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2020
JOSÉ PASCOAL MANTOVANI
2020
FICHA CATALOGRÁFICA
Vitor Souza Chaves (Titular/UMESP), Rui Josgrilberg (Aposentado UMESP) Sanny Silva
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AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus por ter me dado força e condições para terminar esta tese. Diante de
tantos obstáculos que surgiram nestes últimos anos, senti o cuidado e o encorajamento do
d’Ele para prosseguir e concluir esta etapa; a Cristiane e Maria Júlia, que me inspiraram a
não desistir; a dona Nilva, mãe incansável, que me ensinou que com esforço e empenho é
possível chegar “lá”; Josué, pai de criação, muito responsável pelo homem que me tornei; a
meus familiares, que foram imprescindíveis para esta vitória, de modo especial a irmã
Pastora Rosangela e Tio Roque Bruno (sem vocês não teria chegado aqui); ao Programa de
Pós-Graduação em Educação e aos docentes que me deram um novo norte na jornada de
vida, principalmente aos profs. Rui Josgrilberg que me incentivou a retomar os estudos e
Marcelo Furlin por assumir o desafio de orientação; aos amigos de caminhada e pesquisa; à
Igreja Metodista, de modo especial a Igreja em Vila Alpina e Central em Santo André.
Agradeço aos amigos Ismael Forte Valentim, Paulo Borges, Ruy Rocha, André, Claudio
Ribeiro, Sérgio Tavares, Luiz Alceu, Elcio, Bárbara, Sidney, Luiz Alberto, Mateus Iuri,
Luiz Alberto, Daniel Camuçato, Mauro Maiorino, Carlos Guilherme, Tiago Valentim, que
mais que amigos, foram irmãos de caminhada: orientaram quando não havia rumo;
animaram quando faltava vida; acreditaram contra à própria esperança e, porque Deus foi
bom colocando vocês em minha vida, cheguei até aqui; agradeço ao apoio da revisão de
Lídia Germana que de modo generoso leu e corrigiu esta tese; Sou grato à profa. Sanny e ao
prof. Veiga-Neto por acolher tão carinhosamente e de modo generoso o convite para
participar da banca; Agradeço a parceria dos profs. Ademir, Rosana, Hélio, Vanessa e
Fátima Aparecida que me apoiaram prontamente; Ao Colégio Arbos, Escola João Galeão e
a Universidade Metodista de São Paulo por compreenderem o período intenso que foi a
escrita desta tese.
7
RESUMO
ABSTRACT
RESUMEN
SUMÁRIO
Introdução ______________________________________________________________ 12
1. Horizonte Histórico: Das Vias Labirínticas da Filosofia da Educação ______________ 20
I.1 Educação na Antiguidade: Análise da Paideia______________________________ 27
I.2 Educação na Modernidade _____________________________________________ 34
I.2.1 Educação em Etienne de La Boétie e Michel de Montaigne _______________ 37
I.2.2 Educação em Jean-Jacques Rousseau _________________________________ 42
I.2.3 Educação em Immanuel Kant _______________________________________ 50
I.2.4 Arremate Conceitual da Modernidade ________________________________ 60
I.3 A Educação na Contemporaneidade: Interpretações e Críticas _________________ 61
I.3.1 Educação em Marx e Nietzsche _____________________________________ 64
I.3.2 Arremate Conceitual na Contemporaneidade ___________________________ 73
2. Os domínios Foucaultianos _______________________________________________ 76
II.1 Foucault: Vida, Obra e Conceitos chaves _________________________________ 78
II.1.1 Foucault e a Fenomenologia _______________________________________ 80
II.2 Arqueologia: O Primeiro Domínio Foucaultiano ___________________________ 82
II.3 Genealogia: O Segundo Domínio Foucaultiano ____________________________ 95
II.4 Considerações Preliminares – Arqueologia e Genealogia ___________________ 104
II.5 Ética: O terceiro domínio foucaultiano – aparato conceitual _________________ 105
II.5.1 Foucault e a Ética ______________________________________________ 106
II.5.2 Foucault e a Subjetividade________________________________________ 108
II.5.3 Foucault e a Verdade ____________________________________________ 110
II.4.4 Foucault e o Acontecimento ______________________________________ 113
II.4.5 Experiências em categorias foucaultianas ____________________________ 114
II.4.6 Foucault e a Governamentalidade __________________________________ 116
II.4.7 Arremate Conceitual: Possíveis interpretações do terceiro Domínio _______ 119
3. Hermenêutica do Sujeito: o Terceiro domínio Focaultiano _____________________ 122
III.1 O terceiro Domínio foucaultiano _____________________________________ 123
III.1.1 Fases da Epimeleia Heautou (cuidado de si) _________________________ 126
III.1.2 O conceito de Filosofia e Espiritualidade em Foucault _________________ 133
11
INTRODUÇÃO
DA EDUCAÇÃO
Nessa citação, a ideia de educação está diretamente associada com o ato criativo
do ser humano. A educação tem como teleologia a transformação do sujeito e do meio
em que ele está, não o inverso. Quando a educação serve para instrumentalizar o
sujeito e transformá-lo em espelho das expectativas sociais, a educação perde sua
função primeira. Para Luckesi, a educação carrega uma dimensão axiológica, pois tem
uma relação dialética com o meio em que está inserida, todavia, não é refém do
sistema em que está inserida. Os valores culturais são norteadores, não restritivos.
Segundo Abbagnano, a educação está intimamente ligada com a ideia de cultura,
isso porque a cultura é imprescindível para as formações sociais e, por outro lado, a
cultura só é transmitida por meio da educação. Torna-se impossível pensar educação
sem os meandres típicos da cultura. Nessa direção, a educação se evidencia de duas
maneiras: a primeira forma como transmissora de “técnica de trabalho e de
comportamento que já estão em poder no grupo social e garantir sua relativa
imutabilidade” (ABBAGNANO, 2007, p. 306); e a segunda forma, a partir das
técnicas ensinadas e apropriadas pelo grupo, encontrar meios para que o sujeito tenha
a aptidão para alterar e aperfeiçoar essas técnicas.
As diferenças entre as duas perspectivas são fundamentais e serão o mote da
problematização desta tese, pois, se a educação é simplesmente a transmissão de um
paradigma pré-estabelecido, que corresponde às expectativas das forças dominantes,
isto é, que está no controle da sociedade, a educação não passa de um adestramento
das subjetividades dos sujeitos – estabelecendo um paralelo com a primeira definição
de Abbagnano. Porém, se a educação tem como pressuposto a formação do sujeito, de
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modo que este seja capaz de perceber-se e alterar a sua existência, alterar sua
história, alterar sua maneira de pensar e agir, a segunda definição é mais provocativa.
Portanto, a título preliminar, esta tese fundamentará seus esforços na ideia de que a
educação é a constituição de uma subjetividade ciente de si e, ao mesmo tempo, que
promova o constante devir sobre si, esboço de metanarrativas.
A articulação entre metanarrativa, educação e devir se aproxima da proposta que
Ghiraldelli aponta de filosofia da educação fundacionista, isto é, “se a metanarrativa
visa legitimar uma pedagogia que diz educar o homem para ser livre, ou seja, para que
ele venha a ser aquilo que é essencialmente, então tal narrativa filosófica, ou melhor,
tal metanarrativa é uma filosofia da educação” (GHIRALDELLI, 2006, p. 37).
Educação é a promoção dessa narrativa transcendental que faz o sujeito ter
consciência de si, do mundo, em um ato constante e ininterrupto de reciprocidade.
Parte significativa de influência sobre essa perspectiva metanarrativa presente na
educação se deve a Sócrates. É a partir desse filósofo grego que a dimensão
antropológica ganha destaque. Em vez das discussões em torno da cosmogonia ou
cosmologia, o filósofo se propõe a pensar sobre a política, a conduta moral, a verdade,
a justiça, a felicidade, o amor, enfim, temas inerentes à existência humana. Para
fundamentar sua arguição, Sócrates coloca o tema da educação como eixo fundante da
constituição do sujeito.
Sócrates é aquele que tem a vida voltada para a formação das pessoas. Seu
despertar se deu a partir do oráculo de Delfos que afirmou que ele, Sócrates, seria o
homem mais sábio de toda Grécia. Tal afirmação perturbou o filósofo de tal maneira
que ele passou a procurar os sábios da cidade a fim de inquerir, se, de fato, ele era
mesmo o homem mais sábio. Sua conclusão foi que, diferente dos sábios de sua época
que eram encharcados de certezas, Sócrates só tinha uma única certeza: a própria
incerteza. Ele só sabia que nada sabia (“só sei que nada sei”).
Esse despertar para a consciência da ignorância ocorre a partir da máxima
socrática “conhece a si mesmo” (tema que abordaremos no capítulo sobre o terceiro
Foucault), de modo que reconhecer a ignorância não é voto de permanência nessa
condição. Platão, responsável por registrar as memórias de seu mestre Sócrates,
descreve que toda a vida do seu mestre foi voltada para o ato do conhecer a si mesmo,
bem como auxiliar os outros neste movimento centrípeto (um lançar para dentro) e,
posteriormente, centrífugo, de lançar-se para fora de si, uma dialética entre o eu e o
mundo. Seu engajamento voltado à educação resultou em suas acusações, sedução dos
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jovens e ateísmos, os quais lhe renderam a pena de morte. O próximo tópico tratará
com mais afinco desta temática da educação na Antiguidade, porém destacamos a
insistência de Sócrates em auxiliar que os sujeitos tenham suas subjetividades
decolonizadas.
A reflexão sobre o fenômeno educação exige a apropriação de epistemologias
filosóficas que contribuam para o ato de discernir, de modo claro e apurado, quais os
possíveis caminhos para uma educação potencializadora, não castradora. Tanto a
Filosofia como a Educação podem ser analisadas isoladamente, todavia, quando há o
vínculo entre essas duas abordagens, percebe-se um novo campo reflexivo e
perceptivo.
Para Ghiraldelli “a filosofia da educação se preocupa com a educação,
levantando observações que os outros setores do campo educacional não acham
pertinentes ou nos quais nem mesmo veem inteligibilidade” (2006, p. 30). Para esse
autor, há uma particularidade da filosofia da educação, pois esta não é nem atributo de
um cientista da educação que busca diagramar e equacionar os processos envoltos na
educação a fim de explicar os fenômenos atrelados à educação; bem como a filosofia
da educação não está a serviço do proselitismo religioso com o intuito de catequisar os
sujeitos a uma prática moral cristalizada. A filosofia da educação não despreza a
transcendência do religioso nem as contingências do cientista, mas não fica só nisso.
Segundo Ghiraldelli, é nesse ato que se cria discurso sobre a boa pedagogia. E esta,
em muitos casos, é a negação de uma pedagogia que vem sendo reproduzida durante
muitos anos. É um incomodo para aqueles que se negam a ver os reais problemas da
educação; “não é inimigo do pedagogo, mas o seu bom amigo, seu apoio, o seu outro
lado” (GHIRALDELLI, 2006, p. 34). Quando se compreende a boa relação entre a
filosofia da educação e o pedagogo, o sucesso se instaura:
O sucesso da filosofia da educação assim imaginada e assim
formulada é que ela, mostrando-se suficientemente normativa para
se apresentar como uma pedagogia completa, facilita a integração
entre a reflexão filosófica em educação e as necessidades práticas da
sala de aula e seus problemas cotidianos, tudo o que atinge mais
direta e imediatamente os professores e alunos. (GHIRALDELLI,
2002, p. 80).
Nessa citação, evidencia-se a superação dicotômica entre teoria e prática. A
filosofia da educação tem como pressuposto partir das demandas do cotidiano e, dessa
maneira, pensar em ações pertinentes para um devir construtivo referente à sala de
aula (AQUINO, 2003). Pensar a educação a partir dos seus dilemas corriqueiros,
24
sejam eles estruturais, políticos, sociais, econômicos ou quaisquer outros, faz com
que a filosofia da educação se despregue de um patamar passivo para uma ação ativa e
protagonista da realidade.
Estudar filosofia da educação é importante porque confronta a ideia de que
ensinar, educar e formar são sinônimos, e mais do que isso, o filósofo da educação é
aquele que percebe a ipseidade de cada sujeito e, para mantê-la, precisa agir de modo
plural, isto é: as pessoas são diferentes, logo, são únicas, não há coerência em tratar
pessoas díspares com metodologias idênticas. Cada sujeito possui tempo
diversificado, ritmos múltiplos, histórias de vida bem peculiares, enquanto a
pedagogia vigente vem com um molde pré-estabelecido, de modo que os que não se
adaptam ao que é proposto são excomungados ou colocados em um patamar de
inferioridade, o filósofo da educação, ao problematizar a boa (e má) pedagogia,
privilegia novos horizontes e possibilidades do potencializar a aprendizagem, como
destaca Ghiraldelli:
O filósofo da educação cria um invólucro teórico para acolher sua
pedagogia que, ele sabe, talvez seja irrealizável. Mas esse invólucro
é para deixar todos com dúvidas a respeito do que estão fazendo e
acreditam que é correto; é para tirar o tapete daqueles que agem sem
discussão – como gostam os dogmáticos – ou com discussão demais,
que não leva a mudança de rumo – como gostam os burocratas de
99% dos governos. (2006, p. 31).
Pensar a educação sobre o viés da filosofia é valioso em nossos dias, haja vista
a crise narrativa e a crise heterotópica que assolam a contemporaneidade. Diante do
pessimismo das contingências globais, em que a mudança não passa de espectro de
um devaneio típico das impossibilidades, o sujeito para de narrar sobre si e sobre os
sonhos, não há heterotopias que movimentem o sujeito (JOSGRILBERG, 2012). O
impacto de uma estrutura consolidada e imobilizada é extirpar as possibilidades de
ficcionar novos horizontes. Articular filosofia e educação é encontrar uma composição
de valores que dão ao sujeito rudimentos necessários para que ele consiga ser inteiro
em relação com as situações que estão em torno dele. Para ser livre, é necessário ter a
consciência de liberdade, como deverá ser observado posteriormente na ótica de
Boétie, e somente a educação pode promover esse despertar.
Pode-se pensar, também, até que ponto não existe uma lógica de mercado na
educação? Ou seja, a educação é um produto altamente rentável na lógica capitalista.
O paradigma mercantilista se impôs fundamentado em altos resultados lucrativos e
quantificados. Fica difícil dissociar a tecnologia do próprio sujeito, haja vista que a
tecnologia, que era para ser uma extensão do indivíduo, passou a ser a própria prótese
do sujeito. Os papéis docentes e discentes estão corrompidos pela lógica mercantilista.
A construção do imagético sobre educação precisa ser refeita e ressignificada.
Para tratar melhor desse tema, os tópicos seguintes desta tese trilharão sob um
viés linear da história, pois tratarão da filosofia da educação como uma composição
fundamentada na história, porém, buscará se desprender dos limites históricos ao
problematizar cada período proposto. Para tal empreitada, o primeiro ponto a ser
analisado será a Antiguidade (que parte desde o século VII a.C – até o século IV d.C);
em seguida, apresentaremos alguns rudimentos da modernidade (do século XV até
século XVIII) e, por fim, a contemporaneidade (séc XIX-XXI). Não focaremos no
período medieval por compreender que a grande parte do que foi desenvolvido na
Antiguidade como mentalidade voltada à educação foi absorvida e aplicada no período
medieval, apenas cristianizando os conceitos e valores. Consideramos autores como
Agostinho e Tomás de Aquino, todavia, não será o esforço desta tese analisar a
produção desse período quanto ao que se refere à educação. Adentremos, pois, no
primeiro tópico.
27
termo paideia puramente pelo viés etimológico, haja vista sua amplitude conceitual e,
paralelamente, seu pragmatismo social. Essa dificuldade é nutrida devido à sinonímia
criada pelo senso comum em equiparar termos como educação, formação e paideia. A
antiguidade grega, por sua vez, carrega conotações específicas que precisam ser
contempladas e assimiladas, com a finalidade da melhor compreensão da complexidade
que é a educação, a formação, e, por fim, a paideia do grego da antiguidade. Toda e
qualquer definição da paideia seria apenas uma breve e simples caricatura do que, de
fato, é o que se denomina hoje como pedagogia e/ou educação. Antes, porém, de
aprofundar no campo semântico grego, vale definir, a fim de estabelecer fronteira entre
a concepção grega e a latina.
A palavra educação tem origem latina educare, que significa conduzir para fora
(CUNHA, 2010). Nessa direção, educar é preparar o indivíduo para viver para fora de
si, sem esquecer a si mesmo, em sociedade. Educação é, portanto, a ação de tirar a
pessoa de si a fim de que haja aproximação ao outro e consigo mesma, forjando um
novo cosmos. É importante destacar que o termo educare é posterior a aretê, a formação
ou paideia grega, logo, é possível induzir influência direta desses outros termos sobre a
ideia de educare.
Assim, como aponta Patrício, é possível definir que “educação não é sinônimo
de paideia” (2008, p. 290). Na paideia há amplitude conceitual, de modo que o ato de
educar seria uma das múltiplas facetas da paideia, pois este conceito está interligado à
ideia de civilização, de cultura, de tradição, de literatura, enfim, ao todo humano. Se por
um lado educar é um recorte da vida humana, a paideia, por sua vez, tem uma dimensão
holística, que abocanha a integralidade do sujeito, bem como todas as relações que
forjam e estabelecem a vida.
1
Por ipseidade seguimos o conceito de Abbagnano de indicar a singularidade da coisa individual.
Aquilo que particulariza o ser diante da pluralidade.
30
Esse ato de nomear quem é o sujeito e qual a sua função na sociedade grega
dialoga com a tensão típica da educação deste período, já que o locutor e a mensagem
31
não são dissociáveis, outrossim, fixos um no outro, pois “no que se refere ao
problema da educação, a consciência clara dos princípios naturais da vida humana e das
leis imanentes que regem as suas forças corporais e espirituais tinha de adquirir a mais
alta importância” (JARGER, 2003, p. 13), consequentemente, a educação não era para
qualquer pessoa. É nessa tensão entre o ideal e real, entre quem é o sujeito e sua função
na sociedade, que Jaeger destaca a importância dos gregos antigos para a composição do
imagético sobre educação, pois “os gregos viram pela primeira vez que a educação tem
de ser também um processo de construção consciente” (2003, p. 13). Uma premissa
paradigmática na antiguidade:
inclusive, pela elite medieval, pois o que se tinha em mente era o trabalho voltado
para o cultivo e produção da terra. Luzuriaga (2001) mostra que até mesmo nos
mosteiros a educação e a cultura ficavam abaixo da ênfase religiosa, a qual era
encharcada da moral e espiritualidade típicas do cristianismo.
