, e sim
ponderar seus apontamentos sobre a educação. Em sua obra “Emílio ou Da
Educação”, o pensador de Genebra aponta para uma nova dimensão do ato de educar.
Seu texto confronta as metodologias vigentes do seu tempo, isto é, a ideia elitista que
ainda persistia com forte influência da escolástica, a qual supervaloriza a teoria e
despreza a vida prática. Isso revela o desprendimento entre vida e educação típico de
sua época. Defronte dessa organização, Rousseau se propõe a repensar a
homogeneização metodológica que pautava a educação. Ele problematiza a
equalização uníssona da sua realidade logo no prólogo do seu texto com a proposição:

Assim é que uma educação pode ser praticável na Suíça e não o ser
na França; outra pode sê-lo entre os burgueses e outra ainda entre os
43

nobres. A facilidade maior ou menor da execução depende de mil


circunstâncias impossíveis de se determinarem a não ser através de
uma aplicação particular do método a tal ou qual país, a tal ou qual
condição social. (1995, p. 9).
Essa citação demonstra que, ao relativizar o método, Rousseau coloca em
xeque não apenas a eficácia metodológica, sobretudo a inviabilidade de equiparar a
prática educacional a um mero e simples modelo. Essa premissa faz todo sentido para
a sociedade contemporânea, porém, antes desse esforço hermenêutico, vale considerar
que o filósofo de Genebra se propõe a pensar as estruturas de uma sociedade regida
pelos braços fortes do puritanismo religioso e da moralidade estatal. Esse movimento
auxilia na percepção do quanto Rousseau estava à frente de seu tempo, pois sua
filosofia transcende os limites de seu período ao problematizar a condição humana e
suas contingências

Na leitura do texto “Emílio ou Da Educação”, é possível identificar harmonia


com o todo teórico rousseauniano, isto é, a ideia de que o homem nasce bom, mas o
meio o corrompe aparece na afirmação do prólogo: “Tudo é certo em saindo das mãos
do Autor das coisas, tudo degenera nas mãos do homem” (1995, p. 11). Essa
proposição estabelece os dois lados da teoria de Rousseau, pois ao mesmo tempo que
o ser humano é bom por natureza, as estruturas sociais, bem como a educação, têm o
poder de degenerar o próprio ser. Essa máxima pautará, inclusive, o processo
formativo proposto pelo autor. Antes, porém, vejamos com Rousseau descreve o ser
humano e sua interação com o mundo em que está inserido:

Ele obriga uma terra a nutrir as produções de outra, uma árvore a dar
frutos de outra; mistura e confunde os climas, as estações; mutila seu
cão, seu cavalo, seu escravo; transforma tudo, desfigura tudo; ama a
deformidade, os monstros; não quer nada como o fez a natureza, nem
o homem; tem de ensiná-lo para si, como um cavalo de picadeiro;
tem que moldá-lo a seu jeito como uma árvore de seu jardim. (1995,
p. 11).
Rousseau demonstra que essa racional bestialidade humana pode ser alterada
(ou mantida) por meio da educação. Para o autor “amanham-se as plantas pela cultura
e os homens pela educação” (1995, p. 11). Essa citação traz consigo o aspecto
valorativo e axiológico da educação, seja este valor positivo ou negativo. A educação
é decisória na formação do ser humano pois, segundo Rousseau “tudo o que não temos
ao nascer, e de que precisamos adultos, é nos dado pela educação” (1995, p. 12).
Rousseau conceitua:
44

Essa educação nos vem da natureza, ou dos homens ou das coisas.


O desenvolvimento interno de nossas faculdades e de nossos órgãos
é a educação da natureza; o uso que nos ensinam a fazer desse
desenvolvimento é a educação dos homens; e o ganho de nossa
própria experiência sobre os objetos que nos afetam é a educação das
coisas. (1995, p. 11).
Para Silva (2008), essas três dimensões são imprescindíveis para a boa
formação, ao passo que uma delas não se desenvolve, o sujeito desenvolve uma falha
em seu caráter, logo, é tido como “mal-educado e nunca estará de acordo consigo
mesmo” (1995, p. 12). Na abordagem rousseana, cabe ao sujeito harmonizar essas
faces da educação, ou seja, equilibrar aquilo em que o sujeito em nada pode interferir
(natureza), aquilo que ele pouco pode interferir (coisas) e aquilo que o sujeito tem
poder de interferência direta (homens). Rousseau, então, aponta a primeira
conceituação sobre educação:

Sendo, portanto, a educação uma arte, torna-se quase impossível que


alcance êxito total, porquanto a ação necessária a esse êxito não
depende de ninguém. Tudo o que se pode fazer, à força de cuidados,
é aproximar-se mais ou menos da meta, mas é preciso sorte para
atingi-la. (1995, p. 12).
Sendo assim, o estado de natureza para Rousseau é um elemento positivo.
Segundo Streck, Rousseau tinha uma “visão otimista de natureza humana [...] uma
espécie de paraíso perdido” (2008, p. 58), contudo, ainda que seja a noção do ideal
“para Rousseau o retorno ao estado de natureza é impossível” (2008, p. 58). Ainda
que o estado de natureza seja inalcançável, a educação é a arte que auxilia o sujeito a
se aproximar mais desse ideal perdido. É por meio da educação que o sujeito se
constitui em sua integralidade, haja vista que “o homem e seu contexto são
inseparáveis. Qualquer tentativa de dicotomizar o homem e seu mundo redundam em
fracasso de compreender um e outro” (2008, p. 62).

A educação pode despertar o desejo utópico do estado de natureza ou, por


outro lado, consolidar as estruturas. Rousseau afirma que o sujeito é “molestado de
diversas maneiras pelos objetos que o cercam” (1995, p. 93), isto é, a pessoa não tem
consciência da sua consciência ou dos seus sentidos e já é obrigada a se apropriar dos
objetos que causam dor ou prazer, satisfação ou insatisfação, enfim, o sujeito
experiencia sem ter noção do que é experienciar. Dessa maneira, a compreensão do
objeto, bem como a densidade e intensidade dessa relação entre o si mesmo e a coisa
posta é fragilizada.
45

Ao mesmo tempo que o sujeito ganha maturidade para adjetivar as coisas,


bem como o mundo que o cerca, é, também, constrangido pelos hábitos a reformular
suas opiniões primeiras. Segundo Rousseau, “antes dessa alteração, elas são aquilo a
que chamo em nós a natureza” (1995, p. 13). Antes da fragmentação e fratura da
opinião, há o estado de natureza que, para Rousseau, está intimamente ligado à
condição primária do ser humano, opondo, assim, ao espelhamento social que o
aspecto cívico impõe, ou seja:

É, pois, a essas disposições primitivas que tudo se deveria reportar; e


isso seria possível se nossas três educações fossem tão somente
diferentes; mas que fazer quando são opostas? Quando, ao invés de
educar um homem para si mesmo, se quer educá-lo para os outros?
Então o acerto se faz impossível. Forçado a combater a natureza ou
as instituições, cumpre optar entre fazer um homem ou um cidadão,
porquanto não se pode fazer um e outro ao mesmo tempo.
(ROUSSEAU, 1995, p. 13).
Nota-se que há uma distinção entre o que é da essência do sujeito, ou parte
constitutiva de sua natureza, e o que faz parte do aspecto cívico ou de cidadão. Para
Rousseau, equalizar esses dois atores é uma aporia, pois, “o homem natural é tudo
para ele; é a unidade numérica, é o absoluto total, que não tem relação senão consigo
mesmo ou com seu semelhante. O homem civil não passa de uma unidade fracionária
presa ao denominador e cujo valor está em relação com o todo, que é o corpo social
(1995, p. 13). Com essa distinção, Rousseau levanta a questão, mesmo sem inquerir
diretamente, que tipo de educação se quer? A resposta é inequivocamente pragmática:

As boas instituições sociais são as que ‘mal’ bem sabem desnaturar o


homem, tirar-lhe sua existência absoluta para dar-lhe outra relativa e
colocar o eu na unidade comum, de modo que cada particular não se
acredite mais ser um, que se sinta uma parte da unidade, e não seja
mais sensível senão no topo. (ROUSSEAU, 1995, p. 13).
Mesmo que as demandas a que a explicação rousseauniana se atém sejam de
seu tempo, é possível, em uma apropriação anacrônica, perceber tangências com a
contemporaneidade, em que a educação atende a expectativas da máquina global.
Contudo, retomando a reflexão sobre Rousseau, a educação que tem sido
potencializada é aquela que homogeneíza os atores, dando-lhes máscaras sociais que
não passam de placebos existenciais, pois não há uma experiência do mundo e de si
mesmo. O cidadão que quer ser homem, sempre estará pela metade, pois na
perspectiva rousseauniana o homem natural não quer, ele é. Essa mediação do que se
deve ser ou fazer é típica do cidadão, não do sujeito livre. Assim, é possível
compreender a frase “para ser alguma coisa, para ser si mesmo e sempre um, é preciso
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agir como se fala; é preciso estar sempre decidido acerca do partido a tomar, tomá-
lo com altivez a segui-lo sempre. (ROUSSEAU, 1995, p. 14).

Com essa disparidade entre homem e cidadão, evidencia-se duas instituições


contrárias que estão vinculadas à educação: uma considerada pública/comum e a outra
particular/doméstica. Para Francisco (2010), compreender essa distinção é importante
porque, ao passo que a educação pública atende às demandas do cidadão, a educação
particular está atrelada diretamente ao homem rousseauniano, pois essa educação está
comprometida com o homem natural. O destaque de Rousseau é que a educação está a
serviço ou da emancipação do sujeito ou da manutenção do sistema. Preparar o
cidadão é uma construção artesanal de preservação das instituições cristalizadas, ou
seja, é organizar para que as pessoas cumpram a sua finalidade, como pondera
Rousseau:

Na ordem social, em que todos os lugares estão marcados, cada um


deve ser educado para o seu. Se um indivíduo, formado para o seu,
dele sai, para nada mais serve. A educação só é útil na medida em
que sua carreira acorde com a vocação dos pais; em qualquer outro
caso, ela é nociva ao aluno, nem que seja apenas em virtude dos
preconceitos que lhe dá. No Egito, onde o filho era obrigado a
abraçar a profissão do pai, a educação tinha, pelo menos, um fim
certo. Mas, entre nós, quando somente as situações existem e os
homens mudam sem cessar de estado, ninguém sabe se, educando o
filho para o seu, não trabalha contra ele. (1995, p. 15).
Nessa citação, Rousseau destaca como a educação corresponde às expectativas
familiares e sociais. Cada sujeito está restrito a uma finalidade, precisa cumprir seu
papel, sem um projeto de deslocamento do que já fora predeterminado. Se por um lado
a educação pública tem essa dimensão do distanciamento do estado de natureza,
Rousseau propõe um caminho para a educação que antes de profissionalizar o sujeito,
ou, até mesmo, garantir a conservação das tradições familiares, desperte no sujeito o
melhor dele mesmo, pois:

Na ordem natural, sendo os homens todos iguais, sua vocação


comum é o estado do homem; e quem quer seja bem-educado para
esses, não pode desempenhar-se mal dos que com esse se
relacionam. Que se destine meu aluno à carreira militar, à
eclesiástica ou à advocacia pouco me importa. Antes da vocação dos
pais, a natureza chama-o para a vida humana. Viver é o ofício que
lhe quero ensinar, saindo de minhas mãos, ele não será, concordo,
nem magistrado, nem soldado, nem padre; será primeiramente
homem, tudo o que um homem deve ser, ele o saberá, se necessário,
tão bem quanto quem quer que seja; e por mais que o destino o faça
mudar de situação, ele estará sempre em seu lugar. (1995, p. 15).
47

Não há uma negação da educação pública, em vez disso, a proposta de


Rousseau é que a partir da educação doméstica/privada haja um cidadão, “isto é, como
começando por fazer o homem natural, ou a individualidade, e conformando a ação
educacional humana ao que dispõe a natureza, acabamos por alcançar o ser social, o
membro do todo, do corpo social” (FRANCISCO, 2010, p. 76). A proposta do
pensador é ensinar o próprio ato de viver. Não é teorizar as contingências da vida; ou
levantar hipóteses; ou, quiçá, rubricar um manual do que é permitido ou negado. Em
vez disso, a proposta de Rousseau é criar um viés pelo qual o sujeito consiga se
construir no puro ato de viver. Educação doméstica é o esforço de lançar o sujeito
para mais perto do seu estado de natureza. Estes conceitos evidenciam o poder da
educação em lançar o sujeito para a própria vida, em uma dialética entre teoria e
prática, como enuncia Rousseau:

Nosso verdadeiro estudo é o da condição humana. Quem entre nós


melhor sabe suportar os bens e os males dessa vida é, a meu ver, o
mais bem-educado; daí decorre que a verdadeira educação consiste
menos em preceitos do que em exercícios. Começamos a instruir-nos
em começando a viver; nossa educação começa conosco; [...] assim,
a educação, a instituição, a instrução, são três coisas tão diferentes
em seu objeto quanto ao governante, o preceptor e o mestre. Mas tais
distinções são mal compreendidas; e para ser bem orientada, a
criança deve seguir um só guia. (1995, p. 15-16).
Para Rousseau, a experiência vivida é fundamental, pois é dela que a educação
salta enquanto a teorização é prejudicial à própria existência humana. Ainda que a
teoria seja construída a partir de especulações pertinentes, ela não tem o impacto que a
práxis possui, haja vista que a práxis é a síntese entre o que se pensa com o que se faz,
construindo, portanto, uma hierarquia entre real e ideal, como Rousseau afirma:

Mas, dada a mobilidade das coisas humanas, dado o espírito inquieto


e agitado deste século que tudo transforma a cada geração, poder-se-
á conceber um método mais insensato que o de educar uma criança
como nunca devendo sair de seu quarto, como devendo sem cessar
achar-se cercada dos seus? Se o infeliz dá um só passo na terra, se
desce um só degrau, está perdido. Não é isso ensinar-lhe a suportar a
dor; é exercitá-lo a senti-la. (1995, p. 16).
Rousseau é pertinente ao demonstrar que, ao educar uma criança sem a
experiência direta com o mundo, bem como suas mazelas, suas contingências, suas
complexidades, é preparar a criança para um existir despreparado. A citação
rousseauniana se aproxima muito ao que Wittgenstein (1975) descreve como a
complexidade da linguagem em relação aos sentidos e significados que o sujeito
atribui ao mundo que o cerca por meio da linguagem. Para Rousseau, ao adentrar por
48

uma porta proporcionada pelos sentidos, é possível sair em incontáveis caminhos.


Isso, portanto, demonstra como as experiências são labirintos singulares da própria
existência. Rousseau é enfático ao afirmar que a educação só é útil se servir para
lançar o sujeito para a vida:

Não se pensa senão em conservar a criança, não basta; devesse-lhe


ensinar a conservar-se em sendo homem a suportar os golpes da
sorte, a enfrentar a opulência e a miséria, a viver, se necessário, nos
gelos da Islândia ou no rochedo escaldante de Malta. Por maiores
preocupações que tomeis para que não morra, terá, contudo, que
morrer. E ainda que sua morte não fosse obra de vossos cuidados,
ainda assim estes seriam mal-entendidos. Trata-se menos de impedi-
la de morrer que de fazê-la viver. Viver não é respirar, é agir; é fazer
uso de nossos órgãos, de nossos sentidos, de nossas faculdades, de
todas as partes de nós mesmos que nos dão o sentido de nossa
existência. O homem que mais vive não é aquele que conta maior
número de anos e sim o que mais sente a vida. Há quem seja
enterrado a cem anos e que já morrera ao nascer. Teria ganho em ir
para o túmulo na mocidade, se ao menos tivesse vivido até então.
(1995, p. 16).
A educação é a instrumentalidade para fazer com que o sujeito viva com a
devida intensidade que é peculiar ao próprio ato de existir. Diferente dos animais
irracionais que seguem um roteiro estipulado pela própria biologia e instinto, o ser
humano é marcado pela dimensão peculiar de significar a existência. Essa atitude de
valoração é pertinente à medida que se pensa que, na mesma proporção que o sujeito
pode fruir da existência, ele pode ser educado a reificar o mundo que o cerca. Nessa
direção, Rousseau utiliza como exemplo a ideia sobre a ingratidão, ou, em outros
termos, sobre a educação que é voltada para o descarte daqueles que não são mais
úteis.

Para tipificar seu argumento, Rousseau se apropria do exemplo das amas de


leite, as quais são úteis apenas para o processo de amamentação da criança, sendo,
posteriormente, desprezadas. Isso porque a mãe que, em um primeiro momento
substituída por não ter leite, agora ensina a criança a desprezar aquela que em um
período crítico fora responsável em doar o leite. A mãe que acha que essa experiência
passa despercebida pela criança, a qual, depois de anos, não reconhece a ama que a
amamentou, está enganada, pois “ao invés de fazer um filho amoroso de um bebê
desnaturado, ela o exercita na ingratidão; ensina-lhe a desprezar um dia quem lhe deu
a vida, tal qual quem lhe deu o leite” (1995, p. 19), tudo é processo educativo, mesmo
que atores sejam esquecidos, a essência formativa estigmatiza a alma do sujeito. A
educação é a ação para a vida e, consequentemente, de resiliência:
49

O destino do homem é sofrer em qualquer época. O próprio


cuidado de sua conservação está ligado a dor. Felizes os que só
conhecem na infância os males físicos, males bem menos cruéis,
bem menos doloroso do que os outros e que bem mais raramente do
que eles nos fazem renunciar à vida! Ninguém se mata com as dores
da gota; somente as da alma suscitam o desespero. Temos dó da
sorte da infância, mas é da nossa que deveríamos ter. Nossos
maiores males vêm de nós mesmos. (1995, p. 21).
O período histórico de Rousseau era marcado por um alto índice de natalidade
infantil. As doenças aniquilavam prematuramente com muitas crianças. O paralelo que
o autor aponta é que ainda que as doenças do corpo sejam cruéis e danosas, as dores
d’alma são insuportáveis. A educação é o antídoto para que o sujeito consiga vivenciar
as dores d’alma e, assim, encontrar novos horizontes para si mesmo. É por meio da
educação que o sujeito terá recursos de enfrentamento, pois a educação é um devir
constante, ou, em palavras rousseaunianas: “educação não é certamente senão um
hábito.” (1995, p. 21).

Como, pois, organizar o ato de educar? Como ela acontece? Existem etapas?
Para Jean-Jacques Rousseau (1995) a educação é dividida em fases distintas: a
primeira denominada de lactância (até 2 anos); a segunda é classificada como infância
(de 2 a 12 anos), sendo essa a mais delicada e que precisa de muita atenção, pois é
nessa fase que o sujeito é moldado e seus vícios e virtudes são arquitetados – tema que
será abordado mais detalhadamente em seguida; a terceira fase é a da adolescência (de
12 a 15 anos); a quarta é a fase da mocidade (de 15 a 20 anos); e a quinta é o início da
vida adulta (dos 20 aos 25 anos).

Para a segunda fase, Rousseau faz uma contribuição singular, pois é neste
período que se efetiva a educação negativa. Não é apologia ao ócio ou à selvageria,
bem como não é ensinar verdades é, outrossim, garantir que o sujeito não seja
transformado pelos vícios ou pelo erro. Preservando o princípio teórico de Rousseau
de que “o sujeito nasce bom”, a educação negativa seria a maneira para que essa
bondade perdurasse, permanecesse e, mais, viesse à tona.

Nessa fase, aquele que é responsável em ensinar interfere o menos possível na


vida da criança. Sua função é potencializar, estimular, semelhante à maiêutica
socrática, os bons sentimentos, bem como valorizar o empirismo, os sentidos humanos
na ação do desenvolver o conhecimento. A educação negativa se dá mais no ato do
não fazer que no fazer. Em vez de se preocupar em apresentar para as crianças ideias
complexas e abstratas, cabe ao sujeito que as conduz nesse auto despertar, destacar a
50

proeminência dos sentidos humanos, valorizando a corporeidade e a motricidade,


em suma, uma práxis essencialmente empírica. É uma fase que descarta a punição e
promove a experimentação. Nessa fase, a criança aprende com os três mestres: a
natureza, as coisas e as pessoas. A experiência é definidora no tipo de pessoa que será
forjada. Para Rousseau, a nobreza do sujeito está na harmonia entre o corpo e o
espírito, isto é, o vigor de um atleta e a razão de um sábio.

Enfim, a contribuição de Rousseau para a educação é paradigmática, como


destacaram Streck (2004) e Francisco (2010), haja vista que sua teoria, ainda que
pouco prestigiada em seu tempo, apontou novos horizontes hermenêuticos e práticos
do ato de fazer educação. Para Rousseau, a educação é processo empírico, em que a
educação doméstica de cunho negativo, isto é, que pouco se impõe, mas deixa a
criança trazer à tona aquilo que é inerente ao seu estado de natureza, culminará em um
cidadão que, em princípio, experimentou a si mesmo. É uma educação despreocupada
com os modelos e metodologias, porém é sensível às contingências do próprio ato de
viver e existir do sujeito. A educação, para Rousseau, é mais que um recorte temporal
e disciplinar, é revisitar aquilo que já existe, mas precisa ser criado – o estado de
natureza. Em seguida, apontaremos a perspectiva de Kant, filósofo que apresenta
tangências e divergências com o pensamento rousseauniano.

I.2.3 Educação em Immanuel Kant


O filósofo Immanuel Kant, nascido em Konigsberg, no século XVIII, foi um
divisor de águas no pensamento filosófico. Em suas obras é possível encontrar a
sistematização para responder ao menos a três perguntas: O que é o belo? O que é
possível conhecer? O que é ética? Essas perguntas estão atreladas aos campos
filosóficos da estética, da epistemologia e da deontologia. Ainda que sejam temas
extremamente amplos, não abarcam o todo do esforço filosófico de Kant, pois este,
que dedicou a sua vida à docência – inclusive ensinando sobre educação e pedagogia –
aponta para o aspecto charneira2 da educação, isto é: a educação é capaz de apresentar
um antes e um depois na vida do sujeito. Kant diz que “o homem não pode se tornar
um verdadeiro homem senão pela educação” (1996, p. 16). Logo, o ser humano é o
que a educação faz dele.

2
Por charneira seguimos a compreensão de Josso (2010) que se refere a noção de dobradiça, momento
de mudança, dobra.
51

A obra de Immanuel Kant “Sobre a Pedagogia” inicia-se com a afirmação:


“o homem é a única criatura que precisa ser educada” (1996, p. 11). Diferente do
restante dos animais que seguem instintivamente sua vida e, por incrível ou
inacreditável que seja, são assertivos, desde a concepção até a sua morte, o ser
humano é aquele que se faz por meio da educação.

A primeira conceituação de educação para Kant é “o cuidado de sua infância (a


conservação, o trato), a disciplina e a instrução com a formação. Consequentemente, o
homem é infante, educando e discípulo” (1996, p. 11). Para o filósofo alemão, o
sujeito é o único ser que precisa de cuidados, isto é, “por cuidados entendem-se as
precauções que os pais tomam para impedir que as crianças façam uso nocivo de suas
forças” (1996, p, 11). Um recém-nascido é carente dos mais simples cuidados. Desde
a alimentação, a higienização, até o afago, o cuidado e o afeto. O exemplo dado por
Kant é sobre os castores. Este roedor segue o ciclo natural, independente do cuidado
que recebem em sua trajetória de vida. Ao passo que o castor nasce pronto, o sujeito
nasce a se fazer.

Para este ato de humanização se concretizar, a educação, segundo Kant, carece


da disciplina, conceituada pelo autor como aquilo que “transforma a animalidade em
humanidade” (1996, p. 12). Para ele, o ser humano, diferentemente dos animais que
chegam ao mundo em sua completude atingindo sua potência no puro ato de existir,
vem à existência em forma bruta, de modo que a figura do Outro é fundamental para a
formação plena do indivíduo. Humanizar-se passa pelo viés da relação e interação
entre humanos. Não é possível a humanização no isolamento. Há um paradoxo: ainda
que a disciplina seja elemento humanizante, ela é, para Kant, fator puramente negativo
“porque é o tratamento através do qual se tira do homem a sua selvageria; a instrução,
pelo contrário, é a parte positiva da educação” (1996, p. 13). Nota-se que a noção de
disciplina muito se assemelha com a educação pública de Rousseau, e a instrução, por
sua vez, tangencia a noção de educação doméstica/privada. Na abordagem kantiana, o
ser humano tem a capacidade de proporcionar a si mesmo o progresso necessário
idealizado pelo iluminismo. Para Kant, a educação é o ponto inicial de toda possível
transformação da humanidade, como segue:

A espécie humana é obrigada a extrair de si mesma, pouco a pouco,


com suas próprias forças, todas as qualidades naturais que pertencem
à humanidade. Uma geração educa a outra. Pode-se buscar o começo
da humanidade num estado bruto ou num Estado perfeito de
52

civilização. Mas, neste último caso, é necessário admitir que o


homem tenha caído depois do estado selvagem e no estado de
natureza rude”. (KANT, 1996, p. 12).
Na perspectiva kantiana, a educação é o que tira o ser humano do seu estado de
selvageria, ou seja: é por meio da disciplina que a animosidade do sujeito é contida,
isto é, o ser humano tem a tendência de agir “como um animal feroz, ou como um
estúpido.” (1996, p. 12), e é por meio da disciplina que há o contentamento deste
elemento do ser humano. Mesmo que seja notória a influência de Rousseau em Kant
(principalmente na obra “Pedagogia”, de Kant), percebe-se que, para o filósofo
prussiano, o ser humano é originalmente mau, ou, ao menos, tem a tendência de fazer
aquilo que não é bom por si mesmo. A instrução é fundamental neste processo de
autoconhecimento e despertar do ser.

Na perspectiva de Kant, selvageria é a resistência a qualquer tipo de lei, ao


passo que a disciplina é aquilo que sujeita o indivíduo a uma série delas. É
interessante perceber como Kant, já no século XVIII, trata a disciplina como a forma
de condicionar o sujeito a uma prática de vida harmonizada com as expectativas
sociais, sendo que a educação é a maneira de fazer com que a criança, desde cedo,
aprenda a obedecer, a se submeter e, mais do que isso, a trazer para o seu sentido de
existência a seguir com afinco a normatização estabelecida, como segue:

A selvageria consiste na independência de qualquer lei. A disciplina


submete o homem às leis da humanidade e começa a fazê-lo sentir a
força das próprias leis. Mas isso deve acontecer bem cedo. Assim, as
crianças são mandadas cedo à escola, não para que aí aprendam
alguma coisa, mas para que aí se acostumem a ficar sentadas
tranquilamente e a obedecer pontualmente àquilo que lhes é
mandado, a fim de que no futuro elas não sigam de fato e
imediatamente cada um de seus caprichos. (KANT, 1996, p. 13).
Esse aspecto de selvageria precisa ser contido pela disciplina. Por isso, desde
cedo é preciso conter o ser humano, seu aspecto selvagem, a fim de que no futuro não
se tenham problemas com pessoas que, em algum momento, puderam experimentar do
que é a liberdade. A atenção de Kant se dá, inclusive, ao cuidado excessivo das mães,
as quais, por muito poupar as crianças das intempéries da vida, criam pessoas que não
têm estrutura para lidar com as contingências dessa mesma vida. É interessante que,
ao mesmo tempo que Kant classifica a disciplina como puramente negativa, ele aponta
que o ser humano precisa dela da mesma forma que precisa da instrução. Como o
filósofo alemão destaca, “o homem tem necessidade de cuidados e de formação. A
formação compreende a disciplina e a instrução” (1996, p. 14).
53

O homem não pode se tornar um verdadeiro homem senão pela educação.


Ele é aquilo que a educação dele faz. Note-se que ele só pode receber tal educação de
outros homens, os quais receberam igualmente de outros. Portanto, segundo Kant
(1996), a falta de disciplina e de instrução em certos homens os torna mestres muito
ruins de seus educandos. Nota-se grande preocupação por parte do filósofo quando
falta disciplina:

Não há ninguém que, tendo sido abandonado durante a juventude,


seja capaz de reconhecer na sua idade madura em que aspecto foi
descuidado, se na disciplina ou na cultura (pois que assim pode ser
chamada a instrução). Quem não tem cultura de nenhuma espécie é
um bruto; quem não tem disciplina ou educação é um selvagem. A
falta de disciplina é um mal pior que a falta de cultura, pois essa
pode ser remediada mais tarde, ao passo que não se pode abolir o
estado selvagem e corrigir um defeito de disciplina. (KANT, 1996,
p. 16).
É por meio de uma postura disciplinar que se pode vislumbrar um amanhã para
humanidade. Inclusive, Kant revela um olhar positivo quanto ao futuro da
humanidade, ao passo que coloca na ciência e no conhecimento os elementos
fundamentais para o desenvolvimento da espécie humana. Para o filósofo alemão, ao
se deter a atenção sobre a educação, melhores serão os resultados quanto à própria
espécie do homo sapiens. O iluminismo, típico de seu tempo, apontou para uma
perspectiva de esperança excessiva ao que se refere à ciência, à razão e às novas
tecnologias.

Assim, diante desse horizonte positivo referente ao ser humano e do impacto


das novas tecnologias e das ciências, Kant propunha que o ser humano está
condicionado a uma transformação natural, uma espécie de evolução, que é mediada
pela educação. Na perspectiva de Kant, criar uma teoria da educação é um ideal
utópico. Mesmo que ainda não tenha sido realizável, é um ideal que precisa estar em
perspectiva, tendo em vista seu impacto e transformação na humanidade.

Como sua perspectiva estava para além de seu tempo, típico de sua revolução
copernicana, Kant critica o estilo de educação desenvolvimento e propagado em seu
tempo. Para ele, reinava sobre a educação do século XVIII a homogeneização do
saber. Para ilustrar esse processo negativo da educação, Kant emprega a metáfora da
flor chamada “orelhas de urso”: quando se planta essa flor a partir das raízes de flores
que já nasceram, tem-se a mesma cor de plantas, ao passo que, ao plantar sementes, há
uma diversidade de cores, isto é, ainda que a flor seja a mesma, as formas de se
54

revelar são múltiplas. A provocação do filósofo prussiano é para que a educação


não seja enformada, presa a paradigmas e modelos, em vez disso, esteja vulnerável ao
seu próprio elemento eidético, a saber: o devir3.

Ao refletir sobre a educação, Kant questiona sobre a teleologia do ser humano,


isto é, a finalidade do sujeito (para que ele serve?). Nessa direção, Kant revela que “os
animais cumprem o seu destino espontaneamente e sem o saber. O homem, pelo
contrário, é obrigado a tentar conseguir seu fim; o que ele não pode fazer sem antes ter
dele um conceito. O indivíduo humano não pode cumprir por si só essa destinação”
(1996, p. 16). A incerteza é a certeza que marcará a existência do ser, por isso a
educação é fundamental para a constituição do sujeito. Diante disso, Kant conceitua
educação como:

Uma arte, cuja prática necessita ser aperfeiçoada por várias gerações.
Cada geração, de posse dos conhecimentos das gerações
precedentes, está sempre melhor aparelhada para exercer uma
educação que desenvolva todas as disposições naturais na justa
proporção e de conformidade com a finalidade daquelas, e, assim,
guie toda a humana espécie a seu destino. (1996, p. 17).
A educação é ao mesmo tempo, o que humaniza o sujeito e a ferramenta que
proporciona a manutenção da própria espécie humana, “a educação, portanto, é o
maior e o mais árduo problema que pode ser proposto aos homens” (1996, p. 18).
Pensar sobre educação na perspectiva kantiana é um ato atemporal, pois é refletir
sobre o passado, analisar o presente e projetar o futuro. Kant acredita que a educação
transmitida de geração em geração seria a grande chave para a transformação da
sociedade.

Kant afirma que “entre as descobertas humanas há duas dificílimas, e são: a


arte de governar os homens e a arte de educá-los” (1996, p. 18). Afere-se, portanto
que se a política ou ato de governar é extremamente complicada, haja vista a dúvida
perene que paira na atitude de buscar o meio termo que atenda o todo da sociedade,
educar o sujeito, por sua vez, é tão complexo quanto a própria política, pois educar é
mais que memorizar, é humanizar. Por isso, a educação precisa caminhar a partir de
horizonte heterotópico.

3
O conceito de devir que nos apropriamos segue a noção aristotélica, a qual entende movimentos de
mudanças e transformações da substância. É por meio das oposições que a condição do não-ser assume
a condição de vir-a-ser.
55

Para este filósofo, a educação deveria ser guiada pelo imagético do que é
ideal, ou seja, educar as crianças a partir do que se espera de melhor, nas palavras do
pensador: “não se deve educar as crianças segundo o presente estado da espécie
humana, mas segundo um estado melhor, possível no futuro, isto é, segundo a ideia de
humanidade e da sua inteira destinação. (1996, p. 22). Essa máxima kantiana segue
seu pressuposto do imperativo categórico que é agir de tal maneira que sua ação possa
ser repetida por outras pessoas. O autor continua sua explicação sobre essa educação
categórica:

De modo geral, os pais educam seus filhos para o mundo presente,


ainda que seja corrupto. Ao contrário, deveriam dar-lhes uma
educação melhor, para que possa acontecer um estado melhor no
futuro. Mas aqui se deparam com dois obstáculos: os pais não se
preocupam ordinariamente senão com uma coisa, isto é, que seus
filhos façam uma boa figura do mundo; e os príncipes consideram os
próprios súditos apenas como instrumento para os seus propósitos.
(1996, p. 22).
A educação, portanto, não está presa ao seu tempo, ainda que seja realizada em
um tempo e espaço bastante delimitado. É por essa via que Kant apresenta crítica
àqueles que estão no controle do processo educativo, os quais, em vez de potencializar
pessoas autônomas e reflexivas, alimentam um sistema de heteronomias, isto é, de
dependência de leis externas que coagem o sujeito a se submeter, sem uma atitude
crítica prévia. Assim, a sociedade permanece em um estado de inaptidão reflexiva,
mas, por outro lado, com algumas técnicas e habilidades que são convenientes para
quem está no poder. Mesmo que o autor considere que a disciplina seja negativa, ele
afirma que o sujeito:
[deve] ser disciplinado. Disciplinar quer dizer: procurar impedir que
a animalidade prejudique o caráter humano, tanto no indivíduo como
na sociedade. Portanto, a disciplina consiste em domar a selvageria;
Tornar-se culto: a cultura abrange a instrução e vários
conhecimentos. A cultura é a criação da habilidade e esta é a posse
de uma capacidade condizente com todos os fins que almejamos.
Ela, portanto, não determina por si mesma nenhum fim, mas deixa
esse cuidado às circunstâncias [...]. A habilidade é de certo modo
infinita, graças aos muitos fins. (1996, p. 25-26).
Há uma distinção entre disciplinar e tornar-se culto. Se o primeiro é a ação de
domesticação do animalesco do sujeito, o segundo é a preparação do sujeito para
efetivar e encontrar sua teleologia. É nesse processo dialético entre disciplina e cultura
que o autor evidencia que “a educação deve também cuidar para que o homem se
torne prudente, que ele permaneça em seu lugar na sociedade e que seja querido e
tenha influência. A essa espécie de cultura pertence aquela chama propriamente de
civilidade. (1996, p. 26). Para mensurar a efetividade da educação é preciso aferir se o
56

sujeito encontrou não apenas sua finalidade, mas se é um ser adequado aos axiomas
sociais:

Deve, por fim, cuidar da moralização. Na verdade, não basta que o


homem seja capaz de toda sorte de fins; convém também que ele
consiga a disposição de escolher apenas os bons fins. Bons são
aqueles fins aprovados necessariamente por todos e que podem ser,
ao mesmo tempo, os fins de cada um. (1996, p. 26).
Só escolhe bons fins quem é ético e moral. Só segue a deontologia do
esclarecimento as pessoas que foram, adequadamente, educadas. Cabe afirmar que
esse processo não é um meio de adestramento. Para um processo ético, segundo Kant,
a criticidade é o fator decisivo para despertar no sujeito o desejo de pensar, a reflexão
criteriosa, organizada e fundamentada. Ainda que seja inato à característica racional,
Kant afirma que o ser humano precisa aprender a pensar, como segue a citação:

O homem pode ser ou treinado, disciplinado, instruído


mecanicamente, ou ser em verdade ilustrado. Treinam-se os cães e
os cavalos; e também os homens podem ser treinados. [...]
entretanto, não é suficiente treinar as crianças; urge que aprendam a
pensar. (1996, p. 27).
Sabe-se que Kant seguia uma linha religiosa voltada ao pietismo, isto é, um
viés religioso pautado em orações, súplicas e demais práticas espirituais. Mesmo com
essa dimensão religiosa, a proposta kantiana é ensinar a criança a odiar o vício não por
medo de penitências ou punições celestiais, não porque é uma ordenança divina, mas
sim pelo simples fato de a consciência legitimar o que deve ser feito. Ensinar a pensar
é mais do que seguir um roteiro estipulado, haja vista que “vivemos em uma época de
disciplina, de cultura e de civilização, mas ela ainda não é a da verdadeira moralidade.
Nas condições atuais, pode-se dizer que a felicidade dos Estados cresce na mesma
medida que a infelicidade dos homens. (KANT, 1996, p. 28).

O gráfico de felicidade e infelicidade aferido pelo filósofo prussiano ao ato de


pensar é transformador. Dessa maneira, o ato de educar não pode ter como
fundamento as expectativas externas, mas o próprio desenvolvimento do sujeito, a
julgar pela premissa de que “a educação e a instrução não devem ser puramente
mecânicas, mas devem apoiar-se em princípios. Entretanto, não devem fundar-se no
raciocínio puro, mas, num certo sentido, também no mecanicismo.” (KANT, 1996, p.
28). A fim de superar esse modelo mecanicista, Kant mostra o entrelaçamento dos
termos disciplina e instrução, isto é:
57

A educação abrange os cuidados e a formação. Essa é: 1.


Negativa, ou seja, disciplina, a qual impede os defeitos; 2. Positiva,
isto é, instrução e direcionamento e, sob esse aspecto, pertence à
cultura. O direcionamento é a condução na prática daquilo que foi
ensinado. Daqui nasce a diferença entre o professor – que é
simplesmente um mestre – e o governante, o qual é um guia. O
primeiro, ministra a educação da escola; o segundo, a da vida. (1996,
p. 29-30).
Além de conceituar a abrangência da disciplina e da instrução, Kant (1996)
estabelece a distinção entre mestre e governante. Contrariando a lógica da antiguidade
clássica em que a função de mestre era a mais bem requisitada, o filósofo aponta
outros conceitos para essas duas categorias: se o mestre tem como preocupação a
ministração do que é formal da academia, o governante tem como ponto de partida a
própria vida. Essa metamorfose não ocorre automaticamente, todavia só quando o
sujeito se permite passar pela fase da disciplina, a qual lhe proporciona
amadurecimento suficiente para sair da menoridade e, assim, ser direcionado pela
consciência moral.

Neste ato de despertamento, Kant retoma conceitos de Rousseau, a saber:


educação doméstica/privada e educação pública. Ao considerar que a educação é um
fenômeno determinante da vida do sujeito, pode-se aferir a educação por duas vias:

A educação é privada ou pública. Essa última se refere às


informações, e pode permanecer sempre pública. A prática dos
preceitos fica reservada à primeira. Uma educação pública completa
é aquela que reúne, ao mesmo tempo, a instrução e a formação
moral. Seu fim consiste em promover uma boa educação privada.
(1996, p. 30).
Kant, contrastando com a abordagem rousseauniana, faz uma crítica à
educação privada. Seu argumento parte da ideia de que muitos pais não tiveram uma
boa educação, logo, passaram uma educação corrompida para as suas crianças. Dessa
forma, para o filósofo prussiano, a educação pública tem mais vantagem que a
privada, ao passo que essa tem relação “com respeito ao verdadeiro caráter cidadão”
(KANT, 1996, p. 32), enquanto que “a educação doméstica, além de engendrar
defeitos no âmbito familiar, os propaga” (1996, p. 32). Nota-se um rompimento com a
proposta de Rousseau ao que tangencia a educação domiciliar/privada e educação
pública. Se a primeira é o arquétipo para a abordagem de Rousseau, para Kant ela é
responsável em perpetuar os distúrbios de caráter propagados de geração em geração.

Ao que se refere à idade do sujeito para vivenciar a educação, Kant indica que
a educação pode ser desenvolvida “até o momento em que a natureza determinou que
58

o homem se governe a si mesmo; ou até que nele se desenvolva o instituo sexual;


até que ele possa se tornar pai e seja obrigado, por sua vez, a educar: até
aproximadamente a idade de dezesseis anos” (1996, p. 32), ao passar essa idade, o que
se pode oferecer é uma educação especializada, não a educação regular.

É interessante como Kant dialoga com aspectos positivos e negativos típicos da


educação, isto é, o educando se submeter a determinadas regras e normas pode ser um
elemento positivo, ao passo que o sujeito não ter condições de tomada de decisões por
si só, apenas uma capacidade mimética; porém, este mesmo ato de submissão pode ser
negativo, quando o educando anula a si mesmo, a sua vontade, para atender à vontade
dos outros, Kant afirma que “no primeiro caso, está sujeito a ser punido; no segundo,
a não conseguir o que deseja: e aqui, se bem que já possa refletir, ele não fica menos
dependente dos outros quanto à própria satisfação.” (1996, p, 32), o filósofo alemão
distingue uma educação formativa de uma educação deformativa.

A problematização de Kant ao que tange à educação é pertinente, haja vista


que “um dos maiores problemas da educação é o poder de conciliar a submissão ao
constrangimento das leis com exercício da liberdade” (1996, p. 32). Kant aponta uma
afirmação que é, ao menos, incômoda quando se pensa a teoria da educação: “o
constrangimento é necessário!” O que o filósofo pretendia com essa proposição? Para
tratar dessa questão, o autor desenvolve o tema da liberdade:

É preciso habituar o educando a suportar que a sua liberdade seja


submetida ao constrangimento de outrem e que, ao mesmo tempo,
dirija corretamente a sua liberdade. Sem essa condição, não haverá
nele senão algo de mecânico; e o homem, terminada a sua educação,
não saberá usar da sua liberdade. É necessário que ele sinta logo a
inevitável resistência da sociedade, para que aprenda a conhecer o
quanto é difícil bastar-se a si mesmo, tolerar as privações e adquirir
o que é necessário para tornar-se independente. (KANT, 1996, p.
33).
A asserção kantiana se articula com a ideia de que a liberdade, por si só,
estabelece uma linha limítrofe entre o permitido e o rejeitado, ou seja, ao conceder à
criança a liberdade, finca-se uma exigência, nesse caso, a criança pode desfrutar de
sua liberdade “com a condição de não impedir a liberdade dos outros, como no caso
de gritar ou manifestar a sua alegria alto demais, incomodando os outros” (1996, p.
33); é possível ensinar à criança que ela pode alcançar seus propósitos sem impedir
que os outros também os alcancem; provar que vivenciar o constrangimento é
importante para descobrir o que é a liberdade. No viés kantiano, o intento da educação
59

é “para que [a criança] possa ser livre um dia, isto é, dispensar os cuidados de
outrem” (1996, p. 34).

Mais uma vez, Kant, destoando da abordagem rousseauniana, destaca o valor


da educação pública: “a educação pública tem aqui manifestamente as maiores
vantagens: aí se aprende a conhecer a medida das próprias forças e os limites que o
direito dos demais nos impõe. [...] Essa educação pública é a melhor imagem do
futuro cidadão.” (1996, p. 34). Em outras palavras, é na interação social que o sujeito
constitui o si mesmo. Nesse processo relacional, Kant divide a educação em duas
ramificações:

[...] a educação física é aquela que o homem tem em comum com os


animais, ou seja, os cuidados com a vida corporal. A educação
prática ou moral (chama-se prático tudo o que se refere à liberdade)
é aquela que diz respeito à construção (cultura) do homem, para que
possa viver como um ser livre. Essa última é a educação que tem em
vista a personalidade, educação de um ser livre, o qual pode bastar-
se a si mesmo, constituir-se membro da sociedade e ter por si mesmo
valor intrínseco. (1996, p. 34-35).
Kant pontua uma distinção entre o ser racional e o irracional: enquanto este
último segue seus impulsos instintivos, o primeiro não anula sua animosidade, porém
a dimensão formativa da cultura é deliberativa, tendo em conta que a educação prática
ou moral tem em si ao menos três aspectos formativos: “(i) cultura escolástica ou
mecânica, a qual diz respeito à habilidade: é, portanto, didático (informador); (ii) na
formação pragmática, a qual se refere à prudência; (iii) na cultura moral, tendo em
vista a moralidade.” (1996, p. 35). Essas três dimensões, quase que de modo
tricotômico, formam a constituição do sujeito para Kant, pois se é a partir da formação
escolástica que o indivíduo tem a habilidade para consigo mesmo, a prudência está
atrelada com a dimensão axiológica da sociedade e a moral com a dimensão valorativa
da espécie humana como um todo. Esse aspecto formativo acontece de modo gradual,
na medida em que uma se desdobra na outra.

Há algumas afirmações kantianas que na contemporaneidade soam


estranhamente, por exemplo quando ele descreve o papel da educação como aquela
que constituirá pessoas fortes, ou seja: “tudo aquilo que a educação deve fazer é
impedir que as crianças cresçam muito delicadas. A fortaleza é o oposto da moleza.”
(1996, p. 48). Outra afirmação é a ideia de que a educação dura terá melhores
resultados práticos: “geralmente uma educação rígida fortifica o corpo. Entendemos
por educação rígida simplesmente aquela que nos afasta das comodidades.” (1996, p.
60

50). Tais afirmações não ecoam bem às audições contemporâneas, por isso, é
importante considerar o autor e as demandas de sua época, a fim de evitar qualquer
tipo de anacronismo conceitual.

Kant encerra seu texto com algumas orientações práticas, em outras palavras: a
peroração de sua obra é um breve compêndio de sabedoria prática. Entre as
orientações estão a orientação da alegria e do bom humor; considerar o dever pelo
dever (imperativo categórico); orientar quanto ao trato como humanidade, e neste
aspecto saltam os temas o interesse para consigo mesmo e por aqueles que cresceram
juntos; e pelo bem universal, é uma motivação para além do conveniente e do
imediatismo; orientar o desapego aos prazeres da vida; e “é preciso, por fim, orientá-
los sobre a necessidade de, todo dia, examinar a sua conduta, para que possam fazer
uma apreciação do valor da vida, ao seu término” (KANT, 1996, p. 107). Sua última
recomendação é um desafio ao sujeito para olhar para si mesmo, sua constituição e
perceber o quanto sua vida é (ou não) prazerosa e, sobretudo, autêntica.

I.2.4 Arremate Conceitual da Modernidade


A história revela mudanças significativas na modernidade: desde a transição do
poder eclesiástico para a ciência, até as novas percepções, no que concerne à
educação. Se Etienne de La Boétie defende que a educação tem sua finalidade na
liberdade do sujeito, na medida em que o sujeito é educado para a liberdade; sua
forma de conceber a sua composição de vida e sua interação com o mundo é
modificada. A liberdade é aquilo que se aprende a desejar, assim sendo, cabe à
educação gerar este desejo pela liberdade, pelo ato de emancipação.
Paralelamente à ideia de Boétie, Montaigne afirma que a educação é prática, ou
seja, não é possível pensar em um processo educativo que esteja envolto na teorização
sacralizada e dogmatizada, a qual não responde às demandas da existência. Educar
não é aparelhar o sujeito para decorar, é, sobretudo, uma forma de fazer com que a
vida seja o campo do conhecimento. Assim, a educação não está restrita à ciência, à
teoria ou a qualquer outra estrutura, em vez disso, a educação é um processo desatador
de horizontes de mundo.
Em Rousseau, destacamos um aspecto controverso e simultaneamente inovador
ao considerar a educação como algo executável, não pelo seu conteúdo, mas por sua
negatividade, isto é, quanto menos o professor atrapalhar na constituição do sujeito,
61

seja com conteúdo, com moralidade ou qualquer outro fenômeno, quanto menor a
inferência, maior a capacidade do sujeito em adentrar sua condição de estado de
natureza, lembrando que, para Rousseau, o ser humano é bom por natureza, o fator de
corrupção é o meio em que ele está inserido, ou seja, o meio. A contribuição
rousseauniana é na distinção entre a educação formativa para a cidadania, a qual
corresponde às intencionalidades sociais, e a educação formativa para o estado de
natureza, o que estaria atrelado com a dimensão doméstica, privada do sujeito, que é
auxiliar no seu despertar pessoal.
A última contribuição da modernidade está vinculada a Immanuel Kant, autor da
filosofia responsável por dar novos rumos para o ato de filosofar. Este pensador
afirma que a educação tem como teleologia a humanização do sujeito. Mais do que ser
disciplinado, evento este que pode acompanhar os animais irracionais, o sujeito
precisa passar pelo viés da educação a fim de que a selvageria seja superada e,
posteriormente, a noção de transformação de si, bem como de toda a espécie humana,
seja garantida. Não existe educação na homogeneização, todavia, a educação é uma
arte de abrir possibilidades que estruturem o sujeito e traga novas perspectivas do que
é ser humano.

Por fim, a modernidade é o berço de mutações significativas. O mundo mudou


porque o sujeito mudou. Cada autor, a sua maneira, demonstrou que a preocupação
primeira da educação é superar o obsoletismo, bem como gerar incômodo, seja no
docente, no educando ou nas estruturas. A modernidade revela que a educação está
para além dos paradigmas instituídos. A educação é força de resistência e contra os
atos de ‘enformação’, tema que passará aos autores/a da próxima seção.

I.3 A Educação na Contemporaneidade: Interpretações e


Críticas
O percurso feito até aqui foi uma abordagem filosófica da Educação
respeitando a trajetória histórica. Apresentamos o conceito de educação na
Antiguidade (séc. VII a.C. até séc III. d.C.); descrevemos, de modo sucinto, o
pensamento sobre a educação no período medieval (sec. IV d.C. até séc. XV);
conceituamos a ideia de Educação na modernidade (séc. XV até séc. XVIII) a partir
de quatro autores que, a sua maneira, demonstraram como a educação é um processo
constitutivo e fundamental para o sujeito. Na contemporaneidade (séc. XIX até XXI),
62

descreveremos alguns conceitos basilares para compreender como a educação foi


concebida e efetivada.

Talvez a metáfora que melhor sintetize a educação na contemporaneidade seja


o furacão. Um start que não se sabe precisar seu início bem como seus disparadores;
sabe-se, porém, que o sujeito passou a se observar e a mirar o mundo com novas
lentes. Nessa metáfora do furacão é possível aferir muitas nuances, sejam elas
religiosas, econômicas, filosóficas, políticas, sociais etc. A educação está inserida
nesse contexto, ou seja, não dá para pensar a educação fora do seu meio, das
conjunturas. Refletir sobre o tema da educação como um apêndice das demandas de
seu meio é lançar a educação como fator inferior, é, sobretudo, contradizer o que os
autores da Antiguidade até a Modernidade apresentaram como centralidade da
educação na composição do ser.

Na contemporaneidade, a educação passa a ser vista como fator decisivo: ou


para a perpetuação de um sistema voraz e agressivo à própria constituição do sujeito
ou como dispositivo de despertamento do sujeito em relação a si e ao mundo (e suas
variáveis). Os autores que recortamos nesta tese apresentam este viés de (i) percepção
crítica; (ii) proposições factíveis; (iii) atitudes que no âmago de sua efetividade beiram
a resistência e dissensos; e (iv) aproximação com a abordagem foucaultiana.

O recorte desta tese não se detém em alguns importantes teóricos da filosofia


da educação, entre eles: Emile Durkheim (1975), que trabalha a educação a partir de
um viés da sociologia, tangenciando a composição do indivíduo em relação aos
movimentos sociais que são fundamentais para a composição do imagético que toca a
noção de educação; Mikhail Bakunin (2003), o qual destaca a dimensão da educação
como elemento emancipatório das hierarquias dominantes; Theodor Adorno (2014),
que atém-se à indústria cultural como um elemento tecnicista, envolto em uma nuvem
positivista que, além de homogeneizar as subjetividades, faz dos indivíduos
normalizados com as barbáries que são defendidas e multiplicadas por meio de
propagandas que manipulam o racional e o irracional; Hannah Arendt (1961), que
demonstra a crise da educação na América – mas que muito se aproxima ao contexto
latino-americano – estava voltada para a manufatura e manutenção e um sistema
desumanizado, hiper especializado, contudo, na mesma medida, sem amar
suficientemente o mundo para propor uma educação revolucionária ao conservar o
sentido radical e crítico inerente ao ser humano; John Dewey (1958, 2003), que
63

apresenta a educação como fator de reconstrução e reorganização das experiências,


logo, a educação precisa partir das contingências da vida, do mundo vivido e suas
problematizações, a fim de alcançar suas proposições últimas; além do educador e
teórico Paulo Freire (2011), que tem como proposição a ideia da educação para a
liberdade e libertação do sujeito, o qual parte da premissa de que o indivíduo não tem
noção de sua posição e ação no cosmos, logo, cabe à educação promover essa
transformação do indivíduo; esse processo pondera as dimensões objetivas e
subjetivas que talham o sujeito.

Esses são teóricos que, mesmo não aparecendo diretamente na literatura


foucaultiana, estabelecem dialética significativa com os textos foucaultianos. Com o
intuito de fazer um recorte teórico, a configuração dessa tese dará preferência a
autores da contemporaneidade que estabelecem dialética direta com a abordagem
foucaultiana, sendo eles: Marx e Engels, Nietzsche e Freud.

A contemporaneidade tem como característica os desdobramentos das grandes


revoluções que ocorreram na modernidade e alteraram forma como o sujeito passou a
ver e compreender a si mesmo e ao mundo. O século XIX é marcado por tensões. De
um lado, a ideia positivista de Ordem e Progresso, típica do ideal positivista, como
disparador para uma sociedade emancipada, inclusive, toda a perspectiva positiva,
inclusive, que o próprio Immanuel Kant apresenta acerca do ser humano se dava a
partir da possibilidade de modificação que a tecnologia poderia promover na raça
humana. Essa concepção positivista alterou tanto a forma de fazer ciência como o todo
do ser humano: a economia, a religião, a política etc.

Outro aspecto relevante do século XIX é que ele foi o berço dos “mestres da
suspeita”, a saber: Marx, Nietzsche e Freud. Como os dois primeiros autores serão
tema da reflexão a seguir, tocaremos, brevemente, a contribuição de Freud quanto a
sua reflexão sobre o ser humano. Ainda que esse autor não tenha escrito nada
diretamente voltado para a educação, em sua obra O mal-estar da civilização (1976)
ele aponta como o sujeito está em constante conflito consigo mesmo, isso porque ele
sempre tem que se amoldar às estruturas de seu tempo. Um detalhe interessante dessa
obra de Freud é que ele terminou de escrevê-la em 1899, mas deixou para publicar em
1901, porque afirmava que seu texto seria a síntese da humanidade que estava se
pondo. Sua tese é de que, diante desse complexo jogo dialético entre id, ego e
superego, o sujeito assume para si uma identidade que se harmoniza com as
64

expectativas sociais, com o desenvolvimento social, porém, não tem


comprometimento com a própria essência humana.

Devido a esse impacto, a própria alma do sujeito viveria uma patologia


incurável, haja vista que, por mais que se saiba que haja algo fora do eixo, não se sabe
o que está fora; assim, o mais adequado a se fazer é se encaixar às expectativas
sociais. É neste contexto de mal-estar, de transformações abruptas e contínuas, de
imposição arbitrária dos sistemas econômicos que privilegiam uma restrita elite,
dentre outros fatores, que alteram significativamente a existência humana.
Apresentaremos as contribuições sobre a temática da educação de Marx, Engels e
Nietzsche que variam entre as críticas ao contexto educacional até a proposição de
novos horizontes e perspectivas voltados à educação.

I.3.1 Educação em Marx e Nietzsche

A contribuição de Karl Marx e Friedrich Nietzsche está em diálogo com o seu


tempo, porém, extrapola a temporalidade, por estar para além do seu período histórico.
O primeiro, Marx, ainda que não tenha escrito um texto específico para a educação –
característica presente em Nietzsche – descreve como a educação é um processo
importante de duas vias, isto é, a educação ou pode emancipar o sujeito ou pode
condicioná-lo a uma vida determinada pelas expectativas sociais, sobretudo do
mercado.

Marx e Engels se dão conta de que há duas estruturas que demarcam as


relações humanas: a infraestrutura e a superestrutura. A primeira está relacionada com
o concreto, com o físico, com as estruturas que não só influenciam, mas sobretudo
determinam as relações sociais; já a superestrutura é a subjetivação do sujeito, a
maneira como o sujeito compreende e justifica porque ele faz o que faz, ou porque
deseja o que deseja, ou porque pensa o que pensa. Fica claro que a infraestrutura é
determinante, isto é, “a causa não está na consciência, mas no ser. Não no
pensamento, mas na vida.” (MARX; ENGELS, 2011, p. 43). Para os autores, a
subjetividade é determinada pelas diversas materialidades, logo, é o mercado que
determina o que se pensa e faz.

Na teoria marxista, o Estado é fundamental para o processo de emancipação e


libertação do ser humano, pois “o limite da emancipação política se manifesta
65

imediatamente no fato de que o Estado possa liberar-se de um limite sem que o


homem libere-se realmente dele, que o Estado possa ser um Estado livre sem que o
homem seja um homem livre.” (MARX; ENGELS, 2011, p. 45). Percebe-se que a
proposta dos autores é que o Estado tenha uma postura tal que deixe o ser humano
decidir por si só. “O Estado pode ter-se emancipado da religião mesmo quando a
grande maioria continua sendo religiosa.” (2011, p. 46), portanto, não cabe ao Estado
determinar o que o sujeito será, cabe, outrossim, potencializar a liberdade a fim de que
as escolhas do sujeito sejam autênticas: “o Estado é o mediador entre o homem e a
liberdade do homem.” (2011, p. 86).

Essa proposta de um Estado que esteja a favor da liberdade do sujeito


contrariava o contexto em que Marx e Engels estavam inseridos. A cultura
industrializada, da alta lucratividade, movida pelo espírito vampirista do capital, fazia
do sujeito trabalhador (proletariado) apenas mais uma peça de toda uma engrenagem.
O ser humano, independente de gênero ou idade, que compunha a classe dos
proletariados, estavam inseridos em uma educação de modo submisso, isto é, a
educação determinava o que o sujeito seria, não havia nenhuma inferência por parte da
prole no processo educacional. Estavam à mercê das intencionalidades daqueles que
estavam no poder, por isso, é preciso pensar em caminhos de emancipação, e a
educação é este caminho.

Para Marx e Engels não era uma questão de inferioridade natural, em vez
disso, era a castração de horizonte que fazia dos proletários pessoas sem perspectivas
para além do “chão-de-fábrica”. A interferência do Estado nesse processo libertador
seria imprescindível, uma vez que, por si só, a prole não teria condição de
emancipação, como eles descrevem: “O caso da classe operária é complemente
diferente. O trabalhador individual não atua livremente. Muitas vezes é
demasiadamente ignorante para compreender o verdadeiro interesse de seu filho nas
condições normais do desenvolvimento humano.” (2011, p. 84). A falta de perspectiva
faz com que a naturalização desse procedimento seja absorvida pela classe
trabalhadora a tal ponto que há uma amortização e anestesia da reflexão.

Seguindo por esse viés marxista, só há alteração de uma classe, bem como de
toda sociedade, quando a educação é um projeto efetivado, pois a educação tem a
característica de alterar as subjetividades e os processos de subjetivação. Ao mesmo
tempo que o Estado tem como função estabelecer leis e diretrizes que protejam e
66

potencializem a emancipação do sujeito, apenas essa normatividade não é suficiente


para uma mudança significativa: é preciso alterar a consciência. O devir que tangencia
a subjetividade do sujeito altera a relação que ele estabelece consigo e com o mundo,
de sorte que esse processo tem como pressuposto básico a Educação. Mas o que Marx
e Engels compreendiam por Educação?

Por educação entendemos três coisas: (1) educação intelectual; (2)


educação corporal, tal como a que se consegue com os exercícios de
ginástica e militares; (3) educação tecnológica, que recolhe os
princípios gerais e de caráter científico de todo o processo de
produção e, ao mesmo tempo, inicia as crianças e os adolescentes no
manejo de ferramentas elementares dos diversos ramos industriais.
(2011, p. 85).
Para os autores, a educação é um processo que alcança o todo do ser humano.
Com essa compreensão intelectual, física e técnica da educação, a classe operária
vivenciaria uma transformação em sua plenitude. A educação é um fenômeno que
impacta o ser humano a tal ponto que sua maneira de ler a sociedade é alterada. Tanto
a ação de reificar ou de fetichismo são superadas por meio da educação. Há, assim,
um novo entrelaçamento perceptivo, como destaca Marx:

A teoria materialista de que os homens são produto das


circunstâncias e da educação e de que, portanto, homens
modificados são produto de circunstâncias diferentes e de educação
modificada esquece que as circunstâncias são modificadas
precisamente pelos homens e que o próprio educador precisa ser
educado. Leva, pois, forçosamente, à divisão da sociedade em duas
partes, uma das quais se sobrepõe à sociedade (como, por exemplo,
em Robert Owen). A coincidência da modificação das circunstâncias
e da atividade humana só pode ser apreendida e racionalmente
compreendida como prática transformadora. (MARX, 1982).
Em Marx há, por um lado, uma interpretação fatalista de causa e efeito, isto é,
o homem é resultado de um determinismo circunstancial, é apenas produto do meio e
refém da educação recebida. Essa perspectiva lança a humanidade a uma postura
essencialmente passiva diante de si e do mundo. Por outro lado, na perspectiva de
Marx, a educação dos educadores será decisiva nessa transição de uma condição de
assujeitamento e postura de apêndice do indivíduo em reação ao sistema para uma
condição protagonista da história, logo, a educação dos educadores lança o sujeito
para uma postura ativa e revolucionária em relação a si e ao mundo. Os apontamentos
de Marx confrontam as diretrizes pecuniárias de seu período, pois tudo estava à venda;
tudo tinha um preço, inclusive a educação e a cultura.
67

Os textos nietzschianos estão neste contexto de monetarização da cultura, da


educação, dos sujeitos, porém, em contrapartida, um quadro que pulsava a
necessidade de transformação e alteração de si e do mundo. Segundo Ghiraldelli,
“Nietzsche esteve no centro do redemoinho da crise da filosofia moderna” (2010,
p.35), isso porque, para o filósofo alemão, o projeto da filosofia moderna “fazia parte
de um grande programa de infelicidade” (2010, p. 35). O contexto de Nietzsche
carregava algumas peculiaridades: “de um lado, a situação de miséria cultural e, de
outro, a crença amplamente difundida de que existe a verdadeira cultura” (MARTON,
2006, p. 18).

Toda a transformação e revolução que a ciência e a técnica propuseram


esvaziaram os sentidos de existências e de criticidade dos sujeitos. Inclusive, a
educação vivia uma crise significativa, pois ao mesmo tempo que “a intenção do
ginásio era preparar para a Universidade” (NIETZSCHE, 2003, p. 124), pairava,
também, uma cosmovisão sobre a ideia de educação bastante controverso, como
analisa Marton:

No final do século XVIII, a cultura tinha de ser criação


desinteressada, desligada de intenções utilitárias. Agora, ela está
atrelada às exigências do momento, aos caprichos da moda, aos
ditames da opinião pública. Antes, o ensino devia ser puro,
desvinculado de objetivos práticos. Agora, com a proliferação dos
institutos profissionais e escolas técnicas e com o esfacelamento das
universidades em cursos especializados, ele converte-se em ensino
de classe. (2006, p.18).
Para Nietzsche, o Estado e a cultura são dois pontos extrínsecos, isto é, pontos
que não dialogam, porque, na sua perspectiva, o Estado sobrevive como se fosse um
parasita da própria cultura. O Estado gera um falso sentimento de pertença, ou seja,
sensação de obrigatoriedade coletiva, pois “quem se recusa a servir à coletividade é
considerado imoral.” (MARTON, 2006, p.20). O Estado faz com que o sujeito se sinta
em constante débito, de modo que o indivíduo se assujeite às normas, a fim de
cumprir seu papel social. Aquilo que outrora era força por excelência, torna-se fraco e
submisso. Segundo Nietzsche, não é o papel da cultura amoldar o sujeito à expectação
social, a educação potencializa a desconfiança e a inquietude d’alma, não o inverso.
Quando a educação se harmoniza com o Estado, está a serviço da deformação:

A educação: um sistema de meios visando a arruinar as exceções em


favor da regra. A instrução: um sistema de meios visando a elevar o
gosto contra a exceção, em proveito dos medíocres. Visto assim, isto
parece duro; mas, de um ponto de vista econômico, é completamente
68

racional. Pelo menos para o longo período em que uma cultura se


mantém ainda com sacrifício, onde toda exceção representa um
dispêndio de força [algo que desvia, seduz, torna doente, isola]. Uma
cultura da exceção, da experimentação, do risco, do matiz – uma
cultura de estufa para as plantas excepcionais para que o mesmo
dispêndio se torne econômico”. (2003, p. 227).
Nessa citação, Nietzsche já declara que os estabelecimentos de ensino não se
preocupam com a constituição dos sujeitos. A preocupação é homogeneizar as
subjetividades e, assim, descartar qualquer tipo de excepcionalidade. Os
estabelecimentos de ensino buscam a automanutenção e, para tanto, a formação tem
que seguir a lógica da homogeneização, como destaca Sobrinho na introdução ao texto
de Nietzsche:

Na avaliação de Nietzsche, os estabelecimentos de ensino da sua


época apresentavam-se como instituições transmissoras de uma
educação ao mesmo tempo uniformizada e medíocre, utilitária e
integradora, baseada neste princípio da ‘livre-personalidade’, cujo
efeito era conservar os jovens na imaturidade, na ignorância e na
indiferença. A pedagogia moderna nestes estabelecimentos era então
um misto de erudição e futilidade, de cientificismo e jornalismo; ela
ajudava tão-somente a formar os ‘servidores do momento’, mas não
concorria absolutamente para formar os homens exigidos por uma
cultura elevada, como protagonistas de um destino superior. (2003,
p. 13).
A educação serve apenas às contingências e demandas de seu período, com
uma finalidade meramente pragmática. Assim, na concepção de Nietzsche, a educação
tem caminhado por uma vereda de barbárie, pois é uma educação que está a serviço
das grandes massas. Servir aos interesses das massas é desprezar a si mesmo. Os
estabelecimentos de ensino, na ótica nietzschiana, seguem por duas vias, que à
primeira vista parecem caminhos opositores, entretanto, são devastadoras em seus
resultados, a saber: “a tendência à extensão, à ampliação máxima da cultura, e a
tendência à redução, ao enfraquecimento da própria cultura.” (NIETZSCHE, 2003, p,
61).

Esses dois movimentos, em primeiro lugar de alargamento – extensão – se


relaciona com a noção de universalização da cultura como um produto que chega em
qualquer prateleira e pode ser consumido por qualquer sujeito, e de especificidade –
redução – pois torna a educação uma trama para especialistas, tornando-se obsoleta
diante das amplitudes da própria existência humana. Segundo Sobrinho, o ato de
educar seria uma postura de investida, isto é:
69

Assim, educar com vistas à elevação da cultura significa, em


primeiro lugar, romper a ingenuidade e imediaticidade com que os
jovens consideram a natureza, significa desencantar a natureza e
fazer ver o amálgama problemático que é homem e natureza; em
segundo lugar, significa promover a comunicação dos jovens
estudantes com os homens grandes e raros e mostrar a
exemplaridade de sua experiência existencial e intelectual. Mas para
isso, ou seja, para realizar este projeto pedagógico de elevação da
cultura, conclama Nietzsche, é preciso imediatamente “passar ao
ataque”, é preciso não fugir, mas enfrentar a situação e superá-la
(NIETZSCHE, 2003, p, 15).
Esses dois pontos, superar a ingenuidade típica da idade pueril e o contato com
os homens grandes, são o viés de ataque aos sistemas dominantes de um período
marcado pela alta tecnicidade e baixa humanidade. Seguindo nas trilhas de Sobrinho:
“cultiva-se a animalização do homem, a idolatria do Estado como fim supremo da
humanidade e da propriedade como sinônimo de felicidade, através dos
estabelecimentos de ensino e a cultura jornalística é em todo lugar disseminada e
exaltada como sendo a verdadeira cultura” (2003, p. 17). Nota-se a familiaridade
dessa citação com a proposição de Marton ao demonstrar que a dimensão pecuniária
passou a ser o critério de desenvolvimento e progresso de um período que vivia o
eclipse da humanidade. Comentando o conceito de educação em Nietzsche, Sobrinho
descreve:

Para Nietzsche, a educação está longe de ser totalmente instruir e


informar, não é uma aprendizagem no sentido tradicional do termo,
mas é sobretudo fazer despertar os sentidos para a elevação da
cultura, quer dizer, afirmar a vida e o mundo na sua tragicidade; não
se trata somente de conhecer mais e melhor o homem e o mundo,
mas antes de impulsionar outras e novas possibilidades e aspirações
naqueles homens que estivessem dispostos a isto. (NIETZSCHE,
2003, p, 37).
Talvez neste aspecto se concentre um ponto complexo na interpretação do
texto nietzschiano, pois para o filólogo alemão a educação de seu tempo, que se
propunha a ser universal, prestava um desfavor à humanidade. Ao ser extensa demais,
a educação não cumpre seu papel primordial, pois a verdadeira educação, a verdadeira
cultura é extremamente exigente, e nem todas as pessoas estão dispostas a pagar por
este alto preço que a educação exige, como continua Sobrinho:

A nova educação defendida por ele exige, do ponto de vista do


processo didático-pedagógico, valoriza as aparências nas suas
diferentes intensidades e perspectivas, ou seja, ela exige, antes de
mais nada, ‘ser fiel à terra’, como única via de superação dos
nihilismos e atingimento da grandeza; essa nova educação pressupõe
que a vida somente está justificada como fenômeno estético, como
70

formação de si, como cultura, como uma empreitada de


destruição/criação que indica novos modos de pensar inusitados até
então (NIETZSCHE, 2003, p. 37).
A obra nietzschiana se propõe a refletir sobre o sentido da vida humana,
inclusive seus textos voltados para essa temática. Nessa missão, o autor alemão aponta
três mestres que contribuíram significativamente para a reflexão sobre a constituição
do sujeito: Rousseau com sua concepção de homem natural inerente a todo ser
humano; Goethe com seu ponto de vista do homem contemplativo, restrito a um
pequeno grupo de pessoas; e Schopenhauer, grande influência no pensamento de
Nietsche, o pedagogo por excelência, pois é nele que se percebe a imagem de um
“homem solitário e ao mesmo tempo o mais ativo, corajoso, intrépido, cujos
sofrimentos conscientemente assumidos o levam à subversão de tudo que nele próprio
se encontra: ele é a negação criadora, a afirmação da vida autêntica que é trágica.
(2003, p. 19).

Apontar Schopenhauer como paradigma de pedagogo é apontar que mais do


que erudição e formalismo, a educação e, consequentemente, a cultura, precisam se
voltar para aquilo que tangencia a realidade do ser humano. Essa realidade não como
finalidade social, mas como dimensão constitutiva da própria essência. Enquanto a
educação formal cumprir seu papel formador de técnicos e profissionais, mais o ser
humano terá sua essencialidade amortizada e anestesiada, como diz Nietzsche:

Bem, eis aí uma tarefa daquilo que se chama de educação formal, e


uma das mais preciosas: e o que encontramos no ginásio, em lugar
dessa educação formal, como se diz? – Aquele que sabe ordenar o
que vai encontrar nas rubricas convencionais saberá também que é
preciso considerar o ginásio de hoje como um falso estabelecimento
de ensino: ele achará de fato que o ginásio, segundo sua constituição
primitiva, forma para a cultura, mas unicamente para a erudição e,
em seguida, que, nos últimos tempos, ele tomou como tarefa não
mais formar sequer para a erudição, mas unicamente para o
jornalismo (2003, p. 70).
É tênue a linha que separa a real formação, que não é esdrúxula ou vulgar, de
uma formação que almeja conceber sujeitos eruditos, mas obsoletos quanto a si
mesmo. Vale saber o que Nietzsche compreende por erudito:

O erudito é um intelectual impulsionado por banalidade, quer dizer,


pelos instintos vulgares da massa, razão porque não pode
compreender o que é superior, extraordinário, raro, distinto. O
erudito é um intelectual que tem uma sensibilidade grosseira, isto é,
não refinada, que não se detém diante de nada, de nenhuma coisa,
por mais vil que seja; não obstante, sua modéstia não consegue
esconder a sua demasiada autoestima, a sua vaidade” (2003, p. 23).
71

O cientificismo embebido de um alto teor de erudição, depravou e perverteu


a formação, a educação e a própria cultura. Muito desse fenômeno se deve, segundo
Nietzsche, à gama significativa de mestres despreparados para sua função formativa,
pois, corroborando com a problematização desta tese, “a imensa maioria dos mestres
se encontra, nestes estabelecimentos, no seu ambiente próprio, porque seus dons se
encontram numa certa relação harmônica com o baixo nível e com a mediocridade dos
seus alunos” (NIETZSCHE, 2003, p. 89). Estes múltiplos pseudo mestres, em vez de
investirem na verdadeira cultura, estão intrinsicamente ligados com uma educação
apequenada, insuficiente, entretanto, harmonizada com as expectativas dominantes, ao
ver de Nietzsche:

O mestre critica o aspecto verdadeiramente autônomo que, nessas


excitações prematuras, não pode justamente exprimir-se senão como
inabilidades, como saliências e como traços grotescos; é, portanto, o
indivíduo na sua acepção exata que é repreendido pelo mestre e
rejeitado em proveito de um meio conveniente, privado de
originalidade. Em troca, a mediocridade uniformizada recebe elogios
dispensados de má vontade: pois é ela justamente que habitualmente
aborrece o mestre, e por boas razões. (2003, p. 73).
Nietzsche afirma que existem mestres que, devido a sua incompetência e
mediocridade, privam os sujeitos autônomos e os condicionam a uma postura de
autômato, em outras palavras, se o autônomo é aquele que tem iniciativas constitutivas
e por isso criativas sobre si, o autômato é aquele ser dependente, harmonizado com as
multidões. Posto isso, Nietzsche anuncia qual seria a preocupação dos verdadeiros
mestres: “portanto, não é da cultura da massa que deve ser a nossa finalidade, mas a
cultura de indivíduos selecionados, munidos das armas necessárias para a realização
das grandes obras que ficarão” (2003, p. 90). Em complementaridade, o autor diz que
“o homem que não quer pertencer à massa só precisa deixar de ser indulgente para
consigo mesmo; que ele siga a sua consciência que lhe diria: Sê tu mesmo! Tu não és
isto que agora fazes, pensas e desejas” (2003, p. 139).

Se por um lado Nietzsche vê a áurea da tecnicidade e da erudição como


elementos da mediocridade típica do século XIX, por outro lado, o filósofo alemão
caricatura um novo horizonte para o mundo a partir do ordinário:

[...] as experiências mais admiráveis, mais instrutivas, as


experiências decisivas, são exatamente as experiências cotidianas,
que essas constituem justamente o grande enigma que cada um tem
sob os olhos, mas que poucos compreendem como sendo um enigma,
e que, para o pequeno número de verdadeiros filósofos, são
justamente estes os problemas que permanecem ignorados,
72

abandonados no meio do caminho e, por assim dizer, pisoteados


pela multidão, antes de que eles os recolham cuidadosamente e a
partir desse momento resplandeçam como pedras preciosas do
conhecimento (NIETZSCHE, 2003, p. 123).
A preocupação das grandes massas se dá no campo econômico, dos prazeres da
mesa e da cama etc.; a provocação nietzschiana, por sua vez, é um chamamento para a
percepção do presente. A verdadeira cultura não despreza o cotidiano, pelo contrário,
faz dele sua fonte de inspiração e reflexão. É por meio do cotidiano que o sujeito
encontra a autenticidade do viver e solapa as falsas concepções típicas de uma pessoa
enraizada nos estabelecidos de ensino, os quais “se escondem atrás de costumes e
opinião”. Para Nietzsche, a consciência da efemeridade da vida carrega em si o
assombro da fragilidade humana e, paralelamente, a força de potência de que a vida e
o próprio ato de viver estão embebidos, ou melhor: “no fundo, todo homem sabe
muito bem que não se vive no mundo senão uma vez, na condição de único, e que
nenhum acaso, por mais estranho que seja, combinará pela segunda vez uma
multiplicidade tão diversa neste todo único que se é.” (NIETZSCHE, 2003, p. 138).

Segundo Nietzsche, a autêntica instituição cultural nada tem a ver com os


estabelecimentos de ensino, pois se a segunda tem como preocupação última as
demandas da sociedade, do mercado, das instituições hipostasiadas, a primeira tem
como eixo fundante o próprio sujeito e sua força de potência. Ao analisar a
tecnicidade e automação de seu tempo e a forma como estes dispositivos exercem
controle sobre o ser humano, Nietzsche afirma que “essa é a razão porque o nosso
século passará talvez, para uma longínqua posteridade, com o momento mais obscuro
e desconhecido, como o período mais inumano da história” (2003, p. 140).

Se os estabelecimentos de ensino, isto é, as universidades, são extensivas em


sua dimensão universalista e reducionista ao que tangenciam a alta ênfase na
especialidade, a autêntica instituição cultural faz o caminho inverso, pois não é
universalista ao passo que não pulveriza a educação e, também não é altamente
especialista, ao considerar a complexa transcendentalidade típica do ser humano. A
autêntica instituição cultural, segundo Nietzsche, dá ao sujeito condições de perceber
e criar sua humanidade, tendo em conta que:

Ninguém pode construir no teu lugar a ponte que te seria preciso tu


mesmo transpor no fluxo da vida – ninguém, exceto tu. Certamente,
existem as veredas e as pontes e os semideuses inumeráveis que se
oferecerão para te levar para o outro lado do rio, mas somente na
medida em que te vendesses inteiramente: tu te colocarias como
73

penhor e te perderias. Há no mundo um único caminho sobre o


qual ninguém, exceto tu, poderia trilhar. (2003, p. 140-141).
Essa abordagem abrupta de fazer filosofia de Nietzsche, bem como de
contrariar as estruturas vigentes de seu tempo, destaca como o processo de formação
está para além do ambiente acadêmico e técnico, está diretamente ligado com a vida.
Para ele, a educação estabelece uma ruptura entre os que compõem a elite da
sociedade e os que fazem parte da mediocridade, uma vez que “os teus educadores não
podem ser outra coisa senão teus libertadores” (NIETZSCHE, 2003, p.141-142), isto
é, os verdadeiros mestres exercerão papel crucial nessa divisão.

Tanto Marx como Nietzsche foram autores que, a suas maneiras, perceberam
as contingências que assolavam a sociedade de seu tempo, interpretaram e apontaram
caminhos de enfrentamento. A aproximação possível entre esses dois autores se dá no
tocante à dimensão da educação, pois, mesmo que por variáveis distintas, é possível
aferir, que para esses dois autores, a educação é o único caminho possível de
transformação dos sujeitos. Ainda que tenham peculiaridades no que tange à
abordagem filosófica, o que aproxima os dois é a dimensão transformadora que a
educação pode exercer na vida do sujeito. Essa dimensão transformadora pode ser
tanto para o processo de emancipação e de maioridade, como para um processo de
alienação e menoridade.

Em suma, é possível solapar a imagem passiva da educação, bem como a


noção periférica e coadjuvante deste fenômeno, quando se considera esta como um
fenômeno encharcado de intencionalidades. A contribuição de Marx e Nietzsche no
que se refere à educação é a sustentação de um quadro ativo e pragmático, típico de
uma educação de resistência e confronto com os sistemas dominantes. Os mestres da
suspeita problematizam tanto o aspecto substancial quanto a condição formal,
apontam para uma nova maneira de fazer e refletir a educação.

I.3.2 Arremate Conceitual na Contemporaneidade


Os teóricos da contemporaneidade ressignificaram o conceito de educação.
Não foi uma jornada etmológica, em que o neologismo fundamentou a reflexão, em
vez disso, a proposta de Marx e Nietzsche foi confrontar os sistemas estabelecidos. A
contribuição destes teóricos ressoa até nossos dias por alguns motivos: (i) a educação
está a serviço da máquina global, isto é, do mercado da economia; (ii) o discurso de
74

acessibilidade é travestido de uma práxis que alimenta a condição de ignorância do


sujeito; (iii) tudo é monetarizado, logo, a educação eficiente é aquela que é lucrativa;
(iv) a pluralidade é substituída pela homogeneização e pela heteronormatividade; (v) a
subjetividade do sujeito é forjada para finalidade imediatista, assim, não há noção de
temporalidade e construção de tempo. Vejamos estes itens.

A noção de máquina global está associada com a premissa de que a vida está
alienada aos interesses econômicos de um sistema que não é vivo, mas que sobrevive
do sangue do sujeito. Assim, quando se pensa a educação como aliada e harmonizada
com a máquina global, afere-se que a educação perdeu sua essência crítica para
assumir uma postura tecnicista que está refém do sistema, sem protagonismo ou
iniciativa.

Por mais que o discurso de acessibilidade seja importante – e defendemos essa


ideia da universalização da educação, bem como de todos os direitos inalienáveis
presentes da Declaração Universal dos Direitos Humanos – nota-se que a educação
está para resolver problemas, não como uma postura reflexiva sobre o problema e suas
verdadeiras causas. E ainda que haja boas intenções, nota-se que a educação está presa
a intencionalidades escusas que subtraem do sujeito, em vez de agregar.

Muito relacionado com a proposição da máquina global, pensar uma educação


que dá preço a todas as coisas, inclusive, em terras brasileiras, afere-se que a melhor
educação básica é aquela que é privada, isto é, paga, percebe-se, então, que a
qualidade do processo educacional está diretamente relacionada com a noção
financeira. Além deste fator, há, também, o deslumbre de grandes empresas que olham
para o mercado hodierno como um grande potencial para o produto e serviço
denominado educação. Grandes empresas sucateiam a educação não por seu
compromisso com a noção da universalização do saber, mas, em vez disso, pela venda
de um processo educacional que atende, exclusivamente, a interesses mercadológicos.
Nessa lógica, a educação é um produto.

O aspecto da pluralidade humana, típica da própria humanidade, é substituída


pela noção da homogeneização, isto é, todas as pessoas são massificadas, controladas,
enformadas para atender a determinadas normativas vinculadas com a noção das
heteronormatividades, ou seja, leis externas e alheias ao sujeito que se impõem e
fazem do sujeito um objetivo de absorção e reprodução, tanto das padronizações como
das conciliações entre as expectativas sociais com o sujeito.
75

Por fim, a dimensão da subjetividade do sujeito que é moldada a partir de


uma teleologia presa à ditadura do instantâneo, da urgência, do imediatismo, faz da
pessoa refém de uma estrutura abstrata, mas que afeta diretamente a noção do
concreto. Não é possível pensar a subjetividade sem ponderar a objetividade, assim, a
noção da educação é transformada em um recorte da vida do sujeito, solta e
desprendida da constituição integral do indivíduo. Dessa forma, é mais fácil observar
a vida de modo fragmentário e pulverizado. O que importa para o sujeito é o diploma
no final do percurso acadêmico. Todo o trajeto é minimizado diante do resultado.
Além da lógica maquiavélica que serve como força motriz, a subjetividade é
objetificada e, portanto, perde-se a noção do si mesmo, ou, na abordagem foucaultiana
o cuidado de si.

Pensar a educação como o elemento transformador da subjetividade é retomar


a reflexão de Michel Foucault sobre o cuidado de si, a qual lança o si mesmo do
sujeito no centro da abordagem, questionando até que ponto pensar sobre si, ater-se
sobre si, cuidar de si faz parte da prioridade do sujeito contemporâneo ou se outras
demandas ocupam mais essa reflexão e, mais do que isso, até que ponto a educação se
preocupa com a construção de uma subjetividade emancipada ou alienada? Temas
estes que serão abordados nos próximos capítulos em que os domínios foucaultianos
estarão em evidência.
76

2. OS DOMÍNIOS FOUCAULTIANOS

Com o propósito de perseguir a hipótese desta tese que é a forma como o ato
de revisitar as narrativas do cotidiano da educação formal contribuem para a
hermenêutica do sujeito, logo, esta tese analisará o fenômeno da educação em um
método comparativo, prestigiando a abordagem foucaultiana da desconstrução da
subjetividade do sujeito para chegar a constituição do ser em perspectiva analítica e
crítica filosófica. Este capítulo se aterá aos três domínios teóricos que estão presentes
na obra do filósofo francês Michel Foucault.

As provocações filosóficas de Michel Foucault têm como marca identitária a


transdiciplinaridade. Isso porque, dentro da área das Humanidades,
independentemente da especialização, é possível dialogar com escritos de Foucault
para responder alguns questionamentos emergentes. Por exemplo, grande parte dos
filósofos ou sociólogos leem em Foucault traços estruturalista, aquele que,
sistematicamente, sedimenta as camadas humana e sociais e propõe hermenêutica
crítica; textos que tratam das relações de poder, punições e controle fazem parte da
bibliografia de cursos de Direito e, até mesmo, Pedagogia (ao inquerir sobre
instituições de sequestro que são aquelas que moldam o sujeito para cumprir uma
finalidade especifica, sem respeitar sua singularidade); há, também, aqueles que
preferem ler Foucault a partir das relações intersubjetivas, ou seja, sua abordagem
sobre a sexualidade. Invariavelmente, em qualquer de suas obras ou domínios, o
sujeito ou noção de tornar-se sujeito é sempre base analítica e metodológica do autor.
77

A partir dessa fundamentação teórica de que o sujeito é o cerne de toda a


produção foucaultiana, é possível dividir sua obra em três etapas distintas, ou, em
outras categorias, os três domínios foucaultianos. Falar de domínios não é negar as
fases ou etapas de destaque do pensamento de Foucault, é, sobretudo, demonstrar a
relação entre o conteúdo epistêmico que o filósofo apresentou de modo dialético em
toda a sua construção teórica, considerando o sujeito como eixo arqueológico.

Com vistas metodológicas, apresentaremos os três enfoques de Foucault, sendo


eles: (I) arqueologia; (II) genealogia (III) e ética. Segundo Veiga-Neto, “Foucault
dividiu em três modos a subjetivação de tornar os humanos em sujeitos: a arqueologia,
a genealogia e a ética” (2015, p. 309). Na primeira fase é possível perceber que a
preocupação de Foucault é decodificar o ser humano a partir das estruturas que
permeiam sua existência. A segunda fase, ainda fincada em rudimentos próximos da
metodologia estruturalista, é marcada pela gênese do poder, uma relação que
necessariamente implica, ao menos, dois sujeitos em relação: quem exerce o poder e
quem se sujeita ao poder. Por fim, na terceira fase, nota-se um Foucault preocupado
com o cuidado de si, isto é, como ser sujeito em relação consigo mesmo. O método
estruturalista é deixado de lado e o pensador assume uma postura de hermenêutica do
si mesmo. Nessa direção, sintetizando as etapas de Foucault, Veiga-Neto afirma:

Para Foucault, o homem nasce, primeiramente, para a arqueologia,


tornando-se sujeito de um saber. Em seguida, não de forma linear,
nasce o homem para o poder, por meio da genealogia. Por fim, o
homem nasce para a ética, por meio da relação consigo mesmo.
(2015, p. 309).
Este capítulo apresentará alguns pontos valiosos dos três domínios
foucaultianos, com o intuito final de articular com o tema da educação. Antes, porém,
de adentrar as seções específicas sobre os domínios, apresentaremos, de modo sucinto,
a vida e obra de Michel Foucault, bem como os traços fenomenológicos que estiveram
presentes no começo de seu itinerário acadêmico.

Assim, a primeira seção estará atenta ao tema da arqueologia, dialogando,


especificamente, com o tema da loucura e como o autor desenvolveu sua abordagem
arqueológica sobre a história. Como base teórica, os textos que acompanharão são:
“Doença mental e a psicologia” (1975) e “História da loucura” (1978), além de
citações dos textos “Arqueologia do saber” (2005) e “As palavras e as coisas”
(2002).
78

A segunda seção introduzirá o tema da genealogia, influenciado por


Nietzsche, em que serão descritas as variáveis presentes nas relações de poder. O texto
que pautará a reflexão é “Ordem do Discurso” (2001), que é o texto que marca sua
entrada para o Collège de France. Esse texto foi escolhido justamente por marcar as
ideias que regularão toda a trajetória do segundo domínio foucaultiano, que se
relaciona com o tema do poder. É digno de destaque que a fase genealógica não exclui
ou anula a fase arqueológica, como bem destaca Flyn, “essas abordagens não excluem
umas às outras, em vez disso, como ondas sucessivas quebrando na areia, descobre-se,
após o fato, que cada uma delas era um interesse implícito na anterior, para a qual ela
servira como força impulsionadora” (2016, p. 49).