Mais do que saber das coisas da vida, cabia ao sujeito se atentar aos mistérios
do céu. Assim, a subdivisão social segue a lógica determinista, isto é, as funções dos
sujeitos eram determinadas previamente, antes mesmo da existência, e cabia ao sujeito
submeter-se a sua respectiva atividade. Esse imaginário não era só propagado,
sobretudo era assimilado e aceito por todos. Cambi (1999) afirma que essa educação
informal era determinante para a construção das subjetividades, bem como os papéis
que cada sujeito iria desempenhar na sociedade, visto que, segundo Aranha (1989), a
condição do homem era determinada pela relação que ele tinha com a terra, fosse de
vassalo ou de soberano. Havia a concepção da interferência direta do divino na vida
cotidiana, era impossível separar teologia católica e educação, pois tornaram-se um
único tema. Em suma, a educação medieval é, por essência, teocêntrica.
voluntária e não constroem sua existência para além dos cárceres impostos. Boétie
afirma: “incrível coisa é ver o povo, uma vez subjugado, cair em tão profundo
esquecimento da liberdade que não desperta nem a recupera; antes começa a servir com
tanta prontidão e boa vontade que parece ter perdido não a liberdade, mas a servidão”
(2010 p. 15). Como superar esse patamar de encarceramento da alma? Boétie realça, já
no século XV, que a educação é fator determinante para que a racionalidade do ser
esteja a serviço de sua emancipação, não da manutenção das estruturas de dominação.
Para Boétie, a educação é o viés que remove o sujeito da bestialidade e da ignorância e
o transporta para a própria humanidade, para a consciência da consciência. Para
introduzir a centralidade na emancipação do sujeito, Boétie descreve uma sucinta
anedota:
Não julgaria antes que saíra de uma cidade de homens para entrar num
curral de animais? Licurgo, reformador de Esparta, criara (diz-se) dois
cães que eram irmãos, alimentados com o mesmo leite, um deles
habituado a ficar na cozinha e o outro acostumado a correr pelo
campo, ao som da trompa e da corneta; querendo mostrar ao povo
lacedemônio que os homens são o que a educação faz de cada um,
colocou os dois cães no meio da praça e, no meio deles, uma sopa e
uma lebre. Um correu para o prato e o outro para a lebre. Muito
embora (disse ele) fossem irmãos. (2006, p. 16).
Este é o ponto em que Etienne de La Boétie rompe com a ideia medieval de
que os sujeitos são aquilo a que estão determinados. Para sustentar seus argumentos,
Boétie enfatiza que é a educação a responsável por fazer do sujeito o que ele é. Mesmo
que a anedota se restrinja a dois cachorros, o que o filósofo francês propõe é: a
educação está para garantir a preservação e continuidade de um sistema de abstração de
liberdade ou a educação, como processo, está para a suplantação das molduras que
privam o indivíduo em desejar a liberdade. Como um sujeito pode desejar aquilo que
não conhece? Boétie afirma: “Não era possível ao persa avaliar a liberdade, pois nunca
a tivera, nem ao lacedemônio aceitar a sujeição, depois de ter conhecido o gosto da
liberdade” (2010, p. 17). Em vista disso: é a educação que potencializa à vontade.
Diga-se, pois, que acaba por ser natural tudo o que o homem obtém
pela educação e pelo costume; mas da essência da sua natureza é o
que lhe vem da mesma natureza pura e não alterada; assim, a primeira
razão da servidão voluntária é o hábito: provam-no os cavalos sem
rabo que no princípio mordem o freio e acabam depois por brincar
com ele; e os mesmos que se rebelavam contra a sela acabam por
aceitar a albarda e usam muito ufanos e vaidosos os arreios que os
apertam. (2006, p. 18).
Nessa analogia proposta por Boétie, percebe-se que a educação pode ser um
dispositivo tanto para a acomodação do sujeito nas estruturas dominantes, pois ela se
naturaliza como um hábito, como ser um aparato indispensável para uma sociedade
emancipada. Segundo Paula e Maranhão (2009), a contribuição de Boétie se dá ao que
se refere à construção de uma subjetividade voltada à liberdade, a qual tem como ponto
fundante a educação. Só deseja ou tem vontade de liberdade quem, à priori, foi tocado
pela educação.
Este viés introspectivo é notório em sua obra Ensaios (1984), que além de best-
seller da época, é um texto paradigmático para o movimento renascentista que
desabrochava em seu tempo. O livro não cria nenhum tipo de filosofia, apenas retrata
um pouco de uma alma do filósofo que busca por si diante dos barulhos da própria
existência. Além de ser considerado o autor que inaugurou um estilo ensaísta que
flertava entre poesia e filosofia, eram textos curtos e densos em relação ao conteúdo. Na
direção de Batista (2016), parece que o impacto que Montaigne teve sobre seus leitores
se dá pela sua irreverência em expor as perturbações humanas, em um estilo literário
novo, e insinuar uma nova maneira de fazer filosofia, consequentemente, do próprio ato
de gerar a ciência (epistemologia).
Que não lhe peça conta apenas das palavras da lição, mas também do
seu sentido e substância, julgando do proveito, não pelo testemunho
da memória e sim pelo da vida. É preciso que o obrigue a expor de mil
maneiras e acomodar a outros tantos assuntos o que aprender, a fim de
verificar se o aprendeu e assimilou bem, aferindo assim o progresso
feito segundo os preceitos pedagógicos de Platão. (1984, p. 77).
O ensaio de Montaigne não segue receita pronta para o processo de ensino e
aprendizagem. Percorre, sim, a trilha misteriosa e essencialmente inédita que é o ato de
educar. Misteriosa porque a educação não está restrita às molduras conteudistas e
inéditas, ao passo que cada sujeito que vivencia a educação terá uma experiência
singular. Assim, ainda que seja possível conjecturar, quantificar e até mesmo qualificar
conteúdos e metodologias, a educação, segundo Montaigne, só faz sentido quando não
se descola da existência. Certezas e incertezas compõem a mesma canção do ato de
educar. O rumo e paradigmas que compõem a moldura da educação não são limites,
mas fronteiras para novos horizontes, como esclarece Montaigne:
Não cabe aqui juízo moral sobre a vida e produção de Rousseau, e sim
ponderar seus apontamentos sobre a educação. Em sua obra “Emílio ou Da
Educação”, o pensador de Genebra aponta para uma nova dimensão do ato de educar.
Seu texto confronta as metodologias vigentes do seu tempo, isto é, a ideia elitista que
ainda persistia com forte influência da escolástica, a qual supervaloriza a teoria e
despreza a vida prática. Isso revela o desprendimento entre vida e educação típico de
sua época. Defronte dessa organização, Rousseau se propõe a repensar a
homogeneização metodológica que pautava a educação. Ele problematiza a
equalização uníssona da sua realidade logo no prólogo do seu texto com a proposição:
Assim é que uma educação pode ser praticável na Suíça e não o ser
na França; outra pode sê-lo entre os burgueses e outra ainda entre os
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Ele obriga uma terra a nutrir as produções de outra, uma árvore a dar
frutos de outra; mistura e confunde os climas, as estações; mutila seu
cão, seu cavalo, seu escravo; transforma tudo, desfigura tudo; ama a
deformidade, os monstros; não quer nada como o fez a natureza, nem
o homem; tem de ensiná-lo para si, como um cavalo de picadeiro;
tem que moldá-lo a seu jeito como uma árvore de seu jardim. (1995,
p. 11).
Rousseau demonstra que essa racional bestialidade humana pode ser alterada
(ou mantida) por meio da educação. Para o autor “amanham-se as plantas pela cultura
e os homens pela educação” (1995, p. 11). Essa citação traz consigo o aspecto
valorativo e axiológico da educação, seja este valor positivo ou negativo. A educação
é decisória na formação do ser humano pois, segundo Rousseau “tudo o que não temos
ao nascer, e de que precisamos adultos, é nos dado pela educação” (1995, p. 12).
Rousseau conceitua:
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agir como se fala; é preciso estar sempre decidido acerca do partido a tomar, tomá-
lo com altivez a segui-lo sempre. (ROUSSEAU, 1995, p. 14).
Como, pois, organizar o ato de educar? Como ela acontece? Existem etapas?
Para Jean-Jacques Rousseau (1995) a educação é dividida em fases distintas: a
primeira denominada de lactância (até 2 anos); a segunda é classificada como infância
(de 2 a 12 anos), sendo essa a mais delicada e que precisa de muita atenção, pois é
nessa fase que o sujeito é moldado e seus vícios e virtudes são arquitetados – tema que
será abordado mais detalhadamente em seguida; a terceira fase é a da adolescência (de
12 a 15 anos); a quarta é a fase da mocidade (de 15 a 20 anos); e a quinta é o início da
vida adulta (dos 20 aos 25 anos).
Para a segunda fase, Rousseau faz uma contribuição singular, pois é neste
período que se efetiva a educação negativa. Não é apologia ao ócio ou à selvageria,
bem como não é ensinar verdades é, outrossim, garantir que o sujeito não seja
transformado pelos vícios ou pelo erro. Preservando o princípio teórico de Rousseau
de que “o sujeito nasce bom”, a educação negativa seria a maneira para que essa
bondade perdurasse, permanecesse e, mais, viesse à tona.
2
Por charneira seguimos a compreensão de Josso (2010) que se refere a noção de dobradiça, momento
de mudança, dobra.
51
Como sua perspectiva estava para além de seu tempo, típico de sua revolução
copernicana, Kant critica o estilo de educação desenvolvimento e propagado em seu
tempo. Para ele, reinava sobre a educação do século XVIII a homogeneização do
saber. Para ilustrar esse processo negativo da educação, Kant emprega a metáfora da
flor chamada “orelhas de urso”: quando se planta essa flor a partir das raízes de flores
que já nasceram, tem-se a mesma cor de plantas, ao passo que, ao plantar sementes, há
uma diversidade de cores, isto é, ainda que a flor seja a mesma, as formas de se
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Uma arte, cuja prática necessita ser aperfeiçoada por várias gerações.
Cada geração, de posse dos conhecimentos das gerações
precedentes, está sempre melhor aparelhada para exercer uma
educação que desenvolva todas as disposições naturais na justa
proporção e de conformidade com a finalidade daquelas, e, assim,
guie toda a humana espécie a seu destino. (1996, p. 17).
A educação é ao mesmo tempo, o que humaniza o sujeito e a ferramenta que
proporciona a manutenção da própria espécie humana, “a educação, portanto, é o
maior e o mais árduo problema que pode ser proposto aos homens” (1996, p. 18).
Pensar sobre educação na perspectiva kantiana é um ato atemporal, pois é refletir
sobre o passado, analisar o presente e projetar o futuro. Kant acredita que a educação
transmitida de geração em geração seria a grande chave para a transformação da
sociedade.
3
O conceito de devir que nos apropriamos segue a noção aristotélica, a qual entende movimentos de
mudanças e transformações da substância. É por meio das oposições que a condição do não-ser assume
a condição de vir-a-ser.
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Para este filósofo, a educação deveria ser guiada pelo imagético do que é
ideal, ou seja, educar as crianças a partir do que se espera de melhor, nas palavras do
pensador: “não se deve educar as crianças segundo o presente estado da espécie
humana, mas segundo um estado melhor, possível no futuro, isto é, segundo a ideia de
humanidade e da sua inteira destinação. (1996, p. 22). Essa máxima kantiana segue
seu pressuposto do imperativo categórico que é agir de tal maneira que sua ação possa
ser repetida por outras pessoas. O autor continua sua explicação sobre essa educação
categórica:
sujeito encontrou não apenas sua finalidade, mas se é um ser adequado aos axiomas
sociais:
Ao que se refere à idade do sujeito para vivenciar a educação, Kant indica que
a educação pode ser desenvolvida “até o momento em que a natureza determinou que
58
é “para que [a criança] possa ser livre um dia, isto é, dispensar os cuidados de
outrem” (1996, p. 34).
50). Tais afirmações não ecoam bem às audições contemporâneas, por isso, é
importante considerar o autor e as demandas de sua época, a fim de evitar qualquer
tipo de anacronismo conceitual.
Kant encerra seu texto com algumas orientações práticas, em outras palavras: a
peroração de sua obra é um breve compêndio de sabedoria prática. Entre as
orientações estão a orientação da alegria e do bom humor; considerar o dever pelo
dever (imperativo categórico); orientar quanto ao trato como humanidade, e neste
aspecto saltam os temas o interesse para consigo mesmo e por aqueles que cresceram
juntos; e pelo bem universal, é uma motivação para além do conveniente e do
imediatismo; orientar o desapego aos prazeres da vida; e “é preciso, por fim, orientá-
los sobre a necessidade de, todo dia, examinar a sua conduta, para que possam fazer
uma apreciação do valor da vida, ao seu término” (KANT, 1996, p. 107). Sua última
recomendação é um desafio ao sujeito para olhar para si mesmo, sua constituição e
perceber o quanto sua vida é (ou não) prazerosa e, sobretudo, autêntica.
seja com conteúdo, com moralidade ou qualquer outro fenômeno, quanto menor a
inferência, maior a capacidade do sujeito em adentrar sua condição de estado de
natureza, lembrando que, para Rousseau, o ser humano é bom por natureza, o fator de
corrupção é o meio em que ele está inserido, ou seja, o meio. A contribuição
rousseauniana é na distinção entre a educação formativa para a cidadania, a qual
corresponde às intencionalidades sociais, e a educação formativa para o estado de
natureza, o que estaria atrelado com a dimensão doméstica, privada do sujeito, que é
auxiliar no seu despertar pessoal.
A última contribuição da modernidade está vinculada a Immanuel Kant, autor da
filosofia responsável por dar novos rumos para o ato de filosofar. Este pensador
afirma que a educação tem como teleologia a humanização do sujeito. Mais do que ser
disciplinado, evento este que pode acompanhar os animais irracionais, o sujeito
precisa passar pelo viés da educação a fim de que a selvageria seja superada e,
posteriormente, a noção de transformação de si, bem como de toda a espécie humana,
seja garantida. Não existe educação na homogeneização, todavia, a educação é uma
arte de abrir possibilidades que estruturem o sujeito e traga novas perspectivas do que
é ser humano.
Outro aspecto relevante do século XIX é que ele foi o berço dos “mestres da
suspeita”, a saber: Marx, Nietzsche e Freud. Como os dois primeiros autores serão
tema da reflexão a seguir, tocaremos, brevemente, a contribuição de Freud quanto a
sua reflexão sobre o ser humano. Ainda que esse autor não tenha escrito nada
diretamente voltado para a educação, em sua obra O mal-estar da civilização (1976)
ele aponta como o sujeito está em constante conflito consigo mesmo, isso porque ele
sempre tem que se amoldar às estruturas de seu tempo. Um detalhe interessante dessa
obra de Freud é que ele terminou de escrevê-la em 1899, mas deixou para publicar em
1901, porque afirmava que seu texto seria a síntese da humanidade que estava se
pondo. Sua tese é de que, diante desse complexo jogo dialético entre id, ego e
superego, o sujeito assume para si uma identidade que se harmoniza com as
64
Para Marx e Engels não era uma questão de inferioridade natural, em vez
disso, era a castração de horizonte que fazia dos proletários pessoas sem perspectivas
para além do “chão-de-fábrica”. A interferência do Estado nesse processo libertador
seria imprescindível, uma vez que, por si só, a prole não teria condição de
emancipação, como eles descrevem: “O caso da classe operária é complemente
diferente. O trabalhador individual não atua livremente. Muitas vezes é
demasiadamente ignorante para compreender o verdadeiro interesse de seu filho nas
condições normais do desenvolvimento humano.” (2011, p. 84). A falta de perspectiva
faz com que a naturalização desse procedimento seja absorvida pela classe
trabalhadora a tal ponto que há uma amortização e anestesia da reflexão.
Seguindo por esse viés marxista, só há alteração de uma classe, bem como de
toda sociedade, quando a educação é um projeto efetivado, pois a educação tem a
característica de alterar as subjetividades e os processos de subjetivação. Ao mesmo
tempo que o Estado tem como função estabelecer leis e diretrizes que protejam e
66
Tanto Marx como Nietzsche foram autores que, a suas maneiras, perceberam
as contingências que assolavam a sociedade de seu tempo, interpretaram e apontaram
caminhos de enfrentamento. A aproximação possível entre esses dois autores se dá no
tocante à dimensão da educação, pois, mesmo que por variáveis distintas, é possível
aferir, que para esses dois autores, a educação é o único caminho possível de
transformação dos sujeitos. Ainda que tenham peculiaridades no que tange à
abordagem filosófica, o que aproxima os dois é a dimensão transformadora que a
educação pode exercer na vida do sujeito. Essa dimensão transformadora pode ser
tanto para o processo de emancipação e de maioridade, como para um processo de
alienação e menoridade.
A noção de máquina global está associada com a premissa de que a vida está
alienada aos interesses econômicos de um sistema que não é vivo, mas que sobrevive
do sangue do sujeito. Assim, quando se pensa a educação como aliada e harmonizada
com a máquina global, afere-se que a educação perdeu sua essência crítica para
assumir uma postura tecnicista que está refém do sistema, sem protagonismo ou
iniciativa.
2. OS DOMÍNIOS FOUCAULTIANOS
Com o propósito de perseguir a hipótese desta tese que é a forma como o ato
de revisitar as narrativas do cotidiano da educação formal contribuem para a
hermenêutica do sujeito, logo, esta tese analisará o fenômeno da educação em um
método comparativo, prestigiando a abordagem foucaultiana da desconstrução da
subjetividade do sujeito para chegar a constituição do ser em perspectiva analítica e
crítica filosófica. Este capítulo se aterá aos três domínios teóricos que estão presentes
na obra do filósofo francês Michel Foucault.
Diante dessa tensão com o pai, em 1948, após se formar em Filosofia, tem uma
desavença com o pai e, pela primeira vez, Foucault tenta o suicídio (1948). Assim, o
pai, compulsoriamente, interna o filho em uma clínica para loucos. Vê-se, então, que a
loucura não é um simples objeto de pesquisa para Foucault, é, sobretudo, reflexão
sobre si mesmo. Não se sabe bem, mas parece que a internação de Foucault se dá
devido a sua escolha em ter o diploma de Filosofia na Universidade de Sorbonne
(ERIBON, 1990), contrariando o desejo do pai que esperava mais um médico na
família.
Sabe-se que Foucault tentou suicidar-se pelo menos duas vezes: em 1948
(homossexualidade e diploma de filosofia) e em 1950 diante de uma frustração
profissional (para tornar-se professor). É partir dessa segunda tentativa que Foucault
inicia tratamento psicoterapêutico para tratar a alma e, também, contra o alcoolismo.