Por fim, na terceira seção, apresentaremos conceitos basilares do terceiro


domínio, ética e subjetividade, em que o autor reflete sobre a relação do sujeito
consigo mesmo. Nessa trajetória, o texto base será Hermenêutica do sujeito (2018),
além da História da Sexualidade 1 (1999), História da Sexualidade 2 (1998) e A
coragem da Verdade. A partir da exposição das três fases foucaultianas, buscará uma
articulação entre os domínios como a educação, estritamente com o tema da
constituição da subjetividade e sua relação com o fenômeno educação. Vejamos, pois,
aspectos gerais da vida e obra de Michel Foucault.

II.1 Foucault: Vida, Obra e Conceitos chaves


Como afirma Machado, “para compreendermos a história arqueológica de
Foucault podemos partir desta constatação: todas as suas análises estão centradas no
homem, isto é, formam uma grande pesquisa sobre a constituição histórica das
ciências do homem na modernidade” (MACHADO, 2009, p. 6). Foucault não detém
suas forças nos elementos históricos em uma abordagem arqueológica, em vez disso, o
filósofo francês reflete sobre o ser humano e sua relação constitutiva de si na história.
É possível encontrar em Foucault um deslocamento ao que se refere à
epistemologia e arqueologia, como afirma Roberto Machado “enquanto a
epistemologia, pretendendo estar à altura das ciências, postula que a ciência ordena a
filosofia, como diz Barchelard, a arqueologia, reivindicando sua independência em
relação a qualquer ciência, pretende ser uma crítica da própria ideia de racionalidade”
(2009, p. 6). Se a epistemologia tem como fundamento as generalizações que se
79

adentram nas particularidades, a arqueologia, por sua vez, potencializa a vivacidade


do sujeito em interação com o seu meio.

Percebem-se, nos trabalhos de Foucault, temas que, em alguma instância, eram


caros para o autor, ou seja, em alguma instância os temas tratados fizeram parte do seu
cotidiano. Nascido em 1926, na França, pertencia a uma tradicional família de
médicos. Ao mesmo tempo que Foucault alimentava um amor incondicional por sua
mãe, é perceptível a tensão clássica, presente na narrativa edipiana, com a figura
paterna (ERIBON, 1990).

Diante dessa tensão com o pai, em 1948, após se formar em Filosofia, tem uma
desavença com o pai e, pela primeira vez, Foucault tenta o suicídio (1948). Assim, o
pai, compulsoriamente, interna o filho em uma clínica para loucos. Vê-se, então, que a
loucura não é um simples objeto de pesquisa para Foucault, é, sobretudo, reflexão
sobre si mesmo. Não se sabe bem, mas parece que a internação de Foucault se dá
devido a sua escolha em ter o diploma de Filosofia na Universidade de Sorbonne
(ERIBON, 1990), contrariando o desejo do pai que esperava mais um médico na
família.

Outro traço marcante do filósofo francês era sua característica introspectiva,


isto é, uma pessoa que se relacionava bem com a solidão. A França nos anos 1940 a
1950 foi marcada pelo alto teor conservador, logo, alguns rótulos encontrados em
Foucault alimentavam algumas tensões. Além do apelido “fuchs” – raposa em alemão
– devido ao seu tom sarcástico de lidar com a vida e com alguns colegas, Foucault
carrega estereótipos políticos (ligação com o partido de esquerda), sexual (trejeitos
homossexuais), além da perceptível desavença com a figura paterna.

Sabe-se que Foucault tentou suicidar-se pelo menos duas vezes: em 1948
(homossexualidade e diploma de filosofia) e em 1950 diante de uma frustração
profissional (para tornar-se professor). É partir dessa segunda tentativa que Foucault
inicia tratamento psicoterapêutico para tratar a alma e, também, contra o alcoolismo.
Possivelmente, é por meio deste cuidado terapêutico que novos horizontes acadêmicos
e existenciais se instauram em sua vida. Mesmo marcado pelos excessos hedonistas,
típico de uma juventude que articulava a aura anarquista com a vontade de potência,
sabe-se que Foucault manteve um relacionamento de mais de 25 anos com Daniel
Defert. Ainda que o autor seja reconhecido pelo espírito insurgente, é visível a
coerência dentro das incoerências existenciais que eram típicas de Foucault.
80

A trajetória acadêmica de Michel Foucault é marcada por teóricos


significativos, por exemplo: Georg Hegel, George Canguilherm, Jean Hyppolite;
Ludwing Biswanger, Raymond Roussel, Edmund Husserl, Jacques Lacan, Martin
Heidegger, Maurice Merleau-Ponty, Louis Althusser, além de Giles Deleuze, Jean-
Paul Sartre, entre outros. Não se pode esquecer da presença dos mestres da suspeita, a
saber: Nietzsche, Freud, Marx. Esses autores foram fundamentais na trajetória
foucaultiana, inclusive há um texto de Foucault intitulado Marx, Nietzsche e Freud
(1980), em que o autor apresenta rudimentos teóricos sobre hermenêutica. Desses três
autores, o que mais influenciou o autor foi Nietzsche, isto é, o autor que auxiliou na
perspectiva genealógica que acompanhou o segundo domínio foucaultiano.

Como já foi dito anteriormente, a trajetória acadêmica de Foucault é marcada


por domínios em que o sujeito sempre ocupou lugar central, inclusive nos seus
primeiros textos, em que está muito presente a abordagem fenomenológica de Husserl
e Heidegger. Em todas as fases de análise, o sujeito sempre foi o grande foco na
reflexão foucaultiana: se na fase fenomenológica a preocupação de Foucault se deu na
coisa mesma do sujeito, na constituição como ser; no domínio da arké está em jogo as
camadas dos discursos do sujeito; no domínio do genesis está em voga a transitividade
do poder; no domínio da éthos a subjetividade do sujeito é colocada em cena para
compreender seus substratos. Em todos esses temas, Foucault estava profundamente
mergulhado na constituição do sujeito. Antes, porém, de apresentar os domínios
foucaultianos (arque, genes e éthos), apresentaremos, resumidamente, os traços gerais
do Foucault embebido da fenomenologia.

II.1.1 Foucault e a Fenomenologia


Tratar do tema da fenomenologia em Foucault, para alguns teóricos, soa
bastante estranho, haja vista que, aparentemente, a obra do filósofo francês se
distancia significativamente da abordagem fenomenológica. Não se pensa na coisa
mesma, em vez disso, o que está em foco são os movimentos que constituíram e
moldaram o sujeito. Por este viés, Todd May afirma:

A obra madura de Foucault não tem uma orientação fenomenológica.


Ele rejeita absolutamente o método fenomenológico como método
de investigação intelectual. Não é exagero dizer que embora a obra
de Foucault passe por mudanças metodológicas, ele sempre se define
contra a fenomenologia. As influências dos anos formativos de
81

Foucault tornam-se para ele exemplos de caminhos que alguém


não pode seguir se for tentar obter alguma base de compreensão
sobre quem ou o que nós somos, ou onde estamos. (p. 343).
Ainda que a metodologia fenomenológica seja substituída por Foucault
posteriormente, é graças a ela que o filósofo consegue perceber as variações presentes
no próprio sujeito. É por meio da fenomenologia, aplicada à análise e interpretação
dos sonhos, que Foucault percebe as texturas que formam o sujeito, como destaca
May:

O que a fenomenologia revelou não foi apenas o fato da constituição


do mundo de sonho, mas também sua textura. Essa textura deve
permanecer analiticamente disponível. Os significados dos sonhos
não são dados unicamente em seu conteúdo simbólico, mas também
em sua expressão frequentemente muda. [...] é por isso que, no
ensaio de Binswanger, o tema da queda, que domina a discussão, é
tratado não apenas como símbolo de conflitos particulares, mas
também como um modo de ser do mundo. Devemos, como ele diz,
sentirmo-nos nesses sonhos. (2016, p. 352).
Em sua fase fenomenológica, Foucault se apropria do conceito heideggeriano
sobre o mundo como conceito de significado, solapando a ideia marxista da
infraestrutura; demonstra a influência de Merleau-Ponty ao enfatizar as experiências
humanas como aquelas que estabelecem os ritmos da existência; a interferência
indireta de Sartre sobre a constituição humana e sua relação no e com o mundo; bem
como a presença de Husserl no que se refere ao conceito de indicação e significado.
Para May, Foucault aborda as seguintes características na abordagem fenomenológica:

A fenomenologia exige que o sujeito desempenhe um papel


fundante. Isso não é apenas uma questão de acaso histórico, mas em
vez disso, é uma questão de necessidade filosófica. A fenomenologia
rejeita a redução explicativa da experiência humana, buscando
compreender essa experiência a partir do interior, de seus
parâmetros. Se queremos evitar a armadilha de objetificar o sujeito
em categorias explicativas enganosas ou opressivas, devemos fazer
isso levando mais a sério a experiência do sujeito. Não explique:
descreva. Mas descrever é dar supremacia à categoria do sujeito,
colocar a experiência subjetiva no centro do projeto analítico ou
reflexivo. Isso é o que faz Binswanger, e também Foucault
inicialmente. (2016, p. 364).
Ainda que seja possível notar os elementos fenomenológicos em alguns textos
foucaultianos, independente do domínio, é evidente que sua escolha em se distanciar
da fenomenologia se dá devido à frase que marca o texto As palavras e as coisas
(2007) em que o ser humano é um transeunte na história da humanidade e que além do
caráter efêmero é um ser com grande potencial de entrar em extinção. Essa ideia pode
82

ser vista como divisora temática e metodológica dos textos foucaultianos. De


acordo com May:

Tanto a fenomenologia quanto o marxismo são ciências do homem.


Elas adotam o homem (não os seres humanos, mas o homem como
duplamente fonte e objeto do conhecimento) como seu lócus; elas
fundamentam suas análises do homem. Portanto, o que há de errado
com os escritos iniciais de Foucault é que ele toma como certo
aquilo que deveria ter posto em questão: o homem e sua experiência.
O homem é uma categoria epistemológica específica que opera em
uma formação epistemológica histórica específica (e em vias de
desaparecimento). O erro do primeiro Foucault é tomar essa
categoria como algo dado, em vez de sujeitá-la à crítica reflexiva,
nesse caso, histórica. A questão a ser colocada não é “qual a
natureza (fenomenológica) e o destino (marxismo) do homem?”,
mas, em vez disso, como diz Foucault: “Será que o homem existe?”
(2016, p. 368).
O sujeito é o ponto central da abordagem de Foucault. Há, portanto, duas
perguntas que circulam essa temática (“será que o homem existe?”). A primeira é
quem é o sujeito e a segunda o que poderia ser o sujeito. As duas questões são densas,
complicadas, com uma variedade de explicações e argumentações, todavia, o eixo
fundamental permanece, isto é, o sujeito. O contato com a fenomenologia mudou toda
a produção de Foucault, entretanto, “no final, Foucault abandona a fenomenologia,
mas o espírito da Fenomenologia não o abandona” (MAY, 2016, p. 372), ou seja,
ainda nas fases da arque, genes ou éthos, as influências fenomenológicas permanecem
evidentes.
Como substituto da fenomenologia, Foucault se apropria da abordagem
hermenêutica da histórica, presente no primeiro domínio. Segundo Machado, a
“Arqueologia como processo; estudar sua formação e transformação em relação ao
tempo; apresentar [...] os deslocamentos em relação à epistemologia quanto às
modificações internas que conduziram à arqueologia do saber” (2008, p. 8). Mais do
que uma postura descritiva, Foucault se propõe a refletir sobre o sujeito e sua
intersecção com a verdade construída historicamente, como será apresentado no
primeiro domínio de Foucault: A arqueologia a partir da loucura.

II.2 Arqueologia: O Primeiro Domínio Foucaultiano


O primeiro domínio de Michel Foucault está no âmbito da arqueologia, e é
nessa terra que o filósofo francês desenvolve suas análises sobre a loucura. Na
perspectiva foucaultiana, o conceito da arqueologia está ligado com “uma importante
83

alternativa à história comum das ideias, com sua ênfase na teorização de pensadores
individuais e sua preocupação com a influência desses pensadores uns sobre os
outros” (GUTTING, 2016, p. 29). Na obra As palavras e as Coisas, a provocação
arqueológica de Foucault aparece tencionando, especificamente, a figura do sujeito,
pois, para Foucault “o homem é uma invenção cuja recente data a arqueologia de
nosso pensamento mostra facilmente. E talvez o fim próximo” (2007, p. 536). Já no
livro Doença mental e psicologia (1975), vê-se o entrelaçamento proposto pelo autor
entre arqueologia e loucura:

Fala-se muito da loucura contemporânea, ligada ao universo da


máquina, e ao esmaecimento das relações afetivas diretas entre os
homens. Este vínculo não é falso, sem dúvida, e não é por acaso que
o mundo mórbido toma tão frequentemente, hoje em dia, o aspecto
de um mundo onde a racionalidade mecanicista exclui a
espontaneidade contínua da vida afetiva. Mas seria absurdo dizer que
o homem doente maquiniza seu universo porque projeta um universo
esquizofrênico no qual se perde; falso mesmo pretender que ele é
esquizofrênico porque aí está, para ele, o único meio de escapar ao
constrangimento do seu universo real. (FOUCAULT, p. 67, 1975).
A arqueologia não é utilizada para dar novos sentidos para o passado, mas a
ferramenta para interpretar o presente do sujeito. É preciso levar em consideração que,
para Foucault, “as arqueologias não precisam ser confinadas às ciências. Foucault
sugere possíveis estudos arqueológicos de práticas discursivas no campo da ética, da
estética e da política” (FLYNN, 2016, p. 52), assim, o conceito de arqueologia é:

Um complemento útil e, em alguns casos, corretivo necessário para


abordagens comuns (centradas no sujeito) da história intelectual,
mas dificilmente pode se colocar como um substituto para esse tipo
de trabalho. Sua fraqueza é o anverso de sua força: a
descentralização ou colocação do sujeito entre parênteses. O poder
da arqueologia é aparente a partir do que descobre nas estruturas
conceituais que se encontram abaixo e fora da consciência dos
sujeitos individuais. Sua limitação é sua abstração das vidas
intelectuais dos sujeitos, que não são simples espuma despejada pelo
oceano arqueológico, mas o lócus mais concreto e original da
realização intelectual. De modo semelhante, as microanálises da
genealogia de Foucault solapam de modo útil a aparente
inevitabilidade de muitas explicações de grande escala. Mas há
fatores relevantes operantes no nível macro, que o foco próximo da
genealogia é estreito demais para detectar. (GUTTING, 2016, p. 35).
A Arqueologia não é só uma abordagem que instrumentaliza a lógica da
história, sobretudo ela se coloca como postura crítica diante das construções em torno
da verdade, logo, a ideia arqueológica apresentada por Foucault “radicaliza nosso
senso da contingência de nossos preconceitos mais caros e de nossas necessidades
84

mais aceitas, abrindo assim um espaço para a mudança. Em seu apelo às práticas
discursivas, ela sublinha o vínculo estreito entre perceber, conceber, dizer e fazer”
(FLYNN, 2016, p. 54). É por essa abordagem que Foucault analisa as arquiteturas
postas, ou seja:

Como qualquer método original, a arqueologia tem seu objetivo


próprio, a saber, práticas discursivas e não discursivas, embora as
não discursivas recebam pouca atenção até as genealogias. De modo
semelhante ao “jogo” de Wittgenstein, uma prática é um corpo de
regras pré-conceitual, anônimo e socialmente sancionado que
governa o modo de perceber, julgar, imaginar e agir de uma pessoa.
(FLYNN, 2016, p.51)

Segundo Canguilhem, a arqueologia “é a condição de uma outra história, na


qual o conceito de evento é mantido, mas na qual os eventos afetam conceitos, não
homens.” (2016, p. 110). O desafio da abordagem arqueológica é revisar as
construções históricas e perceber as estruturas que foram consolidadas, em nome do
que se instauraram e sobre o que foram impostas. O viés arqueológico pode ser
identificado, ao menos, em quatro textos de Foucault:

Quando se examinam em conjunto as quatro obras que constituem o


período arqueológico de Foucault, a saber, “História da Loucura”,
“O Nascimento a Clínica”, “As palavras e as coisas” e a
“Arqueologia do saber”, sente-se uma curiosa unidade na
diversidade. Todas as quatro abordam as práticas de exclusão que
constituem o discurso que carregará o honorífico de “ciência”. Todas
manifestam um profundo respeito pelo período em torno da
Revolução Francesa e sua sequência imediata como uma vertente de
práticas discursivas e não discursivas aparentemente não
relacionadas. E todas elas revelam uma percepção das relações não
ditas e indizíveis que o arqueólogo foi o primeiro a descobrir entre
as áreas aparentemente desvinculadas, como a medicina clínica, a
medicalização da loucura e o status científico de várias investigações
sociais – que, segundo se declara, têm mais em comum umas com as
outras do que com suas supostas precursoras nas explicações
históricas tradicionais. (FLYNN, 2016, p. 53).
A abordagem arqueológica, como já descrito anteriormente, foi a substituta do
método fenomenológico que acompanhou Foucault durante o início de sua trajetória
acadêmica. Influenciado por Binswanger, Merleau-Ponty e Heidegger, a
fenomenologia acompanhou Foucault devido a sua característica descritiva do que é
essencial. São vistos traços fenomenológicos em Foucault em sua tese de doutorado,
pois ainda se encontram “em História da Loucura, que ainda é significativamente
marcado pela atração inicial de Foucault pela fenomenologia existencial, a noção de
um sujeito anônimo do pensamento e da percepção de uma época” (GUTTING, 2016,
85

p. 33). Se, inicialmente, Foucault se ateve à descrição do caráter intencional dos


fenômenos, posteriormente ele preferiu cavar as estruturas que esculpiram a
constituição do sujeito, como aborda Todd May:

Diferente da fenomenologia, ela [a arqueologia] não busca revelar a


estrutura subjetiva da doença mental. Não é o mundo constituído
pelo doente mental que é relevante; em vez disso, devemos buscar na
constituição do mundo a doença mental – um mundo constituído por
cima e em contraposição ao mundo dos sãos. E para fazer isso,
devemos olhar para a contingência da história, não para a
interioridade do sujeito. Por outro lado, diferentemente do
marxismo, Foucault não mais explica os fenômenos superficiais por
meio de contradições subjacentes. Os fenômenos superficiais são
tomados de maneiras simultaneamente mais séria e menos séria do
que uma abordagem marxista permitiria. Mais séria, porque os
detalhes históricos específicos importam; não há nenhuma grade de
“contradição” que possa ser disposta sobre todo período histórico.
Menos séria, porque a realidade da loucura não é aceita como tal; o
que interessa não é como a loucura vem a existir, mas como certas
pessoas vêm a ser tratadas como loucas. (2016, p. 362-363).

Nesse projeto de perscrutar todas as camadas constitutivas do sujeito, Foucault


desenvolve sua tese de doutorado História da Loucura (1978). Seus pressupostos não
circulam, apenas, no âmbito da patologização da alma, ou seja, quando o sujeito não
tem condição de conhecer a verdade, deturpa e possui incapacidade de perceber a
realidade como é, no entanto, o viés arqueológico aplicado por Foucault à loucura não
é trazer a discussão à voz da verdade, é, em vez disso, ouvir o que a loucura tem para
dizer como verdade:

Nunca a psicologia poderá dizer a verdade sobre a loucura, já que é


essa que detém a verdade da psicologia. E, contudo, uma psicologia
da loucura não pode deixar de ir ao essencial, já que se dirige
obscuramente para o ponto onde suas possibilidades se estabelece;
quer dizer que ela sobe sua própria corrente e encaminha-se para
essas regiões onde o homem relaciona-se consigo próprio e inaugura
a forma de alienação que o faz tornar-se homo psychologicus.
Levada até a sua raiz, a psicologia da loucura, seria não o domínio
da doença mental e consequentemente a possibilidade de seu
desaparecimento, mas a destruição da própria psicologia e o
reaparecimento dessa relação essencial, não psicológica porque não
moralizável, que é a relação da razão com a desrazão”
(FOUCAULT, 1975, p. 60).
A crítica foucaultiana se instala a partir da perspectiva equivocada de que é
possível identificar aquele que é descrito como louco, portanto, cabe à ciência
descrever a verdade sob a loucura. Foucault inverte essa lógica, pois é a loucura que
tem a verdade para a psicologia, então, o esforço foucaultiano é dar voz para os que
86

são silenciados. Há, neste contexto, entrelaçamento entre a patologia e a


necessidade de medicalização, pois os afetos negativos, propostos por Espinosa
(2009), que causam desconfortos, devem ser solapados para uma condição de lucidez
e calmaria. Na perspectiva foucaultiana, antes de perceber a patologia da loucura, é
necessário compreender as estruturas que instituíram a recente enfermidade
denominada doença mental.

Ao analisar o tema da loucura, Foucault escolhe não partir de verdades


terminais, em vez disso, busca se desvencilhar de qualquer linguagem puramente
cientificista. Foucault propõe este desprendimento conceitual a fim de se aproximar da
linguagem própria da loucura. Conforme Gutting, “a loucura clássica é considerada
em sua raiz como uma desordem da vontade, assim como as outras formas de
desrazão. Há, consequente, uma obscura relação entre a loucura e o mal que passa
pelo poder individual do homem que é a sua vontade. A loucura, portanto, se enraíza
no mundo moral” (2016, p. 87).

A tentativa de Foucault é substituir as verdades que enclausuraram a loucura


como uma espécie de antinomia constitutiva da própria ideia de loucura. Na obra
“História da Loucura” (1978), Foucault defende a seguinte tese: o tema da loucura, a
partir de uma abordagem arqueológica, está, a priori, ligado com a dimensão social,
cultura e política de uma sociedade e, posteriormente, transformado em doença
mental. Para Foucault, “mesmo silenciada e excluída, a loucura tem valor da
linguagem e seus conteúdos adquirem sentido a partir daquilo que a denuncia e repele
como loucura” (1975, p. 64).

O tema loucura não era um simples objeto de pesquisa para Foucault, era, sim,
como expresso anteriormente, uma pesquisa e reflexão sobre si mesmo, haja vista sua
internação compulsória em 1948 (ERIBON, 1990). Essa experiência foi decisiva para
a construção teórica de Foucault, sendo, inclusive, objeto de sua tese de doutorado.
Sua hipótese doutoral era que, no recorte entre os séculos XV a XVIII, denominado
pelo autor como período clássico, não existia a ideia de doença mental, a loucura era
compreendida como problema social. O filósofo francês destaca que não há, na época
clássica, uma medicina especial, como a medicina psiquiátrica, que se funda na
distinção entre o físico e o mental; as doenças estavam no mesmo nível e, neste
espaço, eram classificadas segundo os seus sintomas. As doenças mentais passam a ter
essa característica posteriormente. Gutting, por sua vez, evidencia o impacto da
87

concepção clássica sobre a construção interpretativa da loucura na modernidade,


como segue:

Foucault sustenta, ainda, que a concepção moderna de loucura como


doença mental foi inadvertidamente construída a partir de dois
elementos-chave da concepção clássica. A noção de que os loucos
são animais foi transformada na visão moderna da loucura como
fenômeno natural, governado por leis biológicas e psicológicas, ao
passo que a clássica condenação moral da loucura foi retida através
do sistema de confinamento em asilos, que sub-repticiamente impôs
valores burgueses a seus internos. Ele lê o surgimento da psiquiatria
moderna não como um triunfo inevitável da compaixão baseada na
objetividade científica, mas como o produto de forças científicas e
moralmente suspeitas peculiares às estruturas sociais e intelectuais
dos séculos XIX e XX. (2016, p. 31).
O tema da arqueologia contribuiu significativamente para o desenvolvimento
do tema da loucura nos textos de Foucault. Neste viés, salta novos horizontes de
mundo que despertam outra dimensão do conceito da loucura, isto é, a compreensão
desta temática como transcendental, ou seja, que extrapola os limites do cotidiano, do
ordinário, da evolução. A tese de Foucault, ao mesmo tempo que recebeu comentários
positivos sobre a sua maneira peculiar de fazer filosofia, foi algo, também, de muitas
críticas. Em Gutting (2016), por exemplo, encontram-se informações de que críticas
realizadas à obra de Foucault História da loucura. A primeira crítica ao texto aponta à
insuficiência ao que refere ao esgotar do tema da loucura; e a segunda crítica é a de
que o texto não é uma abordagem histórica da loucura, mas qualquer outra divagação.
A terceiro crítica fica ao texto é o achatamento histórico de situações decisivas que
marcaram a ideia de loucura. A quarta crítica é sobre os possíveis autores do que se
compreende como doença mental.

Não é pretensão do livro História da Loucura esgotar o tema, mas, em vez


disso, demonstrar, por vias arqueológicas, como a loucura foi instaurada, ou seja: “a
história da loucura na Idade Clássica de Foucault visa a ser uma base para mostrar que
a loucura como doença mental é uma construção social estranha àquele período e
original do século XIX.” (GUTTING, p. 78). Foucault não minimiza a questão
específica da patologia da doença mental, todavia, seu objetivo é demonstrar como a
loucura fora vista na história. Senão, vejamos a definição do autor sobre doença
mental:

A incapacidade de um sujeito confuso localizar-se no tempo e no


espaço, as rupturas de continuidade que se produzem
incessantemente na sua conduta, a impossibilidade de ultrapassar o
88

instante no qual está enclausurado para atingir o universo do outro


ou para voltar-se para o passado e futuro, todos estes fenômenos
levam a descrever sua doença em termos de funções abolidas: a
consciência do doente está desorientada, obscurecida, limitada,
fragmentada (FOUCAULT, 1975, p. 16).
A doença é marcada pela incapacidade do sujeito em se perceber como ser que
ocupa o tempo e o espaço. Na ótica foucaultiana, a figura do doente surge a partir do
paradigma da sanidade. Todo esse jogo de significado e sentido se revela por meio da
voz ativa do que pode nomear o enfermo, logo, é instaurada a hierarquização da razão
sob a desrazão. O doente é o sujeito que perde a capacidade de narrar sobre si,
lançando-se na trama de tempo espaço, conclui-se que “a doença suprime as funções
complexas, instáveis e voluntárias, exaltando as funções simples, estáveis e
automáticas” (FOUCAULT, 1975, p. 17).

Na perspectiva foucaultiana, “a doença é, ao mesmo tempo, retirada da pior


das subjetividades, e queda na pior das objetividades.” (FOUCAULT, 1975, p. 48). O
autor tenta demonstrar como a noção da patologia mental está diretamente conectada
com a estrutura social, ou seja, “ainda que a sociedade não se reconheça no doente
mental, o qual ela considera um estranho e um estrangeiro, é impossível dar conta da
patologia mental sem se referir às estruturas sociais, sem ver seu meio humano como
uma condição real da doença” (CASTRO, 2016, p, 261). Eleger o culpado, aquele que
é estranho às normas, auxilia na manutenção das estruturas dominantes: “[...] nossa
sociedade não quer reconhecer-se no doente que ela persegue ou que encerra; no
instante mesmo em que ela diagnostica a doença, exclui o doente” (FOUCAULT,
1975, p. 51). Os conflitos mentais absorvem a materialidade do cotidiano:

Os conflitos sociais se tornam, desse modo, conflitos mentais. Com


base nas análises precedentes, Foucault extrai as seguintes
conclusões: 1) não é, então, porque se está doente que se é alienado,
mas na medida em que se é alienado, se está enfermo; 2) a doença
está feita da mesma trama funcional que a adaptação normal; não é,
pois, a partir do anormal, como quer a patologia clássica, que é
necessário tentar definir a doença. Ao contrário, é a doença que torna
possível o anormal e o funda. 3) a análise pavloviana do conflito
mostra, com efeito, que é necessário deixar de lado a antítese entre
psicogênese e organogênese. As doenças mentais são danos de toda
personalidade por inteiro. 4) querer separar o doente de suas
condições de existência e querer separar a doença de suas condições
de aparecimento é enclausurar-se na mesma abstração [...] a
verdadeira psicologia deve desprender-se desse psicologismo, se é
verdade que, como toda ciência do homem, seu objetivo é desaliená-
lo (CASTRO, 2016, p. 261-262).
89

A história narrada não é mais a história das contradições, em vez disso, é


uma história tétrica, que carrega as separações e os limites da humanidade, ou seja, na
História da Loucura, “tal história é a confrontação das dialéticas da história com as
estruturas imóveis do trágico” (CASTRO, 2016, p. 262). A atenção foucaultiana se
volta para as experiências dos sujeitos, isto é, o ato de experienciar a loucura, a razão
e a desrazão. Foucault destaca que a história da loucura é a história do Outro, ou seja,
aquele que é negado e refutado pela sociedade. Nessa lógica, o louco é aquele que não
interage com o mundo, como descreve Foucault:

A síntese complexa do diálogo é substituída pelo monólogo


fragmentário; a síntese através da qual se constitui um sentido é
quebrada, e só subsistem elementos verbais dos quais escapam
sentidos ambíguos, polimorfos e lábeis; a coerência espaço-temporal
que se ordena no aqui e agora desmoronou-se, e só subsiste um caos
de aqui sucessivos e de instantes insulares. Os fenômenos positivos
da doença se opõem aos negativos, como simples e complexo (1975,
p. 17).
Para compreender a história da loucura, não basta ponderar a existência de uma
experiência indiferenciada e as experiências diferenciadas da loucura, é preciso
compreender sua linguagem. Foucault destaca que a linguagem da psiquiatria está
fundamentada em um monólogo, isto porque a loucura é silenciada. Nesse sentido, a
história da loucura nada mais é do que a arqueologia do silêncio. Como romper com
essa censura da linguagem? Para Foucault, é na arte – e de modo especial na literatura
– que é possível ouvir a voz da loucura: “a linguagem da literatura testemunha a
existência dessa loucura em estado selvagem (não envolvida pela linguagem da
razão). Nessa linguagem, a loucura se manifesta como o que é: a ausência de obra”
(CASTRO, 2016, p. 264), salta como resistência a objetivação das subjetividades.
Foucault demonstra como a literatura dá novos entornos para o tema da loucura, haja
vista que

[...] é a presença da morte neste mundo. Nesse sentido, a experiência


da loucura, no tema plástico e linguístico e na sua prática, encontra
uma continuidade rigorosa com a experiência da lepra. A loucura,
como tal a lepra, é a exclusão daqueles que em vida testemunham a
presença da morte (CASTRO, 2016, p. 267).
Duas experiências são distintas na abordagem foucaultiana: há uma
experiência cósmico-trágica que retrata o limite da experiência humana; e uma
experiência crítica que aponta para os limites da razão.
90

A fim de exemplificar sua tese, Foucault escolhe a arte literária,


especificamente nos livros História da Loucura (1978) e As palavras e as coisas
(2000) o arquétipo presente no texto de Miguel de Cervantes Dom Quixote. A escolha
dessa obra é devida ao caráter protagonista da personagem principal que “de tanto ler
os livros de cavalaria, sua moleira amoleceu”, ou seja, o herói é louco. O diferencial
da obra de Cervantes é que não fica claro até que ponto o texto quer apontar para a
loucura ou para o excesso de razão de Dom Quixote, haja vista que este personagem
circula da extremidade de cenas hilárias a outra extremidade que tangencia camadas
profundas da reflexão e lucidez humana. Na narrativa de Cervantes, é possível
encontrar a tensão entre loucura e lucidez, razão e desrazão.

Em Cervantes ou Shakespeare, a loucura sempre ocupa um lugar


extremo no sentido de que ela não tem recurso. Nada a traz de volta
à verdade ou a razão. Ela opera apenas sobre o dilaceramento e, daí,
sobre a morte. A loucura, em seus inúteis propósitos, não é vaidade;
o vazio que a preenche é “um mal bem além de minha prática”,
como diz o médico a respeito de Lady Macbeth. Já se tem aí a
plenitude da morte: uma loucura que não precisa de médico, mas
apenas da misericórdia divina (FOUCAULT, 1978, p. 45).
O encantamento presente no tema da loucura é sua capacidade de tornar a
insanidade parte da razão. A desrazão seria a tentativa de ignorar a loucura própria da
racionalidade. Dom Quixote, por exemplo, é o personagem que sinaliza lucidez e
coerência racional em contraponto aos demais personagens que estão aprisionados
pela irracionalidade da racionalidade. Essa fomentação foucaultiana traz à superfície a
discussão em torno do que é consciência, ou seja, a problematização se dá no que
distingue a consciência do lúcido do louco.

A partir disso, é possível compreender quatro formas de conceituar a ideia de


consciência desenvolvida por Foucault. A primeira é a consciência crítica, não como
descritiva e nominalista, em vez disso, como consciência empírica, que experimenta e
vivencia o fato em si. Por não ser uma razão definidora de paradigmas, essa primeira
consciência sofre o risco de inversão dialética, isto é, tornar a loucura razão e a razão
loucura, pois “uma consciência que se opõe, mas nessa oposição, intercambiam-se a
linguagem da razão e a linguagem da loucura” (CASTRO, 2016, 263).

A segunda consciência é a prática da loucura, ou seja, estabelecer


discernimento entre o normal e o anormal, entre o racional e o irracional. Há normas
bem delineadas. “Por ser social e normativa, ela implica uma separação que cala a
91

linguagem da loucura, que a reduz e silencia” (CASTRO, 2016, 263), logo segue
uma lógica purificadora e de higienização social.

A terceira consciência descrita por Foucault é a enunciativa da loucura. Essa


consciência não paira nos axiomas, dos perigos ou dos riscos, em vez disso, “é uma
simples apreensão perceptiva que afirma ou nega, liricamente, a existência da loucura.
Ele reconhece imediatamente a loucura a partir da suposta cordura de quem a percebe”
(CASTRO, 2016, p. 263). É uma abordagem que se aproxima da metáfora do espelho,
como descreve Castro: “Essa consciência não é da ordem do conhecimento, mas do
reconhecimento, do espelho. Mas, reflexionando sobre si mesma no momento de
designar o outro, ela percebe, no outro, seu segredo mais próximo. Não se instaura, no
entanto, nenhuma dialética” (CASTRO, 2016, p. 263).

A quarta consciência descrita por Foucault é a analítica da loucura, isto é,


“uma consciência desdobrada em suas formas, que conhece, que funda a possibilidade
de um saber. Aqui não há diálogo, nem ritual, nem o lirismo do reconhecimento
(CASTRO, 2016, p. 263)”. Se a terceira consciência estabelece um movimento de
reconhecer a si mesmo em diálogo com o outro, nessa instância, todo ato de
recognição é substituído pelo ato nominalista da razão. Nessa direção, Castro indica
que “o reconhecimento da loucura tem, agora, só a forma do conhecimento: os
fantasmas alcançam sua verdade, os perigos da contra natureza se tornam signos da
natureza, o horror não solicita às técnicas de supressão” (CASTRO, 2016, 263). Essas
quatro formas de consciência estão diretamente ligadas com a experiência e com a
loucura, isto é:

Cada figura histórica, cada experiência da loucura implica, ao


mesmo tempo, a unidade e o conflito dessas quatro formas de
consciência. Em cada experiência da loucura faz-se e se desfaz esse
equilíbrio entre a consciência dialética, a separação ritual, o
reconhecimento lírico e o saber da loucura. Nenhum desses
elementos desaparece por completo; às vezes, algum deles é
privilegiado e mantém os outros quase na obscuridade. Por isso, não
se pode reduzir a história da loucura à história da psiquiatria;
tampouco levá-la a cabo desde o ponto de vista da teleologia da
verdade ou da objetividade da ciência. Uma história da loucura é
necessariamente a história dessas experiências; experiências do
limite pelas quais uma cultura rechaça o que será para ela o Exterior,
o Outro (CASTRO, 2016, p. 263).
O questionamento levantado por Foucault é até que ponto a loucura é um
resíduo social, isto é, construção bem delineada de colonizações de subjetividades ou,
em vez disso, uma patologia mental propriamente dita. A loucura acompanha a
92

história da humanidade em todas as suas camadas, em todas as suas eras, contudo, a


maneira como a loucura é interpretada, encarada e classificada é bastante diversa.
Diante da tensão entre razão e desrazão, loucura e sanidade, como Foucault conceitua
a ideia de loucura? Para Foucault, o tema da loucura é uma substituição da temática
da morte na literatura, pois, além de todo mistério típico do enigma da desrazão, a
loucura traz consigo a tentativa de compreensão do incompreensível, como descreve
Foucault:

Em todos os lados, a loucura fascina o homem. As imagens


fantásticas que ela faz surgir não são aparências fugidas, logo
desaparecem da superfície das coisas. Por um estranho paradoxo,
aquilo que nasce no mais singular delírio já estava oculto, como um
segredo, como uma inacessível verdade, nas entranhas da terra.
Quando o homem desdobra o arbitrário de sua loucura, encontra a
sombria necessidade do mundo; o animal que assombra seus
pesadelos e suas noites de privação é sua própria natureza, aquela
que porá a nu a implacável verdade do inferno. As vãs imagens da
parvoíce cega são o grande saber do mundo; e já, nessa desordem,
nesse universo enlouquecido, perfila-se aquilo que será a crueldade
do fim. Numa série de imagens desse tipo – e é sem dúvida isso que
lhes deu seu peso, o que impõe à sua fantasia uma coerência tão
grande – a Renascença exprimiu o que ela pressentia das ameaças e
dos segredos do mundo (1978, p. 27).
Na perspectiva foucaultiana, a loucura não é a fantasia ou apenas ilusão do
sujeito, mas é verdade incognoscível que vem à superfície da existência. A
experiência da loucura é dolorosa porque faz com que o sujeito vivencie os espectros
que aterrorizam a vida vivida, e, ao mesmo tempo, é por meio da loucura que o sujeito
projeta sua existência. Foucault aborda esse paradoxo na loucura:

Privilégio absoluto da loucura: ela reina sobre tudo o que há de mau


no homem. Mas não reina também, indiretamente, sobre todo o bem
que ele possa fazer? Sobre a ambição que faz os sábios políticos,
sobre a avareza que faz crescer as riquezas, sobre a indiscreta
curiosidade que anima os filósofos e cientistas? (FOUCAULT, 1978,
p. 28).
Para Foucault, a loucura está para além da patologia da alma, isso porque ela é
intimamente ligada com a essência do sujeito, ou seja, “é que, de modo geral, a
loucura não está ligada ao mundo e suas formas subterrâneas, mas sim ao homem, a
suas fraquezas, seus sonhos e suas ilusões” (FOUCAULT, 1978, p. 29). O duplo
presente na loucura é que ao mesmo tempo que ela é embebida do que é reprovável
pela moral vigente, é, também, desfecho da verdade, pois “a loucura só existe em cada
homem, porque é o homem que a constitui no apego que ele demonstra por si mesmo
93

e através das ilusões com que se alimenta” (FOUCAULT, 1978, p. 30). Na


abordagem foucaultiana, a verdade não se desprende da desrazão, pois:

Nessa adesão imaginária a si mesmo, o homem faz surgir na loucura


como uma miragem. O símbolo da loucura será doravante este
espelho que, nada refletido de real, refletiria secretamente, para
aquele que nele se contempla, o sonho de sua presunção. A loucura
não diz tanto respeito à verdade e ao mundo quanto ao homem e à
verdade de si mesmo que ele acredita distinguir (FOUCAULT, 1978,
p. 30).
Por mais que a loucura seja atributo “sui generis” do sujeito, para o filósofo
francês, a história revelou formas peculiares em lidar com o sujeito considerado louco.
Aproxima-se da abordagem foucaultiana o termo nomeado e não diagnosticado, pois o
segundo termo vincula-se com a noção de ação médica, entretanto, a ação nominalista
sobre o louco tinha seu fundamento que está para além da patologia, como enfatiza
Foucault:

A era clássica utiliza o internamento de um modo equívoco, fazendo


com que represente um duplo papel: reabsorver o desempregado ou
pelo menos ocultar seus efeitos sociais mais visíveis, e controlar os
preços quando eles ameaçam ficar muito altos. Agir alternadamente
sobre o mercado da mão-de-obra e os preços de produção
(FOUCAULT, 1978, p. 80).

Nessa empreitada arqueológica, Foucault demonstra que a loucura estava mais


relacionada com o processo de higienização social do que com o tratamento da
“psique” do sujeito. O louco, como improdutivo e reprovável, como imoral e
disfuncional era separado da sociedade em nome da normalização que era legitimada
ou pela ciência, ou pela igreja ou pela economia. Foucault, portanto, demonstra como
a loucura, em vez de ser interpelada pelo viés médico e clínico, era tratada como
doença social:

Tanto isto é fato que no século XVII a loucura se tornou assunto de


sensibilidade social; aproximando-se do crime, da desordem, do
escândalo, ela pode ser julgada como estes, pelas formas mais
espontâneas e mais primitivas dessa sensibilidade. O que pode
determinar e isolar a loucura não é tanto uma ciência médica quanto
uma consciência suscetível de escândalo. Neste aspecto, os
representantes da Igreja têm uma situação privilegiada, mais ainda
que os representantes do Estado, para fazer um julgamento de
loucura (FOUCAULT, 1978, p. 143).
Em paralelo à moral produtiva, persiste o sonho da higienização cívica, em que
os axiomas morais estão ligados com o nomos instituído. Talvez uma das maiores
crueldades da internação da pessoa rotulada como louca seja a sua motivação
94

fundante, isto é, o louco não tem condições de trabalho, portanto, é um peso que
não deve gozar das regalias ou das responsabilidades da própria liberdade, haja vista
sua condição improdutiva. Os confinamentos não tinham intencionalidade médica, isto
é:

Foucault insiste que o confinamento não era praticado para fins


terapêuticos e que a distinta experiência clássica da loucura,
associada ao confinamento, não enxergava os loucos como doentes.
Mas ele também insiste no papel ineliminável do tratamento médico
clássico da loucura, e de fato estabelece a relação entre o
confinamento não médico e a terapia médica como um grande
problema para a compreensão da loucura na Idade Clássica
(GUTTING, 2016, p. 79).
Em suma, o conceito de alienação é indispensável, considerando-se que “a
alienação é, em definitivo, o produto da exclusão. Não se exclui o alienado; ao
contrário, enclausura-se aquele que, a partir de uma determinada percepção, de uma
determinada consciência, se percebe como Outro” (CASTRO, 2016, p. 269). Revel
mostra as pré-disposições da técnica de higienização social:

O que estava implicado acima de tudo, nessas relações de poder, era


o direito absoluto da não-loucura sobre a loucura. Direito transcrito
em termos de competência que se exerce sobre a ignorância, de bom
senso (de acesso à realidade) que corrige os erros (ilusões,
alucinações, fantasmas), da normalidade que se impõe à desordem e
ao descaminho. (REVEL, 2014, p. 67).
A alienação é atributo do outro. Esse outro é o estranho que não se adequa às
normalizações que garantem a manutenção da governamentalidade da sociedade. Este
estranho é o sujeito da desrazão. A loucura presente nessas pessoas não transitava pela
psique, mas devido a alguma falta com os costumes dogmatizados. Essas pessoas
eram excluídas por algum ato desmoralizante, como, por exemplo os doentes
venéreos, os sodomitas, as prostitutas, os improdutivos, entre outros. O estigma da
culpa está sobre aqueles que, em alguma instância, rompem com a moral de rebanho.
Há clara tensão entre o normal e o anormal. Enclausurar era prática purgatória:

A prática da internação, para os casos de sodomia, é uma certa


atenuação do antigo castigo da fogueira. Na realidade, mais
precisamente, a sodomia não é condenada, agora, como a heresia e a
profanação religiosa, ou seja, desde uma perspectiva sagrada, mas a
partir da razão. Nesse novo espaço de percepção, a sodomia e a
homossexualidade são as formas de amor da desrazão. (CASTRO,
2016, p. 270).
Outro ponto referente à loucura é a noção de que, nessa reclusão, os loucos
eram usados como entretenimento para as pessoas normais, ou seja, as pessoas iam até
95

os locais de enclausuramento para ver o louco em seu habitat forjado. A inversão


sobre o tema da loucura se dá quando os sujeitos da razão agem pela via da desrazão,
lembrando que “a racionalidade, para Foucault, tem antes de tudo um sentido
instrumental: modos de organizar os meios para alcançar um fim” (CASTRO, 2016, p.
375). A irracionalidade serve para entreter os sujeitos racionais. Encerrando, portanto,
o tema da loucura, Foucault aponta três conclusões nessa relação sanidade e loucura;
razão e desrazão; verdade e alucinação:

1) [o isolamento] prova que louco não é um doente. A animalidade protege


o louco de tudo o que pode haver de frágil e precário nas doenças do
homem. 2) por isso, a loucura não pertence ao mundo da medicina, mas ao
mundo correcional; 3) a animalidade situa a loucura em um espaço de
imprevisível liberdade que desencadeia o furor e exige a violência e a
coerção. [...] o louco é, dessa forma, um condenado inocente, ou melhor
ainda, o louco é a presença inocente da raiz de toda falta, o testemunho
extremo da animalidade do homem (CASTRO, 2016, p. 272).
Por fim, o tema da loucura nos textos foucaultianos sintetiza de modo categórico
a proposta da abordagem arqueológica do filósofo francês. Segundo Castro, “a tese
que Foucault sustenta pode ser resumida nestes termos: não se pode falar de doença
mental a partir de uma metapatologia, isto é, de um marco conceitual comum à
patologia orgânica e a patologia mental, mas somente a partir de uma reflexão sobre o
próprio homem” (2016, p. 259). Este é o primeiro esforço foucaultiano para se pensar
o sujeito, isto é, a abordagem arqueológica, ou seja, “o objetivo da história da loucura
é descrever exaustivamente essa experiência ou sensibilidade e mostrar como ela
forneceu a base para a concepção psiquiátrica moderna de loucura como doença
mental (GUTTING, 2016, p. 83). Em seguida, o tema enfatizado será a concepção
genealógica desenvolvida por Foucault, denominada como segundo domínio.

II.3 Genealogia: O Segundo Domínio Foucaultiano


Há tentação em, antes de explicar a obra, buscar compreender quem foi o autor
(movimento este que foi desenvolvido na seção anterior desta tese). Esse movimento
interpretativo e axiológico parece justificar as escolhas do autor que será estudado,
bem como ampliar a compreensão sobre o texto desenvolvido por ele, todavia, na
ótica foucaultina, a partir do texto Nietzsche, Freud e Marx (1980) e no breve texto O
que é um autor (2001), mais do que saber quem é o autor do texto, vale a experiência
do sujeito com a textura do texto. Quando limita a hermenêutica do texto à vida do
autor, na ótica foucaultiana, parece que se castram as possibilidades interpretativas, ao
passo que lança o texto em uma moldura da existência e dependência do autor, logo, a
96

hermenêutica do texto está comprometida por quem é o autor, não pela narrativa em
si.
Essa provocação entre discurso e hermenêutica compõem a obra Ordem do
Discurso, de Michel Foucault. Essa obra foi proferida em 1970, quando Foucault
assumiu a cátedra no College de France no lugar de Georg Canguilherm. Nessa
oportunidade, Foucault busca apresentar os interstícios entre o discurso, a linguagem,
as interpretações, enfim, as várias facetas que compõem o jogo narrativo e os jogos de
verdade. Foucault aponta para um entrelaçamento do sujeito que é, em linguagem
nitzscheana, força de potência, logo, desejo em si, com as instituições que
representam as normatizações e, portanto, harmonizações sociais. Segundo Foucault,
há um processo dialógico:
O desejo diz: “eu não queria ter de entrar nessa ordem arriscada do
discurso; não queria ter de me haver com o que tem de categórico e
decisivo; gostaria que fosse ao meu redor como uma transparência
calma, profunda, indefinidamente aberta, em que os outros
respondessem à minha expectativa, e de onde as verdades se
elevassem, uma a uma; eu não teria senão de me deixar levar, nela e
por ela, como um destroço feliz”. E a instituição responde: “você
não tem que temer começar, estamos todos aí para lhe mostrar que o
discurso está na ordem das leis; que há muito tempo se cuida de sua
aparição; que lhe foi preparado um lugar que o honra, mas o
desarma; e que, se lhe ocorre ter algum poder, é de nós, só de nós,
que ele se advém” (1996, p. 7).
O destaque da citação é que existe força de potência querendo se desprender das
justificações impostas pelas instituições hipostasiadas. Ao mesmo tempo que o ser
reclama para si a condição de existência, por outro lado, ele é compelido a se
acomodar ao nomos institucional. Parece, em um primeiro momento, que o desejo e a
instituição são antagonistas entre si, todavia, Foucault destaca que na verdade são
Réplicas opostas a uma mesma inquietação: inquietação diante do
que é o discurso em sua realidade material de coisa pronunciada ou
escrita; inquietação diante dessa existência transitória destinada a se
apagar sem dúvida, mas segundo uma duração que não nos pertence;
inquietação de sentir sob essa atividade, todavia cotidiana e cinzenta,
poderes e perigos que mal se imagina; inquietação de supor lugar,
vitórias, ferimentos, dominações, servidões, através de tantas
palavras cujo uso há tanto tempo reduziu as asperidades (1996, p. 8).
Com este paralelo entre instituição e desejo, Foucault aponta, pois, a hipótese da
“Ordem do Discurso”: “suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao
mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de
procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu
acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade” (1996, p. 8-9).
97

Foucault evidencia a intencionalidade da criação do discurso. Há uma


correspondência entre intenção, produção e propagação discursiva. O que é dito é dito
sobre determinadas regras, ou seja, “sabe-se bem que não se tem o direito de dizer
tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um,
enfim, não pode falar de qualquer coisa” (FOUCAULT, 1996, p.9). Os procedimentos
de exclusão ou interdição são tipificados em, ao menos, três categorias: o tabu do
objeto, o ritual da circunstância e o direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que
fala. Na perspectiva foucaultiana, o discurso não recebe a interdição porque ele é a
efetivação da interdição. Em outras palavras, “o discurso não é simplesmente aquilo
que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta,
o poder do qual nos queremos apoderar” (FOUCAULT, 1996, p. 10).
Quando se compreende o discurso a partir deste viés, aflora a ideia de que eleger
o estranho, o louco é fundamental para a perpetuação dos discursos, haja vista que a
separação e a rejeição do Outro é a perenização de outro corpo. Demoniza-se o
estranho a fim de que outra narrativa ganhe aura hagiográfica. Foucault define que:
O louco é aquele cujo discurso não pode circular como os dos
outros: pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula e não seja
acolhida, não tendo verdade nem importância, não podendo
testemunhar na justiça, não podendo autenticar um ato ou um
contrato, não podendo nem mesmo, no sacrifício da missa, permitir a
transubstanciação e fazer do pão um corpo (1996, p. 10-11).
Segundo Foucault, o louco é reconhecido por suas palavras, por seu discurso,
por sua desrazão. Só faz sentido uma normalização porque se mensura o ilegítimo. Na
perspectiva foucaultiana, o louco nunca tem a voz, ou, ao menos, só é permitido a fala
em alguns espaços estereotipados, isto é, “todo este imenso discurso do louco
retornava ao ruído; a palavra só lhe era dada simbolicamente, no teatro onde ele se
apresentava, desarmado e recolhido, visto que representava aí o papel de verdade
mascarada” (1996, p. 12). A arte é o lugar de ouvir o silenciado. Foucault dá este
exemplo na obra de Miguel de Cervantes, Dom Quixote.
Nessa direção literária, Foucault aborda o tema da arte no livro As palavras e as
coisas, questionando até que ponto a loucura é um resíduo social, uma construção de
colonizações de subjetividades ou uma patologia mental propriamente dita. A loucura
acompanha a história da humanidade, em todas as suas camadas, em todas as suas
eras, contudo, a maneira como a loucura é interpretada, encarada e classificada é
bastante diversa. Esse jogo hermenêutico está relacionado diretamente com a noção de
quem tem ou não o direito à fala, pois “se é necessário o silêncio da razão para curar
98

os monstros, basta que o silêncio esteja alerta, e eis que a separação permanece.”
(1996, p. 13). O discurso está conectado com vontade de verdade, que é o filtro de
admissibilidade:
Certamente, se nos situamos no nível de uma proposição, no interior
de um discurso, a separação entre o verdadeiro e o falso não é nem
arbitrária, nem modificável, nem institucional, nem violenta. Mas se
nas situações em outra escola, se levantamos a questão de saber qual
foi, qual é constantemente, através de nossos discursos, essa vontade
de verdade que atravessou tantos séculos de nossa história, ou qual é,
sem uma forma muito geral, o tipo de separação que rege nossa
vontade de saber, então é talvez algo como um sistema de inclusão
(sistema histórico, institucionalmente constrangedor) que vemos
desenhar-se (1996, p. 14).
Para Foucault, a vontade de verdade é o que tece o discurso, a medida que “as
grandes mutações científicas podem talvez ser lidas, às vezes, como consequências de
uma descoberta, mas podem também ser lidas como a aparição de novas formas de
vontade de verdade” (1996, p. 16). A vontade de verdade é institucionalizada
estabelecendo os devidos parâmetros para os discursos. Lembrando que Foucault
compreende por verdade “o conjunto dos procedimentos que permitem pronunciar, a
cada instante e a cada um, enunciados que serão considerados como verdadeiros. Não
há absolutamente, uma instância suprema” (CASTRO, 2016, p. 421). Por esse
caminho, vale a compreensão de duas possibilidades de verdade:
Foucault distingue entre duas histórias da verdade: por um lado, uma
história interna da verdade, de uma verdade que se corrige a partir
dos seus próprios princípios de regulação; por outro, uma história
externa da verdade. A primeira é a que se leva a cabo na história das
ciências; a segunda, a que parte das regras de jogo que, em uma
sociedade, fazem nascer determinadas formas de subjetividade,
determinados domínios de objetos, determinados tipos de saber
(CASTRO, 2016, p, 421).
Em todos esses jogos de verdade está presente a prática do discurso o qual se
harmoniza com a vontade de verdade que transcende a noção de verdade: “é que se o
discurso verdade não é mais, com efeito, desde os gregos, aquele que responde ao
desejo ou aquele que exerce o poder, na vontade de verdade, na vontade de dizer esse
discurso verdadeiro, o que está em jogo, senão o desejo e o poder?” (FOUCAULT,
1996, p. 19-20). Contraposto ao discurso da vontade de verdade saltam três grandes
sistemas de exclusão: a palavra proibida, a segregação da loucura e a vontade de
verdade. Portanto, o discurso está relacionado com a noção de controle e delimitação,
que apresentam um jogo de poder e desejo.
Foucault afirma que existe um jogo de hermenêutica dentro das sociedades que
dão sentido aos significados das coisas, ou seja, o significado da coisa em si é muito
99

menor em relação ao seu significado. A sociedade forja a densidade axiológica dos


sentidos e significados, como destaca Foucault:
Em suma, pode-se supor que há, muito regularmente nas sociedades,
uma espécie de desnivelamento entre os discursos: os discursos que
‘se dizem’ no decorrer dos dias e das trocas, e que passam com o ato
mesmo que os pronuncio; e os discursos que estão na origem de
certo número de atos novos de fala que os retomam, os transformam
ou falam deles, ou seja, os discursos que, indefinidamente, para além
de sua formação, são ditos, permanecem ditos e estão ainda por
dizer. Nós os conhecemos em nossos sistemas de cultura: são os
textos religiosos ou jurídicos, são também esses textos curiosos,
quando se considera o seu estatuto, e que chamamos de ‘literários’;
em certa medida textos científicos (1996, p. 22).
A temporalidade marca essa citação, ao passo que os discursos do cotidiano se
entrelaçam com os ditos fundantes. Não é possível estabelecer uma ruptura dada a
complexidade da maneira de significado que é dado pelo sujeito as narrativas que o
cercam. O que se pode aferir é a provocação foucaultiana de até que ponto os ditos do
cotidiano não são comentários dos grandes discursos fundantes, aferindo que para
Foucault “o comentário não tem outro papel, sejam quais forem as técnicas
empregadas, senão o de dizer enfim o que estava articulado silenciosamente no texto
primeiro” (1996, 25), ou seja o comentário “permite-lhe dizer algo além do texto
mesmo, mas com a condição de que o texto mesmo seja dito e de certo modo realizado
(1996, p. 26). Para Foucault “o novo não está no que é dito, mas no acontecimento de
sua volta (1996, p. 26). Ao estabelecer essa distinção de discursos, Foucault
problematiza a figura do autor, de modo que “o autor não funciona como um nome
próprio; e a relação entre o autor e aquilo que nomeia não é isomorfa com a relação
entre o nome próprio e o indivíduo que designa (CASTRO, 2016, p. 47), ou seja, para
Foucault:
O autor, não entendido, é claro, como o indivíduo falante que
pronunciou ou escreveu um texto, mas o autor como princípio de
agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas
significações, como foco de sua coerência. Este princípio não voga
em toda parte nem de modo constante: existe, ao nosso redor, muitos
discursos que circulam, sem receber seu sentido ou sua eficácia de
um autor ao qual seriam atribuídos: conversas cotidianas, logo
apagadas; decretos ou contratos que precisam de signatários, mas
não de autor, receitas técnicas transmitidas no anonimato. Mas nos
domínios em que a atribuição a um autor é de regra – literatura,
filosofia, ciência – vê-se bem que ela não desempenha sempre o
mesmo papel; na ordem do discurso científico, a atribuição a um
autor era, na idade média, indispensável, pois era um indicador de
verdade. (1996, p. 26-27).
100

Se, em um primeiro, o autor era indispensável para a validação da verdade, a


partir do século XVII o autor passa, posteriormente, a condição de secundário diante
da verdade dita e presente na obra. As revoluções, bem como as grandes
transformações que impactaram o mundo, alteraram significativamente a maneira
como as pessoas passaram a ver e compreender a verdade bem como o autor. Se isso
acontece na ciência, na literatura é diferente, pede-se que o autor se revele a fim de
dar esclarecimentos sobre aquilo que escreveu. Na literatura a identidade do autor é
fundamental para se validar ou não o que foi escrito, ou seja, “o autor é aquele que dá
à inquietante linguagem da ficção suas unidades, seus nós de coerência, sua inserção
no real” (1996, p. 28), de modo que a existência é uma epopeia existencial. Da mesma
forma que o comentário restringe a interpretação do texto, “o princípio do autor limita
esse mesmo acaso pelo jogo de uma identidade que tem a forma da individualidade e
do eu” (FOUCAULT, 1996, p. 29).
Foucault destaca também o conceito de disciplina. Essa ideia se contrapõe tanto
à noção de comentário como à de autor, haja vista que a característica da disciplina, na
perspectiva foucaultiana, “não é a soma de tudo o que pode ser dito de verdadeiro
sobre alguma coisa; não é nem mesmo o conjunto de tudo o que pode ser aceito, a
propósito de um mesmo dado, em virtude de um princípio de coerência ou de
sistematicidade” (1996, p. 31), em vez disso, “a disciplina é um princípio de controle
da produção do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a
forma de uma reatualização permanente das regras” (1996, p. 36). Foucault descreve:
Tem-se o hábito de ver na fecundidade de um autor, na
multiplicidade dos comentários, no desenvolvimento de uma
disciplina, como que recursos infinitos para a criação dos discursos.
Pode ser, mas não deixam de ser princípios de coerção, e é provável
que não se possa explicar seu papel positivo e multiplicador, se não
se levar em consideração sua função restritiva e coercitiva (1996, p.
36).
Quem tem direito de voz é aquele que exercerá o poder de controle. A
contribuição de Foucault nessa direção é a função restritiva e coercitiva do autor que,
ao mesmo tempo que tem o direito de voz pode, também, estabelecer o sujeito que
será considerado como estranho ao grande “nomos”, é um jogo de verdade fincado em
um paradigma entre o legítimo e o estranho, entre quem tem o direito à voz e quem
deve ser silenciado, como segue:
Dessa vez, não se trata de dominar os poderes que eles têm, nem de
conjurar os acasos de uma parição; trata-se de determinar as
condições de seu funcionamento, de impor aos indivíduos que os
pronunciam certo número de regras e assim de não permitir que todo
101

mundo tenha acesso a eles. Rarefação, dessa vez, dos sujeitos


que falam; ninguém entrará na ordem dos discursos se não satisfizer
a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo.
Mais precisamente: nem todas as regiões do discurso são igualmente
abertas e penetráveis; algumas são altamente proibidas
(diferenciadas e diferenciantes), enquanto outras parecem quase
abertas a todos os ventos e postas, sem restrições prévia, à
disposição de cada sujeito que fala (FOUCAULT, 1996, p. 36-37).
Esse dualismo entre permitido e proibido; aceito e rejeitado; “nomos” e
“anomalia”, segue a lógica do ritual, isto é “o ritual define a qualificação que devem
possuir os indivíduos que falam (e que, no jogo de um diálogo, da interrogação, da
recitação, devem ocupar determinada posição e formular determinado tipo de
enunciados)” (FOUCAULT, 1996, p. 38). O ritual tem rudimentos para definir
atitudes e/ou fixar o aceitável, como se vê nos discursos religiosos, políticos,
midiáticos, jurídicos, terapêuticos etc.
A partir da descrição do ritual, Foucault aponta para as sociedades do discurso
“cuja função é conservar ou produzir discursos, mas para fazê-los circular em um
espaço fechado, distribuí-los somente segundo regras restritas, sem que seus
detentores sejam despossuídos por essa distribuição” (FOUCAULT, 1996, p. 39).
Essas sociedades são responsáveis em manipular e colonizar subjetividades. Foucault
demonstra a existência das sociedades dos discursos como aquelas que retém o poder
sobre determinado tipo de conhecimento, uma linguagem ou letra restrita a um povo
que estabelece certa hierarquização na sociedade, assim, segundo Foucault, há
apropriação social dos discursos, bem como sua propagação e manutenção:
Sabe-se que a educação, embora seja, de direito, o instrumento
graças ao qual todo indivíduo, em uma sociedade como a nossa,
pode ter acesso a qualquer tipo de discurso, segue, em sua
distribuição, no que permite e no que impede, as linhas que estão
marcadas pela distância, pelas oposições e lutas sociais. Todo
sistema de educação é uma maneira política de manter ou de
modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes
que eles trazem consigo. [...]O que é afinal um sistema de ensino
senão uma ritualização da palavra; senão uma qualificação e uma
fixação dos papéis para os sujeitos que falam; senão a constituição
de um grupo doutrinário ao menos difuso; senão uma distribuição e
uma apropriação do discurso com seus poderes e seus saberes?
(1996, p. 43-44).
Salta, assim, uma questão: até que ponto a filosofia ou as ciências humanas
existem para responder ou reforçar esses dilemas? A problematização do filósofo
francês se dá em categorias práticas, ou seja, repensar as molduras que sedimentam o
ato de fazer ciência é uma forma de repensar os dispositivos de coerção. A
idiossincrasia expressa por Foucault sobre o discurso é que mesmo carregando a
102

densidade de dispositivos de perpetuação de instituições manipuladoras, que


carecem da manutenção de ideologias alienantes e que perenizem o controle, o
discurso pode assumir, sobretudo, uma postura desestruturadora de sistemas
hipostasiados, ou seja:
O discurso nada mais é do que a reverberação de uma verdade
nascendo diante de seus próprios olhos; e, quando tudo pode, enfim,
tomar a forma do discurso, quando tudo pode ser dito e o discurso
pode ser dito a propósito de tudo, isso se dá porque todas as coisas,
tendo manifestado e intercambiado seu sentido, podem voltar a
interioridade silenciosa da consciência de si (FOUCAULT, 1996, p.
49).
Há, no texto foucaultiano, destaque para uma sociedade da logofilia (1996), mas
que se pode articular com a noção de logofobia e logocentrismo. Esse jogo semântico
evidencia como o discurso tem a capacidade de interdição na contemporaneidade: não
se usam os manicômios, mas se utilizam os discursos como disposição de exclusão
legal dos indesejáveis. Mas o que se encaixaria como discursos na
contemporaneidade? O discurso como dispositivo de práticas de interdições. Para
melhor compreensão deste fenômeno, Foucault propõe uma análise da economia
interna do discurso distanciando-se dos métodos exegéticos tradicionais ou formalistas
linguísticos, utiliza-se das comparações. Ao refletir sobre essa economia histórica,
Foucault lança luzes à ciência:
Crônica das descobertas ou descrições das ideias e opiniões que
cercam a ciência do lado de uma gênese indecisa ou do lado de suas
origens exteriores; mas que se podia, se devia fazer a história da
ciência como de um conjunto ao mesmo tempo coerente e
transformável de modelos teóricos e de instrumentos conceituais.
(1996, p. 71-72).
O discurso pode ser visto como uma experiência plural singular, já que toda
experiência tem caráter duplo: envolve, ao menos, dois sujeitos. Ao mesmo tempo que
a experiência é partilhada por pessoas com estruturas e histórias particulares, por outro
lado, nota-se que o mundo vivencial do sujeito é aquele que estabelecerá as molduras
da experiência em si. Neste ato empírico dialógico, signatário e destinatário são
impactados pelo ato de experienciar. Assim, toda experiência é singular e plural,
descritiva e incompreensível, plausível por sua concretude, mas intangível por sua
abstração e subjetividade; carrega a densidade mnemônica do memorável, mas,
simultaneamente, é experiência inédita. É nessa trama que o discurso se enreda. Nesse
imbróglio que o conceito de poder fica mais claro:
Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro, como a
multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se
exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de
103

lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte;


os apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras,
formando cadeias ou sistemas ou ao contrário, as defasagens e
contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se
originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma
corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias
sociais (FOUCAULT, 1999, p. 88-89).
Por fim, fazendo-se algumas considerações sobre o segundo domínio
foucaultiano, é possível destacar ao menos quatro pontos. Em primeiro lugar, em vez
de buscar a intencionalidade, como propõe a abordagem fenomenológica, ou a
dimensão primária histórica típica da arqueologia, é preciso encontrar os ecos que os
discursos encontram em outras vozes, mas como o poder se apresenta, tendo em vista
que “O poder não está, pois, fora do discurso. O poder não é nem a fonte nem a
origem do discurso. O poder é algo que funciona através do discurso, porque o
discurso é, ele mesmo, um elemento em um dispositivo estratégico de relações de
poder” (CASTRO, 2016, p. 120).
Como segundo ponto, nota-se que o discurso é a instrumentalização para a
concretização do poder. Ainda que haja forças díspares dentro de um campo
discursivo, todas estão dentro de uma estratégia de poder. Dessa maneira, os discursos
estão a serviço de um poder transitivo que articula princípios, regulamenta ações e
condiciona subjetividades a um fim específico.
Em terceiro lugar, na abordagem foucaultiana, o discurso é formador de
subjetividades. Essa constituição liga o sujeito à verdade, ou seja, é por meio dos
discursos que o sistema axiológico do sujeito é constituído. A verdade assume um
patamar homogeneizado, ou seja, há um princípio totalitário que justifica a verdade,
ainda que ela transite pelo viés da irracionalidade.
Por fim, em quarto lugar, pensar sobre o discurso é tomar o devido cuidado em
não reduzir esta ideia ao elemento puramente da linguística, língua etc. Portanto, o
discurso extrapola a linguagem em si, este é elemento que distancia Foucault do
movimento estruturalista, pois mais do que pensar as estruturas que segmentam e
definem o sujeito, o autor francês se propõe a refletir, justamente, sobre a ipseidade
que se revela para além das infra e superestruturas. A experiência do sujeito assujeita
as convenções linguísticas.
O domínio genealógico de Foucault, que é iniciado na aula “Ordem do
discurso”, coloca em evidência mais do que as estruturas constitutivas, mas as
normalizações e legalizações típicas da sociedade do controle. Não se atém a criar
104

uma teoria do poder, mas a revisitar as trilhas que o poder instituído e transitivo se
fincou. Texto posteriores como “Microfísica do poder” (1999) e “Vigiar e punir”
(1997) são desdobramento e aprofundamento do tema proposto na aula inaugural do
College de France, no entanto, o que persiste é a figura do sujeito como aquele que
está inserido em uma rede de poder que está no sujeito, e transcende sua própria
individualidade.

II.4 Considerações Preliminares – Arqueologia e


Genealogia
As especificações presentes na abordagem filosófica de Michel Foucault
transitam desde a perspectiva fenomenológica que observa a coisa mesma, a fim de
descrever o fenômeno em si; apresentam o método arqueológico que, além de
estabelecer uma relação investigativa da história, apresenta o esforço hermenêutico
das camadas instauradas pela verdade; e mais do que compreender a verdade, Foucault
se propõe a perceber a genealogia do que faz a verdade ser traduzida para a lógica da
existência e apropriada pelos sujeitos como inquestionáveis. Foucault se propõe a
fazer um trabalho que está para além da organização histórica, ou seja:

A distinção de Foucault como historiador do pensamento reside


menos em sua invenção de novos métodos, do que em sua disposição
de empregar quaisquer métodos que apreçam ser exigidos por seu
objeto específico. A arqueologia e a genealogia são inovações de
alguma importância. A primeira, desenvolvida a partir da história
dos conceitos de Canguilherm, escreve uma história do pensamento
centrada não no sujeito individual, mas nas estruturas linguísticas
que definem os campos nos quais os sujeitos individuais operam. A
segunda, como uma versão particular da história do presente, solapa
as grandes narrativas do progresso inevitável ao traçar as origens das
práticas e instituições a partir de amontoados de “pequenas causas”
contingentes. Mas nenhum desses métodos é o veículo exclusivo de
qualquer análise foucaultiana dada, e nenhum deles tem
precisamente o mesmo sentido em suas várias aplicações
(GUTTING, 2016, p. 34-35).
As especificações de cada inovação metodológica em Foucault se dão não
como mecanismo sintético do sujeito, em vez disso, é a tentativa de fazer do sujeito
um ser que revele sua complexidade, sem desconsiderar o aspecto holístico do ser. É a
partir desses métodos que Foucault anuncia “os dois componentes primários de sua
moralidade positiva: a transgressão e a intensidade” (GUTTING, 2016, p. 44).
105

Tanto a arqueologia como a genealogia enfatizam a ética foucaultiana, isto


é, a ideia de transgredir como aquela ideia que afirma a existência do ser que reage
contra aquilo que circunscreve o próprio ser, ou seja, a condição de insurreição contra
as normalizações cristalizadas e dogmatizadas; e a intensidade como a constância que
torna a ação em si emancipadora para o sujeito. Por este viés, Gutting acentua que
“Foucault enxerga a transgressão como essencialmente ligada à intensidade. [...] tal
intensidade é a consequência direta de uma transgressão, que por sua própria natureza
nos situa além das certezas entorpecentes e consoladoras da vida convencional” (2016,
p. 45). Para Guttig, a relação entre transgressão e intensidade se revelam como matriz
para o processo de ressignificação da constituição da subjetividade, haja vista que:

A transgressão e a intensidade permanecem como categorias éticas


fundamentais, mas agora são cada vez mais enraizadas em
experiências sociais e políticas vividas, em vez de sê-las na
sensitividade estética refinada. Foucault começa a mover-se do mito
heroico para a realidade mundana, embora ainda haja uma
considerável idealização e romantização dos marginalizados. De
modo semelhante, os monstros burgueses dos anos 1960 assumem o
semblante mais realista (não menos malignos por isso) das estruturas
e funcionários de complexas redes de poder (2016, p. 47-48).
Compreender os rudimentos da arqueologia e da genealogia em Foucault
auxilia na hermenêutica do sujeito que será desenvolvida no domínio do ethos, isto é,
a provocação foucaultiana que tangencia a ética inicia após o questionamento das
verdades instauradas. Pensar a constituição da subjetividade do sujeito é entrelaçar
dialeticamente a contribuição fenomenológica, arqueológica e genealógica. Nesse
jogo dialético, não só a verdade e o viés percorrido para sua consolidação são
questionados, especialmente, a ideia de que a subjetividade reverbera os mais
complexos entrelaçamentos e variantes, os quais serão apresentados no terceiro
domínio desenvolvido por Michel Foucault.

II.5 Ética: O terceiro domínio foucaultiano – aparato


conceitual
Após apresentar os dois primeiros domínios do pensamento de Michel Foucault,
bem como análise de estruturas sociais voltadas ao ramo da educação, faz-se
necessário apontar o terceiro domínio foucaultiano. O Foucault ético, como é
conhecida essa terceira fase, descreve, de modo ativo e protagonista, a constituição do
sujeito como resultado de relações de poder, e, posteriormente, o sujeito como autor
106

de si. Antes, porém, faz-se necessário apresentar algumas definições conceituais


do filósofo francês, a fim de que a compreensão da hermenêutica do sujeito aconteça
de modo significativo. Consideramos que será um diferencial desta tese de doutorado
analisar o diálogo do Primeiro Alcibíades de Platão, contudo, deixaremos para
analisar o texto platônico no próximo capítulo dentro de um escopo teórico de
narratividade.
É muito arriscado adentrar em terras foucaultianas sem conhecer os detalhes
conceituais do vocabulário de Michel Foucault. Os termos escolhidos pelo autor
francês colocam-se em diálogo com a história da filosofia, bem como com seu campo
semântico especializado, mas Foucault busca revisitar e, assim, ressignificar
conceitos e termos usados em diferentes áreas do conhecimento (filosofia, história,
medicina, entre outros), a fim de expandir sua abordagem filosófica e tangenciar as
vicissitudes e imprevisibilidades típicas da contemporaneidade.
É comum relacionar o trabalho de Foucault com a ideia de poder, como é
possível constatar em seus textos “Vigiar e Punir” (2010) e “Microfísica do Poder”
(1992), ou com o tema da loucura, conforme seu livro “História da Loucura” (1978),
no qual descreve os critérios para estabelecer quem era considerado como louco.
Essas narrativas estão relacionadas com as duas primeiras fases foucaultianas, mas
não se isentam de dialogar com o terceiro domínio, em vez disso, ao passo que se
conhece o itinerário feito por Foucault, seus textos ganham novos horizontes
hermenêuticos. O próximo passo desta tese será apresentar uma breve síntese dos
termos ética, subjetividade, verdade, acontecimento, experiência e
governamentalidade, seguidos de um breve arremate conceitual para articular este
breve vocabulário com o tópico do cuidado de si que constituirá o cerne da abordagem
subsequente.

II.5.1 Foucault e a Ética

O conceito de ética surge como foco de análise de Michel Foucault no fim dos
anos 1970 e acompanha o filósofo francês até o fim de sua vida. A primeira
contribuição foucaultiana é a distinção entre moral e ética, sendo que “a moral é, num
sentido amplo, um conjunto de valores e de regras de ação que são propostos aos
indivíduos e aos grupos por intermédio de diferentes aparelhos prescritivos” (REVEL,
2011, p. 59). A expressão “aparelhos prescritivos” usada por Foucault se refere às
107

instituições familiares, religiosas e educacionais: os responsáveis em ditar as


regras do jogo.

O sujeito tem suas ações talhadas pelas normas prescritas, as quais são
naturalizadas no cotidiano da existência. Essa moral engendra uma moralidade dos
comportamentos, estabelece o permitido e interdita o inapropriado. Nota-se que a
moral tem qualidade de normatização, em que se estabelece caminho sedimentado
para o sujeito trilhar: extrapolar a norma é assumir a etiqueta de transgressor.

Segundo Castro (2016), Foucault aponta quatro características do sujeito que o


levam a absorver a moralidade como ajuste de si: (i) a substância ética ligada com a
parte do indivíduo que compõe o cerne da ação moral; (ii) os modos de sujeição, que é
a relação que a pessoa estabelece com as regras impostas; (iii) as formas de elaboração
do trabalho ético, isto é, o que o sujeito precisa realizar para se adequar às normas
estabelecidas; (iv) e a teleologia do sujeito moral, que é a abrangência da ação moral,
pois ela não está restrita em si mesma, mas na própria constituição do sujeito. Essas
características são o que compõem o conceito ético para Foucault: “o termo ética
refere-se a todo esse domínio da constituição de si mesmo como sujeito moral”
(CASTRO, 2016, p. 156).

O conceito ético para Foucault diferencia-se do viés moralizante pois carrega


em si a potencialidade do sujeito em ser um indivíduo moral, como descreve o
filósofo francês, “dado um código de condutas [...], há diferentes maneiras de o
indivíduo ‘conduzir-te’ moralmente, diferentes maneiras para o indivíduo, ao agir, não
operar simplesmente como agente, mas sim como sujeito moral dessa ação” (2004, p.
211-212). É essa condução de si que é denominada ética.

Revel descreve que, na perspectiva foucaultiana, “toda ética corresponde à


determinação de uma substância ética” (2011, p. 59), isto é, a maneira pela qual um
indivíduo faz de si mesmo a matéria principal de sua conduta moral. Da mesma
maneira, a ética implica necessariamente um modo de sujeição, quer dizer, a maneira
pela qual um indivíduo se relaciona com uma regra ou com um sistema de regras e
experimenta a obrigação de colocá-las em ação, lançar em sua prática de si. É nessa
reflexão ética que o “éthos” do sujeito é forjado, o “modo de ser do sujeito que se
traduz em seus costumes, seu aspecto, sua maneira de caminhar, a calma com que
enfrenta os acontecimentos da vida” (CASTRO, 2016, p. 154).
108

Para Foucault, este éthos é imprescindível para o cuidado de si, pois está
relacionado diretamente com a técnica e a importância que o indivíduo dará a si
mesmo e essa relação com o mundo que o cerca. É no ato de refletir sobre si,
questionar o si mesmo, confrontar aquilo que foi estabelecido e forjado na relação
com as instituições prescritivas que o sujeito terá a possibilidade de cuidar de si e agir
sobre si. Quando o cuidado de si é aspecto central, nova relação é estabelecida entre o
sujeito e as instituições prescritivas, como destaca Revel:

O ethos do cuidado de si é, portanto, igualmente uma arte de


governar os outros e, por isso, é crucial saber tomar conta de si para
poder governar bem a cidade. É nesse ponto, e não na dimensão
ascética da relação com o si, que se efetua a ruptura da pastoral
cristã: o amor a si torna-se a raiz de diferentes falhas morais e o
cuidado dos outros implica, daí em diante, uma renúncia de si no
transcurso da vida terrena. (2011, p. 139).
Não resta dúvida de que o filósofo francês estabelece um limite entre o sujeito
ético e o sujeito docilizado, este segundo faz de si um inimigo cruel, pois amar a si,
cuidar de si, voltar a si é sinônimo de violação e perversão do sujeito, já o sujeito ético
é aquele que tem como ponto crucial o eu. Em outras palavras, a infração não está no
si mesmo, outrossim a violação está na condição de negar a si mesmo como o que há
de principal e elementar. O sujeito ético está apto a cuidar dos outros porque, em
primeiro lugar, aprendeu a cuidar de si mesmo.

Foucault estabelece um entrelaçamento entre o impulso presente no sujeito e a


força castradora da moral cristã, lembrando que essa é responsável em estabelecer
todos os tipos de ações permitidas e não permitidas. Essa mesma moral é a que
categoriza, simultaneamente, o sagrado e o profano. O que precisa ficar claro é que,
para Foucault, “a ética é a forma como o sujeito relaciona-se consigo mesmo”
(REVEL, 2011, p. 59). É nessa relação consigo mesmo que se evidencia a
subjetividade constituinte do sujeito, conceito que será apresentado em seguida.

II.5.2 Foucault e a Subjetividade

Não é possível isolar o sujeito da realidade em que ele está inserido. Pensar a
constituição do eu sem considerar, paralelamente, a história, a vida, as contingências,
vitórias e fracassos, os estímulos e as castrações é emperrar a compreensão holística
do sujeito (LARROSA, 1994). É por este viés que Foucault desenvolve sua concepção
de genealogia: uma busca pela origem. Em outros termos, o filósofo francês incentiva
109

a hermenêutica dos processos históricos com intuito de discernir os fios que


teceram a biografia – que se forja na subjetividade – dos sujeitos. O trabalho de
Foucault é história dos modos de subjetivação e objetivação. Nessa história pode-se
identificar três modos de subjetivação/objetivação: (i) modos de investigação em que
o destaque está posto na ciência; (ii) modos de objetivação, isto é, a segmentação
daquilo que é adequado e do que é inadequado, do bom e do mau etc.; (iii) modos de
humanizar-se que é, na perspectiva foucaultiana, a ação que transforma o sujeito em
humano (CASTRO, 2016).

A subjetivação foucaultiana é idiossincrática, pois se revela de modo amplo e


restrito. No primeiro caso, “Foucault fala dos modos de subjetivação como modos de
objetivação do sujeito, isto é, modos em que o sujeito aparece como objeto de uma
determinada relação de conhecimento e de poder” (CASTRO, 2016, p 408). A
subjetivação e objetivação são movimentos que caminham de modo mútuo.

No âmbito restrito, o sujeito internaliza e significa vários mundos que


compõem seu mundo. Forças externas que adentram o ser e o singularizam. Neste
aspecto circunscrito, é possível aferir a dinamicidade na subjetivação foucaultiana,
haja vista a maneira como Foucault descreve a forma como o sujeito estabelece
relação consigo mesmo, os processos e técnicas envolvidas nessa relação consigo, as
ações que fazem do sujeito objeto de conhecimento, bem como as práticas que
mediam a transformação do sujeito em seu próprio eu (FOUCAULT, 1998).

Em categorias foucaultianas, subjetividade é “a maneira pela qual o sujeito faz


a experiência de si mesmo num jogo de verdade, no qual ele se relaciona consigo
mesmo” (FOUCAULT, 2004, p. 236). Revel comenta que “se o sujeito se constitui,
não é sobre o fundo de uma identidade psicológica, mas por meio de práticas que
podem ser de poder ou de conhecimento, ou ainda por técnicas de si” (2011, p. 147).
Segmentar ou restringir a constituição da subjetividade por uma única via é,
sobretudo, um esforço reducionista da complexidade inerente à formação do
indivíduo. Seguindo por este viés, Revel demonstra que o sujeito é composto de
contínuo devir, isto é, regime de constante mutação e transformação. Em outras
palavras:

[..] esse lugar inassinalável da subjetividade em movimento, em


perpétuo ‘desprendimento’ em relação a ela mesma, é, ao mesmo
tempo, para Foucault, o produto das determinações históricas e do
trabalho sobre si (cujas modalidades são, por seu turno, históricas), e
110

é nessa dupla ancoragem que se enlaça o problema da resistência


subjetiva da singularidade: o lugar da invenção do si não está no
exterior da grade do saber/poder, mas na sua torção íntima – e o
percurso filosófico de Foucault parece aí, para nós, disso dar o
exemplo. (2011, p. 147).
Portanto, tratar da subjetividade do indivíduo em Foucault é lançar-se em um
oceano hermético em que arvoram-se juízos pré-formativos com o intento de
prestigiar todas as dimensões que beneficiam a elaboração da constituição última do
ser. Não é possível sintetizar o sujeito em uma ou outra coisa, isto é: em um ser
transcendental ou empírico; objetivo ou abstrato; enfim, a subjetividade do sujeito
carrega a densidade do duplo que é intrínseco ao ser. Só é possível compreender a
subjetividade do sujeito a partir de uma abordagem dialógica, aberta e expansiva que
elucubra o ser em sua integralidade. Nesse devir incessante, adiantam-se os termos
verdade e acontecimento, que serão tratados a seguir.

II.5.3 Foucault e a Verdade

Pensar em subjetivação nas categorias foucaultianas é refletir sobre a verdade.


A ideia de verdade salta nessa interfluência do cuidado de si, das técnicas para a vida
e do autoconhecimento. O conceito de verdade – ou a “aleteia”4 para o mundo grego
– traz consigo diversos embates conceituais e compreensivos, bem como o
posicionamento cético de abordagens relativistas em relação à possibilidade de uma
verdade absoluta fazer parte de determinada coisa.

Para afirmar se uma premissa é verdadeira ou não, faz-se necessário considerar


as circunstâncias que a sustentam. Em definições espinosistas, a verdade está
vinculada com a noção “sui generis”5, em outras palavras, aquilo cuja essência
envolve a existência, ou seja, aquilo cuja natureza não pode ser concebida senão como
existente (ESPINOSA, 2009). Portanto, verdade é, apesar das metamorfoses
contingenciais, àquilo que permanece como substância. As contrariedades não
minimizam a densidade do fato. Por esta via, Foucault (2011) lança mão da expressão
jogos de verdade. Esses jogos de verdade têm origem no pensamento, o qual é
conceituado, na abordagem foucaultiana, de modo peculiar:

4
O termo Aleteia, segundo definição de Abbagnano, representa aquilo que não pode ser
escondido, que é evidente.
5
Compreende-se o termo sui generis em categorias do filósofo Baruch Espinosa no texto
Ética.
111

Se, como Foucault, chamamos “pensamento” ao ato que


instaura, segundo diferentes relações possíveis, um sujeito e um
objeto, uma história do pensamento seria a análise das condições em
que se formaram e modificaram as relações entre o sujeito e o objeto
para tornar possível uma forma de saber. Essas condições, para
Foucault, não são nem formas nem empíricas, elas devem
estabelecer, por exemplo, a que deve submeter-se o sujeito, que
estatuto deve ter, que posição deve ocupar para poder ser sujeito
legítimo de conhecimento, sob que condições algo pode converter-se
em objeto de conhecimento, como é problematizado, a que
delimitações está submetido. Estas condições estabelecem os jogos
de verdade, as regras segundo as quais o que um sujeito pode dizer
inscreve-se no campo do verdadeiro e do falso (CASTRO, 2016, p.
408).

O pensamento, portanto, é a ação de refletir todo o percurso que gerou


determinadas consequências. Não é uma ação exclusivamente formal, isto é, presa aos
muros racionalistas, também não é refém das experiências típicas do empirismo, é o
ato de considerar o entrelaçamento do sujeito com as regras que foram impostas por
alguns motivos, os quais, também, precisam ser compreendidos. Compreender os
jogos de verdade é considerar a inexistência de uma verdade intemporal. A verdade
estabelece dialética com as circunstâncias externas e internas do sujeito. Pode-se
perceber duas histórias da verdade, isto é,

Por um lado, uma história interna da verdade, de uma verdade que se


corrige a partir dos seus próprios princípios de regulação; por outro
lado, uma história externa da verdade. A primeira é a que se leva a
cabo na história das ciências, a segunda, a que parte das regras do
jogo que, em uma sociedade, fazem nascer determinadas formas de
subjetividade, determinados domínios de objetos, determinados tipos
de saber. (CASTRO, 2016, p. 421).

A palavra jogo, para o filósofo francês, está ligada com a ideia de regras que
são instituídas e que correspondem a determinados meios e fins, isto é, seguir
determinados meios a fim de alcançar fins específicos. Este jogo acontece em todos os
lugares, todavia com especificidades que destacam sua singularidade. Logo, o jogo de
verdade se constitui na narrativa de estabelecer como aceitável, autêntico e real aquilo
pode ser aplicado em situações específicas, para indivíduos específicos. Esta
complexidade se apoia na flexibilidade encontrada no conceito do que se compreende
por verdade. Segundo Castro, é possível elencar algumas características da verdade
nos textos foucaultianos:

Foucault distingue cinco características historicamente importantes


da ‘economia política’ da verdade em nossas sociedades: ela está
centrada no discurso científico e nas instituições que o produzem;
112

está submetida a uma constante incitação política e econômica; é


objeto de difusão e consumo; é produzida e distribuída sob o
controle dominante de grandes aparatos políticos e econômicos; é a
colocação em jogo do debate político e das lutas sociais (2016, p.
423).

Como se percebe na análise de Castro, as ênfases da verdade se fincam na


cientificidade, nas forças políticas e econômicas, é convertida em mercadoria, é
manuseada e manipulada pelos poderes políticos e econômicos (e quiçá midiáticos), e,
por fim, a verdade torna-se o foco da tensão entre as extremidades políticas e dos
movimentos sociais, hierarquização típica de um sistema restritivo.

Foucault aponta que a verdade não tem um caminho pré-estabelecido, mas que
a história construiu caminhos fortuitos de verdades. Como descreve Revel, “trata-se
de reconstruir uma verdade produzida pela história e isenta de relação com o poder,
identificando ao mesmo tempo as coerções múltiplas e os jogos, ao passo que cada
sociedade possui seu próprio regime de verdade” (2011, 148). Revel estabelece uma
relação entre o conceito de verdade na perspectiva foucaultiana com os elementos
pertinentes à educação:

Ela [a verdade] é muito largamente difundida, tanto por meio das


instâncias educativas quanto pela informação; ela é produzida e
transmitida sob o controle dominante de alguns grandes aparelhos
políticos e econômicos (universidade, mídia, escrita, exército); ela é
lugar de um enfrentamento social e de um debate político violento;
sob a forma de ‘lutas ideológicas’. (2011, 148-149).