Possivelmente, é por meio deste cuidado terapêutico que novos horizontes acadêmicos
e existenciais se instauram em sua vida. Mesmo marcado pelos excessos hedonistas,
típico de uma juventude que articulava a aura anarquista com a vontade de potência,
sabe-se que Foucault manteve um relacionamento de mais de 25 anos com Daniel
Defert. Ainda que o autor seja reconhecido pelo espírito insurgente, é visível a
coerência dentro das incoerências existenciais que eram típicas de Foucault.
80
alternativa à história comum das ideias, com sua ênfase na teorização de pensadores
individuais e sua preocupação com a influência desses pensadores uns sobre os
outros” (GUTTING, 2016, p. 29). Na obra As palavras e as Coisas, a provocação
arqueológica de Foucault aparece tencionando, especificamente, a figura do sujeito,
pois, para Foucault “o homem é uma invenção cuja recente data a arqueologia de
nosso pensamento mostra facilmente. E talvez o fim próximo” (2007, p. 536). Já no
livro Doença mental e psicologia (1975), vê-se o entrelaçamento proposto pelo autor
entre arqueologia e loucura:
mais aceitas, abrindo assim um espaço para a mudança. Em seu apelo às práticas
discursivas, ela sublinha o vínculo estreito entre perceber, conceber, dizer e fazer”
(FLYNN, 2016, p. 54). É por essa abordagem que Foucault analisa as arquiteturas
postas, ou seja:
O tema loucura não era um simples objeto de pesquisa para Foucault, era, sim,
como expresso anteriormente, uma pesquisa e reflexão sobre si mesmo, haja vista sua
internação compulsória em 1948 (ERIBON, 1990). Essa experiência foi decisiva para
a construção teórica de Foucault, sendo, inclusive, objeto de sua tese de doutorado.
Sua hipótese doutoral era que, no recorte entre os séculos XV a XVIII, denominado
pelo autor como período clássico, não existia a ideia de doença mental, a loucura era
compreendida como problema social. O filósofo francês destaca que não há, na época
clássica, uma medicina especial, como a medicina psiquiátrica, que se funda na
distinção entre o físico e o mental; as doenças estavam no mesmo nível e, neste
espaço, eram classificadas segundo os seus sintomas. As doenças mentais passam a ter
essa característica posteriormente. Gutting, por sua vez, evidencia o impacto da
87
linguagem da loucura, que a reduz e silencia” (CASTRO, 2016, 263), logo segue
uma lógica purificadora e de higienização social.
fundante, isto é, o louco não tem condições de trabalho, portanto, é um peso que
não deve gozar das regalias ou das responsabilidades da própria liberdade, haja vista
sua condição improdutiva. Os confinamentos não tinham intencionalidade médica, isto
é:
hermenêutica do texto está comprometida por quem é o autor, não pela narrativa em
si.
Essa provocação entre discurso e hermenêutica compõem a obra Ordem do
Discurso, de Michel Foucault. Essa obra foi proferida em 1970, quando Foucault
assumiu a cátedra no College de France no lugar de Georg Canguilherm. Nessa
oportunidade, Foucault busca apresentar os interstícios entre o discurso, a linguagem,
as interpretações, enfim, as várias facetas que compõem o jogo narrativo e os jogos de
verdade. Foucault aponta para um entrelaçamento do sujeito que é, em linguagem
nitzscheana, força de potência, logo, desejo em si, com as instituições que
representam as normatizações e, portanto, harmonizações sociais. Segundo Foucault,
há um processo dialógico:
O desejo diz: “eu não queria ter de entrar nessa ordem arriscada do
discurso; não queria ter de me haver com o que tem de categórico e
decisivo; gostaria que fosse ao meu redor como uma transparência
calma, profunda, indefinidamente aberta, em que os outros
respondessem à minha expectativa, e de onde as verdades se
elevassem, uma a uma; eu não teria senão de me deixar levar, nela e
por ela, como um destroço feliz”. E a instituição responde: “você
não tem que temer começar, estamos todos aí para lhe mostrar que o
discurso está na ordem das leis; que há muito tempo se cuida de sua
aparição; que lhe foi preparado um lugar que o honra, mas o
desarma; e que, se lhe ocorre ter algum poder, é de nós, só de nós,
que ele se advém” (1996, p. 7).
O destaque da citação é que existe força de potência querendo se desprender das
justificações impostas pelas instituições hipostasiadas. Ao mesmo tempo que o ser
reclama para si a condição de existência, por outro lado, ele é compelido a se
acomodar ao nomos institucional. Parece, em um primeiro momento, que o desejo e a
instituição são antagonistas entre si, todavia, Foucault destaca que na verdade são
Réplicas opostas a uma mesma inquietação: inquietação diante do
que é o discurso em sua realidade material de coisa pronunciada ou
escrita; inquietação diante dessa existência transitória destinada a se
apagar sem dúvida, mas segundo uma duração que não nos pertence;
inquietação de sentir sob essa atividade, todavia cotidiana e cinzenta,
poderes e perigos que mal se imagina; inquietação de supor lugar,
vitórias, ferimentos, dominações, servidões, através de tantas
palavras cujo uso há tanto tempo reduziu as asperidades (1996, p. 8).
Com este paralelo entre instituição e desejo, Foucault aponta, pois, a hipótese da
“Ordem do Discurso”: “suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao
mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de
procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu
acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade” (1996, p. 8-9).
97
os monstros, basta que o silêncio esteja alerta, e eis que a separação permanece.”
(1996, p. 13). O discurso está conectado com vontade de verdade, que é o filtro de
admissibilidade:
Certamente, se nos situamos no nível de uma proposição, no interior
de um discurso, a separação entre o verdadeiro e o falso não é nem
arbitrária, nem modificável, nem institucional, nem violenta. Mas se
nas situações em outra escola, se levantamos a questão de saber qual
foi, qual é constantemente, através de nossos discursos, essa vontade
de verdade que atravessou tantos séculos de nossa história, ou qual é,
sem uma forma muito geral, o tipo de separação que rege nossa
vontade de saber, então é talvez algo como um sistema de inclusão
(sistema histórico, institucionalmente constrangedor) que vemos
desenhar-se (1996, p. 14).
Para Foucault, a vontade de verdade é o que tece o discurso, a medida que “as
grandes mutações científicas podem talvez ser lidas, às vezes, como consequências de
uma descoberta, mas podem também ser lidas como a aparição de novas formas de
vontade de verdade” (1996, p. 16). A vontade de verdade é institucionalizada
estabelecendo os devidos parâmetros para os discursos. Lembrando que Foucault
compreende por verdade “o conjunto dos procedimentos que permitem pronunciar, a
cada instante e a cada um, enunciados que serão considerados como verdadeiros. Não
há absolutamente, uma instância suprema” (CASTRO, 2016, p. 421). Por esse
caminho, vale a compreensão de duas possibilidades de verdade:
Foucault distingue entre duas histórias da verdade: por um lado, uma
história interna da verdade, de uma verdade que se corrige a partir
dos seus próprios princípios de regulação; por outro, uma história
externa da verdade. A primeira é a que se leva a cabo na história das
ciências; a segunda, a que parte das regras de jogo que, em uma
sociedade, fazem nascer determinadas formas de subjetividade,
determinados domínios de objetos, determinados tipos de saber
(CASTRO, 2016, p, 421).
Em todos esses jogos de verdade está presente a prática do discurso o qual se
harmoniza com a vontade de verdade que transcende a noção de verdade: “é que se o
discurso verdade não é mais, com efeito, desde os gregos, aquele que responde ao
desejo ou aquele que exerce o poder, na vontade de verdade, na vontade de dizer esse
discurso verdadeiro, o que está em jogo, senão o desejo e o poder?” (FOUCAULT,
1996, p. 19-20). Contraposto ao discurso da vontade de verdade saltam três grandes
sistemas de exclusão: a palavra proibida, a segregação da loucura e a vontade de
verdade. Portanto, o discurso está relacionado com a noção de controle e delimitação,
que apresentam um jogo de poder e desejo.
Foucault afirma que existe um jogo de hermenêutica dentro das sociedades que
dão sentido aos significados das coisas, ou seja, o significado da coisa em si é muito
99
uma teoria do poder, mas a revisitar as trilhas que o poder instituído e transitivo se
fincou. Texto posteriores como “Microfísica do poder” (1999) e “Vigiar e punir”
(1997) são desdobramento e aprofundamento do tema proposto na aula inaugural do
College de France, no entanto, o que persiste é a figura do sujeito como aquele que
está inserido em uma rede de poder que está no sujeito, e transcende sua própria
individualidade.
O conceito de ética surge como foco de análise de Michel Foucault no fim dos
anos 1970 e acompanha o filósofo francês até o fim de sua vida. A primeira
contribuição foucaultiana é a distinção entre moral e ética, sendo que “a moral é, num
sentido amplo, um conjunto de valores e de regras de ação que são propostos aos
indivíduos e aos grupos por intermédio de diferentes aparelhos prescritivos” (REVEL,
2011, p. 59). A expressão “aparelhos prescritivos” usada por Foucault se refere às
107
O sujeito tem suas ações talhadas pelas normas prescritas, as quais são
naturalizadas no cotidiano da existência. Essa moral engendra uma moralidade dos
comportamentos, estabelece o permitido e interdita o inapropriado. Nota-se que a
moral tem qualidade de normatização, em que se estabelece caminho sedimentado
para o sujeito trilhar: extrapolar a norma é assumir a etiqueta de transgressor.
Para Foucault, este éthos é imprescindível para o cuidado de si, pois está
relacionado diretamente com a técnica e a importância que o indivíduo dará a si
mesmo e essa relação com o mundo que o cerca. É no ato de refletir sobre si,
questionar o si mesmo, confrontar aquilo que foi estabelecido e forjado na relação
com as instituições prescritivas que o sujeito terá a possibilidade de cuidar de si e agir
sobre si. Quando o cuidado de si é aspecto central, nova relação é estabelecida entre o
sujeito e as instituições prescritivas, como destaca Revel:
Não é possível isolar o sujeito da realidade em que ele está inserido. Pensar a
constituição do eu sem considerar, paralelamente, a história, a vida, as contingências,
vitórias e fracassos, os estímulos e as castrações é emperrar a compreensão holística
do sujeito (LARROSA, 1994). É por este viés que Foucault desenvolve sua concepção
de genealogia: uma busca pela origem. Em outros termos, o filósofo francês incentiva
109
4
O termo Aleteia, segundo definição de Abbagnano, representa aquilo que não pode ser
escondido, que é evidente.
5
Compreende-se o termo sui generis em categorias do filósofo Baruch Espinosa no texto
Ética.
111
A palavra jogo, para o filósofo francês, está ligada com a ideia de regras que
são instituídas e que correspondem a determinados meios e fins, isto é, seguir
determinados meios a fim de alcançar fins específicos. Este jogo acontece em todos os
lugares, todavia com especificidades que destacam sua singularidade. Logo, o jogo de
verdade se constitui na narrativa de estabelecer como aceitável, autêntico e real aquilo
pode ser aplicado em situações específicas, para indivíduos específicos. Esta
complexidade se apoia na flexibilidade encontrada no conceito do que se compreende
por verdade. Segundo Castro, é possível elencar algumas características da verdade
nos textos foucaultianos:
Foucault aponta que a verdade não tem um caminho pré-estabelecido, mas que
a história construiu caminhos fortuitos de verdades. Como descreve Revel, “trata-se
de reconstruir uma verdade produzida pela história e isenta de relação com o poder,
identificando ao mesmo tempo as coerções múltiplas e os jogos, ao passo que cada
sociedade possui seu próprio regime de verdade” (2011, 148). Revel estabelece uma
relação entre o conceito de verdade na perspectiva foucaultiana com os elementos
pertinentes à educação:
Intuímos, assim, que as subjetividades dos sujeitos são colonizadas pelos jogos
de verdade dos sistemas restritivos e prescritivos a partir dos acontecimentos que
estão encharcados de discursividades de poder. A sensação que o sujeito tem do
fenômeno em si carrega dialogicidade valorativa, isto é, o fato em si é considerado a
partir dos acontecimentos que impactaram o cotidiano do indivíduo. Logo, perceber
este teor negativo do acontecimento é apontar para o espectro de manipulação na
hermenêutica do sujeito ao que se refere ao fato em si mesmo. O sujeito é conduzido
ideologicamente para compreender o que foi posto como única possibilidade
compreensiva.
haja vista sua revisitação a sua constituição e, por fim, é um indivíduo que, ao
romper com um paradigma, propõe um novo, em outras palavras é um sujeito capaz
de ressignificação. Portanto, segundo Lopez (2011), a experiência é uma concepção
política que se desenvolve nas diversas vias que compõem o sujeito.
FOCAULTIANO
e Revel (2011), bem como de outros intérpretes do texto Foucaultiano como, por
exemplo, Alfredo Veiga-Netto (1996; 2007) entre outros. A fundamentação teórica se
dará na leitura do texto foucaultiano (2018) e o confronto com os intérpretes e outros
teóricos da filosofia da Educação.
Essa seção inicia com a temática do terceiro domínio foucaultiano, tema este
que foi preliminarmente tratado no capítulo anterior, todavia o esforço deste capítulo
será apresentar a dimensão do Foucault ético e sua maneira interpretar o sujeito, bem
como as relações que cercam o ser. Em seguida o esforço deste capítulo será
apresentar as fases do cuidado de si, bem como a importância da filosofia e da
espiritualidade para a efetivação real do cuidado de si e do conhecimento de si.
Em seguida, esta tese tangenciará o tema foucaultiano da estética da existência,
apontando as principais características deste fenômeno e como essa percepção é
fundamental para o cuidado de si. Adiante, será destacada a importância do outro
nesse processo do cuidado de si a fim de tirar o sujeito da condição de stultus. Para
efetivar o cuidado de si, essa tese apontará outros dois temas importantes: a parresia e
o ato de escutar. Esses são tópicos importantes para que o sujeito desperte as forças
centrífugas (saindo de si), e, dessa maneira, apontando para as forças centrípetas (para
dentro de si). Por fim, este capítulo apontará algumas provocações ao que se refere à
heterotopia do cuidado de si. Há que se destacar que a ideia de heterotopia, para
Foucault (2018), não está cativa ao não lugar, em vez disso, a práticas que
potencializem as possibilidades. Não é uma miragem, é, por si, um devir.
Assim, com este capítulo espera-se apresentar os meandres da abordagem
foucaultiana e a fim de aglutinar referencial teórico com fôlego para articular temas da
educação contemporânea com a filosofia de Michel Foucault. Espera-se, portanto,
observar até que ponto a educação contemporânea está preocupada em formar pessoas
úteis e pragmáticas, mas indispostas à reflexão, análise e crítica da realidade. Buscará
apropriar-se da filosofia foucaultiana para delinear um viés que eduque sem
(de)formar.
6
O termo conatus está ligado a ideia de Baruch Espinosa como elemento que faz o ser
preservar a sua existência, sua essência. Cf. ESPINOSA, B. Ética. São Paulo, Perspectiva,
2009.
126
7
O termo ataraxia significa a não perturbação da alma. Seja com notícias positivas ou
negativas, o sujeito tem a capacidade de controlar suas emoções, seus desejos.
8
O termo epimeleia heautou é a expressão grega para o cuidado de si. Está ligado com a
ideia do quanto o sujeito dedicará tempo para si, sobre si, a partir de si.
127
Por este caminho é interessante notar que o conhecimento de si não é uma via
de adjetivações positivas ou negativas, isto é, do que gosta de comer, aonde gosta de
ir, o que gosta de fazer etc, em vez disso, a ideia da máxima délfica envolve uma
profundidade: a alma9 como sujeito. Como destaca Foucault, “o cuidado de si implica
uma certa maneira de estar atento ao que se pensa e ao que se passa no pensamento”
(2018, p. 12). Logo, é um movimento centrípeto e centrífugo, ao passo que pensar
sobre si, ao mesmo tempo, o cuidado de si “designa sempre algumas ações, ações que
são exercidas de si para consigo, ações pelas quais nos assumimos, nos modificamos,
nos purificamos, nos transformamos e nos transfiguramos” (2018, p. 12). Assim, não
dá para não associar o ‘conhece a ti mesmo’ do ‘cuidado de si’.
9
O termo alma é conceituado por Foucault na obra Vigiar e Punir, em que para o autor a
alma é elemento apriorístico na constituição do ser.
128
ascetismo que convida o sujeito, com todas as suas contingências, a um giro para
si mesmo.
pode revelar. Romper com essa áurea racionalista é uma das características da
espiritualidade que lança o sujeito para fora de si mesmo. Na perspectiva foucaultiana:
que a verdade é mais do que uma gratificação é, sobretudo, aquilo que pautará a
música existencial do sujeito, isto é, a verdade é o pentagrama que estabelecerá o
andamento rítmico do sujeito, a melodia que embelezará sua singularidade, bem como
a harmonia que sustentará sua ipseidade em tempos de homogeneizações.
Se, para Foucault, filosofia é o ato de compreender o que faz a verdade ser
considerada verdade, a espiritualidade é a maneira como essa verdade é encontrada,
transformada e introduzida na vida do sujeito. A espiritualidade é a efetivação da
filosofia, como destaca o pensador francês:
Como já foi posto, o conhecimento de si, nesta fase, está vinculado com a
finalidade de cuidar da pólis, governar os outros. Para tanto é preciso governar a si
mesmo. Esse ponto de cuidar de si com finalidade de cuidar dos outros é invertida na
fase considerada por Foucault como de ouro do cuidado de si, pois a teleologia não
está no governo da cidade e dos outros, sobretudo, no ato de cuidar de si mesmo.
Conhecer a si e cuidar de si, voltar-se a si e investir em si mesmo tornam-se o eixo da
fase de ouro. Um processo que pode ser aplicado por todos, superando a segregação
social e econômica presente no texto de Alcibíades. Tem como projeto esse encontro
do sujeito consigo mesmo, a fim de que possa compreender sua alma como sujeito de
si.
Evidencia-se, pois, que o sujeito por si só não terá condições para superar o
estado de stultitia para o patamar de sábio; o cuidado de si nunca será efetivo se não
houver a relação com o Outro, de modo que a figura do mestre é a daquele que se põe
como mediador entre o estado de conveniência natural do ser para o estado de
emancipação e transformação inerente ao cuidado de si, da arte da vida. A autonomia
e protagonismo por si mesmo é resultado do conhecimento de si em sua plenitude.
Para tanto, superar a stultitia é importante para que o cuidado de si supere as
superfícies do eu. Vejamos, agora, as características do stultus descritos por Foucault.
Vale destacar, ainda, que o stultus não pensa sobre a temporalidade de sua vida.
Não consegue discernir entre passado, presente e futuro. Vive sem rumo, aproveitando
sem diligência, sua existência. Não consegue pensar sobre si e os desdobramentos que
o investimento que fez ao não cuidar de si resultará. Diante do imediatismo inerente
ao stultus não se pensa sobre o envelhecimento. Se por um lado o sujeito que aplica a
estética da existência sobre o cuidado de si mira a velhice, a fim de que mudanças
repentinas e abruptas não surpreendam o cotidiano, o stultus, por sua vez, não se
atenta a si mesmo devido a essa “abertura às representações que vêm do mundo
exterior e dessa dispersão no tempo é que o indivíduo stultus não é capaz de querer
como convém” (FOUCAULT, 2018, p. 119).
aponta três diferenças entre a vontade de um sujeito stultus daquele que sai desta
condição: vontade determinada, vontade segmentária e vontade inerte. Afirmar uma
vontade determinada é descrever que a vontade do stultus não tem origem nele
mesmo, em vez disso é consequência do mundo que o cerca, como descreve Foucault:
A vontade do stultus é uma vontade que não é livre. É uma vontade
que não é vontade absoluta. É uma vontade que não quer sempre. E o
que significa querer livremente? Significa que se quer sem que
aquilo que se quer tenha sido determinado por tal ou qual
acontecimento, por tal ou qual representação, por tal ou qual
inclinação. Querer livremente é querer sem nenhuma determinação,
enquanto o stultus é determinado, ao mesmo tempo, pelo que vem do
exterior e pelo que vem do interior (2018, p. 119).
Considerando que o stultus é modelado pelas contingências externas, sem o
mínimo de reflexão e compreensão de si mesmo, é possível aferir que a pessoa que
permanece na stultitia responde aos estímulos externos. É constantemente vulnerável
às vontades externas, às manipulações e tendências de sua época, sem ater-se sobre si
e sobre suas reais circunstâncias. Por estar açambarcado pelas exterioridades, o stultus
não consegue querer livremente, sem determinação, em vez disso, é um querer
formatado, seguindo desing delimitado.
Segundo Foucault, “o objeto que se pode querer livremente, sem ter que levar
em conta as determinações exteriores é evidentemente um só: o eu” (2018, p. 120).
Em categorias foucaultianas, o stultus é classificado como aquele que não quer aquilo
que se deve. Diante das inúmeras e incontáveis possibilidades, o stultus não se dá
conta do que realmente tem importância em sua existência. Desse modo, Foucault
classifica o stultus como:
[...] aquele que não quer, não quer a si mesmo, não quer o eu, aquele
cuja vontade não está dirigida para o único objeto que se pode querer
livremente, absolutamente e sempre, o próprio eu. Entre a vontade e
o eu há uma desconexão, uma não conexão, um não pertencimento
que é característico da stultitia, ao mesmo tempo seu efeito mais
manifesto é sua raiz mais profunda. Sair da stultitia será justamente
fazer com que se possa querer o eu, querer a si mesmo, tender para si
como o único objeto que se pode querer livremente, absolutamente,
sempre. Ora, vemos que a stultitia não pode querer esse objeto, pois
afinal ela se caracteriza precisamente por não o querer. (2018, p.
120).
É importante notar, na abordagem foucaultiana, que no stultus existe um vácuo
entre a vontade e o eu, isso porque, na condição de stultitia, cuidar de si, pensar sobre
si, desejar a si não assume relevo, haja vista que as múltiplas preocupações em que o
sujeito está embebido furtam dele o discernimento do si mesmo. Querer a si mesmo
não é ilusão, pois nunca foi uma possibilidade tangenciada pela cognição do stultus.
148
Diante da fala franca, da fala que não se castra diante das expectativas sociais
ou da dureza do que precisa ser dito, Foucault destaca dois adversários: a adulação e a
retórica. Por um lado, a adulação é a tentação em desviar a verdade do ouvinte e
propagar apenas palavras doces e palatáveis, porém não gratuitas. A adulação, por
quem a exerce, tem como intento tirar proveito da relação, isto é, ao dizer o
conveniente, ter benefícios com esta fala. Como destaca Foucault, “o lisonjeador é
aquele que, por conseguinte, impede que se conheça a si mesmo como se é. O
lisonjeador é aquele que impede o superior de ocupar-se consigo mesmo como
convém” (2018, p. 337).
A parresia, por sua vez, caminha por outro viés: é a antiadulação. Segundo
Castro, o efeito da parresia é proporcionar ao Outro uma relação plena consigo
mesmo. É por meio da parresia que o cuidado de si é efetivado, a relação com o Outro
torna-se um potencializador para a liberdade do eu, em que o cuidado de si, o ater-se a
si, bem como o conhecimento de si, efetiva-se. Segundo Foucault:
bem elaborada e definida, se a pessoa que ouve não estiver disposta e disponível a
ater-se ao que é dito, as palavras, por mais elaboradas que sejam, não ecoarão na vida
do sujeito. Foucault deixa claro que é a partir da escuta que tudo começa; para o
filósofo francês “[...] escutar é com efeito o primeiro passo, o primeiro procedimento
na ascese e na subjetivação do discurso verdadeiro, uma vez que escutar, em uma
cultura que sabemos bem ter sido fundamentalmente oral, é o que permitirá
reconhecer o logos, recolher o que se diz de verdadeiro” (2018, p. 297).
Não é ato de estar aberto para o mundo de modo irrefletido, característica
presente na stultitia, também, não é o ato puramente restrito a vozes que tangenciam a
instrumentalidade ou a memória. É por meio da escuta que o sujeito consegue ouvir a
si mesmo, ouvir o eu e, assim, traçar um itinerário para dentro de si. Se por um lado a
escuta pode ser alimentada pela retórica da lisonja ou da adulação, por outro lado,
escutar pode ser libertador, como propõe Foucault.
Mas, conduzida como convém, a escuta é também o que levará o
indivíduo a persuadir-se da verdade que se lhe diz, da verdade que
ele encontra no logos. E enfim a escuta será o primeiro momento
desse procedimento pelo qual a verdade ouvida, a verdade escutada e
recolhida como se deve, irá de algum modo estranhar-se no sujeito,
incrustar-se nele e começar a tornar-se suus (a tornar-se sua) e a
constituir assim a matriz do êthos. A passagem da alétheia ao êthos
(do discurso verdadeiro ao que será regra fundamental de conduta)
começa seguramente com a escuta (2018, p. 297).
Diante desta citação, salta o questionamento: até que ponto a escuta é somente
passiva? Para Foucault “podemos escutar com proveito; podemos escutar de maneira
completamente inútil e sem tirar nenhum proveito; podemos até mesmo escutar de
modo tal que só tiremos inconvenientes” (2018, p. 302), logo o ato da escuta, ainda
que vulnerável a forças externas, é ativo na forma de (re)significar aquilo que se ouve.
Para esse processo hermenêutico da escuta ser eficaz, a experiência é vital.
Experiência no sentido de uma prática refletida, uma prática que depura a lógica do
escutar. São elencados três meios para uma escuta acrisolada: em primeiro lugar, o
silêncio, em outras palavras é a luta contra a tagarelice; em segundo lugar, a escuta
eficaz precisa do controle do corpo e da alma, logo a enkráteia, o domínio de si e de
suas vontades é um alicerce importante para que o ato da escuta seja efetivado; e em
terceiro lugar, a atenção propriamente dita, isto é, o empenho do sujeito em escutar
atentamente, em silêncio e controlando a si mesmo, o que se propõe a ser dito. Para
esse terceiro aspecto, Foucault destaca dois itens: o primeiro é o pragma, ou seja, o
ouvinte dirija sua atenção para o que é tradicionalmente chamado tò prâgma, que é o
153
referente, para aquele a quem se deve dirigir o foco, não ater-se às formas por si
só, mas apreender o que é dito; o segundo aspecto é, após ouvir, começar com o
esforço da memorização; não basta, pois, ouvir bem, é preciso marcar o que foi
ouvido na alma, pois “a alma que escuta deve vigiar a si mesma” (FOUCAULT, 2018,
p. 313).
O ato de escutar é valioso do cuidado de si. Só por meio da escuta o sujeito
passa a cuidar de si, pois ouve a si. Escutar é uma atitude de domínio próprio, de
controle dos instintos naturais, de superar as tendências egocêntricas presentes em
toda condição de stultitia. Escutar é silenciar, controlar e ater-se ao que será proferido
de maneira que o foco central seja a transformação de si. O ato da escuta é o que torna
a parresia uma possibilidade, além de ser junção entre o locucionário e o receptor,
assim, o cuidado de si é efetivado. Vejamos, em seguida, alguns elementos desse
cuidado de si.
O texto foucaultiano relata que havia grupos mais sofisticados com aspecto
bastante peculiar, isto é, alguns grupos epicuristas e/ou estoicos em que o cuidado de
si não se atinha às divisões das classes sociais, ou seja, de modo geral, não havia
separação “entre rico e pobre, entre quem teve berço de ouro e o de família obscura,
quem exerce um poder político e quem vive desapercebido [...] afinal, um escravo
pode ser mais livre que um homem livre se este não tiver se liberado de todos os
vícios, paixões, dependência, etc, em cujo interior estivesse preso” (FOUCAULT,
2018, p. 107). Mesmo com todas as limitações, reescrever o aspecto universalista do
cuidado de si faz-se importante como um desdobramento teórico que fundamentará
essa tese. Assim, segundo Foucault:
consigo mesmo. Nessa obra, Foucault dialoga com textos da Antiguidade a fim de
interpretar os caminhos possíveis para o sujeito encontrar a si mesmo.
O termo chave desse domínio ético é o cuidado de si (epimeleia heatou). Nesse
texto, o filósofo francês demonstra as dificuldades de o sujeito conhecer a si mesmo,
dedicar tempo a si mesmo, cuidar de si. Suas provocações partem do texto platônico
“Alcibíades Primeiro” (2015), que relata o diálogo entre Sócrates e seu discípulo
Alcibíades. O jovem aprendiz está em uma fase crítica de sua vida: precisa descobrir
os melhores caminhos para se sair bem na política. Ainda que os planos de Alcibíades
contemplem a vida pública, Sócrates questiona até que ponto seu discípulo estava
preparado para assumir tal empreitada, haja vista que Alcibíades nunca se preparou
para ser político. Esse diálogo relata o perigo da vontade de querer cuidar dos outros
sem, ao menos, ter contato consigo mesmo.
Foucault tem a preocupação de fazer com que o sujeito cuide de si e, para isso, a
máxima délfica tem que ser considerada: conhece a si mesmo. Esse autoconhecimento
extrapola a noção dos gostos, das vontades, dos hábitos, esse conhecimento é um
éthos que envolve o todo da vida do sujeito: é a tomada de consciência de si, das suas
contingências, dos seus limites e potencialidades. O verdadeiro conhecimento de si só
é possível quando o sujeito tem como prioridade o eu. Na perspectiva foucaultiana,
essa jornada do conhece a si mesmo está intrinsicamente relacionada com movimentos
centrífugos e centrípetos, isto é, é necessário sair de si, ter forças que tirem o sujeito
da zona de conforto, que ao mesmo tempo que acomoda, exige um preço muito alto,
pois a pessoa deixa de ser autêntica para ser aquilo que se espera de seu papel social.
Ao que se refere a forças centrípetas, o texto foucaultiano aponta que, na medida que
o sujeito sai de si, ele consegue voltar para o eu cheio de si mesmo.
A relação consigo muda significativa ao passo que a filosofia é encarada como
meio dialético de confronto com a verdade. A filosofia não tem a verdade ou não
responde de modo verdadeiro, em vez disso, para Foucault, a filosofia almeja dissecar
os mecanismos que fazem da verdade a verdade. O meio pelo qual a filosofia se
efetiva é pela espiritualidade. Nessa direção, não há uma conotação soteriológica, em
vez disso, a noção de espiritualidade para Foucault é a instrumentalização pela qual a
filosofia se torna possível e, assim, a verdade pode ser compreendida como fenômeno.
O cuidado de si não é tarefa fácil. Foucault já evidenciou isso na medida que,
mesmo que seja uma prática possível a todas as pessoas, apenas aquelas que têm
condições de pagar por este cuidado, isto é, só cuida de si quem tem tempo consigo, e
156
só tem tempo consigo mesmo quem pratica o ócio, característica essa típica da
elite. Logo, a estética da existência é um desafio constante, uma vez que essa viagem
constante para si exige mais do que intencionalidade, exige disponibilidade. A estética
da existência é uma percepção sobre si, uma criação do éthos que norteará as decisões
que o sujeito tomará sobre si e, posteriormente sobre os outros. A estética da
existência tem como foco central o eu. A proposição que acompanhará essa percepção
de si é a de fazer com que o sujeito cuide de si, conheça a si mesmo.
Esse movimento não acontece sozinho. Ninguém tem condição de cuidar de si
por si só. Foucault destaca a função do Outro como aquele que abrirá caminhos para
essa jornada, que é feita na individualidade. Percebe-se que o cuidado de si é um
processo individual, todavia não acontece na solidão. O cuidado de si é mediado pelo
Outro, que não pode ser despreparado. Para Foucault, o Outro não é um professor,
pois para o cuidado de si não é necessário um perito em técnicas ou um guardião e
reprodutor de memórias. No texto foucaultiano o mediador é o filósofo. Não porque
tenham boas respostas para elencar, mas sim porque suas perguntas são provocadoras
o suficiente para fazer com o que outro alcance o si mesmo.
Para Foucault, esse processo de sair de si mesmo é impossível sozinho, pois
antes de adentrar o patamar da sabedoria, do autoconhecimento real e sincero, o
sujeito está no estado de stultus, isto é, uma pessoa que não tem consciência de si e
nem do mundo de que faz parte. A stultitia tem como característica a manutenção da
condição de autômato, ou, em outras palavras, o ato de condicionar o sujeito no
automático, em que o indivíduo passa a responder aos estímulos e cumprir tarefas que
são traçadas para a sua função social. O stultus, segundo Foucault, é aquele que está
bem situado no senso comum, responde mimeticamente aos protótipos estabelecidos.
Ainda que o Outro seja fundamental nessa ruptura com o estado de stultitia para
o estado de sapietia, dois fatores são inegociáveis. O primeiro é a fala franca, sem
medo, a fala sincera, conhecida nos textos foucaultianos como parresia. Essa fala
destemida, verdadeira, tem como compromisso primordial o confronto do sujeito
consigo mesmo, bem como com todas as demais relações que perpassam sua vida.
Quando não há parresia, há risco de morte. É por meio da fala franca e sincera que o
sujeito é confrontado. A parresia é a força de resistência que incomoda o stultus.
Porém, como segundo ponto, somente se houver a escuta por parte do discípulo essa
jornada de si para si mesmo será efetivada.
157
Narrar é fazer com o que o mundo ganhe significados; é dar sentido para o
externo em uma aventura interna; é moldurar a estética da existência. O termo narrar
está associado com o sânscrito ‘gna’/‘gno’ (conhecer), e dá origem ao termo noesis
que é o pensamento em sua essencialidade, aquilo que humaniza a racionalidade
humana. Com o tempo, o termo gnarrare foi adaptado para narrare. Assim, de modo
provisório, o ato de narrar é o próprio ato de conhecer. Narra-se aquilo que, em
alguma esfera, foi experienciado pelo narrador, ou, em linguagem fenomenológica, é
o ato de traduzir uma experiência intencional em sentidos e significados (HUSSERL,
1988).
viés específico, pois narrar a história de si mesmo a partir do mesmo método que
se trata os algoritmos é esvaziar o encantamento que está no para além da história, no
acontecimento. Em perspectiva foucaultiana, como já foi descrito anteriormente, é
possível se destacar dois aspectos importantes da ideia de acontecimento: “como
novidade ou diferença e o acontecimento como prática histórica” (CASTRO, 2016,
p.24).
10
Adaptação de nota tirada da aula do prof. Dr. Rui Josgrilberg ministrada no dia 11 de abril de 2017
da disciplina Antropologia dos Sentidos do Programa de Pós Graduação da UMESP.
163
Quando o sujeito passa a narrar sobre si, apropria-se da memória como fonte
historiográfica de acontecimentos e passa a descrever a si e sua visão de mundo a
partir de suas referências. A textualidade nunca está deslocada da realidade do autor,
logo “a palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou
vivencial. É assim que compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que
despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida” (BAKHTIN,
2006, p. 99). Narrar sobre si é dar sentido e significado para si.
164
Ater-se aos pequenos indícios, afirma Ginzburg, aqueles que são, para o grande
público, imperceptíveis, pode ser uma tendência hermenêutica que desvele novos
horizontes do acontecimento, isto é “permite-nos [...] construir a verdade a partir das
ficções (fables), a história verdadeira a partir da falsa.” (2007, p. 93). Na criação dessa
história transcendental, o aspecto axiológico de verdadeiro e/ou falso cede lugar para a
consciência intencional de encontrar sentido para a existência.
Outro ponto relevante a se destacar é que narrar memórias está articulado com
a (trans)formação do eu. A metamorfose humana é um ato constante e imperativo para
a vida. O ser humano é o único ser vivo que transcende a teleologia metafísica que
sintetiza todos os demais seres vivos. Em uma abordagem sartreana, “a existência
precede a essência” (SARTRE, 1987), logo, a tomada de consciência de si altera a
forma como se narra e como se significa o que é narrado. Ao passo que a memória é
narrada, novos horizontes são galgados e descobertos. Narrar sobre si é constituir-se:
A ação moral é aquilo que suprime a cotidianidade, haja vista que a ação
moral está fundamentada em um princípio anterior, fator à priori que moldura o
cotidiano, elimina o atributo próprio e inseparável da cotidianidade. Ao compreender
as núncias típicas do pragmatismo ético/moral, viabiliza-se a possibilidade em
discernir o que é ou não cotidianidade. O embate é: como distinguir entre o que é ou
não moral/ético? Guimarães enumera quatro fatores retomados por Heller. O primeiro
fator é “a elevação das motivações particulares, que se definiriam por uma opção ao
que se refere à genericidade em oposição a sua particularidade” (2002, p. 23). Este
aspecto está relacionado com a influência no meio social, no impacto das instituições,
na composição valorativa e pragmática do sujeito.
para a multidão). Quem foi o responsável por seus sucessos e fracassos? Por que
se preparar para desempenhar uma determinada função se a maioria das pessoas que a
executam são despreparadas? E a educação, participou de todo esse processo ou foi
um hiato em sua jornada?
Os discentes que contribuíram com suas narrativas apresentavam uma dimensão
diferente no que se refere à educação. A ideia de educação como aparato técnico a fim
de encontrar um bom trabalho acompanhou as narrativas de ambos os discentes.