A ênfase dessa citação é no trânsito inerente a ato da produção de verdade:


encontrar a verdade é um impulso para discernir quais fontes a criaram, quais
asserções potencializaram sua origem e para quais propósitos foi produzida. O desafio
está em interpelar os jogos de verdade, ou seja, perceber os vínculos que forjaram o
sujeito no decorrer de sua narrativa constitutiva da verdade de si.

Em vez de separar o subjetivo e o objetivo para a compreensão da verdade,


Foucault (2001) estabelece uma via paralela entre os dois fenômenos, sendo
conjugados paralelamente como potencializadores da aproximação do sujeito à
verdade. Nota-se que a relação com o que é verdadeiro ganha novos entornos, isto é,
em vez de afirmar, categoricamente, o que é verdade ou falso, o sujeito passa a
analisar as regras que fazem com que o que se tem como verdadeiro alcance esse
patamar cristalizado. O eixo epistêmico está em analisar os critérios que viabilizam o
113

que se entende por verdade, observando retilineamente para o acontecimento,


termo este que será apresentado a seguir.

II.4.4 Foucault e o Acontecimento

Para pensar a constituição do sujeito, sua jornada para dentro si, em


perspectiva foucaultiana, o termo acontecimento ganha nova dimensão. A concepção
de acontecimento é posta, em primeiro momento, sob viés negativo nos textos
foucaultianos, porque o acontecimento é “um fato para o qual algumas análises
históricas se contentam em fornecer a descrição” (REVEL, 2011, p. 61). O
acontecimento, nessa perspectiva, demonstra o entrelaçamento dos discursos das
narrativas de poder e/ou as técnicas de controle com o poder que forja o imagético dos
sujeitos. Dessa maneira, pode-se deduzir que já está pré-determinada a forma como o
sujeito irá significar e representar o mundo em que está inserido.

Intuímos, assim, que as subjetividades dos sujeitos são colonizadas pelos jogos
de verdade dos sistemas restritivos e prescritivos a partir dos acontecimentos que
estão encharcados de discursividades de poder. A sensação que o sujeito tem do
fenômeno em si carrega dialogicidade valorativa, isto é, o fato em si é considerado a
partir dos acontecimentos que impactaram o cotidiano do indivíduo. Logo, perceber
este teor negativo do acontecimento é apontar para o espectro de manipulação na
hermenêutica do sujeito ao que se refere ao fato em si mesmo. O sujeito é conduzido
ideologicamente para compreender o que foi posto como única possibilidade
compreensiva.

Em um segundo momento, o termo acontecimento emana com outra entoação


nos textos foucaultianos, isto é, positivo. Revel destaca o aspecto positivo do
acontecimento “como uma cristalização de determinações históricas complexas que
ele opõe à ideia de estrutura” (2011, p. 61). Não é possível pensar em acontecimento a
partir, exclusivamente, da unidimensionalidade. Considerar os entornos e as variações
pertinentes ao fenômeno é uma ação de superação de toda indução de causalidade que
denota as adjacências labirínticas inerentes ao fato histórico, haja vista que não há um
enquadramento arrematado do juízo do fato em si. Em poucas palavras, sempre haverá
possiblidades múltiplas e plurais de interpretar a história.
114

As contingências singulares intensificam o impacto da


acontecimentalização. Não história acontecimental, mas a tomada de consciência das
rupturas da evidência induzidas por certos fatos. Isto posto, pode-se compreender o
acontecimento como “irrupção de uma singularidade histórica” (REVEL, 2011, p. 62).
O desafio proposto por Foucault é para que o sujeito tenha consciência da sua própria
história, de sua existência e, assim, desemboque em uma acontecimentalização de si:
uma ruptura consigo mesmo a fim de que haja o encontro com o eu.

Para pensar a ideia de acontecimento, especificamente a ideia do


acontecimento de si, o texto foucaultiano retoma o princípio iluminista do
“Aufklarung” ou esclarecimento. Este esclarecimento é, segundo Revel, “ontologia
crítica do presente” (2011, p.17). Nesse processo de encontrar o esclarecimento,
Foucault (1985) aponta três momentos importantes: (i) as transformações do século
XV, haja vista as transformações econômicas, políticas, religiosas e tecnológicas que
o mundo viveu; (ii) compreensão do termo Aufklarung nos diferentes países da
Europa; (iii) a questão do presente – a partir dos impactos da história – uma análise do
presente a partir das múltiplas influências que o possibilitaram. É possível, por fim,
resumir os aspectos gerais do acontecimento para Foucault: “ruptura histórica,
regularidade histórica, atualidade, trabalho de acontecimentalização” (CASTRO,
2016, p. 25), esses elementos estão conectados com a noção de experiência, termo este
que será descrito abaixo.

II.4.5 Experiências em categorias foucaultianas

O esforço de Foucault (2018) é, dentre outros tópicos, apresentar como a


experiência é fenômeno imprescindível no processo do cuidado de si, das técnicas de
vida e, também, no conhecimento de si. A experiência perpassa todos os domínios
foucaultianos, entretanto, ganha adjacências ao passo que Foucault amadurece como
pesquisador do sujeito.

O termo experiência conota a ideia de que o indivíduo é tocado e transformado


em alguma esfera, porém, o sujeito não é passivo neste ato de experienciar, uma vez
que “a experiência tem sempre o caráter pessoal e não há experiência onde falta a
participação da pessoa que fala nas situações de que se fala” (ABBAGNANO, 2007,
p. 406). O ato de experienciar transcende os limites das sensações, abrange o sujeito
115

em sua integralidade. Corpo e mente tocam e são tocados, de modo simultâneo,


pelo mundo vivencial.

Ao mesmo tempo que o sujeito é aquele que atua no evento, constitui-se,


também, como aquele que ressignifica o fato atribuindo sentido e significado. É por
este viés que Foucault caminha. Segundo Revel (2011), é possível notar dois
momentos distintos no que se refere à experiência em categorias foucaultianas. Em
um primeiro momento, a ideia de experiência do exterior – com o ilimitado,
transcendental, utópico – é encadeada e simbolizada pela linguagem. É uma
abordagem fenomenológica que faz do sujeito o intérprete dos fenômenos
corriqueiros, diferenciando entre o que é autoral do que é apógrafo dos sistemas
homogeneizadores. Evidencia-se, nesse processo, o jogo fenomenológico mediado
pela linguagem.

Em segundo lugar, Foucault propõe a noção de experiência a partir do ato em


si da experimentação. Segundo Revel, isso significa que:

A experiência se torna para Foucault a única maneira de distinguir a


genealogia ao mesmo tempo de uma abordagem empírica ou
positivista e de uma análise teórica [...], é no sentido de que o
pensamento filosófico de Foucault é verdadeiramente uma
experimentação: ele dá, com efeito, a ver o movimento da
constituição histórica dos discursos, das práticas, da relações de
poder e das subjetividades, e é devido a essa relação com a
genealogia que a experiência sai dela mesma modificada” (2011, p.
63-64).
Essa concepção de experiência do sujeito aponta “a ideia de uma experiência-
limite que arranca o sujeito dele mesmo e lhe impõe sua fragmentação ou sua
dissolução” (REVEL, 2011, p. 64). Na medida em que o sujeito tem noção de sua
fragmentação, pequenez e finitude, seus horizontes são expandidos para uma nova
dimensão de degustação da existência de si, em que a relação – consigo e com o outro
– passa pelo viés da autenticidade e completude.

A partir dessa gradação conceitual, a experiência passa a ser compreendida,


nos textos foucaultianos, como termo de “resistência aos dispositivos de poder e aos
processos de subjetivação” (REVEL, 2011, p. 69), isto é, na perspectiva de Foucault,
não é admissível que o sujeito assuma para si etiquetas normalizantes, castradoras e
disciplinadoras legitimadas pelos sistemas que exercem controle a partir de relações
de poder. Experiência, para Foucault, é um exercício que acontece no sujeito de que
está com sua consciência sã e, devido a essa estabilidade, almeja o desenraizamento,
116

haja vista sua revisitação a sua constituição e, por fim, é um indivíduo que, ao
romper com um paradigma, propõe um novo, em outras palavras é um sujeito capaz
de ressignificação. Portanto, segundo Lopez (2011), a experiência é uma concepção
política que se desenvolve nas diversas vias que compõem o sujeito.

A experiência, na perspectiva foucaultiana, é a forma histórica de subjetivação,


e, por causa desta característica, circula no campo da ficcionalidade, pois é uma
construção para si, a partir do inexistente, porém essa ação permanecerá após o
acontecimento em si. O cuidado de si está intimamente ligado com a experiência,
desse modo, cuidar de si é estar apto para agir sobre si e os outros, apto para a
governamentalidade.

II.4.6 Foucault e a Governamentalidade

O termo governamentalidade surge nas pesquisas foucaultianas em meados de


1978, quando o referido autor analisa a ruptura de governo que acontecia até o século
XVI por meio das vias tradicionais (sabedoria, justiça, respeito a Deus) e ideal de
medida (prudência, reflexão), para uma arte de governar cuja racionalidade tem por
princípio e campo de aplicação o bom andamento do Estado (REVEL, 2011). É uma
proposta com matriz racional, pois “as noções de governo e de governamentalidade
nos permitem compreender por que é o sujeito, e não o saber ou o poder, o tema geral
das investigações de Foucault” (CASTRO, 2016, p. 189).

Considerando que os estudos foucaultianos têm em constante perspectiva o


sujeito em relação à arqueologia que o compõem, os dispositivos que formatam a
genealogias de poder e suas devidas legitimações e, por fim, as práticas de governo ,
isto é, as ações éticas e morais que pautam as decisões no cotidiano, Foucault se
propõe a garimpar “as práticas de governamentalidade que constituíram a
subjetividade ocidental. Desse modo, as noções de governo e governamentalidade são
postas no centro da obra de Foucault” (CASTRO, 2016, p. 190).

Para tratar do conceito de governamentalidade é preciso, antes, analisar a


noção de governo que em Foucault carrega ao menos dois polos centrais: o que se
refere à relação entre os sujeitos e o que se refere à relação consigo mesmo. O
primeiro polo está atrelado ao conjunto de ações sobre as ações possíveis, em outras
palavras é conduzir condutas com uma teleologia delineada. Já o governo em relação a
117

si mesmo está diretamente associado com a ideia de controlar os desejos e


prazeres do sujeito.

O termo governamentalidade, por sua vez, é utilizado por Foucault “para


referir-se ao objeto de estudo das maneiras de governar” (CASTRO, 2016, p. 190). A
ideia de governamentalidade está diretamente ligada com a concepção de governo
proposta por Foucault, isto é, uma relação entre sujeitos e consigo mesmo. É possível
compreender a governamentalidade sob três aspectos: (i) o papel institucional nas
complexas ações sociais; (ii) a condução dos sujeitos a uma submissão
hierarquicamente constituída; e (iii) os desdobramentos dos processos típicos da
governamentalidade.

No primeiro aspecto – o papel institucional nas complexas ações sociais –


percebe-se que a governamentalidade está enraizada nos diversos modelos
institucionais, pois as ações de governo são autenticadas por meio dessas entidades,
como destaca Foucault:

Por governamentalidade entendo o conjunto constituído pelas


instituições, os procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as
táticas que permitem exercer essa forma bem específica, embora
muito complexa, de poder que tem por alvo principal a população,
por principal forma de saber a economia política e por instrumento
técnico essencial os dispositivos de segurança (2008, p. 143).
Na citação foucaultiana, as instituições prescrevem as normativas, logo, não há
liberdade de decisão do sujeito em relação ao que é posto: não seguir a norma é
assumir uma postura transgressiva. Nesse contexto, a população é o alvo das
instituições, haja vista que no ato de homogeneizar uma conduta e/ou prescrever um
éthos, as instituições assumem um patamar de acriticidade, isto é, não há críticas às
organizações, pois os sujeitos assumiram as narrativas como paradigmas inalienáveis
e inquestionáveis. Este primeiro aspecto de governamentalidade está diretamente
equacionado com o segundo tópico - a condução dos sujeitos a uma submissão
hierarquicamente constituída. Para Foucault, este aspecto da governamentalidade é:

A tendência, a linha de força que, em todo o Ocidente, não parou de


conduzir, e desde há muito, para a preeminência deste tipo de poder
que podemos chamar de "governo" sobre todos os outros - soberania,
disciplina - e que trouxe, por um lado, o desenvolvimento de toda
uma série de aparelhos específicos de governo [e, por outro lado], o
desenvolvimento de toda uma série de saberes (2008, p. 143).
Nessa definição foucaultiana, aborda-se a perspectiva linear que a história
criou ao que se refere ao governo. Naturalizar as tendências de governo, a aceitação
118

incondicional da tradição como aquelas que se firmaram no percurso histórico é


encontrar dispositivos reguladores, bem como episteme que corresponda a
determinadas intencionalidades e modelos. Ao considerar este segundo tópico,
Foucault aponta para o terceiro aspecto da governamentalidade - os desdobramentos
dos processos típicos da governamentalidade – em palavras foucaultianas:

Enfim, por "governamentalidade", creio que se deveria entender o


processo, ou antes, o resultado do processo pelo qual o Estado de
justiça da Idade Média, que nos séculos XV e XVI se tornou o
Estado administrativo, viu-se pouco a pouco "governamentalizado".
(FOUCAULT, 2008, p. 144).
A proposta foucaultiana é mais que analisar e compreender os processos,
sobretudo é observar os resultados que desencadearam destes processos. Essa
abordagem de Foucault sobre a governamentalidade tem início no século XV e XVI
em que estão em evidência as mutações radicais que o mundo vivia. Desde a
reviravolta racionalista, como as novas propostas políticas, econômicas, filosóficas e
religiosas que sacudiram o período denominado renascimento. Compreender os
impactos dessa governamentalidade não é aceitar uma abordagem puramente
estruturalista ou linear da história, em vez disso é analisar em profundidade até que
ponto os processos são mantidos a fim de conservar a manutenção de determinados
fins.

Instaura-se, assim, o que se pode classificar como biopolítica, isto é, “a


maneira pela qual, a partir do século XVIII, se buscou racionalizar os problemas
colocados para a prática governamental pelos fenômenos próprios de um conjunto de
viventes enquanto população: saúde, higiene, natalidade, longevidade, raça
(CASTRO, 2016, p. 60). Compreende-se, então, que a biopolítica está intrinsecamente
relacionada com a governamentalidade, haja vista que a teleologia destes termos está
ligada com a ideia de gerar “corpos economicamente úteis e politicamente dóceis”
(CASTRO, 2011, p. 60). Os aspectos econômicos e políticos são instrumentalizados
para uma governamentalidade racionalizada.

Segundo Revel, dois são os eixos que fundamentam a governamentalidade da


Razão do Estado, a saber “uma tecnologia político-militar e uma polícia” (2011, p.
75). Esses dois eixos são movidos diretamente pelo comércio, ou que Revel chama de
“economia política” (2011), que é uma ação com uma abrangência ilimitada, não é
uma ação relacionada apenas com o controle da sociedade, ou com as instituições, ou
119

qualquer outra entidade, a abrangência dessa “economia política” está intimamente


ligada com a formação dos sujeitos, com a educação:

Não somente uma gestão da população, mas um controle das


estratégias que os indivíduos, na sua liberdade, podem ter em relação
a eles mesmos e uns em relação aos outros. As tecnologias
governamentais concernem, portanto, também ao governo da
educação e da transformação dos indivíduos, aquele das relações
familiares e àqueles das instituições. É por essa razão que Foucault
estende a análise da governamentalidade dos outros para uma análise
do governo de si (REVEL, 2011, p. 75).
Em suma, destacam-se dois tópicos: em primeiro lugar que a concepção de
governamentalidade carrega em si a premissa do encontro entre as técnicas de
dominação exercidas sobre os outros e as técnicas de si sobre si mesmo e, em segundo
lugar, que a compreensão do cuidado de si na teoria foucaultiana está ligada
diretamente com o conceito de governamentalidade, pois na medida em que o sujeito
se homogeneíza com as normas das instituições prescritivas, torna-se um estranho
para si mesmo. Foucault ainda destaca como o governo da educação é fundamental
para a conduta adestrada e docilizada de uma sociedade que se adaptou às
normatizações estabelecidas.

II.4.7 Arremate Conceitual: Possíveis interpretações do terceiro


Domínio
Os termos apresentados acima demonstram a densidade e complexidade do
terceiro domínio foucaultiano, sendo fundamentais para uma melhor compreensão das
propostas foucaultianas sobre o sujeito e a constituição da sua subjetividade. A ética é
o mecanismo essencial para a constituição de si mesmo. Se por um lado a moral são as
prescrições, as normas estabelecidas, a ética é a maneira como o sujeito se apropria do
que foi estipulado. É pelo viés ético que o cuidado de si se efetiva, e é na extinção da
dimensão ética que o sujeito imputa sobre si a desfiguração do sujeito.
Tratar da dimensão ética é considerar a constituição da subjetividade do sujeito.
Como foi posto, a subjetividade é plural e diversa. Essa multiplicidade é exteriorizada
na maneira como o sujeito objetiva o mundo que está em seu entorno, e essa
objetivação, a qual é restrita ao próprio indivíduo, internaliza e dá significações aos
fenômenos que compõem as contingências de seu mundo vivencial. É por essa via
centrípeta que o sujeito desperta seu devir existencial.
120

Voltar-se sobre si, cuidar de si, ater-se a si são possíveis desdobramentos da


constituição da subjetividade, por conseguinte, a verdade é aspecto primordial. É
universal no sentido de extensão, mas não no sentido de pragmatismo, isto é, sob o
ângulo da extensão, a verdade é universal porque é base inerente das relações
humanas. Mas, ao mesmo tempo, não é universal no que se refere ao pragmatismo
pois não há uma verdade atemporal, consolidada pela linearidade histórica ou pelas
imposições dogmáticas das instituições prescritivas. Determinado objeto só se torna
verdade a partir das singularidades da circunstância equacionada a ipseidade do
sujeito envolvido no evento. A ênfase não está no relativismo, em vez disso, está na
condição do sujeito em decidir sobre as contingências e suas devidas significações e
representações.
A verdade está diretamente vinculada a um acontecimento, que sob a ótica
foucaultiana é mais do que a descrição de eventos. Não é um relato das circunstâncias
ou dos fatos, mas é uma reflexão interruptiva sobre a ótica de si mesmo e dos atores
que estiveram envolvidos no processo constitutivo do si mesmo. O acontecimento, na
ótica de Foucault, é aquilo que consolida as rupturas hegemônicas e, como força de
resistência, lança o sujeito para novas fronteiras sobre si mesmo.
Torna evidente que os jogos de verdade estão intrinsecamente ligados com os
acontecimentos que são devidamente representados pelo sujeito, esses princípios são
fundamentais para a experiência do sujeito. Revela-se, portanto, que a experiência do
sujeito é aquilo que extrai o sujeito da intransitividade e o conduz para a
transitividade, pois a experiência é aquilo que desvela a singularidade do sujeito
muitas vezes camuflada pela falsa ideia de igualdade que, na verdade, não passa de
um fator de homogeneização das subjetividades e dos sujeitos. É por meio da
experiência que a subjetivação é constituída: experienciar é constituir a si mesmo, é
forjar a subjetividade é alvorecer o governo de si.
Como mencionado anteriormente, o governo e a governamentalidade são temas
recorrentes na abordagem foucaultiana. Se no primeiro domínio foucaultiano o
governo se fundamenta na episteme, no segundo domínio os dispositivos ou a
genealogia são o cerne do governo e, por fim, a ética e a prática compõem o terceiro
traço da governamentalidade. Assim, identifica-se que em todos os domínios o
governo está presente no pensamento de Foucault. Na governamentalidade
foucaultiana, a conexão entre o sujeito e o outro, bem como a relação do sujeito com
as instituições prescritivas, além, é claro, do nexo entre as instituições prescritivas e o
121

sujeito são importantes para a compreensão do que Foucault destacou sobre


governo. O que se pode firmar é que a governamentalidade pode ser um fenômeno
castrador quando harmonizado com a pauta das instituições prescritivas, porém,
quando aplicada sobre si mesmo, pode ser um mecanismo valioso para o cuidado de si
e dos outros.
Outros termos foucaultianos carregam paradigmas conceituais extremamente
pertinentes, tais como: eros, saber, ciências humanas, confissão, conversão,
dispositivos, inconsciente, loucura, história, dentre outros. Porém, o recorte desta tese
é aplicar, ao viés da educação, termos foucaultianos que se articulem com possíveis
abordagens da hermenêutica do sujeito.
Relacionar, pois, alguns domínios foucaultianos com a filosofia da educação
brasileira pode ser um caminho virtuoso no que se refere à construção de mecanismos
que contribuam para a formação constitutiva da subjetividade do indivíduo,
principalmente no que se refere à hipótese desta tese, que é analisar o fenômeno da
educação em um método comparativo, seguindo a hipótese foucaultiana da
desconstrução da subjetividade do indivíduo para a constituição do ser em perspectiva
analítica e crítica filosófica. Para dar continuidade a essa empreitada reflexiva, o
próximo capítulo apresentará a análise sobre o livro “Hermenêutica do Sujeito”
(FOUCAULT, 2018), com o intuito de compreender o percurso presente na
constituição da subjetividade e a sua possível aplicação para o tema da educação..
122

3. HERMENÊUTICA DO SUJEITO: O TERCEIRO DOMÍNIO

FOCAULTIANO

Após apresentar as duas primeiras fases do pensamento de Michel Foucault,


bem como análise de estruturas sociais voltadas ao ramo da educação, faz-se
necessário apontar o terceiro domínio foucaultiano. O Foucault ético, como é
conhecida essa terceira fase, descreve, de modo ativo e protagonista, a constituição do
sujeito como resultado de relações de poder, e, posteriormente, o sujeito como autor
de si; lembrando que este aspecto está diametralmente ligado com a hipótese desta
tese que é a contribuição do ato de revisar as narrativas do cotidiano dos sujeitos
inseridos na educação formal, as quais podem indicar a idiossincrasia da constituição
da subjetividade dos indivíduos.
Este capítulo traz consigo a dobradiça para a retomada da hipótese central desta
tese, isto é, a transição entre a compreensão epistemológica dos conceitos
foucaultianos para adentrar na proposta de Foucault sobre a constituição da
subjetividade dos indivíduos. É, pois, neste recorte que se retoma e se aproxima do
horizonte deste trabalho, que é analisar o fenômeno da educação por um viés
comparativo, seguindo o pressuposto de Michel Foucault ao que se refere à
desconstrução da subjetividade do indivíduo com o intento de alcançar a constituição
do ser em perspectiva analítica e crítica.
Para tanto, essa seção terá como referencial teórico o texto “Hermenêutica do
Sujeito” (2018), o qual tem como problematização a ideia do cuidado de si. Para
clarear alguns conceitos foucaultianos serão utilizadas as obras de Castro (2014; 2016)
123

e Revel (2011), bem como de outros intérpretes do texto Foucaultiano como, por
exemplo, Alfredo Veiga-Netto (1996; 2007) entre outros. A fundamentação teórica se
dará na leitura do texto foucaultiano (2018) e o confronto com os intérpretes e outros
teóricos da filosofia da Educação.
Essa seção inicia com a temática do terceiro domínio foucaultiano, tema este
que foi preliminarmente tratado no capítulo anterior, todavia o esforço deste capítulo
será apresentar a dimensão do Foucault ético e sua maneira interpretar o sujeito, bem
como as relações que cercam o ser. Em seguida o esforço deste capítulo será
apresentar as fases do cuidado de si, bem como a importância da filosofia e da
espiritualidade para a efetivação real do cuidado de si e do conhecimento de si.
Em seguida, esta tese tangenciará o tema foucaultiano da estética da existência,
apontando as principais características deste fenômeno e como essa percepção é
fundamental para o cuidado de si. Adiante, será destacada a importância do outro
nesse processo do cuidado de si a fim de tirar o sujeito da condição de stultus. Para
efetivar o cuidado de si, essa tese apontará outros dois temas importantes: a parresia e
o ato de escutar. Esses são tópicos importantes para que o sujeito desperte as forças
centrífugas (saindo de si), e, dessa maneira, apontando para as forças centrípetas (para
dentro de si). Por fim, este capítulo apontará algumas provocações ao que se refere à
heterotopia do cuidado de si. Há que se destacar que a ideia de heterotopia, para
Foucault (2018), não está cativa ao não lugar, em vez disso, a práticas que
potencializem as possibilidades. Não é uma miragem, é, por si, um devir.
Assim, com este capítulo espera-se apresentar os meandres da abordagem
foucaultiana e a fim de aglutinar referencial teórico com fôlego para articular temas da
educação contemporânea com a filosofia de Michel Foucault. Espera-se, portanto,
observar até que ponto a educação contemporânea está preocupada em formar pessoas
úteis e pragmáticas, mas indispostas à reflexão, análise e crítica da realidade. Buscará
apropriar-se da filosofia foucaultiana para delinear um viés que eduque sem
(de)formar.

III.1 O terceiro Domínio foucaultiano


A complexidade do terceiro eixo foucaultiano fundamenta-se, sobretudo, na
subjetividade do sujeito, de modo que seu compromisso é colocar em análise as
relações de ser consigo e com os outros, logo essa perspectiva caminha por um viés
124

ético. Conforme citou Deleuze referente à abordagem foucaultiana: “é dentro do


próprio homem que é preciso libertar a vida, pois o próprio homem é uma maneira de
aprisioná-la”. (1991, p. 99). Um caminho que tem origem em si mesmo, o que foi
denominado por Foucault como “o cuidado de si”, epimeleia heautou.

O desafio proposto por Foucault é que não é possível a ideia de epimeleia


heautou (cuidado de si) se não houver o gnôthi seautón (conhece a ti mesmo).
Foucault afirma que o cuidado de si, mais do que estar atrelado com a ideia de
conhecimento de si, é princípio fundamental para a ideia de conhece-te a ti mesmo.
Deste modo é bem mais como uma espécie de subordinação relativamente ao preceito
do cuidado de si que se formula a regra “conhece a ti mesmo” (FOUCAULT, 2006). O
filósofo francês demonstra que o anseio do cuidado de si é imperativo à ideia do
conhecer a si mesmo, como segue:

[...] o gnôthi seautón (conhece-te a ti mesmo) aparece, de maneira


bastante clara e, mais uma vez, em alguns textos significativos, no
quadro mais geral da epimeléia heautoû (cuidado de si mesmo),
como uma das formas, uma das consequências, uma espécie de
aplicação concreta, precisa e particular, da regra geral: é preciso que
te ocupes contigo mesmo, que não te esqueças de ti mesmo, que
tenhas cuidados consigo mesmo. É neste âmbito, como que no limite
deste cuidado, que aparece e se formula a regra ‘conhece-te a ti
mesmo (FOUCAULT, 2018, p. 6)
Nesse trecho do livro “Hermenêutica do Sujeito” (2018), acentuam-se ao
menos duas proposições: em primeiro lugar a noção de que o conhecimento de si é um
dos requisitos para quem cuida de si mesmo. Só é possível o inteirar-se de si se o “eu”
é o foco da ocupação do sujeito. Não é entrar em um mundo marcado pelo egoísmo,
outrossim, ater-se a ipseidade, a singularidade de si, sem desprender-se do mundo em
que está inserido. Articular essa proposta com o texto platônico do Alcibíades
Primeiro revela o quanto o sujeito está preocupado com as conjunturas externas,
sociais, políticas, todavia não se atenta ao principal agente das relações: o si mesmo.
O segundo aspecto a ser destacado neste trecho, bastante articulado com o primeiro
ponto, é que Foucault (2018) introduz em seu pensamento o tema do cuidado de si,
para tanto, apropria-se de textos da Antiguidade, especificamente da Grécia Antiga,
para fundamentar a hipótese de cuidado de si. Em perspectiva foucaultiana, o cuidado
de si é inaugurado pelos gregos. Analisar textos de política, ética, felicidade, prazer,
contentamento, virtude, na perspectiva foucaultiana, nada mais é do que um esforço
do sujeito sobre si mesmo que, posteriormente, desemboca em uma relação social.
125

Para desenvolver sua teoria, o filósofo demonstra alguns princípios do


cuidado de si. Em primeiro lugar, Foucault cita como os gregos se preocupavam em
administrar suas cidades, assim, desenvolviam práticas sobre os corpos, logo se
entende a funcionalidade das leis da cidade. Um poder vinculado diretamente com a
produção política. Em segundo lugar, o grego busca produzir a economia da cidade.
Distinguir e estipular os melhores e principais meios de produção que geraria a
viabilidade da “pólis”. Foucault problematiza um terceiro aspecto que seria o cuidado
de si. Para o filósofo, é impossível refletir sobre política e economia se não houver um
esforço sobre o poder em si próprio. Foucault descreve que “quem pretenda governar
aos outros deve governar-se a si mesmo, e, portanto, ocupar-se de si. [...] o
conhecimento de si” (FOUCAULT, 2018, p. 101). O cuidado sobre si mesmo é algo
que exige técnica e empenho, como afirma Foucault:

Em toda filosofia antiga o cuidado de si mesmo foi considerado, a


um tempo, como um dever e como uma técnica, uma obrigação
fundamental e um conjunto de procedimentos cuidadosamente
elaborados (FOUCAULT, 1997, p. 122).
Para desenvolver este poder ou este cuidado em si mesmo, o sujeito trava uma
luta consigo mesmo. O ser humano só pode se constituir livre se realizar o si próprio
como campo de batalha, entrar em conflito consigo de modo que o sujeito passe a
fazer sua própria força ativa, despertar seu conatus6. O realizar a si próprio é colocar
em xeque o si próprio e, por diante, quebrar as forças que determinam e se opõem
sobre as forças ativas ou forças de potências. A ideia de cuidado de si foucaultiano
carrega peculiaridades interessantes. Se a proposta do cuidado de si presente em
Alcibíades é relativo a um jovem que pertence à aristocracia que tem como intuito o
governo da cidade, logo, uma função política, Foucault demonstra, já no século I e II,
que o cuidado de si ganha abrangência tanto de quem pratica essa técnica sobre si,
como a finalidade desta ação, tema que será tratado posteriormente.

Independente do período do cuidado de si, o que toca os dois momentos é a


intencionalidade de proporcionar ao sujeito o enfrentamento à inquietude da alma,
bem como a inferência para cuidar de si é necessário conhecer a si. Foucault propõe
que, dentro da Antiguidade, Sócrates, como se destacou no texto “Alcibíades

6
O termo conatus está ligado a ideia de Baruch Espinosa como elemento que faz o ser
preservar a sua existência, sua essência. Cf. ESPINOSA, B. Ética. São Paulo, Perspectiva,
2009.
126

Primeiro”, ocupou-se deste papel de fomentar a inquietude na alma (ataraxia) 7. Já


no período de ouro, textos dos helenistas remodelaram, reinterpretaram e deixaram
disponível o cuidado para todo aquele que se interessasse consigo mesmo. Vejamos
algumas etapas do cuidado de si propostas por Foucault.

III.1.1 Fases da Epimeleia Heautou (cuidado de si)

Michel Foucault busca na Antiguidade grega alguns caminhos para


compreender a dimensão do cuidado de si (epimeleia heatou8). Explicita-se que a
prática de si identifica-se e incorpora-se com a própria arte de viver – a techne toû
bíou – (FOUCAULT, 2018). O projeto foucaultiano é apresentar como o cuidado de si
está para além da relação com o conhecimento formal, isto é, que envolve política,
economia e moral. O cuidado de si é uma técnica que o sujeito aplica sobre si mesmo,
é uma construção da história da subjetividade e transformação e formação da própria
cultura da relação que o sujeito traça consigo mesmo (CASTRO, 2004). A título
conceitual, pode-se afirmar que:

A expressão “cuidado de si”, que é uma retomada do epimeleia


heautou que se encontra, em particular, no Primeiro Alcebíades, de
Platão, indica, na verdade, o conjunto das experiências e das técnicas
que o sujeito elabora e que o ajuda a transformar-se a si mesmo. No
período helenístico e romano sobre o qual se concreta rapidamente o
interesse de Foucault, o cuidado de si inclui a máxima délfica gnôthi
seauton, mas a ela não se reduz: o epimeleia heautou corresponde
antes a um ideal ético (fazer de sua vida um objeto de teknê, uma
obra de arte) que a um projeto de conhecimento em sentido estrito
(REVEL, 2011, p. 138).
Foucault dedica seu livro Hermenêutica do Sujeito para descrever um caminho
para o cuidado de si. Para esse percurso, o autor divide o que é denominado como
Antiguidade e Antiguidade Tardia em três momentos, a saber: período socrático-
platônico, Era de Ouro (sec. I e II) e passagem do ascetismo pagão para o ascetismo
cristão. Nesse movimento histórico, Foucault demonstra como o cuidado de si assume
entornos teóricos e conceituais bastante peculiares, como será descrito posteriormente.

A primeira etapa é o momento socrático em que a exigência do cuidado de si


faz sua aparição na reflexão filosófica. O momento socrático-platônico, observa

7
O termo ataraxia significa a não perturbação da alma. Seja com notícias positivas ou
negativas, o sujeito tem a capacidade de controlar suas emoções, seus desejos.
8
O termo epimeleia heautou é a expressão grega para o cuidado de si. Está ligado com a
ideia do quanto o sujeito dedicará tempo para si, sobre si, a partir de si.
127

Foucault, se caracteriza, precisamente, por um paradoxo: a subordinação do


cuidado de si ao conhecimento de si. Esse conhecimento, é necessário sublinhá-lo, não
tem, contudo, nem a forma nem o conteúdo da hermenêutica cristã do sujeito, isto é,
um trazer para dentro de si práticas externas regidas pela legalidade e moralidade
religiosa, em vez disso, o conhecimento proposto pelo pensador francês é apontar o
conhecimento profundo de si mesmo, não dos desdobramentos de si (FOUCAULT,
2018).

No período socrático-platônico, o texto base para apresentar seu caminho


analítico é o “Primeiro Alcibíades” de Platão. Nesse texto, fica claro o encontro entre
Sócrates e seu discípulo – que poderia ser chamado amante – e como o diálogo entre
os dois se dá na fase adulta de Alcibíades, que desenvolverá sua vida profissional na
política. Sócrates demonstra que, ao mesmo tempo que Alcibíades quer entrar na
política e governar os outros, por outro lado o jovem não tem conhecimento sobre si e
não tem o cuidado necessário sobre si. A problemática levantada por Sócrates é: como
alguém pode governar os outros se não tem governo sobre si mesmo?

Por este caminho é interessante notar que o conhecimento de si não é uma via
de adjetivações positivas ou negativas, isto é, do que gosta de comer, aonde gosta de
ir, o que gosta de fazer etc, em vez disso, a ideia da máxima délfica envolve uma
profundidade: a alma9 como sujeito. Como destaca Foucault, “o cuidado de si implica
uma certa maneira de estar atento ao que se pensa e ao que se passa no pensamento”
(2018, p. 12). Logo, é um movimento centrípeto e centrífugo, ao passo que pensar
sobre si, ao mesmo tempo, o cuidado de si “designa sempre algumas ações, ações que
são exercidas de si para consigo, ações pelas quais nos assumimos, nos modificamos,
nos purificamos, nos transformamos e nos transfiguramos” (2018, p. 12). Assim, não
dá para não associar o ‘conhece a ti mesmo’ do ‘cuidado de si’.

Foucault destaca ao menos três características encontradas no texto de


Alcibíades I que auxiliam na especificidade deste período do cuidado de si. Em
primeiro lugar, “devem ocupar-se consigo mesmos os jovens aristocratas destinados a
exercer o poder” (2018, p. 75); em segundo lugar, “o cuidado de si tem um objetivo,
uma justificação precisa: trata-se de ocupar-se consigo a fim de poder exercer o poder
ao qual se está destinado, como se deve, sensatamente, virtuosamente” (2018, p. 76);

9
O termo alma é conceituado por Foucault na obra Vigiar e Punir, em que para o autor a
alma é elemento apriorístico na constituição do ser.
128

em terceiro lugar “o cuidado de si tem como forma principal, senão exclusiva, o


conhecimento de si: ocupar-se consigo é conhecer-se” (2018, p. 76).

A segunda etapa é a idade de ouro do cuida-te a ti mesmo nos séculos I e II


(desde o estoicismo romano, representado por Musonius Rufus até Marco Aurélio).
Essa classificação foucaultiana se dá a partir do momento em que o sujeito passa a
refletir sobre si não pelas contingências externas, sejam elas quaisquer que forem
(adultidade, política), mas, em vez disso, o sujeito pensa sobre si a partir da máxima
ética. É a fase de ouro para Foucault, pois a reflexão do sujeito se constitui a partir d as
orientações para o governo de si mesmo (FOUCAULT, 2018). Neste viés, percebe-se
que para a efetivação do cuidado de si, exige-se do sujeito um maior nível de técnica,
de conhecimento. Foucault afirma que o cuidado de si se converte em ‘techne tou
biou’ (2018) (técnica de vida). O sujeito tem como intuito voltar-se para si mesmo, a
fim de conhecer a si mesmo, o eu é encharcado de axiomas.

Se no período socrático a ideia do cuidado de si era restrito apenas aos jovens


com projeções aristocráticas, na fase de ouro o cuidado de si ou “ocupar-se consigo
tornou-se um princípio geral e incondicional, um imperativo que se impõe a todos,
durante todo o tempo e sem condição de status” (FOUCAULT, 2018, p. 76). Se o
intento, no período socrático-platônico, o ocupar-se consigo era para o governo da
pólis, na fase de ouro “se ocupar consigo agora, é por si mesmo e com finalidade em
si mesmo” (FOUCAULT, 2018, p. 76). Enquanto o texto de Alcibíades aponta para a
dimensão do conhecimento de si, a fase de ouro amplia a ideia de conhecimento de si,
“integrou-se no interior de um conjunto, um conjunto bem mais vasto” (FOUCAULT,
2018, p. 77), pois envolve exercícios sobre si, olhar para si, conversão para si,
reivindicar a si, curar a si” (FOUCAULT, 2018). Segundo Castro, o cuidado de si da
idade de ouro:

Estende-se temporalmente. Já não concerne somente a quem


abandona a adolescência para ingressar na vida política, mas à vida
toda do indivíduo. Quanto à finalidade, já não está dirigido a
governar a pólis, mas em relação consigo mesmo. Trata-se de uma
espécie de autofinalização do cuidado de si; em relação às técnicas
do cuidado, não se trata só nem fundamentalmente de conhecimento,
mas de um conjunto muito mais vasto de práticas (2004, 93-94).
Foucault destaca que o cuidado de si na fase de ouro evidencia certa
generalização fundamentada em dois eixos basilares: primeiro, a generalização da
própria vida do indivíduo – sua existência. Quando se trata da generalização da
129

existência, o filósofo francês aponta que o cuidado de si não se dá em alguns


momentos ou ocasiões, não é uma ação restrita a uma oportunidade ou situação
específica, em vez disso, é um processo que acompanha o todo do sujeito em um
ponto nevrálgico do sujeito. O cuidado de si, o ocupar-se consigo é um esforço que
acompanhará o todo do indivíduo em decisões que terão impacto significativo em sua
existência.

Assim “o cuidado de si é uma obrigação permanente que deve durar a vida


toda” (FOUCAULT, 2018, p. 80). Em segundo, a generalização do cuidado de si para
todos os indivíduos, considerando algumas restrições pertinentes, isto é, ainda que o
cuidado de si seja uma possibilidade a todos, Foucault destaca dois pontos que
limitam o acesso, isto é “duas eram as formas de exclusão, de rarefação por assim
dizer, relativamente à incondicionalidade do princípio, a saber: ora o pertencimento a
um grupo fechado [...], ora a capacidade de praticar o otium, a skholé, o ócio
cultivado, o que representava uma segregação de tipo mais econômico e social” (2018,
p. 114).

Nessa fase de ouro, Foucault destaca que o cuidado de si está intimamente


ligado com a dimensão formadora e corretiva, pois “a prática de si terá um papel
corretivo tanto, ao menos, formador. Não se trata, absolutamente de dizer que o papel
da prática de si será somente crítico. O elemento formador continua existindo sempre,
mas será vinculado de modo especial à prática da crítica” (2018, p. 85). A ênfase dada
na leitura foucaultiana sobre o texto platônico é que fica evidente que Alcibíades
ignora que não sabe, logo, o papel do cuidado de si, bem como daquele que auxiliará
no despertar do sujeito (tema que será tratado posteriormente), é importante nessa
etapa, pois o ocupar-se consigo está para além de funções técnicas, profissionais,
políticas ou quaisquer outras, haja vista que:

Na prática de si que vemos desenvolver-se no decurso do período


helenístico e romano, ao contrário, há um lado formador que é
essencialmente vinculado à preparação do indivíduo, preparação
porém não para determinada profissão ou de atividade social: não se
trata, como no Alcibíades, de formar o indivíduo para tornar-se um
bom governante; trata-se, independentemente de qualquer
especificação profissional, de formá-lo para que possa suportar,
como convém, todos os eventuais acidentes, todos os infortúnios
possíveis, todas as desgraças e todos os reveses que possam atingi-lo
(2018, p. 85-86).
130

Esse aspecto formador está vinculado diretamente com a dimensão


corretiva, pois em vez de tangenciar a ignorância, “a ignorância que ignora a si
mesma” (2018, p. 86), Foucault destaca uma formação que confronta a deformação
presente no sujeito que ecoa em maus hábitos. Mais do que formação para saber, a
fase de ouro aponta para um elemento de correção-liberação. Em outras palavras, é
uma jornada para dentro de si, onde, de fato, os verdadeiros males existem, pois “não
se deve acreditar que o mal foi imposto a nós do exterior; não está fora de nós
(extrensecus), está em nosso interior (intra nos est). O mal está, pois, em nossas
vísceras” (FOUCAULT, 2018, p. 86). Nessa direção, a prática de si é uma arte para
expulsar, expelir, retirar o mal que está na interioridade do sujeito.

Foucault aproxima a ideia do cuidado de si da era de ouro com o campo


semântico da medicina. Da mesma forma que é mais fácil e proveitoso cuidar de uma
patologia quando se descobre em sua origem, os resultados do cuidado de si são mais
eficientes quando aplicados na juventude. Dedicar-se ao cuidado de si na juventude é
a maneira adequada para se preparar para o envelhecimento sadio. Como destaca
Foucault, “certamente, é muito mais fácil corrigir-se quando se assume esse mal no
período em que se é ainda jovem e tenro e o mal não está ainda incrustrado” (2018, p.
86). Ao cuidar de si na juventude, a virtuosidade torna-se uma possibilidade, pois o
sujeito vive em constante ato de correção, haja vista que “a prática de si deve corrigir,
não formar, ou não apenas formar; deve também, e principalmente, corrigir, corrigir
um mal que está lá” (FOUCAULT, 2018, p. 86). Ao passo que a correção é constante,
é viável para o sujeito “tornar-se o que poderia ter sido e nunca foi” (FOUCAULT,
2018, p. 86).

Na fase de ouro, a premissa de desaprender vícios e aprender virtudes ganha


novos entornos, porque o sujeito é imbuído de uma realidade que o desperta a
enfatizar o aspecto terapêutico do cuidado de si. Foucault aponta que aprender as
virtuosidades engrandecem o sujeito, na mesma medida que ter condições de
desaprender os vícios é imprescindível, isto é, uma reformação crítica que contemple
o ato de desaprender o “ensino recebido, aos hábitos estabelecidos e ao meio” (2018,
p. 87). O cuidado de si é uma atitude de “reverter inteiramente o sistema de valores
veiculados e impostos” (2018, p. 87) que limita o sujeito e que pode acontecer em
todas as suas facetas relacionais e afetivas. Assim, a fase de ouro é marcada por esse
131

ascetismo que convida o sujeito, com todas as suas contingências, a um giro para
si mesmo.

Ao que se refere à terceira etapa, descrito por Foucault como a passagem do


ascetismo pagão para o ascetismo cristão dos séculos IV e V (2018), alguns pontos
importantes podem ser elencados. Se a ascese filosófica “não está orientada à renúncia
a si mesmo, mas a constituição de si mesmo; não está regulada pelos sacrifícios, mas
pelo dotar-se de algo que não se tem; não busca ligar o indivíduo à lei, mas o
indivíduo a verdade” (CASTRO, 2016, p. 45), a ascese cristã é oposta, isto é: busca a
renúncia de si mesmo; enfatiza o sacrifício como meio de purificação e salvação;
dogmatiza as práticas de si, legitimando a lei (nomos) como paradigma absoluto.

Se por um lado a ascese relacionada à fase de ouro vincula-se diretamente com


a ideia de constituição de si mesmo, em que o sujeito pudesse tangenciar a si mesmo,
formando-se, criticando-se, tornando-se, a proposta da ascese cristã está diretamente
atrelada com uma normativa pastoral, logo, moralizante e embebida de fundamentos
dogmáticos presentes no texto bíblico. A ideia não é o sujeito voltar para si; em vez
disso, implica a ruptura e a renúncia a si mesmo, uma espécie de purificação de si
mesmo por meio da obediência, diferente da ideia de conversão e mudança presente
no helenismo romano, que pretendia fazer com que o sujeito chegasse ao patamar de
‘senhor de si mesmo’, nesta terceira fase, “não é possível conhecer a verdade nem
conhecer-se a si mesmo sem a purificação de si mesmo, do coração” (CASTRO, 2016,
p. 95).

Outros dois aspectos ganham destaque nesse período da passagem da ascese


pagã para a ascese cristã: a prática de si contribui para que o sujeito consiga enfrentar
suas tentações, seus desejos, seus intentos que o interpelam para sair da normatização
que cristaliza as condutas, logo, é uma tentativa de enfrentamento às tentações, de
impor-se contra o pecado que se instaura no sujeito; outra característica é a negação
total de si mesmo, ou seja, o cuidado de si é uma forma para sair de si e nunca voltar
para si mesmo, permanecendo em um estágio inalienável a si mesmo, a fim de manter
a alma em um estado de sacralidade e pureza, como destaca Foucault:

É essa forma que reencontraremos no cerne mesmo do cristianismo,


rearticulada em torno do problema da Revelação, da fé, do Texto da
graça etc. O importante, porém – e é o que pretendia hoje realçar – é
que foi já nessa forma com dois elementos (universalização do apelo
e raridade da salvação) que se teria problematizado no Ocidente a
questão do eu e da relação consigo. Em outros termos, digamos que
132

a relação consigo, o trabalho de si para consigo, a descoberta de


si por si mesmo, foram concebidos e desdobrados, no Ocidente,
como a via, a única possível, que conduz da universalidade de um
apelo que, de fato, só pode ser ouvido por alguns, à raridade da
salvação da qual, contudo, ninguém está originariamente excluído. É
esse jogo entre um princípio universal que só pode ser ouvido por
alguns e a rara salvação da qual, contudo, ninguém se acha a priori
excluído, que estará, como sabemos, no cerne da maioria dos
problemas teológicos, espirituais, sociais, políticos do cristianismo
(2018, p. 108).
Após retratar estas três fases, Foucault estabelece uma provocação presente na
abordagem racionalista, iluminista e positivista, as quais abriram mão do cuidado de
si, para ater-se exclusivamente nas evidências propostas pelas novas ciências. Tratar
do cuidado de si em categorias foucaultianas é ponderar o que foi esquecido ou ao
menos desprezado a partir do século XV. Ao considerar o racionalismo como o meio
exclusivo para dar respostas às questões humanas, bem como considerar as
experiências humanas como eixo fundante para uma episteme bem-sucedida, deixou-
se de lado a dimensão interna do eu. Nota-se que a ciência passou a responder
questões quantitativas, porém deixou de lado a essencialidade ou os aspectos
qualitativos do sujeito. O que Foucault denominou como momento cartesiano envolve
alguns aspectos importantes, dentre eles o desprezo à dimensão transcendental que a
espiritualidade inerente a filosofia proporciona ao sujeito.

Junto com a proposta planificada do método cartesiano, estabeleceu-se a


desqualificação do conhece a ti mesmo, ao passo que é um princípio que não se
encaixa na materialização presente no momento cartesiano, pois o que é denominado
como evidência, análise, ordenação e revisão não são suficientes para responder às
densidades presentes no sujeito. É mais fácil tornar a alma uma substância e assim
quantificar seus movimentos, do que interpretar a alma como sujeito, a qual não é
quantificável, mas sim, agente ativo imbuída do devir filosófico.

Ao elencar três etapas da ideia do cuidado de si, Foucault se apropria dos


termos filosofia e espiritualidade como uma ferramenta hermenêutica para analisar a
subjetivação do sujeito. Para adentrar nesta temática, é preciso descrever o que
Foucault compreende por filosofia e espiritualidade.
133

III.1.2 O conceito de Filosofia e Espiritualidade em Foucault

Em seu livro Hermenêutica do Sujeito, Foucault inicia a discussão definindo


sua compreensão de filosofia. Indo além dos conceitos elementares, convencionais e
até mesmo tradicionais o autor propõe:

Chamemos de filosofia, se quisermos, essa forma de pensamento que


se interroga, não certamente sobre o que é verdadeiro e sobre o que é
falso, mas sobre o que faz com que haja e possa haver verdadeiro e
falso, sobre o que nos torna possível ou não separar o verdadeiro do
falso. Chamemos de filosofia a forma de pensamento que se
interroga sobre o que permite ao sujeito ter acesso à verdade, forma
de pensamento que tenta determinar as condições e os limites de
acesso do sujeito à verdade (2018, p. 15).
O primeiro destaque a que se refere a definição do autor é a despreocupação da
filosofia em afirmar categoricamente o que é verdadeiro e falso. Se durante muitos
séculos os filósofos e cientistas tentaram discernir com precisão o que é genuíno do
que é errôneo, Foucault, por sua vez, não se preocupa com a definição do termo em si,
em vez disso, ele aponta que o mais relevante é compreender o que leva o sujeito a
nominar determinado evento ou fenômeno de verdadeiro ou errado. A preocupação da
filosofia foucaultiana está na consciência que forma a subjetivação do sujeito.

O destaque de sua definição se encontra na forma de alterar o ponto de partida


para o processo reflexivo e analítico. A filosofia não tem uma verdade, não carrega
verdade, em vez disso é uma postura que interroga, que se coloca em diálogo não com
o fato posto, todavia com aquilo que forjou a compreensão do sujeito do que é posto
como verdade. Mais do que analisar o evento por si só, mais do que adjetivar se o que
foi feito, praticado ou realizado é verdadeiro ou falso, moral ou imoral, certo ou
errado, é compreender o percurso da subjetividade do sujeito e como ela se articula e
ressignifica tais fenômenos.

Na sequência, outro aspecto que salta na definição do filósofo está na


expressão “forma de pensamento que se interroga sobre o que permite ao sujeito ter
acesso à verdade”. Nessa afirmação, Foucault demonstra que o trabalho da filosofia
não está em encontrar respostas, mas problematizar, questionar, arguir sobre a
constituição e subjetivação do sujeito a fim de que a verdade saia de um espaço
meramente metafísico.

Ainda ao que tange a filosofia, Foucault aponta que ela é “a forma de


pensamento que tenta determinar as condições e os limites de acesso do sujeito à
134

verdade”. Nesta última afirmação, o pressuposto básico é interagir com as


potencialidades e limitações inerentes ao ser humano no que concerne à busca da
verdade. O segundo aspecto da filosofia em categorias foucaultianas é sua atitude de
fronteira, isto é, ao passo que se distingue a verdade do que não é verdadeiro, discernir
qual é o limite humano diante do que está posto. Estabelecida a definição da filosofia
como forma de pensamento, em seguida seu esforço é apresentar a definição de
espiritualidade como:

O conjunto de buscas, práticas e experiências tais como as


purificações, as asceses, as renúncias, as conversões do olhar, as
modificações de existência etc, que constituem, não para o
conhecimento, mas para o sujeito, para o ser mesmo do sujeito, o
preço a pagar para ter acesso à verdade (2018, p. 15).
O filósofo considera a ideia de espiritualidade a partir da inter-relação que o
sujeito estabelece consigo mesmo. É por meio da espiritualidade que o sujeito se
desprende de ídolos pré-estabelecidos e tem um esforço significativo em direção à
verdade, pois “a espiritualidade é o que diz respeito às transformações que o sujeito
deve sofrer para ter acesso à verdade" (SUGIZAKI; ROSA. 2008, p. 210).

A espiritualidade, em categorias foucaultianas, é a maneira que o sujeito


encontra para caminhar rumo a si mesmo. É por meio da espiritualidade que o sujeito
colocará o eu como centro de sua tarefa. É o conhecimento de si mesmo, o circuito
que o sujeito faz para adentrar em si mesmo, a fim de que a verdade seja uma
possibilidade constituída. Para tanto, três características básicas são postas por
Foucault a respeito da espiritualidade, a saber: (i) A verdade não está no sujeito e este
necessita da verdade a qual é alcançada por meio da espiritualidade; (ii) a
espiritualidade é imbuída de um devir que metamorfoseia o sujeito; (iii) nesse jogo de
transformações e modificações, a verdade é inserida na essência do sujeito como
lamparina da existência. Vejamos esses pontos.

O primeiro aspecto está relacionado com a ideia de que a espiritualidade não é


algo natural ao sujeito, mas sempre tarefa a se fazer. Em outras palavras, é uma força
externa que atrai o indivíduo, a fim de, ao deslocar o sujeito de si mesmo, possa, nessa
tensão, lançá-lo para dentro de si. Quando Foucault afirma que a verdade não está no
sujeito, não pertence ao ser-em-si, é uma crítica à ideia racionalista em que a verdade
é inerente ao ser e que basta apenas o sujeito evidenciar aquilo que a intuição por si só
135

pode revelar. Romper com essa áurea racionalista é uma das características da
espiritualidade que lança o sujeito para fora de si mesmo. Na perspectiva foucaultiana:

A espiritualidade postula que a verdade jamais é dada de pleno


direito ao sujeito. A espiritualidade postula que o sujeito enquanto
tal não tem direito, não possui capacidade de ter acesso à verdade.
Postula que a verdade jamais é dada ao sujeito por um simples ato de
conhecimento, ato que seria fundamentado e legitimado por ser ele o
sujeito e por ter tal e qual estrutura de sujeito. Postula a necessidade
de que o sujeito se modifique, se transforme, se desloque, torne-se,
em certa medida e até certo ponto, outro que não ele mesmo, para ter
direito ao acesso à verdade (2018, p. 16).
Para Foucault, a espiritualidade é uma conquista feita com esmero e dedicação
por parte do sujeito. Não é uma recompensa inerente à condição humana ou uma
herança por sua racionalidade, bem como a verdade não é um fato atrelado
exclusivamente com o conhecimento – haja vista a finitude e limitação do próprio
conhecimento. Segundo Foucault, a espiritualidade é o que movimenta o ser a fim de
que a verdade seja tangenciada. É por meio da espiritualidade que o sujeito sai de si e,
assim, encontra-se com o outro postulando: a verdade como possibilidade. Este
primeiro aspecto destaca a necessidade de quebra de paradigmas, de dogmas
cristalizados pela racionalidade ou prepotência egocêntrica presente nas produções
acadêmicas, científicas e/ou religiosas. A proposta do filósofo francês é que o sujeito
consiga sair de si para experienciar uma real transformação em si.

O segundo aspecto elencado por Foucault sobre espiritualidade na antiguidade


ocidental está vinculado com a premissa de que o sujeito carece de um movimento de
conversão. Para o autor, só há verdade se houver uma grande conversão ou
transformação do sujeito. O devir se torna um imperativo ao passo que equaciona dois
termos fundantes na constituição do sujeito, bem como para a espiritualidade, a saber:
éros (amor) e áskesis (ascese). Se por um lado o sujeito é explosão de sentimentos, de
pulsões, de amor, por outro, esse processo se torna legítimo na jornada do si para si
mesmo. Esse devir transforma o sujeito e sua subjetivação, como destaca Foucault:

Essa conversão, essa transformação [...] o segundo grande aspecto da


espiritualidade [...] que essa conversão pode ser feita sob a forma de
um movimento que arranca o sujeito de seu status e de sua condição
atual (movimento de ascensão do próprio sujeito; movimento pelo
qual, ao contrário, a verdade vem até ele e o ilumina). Chamemos
esse movimento, também muito convencionalmente, em qualquer
que seja seu sentido, de movimento do éros (amor). Além dessa,
outra grande forma pela qual o sujeito pode e deve transformar-se
para ter acesso à verdade é um trabalho. Trabalho de si para consigo,
elaboração de si para consigo, transformação progressiva de si para
136

consigo em que se é o próprio responsável por um longo labor


que é o da ascese (áskesis) (2018, p. 16).
O terceiro ponto relacionado à espiritualidade da antiguidade ocidental está
atrelada à ideia de que a verdade é a iluminação ou esclarecimento (Aufklärung). O
destaque está para o pressuposto de que esta iluminação não está na recompensa da
ascese, em vez disso, é por meio da iluminação que o sujeito consegue desenvolver a
tekhne tou biou, o que foi denominado por Foucault de retorno da verdade sobre o
sujeito, como descreve o filósofo:

Para a espiritualidade, a verdade não é simplesmente o que é dado ao


sujeito a fim de recompensá-lo, de algum modo, pelo ato de
conhecimento e a fim de preencher este ato de conhecimento. A
verdade é o que ilumina o sujeito; a verdade é o que lhe dá beatitude;
a verdade é o que lhe dá tranquilidade da alma. Em suma, na verdade
e no acesso à verdade, há alguma coisa que completa o próprio
sujeito, que completa o ser mesmo do sujeito e que o transfigura. [...]
para a espiritualidade, um ato de conhecimento, em si mesmo,
jamais conseguiria dar acesso à verdade se não fosse preparado,
acompanhado, duplicado, consumado por certa transformação do
sujeito, não do indivíduo, mas do próprio sujeito no seu ser de
sujeito (FOUCAULT, p. 20-21).
A provocação foucaultiana se dá em afirmar o devir, isto é, o movimento
transformador que a verdade causa. Ao sair de si mesmo para aquilo que a verdade lhe
proporciona, o sujeito suspende sua condição completa e formada, para o
deslumbramento proporcionado pela verdade. Essa conversão é imbuída de amor
(éros), já que o sujeito amplia seus horizontes sobre si mesmo, e trabalho (ergon), pois
o si mesmo só é alcançado depois de um percurso exaustivo e denso ao que se refere a
encontrar e fazer a si mesmo. Um devir que não é repentino, muito menos instantâneo,
mas que é forjado aos poucos. Nesse trabalho paulatino em que o ‘retorno’ é
potencializado:

Enfim, a espiritualidade postula que, quando efetivamente aberto


acesso à verdade produz efeitos que seguramente são consequências
do procedimento espiritual realizado para atingi-la, mas que ao
mesmo tempo são outra coisa e bem mais: efeitos que chamarei de
‘retorno’ da verdade sobre o sujeito. Para a espiritualidade, a
verdade não é simplesmente o que é dado ao sujeito a fim de
recompensá-lo, de algum modo, pelo ato de conhecimento e a fim de
preencher esse ato de conhecimento. A verdade é o que ilumina o
sujeito; a verdade é o que lhe dá beatitude; a verdade é o que lhe dá
tranquilidade de alma (2018, p. 16).
A espiritualidade faz com que a verdade não seja uma recompensa que o
sujeito busca, como por exemplo, o salário no fim do mês, ou a nota no fim do
semestre ou o coração da amada depois do empenho de conquista. Foucault demonstra
137

que a verdade é mais do que uma gratificação é, sobretudo, aquilo que pautará a
música existencial do sujeito, isto é, a verdade é o pentagrama que estabelecerá o
andamento rítmico do sujeito, a melodia que embelezará sua singularidade, bem como
a harmonia que sustentará sua ipseidade em tempos de homogeneizações.

Se, para Foucault, filosofia é o ato de compreender o que faz a verdade ser
considerada verdade, a espiritualidade é a maneira como essa verdade é encontrada,
transformada e introduzida na vida do sujeito. A espiritualidade é a efetivação da
filosofia, como destaca o pensador francês:

Resumindo, acho que podemos dizer o seguinte: para a


espiritualidade, um ato de conhecimento, em si mesmo e por si
mesmo, jamais conseguiria dar acesso à verdade se não fosse
preparado, acompanhado, duplicado, consumado por certa
transformação do sujeito, não do indivíduo, mas do próprio sujeito do
seu ser de sujeito (2018, p. 17).
Portanto, nas três características da espiritualidade ocidental antiga, identifica-
se um processo dialético, pois, aquilo que não é nato do ser humano, que exige uma
conversão radical do sujeito, para que, em processo, o sujeito possa ser iluminado em
sua jornada a si mesmo e encontre o sentido do que é o conhecer a ti mesmo como um
desdobramento do cuidado de si, estabelece uma aproximação quase inexorável entre
verdade e espiritualidade, pois é perceptível um entrelaçamento profundo entre
verdade e espiritualidade. Deste modo, Foucault problematiza:

[...] se definirmos a espiritualidade como o gênero de práticas que


postulam o sujeito, tal como ele é, não é capaz de verdade, mas que a
verdade, tal como ela é, é capaz de transfigurar e salvar o sujeito,
diremos então que a idade moderna nas relações entre sujeito e
verdade começa no dia em que postulamos o sujeito, tal como ele é,
é capaz de verdade, mas que a verdade, tal como ela é, não é capaz
do sujeito. (FOUCAULT, 2018, p. 24).
Em sua abordagem entre Filosofia e Espiritualidade, Foucault demonstra que o
cuidado de si é uma reivindicação do indivíduo que vive o processo do conhece a ti
mesmo com o intuito de confluir com a verdade. Para tanto, o filósofo propõe outra
chave hermenêutica nominada: estética da existência.

III.1.3 Foucault e a Estética da Existência como arte da vida

O conceito de estética da existência ganha entornos peculiares na obra


foucaultiana. Isso porque essa noção, em princípio, remete à tarefa de ocupar-se da
própria vida como se fosse uma obra de arte para dar-lhe uma forma bela. Como
138

destaca Castro, “a estética da existência é uma arte, reflexo de uma liberdade


percebida como jogo de poder” (2016, p. 151). A liberdade é o que causa combustão
nesse conceito, dado que o princípio de não ser escravo dos outros, dos sistemas, da
história ou de si mesmo é fundamental para que a estética da existência seja
praticável. Em outras palavras:

Por estética da existência, há que se entender uma maneira de viver


em que o valor moral não provém da conformidade com um código
de comportamentos, nem com um trabalho de purificação, mas de
certos princípios formais gerais no uso dos prazeres, na distribuição
que se faz deles, nos limites que se observa, na hierarquia que se
respeita (CASTRO, 2016, p. 150-151).
Segundo Revel (2011), Foucault entrelaça a ideia de Estética da Existência
com um vazio ou ausência moral. Essa lacuna se dá a partir do momento que a ideia
greco-romana que propõe uma ética envolvida com o ideal de fazer da vida uma obra
de arte contrasta com a proposta moral cristã que impõe total submissão e obediência
inquestionável a um código dogmatizado. A proposta de Foucault é uma espécie de
niilismo moral – não como uma ação irresponsável, sem interesse algum, todavia
como posicionamento do sujeito em simetria às contingências da vida – ao passo que
não existe nenhuma forma reativa ou externa que irá coibir ou controlar o sujeito.

O desafio foucaultiano para o sujeito é produzir uma vida bela. Produzir


liberdade. Atuar de modo que a força ativa inerente ao sujeito se sobreponha a forças
reativas externas a ele. Nota-se, portanto, que a estética da existência está vinculada
com a liberdade, de modo que o imperativo é que um ser autônomo dirija sua própria
vida. Por esse viés, a liberdade só se torna um ato em si quando sua causa primitiva
for impulsionada pelo âmago do sujeito que já constituiu sua subjetividade.

Essa sistematização de si mesmo está ligado com o que Foucault descreveu


como “a maneira pela qual o sujeito faz a experiência de si mesmo num jogo de
verdade, no qual ele se relaciona consigo mesmo” (FOUCAULT, 2004, p. 235), isto é,
um esforço de retorno a si mesmo em um desvelamento da verdade sem
prejulgamentos cristalizados. A constituição do sujeito não está fora de si, nas
relações do saber e/ou poder, mas no ato de pensar o que há de mais intrínseco em si
mesmo. Na perspectiva de Ravel, “se o sujeito se constituiu não é sobre o fundo de
uma identidade psicológica, mas por meio de práticas que podem ser de poder ou de
conhecimento, ou ainda de técnicas de si” (REVEL, 2011, p. 147), é o que foi
139

denominado por Foucault, como mencionado anteriormente, de tekhne tou biou


(arte de viver). Assim, as artes da existência:

devem ser entendidas como as práticas racionais e voluntárias pelas


quais os homens não apenas determinam para si mesmos regras de
conduta, como também buscam transformar-se e modificar seu ser
singular, e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos
valores estéticos e que corresponda a certos critérios de estilo
(FOUCAULT, 2004, p. 198-199)
Na proposta foucaultiana, antes de mais nada, o sujeito precisa agir de modo
ético consigo mesmo, na construção de sua subjetividade e com a coerência em que
aplicará o ideal do cuidado de si, pois, conforme afirma Ravel “a estética da
existência, na medida em que ela é uma prática ética de produção de subjetividade, é,
ao mesmo tempo, assujeitada e resistente: é, portanto, um gesto eminentemente
político” (REVEL, p. 55). Como foi posto anteriormente, a ascese cristã deu outro
rumo para a estética da existência, isto é, fez a percepção de si um caminho que se
fundamenta, basicamente, nos dogmas do cristianismo.

Avulta-se, dessa maneira, que o cuidado de si conduz o sujeito a um percurso


em direção a si mesmo, em seguida é compelido na relação com o Outro, por isso do
destaque da autora Revel ao que tangencia a dimensão política. O Outro é
imprescindível no processo de formação e subjetivação do indivíduo. É no processo
sinestésico com o Outro, bem como com o mundo que o cerca, que a verdade e o
conhecimento são esculpidos, trazendo não só a utilidade, mas a beleza da vida. O
conhecimento só se torna útil quando sua preocupação inicial e última está posta na
existência humana. Um conhecimento que lança o sujeito para si, ponderando as
relações e embates com o mundo, com o Outro, bem como consigo mesmo é um
conhecimento que proporciona transformação, conversão, mudança ou, em categorias
gregas, o conhecimento que gera metanoia.

Assim, a estética da existência é uma maneira para efetivar o cuidado de si,


apresentando subsídios para esta jornada existencial. Não poucas vezes a guinada
rumo a si mesmo é impedida pelas normalizações, pelos dogmas ou estruturas
cristalizadas, por isso, faz-se importante repensar a existência a partir de uma
percepção que coloque sob os holofotes o sujeito, o eu, a fim de que a verdade não
seja uma finalidade estabelecida, mas forjada a partir das contingências do sujeito.
140

III.1.4 Considerações Hermenêuticas: Terceiro Domínio

Apresentou-se, nesta seção, conceitos chaves para a compreensão do terceiro


domínio foucaultiano. À guisa sintética, cabem alguns apontamentos gerais. O texto
Hermenêutica do Sujeito aponta para um caminho interpretativo do ser que tem como
pressuposto básico o cuidado de si. O texto deixa claro que tal cuidado não acontece
na ignorância, pelo contrário, o conhecimento é fundamental. Não é um conhecimento
tecnicista, marcado pela instrumentalidade, mas sim, é o conhecimento de si mesmo,
seguindo a máxima délfica do conhece a ti mesmo. Mais do que ponderar aptidões ou
rejeições do sujeito, o conhecimento de si envolve processo profundo que lança o
sujeito não apenas para as causas, mas, também, para os efeitos da constituição de si.

Para cimentar a trilha sobre si mesmo, Foucault parte do texto de Alcibíades I


– texto esse que será revisitado em toda a sua obra Hermenêutica do Sujeito como
arquétipo metodológico do cuidado de si – e considera a relação entre Sócrates e
Alcibíades como um meio para conseguir o conhecimento de si. O texto relata que
Alcibíades almejava a vida política sem ter o mínimo de preparo para tal função.
Seguia a tradição aristocrática inerente aos jovens de boas famílias, porém
despreparado para cuidar dos outros porque ele não tinha condições para cuidar de si
mesmo.

Como já foi posto, o conhecimento de si, nesta fase, está vinculado com a
finalidade de cuidar da pólis, governar os outros. Para tanto é preciso governar a si
mesmo. Esse ponto de cuidar de si com finalidade de cuidar dos outros é invertida na
fase considerada por Foucault como de ouro do cuidado de si, pois a teleologia não
está no governo da cidade e dos outros, sobretudo, no ato de cuidar de si mesmo.
Conhecer a si e cuidar de si, voltar-se a si e investir em si mesmo tornam-se o eixo da
fase de ouro. Um processo que pode ser aplicado por todos, superando a segregação
social e econômica presente no texto de Alcibíades. Tem como projeto esse encontro
do sujeito consigo mesmo, a fim de que possa compreender sua alma como sujeito de
si.

Foucault destaca que a filosofia e a espiritualidade são elementos fundamentais


para o processo de cuidado de si. Rompendo com o estereótipo religioso presente na
ideia de espiritualidade, o pensador francês diz que a espiritualidade é o caminho para
a efetivação do conhecimento. São os rudimentos transcendentais que arrematam o ser
141

imanente e, assim, as possibilidades de reencontrar o caminho de construção dos


jogos de verdade, isto é, um conjunto de regras que possibilitam a interpretação para
afirmar o que é verdadeiro ou não segundo determinadas contingências.

Portanto, lançar a estética da existência ou a percepção da existência em


cheque é apontar os caminhos possíveis para que o sujeito consiga se afirmar e
encontrar os caminhos de si e para si, de modo que não se torne cativo da história que
se fez e faz; dos laços afetivos que o envolvem; de si mesmo e dos desejos que são
questionáveis até que ponto são legítimos ou constituídos a partir do meio em que está
inserido. A estética da existência altera significativamente a maneira como o sujeito
tangencia a si mesmo e, assim, institui a si mesmo. Para efetivar o cuidado de si e
encontrar as barreiras que impedem o amadurecimento do si mesmo, será apresentado
o conceito da função do outro no processo do cuidado de si e da stultitia e seus
impedimentos para a efetivação do cuidado de si.

III.2 A função do Outro no cuidado de si


O educador brasileiro Paulo Freire afirmou que “ninguém educa ninguém,
ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”
(FREIRE, 2011). Essa reciprocidade no processo formativo descrito por Paulo Freire
se assemelha a proposições de Foucault ao que se refere o cuidado de si. Para o
filósofo francês, o sujeito, por si só, não consegue quebrar algumas amarras que
empacam o cuidado de si, o ater-se a si mesmo, a reflexão sobre si, por isso, a figura
do Outro é imprescindível. Como destaca Foucault:

A questão do Outro ou de Outrem, questão da relação com o Outro,


entendendo-o como mediador entre essa forma da salvação e o
conteúdo que se lhe há de fornecer. [...] o problema do Outro
enquanto mediador indispensável [...] o Outro ou o Outrem é
indispensável na prática de si a fim de que a forma que define essa
prática atinja efetivamente seu objeto, isto é, o eu, e seja por ele
efetivamente preenchida. Para que a prática de si alcance o eu por
ela visado, o Outro é indispensável (2018, p. 115).
Foucault elenca três tipos de mestria, isto é, três tipos de relação que são
indispensáveis para a formação do sujeito, sendo elas: a mestria do exemplo que se
fundamenta nas tradições, na história, na família, nos grandes heróis, pelos
enamorados etc; a mestria da competência que se fundamenta na simples transmissão
do conhecimento do sábio para os mais jovens; e a mestria socrática, que é
fundamentada no diálogo, na dialética. A característica dessa terceira mestria é a
142

dimensão do “embaraço e da descoberta, exercida através do diálogo”


(FOUCAULT, 2018, p. 116). A mestria socrática carrega algumas peculiaridades,
porém, é possível elencar uma aproximação entre as três mestrias que, segundo
Foucault:

Têm ao menos isto em comum, a saber, que se trata sempre de uma


questão de ignorância e de memória, sendo a memória,
precisamente, o que permite passar da ignorância à não ignorância,
da ignorância do saber, desde que se entenda que a ignorância por si
só não é capaz de sair dela mesma (2018, p. 116).
Tanto no texto de Alcibíades Primeiro como nos demais textos apresentados
por Foucault, a ignorância é o ponto nevrálgico, haja vista que a ignorância é o ato de
ignorar que não se sabe, assim, a presença do Outro é para conduzir o eu para o
cuidado de si efetivamente. Tanto na fase socrático-platônica como na fase de ouro, a
figura do outro é indispensável para o cuidado de si, pois “a necessidade do outro
funda-se, ainda e sempre, e até certo ponto, no fato da ignorância” (FOUCAULT,
2018, p. 116). É por meio do outro que o sujeito alcança:

[...] um status de sujeito que ele jamais conheceu em momento algum


de sua existência. Há que substituir o não sujeito pelo status de
sujeito, definido pela plenitude da relação de si para consigo. Há que
constituir-se como sujeito e é nisso que o outro deve intervir
(FOUCAULT, 2018, p. 117).
Desde os textos da antiguidade como dos séculos I-II relacionados com a fase
de ouro do cuidado de si, a presença do Outro é fundamental. Note que a ideia central
não é tornar o eu cativo a um Outro, mas por meio do diálogo, da reciprocidade, da
aproximação, o eu saí de uma categoria da intransitividade para a transitividade. A
função do mestre – o que muito se assemelha com a figura docente, é certo que não é
esta uma ponderação foucaultiana, mas que muito se relaciona com a
contemporaneidade em que o docente exerce esse papel de mestre na vida do discente,
independente do segmento de atuação – é apontar caminhos que potencialize o
despertar do sujeito. Foucault aponta que a maior efetividade dos mestres foi quando a
hierarquização do saber/poder cedeu lugar a relação e reciprocidade. Assim, Foucault
aponta quem é o mestre:

O mestre não é mais o mestre de memória. Não é mais aquele que,


sabendo que o Outro não sabe, lho transmite. Nem mesmo é aquele
que, sabendo que o Outro não sabe, sabe mostrar-lhe como, na
realidade, ele sabe o que não sabe. Não é mais nesse jogo que o
mestre vai inscrever-se. Doravante, o mestre é um operador na
reforma do indivíduo e na formação do indivíduo como sujeito. É o
143

mediador na relação do indivíduo com sua constituição de


sujeito (2018, p. 117).
A função do mestre é assumir o papel de mediar o estado de ignorância para o
estado de sapiência. Cabe ao mestre dar caminhos que exercitam o eu mesmo. Não é
resolução de questões, muito menos facilitar a trajetória daquele que está em estágio
de ignorância. Não é uma relação de dependência, todavia é o meio termo entre a
heteronomia e autonomia, haja vista que “passar da ignorância ao saber implica o
mestre” (2018, p. 117). Sair, por si só, automaticamente da ignorância para a
sapiência, do estado de a corrigir para corrigido estabelece um elo de necessidade
estreito com a figura do mestre, pois “o sujeito já não pode ser operador de sua própria
transformação e nisso se inscreve agora a necessidade do mestre (2018, p. 117).

Evidencia-se, pois, que o sujeito por si só não terá condições para superar o
estado de stultitia para o patamar de sábio; o cuidado de si nunca será efetivo se não
houver a relação com o Outro, de modo que a figura do mestre é a daquele que se põe
como mediador entre o estado de conveniência natural do ser para o estado de
emancipação e transformação inerente ao cuidado de si, da arte da vida. A autonomia
e protagonismo por si mesmo é resultado do conhecimento de si em sua plenitude.
Para tanto, superar a stultitia é importante para que o cuidado de si supere as
superfícies do eu. Vejamos, agora, as características do stultus descritos por Foucault.

III.3 A posição da Stultitia


Para introduzir o tema da stultitia, Foucault se apropria do texto de Sêneca com
o intuito de apontar o que acontece com o sujeito quando existe “agitação do
pensamento” ou “irresolução” de si mesmo. Na perspectiva foucaultiana, “a stultitia é
alguma coisa que a nada se fixa e que em nada se apraz. [...] ninguém está
suficientemente em boa saúde para sair sozinho desse estado” (FOUCAULT, 2018, p.
118). Somente com a ajuda do Outro é possível sair do estado de stultitia, de modo
que essa condição muito se assemelha a uma patologia em que o sujeito precisa de
“correção, retificação, de reformação” (2018, p. 118). Logo, “quem não teve ainda
cuidados consigo, encontra-se nesse estado de stultitia” (FOUCAULT, 2018, p. 118).
O cuidado de si é imprescindível para a superação da condição de stultus, ao mesmo
tempo que a figura do Outro é o que possibilita empreender esse desprendimento.
144

O filósofo francês descreve três características básicas da condição de


stultitia: a vulnerabilidade, a permanente inconstância e o ser desprovido de
reminiscência crítica. Quanto ao primeiro aspecto, evidencia-se que o stultus não
possui rumo, projeto a curto, médio ou longo prazo. É um ser lançado aos ventos da
vida. Está vulnerável às inconstâncias externas porque não criou ou formou pilares
internos para o devido enfrentamento com as condicionalidades próprias do viver.
Foucault, então, aponta uma primeira descrição sobre o stultu:

Ora, o que é stultitia? O stultus é aquele que não tem cuidado


consigo mesmo. Como se caracteriza o stultus? Referindo-nos
particularmente àquele texto do começo do De tranquillitade,
podemos dizer que o stultus é, antes do mais, aquele que está à
mercê de todos os ventos, aberto ao mundo exterior, ou seja, aquele
que deixa entrar no seu espírito todas as representações que o mundo
exterior lhe pode oferecer. Ele aceita essas representações sem as
examinar, sem saber analisar o que elas representam. O stultus está
aberto ao mundo exterior na medida em que deixa essas
representações de certo modo instaurar-se no interior de seu próprio
espírito – com suas paixões, seus desejos, sua ambição, seus hábitos
de pensamento, suas ilusões etc. – de maneira que o stultus é aquele
que está assim à mercê de todos os ventos das representações
exteriores e que, depois que elas entram em seu espírito, não é capaz
de fazer a separação, a discriminatio entre o conteúdo dessas
representações e os elementos que chamaríamos, por assim dizer,
subjetivos, que acabam por misturar-se com ele (2018, p. 118).

A citação foucaultiana evidencia como o stultus não tem cuidado consigo. É um


ser vulnerável a todos os sopros da vida, isso devido à abertura demasiada ao mundo
externo. O stultus é moldado por esse mundo externo. Não consegue reconhecer o si
mesmo das influências exteriores, haja vista que, para o sujeito, o si mesmo e o
externo estabelecem relação análoga. O stultus não possui filtro para examinar as
interferências outras, absorve-as irrefletida e invariavelmente. Devido a esse
emaranhado inconsequente e empoderado, o stultus não consegue revisitar a si
mesmo, pois nunca teve um encontro consigo mesmo, tornando-se, assim, aquilo que
fizeram dele.

A segunda características do stultus proposta por Foucault está relacionada com


o ser desprovido de reminiscência crítica, isto é, o sujeito não tem perspectiva
temporal. Devido à falta de memória do que foi feito e criado, à distração em
interpretar os eventos no cotidiano, bem como à fragilidade em antecipar os
desdobramentos das escolhas do agora, o sujeito perde toda a dimensão crítica,
analítica e reflexiva sobre o tempo, logo, de si mesmo, uma vez que o ser humano é
145

um ser, por excelência, temporal. Aprender a lidar com o tempo é conseguir


desfrutar da plenitude da existência. Segundo Foucault, o stultus não tem a noção
temporal, por consequência, a condição suscetível do sujeito em ser impactado e
modelado pelas exterioridades, como segue:

Por outro lado e em consequência, o stultus é aquele que está


disperso no tempo: não somente aberto à pluralidade do mundo
exterior, como também disperso no tempo. O stultus é alguém que de
nada se lembra, que deixa a vida correr, que não tenta reconduzi-la a
uma unidade pela rememorização do que merece ser memorizado, e
que não [dirige] sua atenção, seu querer, em direção a uma meta
precisa e bem determinada. O stutus deixa a vida correr, muda
continuamente de opinião. Sua vida, sua existência passa, portanto,
sem memória nem vontade. Por isso, no stultus, a perpétua mudança
de modo de vida (2018, p. 118-119).
O stultus não tem lembranças porque não construiu a história de si, bem como
não atina seus olhos para um projeto – ou até mesmo a velhice – porque está cativo no
imediatismo irrefletido e inconsequente. Talvez por causa da ausência de projetos
consistentes e sólidos, a opinião do stultus vive um trânsito constante, alterando e se
modificando conforme as conveniências. Tanto a memória como a vontade do stultus
não são mais do que um placebo inconstante. A mudança de vida é uma constância
perpétua no stultus, as fases da vida não estabelecem diálogo, quer dizer, enquanto se
é adolescente há um projeto, diferente do da fase adulta, diferente de quando está
velho. Assim, o stultus não consegue perceber sua construção pessoal porque nunca
deteve tempo para o real cuidado de si.

Vale destacar, ainda, que o stultus não pensa sobre a temporalidade de sua vida.
Não consegue discernir entre passado, presente e futuro. Vive sem rumo, aproveitando
sem diligência, sua existência. Não consegue pensar sobre si e os desdobramentos que
o investimento que fez ao não cuidar de si resultará. Diante do imediatismo inerente
ao stultus não se pensa sobre o envelhecimento. Se por um lado o sujeito que aplica a
estética da existência sobre o cuidado de si mira a velhice, a fim de que mudanças
repentinas e abruptas não surpreendam o cotidiano, o stultus, por sua vez, não se
atenta a si mesmo devido a essa “abertura às representações que vêm do mundo
exterior e dessa dispersão no tempo é que o indivíduo stultus não é capaz de querer
como convém” (FOUCAULT, 2018, p. 119).

Foucault problematiza não só a condição existencial do stultus; questiona,


também, o querer e a vontade do sujeito que está cativo à stultitia. O filósofo francês
146

aponta três diferenças entre a vontade de um sujeito stultus daquele que sai desta
condição: vontade determinada, vontade segmentária e vontade inerte. Afirmar uma
vontade determinada é descrever que a vontade do stultus não tem origem nele
mesmo, em vez disso é consequência do mundo que o cerca, como descreve Foucault:
A vontade do stultus é uma vontade que não é livre. É uma vontade
que não é vontade absoluta. É uma vontade que não quer sempre. E o
que significa querer livremente? Significa que se quer sem que
aquilo que se quer tenha sido determinado por tal ou qual
acontecimento, por tal ou qual representação, por tal ou qual
inclinação. Querer livremente é querer sem nenhuma determinação,
enquanto o stultus é determinado, ao mesmo tempo, pelo que vem do
exterior e pelo que vem do interior (2018, p. 119).
Considerando que o stultus é modelado pelas contingências externas, sem o
mínimo de reflexão e compreensão de si mesmo, é possível aferir que a pessoa que
permanece na stultitia responde aos estímulos externos. É constantemente vulnerável
às vontades externas, às manipulações e tendências de sua época, sem ater-se sobre si
e sobre suas reais circunstâncias. Por estar açambarcado pelas exterioridades, o stultus
não consegue querer livremente, sem determinação, em vez disso, é um querer
formatado, seguindo desing delimitado.

Ao que se refere à vontade segmentária, Foucault notabiliza que, por muito


querer, o sujeito que está na condição de stultitia nada quer. Pela ausência de um
projeto a longo prazo ou uma perspicácia temporal, o stultus deseja tudo e nada tem,
como segue:
Em segundo lugar, querer como convém é querer absolutamente.
Isso significa que o stultus quer várias coisas ao mesmo tempo,
coisas divergentes sem serem contraditórias. Ele não quer uma e
absolutamente uma. O stultus quer algo e ao mesmo tempo o lastima.
É assim que ele quer a glória e, ao mesmo tempo, lastima por não
levar uma vida tranquila, prazerosa etc (2018, p. 119).
Querer absolutamente é saber qual o rumo a seguir, as decisões que devem ser
tomadas, as renúncias necessárias e os resultados almejados. Estar na stultitia é perder
a noção das contradições inerentes a toda e qualquer escolha. É querer tudo e por isso
não querer nada. Ao mesmo tempo que se almeja a glória, o destaque, os holofotes, o
stultus não está disposto a enfrentar as perdas e consequências dessa decisão. O
engajamento para a concretização de um projeto é fundamental para alcançar
determinados fins, mas como há fragilidade da reminiscência crítica, querer tudo é
uma forma de disfarçar a inautencidade do ser.
Como terceiro aspecto do querer do estado de stultitia Foucault caracteriza à
vontade como inerte, letárgica, inativa, imóvel, isto é: uma vontade que está restrita
147

aos direcionamentos que os estímulos externos podem proporcionar. O querer do


stultus passa pelo prisma da causa e efeito, em que só há vontade se houver, a priori,
fomento anterior. É nesta direção que Foucault descreve:
Em terceiro lugar, o stultus, é aquele que quer, mas quer com
inércia, quer com preguiça, sua vontade se interrompe sem parar,
muda de objeto. Ele não quer sempre. Querer livremente, querer
absolutamente, querer sempre: é isso o que caracteriza o estado
oposto à stultitia. Já a stultitia é essa vontade de algum modo
limitada, relativa, fragmentária e cambiante (2018, p.119-120).
As três características da vontade de stultitia – vontade determinada, vontade
segmentária e vontade inerte – estão diretamente ligadas com a ideia do que se deve
querer. A problematização posta por Foucault é: sabe-se que o Estado de stultitia
limita a vontade genuína do sujeito, mas o que se deve querer? Do que se deve ter
vontade? Qual é o objeto que a vontade deve querer absolutamente,
incondicionalmente? O que se deve querer independente de circunstâncias, situações
ou momentos de modo que essa vontade sempre antecederá qualquer emergência ou
incidente?

Segundo Foucault, “o objeto que se pode querer livremente, sem ter que levar
em conta as determinações exteriores é evidentemente um só: o eu” (2018, p. 120).
Em categorias foucaultianas, o stultus é classificado como aquele que não quer aquilo
que se deve. Diante das inúmeras e incontáveis possibilidades, o stultus não se dá
conta do que realmente tem importância em sua existência. Desse modo, Foucault
classifica o stultus como:

[...] aquele que não quer, não quer a si mesmo, não quer o eu, aquele
cuja vontade não está dirigida para o único objeto que se pode querer
livremente, absolutamente e sempre, o próprio eu. Entre a vontade e
o eu há uma desconexão, uma não conexão, um não pertencimento
que é característico da stultitia, ao mesmo tempo seu efeito mais
manifesto é sua raiz mais profunda. Sair da stultitia será justamente
fazer com que se possa querer o eu, querer a si mesmo, tender para si
como o único objeto que se pode querer livremente, absolutamente,
sempre. Ora, vemos que a stultitia não pode querer esse objeto, pois
afinal ela se caracteriza precisamente por não o querer. (2018, p.
120).
É importante notar, na abordagem foucaultiana, que no stultus existe um vácuo
entre a vontade e o eu, isso porque, na condição de stultitia, cuidar de si, pensar sobre
si, desejar a si não assume relevo, haja vista que as múltiplas preocupações em que o
sujeito está embebido furtam dele o discernimento do si mesmo. Querer a si mesmo
não é ilusão, pois nunca foi uma possibilidade tangenciada pela cognição do stultus.
148

Acomodar-se a circunstâncias e absorvê-las como intento único e último dá à


condição de stultitia o título de ser sem querer ou sem vontade.
Mas é possível superar a condição de stultitia e adentrar o status de sapientia?
Sim. Para Foucault o stultus por si só, por seus méritos ou competências nunca
conseguirá sair de sua condição; logo, retomando o que foi posto anteriormente,
somente com a presente e figura do Outro se torna possível superar a condição de
stultitia. O Outro é imprescindível para que o cuidado de si seja efetivado, pois o
stultus não consegue deslumbrar o si mesmo como prioritário ou necessário. A figura
desse Outro não é um professor no seu sentido convencional, isto é, aquele que é
retentor de um conhecimento específico e tem como labor transmiti-lo ao seu alunado;
também não é aquele dominador de memórias, de fatos, eventos. Mais do que a
instrução ou educação no sentido tradicional, a figura do Outro, na perspectiva
foucaultiana é:
Uma certa ação, com efeito, que será operada sobre o indivíduo,
indivíduo ao qual se estenderá a mão e que se fará sair do estado, do
status, do modo de vida, do modo de ser no qual está [...]. É uma
espécie de operação que incide sobre o modo de ser do próprio
sujeito, não simplesmente a transmissão de um saber que pudesse
ocupar o lugar ou ser o substituto da ignorância (2018, p. 121).

Na perspectiva foucaultiana, esse Outrem que auxiliará o sujeito nessa jornada


para a vontade de si, o cuidado de si, é o filósofo. Tal sofocracia proposta por
Foucault é bastante peculiar, pois o autor demonstra que o filósofo é aquele que não
tem o compromisso com a instituição ou com projetos de poder, sobretudo, tem seu
comprometimento com o ato de compreender os caminhos que forjaram o que se
interpreta por verdade. Seguindo Foucault, “o filósofo se apresenta, ruidosamente,
como o único capaz de governar os homens, de governar os que governam os homens
e de constituir assim uma prática geral do governo em todos os graus possíveis:
governo de si, governo dos outros” (2018, p. 122).