Contudo, o que se diferencia é que, por mais que os dois alunos tenham trabalhado a
ideia de que há uma pressão familiar e social no que se refere à capitalização
financeira, ambos tinham em perspectiva outro horizonte, ou seja: buscam realização
pessoal e para alcançar este sonho a educação é imprescindível. Por exemplo, a
discente “R. L” relatou que, quando expôs ao pai que gostaria de fazer o curso de
psicologia ou terapia ocupacional, o pai disse-lhe que ela não ganharia muito dinheiro.
Porém, para ela, mais importante do que a retribuição financeira é a satisfação em
realizar um projeto de vida. Quando perguntei se ela exerceria uma profissão mesmo
sabendo que não ganharia muito dinheiro ou não enriqueceria, ela respondeu:
Iria. Iria porque eu não estou indo pelo dinheiro em si, mas pelo
trabalho que eu acho lindo. É porque dinheiro, assim, é uma coisa
que a pessoa padronizou, nós precisamos do dinheiro pra fazer as
coisas, mas ele não está envolvido em tudo. Igual, eles colocam.
Tem coisas mais importantes que o dinheiro. O amor... ajudar o
próximo. Não se paga isso. O preço de amar uma pessoa... tem uns
idiotas sim... mas... que levam até pra França, mas não tá certo isso.
Mais do que o retorno pecuniário, os jovens narram que buscam satisfação em
viver. A tensão que as narrativas revelam é que, por um lado, os responsáveis pelos
alunos compreendem a educação como elemento indispensável por ser aquele fator
que subsidiará o jovem para o mercado de trabalho, e, por outro lado, os discentes
querem encontrar na escola alguma realização e satisfação pessoal. Ainda assim,
existem outros horizontes que cativam a existência dos participantes. Se, por um lado,
a lógica do mercado é arbitrária, por outro, a subjetividade estabelece uma nova
axiologia, ou seja, novos valores que dão sentido e significado para a existência.
Os discentes percebem como o mundo capitalista é implacável quanto aos
quesitos financeiros. Por exemplo, “R. L.” afirma que ouve constantemente dos
familiares que “tem que trabalhar pra ser alguém na vida”, logo, é o trabalho que
garante a subsistência da pessoa, pois é por meio do trabalho que ela ganhará dinheiro.
Com o discente “F. G.” não é diferente. Depois de externar para a mãe o desejo de
173
oportunidade que Deus deu e eu acho assim que Ele disse aqui você vai entrar e
vai ficar. Ai quando eu voltei, prestei concurso e fiquei”.
Não foi uma escolha planejada, mas uma oportunidade, pois o professor “H.
F”., antes de assumir a docência, trabalhava com alvearia. A faculdade da cidade onde
ele residia pediu que ele prestasse serviço. Em seguida, perguntaram se ele não queria
fazer o curso de educação física. Ele aceitou e, aos poucos, a docência foi acontecendo
em sua vida, como o próprio professor relata:
11
Optamos pela Dissertação de mestrado de Ana Cristina de Souza Pires Dias por ser um
trabalho recente e por conservar o próprio texto grego. Esse trabalho foi significativo no auxílio de
análise e comparação semântica e exegética da escolha da tradutora em relação ao todo do texto.
178
Ainda que Sócrates não estivesse perto, observava como Alcíbiades lidava com
seus amantes. Mesmo sendo muitos os amantes do jovem aprendiz, todos o
abandonaram. Alcíbiades tem uma questão a ser resolvida e conta com a ajuda do
antigo mestre. Sócrates, por sua vez, descreve Alcibíades como uma pessoa
prepotente: “você diz não necessitar de ninguém para nada, pois é tão elevada a sua
condição que não necessita de nada, a começar pelo corpo e a terminar na alma”
(DIAS, 2015, p. 64). A autossuficiência de Alcibíades é alimentada pelo meio em que
está inserido, haja vista que pertencer à aristocracia era estabelecer um abismo entre
um cidadão e as demais pessoas da cidade, como se vê abaixo:
181
Sócrates afirma que é difícil ser sincero com uma pessoa que nunca baixa a
guarda; que nunca cede para os amantes; que sempre se considera naturalmente
superior a todas as demais pessoas. A postura indiferente e prepotente é um dos
motivos pelos quais as relações sejam marcadas por falta de sinceridade verdadeira.
Por este prisma, Sócrates problematiza uma pergunta: “Ao que me parece, se algum
deus lhe perguntasse: ‘ó Alcibíades, você desejaria viver com aquilo que já possui, ou
morrer, se não lhe fosse possível adquirir bens maiores?” suponho que você preferiria
182
morrer” (DIAS, 2015, p 65). Sócrates persiste nessa direção: “Com qual
expectativa você agora vive, eu revelarei” (DIAS, 2015, p. 66).
Sócrates deixa claro no diálogo que essa conversa entre os dois não acontecera
antes porque ele, Alcibíades, não tinha maturidade para o confronto que se
desdobraria deste encontro, como vemos nesta passagem: “Quando você era mais
jovem e ainda não estava insuflado com tamanha expectativa, ao que me parece, o
deus não me permitia dialogar com você, a fim de que não fosse em vão nosso
diálogo. Mas agora ele me dá essa concessão, pois neste momento você me ouviria”
(DIAS, 2015, p. 67).
condicionalidade: “Se não for deveras difícil o favor que me pede, posso consenti-
lo” (DIAS, 2015, p. 69).
O desejo de Sócrates é fazer apenas algumas perguntas para seu antigo amante.
Assim, a primeira questão foi: “Como devo lhe perguntar, então, como se você
planejasse o que eu afirmo que você está planejando?” (DIAS, 2015, p. 69). A
resposta de Alcibíades demonstra a curiosidade em saber como ele iria alcançar o seu
objetivo, mas sem ater-se ao que o antigo mestre estava propondo.
Sócrates, então, inicia seu processo dialético de modo mais intenso. Saltam,
pois, os rudimentos imanentes da maiêutica socrática. Se, por um lado, era tido como
nobreza a disposição do sujeito para atuar na sociedade, como destaca Jaeger, que “o
fato de os homens mais importantes da Grécia se considerarem sempre a serviço da
comunidade é índice da íntima conexão que com ela tem a vida espiritual criadora”
(JAEGER, 2003, p. 17), por outro lado, o mestre quer demonstrar para o jovem
aprendiz seu despreparo para tal empreitada. A primeira provocação socrática se dá na
dimensão que tangencia a competência do discípulo:
Com essa resposta, Sócrates emerge outras questões: “E, Então? Teria você
desejado saber ou aprender o que julgava conhecer? As coisas que você conhece,
houve um tempo em que não presumia conhecê-las?” (DIAS, 2015, p. 71). Na
abordagem socrática, fica claro que Alcibíades só aprendeu porque desejou aprender,
teve vontade para aprender. O mestre demonstra seu profundo conhecimento sobre
184
proposição é apenas uma: Alcibíades não está preparado para aconselhar a pólis
porque ele ainda não se voltou para si mesmo. O conhecimento de si é primordial para
uma carreira política bem-sucedida.
Com isso, chega-se à conclusão que se entra em guerra com pessoas que
causam algum tipo de injustiça. É a partir da virtude por excelência em categorias
aristotélicas, a justiça, que se fundamenta a ação ou inércia em relação a guerra ou
paz. Sócrates demonstra que o jovem, ainda que se sinta imbuído de toda competência
técnica para o labor político, não passa de mais um jovem despreparado para uma
função extremamente meticulosa. Para consolidar sua crítica, o sábio pergunta:
E agora, meu caro Alcibíades? É você que não percebe que não
possui conhecimento a respeito disso, ou fui eu que não me dei conta
186
Alcibíades: Mas o que direi se não posso dizê-lo? Você não julga
que eu poderia saber a respeito do justo e do injusto de outra
maneira?
Sócrates: Sim, se você o descobrisse.
Alcibíades: Mas não considera que eu poderia descobri-lo?
Sócrates: Claro que sim, se o investigasse.
Alcibíades: E não pensa que eu o investigaria?
Sócrates: Sim; se julgasse não conhecê-lo (eidenai) (DIAS, 2015, p.
83).
Alcibíades tenta demonstrar para seu antigo mestre que a multidão tem
qualidades formativas. Para sustentar seu argumento, o jovem aprendiz afirma que
todas as pessoas aprendem o grego com a multidão. Nessa direção, Sócrates afirma
que a multidão não é capaz de ensinar, mas de reproduzir o que já fora ensinado. Para
pensar, investigar, refletir e questionar sobre as complexidades inerentes à vida
política é necessário um grupo preparado para tal empreitada, não pessoas sem a
devida competência e habilidade para tratar destes imbróglios. Assim, Sócrates
demonstra que a multidão não tem competência para falar sobre saúde, justiça, paz
etc. Diante dos argumentos de Sócrates, Alcibíades assume as respostas do mestre
como verdadeiras – provando a influência ativa do sábio sobre o antigo discípulo.
Emerge, assim, a resposta de Sócrates para o jovem discípulo:
Sócrates: Você está vendo, Alcibíades, que mais uma vez não me
deu uma boa resposta?
Alcibíades: Por quê?
Sócrates: Porque você diz que sou eu quem está dizendo isso.
Alcibíades: E daí? Não é você que está dizendo que eu não conheço
nada sobre o que é justo e o que é injusto?
Sócrates: De modo algum (DIAS, 2015, p. 93).
Alcibíades ainda não se deu conta de que a postura inquisidora de Sócrates não
é de opositor, em vez disso, é uma postura de auxiliar no amadurecimento e
desprendimento do jovem aprendiz. Evidencia-se no texto a arrogância e impaciência
de Alcibíades, chegando ao ponto de revelar o intento do rapaz em encerrar o diálogo
188
Sendo assim, foi dito que Alcibíades, o belo filho de Clínias, não
conhece o que é justo e o que é injusto, apesar de presumir sabê-lo, e
que está prestes a se apresentar na assembleia para aconselhar os
atenienses a respeito do que não sabe. Não foi isso? (DIAS, 2015, p.
95)
A preocupação última de Sócrates é com o próprio aprendiz, pois aventurar-se
em uma dimensão totalmente desconhecida é muito perigoso. É por este viés que o
sábio demonstra a faceta insana de Alcibíades ao desejar trabalhar na assembleia:
“Pois planeja dar um passo insano (manikon), excelente homem, o de ensinar aquilo
que não sabe, tendo se descuidado de aprendê-lo” (DIAS, 2015, p. 96). Na narrativa, a
postura de Alcibíades passa a revelar certa indiferença a arké do conhecimento e da
verdade, acomodando-se nas superfícies rasas do senso comum.
É porque, meu caro, você não julga conhecer o assunto sem conhecê-
lo. [...] Observe comigo! Sobre o que você não conhece, mas
reconhece que desconhece, acaso hesita em tais coisas? Por
exemplo, sobre o preparo de alimentos, certamente você sabe que
não conhece isso, não é? (DIAS, 2015, p. 111)
Não interessa para Sócrates a ornitologia ou os segredos gastronômicos, em
vez disso, o sábio destaca a competência do sujeito como virtude sui generis. Aliás,
até a ciência da ignorância pode ser uma virtude e, sua contradição, o vício, uma
190
Para o sábio, muitos que estão na política exercendo cargo público, que
possuem origem aristocrática, não têm o conhecimento devido do que é justo, belo,
bom e vantajoso. A ênfase de Sócrates se dá não no fato de não saber o que significa o
conceito das virtudes elencadas acima, haja vista que a ignorância pode ser boa
quando ela é o ponto de largada para o conhecimento e sabedoria, outrossim, a
ignorância da própria ignorância: este é o verdadeiro veneno da alma. Dessa maneira,
Sócrates continua sua discussão com Alcibíades elencando os argumentos evidentes
do despreparo do jovem ao que se refere à vida pública:
Com essa lacuna, Sócrates introduz um novo tópico em seu diálogo com
Alcibíades: pertencer a uma família aristocrata ou ter tido contato com um sábio não
torna o interlocutor sábio. Problematizando a questão de tornar-se sábio, Sócrates traz
outra indagação: por que os filhos de Péricles são insensatos e até mesmo o próprio
irmão de Péricles é tido como um louco? Não tinham contato com algum sábio? O
191
próprio Alcibíades, convivia com o grande sábio Péricles, por que não se tornou
um sábio? A resposta de Alcibíades altera o papel dos sujeitos na relação com a
sabedoria, bem como introduz a presença do outro no projeto de cuidado de si: “Eu
penso que sou eu o culpado por não lhe prestar atenção” (DIAS, 2015, p. 117). Há um
questionamento categórico de Sócrates para introduzir o cuidado de si no diálogo:
Mas se você deseja, por um lado, voltar o seu olhar para as riquezas,
o luxo, as vestimentas, os mantos longos, os unguentos de mirra, as
comitivas com muitos servos, além das demais opulências dos
persas, você teria vergonha de si mesmo ao perceber o quanto é
inferior a eles. Se você deseja, por outro lado, voltar o seu olhar para
a temperança, o comedimento, a fortaleza, o bom humor, a
magnificência, a disciplina, a coragem, a perseverança, o gosto pelo
trabalho, pela vitória e pelas honrarias dos lacedemônios, você
consideraria a si mesmo uma criança em todos esses aspectos (DIAS,
2015, p. 129).
193
Alcibíades apresenta dúvida diante dessas questões, sem saber o que fazer ou
pensar para a devida resolução. Ao mesmo tempo, o jovem discípulo apresenta uma
postura de desilusão diante do que tem que ser feito. Sócrates afirma: “Mas você deve
ter confiança (tarrein). Pois se tivesse percebido isso apenas aos cinquenta anos de
idade, cuidar de si mesmo (epimeletenai sautou) seria penoso. Entretanto, a idade em
que você se encontra agora é precisamente aquela propícia para percebê-lo” (DIA,
2015, p. 147). Ao ouvir as palavras de esperança do mestre, Alcibíades quer saber
como sair do estado de ignorância. O que é preciso fazer para alcançar o patamar de
sábio, de sapiência? Sócrates aponta para um caminho árduo: responder perguntas.
Com essa questão, inicia uma nova etapa do diálogo:
Por esse viés, Sócrates demonstra que, da mesma maneira que o sapateiro, o
instrumentista ou qualquer outro técnico utiliza instrumentais que se diferenciam dele,
assim também acontece no processo da linguagem ou do a si mesmo, tal qual uma
coisa é a palavra, outra coisa é aquele que se apropria da palavra. A ideia básica é que:
“O homem, portanto, é distinto de seu próprio corpo”. (DIAS, 2015, p. 155). O
dualismo socrático corpo e alma se evidenciam, de modo que fica clara a
superioridade da alma em relação ao corpo. Persistindo nessa abordagem
antropológica, emerge a questão: “Então, o que é o homem (antrupos)?” (DIAS, 2015,
p. 157).
Não é fácil responder o que é o homem. Ainda que a biologia possa estruturar e
decodificar a humanidade, e, por outro lado, as ficcionalidades conseguem retratar a
vida como ela é, conceituar o que é ser humano não é tarefa fácil, pois: o homem é
aquele que se serve do corpo? O homem é a alma? O homem é conjunto desses
elementos? Sócrates deixa a entender que o ser humano é, sobretudo alma:
explicação para a compreensão entre corpo e alma. Para o filósofo, uma coisa é o
movimento de conhecimento referente a uma parte do ser humano, outro movimento,
díspar, é o conhecimento da alma do sujeito: “E, então, quem quer que conheça algo
relativo ao corpo, conhece o que diz respeito a si, mas não a si mesmo” (DIAS, 2015,
p. 161).
Desse modo, ao cuidar do corpo, cuida-se não de si mesmo, mas de algo que é
relativo ao si mesmo, bem como toda a dinâmica de riqueza, amizades etc. Cuidar
daquilo que é relativo à coisa não é, necessariamente, cuidar realmente da coisa.
Assim, Sócrates diz que o amante do corpo de Alcibíades não ama o Alcibíades, mas
seu corpo. Por isso, Sócrates pergunta:
argumento ao relacionar suas ideias com a dimensão divina, isto é, ao passo que o
sujeito age de maneira justa e temperante estará agindo conforme a expectativa dos
deuses, e fará o que é bom e correto, todavia, se houver o inverso: “Mas, se as
executarem de maneira injusta, com seus olhares voltados para o obscuro e sem deus,
vocês as executarão, como é plausível, de maneira similar, por não conhecerem a
vocês mesmos”. (DIAS, 2015, p. 175).
Sócrates aponta que um doente déspota pode agir de maneira corrupta e cruel,
isto é, pessoas que não têm a técnica possível para assumir o controle de algo podem,
por alguma intempérie das contingências da vida assumir a condição de poder, dessa
maneira, quando um incompetente assume uma postura que não lhe cabe, a tragédia
está posta. Por exemplo, se uma pessoa despreparada assumir um navio, ou um centro
médico ou qualquer outro lugar, traria alguns problemas: “E não sucede a mesma
coisa à cidade e a todo e qualquer poder ou magistrado: apartados da excelência
(eretai), a consequência é agir mal?” (DIAS, 2015, p. 177). Sócrates continua seu
argumento: “É preciso, portanto, ó Alcibíades, que não seja fornecido nem a você nem
à cidade o poder supremo, e sim a excelência (areten), caso vocês visem a felicidade
(eudaimonein)” (DIAS, 2015, p. 177).
“Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém
diz violentas as margens que o comprimem”. (Bertolt Brecht)
12
Todos os discentes, docentes e agentes administrativos que contribuíram para a elaboração desta tese
serão identificados pelas iniciais de seus nomes: “R. L.”, “F. G.”, “R. M.”, “J. A.”, “H. F”, “M. F.” e
“V. M”.
208
escolhido um curso que, segundo sua narrativa, “não dava dinheiro”. A tensão
com o pai se dava porque, em sua perspectiva, “para ser alguém na vida é preciso
trabalhar”. O ponto não está, especificamente, no trabalho, mas no rendimento
financeiro atrelado ao labor (ARENDT, 1981). Esta narrativa fundamenta, ainda mais,
a hipótese de que a educação é meio para a constituição da existência que se efetiva
por meio do trabalho que proporciona retorno financeiro. É preciso deixar claro que
essa concepção de “ser alguém” na vida narrada pela discente “R. L.” está imbricada
com a ideia de que é o trabalho que dignifica a pessoa, entretanto, não pode ser
qualquer tipo de trabalho, tem que ser um rentável.