Para Foucault é importante distinguir entre retórica e filosofia, isto é, se a


primeira “é o inventário e a análise dos meios pelos quais pode-se agir sobre os outros
mediante o discurso” (2018, p. 122), a segunda “é o conjunto de princípios e práticas
que se pode ter à própria disposição ou colocar à disposição dos outros, para tomar
cuidados, como convém, de si mesmo ou dos outros” (2018, p. 122). Nota-se que se a
primeira tem como intento agir sobre os outros, uma espécie de persuasão, a filosofia,
por sua vez, é o ato de municiar o sujeito com subsídios tais que possa cuidar de si.
149

O filósofo francês apontou como a condição de stultitia impede o verdadeiro


cuidado de si. Ponderando as características delimitadas a pouco, o stultus só sai desse
patamar se o encontro com o Outro for transformador. É promover encontro com o
filósofo que tem o seu comprometimento em superar os paradigmas típicos da
conveniência da stultitia e esteja disposto a contribuir para o projeto libertário do
sujeito que desfruta da sapientia. Assim, o objeto que o sapiente deseja
incondicionalmente é o eu. A fim de entrelaçar a figura do Outro com a superação da
stultitia, serão postos alguns elementos da parresia foucaultiana. Esse entrelaçamento
tem como intuito apontar pilares teóricos os quais contribuam para caminhos
hermenêuticos que dialoguem com as demandas típicas do sujeito que vivencia a
superação da stultitia e adentra a condição de sapientia.

III.4 A Parresia foucaultiana


Ao considerar a figura do Outro e os aspectos centrais da condição da stultitia
e seu impacto ao que tangencia o cuidado de si, Foucault deixa claro que ao mesmo
tempo que o stultus precisa do Outro para desenvolver o cuidado de si relevante, essa
relação com o Outro tem que ser pautado na parresia. Em linhas gerais a parreesia é
ética da palavra, “é a abertura do coração, é a necessidade, entre os pares, de nada
esconder um ao outro do que pensam e se falar francamente” (FOUCAULT, 2018, p.
124). Essa fala franca é o que pautará a relação do filósofo com o sujeito que está na
condição stultus e pode alcançar o eu a partir do cuidado de si. A parresia é uma nova
constituição da palavra que tocará a relação entre o eu e o Outro. Para Foucault, é por
meio dessa fala não fingida que um novo éthos surge, ou seja:

É que, através desse desenvolvimento da prática de si, através do


fato de que a prática de si torna-se assim uma espécie de relação
social – se não universal, por certo, pelo menos de mestre de
filosofia com aluno – desenvolve-se, creio, algo muito novo e
importante, que é uma nova ética, não tanto da linguagem ou do
discurso em geral, mas da relação verbal com o Outro. E é essa nova
ética da relação verbal com o outro que está designada na noção
fundamental da parresia. A parresia, traduzida em geral por
franqueza, é uma regra de jogo, um princípio de comportamento
verbal que devemos ter para o outro na prática da direção de
consciência. (2018, p. 148).
Fica claro que, para Foucault, a parresia é imprescindível para a prática de si.
É possível elencar ao menos dois pontos centrais na parresia proposta por Foucault: o
aspecto fisiológico e o aspecto relacional. Quanto ao aspecto fisiológico, o filósofo
150

francês destaca que a parresia se assemelha à sinceridade que o médico tem em


relação ao seu paciente, logo, qualquer disfarce de verdade ou qualquer simulacro
pode ser comprometedor para o cuidado de si. Ao que se refere ao relacional, Foucault
se apropria da relação entre mestre-discípulo, isto é, “a parresia define a atitude do
mestre que corresponde ao silêncio do discípulo. Nesse marco, a parresia se refere
tanto à atitude moral, ao éthos, do mestre, do diretor de consciência, quanto à técnica
necessária para transmitir os discursos verdadeiros” (CASTRO, 2016, p. 316-317).

Diante da fala franca, da fala que não se castra diante das expectativas sociais
ou da dureza do que precisa ser dito, Foucault destaca dois adversários: a adulação e a
retórica. Por um lado, a adulação é a tentação em desviar a verdade do ouvinte e
propagar apenas palavras doces e palatáveis, porém não gratuitas. A adulação, por
quem a exerce, tem como intento tirar proveito da relação, isto é, ao dizer o
conveniente, ter benefícios com esta fala. Como destaca Foucault, “o lisonjeador é
aquele que, por conseguinte, impede que se conheça a si mesmo como se é. O
lisonjeador é aquele que impede o superior de ocupar-se consigo mesmo como
convém” (2018, p. 337).

A parresia, por sua vez, caminha por outro viés: é a antiadulação. Segundo
Castro, o efeito da parresia é proporcionar ao Outro uma relação plena consigo
mesmo. É por meio da parresia que o cuidado de si é efetivado, a relação com o Outro
torna-se um potencializador para a liberdade do eu, em que o cuidado de si, o ater-se a
si, bem como o conhecimento de si, efetiva-se. Segundo Foucault:

A conclusão é que a parresia é exatamente a antilisonja. É a


antilisonja no sentido de que, na parresia, há efetivamente alguém
que fala e que fala ao outro, mas fala ao outro de modo tal que o
outro, diferentemente do que acontece na lisonja, poderá constituir
consigo mesmo uma relação que é autônoma, independente, plena e
satisfatória. A meta final da parresia não é manter aquele a que se
endereça a fala da dependência de quem fala – como é o caso da
lisonja. O objetivo da parresia é fazer com que, em um dado
momento, aquele a quem se endereça a fala se encontre em uma
situação tal que não necessite mais do discurso do outro (2018, p.
340).
Por outro lado, ao que se refere à retórica, a parresia se opõe categoricamente,
porque a retórica tem objetivos externos para alcançar, seja o convencimento, seja o
abrandamento ou qualquer outra ação presente no ato externo. Já a parresia carrega
em si outros princípios, pois o que acompanha o objeto fundamental da parresia é o
cuidado consigo mesmo. Quando há uma relação pautada na parresia, o sujeito é
151

despertado para o eu, a relação com o Outro é um despertamento para o si mesmo.


É possível elencar ao menos três pontos que distinguem a retórica da parresia:

Primeiro, a retórica não tem por finalidade estabelecer a verdade,


mas persuadir. Em certo sentido, é uma arte capaz de mentir. Na
parresia, ao contrário, trata-se apenas da transmissão da verdade.
Em segundo lugar, a retórica é uma arte organizada segundo
procedimentos regrados. Quando à parresia, alguns autores
sustentam que é uma arte (Sêneca), e outros, o contrário (Filodemo
de Gádara). Em todo caso, as regras da parresia são diferentes das
regras da retórica; trata-se, antes, de regras de prudência, de
habilidade para saber como e, sobretudo, quando falar para que o
discípulo receba o discurso verdadeiro na melhor ocasião. Em
terceiro lugar, a finalidade da retórica, através da influência que se
possa exercer mediante a palavra, é dirigir as discussões da
assembleia, conduzir o povo ou conduzir um exército. À diferença
da retórica, o discurso da parresia tem por finalidade que aquele a
quem está dirigido estabeleça consigo mesmo uma relação plena e
soberana (CASTRO, 2016, p. 317).
Assim, a parresia é uma maneira de tangenciar o sujeito de modo que haja um
contato real com o eu. Saber aproveitar a ocasião propícia e adequada é
imprescindível para o ato da parresia, pois o que torna a fala franca fundamental não
é o conteúdo por si só, mas sua eficácia em tocar o ouvinte. “Nesse sentido, o que
define essencialmente as regras da parresia é o kairós, a ocasião, ocasião que é
exatamente a situação dos indivíduos em relação uns aos outros e o momento
escolhido para dizer a verdade” (FOUCAULT, 2018, p. 344).

Para o cuidado de si, a parresia é um instrumento inegociável, pois, à medida


que há a relação do sujeito com o Outro, uma relação que promova o desprendimento
total do sujeito com o mundo externo que o rodeia, de modo que o estado de stultitia é
superado pela ação emancipada e de liberdade, todo esse trajeto é feito devido à
parresia, isto é, a preocupação última com a fala que apresenta a verdade despida de
qualquer acessório ludibriante. É por meio da parresia que a lacuna entre o stultus e a
sapitientia é superado. Todo esse jogo é fincado em duas ações básicas: a fala – que
foi tratada tanto na relação entre o eu e o Outro, como na relação do cuidado consigo
mesmo – e a escuta – tópico este que será tratado a seguir. O que se destaca é que sem
o ato da escuta todo o percurso feito pela fala franca torna-se obsoleto.

III.5 O ato de Escutar


O que é escutar? Antes de responder a essa simples questão, cabe o introito de
que, ainda que as técnicas de discurso, seja a fala franca ou simplesmente uma retórica
152

bem elaborada e definida, se a pessoa que ouve não estiver disposta e disponível a
ater-se ao que é dito, as palavras, por mais elaboradas que sejam, não ecoarão na vida
do sujeito. Foucault deixa claro que é a partir da escuta que tudo começa; para o
filósofo francês “[...] escutar é com efeito o primeiro passo, o primeiro procedimento
na ascese e na subjetivação do discurso verdadeiro, uma vez que escutar, em uma
cultura que sabemos bem ter sido fundamentalmente oral, é o que permitirá
reconhecer o logos, recolher o que se diz de verdadeiro” (2018, p. 297).
Não é ato de estar aberto para o mundo de modo irrefletido, característica
presente na stultitia, também, não é o ato puramente restrito a vozes que tangenciam a
instrumentalidade ou a memória. É por meio da escuta que o sujeito consegue ouvir a
si mesmo, ouvir o eu e, assim, traçar um itinerário para dentro de si. Se por um lado a
escuta pode ser alimentada pela retórica da lisonja ou da adulação, por outro lado,
escutar pode ser libertador, como propõe Foucault.
Mas, conduzida como convém, a escuta é também o que levará o
indivíduo a persuadir-se da verdade que se lhe diz, da verdade que
ele encontra no logos. E enfim a escuta será o primeiro momento
desse procedimento pelo qual a verdade ouvida, a verdade escutada e
recolhida como se deve, irá de algum modo estranhar-se no sujeito,
incrustar-se nele e começar a tornar-se suus (a tornar-se sua) e a
constituir assim a matriz do êthos. A passagem da alétheia ao êthos
(do discurso verdadeiro ao que será regra fundamental de conduta)
começa seguramente com a escuta (2018, p. 297).
Diante desta citação, salta o questionamento: até que ponto a escuta é somente
passiva? Para Foucault “podemos escutar com proveito; podemos escutar de maneira
completamente inútil e sem tirar nenhum proveito; podemos até mesmo escutar de
modo tal que só tiremos inconvenientes” (2018, p. 302), logo o ato da escuta, ainda
que vulnerável a forças externas, é ativo na forma de (re)significar aquilo que se ouve.
Para esse processo hermenêutico da escuta ser eficaz, a experiência é vital.
Experiência no sentido de uma prática refletida, uma prática que depura a lógica do
escutar. São elencados três meios para uma escuta acrisolada: em primeiro lugar, o
silêncio, em outras palavras é a luta contra a tagarelice; em segundo lugar, a escuta
eficaz precisa do controle do corpo e da alma, logo a enkráteia, o domínio de si e de
suas vontades é um alicerce importante para que o ato da escuta seja efetivado; e em
terceiro lugar, a atenção propriamente dita, isto é, o empenho do sujeito em escutar
atentamente, em silêncio e controlando a si mesmo, o que se propõe a ser dito. Para
esse terceiro aspecto, Foucault destaca dois itens: o primeiro é o pragma, ou seja, o
ouvinte dirija sua atenção para o que é tradicionalmente chamado tò prâgma, que é o
153

referente, para aquele a quem se deve dirigir o foco, não ater-se às formas por si
só, mas apreender o que é dito; o segundo aspecto é, após ouvir, começar com o
esforço da memorização; não basta, pois, ouvir bem, é preciso marcar o que foi
ouvido na alma, pois “a alma que escuta deve vigiar a si mesma” (FOUCAULT, 2018,
p. 313).
O ato de escutar é valioso do cuidado de si. Só por meio da escuta o sujeito
passa a cuidar de si, pois ouve a si. Escutar é uma atitude de domínio próprio, de
controle dos instintos naturais, de superar as tendências egocêntricas presentes em
toda condição de stultitia. Escutar é silenciar, controlar e ater-se ao que será proferido
de maneira que o foco central seja a transformação de si. O ato da escuta é o que torna
a parresia uma possibilidade, além de ser junção entre o locucionário e o receptor,
assim, o cuidado de si é efetivado. Vejamos, em seguida, alguns elementos desse
cuidado de si.

III.6 A Heterotopia no cuidado de si


Ainda que a proposta de universalização do cuidado de si, na teoria, seja
perfeitamente aplicável a todas as pessoas, Foucault destaca que esse pragmatismo
não passa de uma heterotopia ou de uma lei “inteiramente fictícia” (2018, p. 101). O
filósofo francês aponta os motivos pelos quais essa efetivação não acontece. O
primeiro aspecto é que, para o cuidado de si efetivo, é preciso haver tempo de ócio.
Logo, deduz-se que “ocupar-se consigo mesmo é, evidentemente, um privilégio de
elite (FOUCAULT, 2018, p. 102). Cuidar de si tem um preço, pelo qual os pobres não
podem pagar. Por mais que o cuidado de si fosse uma premissa universalizada, nunca
foi efetivada, “na cultura antiga, na cultura grega e romana, o cuidado de si jamais foi
efetivamente percebido, colocado, afirmado como uma lei universal válida para todo
indivíduo, qualquer que fosse o modo de vida adotado” (FOUCAULT, 2018, p. 102.).

Outra característica pela qual o cuidado não é universalizado e acessível a


todos é que, mesmo que carrega-se uma máxima universal, acessível como ideia,
ainda assim é um evento restrito à aristocracia, haja vista que o cuidado de si era
incentivado, de modo geral, com grupos especializados nessa área do cuidado, da cura
de si; assim, o preço a ser pago era considerável, de modo que a grande parte da
sociedade não conseguia desenvolver o cuidado de si efetivamente. O cuidado de si
era institucionalizado, isto é:
154

o cuidado de si sempre tomou forma em práticas, em


instituições, em grupos, que eram perfeitamente distintos entre si,
frequentemente fechados uns aos outros e, na maioria das vezes,
implicando uma relação de exclusão dos demais. O cuidado de si era
ligado a práticas ou organizações de confraria, de fraternidade, de
escola, de seita (FOUCAULT, 2018, p. 102).
Segundo Foucault, devido ao caráter institucionalizado do cuidado de si, isto é,
sua efetivação acontecer devido ao pertencimento a um determinado grupo, o cuidado
de si, mesmo sem toda a sofisticação ou erudição típica dos seletos grupos, era
praticada de modo tímido em grupos religiosos. É preciso considerar que o cuidado de
si tem como características gerais a dimensão da reclusão, das diversas formas de
abstinência etc. Esses são alguns indícios que apresentam a ressignificação da ascese
pagã na ascese cristã, como mencionada anteriormente.

O texto foucaultiano relata que havia grupos mais sofisticados com aspecto
bastante peculiar, isto é, alguns grupos epicuristas e/ou estoicos em que o cuidado de
si não se atinha às divisões das classes sociais, ou seja, de modo geral, não havia
separação “entre rico e pobre, entre quem teve berço de ouro e o de família obscura,
quem exerce um poder político e quem vive desapercebido [...] afinal, um escravo
pode ser mais livre que um homem livre se este não tiver se liberado de todos os
vícios, paixões, dependência, etc, em cujo interior estivesse preso” (FOUCAULT,
2018, p. 107). Mesmo com todas as limitações, reescrever o aspecto universalista do
cuidado de si faz-se importante como um desdobramento teórico que fundamentará
essa tese. Assim, segundo Foucault:

O cuidado de si é formulado como um princípio incondicionado.


Como um princípio incondicionado significa que se apresenta como
uma regra aplicável a todos, praticável por todos, sem nenhuma
condição prévia de status e sem nenhuma finalidade técnica,
profissional ou social (2018, p. 114).
Essa afirmação foucaultiana estabelecerá dialogicidade com a proposta de
aplicabilidade do cuidado de si na educação. Mais do que formar pessoas, a educação
pode seguir por um viés que auxilie o sujeito a cuidar, antes de tudo, de si mesmo, a
fim de que os desdobramentos de sua vida sigam não como um produto do meio, mas
como protagonista de si.

III.7 Arremate Conceitual: Hermenêutica do Sujeito


O livro “Hermenêutica do Sujeito” (2018), texto-base fundamental para esse
capítulo, revela a preocupação de Foucault em descrever como o sujeito se relaciona
155

consigo mesmo. Nessa obra, Foucault dialoga com textos da Antiguidade a fim de
interpretar os caminhos possíveis para o sujeito encontrar a si mesmo.
O termo chave desse domínio ético é o cuidado de si (epimeleia heatou). Nesse
texto, o filósofo francês demonstra as dificuldades de o sujeito conhecer a si mesmo,
dedicar tempo a si mesmo, cuidar de si. Suas provocações partem do texto platônico
“Alcibíades Primeiro” (2015), que relata o diálogo entre Sócrates e seu discípulo
Alcibíades. O jovem aprendiz está em uma fase crítica de sua vida: precisa descobrir
os melhores caminhos para se sair bem na política. Ainda que os planos de Alcibíades
contemplem a vida pública, Sócrates questiona até que ponto seu discípulo estava
preparado para assumir tal empreitada, haja vista que Alcibíades nunca se preparou
para ser político. Esse diálogo relata o perigo da vontade de querer cuidar dos outros
sem, ao menos, ter contato consigo mesmo.
Foucault tem a preocupação de fazer com que o sujeito cuide de si e, para isso, a
máxima délfica tem que ser considerada: conhece a si mesmo. Esse autoconhecimento
extrapola a noção dos gostos, das vontades, dos hábitos, esse conhecimento é um
éthos que envolve o todo da vida do sujeito: é a tomada de consciência de si, das suas
contingências, dos seus limites e potencialidades. O verdadeiro conhecimento de si só
é possível quando o sujeito tem como prioridade o eu. Na perspectiva foucaultiana,
essa jornada do conhece a si mesmo está intrinsicamente relacionada com movimentos
centrífugos e centrípetos, isto é, é necessário sair de si, ter forças que tirem o sujeito
da zona de conforto, que ao mesmo tempo que acomoda, exige um preço muito alto,
pois a pessoa deixa de ser autêntica para ser aquilo que se espera de seu papel social.
Ao que se refere a forças centrípetas, o texto foucaultiano aponta que, na medida que
o sujeito sai de si, ele consegue voltar para o eu cheio de si mesmo.
A relação consigo muda significativa ao passo que a filosofia é encarada como
meio dialético de confronto com a verdade. A filosofia não tem a verdade ou não
responde de modo verdadeiro, em vez disso, para Foucault, a filosofia almeja dissecar
os mecanismos que fazem da verdade a verdade. O meio pelo qual a filosofia se
efetiva é pela espiritualidade. Nessa direção, não há uma conotação soteriológica, em
vez disso, a noção de espiritualidade para Foucault é a instrumentalização pela qual a
filosofia se torna possível e, assim, a verdade pode ser compreendida como fenômeno.
O cuidado de si não é tarefa fácil. Foucault já evidenciou isso na medida que,
mesmo que seja uma prática possível a todas as pessoas, apenas aquelas que têm
condições de pagar por este cuidado, isto é, só cuida de si quem tem tempo consigo, e
156

só tem tempo consigo mesmo quem pratica o ócio, característica essa típica da
elite. Logo, a estética da existência é um desafio constante, uma vez que essa viagem
constante para si exige mais do que intencionalidade, exige disponibilidade. A estética
da existência é uma percepção sobre si, uma criação do éthos que norteará as decisões
que o sujeito tomará sobre si e, posteriormente sobre os outros. A estética da
existência tem como foco central o eu. A proposição que acompanhará essa percepção
de si é a de fazer com que o sujeito cuide de si, conheça a si mesmo.
Esse movimento não acontece sozinho. Ninguém tem condição de cuidar de si
por si só. Foucault destaca a função do Outro como aquele que abrirá caminhos para
essa jornada, que é feita na individualidade. Percebe-se que o cuidado de si é um
processo individual, todavia não acontece na solidão. O cuidado de si é mediado pelo
Outro, que não pode ser despreparado. Para Foucault, o Outro não é um professor,
pois para o cuidado de si não é necessário um perito em técnicas ou um guardião e
reprodutor de memórias. No texto foucaultiano o mediador é o filósofo. Não porque
tenham boas respostas para elencar, mas sim porque suas perguntas são provocadoras
o suficiente para fazer com o que outro alcance o si mesmo.
Para Foucault, esse processo de sair de si mesmo é impossível sozinho, pois
antes de adentrar o patamar da sabedoria, do autoconhecimento real e sincero, o
sujeito está no estado de stultus, isto é, uma pessoa que não tem consciência de si e
nem do mundo de que faz parte. A stultitia tem como característica a manutenção da
condição de autômato, ou, em outras palavras, o ato de condicionar o sujeito no
automático, em que o indivíduo passa a responder aos estímulos e cumprir tarefas que
são traçadas para a sua função social. O stultus, segundo Foucault, é aquele que está
bem situado no senso comum, responde mimeticamente aos protótipos estabelecidos.
Ainda que o Outro seja fundamental nessa ruptura com o estado de stultitia para
o estado de sapietia, dois fatores são inegociáveis. O primeiro é a fala franca, sem
medo, a fala sincera, conhecida nos textos foucaultianos como parresia. Essa fala
destemida, verdadeira, tem como compromisso primordial o confronto do sujeito
consigo mesmo, bem como com todas as demais relações que perpassam sua vida.
Quando não há parresia, há risco de morte. É por meio da fala franca e sincera que o
sujeito é confrontado. A parresia é a força de resistência que incomoda o stultus.
Porém, como segundo ponto, somente se houver a escuta por parte do discípulo essa
jornada de si para si mesmo será efetivada.
157

Intui-se, portanto, que falar sobre escuta em tempos extremamente


barulhentos é desafiador. O sujeito do século XXI não tem tempo para escutar, afinal
de contas a escuta é para aquele que ainda é incompleto, imperfeito, em processo, e
nessa ditadura da perfeição e das fragilidades relacionais fundamentada, em larga
escala, pela liquidez típica da contemporaneidade, o sujeito do século XXI não ouve,
só fala. O ato de escutar, na abordagem foucaultiana, é para o sujeito que busca a si
mesmo e almeja cuidar de si, quem se recusa a escutar não se deu conta de sua
condição de stultus.
O convite foucaultiano é: todos podem praticar o cuidado de si. É certo que na
narrativa platônica do Alcibíades Primeiro, o cuidado de si era reservado para
aristocratas que almejavam a vida pública, logo, seu intento era governar os outros.
Foucault demonstrou que, na idade de ouro, o cuidado de si foi socializado a todas as
pessoas, contudo, substancialmente, poucos o praticavam. Os motivos eram variados:
falta de tempo (otium), por não pertencer a um determinado grupo ou falta de recursos
financeiros, enfim, por mais variados que fossem os motivos, o cuidado de si
permaneceu em uma perspectiva ideal.
Tratar do cuidado de si como heterotopia não é esforço epistêmico em construir
narrativas a partir das impossibilidades, mas, pelas vias foucaultianas, é empenho em
compreender as narrativas construídas a partir das possibilidades. E por um lado “a
utopia consiste no desdobramento, precisamente, desse devir” (CASTRO, 2016, p.
420), a heterotopia, por sua vez, é a criação de espaço que esteja sintonizado com a
constituição do sujeito. Percebe-se, portanto, que a heterotopia é a ação, é a efetivação
das oportunidades em possibilidades de mudança e transformação.
Por fim, considerar o cuidado de si como mirada heterotópica é almejar fazer
com que o sujeito consiga sair de si para encontrar a si. Uma relação consigo que é
mediada pelo Outro, que não estabelece uma relação de dependência ou
paradigmática, em vez disso, é uma ação que rompe consigo para que haja o encontro
com o eu.
Pensar a filosofia da educação e o cuidado de si foucaultiano em terras
brasileiras é pertinente considerando, sobretudo, os descaminhos que as atuais
políticas educacionais têm trilhado, além, é claro, da deformação ao que se refere à
docentes e discentes. Seguindo a proposta de Foucault, educar é deformar no sentido
de romper com as cristalizações dogmáticas que se impõem, isto é, as arbitrariedades
típicas dos manuais monossêmicos que algoritmizam a existência. Por outro lado,
158

educar é formar, ao passo que preserva a polissemia típica do próprio sujeito. O


sujeito não é cartesiano no ato de significar e representar a sua existência. É um ser
idiossincrático que se encontra em uma epopeia autobiográfica.
Aplicar Foucault na Educação é caricaturar vias que suprimam a funcionalidade
pragmática tecnicista do docente, para uma relação que deslumbre a arte da vida, a
técnica de viver, o conhecimento de si, o cuidado de si, enfim, o encontro do eu
consigo mesmo em relação fluida e ininterrupta com todas as contingências da vida.
159

4. TEORIAS NARRATIVAS DA COTIDIANIDADE

Neste capítulo, apresentaremos a teoria narrativa que servirá como parâmetro


para a interpretação, tanto do texto platônico, como também dos diálogos dos
discentes, docentes e agentes administrativos da Escola Estadual Senador João Galeão
Carvalhal. O esforço desta seção é apresentar a teoria da narratividade aplicada à
cotidianidade e à retomada do texto platônico, “Alcibíades Primeiro”, a fim de
estabelecer critérios metodológicos e hermenêuticos ao que refere à contribuição
foucaultiana à filosofia da educação.
A epistêmica que persegue a hipótese desta tese é analisar as narrativas do
cotidiano de personagens que compõem o cotidiano da educação formal, a fim de
encontrar os elementos constitutivos da subjetividade dos sujeitos. Neste viés, o
intento é pesquisar o fenômeno da educação a partir da desconstrução da subjetividade
do sujeito proposto por Foucault a fim de apontar para uma nova constituição do ser.
Este capítulo se propõe a dialogar com a teoria narrativa a fim de encontrar elementos
que subsidiem a hermenêutica do sujeito aplicada a educação. Para tanto, dividiremos
esta seção em três partes, a saber: (i) apresentação do que é teoria de narrativas de
memória; (ii) conceituar o que é cotidiano e cotidianidade; (iii) retomar o diálogo do
Primeiro Alcibíades e realizar análise literária e hermenêutica deste texto.

IV.1 Indício de uma teoria das narrativas de memórias


Apresentaremos, a seguir, um breve compêndio sobre teoria das narrativas de
memória, que será o sustentáculo da análise narrativa a ser desenvolvida no restante
desta tese. O caminho a ser trilhado apresentará uma análise indiciária para a
160

construção de uma teoria narrativa de memórias, em que serão contemplados os


temas do ato de narrar, a memória narrativa e narrativas do eu. Em seguida,
apresentaremos o conceito e paradigma do que se entende por cotidiano e
cotidianidade, a fim de que fique clara a análise literária que será feita do texto
“Alcibíades Primeiro” (2015) de Platão. Este arcabouço teórico será fundamental para
a abordagem desenvolvida posteriormente, no capítulo em que se buscará a síntese
entre as narrativas dos discentes, docentes e agentes administrativos em dialética com
a teoria proposta neste e nos capítulos anteriores.

VI.1.1 O Ato de Narrar

Narrar é fazer com o que o mundo ganhe significados; é dar sentido para o
externo em uma aventura interna; é moldurar a estética da existência. O termo narrar
está associado com o sânscrito ‘gna’/‘gno’ (conhecer), e dá origem ao termo noesis
que é o pensamento em sua essencialidade, aquilo que humaniza a racionalidade
humana. Com o tempo, o termo gnarrare foi adaptado para narrare. Assim, de modo
provisório, o ato de narrar é o próprio ato de conhecer. Narra-se aquilo que, em
alguma esfera, foi experienciado pelo narrador, ou, em linguagem fenomenológica, é
o ato de traduzir uma experiência intencional em sentidos e significados (HUSSERL,
1988).

Só é possível mencionar sentido e significado a partir dos recortes incompletos


e imprescindíveis dos signos, logo: o signo é uma intencionalidade provisória de
significar, de fazer sentido do que se vivencia. O paradoxo é: fazer sentido nem
sempre é tradução em signos, pois um signo é uma referência para, de ou sobre algo,
nunca um fim em si mesmo (ABBAGNANO, 2007). Signo é sempre uma
representação inacabada. Devido ao seu aspecto inacabado, o signo caminha
paralelamente com o que Bakhtin designa como sinal, isto é, a neutralidade
hermenêutica, ao julgar que:
[...] o signo é decodificado, o sinal é identificado. O sinal é uma
entidade de conteúdo do imutável; ela não pode substituir, nem
refletir, nem refratar nada; constitui apenas um instrumento técnico
para designar este ou aquele objeto (preciso e imutável) ou este ou
aquele acontecimento. O sinal não pertence ao domínio da ideologia;
ele faz parte do mundo dos objetos técnicos, dos instrumentos de
produção no sentido amplo do termo (BAKHTIN, 2006, p. 96-97).
Por mais que o signo e o sinal sejam instrumentais elucidativos do processo
interpretativo, o ato perceptivo é inerente ao sujeito, logo, é uma categoria a priori e
extrapola qualquer tradução rudimentar restrita aos signos ou sinais. Portanto, as
narrativas são esforços do sujeito não ignorar aquilo que, em alguma instância, tocou-
161

o de modo peculiar. Narrar é caricaturar o ato vivencial de múltiplas maneiras, é


memorar.

Traduzir as experiências em signos é um recorte de significados que envolve a


dimensão, por um lado, nas vias de Bakhtin (2006), kronotópica (tempo/espaço) que é
uma estrutura balizadora das narrativas, haja vista que para narrar algo é preciso levar
em conta o lugar em que ocorre a narrativa, bem como a dimensão temporal (passado,
presente, futuro) e, por outro lado, a extrapolação das temporalidades, espacialidades e
realidades, uma vez que a narratividade é o paradigma às avessas, pois não se
restringe ao acontecimento em sua faceta teleológica, mas também apropria-se das
ficcionalidades como arcabouço das múltiplas possibilidades interpretativas e
descritivas. A narratividade é um esforço do sujeito em lançar-se no jogo
hermenêutico de si e do mundo.

VI.1.2 A Memória Narrativa


Uma possível definição de memória é a possibilidade de dispor dos
conhecimentos passados, aqueles que, de alguma maneira, já estiveram disponíveis e
agora são apenas fatos do passado. Memória não está cerceada pelo evento em si
mesmo ou por uma cicatriz, por exemplo “a tristeza ou a imperfeição física causada
por um acidente não são a memória desse acidente, apesar de serem vestígios dele, ao
passo que a recordação pode estar disponível e pronta, sem precisar da ajuda de
nenhum vestígio [...] (ABBAGNANO, 2007, p. 668).

Em definições platônicas, a memória pode ser dividida em dois momentos:


primeiro como conservação, que tem como hipótese a persistência de instruções
recebidas anteriormente, e, em segundo lugar, a reminiscência que é a “possibilidade
de evocar, quando necessário, o conhecimento passado e de torná-lo atual ou
presente” (ABBAGNANO, 2007, p. 668). Como se vê, a transposição que a
consciência faz da inatualidade para a atualidade se relaciona com os aspectos
mnemônicos. Portanto, a memória é o reconhecimento do que foi vivido.

A memória se encontra como elemento fundamental para a narratividade. Não


só a memória de eventos históricos, sobretudo o narrar a si mesmo – que é um ato
atemporal e transcendental. A memória autobiográfica, por exemplo, evidencia o si
mesmo narrativamente. Ao tratar de narrativas de memórias, é necessário pensar um
162

viés específico, pois narrar a história de si mesmo a partir do mesmo método que
se trata os algoritmos é esvaziar o encantamento que está no para além da história, no
acontecimento. Em perspectiva foucaultiana, como já foi descrito anteriormente, é
possível se destacar dois aspectos importantes da ideia de acontecimento: “como
novidade ou diferença e o acontecimento como prática histórica” (CASTRO, 2016,
p.24).

Pensar a memória como simplesmente uma prática histórica, em perspectiva


foucaultiana, é uma atividade negativa, pois não passa de “um fato para o qual
algumas análises históricas se contentam em fornecer uma descrição” (REVEL, 2011,
p.61). Articular a narrativa da memória a partir de pressupostos cristalizados e
monossêmicos é desprezar os indícios criativos polissêmicos da memória que ocorrem
por meio da ficcionalidade das histórias que envolvem o sujeito.

A ficção é crucial para narrar memórias. A ficcionalidade dá novos horizontes


para a atitude narrativa. Narrar o cotidiano por meio da ficção é um caminho que o
sujeito encontra para a hermenêutica de si. Ficcionar a narrativa de si é reinterpretar
reiventando a memória de si. A ficção é sedutora porque encarna a imaginação de
maneira mais afetiva do que os relatos documentais carregados de suas efetividades.
Por ficção conceitua-se a transformação de coisas heterogêneas, pois sua origem no
latim está associada com a ideia de moldar, tocar, inventar. Haja vista que o conceito
de artesão (artista) no latim significa fictor, de modo que a ficção não é uma
irrealidade imaginativa, mas liberação dos sentidos para a imaginação e para o jogo de
sentido e significado, ao passo que se considera ficção como a redescoberta do ser no
mundo capaz de pensar as coisas e se repensar em relação às coisas10.

Em narrativas de memórias, a ficcionalidade é um fator que desperta o sujeito


para um novo jogo hermenêutico, pois na ficção emerge a dimensão da estética da
recepção. Na estética da recepção das narrativas de memórias, o receptor – que é
narrador de si – encanta-se pela autonarrativa experienciando-se em profundidade,
ecoando as histórias composta de singularidades, como destaca Bakthin:

A atividade estética é também incapaz de tomar posse daquele


momento do Ser que é constituído pela transitividade e aberta
eventicidade do Ser. E o produto da atividade estética não é, com
relação ao significado, o Ser real em processo de devir, e, com

10
Adaptação de nota tirada da aula do prof. Dr. Rui Josgrilberg ministrada no dia 11 de abril de 2017
da disciplina Antropologia dos Sentidos do Programa de Pós Graduação da UMESP.
163

respeito ao seu ser ele entra em comunhão com o Ser através de


um ato histórico de efetiva intuição estética. A intuição estética é
incapaz de apreender a real eventicidade do evento único, porque
suas imagens e configurações são objetivas, isto é, com relação ao
seu conteúdo, elas estão situadas do lado de fora do devir único real
– elas não participam dele (elas participam dela apenas como um
momento constituinte da consciência viva e vivente de um
contemplador (1993, p. 19).
Em um esforço dedutivo da citação bakhtiniana, o evento, por mais
consolidado e solidificado que se constitua, não é arbitrário para o fenômeno
perceptivo que está para além das contingências factuais. O sujeito recria caminhos
herméticos singulares de interpretação de si em relação ao acontecimento do mundo
que se faz a partir do que já foi experienciado em alguma instância pelo ser. Toda essa
complexidade se dá por vias da memória.

VI.1.3 A Memória e a Narrativa do Eu


A partir de proposições epistêmicas, o esforço desta seção foi conceituar os
eixos basilares dos termos narrativa e memória. Articulador entre narrativa e memória,
o conceito ficção emergiu como ponto comum entre essas duas abordagens. Este
vínculo é possível ao considerar que é por meio da ficcionalidade que as narrativas do
eu, do acontecimento de si, forjam a ipseidade do sujeito como ser narrativo.

Pensar em ficcionalização é arguir uma proposta de superação da


demitologização. Como destacado anteriormente, a ficção não é uma criação delirante,
encharcada de alucinações, nem um devaneio mítico; não é uma demitologização, isto
é, a tentativa de compreender a intenção do mito e não a sua eliminação
(BULTMANN, 1999), ou encontrar a medula mítica e, consequentemente, uma
explicação lógica. A ficção é, sobretudo, uma redescoberta do mundo de modo ativo e
criativo.

Quando o sujeito passa a narrar sobre si, apropria-se da memória como fonte
historiográfica de acontecimentos e passa a descrever a si e sua visão de mundo a
partir de suas referências. A textualidade nunca está deslocada da realidade do autor,
logo “a palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou
vivencial. É assim que compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que
despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida” (BAKHTIN,
2006, p. 99). Narrar sobre si é dar sentido e significado para si.
164

Considerar a linguagem em sua abrangência (sons, gestos, símbolos, sinais


convencionados etc.), é esforço ficcional do sujeito a fim de ressignificar suas mais
variadas experiências de horizonte mundo (WITTGENSTEIN, 1975). É processo
dialético entre imanência e transcendência mediado pela linguagem, como segue:

A literatura se torna interlocutora desejável por manter um


compromisso com a realidade, suas contradições e aspirações, ao
mesmo tempo que, ao estabelecer com ela uma leitura ficcional
mediante vozes ficcionais [...] o sujeito é visto dentro daquilo que
ele oferece como produção cultural, como criação de mundos e
fabricação de estruturas que se tornam normativas da vida. Ela
também é vista, porém, dentro de um universo ficcional, naquilo que
ele deixou de ser, configurando suas ausências mais profundas, ao
mesmo tempo em que aponta para seus desejos de realização
(MAGALHÃES, 2000, p.117-118).
Apropriar-se das ficcionalidades memoriais das narrativas do eu pode ser um
viés singular na maneira de abordar os acontecimentos que permeiam o todo do
indivíduo. Pode soar falta de rigor acadêmico a ideia de uma reconstrução do
acontecimento a partir das ficcionalidades narrativas do sujeito em que sua
reminiscência atuará como fonte primária nessa construção. Todavia, seguindo o
arcabouço teórico de Ginzburg, “fazer história eliminando o elemento mítico [...] é
uma posição típica dos historiadores: valeria a pena examiná-la historicamente, desde
suas remotas raízes” (2006, p. 79), isto é, considerar, inclusive, os rudimentos míticos.

Ater-se aos pequenos indícios, afirma Ginzburg, aqueles que são, para o grande
público, imperceptíveis, pode ser uma tendência hermenêutica que desvele novos
horizontes do acontecimento, isto é “permite-nos [...] construir a verdade a partir das
ficções (fables), a história verdadeira a partir da falsa.” (2007, p. 93). Na criação dessa
história transcendental, o aspecto axiológico de verdadeiro e/ou falso cede lugar para a
consciência intencional de encontrar sentido para a existência.

Narrar é uma atividade de recortar. Quando se narra, a memória faz uma


escolha metodológica: ou narra-se a partir de um recorte temático ou episódico
(SOUZA JUNIOR, 2014). Escolher narrar sobre si a partir de um recorte temático é
iniciar a narrativa respondendo a questões atreladas às experiências do sujeito, por
exemplo: amor, ódio, trabalho, formação etc, enfim, uma dimensão temática. Abordar
a narrativa de si sobre o episódio é retomar um evento histórico específico, um
acontecimento de si e, assim, elaborar a construção de si. Independente da maneira em
que a narração do eu ocorra, nunca é de modo estático.
165

Toda narrativa de si estabelece uma relação para além de si mesmo, isto é,


quando uma pessoa narra sobre si em um livro autobiográfico ou até mesmo em uma
história em quadrinhos, ao narrar sobre si há um vínculo direto com seu leitor. O
destinatário, ao ler a história de um outro eu, encontra nessa narrativa rudimentos
peculiares de si mesmo. É impressionante como o reconhecimento de si pode ocorrer
inclusive em narrativas ficcionais (SODRÉ, 2009).

A literatura autobiográfica, independente do gênero, deixa de ser memórias


singulares, de entretenimento e fantasiosas e passa a representar a história dos
leitores/destinatários que, de alguma maneira, percebem um desdobramento mimético
de si mesmo nas narrativas dos outros. Tal apropriação se dá, possivelmente, pelas
contingências humanas, bem como o devir constante que é inerente ao ato de existir.
Encontrar o si mesmo nas narrativas externas, independentemente do nível de
ficcionalidade presente nas literaturas, é estabelecer um vínculo dialógico sui generis
entre narrador e leitor em que o ponto comum é o viver.

Outro ponto relevante a se destacar é que narrar memórias está articulado com
a (trans)formação do eu. A metamorfose humana é um ato constante e imperativo para
a vida. O ser humano é o único ser vivo que transcende a teleologia metafísica que
sintetiza todos os demais seres vivos. Em uma abordagem sartreana, “a existência
precede a essência” (SARTRE, 1987), logo, a tomada de consciência de si altera a
forma como se narra e como se significa o que é narrado. Ao passo que a memória é
narrada, novos horizontes são galgados e descobertos. Narrar sobre si é constituir-se:

A lembrança remete o sujeito a observar-se numa dimensão


genealógica, como processo de recuperação do eu. [...] a memória
narrativa é construção de significados; marca um olhar sobre si em
diferentes tempos e espaços, os quais se articulam com as
lembranças e possibilidades de narrar experiências (JOSSO, 2004, p.
63)
A constituição do sujeito está atrelada diretamente com a hermenêutica que
este faz de si. Observar, ater e ponderar sobre a memória de si mesmo é um fenômeno
valioso para estabelecer um olhar lúcido que auxilie na composição de si. Ponderar os
desdobramentos de si é abrir-se para a estética da existência que faz das experiências
vividas a fonte primária das significações do eu, bem como a retomada de si. Narrar
sobre memórias de si é um ato ficcional de constituição de si mesmo. Em seguida,
apresentaremos a cotidianidade entrelaçada com a teoria narrativa proposta.
166

IV.2 Teoria do Cotidiano


"Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia." (1996) Essa é a frase que
Marina Colassanti escolhe para desenvolver seu poema sobre a cotidianidade.
Automatizar para sobreviver; “Mecanicizar” a fim de orbitar no labirinto trans-
humano. Colassanti escolhe narrar a cotidianidade sobre o prisma do que se tornou
irrefletido; de tão comum, irrelevante, irrisório ou, até mesmo, desprezível. Temas que
perpassam a realidade do sujeito que é forjado a partir de um cotidiano reificado.

Dessa maneira, para uma compreensão coerente do cotidiano, exige-se uma


postura de superação do senso comum, bem como das comodidades inerentes a
pseudoverdades que permeiam a realidade do sujeito. Ao se falar sobre a ideia de
cotidiano, é preciso considerar a normalização da rotina, da conduta, dos hábitos
individuais e coletivos, das crenças plurais, além, é claro, do impacto do
tecnocentrismo e das comunicações e mídias em massa na formação do indivíduo.

Há um contraste significativo nesse processo hermenêutico de compreender a


cotidianidade. Ainda que haja demasiada homogeneização nas condutas dos sujeitos,
nas causas e efeitos de suas ações e reações, é imprescindível esclarecer que o
cotidiano é feito por pinceladas daquilo que não é mecânico, como destaca Heller:

A característica dominante da vida cotidiana é a espontaneidade. É


evidente que nem toda atividade cotidiana é espontânea no mesmo
nível, assim como tampouco uma mesma atividade apresenta-se
como identicamente espontânea em situações diversas, nos diversos
estágios de aprendizado. Mas, em todos os casos, a espontaneidade é
a tendência de toda e qualquer forma de atividade cotidiana. A
espontaneidade caracteriza tanto as motivações particulares (e as
formas particulares de atividade) quando as atividades
humanogenéricas que nela têm lugar (2000, p. 30).
Heller evidencia que o cotidiano tem como estrutura fundamente a
espontaneidade, isto é, aquilo que não é previsto, que extrapola as fronteiras e limites
das mecanizações arbitrárias da vida. Assim, pensar o cotidiano sob um prisma teórico
implica descobrir o incomum no repetido. É descobrir que a essência do cotidiano está
no não-cotidiano ou na cotidianidade (GUIMARÃES, 2002, p. 11). Pensar sobre o
cotidiano é, como se percebe, ater-se aos indícios que se desvelam paulatinamente no
labor de interpretar sobre o fato e suas complexidades. É nesse processo hermenêutico
que as abstrações assumem silhuetas objetivas, como descreve Guimarães:

Para Heller, a vida cotidiana é a constituição e reprodução do


próprio indivíduo e, consequentemente, da própria sociedade, através
167

das objetivações. O processo de objetivação se caracteriza por


essa reprodução, que não ocorre do nada para se efetivar, ela
pressupõe uma ação do homem sob o objeto, transformando-o para
seu uso o benefício. (2002, p. 12)
Nota-se que “chama-se de objetivações em si aquilo que constitui a coisa por si
mesma, ou seja, ela é aquilo porque não é outra coisa” (GUIMARÃES, 2002, p.12).
Essa objetivação é imprescindível para o sujeito que se lança no mundo encharcado de
linguagem, símbolos, ritos e mitos, sentidos e significados. Compreender e dominar
tais objetivações dá ao sujeito aporte necessário para vivenciar o cotidiano, pois “A
objetivação em si é que está presente no cotidiano do senso comum e é a que cria as
condições para vivermos em determinada sociedade com seus costumes, ritos etc.”
(GUIMARÃES, 2002, p. 12).

Intuímos que a ideia de objetivação está relacionada com a ação do sujeito em


apropriar-se dos instrumentos e produtos, costumes e linguagem do meio em que ele
está inserido. É por meio dessas apropriações que os sujeitos vivem em sociedade,
todo o processo axiomático está relacionado com a boa (ou não) apropriação dos
signos, sentidos e significados em que está inserido.

É diante dessa apropriação de sistemas complexos e dialógicos que o sujeito


faz-se fazendo. São as apropriações das peculiaridades do cotidiano como por
exemplo: da heterogeneidade sui generis; as hierarquizações em todos os âmbitos da
vida; as repetições (rotinas); a dimensão financeira (economicismo); os lapsos de
extravagância ou de pessoalidade (espontaneísmo); a noção probabilística de causas e
efeitos; as formas de interagir com o mundo (entonação); o olhar para a história
(precedente); a dimensão mimética (imitação); a efetividade das ações (pragmatismo);
as comparações (analogia) de julgamentos e juízos provisórios como preconceitos e
ultrageneralização (GUIMARÃES, 2002), enfim, elementos que são rotineiros mas
que, diante de uma postura pincelar atípica, aponta para o excepcional. Portanto, é a
ideia do extraordinário dentro do ordinário que evidencia a cotidianidade:

O extraordinário do cotidiano é superar o próprio cotidiano, [...] esse


extraordinário inclui a dimensão da cotidianidade ou do não-
cotidiano, porque é um cotidiano que tem que extrapolar sua
particularidade, sua umbilicalidade, sua centralidade”
(GUIMARÃES, 2002, p. 19).
Seguindo o viés de Guimarães, a cotidianidade é o ato de fazer do casual, da
rotina um evento excepcional. A narrativa do ordinário não se destaca na memória do
sujeito, contudo, as narrativas da cotidianidade, isto é, daquilo que extravasa o
168

habitual, é que eterniza a efemeridade. Mais do que a tomada de consciência, a


narrativa da cotidianidade é um rompimento legítimo do consuetudinário. Mas, como
romper com o banal? Transcender a órbita do costumeiro não é um esforço fácil, por
isso uma ferramenta importante para esse processo de superação é a arte.

Pensar sobre arte é ponderar, sobretudo, na ação manufaturada do artesão, do


artista, sobre determinado objeto. Esse manusear do artesão é uma extensão da ficção,
isto é, daquele que com as próprias mãos traduz o cosmos em sua realidade. Portanto,
a arte é confecção ficcional com o intuito de desvelar a ipseidade da cotidianidade.
Nessa direção, Guimarães considera como a arte é uma ferramenta eficaz nesse
processo de interpretação de existência, isto é:

A arte é considerada uma dimensão do não-cotidiano, porque através


dela é possível liberar a criatividade e a imaginação, é possível
romper com regras e normas estabelecidas, ela representa a fronteira
sem limites, onde tudo é possível a todos, portanto, em igualdade de
condições. É uma dimensão que representa o rompimento com o
instituído, a ruptura com as amarras do cotidiano particular; é o
grande voo do homem (GUIMARÃES, 2002, p. 19-20).
Observa-se que a arte é mais do que um meio de extravagância, é a caricatura
da própria alma do sujeito. A cotidianidade propõe um salto que transcende a
dimensão histórica sem desprezar a historicidade do sujeito. Ainda que o espectro
épico contorne a ideia da cotidianidade, não é possível viver o não-cotidiano sempre,
haja vista a tendência em banalizar a cotidianidade. Nesse viés, Guimarães aponta que
“o homem não pode viver sempre na esfera do não-cotidiano, ou seja, não passará o
tempo todo num processo de superação de sua relação de indivíduo com as formas de
atividade que lhe dão sucesso e mobilidade na vida cotidiana” (2002, p.21). O
rotineiro é imprescindível para se criar a noção do extraordinário.

A noção de cotidianidade está diretamente conectada com a construção das


subjetividades dos indivíduos. Sua axiologia, isto é, seus valores, estão marcados por
traços repetidos no cotidiano. Nessa dialética de apreensão e apropriação dos sentidos
e significados, fato específico da cotidianidade, caricaturam os traços das condutas
morais e éticas da sociedade, como vê-se em Guimarães:

A moral pressupõe valores que se baseiam na consciência tanto ética


quanto social e que acabam por definir toda ação e comportamento.
Ou seja, a moral subjaz toda ação. Porém a grande diferença está em
essa ação ser ou não do cotidiano particular. Para que ela se
caracterize pela não-cotidianidade é necessário que a ação tenha um
conteúdo moral (2002, p. 23).
169

A ação moral é aquilo que suprime a cotidianidade, haja vista que a ação
moral está fundamentada em um princípio anterior, fator à priori que moldura o
cotidiano, elimina o atributo próprio e inseparável da cotidianidade. Ao compreender
as núncias típicas do pragmatismo ético/moral, viabiliza-se a possibilidade em
discernir o que é ou não cotidianidade. O embate é: como distinguir entre o que é ou
não moral/ético? Guimarães enumera quatro fatores retomados por Heller. O primeiro
fator é “a elevação das motivações particulares, que se definiriam por uma opção ao
que se refere à genericidade em oposição a sua particularidade” (2002, p. 23). Este
aspecto está relacionado com a influência no meio social, no impacto das instituições,
na composição valorativa e pragmática do sujeito.

O segundo aspecto é a “escolha de fins e conteúdos voltados à genericidade, ou


seja, os fins e conteúdo da ação não devem ser definidos pelo interesse do eu
particular” (2002, p. 23), logo, o axioma moral aniquila o protagonismo do sujeito e
faz dele um ente que responde às demandas impostas pelas normatizações da
sociedade em que está inserido. O terceiro fator elencado por Guimarães é a
“constância na elevação às determinadas exigências, isso significa que, buscar a
superação dos interesses da particularidade deve ser uma opção constante e busca
consciente, não deve ser um impulso de momento” (2002, p. 23), a vontade do sujeito
está submetida à vontade e expectativa social e das instituições reificadoras. O sujeito
é transformado em uma coisa apta, apenas, para cumprir o seu papel social
normatizado pela estrutura dominante. O sujeito deixa de ser ator de si mesmo.

Por fim, o quarto fator é “a capacidade de aplicar essas exigências em todas as


situações de vida, ou seja, é uma busca consciente dessa elevação que deve ter
aplicabilidade nas situações concretas da vida, não é uma dimensão puramente etérea
ou abstrata, ela deve se materializar no próprio cotidiano” (2002, p. 23). Sob este
prisma, o sujeito apropria-se de uma estruturação pragmática que suprime toda postura
crítica e reflexiva, pois naturaliza a absorção de um roteiro que atenda às expectativas
basilares da infraestrutura, que nada se relacionada com as contingências distintas do
sujeito.

Verifica-se que o conteúdo moral das ações perpassa a tensão entre as


motivações particulares em relação às tendências voltadas à genericidade, isto é, a
moralidade está fincada no vago, no indeterminado, no genérico; denota, também, a
arbitrariedade dos conteúdos e fins generalistas em relação às tendências
170

particularistas do sujeito entre escolher e decidir sobre determinada situação;


destaca a adequação do sujeito e o vínculo com às exigências das necessidades
externas, sendo essas, por sua vez, as que balizaram as posturas, as intencionalidades,
as adequações do sujeito, todo este processo de modo consciente ao que se estabelece
socialmente; e, por fim, o elemento é a constante adequação do sujeito às instituições
hipostasiadas, isto é, de modo silencioso e naturalizado, o sujeito se empenha –
conscientemente – em se adequar às exigências compulsórias que normalizam o
cotidiano.

Portanto, a ideia de cotidiano, bem como de cotidianidade, está fortemente


elencada com a construção das subjetividades dos sujeitos. As condutas de manada, as
objetificações sistêmicas, as normalizações dos hábitos, a domesticação do eu, enfim,
elementos transcendentais que estão de modo intensivo conectados com as eminências
contingenciais. É quase uma aporia a tentativa em responder se é o sujeito que
impacta a sociedade ou a sociedade que impacta e (des)constrói o sujeito? Outra
questão é: diante das normalizações morais presentes nas estruturas sistêmicas da
sociedade é possível pinçar algum indício de cotidianidade? Independente do agente
de influência ou da distinção entre a moralidade do cotidiano e a excepcionalidade da
cotidianidade, é a constituição da subjetividade do sujeito que dará novos aparatos
críticos e representativos do comum e do atípico.

Nesta seção, tentamos descrever uma teoria sobre o cotidiano e a cotidianidade,


corroborando para o discernimento entre estes dois conceitos, haja vista que o
cotidiano é aquilo que está exíguo ao senso comum, às rotinas diárias pertinentes e
constantes para todos os sujeitos. Já a cotidianidade se realça como aquilo que salta do
comum, que se vincula ao pessoal, que eterniza a rotina. Entretanto, toda essa forma
de perceber e interagir com o mundo está cativa ao sujeito e sua subjetividade. Uma
subjetividade que, em certa medida, está vulnerável às investidas ideológicas sociais,
as quais têm o poder de forjar ou desmantelar percepções éticas e morais.

IV.3 Narrativas do Cotidiano: Memórias da cotidianidade


Esta seção terá como fio condutor a articulação entre a teoria narrativa de
memórias e os conceitos de cotidiano e cotidianidade propostos anteriormente com as
vozes dos discentes, docentes e agentes administrativos na Escola Estadual João
Galeão Carvalhal a fim de elencar. Ainda que ocupem funções diferentes na Unidade
171

Escolar, todas as pessoas que participaram desta tese apresentaram tangências e


divergências quanto ao que se refere o tema da educação. É por meio da narrativa que
o sujeito se faz a estética da existência, ou seja, compõem a subjetividade, isto é:

O que somos ou, melhor ainda, o sentido de quem somos, depende


das histórias que contamos e das que contamos a nós mesmos. Em
particular, das construções narrativas nas quais cada um de nós é, ao
mesmo tempo, o autor, o narrador e o personagem principal. Por
outro lado, essas histórias estão construídas em relação às histórias
que escutamos, que lemos e que, de alguma maneira, nos dizem
respeito na medida em que estamos compelidos a produzir nossa
história em relação a elas. Por último, essas histórias pessoais que
nos constituem estão produzidas e mediadas no interior de práticas
sociais mais ou menos institucionalizadas. Para dizer de forma
breve, o sentido de quem somos é análogo à construção e a
interpretação de um texto narrativo, que como tal, obtém seu
significado tanto das relações de intertextualidade que mantém com
outros textos como de seu funcionamento pragmático em um
contexto (LARROSA, 1994, p. 49).
A narrativa de si é a amarração entre autor, narrador e personagem, tal tríade faz
do sujeito criador e intérprete de si mesmo. Ponderar tais elementos, faz com que a
subjetividade ganhe entornos objetivos, não no sentido da objetificação, em vez disso,
como a consciência do que se é e porquê se é. Narrar o si mesmo tendo como ponto de
partida a trama do cotidiano faz com que o sujeito não só perceba o que se torna, mas
as influências que constituem a estética de sua existência.
As conversas com as personagens seguiram a estrutura do texto platônico
“Alcibíades Primeiro”, em que se buscou dialogar de modo despretensioso, mas,
simultaneamente, provocar os discentes e docentes a expor suas percepções sobre
educação. Em geral, as conversas tiveram como disparador as seguintes proposições:
você planejou chegar aonde você está? Como você considera o desenvolvimento da
sua vida? O caminho foi árduo ou seguiu um roteiro tranquilamente? Você é satisfeito
com o que se tornou, com quem você é? Você desejaria viver com aquilo que já
possui, ou morrer se não lhe fosse possível adquirir bens maiores? Você se considera
preparado para exercer a função que exerce hoje? De onde vem esse preparo? Qual foi
o papel dos docentes em sua formação? Existe alguém que marcou sua trajetória?
Você se sente apto ou inapto, preparado ou despreparado para exercer funções que
exigem preparo e competência? Você tem desejo de ser o melhor em sua área? O que
significa ser melhor? O que o senso comum diz sobre sua pretensão profissional? A
multidão foi seu tutor? Isto é, para chegar até aqui, para ser o que é, você foi moldado
pela multidão? Como saber? (Não se recorre a professores muito estimáveis ao apelar
172

para a multidão). Quem foi o responsável por seus sucessos e fracassos? Por que
se preparar para desempenhar uma determinada função se a maioria das pessoas que a
executam são despreparadas? E a educação, participou de todo esse processo ou foi
um hiato em sua jornada?
Os discentes que contribuíram com suas narrativas apresentavam uma dimensão
diferente no que se refere à educação. A ideia de educação como aparato técnico a fim
de encontrar um bom trabalho acompanhou as narrativas de ambos os discentes.
Contudo, o que se diferencia é que, por mais que os dois alunos tenham trabalhado a
ideia de que há uma pressão familiar e social no que se refere à capitalização
financeira, ambos tinham em perspectiva outro horizonte, ou seja: buscam realização
pessoal e para alcançar este sonho a educação é imprescindível. Por exemplo, a
discente “R. L” relatou que, quando expôs ao pai que gostaria de fazer o curso de
psicologia ou terapia ocupacional, o pai disse-lhe que ela não ganharia muito dinheiro.
Porém, para ela, mais importante do que a retribuição financeira é a satisfação em
realizar um projeto de vida. Quando perguntei se ela exerceria uma profissão mesmo
sabendo que não ganharia muito dinheiro ou não enriqueceria, ela respondeu:
Iria. Iria porque eu não estou indo pelo dinheiro em si, mas pelo
trabalho que eu acho lindo. É porque dinheiro, assim, é uma coisa
que a pessoa padronizou, nós precisamos do dinheiro pra fazer as
coisas, mas ele não está envolvido em tudo. Igual, eles colocam.
Tem coisas mais importantes que o dinheiro. O amor... ajudar o
próximo. Não se paga isso. O preço de amar uma pessoa... tem uns
idiotas sim... mas... que levam até pra França, mas não tá certo isso.
Mais do que o retorno pecuniário, os jovens narram que buscam satisfação em
viver. A tensão que as narrativas revelam é que, por um lado, os responsáveis pelos
alunos compreendem a educação como elemento indispensável por ser aquele fator
que subsidiará o jovem para o mercado de trabalho, e, por outro lado, os discentes
querem encontrar na escola alguma realização e satisfação pessoal. Ainda assim,
existem outros horizontes que cativam a existência dos participantes. Se, por um lado,
a lógica do mercado é arbitrária, por outro, a subjetividade estabelece uma nova
axiologia, ou seja, novos valores que dão sentido e significado para a existência.
Os discentes percebem como o mundo capitalista é implacável quanto aos
quesitos financeiros. Por exemplo, “R. L.” afirma que ouve constantemente dos
familiares que “tem que trabalhar pra ser alguém na vida”, logo, é o trabalho que
garante a subsistência da pessoa, pois é por meio do trabalho que ela ganhará dinheiro.
Com o discente “F. G.” não é diferente. Depois de externar para a mãe o desejo de
173

fazer a faculdade de Música, ouviu uma orientação diferente, conforme o próprio


“F. G.” descreve:
No começo ela não gostou muito da ideia não. Ela disse: você vai
fazer e não vai dar dinheiro. Não vai ser uma coisa boa pra você no
futuro. Daí eu pensei em odontologia, em ADM só que eu gosto
mesmo da música, eu falei, eu falei, ah, se eu engrenar em uma
faculdade de administração tem muitas coisas também, mas eu não
domino exatas. Odontologia pode ser que eu goste, mas eu tenho um
pouco de aflição de agulha, talvez impeça de fazer alguma coisa.
Música eu já estou há três anos tocando, e talvez engreno.
A crise em que “F. G.” se encontra não é devido a suas certezas e sonhos, mas
devido à preocupação da mãe e, posteriormente, do avô, em fazer um curso que não
dará retorno financeiro e sustento no futuro. Inclusive, qualquer alternativa a seu
sonho, está diretamente ligada com à noção de trabalho. Em pouco mais de vinte
minutos de conversa, a palavra trabalho foi proferida oito vezes, número inferior,
apenas, para o termo mãe, que apareceu dezoito vezes. Está na subjetividade tanto de
“F. G.” com de “R. L.” a ideia de que o trabalho produtivo é o correto, por isso, antes
de escolher o curso, é preciso ponderar até que ponto as profissões serão rentáveis.
Os docentes, por sua vez, olham para a vida com outras lentes interpretativas.
Eles percebem na educação não só o fio que os conduziu até onde chegaram,
sobretudo compreendem a educação como o campo de trabalho. Inclusive, é possível
conjecturar que a docência aconteceu na vida de muitos docentes não por fazer parte
de um projeto, mas por ser a opção que restava. Algo nessa direção aparece na
conversa com o professor “H. F.”, de educação física. Quando inquerido sobre quais
eram seus planos profissionais para a idade adulta, ele respondeu com convicção: “O
“H. F.” pequeninho queria ser engenheiro”. Contrariando o senso comum, mesmo
sendo da Educação Física, o professor. “H. F.” não queria ser jogador de futebol,
como ele afirma:

Não. Eu jogava, mas era coisa de jovem. Engenheiro, meu sonho de


estudar era engenheiro. Tinha facilidade com matemática, na época
de escola, né, então nunca tive problema com matemática, com essas
disciplinas ligadas. Mas como na cidade do “H. F” só tinha escola
superior de educação física, e o “H.F.” não tinha dinheiro pra ir pra
outras escolas, que tinha que pagar escola, transporte, pagar tudo. O
“H.F” fez educação física na cidade dele.
Ainda que o sonho estivesse voltado aos números, a engenharia, as
circunstâncias do cotidiano fizeram com que o professor “H. F.” escolhesse aquilo que
era viável, aliás, o curso de Educação física foi um evento que aconteceu na vida do
“H. F.” não porque ele planejou, como ele bem destaca “[ser] Professor foi uma
174

oportunidade que Deus deu e eu acho assim que Ele disse aqui você vai entrar e
vai ficar. Ai quando eu voltei, prestei concurso e fiquei”.

Não foi uma escolha planejada, mas uma oportunidade, pois o professor “H.
F”., antes de assumir a docência, trabalhava com alvearia. A faculdade da cidade onde
ele residia pediu que ele prestasse serviço. Em seguida, perguntaram se ele não queria
fazer o curso de educação física. Ele aceitou e, aos poucos, a docência foi acontecendo
em sua vida, como o próprio professor relata:

Tanto que essa vaga na faculdade que eu te falei, foi através de um


chamado de Deus. Ele me colocou lá no momento certo, colocou a
pessoa certa pra falar comigo. Esse tesoureiro que não queria me
pagar, ele que disse: Ô, por que você não presta o vestibular, já tá
aqui mesmo? Você tem o ensino médio? Tenho. Porque você não
presta o vestibular, vai ter uma segunda chance, vai ter uma turma
nova e não sei o que, e vai ter umas vagas novas. E eu... não sei se
devo fazer. Paga a taxa de inscrição e faz a prova, uai. Se o cê
passar... e foi o que eu fiz. Marcou a prova, tinha 150 candidatos, eu
passei em 13 então, tava bão... ou o resto era tudo cabeção, ou eles
foram mal e eu mió. Aí tinha 15 vagas, entrei nessa aí. Depois que
entrei eu disse, não vou sair. A partir do momento que eu paguei
uma mensalidade (que era particular), paguei uma mensalidade, se
eu saí, eu tô perdendo em um investimento que eu fiz. E outra coisa,
por isso que eu te falo que Deus cuida, Ele mesmo providenciando
trabalho pra mim um atrás do outro.
Essa experiência da decisão pelo curso superior também foi semelhante com a
professora “R. M.”, que escolheu um curso de Biologia não porque era a primeira
opção, mas porque as oportunidades do momento vivencial conduziram sua vida para
essa escolha. A docência, ainda que muito importante, não era a primeira opção, mas
tornou-se vocação ao passo que houve ressignificação dos sentidos, como ela relata:
Dar aula é mais importante. Você está construindo um país você
dando aula, você constrói a população... pelo amor de Deus, não é
que seja uma coisa mais importante, é uma coisa mais light. Trilha...
sempre gostei de mato, eu sempre gostei de trilha, eu sempre gostei
dessa coisa de natureza, então eu queria me enfiar nessa... queria ser
hippie, sei lá... eu era meio, no ensino médio eu já era meio riponga,
sabe, então eu achava que eu ia me identificar com o meio ambiente,
e aí a engenharia ambiental era muito caro, e aí a minha faculdade já
foi escolhida já meio assim por questões financeiras, né. Não,
engenharia ambiental inviável, porque isso não dá pra eu pagar,
porque minha mãe era concursada também [auxiliar de limpeza].
É impressionante a relação das narrativas com a ideia de que a educação é um
acontecimento que articula a ideia de tridimensionalidade proposta por Clandini e
Connely (2011), isto é, os docentes revelam a dimensão pessoal e social, a interação e
continuidade entre presente, passado e futuro, além da compreensão e reflexão ao
175

lugar vivencial. As narrativas do cotidiano dos docentes demonstram ao mesmo


tempo apreensão sobre a atual condição da educação, mas, também, esperança diante
do que a educação pode fazer na vida do sujeito. A singularidade e a pluralidade não
se excluem nesse processo dialógico. São conceitos complementares que se
desdobram nas narrativas do si mesmo. No dizer de Josso:
A história da vida narrada é assim uma mediação do conhecimento
de si, em sua existencialidade, o qual oferece à reflexão de seu autor
oportunidades de tomada de consciência sobre seus diferentes
registros de expressão e de representações de si, assim como sobre as
dinâmicas que orientam a formação (2010, p. 69).
O pressuposto foucaultiano de que a constituição de si, da sua história, se dá em
relação com o outro é evidenciada nas narrativas. É uma troca simbólica de sentidos e
significados. É a forma que o sujeito tem de ficcionar sobre si mesmo. É caminhar
para si em um projeto de conhecimento da existencialidade. Algo nessa direção
aconteceu com o prof. “J. A.”, que foi influenciado por seu professor de física do
ensino médio a cursar a licenciatura em física. Tudo mudou devido a sua experiência
com este professor.
Neste jogo hermenêutico, os docentes apontam como sua relação com o tempo
se dá em outras categorias, ou melhor, a dimensão que se tem do tempo é um processo
de revisitar a si mesmo encontrando novos sentidos e significados na hermenêutica de
si. Não se quer controlar o tempo, em vez disso, espera-se interpretar a temporalidade
em sua fluidez. A narrativa da professora “R. M.” circula em várias dimensões
temporais, isto é, para significar o seu presente, ela transita pelo tempo, representando,
encontrando e dando sentido. A temporalidade não só aproxima a noção de significado
dado pelo autor, como também faz os sentidos transcenderam as molduras dos eventos
em si.
O “topos” que aparece em todas as narrativas dos professores é a questão
financeira. Ainda que os docentes e corpo administrativo reconheçam a pequenez do
pagamento financeiro ao que se refere a profissão educativa, isso não é impeditivo
para seu exercício vocacional. A professora “R. M.”, por exemplo, diz que “seria bom
se fosse um pouquinho mais, se houvesse um pouco mais de reconhecimento”, mas
isso não intimida os docentes de realizarem, como afirma “H. F.” “o melhor possível
dentro das possibilidades”.
Com essas narrativas, é possível aproximar-se do duplo foucaultiano descrito
por Dreyfus e Rabinow (1995), em que fica claro que o sujeito é constituído por
duplos: é ser empírico e transcendental; ser do cogito e do impensado; ser do recuo e
176

do retorno da origem. A articulação desses duplos é que faz do sujeito um ser


autêntico em seu processo interpretativo do cotidiano, conseguindo, portanto, pinçar a
cotidianidade dentro do ordinário, o extraordinário na mesmice. O ser humano não
quer só o necessário para a existência, quer encontrar sentido para o existir. As
narrativas do cotidiano escolar que serão abordadas no capítulo cinco apresentarão
como os participantes buscam equalizar esses duplos que são inerentes ao sujeito, a
fim de uma compreensão integral sobre si. Por essa via, Josso destaca:
O que está em jogo nesse conhecimento de si mesmo não é apenas
compreender como nos formamos por meio de um conjunto de
experiências, ao longo da nossa vida, mas sim tomar consciência de
que esse reconhecimento de si mesmo como sujeito, mais ou menos
ativo ou passivo, conforme as circunstâncias, permite a pessoa, daí
em diante, encarar o seu itinerário de vida, os seus investimentos e
os seus objetivos na base de uma autoorientação possível, que
articule de uma forma mais consciente as suas heranças, as suas
experiências formadoras, os seus grupos de convívio, as suas
valorizações, os seus desejos e o seu imaginário nas oportunidades
socioculturais que soube aproveitar, criar e explorar, para que surja
um ser que aprenda a identificar e a combinar constrangimentos e
margens de liberdade. Transformar a vida sócioculturalmente
programada numa obra inédita a construir, guiada por um aumento
de lucidez, tal é o objetivo central que oferece transformação da
abordagem “história de vida” (2010, p, 84).
Por mais que a educação tenha passado na vida de todos os participantes desta
tese, uma pergunta que gerou certo incômodo ao ser realizada foi: Se a Escola
Estadual Senador João Galeão Carvalhal fechasse, até que ponto ela faria falta na vida
da comunidade, dos alunos? Os discentes não conseguiram mensurar o impacto do
fechamento daquela escola, já que existem muitas outras escolas no seu entorno. Já os
docentes e agentes administrativos, além dos movimentos profissionais, destacaram
que não poucas vezes a escola tem servido como uma “creche” para os pais que
precisam trabalhar fora, ou um local de depósito dos filhos. Sua relevância formativa e
constitutiva permanece no campo idealista, pois na prática o que persiste é a noção
utilitária.
Como, pois, pensar o papel da educação como ferramenta constitutiva da
subjetividade dos sujeitos? O texto platônico pode auxiliar nesse processo
interpretativo. Foucault escolhe o “Alcibíades Primeiro”, de Platão, por encontrar nele
a característica incipiente do cuidado de si. É no encontro com o Outro, em diálogo,
que Alcibíades reconhece sua condição e se dá conta do que é preciso mudar. Assim,
apresentaremos uma breve análise do texto platônico.
177

IV.4 Análise do Primeiro Alcibíades, de Platão


Para apreender as provocações do filósofo francês Michel Foucault em seu texto
“Hermenêutica do Sujeito”, faz-se necessário interpretar o texto de Platão –
Alcibíades Primeiro – e, em seguida, entrelaçar os retalhos conceituais que abarcam o
eixo dessa tentativa da hermenêutica do sujeito 11. Esta seção apresentará, em um
primeiro momento, uma breve análise sincrônica do texto, em que se considerará a
dimensão contextual do Alcibíades Primeiro e, em seguida, uma análise hermenêutica
diacrônica do texto platônico, a fim de apontar alguns elementos que tangenciam os
elementos elencados por Michel Foucault, bem como um entrelaçamento com a teoria
narrativa de memória que fora apresentado anteriormente.

VI.4.1 Alcibíades Primeiro – Análise Sincrônica


Com o intuito de compreender a proposta de Michel Foucault sobre o cuidado
de si, a técnica ou arte da vida e o conhecimento de si mesmo é imprescindível a
análise literária do texto do Alcibíades Primeiro, de Platão. Não será esforço desta tese
uma análise de método histórico-crítico em que se busca demonstrar a autenticidade
do texto do Alcibíades Primeiro como texto autêntico platônico, ou análise exaustiva
dos termos presentes nessa narrativa. O esforço desta tese é, a partir texto foucaultiano
“Hermenêutica do Sujeito”, compreender os elementos centrais na ideia do critério do
cuidado de si expostas pelo filósofo francês e aplicar a filosofia da educação como
uma via possível para a formação e constituição do sujeito. Porém, compreender o
texto Alcibíades Primeiro é valioso, pois revela os critérios escolhidos por Foucault
para construir sua abordagem sobre o cuidado de si.

É possível identificar neste texto platônico rudimentos centrais da abordagem


filosófica clássica, haja vista que “o Alcibíades Primeiro é destacado como porta de
entrada para a filosofia platônica por ser o conhecimento de si mesmo (alma) como
pré-condição para o pensamento filosófico” (DIAS, 2015, p. 25). Nesse diálogo,
Alcibíades está diante de um novo desafio: a vida política. Por pertencer a uma família
considerada importante, Alcibíades carrega o fardo de cumprir o ofício político. É
nessa jornada de ofício que Sócrates instiga a discussão demonstrando que, mais do

11
Optamos pela Dissertação de mestrado de Ana Cristina de Souza Pires Dias por ser um
trabalho recente e por conservar o próprio texto grego. Esse trabalho foi significativo no auxílio de
análise e comparação semântica e exegética da escolha da tradutora em relação ao todo do texto.
178

que ter a descendência apropriada para seguir a carreira pública, é imprescindível


conhecer técnicas que lancem o sujeito para si e estabeleçam boas relações com
aqueles que serão governados.

O colóquio entre Alcibíades e Sócrates se dá a partir de uma aproximação


despretensiosa em que o aprendiz tenta fascinar seu mestre ao expor sua iniciação na
vida pública. Sócrates fica surpreso, pois nunca havia visto Alcibíades se preocupar
com disciplinas inerentes à vida pública, ao jogo político. Assim, o diálogo se
intensifica. Se de um lado Alcibíades infere sobre si mesmo e sua (pseudo) prematura
competência para se lançar na vida pública, Sócrates, por meio da maiêutica e ironia –
instrumentos típicos da dialética socrática – rubrica a inabilidade de Alcibíades para
tal empreitada. Não adianta entrar na vida pública só para seguir a tendência familiar
aristocrata, é preciso dominar o real sentido do que é fazer parte da vida pública.

Mais do que apontar a conspurcação técnica do aprendiz no que tange à labuta


política, Sócrates provoca Alcibíades a uma jornada para dentro de si, para o ato de
conhecimento de si gnoskw seatou, pois ao passo que supera as superfícies e adentra a
profundidade do si mesmo, o discípulo estará pronto para se lançar nas mais variadas
empreitadas intrínsecas à vida pública. Antes de governar os outros é preciso governar
a si mesmo. Para Sócrates, o conhecimento de si e o cuidado de si é o que faz o sujeito
não negligenciar a si mesmo, como segue no texto platônico:

[124 a-b6] (...) Mas, ó bem aventurado, obedecendo a mim e à


inscrição em Delfos, conheça a si mesmo! Pois são esses os nossos
adversários, e não aqueles que você considerava. Não poderíamos
superá-los em outra coisa senão em cuidado e em arte. Se você
negligenciar isso, negligenciará também o seu futuro renome entre
os helenos e os bárbaros, o que você me parece almejar como
nenhum outro homem almeja alguma coisa (DIAS, 2015, p. 133).
A provocação socrática apresenta a distinção entre “o cuidado daquilo que diz
respeito a alguém e o cuidado de alguém de si mesmo” (DIAS, 2015, p. 48). O
primeiro ponto está relacionado com o cuidado relativo a si, isto é, o cuidado com os
predicados de si. Já o segundo ponto elencado por Sócrates é o cuidado do atributo de
si, a atenção sobre as essencialidades. O cuidado com os predicados significa ater-se
ao que se revela do sujeito (ABBAGNANO, 2007), seus adjetivos, suas qualidades,
seus aspectos perceptíveis, porém não é uma empreitada a respeito do quesito central
de si; é o cuidado fragmentado e inconsistente. Já o cuidado com os atributos é a ação
sobre o si mesmo, sobre o que se revela como essencialidade, na abordagem
179

espinosista atributo é o que o intelecto percebe da substância como constituindo a


essência dela (ESPINOSA, 2009), portanto, o cuidado de si tem uma dimensão
ontológica.

No diálogo entre mestre e discípulo há a prudência em conceituar o que se


entende por cuidado de si. Sócrates, após ouvir uma resposta negativa de Alcibíades
no tangente à arte do cuidado de si – haja vista que o jovem aprendiz não sabia como
conceituar essa expressão – apresenta, de modo prévio, uma primeira definição da arte
do cuidado de si, afirma Sócrates: “mas estamos de acordo neste ponto, ao menos: que
não é aquela através da qual tornaríamos melhor qualquer coisa que nos diz respeito,
mas aquela através da qual tornaríamos melhores a nós mesmos” (DIAS, 2015, p.
151). O cuidado de si não tem como proposição os adjetivos do sujeito, mas o contato
com a dimensão sui generis própria e peculiar do sujeito.

A compreensão deste aspecto do cuidado de si está muito presente na teoria


platônica, a qual aponta que o corpo é o cárcere da alma. Há uma divisão entre a
perfectibilidade e ascendência da alma e a imperfectibilidade e decadência do corpo.
Não se deve tratar do corpo para sanar coisas inerentes à alma ou pensar uma equação
entre corpo e alma – haja vista que o corpo é restritivo e não há articulação entre
corpo e alma na teoria platônica – em vez disso, é preciso pensar na hierarquia da
alma sobre o corpo: o homem é, antes de qualquer coisa, alma – haja vista que a alma
é o item que comanda o corpo (DIAS, 2015, p. 157). No próprio diálogo platônico
salta a premissa de que o “Cuidar de si mesmo, portanto, pode ser definido como um
processo de aprimoramento da alma, o que está diretamente relacionado à inscrição do
templo de Delfos, tendo em vista que seria impossível o aprimoramento de alguém
que não conhece a si mesmo (DIAS, 2015, p. 151), portanto “A definição do cuidado
de si mesmo, portanto, vincula-se diretamente com o reconhecimento e a compreensão
do homem como alma” (DIAS, 2015, p. 49).

Alcibíades revela prepotência em demasia ao superestimar-se, lançando-se


para além da realidade. Ao desvelar que sua beleza física e status social representavam
a síntese de si mesmo, Alcibíades manifesta grande fragilidade existencial, bem como
sua ignorância. Inicia-se, pois, o percurso para o cuidado de si. Sócrates, o mestre que
está em um tópos diferenciado, é o que seduz e excita Alcibíades a cultivar as virtudes
que transcendem o nível da efemeridade. É no eros presente em Alcibíades e Sócrates
que o cuidado de si se viabiliza, como destaca Dias:
180

Sócrates, com sua abordagem erótico-educativa, age como um


provocador de seus interlocutores, a fim de incitá-los a refletirem
sobre suas atuações nos vários papéis que desempenham enquanto
cidadãos livres e, ao refletirem sobre elas, terem a oportunidade de
uma transformação radical em suas antigas concepções e desejos
(2015, p. 57).
Mais do que informar ou (de)formar, o jogo dialético entre Sócrates e
Alcibíades se intensifica quando o mestre não quer simplesmente apresentar conceitos
externos que auxiliarão na lida administrativa de seu interlocutor, em vez disso, a
contribuição de Sócrates é fazer que Alcibíades tenha tempo para observar e cuidar de
si mesmo. Portanto, o texto de Alcibíades Primeiro “pode representar um retrato
inicial da dimensão educativa da filosofia platônica, ou seja, um movimento de
atração para o caminho do autoconhecimento oferecido pela filosofia, caminho esse
que se inicia a partir da aporia revelada pela refutação socrática” (DIAS, 2015, p. 55).

Após a análise sincrônica do texto platônico, apresentaremos uma análise


diacrônica do texto platônico Alcibíades Primeiro, a fim de apontar elementos que
contribuam para a fundamentação teórica da constituição do si mesmo.

IV.4.2 Alcibíades Primeiro – Análise Diacrônica

A intensidade do diálogo entre Sócrates e Alcibíades já é antecipada nas


primeiras linhas do texto platônico, a julgar pela forma como Sócrates interroga seu
antigo amante: “ó filho de Clínias, penso que você se admira por que eu, tendo sido
seu primeiro amante, sou o único a não ter me afastado de você enquanto os demais o
abandonaram, e porque eles o importunavam com suas conversas, enquanto eu nada
lhe declarei em anos”(DIAS, 2015, p. 63).

Ainda que Sócrates não estivesse perto, observava como Alcíbiades lidava com
seus amantes. Mesmo sendo muitos os amantes do jovem aprendiz, todos o
abandonaram. Alcíbiades tem uma questão a ser resolvida e conta com a ajuda do
antigo mestre. Sócrates, por sua vez, descreve Alcibíades como uma pessoa
prepotente: “você diz não necessitar de ninguém para nada, pois é tão elevada a sua
condição que não necessita de nada, a começar pelo corpo e a terminar na alma”
(DIAS, 2015, p. 64). A autossuficiência de Alcibíades é alimentada pelo meio em que
está inserido, haja vista que pertencer à aristocracia era estabelecer um abismo entre
um cidadão e as demais pessoas da cidade, como se vê abaixo:
181

O kalos kagathos [belo, bom, virtuoso] grego dos tempos


clássicos releva essa origem tão claramente como o gentleman
inglês. Ambas as palavras procedem do tipo da aristocracia
cavaleiresca. Desde o momento, porém, em que a sociedade
burguesa dominante adotou aquelas formas, a ideia que as inspiram
converteu-se num bem universal e numa norma para toda a gente.
(JAEGER, 2003, p. 24).
A imagem que Alcibíades tem de si mesmo é o espelhamento das influências
sociais de seu tempo. É devido a essa prepotência de Alcibíades que o tema do
cuidado de si ganha novos entornos no texto platônico. Alcibíades se considera maior
e mais belo, a vaidade é o estigma da sua alma. Tal postura se deve pela condição de
sua família ser proeminente em Atenas. As pessoas que fazem parte do seu círculo de
amizades estão ali para satisfazer seus desejos, logo a relação se fundamenta em uma
hierarquia de prestação de serviços. As maiores forças de Alcibíades estão em outras
pessoas, não em si mesmo, como destaca o texto: “Mas, dentre tudo aquilo que citei,
você considera que o seu maior poderio provém de Péricles, filho de Xantipo, seu
tutor e de seu irmão por força de seu pai; ele que não apenas nessa cidade é capaz de
fazer o que desejar, mas também em toda a Hélade e, entre os bárbaros e em muitas
povoações grandiosas (DIAS, 2015, p. 66).

Sócrates aponta que o caráter de Alcibíades fora comprometido pela vaidade e


pelo poder que tinha. O texto destaca que os amantes o deixaram, todavia não aponta
o motivo. Sócrates, por sua vez, com todos os motivos para deixá-lo, permanece. Por
quê? Alcíbiades diz que por pouco Sócrates o antecipa, pois ele iria procurar o seu
antigo mestre e amante para perguntar sobre o que estava acontecendo de errado em
sua vida para acumular tantas perdas, como aponta o texto: “Na verdade, eu me
pergunto qual é o meu problema e ficaria muito agradecido de saber” (DIAS, 2015, p.
65). A resposta de Sócrates é interessante: “Então me escutará de bom grado, ao que
parece, se é verdade que, como você diz, deseja descobrir o que pensa; e eu vou lhe
contar esperando que me escute com perseverança” (DIAS, 2015, p. 65).

Sócrates afirma que é difícil ser sincero com uma pessoa que nunca baixa a
guarda; que nunca cede para os amantes; que sempre se considera naturalmente
superior a todas as demais pessoas. A postura indiferente e prepotente é um dos
motivos pelos quais as relações sejam marcadas por falta de sinceridade verdadeira.
Por este prisma, Sócrates problematiza uma pergunta: “Ao que me parece, se algum
deus lhe perguntasse: ‘ó Alcibíades, você desejaria viver com aquilo que já possui, ou
morrer, se não lhe fosse possível adquirir bens maiores?” suponho que você preferiria
182

morrer” (DIAS, 2015, p 65). Sócrates persiste nessa direção: “Com qual
expectativa você agora vive, eu revelarei” (DIAS, 2015, p. 66).

Como foi esclarecido anteriormente, Alcibíades está se preparando para se


apresentar para a cidade para assumir uma posição política, de influência, pois era isso
que estava reservado para um rapaz de uma família da aristocracia grega. Esse
movimento era normal na antiguidade grega, como destaca Jaeger:

O Homem que se revela nas obras dos grandes gregos é o homem


político. A educação grega não é uma soma de técnicas e
organizações privadas, orientadas para a formação de uma
individualidade perfeita e independente. Isso só aconteceu na época
helenística, quando o Estado grego já havia desaparecido – época na
qual deriva em linha reta a pedagogia moderna (2003, p. 16).
Mesmo que o rumo natural do jovem aristocrata seja para ascender a camadas
superiores da política, Sócrates, seguindo o viés irônico da dialética clássica,
demonstra para o jovem que sua ambição não seria possível sem o mestre. Essa ideia
fica perceptível na afirmação de Sócrates: “a realização de todos esses seus planos é
impossível sem mim. Eu julgo possuir tamanha influência sobre suas coisas e sobre
você, que, em razão disso, penso que por muito tempo o deus não me permitia
dialogar com você, e eu fiquei esperando o momento de sua permissão” (DIAS, 2015,
p. 67). Fica exposta a alta vulnerabilidade do discípulo ao que se refere à opinião do
mestre.

Sócrates deixa claro no diálogo que essa conversa entre os dois não acontecera
antes porque ele, Alcibíades, não tinha maturidade para o confronto que se
desdobraria deste encontro, como vemos nesta passagem: “Quando você era mais
jovem e ainda não estava insuflado com tamanha expectativa, ao que me parece, o
deus não me permitia dialogar com você, a fim de que não fosse em vão nosso
diálogo. Mas agora ele me dá essa concessão, pois neste momento você me ouviria”
(DIAS, 2015, p. 67).

Tal postura do mestre desperta a curiosidade em Alcibíades, o qual afirma que


Sócrates ficou mais encantador falando do que silenciado, além do que o jovem
aprendiz quer descobrir o que é preciso fazer para alcançar seu projeto e resolver a
inquietude que tanto o incomoda. Se, por um lado, a expectativa de Alcibíades era
ouvir uma vasta retórica, Sócrates, por sua vez, não está disposto a fazer este longo
discurso, em vez disso, antes de começar sua arguição, pede um favor para o jovem. A
resposta de Alcibíades é típica de um jovem aristocrata, isto é, carrega uma
183

condicionalidade: “Se não for deveras difícil o favor que me pede, posso consenti-
lo” (DIAS, 2015, p. 69).

O desejo de Sócrates é fazer apenas algumas perguntas para seu antigo amante.
Assim, a primeira questão foi: “Como devo lhe perguntar, então, como se você
planejasse o que eu afirmo que você está planejando?” (DIAS, 2015, p. 69). A
resposta de Alcibíades demonstra a curiosidade em saber como ele iria alcançar o seu
objetivo, mas sem ater-se ao que o antigo mestre estava propondo.

Sócrates, então, inicia seu processo dialético de modo mais intenso. Saltam,
pois, os rudimentos imanentes da maiêutica socrática. Se, por um lado, era tido como
nobreza a disposição do sujeito para atuar na sociedade, como destaca Jaeger, que “o
fato de os homens mais importantes da Grécia se considerarem sempre a serviço da
comunidade é índice da íntima conexão que com ela tem a vida espiritual criadora”
(JAEGER, 2003, p. 17), por outro lado, o mestre quer demonstrar para o jovem
aprendiz seu despreparo para tal empreitada. A primeira provocação socrática se dá na
dimensão que tangencia a competência do discípulo:

Você planeja, como eu venho dizendo, apresentar-se perante os


atenienses para aconselhá-los em breve. Se então, estando você
prestes a subir à tribuna, eu o surpreendesse com a seguinte
pergunta: ó Alcibiades, você se levanta para dar conselhos aos
atenienses, quando eles planejam deliberar sobre que assunto? Acaso
sobre o que você possui maior conhecimento do que eles? O que
responderia? (DIAS, 2015, p. 71)
A resposta de Alcibíades é lógica: falar daquilo que ele compreende. Porém, a
resposta não é suficiente para Sócrates, pois o mestre quer saber quais os assuntos que
o jovem aprendiz se considera bom para responder ou, pelo menos, o que ele conhece
minimamente. O conhecimento de Alcibíades está pautado nas disciplinas que ele
aprendeu com outras pessoas ou sozinho? A pergunta socrática é enfática: É possível
então que tenha aprendido ou descoberto algo sem desejar aprender ou sem investigar
por conta própria? (DIAS, 2015, p. 71). A resposta do jovem aprendiz é negativa, pois
não é possível aprender nada se não houver interesse em aprender.

Com essa resposta, Sócrates emerge outras questões: “E, Então? Teria você
desejado saber ou aprender o que julgava conhecer? As coisas que você conhece,
houve um tempo em que não presumia conhecê-las?” (DIAS, 2015, p. 71). Na
abordagem socrática, fica claro que Alcibíades só aprendeu porque desejou aprender,
teve vontade para aprender. O mestre demonstra seu profundo conhecimento sobre
184

aquilo que seu discípulo se empenhou em aprender: “Você aprendeu, se me


recordo bem, as letras, a tocar cítara e a lutar. Quanto a tocar aulo, não quis aprender.
Essas são as matérias que conhece, a não ser que, de alguma maneira, tenha aprendido
algo que eu não tenha percebido. Mas penso que nem de noite e nem de dia você saiu
de casa. (DIAS, 2015, p. 71). A resposta de Alcibíades: “Realmente eu não frequentei
outras matérias além dessas” (DIAS, 2015, p. 71).

O intrigante deste processo dialético disparado por Sócrates é que Alcibíades


só poderá ensinar sobre aquilo que aprendeu: letras, tocar cítara e lutar. Alcibíades
percebe que seu conhecimento é de pouco proveito para a instrução de uma
assembleia, isto é, para uma ação efetiva na política. Inclusive, sobre os assuntos
sobre reforma o texto platônico deixa claro que um arquiteto seria melhor e mais apto
a opinar; sobre arte divinatória, um ser adivinho seria o melhor personagem a intervir.
Portanto, independentemente da beleza, da dimensão econômica ou do lugar onde
moram, tanto o arquiteto como os adivinhos seriam mais relevantes que o jovem
aristocrata Alcibíades, pois, em suas devidas especificidades, cada um dos que foram
citados tinham conhecimento específico e técnico em suas áreas de atuação. A partir
dessa averiguação, Sócrates afirma: “Pois penso que o conselho sobre cada matéria
compete a quem possui conhecimento, e não a quem possui riqueza” (DIAS, 2015, p.
73). A origem aristocrata de nada vale em comparação às demandas específicas que
exigem conhecimento.

A fim de desvelar a irrelevância da origem aristocrática, Sócrates continua seu


questionamento ao jovem aprendiz: “Mas não fará qualquer diferença aos atenienses,
quando deliberarem sobre assuntos que concirnam à saúde de quem vive na cidade, se
é pobre ou rico quem aconselha, mas procurarão antes de que o conselheiro seja um
médico (2015, p. 73). Apropriando-se da ironia, o sábio destaca que mais importa a
opinião de um especialista ou de um sábio diante dos problemas inerentes a pólis do
que a opinião de um sujeito pecunioso.

O mestre mostra o patamar insuficiente em que Alcibíades se encontra para


lidar com os impasses políticos: “Mas, afinal, você está dizendo que se erguerá
quando eles deliberarem sobre quais tipos de assuntos que lhes são próprios?” (DIAS,
2015, p. 75). Na tentativa de apontar ao discípulo que se não houvesse um despertar
para si mesmo, para o cuidado de si, em vão seria a trajetória política de Alcibíades,
Sócrates se apropria de exemplos diversos, dos mais variados temas, em que a
185

proposição é apenas uma: Alcibíades não está preparado para aconselhar a pólis
porque ele ainda não se voltou para si mesmo. O conhecimento de si é primordial para
uma carreira política bem-sucedida.

O sentimento do jovem aprendiz é de completude, ou seja, sente-se preparado


para aconselhar a pólis, como ele bem destaca: “quando deliberarem sobre a guerra,
Sócrates, ou sobre a paz ou sobre qualquer outro assunto que concirna à cidade”
(DIAS, 2015, p. 75). A prepotência de Alcibíades permanece, mesmo sendo inquerido
por seu antigo amante. Sócrates, então, aproveita-se da resposta de Alcibíades para
confrontar essa autossuficiência. O primeiro argumento do sábio é se, de fato, o jovem
saberia distinguir e avaliar as características daquele que seria considerado o melhor
inimigo.

Na perspectiva do sábio, o ser humano busca o melhor em todas as relações


humanas: o melhor músico, o melhor artesão, o melhor político etc. Portanto seria
necessário buscar o melhor inimigo. Sócrates continua seu raciocínio e pede que
Alcibíades conceitue o termo melhor. Ainda que o antigo discípulo conseguisse
entender a proposição do antigo mestre, ele não consegue conceituar o termo
proposto. O sábio não desiste do aprendiz. A fim de exemplificar a questão, Sócrates
se apropria de elementos corriqueiros a partir da seguinte questão: “Então tente assim:
quais são as deusas às quais pertence a arte (teknê)”? (DIAS, 2015, p. 79)

É importante nesse processo de aprendizagem, de diálogo, que o discípulo


exponha sua opinião sobre a ideia de melhor sugerida por Sócrates. Como a resposta
de Alcibíades é insatisfatória quanto à conceituação, Sócrates apodera-se de outros
exemplos do cotidiano, por exemplo, sobre a guerra e como descobrir com que tipo de
pessoa é melhor para entrar em guerra. Perguntas como: Que causou ofensa? Como
discernir o ultraje?

Com isso, chega-se à conclusão que se entra em guerra com pessoas que
causam algum tipo de injustiça. É a partir da virtude por excelência em categorias
aristotélicas, a justiça, que se fundamenta a ação ou inércia em relação a guerra ou
paz. Sócrates demonstra que o jovem, ainda que se sinta imbuído de toda competência
técnica para o labor político, não passa de mais um jovem despreparado para uma
função extremamente meticulosa. Para consolidar sua crítica, o sábio pergunta:

E agora, meu caro Alcibíades? É você que não percebe que não
possui conhecimento a respeito disso, ou fui eu que não me dei conta
186

do seu aprendizado com um professor que lhe ensinou a


discernir bem o mais justo do mais injusto? E quem é ele? Diga-me
quem é para que você me recomende a ele como pupilo? (DIAS,
2015, p. 83)
Se por um lado Sócrates tenta revelar que para assumir a função política o
jovem precisa se preparar, por outro, Alcibíades interpreta que seu antigo amante está
zombando de seu intento. Não cabe ao sábio quantificar a destreza do jovem, todavia,
a função do mestre é qualificar o aprendiz dos subsídios necessários para alcançar as
metas estabelecidas para si, mas para tanto o jovem precisa ater-se sobre si, cuidar de
si. Salta, pois, um novo jogo de perguntas e respostas:

Alcibíades: Mas o que direi se não posso dizê-lo? Você não julga
que eu poderia saber a respeito do justo e do injusto de outra
maneira?
Sócrates: Sim, se você o descobrisse.
Alcibíades: Mas não considera que eu poderia descobri-lo?
Sócrates: Claro que sim, se o investigasse.
Alcibíades: E não pensa que eu o investigaria?
Sócrates: Sim; se julgasse não conhecê-lo (eidenai) (DIAS, 2015, p.
83).

Se, em um primeiro momento, Alcibíades achava que se encontrava em um


patamar de completude conceitual, o diálogo enveredou para um novo rumo, haja
vista que o jovem passa a considerar a possibilidade de seu obscurantismo em relação
a alguns temas. Sócrates revela que, enquanto observava de longe seu antigo amante,
notava sua arrogância, pois o jovem trazia a falsa ideia de completude. Sócrates,
então, demonstra que nessa postura altiva, o jovem aprendiz não passa de um tolo que
poderia não passar de um injusto e trapaceiro.

O sábio põe em xeque a origem do saber do jovem aprendiz, isto é, para


Alcibíades os conceitos de justiça e injustiça eram explícitos, seguiam um parâmetro
bem estipulado, logo não precisariam de uma reflexão demorada e criteriosa, haja
vista que o conhecimento de Alcibíades segue o mesmo paradigma de todas as
pessoas, como ele mesmo aponta: “Penso que eu aprendi da mesma maneira que os
demais” (DIAS, 2015, p. 85). Com essa resposta, Sócrates quer conhecer quem
instruiu o jovem a pensar daquela maneira. A resposta é categórica: “Com a multidão
(pollwn)” (DIAS, 2015, p. 87). A resposta socrática é ácida: “Você não recorre a
187

professores (didaskalous) muito estimáveis ao apelar para a multidão (DIAS,


2015, p. 87).

O jovem não consegue distinguir entre permanecer no senso comum e


desenvolver o bom senso. Na concepção de Alcibíades, seguir a opinião da multidão
era seguir o fluxo natural da vida. Sócrates revela o perigo do senso comum que
acomoda a opinião das grandes massas. Para o sábio, a multidão não é apta para
ensinar (didazai), como afirma Sócrates: “nem mesmo no que se refere ou não aos
movimentos do jogo de gamão. E mais, penso que isso é insignificante em
comparação a questões de justiça” (DIAS, 2015, p. 87). Sócrates evidencia que a
multidão não tem competência para ensinar sobre questões simples, quanto mais sobre
temas complexos e importantes típicos da Pólis. Este despreparo faz a multidão não só
incompetente para a função formativa, mas sobretudo perigosa.

Alcibíades tenta demonstrar para seu antigo mestre que a multidão tem
qualidades formativas. Para sustentar seu argumento, o jovem aprendiz afirma que
todas as pessoas aprendem o grego com a multidão. Nessa direção, Sócrates afirma
que a multidão não é capaz de ensinar, mas de reproduzir o que já fora ensinado. Para
pensar, investigar, refletir e questionar sobre as complexidades inerentes à vida
política é necessário um grupo preparado para tal empreitada, não pessoas sem a
devida competência e habilidade para tratar destes imbróglios. Assim, Sócrates
demonstra que a multidão não tem competência para falar sobre saúde, justiça, paz
etc. Diante dos argumentos de Sócrates, Alcibíades assume as respostas do mestre
como verdadeiras – provando a influência ativa do sábio sobre o antigo discípulo.
Emerge, assim, a resposta de Sócrates para o jovem discípulo:

Sócrates: Você está vendo, Alcibíades, que mais uma vez não me
deu uma boa resposta?
Alcibíades: Por quê?
Sócrates: Porque você diz que sou eu quem está dizendo isso.
Alcibíades: E daí? Não é você que está dizendo que eu não conheço
nada sobre o que é justo e o que é injusto?
Sócrates: De modo algum (DIAS, 2015, p. 93).
Alcibíades ainda não se deu conta de que a postura inquisidora de Sócrates não
é de opositor, em vez disso, é uma postura de auxiliar no amadurecimento e
desprendimento do jovem aprendiz. Evidencia-se no texto a arrogância e impaciência
de Alcibíades, chegando ao ponto de revelar o intento do rapaz em encerrar o diálogo
188

entre eles, haja vista a inabilidade de Alcibíades em responder as questões do


sábio. Paralelamente a essa postura intempestiva do discípulo, Sócrates busca
apresentar a incompletude do jovem com o intuito de despertá-lo para o cuidado de si
antes de pensar no cuidado dos outros. Saber o que não se sabe é mais importante do
que saber o que se sabe, pois a ignorância conduz o sujeito a um devir ontológico.
Assim, Sócrates demonstra a condição inconclusa de Alcibíades:

Sendo assim, foi dito que Alcibíades, o belo filho de Clínias, não
conhece o que é justo e o que é injusto, apesar de presumir sabê-lo, e
que está prestes a se apresentar na assembleia para aconselhar os
atenienses a respeito do que não sabe. Não foi isso? (DIAS, 2015, p.
95)
A preocupação última de Sócrates é com o próprio aprendiz, pois aventurar-se
em uma dimensão totalmente desconhecida é muito perigoso. É por este viés que o
sábio demonstra a faceta insana de Alcibíades ao desejar trabalhar na assembleia:
“Pois planeja dar um passo insano (manikon), excelente homem, o de ensinar aquilo
que não sabe, tendo se descuidado de aprendê-lo” (DIAS, 2015, p. 96). Na narrativa, a
postura de Alcibíades passa a revelar certa indiferença a arké do conhecimento e da
verdade, acomodando-se nas superfícies rasas do senso comum.

A apatia do jovem Alcibíades referente às demandas da vida pública está


fixada no senso comum. Percebe-se esse desapreço na maneira como o discípulo
aristocrata se esquiva em responder questões epistemológicas ou ontológicas. Além de
se afeiçoar ao consenso típico da multidão, Alcibíades solapa sua existência por detrás
daqueles que foram seus instrutores. Ciente da precariedade existencial do jovem
aprendiz, Sócrates insiste para que seu antigo amante organize um discurso que
argumente em prol da justiça e do que é vantajoso.

Para Alcibíades convencer o próprio mestre é tarefa impossível, por isso,


Sócrates insiste para que o jovem crie uma ficção sobre a identidade do sábio, isto é,
trate-o como se o sábio fizesse parte da assembleia, afinal de contas, para o sábio,
persuadir uma pessoa ou uma multidão, em geral, é a mesma coisa. O intento do
pedido de Sócrates é para que o jovem, que almeja adentrar na vida pública,
demonstre os seus conhecimentos e sua capacidade de persuasão. Alcibíades aceita o
desafio. Três são os temas que ele deve fundamentar seus argumentos: a justiça, o belo
e o verdadeiro. O objetivo de Sócrates não é simplesmente pesar os argumentos do seu
aprendiz, sobretudo, auxiliá-lo nessa jornada para o cuidado de si.
189

Adentrando a discussão proposta, Sócrates demonstra que algumas coisas


belas podem ser más, e que algumas coisas vergonhosas podem ser boas. Quebram-se
alguns modelos, padrões que dizem que tudo o que é justo é vantajoso. Para justificar
seu argumento, Sócrates apresenta o exemplo da morte de alguns soldados que tentam
voltar para resgatar um amigo, enquanto outros, que preferem não correr o risco do
resgate, preservam a vida. Sócrates continua:

Observe então se, na medida em que é belo, também é bom, como


sucede inclusive neste caso. Bem, você concordou que o socorro é
belo em vista da coragem. Então considere precisamente a coragem,
se ela é boa ou má! Examine assim: você admitiria possuir coisas
boas, ou coisas más? (DIAS, 2015, p. 103).
A problematização exposta pelo sábio é a análise não só da intenção em fazer
algo, sobretudo, nos devidos desdobramentos da ação. A coragem dos justos que foi
boa e bela, foi a mesma que ocasionou a morte destes mesmos justos. O diálogo ganha
novos entornos quando Sócrates interroga Alcibíades com a seguinte questão:

Sócrates: Se, então, alguém se levantar para aconselhar quer os


atenienses quer os peparécios, julgando conhecer o que é justo e o
que é injusto, e disser que as coisas justas às vezes são más, não é
verdade que você riria dele, uma vez que também você afirma que as
mesmas coisas são justas e vantajosas?
Alcibíades: Mas pelos deuses, Sócrates! Eu não sei mesmo o que
estou dizendo, mas pareço encontrar-me numa condição
simplesmente absurda. Em uma ocasião, enquanto você perguntava,
parecia-me uma coisa, e em outra, coisa diferente (DIAS, 2015, p.
109).
O caráter cômico que adentra o texto revela o quanto Alcibíades está perdido
diante das perguntas do seu antigo mestre. Se, em um primeiro momento, o jovem era
dono da verdade e do pleno conhecimento, com as perguntas do sábio, típicas da
maiêutica socrática, até as coisas evidentes e óbvias passam a ser vulneráveis a
questionamentos e de um ceticismo incontrolável. Quando Sócrates pergunta sobre ter
asas e subir aos céus, Alcibíades diz que não tem como isso ocorrer. Sócrates, refuta:

É porque, meu caro, você não julga conhecer o assunto sem conhecê-
lo. [...] Observe comigo! Sobre o que você não conhece, mas
reconhece que desconhece, acaso hesita em tais coisas? Por
exemplo, sobre o preparo de alimentos, certamente você sabe que
não conhece isso, não é? (DIAS, 2015, p. 111)
Não interessa para Sócrates a ornitologia ou os segredos gastronômicos, em
vez disso, o sábio destaca a competência do sujeito como virtude sui generis. Aliás,
até a ciência da ignorância pode ser uma virtude e, sua contradição, o vício, uma
190

mácula na essência do sujeito, como destaca Sócrates: “Você tem em mente,


então, que também os erros nas ações ocorrem devido a essa ignorância, a ignorância
de se supor conhecer quando se desconhece?” (DIAS, 2015, p. 113)

Para o sábio, muitos que estão na política exercendo cargo público, que
possuem origem aristocrática, não têm o conhecimento devido do que é justo, belo,
bom e vantajoso. A ênfase de Sócrates se dá não no fato de não saber o que significa o
conceito das virtudes elencadas acima, haja vista que a ignorância pode ser boa
quando ela é o ponto de largada para o conhecimento e sabedoria, outrossim, a
ignorância da própria ignorância: este é o verdadeiro veneno da alma. Dessa maneira,
Sócrates continua sua discussão com Alcibíades elencando os argumentos evidentes
do despreparo do jovem ao que se refere à vida pública:

Sócrates: Ora, mas em que condição você se encontra, Alcibíades!


Eu receio denominá-la; contudo, já que estamos sozinhos, devo dizê-
lo. Pois você convive com a estupidez, excelente homem, com a
extrema estupidez, como lhe acusa o seu argumento e você próprio.
É por isso que você se lança como uma flecha na vida política antes
de ter sido instruído. Você, contudo, não está sozinho nessa
condição; muitos dos que se envolvem com a política nessa cidade
também estão, com exceção de poucos e, talvez, do seu tutor,
Péricles (DIAS, 2015, p. 115).
Para o sábio, Alcibíades não passa de mais um aristocrata que assumiu as
narrativas do senso comum. Se, por um lado, o jovem aprendiz não está sozinho em
sua ignorância, por outro lado, não é possível sair da ignorância sozinho. Alcibíades
reconhece que até seu tutor, Péricles, só se tornou grande sábio por ter tido contato
com outros sábios, inclusive em sua velhice. Não é possível ser sábio por si só.
Sozinho não se encontra a sabedoria, apenas se matura a ignorância. Sócrates
demonstra que para transmitir algo é preciso ter recebido antes. Só existe um sábio
após o contato com a sabedoria de outro sábio: “E então? Você viu algum sábio ser
incapaz de transmitir sua própria sabedoria a outras pessoas? Por exemplo, aquele que
lhe ensinou as letras: ele próprio não era sábio e não transmitiu sua sabedoria a você a
quem quer que ele quisesse?” (DIAS, 2015, p. 117).

Com essa lacuna, Sócrates introduz um novo tópico em seu diálogo com
Alcibíades: pertencer a uma família aristocrata ou ter tido contato com um sábio não
torna o interlocutor sábio. Problematizando a questão de tornar-se sábio, Sócrates traz
outra indagação: por que os filhos de Péricles são insensatos e até mesmo o próprio
irmão de Péricles é tido como um louco? Não tinham contato com algum sábio? O
191

próprio Alcibíades, convivia com o grande sábio Péricles, por que não se tornou
um sábio? A resposta de Alcibíades altera o papel dos sujeitos na relação com a
sabedoria, bem como introduz a presença do outro no projeto de cuidado de si: “Eu
penso que sou eu o culpado por não lhe prestar atenção” (DIAS, 2015, p. 117). Há um
questionamento categórico de Sócrates para introduzir o cuidado de si no diálogo:

Seja! Então, o que você pretende fazer de si mesmo? Permanecer na


sua presente condição, ou providenciar algum cuidado?
Alcibíades – Tomemos uma decisão em comum, Sócrates. De fato,
reconheço as suas palavras e concordo com elas. Pois os homens que
praticam a política na cidade me parecem não ter instrução, com
exceção de alguns poucos (DIAS, 2015, p. 119).
Por um momento parece que a conversa está trilhando por um novo viés, isto é,
de esclarecimento e reconhecimento por parte do jovem discípulo, no entanto, de
modo tênue e, ao mesmo tempo, abrupto, há uma mudança radical na entoação
narrativa. Alcibíades reconhece como aqueles que exercem a política são incapazes de
suas funções, logo, por que ele teria que se esmerar em aprender alguma coisa que
poderia ser feita negligentemente?

Se, suponho eu, fossem instruídos, seria preciso a quem tentasse


confessar-lhes investir contra eles depois de ter aprendido e se
exercitado, como se fosse investir contra atletas. Todavia, uma vez
que também eles se engajaram na política da cidade como leigos, por
que é preciso exercitar-me e ter o aborrecimento de aprender? Pois
eu bem sei que serei muitíssimo superior a eles devido à minha
natureza (DIAS, 2015, p. 119).
A decepção de Sócrates é evidente. Parece que todo o diálogo que estava sendo
construído para o real cuidado de si fora lançado por terra. O discípulo releva aspectos
como indiferença, preguiça e covardia, o oposto das virtudes elencadas anteriormente
– a justiça, o belo e o verdadeiro. Sócrates demonstra que Alcibíades não está se
atentando ao seu verdadeiro inimigo. Para o discípulo, sua preocupação devia ocupar-
se das pessoas medianas e medíocres, porém, para o mestre, os olhos do jovem
aprendiz precisam ater-se a outras categorias. Sócrates demonstra que, ao se preocupar
com os outros, Alcibíades estava descuidando de si próprio. Supervalorizar o outro é
uma forma de desprezar a si mesmo, e é impossível cuidar de si mesmo enquanto a
atenção está posta sobre a opinião do outro, como segue o diálogo:

Sócrates: Em primeiro lugar, de que maneira você julga que cuidaria


melhor de si mesmo (sautou mallon epimeletenai): ao temê-los e
considerá-los terríveis, ou o contrário?
Alcibíades: É claro que se eu os considerasse terríveis.
192

Sócrates: Porventura você julga que seria prejudicado em algo


por cuidar de si mesmo?
Alcibíades: De maneira alguma, pelo contrário, eu tiraria muito mais
proveito disso (DIAS, 2015, p. 121).

O eixo que Sócrates destaca é a dimensão imprescindível do cuidado sobre si


antes, porém, antes de apresentar os fundamentos conceituais deste tema, Sócrates
refuta a ideia de Alcibíades, que considerava um benefício natural o fato de pertencer
à aristocracia, logo, a sabedoria era predicado inato ao ser. A fim de desconstruir esse
paradigma, o sábio busca argumentos que equiparam os sujeitos, isto é, a própria
equidade de natureza entre Alcibíades e Sócrates. O fato de em sua genealogia ter
acesso tanto a Hércules, no caso de Alcibíades, como Hefesto, na situação de
Sócrates, não significa que ambos estão em um patamar superior às demais pessoas.
Na arguição de Sócrates, fica claro que até mesmo os inimigos, os lacedemônios,
possuíam boa natureza, mas, ainda assim, eram pessoas carentes de virtudes.

Sócrates demonstra que, se a lógica de Alcibíades estivesse correta, os


príncipes, filhos de grandes reis, que têm uma vida venerada desde o nascimento,
seriam, automaticamente, superiores aos demais cidadãos, haja vista que seu contato
com um grupo seleto, da mais alta extirpe fora estimulado desde a mais tenra idade.
No entanto, Sócrates considera que os príncipes persas tinham aulas com os quatro
melhores homens entre os persas: o mais sábio, o mais justo, o mais temperante e o
mais corajoso, porém, ainda assim, isso não era garantia que os discentes seriam
sábios virtuosos. Sócrates aponta para a percepção medíocre, duvidosa e falsa que
Alcibíades tem sobre si mesmo. Enquanto a premissa do aprendiz se consolida na
genealogia familiar, o mestre demonstrou, por meio da ironia, o quão insignificante
era Alcibíades; assemelhava-se a qualquer escravo, ou estrangeiro de origem
insignificante. Disposto a tipificar a mediocridade de Alcibíades, Sócrates continua
suas arguições:

Mas se você deseja, por um lado, voltar o seu olhar para as riquezas,
o luxo, as vestimentas, os mantos longos, os unguentos de mirra, as
comitivas com muitos servos, além das demais opulências dos
persas, você teria vergonha de si mesmo ao perceber o quanto é
inferior a eles. Se você deseja, por outro lado, voltar o seu olhar para
a temperança, o comedimento, a fortaleza, o bom humor, a
magnificência, a disciplina, a coragem, a perseverança, o gosto pelo
trabalho, pela vitória e pelas honrarias dos lacedemônios, você
consideraria a si mesmo uma criança em todos esses aspectos (DIAS,
2015, p. 129).
193

A atividade pública de Alcibíades se baseia no ponto de vista que ele tem


da sociedade e daqueles que participam da vida política. Para desconstruir a
mediocridade de jovem, Sócrates cria uma analogia: uma possível rivalidade entre
Alcibíades com o rei persa Artaxerxes. Com essa conjectura, de modo didático e
pedagógico, o mestre demonstra que Alcibíades não passa de um ser insignificante em
relação aos grandes imperadores estrangeiros. E caso pleiteasse entrar em um embate
com um príncipe, o máximo que conquistaria seria o desprezo por não passar de um
espectro repugnante, haja vista que a roupa com que uma rainha se adorna é
incomparavelmente mais valiosa que todas as terras que Alcibíades poderia ter.

A jovialidade de Alcibíades (vinte anos incompletos), revela sua limitação


como sujeito, sua incapacidade de aprender e de escutar as orientações de seu mestre.
Sócrates vem construindo argumentos para desconstruir a ideia de Alcibíades
referente ao seu preparo para a lida política. A percepção do jovem aprendiz se
baseava em pessoas que não tinham a maestria e a técnica inerentes à vida política,
por isso o sábio aponta para outro ponto de vista: ao comparar Alcibíades com um
príncipe, uma pessoa de família real, o jovem aprendiz não passa de um sujeito
desprezível. Tudo o que Alcibíades valoriza – a estatura, a beleza, a linhagem, a
riqueza – em relação aos príncipes e reis, não tem valor. É nesse imbróglio que
Sócrates lança sua máxima sobre o cuidado de si:

Mas, ó bem-aventurado, obedecendo a mim e à inscrição em Delfos,


conheça a si mesmo (gnoti sautón)! Pois são esses os nossos
adversários, e não aqueles que você considerava. Não poderíamos
superá-los em outra coisa senão em cuidado e em arte. Se você
negligenciar isso, negligenciará também o seu futuro renome entre
os helenos e os bárbaros, o que você me parece almejar como
nenhum outro homem almeja alguma coisa (DIAS, 2015, 133).
A fala franca (parresia) de Sócrates desperta interesse no jovem aprendiz sobre
o cuidado de si. Depois de uma longa trajetória discursiva, a fala sincera é capaz de
provocar nele a vontade para se lançar a uma nova jornada. Alcibíades, então,
pergunta ao sábio: “É preciso colocar em prática, então, que tipo de cuidado
(epimeleian), ó Sócrates? Pode explicar em maiores detalhes? Pois, mais do que todos,
você parece ter dito a verdade (àletê)” (DIAS, 2015, p. 133). Sócrates responde:

Sim, posso. Todavia, é preciso uma deliberação conjunta sobre o


modo pelo qual poderíamos nos tornar melhores. Pois certamente
estou me referindo tanto a você quanto a mim, quando digo que é
preciso de instrução: pois não me distinto de você em nada, a não ser
em uma única coisa (DIAS, 2015, p. 133).
194

A resposta para o aprendiz é positiva, ou seja, é possível colocar em prática


a ideia do cuidado de si. Sócrates se equipara, novamente, com o aprendiz,
estabelecendo um paralelo entre sua vida de sábio e a vida de estulto de Alcibíades. O
texto trilha pelo viés cômico, ao passo que Sócrates afirma que ambos possuem um
instrutor, contudo, o mestre de Alcibíades é inferior ao tutor do sábio. Talvez uma
alusão crítica direta a Péricles, porém, a interrogação que paira é: quem é o tutor de
Sócrates? No que ele se diferencia? O que o torna melhor? O sábio responde essa
questão: “Um deus, ó Alcibíades, aquele que me impedia de dialogar com você até o
dia de hoje. E, confiante nele, eu afirmo que a sua manifestação não acontecerá a você
senão através de mim”. (DIAS, 2015, p. 133). Sócrates se coloca como mediador entre
o discípulo e o deus; entre a ignorância e a sabedoria. O sábio afirma que ambos
precisam desse encontro com o transcendente, a fim de que a verdade seja uma
possibilidade: “[...] estou falando a verdade: que necessitamos de cuidado
(epimeleias), assim como todos os homens o necessitam; nós dois, contudo, em
especial” (DIAS, 2015, p. 133).

A aproximação do imanente com o transcendente estabelece um recorte: as


competências e habilidades são aprendidas. Sócrates demonstra que, dependendo da
função e da habilidade do sujeito, ele pode (ou não) executar determinada função. A
pergunta que salta é: e a vida pública? O que seria preciso ter, aprender ou saber para
exercer bem a vida pública? Antes de responder a essa questão, o sábio questiona: “E
então? Como você denomina o conhecimento que torna alguém apto a comandar os
que compartilham da cidadania?” (DIAS, 2015, p. 139). A resposta de Alcibíades é
interessante: “Eu o chamo de conselho (euboulian), ó Sócrates”. (DIAS, 2015, p. 139).
O termo grego referente ao conselho está relacionado com a ideia de lançar algo bom,
lançar virtude, pois não adianta respeitar apenas a finalidade determinada, é
importante fazer bem o que se propõe fazer.

Com essa ideia de conselho, é retomada a discussão sobre o que significa a


noção do melhor. Para alcançar seu objetivo, Sócrates parte de fenômenos pertinentes
do dia a dia de Alcibíades a fim de chegar a um resultado dedutivo, por exemplo: o
que, estando presente, é melhor para os olhos? A resposta é dada pelo próprio Sócrates
em um jogo de palavras: “estando presente a visão, e ausente a cegueira” (DIAS,
2015, p. 141). O sábio demonstra que o conhecimento prévio de determinada função
ou ofício é determinante para a maneira como o sujeito se relacionará com o mundo.
195

Sócrates demonstra que, da mesma maneira que existem funções típicas do


masculino e típicas do feminino, e que para executar devidamente cada função é
preciso o conhecimento prévio, logo, em uma cultura na qual mulheres tem ofícios
específicos e homens ofícios específicos, um não pode adentrar ou palpitar no trabalho
do outro.

Propositalmente, aproximando-se da divisão platônica da organização da pólis,


Sócrates estabelece um paradigma: cada sujeito deve exercer a sua devida função
dentro da cidade. Com essa premissa, o sábio aponta o contraditório: “Nem as cidades,
portanto, são bem administradas, quando cada um exerce o seu próprio ofício”.
(DIAS, 2015, p. 145). Alcibíades refuta o mestre: “penso que elas [as cidades] são sim
[bem administradas], ó Sócrates” (DIAS, 2015, p. 145).

A afirmação socrática demonstra que, ao mesmo tempo que é fundamental ter


o conhecimento prévio da função a fim e realizá-la bem, o sábio destaca que, se não
houver amizade ou concórdia entre os ofícios, a cidade está fadada a ruínas, haja vista
que essa tensão poderia impedir o bom andamento da cidade. A cidade é marcada por
pessoas que fazem coisas diferentes, todavia, simultaneamente, partilham do espaço
comum. Sócrates demonstra que Alcibíades está de acordo com a ideia de que cada
cidadão deveria se ocupar do seu afazer, sem interferir na atividade do outro. Porém, a
nova questão que ele levanta é: será que o silêncio diante da atividade específica de
cada sujeito fará com que as pessoas entrem em concórdia? Essa ação de não interferir
manteria uma cidade em pé?

Alcibíades apresenta dúvida diante dessas questões, sem saber o que fazer ou
pensar para a devida resolução. Ao mesmo tempo, o jovem discípulo apresenta uma
postura de desilusão diante do que tem que ser feito. Sócrates afirma: “Mas você deve
ter confiança (tarrein). Pois se tivesse percebido isso apenas aos cinquenta anos de
idade, cuidar de si mesmo (epimeletenai sautou) seria penoso. Entretanto, a idade em
que você se encontra agora é precisamente aquela propícia para percebê-lo” (DIA,
2015, p. 147). Ao ouvir as palavras de esperança do mestre, Alcibíades quer saber
como sair do estado de ignorância. O que é preciso fazer para alcançar o patamar de
sábio, de sapiência? Sócrates aponta para um caminho árduo: responder perguntas.
Com essa questão, inicia uma nova etapa do diálogo:

Sócrates: Vamos lá, então! O que é cuidado de si (eautou


epimelessai) – eu temo que frequentemente não percebemos que não
196

estamos cuidando de nós mesmos, mas apenas presumindo que


sim – e em que ocasião um homem o pratica? Quando cuida do que
lhe diz respeito, por acaso ele também cuida de si próprio?
Alcibíades: Parece-me que sim.
Sócrates: E então? Em que ocasião um homem cuida dos pés? Acaso
seria quando ele cuida do que diz respeito aos pés?
Alcibíades: Não entendo? (DIAS, 2015, p. 147).
Sócrates, para articular sua pergunta sobre o cuidado de si, demonstra que
primeiro é preciso entender o que é cuidado de si, bem como quando o sujeito pensa
sobre o cuidado de si. Cuida-se dos pés quando se tem problemas nos pés ou quer
protegê-lo, assim se faz com qualquer parte do corpo e com o si mesmo? A
provocação socrática está na esfera de que o ato de cuidar de si se dá na ação de
cuidar daquilo que é relativo ao sujeito? Ou, em vez disso, cuidar de si e uma ação que
transcende a extensão do sujeito, pois se debruça sobre a essência em si, a dimensão
sui generis?

Diante das dúvidas de Alcibíades, Sócrates tenta demonstrar o que significa,


primeiro, a ideia de cuidar. Por exemplo, para cuidar dos pés, é preciso cuidar tanto do
sapateiro como da parte da ginástica. A linha de raciocínio de Sócrates é apresentar
como as coisas estão conectadas: para cuidar de uma coisa é preciso articular áreas
diferentes. Será, então, que isso não se aplica ao cuidado de si: “Vamos lá, então!
Qual é a arte, pois, através da qual poderíamos cuidar de nós mesmos (autôn
èpimeleteiemen)?” (DIAS, 2015, p.151). Alcibíades responde, por isso as perguntas
continuam: “Mas estamos de acordo neste ponto, ao menos: que não é aquela através
da qual tornaríamos melhor qualquer coisa que nos diz respeito, mas aquela através da
qual tornaríamos melhores a nós mesmos. Não estamos?” (DIAS, 2015, p. 151).

A linha de raciocínio de Sócrates tem como origem as coisas óbvias: para


conhecer o que faz bem para os calçados, é preciso conhecer o que é o calçado.
Assim, Sócrates continua sua arguição:

Sócrates: E então? Acaso poderíamos conhecer qual arte torna


melhor o próprio indivíduo, se fôssemos ignorantes (agnoía) do que
nós mesmos somos?
Alcibíades: É impossível.
Sócrates: Porventura, conhecer a si mesmo é algo fácil – e aquele
que fixou a inscrição no templo de Delfos era leviano – ou é algo
difícil e não para todos? (DIAS, p. 153).
O sábio articula dois conceitos que contrastam: conhecimento e ignorância (ou
não conhecimento). Alcibíades tem dificuldade em responder ao mestre, mas essa
dificuldade não impede Sócrates de forjar novas questões: “Mas, ó Alcibíades, a
197

despeito de ser fácil ou não, a situação que temos é a seguinte: se conhecêssemos


isso, talvez pudéssemos conhecer como cuidar de nós mesmos, ao passo que se
ignorássemos, não poderíamos conhecê-lo”. (DIAS, 2015, p. 153).

Assim, Sócrates adentra na temática do si mesmo. Há um entrelaçamento entre


o conceito de cuidado de si e o conhecimento de si na abordagem socrática. O sábio
evidencia que, em um primeiro momento, parece que a ideia do cuidado de si e
conhecimento de si são sinônimos, porém, para estabelecer um limite entre os dois
pontos, Sócrates se utiliza da metáfora do diálogo e da palavra. O sábio deixa claro
que uma coisa é usar palavras, e outra é estabelecer o diálogo propriamente dito. Por
mais que só exista diálogo por meio de palavras, usar palavras e dialogar são
movimentos distintos, de modo que: “Aquele que usa e aquilo que é usado não são
coisas diferentes?” (DIAS, 2015, p. 153).

Por esse viés, Sócrates demonstra que, da mesma maneira que o sapateiro, o
instrumentista ou qualquer outro técnico utiliza instrumentais que se diferenciam dele,
assim também acontece no processo da linguagem ou do a si mesmo, tal qual uma
coisa é a palavra, outra coisa é aquele que se apropria da palavra. A ideia básica é que:
“O homem, portanto, é distinto de seu próprio corpo”. (DIAS, 2015, p. 155). O
dualismo socrático corpo e alma se evidenciam, de modo que fica clara a
superioridade da alma em relação ao corpo. Persistindo nessa abordagem
antropológica, emerge a questão: “Então, o que é o homem (antrupos)?” (DIAS, 2015,
p. 157).

Não é fácil responder o que é o homem. Ainda que a biologia possa estruturar e
decodificar a humanidade, e, por outro lado, as ficcionalidades conseguem retratar a
vida como ela é, conceituar o que é ser humano não é tarefa fácil, pois: o homem é
aquele que se serve do corpo? O homem é a alma? O homem é conjunto desses
elementos? Sócrates deixa a entender que o ser humano é, sobretudo alma:

O que há pouco foi dito: que primeiro devemos examinar aquele ‘a si


mesmo’. Mas agora, em vez desse ‘a si mesmo’, acabamos de
examinar o que é cada indivíduo em si mesmo. Talvez isso baste,
pois, suponho eu, poderíamos dizer que não há nada mais soberano
em nós mesmos do que a alma (DIAS, 2015, p. 159).
Seguindo este viés, no diálogo entre Sócrates e Alcibíades notam-se duas
almas peculiares, mas que interagem: “A conhecer a alma, portanto, nos ordena a
prescrição ‘conheça a si mesmo’”. (DIAS, 2015, p. 159). Sócrates propõe uma
198

explicação para a compreensão entre corpo e alma. Para o filósofo, uma coisa é o
movimento de conhecimento referente a uma parte do ser humano, outro movimento,
díspar, é o conhecimento da alma do sujeito: “E, então, quem quer que conheça algo
relativo ao corpo, conhece o que diz respeito a si, mas não a si mesmo” (DIAS, 2015,
p. 161).

Desse modo, ao cuidar do corpo, cuida-se não de si mesmo, mas de algo que é
relativo ao si mesmo, bem como toda a dinâmica de riqueza, amizades etc. Cuidar
daquilo que é relativo à coisa não é, necessariamente, cuidar realmente da coisa.
Assim, Sócrates diz que o amante do corpo de Alcibíades não ama o Alcibíades, mas
seu corpo. Por isso, Sócrates pergunta:

Mas quem o ama, ama a sua alma?


Alcibíades: É forçoso pelo argumento.
Sócrates: E não é verdade que, quando finda a flor de sua juventude,
o amante de seu corpo parte para longe? (DIAS, 2015, p. 163).

Sócrates aponta, com suas interrogações, a efemeridade e transitoriedade do


interesse dos antigos amantes de Alcibíades, uma vez que o interesse desses amantes
estava atrelado à condição pueril de Alcibíades. Conforme o corpo de Alcibíades
envelheceu e sua beleza se esvaiu, todos os antigos amantes o deixaram. Porém,
aquele que o ama, por exemplo, o próprio Sócrates, permaneceu, independentemente
do seu desgaste estético. A permanência do sábio se dá porque o seu amor está
relacionado à alma do discípulo, não com sua condição estética. O próprio Alcibíades
cria a expectativa de que o mestre não o deixaria. Se, em outro momento, o discípulo
amava outros amantes, Sócrates deixa claro que o único digno de amor é o próprio
sábio, que demonstra incondicionalidade em seu sentimento. Dessa maneira, Sócrates
deduz que os amantes estavam apaixonados por aquilo que era relativo a Alcibíades
(beleza e juventude) não pelo que Alcibíades era realmente. Já Sócrates, por sua vez,
amava Alcibíades independentemente da estética ou da puerilidade, já que ama a
própria alma do jovem discípulo:

Eis a razão: eu era o seu único amante, ao passo que os demais o


eram daquilo que lhe diz respeito. Enquanto finda o frescor das
coisas que lhe dizem respeito, você está começando a florescer. E,
agora, se você não for arruinado pelo povo ateniense nem cair numa
condição vergonhosa, eu não pretendo abandoná-lo. Pois é isto o que
mais temo: que você se arruíne ao se tornar amante (agatoi) do povo.
Pois muitos atenienses nobres já passaram por essa situação. De belo
aspecto é o povo de Erecteu, de grande coração: mas é preciso despi-
199

lo para contemplá-lo. Então, tome essa precaução à qual me


refiro (DIAS, 2015, p. 163).
Além de comparar seu amor com o amor dos antigos amantes de Alcibíades,
Sócrates destaca que “se tornar amante do povo” é perigoso, pois o povo é volúvel,
inconstante e ardiloso, de modo que é uma linha tênue que separa o agrado do
desagrado, a aceitação da reprovação, portanto, é extremamente perigoso depender do
humor da população. Sócrates pontua alguns princípios: “Primeiro, exercite-se, ó
afortunado, e aprenda aquilo que lhe é devido para se envolver com os assuntos da
cidade! Antes disso, jamais o faça, a fim de que, quando se envolver com eles, você
tenha o antídoto e não padeça de nenhum mal!” (DIAS, 2015, p. 165).

Alcibíades não compreende o que Sócrates quer dizer quando se refere ao


cuidar de si mesmo. Percebendo isso, antes de falar sobre o ‘si mesmo’, Sócrates
demonstra que não poucas vezes as pessoas estão entretidas em cuidar de outras coisas
que não de si mesmo. Sendo assim, o sujeito esquece de cuidar da própria alma. Logo,
cuida-se dos predicados e não dos atributos. Enquanto grande parte das pessoas se
preocupam com a manutenção do cuidado do corpo e da riqueza, o mestre tenta
orientar seu discípulo a ater-se àquilo que realmente importa, como descreve Sócrates:

De que maneira, então, poderíamos conhecer a alma da maneira mais


clara possível? Quando estivermos cientes disso, ao que parece,
conheceremos também a nós mesmos. Pelos deuses, acaso não
compreendemos as belas palavras da inscrição em Delfos à qual
fizemos menção há pouco? (DIAS, 2015, p. 165).
Sócrates retoma a ideia da inscrição do Delfos conhece a si mesmo como
fundamento imprescindível para o cuidado de si e conhecimento da alma. Porém,
como isso é possível? Isto é, por meio de qual caminho o sujeito conhecerá a si
mesmo? O exemplo dado são os olhos, ao exemplificar com a ideia de que para olhar
aquilo que olha seria preciso olhar um espelho que refletiria os próprios olhos, mas
como fazer isso com a ideia do si mesmo? Como conhecer a si mesmo sem um
instrumento externo que se assemelhe a um espelho e auxilie nessa percepção?
Sócrates afirma:

Então, ó caro Alcibíades, se também a alma pretende conhecer a si


mesma, porventura ela não deve olhar para uma alma, e, mais
precisamente, na região em que se encontra a sua virtude, a
sabedoria, ou para alguma outra coisa que aconteça de lhe ser
semelhante? (DIAS, 2015, p. 169).
Sócrates afirma que não há nada mais divino na alma (psique) do que conhecer
(eidenai) e compreender (phronein). Por este viés, o sábio continua: “E não
200

concordamos que a temperança é conhecer a si mesmo?” (DIAS, 2015, p. 169).


Quando o sujeito cuida de si mesmo, desenvolve o espírito da temperança, e, dessa
maneira: “Acaso, então, sem conhecermos a nós mesmos e sem sermos temperantes,
seríamos capazes de reconhecer as coisas boas e as más que nos dizem respeito?”
(DIAS, 2015, p. 171). Sócrates demonstra que, mais do que conhecer o que falta, é
preciso conhecer o que se tem. Em outras palavras, é conhecer a si mesmo e suas
contingências: “É, portanto, impossível reconhecer que diz respeito a nós aquilo que
nos diz respeito, sem conhecer a nós mesmos?” (DIAS, 2015, p. 171). O sábio
exprime que uma pessoa que não cuida de si, que não tem o si mesmo como
prioridade, não tem condição de assumir postura de cuidado do outro ou da cidade.
Sócrates problematiza a questão do cuidado:

Por conseguinte, se as cidades visam a felicidade (eudaimonessein),


elas não necessitam de muralhas, nem de trirremes, nem de
estaleiros, ó Alcibíades, nem de uma massa de gente, nem de
magnitude, sem excelência.
Alcibíades: Não mesmo.
Sócrates: Se, então, você visa a prática política correta e bela, você
deve transmitir a excelência (aretês) aos cidadãos. (DIAS, 2015, p.
173)
O silogismo argumentativo do raciocínio do sábio parte de um processo
comum e evidente, isto é, se a teleologia da política está fincada na prática correta e
bela dos cidadãos, é preciso discernir quais coisas ocupam o centro da atenção da
cidade que não correspondem a este intento. Logo, se uma pessoa tem como finalidade
a prática da política correta, é preciso transmitir a excelência aos cidadãos. Continua
Sócrates:

E alguém seria capaz de transmitir o que não possui?


Alcibíades: Como o seria?
Sócrates: Você deve, portanto, primeiro adquirir a excelência, assim
como qualquer outro indivíduo que vise o comando e o cuidado, não
somente de si próprio e do que lhe diz respeito no âmbito privado,
mas também da cidade e do que lhe diz respeito. (DIAS, 2015, p.
173-175).
A provocação do sábio referente a Alcibíades é que ele irá assumir um cargo
que tem como finalidade transmitir alguns princípios para o povo, além da devida
condução da pólis. Contudo, Alcibíades não está preparado para tal ação, pois ele não
se preparou para agir dessa maneira, não tem preparo para exercer a função
aristocrática que se exige na política. Sócrates revela que o sujeito não tem licença
para fazer o que se quer a si mesmo e, também, à cidade. Sócrates consolida seu
201

argumento ao relacionar suas ideias com a dimensão divina, isto é, ao passo que o
sujeito age de maneira justa e temperante estará agindo conforme a expectativa dos
deuses, e fará o que é bom e correto, todavia, se houver o inverso: “Mas, se as
executarem de maneira injusta, com seus olhares voltados para o obscuro e sem deus,
vocês as executarão, como é plausível, de maneira similar, por não conhecerem a
vocês mesmos”. (DIAS, 2015, p. 175).

Sócrates aponta que um doente déspota pode agir de maneira corrupta e cruel,
isto é, pessoas que não têm a técnica possível para assumir o controle de algo podem,
por alguma intempérie das contingências da vida assumir a condição de poder, dessa
maneira, quando um incompetente assume uma postura que não lhe cabe, a tragédia
está posta. Por exemplo, se uma pessoa despreparada assumir um navio, ou um centro
médico ou qualquer outro lugar, traria alguns problemas: “E não sucede a mesma
coisa à cidade e a todo e qualquer poder ou magistrado: apartados da excelência
(eretai), a consequência é agir mal?” (DIAS, 2015, p. 177). Sócrates continua seu
argumento: “É preciso, portanto, ó Alcibíades, que não seja fornecido nem a você nem
à cidade o poder supremo, e sim a excelência (areten), caso vocês visem a felicidade
(eudaimonein)” (DIAS, 2015, p. 177).

Para realizar a atividade política, bem como o governo de si e dos outros, o


poder não é o eixo fundamental, em vez disso, desenvolver no sujeito, por meio do
cuidado de si, a excelência que, em categorias socráticas, é a virtude que revela por si
mesma a justa medida. É por meio da temperança que o sujeito conseguirá enfrentar
tanto os impulsos dos excessos, como a inércia das faltas. A temperança por
excelência só é possível se houver o cuidado de si.

Próximo ao fim do diálogo, Sócrates pergunta em qual condição Alcibíades se


encontrava antes desse diálogo paradigmático: como homem livre ou como escravo?
Qual era a situação dele? Com vício? Belo? Sábio? Compreender aonde está é
fundamental para alcançar a excelência (aretê), bem como imprescindível para saber
aonde se quer chegar. O texto encerra com alguns desafios incompletos, que precisam
de ação posterior:

Alcibíades: Assim responderei. E, além disso, ainda digo o seguinte:


que haverá a possibilidade de trocarmos os papéis, ó Sócrates, eu
assumindo o seu, e você, o meu; pois é impossível que, a partir de
hoje, eu não me dedique à sua companhia como se fosse seu
preceptor, e que você não seja acompanhado por mim como seu
preceptor.
202

Sócrates: Ó nobre amigo, o meu amor, portanto, em nada diferirá


do da cegonha, se, depois de ter incubado um amor alado em você,
este for objeto, em troca, de seu cuidado.
Alcibíades: Mas assim será. E, a partir de agora, começarei a cuidar
da justiça (dikaiosunes).
Sócrates: Eu gostaria muito que você cumprisse isso. Mas temo, não
por desconfiar de algum modo de sua natureza, mas por observar o
poderio da cidade, que este domine a mim e a você. (DIAS, 2015, p.
179).
O diálogo encerra com a preocupação de Alcibíades referente àquilo que, de
fato, fará diferença em sua jornada existencial, bem como no seu labor político: a
justiça. Já Sócrates tem uma preocupação: será que essa vontade de se ater ao que é
importante, esse ideal permanecerá por longo prazo ou será demolido pelas forças
políticas enraizadas e fortalecidas presentes da cidade? As seduções políticas são
inúmeras, além do fascínio inerente ao controle. A influência generalizada de toda a
cidade tem um aspecto avassalador no sujeito por seu aspecto sedutor. Sócrates
encerra o diálogo destacando que o cuidado de si, em algum momento, pode ser
substituído pelo governo dos outros. A tentação em ater-se ao que é relativo é muito
maior do que os resultados paulatinos típicos do cuidado de si, que é a atenção sobre o
atributo.

Após todo o percurso questionador, crítico, analítico, sistemático e franco de


Sócrates em relação a Alcibíades, é importante destacar dois pontos: o primeiro é o
desejo de Alcibíades em continuar essa jornada para dentro de si. Nota-se, dessa
maneira, que o jovem aprendiz tinha uma percepção sobre si completa, mas após o
diálogo com Sócrates compreendeu a sua limitação existencial; o segundo aspecto é o
desejo de Alcibíades em inverter os papéis com o mestre, isto é, poder, um dia,
instruir Sócrates. Dentro da jornada para dentro de si por meio do cuidado de si, essa
inversão de papéis não é impossível. Essa alteração é valiosa para que a ignorância
deixe de ser protegida pelos muros da autossuficiência e que o cuidado de si aconteça
a fim de que o governo dos outros, como desdobramento do cuidar de si, assuma
relação de reciprocidade que aponte horizontes de mundo emancipadores e
libertadores.

O texto platônico do Alcibíades Primeiro revela não só os elementos centrais


para a ideia do cuidado de si, sobretudo, aponta para elementos importantes que
tangenciam o processo de educação e formação. Educar não é aprisionar o outro em
epistemologias desatentas ao si mesmo, ademais, educar é o ato de despertar o sujeito
203

para o cuidado de si, atentar-se sobre si, priorizar a si mesmo e, posteriormente


cuidar dos outros. É sobretudo o agir sobre atributos, não sobre predicados.

IV.4.3 Arremate Conceitual: Considerações


Hermenêuticas
Apropriar-se do texto platônico Alcibíades Primeiro como paradigma para o
diálogo com pessoas que fazem parte do processo educativo da contemporaneidade é
desafiador e, também, relevante. Desafiador por ser um texto que tem como
preocupação central o cuidado de si, e relevante porque os temas destacados pelo
autor na antiguidade são temas pertinentes aos dias atuais. Por isso, ao perceber essa
relação dialógica, destacamos os seguintes pontos:
Em primeiro lugar, percebe-se como as pessoas não priorizam a formação para
desempenhar determinada função técnica e/ou profissional. É comum pessoas se
acomodarem com formação mínima ou de péssima qualidade, desde que os resultados
financeiros sejam minimamente satisfatórios. Nota-se um despreparo quanto ao
cuidado de si mesmo, bem como uma terceirização sobre a constituição de si, basta
observar a tendência acrítica inerente à sociedade contemporânea. A ideia de
acriticidade está diretamente relacionada com o princípio de aceitar as narrativas do
senso comum, ou, seguindo a lógica socrática, assumindo a multidão como professor.
Logo, avulta-se atalho existencial quanto ao que se refere à crítica e à reflexão.
Outra questão importante que o texto apresenta – e que fora trabalhada de modo
especial por Freire – é que a educação é um processo relacional, transitivo e de
interação. Entre Alcibíades e Sócrates revela-se uma relação entre discípulo e mestre.
Portanto, não é possível sair de condições de stultitia por si mesmo. A educação
acontece na individualidade, porém nunca na solidão. O texto deixa claro que a
presença do Outro faz com que o sujeito saia de si mesmo a fim de que possa retornar
para si mesmo. Essa jornada existencial só é possível em um processo relacional,
dialógico e complementar.
O texto evidencia a ideia de que o sujeito, para forjar a si mesmo, precisa passar
pelo crivo dos questionamentos rigorosos e sistemáticos. A verdade nunca será aceita
se for pela metade. Dessa feita, o sujeito encontra a verdade por meio de um caminho
de transformação de si, e, posteriormente uma ação em direção ao outro. O ato de
governar o outro é secundário dentro do campo semântico do cuidado de si, inclusive,
204

só está apto a governar o outro quem aprendeu a governar a si mesmo. Quando há


quebra desse princípio, o governo do Outro passa pelo viés do despotismo, além do
que o sujeito opressor se torna oprimido pelo sistema que legitima sua ação opressiva.
Assim, o diálogo do Alcibíades Primero é um convite para os sujeitos revisitarem a si
mesmos por meio da educação. É um chamado para cuidar do atributo de si mesmo,
não se ater sobre aquilo que é relativo ou predicado de si mesmo.
205

5. EDUCAR SEM (DE)FORMAR: CONTRIBUIÇÕES FOUCAULTIANAS

PARA A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

“Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém
diz violentas as margens que o comprimem”. (Bertolt Brecht)

A proposição deste capítulo será potencializar a intersecção entre as narrativas


de discentes, docentes e agentes administrativos da Escola Estadual Senador João
Galeão Carvalhal com o arcabouço teórico foucaultiano. Neste entrelaçar, espera-se
compreender pistas inerentes a constituição da subjetividade e, assim, tipificar dois
pontos basilares que acompanharam esta tese, a saber: (i) o eco da desconstrução da
subjetividade, a partir do cotidiano do sujeito, compelida pelas vias educacionais; (ii)
o impacto da educação como fomentadora dessa nova constituição
Para encontrar este deslocamento centrífugo e centrípeto, a primeira parte desta
seção será a reflexão e hermenêutica da educação contemporânea, considerando os
mais variados itens que compõem o atual cenário. Em seguida, serão articuladas as
narrativas dos dissentes, docentes e agentes administrativos com alguns indícios
percebidos dessa educação deformativa que tem se consolidado em terras brasileiras.
Almeja-se apresentar o impacto que o fenômeno da educação tem na constituição da
subjetividade do ser, assim como, estes mesmos sujeitos, não se dão conta da
proporção holística típico deste fenômeno.
206

Este capítulo apresentará caminhos de resistência, dialogando com conceitos


foucaultianos em relação aos relatos dos discentes, docentes e agentes administrativos.
O destaque será para os aspectos de insurreição que a educação pode proporcionar ao
sujeito, logo, apresentar algumas pistas da filosofia da educação em práxis, isto é, uma
educação conectada à realidade sem ser refém do sistema. Por fim, a última parte
deste capítulo apresentará as possíveis contribuições foucaultianas para a filosofia da
educação.

V.1 Caminhos Dialógicos: Descrição Hermenêutica da


Educação contemporânea.
Pensar sobre o fenômeno da educação é levar em consideração o tema que tem
em seu âmago a complexidade inerente ao ser humano. As definições e interpretações
que acompanham a educação, como apresentado no primeiro capítulo, são diversas,
além do que, as percepções sobre a crise que acomete o cenário educacional – seja no
âmbito de políticas públicas, socioeconômica, de segurança, de conjuntura estrutural,
vocacional, identitária, dentre outros aspectos – estão envoltas sob diversas
interpretações e análises, dependendo dos agentes que a observa.
Ao mesmo tempo que a educação é considerada direito inalienável do sujeito, é,
semelhantemente, moldurada por embates teóricos que percorrem os séculos. Não se
pode perder de vista que a esfera constitutiva da educação é, paralelamente,
constitutiva de subjetividade e acontecimento político (TEMPLE, 2013). Como
acontecimento político, considerar os sujeitos que estão neste jogo, isto é, tanto quem
forma como quem é formado é de suma relevância. É por meio deste relacionamento
formativo que os postulados serão concebidos. Se, de um lado, há aquele que está em
condição de aprendiz, há, do outro lado, o intelectual, ou melhor, aquele que tem
como incumbência auxiliar na leitura dos eventos e da vida. Nesta direção Adorno
destaca que “a função política do intelectual está, portanto, estritamente ligada ao
problema da produção de verdade. A ação que ele pode exercer sobre a relação entre
verdade e poder confere uma força completamente diferente a seu impacto sobre a
sociedade” (2004, p. 42). A constituição da subjetividade e o acontecimento político
estão entrelaçados, tendo em conta a faceta integral do sujeito.
Diante do que foi posto, encontrar o eixo fundante da crise na educação
brasileira não é tarefa fácil, isso porque não é possível pinçar a educação como trecho
207

irrisório e pontual da existência humana. Para se pensar a educação de modo


coerente, rigoroso e consistente, faz-se necessário levar em consideração todas as
bifurcações que permeiam essa temática, ao passo que a compreensão da educação
pela educação não faria sentido algum, ou, no máximo, apresentaria compêndios
teóricos densos, todavia que não tocam o cotidiano dos sujeitos e suas reais demandas.
Refletir sobre a educação é aventurar-se em veredas sinuosas, uma vez que não se
espera encaixar a vida na teoria, em vez disso, é a teoria que reflete sob a ação, suas
causas e consequências.
Os dados estatísticos são sedutores neste processo investigativo, haja vista que
os algoritmos são suscetíveis das mais variadas interpretações. Os números são
vulneráveis aos seus intérpretes. Aferir o desempenho da educação contemporânea
apenas pelo viés estatístico é transformar o que é fundamentalmente transcendente em
esfera imanente. Os dados não são resolutivos e completos em si, pelo contrário,
apontam apenas para o espelhamento de uma determinada situação condicionada a um
contexto específico. O algoritmo é, apenas, um recorte imanente de uma crise que
tangencia concepções que beiram a transcendentalidade.
Isto posto, compreender a situação da educação hodierna e o possível fracasso
desse fenômeno exige posicionamento reflexivo que extrapole os muros estáticos dos
dados de aferimento de resultados. Está tese não propõe apologia ao desprezo aos
dados estatísticos, o que é proposto é que para avaliar a efetividade da educação, bem
como o fracasso que a circunda, é crucial exceder algumas fronteiras, dentre elas a
submissão inquestionável às informações numéricas. Nesta lógica, perceber que a
educação está reduzida aos imperativos do mercado é crucial, pois, em suma, conclui-
se que a educação é vista como meio a serviço do fim pecuniário. Charlot, ao analisar
a hipótese do fracasso escolar, destaca que:
É uma questão de realismo o qual se torna ainda mais realista se
pensado na lógica de que para se ter um bom emprego se deve ter
um diploma e, para se ter um diploma, se deve passar de uma série
para outra. Deve-se ter diploma para ter emprego, deve-se ter
emprego para ter dinheiro para ter uma vida normal (2002, p. 27).
Este ideário descrito por Charlot ainda se faz presente, haja vista que a discente,
“R. L.”12 – como descrito no capítulo anterior – afirmou que a tensão que teve com o
seu pai ao escolher um curso de graduação se ateve, justamente, porque ela havia

12
Todos os discentes, docentes e agentes administrativos que contribuíram para a elaboração desta tese
serão identificados pelas iniciais de seus nomes: “R. L.”, “F. G.”, “R. M.”, “J. A.”, “H. F”, “M. F.” e
“V. M”.
208

escolhido um curso que, segundo sua narrativa, “não dava dinheiro”. A tensão
com o pai se dava porque, em sua perspectiva, “para ser alguém na vida é preciso
trabalhar”. O ponto não está, especificamente, no trabalho, mas no rendimento
financeiro atrelado ao labor (ARENDT, 1981). Esta narrativa fundamenta, ainda mais,
a hipótese de que a educação é meio para a constituição da existência que se efetiva
por meio do trabalho que proporciona retorno financeiro. É preciso deixar claro que
essa concepção de “ser alguém” na vida narrada pela discente “R. L.” está imbricada
com a ideia de que é o trabalho que dignifica a pessoa, entretanto, não pode ser
qualquer tipo de trabalho, tem que ser um rentável.
Sabe-se que a reflexão sobre o fracasso escolar ocupa a agenda dos teóricos da
educação há décadas, dentre os teóricos, as ênfases são diversas. Por exemplo, Patto
(1988) aponta para tensões estruturais, organizacionais, políticas e pedagógicas da
década de 1980. É impressionante perceber como as contrariedades do século XX
ainda se mantém persistentes na atualidade. O século XXI traz consigo contingências
singulares, como, por exemplo, o impacto das novas tecnologias – tema este destacado
tanto pelos discentes “R. L” e “F. G.”, pois, segundo eles, ao mesmo tempo em que a
tecnologia pode ser um suporte benéfico, pode ser, simultaneamente, o dispositivo que
atrapalha a formação do sujeito. É preciso considerar o impacto das redes sociais, a
virtualização da existência, a cultura monocromática e homogênea despertada pela
globalização. Ainda assim é possível encontrar similitudes que sobrepujam a
temporalidade e a regionalidade. Dilemas encontrados em terras brasileiras se
assemelham muito a problemas encontrados no continente Americano.
Corroborando com esse prisma, Caldas (2005) apresenta um relato de uma
criança norte-americana na década de quarenta a qual vivia uma realidade muito
semelhante à de crianças latino-americanas na contemporaneidade. Caldas apresenta a
percepção da escola desta criança que havia repetido duas vezes o sétimo ano. Segue a
narrativa da criança: “Na verdade, eles nunca acreditam que a gente sabe alguma
coisa, a não ser que se possa dizer o nome do livro onde a gente aprendeu. Tenho
vários livros lá em casa. Mas não costumo sentar e lê-los todos, como mandam a gente
fazer na escola” (CALDAS, 2005, p. 23).

O espantoso desse relato não é o fato da descrição do cenário da escola


americana muito se assemelhar com a brasileira, em vez disso, é como o discurso da
década de 40 ainda se aproxima de modo significativo com o cenário atual. É
209

impressionante como o docente “J. A.” apresentou um relato muito próximo desta
narrativa ao descrever a forma como os professores do Estado se relacionam com os
alunos, como afirma o professor “J. A.” “A postura do professor em subestimar os
alunos, achando que eles não conseguiram compreender determinado assuntos por não
terem competência”. O que está posto é: ou se sabe porque se tem a referência
acadêmica e legítima, ou não se sabe porque não tem competência.

Bernard Charlot (2002), ao refletir sobre a educação, bem como sobre o fracasso
escolar, busca compreender o que está por detrás do que é visto e perceptível, ou seja,
analisar a matriz do fracasso escolar, não só os desdobramentos dos fenômenos
evidentes, mas, em linhas foucaultianas, instaurar processo arqueológico
(FOUCAULT, 2005). A intuição que se tem é que a educação é regida por um
discurso mercantilista típico da lógica do mercado que invade todas as instâncias da
humanidade, a fim de estruturar os sentidos e significados. Jung Mo Sung, analisando
a conjuntura do cenário hodierno, aponta para um prognóstico decisivo:
A minha hipótese para essa resistência generalizada à regulação e
restrição à liberdade do mercado é a de que a ideologia neoliberal,
que antes era uma ideologia do sentido de um sistema de ideias
norteadoras de uma classe social, passou a ser o núcleo estruturador
da cultura global e do ethos capitalista. A maioria das pessoas,
especialmente a grande mídia, pensa segundo o mito neoliberal.
Assim, esse mito passou a ter um papel fundamental no processo de
abrir e fechar as possibilidades de conhecimento e diálogo, de definir
critérios de discernimento entre o bem e o mal, entre ações
aceitáveis ou não. E como é um mito fundamental, estruturador, as
pessoas imersas nessa cultura não o enxergam, pois veem o mundo
através dele. Para poder vê-lo e criticá-lo, é preciso sair desse mito,
dessa cultura, ir além do sistema e ver a realidade a partir de fora
(2019, p. 44).
Sair de um mito estruturante a fim de uma compreensão extensiva da existência
não é tarefa fácil. A infraestrutura dominante é arbitrária e despótica, ou seja, impõe
uma acomodação existencial do sujeito a partir dos paradigmas estabelecidos e
legitimados socialmente. Nesse contexto, a educação adequa-se ao padrão imposto
pelo sistema ou mercado. Charlot destaca que a educação está como resposta às
tendências do mercado, em suma, retomando as pistas do início desta seção: educa-se
para a profissionalização. Nessa lógica, não há espaço para a reflexão, apenas para a
utilidade e tecnicidade, como aponta Sung:
Críticas realizadas sob a aceitação do mito do mercado livre não têm
como desvelar e criticar os fundamentos deste. Elas sempre acabarão
sendo incorporadas e assimiladas pela lógica do sistema dominante.
Quando se quer criticar os fundamentos metafísicos e míticos de um
210

sistema, é preciso fazer isso a partir de fora, da transcendência


do sistema, a partir de outro espaço mítico (2019, p. 45).
Só há aceitação de uma narrativa tão cruel porque há o discurso de normalização
que se faz presente nas subjetividades. Na perspectiva de Jung Mo Sung, o aporte para
a compreensão dessa aceitação incondicional e silenciosa se dá a partir do mito
estruturante, ou seja, “entender os mitos que norteiam a razão e a dinâmica cultural é
fundamental em nossa discussão” (2019, p. 49). Os mitos são aqueles que dão sentido
para a existência humana. Sung propõe que a contemporaneidade substituiu o mito
pela ideologia, e essa, por sua vez, carrega uma densidade mítica que faz com que o
sujeito justifique as infraestruturas que são, em perspectiva eidética, maiores do que o
próprio sujeito, logo, cabe ao sujeito se alocar dentro das bordas estabelecidas pelo
sistema.
A superestrutura do sujeito é decodificada a uma hermenêutica funcionalista e
residual. O impacto da cultura capitalista que “está colonizando a mente e o coração
de quase todas as pessoas e povos do mundo” (SUNG, 2008, p. 162) é significativo, à
medida que exige adequação do sujeito e sociedade às matrizes dominantes. Este
processo tem como intuito a homogeneização da existência:
[...] a proposta de universalização do padrão de consumo dos ricos
via sistema de mercado global produz, ao contrário, concentração de
renda, exclusão social, sacrifício de vidas humanas e destruição de
culturas locais, mesmo que se consiga manter o ambiente natural em
um nível sustentável. É uma tentativa de manter a promessa do mito
do desenvolvimento, sem negar o problema ambiental, como um
instrumento ideológico da expansão do capitalismo pelo mundo
(SUNG, 2019, p. 63).
É evidente a arbitrariedade do mercado. Essa citação se adequa ao que foi
mencionado no primeiro capítulo com a crítica nietzscheana sobre a redução e
extensão da educação. Em linhas gerais, a educação, seguindo a proposição deste
sistema, propõe-se a alimentar a perpetuação de um sistema despótico e mesquinho,
haja vista que “a ganância humana amesquinha o ser que tem vocação para o
egocentrismo; deste modo, toda a percepção de reciprocidade dependente é substituída
pela exploração predatória mercantilizada”. (MANTOVANI, 2019, p. 101).
Nesse cenário, destaca-se que não há escolhas para o sujeito: ou se adequa às
normatizações do mercado ou é naturalmente (legitimamente) excluído e
excomungado do sistema. A provocação feita por Jung Mo Sung é: “para que a
humanidade possa se salvar, é preciso que todos nós assumamos o mercado como a
única alternativa, porque não haveria outra. É isso que se chama não há alternativa
211

[...]. Todos nós devemos compartilhar a fé no mercado, se não perecemos” (2019,


p. 77), ou, como aponta Arroyo:
O valor dos conhecimentos socialmente construídos e acumulados,
sua função no desenvolvimento humano dos educandos, fica à
margem e ao critério de seleção ditado pelo peso que o mercado dá a
determinados saberes e competências. A democracia do mercado é
limitada e limitadora. Empobrece qualquer horizonte democrático e
igualitário” (2000, p. 38-39).
Nesse mundo mercantilista, Jung Mo Sung apresenta uma reflexão sobre o ethos
contemporâneo, em que o sujeito tem três direitos inalienáveis, a saber: os Direitos
Civis, que garantem que o sujeito não passe por alguma situação contra a vida,
liberdade ou dignidade; o Direito Político, que dá ao sujeito o poder de participar das
decisões da pólis ativamente; e o terceiro, o Direito Social, que ele descreve como:
[...] positivo e refere-se ao acesso às condições necessárias para uma
vida digna e para desenvolver o seu potencial humano – direito à
educação, a um sistema de saúde, moradia, trabalho – e se contrapõe
a sistemas que geram exclusão social e pobreza. A noção do humano
como o fundamento último desses direitos e deveres mostra como o
humanismo é uma característica marcante dessa época (2019, p. 91).
Esse humanismo é disfarçado pela lógica meritocrática típica do espírito
neoliberal, pois todos os direitos estão atrelados diretamente com a funcionalidade do
sujeito no mercado de trabalho. Para Sung, a contemporaneidade carrega o dualismo
antagônico que promove certa divisão igualitária dos direitos fundamentais – em que
formalmente todo ser humano é igual perante a lei – e, por outra via, a distribuição
desigual dos bens – substancialmente a miséria persiste implacável em todos os níveis
e índices. Ao mesmo tempo que se dão direitos e deveres para o sujeito, não se dá o
mínimo necessário de dignidade. A densidade soteriológica13 que marca esse contexto
é a confissão de fé ao mercado para uma salvação do consumidor, o qual é conduzido
a se submeter a uma educação instrumental tecnicista a fim de abarcar resultados
pragmáticos.
Para Deleuze, a lógica do mercado, do consumo e do endividamento, transforma
o sujeito cárcere de um sistema acomodado na necropolítica, pois “o homem não é
mais o homem confinado, mas o homem endividado. É verdade que o capitalismo
manteve como constante a extrema miséria de três quartos da humanidade, pobres
demais para a dívida, numerosos demais para o confinamento” (1992, p. 226). É
evidente que o sujeito tem sua constituição intimamente ligada com seu fôlego de

13
Tomou-se emprestada a palavra Soter, utilizada pela Teologia, que carrega o sentido de salvação. No
caso citado trata-se do tipo de salvação em que o sujeito está em condição de passividade diante de
uma ação externa ativa.
212

consumo, por isto, a educação é o instrumental que subsidia o sujeito para adentrar
nesse jogo mercantil. Nesse contexto meritocrático, típico da lógica capitalista, a
hierarquização dos sujeitos é encadeada a partir da ideologia dominante. Seguindo a
proposição de Bauman (1998) os sujeitos se adaptam e, simultaneamente, elegem os
que serão excluídos. O coletivismo suprime o indivíduo, como destaca Adorno:

Pessoas que se enquadram cegamente em coletivos convertem a si


próprios em algo como um material, dissolvendo-se como seres
autodeterminados. Isto combina com a disposição de tratar outros
como sendo uma massa amorfa. Para os que se comportam dessa
maneira utilizei o termo caráter manipulador [...] (2006, p. 129).
Esse cenário dualista que equaciona o espírito coletivista típico de um caráter
manipulador com o egocentrismo, proporciona, segundo Etcheverry (2000), a
manutenção da ignorância, pois, segundo o autor, cada vez se sabe menos, isto é, a
proposição da educação contemporânea está entrelaçada com intentos que não
correspondem à sua vocação inicial, ou seja, em vez de formar, a educação se propõe
a enformar. Revisitar a figura do intelectual como aquele que diagnostica a realidade
com a finalidade de abalar as estruturas, não como arquiteto de novas verdades,
todavia como problematizador das verdades construídas é fundamental. Como destaca
Adorno: “a função do intelectual se nutre, portanto, de duas fontes: por um lado, de
um princípio de descrição, que impede o intelectual de exercer a qualquer forma de
hegemonia sobre a sociedade e, por outro lado, de uma crítica das formas totalizantes
da política decorrente de seu excesso de generalização (2004, p. 47).
A figura do intelectual auxilia na interrupção desta lógica castradora. Essa
técnica de enclausuramento e formatação do sujeito é típica de uma sociedade que
busca controlar sujeitos e almeja formatar subjetividades. Neste cenário, os
intelectuais são substituídos pelos “gurus” ideológicos. O objetivo dessa ação é
manter os indivíduos inalterados; proporcionar ao indivíduo o maior nível de sensação
de segurança e bem-estar, como aponta Sung:
Desejamos viver uma vida sob controle, sem tantos sobressaltos e
insegurança. Queremos amar sem medo de sermos incompreendidos
ou abandonados pela pessoa amada. Sofremos quando pensamos na
possibilidade de que algum mal ou infortúnio atinja as pessoas que
amamos, e sofremos quando isto acontece porque a dor da pessoa
amada é também a nossa dor. A insegurança, uma das principais
causas do stress nos dias de hoje, nos incomoda profundamente e,
por isso, passamos a associar a vida feliz com a segurança
proporcionada pelo controle sobre as nossas vidas (2007, p. 48)
Será possível mensurar ou detectar o que tem a capacidade de perpetuar a
manutenção desse ciclo dialético? Jung Mo Sung levanta a suspeita sobre a
213

informação. A contemporaneidade é surpreendida pela compulsão informacional.


A informação é o meio pelo qual o sujeito se localiza na sociedade de consumo.
Seguindo o pressuposto de Jung Mo Sung “vivemos em uma era em que as
informações fluem a uma velocidade e quantidade nunca antes imaginadas” (2005, p.
74), ou seja, há um obsoletismo programado que atua como arbítrio tanto do que é
material com imaterial. A regra de ouro do mercado é criar um produto que tenha o
prazo de validade bem estabelecido, pois, só assim, o sistema consumista se manterá
vivo.
Para uma melhor compreensão do cenário contemporâneo e sua compulsividade
pela informação, Jung Mo Sung destaca a distinção conceitual entre quatro termos que
se intercambiam, porém carregam significados específicos, a saber: dados,
informação, conhecimento e sabedoria. Sung define dados como o conjunto de signos
que estão restritos à moldura de si mesmo; a informação, por sua vez, seria a condição
de síntese e interpretação dos dados; já o conhecimento é a informação em devir, em
transformação, em aplicação. Um exemplo seriam: palavras, frases e parágrafos. São
conceitos dialogais, interativos e complementares.
Já à concepção de sabedoria, Jung Mo Sung traz outros entornos teórico, pois
“sabedoria é um tipo de conhecimento que nos ajuda no discernimento para se viver
uma vida mais humana e humanizadora” (2005, p. 75). Em um contexto da sociedade
do hiperconsumo, a tríade dados, informação e conhecimento carrega teor monetário;
em contrapartida, a sabedoria não é objetificada, haja vista que o mote da sabedoria se
alicerça em um processo contínuo de significação e compreensão de si e do mundo.
Dessa forma, sabedoria é o processo de apregoar sentido em contraponto às
“sociedades modernas industriais, [em que] a fonte de riqueza se deslocou para a
indústria. Com isso, a alienação principal da sociedade passou da alienação da terra e
do corpo para a da força do trabalho” (SUNG, 2005, p. 76). A sabedoria, portanto,
seria a oposição da tendência instrumental que está articulada com a premissa
tecnocrata, moldurada pelos rudimentos positivistas que fabricam consciências
coisificadas, isto é:
Essa é sobretudo uma consciência que se defende em relação a
qualquer vir-a-ser, frente a qualquer apreensão do próprio
condicionamento, impondo como sendo absoluto o que existe de um
determinado modo. Acredito que o rompimento desse mecanismo
impositivo seria recompensador (ADORNO, 2006, p. 132)
A consciência coletiva imposta pelo sistema dominante faz com que a educação
receba um caráter linear, mecanicista e tecnocrático. Na perspectiva de Etcheverry
214

(2000), há um dilema trabalhoso a ser superado, pois, se é sabido que quanto


menores os investimentos na educação maiores são os índices de subdesenvolvimento,
sabe-se, também, que o investimento não pode ser unidimensional, sobretudo,
abrangente. Para constatar essa situação, o teórico se atém a dados de altos
investimentos em educação em todas as suas frentes – tanto em países que
demonstram índices significados, como países que negligenciam o investimento em
docentes e discentes. Para Etcheverry, nações que priorizam a educação não tratam
este fenômeno como gasto fixo, mas como investimento para o desenvolvimento que
transcende os parâmetros positivistas.
Para Etcheverry, a distribuição da riqueza é um problema sociopolítico e,
portanto, envolve, inclusive, a dimensão da má distribuição de renda. A provocação
feita por Etcheverry lança as atenções no como o investimento é feito no que se refere
à educação e seu grau de importância para o país. Paralelamente à noção do
profissionalismo presente nas práxis educacionais, Charlot (2002) delineia o quanto a
injustiça social estabelece um abismo entre as classes sociais, isto é, “há 35 anos
sabemos, no mundo inteiro, que as crianças oriundas de uma família popular têm
menos chances de serem bem-sucedidas na escola do que os filhos de família de classe
média” (2002, p. 21). Verifica-se, portanto, que a vulnerabilidade à marginalização e
miséria impacta diretamente na constituição formativa do sujeito.
Para referenciar sua análise, Charlot demonstra como a educação está interligada
com o todo do sujeito. Para isso, o autor apresenta um dado aparentemente pífio de
famílias que matriculam suas crianças na escola para o processo de alfabetização,
“cujas residências dos pais possuem banheiro, maior será o número de alunos
alfabetizados no final do ano letivo” (2002, p. 22). O que salta no apontamento de
Charlot é que a dimensão econômica se conecta diretamente com a constituição
formativa do sujeito, do mesmo modo que se conecta com a composição de sua
subjetividade. Dito de outro modo, “o aprofundamento da tendência a direcionar os
fins da educação para uma confluência de interesses associados à competitividade
econômica e à afirmação do Estado regulador” (BITTENCOURT, 2017, p. 556). Por
mais que a faceta financeira exerça um impacto significativo na composição
educacional do sujeito, é coerente ponderar fatores que não se restrinjam à noção
pecuniária.
É interessante como essa citação se articula com as narrativas dos discentes “R.
L.” e “F. G.”, bem como da docente “R. M.”. Em todas as narrativas a presença da
215

necessidade do trabalho se evidenciou, se a discente “R. L” após estudar o dia


inteiro, desdobra-se para chegar ao trabalho no começo da noite; o discente “F. G.”
escolheu para o ano seguinte, em vez de estudar, buscar um emprego; já na narrativa
da professora, ela só conseguiu fazer faculdade (privada), porque trabalhava o dia
inteiro e fazia pão de queijo para completar a renda. A educação é conquistada com
muito custo, ou, suplantada devido a necessidades latentes. Nessa direção, Arroyo
destaca:
O crescente desemprego, a crescente marginalização, inclusive da
infância e da adolescência, a falta de horizontes para a juventude,
enfim, a crescente exclusão e seletividade da economia globalizada
levam-nos a abandonar os horizontes democráticos que nos
inspiravam em décadas recentes e desabamos facilmente para o
democratismo credencialista em solidariedade aos excluídos.
Podemos levantar a hipótese de que é nesse quadro de exclusão
crescente e de reafirmação dos credencialismos que frequentemente
são retomadas medidas fáceis contra a retenção, defasagem,
fracasso. A concepção moderna de educação básica, gestada na
moderna construção do pensamento democrático, na luta pelos
direitos do ser humano que apareceu nos horizontes da década de 80
encontra dificuldades de se afirmar e radicalizar sob o manto
perigoso da democracia credencialista” (2000, p. 38).
Nessa direção, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) “está orientada
pelos princípios éticos, políticos e estéticos que visam a formação humana integral e à
construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva” (BRASIL, 2015, p. 7). A
proposição da BNCC é incentivar uma educação crítica e criativa, para que seja
efetivada a transição da composição ideológica para um horizonte crítico. Conforme
Adorno, “a educação tem sentido unicamente como educação dirigida a uma
autorreflexão, reflexão crítica” (2006, p. 121), refletir e criticar a si mesmo é um
processo de descolonização de subjetividades, uma vez que:
[...] o Brasil, ao longo de sua história naturalizou
desigualdades educacionais em relação ao acesso à escola, à
permanência dos estudantes e ao seu aprendizado. São
amplamente conhecidas as enormes desigualdades entre os
grupos de estudantes definidos por raça, sexo e condição
socioeconômica de suas famílias” (BRASIL, p. 15).
Quando não há esse processo autorreflexivo, emerge o paradoxo que Gigante
(2017) apontou ao se referir à educação que segue, formalmente, um caráter
integrador, contudo, substancialmente a educação trabalha de modo setorizado, isto é,
os docentes estão preocupados com suas disciplinas, seus conteúdos específicos. De
modo geral, não há uma preocupação holística. Há, portanto, sinonímia entre a práxis
da educação com a rotina fabril.
216

Como meio de enfrentamento a essa tendência taylorista, a BNCC busca


desenvolver nos estudantes dez competências gerais. Vale destacar que este
documento define competência por “a mobilização de conhecimentos (conceitos e
procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e
valores para resolver as demandas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e
do mundo do trabalho” (BRASIL, p. 8). Nota-se que a educação é um aspecto
imprescindível para a transformação da sociedade. Sem educação de qualidade, não
haverá sociedade de qualidade. As dez (decálogo) competências desenvolvidas pela
BNCC dialogam diretamente com as três etapas da educação básica, educação infantil,
ensino fundamental e ensino médio.
São, em síntese, as competências propostas pela Base Nacional Comum
Curricular: (1) a valorização da construção histórica de todos os elementos que
compõem a existência do sujeito (desde os aspectos materiais aos imateriais); (2)
estimular a dúvida, crítica e a experimentação; (3) potencializar a fruição artística; (4)
estimular o uso das várias facetas da linguagem a fim de uma comunicação,
compreensão e interpretação densa de si e da sociedade; (5) utilizar e criar novas
tecnologias pautadas em princípios éticos; (6) valorizar a pluralidade dos saberes e das
diversas vivencias culturais que tangencia o mundo do trabalho; (7) estimular o
conhecimento com base na ciência, em fontes confiáveis confrontando a tendência da
pós verdade, o qual gerará no sujeito uma relação consciente com toda a ecologia e
economia do mundo; (8) cuidar do si mesmo em sua completude, isto é, ocupar-se
com o físico e com as demandas emocionais tanto de si como dos outros; (9) exercitar
a empatia e a alteridade como marca fundamental das relações interpessoais; (10)
promover ações autônomas, responsáveis e com resiliência diante das tensões da vida.
Nota-se que este decálogo proposto pela Base Nacional Comum Curricular tem como
projeção a maturação do sujeito, a fim de que as ações em todos os âmbitos de sua
jornada sejam marcadas pela consciência ética, responsável e de alteridade.
A questão que salta é: até que ponto a BNCC trata de competência? A discussão
não está em torno do saber do discente, sobretudo, a ênfase recai sobre o que devem
saber fazer. Etcheverry (2000) aponta a tendência da atualidade em fazer com que as
atividades educacionais estejam centradas na criança, bem como a criança decide
aquilo que queira aprender. Por mais bem-intencionado que estejam os currículos,
ainda assim é delicado pensar até que ponto a autonomia como imperativo faz parte do
217

processo emancipatório dos sujeitos, haja vista a tendência da sociedade em


estabelecer nómos de dependência e de produtividade.
Quanto ao docente, este passa por um processo de terceirização. Etcheverry
pondera: “como resultado dessa formação pós-moderna, cada dia importa menos a
competência concreta dos docentes referente aos temas que, se supõe, se deve ensinar”
(2000, p. 47). O docente é descaracterizado de sua vocação formativa para uma
utilidade pragmática e assistencialista, em que a informação solapa a densidade da
formação. A proposição que não pode sair da perspectiva é: até que ponto a
preocupação com a educação, em sua dimensão integral, não tem se limitado apenas
ao viés profissional?
Essa provocação aparece no próprio documento da BNCC, em que há um
recorte sobre o que se deve ensinar, tendo como pressupostos as demandas típicas da
contemporaneidade. Ao mesmo tempo que a BNCC está atenta ao aspecto holístico do
sujeito, ela aponta, por outro lado, a dimensão de que o sujeito precisa ser equipado
com requisitos específicos para atender as especificidades de um mercado que espera
um profissional, além de informado e competente, com saúde emocional adequada
para não causar mal-estar social e prejuízos à proposta seriada de produção.
Considerando, assim, essa linha tênue entre os interesses mercadológicos e a vocação
intrínseca da educação, a BNCC aponta para um horizonte balizador:
Reconhece, assim, que a educação Básica deve visar à formação e ao
desenvolvimento humano global, o que implica compreender a
complexidade e não linearidade desse desenvolvimento, rompendo
com visões reducionistas que privilegiam ou a dimensão intelectual
(cognitiva) ou a dimensão afetiva. Significa, ainda, assumir uma
visão plural, singular e integral da criança, do adolescente, do jovem
e do adulto – considerando-os como sujeitos de aprendizagem – e
promover uma educação voltada ao seu acolhimento,
reconhecimento e desenvolvimento pleno, nas suas singularidades e
diversidades. Além disso, a escola como espaço de aprendizagem e
democracia inclusiva, deve se fortalecer na prática coercitiva de não
discriminação, não preconceito e respeito às diferenças e
diversidades. (BRASIL, 2015, p. 14).
Talvez parte dessa apatia que lesa a percepção e engajamento ao que se refere ao
fenômeno da educação esteja conectada, além das prerrogativas descritas, com a
ausência de referências históricas, seja no âmbito individual ou coletivo. A
contemporaneidade é marcada pela concepção de story, ou seja, uma delimitação do
quanto deve durar a memória. Mais do que marcar cronologicamente o tempo, a ideia-
chave é determinar o controle sobre a duração das lembranças. Na medida em que se
destroçam as lembranças extirpam-se as referências, ou seja:
218

Essa é a identidade que se ajusta ao mundo em que a arte de


esquecer é um bem não menor, se não mais importante do que a arte
de memorizar, em que esquecer, mais do que aprender, é a condição
de contínua adaptação, em que sempre novas coisas e pessoas entram
e saem sem muita ou qualquer finalidade do campo do viés da
inalterada câmara da atenção (...) (BAUMAN, 1998, p. 36).
Pensar sobre a educação na contemporaneidade é refletir sobre o próprio ser
humano. Um ser que vive a indissociável socialização do si mesmo com o mundo que
o cerca. Charlot demonstra este paradoxo humano ao articular tanto a dimensão social
como individual. Segundo o autor: “eu sou 100% social, porque se não fosse social,
não seria um ser humano, seria outra coisa. Eu sou 100% social, mas também sou
100% singular, porque não existe nenhum outro ser humano social igual a mim”
(CHARLOT, 2002, p. 23). Esse entrelaçamento entre ser social e individualidade
qualifica quem é o ser humano, diante de toda a sua complexidade de inserção,
apropriação e ressignificação da cultura (ELIAS, 1996), o sujeito é impulsionado
anular sua identidade social/individual para assumir a conduta mercantil. É esvaziado
de si mesmo. Observar o sujeito na ótica foucaultiana é, segundo McGushin um duplo
desafio:
Porque Foucault sustenta que a subjetividade é a relação do eu
consigo e que esta relação é composta de e formada por uma
variedade de atividades possíveis, ele não produz uma teoria do
sujeito ou do eu que nos diria quem e o que verdadeiramente somos
– ele não nos diz que tipo de substância somos ou qual é a nossa
essência. Em vez disso, a obra de Foucault desempenha
simultaneamente duas tarefas. Primeiro ele nos apresenta uma
cuidadosa descrição e análise de algumas das várias formas de
subjetividade que a civilização ocidental tem produzido desde o
tempo dos antigos filósofos gregos. Depois, e ao mesmo tempo, ele
coloca em prática uma forma distinta de subjetividade. Em outras
palavras, as obras de Foucault são atividades mediante as quais ele
deu forma à sua própria subjetividade e estabeleceu uma certa
maneira de ser um filósofo. (2011, p. 169).
Ao encadear alguns temas que perpassam o tema da educação e sua função
utilitarista, sobretudo destacando como a educação se tornou em um fenômeno que é
um meio para chegar a um determinado fim, dito de outra forma, nessa lógica, a
educação é apenas um instrumental que atende a determinadas expectativas. Assim, a
intenção a seguir é apresentar indícios de uma educação deformativa, a qual ao mesmo
tempo em que é eficiente ao que se refere a sua função mercadológica, é
extremamente destrutiva ao que se refere à constituição do sujeito.
219