Sabe-se que a reflexão sobre o fracasso escolar ocupa a agenda dos teóricos da
educação há décadas, dentre os teóricos, as ênfases são diversas. Por exemplo, Patto
(1988) aponta para tensões estruturais, organizacionais, políticas e pedagógicas da
década de 1980. É impressionante perceber como as contrariedades do século XX
ainda se mantém persistentes na atualidade. O século XXI traz consigo contingências
singulares, como, por exemplo, o impacto das novas tecnologias – tema este destacado
tanto pelos discentes “R. L” e “F. G.”, pois, segundo eles, ao mesmo tempo em que a
tecnologia pode ser um suporte benéfico, pode ser, simultaneamente, o dispositivo que
atrapalha a formação do sujeito. É preciso considerar o impacto das redes sociais, a
virtualização da existência, a cultura monocromática e homogênea despertada pela
globalização. Ainda assim é possível encontrar similitudes que sobrepujam a
temporalidade e a regionalidade. Dilemas encontrados em terras brasileiras se
assemelham muito a problemas encontrados no continente Americano.
Corroborando com esse prisma, Caldas (2005) apresenta um relato de uma
criança norte-americana na década de quarenta a qual vivia uma realidade muito
semelhante à de crianças latino-americanas na contemporaneidade. Caldas apresenta a
percepção da escola desta criança que havia repetido duas vezes o sétimo ano. Segue a
narrativa da criança: “Na verdade, eles nunca acreditam que a gente sabe alguma
coisa, a não ser que se possa dizer o nome do livro onde a gente aprendeu. Tenho
vários livros lá em casa. Mas não costumo sentar e lê-los todos, como mandam a gente
fazer na escola” (CALDAS, 2005, p. 23).
impressionante como o docente “J. A.” apresentou um relato muito próximo desta
narrativa ao descrever a forma como os professores do Estado se relacionam com os
alunos, como afirma o professor “J. A.” “A postura do professor em subestimar os
alunos, achando que eles não conseguiram compreender determinado assuntos por não
terem competência”. O que está posto é: ou se sabe porque se tem a referência
acadêmica e legítima, ou não se sabe porque não tem competência.
Bernard Charlot (2002), ao refletir sobre a educação, bem como sobre o fracasso
escolar, busca compreender o que está por detrás do que é visto e perceptível, ou seja,
analisar a matriz do fracasso escolar, não só os desdobramentos dos fenômenos
evidentes, mas, em linhas foucaultianas, instaurar processo arqueológico
(FOUCAULT, 2005). A intuição que se tem é que a educação é regida por um
discurso mercantilista típico da lógica do mercado que invade todas as instâncias da
humanidade, a fim de estruturar os sentidos e significados. Jung Mo Sung, analisando
a conjuntura do cenário hodierno, aponta para um prognóstico decisivo:
A minha hipótese para essa resistência generalizada à regulação e
restrição à liberdade do mercado é a de que a ideologia neoliberal,
que antes era uma ideologia do sentido de um sistema de ideias
norteadoras de uma classe social, passou a ser o núcleo estruturador
da cultura global e do ethos capitalista. A maioria das pessoas,
especialmente a grande mídia, pensa segundo o mito neoliberal.
Assim, esse mito passou a ter um papel fundamental no processo de
abrir e fechar as possibilidades de conhecimento e diálogo, de definir
critérios de discernimento entre o bem e o mal, entre ações
aceitáveis ou não. E como é um mito fundamental, estruturador, as
pessoas imersas nessa cultura não o enxergam, pois veem o mundo
através dele. Para poder vê-lo e criticá-lo, é preciso sair desse mito,
dessa cultura, ir além do sistema e ver a realidade a partir de fora
(2019, p. 44).
Sair de um mito estruturante a fim de uma compreensão extensiva da existência
não é tarefa fácil. A infraestrutura dominante é arbitrária e despótica, ou seja, impõe
uma acomodação existencial do sujeito a partir dos paradigmas estabelecidos e
legitimados socialmente. Nesse contexto, a educação adequa-se ao padrão imposto
pelo sistema ou mercado. Charlot destaca que a educação está como resposta às
tendências do mercado, em suma, retomando as pistas do início desta seção: educa-se
para a profissionalização. Nessa lógica, não há espaço para a reflexão, apenas para a
utilidade e tecnicidade, como aponta Sung:
Críticas realizadas sob a aceitação do mito do mercado livre não têm
como desvelar e criticar os fundamentos deste. Elas sempre acabarão
sendo incorporadas e assimiladas pela lógica do sistema dominante.
Quando se quer criticar os fundamentos metafísicos e míticos de um
210
13
Tomou-se emprestada a palavra Soter, utilizada pela Teologia, que carrega o sentido de salvação. No
caso citado trata-se do tipo de salvação em que o sujeito está em condição de passividade diante de
uma ação externa ativa.
212
consumo, por isto, a educação é o instrumental que subsidia o sujeito para adentrar
nesse jogo mercantil. Nesse contexto meritocrático, típico da lógica capitalista, a
hierarquização dos sujeitos é encadeada a partir da ideologia dominante. Seguindo a
proposição de Bauman (1998) os sujeitos se adaptam e, simultaneamente, elegem os
que serão excluídos. O coletivismo suprime o indivíduo, como destaca Adorno:
14
Hannah Arendt apresenta três tipos de atividades humanas: o labor como ação que indispensável para
a sobrevivência do sujeito; trabalho como atividade quando as questões básicas já foram resolvidas; e
ação que está relacionada ao tema da política. Cf. ARENDT, 1981.
220
destaca que a contingência que o sujeito cria de si mesmo está em conexão com as
demandas sociais, as quais são forjadas, nesse imbróglio, isto é: a expectativa social
tem como vetor as demandas econômicas. A subjetividade, potencializada pelos
discursos institucionais da educação, normaliza o ethos tecnicista que faz do sujeito
estranho a si mesmo, bem como forçado a se adaptar às contingências imperialista.
Considerando o impacto econômico e social na constituição da subjetividade do
sujeito, salta a caricatura distorcida do si-mesmo, ou seja: falsa consciência de si.
Nessas categorias, a subjetividade é a mimeses dos imperativos pecuniários. O jogo de
verdade que constitui a subjetividade do sujeito é transpassado pela narrativa de que
sua funcionalidade e utilidade social é atributo anterior ou apriori da própria
existência. A educação é, apenas, instrumentalizada neste condicionamento
existencial. Toda a complexidade inerente a constituição do sujeito é solapada por
uma fabricação instrumental. Despreza-se o ato de voltar a si mesmo em detrimento
de adequação social. Nega-se toda a experiência de si que a educação pode
potencializar, ou seja:
Não é que na natureza humana estejam implicadas certas formas de
experiência de si que se expressam historicamente mediante ideias
distintas (cada vez mais verdadeiras ou, em todo caso, pensáveis
desde os êxitos e dificuldades da verdade) e se manifestam
historicamente em distintas condutas (cada vez mais livres ou
possíveis desde o difícil caminho até a liberdade), mas que a própria
experiência de si não é senão o resultado de um complexo processo
histórico de fabricação no qual se entrecruzam os discursos que
definem a verdade do sujeito, as práticas que regulam seu
comportamento e as formas de subjetividade nas quais se constitui
sua própria interioridade. (LARROSA, 1994, p. 42-43).
Para Larrosa, a experiência de si é uma construção que o sujeito faz em caminho
de si, em relação, simultânea, consigo e com o mundo, a qual não está fechada ou
limitada a quaisquer tipos de paradigmas, entretanto, é diante da complexidade típica
do imprevisto existencial, tragos pelas contingências da vida, que o sujeito desfruta
empiricamente de si. Essa experiência de si é ocultada pela educação deformativa,
pois esta privilegia a constituição de uma subjetividade heteronômica, fechada e
completa. Heteronômica porque impõem sobre o sujeito leis externas que
correspondem a enunciado do biopoder vigente; fechada porque não dá ao sujeito
condições de compreender e perceber o mundo para além de si mesmo, é a retomada
da ideia de Marcuse (1973) da unidimensionalidade; e completa pois a condição
existencial do sujeito já é posta, definida pelas entidades hipostasiadas.
221
O sistema foi feito para que a segregação se perpetue. Pulsa o quão destoante
da realidade são os exames avaliativos. Este mesmo dilema é retomado no relato do
docente “J. A.” que enfatiza a desigualdade entre escola pública e privada. Ser
docente, nesses critérios, é desafiador, ainda mais que é explícito que as escolas
privadas estão em patamares superiores às públicas. Para ilustrar isso, o docente “J.
A.” fala: “é difícil competir né, a molecada tendo aula de robótica desde a sexta
série... desde a primeira série, né?”
Por esta via, a docente “R. M.” destaca como a docência se transformou, para
alguns, uma profissão depois que todas as portas se fecharam, ou seja, a docente “R.
M.” destaca “quando a pessoa não conseguiu ser nada e só consegue ser professor”
não só vive uma vida frustrada, mas é um agente de frustração. O docente “J. A.”
segue pelo mesmo viés, pois descreva sua percepção de que muitos professores do
Estado são frustrados, mas não abrem mão por ser a única profissão que conseguiram
o mínimo de estabilidade, nas palavras do professor “J. A.”: “tem um pessoal que fica
mó triste quando tem que dar aula”.
Outra contradição elencada pelo docente “J. A.” é que existem muitos
professores que preferem cumprir horário do que ministrarem aula. Por que isso
ocorre? Talvez, a intuição da docente “R. M.” referente à baixa remuneração seja uma
das consequências; ou a “realidade de 720 alunos em um ano letivo”; talvez o clima
de frustração como descrito pelos docentes entrevistados. A provocação da docente
“R. M.” é se é possível criar vínculo com 720 alunos por ano, em que o docente atua,
em média, 100 minutos por semana em cada sala de aula? Ou, ainda, qual o impacto
do desgaste na vida do docente, o qual precisa trabalhar, em muitos casos, os três
turnos por dia, experiência essa que a própria docente “R. M.” viveu. Quando “R.M”
foi questionada se havia trabalhado os três períodos em algum momento de sua vida,
ela responde: “Sempre! Eu nem me lembro de não trabalhar os três períodos... ano
passado só que eu não trabalhei os três períodos”.
Ao estabelecer paralelo entre o diálogo platônico do “Alcibíades Primeiro” com
a conversa com a docente “R. M.”, nota-se que a docente tem o desejo de aprofundar
os seus vínculos com os alunos, entretanto, a estrutura e as contingências da vida
fazem com que a docente execute, da maneira que dá, sua função. As ideias de
reciprocidade e sinceridade vistas no diálogo platônico são substituídas pelos termos:
instrumentalidade e superficialidade, ou seja: é necessário que o currículo esteja em
ordem e que o envolvimento com os alunos se restrinja aos minutos de aula.
223
15
Foi mantido, exatamente, o que o docente disse em sua conversa. Mantivemos na íntegra para
conservar a perspectiva do docente ao que se refere a política.
226
No diálogo com o discente “F. G.” se percebe que diante do seu sonho de fazer
música, ele não conseguia ver qualquer utilidade da escola para a realização desse
projeto pessoal. Quando inquerido de que existem chances do seu sonho não ser
alcançado, ou seja, ele pode investir em uma profissão que, no futuro, não proverá
recursos financeiros suficientes para mantê-lo, logo, ele seria compelido a se
reinventar, ou seja, teria que encontrar outra profissão que trouxesse subsídios
financeiros suficientes. Diante desta conjectura, a pergunta feita ao discente foi se ele
já havia pensado em uma alternativa, caso não dê certo seu sonho, sua resposta foi:
“Bem pouco... aí eu já não saberia o que fazer. Faria alguma coisa mais rápida pra
trabalhar em algum banco, assim, e deixaria a música de lado, como um plano “B”.
Seria mais ou menos assim”.
227
16
A chamada categoria O, criada há nove anos por um decreto assinado pelo então governador
José Serra (PSDB), reúne hoje quase 30 mil docentes, segundo dados do Sindicato dos Professores do
Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp), em um esquema de contratação com "data para
acabar". Na prática, os professores da categoria O realizam as mesmas funções dos concursados, mas
não gozam dos mesmos direitos e nem possuem um vínculo empregatício duradouro. Após a prestação
de serviço continuada, os docentes da categoria são afastados por 180 dias, a chamada "duzentena". Ou
seja, são desvinculados. Segundo a Apeoesp, hoje são 194.300 os professores na educação básica do
estado. Do total, 65.500 são efetivos, 29.900, categoria O e o restante se divide em outras tantas, como
a F. Essa [a O] foi a única categoria de professores que de 2017 para 2018 cresceu. Teve um aumento
de 19,7%, enquanto as outras diminuíram. Ou seja, o estado de São Paulo está aumentando o contrato
precário e reduzindo o que possui melhores condições de trabalho. Informações retiradas do site da
APEOESP. Disponívem em: <http://www.apeoesp.org.br/noticias/noticias-2018/categoria-o-numero-
de-professores-precarizados-cresce-em-sao-paulo/> acesso em 10 de maio de 2019.
231
Então acho que piorou essa situação. Porque você vê muitas pessoas
hoje com depressão, porque a conquista nunca é suficiente. Compra
um carro, sempre terá um melhor, celular sempre um mais novo, o
capitalismo engole a gente, o consumismo. Porque é legal, né, você
ter todo ano um carro do ano. Mas, por que é legal? Ele vai te levar
para outros lugares? Pra lua? Eu estava à algum tempo atrás, quando
a gente casou, a gente começou a melhorar, porque minha esposa é
bem desprendida do material, e as vezes eu ficava pilhado porque eu
queria trocar de carro, pilha besta. Vejo a molecada, né, muita gente
depreciava. Eu não sei veio, deve ter algum estudo que relacione isso
com bens materiais.
Resgatando a premissa de que “a intenção de Foucault não é fazer uma história
sobre uma prática de si, mas estudar as práticas (discursivas ou não) para, olhando-as
de fora, descobrir os regimes que as constituem e são por elas constituídos” (VEIGA-
232
NETO, 2007, p. 98), o devir ontológico inerente à educação auxilia nessa leitura
do sujeito, o qual auxilia no ato de revisitar as estruturas do si mesmo, iniciar
hermenêutica da constituição última de si. É por esta retomada consciente da
organização da subjetividade que o sujeito deslumbra a paisagem da liberdade, bem
como desenvolve vontade por alcançar estado de liberdade, como destaca Freire: “a
liberdade, que é uma conquista, e não uma doação, exige uma permanente busca. [...]
Ninguém tem liberdade para ser livre: pelo contrário, luta por ela precisamente porque
não a tem” (2011, p. 18). É por este viés que a vontade de potência é descoberta e
aperfeiçoada.
Não é negar a figura do outro, mas ressignificá-lo. Basta lembrar que para
Foucault “o outro ou outrem e indispensável na prática de si a fim de que a forma que
define esta prática atinja efetivamente seu objeto, isto é, o eu, e seja por ele
efetivamente preenchida. Para que a prática de si alcance o eu por ela visado, o outro é
indispensável” (2018, p. 157). A proposta é fazer com que o sujeito mergulhe e se
aprofunde em suas camadas constitutivas, dito de outra maneira:
234
percorrido pelo sujeito, todavia fortalecê-lo com instrumental para trilhar por essa
via. A contribuição da educação na constituição da subjetividade se dá à medida que o
sujeito tem condições de nomear sua subjetividade; de perceber a temporalidade que
cerca e perpassa sua existência; de transitar da stultitia para a condição de sapientia,
ou seja, imergir no conhecimento de si e suas contingências. Por esta via, vale o
destaque da citação de Foucault:
O stultus não pensa na velhice, não pensa na própria temporalidade
da vida a fim de ser polarizada na consumação de si na velhice.
Muda de vida continuamente. Então, muito pior que a escolha de um
modo de vida diferente para cada idade, ele menciona aqueles que
mudam de modo de vida todos os dias e veem chegar a velhice sem
nela ter pensado sequer um instante. (2018, p. 119).
Transferir-se da stultitia para o conhecimento de si é, em síntese, a superação de
utopias. Tal postura é sintetizada na transgressão da objetificação do si-mesmo para a
heterotopia inerente a objetivação da subjetividade, dito de outra forma: se objetificar
está restrito a tornar o sujeito cativo e restrito ao sistema mercantil, enredar o sujeito
ao paradigma normalizador, materializar a subjetividade do ser; o conceito de
objetivar destaca a ação do sujeito em compreender a rota que ele está trilhando e que
o constitui, ter consciência deste caminho. A educação tem como desafio objetivar a
subjetividade, isto é, apontar novos axiomas constitutivos que são fissuras em padrões
estabelecidos e, paralelamente, possibilitam novas experiências ao sujeito, ou seja:
A educação deveria romper com as epistemologias cristalizadas pelo
racionalismo dedutivo ou pelo empirismo indutivo. É fundamental
vivenciar a subjetividade, que é um ato de experienciar o si mesmo.
Se por um lado há uma tendência de fragmentação do eu para uma
heteronomia impositiva, é possível identificar, por outro lado, uma
alternativa de condicionamento social rumo a uma vida criativa em
que há apropriação do si mesmo (MANTOVANI, 2018, p. 145).
Diante da citação, a encruzilhada que se impõe é: qual rumo a práxis educativa
assumirá? Mais do que responder a esta questão, todavia com intuito de problematiza-
la, a figura do Outro é imprescindível nessa relação de constituição de subjetividade.
É por meio da relação com o Outro que há quebra de paradigmas, retomando, assim, a
citação do terceiro capítulo que, como destacado, para Foucault o Outro (ou o mestre)
“é um operador na reforma do indivíduo e na formação do indivíduo como sujeito. É o
mediador na relação do indivíduo com sua constituição de sujeito (2018, p. 117), a
presença do Outro é inalienável para o processo de enfrentamento das amarras
alienadoras. Como destacado anteriormente, é no contato com o Outro que o sujeito
rompe com o estado de stultitia, tal afirmação é presente, por exemplo, na narrativa do
239
docente “H. F.” que destaca a importância do Outro para oportunizar sua chance
de entrar no Ensino Superior.
A experiência do docente “H. F.” destaca como a presença do Outro foi valiosa
para o despertar à oportunidade que ele, por si só, não vislumbrava. O Outro também
aparece na narrativa da docente “M. F.”, após citar experiências negativas com
professores em sua trajetória, em seguida, cita sua experiência com uma professora de
biologia, um Outro que despertou nela mais do que os resultados acadêmicos,
sobretudo, despertou para uma postura de alteridade e de cuidado consigo e com os
Outros que perpassariam sua trajetória de vida. Tal marca acompanha a trajetória de
vida da docente “M. F.” como ela mesma narra:
Eu tive dois professores maravilhosos, uma professora que tinha o
apelido de Tuca, era aquela professora doidona, sabe, do tipo que
aaaa... chegava na sala os alunos adoravam, tinha uma conversa
muito aberta, era professora de ciências, então, falava sobre tudo. Eu
lembro que ela me dava muitos conselhos porque eu era danada, me
acolheu na minha adolescência, me acolheu no sentido de conselhos,
não era só aquilo, não era só a matéria, “Azinho Azão”, tipo
sanguíneo, enfim, foi uma professora que olhava o aluno como ser
humano. “Hoje você tá triste, o que você tem?” Não era só comigo,
era com todos, é, porque você não fez o deve de casa, o que
aconteceu? Por que você chegou atrasado? Sabe, era uma professora
que via o aluno como ser humano e essa pessoa que eu quis me
tornar. Naquele momento, era uma pessoa como ela. E eu acho que
eu tô no caminho de uma profissional como ela. De olhar pro aluno e
perguntar: pô, o que você tem? Você não tá legal, enfim.
A narrativa explicita a presença do Outro, inclusive, em sua ausência. A
conexão do sujeito com o Outro dá entornos a estética da existência (MISKOLCI,
2006). Não como uma imposição moral, de valores, de práticas, de modo arbitrário e
imperativo. A presença do Outro faz com que a prática de si seja uma abertura do
sujeito para si em profunda relação com o mundo. A presença do Outro é momento
charneira constitutiva no sujeito. Nessa direção aponta Taylor:
As práticas de si possuem, portanto, um duplo caráter: por um lado,
são manifestações das normas e valores da sociedade na qual um
indivíduo vive e, portanto, estabelecem uma relação entre o
indivíduo e os outros; por outro lado, na medida em que o indivíduo
as assume e as incorpora à construção da sua própria subjetividade,
essas práticas estabelecem uma relação do indivíduo com ele
mesmo. (2018, p. 223).
Estabelecer relação consigo mesmo, como a outra dobra das práticas de si, é o
que proporciona ao sujeito experiência singular, haja vista que é nesse processo que o
sujeito passa a nomear e objetivar, como sinalizado anteriormente, sua constituição,
sua subjetividade. Como destaca Foucault “a prática de si impõe-se sobre o fundo de
240
valioso salientar que nesse ato de objetivar a subjetividade, o que está em jogo não
é encontrar a verdade sobre si ou o verdadeiro eu, em vez disso, o esforço é interpretar
os tecidos que constituíram o sujeito, como destaca Taylor:
Para essa análise crítica seja possível, temos de reconhecer que
participamos ativamente da nossa autoconstituição e, portanto,
possuímos a capacidade de nos envolver em tal análise. A
subjetividade não é uma questão de descobrir o nosso “verdadeiro
eu”, um processo que nos obriga a aderir a alguma definição
predeterminada e externa de quem e do que nós somos; antes, trata-
se de uma questão de pôr em causa um tal entendimento do que
significa ser um sujeito, de investigar os efeitos que uma tal noção
tem sobre a nossa reação com nós mesmos e os outros e de explorar
possíveis maneiras de pensar e agir de maneira diferente (2018, p.
230).
Nessa citação fica indicado que a constituição da subjetividade é uma
construção heterotópica não utópica. O aporte que a educação pode oferecer ao sujeito
é expandir fronteiras. Nas narrativas dos discentes “R. L” e “F. G.” a equação
educação para o trabalho é recorrente, desta feita, cabe a educação, mais do que
equipar o indivíduo para exercer funções, vocação a apriorística em dar ao sujeito o
esclarecimento da constituição de si. Compreender a interconectividade entre
subjetividade e liberdade, é colocar o sujeito diante da incompletude do si mesmo. É
inaugurar um jogo constitutivo de verdade que não aceita de modo acrítico normas ou
axiomas pré-estabelecidos; toda verdade absoluta é solapada, ao mesmo tempo que
todo ceticismo ou niilismo epistemológico e/ou moral são substituídos pelo empenho
do sujeito em compreender mais sobre si a partir da hermenêutica de suas camadas.
Não é função última da educação solidificar verdades, porém:
Em vez disso, como Foucault o admite prontamente, levar sua obra a
sério coloca-nos em um lugar opositivo em relação aos modos
prevalecentes de pensamento e existência e, assim, priva-nos de
“acesso a qualquer conhecimento completo e definitivo” tanto do
mundo em que vivemos quanto dos “limites” da nossa habilidade de
conhecer e agir dentro desse mundo” (TAYLOR, 2018, p. 18)
A obra foucaultiana faz com que o sujeito não admita o fim da linha do
conhecimento de si. A parresia faz com que o sujeito compreenda a si mesmo como
obra incompleta e em constante revisão e atualização. Essa postura demonstra a
insurreição na proposta foucaultiana, pois dá ao sujeito o protagonismo de si, em vez
de ser resposta do meio em que está inserido, isto é, “estejamos claros de que, embora
nós não possamos nos desembaraçar complemente de relações de poder, não somos
simplesmente determinados por elas: não estamos fadados a reproduzir acriticamente
as normas e valores prevalecentes da nossa sociedade (TAYLOR, 2018, p. 228). A
242
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta tese buscou analisar a educação por meio de lentes foucaultianas, mais do
que isso, a tentativa foi analisar narrativas do cotidiano de discentes, docentes e
agentes administrativos a fim de compreender, na prática, o que é compreendido e
vivido por educação. Se, de um lado, o esforço deste trabalho foi apresentar a
densidade teórica da filosofia de Michel Foucault, por outro, buscou-se apresentar
como a educação tem sido vivenciada, o que tem sido feito. A intenção era superar a
lacuna entre teoria e prática, academia e cotidiano, de modo que a educação pudesse
ver vista e percebida a partir de suas contingências, sem negligenciar a contribuição
da epistemologia.
Este percurso epistêmico e reflexivo teve como hipótese o impacto da educação
na constituição da subjetividade dos sujeitos. Analisou-se as narrativas do cotidiano
de personagens que estão inseridos no mesmo ambiente: a Escola Estadual Senador
João Galeão Carvalhal. Todas as personagens dialogaram sobre o mesmo fenômeno:
A educação. Além as tangências, convergências e divergências presente nas
narrativas, o que vale destacar é o impacto da educação na constituição da
subjetividade das personagens que observam criticamente a realidade e, ao mesmo
tempo, reproduzem ou perpetuam a lógica do sistema vigente.
Com o instrumental teórico de Foucault, esta tese perseguiu o duplo que
acompanha a produção do filósofo francês, assim, ao mesmo tempo que há o eco da
desconstrução da subjetividade impulsionada pelas vias educacionais, paralelamente,
apresentou a repercussão que a educação exerce, vista como fomentadora de
248
que está beira da extinção, assim, a reflexão sobre o ser humano não pode seguir
por viés unidimensional, fechado ou isolado. A compreensão do sujeito se dá por meio
de uma direção que vislumbra a complexidade humana.
Talvez o que incomode nas obras de Michel Foucault é que não exista uma
teoria propriamente dita, por exemplo: uma teoria do que é a história, ou teoria da
genealogia do poder ou até mesmo teoria ética. De fato, não é intenção de Foucault
apresentar teorias, isso está de acordo com sua perspectiva do que é a verdade: a
verdade está relacionada com o veredicto dos intérpretes que estão em constante
relação de constituição e reconstrução do que é considerado como verdadeiro (GROS,
2004). A característica atemporal do conceito de verdade na obra de Foucault destaca
a impossibilidade de percebê-la como evento finalístico, ou seja, é impossível
compreender a verdade como fenômeno dado e completo, fato exclusivo que perpassa
toda a história. É imanente a verdade a transformação.
A proposta de Foucault é interpretar como a verdade está em correspondência
com o seu lugar e momento vivencial. Compreender o acontecimento existencial é dar
vazão as inumeráveis possibilidades de interpretação relativas ao ser, logo, capturar a
verdade se torna impossível, o que é plausível é a caricatura das trilhas que
construíram o que se tem como verdade. A metáfora foucaultiana para compreender o
ser é o grande iceberg o qual propicia inumeráveis hermenêuticas e inferências. A
complexidade da obra de Foucault só destaca como o sujeito está envolto em enredos
herméticos, no qual a educação pode ser instrumental que auxilia tanto na deformação
e desaprendizavem, como na formação e aprendizagem do ser.
O esforço do terceiro capítulo desta tese é destacar como a obra de Foucault não
está deslocada da própria vida do filósofo. A proposta filosófica de Foucault é que não
pode haver separação e distinção entre vida e obra, assim, o imperativo constitutivo é
estimular o experienciar do sujeito e, assim, proporcionar a constituição do si-mesmo.
É, para o filósofo francês, remodelar a subjetividade a partir de problematizações do
que foi apreendido e, assim, aproximar-se do governo, do cuidado e da prática de si.
Tal indissociabilidade salienta que a educação não é isto ou aquilo, sobretudo,
educação é prática da constituição do ser.
Neste capítulo salta a intuição de que analisar a constituição das subjetividades é
ponderar a finalidade das instituições prescritivas, isto é, estabelecimentos que
decretam não só as vias, mas os passos que serão dados para chegar no resultado já
determinado. Estes estabelecimentos vão na contramão da retomada platônica do
250
“conhece a ti mesmo”, pois essas instituições estimulam que o sujeito não volte a
si, ou seja, negue a si-mesmo; solape o si-mesmo e não preste atenção em si,
esquecendo de si e de se ouvir. Retomar, portanto, o texto platônico do Alcibíades
Primeiro revitaliza a reflexão sobre o processo do conhecimento de si. A noção do
cuidado de si está ligada com o conhecimento de si, de modo que conhecer a si é o
ethos do sujeito, é sua prática de existência ou arte da vida.
Em geral, pode-se aferir que a educação é o mote do diálogo, pois a preocupação
de Sócrates é a permanência de Alcibíades na condição de stultitia e, pior, ao
permanecer nesse estado assumir funções aristocráticas na pólis. Para sair da stultitia
o Outro exerce papel fundamental. O intento de Sócrates é contribuir para a formação
de Alcibíades, mas, para tanto, seu ponto de partida é a desconstrução dos alicerces
subjetivos de seu antigo discípulo.
A educação, portanto, é este evento que deforma com o intuito de formar. Nesse
diálogo, Sócrates reflete junto com Alcibíades sobre os mecanismos que fazem da
verdade o que se compreende como verdade. A estética da existência socrática
envolve, simultaneamente, o ser com o Outro. É, em primeiro lugar, governo de si, a
fim de que, posteriormente, transforme-se em governo dos outros. Sócrates é este
Outro na vida de Alcibíades, pois mais do que trazer respostas para as contingências
de seu antigo discípulo, a preocupação de Sócrates é elaborar perguntas que afetam a
constituição do ser. Não está em questão apresentar a utopia que será habitada, em vez
disso, o intento socrático é contribuir no ato introspectivo que Alcibíades terá sobre si.
A educação pode ser o caminho pelo qual o sujeito visita a si mesmo, como,
também, cria o si-mesmo. Enquanto o ato de educar estiver cativo aos algoritmos
impositivos da máquina global, não se verá o que é educação. As narrativas com os
discentes, docentes e agentes administrativos evidenciaram este problema, haja vista
que a educação é interpretada de uma maneira, mas, devido as necessidades
contingenciais, é praticada de outra. As utopias imperialistas impedem que o sujeito
crie outros rumos sobre si. A provocação socrática de que tomar a multidão como
instrutora é correr o risco de permanecer nas mãos de despreparados, tenciona o que
se tem praticado como ato educativo. Não basta diagnosticar a situação degradante, é
necessário romper a fim de que heterotopias sejam construídas, potencializadas,
instigadas.
O papel das heterotopias é potencializar horizontes que são invisíveis quando as
lentes hermenêuticas do sujeito passam pelo crivo das instituições prescritivas. As
251
REFERÊNCIAS
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2017.
BENJAMIN, W. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades: Ed. 34,
2011.
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vol 42, n. 1, 2016.
ERIBON, D. Michel Foucault: Uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras,
1990.
FOUCAULT, M. Ditos e Escritos II: Arqueologia das ciências e história dos sistemas
de pensamento. São Paulo: Forense Universitária, 2005a.
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260
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KRUMGER, Dirceu Arno Jr. Foucault: A heterotopia como alternativa para pensar o
espaço social. In. Revista Enciclopédia. Pelótas: Vol 5, p. 22-37, 2016.
MARX, K.; ENGELS, F. Textos sobre educação e ensino. São Paulo: Moraes, 1992.
MARX, K.; ENGELS, F. Ideologia Alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. Um livro para todos e para ninguém. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
RABINOW, P.; DREYFUS, H. Michel Foucault: Uma trajetória filosófica para além
do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1995.
ANEXOS
1. Discente R. L.
Entrevista Aluna R. L.
Pascoal – É uma conversa sobre minha tese de doutorado que você vai me
ajudar e eu gostaria de saber algumas coisas sobre educação pra você, tipo, como você
se sente nesse período indo embora da escola, indo pra uma nova fase, se você se
sente preparada. Vai ser assim, não vai ter um roteiro, mas só vai ser uma conversa,
basicamente, tudo bem? A minha primeira pergunta é, como você se sente? Terceiro
ano...
R. L. – É muito pressão.
R. L. – Tipo dos pais, da escola, de tudo... aí se tipo, você não passa daí tem os
pais em cima de você, daí fica essa pressão. Pressão no cursinho.
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Pascoal – Entendi.
R. L. – Bem concorridas...
Pascoal – Mas, assim, o duro que quando você vê essa pressão de fora, meio
que deixa a gente assim, atordoado.
R. L. – Muito atordoado, daí eu fico pensando: será que eu vou passar? Sim ou
não? Será que eu sou capaz...
Pascoal – Eu acho que são todas questões que recebem a resposta do sim: sim,
você tem condição de passar, o que pode acontecer é que na hora você pode ficar
muito nervosa, e isso pode te bloquear.
R. L. – É cansativo.
R. L. – Eu fiz a prova da UFA pra fazer o cursinho pra me preparar pro ENEM,
pra não ter um ano, terminar a escola e depois ter um ano de cursinho. Daí com a nota
eu não passei na UFA, mas com a nota dessa prova eu ganhei uma bolsa de 100 por
cento perto da UFA, não é patrocínio, mas uma ajuda da UFA.
Pascoal - Nossa, que legal. Daí você tem lá humanidades e exatas, e qual está
sendo mais difícil?
R. L. – Exatas...
Pascoal – É mesmo?
R. L. – Ou terapia ocupacional...
Pascoal – Aquele livro que você tá lendo fala muito sobre isso, sobre você
estar...
R. L. – Vejo.
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R. L. – Daí eu vejo a pressão dela, desde quando ela entrou na faculdade agora
no tcc... Mas ao mesmo tempo eu vejo ela querendo crescer, porque ela tá querendo
fazer doutorado, fazer pós, quer fazer mestrado essas coisas pra virar professora
daquele assunto.
Pascoal – Nossa, que legal. E por que ela escolheu esse curso?
Pascoal – Às vezes pra ser médico você não pode ter coração.
R. L. – E ela é fresca. Ela é fraca. Não gosta de ver sangue... eu disse como
você vai ser médica se não gosta de ver sangue.
R. L. – A minha mãe sim, mas o meu pai não. Ele não queria que eu fizesse
psicologia.
dá dinheiro? Daí eu falei assim: quem vai fazer é eu... qualquer pessoa que
trabalha bem, ganha bem. Aí ele ficou calado. Minha mãe sempre me apoiou.
R. L. – Me apoiou. Você tem que fazer o que você gosta, não o que seu pai
quer.
R. L. – Três meninas.
Pascoal – E... você acha que o Galeão contribuiu pra você estar onde você
está?
R. L. – Porque eu vejo ele mais cuidadoso com os alunos. Antes a dona Ilka
não chamava faculdade pra vir fazer palestra aqui, essas coisas, você tinha que correr
atrás. Sim, a gente tem que correr atrás, mas é bom quando vem na escola, apresentar
pra escola.
R. L. – Decisivo não, mas ele meio que colocou na minha cabeça que rumo que
você tem que tomar. Mas também tem muito pressão, tipo, você entra na sala: ENEM
ENEM ENEM ENEM... às vezes é ruim muita pressão.
Pascoal – E faz todo sentido, porque não tem só prova ENEM. Nem outras...
UNICAMP...
R. L. – FUVEST...
R. L. – Cassia.
R. L. – É bom.
R. L. – Aí, depois que eu saí, é ruim... porque comecei a trabalhar e era muito
tarde para ir pra lá e minha mãe não deixava.
R. L. – Estudo. Saio daqui e vou direto pro cursinho, e vou pra casa e às
vezes tem gente pra eu atender. Na semana. Mas de sexta-feira eu saiu direto do
cursinho pra trabalhar no salão.
R. L. – Porque ela sempre me incentivou, sabe? Ela era bem legal, a gente
conversava sobre assunto, e era bem legal. O senhor, que a gente já conversou muito
sobre o futuro e isso sempre me inspirou a sempre querer mais, as matérias que eu
mais ia bem. E que o professor se envolvia com o aluno, não era só tipo prova e
acabou. Porque a maioria só passa a matéria e não liga pro aluno.
Pascoal – E você acha que esse lance de ligar pro aluno é importante?
R. L. – Porque ele pensa que aquele professor ele está se importando com
aquilo, tem aluno que não tem atenção em casa, e se o professor dá essa atenção, ele
vai se importar com aquela matéria, e ele vai querer estudar aquela matéria pra deixar
o professor orgulhoso.
Pascoal – O duro que hoje em dia os professores meio que esqueceram isso
né? Mas você não acha que tem algumas situações que deixa o professor meio
desanimado, tipo... a sala de aula...
Pascoal – Você acha que os professores... não cite nomes tá... algum professor
passou em sua história e que você sentia que ele não era preparado pra aquilo, e você
dizia: pô... esse cara não devia estar aqui?
R. L. – Tem.
R. L. – Sim...
R. L. – É bom entre aspas né... porque é bom ficar livre daquela matéria, mas
você tem que pensar que aquela matéria vai me ajudar daqui pra frente. Vai fazer
muita falta...
Pascoal – Então a gente viu o papel do professor, você falou que teve
professores que foram importantes outros não. Você tá indo pra essa profissão, mas
imagina só, você não vai ganhar muito dinheiro, não vai ficar podre de rica igual disse
o seu pai... mas você iria mesmo assim?
R. L. – Iria...
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Pascoal – Vou fazer de novo a pergunta... você não vai ganhar muito
dinheiro, vai ter uma vida normal, vai ter que trabalhar... você iria..,
R. L. – Iria porque eu não estou indo pelo dinheiro em si, mas pelo trabalho
que eu acho lindo.
Pascoal – Tipo?
Pascoal – E... você olhando pra educação, não só o Galeão, mas geral. Como
você avalia a educação? Você acha que... tem um bom futuro... a educação tá
melhorando... tá piorando... a educação hoje...