V.2 Indícios de uma educação deformativa


Em primeiro lugar, vale a definição do que se compreende por deformativo
nessa tese. Por vias foucaultianas (2018), compreende-se, aqui, o princípio
deformativo como o ato de sequestrar o sujeito de si; é lançar o sujeito em uma
condição de alienação diante de si e da vida; total passividade em relação a si mesmo
e ao mundo que o cerca. O termo deformativo, neste contexto, relaciona-se com a
ideia de que a educação segue pelo viés oposto a sua concepção inicial, isto é: em vez
de conduzir o sujeito para fora de si para que haja um encontro real consigo, a
educação deformativa torna cativo o sujeito de si mesmo ou de outrem, a fim de que
não haja qualquer tipo de ação insurgente e reflexiva. A ideia desta seção é articular as
narrativas dos discentes, docentes e agentes administrativos com indícios da educação
deformativa.
As narrativas dos discentes “R. L.” e “F. G.” destacam a educação com um
caráter pragmático e tecnicista. No relato de “F. G.”, quando ele diz para a mãe que
gostaria de estudar música, por sentir afinidade, a postura da mãe é, em um primeiro
momento, refutar tal sonho, pois ser musicista não é uma profissão rentável
financeiramente. O mesmo acontece com “R. L.”, como dito anteriormente, ao relatar
seu sonho em atuar em uma área vulnerável a baixos rendimentos financeiros, a
postura contrária do pai é perceptível. O próprio docente “J. A.” destaca a tirania do
capital, em que as pessoas são tidas como competentes a partir do momento que têm
conquistas financeiras significativas.
Nessa ótica, a existência é mercantil e o capital é arbítrio do ser. Em sua leitura
de mundo, a discente “R. L.” descreve o paradoxo de que, ainda que o recurso
financeiro seja importante, ele não é decisivo para a existência, como segue: “é porque
dinheiro, assim, é uma coisa que a pessoa padronizou, nós precisamos do dinheiro pra
fazer as coisas, mas ele não está envolvido em tudo. Igual eles colocam. Tem coisas
mais importantes que o dinheiro”. Ainda que seja uma narrativa do discurso social,
vale destacar que é a percepção do olhar de um discente em relação ao porvir.
A subjetividade forjada nesse sistema está em relação a ideia de que o sujeito é
feito para corresponder às expectativas sociais e fabris, as quais são limitadas pela
dimensão pecuniária típica do labor 14 (ARENDT, 1981). Gertz (2008), por sua vez,

14
Hannah Arendt apresenta três tipos de atividades humanas: o labor como ação que indispensável para
a sobrevivência do sujeito; trabalho como atividade quando as questões básicas já foram resolvidas; e
ação que está relacionada ao tema da política. Cf. ARENDT, 1981.
220

destaca que a contingência que o sujeito cria de si mesmo está em conexão com as
demandas sociais, as quais são forjadas, nesse imbróglio, isto é: a expectativa social
tem como vetor as demandas econômicas. A subjetividade, potencializada pelos
discursos institucionais da educação, normaliza o ethos tecnicista que faz do sujeito
estranho a si mesmo, bem como forçado a se adaptar às contingências imperialista.
Considerando o impacto econômico e social na constituição da subjetividade do
sujeito, salta a caricatura distorcida do si-mesmo, ou seja: falsa consciência de si.
Nessas categorias, a subjetividade é a mimeses dos imperativos pecuniários. O jogo de
verdade que constitui a subjetividade do sujeito é transpassado pela narrativa de que
sua funcionalidade e utilidade social é atributo anterior ou apriori da própria
existência. A educação é, apenas, instrumentalizada neste condicionamento
existencial. Toda a complexidade inerente a constituição do sujeito é solapada por
uma fabricação instrumental. Despreza-se o ato de voltar a si mesmo em detrimento
de adequação social. Nega-se toda a experiência de si que a educação pode
potencializar, ou seja:
Não é que na natureza humana estejam implicadas certas formas de
experiência de si que se expressam historicamente mediante ideias
distintas (cada vez mais verdadeiras ou, em todo caso, pensáveis
desde os êxitos e dificuldades da verdade) e se manifestam
historicamente em distintas condutas (cada vez mais livres ou
possíveis desde o difícil caminho até a liberdade), mas que a própria
experiência de si não é senão o resultado de um complexo processo
histórico de fabricação no qual se entrecruzam os discursos que
definem a verdade do sujeito, as práticas que regulam seu
comportamento e as formas de subjetividade nas quais se constitui
sua própria interioridade. (LARROSA, 1994, p. 42-43).
Para Larrosa, a experiência de si é uma construção que o sujeito faz em caminho
de si, em relação, simultânea, consigo e com o mundo, a qual não está fechada ou
limitada a quaisquer tipos de paradigmas, entretanto, é diante da complexidade típica
do imprevisto existencial, tragos pelas contingências da vida, que o sujeito desfruta
empiricamente de si. Essa experiência de si é ocultada pela educação deformativa,
pois esta privilegia a constituição de uma subjetividade heteronômica, fechada e
completa. Heteronômica porque impõem sobre o sujeito leis externas que
correspondem a enunciado do biopoder vigente; fechada porque não dá ao sujeito
condições de compreender e perceber o mundo para além de si mesmo, é a retomada
da ideia de Marcuse (1973) da unidimensionalidade; e completa pois a condição
existencial do sujeito já é posta, definida pelas entidades hipostasiadas.
221

A educação deformativa tem a capacidade de suprimir a experiência de si


que é um fenômeno essencialmente dialógico. Toda estética da existência que
evidencia a capacidade de trazer para o movimento de si o entrelaçamento do mundo
vivido em diálogo com a hermenêutica que o sujeito vivencia é substituída pelo ato de
absorver experiências outras, estéreis de si. Nessa prática de si, todo ato de mergulhar
nas camadas da existência, ou até mesmo a acomodação de si que articula os duplos
empiria e racionalidade (RABINOW; DREYFUS, 1995), são automaticamente
substituídas por uma norma infecunda, todavia, extremamente eficiente para a
adequação da subjetividade dos sujeitos as expectativas sociais.
À vista disso, a educação deformativa tem como característica a normalização
do condicionamento de subjetividades que correspondam a expectativas externas. As
narrativas de si e sobre si são substituídas pela voz da expectativa social, bem como a
experiência de si é trocada pela identidade outra que faz o sujeito assumir o não ser.
Não se preserva o entrecruzamento das narrativas do ser, todavia, há a imposição do
discurso arbitrária que estabelece a identidade paradigmática. A compulsoriedade
mercantil faz com que a subjetividade normalize o desprezo por si mesmo.
Quanto a este aspecto, no diálogo com o docente “H. F.”, algo peculiar
aconteceu. Ao questioná-lo sobre a afirmação de um ministro da educação que
“faculdade era coisa para a elite”, a resposta dele foi surpreendente: “E não é
mesmo?”. A resposta é interessante pois a democratização ao acesso as Universidades
não deveriam ter a marca da segregação. Na ótica do docente “H. F.”, o ministro
verbalizou o que toda a população acredita. O docente narra: “sobre elite, ele tem
noção disso, ele tem que ter noção disso que a universidade é pra elite e o que eu vou
fazer, o que qui eu vo fazer pra tentar mudar isso, ou pra tentar aumentar a
possibilidade de que os outros cheguem aqui?” A propagação deste enunciado
demonstra como a subjetividade está harmonizada com os sistemas que docilizaram os
sujeitos.
Outro ponto a ser considerado da educação deformativa se relaciona com a
manutenção de um sistema programado para o fracasso. A descrição do docente “H.
F.” sobre a educação básica é categórica: “os alunos da escola privada são preparados
para se transformar na elite, os alunos de escola pública, sobreviver da maneira que
der”. Este docente destaca a dificuldade em ser professor de Escola Pública, de modo
que o professor se propõe a fazer “o melhor possível dentro das possibilidades”, mas
tudo está organizado para não dar certo.
222

O sistema foi feito para que a segregação se perpetue. Pulsa o quão destoante
da realidade são os exames avaliativos. Este mesmo dilema é retomado no relato do
docente “J. A.” que enfatiza a desigualdade entre escola pública e privada. Ser
docente, nesses critérios, é desafiador, ainda mais que é explícito que as escolas
privadas estão em patamares superiores às públicas. Para ilustrar isso, o docente “J.
A.” fala: “é difícil competir né, a molecada tendo aula de robótica desde a sexta
série... desde a primeira série, né?”
Por esta via, a docente “R. M.” destaca como a docência se transformou, para
alguns, uma profissão depois que todas as portas se fecharam, ou seja, a docente “R.
M.” destaca “quando a pessoa não conseguiu ser nada e só consegue ser professor”
não só vive uma vida frustrada, mas é um agente de frustração. O docente “J. A.”
segue pelo mesmo viés, pois descreva sua percepção de que muitos professores do
Estado são frustrados, mas não abrem mão por ser a única profissão que conseguiram
o mínimo de estabilidade, nas palavras do professor “J. A.”: “tem um pessoal que fica
mó triste quando tem que dar aula”.
Outra contradição elencada pelo docente “J. A.” é que existem muitos
professores que preferem cumprir horário do que ministrarem aula. Por que isso
ocorre? Talvez, a intuição da docente “R. M.” referente à baixa remuneração seja uma
das consequências; ou a “realidade de 720 alunos em um ano letivo”; talvez o clima
de frustração como descrito pelos docentes entrevistados. A provocação da docente
“R. M.” é se é possível criar vínculo com 720 alunos por ano, em que o docente atua,
em média, 100 minutos por semana em cada sala de aula? Ou, ainda, qual o impacto
do desgaste na vida do docente, o qual precisa trabalhar, em muitos casos, os três
turnos por dia, experiência essa que a própria docente “R. M.” viveu. Quando “R.M”
foi questionada se havia trabalhado os três períodos em algum momento de sua vida,
ela responde: “Sempre! Eu nem me lembro de não trabalhar os três períodos... ano
passado só que eu não trabalhei os três períodos”.
Ao estabelecer paralelo entre o diálogo platônico do “Alcibíades Primeiro” com
a conversa com a docente “R. M.”, nota-se que a docente tem o desejo de aprofundar
os seus vínculos com os alunos, entretanto, a estrutura e as contingências da vida
fazem com que a docente execute, da maneira que dá, sua função. As ideias de
reciprocidade e sinceridade vistas no diálogo platônico são substituídas pelos termos:
instrumentalidade e superficialidade, ou seja: é necessário que o currículo esteja em
ordem e que o envolvimento com os alunos se restrinja aos minutos de aula.
223

O que é categórico é que a subjetividade constituída se caracteriza pela


transformação da vocação docente em ação tecnicista e profissionalizante. A tensão
não está em transformar a docência em profissão, todavia é esvaziar o aspecto
transcendental na atividade docente em favor da manutenção de um sistema
programado para a o fracasso. Diante dos diálogos, não está em jogo o desprezo pela
formação técnica, todavia, o desafio é não se tornar refém do pragmatismo. A técnica
só faz sentido quando equalizada com a própria existência, ou seja:

[...] o que se pretende formar e transformar não é apenas o que o


professor faz ou que sabe, mas, fundamentalmente, sua própria
maneira de ser em relação a seu trabalho. Por isso, a questão prática
está duplicada por uma questão quase existencial e a transformação
da prática está duplicada pela transformação pessoal do professor.
(LARROSA, 1994, p. 49-50).
Toda dicotomia é um esforço de fragmentar a existência. As narrativas dos
professores sobre a autopreparação para exercer da docência, ficou claro que os
docentes compreendem o papel da formação, inclusive a coordenadora “V. M.”
destaca em sua narrativa como o preparo docente é constante, como segue:
Por que se eu não me preparar quem é que vai fazer isso por mim?
Ninguém! Independente da profissão que você escolher você precisa
se preparar. Não tem essa, né, ninguém vai fazer isso. Só que em
outras profissões você se prepara e muitas vezes ali é o suficiente e
na educação nunca é suficiente, sempre precisa buscar mais.
Ter o diploma para exercer a função docente não é suficiente, pois o devir típico
da educação conduz os sujeitos envolvidos na educação, independente do cargo que
ocupa, para uma constante transformação de si, ou seja, “trata-se, portanto, de todo
um conjunto de operações orientadas à constituição e à transformação de sua própria
subjetividade” (LARROSA 1994, p. 51). Como disse o docente “J. A.” “porque a
faculdade, às vezes, era aquilo, você pega o livro e vai ler lá sobre aquele experimento
saber o que ele faz e calcular o que ele faz”, superar esse abismo entre teoria e prática
auxilia para a ação docente que transvalora a educação deformativa.
Este aspecto se aproxima de outro ponto da educação deformativa que é o
esvaziamento da espiritualidade, retomando a ideia de que espiritualidade é “o
conjunto de buscas, práticas e experiências [...] que constituem, não para o
conhecimento, mas para o sujeito, para o ser mesmo do sujeito, o preço a pagar para
ter acesso à verdade” (FOUCAULT, 2018, p. 15), deste modo, a educação
deformativa não está preocupada com a potência da experiência do si mesmo como
um viés da espiritualidade, mas, em vez disso, condicionar a existência a um sistema
224

binário, maniqueísta e instrumental. A espiritualidade é substituída pelo


pragmatismo; a estética da existência é posta de lado em relação ao tecnicismo.
Outro ponto a ser considerado na educação deformativa é o tema da política.
Este tema esteve presente no relato dos docentes “R. M.”, “H. F.” e “J. A.”. Falar de
educação é tocar, de algum modo, o tema da política, pois a educação está conectada
com a dimensão política, haja vista que está tem a condição de interferir na forma
como a educação será desenvolvida. É importante destacar que para o docente “J. A.”
os impactos das decisões políticas alteraram projetos educacionais relevantes, mas não
rentáveis para o projeto político. O docente “J. A.” narra que trabalhou em um projeto
com alunos de quarto e quinto ano na prefeitura da cidade de Santo André muito
relevante, em que os alunos ganhavam livros, kits de ciências, os quais ajudavam a
montar o passo a passo da atividade de ciência em questão. Porém, devido a intentos
políticos, essa atividade foi encerrada. É nesse contexto que o docente “J. A.” afirma:
“a politicagem acaba com tudo, né?”. Devido à mudança de partido no controle da
prefeitura, os investimentos foram diminuindo até chegar ao fim do projeto.
Há, o relato do docente “H. F.”, um conteúdo bastante peculiar. Ainda que não
use a palavra política, o docente se apropria do termo sistema para demonstrar a
organização para a falência que a máquina estatal está fadada, a capacidade de
aprisionamento ou colonização das subjetividades, como destaca Larrosa “as práticas
institucionalizadas que capturam, nesse mesmo período histórico, isto é, aquelas
representadas pela escola de massas” (1994, p. 52). Mais do que interromper projetos
se percebe, na fala do docente “H. F”, a existência de um dispositivo na educação que
fundamenta a divisão da sociedade. Contemplando a fala do docente “H. F.”:
Eu acho que isso aí resume bem o que nós fazemos na escola. Por
quê? Porque o sistema, o sistema é, na minha opinião, ele não quer
que você venha aqui e faça um trabalho bem feito, por isso que tem
um monte de impeditivo. Por isso que tem um monte de gente
coordenado, e... dirigindo e... por quê? Querido, educação não é pra
ser feito de acordo, dentro do que deveria ser. A gente vem aqui e
faz o melhor que você pode, por quê? Porque eles te atrapalham em
um monte de coisa. Não atrapalham? O sistema não te atrapalha em
um monte de coisa? Né? Em uma escola que nem a nossa aqui,
posicionada aonde ela é, com essa categoria de professores que
temos aqui e você sabe bem melhor que eu quantos professores que
temos aqui com uma qualidade, capacidade de ensinar muito mais do
que a gente pode fazer aqui. E ensina. Porque a gente faz isso aqui e
a gente faz outra coisa aqui que é, é... de extrema importância dentro
da educação a gente consegue ter amor pelos alunos, amizade pelos
alunos e é por isso que a gente consegue um resultado melhor dentro
da diretoria de ensino de Santo André, uma das escolas boa aqui, e é
225

por isso que eu tô aqui, porque eu gosto de fazer parte do que é


15
bom , né. E a gente consegue ter um resultado melhor.
A lucidez na fala do professor causa espanto para quem não está acostumado
com o cotidiano escolar. A educação deformativa sustenta um sistema que, para se
manter vivo, precisa da manutenção da despolitização programática, ou seja, a política
é vista como apêndice ou deslocado do tema das discussões, seguido Arendt (1961),
refletir sobre educação é mergulhar em um tema essencialmente político.
Retoma-se, pois, a discussão do início dessa seção, em que a educação
deformativa responde as expectativas do mercado, respaldada pela política que almeja
proteger as empresas privadas. Em suma: a educação prepara o indivíduo para o
mercado de trabalho; o Estado responde as demandas das megaempresas; e a
população despreza a sua própria subjetividade. As palavras de Adorno repercutem
nesse jogo dialético, pois “os que permanecem impotentes não conseguem suportar
uma situação melhor sequer como mera ilusão; preferem livrar-se do compromisso
com uma autonomia em cujos termos suspeitam não poder viver, atirando-se no
cadinho do eu coletivo. (ADORNO, p. 44). A despolitização é um dispositivo de
colonização de subjetividade.
Ponderar estes atributos, não exaustivos, da educação defomativa é se colocar
em postura hermenêutica crítica da constituição da subjetividade. O que se tentou
apresentar neste tópico foi, além do impacto da educação deformativa: (i) observar
com seriedade a educação com caráter exclusivamente tecnicista ou refém do
despotismo mercantilista que transformou a educação em produto mercadológico e
como a subjetividade naturaliza essa situação; (ii) demonstrar o esvaziamento da
densidade da experiência de si, em troca de uma roupagem de uma consciência
coletiva e instrumentalizada; (iii) proporcionar visão crítica a ideologia que se esmera
em produzir a manutenção de um sistema decante que reifica os sujeitos e tem fetiche
pelos objetos; (iv) apontar para a perpetuação axiológica que alimenta as contradições
da prática docente, bem como esquece a dimensão de aperfeiçoamento contínuo que a
ação docente exige; (v) categorizar como a espiritualidade exauriu-se e a manutenção
da despolitização são traços intrínsecos da educação deformativa.
A fim de tangenciar a constituição da subjetividade do sujeito, apontaremos para
a dimensão ontológica da filosofia da educação, a partir da abordagem filosófica de

15
Foi mantido, exatamente, o que o docente disse em sua conversa. Mantivemos na íntegra para
conservar a perspectiva do docente ao que se refere a política.
226

Michel Foucault em dialética com as narrativas dos discentes e docentes,


caminhos de resistência para o fenômeno educação.

V.3 Caminhos de resistência: O devir ontológico da


Filosofia da Educação
Tencionar sobre o tema da constituição da subjetividade é aventurar-se na
experiência que o sujeito faz de si mesmo, é retomar o princípio ontológico presente
em Heidegger (2006) sobre o devir, a proposta circula entre paralelismo da busca da
essencialidade do ser que está em constante relação – consigo e com o mundo – com a
possibilidade de transformação e ressignificação típicas dessas relações.

Nesta proposição do devir ontológico, é salientado a profundidade presente no


ato de experienciar em que o sujeito está envolto. Para melhor compreender a
constituição da subjetividade é preciso colocar sobre os olhos da vida a experiência de
si e do mundo, ou melhor “experimentar o mundo não é estar com ele numa relação
errada ou certa, é percebê-lo com seu estilo próprio no interior de uma experiência
cultural (LE BRETON, 2016, p. 15-16). É, ao mesmo tempo, o ato de mergulhar nas
contingências, mas, simultaneamente, fincar a compreensão sobre a constituição de si.
Na trilha de Larrosa, “para dizer de uma maneira próxima ao vocabulário
foucaultiano, trata-se de produzir e medir certas “formas de subjetivação” nas quais se
estabeleceria e se modificaria a “experiência” que a pessoa tem de si mesma. (1994, p.
51).

No diálogo com o discente “F. G.” se percebe que diante do seu sonho de fazer
música, ele não conseguia ver qualquer utilidade da escola para a realização desse
projeto pessoal. Quando inquerido de que existem chances do seu sonho não ser
alcançado, ou seja, ele pode investir em uma profissão que, no futuro, não proverá
recursos financeiros suficientes para mantê-lo, logo, ele seria compelido a se
reinventar, ou seja, teria que encontrar outra profissão que trouxesse subsídios
financeiros suficientes. Diante desta conjectura, a pergunta feita ao discente foi se ele
já havia pensado em uma alternativa, caso não dê certo seu sonho, sua resposta foi:
“Bem pouco... aí eu já não saberia o que fazer. Faria alguma coisa mais rápida pra
trabalhar em algum banco, assim, e deixaria a música de lado, como um plano “B”.
Seria mais ou menos assim”.
227

A própria pergunta limitou a experiência de si mesmo do discente, pois, a


pergunta parte da premissa de que a vida, para dar certo, precisa da reverberação ou
do deferimento econômica, ou seja: altas retribuições financeiras. O discente “F. G.”
não pensou em alternativas para sua vida, porque ele tem um projeto existencial –
trabalhar com música –, o qual deve ser potencializado pelo devir ontológico da
educação. O dilema está na premissa de que até que ponto a realização do projeto
existencial de um aluno tipo “F. G.” se adequa as expectativas da Máquina Global.
Assumir a transformação ontológica típica da educação é, sobretudo, permitir a
expansão de horizontes mundo, é propor um novo tópos existencial.

O devir típico da educação é um convite a noção de que o ser humano é


marcado por transformações significativas. Mutações que não são exclusivamente
fisiológicas, mas alterações que impactam o ato de experienciar. Quando a educação
rompe com paradigmas tão somente técnicos, surgem o que Le Breton denomina
como experiência antropológica, isto é: “a experiência antropológica é uma maneira
de desapegar-se das familiaridades perceptivas para recapturar outras modalidades de
abordagem e sentir a multidão dos mundos que se escoram no mundo” (2016, p. 19).

Essa experiência foi o que aproximou o professor “J. A.” da disciplina de


física, pois a partir do momento que seu professor no ensino médio assumiu uma
postura que contrariava a abordagem tradicional ao que se refere à aprendizagem e
ensino, a perspectiva do docente “J. A.”, ainda na condição de aluno, foi modificada.
O professor que alterou sua vida era alguém que se preocupava em fazer experiências
junto com os alunos e, essa atitude, fez com que o docente “J. A.” escolhesse a
licenciatura em física para atuar profissionalmente. Ao ser perguntado se a ação do
seu antigo professor mudou sua vida, o docente respondeu:

Foi. Isso, tipo, determinou minha vida. Eu entrei na faculdade de


física e eu achei da hora mesmo. O primeiro ano eu falei isso é muito
louco, isso é o que eu quero. E no segundo ano eu entrei no estágio
na Sabina. E a Sabina foi a melhor coisa, melhor que a faculdade
para mim.
A ação do professor sobre a vida do docente “J. A.” foi de abertura dos
horizontes mundos. Experimentar o mundo, em relação com o Outro, a fim de que o si
mesmo pudesse ser descoberto e constituído. O devir faz com que o sujeito estabeleça
encontro consigo e com o mundo de forma emancipada, isto é, “a autonomia do
sujeito e de sua consciência cede lugar a um mundo social constituído em
228

anterioridade e precedentemente àquele sujeito, na linguagem e pela linguagem”


(SILVA, 1994, p. 248). Nesta citação, o papel que a linguagem ocupa é de ser
mediadora das experiências sensíveis, para Le Breton:

Na vida corrente não se adicionam percepções numa espécie de


síntese permanente, mas vive-se uma experiência sensível do mundo.
A todo instante a existência reclama a unidade dos sentidos. [...] Os
sentidos trabalham conjuntamente a fim de tornar o mundo coerente
e habitável (LE BRETON, 2016, p. 58).
Compreender a constituição da subjetividade do sujeito é elencar a construção
e significação desses sentidos. Experienciar sobre si mesmo e sobre o mundo é
infringir com os dogmas cristalizados; é aventurar-se sobre o inédito. É postura de
resistência abrir-se para o mundo, haja vista as características de um cenário que
tendência para a hiper individualização e o isolamento de si mesmo. Le Breton
destaca que “em seu ambiente ordinário, o indivíduo raramente está em situação de
ruptura ou de incerteza, ele desliza sem congestionamento nos meandros sensíveis de
seu entorno familiar (2016, p. 28). As grandes certezas da vida são, segundo Kant
(1996), resquícios da tirania dos grandes tutores da menoridade, ou, na perspectiva
kantiana, os responsáveis pelo constante estágio de ignorância.

Aplicar a abordagem foucaultiana no campo da filosofia da educação é


potencializar a compreensão da constituição da subjetividade, ou seja, é mirar sobre o
sujeito a singularidade do ser que, diante de um sistema autômato, é esquecida e
menosprezada. A proposta de Foucault não é descrever uma teoria sobre poder ou da
verdade ou, até mesmo, da ética, é, em vez disso, uma forma de percorrer sobre as
teias que compõem a subjetividade do sujeito, bem como sua hermenêutica sobre si.
Por exemplo, quando a docente “R. M.” foi questionada se a escolha da
profissão dela foi por acidente, pois ao fazer biologia ela visualizava uma profissão
mais importante, a resposta da docente foi categórica: “Não... dar aula é mais
importante. Você está construindo um país, você dando aula, você constrói a
população”. A experiência da docência, ainda que não tenha o retorno e
reconhecimento que mereça, solapa qualquer nuvem que tenta mitigar o si mesmo. A
mesma pergunta feita a docente “M. F.” a resposta ganhou outros entornos, como
segue:
Eu planejei chegar, é, eu sempre quis sempre o melhor pra mim. A
princípio, na minha adolescência, eu não pensava em trabalhar na
educação, eu sabia que queria algo bom para mim, eu não queria
ficar... queria fazer uma faculdade, é, eu queria trabalhar em algo
229

que eu gostasse muito. Quando eu terminei o ensino médio,


antes de fazer minha faculdade eu fui realizar meu primeiro sonho
que era me casar e meu segundo sonho que foi ter filho. É... e depois
quando meu filho estava com nove meses eu comecei a fazer a
faculdade. É, então eu planejei sim, estar aonde eu estou, então, a
partir do momento que eu escolhi fazer Estudos Sociais, eu comecei
a querer sempre mais e aí eu fui. Terminei Estudos Sociais, fui fazer
História e, ingressei no Estado. Já fui coordenadora pedagógica
durante 7 anos e, aí, eu fiz a pedagogia porque eu já e, sonhava em
ser diretora de Escola, né, eu planejei chegar aonde estou e eu
planejo chegar além ainda, os meus sonhos e minhas realizações não
terminaram por aqui.
Ainda que a docente “R. M.” e “M. F.” partilhem do mesmo espaço, a
constituição histórica de ambas é bastante peculiar. Daí a importante de ponderar o
duplo singular e plural, ou seja, o esforço de compreender a trajetória histórica de
cada docente faz com que a empreitada arqueológica demonstre, mais do que o
consenso típico da interpretação de conteúdo dos discursos, seguindo Rabinow e
Dreyfus (1995), é compreender como as enunciações, ainda que dispares, estão
articuladas ao mesmo enunciado: o desafio em ser professora não é menor do que a
dificuldade em permanecer professora.
Em sua releitura da obra foucaultiana, Larrosa enfatiza que o destaque da
filosofia de Foucault não são as ideias ou os comportamentos, em vez disso, a
experiência de si que o sujeito vivencia. Como frisa o autor “a experiência de si,
também é algo historicamente e culturalmente contingente, na medida em que sua
produção adota formas singulares” (1994, p. 42), isto é, não dá para compreender a si
mesmo sem este passo compreensivo do mundo em que está inserido. Le Breton
salienta que, ao refletir sobre o ser humano, “sua pertença cultural e social marca sua
relação sensível com o mundo” (2016, p. 39). Sujeito e mundo vivido formam um
grande mosaico existencial, como Larrosa aponta:
A experiência de si, em suma, pode ser analisada em sua
constituição histórica, em sua singularidade e em sua contingência, a
partir de uma arqueologia das problematizações e de uma pedagogia
das práticas de si. E o que aparece agora como “peculiar”, como
histórico e contingente, não são já apenas as ideias e os
comportamentos, mas o ser mesmo do sujeito, a ontologia mesma do
eu da pessoa humana na qual nos reconhecemos no que somos.
(1994, p. 43)
Nos relatos dos docentes que ainda estão em sala de aula (pois as narrativas da
coordenação e direção foram mais resolutivas), acentua-se a ideia de que a
constituição da subjetividade dos docentes, respeitando as respectivas singularidades
das enunciações, está ligada com sua jornada histórica e existencial. Diante dos
230

problemas, das situações adversas, das conjunturas, os docentes foram se lançando


a novas oportunidades, construindo a si a partir das contingências; reinventando rotas.
Nessa direção segue o relato do docente “J. A.”, ao analisar a situação dos professores
16
de categoria “O” e a condição de ser eventual na Rede Pública de São Paulo, ele
afirma:
Ser “O” é embaçado, ser “O”, assim, é menos pior do que ser
eventual. Eventual você entra em qualquer aula, mas ser “O”... você
não tem direito a nada. Tem o direito de ficar calado lá fora que
quando acaba, você descobre que você caiu em uma quarentena. Aí
os caras acabam o seu contrato dia 20 de dezembro, daí você não
tem férias, não tem nada... você volta em fevereiro, mas, tipo, você
perdeu todos os seus direitos. É zuado.
Para se aproximar da compreensão da constituição da subjetividade dos
docentes, conhecer suas histórias de vida são imprescindíveis. Por exemplo, o relato
do docente “J. A.” sobre a categoria “O” e os professores eventuais passa pelo viés do
que Lévinas (2005) conceitua como alteridade, ou seja, a condição de se colocar face-
a-face o Outro; postura de conscientização de si porque há o Outro. O ato de
conscientização de si em relação com o Outro é o fenômeno pelo qual o sujeito é
compelido ao caminho da humanização. O devir ontológico da educação faz com que
o sujeito compreenda a si mesmo nessa relação ininterrupta com o mundo que o cerca.
Ao se sensibilizar com a condição de outros professores, o docente “J. A.” corrobora
para a ideia de que a educação não é apenas um ato de transmissão de informações, é,
sobretudo, o exercício de humanização. Aflora, assim, o paradoxo da humanização do
sujeito, pois:

O problema de sua humanização, apesar de sempre haver sido, de


um ponto de vista axiológico, o seu problema central, assume, hoje,
caráter de preocupação iniludível. Constatar esta preocupação
ontológica, indiscutivelmente, em reconhecer a desumanização, não
apenas como viabilidade ontológica, mas como realidade histórica. É
nesse contexto que o sujeito passa a pensar sobre sua humanização
(FREIRE, 2011, p. 16).

16
A chamada categoria O, criada há nove anos por um decreto assinado pelo então governador
José Serra (PSDB), reúne hoje quase 30 mil docentes, segundo dados do Sindicato dos Professores do
Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp), em um esquema de contratação com "data para
acabar". Na prática, os professores da categoria O realizam as mesmas funções dos concursados, mas
não gozam dos mesmos direitos e nem possuem um vínculo empregatício duradouro. Após a prestação
de serviço continuada, os docentes da categoria são afastados por 180 dias, a chamada "duzentena". Ou
seja, são desvinculados. Segundo a Apeoesp, hoje são 194.300 os professores na educação básica do
estado. Do total, 65.500 são efetivos, 29.900, categoria O e o restante se divide em outras tantas, como
a F. Essa [a O] foi a única categoria de professores que de 2017 para 2018 cresceu. Teve um aumento
de 19,7%, enquanto as outras diminuíram. Ou seja, o estado de São Paulo está aumentando o contrato
precário e reduzindo o que possui melhores condições de trabalho. Informações retiradas do site da
APEOESP. Disponívem em: <http://www.apeoesp.org.br/noticias/noticias-2018/categoria-o-numero-
de-professores-precarizados-cresce-em-sao-paulo/> acesso em 10 de maio de 2019.
231

A relação do relato do docente “J. A.” e da citação de Freire é que se de um


lado a possibilidade da desumanização é sedutora, o devir ontológico da educação faz
com que transformações na maneira de ver, interpretar e agir sobre o mundo sejam
mudadas significativamente. Mesmo que o docente “J. A.” esteja em outra categoria
na rede pública, a solidariedade aos professores que vivem na condição de categoria
“O” ou eventuais é o que demonstra possibilidades de a educação ser vista como
fenômeno de humanização. Ainda que a característica tecnicista esteja no encalço da
educação instrumentalizada ou deformativa, a experiência do docente “J. A.” se
aproxima do horizonte proposto por Arendt que:
A educação é assim o ponto em que se decide se se ama
suficientemente o mundo para assumir responsabilidade por ele e,
mais ainda, para o salvar da ruína que seria inevitável sem a
renovação, sem a chegada dos novos e dos jovens. A educação é
também o lugar em que se decide se se amam suficientemente nossas
crianças para não as expulsar do nosso mundo deixando-as entregues
a si próprias, para não lhes retirar a possibilidade de realizar
qualquer coisa de novo, qualquer coisa que não tínhamos previsto,
para, ao invés, antecipadamente as preparar para a tarefa de
renovação de um mundo comum. (1961, p. 14)
O devir ontológico da educação não reduz a experiência, polarizando-a ou
segregando os sujeitos, haja vista que “a sectarização é sempre castradora, pelo
fanatismo de que se nutre” (FREIRE, 2011, p. 13), dito de outra forma: o devir
ontológico da educação põe em movimento a existência do sujeito. Ao compreender a
essência de si, o sujeito passa a olhar e valorar o mundo ao seu redor de outra forma.
O docente “J. A.” descreve que a tentação financeira é incentivada, sobretudo, por
uma ideologia que despreza o que há de mais humano e transforma a vida em cifrão,
como segue a narrativa do professor ao que se refere a pressão financeira:

Então acho que piorou essa situação. Porque você vê muitas pessoas
hoje com depressão, porque a conquista nunca é suficiente. Compra
um carro, sempre terá um melhor, celular sempre um mais novo, o
capitalismo engole a gente, o consumismo. Porque é legal, né, você
ter todo ano um carro do ano. Mas, por que é legal? Ele vai te levar
para outros lugares? Pra lua? Eu estava à algum tempo atrás, quando
a gente casou, a gente começou a melhorar, porque minha esposa é
bem desprendida do material, e as vezes eu ficava pilhado porque eu
queria trocar de carro, pilha besta. Vejo a molecada, né, muita gente
depreciava. Eu não sei veio, deve ter algum estudo que relacione isso
com bens materiais.
Resgatando a premissa de que “a intenção de Foucault não é fazer uma história
sobre uma prática de si, mas estudar as práticas (discursivas ou não) para, olhando-as
de fora, descobrir os regimes que as constituem e são por elas constituídos” (VEIGA-
232

NETO, 2007, p. 98), o devir ontológico inerente à educação auxilia nessa leitura
do sujeito, o qual auxilia no ato de revisitar as estruturas do si mesmo, iniciar
hermenêutica da constituição última de si. É por esta retomada consciente da
organização da subjetividade que o sujeito deslumbra a paisagem da liberdade, bem
como desenvolve vontade por alcançar estado de liberdade, como destaca Freire: “a
liberdade, que é uma conquista, e não uma doação, exige uma permanente busca. [...]
Ninguém tem liberdade para ser livre: pelo contrário, luta por ela precisamente porque
não a tem” (2011, p. 18). É por este viés que a vontade de potência é descoberta e
aperfeiçoada.

As narrativas dos docentes e discentes estão repletas de sentidos, ou seja “a


palavra indica uma direção antes de uma função definitiva (MERLEAU-PONTY,
1999, p. 34), logo, as palavras ditas pelos discentes e docentes revelam não só a
percepção que eles possuem do mundo, sobretudo a própria percepção de si mesmo
nessa relação com o mundo. Retomando a ideia de que em Merleau-Ponty, professor
de Foucault, a ideia de sentido “é este logos ambíguo, mas fundamental, já presente
em nossa relação original com o mundo. Há sentidos, não um sentido. O sentido é
ambíguo, misturado com o não-sentido uma vez que a não redução se faz jamais
completa” (THÉVENAZ, 2017, 173). Os sentidos que são copilados e modelados no
sujeito estão diretamente ligados com o meio em que o sujeito está inserido, como
destaca Le Breton:
Este tipo de modelação cultura mistura as intenções do indivíduo e
suas ambivalências com as intenções dos companheiros que buscam
influenciá-lo. O homem não saberia efetivamente definir-se
unicamente através de sua vontade, o jogo do inconsciente rouba-lhe
uma parte de sua soberania e confunde a vida da influência imediata
dos outros. Muitas experiências sensíveis estão ao alcance de um
noviço desejoso de iniciar-se neste jogo. (LE BRETON, 2016. p.
33).
A citação demonstra como sujeito e o meio social estão intimamente
entrelaçados. A vontade do sujeito reflete o mundo em que está inserido: olhar para o
exterior, para o mundo que o circula, é, também, olhar para a interioridade do sujeito.
O objetivo e subjetivo se misturam na mimese existencial. Para Le Breton, o sujeito
aprende a sujeitar-se, suas sensações, por mais peculiares que sejam, estão em relação
correspondência com o mundo vivido. Para tipificar este fenômeno, Le Breton
descreve a capacidade formativa presente no aprendiz:
É possível ensinar-lhe a identificar vinhos a degustá-los, a descrever
uma miríade de sensações a este respeito, ou ensiná-lo a
233

impressionar-se por nunca ter-se detido em tais sensações. Pouco


a pouco a educação faz irromper o múltiplo do que outrora parecia
unívoco e simples. Um aprendiz descobre o universo infinitamente
variado do perfume, assim como um jovem cozinheiro pouco a
pouco se apercebe que o paladar dos alimentos depende de uma série
de detalhes na composição do prato ou em seu cozimento (2016. p.
34).
Ao menos dois pontos são elencados nessa citação. Se por um lado, a educação
é a maneira pela qual o sujeito se apropria do mundo e de si mesmo, por outro lado,
como destacado em outros momentos, a educação pode ser exatamente o dispositivo
para suplantar o sujeito de si e acomodá-lo em uma norma arbitrária, lembrando que
uma das características da norma para Foucault é que ela “refere os atos e as condutas
dos indivíduos a um domínio que é, ao mesmo tempo, um campo de comparação, de
diferenciação e de regra a seguir (a média das condutas e dos comportamento)
(CASTRO, 2016, p. 310 ), portanto há um modelo externo, anterior e arbitrário que
coage o sujeito a constituir-se a partir desta utopia posta. Todavia, é impossível criar
um sujeito novo em um molde em que a existência é posta às avessas, em que as
contradições são normalizações e a violência legalizada, ou seja, o “homem novo só é
viável na e pela superação da contradição opressores-oprimidos, que é a libertação de
todos” (FREIRE, 2011, p. 19). O devir ontológico intrínseco a educação é um
despertar do sujeito para sua condição e a compreensão dos sentidos que estão em seu
entorno.

Memorando o texto platônico, a preocupação de Sócrates com Alcibíades era


que a opinião de Alcibíades refletia o senso comum. Como posto anteriormente, os
tutores de Alcibíades ao que se refere à justiça foi a multidão, vale a pena retomar a
resposta socrática: “Você não recorre a professores muito estimáveis ao apelar para a
multidão” (DIAS, p. 87). O devir ontológico, por seu atributo de embrenhar-se na
essência do sujeito, faz com que as vozes das grandes multidões sejam confrontadas
pela postura crítica e reflexiva.

Não é negar a figura do outro, mas ressignificá-lo. Basta lembrar que para
Foucault “o outro ou outrem e indispensável na prática de si a fim de que a forma que
define esta prática atinja efetivamente seu objeto, isto é, o eu, e seja por ele
efetivamente preenchida. Para que a prática de si alcance o eu por ela visado, o outro é
indispensável” (2018, p. 157). A proposta é fazer com que o sujeito mergulhe e se
aprofunde em suas camadas constitutivas, dito de outra maneira:
234

Se a experiência de si é histórica e culturalmente contingente, é


também algo que deve ser transmitido e ser aprendido. Toda cultura
deve transmitir um certo repertório de modos de experiência de si, e
todo novo membro de uma cultura deve aprender a ser pessoa em
alguma das modalidades incluídas neste repertório. Uma cultura
inclui os dispositivos para formação de seus membros como sujeitos
ou, no sentido que vimos dando até aqui à palavra “sujeito”, como
seres dotados de certas modalidades de experiência de si. Em
qualquer caso, é como se a educação, além de construir e transmitir
uma experiência “objetiva” do mundo exterior, construísse e
transmitisse também a experiência que as pessoas têm de si mesmas
e dos outros como “sujeitos”. Ou, em outras palavras, tanto o que é
ser pessoa em geral como o que para cada uma é ser ela mesma em
particular. (LARROSA, 1994, p. 45).
Seguindo o texto, ao pressupor transmissão é colocar o Outro na relação da
constituição de si. As regras presentes em uma cultura são fundamentais para a
constituição de si mesmo, mas não determinantes ao sujeito, haja vista que ao passo
que o sujeito se apropria de si mesmo, bem como dos entornos de sua subjetividade, é
possível criar alternativas variadas sobre o si. O destaque para essa citação é que a
educação não é só um fenômeno objetivo, ou seja, que está cativa ao formalismo
acadêmico, a educação, também, se articula com a constituição e elaboração da
dimensão subjetiva. Não se pode observar, na ótica foucaultiana, o duplo objetivo e
subjetivo sobre o prisma maniqueísta, em vez disso, compreender na perspectiva de
Foucault, estes elementos se misturam. Este paradoxo é o que auxilia na compreensão
da hermenêutica do sujeito.
Vale o destaque a proposta foucaultiana não é a de desmantelar o sujeito, porém
é a tentativa de fazer com que o sujeito consiga compreender os estratos que o
sustentam, ou seja, Foucault “não objetiva desconstruir o sujeito mas transformar
completamente o seu profundo em um eu histórico, para abrir a possibilidade da
emergência de um novo sujeito ético” (RABINOW; DREYFUS, 1995, p. 280). O
devir ontológico segue por este viés: Compreender os arranjos que programaram o
mosaico existencial, a fim de que uma perspectiva ética seja perscrutada e apropriada
pelo ser. Seguindo a contribuição de McGushin:
Para Foucault a subjetividade não é alguma coisa que nós somos; e
uma atividade que nós fazemos. A subjetividade é relacional,
dinâmica e inquieta, potencialmente indisciplinada e imprevisível.
Mas, se a subjetividade é um devir ativo em vez de um ente fixo,
então a busca de descobrir ou encontrar a si mesmo – na forma de
uma essência ou substância – é fútil. Além disso, ao focar nossa
atenção nesse eu e nossa energia em tentar “expressá-lo”,
negligenciamos o nosso devir subjetivo, o qual é assumido pelos
processos de treinamento disciplinar e normalização. (2011, p. 168).
235

Em suma, é possível elencar alguns tópicos que sintetizam a proposta do


devir ontológico presente na educação: (i) o devir ontológico como uma nova
possibilidade de experiências de si mesmo ou de experiências antropológicas; (ii) o
papel da linguagem no devir ontológico é fundamental, pois é por meio da linguagem
que se compreende o mundo e se faz compreendido; (iii) pensar sobre a complexidade
da constituição da subjetividade é uma forma de opor-se em postura resistente aos
dilemas da vida; (iv) é por meio do devir ontológico que o sujeito sai da sua zona de
conforto, da sua organização cósmica e parte para o encontro com o outro, e para uma
posição de confronto; (v) ainda que as enunciações das narrativas dos discente e
docentes sejam diferentes, ambas estão harmonizadas à um mesmo enunciado; (vi) a
dimensão da constituição de si é um fenômeno historicamente formado; (vii) o jogo
ontológica de descoberta faz com o que o si mesmo seja descoberto e o Outro, em sua
especificidade, adentre no jogo do si mesmo; (viii) o devir ontológico carrega como
marca identitária a noção da alteridade, uma premissa que faz da educação um ato
solidário; (ix) a dimensão axiológica do devir ontológico promove transvaloração de
valores, pois se a lógica do mercado destaca que alguns corpos são descartáveis, na
compreensão do devir ontológico, a humanidade está para além de qualquer
paradigma limítrofe, haja vista o aspecto sedutor da desumanização; (x) o devir
ontológico se opõe a qualquer tipo de sectarismo ou segregação, haja vista que a
educação é um movimento de inclusão e humanização do ser; (xi) o devir ontológico
faz do sujeito interprete, narrador, autor e personagem da ficção sobre si mesmo, o
qual possibilita novas chaves hermenêuticas sobre si; (xii) o devir ontológico é
mecanismo pontencializador de sentidos, bem como aquele movimento que se coloca
em confronto com a tendência monossêmica de interpretar a estética da existência;
(xiii) o devir ontológico não despreza o meio, mas não se torna refém dele e nem de
seus atores.
Após tratar do tema do devir ontológico como característica da educação a partir
da abordagem foucaultiana, será apresentado em seguida algumas pistas para filosofia
da Educação que saia dos arquétipos teóricos e adentre a realidade. Inclusive, a
filosofia foucaultiana é um esforço de diagnosticar a realidade, de modo que não cabe
apontar respostas, sobretudo apontar caminhos que suscitem novas perguntas.
236

V.4 Pistas para uma Filosofia da Educação em práxis


Com o intuito de traçar pistas para a Filosofia da Educação a partir de Michel
Foucault, este tópico retomará alguns conceitos que servirão como chave de leitura e
hermenêutica. A proposta não é criar utopias, haja vista a crítica que Foucault aponta
para este termo (CASTRO, 2016), tendo em vista que as utopias são vistas como
lugares habitáveis, estáveis, postos e construídos, não pelo sujeito, mas, em vez disso,
pelas normatizações exteriores (FOUCAULT, 2009). A proposta é que o sujeito, ao
compreender as teias que o constituem, bem como os jogos de verdade e as relações
de dominação que o colonizaram, consegue criar este lugar para si a partir de novas
relações de poder.

Retomando o tema da utopia, para Foucault “a utopia, em uma perspectiva


analítica, designa um espaço irreal, o qual não poderia ser concretizado no espaço
sociológico” (KRUMGER, 2016, p. 24). A utopia é construção de sonho, “um sonho
que assegurava o desdobramento ideal de um quadro onde cada coisa, com suas
identidades e diferenças, tivesse seu lugar próprio e ordenado” (CASTRO, 2016, p.
419-420), logo é o resultado do positivismo sobre a constituição subjetiva do sujeito:
o homem epistêmico. O ordenamento existencial típico das narrativas utópicas é a
ampliação dos ambientes de censura e reclusão.

Em vez de seguir por miradas utópicas, o desafio, em linhas foucaultianas, é


almejar a heterotopia, que, “por sua vez, revelaria a possibilidade de manifestar esse
mesmo espaço imaginado em um espectro social” (KRUMGER, 2016, p. 24), ou seja,
a heteropotia carrega a força de potência de não abraçar o idealismo, mas de lançar o
sujeito no oceano do real e vivenciar o devir (FOUCAULT, 2009). Opondo-se à
utopia, a heterotopia, em categorias foucaultianas, é a construção do sujeito de si em
relação consigo e com o mundo, é, assim, característica do devir ontológico da
educação.

Elencar o tema da heterotopia é ponderar a função da transgressão nesse


caminho de constituição de si mesmo, haja vista que a heterotopia é, justamente, o
rompimento com as construções instituídas e estabelecidas. Por este viés, Gutting
acentua que “Foucault enxerga a transgressão como essencialmente ligada à
intensidade. [...] tal intensidade é a consequência direta de uma transgressão, que por
sua própria natureza nos situa além das certezas entorpecentes e consoladoras da vida
237

convencional (2016, p. 45). Para Guttig, a relação entre transgressão e intensidade


se revelam como matriz para o processo de ressignificação da constituição da
subjetividade, haja vista que:

A transgressão e a intensidade permanecem como categorias éticas


fundamentais, mas agora são cada vez mais enraizadas em
experiências sociais e políticas vividas, em vez de sê-las na
sensitividade estética refinada. Foucault começa a mover-se do mito
heroico para a realidade mundana, embora ainda haja uma
considerável idealização e romantização dos marginalizados. (2016,
p. 47-48).
Só se rompe com subjetividades colonizadas e utópicas pelo viés da
transgressão. Não é apologia à violência, é, em vez disso, convite para que o sujeito,
em categorias heideggerianas (2006), descubra em si o si-mesmo, ou seja,
responsabilize-se por sua constituição e se permita o ato de reinventar o si-mesmo.
Nessa direção, o diálogo com a docente “M. F.” é significado, pois o relato destaca
que diante do que se tornou e conquistou, é possível vislumbrar outros horizontes. Há
abertura para a construção de si, como destaca a docente:
Então, quando uma pessoa diz eu estou satisfeita, é porque ela já
realizou todos os seus desejos, tudo o que ela quer. Eu ainda não
realizei, né, porque eu ainda quero chegar além, mas eu sei que me
tornei uma pessoa é, boa, no sentido profissional eu sei que tenho
que melhorar muito, porque não estou satisfeita 100%, sempre acho
que tenho que ir além.
Ainda que a trajetória da docente seja marcada por conquistas, ascensão
profissional, ela demonstra abertura para novos horizontes. A educação como
heterotopia, abastecida pela postura de resistência típica da transgressão, faz com que
o sujeito estabeleça outra hermenêutica sobre a sua subjetividade. A educação, como
práxis, não está cativa à indústria de índices, ou seja, preocupada exclusivamente com
o rendimento acadêmico do/a discente, em vez disso, a finalidade da educação é
colocar as vistas do sujeito para a condição de mutação inerente a própria vida; é
proporcionar ao sujeito encontrar as perguntas que alterarão o si mesmo, ou seja:
A educação tem esse papel de humanização gerando um clima de
autoconhecimento e amadurecimento do indivíduo. A vocação do
sujeito que vive o contraste das intempéries da vida é saber ser
diante das (im)possibilidades existenciais. Assim, a subjetivação do
sujeito em humanizar-se acontece em modos de objetivação que são,
em suma, práticas de subjetivação e, assim, a relação como o sujeito
estabelece consigo por meio de técnicas que viabilizam a
conscientização de sua existência, logo, sua humanização.
(MANTOVANI, 2019, p. 93)
A práxis que acompanha a educação é a disposição em lançar o sujeito para
condição de humanização, isto é: não cabe a educação apontar o caminho que deve ser
238

percorrido pelo sujeito, todavia fortalecê-lo com instrumental para trilhar por essa
via. A contribuição da educação na constituição da subjetividade se dá à medida que o
sujeito tem condições de nomear sua subjetividade; de perceber a temporalidade que
cerca e perpassa sua existência; de transitar da stultitia para a condição de sapientia,
ou seja, imergir no conhecimento de si e suas contingências. Por esta via, vale o
destaque da citação de Foucault:
O stultus não pensa na velhice, não pensa na própria temporalidade
da vida a fim de ser polarizada na consumação de si na velhice.
Muda de vida continuamente. Então, muito pior que a escolha de um
modo de vida diferente para cada idade, ele menciona aqueles que
mudam de modo de vida todos os dias e veem chegar a velhice sem
nela ter pensado sequer um instante. (2018, p. 119).
Transferir-se da stultitia para o conhecimento de si é, em síntese, a superação de
utopias. Tal postura é sintetizada na transgressão da objetificação do si-mesmo para a
heterotopia inerente a objetivação da subjetividade, dito de outra forma: se objetificar
está restrito a tornar o sujeito cativo e restrito ao sistema mercantil, enredar o sujeito
ao paradigma normalizador, materializar a subjetividade do ser; o conceito de
objetivar destaca a ação do sujeito em compreender a rota que ele está trilhando e que
o constitui, ter consciência deste caminho. A educação tem como desafio objetivar a
subjetividade, isto é, apontar novos axiomas constitutivos que são fissuras em padrões
estabelecidos e, paralelamente, possibilitam novas experiências ao sujeito, ou seja:
A educação deveria romper com as epistemologias cristalizadas pelo
racionalismo dedutivo ou pelo empirismo indutivo. É fundamental
vivenciar a subjetividade, que é um ato de experienciar o si mesmo.
Se por um lado há uma tendência de fragmentação do eu para uma
heteronomia impositiva, é possível identificar, por outro lado, uma
alternativa de condicionamento social rumo a uma vida criativa em
que há apropriação do si mesmo (MANTOVANI, 2018, p. 145).
Diante da citação, a encruzilhada que se impõe é: qual rumo a práxis educativa
assumirá? Mais do que responder a esta questão, todavia com intuito de problematiza-
la, a figura do Outro é imprescindível nessa relação de constituição de subjetividade.
É por meio da relação com o Outro que há quebra de paradigmas, retomando, assim, a
citação do terceiro capítulo que, como destacado, para Foucault o Outro (ou o mestre)
“é um operador na reforma do indivíduo e na formação do indivíduo como sujeito. É o
mediador na relação do indivíduo com sua constituição de sujeito (2018, p. 117), a
presença do Outro é inalienável para o processo de enfrentamento das amarras
alienadoras. Como destacado anteriormente, é no contato com o Outro que o sujeito
rompe com o estado de stultitia, tal afirmação é presente, por exemplo, na narrativa do
239

docente “H. F.” que destaca a importância do Outro para oportunizar sua chance
de entrar no Ensino Superior.
A experiência do docente “H. F.” destaca como a presença do Outro foi valiosa
para o despertar à oportunidade que ele, por si só, não vislumbrava. O Outro também
aparece na narrativa da docente “M. F.”, após citar experiências negativas com
professores em sua trajetória, em seguida, cita sua experiência com uma professora de
biologia, um Outro que despertou nela mais do que os resultados acadêmicos,
sobretudo, despertou para uma postura de alteridade e de cuidado consigo e com os
Outros que perpassariam sua trajetória de vida. Tal marca acompanha a trajetória de
vida da docente “M. F.” como ela mesma narra:
Eu tive dois professores maravilhosos, uma professora que tinha o
apelido de Tuca, era aquela professora doidona, sabe, do tipo que
aaaa... chegava na sala os alunos adoravam, tinha uma conversa
muito aberta, era professora de ciências, então, falava sobre tudo. Eu
lembro que ela me dava muitos conselhos porque eu era danada, me
acolheu na minha adolescência, me acolheu no sentido de conselhos,
não era só aquilo, não era só a matéria, “Azinho Azão”, tipo
sanguíneo, enfim, foi uma professora que olhava o aluno como ser
humano. “Hoje você tá triste, o que você tem?” Não era só comigo,
era com todos, é, porque você não fez o deve de casa, o que
aconteceu? Por que você chegou atrasado? Sabe, era uma professora
que via o aluno como ser humano e essa pessoa que eu quis me
tornar. Naquele momento, era uma pessoa como ela. E eu acho que
eu tô no caminho de uma profissional como ela. De olhar pro aluno e
perguntar: pô, o que você tem? Você não tá legal, enfim.
A narrativa explicita a presença do Outro, inclusive, em sua ausência. A
conexão do sujeito com o Outro dá entornos a estética da existência (MISKOLCI,
2006). Não como uma imposição moral, de valores, de práticas, de modo arbitrário e
imperativo. A presença do Outro faz com que a prática de si seja uma abertura do
sujeito para si em profunda relação com o mundo. A presença do Outro é momento
charneira constitutiva no sujeito. Nessa direção aponta Taylor:
As práticas de si possuem, portanto, um duplo caráter: por um lado,
são manifestações das normas e valores da sociedade na qual um
indivíduo vive e, portanto, estabelecem uma relação entre o
indivíduo e os outros; por outro lado, na medida em que o indivíduo
as assume e as incorpora à construção da sua própria subjetividade,
essas práticas estabelecem uma relação do indivíduo com ele
mesmo. (2018, p. 223).
Estabelecer relação consigo mesmo, como a outra dobra das práticas de si, é o
que proporciona ao sujeito experiência singular, haja vista que é nesse processo que o
sujeito passa a nomear e objetivar, como sinalizado anteriormente, sua constituição,
sua subjetividade. Como destaca Foucault “a prática de si impõe-se sobre o fundo de
240

erros, de maus hábitos, de deformação e de dependência estabelecidas e


incrustradas, e que se trata de abalar. Correção-liberação, bem mais que formação-
saber: é neste eixo que se desenvolverá a prática de si, o que, evidentemente, é
fundamental” (2018, p.115-116). A educação pode assumir como práxis a prática de si
a fim de que o sujeito altere sua existência, desaprendendo para aprender; revisitando
a si mesmo com o intuito de aprender sobre si-mesmo, como enfatiza Foucault:
Virtutes discere é vitia dediscere (aprender as virtudes é desaprender
os vícios). Trata-se da noção de desaprendizagem que, de modo,
deve começar ainda quando a prática de si esboça na juventude, esta
reformação crítica, reforma de si que tem por critério uma natureza –
mas uma natureza jamais dada, jamais manifesta como tal no
indivíduo humano, de qualquer idade –, tudo isto assume, muito
naturalmente, a feição de um desbaste em reação ao ensino recebido,
aos hábitos estabelecidos e ao meio. (2018, p. 117).
Para aprender é preciso desaprender. A desaprendizagem é fundamental como
práxis da educação ao passo que é por meio dela que o sujeito aventurasse na
arqueologia de si. É um ato de escutar a si mesmo em reciprocidade com o mundo
(WELLAUSEN, 1996). Lembrando que escutar é maneira que o sujeito estabelece o
itinerário para si. Abrir-se para a escuta é ter em constante perspectiva a máxima
conhece a ti mesmo. Escutar é, sobretudo, pragma, ou seja, é a ação que o sujeito faz
sobre si e o mundo que o circunscreve (FOUCAULT, 2018). A educação pode ser o
viés pelo qual o sujeito presta atenção em si e, como desdobramento, passa a cuidar de
si. Na abordagem foucaultiana, cuidar de si está entrelaçado com o conhecimento de
si, como propõe Stone:
Foucault volta ao antigo lema filosófico “conheça-se”, gnothi
seauton. Essa esperança pelo autoconhecimento, central para a busca
do filósofo, sempre esteve essencialmente associada a outro lema:
“cuide-se”, epimeleia heautou. Contudo, na época contemporânea
esse acoplamento já não é essencial. Para os pensadores antigos, era
preciso que alguém fosse um tipo particular de pessoas a fim de
conhecer-se a si mesmo e qualquer outra coisa importante. Nossa
época, no entanto, o conhecimento é considerado algo que se pode
obter independente do tipo de pessoa que alguém seja. É aí que
Foucault detecta uma ruptura arqueológica (no sentido foucaultiano
do termo) na história do conhecimento. Ele afirma que os antigos
pensadores consideravam o cuidado de si a estrutura justificativa, o
alicerce e o fundamento do imperativo conheça-se. Que agora
possamos reivindicar o autoconhecimento sem qualquer requisito
ético seria para os antigos ininteligível. (STONE, 2018, p. 186)
Na abordagem foucaultiana, se na antiguidade a condição do cuidado de si era
restritiva a um grupo, já na contemporaneidade, esta dimensão é acessível a todas
pessoas. A educação pode exercer este papel articulador, ou seja, auxiliar o sujeito
nessa empreitada de olhar para si, desaprender sobre si, a fim de apreender sobre si. É
241

valioso salientar que nesse ato de objetivar a subjetividade, o que está em jogo não
é encontrar a verdade sobre si ou o verdadeiro eu, em vez disso, o esforço é interpretar
os tecidos que constituíram o sujeito, como destaca Taylor:
Para essa análise crítica seja possível, temos de reconhecer que
participamos ativamente da nossa autoconstituição e, portanto,
possuímos a capacidade de nos envolver em tal análise. A
subjetividade não é uma questão de descobrir o nosso “verdadeiro
eu”, um processo que nos obriga a aderir a alguma definição
predeterminada e externa de quem e do que nós somos; antes, trata-
se de uma questão de pôr em causa um tal entendimento do que
significa ser um sujeito, de investigar os efeitos que uma tal noção
tem sobre a nossa reação com nós mesmos e os outros e de explorar
possíveis maneiras de pensar e agir de maneira diferente (2018, p.
230).
Nessa citação fica indicado que a constituição da subjetividade é uma
construção heterotópica não utópica. O aporte que a educação pode oferecer ao sujeito
é expandir fronteiras. Nas narrativas dos discentes “R. L” e “F. G.” a equação
educação para o trabalho é recorrente, desta feita, cabe a educação, mais do que
equipar o indivíduo para exercer funções, vocação a apriorística em dar ao sujeito o
esclarecimento da constituição de si. Compreender a interconectividade entre
subjetividade e liberdade, é colocar o sujeito diante da incompletude do si mesmo. É
inaugurar um jogo constitutivo de verdade que não aceita de modo acrítico normas ou
axiomas pré-estabelecidos; toda verdade absoluta é solapada, ao mesmo tempo que
todo ceticismo ou niilismo epistemológico e/ou moral são substituídos pelo empenho
do sujeito em compreender mais sobre si a partir da hermenêutica de suas camadas.
Não é função última da educação solidificar verdades, porém:
Em vez disso, como Foucault o admite prontamente, levar sua obra a
sério coloca-nos em um lugar opositivo em relação aos modos
prevalecentes de pensamento e existência e, assim, priva-nos de
“acesso a qualquer conhecimento completo e definitivo” tanto do
mundo em que vivemos quanto dos “limites” da nossa habilidade de
conhecer e agir dentro desse mundo” (TAYLOR, 2018, p. 18)
A obra foucaultiana faz com que o sujeito não admita o fim da linha do
conhecimento de si. A parresia faz com que o sujeito compreenda a si mesmo como
obra incompleta e em constante revisão e atualização. Essa postura demonstra a
insurreição na proposta foucaultiana, pois dá ao sujeito o protagonismo de si, em vez
de ser resposta do meio em que está inserido, isto é, “estejamos claros de que, embora
nós não possamos nos desembaraçar complemente de relações de poder, não somos
simplesmente determinados por elas: não estamos fadados a reproduzir acriticamente
as normas e valores prevalecentes da nossa sociedade (TAYLOR, 2018, p. 228). A
242

práxis da educação pode ser este elemento de esclarecimento (aufklärung) do


sujeito, as incertezas e contingências da vida (FOUCAULT, 2005), ou como destaca
Firmiani:
A necessidade da epimelei heautou se impõe no contexto de uma
crítica que mostra que o estatuto de nascimento, as posses ou a
riqueza – como no caso de Alcibíades – não bastam para participar
com sucesso da vida da cidade. A difícil passagem da adolescência
para a vida pública é incerta: não estando institucionalizada, ela
dependente principalmente da educação. Mas a questão da pedagogia
se cruza em sua rota com a questão do amor: [...] É se perguntar,
enfim, quem é preciso amar e sob que condições. (2004, p. 111).
Se, por um lado, e educação é vista como o mecanismo que servirá como
garantia profissional para o indivíduo, a proposição que acompanha a hermenêutica
foucaultiana caminha por outras trilhas. A educação não é reduzida ao funcionalismo
tecnicista imposto pelas demandas mercadológicas; A contribuição da educação é
fazer com que o sujeito se dê conta da complexidade idiossincrática do si mesmo. A
educação como práxis favorece outros traços ao que se refere à constituição da
subjetividade do sujeito. Tal construção, como apontado, não é feito isoladamente
peso sujeito. O paradoxo é que se o Outro é fator indispensável para tal compreensão
constitutiva de si, o si-mesmo não pode ser suprimido neste movimento centrípeto e
centrífugo típico da subjetividade. Em suma, o esforço desta seção foi descrever a
problematização da educação como práxis. Conseguinte, será apresentado possíveis
contribuições foucaultianas para a filosofia da educação.

V.5 Arremate Conceitual: Contribuições foucaultianas para


a filosofia da educação

Este capítulo teve o intuito de apresentar o impacto da educação na constituição


da subjetividade dos sujeitos, para tanto, em primeiro lugar, apresentou breve
panorama da educação brasileira e, a partir desta contextualização, entrelaçou com as
narrativas dos discentes, docentes e agentes administrativos. A perspectiva este
sempre atenta aos dois pontos lançados no início desta seção, a saber: o eco da
desconstrução da subjetividade compelida pelas vias educacionais e o impacto do
fenômeno educação como fomentadora dessa nova constituição.
Neste esforço hermenêutico, tentou-se pontuar algumas dificuldades que
acompanham o fenômeno educacional – tais como fracasso escolar, a característica
243

mecanicista da educação, a constituição deformativa da subjetividade etc –


entretanto, o que vale destacar é que não é possível aferir ou categorizar qual é o
problema central deslocado ou isolado dos diversos fatores que impactam diretamente
o fenômeno educação. A hermenêutica coerente destes imbróglios só é viável quando
as análises das partes estejam articuladas com o todo. A tecnologia pode ser analisada
como exemplo, haja vista o destaque deste tema nas narrativas dos discentes e
docentes. A repercussão da tecnologia no fenômeno educacional é significativo, pois
ela é responsável em alterar todas as relações que perpassam o processo educativo.
Ainda por este viés, destaca-se o impacto da lógica mercantilista como
homogeneizadora da subjetividade do sujeito, das práticas e do cuidado de si.
Articular temas foucaultianos neste cenário, é incentivar postura de diagnóstico crítico
da atualidade e, inquerir, quais os caminhos que a educação pode trilhar para romper
com esta lógica.
A Escola Estadual Senador João Galeão Carvalhal está inserida neste contexto.
Discentes e docentes fazem parte do mesmo jogo hermenêutico, os quais atribuem, a
sua maneira de experienciar o mundo vivido, valores e sentidos para suas
experiências. A subjetividade e objetividade caminham paralelamente no ato de
experienciar a vida. A questão não é de polarização, ou seja, não é objetivar a
subjetividade ou subjetivar a objetividade; não se trata de uma guerra conceitual ou
nominalista; o que as narrativas revelam é que a interpretação da constituição do
sujeito se dá a partir da compreensão do sujeito como ser integral, não fracionado ou
segmentado. A educação contribui para esta perspectiva holística do ser.
Destacou-se, também, como a tensão substância e formal emplaca a realidade da
educação, ou seja, ainda que formalmente a educação seja direito inalienável,
substancialmente, isto é, na prática, ter acesso à educação é ainda complicado. Isto foi
aferido, principalmente, nas narrativas dos discentes e docentes. Como a ênfase recai
sobre o saber fazer, inclusive a própria BNCC segue por vias utilitaristas. O sujeito
faz da educação instrumento para acessão profissional, o erro não está no trabalho,
mas no ato de reificar a educação e transformar o sujeito alienado aos imperativos do
mercado.
Ao que se refere a formação docente, viu-se que é elemento secundário, isto é,
tanto a habilitação docente como sua atualização são preteridas. Os estabelecimentos
de ensino possuem recorte sobre o que deve ensinar com a resposta de que a educação
utilitarista é a que corresponde às expectativas contemporâneas, todavia, é nesse ato
244

que as instituições de ensino adentram ao obsoletismo. O século XXI é marcado


pelas rápidas mutações, logo, não é nada fácil antecipar a profissão do futuro, o que se
antevê é que a educação, como devir ontológico, pode contribuir para a constituição
do sujeito que não está fadado ao tecnicismo ou a instrumentalização a existência.
O paradoxo que acompanha a virtualização da existência (LÉVY, 1999) traz ao
mesmo tempo os grandes progressos que acompanham o curto espaço de tanto da
história da humanidade, porém, é responsável por sequelas inimagináveis, por
exemplo, a ausência de memórias ou falta de referências que acompanha o sujeito
hodierno. A educação, ao não se atentar a esta realidade, assume papel deformativo.
A educação deformativa é aquela que forma segundo a norma e, por isso,
deforma o sujeito, assim, faz-se necessário retomar a premissa desta tese não é
estabelecer aura anárquica, em vez disso, olhar a função última da educação:
contribuir para a constituição da subjetividade do sujeito ponderando as narrativas dos
discentes, docentes e agentes administrativos.
Essa seção propôs reflexão da educação deformativo a fim de alcançar novos
horizontes. Não trouxe metodologias ou perorações paradigmáticas, todavia, se propôs
a pensar e ponderar sobre alguns elementos que tangenciam o cotidiano do fenômeno
educação com apontamentos da filosofia de Michel Foucault. Assim, alguns pontos
são vislumbrados, a saber: oportunizar a experiência de si com o si-mesmo sem
desprezar a figura e imprescindibilidade do Outro; romper com tendências
heteronômicas; buscar, na educação, elementos que promovam a autonomia do ser;
prestigiar as narrativas do sujeito, pois estas descortinam a ipseidade do sujeito;
educar é uma atividade que exige constante transformação, haja vista as mudanças que
acometem a contemporaneidade; compreender a inviabilidade da dicotomia sujeito e
política, tendo em vista que tal dicotomia maniqueísta favorece, apenas, para a
despolitização do sujeito.
A apresentação da tensão entre utopia e heterotopia realçou a função da
educação, seguindo o devir ontológico, como vetor para a constituição do sujeito.
Tanto parresia (fala franca) como a escuta são tópicos que permeiam o devir
ontológico da educação que, assim, assume papel transgressor. Neste ato de re-
invenção e compreensão do sujeito que a desaprendizagem é inegociável para a práxis
educacional, pois se ensina a conhecer-se, a cuidar-se, a ater-se sobre si. Aprende a
observar as camadas do si-mesmo, e, assim, encontrar sentidos na subjetividade.
245

Compreender as várias formas de constituição de subjetividade é tipificar


que o sujeito é ser inconcluso, inacabado, em constante transformação, é o que foi
denominado nesta seção como devir ontológico. Tal dimensão destaca que o sujeito é
um ser de infinitas possibilidades constitutivas dentro de sua finita constituição.
Destacar o duplo presente em Foucault não é se atentar sobre a tensão presente no si-
mesmo do sujeito, em vez disso, o duplo enfatiza que o sujeito é plural em sua
singularidade.
A complexidade da hermenêutica da constituição da subjetividade não é abertura
irresponsável do sujeito a respostas relativistas, é, por sua vez, a incógnita que
acompanha a estética da existência, a arte da vida. A possível colaboração de Foucault
para a educação é indicar a perspectiva de entrelaçar os aspectos transcendentais com
os imanentes; do ater-se no si-mesmo sem perder o Outro de vista; de constituir a
subjetividade sem se tornar refém desta constituição. Educação não é para servir a
quaisquer outras finalidades que não seja a arte de viver.
Tais reflexões embasam a tese que defendemos que é o papel deformativo da
educação contemporânea que está comprometida com elementos relativos ao sujeito e
não a formação e constituição do ser. A hipótese desta tese é que a educação assumiu
papel protagonista no contexto de normalização de barbáries, pois, em vez de
subsidiar o sujeito com instrumentais para o caminho das técnicas de si, do cuidado de
si, a educação metamorfoseou na própria razão instrumental com o intuito de formar o
ser na medida que o deforma em todo o seu trajeto formativo. A educação só
alcançará sua finalidade última quando assumida, em primeiro momento, como
dispositivo de deformação, a fim de que o si-mesmo, posteriormente, encontre as vias
para a constituição de si e de sua subjetividade.
246
247

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta tese buscou analisar a educação por meio de lentes foucaultianas, mais do
que isso, a tentativa foi analisar narrativas do cotidiano de discentes, docentes e
agentes administrativos a fim de compreender, na prática, o que é compreendido e
vivido por educação. Se, de um lado, o esforço deste trabalho foi apresentar a
densidade teórica da filosofia de Michel Foucault, por outro, buscou-se apresentar
como a educação tem sido vivenciada, o que tem sido feito. A intenção era superar a
lacuna entre teoria e prática, academia e cotidiano, de modo que a educação pudesse
ver vista e percebida a partir de suas contingências, sem negligenciar a contribuição
da epistemologia.
Este percurso epistêmico e reflexivo teve como hipótese o impacto da educação
na constituição da subjetividade dos sujeitos. Analisou-se as narrativas do cotidiano
de personagens que estão inseridos no mesmo ambiente: a Escola Estadual Senador
João Galeão Carvalhal. Todas as personagens dialogaram sobre o mesmo fenômeno:
A educação. Além as tangências, convergências e divergências presente nas
narrativas, o que vale destacar é o impacto da educação na constituição da
subjetividade das personagens que observam criticamente a realidade e, ao mesmo
tempo, reproduzem ou perpetuam a lógica do sistema vigente.
Com o instrumental teórico de Foucault, esta tese perseguiu o duplo que
acompanha a produção do filósofo francês, assim, ao mesmo tempo que há o eco da
desconstrução da subjetividade impulsionada pelas vias educacionais, paralelamente,
apresentou a repercussão que a educação exerce, vista como fomentadora de
248

constituição de subjetividade. O interesse desta tese foi demonstrar a idiossincrasia


presente na constituição da subjetividade.
Para tanto, algumas considerações finais. O primeiro capítulo apresentou
panorama da educação. A especificidade deste capítulo é que sua arquitetura gira em
torno dos referenciais teóricos que estão presentes nas obras de Michel Foucault.
Como dito anteriormente, ainda que o tema da educação não tenha sido objeto de
pesquisa das obras do filósofo francês, é possível relacionar temas de sua filosofia
com as demandas típicas do fenômeno educacional, haja vista que pensar sobre
educação não é refletir sobre algum tema externo ou relativo ao ser humano, pelo
contrário, a reflexão da educação gira em torno da própria constituição do sujeito.
Esta tese, ao seguir o viés foucaultiano em colocar em diálogo autores e obras de
períodos distintos – da Antiguidade até a contemporaneidade – alçou a pergunta sobre
a teleologia da Educação, isto é, sua finalidade ou para que ela serve. Na tentativa de
responder essa questão a partir de fenômenos externos, faz-se a ação contrário ao
princípio basilar da própria educação: não se educa para atender ao mundo externo,
educa-se para que o sujeito experiencie o si-mesmo em todas as suas facetas em
relação com o mundo.
Esta tese demonstrou a supressão da característica plural do sujeito. Pensar a
pluralidade é dinamizar a ipseidade do ser. A abordagem foucaultiana auxilia no
processo de diagnosticar os embates que acompanham a educação, a imposição
heteronômica de uma ideologia alienadora, que fomenta o desaparecimento do senso
crítico. A obra de Foucault auxilia a diagnosticar a atualidade. Sua teoria não está
posta como antídoto, outrossim, como forma de apresentar os cenários em que a
autonomia e o esclarecimento devem ser reativados. Resistir ao sucateamento da
educação que perpetua a colonização da subjetividade é encontrar formas de
resistência e transgressão as tendências mercantilistas. A decolonização da
subjetividade é a forma de colocar em práticas a desaprendizagem.
O segundo capítulo buscou apresentar a cartografia geral da filosofia
foucaultiana. Por mais que a produção acadêmica de Foucault tenha seguido, nesta
tese, a divisão em três domínios, é salutar destacar que está segmentação foi feita a
fim apresentar didaticamente a produção do filósofo francês. Tanto a abordagem
fenomenológica, arqueológica, genealógica ou ética que acompanham as produções de
Foucault, há sempre o mesmo objeto e intento último de pesquisa: o sujeito.
Relembrando a premissa de que, para Foucault, o ser humano é uma criação recente
249

que está beira da extinção, assim, a reflexão sobre o ser humano não pode seguir
por viés unidimensional, fechado ou isolado. A compreensão do sujeito se dá por meio
de uma direção que vislumbra a complexidade humana.
Talvez o que incomode nas obras de Michel Foucault é que não exista uma
teoria propriamente dita, por exemplo: uma teoria do que é a história, ou teoria da
genealogia do poder ou até mesmo teoria ética. De fato, não é intenção de Foucault
apresentar teorias, isso está de acordo com sua perspectiva do que é a verdade: a
verdade está relacionada com o veredicto dos intérpretes que estão em constante
relação de constituição e reconstrução do que é considerado como verdadeiro (GROS,
2004). A característica atemporal do conceito de verdade na obra de Foucault destaca
a impossibilidade de percebê-la como evento finalístico, ou seja, é impossível
compreender a verdade como fenômeno dado e completo, fato exclusivo que perpassa
toda a história. É imanente a verdade a transformação.
A proposta de Foucault é interpretar como a verdade está em correspondência
com o seu lugar e momento vivencial. Compreender o acontecimento existencial é dar
vazão as inumeráveis possibilidades de interpretação relativas ao ser, logo, capturar a
verdade se torna impossível, o que é plausível é a caricatura das trilhas que
construíram o que se tem como verdade. A metáfora foucaultiana para compreender o
ser é o grande iceberg o qual propicia inumeráveis hermenêuticas e inferências. A
complexidade da obra de Foucault só destaca como o sujeito está envolto em enredos
herméticos, no qual a educação pode ser instrumental que auxilia tanto na deformação
e desaprendizavem, como na formação e aprendizagem do ser.
O esforço do terceiro capítulo desta tese é destacar como a obra de Foucault não
está deslocada da própria vida do filósofo. A proposta filosófica de Foucault é que não
pode haver separação e distinção entre vida e obra, assim, o imperativo constitutivo é
estimular o experienciar do sujeito e, assim, proporcionar a constituição do si-mesmo.
É, para o filósofo francês, remodelar a subjetividade a partir de problematizações do
que foi apreendido e, assim, aproximar-se do governo, do cuidado e da prática de si.
Tal indissociabilidade salienta que a educação não é isto ou aquilo, sobretudo,
educação é prática da constituição do ser.
Neste capítulo salta a intuição de que analisar a constituição das subjetividades é
ponderar a finalidade das instituições prescritivas, isto é, estabelecimentos que
decretam não só as vias, mas os passos que serão dados para chegar no resultado já
determinado. Estes estabelecimentos vão na contramão da retomada platônica do
250

“conhece a ti mesmo”, pois essas instituições estimulam que o sujeito não volte a
si, ou seja, negue a si-mesmo; solape o si-mesmo e não preste atenção em si,
esquecendo de si e de se ouvir. Retomar, portanto, o texto platônico do Alcibíades
Primeiro revitaliza a reflexão sobre o processo do conhecimento de si. A noção do
cuidado de si está ligada com o conhecimento de si, de modo que conhecer a si é o
ethos do sujeito, é sua prática de existência ou arte da vida.
Em geral, pode-se aferir que a educação é o mote do diálogo, pois a preocupação
de Sócrates é a permanência de Alcibíades na condição de stultitia e, pior, ao
permanecer nesse estado assumir funções aristocráticas na pólis. Para sair da stultitia
o Outro exerce papel fundamental. O intento de Sócrates é contribuir para a formação
de Alcibíades, mas, para tanto, seu ponto de partida é a desconstrução dos alicerces
subjetivos de seu antigo discípulo.
A educação, portanto, é este evento que deforma com o intuito de formar. Nesse
diálogo, Sócrates reflete junto com Alcibíades sobre os mecanismos que fazem da
verdade o que se compreende como verdade. A estética da existência socrática
envolve, simultaneamente, o ser com o Outro. É, em primeiro lugar, governo de si, a
fim de que, posteriormente, transforme-se em governo dos outros. Sócrates é este
Outro na vida de Alcibíades, pois mais do que trazer respostas para as contingências
de seu antigo discípulo, a preocupação de Sócrates é elaborar perguntas que afetam a
constituição do ser. Não está em questão apresentar a utopia que será habitada, em vez
disso, o intento socrático é contribuir no ato introspectivo que Alcibíades terá sobre si.
A educação pode ser o caminho pelo qual o sujeito visita a si mesmo, como,
também, cria o si-mesmo. Enquanto o ato de educar estiver cativo aos algoritmos
impositivos da máquina global, não se verá o que é educação. As narrativas com os
discentes, docentes e agentes administrativos evidenciaram este problema, haja vista
que a educação é interpretada de uma maneira, mas, devido as necessidades
contingenciais, é praticada de outra. As utopias imperialistas impedem que o sujeito
crie outros rumos sobre si. A provocação socrática de que tomar a multidão como
instrutora é correr o risco de permanecer nas mãos de despreparados, tenciona o que
se tem praticado como ato educativo. Não basta diagnosticar a situação degradante, é
necessário romper a fim de que heterotopias sejam construídas, potencializadas,
instigadas.
O papel das heterotopias é potencializar horizontes que são invisíveis quando as
lentes hermenêuticas do sujeito passam pelo crivo das instituições prescritivas. As
251

heterotopias não apontam lugares, mas possibilidades criativas. São caminhos


construtivos e infindáveis. Por meio das heterotopias que se visualizam as viabilidades
inerentes ao ser. Se, por um lado, as utopias, por serem lugares existentes, condiciona
o sujeito na lógica cartesiana, as heterotopias, por sua vez, destacam que o sujeito é
ser aberto, incompleto, em formação, em constante possibilidade. Quando se pensa
educação sobre a ótica heterotópica, formar e deformar passam a ser termos que são,
tomadas as devidas proporções, complementares e dialéticos.
As narrativas dos discentes, docentes e agentes administrativos revelaram as
novas demandas que tangenciam a educação, isto é, o eco das novas tecnologias, a
imposição da lógica mercantilista, o viés utilitarista e pragmático, a reverberação da
educação deformativa na constituição da subjetividade, dentre outros fatores,
destacam que a educação contemporânea não tem como proposição a constituição da
subjetividade do sujeito, mas, como visto nas narrativas dos discentes e docentes, é
posta como meio para outras finalidades.
Os textos foucaultianos ajudam como transgressão e resistência por meio da
desaprendizagem. O diagnóstico foucaultiano é que a educação tem sido responsável
pela perpetuação de subjetividades enformadas por dispositivos hipostasiados, por
consequência, mesmo que o sujeito discirna os traços dominadores, existe a tendência
da perpetuação. O passo seguinte do diagnóstico do sistema é a redescoberta do
sujeito, o que é presente no devir ontológica da educação.
As narrativas dos discentes e docentes demonstraram como a educação está
posta a parte da vida do ser. Desta feita, compreender o ser humano por um viés
holístico é distinguir que a subjetividade é feita por si e em relação com o Outro.
Objetivar a subjetividade é a ação de apropriação que o sujeito tem do si-mesmo.
Como visto nas narrativas, a figura do Outro foi imprescindível para alterar o rumo e
caminho dos discentes e docentes. A presença do Outro enaltece a imagem de que a
constituição da subjetividade é um fenômeno que acontece por meio da experiência de
práticas de si, exercícios que tangenciam, inclusive, a abstinência. Pensar o tema da
abstinência em categorias foucaultianas (2018) é compreender a ideia de que
potencializar o sujeito não é destruir com as margens que o circula, em vez disso, é
fazer com que o si-mesmo compreenda tais margens, nomeie-as e, se necessário,
rompa com tais molduras. Educar não é domesticar, é apontar o horizonte do que é ser
humano.
252

O título educar sem (de)formar carrega quatro pontos que receberão


destaque a seguir. Em primeiro lugar, pensar a educação como formação é
problematizar a concepção de que se educa para ser alguém na vida, pois só se é
alguém na vida por meio do trabalho, que, por sua vez, é resultado de diplomas
adquiridos por meio da educação. Quando a educação se propõe a formar o sujeito, o
risco que pode ser sedutor é transformar o sujeito naquilo que é mais adequado
segundo os princípios da lógica dominante. Portanto, a compreensão da educação
como formação pode ser um dispositivo eficiente de dominação e compreensão do ser.
O segundo ponto é o diagnóstico da educação como deformação que é,
consequentemente, o desdobramento da educação formativa segundo os moldes da
máquina global. A educação que deforma é coerente com as instituições prescritivas e
fomenta uma mentalidade colonizada. A educação que deforma, enforma. As
narrativas dos docentes evidenciaram que o sistema vigente sobrevive por meio da
deformação de subjetividades. É a falta de consciência de classes e ignorância da
constituição da ipseidade e singularidade do ser que o sujeito despreza o si-mesmo. O
diagnóstico foucualtiano proporciona visualizar e possibilitar romper com os
paradigmas vigentes.
O terceiro aspecto a ser mencionado, descolando do diagnóstico negativo dos
fenômenos, é o papel imprescindível da educação como deformação. Este tópico não
nega o anterior, em vez disso destaca que pensar a educação como o fenômeno que
provoca o sujeito a observar a si e deixar de ignorar o que normalmente se ignora é,
em essência, característica deformativa. O axioma presente na educação como
deformação é a transgressão dos dogmas que cristalizam a subjetividade; que são
reacionários quanto as possibilidades constitutivas do ser; que são arbitrários quanto a
moral.
Semelhantemente, é necessário pensar a educação como formação. É possível
elencar semelhanças nas narrativas de quando Sócrates se aproximou de Alcibíades,
ou o contato entre o docente “J. A.” teve com seu professor de física, ou que a docente
“M. F.” com a professora de biologia, bem como nos demais relatos, o que se
assemelha é o impacto da educação como formativa. Formar é dar condições para que
o sujeito compreenda o si-mesmo. Formar é proporcionar ao sujeito instrumentais
epistêmicos suficientes para leitura e interpretação da vida, ou seja, é envolver
epistemologia com o mundo vivido. Formar é objetivar a subjetividade sem objetificar
a existência. Formar é trazer de modo explícito o horizonte mundo do sujeito que está
253

diante do sujeito. Educação é formar, da mesma forma que educar é deformação.


Este duplo é típico da abordagem foucaultiana.
Por fim, seguindo as trilhas de Foucault, mais do que respostas, muitas
perguntas saltam desta tese, a saber: como os/as discentes compreendem educação? O
que os/as docentes entendem como educação? Como tem sido a prática nas
instituições de ensino da educação? Como romper com os sistemas mercantilistas que
se sobrem arbitrariamente na vida dos sujeitos e se instauram como horizonte
unidimensional da ação educativa? Por mais que o sujeito saiba o impacto desta
educação deformativa, ele ainda se mantém aliado a ela e, assim, alienado a este
sistema, por quê? Aonde deve começar as ações para compor uma nova constituição
de subjetividade? Como resgatar uma educação que siga a lógica socrática da presença
do Outro como auxiliador de práticas emancipatórias e criativas? Como transformar as
novas tecnologias em aliados ao processo de aprendizagem, ensino e constituição do
ser sem transformá-las em instrumentais que fazem dos sujeitos reféns? Como
incentivar cultura de transgressão, resistência e intensidade em uma sociedade
homogeneizada que perdeu a dimensão do si mesmo ou da ipseidade? Quantas outras
perguntas poderiam saltar sobre a constituição da subjetividade em relação com a
educação?
A contribuição que esta tese busca trazer é apresentar a problematização em
torno da constituição da subjetividade e fomentar perguntas e problematizações que
possam ser pistas, mesmo que de modo preliminar, para o processo da hermenêutica
do sujeito. Dar resposta sobre a constituição da subjetividade seria propor algo contra
a lógica foucaultiana. Logo, o que se espera é demonstrar que a educação é parte
inalienável do sujeito. Pensar educação é adentrar nas camadas ontológicas do ser e
ponderar o imponderável típico do devir humano.
As narrativas dos discentes e docentes demonstram não apenas o presente e o
passado do fenômeno educação, como também intuem o seu porvir. Em síntese, o
porvir do próprio ser. O horizonte que se elucubra é obscuro, haja vista a
automatização do si-mesmo que, acelerada e arbitrariamente, se impõem sobre o ser.
A modificação e mutação só é possível se o si-mesmo tornar-se ser apriorístico. Em
suma: educar sem (de) formar só é possível se a educação deformar e formar.
254

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ANEXOS

Os anexos trazem os diálogos mantidos com os discentes, docentes e agentes


administrativos que contribuíram para o desenvolvimento desta tese. Tanto os
nomes como tudo o que foi dito pelos participantes seguem transcritos e
autorizados por eles.

1. Discente R. L.
Entrevista Aluna R. L.

Pascoal – É uma conversa sobre minha tese de doutorado que você vai me
ajudar e eu gostaria de saber algumas coisas sobre educação pra você, tipo, como você
se sente nesse período indo embora da escola, indo pra uma nova fase, se você se
sente preparada. Vai ser assim, não vai ter um roteiro, mas só vai ser uma conversa,
basicamente, tudo bem? A minha primeira pergunta é, como você se sente? Terceiro
ano...

R. L.– Eu acho que não tô preparada não.

Pascoal – Não? Por quê?

R. L. – É muito pressão.

Pascoal – Tipo... muito pressão?

R. L. – Tipo dos pais, da escola, de tudo... aí se tipo, você não passa daí tem os
pais em cima de você, daí fica essa pressão. Pressão no cursinho.
268

Pascoal – Você tá fazendo cursinho, né? O que você tá achando?

R. L. – Eu acho muito bom. Tem um aplicativo para os alunos, tem acesso ao


Descomplica, só que ainda tem aquela pressão, sabe? Tipo, se eu não passar o povo
vai cair em cima de mim, e a pressão da família porque a metade da minha família
entrou na faculdade e metade da minha família entrou na federal.

Pascoal – Entendi.

R. L. – Daí fica aquele peso em cima de mim, aquela angústia.

Pascoal – E o duro é que as federais aqui estão bem concorridas.

R. L. – Bem concorridas...

Pascoal – Mas, assim, o duro que quando você vê essa pressão de fora, meio
que deixa a gente assim, atordoado.

R. L. – Muito atordoado, daí eu fico pensando: será que eu vou passar? Sim ou
não? Será que eu sou capaz...

Pascoal – Eu acho que são todas questões que recebem a resposta do sim: sim,
você tem condição de passar, o que pode acontecer é que na hora você pode ficar
muito nervosa, e isso pode te bloquear.

R. L. – É pouco tempo de prova.

Pascoal – É pouco tempo de prova, muitas questões.

R. L. – É cansativo.

Pascoal – Você já fez algum simulado?

R. L. – O ENEM ano passado e todo fim de mês eu faço um simulado no


cursinho. Esse final de mês eu vou fazer do ENEM mesmo, nos dias 29 e 30.

Pascoal – E por que você foi pro cursinho?

R. L. – Eu fiz a prova da UFA pra fazer o cursinho pra me preparar pro ENEM,
pra não ter um ano, terminar a escola e depois ter um ano de cursinho. Daí com a nota
eu não passei na UFA, mas com a nota dessa prova eu ganhei uma bolsa de 100 por
cento perto da UFA, não é patrocínio, mas uma ajuda da UFA.

Pascoal – Você tá se preparando lá. E a sala, é cheia de aluno?


269

R. L. – Tem uns 30 alunos, mas lá é muito bom. Tem um projetor na sala,


os professores são muito dinâmicos. Os professores são da UFA...

Pascoal – São alunos ou profs?

R. L. – São alunos que estão no último ano da faculdade. Alguns de doutorado.

Pascoal - Nossa, que legal. Daí você tem lá humanidades e exatas, e qual está
sendo mais difícil?

R. L. – Exatas...

Pascoal – É mesmo?

R. L. – Porque filosofia é o que eu já aprendi, o que eles estão passando, de


humanas é o que eu tô aprendendo. Mas tipo, física, tá... diferente, matemática, exatas
tá diferente.

Pascoal – O que você quer fazer lá?

R. L. – Na UFA não... mas quero fazer na Metodista, na UNESP...

Pascoal – Fazer psicologia?

R. L. – Ou terapia ocupacional...

Pascoal – Mas por que você quer fazer esse curso?

R. L. – Porque eu acho que me dou bem, ajudar os outros, escutar os outros,


escutar as pessoas. Terapia ocupacional é uma coisa linda, você ajudar as pessoas que
têm problemas, tipo síndrome de down. Quando eu era pequena eu estudei com uma
menina e eu era a única amiga dela. E tipo eu levava no banheiro, ajudava ela comer e
eu adorava fazer isso. E eu acho muito bonito você ajudar uma pessoa a se
desenvolver, ou ajudar psicologicamente. Tipo, teve um trauma e você quer ajudar a
pessoa a esquecer e superar.

Pascoal – Aquele livro que você tá lendo fala muito sobre isso, sobre você
estar...

R. L. – Preso dentro de você mesmo e você fica se corroendo, se mutilando por


dentro, só que as pessoas te veem como uma pessoa feliz, só que você está quebrada.

Pascoal – E você se vê fazendo isso pro resto da sua vida?

R. L. – Vejo.
270

Pascoal – Mas você só tem 17 anos ainda, vai fazer 18.

R. L. – Mas é uma coisa que eu sempre quis, desde criança

Pascoal – É mesmo? Que interessante. Mas vamos supor, você passou, a


faculdade que você quer, a faculdade que você quer: UNESP, ou ganhou bolsa na
Metodista ou foi lá pra UNESP, e você se sente preparada para a faculdade?

R. L. – Às vezes eu acho que tô e às vezes e acho que não. Eu vejo a minha


irmã, a pressão que ela recebe na faculdade, daí tem o TCC.

Pascoal – A sua irmã faz o quê?

R. L. – Gestão ambiental na UFABC.

Pascoal – Nossa, que legal.

R. L. – Daí eu vejo a pressão dela, desde quando ela entrou na faculdade agora
no tcc... Mas ao mesmo tempo eu vejo ela querendo crescer, porque ela tá querendo
fazer doutorado, fazer pós, quer fazer mestrado essas coisas pra virar professora
daquele assunto.

Pascoal – E sua irmã tem quantos anos?

R. L. – Ela tem 21. Ela entrou com 18.

Pascoal – Nossa, que legal. E por que ela escolheu esse curso?

R. L. – O foco dela era medicina. Mas aí ela passou em saúde e gestão


ambiental e ela falou que preferiu isso, porque ela se descobriu lá dentro. E ela falou
que não se daria bem em medicina.

Pascoal – Às vezes pra ser médico você não pode ter coração.

R. L. – E ela é fresca. Ela é fraca. Não gosta de ver sangue... eu disse como
você vai ser médica se não gosta de ver sangue.

Pascoal – E seus pais, eles influenciam vocês, motivam vocês?

R. L. – A minha mãe sim, mas o meu pai não. Ele não queria que eu fizesse
psicologia.

Pascoal – Ele queria que você fizesse...

R. L. – Medicina. E eu falei o que eu quero. A primeira coisa que ele


perguntou foi o que eu queria fazer, daí eu disse psicologia. Ele respondeu: mas isso
271

dá dinheiro? Daí eu falei assim: quem vai fazer é eu... qualquer pessoa que
trabalha bem, ganha bem. Aí ele ficou calado. Minha mãe sempre me apoiou.

Pascoal – Ele queria medicina e sua mãe te apoiando.

R. L. – Me apoiou. Você tem que fazer o que você gosta, não o que seu pai
quer.

Pascoal – Vocês são em 3?

R. L. – Três meninas.

Pascoal – E... você acha que o Galeão contribuiu pra você estar onde você
está?

R. L. – É que eu estou aqui desde a quinta série. Eu vi a evolução do Galeão.


Vi a evolução dos professores. Da direção em si, porque quando eu entrei a direção
não era boa, era a dona Ilka e ela não ligava muito pros alunos, agora tá melhor.

Pascoal – E você, o que você considera ser um bom diretor?

R. L. – Porque eu vejo ele mais cuidadoso com os alunos. Antes a dona Ilka
não chamava faculdade pra vir fazer palestra aqui, essas coisas, você tinha que correr
atrás. Sim, a gente tem que correr atrás, mas é bom quando vem na escola, apresentar
pra escola.

Pascoal – A sua irmã estudou aqui também?

R. L. – Não. Ela estudou em São Caetano.

Pascoal – Você mora perto de São Caetano

R. L. – Moro perto do SESC.

Pascoal – Você sentiu que o colégio deu uma...

R. L. – deu uma ajudada...

Pascoal – Você acha que ele foi decisivo?

R. L. – Decisivo não, mas ele meio que colocou na minha cabeça que rumo que
você tem que tomar. Mas também tem muito pressão, tipo, você entra na sala: ENEM
ENEM ENEM ENEM... às vezes é ruim muita pressão.

Pascoal – É como se o ENEM fosse a sua vida...


272

R. L. – É, como se fosse minha vida. Você entra assim e ouve é prova.


Prova baseada no ENEM, isso aqui é do ENEM... tira o nome do ENEM... fala que é
só uma prova, porque senão a pessoa fica se mutilando...

Pascoal – E faz todo sentido, porque não tem só prova ENEM. Nem outras...
UNICAMP...

R. L. – FUVEST...

Pascoal – Mas se tem uma variedade de vestibular e só foca em uma prova.

R. L. – Tem um monte de faculdade... várias...

Pascoal – É que não depende exclusivamente de um único meio... e sua decisão


pra psicologia, foi porque você... tipo, gosta disso ou porque você teve contato com
alguém da área?

R. L. – Tive contato. Eu passei com psicóloga. Porque eu estava guardando


tudo pra mim, e minha mãe me passou. Eu adorava passar com ela. Você sai aliviada
de lá. Eu sei como é sair de uma psicóloga, sei como é bom. Soltar tudo o que você
tem para uma pessoa e saber que não vai acontecer nada, que ela não vai contar pra
ninguém, que vai ficar ali. Depende do caso, se o caso for muito, muito sério ela pode
falar pra sua mãe, mas só se você autorizar.

Pascoal – E você sentiu... ela foi uma pessoa...

R. L. – ... que me apoio.

Pascoal – Qual o nome dela?

R. L. – Cassia.

Pascoal – Você tinha quantos anos?

R. L. – Foi com 15 e 16 anos. Dois anos.

Pascoal – Eu faço terapia desde 2011. 8 anos. É muito bom.

R. L. – É bom.

Pascoal – Me ajudou a não ficar mais louco do que eu sou.

R. L. – Aí, depois que eu saí, é ruim... porque comecei a trabalhar e era muito
tarde para ir pra lá e minha mãe não deixava.

Pascoal – Você tá trabalhando? Você estuda e depois trabalha?


273

R. L. – Estudo. Saio daqui e vou direto pro cursinho, e vou pra casa e às
vezes tem gente pra eu atender. Na semana. Mas de sexta-feira eu saiu direto do
cursinho pra trabalhar no salão.

Pascoal – Você não está mais no mercado?

R. L. – Não. Só às vezes quando tá muito pesado. Mas às vezes eu monto festa.


Eu trabalho no buffet da minha tia, daí eu saio de sábado, trabalho das 8 às 14 e das 14
até a última pessoa no salão. Às vezes eu saio 22h do salão. De domingo também.

Pascoal – E você descansa? Da meia noite às seis..

R. L. – É ... tipo isso...

Pascoal – Os professores que passaram na sua vida, tiveram alguma influência?


Tipo...

R. L. – O senhor e a professora Rosana de biologia.

Pascoal – Por quê?

R. L. – Porque ela sempre me incentivou, sabe? Ela era bem legal, a gente
conversava sobre assunto, e era bem legal. O senhor, que a gente já conversou muito
sobre o futuro e isso sempre me inspirou a sempre querer mais, as matérias que eu
mais ia bem. E que o professor se envolvia com o aluno, não era só tipo prova e
acabou. Porque a maioria só passa a matéria e não liga pro aluno.

Pascoal – E você acha que esse lance de ligar pro aluno é importante?

R. L. – Eu acho. Que o aluno se sente motivado.

Pascoal – Mas... por quê?

R. L. – Porque ele pensa que aquele professor ele está se importando com
aquilo, tem aluno que não tem atenção em casa, e se o professor dá essa atenção, ele
vai se importar com aquela matéria, e ele vai querer estudar aquela matéria pra deixar
o professor orgulhoso.

Pascoal – Então o afeto é importante.

R. L. – Pra mim, o afeto é importante.


274

Pascoal – O duro que hoje em dia os professores meio que esqueceram isso
né? Mas você não acha que tem algumas situações que deixa o professor meio
desanimado, tipo... a sala de aula...

R. L. – Tem... muito barulho deixa o professor desanimado, ou muita sala e ele


fixa estressado, vamos dizer assim, o professor que pega todos os anos, e todas as
salas são barulhentas, a pessoa acaba ficando desmotivada. Muito barulho, os alunos
não prestam atenção, e ele acaba relaxando.

Pascoal – Você acha que os professores... não cite nomes tá... algum professor
passou em sua história e que você sentia que ele não era preparado pra aquilo, e você
dizia: pô... esse cara não devia estar aqui?

R. L. – Tem.

Pascoal – Ele deveria estar em qualquer lugar, menos aqui.

R. L. – Sim. Porque pra mim ele não sabe dar aula.

Pascoal – Mas o que é saber dar aula pra você?

R. L. – É você ser dinâmico com o seu aluno, é saber ensinar. Você é


inteligente e saber das coisas é uma coisa, você saber passar pra outras pessoas é outra
coisa. Tem professor que é muito inteligente, mas não sabe passar pro aluno, passar
aquela coisa. Só chega na sala, passa meia boca e passa uma atividade... não é assim.
Ou faltar muito e dar uma atividade...

Pascoal – Faltou muito professor?

R. L. – Sim...

Pascoal – Mas não é bom? Vocês vão ficar de boas e taus...

R. L. – É bom entre aspas né... porque é bom ficar livre daquela matéria, mas
você tem que pensar que aquela matéria vai me ajudar daqui pra frente. Vai fazer
muita falta...

Pascoal – Então a gente viu o papel do professor, você falou que teve
professores que foram importantes outros não. Você tá indo pra essa profissão, mas
imagina só, você não vai ganhar muito dinheiro, não vai ficar podre de rica igual disse
o seu pai... mas você iria mesmo assim?

R. L. – Iria...
275

Pascoal – Vou fazer de novo a pergunta... você não vai ganhar muito
dinheiro, vai ter uma vida normal, vai ter que trabalhar... você iria..,

R. L. – Iria porque eu não estou indo pelo dinheiro em si, mas pelo trabalho
que eu acho lindo.

Pascoal – Você não vai pelo dinheiro, mas pelo sonho.

R. L. – É porque dinheiro assim, é uma coisa que a pessoa padronizou, nós


precisamos do dinheiro pra fazer as coisas, mas ele não está envolvido em tudo. Igual
eles colocam. Tem coisas mais importantes que o dinheiro...

Pascoal – Tipo?

R. L. – O amor... ajudar o próximo. Não se paga isso. O preço de amar uma


pessoa... tem uns idiotas sim... mas... que levam até pra França, mas não tá certo isso.

Pascoal – E... você olhando pra educação, não só o Galeão, mas geral. Como
você avalia a educação? Você acha que... tem um bom futuro... a educação tá
melhorando... tá piorando... a educação hoje...

R. L. – A educação não tá tão boa assim não. Pra mim, não aquele negócio
rígido de bater na criança, mas antigamente prestava mais atenção, os alunos. Você
pode reparar, tipo, minha mãe, os alunos prestavam mais atenção. Hoje é mais tipo
celular, brincadeira, essas coisinhas, as pessoas eram bem mais focadas do que hoje.
Era bem mais focadas.

Pascoal – E você acha que o celular é um dos responsáveis?

R. L. – Também. A internet.

Pascoal – Você não acha que, tipo, a questão familiar não pega?

R. L. – Muito aluno que não tem atenção em casa chama a atenção do


professor ou faz pra chamar a atenção dos pais. A ausência dos pais também prejudica
muito na escola. A pessoa está triste porque os pais não está presente e acaba não
prestando atenção na escola.

Pascoal – E por que você acha que o pai não estaria preocupado com a criança?
Mas vamos supor, sua mãe não vem na reunião, mas te dá casa, comida, roupa...

R. L. – Mas isso é o básico pra sobrevivência. Pra ser pai mesmo tem que dar
amor e carinho. Penso nisso. Vamos pegar, por exemplo, meu pai, ele nunca foi tipo
276

de muito afeto comigo, nem com as minhas irmãs. Até os 6 anos tava lá, porque
era o bebezinho caçula, depois cresce daí não conversa, quer saber de dinheiro. Se a
profissão vai dar dinheiro é isso e acabou... e tem que trabalhar pra ser alguém na
vida.

Pascoal – Essa frase é importante... você tem que trabalhar pra ser alguém na
vida... Ele faz o que. o seu pai?

R. L. – Ele é metalúrgico.

Pascoal – O seu pai é muito parecido com a minha mãe. Você vai trabalhar pra
ser alguém na vida. Não vai estudar, vai trabalhar.

R. L. – Acho que a partir do momento que você nasceu é alguém na vida. Só


vai melhorar. Só melhorar a sua vida no decorrer dela.

Pascoal – O que você acha que poderia mudar positivamente a educação?

R. L. – A forma como eles lidam com os alunos, porque pra eles é tipo mais
um aluno, mais uma pessoa que entrou na escola, tipo numerado. Acho que se tratasse
os alunos de forma diferente os alunos não seriam diferentes e assim na casa também,
porque não é só a escola que vai mudar uma pessoa.

Pascoal – Estado e família... não tratar o aluno como número.

R. L. – Porque o aluno se sente inferior... tipo um número.

Pascoal – Você gostaria de falar algo mais sobre educação?

R. L. – Acho que a tecnologia pode atrapalhar.

Pascoal – Pode atrapalhar?

R. L. – Pode. Porque eu tô lá no Google e eu posso pegar a resposta do Google.


Vou ser hipócrita se falar que não faço isso, porque eu faço, tipo o Braile. Só entrar,
colocar o enunciado e já tem a resposta. É mais fácil pegar a resposta do que a gente
tentar responder.

Pascoal – Mas tem um lado positivo, você tem a resposta.

R. L. – Mas em uma atividade com o livro eu não vou saber responder porque
não soube interpretar aquela pergunta. Só vou na resposta.... acaba deixando a gente
burro.
277

Pascoal – Você faz a mesma coisa do Google...

R. L. – E o que nos diferencia é a capacidade de refletir.

Pascoal – Então deveria acabar com a tecnologia. Chega de internet.

R. L. – Não, assim não. Se não, não posto meme. Vem da consciência das
pessoas. Tipo, vídeo-aula, acho uma coisa muito legal. Você não entendeu lá, vai lá e
assiste, fiz isso hoje pra fazer a prova de sociologia.

Pascoal – R.L... obrigado.

2. Discente F. G.
Pascoal – Essa conversa é pra me ajudar na minha tese de doutorado, em que
eu pergunto, até que ponto a educação ela é importante na vida das pessoas. E por que
eu escolhi você? Você é uma pessoa muito diferente, no sentido de engajamento, você
toca, tem essa questão da música, você tem uma história de vida de um baita vencedor
quando você me contou da sua mãe e do seu vô e tudo mais e eu queria saber de você,
você se sente preparado, tipo, você está no terceiro ano, vai acabar e ano que vem.
Você vai fazer o quê?

F. G. – Então, isso eu ainda não sei, minha meta é terminar meu curso de
inglês. Falta um ano e meio pra pegar o certificado internacional e eu falei pra minha
mãe que eu queria deixar a faculdade mais pra frente pra eu terminar esse curso. Pra
não ficar tanta pressão por cima. Daí o que eu faria? Trabalharia, ajudaria ela a pagar
meu curso, porque agora vai ficar um pouco mais caro. Então, trabalhando, fazendo o
curso que é só de sexta, e lá pra 2021 eu tento entrar em uma faculdade.

Pascoal – Então você vai continuar estudando, não uma faculdade. Mas por
que o inglês?

F. G. – Ah, porque é uma língua que boa parte do planeta fala, você vai pra um
país que fala o inglês mais a língua própria dele. E vários países tem isso.

Pascoal – E você tem vontade de fazer esses intercâmbios?

F. G. – Eu tenho. Tenho vontade de fazer intercâmbio no Canadá ou trabalhar


fora.

Pascoal – Mas porque Canadá? Austrália, esses lugares assim?


278

F. G. – É, então. Eu estava pesquisando os países assim e o Canadá é mais


como é o país em questões de violência devido o custo e benefício.

Pascoal – Mais em conta?

F. G. – Não é que é mais em conta, é que a maioria dos intercâmbios sai 5 mil
pra cima, mas o Canadá é completo em estrutura de intercâmbio.

Pascoal – Que legal. Que bacana. E alguma faculdade, algum curso você acha
legal? Você se vê fazendo alguma coisa...

F. G. – Eu queria fazer música... trabalhar por fora, como produtor, igual,


quando você vai pra um outro país e tem música você pode fazer trilha sonora de
filme.

Pascoal – Trilha sonora? Que da ora.

F. G. – Fazer de filme série, essas coisas.

Pascoal – E sua mãe? O que ela achou disso?

F. G. – No começo ela não gostou muito da ideia não. Ela disse: você vai fazer
e não vai dar dinheiro. Não vai ser uma coisa boa pra você no futuro. Daí eu pensei
em odontologia, em ADM, só que eu gosto mesmo da música, eu falei, eu falei, ah, se
eu engrenar em uma faculdade de administração tem muitas coisas também, mas eu
não domino exatas. Odontologia pode ser que eu gosto, mas eu tenho um pouco de
aflição de agulha, talvez impeça de fazer alguma coisa. Música eu já estou a três anos
tocando, e talvez engreno.

Pascoal – Música... e quem influenciou você na música?

F. G. – Então, meu pai gostava muito de rock, ainda gosta, eu acho, faz tempo
que eu não vejo ele. Daí eu era pequeno e ia na casa dele, ele ficava ouvindo Iron
Maden, Metálica, aí, eu comecei a gostar de músicas e tals, daí o tio dos meus primos,
da outra parte da minha família, ele toca em uma dupla sertaneja, fazia shows por aí,
só que daí parou. Quando eu era pequeninho eu gostava de brincar no violão dele,
porém, eu fiquei muito tempo sem ver ele. Daí chegou no meu último ano do
fundamental 2, daí minha mãe disse, quero te dar um presente, o que você quer? Eu
escolhi uma guitarra. Aí hoje eu não lembro o motivo de ter escolhido a guitarra, mas
aí gostei, fiquei dois anos sem tocar, daí voltei a tocar, agora a pouco. Falei no final
279

do ensino fundamental porque estava na sétima série, daí fiquei dois anos sem
tocar, e voltei quando estava engrenando no ensino médio.

Pascoal – Que legal.

F. G. – É bem maluco.

Pascoal – bem maluco. Eu comecei a tocar por causa de influência da igreja, da


família que eu fui criado. Um tocava violão, outro piano, outro sax e eu fui pro baixo.
Eu também queria ter ido pra música, mas minha mãe achava loucura fazer, tanto que
eu não consegui fazer música. E você acha que a educação que você teve, aqui na
escola Galeão, contribuiu pro seu sonho? Ou você acha que tipo uma coisa é sua vida
outra a escola?

F. G. – Educação em que parte? Respeito ou estudo?

Pascoal – Estudo. Depois você me fala um pouco do que você entende por
educação, mas agora do estudo.

F. G. – Pro meu sonho de fazer música não me ajuda muito, porque a gente não
tem música na escola. Igual quando eu comecei a tocar, eu vim nas suas aulas, no
primeiro ano eu brinquei um pouco nas aulas de artes, pra mostrar, eu conheci o Luiz
por conta disso. E aí a gente virou amigão. E no segundo ano era mais a gente. E foi
mais aqui que me ajudou por parte da música que por conta de amigos, do senhor.

Pascoal – Mas não a escola com conteúdo?

F. G. – Não, a escola em si com conteúdo não... ainda que agora melhorou,


porque o grêmio ajuda a fazer um show na hora do intervalo, tocar, dar uma
descontraída.

Pascoal – E vocês fizeram isso?

F. G. – Não, porque os moleques estão com vergonha. A gente ia fazer uma


intervenção de artes, mas aí deu um problema... muita vergonha, nunca toquei para um
público grande.

Pascoal – E educação, quando eu falo, o que vem na sua cabeça?

F. G. – Ou respeito, ou estudo. Eu penso mais como respeito. O que você tem


em casa e leva pra escola e leva pra vida toda.
280

Pascoal – Entendi. E se sua mãe estivesse certa? Normalmente mãe esta


certa, mas referente aos seus sonhos, vamos supor que ela esteja certa, escolher
música não vai te dar dinheiro, e aí?

F. G. – Se ela falasse que eu teria que para a música...

Pascoal – Agora só um sonho. Ela vai deixar você escolher. Você escolheu
música. Mas não vai dar dinheiro. Aí você se forma e não dá dinheiro. Já parou pra
pensar nisso?

F. G. – Bem pouco... aí eu já não saberia o que fazer. Faria alguma coisa mais
rápida pra trabalhar em algum banco, assim, e deixaria a música de lado, como um
plano b. Seria mais ou menos assim.

Pascoal – Hoje tem aqueles atletas que conseguem conciliar o atleta, o lado
atlético dele e uma profissão. A música e outra profissão. Eu por exemplo, dou aula
em vários lugares. Mas eu poderia tá conciliando a música com isso. Mas preferi fazer
da música um lazer. No meu caso um hobby. Tô velho, tem um monte de coisas. E os
professores aqui, sem citar nomes, teve algum professor que você disse, pô, que legal?

F. G. – Que tipo de legal? De pessoa?

Pascoal – Que te influenciou...

F. G. – Aaaa, sim, vários professores, vários, né...

Pascoal – E teve algum que você disse, putz esse cara não leva jeito.

F. G. – Tem um professor que eu até gosto dele, mas acho mais difícil de
entender a matéria com ele. É porque eu tenho dificuldade na matéria, eu acho que é
um ótimo professor, mas, às vezes, pra entender, com ele, não sei se é ele ou a
matéria, acho que do jeito dele explicar que dificulta pra eu entender.

Pascoal – Você acha que seus professores são todos preparados?

F. G. – Sim, todos preparados.

Pascoal – Que legal. Eu já tive a sensação de ter professor que não devia tá
aqui. E, você, olhando pro Filipe, você é satisfeito com quem você é?

F. G. – Hum... mais ou menos, eu acho que eu quando estudava em escola


particular, minha mãe dizia, você tá indo bem, mas eu comecei a relaxar.

Pascoal – Aqui ou lá?


281

F. G. – É tipo, na hora de passar, não sei se... porque é escola pública, a


visão que eu tinha antes, falo pra minha mãe hoje em dia, se eu pudesse teria estudado
em escola pública desde o começo. Aqui no Galeão pra você não ter que pagar os 900
paus que era a mensalidade da escola. Porque eu acho que compensou muito vir pra
cá. Além das várias coisas que eu consigo com a ajuda do governo, essas coisas, daí
eu achei bem melhor aqui. Porém, quando eu era mais novo, no nono ano, eu cheguei
aqui, olhei, uma escola pública, por ser mais novo e olhar para uma escola pública eu
achei que era bem fraco. Agora eu vejo de outra forma, eu gosto daqui pra caramba...
até falo pra minha mãe.

Pascoal – E você gosta daqui por quê?

F. G. – Ah, não sei, por causa dos professores, da estrutura da escola. Igual,
quando você fala de escola pública, tem uma lá perto de casa, e é só subir a rua e
chega. Minha mãe disse que não vai me deixar aí, porque é meio que podrão. Minha
vó entrou na escola pra votar e a escola era um lixo. Assim, bem relaxada, você vê os
alunos do lado de fora batendo, usando droga. Não que aqui não tenha, pode ter, assim
e tals, mas é bem menos.

Pascoal – É que a pessoa que frequenta a nossa escola é bem diferente. Você
vê pelos carros que vem deixar as crianças. Vir de carro pra escola pública já mostra
alguma coisa diferente... que legal que você alterou e, plano b fora inglês, fora a
música você não tem?

F. G. – Ainda não. É tipo, não sabe o que fazer, faz administração.

Pascoal – Eu fui isso, sabia. A minha primeira faculdade foi de administração


de empresas. Minha mãe era faxineira lá na Metodista e eu namorava uma moça filha
de um protético de São José dos Campos superimportante. E ele me perguntou o que
eu queria, porque eu tava namorando a filha dele. E eu disse que queria fazer
filosofia... e ele disse: filosofia não dá dinheiro. O mesmo discurso há 15 anos atrás, o
mesmo discurso. Minha mãe disse que pobre tinha que trabalhar e pra arranjar um
bom emprego era necessário fazer administração de empresas... passei no vestibular e
foi muito difícil pra mim porque meu ensino médio foi muito fraco, estudei a noite.
No meu segundo ano de administração eu fiz o curso de teologia. A administração me
ajudou a olhar as coisas, a organizar, hoje sou organizado muito por causa da
282

administração de empresas... você, olhando para as oportunidades que você teve


nos estudos, quem foi o maior culpado de aproveitar bem...

F. G. – Acho que meu foco e concentração... às vezes eu pego, vou estudar, dá


uma horinha, eu já canso e não consigo mais me concentrar. Praticamente, hoje o que
eu faço é a lição de casa, eu não me aprofundo mais, acho que é a concentração. Tipo,
às vezes quero jogar, tocar meu violão, guitarra daí eu me disperso.

Pascoal – Você tem coisas muito mais interessantes...

F. G. – Muito mais.

Pascoal – A educação você vê como uma coisa positiva, não essa de respeito,
essa de estudos, como você vê a educação hoje?

F. G. – Eu vejo como positivo, por conta do futuro, se a gente for olhar, pra tá
em um emprego agora, foi o estudo. O seu currículo tem que tá bem cheio de
informação de coisas que você fez, curso, e tals, então eu acho que a educação é bem
importante pra sobreviver agora, tipo, trabalho.

Pascoal – Você acha que se o Galeão fechasse agora faria falta pra alguém?

F. G. – Acho que sim.

Pascoal – Pra quem?

F. G. – Pros professores... é tipo, pros alunos, mas mais pros professores que
são concursados que tem o serviço permanente. Daí, acho que se fechar, vai ser mais
difícil chegar em outro lugar. Mais questão de emprego.

Pascoal – Mas pros alunos você acha que...

F. G. – Faria pros que mora perto, pros que não pode vir de carro, como a
gente citou, que seria melhor aqui, tem outras escolas, porém acho que a falta seria
dos professores.

Pascoal – Você vê algum complicador, alguma coisa que deveria mudar na


educação?

F. G. – Num sei...

Pascoal – Algum fator.... tipo, putz, isso tinha que mudar. Não tinha que ser
assim...
283

F. G. – Aí eu acho que mais na escola o que deveria mudar é o respeito dos


alunos para com os professores. A gente vê muito notícia de aluno matando professor.
Aluno entrando na escola e, fugiu a palavra, atentado, o que mais falta é o respeito dos
alunos pros professores.

Pascoal – E tecnologia?

F. G. – Tecnologia também. Eu tinha esquecido de falar disso. Mas vai ser o


ponto mais forte a partir de agora, porque se você for vê, carros estão mais
tecnológicos, estacionando sozinho, dirigindo, o celular você olha e já desbloqueia.
Então acho que a tecnologia, mais além disso, as escolas vão ter que desenvolver
tecnologia pra ajudar os alunos a seguir a vida.

Pascoal – Então tem essa disciplina sobre tecnologia robótica seria interessante
desde sempre né?

F. G. – Sim.

Pascoal – Mas você não acha que a tecnologia não está roubando a tipo, o
nosso papel de pensar? Você tem lá uma questão, você em vez de pensar, vai lá na
internet, digita e já sai a resposta. Você não acha que a....

F. G. – Também atrapalha um pouco. Tem aquele 50% bom e 50% ruim, né?
Que a gente diz.. mas vai mais do caráter da pessoa. Eu faço isso às vezes, porque
minha mãe diz que a gente tem que fazer alguma coisa, eu vou lá, dou uma pesquisada
porque tá mais corrido, pra alguns alunos, que essa com preguiça de fazer, vai lá,
lança na internet, respode e dorme. Eu acho que é mais do caráter da pessoa, também.

Pascoal – De como o caráter vai ajudar a pessoa a ajudar o recurso que ela tem.
Teria alguma coisa que você gostaria de falar sobre educação, se você pudesse falar
pra todo mundo agora, teria alguma coisa sobre educação?

F. G. – Ah, eu acho que teria.. mas minhas ideias hoje essa...

Pascoal – Tipo o valor dela, o papel dela, etc..

F. G. – O papel é muito importante, de ambos os lados que a gente falou.


Falaria pra todo mundo, ah, vamo supor, tem gente que não estuda, mas a gente
deveria fazer a vida toda, atualidade, aumentar nosso conhecimento, mas pra quem
não estuda, fazer a gente estudar pra ajudar a si mesmo.
284

Pascoal – Tem gente que tem o conhecimento e é nojento, né?

F. G. – Tem muito disso, meu vô não é o caso. Meu vô tem o básico do


conhecimento porque ele é analfabeto, porém ele bem rigoroso, nojento assim... difícil
lidar. Única coisa que ele pensa é dinheiro.

Pascoal – Que legal... qual é o nome dele?

F. G. – Benedito.

Pascoal – O Benedito deve ter tido uma vida difícil. Ele já é viúvo?

F. G. – Não... Mas minha vó e meu vô eles moram juntos não é divorciado no


papel mas cada um no seu lado.

Pascoal – Entendi. Mas na cabeça dele, o dinheiro é o foco dele. E o nome da


sua mãe?

F. G. – Marizeti.

Pascoal – Sua mãe também é assim?

F. G. – Ela é totalmente diferente. Ela fala que dinheiro é consequência. Ela


fala, igual, se eu puder te dar isso eu vou dar, mas se eu não puder, não tem o que
fazer. Ainda mais agora que ela tá desempregada, então a gente dá uma maneirada,
mas pra ela, igual, hoje a gente tá sem fazer nada, tem um pouquinho aqui, vamo sair,
vamo comer alguma coisa, vamo dar uma volta, gasta um pouquinho. É óbvio que é
bom a gente ter, guardar, conhecer culturas, igual eu quero fazer intercâmbio. Minha
mãe disse que se puder ajudar, guardar aqui, você pode fazer mais pra frente, mas
também tem que saber controlar os gastos, não gastar tanto e não segurar demais. E
meu vô já é segurar tudo.

Pascoal – Vocês moram juntos?

F. G. – Sim, eu moro com os meus avós e com a minha mãe.

Pascoal – Benedito... e o nome da sua vó?

F. G. – Minha vó é Nadir.

Pascoal – Nadir... Benedito e Marizete. Fill... obrigado viu, por você me


ajudar.
285

3. Docente R. M.
Nossa conversa foi feita no laboratório de ciências da escola Estadual
Senador João Galeão Carvalhal. Tentei conduzir nossa conversa de uma maneira
mais informal, considerando que foi um dia atípico na escola, sem aula
efetivamente e uma programação pedagógica, estiveram presentes apenas oito
alunos, tento dizer que não queria seguir um roteiro de entrevista, apenas
conversar.

Pascoal – Vou gravar a nossa conversa, vou transcrever e depois te mostro pra
ver se você vai deixar eu usar, tá bom?

R. M. – Tá bom!

Pascoal – Você planejou a sua vida?

R. M. – Eu?

Pascoal – É...

R. M. – A gente imagina, né?

Pascoal – Você imaginou tudo o que você está vivendo hoje?

R. M. – Não... não.. acho que as coisas vão acontecendo... eu acho que... é


assim né... vai te levando e quando você observa você já foi. E acho que as coisas vão
acontecendo sempre da melhor maneira possível. Como deve acontecer. Às vezes a
gente fala assim: nossa meu, porquê isso acontece comigo? E lá na frente você
percebe que foi uma coisa legal... eu acho, entendeu... eu acredito muito nisso. Eu.. eu
não queria outra vida hoje. Eu queria a vida que eu tenho... lógico com um pouquinho
mais leve, né? Porque todo mundo quer um pouquinho mais leve, né? Mas eu queria a
mesma família, eu queria o mesmo emprego, poderia tá ganhando um pouquinho
mais... mas queria o mesmo emprego, queria dar aula mesmo eu acho que a gente vai
se encontrando. Eu acredito nisso. Não sou frustrada em nada..

Pascoal – Mesmo sendo professora?

R. M. – Eu não sou frustrada.

Pascoal – Não? Mesmo sendo professora?

R. M. – Ahhh Algumas situações pode ser que gere frustração porque você
vem... prepara alguma coisa e de repente não dá certo aquilo, ou você ouve alguma
286

coisa que não deu certo, isso é normal, do dia a dia, em qualquer profissão então
não só como professora, né? Quando fala do salário, realmente é frustrante...

Pascoal – Doze e alguma coisa...

R. M. – ... e principalmente quando você... vai.. eu que tô com salário inicial...


é frustrante... eu ganhava mais como contratada... então isso.. é uma frustração né,
você ter a certeza que você vai pegar as aulas é legal, mas... se dedica tanto e o retorno
financeiro não é legal. Às vezes você tem o retorno do aluno... que é isso que te
motiva, né... na realidade... o não retorno financeiro é frustrante... mas não é a
profissão que me frustra... é o salário.

Pascoal – É superlegal ouvir assim... você falar que você é professora e não é
frustrada...estava conversando com outro professor agora a pouco e ele falou assim:
me enche o saco ver tanto professor frustrado, né... que tipo, não tem outra coisa pra
fazer e virou professor...

R. M. – É, faltou opção... faltou opção. Aaaa eu tentei ir pra tal lugar, tentei ir
pra tal lugar e não deu certo e acabei sendo professor. A pior coisa que pode acontecer
é ser professor então, bom... vou ganhar alguma coisa. Têm vários assim,... e
principalmente na área de biologia. Não é porque eu fiz estágio no zoológico porque
eu trabalhei na Sabina, mas nunca deixei de dar aula, você está entendendo?

Pascoal – Desde quando você fazia faculdade você...

R. M. – É... tinha que fazer o estágio né, daí uma coordenadora do Juarez diz...
porque você não entra (porque naquela época podia) em vez de fazer estágio, você
entra como professor eventual e você vai ganhando... aí eu falei, tá bom. Aí eu entrei
eu acho que como eventual é complicado mesmo, não é como eu me sinto hoje, mas
eu sempre gostei, porque tinha alunos que dizia... Aaa eu quero fazer biologia, porque
eu despertei.. tava lá nele, eu sempre... quando a pessoa tem um...

Pascoal – aptidão..

R. M. – ... e você desperta... aaa legal. Que nem por exemplo aqui. A Tiffany,
sempre quis fazer moda, sempre... quem deu aula pra ela no sexto ano ela sempre
falou que queria fazer moda.. aí ano passado ela teve aula comigo e ela quer fazer
biologia. E assim, e eu acho que ela explica super bem e acho que ela vai se dar muito
287

bem nisso, mas poxa, se ela quiser fazer moda ela faz, eu acho que ela não vai ser
uma pessoa frustrada. E eu acho que...

Pascoal – Você, tipo, contribuiu...

R. M. – ... despertou algo, entende? E eu acho isso legal e acho que isso motiva
a gente vir aqui todo dia, preparar aula, tentar fazer alguma coisa diferente. São os
alunos. Aí eu comecei e não parei depois que eu peguei a primeira sala que eu me
senti a professora.

Pascoal – Demorou muito pra você pegar a primeira sala?

R. M. – No ano seguinte, antigamente era tão fácil, era por pontuação, não
tinha divisão de categoria, tinha muitas salas, a escola que eu dava aula tinha de
manhã, de tarde e de noite, hoje tem só de manhã e uma sala de cada.

Pascoal – É o Juarez que você tá falando?

R. M. – É... eu comecei no Juarez, tinha muitas salas, tinha até o primeiro E à


noite, noturno. Então, hoje não tem nem noturno, então, tinha bastante e vários
professores eram estudantes, naquela época em que eu comecei... né... foi ontem...

Pascoal - Foi ontem...

R. M. – Aí, nossa, eu me identifiquei, aí eu fazia estágio, né. Meu estágio era


meio período, à tarde ia pro Juarez e à noite pra faculdade.

Pascoal – Caraca, você já trabalhava os três períodos...

R. M. – Sempre! Eu nem me lembro de não trabalhar os três períodos... ano


passado só que eu não trabalhei os três períodos .

Pascoal – À noite, né?

R. M. – É... e quando eu entrei na Sabina, eu já tinha virado O aquela categoria


que não tem direito a nada, né. Eu poderia ter largado, porque eu tinha um salário
muito bom lá, eu ganhava como assistente de educação do parque, entendeu? Eu tinha
um salário bom, mas eu permaneci no EJA do Rene Caram, 10 aulinhas, ia duas vezes
à noite pra cumprir as 10 aulinhas, porque eu gostava, entendeu? Tinha a minha filha
pequena, e tinha o motivo do desemprego do meu marido e tal tal tal.. daí era uma
coisa que eu gostava, porque eu acho que quem dá aula pro EJA... é completamente
diferente...
288

Pascoal – Eu gosto muito de dar aula pro EJA...

R. M. – É uma aula completamente diferente de tudo.

Pascoal – Eu tenho um carinho especial.

R. M. – Ah é... eles têm um carinho especial por você, é diferente. São gratos,
né?

Pascoal – Eles entendem a relação de professor e aluno.

R. M. – Formatura eles choram, eles te abraçam, eles querem receber o canudo


da sua mão... é engraçado...

Pascoal – Interessante a relação. Mas escuta, você queria sempre ser


professora?

R. M. – Não... eu não pensei... tanto que eu falei que a gente não planeja...

Pascoal – Você queria ser cartonageira?

R. M. – Cartonageira... não.. eu... por isso que eu falei, eu não planejei isso pra
mim, as coisas foram acontecendo. Eu planejei em trabalhar, sei lá, com tartaruga
marinha, sei lá, alguma coisa assim, sabe.

Pascoal - Quando você escolheu biologia era pra tipo, fazer uma coisa mais
importante do que dar aula...

R. M. – Não... dar aula é mais importante. Você está construindo um país, você
dando aula, você constrói a população... pelo amor de Deus, não é que seja uma coisa
mais importante, é uma coisa mais light, trilha... sempre gostei de mato eu sempre
gostei de trilha, eu sempre gostei dessa coisa natureza, então eu queria me enfiar
nesse... queria ser hippie, sei lá... eu era meio, no ensino médio eu já era meio riponga,
sabe, então eu achava que eu ia me identificar com o meio ambiente, e aí a engenharia
ambiental era muito caro, e aí a minha faculdade já foi escolhida já meio assim por
questões financeiras, né. Não, engenharia ambiental inviável, porque isso não dá pra
mim paga, porque minha mãe era concursada também.

Pascoal – Ela é professora?

R. M. – Não. Minha mãe era da faxina.

Pascoal – Que legal. Qual é o nome da sua mãe?


289

R. M. – Minha mãe é Wilma... com W.

Pascoal – Que legal, era a última da lista, inclusive.

R. M. – Então, minha mãe era da faxina e na época que tinha concurso, porque
agora é terceirizado, eu acho que minha mãe foi da leva do último concurso pra falar a
verdade, e então ela sustentava a casa, né, com o dinheiro dela, que é um salário
baixo... e três... tinha o meu pai, só que meu pai era mulherengo, ele ganhava mas não
arcava com as despesa de casa, ele gastava com a mulherada aí da rua, e aí então
quem sustentava mesmo, colocava comida era a minha mãe. Então, não tinha essa
possibilidade de pagar alguma coisa.

Pascoal – Ela é viva, a sua mãe?

R. M. – É viva graças a Deus.

Pascoal – Mora no campestre?

R. M. – Mora no campestre. Ela mora em uma casa alugada no campestre. Meu


pai já é falecido. E ela ficou ainda com o meu pai até o fim, né. Mesmo não
suportando, né... aquela coisa, mas vô fazer o que agora? Agora que ele tá doente... vô
cuidar dele, então, ela cuidou, mesmo, não sendo mais marido e mulher, mesmo de
respeito, como ele desrespeitou a vida inteira ela, quando ele precisou dela, lógico,
deu um abrigo, uma comida, lógico, mas não tinha mais nenhuma relação boa, assim,
né, ele lá e nada... mas isso foi uma construção, foi construído por ele. Até os filhos,
né, eu acho, quando falo os filhos eu e meus irmãos, eu ainda era a mais, né... que
falava, gente calma, mas é porque é construção, não é do dia pra noite que você muda
uma história, mas ela cuidou dele até o final.

Pascoal – Dona Wilma.

R. M. – E meu irmão que foi mais assim maltratado dele, foi que cuidou mais
dele, também. Porque eu já era casada e tudo né, e ele morava com eles, ele que
cuidada dele, que levada no médico e ele tinha diabetes, ele que limpava ferida, essas
coisas, e foi meu irmão que mais sofreu nas mãos dele. Que meu irmão tinha, é...
convulsão até os 5 anos, meu irmão do meio, e ele atormentava o bichinho, então, foi
sofrimento durante a vida. A gente tinha medo dele, que ele era muito bravo, muito
violento, não que ele batia na gente, mas ele gritava assim, e era assim uma coisa
muito assustadora. Então, isso foi foi e quando ele ficou... no fim da vida... fim da
290

vida? Ele tinha 67 anos quando ele faleceu, mas ele já tava cego, já tava, não batia
bem da cabeça, não falava coisa com coisa, ele chorava ai dava dó né, porque
ninguém mais.. ninguém mais se comovia com a situação dele... ele dizia, nunca fiz
isso, nunca fiz isso, sabe isso? E aí eu falo: será que ele sabia mesmo o que ele fez? A
gente não sabe, né, então, mas ninguém mais... cuidava dele e tudo, mas... é triste né, e
ele morreu de infarto fulminante. Meu irmão antes de sair pra trabalhar deu almoço
pra ele, porque o meu irmão, que ele judiou tanto, colocava a comida pra ele tudo ali,
ele almoçou, daí meu irmão saiu pra almoçar, porque ele trabalhava em uma escola da
prefeitura, ele trabalhava ali na vila Floresta, aí ele saiu, almoçou, deixou ele sentado
lá, e minha mãe voltava do Aristides Greve, que nos últimos anos antes de aposentar
ficava jogando ela de escola em escola porque não podia fazer mais faxina porque era
terceirizada, então, não podia mais mexer, não podia trabalhar na cozinha, não podia
nada, então ela ia pra resolver cruzadinha.

Pascoal – Que legal, cumprir horário.

R. M. – É... cumprir horário que pra ela foi quase a morte, então, ela chegou
era 17 horas, ele viu que o banheiro tava com a porta fechada, ela achou que ele tava
lá, aí ela foi fazer a janta, tal, e aí depois, ela achou estranho. O arroz pronto e esse
homem não saiu do banheiro, como ele tinha problema de visão, então a gente colocou
aquelas portas de correr, daí ela que encontrou... ela ficou extremamente traumatizada,
daí teve que sair da casa, e tudo, (interessante como a tonalidade da voz baixou
nessa hora) e ela não aguentava mais ficar lá. Mas foi assim... mas graças a Deus, eu
acho que Deus é tao bom...

Pascoal – ...que colocou a dona Wilma na sua vida que te influenciou a fazer
concurso público...

R. M. – Então, na realidade eu que influenciei ela, porque quando a minha


mãe, quando a gente era pequeno, a minha mãe era durona, parece durona, porque a
vida é durona, ela parece brava, mas não é, ela é um amor de pessoa, é, ela foi a
última dos filhos a casar, então ela ficou com o meu avô. E eu tinha um tio que tinha
deficiência que morava lá, então meu pai foi morar lá. Ela trabalhava na Black &
Decker e teve que parar de trabalhar..

Pascoal – ...pra cuidar da casa, do marido.


291

R. M. – É... e meu irmão mais velho não é filho da minha mãe, ele é filho
do meu pai do primeiro casamento. Ele tinha quatro anos. Eu também acho que minha
mãe casou com o meu pai por dó do meu irmão mais velho que morava ali na rua,
Ricardo. Ele ficava ali jogado o dia inteiro, andando pra baixo e pra cima e acho que
isso meio que mexeu com ela e ela acabou meio que, absorvendo. Daí ela teve o
Rogério. Que é meu irmão do meio, que tinha, ele nasceu com muita crise de
epilepsia, então ela não conseguia mais trabalhar, porque olha: um idoso, um
deficiente, uma criança e um bebê com epilepsia, muita coisa. E ela não conseguiu
mais, então ela parou. Então quando eu tinha uns 7 anos, aí a minha madrinha fez um
concurso na Crysler, e a gente falou: mãe, vai fazer, vai fazer, porque meu pai jogava
tudo na cara da gente, assim, né, então era muito, muito pesado. Mãe, vai fazer um
concurso. E ela, aa... mas... ela fez até a quarta série, porque antigamente era só até o
fundamental, a gente, meu, a gente não tinha o que vestir, você não tem noção, tem...
miséria total, quando fala, meu vô que plantava cana, plantava alface, plantava as
coisas, a gente comia o que era plantado, a galinha que matava, coisa assim, no
Campestre (bairro bom de Santo André) aí ela foi prestar concurso por causa da
gente. Aí ela fala, ah, eu não vou passar, quanto tempo que eu não estudo... e ela
passou e aí ela se efetivou no Padre Agnaldo, e aí foi, e foi, e aí que a gente começou,
que ela começou a melhorar, aquele contexto todo... daí o meu pai falava: o que você
ganha em um mês eu ganho em uma semana... só que ele não colocava aquele
dinheiro ali... e foi assim, foi assim, aí meu irmão, é... tinha dislexia, e quem
descobriu isso foi a professora Valeria que é efetiva daqui, e trabalha na DE, ela
descobriu, ele repetia, sei lá quantos anos ele repetiu a quinta série... e ele sempre foi
muito bonzinho, gostava de história, de filosofia, mas nessa parte de exatas, gente...
Não ia, e aí ele reprovava, reprovava, reprovava, sempre na... acho que ele fez uns 4
ou 5 anos de quinto ano, aí a professora Valeria que descobriu e meu pai não queria ir
pro psicólogo porque os pais precisam ir juntos, uma briga. E aí foi, e hoje ele é
concursado pela prefeitura de Rio Grande da Serra.

Pascoal – Que legal, professor também?

R. M. – Não, ele trabalha na parte de zoonose, ele não fez faculdade. Nenhum
dos meus dois irmãos fez faculdade.

Pascoal – Que legal, você é a universitária da família.

R. M. – É... e quando eu fui fazer foi uma briga.


292

Pascoal – Você estava falando em engenharia ambiental... sem chance?

R. M. – É, sem chance... porque quando eu entrei na faculdade.

Pascoal – Você fez a fundação?

R. M. – Não. Eu fiz... eu comecei ali na Amazonas, antiga UNIABC, perto de


São Caetano, aí eu trabalhava em uma fábrica de embalagens, na rua dos Coqueiros,
ela fazia essa cartonageira...

Pascoal – Sei a história da cartonageira.

R. M. – Então, eu trabalhava lá, a gente ganhava um salário mínimo né, e aí foi


que...

Pascoal – ... e na década de 70 devia ser uns...

R. M. – Aí eu vendia bijuteria também, ligava, o cara trazia e só pagava o que


tinha vendido e tal, e fazia pão de queijo de manhã. Daí eu ia lá no Atacadão,
comprava aquelas latas de pão de queijo, sabe, porque como as meninas sempre
tomavam café, eram 180 meninas, sei lá, na fábrica, então eu acordava cedo, assava o
pão de queijo, tinha dois fogões, fazia, levava no Tupperware quentinho, e as meninas
já estavam me esperando na esquina... e eu vendia muito, eu vendia... eu ganhava mais
com a bijuteria e pão de queijo do que na fábrica pra falar a verdade e aí foi, foi...

Pascoal – E o curso de biologia?

R. M. – Eu não fazia biologia, eu não estudava, eu trabalhava na locadora pra


rebobinar fita, depois que eu fui pra cartonageira... eu comecei a trabalhar com 14
anos na frente do Celso Daniel, tinha aquele negócia de fita... e foi, foi indo, foi indo...
e aí eu tô falando... eu sou muito agradecida, muito... eu sou extremamente agradecida
a Deus. Eu acho que eu tive. A minha infância foi muito boa, a gente morava em um
quintal onde tinha os meus primos, então a gente brincava muito, a gente brincava
bastante, tinha o meu vô, e meu vô protegia muito a gente.

Pascoal – E qual era o nome do seu vô?

R. M. – Cornélio...

Pascoal - Coitado...

R. M. – Cornélio... e minha vó Concheta...

Pascoal – Concheta e Cornelio.


293

R. M. – É...

Pascoal – A Concheta do Cornélio.

R. M. – É.. a Concheta eu não conheci. Mas meu vô, nossa, ele protegia muito
a gente. E aí ele morreu em 1990, ele morreu, aí foi triste, muito triste... e aí, que mais
que você quer saber...

Pascoal – Ele era uma referência, né?

R. M. – Ele era. De amor, de cuidado. A gente roubava aquelas balas Soft,


sabe? que a gente engasgava... e ele falava: tá vendo, Deus castiga, vocês roubaram
minha bala... risos, diante de uma lembrança querida... daí a gente vivia
engasgando... daí ele ia lá, puxava com o dedo lá na guela... daí fazia fila quando ele
recebia. O mais novo pros mais velhos. Ele dava... como chama? Mesada... aaai... num
dava pra comprar um café, mas fazia fila assim, sabe, e todo mundo ficava esperando
ele receber, ficava todo mundo na fila, aí ele dava... hoje seria, o mais novo 5 reais e o
mais velho 10. Assim? E a gente adorava. Eram 8 crianças no quintal, porque a minha
mãe morava na casa da frente com ele, aí no meio morava minha madrinha com 3 e no
fundo morava minha tinha com 2... minha outra tia, o quintal era assim, muito
movimentado. E foi assim uma infância maravilhosa...

Pascoal – Você colocou um negócio... foi uma infância pobre... você usou até a
palavra miséria... e maravilhosa... que legal né?

R. M. – Foi uma infância maravilhosa, maravilhosa, não troco minha infância


por nenhuma outra infância, de ninguém, porque a gente se amava muito, nossa... até
hoje, meus primos a gente é muito apegado, muito muito muito, eu não tenho
sobrinha, falo que a filha do meu primo é minha sobrinha, ela é prima de segundo grau
então, a gente ainda é muito apegado, se você perguntar pra qualquer prima ela
sempre vai falar, é as mais bonitas somos nós da família, sabe, a meu primo mais
inteligente somos nós, a meu primo é lindo, meu primo não sei que lá, a gente tem
isso, a gente se gosta muito e, meus primos também, acho que o baque da família foi
quando o primo que tinha a minha idade faleceu. Que a gente ia pra praia, a gente
tinha 17 anos, e a gente era muito arteiro, muita criança sempre muito arteiro, e tinha
aquela época do trem, do trem... e não sei se já te contei... (o clima da conversa
muda)

Pascoal – Já contou.
294

R. M. – Esse foi um baque, muito grande, depois disso meio que


desestruturou a família inteira pra falar a verdade. E até hoje, ele faleceu em 97, 96,
96 e até hoje a gente... ele tinha a minha idade, eu era um pouquinho mais velha que
ele, foi em novembro, ele tava indo pegar o salário, ele era office boy, pobreza né, aí
ele ia pegar dinheiro pra fazer matrícula na faculdade, que ele ia fazer direito e a gente
ia pra praia, porque a minha tia tinha um quitinete que não sei quantas mil pessoas
dormiam lá na Cidade Ocean, aí já tava um pouquinho melhor. Nessa época a gente já
tava achando que era rico, então, a minha mãe trabalhava, minha tia trabalhava
também, aí, meu vô já era falecido, meu tio Oliveira já era falecido, por isso que
minha mãe já tinha ido trabalhar, porque meu tio já tinha falecido, porque meu irmão
não tinha mais epilepsia, porque com 5 anos foi parando e parou de vez, então todo
mundo não queria ficar muito com a gente porque eu e o Rogerio tinha as coisas e o
pessoal e o pessoal tinha um pouco que sei lá.. eee... aí foi um baque, a gente ia pra
Cidade Ocean, a gente viu ele, então dia 13 é aniversario do Rogerio, novembro, então
a gente viu ele entrando, dia 13 à noite, a gente tava lá na frente, no portão, ainda
minha tia, que era minha madrinha, nossa eu lembro perfeitamente, eu perguntei:
porque você tá triste? Ela: ahhh... tô com uma angústia... a mãe do... tô com uma
angústia assim, tô com uma coisa, assim, não sei... não vejo a hora dos meninos
chegarem. E chegaram. Todos. O Fábio que era mais velho. Minha prima Rosangela,
que é preta que é loira – a gente chama ela de preta mas é loira – Preta e o Lula, que é
o Leandro. Na época todo mundo era petista, né, então era Lula o apelido dele, então a
gente tal, era aniversário do Rogerio, cantamos parabéns, tudo, daí de manhã, 8 horas
da manhã, ele era muito barulhento, grandão, barulhento e tal, aí ele saiu, a gente
escutava ele saindo, porque a minha tia tinha uma música pra cada, uma música pra
cada sobrinho, filho, era um som, tipo (na nana nana) tipo... aí ele sai meio sambando,
cada um tinha uma música, ou um grito, sabe, ela inventava uma coisa... o meu era
Princezinhanhanhanhanhanhanha (até eu chegar perto dela), sabe assim? Tinha uma
coisa pra cada um...

Pascoal – Ela é viva?

R. M. – Não... ela faleceu... depois que meu primo morreu...

Pascoal – ... continua falando do seu primo, depois você fala...

R. M. – Tá... aí.... o que aconteceu, a gente ouviu ele saindo, isso era 8h, daí
8h30 a gente recebe a notícia que ele morreu. 8h30 (a conversa fica baixa... e as
295

lágrimas começam a vencer) meia hora depois, foi triste demais né... até hoje
mexe com a gente.. então, é assim, a gente ia viajar. O bairro inteiro parou. O bairro ia
viajar, porque a gente era muito conhecido no bairro né, no Campestre, a gente jogava,
os meninos jogavam futebol na pracinha, ali em frente a igreja São Judas, minha mãe
trabalhava na escola, e nessa época ela trabalhou no Juarez, minha tia era merendeira
do Tocantins que agora é a Diretoria de Ensino, então todo mundo conhecia a gente,
todo mundo então assim, tava muito lotado, muito lotado, e era feriado. Ele morreu
dia 14 de novembro e o enterro foi dia 15 era feriado, mas eu acho que ninguém
viajou porque tava o bairro inteiro lá, o bairro inteiro. Foi triste demais, triste demais.
E todo mundo daquela época ainda lembre dele, sabe, porque ele é muito barulhento,
ele era muito animado, a gente sempre foi muito animado, quem era mais calmo,
quem é mais calmo é meu irmão Rogerio, que ele é o mais calmo, mais centrado, o
resto é tudo bagunceiro, muito bagunceiro, meu irmão Ricardo, ele é perturbado e
bagunceiro, então a gente é muito bagunceiro, fala muito alto, fala demais.

Pascoal – Você fala alto e fala demais? Nããão!

R. M. – E assim, você vê em reunião de família parece que tá tendo assim, uma


coisa...

Pascoal – ...que todo mundo tá brigando...

R. M. – ...mas a gente só tava conversando só...

Pascoal –Qque interessante... minha família também é assim, na hora que você
vê, tá tudo... parte de mãe no caso.

R. M. – E quando ele morreu, minha tia era muito barulhenta também, meio
que apagou... mesmo assim ela tentou... ela tentava, você via que ela tentava, ela teve
uma depressão muito forte, né, que assim, lá, o banheiro era fora da casa, no quintal, e
a gente tomava banho de porta aberta, e aí o pessoal sentava na porta pra conversar,
menos o Rogerio que fechava... mas os meninos da minha prima que eram mais velhos
que eu, era tão normal aquilo, entre a gente hoje a gente pensa.. meu... tudo
adolescente, e primo pode ficar com qualquer primo né... mas a gente não, a gente não
ficava.. então a gente tomava banho com a porta aberta e eles ficava tudo sentado
assim conversando, entendeu, assim, porque era um cubículo o banheiro, porque num
sei que lá... (o clima da conversa já ganhou sorrisos) tinha plateia. Era meio assim,
entendeu, e... e aí... só o meu primo Fábio tomava com a porta fechada, meu irmão
296

Rogerio, o Ricardo não, era o mais velho e o mais sem vergonha assim, então a
gente foi criado meio assim, jogado, sei lá...

Pascoal – Daí ela...

R. M. – ...então, ela ficou mal né... e aí mesmo, assim, ela, desenvolveu um


câncer, cuidava... ai ela viveu uns 5 anos tentando superar, daí vinha um câncer ela
cuidava, daí vinha outro câncer, ela cuidava, daí ela tinha medo de fazer
quimioterapia, aí eu saía da escola e ia pra lá, eu ficava na quimioterapia, ela fazia na
UNIMED...

Pascoal – Você já tava dando aula?

R. M. – Já... porque ela ficou 5 anos depois né.. e praticamente eu comecei a


dar aula...

Pascoal – Você saiu do colégio e foi pra faculdade?

R. M. – Praticamente, é, não é, não... é que no primeiro ano de faculdade você


já podia dar aula. Entendeu? Então eu já dava aula, no primeiro e segundo ano ela já
tava com câncer. Eu saía da escola e ficava com ela no dia de quimioterapia, porque
era uma vez por mês ou a cada 5 dias não lembro direito, e eu ficava com ela, lá, no
dia da químio e todo mundo da escola já sabia que eu não ia ficar. Porque a minha
prima trabalhava na Jhonson Controls, a filha dela, e meu primo ele trabalhava na
OCOa em são Caetano e o meu era o único que...

Pascoal – ...mais flexível pra tá junto.

R. M. – É.... fiquei... daí eu ficava lá com ela, o dia inteiro, porque ela
vomitava e tal tal e eu nunca tive nojo dessas coisas assim, a Preta, a minha prima
dizia: você vai com a mãe? Eu dizia... vô... então assim era praticamente que tinha...
assim no fim, no último ano, no ultimo mês, quem ia muito lá era a minha prima Paula
que era da última casa. Quando o meu primo morreu minhas tias já não moravam mais
lá.... elas estavam na minha infância. Quando o meu primo morreu eu já tinha 17 anos,
então, minha tia já tinha saído, a Paula já tava casada e até com filho já, então a Paula,
a Paula que ficava lá, porque ela não trabalhava. Daí fazia a unha, minha tia nunca foi
vaidosa, qualquer coisa tava bom pra ela. E ela que ficou, quando o médico disse, olha
pode vir visitar que não tem mais jeito, também foi muito triste mas o sofrimento dela,
meio que foi preparando a gente. E ela antes de ir, deixou uma carta dizendo ande
297

estava as coisas, que era pra cuidar não sei que lá, que era pra passar a
aposentadoria dela pro meu tio, ela deixou tudo certinho assim, e ela não era
organizada, mas eu acho que ela sabia, e ela falou lá.. e eu não gosto nem de ler...
(novamente o choro) que estava preparando que ela tava super-feliz porque ela sentia
muita falta do meu primo e tal tal tal tal.. tanto que não era pra ninguém chorar, que
ela tava indo em paz, que não sei que lá... só que ela falou pra gente abrir o envelope
depois se acontecesse alguma coisa, né? Então, isso foi muito... as lágrimas foram
mais intensas... deixou uma carta pra cada um... então foi muito... foi muito
impactante, mas ela tava sofrendo demais. E acabou que a minha prima não meio que
sozinha, né. E aí foi isso...

Pascoal – Sabe o que você me fez lembrar? A minha tese de doutorado tem um
diálogo do Alcibíades que era o amante do Sócrates. Ele faz uma pergunta pra
Alcibíades que eu vô fazer pra você: você desejaria viver com aquilo que você já
possui ou morrer se não lhe fosse possível conquistar mais nada?

R. M. – Eu queria viver com o que eu possuo... eu tenho um... graças a Deus,


todas as pessoas que estão a minha volta estão com saúde, né, eu tenho a pessoa que
mais me ama no mundo, que é a minha mãe.

Pascoal – Dona Wilma...

R. M. – É... ela com certeza é a pessoa que mais me ama no mundo, não tem...
os filhos amam sim... mas amam até uma certa idade, depois eles acabam casando,
tendo filhos, daí que eles descobrem o verdadeiro amor, né, porque a gente só
descobre o verdadeiro amor depois que tem um filho. Porque depois que você tem um
filho...

Pascoal – ...tudo muda...

R. M. – ...tudo muda né... então assim, mesmo as brigas que você tem, você
fala, meu... é difícil ser mãe, ser pai...

Pascoal – ...ainda mais quando você percebe que com tão pouco ela fez tanto,
né... se você vê que ela foi até o quarto ano, como você disse, que estava trabalhando
e deixou de trabalhar pra cuidar do irmão e do pai, e menino pequeno...

R. M. – ...então assim, e ela tem aquele jeitão de brava, mas acho que é a vida,
ela não é, ela não é...
298

Pascoal – Então, você acha que tem tudo... se você não fosse conquistar
mais nada...

R. M. – ...eu queria viver e viver tranquilamente...

Pascoal – ...e não queria morrer.

R. M. – Lógico que não! Eu tenho minha filha com saúde, que eu acho que o
que acaba com pai e com a mãe acho que é um filho sem saúde, porque filho doente é
complicado, não estou falando de deficiência não, porque se Deus me mandasse uma
criança com deficiência é porque eu conseguiria levar isso perfeitamente, então,
lógico que seria mais difícil, mas se Deus mandasse uma criança com deficiência,
lógico que eu iria cuidar com todo amor. Minha filha, graças a Deus, é saudável de
saúde, não tô falando de deficiente, e lógico e não tem deficiência nenhuma. Tem o
meu marido, que a gente se dá muito bem, né, porque eu acho que a gente só descobre
que tem um casamento sólido só quando a gente passa por dificuldades. Porque
quando a gente tem dinheiro e pode viajar fica muito fácil, né, mas quando a gente
passa por grandes dificuldades é que a gente descobre se ama ou se não ama, porque
também você chegar em casa, depois de um dia trabalho e a luz tá cortada, é
complicado né, então você só descobre o verdadeiro amor só quando você tem a
dificuldade lá, porque com dinheiro é fácil, é fácil, você ficar vamo no sei que lá,
vamo no... vamo no resort, aí é fácil, agora, no pega pra capa, vamo contar pra ver se
dá pra comprar pão, aí que você vê... meus irmãos que amo de paixão, amo meus
irmãos, assim, nossa, meus irmãos é tudo pra mim, a gente se ama, né, minha sogra e
meu sogro presente, eu ganhei um presente, minha sogra e meu sogro é um presente
pra mim, eu fui muito abençoada. Muito abençoada com minha sogra e meu sogro.
Minha sogra é fantástica, meu sogro um amor, são pessoas do bem, coração
maravilhoso, tudo o que eles puderem fazer por mim eles fazem, sabe, é tudo o que tá
no alcance, né gente, é que a vida, quando a gente fala assim, as pessoas julgam muito
a vida através do dinheiro, vivemos em um país capitalista, consumo, a gente ali, a
gente tem muito amor, entendeu? O dinheiro é o que falta, mas o que a gente tem
também, nossa, eu não posso reclamar, graças a Deus não falta nada, nem na casa da
minha mãe, nem na casa da minha sogra, nem na nossa casa... então, você vê é meu
núcleo, ele tá bem...

Pascoal – Nada disso que você conquistou tem relação com a educação, ou
tem?
299

R. M. – aaaa....

Pascoal – Escola... formação.... você acha que...

R. M. – Eu acho que tem também, né, eu acho que assim, é, eu acho que o que
é importante é ter saúde, mas através da escola, ganhando pouco ou não eu consegui
pagar a minha casa, a gente comeu ovo, mas a gente tinha um teto pra tá dentro. Né,
então, eu acho difícil você não ter onde ficar. Meu trabalho, meu serviço que me
proporcionou que eu pudesse ter um teto pra morar, é... o renascimento, ele fica mais
fácil quando você sabe se relacionar com os outros. Ano passado eu tinha 720 alunos,
então algumas coisas você compreende melhor porque você acaba vivenciando na
escola e acaba relevando algumas coisas, porque não é assim, e muitas coisas eu olho
pro aluno, eu penso... se fosse meu filho eu faria desse jeito? Porque tem hora que
você olha e você tem vontade de dar um grrrr... mas se uma professora fizesse isso
com meu filho eu não iria gostar. Então, vamos tentar ser diferente, então eu acho que
uma coisa auxilia a outra. Eu acho que depois que eu tive a minha filha eu também, eu
fiquei mais compreensiva mais com eles, eu fiquei mais compreensiva com eles...
aaa.. num sei, eu acho, eu acho que tem a vê também, tudo tem... não tem nada que
não esteja ligada, acho que tudo não esta amarrado, isso é isso... não não tem. Acho
que tudo tá amarrado. Eu também não consigo mais dar aula pra PEB 1 porque
antigamente eu não sofria tanto, e agora eu sofro demais...

Pascoal – Você quase chorou umas 7 vezes, só conversando comigo

R. M. – É... então, eu tenho esse problema...

Pascoal – Não tem estômago também pra ajudar...

R. M. – Não, não tenho também... Então, não é questão de ruim, não... mas
acho que tenho sensibilidade demais... é demais.. mas eu nunca chorei em sala de
aula...

Pascoal – Nunca?

R. M. – Não...

Pascoal – Meu Deus... você não tem coração... Mas pra gente terminar,
terminar mesmo, educação, pra você, nessa sua trajetória de quase 40 anos de
magistério, 40 não, mas você já tem quase 20 né?

R. M. – É... 18...
300

Pascoal – 18 anos de ensino... você já se formou há quase 18 anos,16 anos.


Como você vê a educação, olha a educação?

R. M. – Então, eu acho que educação você tem que ter a base, e todo mundo
fala isso, mas a educação é base de tudo, eu acho que tem que melhorar muito, só que
a educação é um todo, não é só a escola, é a família também, eu acho que a família é a
base principal, a escola não faz milagre, não sei se é isso que sua pergunta tá...

Pascoal – Quero saber o que você acha... só isso.

R. M. – Eu acho que a educação é extremamente importante, todo mundo tem


que ter acesso, o direto a uma boa escola, a uma boa estrutura, mas também não é só
isso, eu acho que tem que ter é, uma família presente, isso enriquece, uma vivência,
porque hoje em dia eu acho que precisa melhorar muito, acho que a tecnologia é muito
importante, mas acho que falta esse negócio, o tato o afeto, acho que isso auxilia na
educação. Acho que as crianças estão muito largadas, tão muito... o largar de
antigamente é muito diferente do largar hoje, que nem, quando eu era menor, quando
eu era criança, vai, depois dos 9 anos que minha mãe foi trabalhar, minha tia foi
trabalhar, era criança cuidando de criança, então se você for ver, nos dias de hoje, a
gente era largado, mas era diferente. A gente era largado em termos, né, a gente tinha
uma estrutura familiar, um cuidava do outro? Cuidava. Mas era um amor, tal. Hoje, a
criança pode tá com a mãe dentro de casa mas nem se conversa, acho que falta essa
coisa, esse apego, acho que falta, educação acho que é um conjunto, não adianta, você
não caminha só, a escola não faz milagre, tem que ter, tem que amarrar isso aí, a
família, a sociedade, e as pessoas têm que olhar um pouquinho pro outro, só pensa em
si próprio.

Pascoal – E sabe o que eu acho muito bonito no que você tá falando? Porque
eu perguntei pra você.

R. M. – Objetiva né? Eu não sou...

Pascoal – Não, com uma coisa você revelou exatamente o que é educação
quando você falou da dona Wilma, quando você falou do seu pai, quando você falou
do seu Cornelio, da dona Concheta, quando você falou da miséria, quando você falou
do amor, você pra falar da Rosana, você falou do todo... e parece que educação é
exatamente isso pra você...

R. M. – É o todo, é o todo. E... aí...


301

Pascoal – Você sorriu, você chorou... você lembrou e você quis esquecer,
que legal isso.

R. M. – Eu sou muito manteiga derretida, acho que todos lá em casa são assim,
manteigas derretidas.

Pascoal – A parte boa é que a dureza da vida não te fez uma pessoa estúpida,
mas uma pessoa sensível.

R. M. – É... eu acho.

Pascoal – E nós precisamos de um mundo com pessoas sensíveis.

R. M. – É... eu acho ... eu acho... acho que é muita sensibilidade, mas poderia
ser um pouquinho menos... ia me ajudar, porque tudo eu choro...

4. Docente J. A.
Conversa com professor J. A.

Exponho meu arcabouço teórico, pergunto:

Pascoal – Você planejou chegar aonde você está? Teve um roteiro?

J. A.– Não. Nunca planejei. Nunca parei para planejar, a ordem natural das
coisas, casar, ter filho, profissão, tal.

Pascoal – E como é que aconteceu?

J. A.– Foi natural. Tipo, até a faculdade foi natural. Eu não tinha ideia do que
ia fazer na faculdade. No terceiro ano. É difícil saber. Mas minha primeira opção foi
física e a segunda era história.

Pascoal (riso) – Tudo a ver...

J. A.– Eu acho da ora os dois, eu ainda vou querer fazer faculdade de história.
Eu ainda quero fazer história.

Pascoal – E eu quero fazer de física.

J. A.– Acho muito louco história, às vezes eu vejo esses fatos históricos e me
sinto meio idiota por não saber algumas coisas. Eu estudo história por prazer. Mas eu
não...
302

Pascoal - Inclusive você me emprestou aqueles livros lá que eu ainda não


devolvi que é de história. É de um físico, mas é de história.

J. A.– Tanto é que a parte que eu mais gosto da física é a história da ciência,
acho muito louco isso, o nascimento da física com a filosofia, o começo da
humanidade, desde que o cara olhou para o céu e começou a plantar e colher na época
certa né, tal. Mas eu comecei a curti mais física foi no terceiro ano. Tinha um
professor que fazia uns experimentos lá e eu achei muito louco. E eu comecei a ir
bem.

Pascoal – Você estudava onde?

J. A.– Eu estudei em uma escola que chama Viva a Vida, em São Bernardo.

Pascoal – É particular?

J. A.– É. Estudei o ensino médio no particular e o ensino fundamental no


público.

Pascoal –Era municipal, aí?

J. A.– Era do Estado.

Pascoal – E esse professor fazia experimentos?

J. A.– Ele fazia, cara. Mudou de professor. Tinha um professor que era bem
tradicional, tinha aula tradicional, mas tinha experiência e eu achei da ora.

Pascoal – Isso foi determinante pra você...

J. A.– Foi. Isso, tipo, determinou minha vida. Eu entrei na faculdade de física e
eu achei da ora mesmo. O primeiro ano eu falei isso é muito louco, isso é o que eu
quero. E no segundo ano eu entrei no estágio na Sabina. E a Sabina foi a melhor coisa,
melhor que a faculdade para mim.

Pascoal – Foi aí que você conheceu a R. M.?

J. A.– A R.M entrou depois, ela não foi fazer estágio lá né. Acho que a Rosana
era formada já. Ela se formou em oitenta e um rs...

Pascoal (risos) – ... oitenta e cinco... vai ser muito legal quando eu transcrever,
e você conheceu a sua esposa.
303

J. A. É, foi lá que eu conheci a minha esposa. A gente estudava na FAFIL,


na Fundação, era no mesmo prédio. No anexo da FAFIL. Ela estudava em uma parte
do anexo e eu na outra, mas a gente nunca se encontrou.

Pascoal - E ela é de física também?

J. A.– Ela é biologia.

Pascoal – Aaa tá.

J. A.– É que o prédio de biologia, química e física era junto. Aí a gente se


conheceu lá (Sabina) e tamo até hoje.

Pascoal – Os experimentos de um professor....

J. A.– Então, o Sabina achei muito louco assim na parte experimental.


Trabalhei para uma empresa que fazia os experimentos da parte científica para o Cata-
vento pra Sabina. Então eu acabei montando essas experiências e isso foi melhor que a
faculdade pra mim. Porque a faculdade às vezes era aquilo, você pega o livro e vai ler
lá sobre aquele experimento saber o que ele faz e calcular o que ele faz.

Pascoal – Lê o livro, calcula...

J. A.– ... é... e lá não, lá como conciliava com a faculdade às vezes o


experimento que a gente fazia acabava calculando na prática, assim.

Pascoal – Que legal.

J. A.– Era da ora. Chama Ciência Prima a empresa;

Pascoal – Você trabalhou nesse lugar depois?

J. A.– Trabalhei. Trabalhei no projeto no dono da Ciência Prima que é o


professor Anibal. É, e aí é muito louco o projeto, a gente trabalhava com quarto e
quinto ano da prefeitura. A gente fazia experimento com quarto e quinto ano. A
meninada ganhavam livros e tinha o passo a passo. Eles ganhavam um kit e iam
montando a partir do passo a passo. Era muito legal!

Pascoal – “Que dahora”!

J. A. – A politicagem acaba com tudo, né?

Pascoal – Por quê? Teve o quê? Esse projeto acabou depois que mudou a
prefeitura?
304

J. A. – Funcionou durante quatro anos. É que ele era um projeto da


Secretaria da Educação, no Sabina. Na verdade, não era da Sabina em si, né. Só
funcionava lá dentro.

Pascoal - Era da educação do Estado?

J. A. – Da prefeitura de Santo André.

Pascoal - Daí teve mudança de partido, não foi?

J. A. – Então, depois que mudou o partido a gente ainda continuou. Mas, meu,
depois que entrou o Aidan. Acabou tudo, assim. Ele queria acabar com a Sabina. Ele
falava na nossa cara, assim, que queria acabar. Ele chegava assim na Sabina, a gente
tava fazendo o evento, ele dizia: esse aí é o projeto que vai acabar? E tal... como ele
aparecia ele era bem, bem trouxa...

Pascoal – Que cara desagradável.

J. A. – Muito desagradável. A gente tinha um amigo que era fogo, o Renato,


ele falava. Esse é o prefeito que vai perder?

Pascoal – (risos)

J. A. – Ele ficou mó sem graça. Acabou o projeto e ele perdeu. Aconteceu os


dois.

Pascoal – Profético o negócio.

J. A. – Mas era da ora essa época, veio.

Pascoal – E você veio pro Estado, daí?

J. A. – Meu, foi uma coincidência. Eu nunca tinha prestado concurso pro


Estado. Num dava aula, dava aula mas era perto de casa, quando alguém falava que
tava precisando de professor lá, eu ia, pegava duas salas, quatro salas, eu dava
pouquíssimas aulas. Que quando eu trabalhava na Sabina, boa parte do tempo eu
trabalhava no Observatório de Diadema, então.

Pascoal – Então, nunca era aula, era sempre..

J. A. – Não, era sempre ensino não formal. Eu trabalhei a maioria, agora não,
né. Eu tô há cinco anos aqui. Mas eu trabalhei boa parte da minha vida, desde 2007,
praticamente, no ensino não formal.
305

Pascoal – Mas você tinha contato com as crianças, né?

J. A. – Tinha. Tinha com o professor também. A gente dava formação para o


professor lá em Diadema, quem a Oba né, que é a Olimpíada Brasileira de Astronomia
e a gente dava formação pra eles irem trabalhar com os alunos. Em astronomia e tudo
mais. Era muito louco, lá. Era o sexto maior telescópio do Estado. Fazíamos
observações legais, tinha foto legal de Júpiter, Saturno.

Pascoal – Eu tenho 31 anos e nunca olhei em um telescópio.

J. A. – Às vezes eu faço observação do Sol aqui na escola.

Pascoal – Com os alunos?

J. A. – No primeiro ano. No segundo semestre eu trago o telescópio aqui no


pátio e tem o filtro solar, né, aí a gente faz observação do Sol.

Pascoal – Todos eles olham? Deve ser, tipo, a primeira experiência com um...

J. A. – Tipo, é assim, não é um telescópio solar, tá ligado, o telescópio solar


você consegue ver igual na Lua, ver que o Sol tem curvatura, tal. A Lua a gente olha
parece um disco, né.

Pascoal – Parece.

J. A. – Olhando pelo telescópio você consegue perceber o detalhe, a curvatura.


Eu comecei, eu coloco um papel, tipo um filtro em frente da lente e parece que ela se
projeta, praticamente, no papel, então só forma um disco. Mas já dá pra ver mancha
solar, dá pra ver uns detalhes legais.

Pascoal - Nossa, que legal.

J. A. – Aí tem o telescópio solar, mas esse telescópio é uns 6 mil, 7 mil. Aí dá


pra ver com uma qualidade muito melhor. Que aí a própria lente é o filtro, né.

Pascoal – Desculpa a pergunta. De dia, de noite tanto faz olhar?

J. A. – Não, só quando ele aparece. Quando ele está na visão já é meio ruim de
ver. Porque no horizonte tem a atmosfera daí dá turbulência, ele fica meio dançando,
zuado, qualquer coisa que tá no horizonte é ruim de ver até com o céu limpo.

Pascoal - Nossa, que louco, né? Sua vida foi por um caminho que não foi
programada. E não foi, tipo: vou fazer física, vou trabalhar no Sabina.
306

J. A. – Não. E acabou que foi da ora, assim. O concurso eu prestei em


2011? Não lembro quando. Eu entrei em 2014, acho que foi o concurso foi em 2013.
Eu passei em uma posição boa. Passei em 6º ou 7º. Fui na primeira leva do concurso.
Eu brinco que em 2012 a ciência acabou, daí eu perdi o emprego. A sorte é que aula
de física sobra.

Pascoal – Esse ano não. Esse ano acabou tudo.

J. A. – Acho que muito “F” de matemática teve que pegar essas aulas. Daí eu
fique como O o ano todo. Meu, foi um azar, acabou o brinca ciência e o observatório a
prefeitura encerrou o contrato. Fiquei ferrado, assim...

J. A. – Um ano de PT na sua vida, perda total.

J. A. – Foi zuado. A sorte que a gente já tinha financiado a casa. Se eu perdesse


o emprego um ano antes, não tinha saído o financiamento. Porque não ia ter como
comprovar renda. Não ia ter salário. Assim, fiquei praticamente um mês, nem um mês
desempregado, porque tinha uma escola perto de casa. O Marajoara 2.

Pascoal - Eu dei aula lá ano passado.

J. A. – É, eu lembro que a gente comentava. Eu gostava daquela escola. Foi


uma das melhores escolas que eu já dei aula. É, aí eu acabei dando aula lá e
ingressando aqui.

Pascoal – Em 2013 eu só dei aula como eventual, porque eu não tinha ainda
habilitação como filosofia. Então só fui...

J. A. – Eventual é muito zuado, né cara.

Pascoal – Daí o ano todo de 2013 como eventual, e em março de 2014 peguei
umas aulas na área de filosofia e em julho efetivei no Estado como professor de
filosofia. Mas 2013 foi difícil.

J. A. – Ser O é embaçado, ser O, assim, é menos pior do que ser eventual.


Eventual você entra em qualquer aula, mas ser O... você não tem direito a nada. Tem o
direito de ficar calado lá, fora que quando acaba, você descobre que você caiu em uma
quarentena. Aí os caras acabam o seu contrato dia 20 de dezembro, daí você não tem
férias, não tem nada... você volta em fevereiro, mas, tipo, você perdeu todos os seus
direitos. É zuado.
307

Pascoal – Agora é quarentena, antes eram 200 dias.

J. A. – É quarenta, mas acho que se você fica mais um ano, acho que fica 200.

Pascoal – Ah é?

J. A. – É. Acho que tem essa. Não sei se tem mais ou caiu. Mas antes eram 200
direto... a eles tem essa para economizar dinheiro, só pode ser né, veio?

Pascoal – Por que não tem outro sentido né?

J. A. – Não tinha direito a IAMSP, não tinha direito a nada.

Pascoal – Ainda não tem. O O não tem esse direito. Isso é muito triste.

J. A. – O IAMSP, mano, por mais que seja no Ibirapuera, não é ruim, minha
esposa fez pré-natal lá, e não é ruim.

Pascoal – O meu também.

J. A. – Ainda que seja no Ibirapuera é bom.

Pascoal – Ainda que pra fazer o pré-natal você tem que faltar na aula.

J. A. – Se você pegar o ano de 2015 eu tenho muita falta. O ano que ele
nasceu. Todo mês tinha uma falta pelo menos. Porque tinha que ir lá. Depois que ele
nasceu, tivemos algumas complicações. Ele perdeu peso, ficou 20 dias sem fazer coco.

Pascoal – Ah é, você me falou isso mesmo.

J. A. – Aí foi complicado. Quase internou.

Pascoal – Eu lembro quando a Maria Julia nasceu eu ficava preocupado. Ela


fez coco... fez.. ufa.. porque você tinha me dito.

J. A. – É, ele só tinha feito no hospital. Ai ele só chupava só a primeira parte


do leite, que é mais docinha, e a outra é mais gordurosa e ele era preguiçoso e só bebia
a primeira parte. O corpo absorvia só a primeira parte, e não mandava nada pra fora.
Meu, toda semana eu faltava, pra ir no médico. E a gente tinha uma diretora aqui, a
dona Ilka, ela me deu até injustificada, e eu descobri isso com o Val. Ela me deu
injustificada, eu mostrando atestado e tudo mais... às vezes depende da boa vontade da
pessoa se ela tá em um dia feliz ela justifica.

Pascoal – Eu fico pensando que quando você foi o oprimido e passa a uma
situação de poder, porque a direção é poder, as pessoas mudam.
308

J. A. – Até na coordenação... não é nem na direção.

Pascoal - Cara, é muito louco o professor ter sido... você lembra o nome dele.

J. A. – Arthur.

Pascoal - Você tem contato dele?

J. A. – Eu via ele às vezes quando eu trabalhava na Sabina que ele levava a


escola lá.

Pascoal – Nossa que legal. Deve ser muito louco ter uma pessoa.

J. A. – Ah sim, eu dei um pouco de sorte porque poderia ter sido um bagulho


que eu não gostasse ia ser mó bosta. Ia ser mó infeliz. Mas acho que a gente não
termina quando a gente não gosta, acaba não indo.

Pascoal – Que interessante cara, nossa. Você acha que os professores de física
os poucos, que são poucos de física, são aptos para as funções deles? Na sua
experiência no Sabina.

J. A. – Eu acho que são. Eu conheço poucos... mas os que eu estudei que estão
em salas de aula são pessoas boas. A gente vê a característica de cada um né, tinha um
moleque lá que queria seguir a vida acadêmica, e seguiu, tenho um colega que seguiu,
fez doutorado e tá dando aula na federal do Macapá. Passou no concurso, mudou, foi
embora. Tem galera que ficou só no fundamental. Eu vejo que, pelo menos a galera
que eu estudei não são frustrados. Que eu acho mó triste isso, você vê uma porrada de
professor mó frustrado. Você entra quando é novo pra dar aula mó empolgado, eles
dizem viixi, sai daqui veio, sabe... é que você é novo por isso tá assim. Mano, eu gosto
de dar aula. Tem um pessoal que fica mó triste quando tem que dar aula.

Pascoal – Deve ser a pior coisa do mundo quando é a única opção que se tem e
é uma opção que te deixa infeliz. Você acha que é a estrutura que ferra com tudo?

J. A. – Acho que ajuda. Por mais que a gente esteja em uma escola boa, a gente
nivela por baixo. A gente é a melhor escola de Santo André, mas meu, ce pega as
escolas particulares, nós não estaríamos nas tops 50, eu acho. É feio o negócio.

Pascoal – Tava conversando com uma professora agora a pouco, e o sobrinho


dela vê coisas em filosofia que os nossos aqui, e olha que é a minha área, nunca vão
ver, nunca vão ver. Isso porque eles estão no nono ano. Uma porque o currículo não
309

contempla, outra que na privada é uma disciplina normal, que faz parte do
currículo e tal.

J. A. – É difícil competir né, a molecada tendo aula de robótica desde a sexta


série... desde a primeira série né? A Rosana tava falando que a filha dela vê robótica
agora na escola e é normal.

Pascoal – Vamo mudar de lugar? Tamo gravando, mas... (16’40) trabalhei no


colégio Metodista e lá, cara, é desde o segundo ano era robótica. E eles começavam
montando Lego. Eu nunca tive Lego.

J. A. – Eu também não. Via na escola e em escola que eu já trabalhei.

Pascoal – Será que lá em cima?

J. A. – No laboratório? Lá é vazio, ninguém vai lá.

Pascoal – Laboratório e biblioteca ninguém frequenta.

J. A. – Tem até aranha...

Nessa hora fomos caminhando até o laboratório para continuar a


conversa. Descobri que nunca tinha entrado no laboratório da escola em que eu
estou há três anos.

J. A. – A gente fala, mas o pessoal aqui da nossa escola entra na faculdade,


passa até na federal. Passam em umas escolas boas...

O meu espanto em ver um espaço muito legal... e que eu não conhecia.

Pascoal - A gente nivela por baixo...

J. A. – Eu vejo de professor isso, falando, meu não dá pra passar isso. Coisa
que dá pra passar. Pra dar uma puxada. Ano passado eu passei uma matéria e eu vi
que eles acompanharam, veio.

Pascoal - A gente subestima. A gente tá falando de professor, parece que a


frustração faz com que o professor subestime o professor como ele vai fazer. Parece
que ele projeta no aluno a incompetência dele. Não sei se a incompetência é a melhor
palavra, né, mas parece que há uma projeção dizendo que o aluno não vai conseguir.
O professor está desmotivado, não que ele seja o problema, e eu até entendo os
motivos.
310

J. A. – Acho que o professor também é o problema. Tudo é o problema. No


Estado é uma reação em cadeia.

Pascoal – Tudo faz parte da mesma sopa... você, olhando para a sua trajetória
que não teve um roteiro, você, como você se sentiria que você não conseguiria
conquistas material... você tem 32 anos e chegou no seu ápice, você não conquistaria
mais nada.

J. A. – Não sei, que tipo de conquista? Casa?

Pascoal – É, tipo isso, você não vai ganhar o “the best” professor do ano, não
vai ter purpurina. Essa foi uma pergunta que o próprio Sócrates fez para Alcibíades
dessa maneira: você se contentaria em viver com o que você tem ou preferia morrer se
não pudesse adquirir bens maiores?

J. A. – Acho que isso.. que época é essa?

Pascoal – Século IV antes de Cristo.

J. A. – Então acho que piorou essa situação. Porque você vê muitas pessoas
hoje com depressão, porque a conquista nunca é suficiente. Compra um carro, sempre
terá um melhor, celular sempre um mais novo, o capitalismo engole a gente, o
consumismo. Porque é legal, né, você ter todo ano um carro do ano. Mas porque é
legal? Ele vai te levar para outros lugares? Pra lua? Eu estava a algum tempo atrás,
quando a gente casou, a gente começou a melhorar, porque minha esposa é bem
desprendida do material, e as vezes eu ficava pilhado porque eu queria trocar de carro,
pilha besta. Vejo a molecada, ne, muita gente depreciava. Eu não sei veio, deve ter
algum estudo que relacione isso com bens materiais.

Pascoal – A gente percebe algumas características do que é ser feliz. Eu sou


feliz se eu tiver dinheiro, eu sou feliz se tiver isso ou aquilo.

J. A. – Se a felicidade é ter dinheiro, Silvio Santos é plenamente feliz?

Pascoal – Você coloca a felicidade em um atributo, não... eu sou feliz se tiver


um celular, mas não sou feliz se eu tiver eu mesmo.

J. A. – Você, para analisar se sua felicidade está presente em poucos momentos


da sua vida...

Pascoal – ...ou a gente não tá sabendo definir o que é felicidade.


311

J. A. – É... ninguém é feliz plenamente o dia inteiro...

Pascoal – É, mas será que não é euforia? Será que alegria não é um momento?
Será que a felicidade não é esse olhar para a sua história de vida, que você não pensou
ou planejou e você chegou em lugares dentro da realidade brasileira, que dentro da
realidade brasileira, você faz parte dos poucos 10% da sociedade brasileira...

J. A. – É um absurdo. Outro dia eu fiz um teste no UOL pra ver em qual classe
social você pertence.. é uma merda de pensar... só existe isso por que...? Porque a
gente gosta de ver que tem gente mais ferrado que a gente. Perguntas assim.. quantas
tvs, geladeiras, etc... tem forno ainda, veio...

Pascoal – Você preenche aquilo e descobre que faz parte da porcentagem dos
15% da população brasileira....

J. A. – Foi bizarro... eu tava mó bem... tipo Eike Batista... eu fiquei mó triste...


porque foi terrível saber que eu estava melhor que 90% da população. E tipo, a gente
se sente ferrado sendo professor...

Pascoal – ... e é tudo questão de referência. Se você se comparar, por exemplo,


com um cara executivo, se você mudou o ponto, você se transforma um lixo, e mudou
a referência.

J. A. – ... um rei. Minha esposa trabalha no EJA, e os alunos falam que os


professores reclamam de barriga cheia. Olha o estacionamento na escola dos
professores... o cara trabalha das 7h às 23, tá ligado, mas eles veem isso, veem o bem
material e acha que você não tem do que reclamar.

Pascoal – Sem dinheiro não existe felicidade.

J. A. – Mas o pobre não é feliz?

Pascoal – O pobre é feliz? O cara que está em fase terminal da vida sendo
derrotado por um câncer?

J. A. – Num sei, às vezes ele acha que teve uma vida plena e tá satisfeito com a
vida e tá bom.

Pascoal – Estar satisfeito né... pra quem não está satisfeito com nada, nada é
suficiente.
312

J. A. – Você pega um político que rouba, e tá com um câncer terminal, será


que ele vai em paz? Será que ele justifica que o que ele fez foi por causa da família?
Eles estão bem agora? Fiz isso por um bem maior.

Pascoal – Aí a gente vê a educação nisso.. Porque a educação faz com que a


gente olhe para além de nós mesmos.

J. A. – A educação em si né, tipo Paulo Freire. Que bonito né, a educação,


porque se você pegar nessas escolas que custam 15 mil por mês, será que esses
moleques são educados? São inteligentes, eles aprendem. Mas os moleques .... se
soltar na favela do Morumbi... o que vai acontecer com eles?

Pascoal – Vai gritar... papai... vem me buscar de helicóptero.

J. A. – Vi uma reportagem, duas meninas da mesma idade de classes sociais


diferentes, uma morava perto da Paulista, ou a 15km da Paulista. A segunda nunca
tinha ido na Paulista, a primeira tinha ido para a Europa, Canadá, Austrália. As duas
meninas 15 anos. Então a vivência da outra por ser mais pobre, é mais pobre que a da
outra?

Pascoal – Que tipo de vivência?

J. A. – Se deixar essa menina rica na pobreza, será como, será que ela vai
voltar? Será que ela volta aterrorizada, achando, mó preconceituosa, ou foi um
crescimento pessoal. Não é só aluno.. Aqui na escola... é ruim falar, mas tem
professores que são preconceituosos demais. Uma professora disse que tinha um aluno
que não servia para limpar a piscina da casa dela. O aluno ficou puto.

Pascoal – O professor tá ali pra te formar, não pra te humilhar.

J. A. – E é uma humilhação financeira, né.

Pascoal – Tudo é dinheiro. Você é bem-sucedido se tem dinheiro, tem uma boa
educação se tem dinheiro...

J. A. – Talvez desde o século IV fosse assim.

Pascoal – Aqui, só estudava quem fosse da aristocracia, tipo Alcibíades, o


amante de Péricles, um dos 30 déspotas de Atenas. Ele era um pica da galáxia naquele
momento, logo, só estudava quem tinha dinheiro.

J. A. – Isso vai mudando ao longo da história.


313

Pascoal – ... ou não...

J. A. – Da Vinci, mesmo, era filho bastardo, não pôde fazer faculdade, tudo o
que ele fazia não era considerado ciência. Newton não, tudo o que ele falava era lei.

Pascoal – Você me fez pensar que ainda hoje a educação é muito condicionada
a grana.

J. A. – Aaa... claro que é. E a gente romantiza isso. Você pega aquele moleque
que anda 10km pra ir pra escola, atravessa rio... a galera romantiza, mas isso é uma
bosta, o muleque não tinha que andar tanto assim para ir para a escola...

Pascoal – O cara é um vencedor... taa... mas o sistema é uma bosta...

J. A. – Ele pode alcançar o que o outro alcança nesse sistema? O que o outro
demora 1 ano pra alcançar ele vai demorar 10 às vezes.

Pascoal – a gente esquece que olhar pra vida, uma analogia que pode caber
bem, é um prédio de 23 andares, uma coisa é o cara do quinto do subsolo chegar ao 23
e outra coisa é o cara que tá no 22 chegar no 23.

J. A. – Fora os que já vão de elevador... que não precisam de esforço nenhum.

Pascoal – Você percebe, então, que dizer meritocracia, que a educação


vinculada ao mérito é uma festa do fracasso. Ou esse discurso do ministro que a
Universidade não é pra todos, é pra elite.

J. A. – E se for olhar... é... ele não tá errado. Ele não poderia falar isso, por ser
um ministro da educação... devia falar em favor da educação, mesmo que fosse um
falso moralismo...

Pascoal – Então, é verdade se ele está olhando para trás e para o agora, mas
não tem que ser verdade se ele estiver olhando para o pra frente. O horizonte utópico
não pode ser perdido de vista.

J. A. – Ele não devia ter dito isso. Se ele disse isso é porque ele pensa isso.

Pascoal – Exatamente...

J. A. – Não falou como a gente que está dizendo que é e precisa mudar, ele diz
é e ponto. E o Olavo de Carvalho, como você vê o Olavo de Carvalho nessa situação?

Pascoal – Cara... não sei se você viu, mas eu postei um post de um livro dele.
Peguei um livro na Saraiva deste cara. O livro era O que você precisa saber para não
314

ser um idiota. Eu peguei o texto, é um textão. Como pesquisador a gente olha os


temas e as referências. Primeiro são pequenos, bem pequenos que circulam dentro de
um mesmo tema...

J. A.– Aaa... o Eistein tem um livro assim, são pequenas crônicas sobre
determinados temas. É bastante filosófico, se tiver lá em casa vou te emprestar. Esses
físicos são bem ferrados.

Pascoal – Filosofia é vida.

J. A.– É da ora ver a forma de pensar desses caras, li uns capítulos e eu vi que
esses caras vê um futuro que a gente nem viveu ainda... mas e aí, o livro?

Pascoal – Aaa... eu olhei os capítulos, não tem referências bibliográficas, eu


pensei, ah tem nota de rodapé, daí são coisas, tipo assim, muito não tem citação, diz
“essa informação tá no site tal”, daí fui olhar de novo e em vez de ter referências
bibliográficas...

J. A.– E esse livro não é novo?

Pascoal – Não. Daí as referências são site... e o mais impressionante, sites


relacionados a ele. Ele é a referência dele.

J. A.– Então, eu vi lá, Olavo de Carvalho, referência para Olavo de Carvalho,


ele se referenciou.

Pascoal – Exatamente, aí eu abri .. quando começa o livro, na epígrafe, diz


assim: se você não estar disposto a colocar em prática de um livro, não vale a pena ler
este livro. Então o cara se coloca como referencial, e se você não vai por em prática,
não leia.

J. A.– Eu já vi várias citações dele e o cara assim, é bem chulo né... fala uns
palavrão que não tem nada a vê. Não se espera isso de alguém culta.

Pascoal – Você me fez lembrar de um aluno...

J. A.– ... e ele é filósofo né... perigoso associação.

Pascoal – ... um aluno meu chegou....

J. A.– ... a ministra é mestra em educação...

Pascoal – ... acho que é em ensinos bíblicos.


315

J. A.– Ela tem teologia.

Pascoal – É, acho que é alguma coisa assim.

J. A.– Você que é filósofo e teólogo deve ficar, ó, triste com essas coisas, né?

Pascoal – Putz, um é teólogo e o outro filósofo.

J. A.– Você é os dois... risos... já pode escrever um livro... você tem que
escrever um livro. A gente tem que se salvar disso.

Pascoal – ...aí, esse aluno, o Pascoalzinho, e é um aluno que eu gosto. Para


você ter ideia, eu chamo o aluno de Pascoalzinho.

J. A.– Fundamental, o moleque?

Pascoal – Não, do médio. Veio com um outro livro do Olavo de Carvalho. Ele
é filósofo, ele disse. Não, ele não é filósofo.

J. A.– Ele vende essas ideias pros jovens.

Pascoal – Onde ele é formado? Onde pegou o diploma? Ele não é filósofo. Ele
se diz autodidata, mas não é filósofo. O aluno disse, mas você não precisa do aval dos
outros para dizer que é filósofo pra poder se afirmar...

J. A.– A... então eu posso ser paleontólogo... risos..

Pascoal – ... porque você está nessa escola então, se você não precisa do aval
dos outros pra se formar?

J. A.– A gente pode parar pra pensar nisso, se você é autodidata é legal, mas
não pode descredibilizar.

Pascoal – É descategorizar toda uma categoria, é humilhar.

J. A.– É humilhar...

Pascoal – O filósofo estuda pra caramba, o físico estuda pra caramba, o


geógrafo estuda pra caramba pra chegar em um cara que diz que é autodidata porque
leu 2, 3, 4, 5 livros e já é autodidata. 37’24.

J. A.– Nem lê mais, né... tem Whatsapp.

Pascoal – Hoje, você lê 140 caracteres e já é o suficiente para ser doutor em


determinado tema, né.
316

J. A.– E o moleque?

Pascoal – Ele ficou meio assim me olhando...

J. A.– Ele achou que você ia achar da ora o Olavo...

Pascoal – É, ele achou que eu ia achar da ora, mas ele ficou meio assim depois
que eu falei por que você estuda... assim.. a gente tem um bom relacionamento, ele me
falou em quem votou, um moleque de 16 anos quis votar.

J. A.– É, a molecada aqui da escola também, tirou o título pra votar no


Bolsonaro.

Pascoal – É, ele também. Ele foi um desses.

J. A.– Parece que ele não se bica com o Guedes, né? O Olavo de Carvalho...

Pascoal – ... é, parece que um fala uma coisa, outro fala outra coisa. Parece que
vai ter um racha.

J. A.– Vai ter um racha.

Pascoal – E se for comprovado mesmo os desdobramentos referentes ao filho,


acho que a política brasileira...

J. A.– ... é... milícia, né, velho.

Pascoal – ...é... e esse negócio de milícia é muito sério...

J. A.– No Rio de Janeiro isso é um caos... eu acho que a gente vê aqui


exagerado. Talvez o Rio vê notícia de São Paulo e acha que São Paulo é um caos. Mas
lá decretou falência duas ou três vezes. Aqui só não decretou falência porque tem um
rio de dinheiro a mais.

Pascoal – Lá no Rio, meu cunhado mora lá em Campo Grande, Zona Oeste do


Rio. Cara, impressionante, ano passado eles tiveram que colocar no carro deles
adesivos, selinho, pra identificar.

J. A.– Condomínio...

Pascoal – ... pra identificação pra andar no bairro.

J. A.– Se você entra no bairro e não tem o selinho, o que acontece?

Pascoal – Significa que você não é dali e tudo pode acontecer, então... não
garante nada. A ideia e essa. Se você tem o selinho tá garantido, se não... inclusive
317

ano passado nós não fomos pro Rio, porque, meu, que medo.. minha esposa
achava que não, de boa...

J. A.– Sua esposa é de onde?

Pascoal – Campo Grande, lá do Rio... e, pra gente terminar, poderia falar ... a
ideia não é uma entrevista certo ou errado, mas você olhando pra educação, imagina
que você é um...

J. A.– ... Olavo de Carvalho..

Pascoal – ...não (risos). Como você analisa a educação hoje e como você olha?
Eu sei que é profético e tals...

J. A.– É difícil..

Pascoal – ... você já tem 5 anos de experiências como docente e...

J. A.– ... desde 2008 eu trabalho com educação...

Pascoal – ...então, 10 anos de educação. Como você vê esse movimento e olha


pra frente?

J. A.– É perigo, perigoso esse movimento. Não sei se eles vão começar a
desvalorizar, tipo, não preciso fazer faculdade, não que ele vá se dar mal na vida,
porque faculdade não é o ponto principal pra determinar se a pessoa vai se dar bem na
vida, e tal... aquele lance que se dar bem é ganhar dinheiro. Mas é... a gente vê, meu, o
cara se elegeu por notícia falsa, a gente tem muito muleque aqui que traz notícia que
você fala, meu... você aprendeu isso em história... a gente aprendeu, mas por que a
gente aprendeu isso?

Pascoal – Tipo uma ideologia?

J. A.– É, então, é... vi que esse dia um cara do PSL ele levou pro ministro da
educação de inserir o livro do Ustra nas escolas. Não é a mesma coisa que você incluir
o livro do Hitler e trabalhar, quando você vai ensinar sobre o nazismo... eles querem
inserir esses livros desses caras como se tivesse outro olhar, um olhar que não, a
ditadura não foi tudo isso o que se fala... quem vendeu essa ideia pra você foi esses
comunistas safados... então, tudo o que a gente aprendeu na escola. Não sei... será que
vai mudar a escola a esse ponto? Eu tenho medo desse novo ministério da educação.
318

Principalmente essa nota do MEC, você viu? A nota que o MEC mandou falando
do jornalista do O Globo.

Pascoal – Não vi...

J. A.– Você não viu? Meu, eles lançaram uma nota oficial cheio de erros de
português. Uma nota oficial do MEC você não espera erros de português, e falando
que o jornalista foi treinado pela KGB, um bagulho mó... isso é oficial, nota do MEC
e virou piada. Você vê esses caras do MBL falando coisas que, errando fatos
históricos, falando que o Marx se arrependeu das ideias dele na primeira guerra, essas
ideias estão se propagando entre os jovens, não só entre os velhos. Você vê esse cara,
o Kim, ele tem 36 anos, é novo.

Pascoal – Que 36 anos... ele tem vinte e alguma coisa...

J. A.– Ah eu confundi, ele é mais novo. Então, ele é moleque e moleque


fazendo a cabeça dos outros.

Pascoal – E eu vou te falar, sabe onde ele estava em novembro do ano


passado? Tinha uns 6, 7 alunos da graduação que faltaram minha aula. Até aí beleza,
na outra semana eles foram, daí eles disseram que faltaram porque esse Kim estava lá
na faculdade e eles foram ouvir o cara falar, tomar uma cerveja com o cara... e é uma
galera da filosofia, é uma galera da crítica, é uma galera da reflexão, é o cara que tem
que estar fora da caixa.

J. A.– Você não tem vontade de ir na palestra desses caras?

Pascoal – Até tenho... mas acho que uma coisa você estar lá como crítico, outra
coisa é você assumir, sem reflexão, e reproduzir... é papagaio.

J. A.– Acho que tá acontecendo isso.. eu não sei... tipo até a hora que só fala,
beleza, mas chegou no poder, véio, por isso que eu tô meio receoso, tipo esse cara, o
ministro da educação, é discípulo do Olavo de Carvalho, dizem que ele já trabalhou
em cursos que não eram aprovados pelo próprio MEC, é perigoso demais....

Pascoal – Aprovado e respeitado... você olha a produção acadêmica de um cara


desses, a relevância dele acadêmica...

J. A.– A menina que vai cuidar agora, alguma coisa do MEC, eu vi que ela é
advogada, tem 27 anos, e na tese de mestrado dela, ela falou sobre escola no lar, o
ensino em casa...essa é a experiência dela, e ela vai assumir um cargo lá...
319

Pascoal – Sobre educação domiciliar?

J. A.– É, essa moça que vai assumir a pasta. Eu não sou contra a educação em
alguns casos, mas casos extremos, né velho, caso que o aluno não consegue ir para a
escola. Tipo nos EUA, que tem aquele inverno e o aluno vai ficar 2 meses sem ir pra
escola, daí não tem como.

Pascoal – E você me fez lembrar uma coisa, a gente tava discutindo felicidade,
né, conversa de felicidade né... daí será que estamos discutindo o atributo ou uma
classificação ou característica, não a felicidade em si. A educação a gente discute
muito o que é externo à educação e esquece de discutir o que é realmente educação. a
gente discuti ideologia, questão de religião, só que a gente esquece de discutir o que é
realmente a educação. E educação, não se educa sozinho...

J. A.– A sociedade tem que falar sobre isso. É isso que os direitos humanos
falam e a sociedade cai em cima... você fala.. ah.. esse moleque aí é vítima da
sociedade, ele é vítima da sociedade... você acha que uma criança vendendo bala com
6 anos de idade não é vítima da sociedade? Ele é vítima da sociedade. Eu sou
responsável também pela educação desse moleque.

Pascoal – Você falou do Paulo Freire e não tem como né?... ele diz ninguém
educa ninguém, ninguém se educa sozinho, todos se educam em reciprocidade. Cara...
exatamente isso, aí você quebra aquela ideia do professor que é o dono do
conhecimento e o aluno o depósito, você inverte aquela lógica que o aluno é o cliente
e o professor é funcionário, você faz a educação ser educação.

J. A.– Eu tenho um amigo, padrinho de casamento, ele diz que tem um pouco
de trauma de uma aula que ele teve de geografia, ele sempre curtia essa coisa de
dinossauro, e tals, ele sempre foi muito curioso com essas coisas do planeta. Ele é
paleontólogo hoje. Ele pegou um mapa e disse para o professor.. nossa, professor,
parece que encaixa né? A África com a América. A professora só faltou falar: você é
idiota, velho? Aí depois ele foi estudar, ele descobriu a Pangeia. Risos... eu, quando
estava na escola, aprendi que o verão era quando nós estávamos mais próximos do sol,
e o inverno a Terra estava mais longe do Sol. Meu, não tem nada a vê.

Pascoal – Eu até acho que a igreja pode ensinar que Deus fez o mundo em 6
dias, e no sétimo descansou...
320

J. A.– Tem que pensar isso de uma maneira filosófica... tipo, quando você
falou do professor ser a verdade, essa foi a verdade que eu aprendi, ele aprendeu isso e
foi chamado de idiota, e mudar esse paradigma é difícil. Tem professor que não vai
mudar. Tem professor que adoraria ter um palco na sala, como era antes, pra tá acima
dos alunos. As salas da Fundação ainda são assim, elas têm um palquinho do
professor, não é pra ver melhor, mas pra destacar a hierarquia.

Pascoal – Daí ele tem uma verdade, dos seis dias e 1 dia de descanso, daí você
tem que aprender aquilo, você tem que aceitar aquilo, e você não pode ver outra coisa.

J. A.– Ainda mais na ciência... você pega a teoria do Big Bang, e surge outras
teorias, e vai surgir, porque existem várias falhas na explicação, na hora que surgir
uma explicação melhor não é mais a teoria do Big Bang. A teoria do Big Bang foi até
aqui, beleza. E, tipo, isso não vai ser algo que vai doer, é comum. A ciência aceita
isso.

Pascoal – A ciência aceita isso naturalmente, o projeto é esse.

J. A.– E a própria igreja aceita isso. Toda igreja séria aceita isso. Você pega o
Vaticano, é... se todo o caso ele achar que a pessoa é louca é exorcismo, tipo, não
existiria louco... meu, imagina quantas pessoas que foram exorcizadas que tinham lá,
Asperger... quantos milagres não são mais milagres porque tem explicação científica..

Pascoal – ... ou porque tem dipirona. Ou porque já tem um remédio...

J. A.– A bactéria evolui, ela tem que trocar de remédio. Se a própria bactéria
evolui, como você não vai acreditar na evolução?

Pascoal – É verdade, né, e quando você quer que a educação seja aquilo que eu
entendo que ela seja, cara, é você violentar o que é a educação. Cara, só pra concluir,
você mostrou que a educação é um todo da vida.

J. A.– Ah é, você teve uma filha, o que você aprendeu?

Pascoal – Eu aprendi muito mais do que ela...

J. A.– Eu aprendi a ter mais medo, medo de morrer, eu não tinha isso antes, a
cada dia você mede as palavras pra ensinar, você tem um cuidado maior. É porque
eles não aprendem muito até certo ponto. Eles querem mamar, e dormir e não ficar
sujo. O cérebro não tá formado.
321

Pascoal – É, responder a estímulos, até chegar a autonomia. E pra encerrar,


nós temos bebês como sociedade, que só respondem a estímulos, beber, comer e
dormir...

J. A.– ... adulto, né?

Pascoal – ... adultos que querem comer, beber, se trocar da sujeira e dormir. E
a educação simplesmente tá...

J. A.– ... a educação era pra ser a base da sociedade. Os Royalties aí do pré sal
era pra ser 70% da educação, se você tem isso, a gente que trabalha sabe que é
automático, se você tem educação você vai ter tudo de qualidade, você pega os países
mais desenvolvidos, a Finlândia, e a Suíça, uma puta sociedade desenvolvida, a escola
são sensacionais, você já viu como são as escolas lá?

Pascoal – Já, já...

J. A.– É claro que é difícil ter uma estrutura dessa, você pelo tamanho, a gente
tem que lutar um pouco por isso.

Pascoal – Esse horizonte a gente não pode perder. Porque meu, imagina se em
vez de ter um São Caetano, nós tivéssemos um ABC, uma Grande São Paulo...
aumentando as proporções.

J. A.– Daí você volta naquele negócio do egoísmo, você viu que tem um
movimento pra libertar São Caetano do Brasil, São Caetano...

Pascoal – Não...

J. A.– Vi no Facebook se era piada entrei pra ver e os caras alopram. Mas
parece que é um bagulho sério, São Caetano é meu país, tipo o sul é meu país, São
Paulo é meu país.

Pascoal – Eu acho que não me expressei bem...

J. A.– Acho que é por causa dos índices de São Caetano.

Pascoal – É porque os índices são altíssimos.

J. A.– De Santos também são bons, né?

Pascoal – É, minha ideia era isso, ampliar essa coisa.


322

J. A.– Mas, eu não sei se eles querem ampliar, porque meu, já tive amiga
que foi assaltada em São Caetano, eles não fizeram BO em São Caetano, então, até
que ponto os índices são altíssimos lá, e tipo não foi só um caso, tenho um amigo que
trabalha na delegacia em Santo André e tipo, ele fala que é assim mesmo, você passa
15h pra fazer um BO lá, até lá você fazer um BO em Santo André, daí essas horas faz
com que as pessoas desistam de fazer o BO. E fala que isso é normal.

Pascoal – E, você falou, eu acho que eles não querem essa mudança. Eu tive
uma discussão com uma pessoa, conversa, daí a pessoa dizia que o presidente não
quer, o ministro não quer, falei mas...

J. A.– ... não quer o quê?

Pascoal – ... não quer mudança, transformação. Mas o que o presidente quer,
tem que ser muito menor do que a sociedade pensa. Então é muito mais fácil...

J. A.– E foi né... tem aqueles índices lá de 80 milhões de pessoas não votaram
nele... mas ele ganhou. Quantas pessoas votaram nele? 40 milhões? Então, 40 milhões
de pessoas pensam assim, é muita gente que a gente conhece.

J. A.– Mas assim, mas por que 40 milhões de pessoas pensam assim? Falta de
educação?

J. A.– Desses 40 milhões, tudo é chucro? Não! Na faculdade mesmo...

Pascoal – ... é, no Mackenzie, na Metodista, PUC, USP... (risos)

J. A.– A USP não (risos), é considerada esquerdista safada. Eles devem ficar
putos com os índices da USP em ser melhor da américa latina.

Pascoal – Apareceu como quinta universidade que mais pesquisa do mundo...

J. A.– ... daí você vê uma invejinha.

Pascoal – Nunca conseguiu passar em um concurso público...

J. A.– Eu vejo isso nos alunos, principalmente nos alunos reacionários que
postam coisas achando que a USP.. meu, nem tentei passar na USP porque lá é
esquerdista. Nem tentou? Você tá ligado que não ia passar. Era o moleque que menos
estudava e não fazia nada, pode passar? Pode. Pode ter um ano de estudo e explodir,
mas...

Pascoal – ... mas ele não vai passar...


323

J. A.– ... medicina, ele vai passar.

Pascoal – Não, não passa. Assim, a minha dificuldade com a USP é que o
perfil de escola...

J. A.– ... é, eu nunca gostei da USP, principalmente quando eu trabalhava na


Ciência Prima às vezes a gente lá no laboratório da USP e eu realmente...

Pascoal – ... eu super respeito, mas não é o tipo de escola pra mim...

J. A.– ... as pesquisas... os melhores computadores estão na USP... isso é


indiscutível. Acho que a UFABC é mais acolhedor...

Pascoal – É, a USP não é meu perfil de docente.

J. A.– A Federal do ABC parece ser mais interdisciplinar, tal, e você conversa
com qualquer um de qualquer curso. A USP parece um calabouço, os departamentos,
o laboratório de física, você entrava no prédio, descia umas escadas de madeira, tudo
velho, sentia voltando no tempo e tudo muito fechado. Tudo muito fechado.

Pascoal – Eu curto muito a interdisciplinaridade...

J. A.– Acho que tinha que ser assim.. a educação tinha quer ser assim.

Pascoal – ... porque o ser humano é interdisciplinar. Você é um cara da física


que ama história, você teve sua formação, arranjou emprego, foi mandado embora,
casou, e as coisas ... enfim, nós somos isso... acho que a educação não pode ser
departamentalizada, assim.

Meu amigo Ademir... vamos continuar a nossa conversa... mas sem gravar..

A alegria em ter esse diálogo com o professor J. A. me traz boas sensações


até hoje. Desenvolvemos uma amizade ao longo de três anos e por isso a fala era
sem muitas preocupações e fincada no respeito e admiração.

5. Docente H. F.
Sentamos na arquibancada da quadra. Ele tirou o tênis e começamos a
conversar.

Pascoal – Você é professor desde quando?

H. F.– (pausa...) 94.


324

Pascoal – Desde 94? Caraaaca.

H. F.– 95...aí passou um período, entrei, trabalhei um período, saí, passei um


período fora e depois voltei em 2003.

Pascoal – Você entrou em 95 foi, parou, foi naquele período em que você foi
construir a casa pra sua irmã, pro seu irmão...

H. F.– Sim, e eu entrei pra trabalhar na Ford também, né. Daí a Ford, através
do sindicato, fez uma manipulação lá, e mandou todo mundo embora.

Pascoal – E você fazia parte desse todo mundo...

H. F.– E eu fazia parte desse todo mundo. Era um acordo do sindicado com a
direção da empresa.

Pascoal – Então se sua vida tivesse dado certo, então você não era professor...

H. F.– Com certeza...

Pascoal – ...não seria.

H. F.– ...não.

Pascoal – Professor foi um remendo?

H. F.– Professor foi uma oportunidade que Deus deu e eu acho assim que Ele
disse aqui você vai entrar e vai ficar. Aí, quando eu voltei, prestei concurso e fique.

Pascoal – Mas se você tivesse podido escolher, você não escolheria...

H. F.- Por escolha?

Pascoal – É. Você escolhe depois que você se ferrou.

H. F.– Não. Não teria, eu vim depois que a situação apertou e eu precisava
trabalhar, ai eu vim, mas não era...

Pascoal – Aqui no ABC já? Você...

H. F.– ...é.

Pascoal – Você já era casado, inclusive.

H. F.– Casado.

Pascoal – Já sei da sua vida um pouco. Mas eu não sabia que você tinha
trabalhado na Ford.
325

H. F.– Trabalhei 4 anos.

Pascoal – Daí você ficou desempregado um tempo...

H. F.– ... fiquei desempregado um tempo, eu montei um negócio, um carrinho


de churros, vendia churros um tempo aqui em São Paulo, trabalhei um tempo pra
família também.

Pascoal – Construindo casa?

H. F.– Reformando casa, construindo também. E aqui também, trabalhei em


umas partes de reforma e meu negócio é ter uma coisa certa. Daí você vai atrás do
quê? Serviço público, né?

Pascoal – E você já tinha o diploma.

H. F.– Tinha, eu me formei em Minas. Eu me formei em 91, casei, trabalhei 6


meses lá, e aí surgiu a oportunidade de vir pra São Paulo, não pra trabalhar na área da
educação, daí trabalhei com meu concunhado, daí ele tem grana e ele tinha uma
tecelagem.

Pascoal – Aaa, ele pediu pro cê cuidar.

H. F.– Não, ele não pediu pra cuidar, ele me colocou, pelo contrário, como
funcionário, observando as coisas pra contar. Tipo o tal do dedo duro. Eu nem me
inteirava das coisas. Lá eu era peão e ganhava dobrado. Recebia um salário por dentro
e um por fora. Mas eu nunca levei nada, porque eu não me inteirava de nada, não
queria saber o que tava passando. O que meu superior mandava eu fazer eu fazia. Aí,
quando o irmão dele, que trabalhou, e era administrador e era sócio dele na tecelagem,
começou a desviar o dinheiro dele, ele me mandou embora, por quê? Porque ele sabia
que o irmão dele roubava e o irmão dele sabia que eu trabalhava lá dentro olhando,
que eu tinha o contato com ele. Daí, o primeiro a ser mandado embora quando o irmão
começou a fazer malandragem, fui eu, né. Aí foi quando eu caí na área também...
não... aí eu comecei a dar aula. Fiquei desempregado e comecei a dar aula. Dei aula 8
meses e surgiu a oportunidade na Ford, aqui eu paro e vô trabalhar, fazer parte da
massa de manobra. Porque o sindicato lá tem uma força imensa e eu entrei em um
grupo que fazia parte de um acordo do sindicato com a empresa que eles no ano de
2000 e 2001 eles teriam que enxugar. Então eles pegaram um tanto de gente em 95,
por aí, pra mandar um tanto de gente embora em 2000. E o que aconteceu. Lá, quando
326

você entra, eles criam um número, o cadastro seu, conforme você vai mudando de
seção, você vai carregando aquele número de cadastro, só que o meu cadastro, na
turma que eu entrei, era pra ficar tampando buraco, significava o quê? Que quem não
tinha um lugar fixo ia embora. No ano de 2000, ela terceirizou alguns departamentos,
e como eu era parte da turma da massa de manobra, fui mandado embora. Fiquei
cobrindo setor esse, setor aquele, foi bão que eu aprendi um monte de coisa, mas fui
mandado embora. Também, é...

Pascoal – Você não planejou nada...

H. F.– Não. No caso aí, tinha um detalhe, eu tinha vindo do interior, e


preservava um jeito no interior, na limpa, você fala as coisas, igual a gente, a nossa
amizade, a gente fala coisa aberta. Dependendo da outra pessoa, você não vai gostar
de ouvir. E você não vai falar pra outra pessoa e eu era sempre essa pessoa que falava
o que pensava, pah, pah, pah. E é lógico que dentro de uma empresa dessa daí, que
você vê que sindicato usa a categoria...

Pascoal – Essa sinceridade não é bem vista.

H. F.– Não dá pra ser franco e falar que você tá vendo o que você tá vendo.
Porque eu já vim de lá com formação, eu já vim de lá professor. Queira ou não te abre
um pouquinho mais a cabeça. Cê fez faculdade, eu creio que dá uma abertura. Aí você
tem uma visão crítica das coisas. Daí você no meio de peão, vendo um monte de gente
manipulado, ficava vendo aquilo.. Então... lá, o apelido que eu tinha lá, era de o
Professor, mas por deboche, não por mérito que eu consegui, aaa o professor, aaa o
professor, professor pra lá, professor pra cá, e você via que... e eu atendia, afinal d e
contas, eu tinha me licenciado. Né, eu sou um professor, pô. Lá eu não tinha função de
professor, o apelido era deboche. Mas, como eu nunca liguei, a gente aprendeu a fazer
uma coisa que é usar a cabeça um pouco mais do que os outros, então você usa tanto o
... quanto pro deboche... problema teu, se você quer continuar nessa escuridão,
problema teu, não que eu seja a solução, não sou nada disso, mas eu prefiro caminhar
pro outro lado.

Pascoal - Que da ora. É interessante porque o seu ingresso pra faculdade foi
muito engraçado. Você era peão, construindo a escola, depois te chamou pra estudar,
você estudou...
327

H. F.– ... e a própria escola me contratou pra trabalhar lá, né, então teve
uma união do útil com o agradável. Era um período que tinha uma inflação filha da
mãe, uma inflação ferrada, é, toda semana tinha que dar aumento pro meu salário e
pros peãos que trabalhavam comigo, a turma que trabalhava comigo, porque eu era
encarregado da manutenção. Aí eu dava aumento, daí quando eu chegava pro
tesoureiro pra ele do aumento, e falava olha, essa semana o salário é tanto. É.. mais...
ele ficava bravo. Lógico, né, que ele ia ficar bravo. Ele dizia, você falou com o
William. O William era o presidente da fundação. Não, não falei nada com o Willian,
não. Eu tô falando com você, porque é você que faz o pagamento, se o William achar
que tá errado, ele vem e fala pra mim. Aí vai ser o presidente da fundação educacional
falando pra mim que sou um subordinado dele. Aí nois vamo conversar e eu vou
justificar o porquê foi dado esse aumento. Aaa não, eu vou fazer o cheque aqui, mas
acho que ele não vai assinar, o tesoureiro falava, né. Daí fazia um cheque, entregava
pro William e ele assinava, nunca perguntou, sempre me pagou.

Pascoal – Você já sabia fazer política ali...

H. F.– Eu sempre fui político. Na cidade eu era líder comunitário, presidente


da associação comunitária, líder do grupo Núcleo da Renovação Carismática, então.

Pascoal – Você é católico?

H. F.– Eu era. Hoje eu sou temente a Deus, né, tenho fé, nunca me batizei em
nenhuma outra igreja, então eu sou católico.

Pascoal – Não é praticante.

H. F.– Não, eu não sou praticante.

Pascoal – Você era líder de todos esses grupos, assim...

H. F.– Eu era, tinha uma facilidade de liderança, assim... teve uma eleição no
município lá, na época, instituiu o Conselho Municipal de Saúde, tinha que escolher
dois representantes para ser parte do Conselho Municipal de Saúde. E nós dentro de
uma sala lotada de líderes, de todos os bairros do município.

Pascoal - Qual é o nome do município?

H. F.– Muzambinho. Minas Gerais. Cidade de 20 mil habitantes, pequena. Aí,


nessa reunião lá, que era pra tratar de outros assuntos e também desses, mas eu nem
sabia, abriram a oportunidade que cada um falasse o que faria se fosse do Conselho
328

Municipal, e cada um puxou a sardinha pro seu lado. Aaa, eu quero construir um
posto de saúde perto do nosso bairro, não sei o que... e eu como não queria participar
do negócio, nem falei, daí viram que tinha muita gente pra falar, mudaram o esquema,
vamos fazer uma eleição. Cada um de nós aqui vota em duas pessoas. Eu nem tinha
falado nada, eu tava lá junto, eu era líder do bairro que tava. Chegou na hora da
eleição, quem ganhou estourado? Eu, que não tinha nem falado, feito nada, promessa
nenhuma, e um cara lá da roça foi eleito, o cara da zona rural foi eleito. Então eu fui
fazer parte do Conselho Municipal da Saúde. Mas eu acho que a liderança é inato,
você nasceu e tem isso.

Pascoal – E na faculdade, você tinha bastante influência na turma?

H. F.– Tinha, na turma, com os professores, com a direção da escola. Mas tem
aquele negócio, é o que eu tô acabando de falar pro cê aqui... aí, depois de um tempo,
eu comecei a exercitar o não destacar para não assumir nada desses tipos de coisa.
Porque, porque liderança sem remuneração nenhum, hoje, não vale a pena, você só
fica com o trabalho. Eu era líder comunitário, não ganhava nada, mas trabalhava
muito, era líder da renovação carismática, não ganhava nada, Deus nunca esqueceu de
mim, isso eu sempre agradeço e agradecerei, porque eu nunca esqueci dele, então acho
que a gente faz o dia a dia, mostra pra Ele que você tá do lado dele. E você não
precisa ir lá na frente pregar, mostrar, e vestir roupas diferentes, pratica o evangelho, o
ama a teu próximo como a ti mesmo. Deus nunca descuidou de mim, ele sempre me
conduziu. Tanto que essa vaga na faculdade que eu te falei, foi através de um
chamado de Deus. Ele me colocou lá no momento certo, colocou as pessoas certa pra
falar comigo. Esse tesoureiro que não queria me pagar, ele que disse, ou por que você
não presta o vestibular, já tá aqui já. Você tem o ensino médio? Tenho. Por que você
não tem presta o vestibular, vai ter uma segunda chance, vai ter uma turma nova e não
sei o que e vai ter umas vagas novas. E eu... não sei se devo fazer. Paga a taxa de
inscrição e faz a prova, uai. Se ocê passar.... e foi o que eu fiz. Marcou a prova, tinha
150 candidatos, eu passei em 13.º então, tava bão... ou o resto era tudo cabeção, ou
eles foram mal e eu mió. Aí tinha 15 vagas, entrei nessa aí. Depois que entrei eu disse,
não vou sair. A partir do momento que eu paguei uma mensalidade, que era particular,
paguei uma mensalidade, se eu saí eu tô perdendo em um investimento que eu fiz. E
outra coisa, por isso que eu te falo que Deus cuida, Ele mesmo providenciando
trabalho pra mim um atrás do outro. E toda vez que tinha problema com menos
329

dinheiro, o que eu fazia? Aumentava o salário, não que eu fazia pra explorar, eu
fazia porque era o que tava acontecendo, aí sempre tive dinheiro pra pagar a faculdade
e cuidar da vida.

Pascoal – Então não foi uma escolha: aaa, eu vou ser professor de educação
física! O Helinho pequeninho sonhando em ser professor de educação física.

H. F.– Não, o Helinho pequeninho queria ser engenheiro.

Pascoal – Engenheiro? Pensei que era jogador de futebol, você disse que
jogava bem.

H. F.– Não. Eu jogava, mas era coisa de jovem. Engenheiro, meu sonho de
estudar era engenheiro. Tinha facilidade com matemática, na época de escola, né,
então nunca tive problema com matemática, com essas disciplinas ligadas. Mas como
na cidade do Hélio só tinha escola superior de educação física, e o Hélio não tinha
dinheiro pra ir pra outras escolas, que tinha que pagar escola, transporte, pagar tudo. O
Hélio fez educação física na cidade dele.

Pascoal – 4 anos.

H. F.– 3 anos, na época licenciatura eram 3 anos.

Pascoal – Daí, depois disso, você formou quando? 91?

H. F.– Formei em 91, formatura mesmo foi em 92, daí eu formei, casei..

Pascoal – Nossa, você entrou em 89 na faculdade eu tinha 1 ano. Eu sou de 88.

H. F.– Oh, pro cê vê...

Pascoal – Eu nascendo e você na faculdade.

H. F.– Já tinha feito muita besteira.

Pascoal – As besteiras você já me contou algumas...

H. F.– Fiz muita besteira.

Pascoal – Daí, em 95, você voltou pra educação e depois 2005.

H. F.– 2003 eu prestei o concurso né, aí eu voltei naquele programa que tem
até hoje, escola da família, estava desempregado, a situação difícil, a Ford tinha
mandado embora, eu tava trabalhando cata aqui cata acolá, mas, não dá né. Você tem
filho, você tem que ter um emprego fixo. Segurança, né? Um emprego né... hoje eu já
330

penso diferente, mas na época eu pensava isso. Daí eu entrei, ... pro Estado na
escola da família, depois veio vindo aula uma atrás da outra porque aula eventual, e aí
fui ficando... ficando, primeiro concurso que teve prestei, passei, já consegui o cargo
meu, quando teve a oportunidade da prefeitura de concurso, prestei, passei, então.

Pascoal – Então, hoje você dá aula...

H. F.– Sou professor do Estado e da prefeitura, isso, e pretendo aposentar nos


dois se não mexer na previdência, mas a gente já tá vendo que tá mexendo.

Pascoal – É, aposentadoria é uma coisa que eu tô vendo que tô perdendo de


vista.

H. F. – Acho que não.

Pascoal – Tenho 31 ainda, nem 10 de contribuição...

H. F. – Aaa você tem, aqui você contribui...

Pascoal – Mas eu não tenho nem 10 anos.

H. F. – Mas se você... um dia de contribuição é um dia...

Pascoal – Sabe o que eu acho muito bonito em você e por que eu queria
conversar muito com o senhor? É que o senhor consegue sempre ver o copo meio
cheio. E eu acho isso fantástico.

H. F. – Mas a vida é isso, uai. É o que eu acabei de falar. Aquele que está lá em
cima não discute, Ele vai te dando, por quê? Porque você distribui. Não adianta ser
negativo ou pessimista, tem que ser otimista, acreditar, vai dar, também não sei, Ele
quem cuida.

Pascoal – Você acha que onde você chegou é por causa da educação?

H. F. – Aaa não, tem muito a vê né...

Pascoal – Mas parece que foi mais pelo seu jeito mais político, mais de
liderança, carismático.

H. F. – Eu acho que a educação de berço, de família, faz muita diferença,


porque a educação de família te dá a noção de onde chegar e como chegar. Porque
essas coisas você traz do berço de casa. É saber chegar... é... primeiro observar.

Pascoal – Te dá uma perspectiva.


331

H. F. – Sim, sim. E o que a gente observa muito ou a pessoa chega e não


fala nada, eu nunca fui de não falar nada, eu sempre falo, mas sempre se eu tenho
absoluta certeza e com quem eu vou falar, cê sabe disso... cê sabe que eu falo. E às
vezes, às vezes eu peco por isso, porque é espontaneidade, e eu acho que isso é coisa
de família. Somos 5 irmãos, um já faleceu, só uma não quis fazer faculdade, então o
nível da conversa na minha família, sempre foi um nível muito bom, e minha
juventude, meus amigos de juventude sempre de bom nível, mesmo na época de zuera,
que era balada, e droga e cachaça, e bababá, o grupo que a gente fazia parte era um
grupo de elite da cidade. Uma cidadezinha pequininha, a gente não se destacava, tanto
é que se eu voltar pra minha cidade, eu vou continuar sendo o Helio lá da periferia, eu
não sou o Uuuu, porque a gente sempre foi de origem humilde, passou por dificuldade
na infância, e isso te dá uma humildade, te dá uma educação de saber como chegar nos
locais, e tem pessoa que não tem isso, ela apanha um pouco isso.

Pascoal - Você tá apontando pra essa questão da educação familiar, da casa, e


essa outra educação que a gente tem aqui. Você acha que ela serve pra alguma coisa?

H. F. – Eu acho que ela serve.

Pascoal – Ou serve só pra arranjar emprego, mais pra nada...

H. F. – Eu acho que serve pra muita coisa. Eu acho que tudo é uma somatória.
A educação que nós fazemos aqui, é cada um faz do seu jeito, mas ela, eu acho assim,
a escola é o segundo local que a criança vai, que o indivíduo vai, primeiro família,
segundo escola, se não deu certo.

Há uma interrupção na conversa, porque estávamos na quadra e alunos


entram para tirar foto da quadra porque eram do Grêmio, peço, então, para que
haja a saída dos discentes.

H. F. – Eu acho que é uma somatória, então acrescenta... o que a gente faz


aqui... o que eu faço aqui com os meus alunos, o que você faz aqui com os seus
alunos, você pega um pouco da tua experiência de vida e a parte de conteúdo que dá
pra você aproveitar e ensina um monte de outras coisas além do que a escola é em si.
É logico que agora nós temos que... até tô apreensivo com isso, que eles vão mudar o
conteúdo, né, então o que a gente faz? A gente pega essa somatória de fatores de
experiência de vida e vê a melhor maneira de se dar bem com os seus alunos e de
passar o máximo possível de conteúdo e experiência de vida.. eu acho... é tudo uma
332

somatória... não tem essa de... ah não, o que a gente faz aqui não tem sentido, orra
meu, lógico que tem sentido, é com o que a gente faz aqui que eles vão saber trabalhar
em outra instituição que é pós a primeira, que é a família, e a segunda, que é a escola.
Ele vai entrar no mercado de trabalho depois ou no nível educacional superior, mas
sem o que nós fizemos aqui vai ficar complicado. Primeiro ele não vai conseguir
entrar, se ele não sair daqui com a certificação que é o papel carimbado, que passou
pela tua aula, que passou pela minha, que passou do J.A. e de todos nós aqui, ele não
vai conseguir chegar lá. Ele não vai conseguir ingressar lá. E tudo é um processo, né,
e nós fazemos parte do processo, né. E tenta fazer o melhor possível com todas as...

Pascoal – Tem uma frase que você fala que eu acho muito legal, fazer o melhor
possível dentro...

H. F. – ...dentro das possibilidades... Você tem que tentar fazer o melhor que
você consegue fazer dentro do que eles te oferecem de oportunidade aqui, oh.

Pascoal – Eu acho essa frase fantástica.

H. F. – Mas não é verdade?

Pascoal – É super verdade! Eu concordo com o sr. Eu só acho fantástica.

H. F. – Eu acho que isso aí resume bem o que nós fazemos na escola. Por quê?
Porque o sistema, o sistema é, na minha opinião ele não quer que você venha aqui e
faça um trabalho bem feito, por isso que tem um monte de impeditivo. Por isso que
tem um monte de gente coordenando, e... dirigindo e... por quê? Querido, educação
não é pra ser feita de acordo, dentro do que deveria ser. A gente vem aqui e faz o
melhor que você pode, por quê? Porque eles te atrapalham em um monte de coisa.
Não atrapalham? O sistema não te atrapalha em um monte de coisa? Né? Em uma
escola que nem a nossa aqui, posicionada aonde ela é, com essa categoria de
professores que temos aqui e você sabe bem melhor que eu quantos professores que
temos aqui com uma qualidade, capacidade de ensinar muito mais do que a gente pode
fazer aqui. E ensina. Porque a gente faz isso aqui e a gente faz outra coisa aqui que é,
é... de extrema importância dentro da educação. A gente consegue ter amor pelos
alunos, amizade pelos alunos e é por isso que a gente consegue um resultado melhor
dentro da Diretoria de Ensino de Santo André, uma das escolas boas aqui, e é por isso
que eu tô aqui, porque eu gosto de fazer parte do que é bom, né. E a gente consegue
ter um resultado melhor. E é logico que aqui, como em todos os outros lugares, vai ter
333

o aluno que vai vir aqui, o aluno que vai vir aqui só pra (risos)..., matar o tempo,
vem aqui uai... Num importa. Vem! Deixa vim... Deixa vim.. passa por aqui. Comigo
ele não vai ficar, porque eu acho que a educação é de graça, você tem se você quiser.
A educação que nós temos aqui... essa aqui formativa, que fazemos aqui, a outra de
casa é importante você usar, mas a que nós fazemos aqui você adquire se você quiser,
pô. É fácil pro cê lá na sua faculdade? Alguma coisa cai de graça lá? Nada cai de
graça. E alguém fica te obrigando, te exigindo que você estude faça isso ou faça
aquilo? Não! Você vai fazer o seu trabalho dentro da qualidade que você entende que
tem que ser feito, isso é uma questão de caráter.

Pascoal – É, eu também entendo que quando a gente consegue se preparar


adequadamente, é porque a gente consegue olhar para mais pra frente, né?

H. F. – Sim...

Pascoal – Porque tem muita gente que quando queria ou quando podia não
queria, agora quando quer não pode.

H. F. – Não pode... então... são coisas que você tem que... ou não pode... ou
ainda não quer mesmo, porque quando você quer você pode... você dá um jeito.
Porque existe um monte de fatores que te empurra pra isso. E aí é você que vai dizer
sim ou não se você quiser. Aí é uma decisão, é tua, mas que a oportunidade chego,
chego! Cê vai fazer... a mais... você mesmo é um exemplo que você já me falou, né?
Se você fosse seguir o que as instituições determinavam o que você ia fazer, você não
poderia, num é? A minha vida, também, me empurrou para um monte de lugar
diferente, até chegar em um lugar, oh... faz isso aqui, aí vô lá.. daí você faz e aproveita
da melhor maneira possível... dentro da faculdade também eu tinha uma certa
respeitabilidade dentro da sala de aula, eu não era o cdf, o número 1, mas eu nunca
tive nota vermelha e fechei tudo com nota boa.. nunca fiquei de DP, num fiquei
devendo nada de trabalho, nada, na biblioteca o aluno que mais lia... e trabalhava
dentro da faculdade. E qual era o período que eu tinha pra ler? Final de semana e a
noite. Não é... era o aluno que mais pegava livro na biblioteca, e num é pegar livro,
lia, estudava, e trabalho, na época não tinha computador, não tinha essa facilidade,
fazia a mão, pintava, final de semana inteiro...

Pascoal – Que legal.. isso em 91...

H. F. – Sim, é... 89, 90, 91...


334

Pascoal – Você me fez lembrar agora uma coisa. Minha pesquisa é um


texto sobre Michel Foucault na verdade, e esse filósofo trabalha um texto lá de Platão,
lá do século IV antes de Cristo, e é um diálogo do Sócrates com o amante dele
chamado Alcibíades, né. E tem uma coisa que ele coloca lá, olha só: Sócrates
perguntando pro Alcibíades, ele faz assim: você desejaria viver com aquilo que já
possui ou morrer se não lhe fosse possível adquirir bens maiores? Se eu te fizesse essa
pergunta, você estaria bem hoje, ou você preferia morrer se não fosse conquistar mais
nada?

H. F. – Não.. morrer não.. morrer não... é uma situação complicada né... bem
filosófica... mas morrer não, mas... eu acho que a vida ela nunca é só isso, você deixa
ela transformar no só isso ou não. Agora, se fosse pra resposta final, pum... aí fica
complicado né, mas eu sempre prefiro viver um pouco mais, morrer não.. morrer
quando vier o chamado memo, por opção minha, não...

Pascoal – Mas... se o H.F. fosse a partir de hoje, não fosse conquistar mais
nada, fosse ter os filhos que tem, a casa que tem, o carro que tem...

H. F. – Puxa, meu, não... tô satisfeito. Tô feliz, ué.. o que eu tenho eu tô feliz...


não sou ganancioso. É logico que a gente almeja mais, mas o que eu conquistei até
aqui não foi nada fácil, tudo foi com muita dificuldade, com muita... eu acho que pela
formação que eu tive de família não tem essa de jogar a toalha, né? Amém. Cheguei
até aqui... Aaa você é velho... os colegas tiram sarro.. na prefeitura mais ainda.

Pascoal – Você é o mais velho lá?

H. F. – So. É o velho, é isso, é aquilo.

Pascoal – Lá você é professor de educação física...

H. F. – Sim.

Pascoal – Mas você disse que era de natação.

H. F. – De natação adaptada. Só com pessoas especiais lá na prefeitura.

Pascoal – Que legal.

H. F. – É... então, mas por exemplo, pra chegar aonde eu tô dentro da


prefeitura, se eu não mostrasse que tenho competência... porque o cargo que eu ocupo
é um cargo de indicação, então não é qualquer um que chegou lá, tanto é que no
335

departamento que eu trabalho não vai pra atribuição, lá é por, por, você tem que
ter o perfil para aquele cargo. Então, é, trabalho com alunos especiais... tô feliz, dentro
da rede municipal eu tô muito feliz, ué, eu tô muito bem, então.. ah... aqui no Estado,
também. Dentro das escolas de Santo André aqui oh, eu rodei por 20, 30 escolas... na
periferia tudo aí eu dei aula.. tanto hoje, quando ando junto com a minha esposa, ela
que nasceu aqui fala: caramba, você conhece bem mais do que eu... lógico, que eu
andei pra tudo o que é canto, até chegar aqui no Galeão, então, quer dizer, se for pra
mim escolher uma escola pra dar aula, o Galeão pra mim tá excelente, porque o que
vem pra cá? Nós trabalhamos... dentro da rede pública nós trabalhamos com o que tem
de melhor do alunado. Problemas iguais aos outros lá da periferia, em termos de
sistema, de direção, de coordenação.

Pascoal – Mas em questão de segurança, de...

H. F. – Sim, trabalhamos mais tranquilos. Não trabalhamos?

Pascoal – Eu já fui ameaçado de morte... duas vezes...

H. F. – É mesmo?

Pascoal – Lá no Juarez Távora e no Joaquim Lúcio...

H. F. – Eu nunca cheguei nesse ponto com aluno, eu já discuti com aluno e


tudo, mas...

Pascoal – Um tá preso agora e outro já morreu.

H. F. – Coitado, oh, que pena.. pro cê vê...

Pascoal – Eu tô acabando de falar que o cara me ameaçou de morte e você tá


falando coitado com o cara? (Risos)

H. F. – Coitado, porque ele não teve a oportunidade que você teve.

Pascoal – Mas eu acho isso muito bonito em você. Você consegue ver o copo
cheio..

H. F. – Sim... ele não teve a oportunidade que você teve.

Pascoal – Mas imagina, a gente tem um ministro da educação que falou que
faculdade é pra elite...

H. F. – Oh, Pascoal... e fala pra mim... é mentira?


336

Pascoal – Então, mas uma coisa é você olhar pra traz e olhar para o agora;
outra coisa é você olhar pra frente...

H. F. – Ah... mas mesma coisa a nossa ministra lá da, do meio ambiente, sei lá
do que, a Damares, só fala asneira, eu acho assim, quanto mais tempo você tem o
microfone na mão falando, mais chance você tem de falar besteira, daí depois a
cobrança vem. O que aconteceu com esse pessoal aí é que eles viraram telhado, mas
quantas besteiras eu já falei na minha vida e que hoje não é nada daquilo.. por quê?
Porque a vida vai te dando oportunidade de pensar diferente, então eu acho que a
gente sempre tem que dar oportunidade... aaaa... quer reformar, acha que tá tudo
errado, muda, mostra pra mim como faz. É o que aconteceu com nós agora. Tiraram..
não é pra trabalhar com esse caderninho, não que eu achasse que isso aí é uma
maravilha, mas tem muita coisa que eu consigo aproveitar desse material e fazer o
melhor que eu posso.

Pascoal – O caderninho que você tá falando é a apostila que eles usam?

H. F. – É, a apostila do Estado. Agora o que aconteceu? Olha a situação que


nós estamos... nós estamos em uma situação que tirou aquilo, não é pra trabalhar
aquilo, mas e o que é então pra trabalhar... segunda-feira, terça-feira nós vamos
começar com aluno pra valer, e eu até hoje, que é sexta-feira não sei o que é pra
trabalhar com o aluno na segunda-feira. Não é pior? Por quê? Você é o professor,
você faria o melhor possível, você fez o melhor que você pode com este material,
dentro das possibilidades... Mas não é isso?

Pascoal – Eu acho que é isso...

H. F. – É, uai, aí...

Pascoal – Mas não saiu aquela resolução que a gente pode usar o
materialzinho?

H. F. – Num sei, ué. Até onde eu sei, e foi lá no grupo nosso que não era pra
usar aquele material. Agora, que tem muita coisa ali que eu acho de extrema
importância trabalhar dentro da área da educação física, e eu trabalhava, porque você
nunca trabalhava exatamente o que vem ali, tanto é que é uma sugestão, quem lê ali,
naquela descrição da secretaria da educação, é uma sugestão de conteúdo, você
trabalha se for possível, se as possibilidades da tua escola, da tua realidade permitir,
né? Tanto que tem esporte lá que, por exemplo, ginástica olímpica, boxe, capoeira, blá
337

blá blá, blá blá blá, eu não tenho conhecimento prático pra trabalhar isso aqui, mas
eu tenho conhecimento teórico pra trabalhar o assunto. Sem precisar que o aluno
enfrente o outro aqui, e entre em uma luta de braço. Aqui dá pra mim fazer o jogo, a
luta, sem incitar essa luta que sugere lá. Né, porque, tem um histórico, o boxe, a
capoeira, o taekwondo, o tênis de quadra, o... ginástica artística, que nois não tem nada
aqui na escola que ofereça possibilidade de trabalhar isso, mas existe uma história,
que eu posso trabalha, que eu posso pesquisa e posso mostra os talentos que estão aí,
dentro dessas, então nós temos muitos talentos e dá pra aproveitar... agora tamo aí,
aguardando...

Pascoal – Aguardando as orientações.. como a política interfere na educação,


violenta, estupra!

H. F. – Sempre né. E aí? Ai o ministro tá errado?

Pascoal – Tá!

H. F. – Você acha que é fácil chegar na, na universidade... foi fácil pro cê?

Pascoal – Não, não foi fácil. Eu só consegui porque minha mãe era faxineira,
eu consegui bolsa, porque eu era da igreja...

H. F. – E não é de elite?

Pascoal – Então, é o que eu quis dizer... uma coisa é você olhar pro sistema,
olhar pro sistema e perceber como um sistema de elite é tenebroso. E de fato é assim.
No Arbos eu tenho aluno que ele vai estudar de manhã na USP e a noite, sabe aonde
ele poderia estudar? Na UFABC... ele conseguiu, simplesmente, entrar nas duas
melhores universidades públicas de São Paulo de grátis. Que de manhã ele pode fazer
uma e se quiser a noite pode fazer outra... isso é de elite. O grupo que ele vai conviver
é de elite. Só que quando eu faço política eu tenho que olhar pra frente. Então se eu
penso política ainda legitimando um discurso que universidade faz parte da elite, o seu
filho faz parte da elite. Ele está na UNICAMP...

H. F. – Sim..

Pascoal – ... que hoje, na minha opinião, é a melhor do Brasil. Não é a melhor
de São Paulo.

H. F. – Por isso que eu tô te falando.


338

Pascoal – Mas então, quando a gente olha pra frente a gente tem que pensar
em políticas educacionais.

H. F. – Mas o que o ministro falou ele não tá errado. O que eu acho...

Pascoal – Como análise do sistema, não, é elite mesmo...

H. F. – Sobre elite, ele tem noção disso, ele tem que ter noção disso que a
universidade é pra elite e o que eu vou fazer, o que qui eu vô fazer pra tentar mudar
isso, ou pra tentar aumentar a possibilidade de que os outros cheguem aqui?

Pascoal – Por exemplo, a UFABC, eu acho muito bonito, a proposta é que 50%
dos alunos lá tem que vir da rede pública, isso é um negócio muito legal né.

H. F. – Sim, concordo com você.

Pascoal – É, um estímulo.

H. F. – Eu concordo com regime de cota.

Pascoal – Cota é errado? Certo? Você percebe que é o melhor possível dentro
das possibilidades.

H. F. – Então... oia aí pro cê vê. Quando entraram lá pra começar a trabalhar o


regime de cota, pode ter certeza que eles sabiam que a universidade é elitista. E é...
tanto é que a cada 100 alunos que saem daqui, 1 sai lá na universidade. Que sai do
ensino médio sai lá na universidade. Esse é o cálculo dos tempos atrás, não sei se
aumentou. Mas é isso, e você fala pra mim que isso não é elitista.

Pascoal – Extremamente.

H. F. – O ministro não tá errado... agora que eu vou fazer.

Pascoal – Como radiografia do agora, não... mas como projeção política de


política educacional ele está errado...

H. F. – Eu acho assim, o que eu vou fazer pra mudar isso...

Pascoal – É... eu acho que a crítica dentro do discurso dele, se dá,


principalmente.

H. F. – Foi no sentido de que não é pra todo mundo memo...

Pascoal – É, porque ele não fundamentou um discurso de abrangência, tipo, de


fato nós sabemos disso.
339

H. F. – Ele fez uma crítica nua e crua que é o que nóis tamo fazendo aqui,
da realidade.

Pascoal – Mas ele não falou como a gente pode fazer o melhor possível dentro
das possibilidades... e essa discussão não houve na fala...

H. F. – Então, veja bem...

Pascoal – ... aquilo que se espera de um ministro.

H. F. – ... então, veja bem, é tão elitista que eu fiz faculdade, que nunca fui de
elite e você foi de elite?

Pascoal – Não...

H. F. – Você fez faculdade?

Pascoal – Fiz...

H. F. – Então...

Pascoal – Mas fiz por causa de outros...

H. F. – Meu amigo, as ferramentas quem te dá não é você, quem te dá é Deus...

Pascoal – Minha mãe era faxineira, ganhei bolsa, participava de uma igreja,
igreja me deu oportunidade de fazer outro curso...

H. F. – Num é, olha a oportunidade que Deus proporcionou...

Pascoal – O grupo que eu fazia parte da igreja, estimulava muito a educação.


Falando sobre este estimulo: se você pudesse definir educação é... essa formativa,
educação.. como você, olhando pra frente, o Hélio por esses mais de 20 anos formado,
olhando pra frente.

H. F. – Eu acho que é um processo, é um processo. Então, aqui é um degrau,


que quem quer continuar na área acadêmica, ele vai ter que, né... seguir
profissionalmente, né, partir para a outra área, é fundamental educação. Essa que nós
passamos aqui, tanto que eu tô falando, não deveria ser obrigatória, deveria ser livre,
por quê? Porque evita da gente ter aqui dentro muita coisa que, que, bom... mas pra
isso o povo deveria ter bom senso pra isso e num tem, então tem que ser obrigatória
mesmo... (risos) é... dentro da realidade... mas de extrema importância. A educação,
eu acho que resume tudo, tudo gira em torna da educação...
340

Pascoal – Por que, por exemplo, você vê um aluno que me ameaçou de


morte... o histórico, não sabe quem é pai, 4 ou 5 irmão, tudo perdido, viciado no
craque, ele... logo ele vai estar lá, porque ele tem que estar ali, porque o Estado vê que
é algo bom pra ele...

H. F. – Mas se ele tivesse tido oportunidade...

Pascoal – Ele poderia ter sido, esse meu aluno que de manhã vai estudar da
USP e a noite da UFABC...

H. F. – Exato meu amigo, por isso que eu te falei que eu tenho dó. Porque você
teve uma oportunidade eu tive uma oportunidade que ele não conseguiu ver a
oportunidade.

Pascoal – Mas a gente só abraçou a oportunidade porque a gente tinha


alguém... um referência.

H. F. – Alguém que estava te empurrando...

Pascoal – Você tinha sua família... seus irmãos, sua mãe e seu pai...

H. F. – ...e... isso te torna elite.. isso te torna elite.

Pascoal – Lembro quando você me contou a sua história de quando você era
apanhador de algodão.

H. F. – Café.

Pascoal – Café... sua mãe também? Seu pai também? Tudo na roça?

H. F. – Meu pai. Eles são originário da zona rural, né.

Pascoal – E seu pai já via que a educação era um negócio importante.

H. F. – A minha mãe era mais inculcada com isso.

Pascoal – Foi ela que falou: você vai estudar você trabalhar...

H. F. – Não... todos vão estudar. Ela não deu essa segunda opção. Porque,
porque meu pai ele fez o seguinte, ele era filho de fazendeiro, daí quando o meu avô
casou pela segunda vez, meu avô ele era casado com a mãe do meu pai, teve dois
filhos e a minha vó morreu. Daí o meu avô casou de novo, daí o que aconteceu? Ele
pegou a parte da fazenda por lei, legal isso, dividiu isso, a parte que era da minha vó,
dividiu em duas, pro meu pai e pra minha tia. Daí o que meu pai fez? Por ser um
341

ignorante lá da roça, num ter muito conhecimento, porque meu avô também não
tinha ensinado isso pra ele. Só ensinou a ser trabalhador. Não ensinou ele administra.
Meu pai veio pra cidade, vendeu o que tinha lá e veio pra cidade. A cidade pequena,
quando chegou na cidade comprou um hotel, comprou uma linha de ônibus, essa linha
Santa Cruz que tem aí, ela começou lá, fazendo viagem de Muzambinho a Poços de
Caldas. Essa linha de ônibus, lá em casa tem essa, lá em Minas tem a foto dele com a
mão, com a mão do lado do ônibus assim. Na época era estrada de terra, ele era o
cobrador porque nem dirigir ele dirigia, comprou um ônibus... e aí, todo mundo
quando pega uma pessoa assim, com dinheiro, mas sem saber administrar, explora, a
pessoa encosta.. daí ele acabou com o que ele tinha muito rápido... o que era a herança
dele ele acabou muito rápido. E a minha mãe, aí nessa situação, o quê? Trabalhar.
Lavar roupa pra fora, passar roupa. Aquela coisa, né, que lá, a gente... por isso eu te
falei que a gente passou por períodos difíceis. Passar fome, ter que usar roupa que os
outro dava, e a roupa quando chegava na família, enquanto não virava trapo, ninguém
tirava o corpo, porque ia de um, pro outro, pro outro, pro outro e ia crescendo e
passava pro outro, então foi uma vida muito difícil, e aí minha mãe fez o que?
Estudar... vocês vão estudar.. e oh... (estalo com os dedos representando trabalhado).
E o meu pai quando acabou com tudo o que ele tinha, aí ele foi trabalhar de servente
de pedreiro porque ele não tinha profissão. Ele era trabalhador rural, né, e se ele não
fosse trabalhar lá com o meu avô.. porque lá, também, ele não aprendeu a trabalhar; lá
ele aprendia a obedecer ordem, ele não aprendeu a trabalhar.

Pascoal – Faz isso, faz aquilo.

H. F. – É, faz isso, faz aquilo e tá mal feito... porque era assim que educava na
época... num tinha aquele negócio de sentar com o filho pra conversar... o que a gente
faz hoje... tentar conversar... porque eu tento conversar com o meu filho mas.... só
tento neé... aí né, ele, ele acabou com tudo o que tinha... Estudar... Minha mãe dizia:
vocês vão estudar. Eu por exemplo, eu acho que eu tinha algum distúrbio, porque eu
levei pau no primeiro ano, no segundo ano... quer dizer, alguma coisa tava errado, eu
não conseguia aprender, eu não conseguir acompanhar. E aí no terceiro ano eu só
passei porque a professora né, passei direto, porque eu tive que repetir o primeiro, o
segundo, daí no terceiro e passei porque a professora era muito gente boa... assim...

Pascoal – Boa de coração?


342

H. F. – Não... ela não ligava pra mim... Porque se ela fosse boa de coração
ela tinha me ensinado.

Pascoal – Tinha te reprovado.

H. F. – Num é? Ou me ensinado, pow! Aonde que tá o problema? Né? É coisa


que a gente vê hoje aqui, que estamos dentro da educação que o que a gente tenta
aqui? Num é ajudar o aluno da maneira que você pode, dentro da dificuldade dele? Da
melhor maneira possível... a não, ele escreve mal, mas isso e aquilo, mas não importa.
Meu querido, vem cá, vem aqui óh, você dá suas dicas hoje aqui. Eu não sou professor
de alfabetização mas eu continuo falando com eles sobre isso. Então a gente faz uma
par... e aí, com o tempo, estudar, estudar, estudar... quando eu cheguei na oitava série
na época era o quarto ano do... do colegial, fui reprovado. E eu já tinha feito a
inscrição pra fazer escola técnico lá em Muzambinho. É, escolha agropecuária. Ia
trabalhar com máquina, trabalhar na zona rural, aprender esse trabalho, porque lá ou o
aluno aprendia na prática... uma fazenda a escola, hoje em dia não é mais, hoje
mudou, é empregado, porque o aluno não pode pôr a mão no serviço, então mudou.
Aí, era pra mim ter feito essa escola, mas eu fui reprovado na escola, estudava de dia,
trabalhava, fazia bico pra lá pra cá, pra lá pra cá, aí eu.. o meu pai falou... você vai
trabalhar pra valer... daí eu fui pra escola noturna. Como não tinha outra alternativa,
fui fazer o curso técnico de contabilidade... aí fiz o ensino médio que foi técnico em
contabilidade. Pra você vê que não tem nada a vê com educação física, né? E também,
nada a vê com engenharia. Se eu tivesse ido pra parte técnica lá, pra escola
agrotécnica... talvez eu poderia ter ido pra agronomia, engenharia agrícola, engenharia
ambiental, que já se falava nisso, mas aí... não me foi permitido fazer isso, daí fui pra
esse curso técnico. Aí, desde na escola lá, no fundamental, no quarto ano, terceiro ano,
eu não acompanhava na sala de aula, mas era o líder, eu era o presidente do líder. Não
sei da onde eles arrancavam isso, mas eu conseguia ser eleito, coisa que eu nem
candidato era. Mas é lógico né meu, vamo manipular? Quem eles pegam pra
manipula? Quem é mais bobinho. Aí eu era o líder. Tanto que na escola que nois
estudava nois fizemos um baita de um jardim na frente lá, toda a tarde íamos pra lá,
trabalhar nesse jardim, beleza... operacional eu era bom, jardim imenso, plantamos um
monte de árvore, fui pro colégio, né, lá a mesma coisa. Você é do grêmio. Era o
presidente do grêmio. Fizemo também lá um jardim imenso dentro dessa escola lá,
343

esse eu acho que tem até hoje no colégio, porque plantamos umas árvores
centenárias lá e não pode cortar, né. E aí fui pro... e assim foi..

Pascoal – Nada foi planejado.

H. F. – Nada. Assim, não... foi acontecendo. É onde eu te falo, é Deus que vai
providenciando. Que vai aparando as arestas.

Pascoal – Meu amigo Hélio, obrigado viu.

H. F. – Deu certo...?

Pascoal – Super...

6. Docente M.F.M
A professora M.F.M é professora efetiva de história e atua como vice-
diretora. Ela tem como responsabilidade auxiliar na gestão de 38 turmas (Ensino
fundamental II e Ensino Médio), além de duas coordenadoras pedagógicas e 64
docentes (categoria A, F ou O), além de docentes eventuais, profissionais da
limpeza, cantina, merendeiras, secretaria e docentes readaptados.

Pascoal – Você planejou chegar aonde você está?

M.F.M – Eu planejei chegar, é, eu sempre quis sempre o melhor pra mim. A


princípio, na minha adolescência, eu não pensava em trabalhar na educação, eu sabia
que queria algo bom para mim, eu não queria ficar... queria fazer uma faculdade, é, eu
queria trabalhar em algo que eu gostasse muito. Quando eu terminei o ensino médio,
antes de fazer minha faculdade eu fui realizar meu primeiro sonho, que era me casar e
meu segundo sonho, que foi ter filho, é e depois quando meu filho estava com nove
meses eu comecei a fazer a faculdade. É, então eu planejei sim, estar aonde eu estou,
então, a partir do momento que eu escolhi fazer Estudos Sociais, eu comecei a querer
sempre mais e aí eu fui. Terminei Estudos Sociais, fui fazer história e, ingressei no
Estado. Já fui coordenadora pedagógica durante 7 anos e, aí, eu fiz a pedagogia
porque eu já e, sonhava em ser diretora de Escola, né, eu planejei chegar aonde estou e
eu planejo chegar além ainda, os meus sonhos e minhas realizações não terminaram
por aqui. Só acrescentando, eu planejei chegar aonde estou, planejei ser diretoria, só
que ainda eu não sou diretora, então é um caminho normal, estou como vice-diretora e
planejo, um dia, chegar à direção de uma escola. Então isso são planos.
344

Pascoal - Como você considera o desenvolvimento da sua história de vida?

M.F.M – É... foram etapas né, então assim, eu tive planos, planejei e fui
realizando esses planos, desejos, né. Passo a passo. Então, primeiro casei, como disse,
tive um filho, e, depois fui fazer a faculdade. então, assim, é o desenvolvimento foi
bom para mim. Eu fiz o que eu deveria ter feito, é, até porque o meu companheiro,
meu ex-companheiro, me ajudou muito nesse desenvolvimento. A gente sempre
apoiou um ao outro e é muito importante ter o apoio de uma pessoa que tá ali do seu
lado, te dando uma força, dizendo vai. Tá difícil, mas vai. Tá difícil, mas eu te ajudo.
Eu sou muito grata a essa parceria que eu tive, né, então, eu tive que desenvolver essa
minha história, esse meu caminho profissional, praticamente sozinha, por que meus
pais não tinha condições de pagar uma faculdade, como muitos hoje tem, os pais
bancam, os pais vão lá e, sabe, apoiam seus filhos. Meus pais são pessoas simples.
Para minha mãe, eu terminar o ensino fundamental já tava suficiente. Mas eu queria
mais, e aí eu fui terminar o ensino médio, e depois pros meus pais tava tudo ótimo, né.
Mas eu queria mais, queria mais. Então eu fui atrás dessa... han, dessas realizações e a
minha vida foi desenvolvendo assim, com o meu esforço, com a minha vontade
mesmo, não foi fácil Ser mãe, esposa, trabalhar fora e fazer faculdade foi assim, lição
de vida muito grande ter que dar conta de tudo, então eu sou assim, uma mulher que
tenho que me valorizar muito, por isso. Não posso deixar de citar, né, o meu ex-
companheiro que me deu assim muito apoio, mesmo, na minha história de vida. Eu
sou grata a tudo, principalmente a mim. Então é isso.

Pascoal - O caminho foi árduo ou seguiu um roteiro tranquilamente?

M.F.M – Não foi tranquilo, foi árduo. É, porque eu tinha uma criança pequena,
né. E eu fui, meti as caras e logo que eu comecei na faculdade, isso a mais de 20 anos
atrás, 23, 24 anos. Eu já comecei a estudar, então, eu estudava, eu tinha minha casa,
meu marido, meu filho e todos os trabalhos da faculdade, estudar. Eu estudava de
madrugada, depois que eu fazia todas as minhas tarefas, dormia 2, 3 horas por dia,
acordava cedo, ficava com o meu filho, então eu trabalhava, estudava a tarde, já no
finalzinho da tarde eu ia pra faculdade e não foi algo assim, tranquilo, mas valeu
muito a pena, porque, como eu disse anteriormente, foi um aprendizado, dar conta de
tudo né. Dar conta daquilo que eu queria pra mim. Eu queria abraçar o mundo. Eu
abracei e não me arrependo. Porque são coisas que, a vida, a gente aprende e desse
aprendizado ninguém vai tirar de mim. Acho que é isso.
345

Pascoal - Você está satisfeita com quem se tornou, com quem você é?

M.F.M – Olha, essa pergunta é... nossa.. é não sei. Eu estou satisfeita sim. É,
eu lutei muito pra chegar onde estou, mas ainda não estou satisfeita porque quero
mais. Quero ainda mais. Né, então, quando uma pessoa diz eu estou satisfeita, é
porque ela já realizou todos os seus desejos, tudo o que ela quer. Eu ainda não realizei,
né, porque eu ainda quero chegar além, mas eu sei que me tornei uma pessoa é, boa,
no sentido profissional eu sei que tenho que melhorar muito, porque não estou
satisfeita 100%, sempre acho que tenho que ir além. Como pessoa, eu estou satisfeita
com o que me tornei, mas também, quero melhorar sempre, porque a gente tem que
sempre buscar o aprimoramento, eu penso que se você está vivo você tem que buscar
sempre mais, sempre mais, e eu busco. Então, satisfeita, 100% ainda não, mas estou
feliz pela pessoa que estou me tornando a cada dia. A profissional que está
aprendendo a cada dia. Aprendendo com os adolescentes e as crianças, aprendendo
com os responsáveis desses adolescentes e dessas crianças, e com os colegas de
trabalho e é uma questão muito difícil, muito complexa.

Pascoal - Você se contentaria em viver com aquilo que possui ou morrer se não
fosse conquistar mais nada?

M.F.M – Nossa, essa também é difícil, porque, não... difícil. Não... não é
difícil, porque eu amo viver, eu não, é, pensaria em morrer de forma alguma se eu não
fosse conquistar mais nada, mas também eu não me contentaria nunca com aquilo que
eu possuo. Então, assim, é, eu acho que quando a gente tem vontade de viver, a gente
ainda é, tem folego, a gente quer conquistar coisas, e quanto mais você conquista mais
você quer conquistar. Por uma questão financeira, por uma questão de ego, por uma
questão de satisfação pessoal, enfim, é, eu não, eu não me contento com o que eu
tenho ainda, eu quero mais, mas, se alguém falar pra mim que eu não iria possuir mais
nada, eu também não queria morrer por causa disso. Então, é muito complexa essa
pergunta e é muito difícil de responder porque não dá, na minha concepção, dizer
“então eu prefiro morrer, já que eu não vou conquistar mais nada”. Eu não diria isso
porque eu amo viver, não penso em morrer. Não que eu tenha medo da morte, eu não
tenho medo da morte, mas eu amo a vida. É, então, olha só que coisa louca, se fosse
pra escolher, então tudo bem, eu diria, eu vivo com isso que eu tenho, mas eu tenho
uma gama muito grande de querer sempre mais pra mim, né, uma questão não só
financeira, mas uma questão, também, de satisfação pessoal. Então, eu, nossa, que
346

difícil, prô... que difícil.... ah, eu não... olha, eu não sei se essa resposta é muito
satisfatória pra você.

Pascoal – Você se vê preparada pra exercer a função que exerce hoje?

M.F.M – A função que eu exerço hoje é de vice-diretora, eu me considero


preparada, mas eu, ao mesmo tempo, eu não me sinto preparada, porque as pessoas
elas não deixam, né, ou elas, de uma forma, obstruem o meu trabalho. Então assim, a
questão de estar preparada é uma, a de você poder colocar a sua preparação na prática
é outra. Né, porque a função de vice-diretor ela fica na corda bamba, porque você lidar
com alunos, com professores, com pais de alunos, com o chefe, com a coordenação
ela é extremamente, assim, muito, né, difícil, muito difícil porque trabalhar com
pessoas é difícil, mas eu me sinto preparada quando a questão é o aluno, eu sinto um
carisma muito grande por parte deles, é, ser gentil de conversar, de entender o lado, de
dar aquela bronca, é, com os pais, de intervir, de, porque não é fácil falar com o pai do
problema do seu filho, tem pais que não aceitam de forma alguma, tem outros que
aceitam, é lidar com muitas ideias, né, diferentes, posturas diferentes, educações
diferentes e quando se diz, né, questão a coordenação, aos funcionários, aos
professores é muito muito difícil mesmo, porque a gente fica às vezes pisando em
ovos. Isso não quer dizer que a gente não esteja preparada. Eu tenho o meu jeito de
trabalhar que não é igual a outro, ao meu diretor, as coordenadoras, por isso que tem
que ter o respeito, as pessoas têm que se ouvir, tem que combinar, deixar tudo muito
claro.

Pascoal – De onde vem esse preparo?

M.F.M – Eu acho que esse preparo foi da vida mesmo. Foi lidando com
pessoas e observando as pessoas, porque na faculdade a gente não aprende a prática, o
teórico é muito diferente da prática e quando eu pisei em uma sala, pela primeira vez,
eu saí assim, atordoada, porque era uma sala muito difícil , de nono ano, de alunos
repetentes, de uma escola difícil, a partir daquele momento, eu disse: não, eu quero
isso pra mim então eu tenho que me preparar, e como eu vou me preparar? Batendo de
frente com aluno? Tentando entender? Observando? Então veio na vivência, mesmo,
né? Com a prática, com o dia a dia, errei muito acertei muito. Erro ainda, mas esse
preparo vem da vida mesmo, vem de leituras, ouvindo educadores, ouvindo outras
experiências, observando outras pessoas, o trabalho de outras pessoas, aquilo que você
quer, que você acha correto pegar pra si, o que você não acha correto. Usar de
347

experiências de não posso fazer isso, que eu acho errado. É realmente a prática, é
ter a sensibilidade ser sensível, né, aos olhos dos outros. É você olhar pro outro, é
você observar o outro, observar a sua volta, observar tudo o que acontece e dali tirar
as suas experiências, aprendizagem e foi assim que eu considero o meu preparo. Eles
não estão apenas nos livros, mas ela está na vivência do dia a dia, na prática do dia a
dia.

Pascoal – Qual foi o papel dos professores em sua vida? Algum marcou sua
história? Como?

M.F. M – Ah... Os professores tiveram sim. Muitos marcaram: ou pela


intolerância ou pela sensibilidade. Então, o meu preparo como profissional hoje, vem
também disso, né, dos professores que eu tive, então, que tiveram, os que marcaram
muito, tenho dois professores, um da quarta série e outro da sétima série que eram
professores muito enérgicos, militares, e eu fui educada, praticamente no regime
militar, né, é, como eu sou nascida na década de 70 a escola era, até 85, eu estude no
regime militar, a democracia, ela tava mais suave a ditadura militar nessa época, nos
anos 80, porém os professores eram da década de 70, muito rígido. E eu era uma
menina muito peralta, danada, assim, eu amava, eu amo viver, aproveitar todos os
momentos da minha vida, então eu sofri muito com o autoritarismo desses dois
professores, da quarta série e uma professora de geometria que eu tive da sétima série.
Professores do tipo assim: espirrou é pra fora da sala, é, piscou um pouquinho a mais
vai pra diretoria, enfim, era muito duro, então acho que já aprendi daí como eu queria
ser, como pessoa, porque eu não pensava no meu profissional, como pessoa. E tive
dois professores maravilhosos, uma professora que tinha o apelido de Tuca, era aquela
professora doidona, sabe, do tipo que aaaa... chegava na sala os alunos adoravam,
tinha uma conversa muito aberta, era professora de ciências, então, falava sobre tudo.
Eu lembro que ela me dava muitos conselhos porque eu era danada, me acolheu na
minha adolescência, me acolheu no sentido de conselhos , não era só aquilo, não era
só a matéria, “Azinho Azão”, tipo sanguíneo, enfim, foi uma professora que olhava o
aluno como ser humano. “Hoje você tá triste, o que você tem?” não era só comigo, era
com todos, é, porque você não fez o deve de casa, o que aconteceu? Por que você
chegou atrasado? Sabe, era uma professora que via o aluno como ser humano e essa
pessoa que eu quis me tornar. Naquele momento, era uma pessoa como ela. E eu acho
que eu tô no caminho de uma profissional como ela. De olhar pro aluno e perguntar:
348

pô, o que você tem? Você não tá legal, enfim. E o outro foi um professor de ensino
médio que me ensinou a ver o mundo de outra forma, que o mundo era uma droga: ou
você se defende do mundo ou ele te engole. Não importa o que você seja... seja. Seja.
Se for pra ser uma diarista, seja a diarista, se for pra ser uma engenheira, seja a
engenheira, então ele passava isso pra gente, pra turma. Então me marcou muito esses
quatro professores, dois de uma forma mais humanizada e dois de formas mais
desumanizadas, vamos dizer assim.

Pascoal - Por que se preparar pra desempenhar uma determinada função se a


maioria das pessoas que executam são despreparadas?

M.F. M – Bom, eu acho que cada um, cada pessoa tem que saber o que ela
quer, ela tem que estar pronta, ela tem que se preparar. E como ela vai se preparar?
Vai se preparar pra ser boa ou mais ou menos? Se preparar para ser top ou meia boca?
Aí não dá, então, eu penso que quando eu me preparei, quando eu me preparei, eu
tinha me preparado buscando o meu melhor, não importa o outro, o outro é o outro, se
o outro não faz a coisa certa, eu vou, não é por isso que eu não vou deixar de fazer o
meu ser igual ao outro: meia boca. Eu não quero ser meia boca, quero ser sempre
melhor para mim, melhor para o outro. É uma questão, assim, ideológica, mesmo, de
idealizar aquilo, de se preparar de ser um bom profissional, né, de ganhar o seu
espaço, é, sendo capaz, aí o outro, que não executa corretamente, que não se prepara,
infelizmente, na educação, isso é muito grave, né, se for pensar em um professor que
não se prepara para dar aula, ele vai prejudicar os alunos, ele não vai se prejudicar, ele
vai prejudicar o aluno, isso é muito ruim. Eu não tenho que pensar, nisso, eu vou lá e
faço qualquer coisa. Não. Eu tenho que pensar que estou lidando com seres humanos e
que aquela pessoinha que está ali na minha frente, está esperando melhor de mim, o
aluno confia no professor, ele tem que confiar no professor, confiar no que o professor
está passando, quando ele chega na minha sala, mesmo que for pra levar bronca, ele
quer que eu seja justa e esteja preparada para ouvi-lo, então, a gente tem que pensar
no melhor desempenho, já que a nossa profissão trabalha diretamente com a educação
do outro. E isso é muito importante.
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7. Docente V.M
A professora V.M. é professora efetiva de matemática e atua como
coordenadora pedagógica do Ensino Médio. Estão sob sua responsabilidade 19
salas.

Pascoal – Você planejou chegar aonde você está?

V. M. – Tinha outros planos para meu futuro, mas vi a conveniência entre a


vida profissional e ser mãe, principalmente nos primeiros anos de vida dos filhos em
função das férias e feriados, assim entrei no magistério por opção e conveniência.

Pascoal - Como você considera o desenvolvimento da sua história de vida?

V. M. – Não sei ao certo, não tracei uma rota e a segui, a cada opção de
caminhos que a vida me deu me pautei em momentos que estava vivendo para optar
por qual direção tomar.

Pascoal - O caminho foi árduo ou seguiu um roteiro tranquilamente?

V. M. – As pedras em meu caminho consegui levar tranquilamente, mesmo


antes de entrar no magistério, onde tinha maior número de pedras eu carregava.

Pascoal - Você está satisfeita com quem se tornou, com quem você é?

V. M. – Não plenamente, às vezes sinto poder muito mais do que faço, mas
algumas mudanças dependem de fatores que ainda não consigo mudar.

Pascoal - Você se contentaria em viver com aquilo que possui ou morrer se não
fosse conquistar mais nada?

V. M. - Então, eu não vou preferir morrer nunca, eu vou morrer quando tiver
que morrer. Eu gostaria de mais? Gostaria de mais, mas, tá muito bom desse jeito. Se
melhorar, ótimo. Eu só não quero piorar.

Pascoal - Você se vê preparada pra exercer a função que exerce hoje?

V. M. – Eu não me vejo preparada, assim, para exercer plenamente a função.


No entanto, também não me vejo despreparada. Eu sei que tenho potencial para muito
mais, mas precisaria ser oferecida uma formação melhor para eu poder ser mais. Eu ir
atrás dessa formação, também. Também depende de mim, né, não depende só de
fatores externos. Eu também tenho que buscar essa formação melhor, e eu não fui.
350

Pascoal – De onde vem esse preparo?

V.M. – Esse preparo veio das formações que eu tive até hoje, que eu busquei
de experiência de vida, é, experiências profissionais, experiências pessoais.

Pascoal - Qual foi o papel dos professores em sua vida? Algum marcou sua
história? Como?

V. M. – O papel dos professores na minha vida, é um pouquinho nublado,


porque eu não tive uma escola só em meu ensino fundamental. Eu passei por escolas
diferentes em cidades diferentes e não tenho memória perfeita dos professores até aí.
Uma memória que eu tenho é de uma professora de história da quinta série que ela
mandava a gente decorar, decorar, decorar e eu não decorava nada, nunca gostei,
muito menos decorar data, a data tá lá escrita e eu vejo que tá escrita e ponto. E aí,
nessa aula ela estava tomando as datas e eu acabei me comprometendo na resposta e
ela não teve dúvida, ela me deu uma “tamancada” no tornozelo, e isso me deixou bem
chateada, mas eu não acho, num me frustrei por conta disso, simplesmente segui em
frente e não é por conta disso que vou decorar data. Os professores da graduação, e da
pós, esses sim me marcaram bastante. Tenho várias lembranças atuais e lembranças
bem carinhosas, inclusive.

Pascoal - Por que se preparar pra desempenhar uma determinada função se a


maioria das pessoas que executam são despreparadas?

V. M. – Por que se eu não me preparar quem é que vai fazer isso por mim?
Ninguém! Independente da profissão que você escolher você precisa se preparar. Não
tem essa né, ninguém vai fazer isso. Só que em outras profissões você se prepara e
muitas vezes ali é o suficiente e na educação nunca é suficiente, sempre precisa buscar
mais. Penso eu assim.

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