R. L. – A educação não tá tão boa assim não. Pra mim, não aquele negócio
rígido de bater na criança, mas antigamente prestava mais atenção, os alunos. Você
pode reparar, tipo, minha mãe, os alunos prestavam mais atenção. Hoje é mais tipo
celular, brincadeira, essas coisinhas, as pessoas eram bem mais focadas do que hoje.
Era bem mais focadas.
R. L. – Também. A internet.
Pascoal – Você não acha que, tipo, a questão familiar não pega?
Pascoal – E por que você acha que o pai não estaria preocupado com a criança?
Mas vamos supor, sua mãe não vem na reunião, mas te dá casa, comida, roupa...
R. L. – Mas isso é o básico pra sobrevivência. Pra ser pai mesmo tem que dar
amor e carinho. Penso nisso. Vamos pegar, por exemplo, meu pai, ele nunca foi tipo
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de muito afeto comigo, nem com as minhas irmãs. Até os 6 anos tava lá, porque
era o bebezinho caçula, depois cresce daí não conversa, quer saber de dinheiro. Se a
profissão vai dar dinheiro é isso e acabou... e tem que trabalhar pra ser alguém na
vida.
Pascoal – Essa frase é importante... você tem que trabalhar pra ser alguém na
vida... Ele faz o que. o seu pai?
R. L. – Ele é metalúrgico.
Pascoal – O seu pai é muito parecido com a minha mãe. Você vai trabalhar pra
ser alguém na vida. Não vai estudar, vai trabalhar.
R. L. – A forma como eles lidam com os alunos, porque pra eles é tipo mais
um aluno, mais uma pessoa que entrou na escola, tipo numerado. Acho que se tratasse
os alunos de forma diferente os alunos não seriam diferentes e assim na casa também,
porque não é só a escola que vai mudar uma pessoa.
R. L. – Mas em uma atividade com o livro eu não vou saber responder porque
não soube interpretar aquela pergunta. Só vou na resposta.... acaba deixando a gente
burro.
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R. L. – Não, assim não. Se não, não posto meme. Vem da consciência das
pessoas. Tipo, vídeo-aula, acho uma coisa muito legal. Você não entendeu lá, vai lá e
assiste, fiz isso hoje pra fazer a prova de sociologia.
2. Discente F. G.
Pascoal – Essa conversa é pra me ajudar na minha tese de doutorado, em que
eu pergunto, até que ponto a educação ela é importante na vida das pessoas. E por que
eu escolhi você? Você é uma pessoa muito diferente, no sentido de engajamento, você
toca, tem essa questão da música, você tem uma história de vida de um baita vencedor
quando você me contou da sua mãe e do seu vô e tudo mais e eu queria saber de você,
você se sente preparado, tipo, você está no terceiro ano, vai acabar e ano que vem.
Você vai fazer o quê?
F. G. – Então, isso eu ainda não sei, minha meta é terminar meu curso de
inglês. Falta um ano e meio pra pegar o certificado internacional e eu falei pra minha
mãe que eu queria deixar a faculdade mais pra frente pra eu terminar esse curso. Pra
não ficar tanta pressão por cima. Daí o que eu faria? Trabalharia, ajudaria ela a pagar
meu curso, porque agora vai ficar um pouco mais caro. Então, trabalhando, fazendo o
curso que é só de sexta, e lá pra 2021 eu tento entrar em uma faculdade.
Pascoal – Então você vai continuar estudando, não uma faculdade. Mas por
que o inglês?
F. G. – Ah, porque é uma língua que boa parte do planeta fala, você vai pra um
país que fala o inglês mais a língua própria dele. E vários países tem isso.
F. G. – Não é que é mais em conta, é que a maioria dos intercâmbios sai 5 mil
pra cima, mas o Canadá é completo em estrutura de intercâmbio.
Pascoal – Que legal. Que bacana. E alguma faculdade, algum curso você acha
legal? Você se vê fazendo alguma coisa...
F. G. – No começo ela não gostou muito da ideia não. Ela disse: você vai fazer
e não vai dar dinheiro. Não vai ser uma coisa boa pra você no futuro. Daí eu pensei
em odontologia, em ADM, só que eu gosto mesmo da música, eu falei, eu falei, ah, se
eu engrenar em uma faculdade de administração tem muitas coisas também, mas eu
não domino exatas. Odontologia pode ser que eu gosto, mas eu tenho um pouco de
aflição de agulha, talvez impeça de fazer alguma coisa. Música eu já estou a três anos
tocando, e talvez engreno.
F. G. – Então, meu pai gostava muito de rock, ainda gosta, eu acho, faz tempo
que eu não vejo ele. Daí eu era pequeno e ia na casa dele, ele ficava ouvindo Iron
Maden, Metálica, aí, eu comecei a gostar de músicas e tals, daí o tio dos meus primos,
da outra parte da minha família, ele toca em uma dupla sertaneja, fazia shows por aí,
só que daí parou. Quando eu era pequeninho eu gostava de brincar no violão dele,
porém, eu fiquei muito tempo sem ver ele. Daí chegou no meu último ano do
fundamental 2, daí minha mãe disse, quero te dar um presente, o que você quer? Eu
escolhi uma guitarra. Aí hoje eu não lembro o motivo de ter escolhido a guitarra, mas
aí gostei, fiquei dois anos sem tocar, daí voltei a tocar, agora a pouco. Falei no final
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do ensino fundamental porque estava na sétima série, daí fiquei dois anos sem
tocar, e voltei quando estava engrenando no ensino médio.
F. G. – É bem maluco.
Pascoal – Estudo. Depois você me fala um pouco do que você entende por
educação, mas agora do estudo.
F. G. – Pro meu sonho de fazer música não me ajuda muito, porque a gente não
tem música na escola. Igual quando eu comecei a tocar, eu vim nas suas aulas, no
primeiro ano eu brinquei um pouco nas aulas de artes, pra mostrar, eu conheci o Luiz
por conta disso. E aí a gente virou amigão. E no segundo ano era mais a gente. E foi
mais aqui que me ajudou por parte da música que por conta de amigos, do senhor.
Pascoal – Agora só um sonho. Ela vai deixar você escolher. Você escolheu
música. Mas não vai dar dinheiro. Aí você se forma e não dá dinheiro. Já parou pra
pensar nisso?
F. G. – Bem pouco... aí eu já não saberia o que fazer. Faria alguma coisa mais
rápida pra trabalhar em algum banco, assim, e deixaria a música de lado, como um
plano b. Seria mais ou menos assim.
Pascoal – Hoje tem aqueles atletas que conseguem conciliar o atleta, o lado
atlético dele e uma profissão. A música e outra profissão. Eu por exemplo, dou aula
em vários lugares. Mas eu poderia tá conciliando a música com isso. Mas preferi fazer
da música um lazer. No meu caso um hobby. Tô velho, tem um monte de coisas. E os
professores aqui, sem citar nomes, teve algum professor que você disse, pô, que legal?
Pascoal – E teve algum que você disse, putz esse cara não leva jeito.
F. G. – Tem um professor que eu até gosto dele, mas acho mais difícil de
entender a matéria com ele. É porque eu tenho dificuldade na matéria, eu acho que é
um ótimo professor, mas, às vezes, pra entender, com ele, não sei se é ele ou a
matéria, acho que do jeito dele explicar que dificulta pra eu entender.
Pascoal – Que legal. Eu já tive a sensação de ter professor que não devia tá
aqui. E, você, olhando pro Filipe, você é satisfeito com quem você é?
F. G. – Ah, não sei, por causa dos professores, da estrutura da escola. Igual,
quando você fala de escola pública, tem uma lá perto de casa, e é só subir a rua e
chega. Minha mãe disse que não vai me deixar aí, porque é meio que podrão. Minha
vó entrou na escola pra votar e a escola era um lixo. Assim, bem relaxada, você vê os
alunos do lado de fora batendo, usando droga. Não que aqui não tenha, pode ter, assim
e tals, mas é bem menos.
Pascoal – É que a pessoa que frequenta a nossa escola é bem diferente. Você
vê pelos carros que vem deixar as crianças. Vir de carro pra escola pública já mostra
alguma coisa diferente... que legal que você alterou e, plano b fora inglês, fora a
música você não tem?
F. G. – Muito mais.
Pascoal – A educação você vê como uma coisa positiva, não essa de respeito,
essa de estudos, como você vê a educação hoje?
F. G. – Eu vejo como positivo, por conta do futuro, se a gente for olhar, pra tá
em um emprego agora, foi o estudo. O seu currículo tem que tá bem cheio de
informação de coisas que você fez, curso, e tals, então eu acho que a educação é bem
importante pra sobreviver agora, tipo, trabalho.
Pascoal – Você acha que se o Galeão fechasse agora faria falta pra alguém?
F. G. – Pros professores... é tipo, pros alunos, mas mais pros professores que
são concursados que tem o serviço permanente. Daí, acho que se fechar, vai ser mais
difícil chegar em outro lugar. Mais questão de emprego.
F. G. – Faria pros que mora perto, pros que não pode vir de carro, como a
gente citou, que seria melhor aqui, tem outras escolas, porém acho que a falta seria
dos professores.
F. G. – Num sei...
Pascoal – Algum fator.... tipo, putz, isso tinha que mudar. Não tinha que ser
assim...
283
Pascoal – E tecnologia?
Pascoal – Então tem essa disciplina sobre tecnologia robótica seria interessante
desde sempre né?
F. G. – Sim.
Pascoal – Mas você não acha que a tecnologia não está roubando a tipo, o
nosso papel de pensar? Você tem lá uma questão, você em vez de pensar, vai lá na
internet, digita e já sai a resposta. Você não acha que a....
F. G. – Também atrapalha um pouco. Tem aquele 50% bom e 50% ruim, né?
Que a gente diz.. mas vai mais do caráter da pessoa. Eu faço isso às vezes, porque
minha mãe diz que a gente tem que fazer alguma coisa, eu vou lá, dou uma pesquisada
porque tá mais corrido, pra alguns alunos, que essa com preguiça de fazer, vai lá,
lança na internet, respode e dorme. Eu acho que é mais do caráter da pessoa, também.
Pascoal – De como o caráter vai ajudar a pessoa a ajudar o recurso que ela tem.
Teria alguma coisa que você gostaria de falar sobre educação, se você pudesse falar
pra todo mundo agora, teria alguma coisa sobre educação?
F. G. – Benedito.
Pascoal – O Benedito deve ter tido uma vida difícil. Ele já é viúvo?
F. G. – Marizeti.
F. G. – Minha vó é Nadir.
3. Docente R. M.
Nossa conversa foi feita no laboratório de ciências da escola Estadual
Senador João Galeão Carvalhal. Tentei conduzir nossa conversa de uma maneira
mais informal, considerando que foi um dia atípico na escola, sem aula
efetivamente e uma programação pedagógica, estiveram presentes apenas oito
alunos, tento dizer que não queria seguir um roteiro de entrevista, apenas
conversar.
Pascoal – Vou gravar a nossa conversa, vou transcrever e depois te mostro pra
ver se você vai deixar eu usar, tá bom?
R. M. – Tá bom!
R. M. – Eu?
Pascoal – É...
R. M. – Ahhh Algumas situações pode ser que gere frustração porque você
vem... prepara alguma coisa e de repente não dá certo aquilo, ou você ouve alguma
286
coisa que não deu certo, isso é normal, do dia a dia, em qualquer profissão então
não só como professora, né? Quando fala do salário, realmente é frustrante...
Pascoal – É superlegal ouvir assim... você falar que você é professora e não é
frustrada...estava conversando com outro professor agora a pouco e ele falou assim:
me enche o saco ver tanto professor frustrado, né... que tipo, não tem outra coisa pra
fazer e virou professor...
R. M. – É, faltou opção... faltou opção. Aaaa eu tentei ir pra tal lugar, tentei ir
pra tal lugar e não deu certo e acabei sendo professor. A pior coisa que pode acontecer
é ser professor então, bom... vou ganhar alguma coisa. Têm vários assim,... e
principalmente na área de biologia. Não é porque eu fiz estágio no zoológico porque
eu trabalhei na Sabina, mas nunca deixei de dar aula, você está entendendo?
R. M. – É... tinha que fazer o estágio né, daí uma coordenadora do Juarez diz...
porque você não entra (porque naquela época podia) em vez de fazer estágio, você
entra como professor eventual e você vai ganhando... aí eu falei, tá bom. Aí eu entrei
eu acho que como eventual é complicado mesmo, não é como eu me sinto hoje, mas
eu sempre gostei, porque tinha alunos que dizia... Aaa eu quero fazer biologia, porque
eu despertei.. tava lá nele, eu sempre... quando a pessoa tem um...
Pascoal – aptidão..
R. M. – ... e você desperta... aaa legal. Que nem por exemplo aqui. A Tiffany,
sempre quis fazer moda, sempre... quem deu aula pra ela no sexto ano ela sempre
falou que queria fazer moda.. aí ano passado ela teve aula comigo e ela quer fazer
biologia. E assim, e eu acho que ela explica super bem e acho que ela vai se dar muito
287
bem nisso, mas poxa, se ela quiser fazer moda ela faz, eu acho que ela não vai ser
uma pessoa frustrada. E eu acho que...
R. M. – ... despertou algo, entende? E eu acho isso legal e acho que isso motiva
a gente vir aqui todo dia, preparar aula, tentar fazer alguma coisa diferente. São os
alunos. Aí eu comecei e não parei depois que eu peguei a primeira sala que eu me
senti a professora.
R. M. – No ano seguinte, antigamente era tão fácil, era por pontuação, não
tinha divisão de categoria, tinha muitas salas, a escola que eu dava aula tinha de
manhã, de tarde e de noite, hoje tem só de manhã e uma sala de cada.
R. M. – Ah é... eles têm um carinho especial por você, é diferente. São gratos,
né?
R. M. – Não... eu não pensei... tanto que eu falei que a gente não planeja...
R. M. – Cartonageira... não.. eu... por isso que eu falei, eu não planejei isso pra
mim, as coisas foram acontecendo. Eu planejei em trabalhar, sei lá, com tartaruga
marinha, sei lá, alguma coisa assim, sabe.
Pascoal - Quando você escolheu biologia era pra tipo, fazer uma coisa mais
importante do que dar aula...
R. M. – Não... dar aula é mais importante. Você está construindo um país, você
dando aula, você constrói a população... pelo amor de Deus, não é que seja uma coisa
mais importante, é uma coisa mais light, trilha... sempre gostei de mato eu sempre
gostei de trilha, eu sempre gostei dessa coisa natureza, então eu queria me enfiar
nesse... queria ser hippie, sei lá... eu era meio, no ensino médio eu já era meio riponga,
sabe, então eu achava que eu ia me identificar com o meio ambiente, e aí a engenharia
ambiental era muito caro, e aí a minha faculdade já foi escolhida já meio assim por
questões financeiras, né. Não, engenharia ambiental inviável, porque isso não dá pra
mim paga, porque minha mãe era concursada também.
R. M. – Então, minha mãe era da faxina e na época que tinha concurso, porque
agora é terceirizado, eu acho que minha mãe foi da leva do último concurso pra falar a
verdade, e então ela sustentava a casa, né, com o dinheiro dela, que é um salário
baixo... e três... tinha o meu pai, só que meu pai era mulherengo, ele ganhava mas não
arcava com as despesa de casa, ele gastava com a mulherada aí da rua, e aí então
quem sustentava mesmo, colocava comida era a minha mãe. Então, não tinha essa
possibilidade de pagar alguma coisa.
R. M. – E meu irmão que foi mais assim maltratado dele, foi que cuidou mais
dele, também. Porque eu já era casada e tudo né, e ele morava com eles, ele que
cuidada dele, que levada no médico e ele tinha diabetes, ele que limpava ferida, essas
coisas, e foi meu irmão que mais sofreu nas mãos dele. Que meu irmão tinha, é...
convulsão até os 5 anos, meu irmão do meio, e ele atormentava o bichinho, então, foi
sofrimento durante a vida. A gente tinha medo dele, que ele era muito bravo, muito
violento, não que ele batia na gente, mas ele gritava assim, e era assim uma coisa
muito assustadora. Então, isso foi foi e quando ele ficou... no fim da vida... fim da
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vida? Ele tinha 67 anos quando ele faleceu, mas ele já tava cego, já tava, não batia
bem da cabeça, não falava coisa com coisa, ele chorava ai dava dó né, porque
ninguém mais.. ninguém mais se comovia com a situação dele... ele dizia, nunca fiz
isso, nunca fiz isso, sabe isso? E aí eu falo: será que ele sabia mesmo o que ele fez? A
gente não sabe, né, então, mas ninguém mais... cuidava dele e tudo, mas... é triste né, e
ele morreu de infarto fulminante. Meu irmão antes de sair pra trabalhar deu almoço
pra ele, porque o meu irmão, que ele judiou tanto, colocava a comida pra ele tudo ali,
ele almoçou, daí meu irmão saiu pra almoçar, porque ele trabalhava em uma escola da
prefeitura, ele trabalhava ali na vila Floresta, aí ele saiu, almoçou, deixou ele sentado
lá, e minha mãe voltava do Aristides Greve, que nos últimos anos antes de aposentar
ficava jogando ela de escola em escola porque não podia fazer mais faxina porque era
terceirizada, então, não podia mais mexer, não podia trabalhar na cozinha, não podia
nada, então ela ia pra resolver cruzadinha.
R. M. – É... cumprir horário que pra ela foi quase a morte, então, ela chegou
era 17 horas, ele viu que o banheiro tava com a porta fechada, ela achou que ele tava
lá, aí ela foi fazer a janta, tal, e aí depois, ela achou estranho. O arroz pronto e esse
homem não saiu do banheiro, como ele tinha problema de visão, então a gente colocou
aquelas portas de correr, daí ela que encontrou... ela ficou extremamente traumatizada,
daí teve que sair da casa, e tudo, (interessante como a tonalidade da voz baixou
nessa hora) e ela não aguentava mais ficar lá. Mas foi assim... mas graças a Deus, eu
acho que Deus é tao bom...
Pascoal – ...que colocou a dona Wilma na sua vida que te influenciou a fazer
concurso público...
R. M. – É... e meu irmão mais velho não é filho da minha mãe, ele é filho
do meu pai do primeiro casamento. Ele tinha quatro anos. Eu também acho que minha
mãe casou com o meu pai por dó do meu irmão mais velho que morava ali na rua,
Ricardo. Ele ficava ali jogado o dia inteiro, andando pra baixo e pra cima e acho que
isso meio que mexeu com ela e ela acabou meio que, absorvendo. Daí ela teve o
Rogério. Que é meu irmão do meio, que tinha, ele nasceu com muita crise de
epilepsia, então ela não conseguia mais trabalhar, porque olha: um idoso, um
deficiente, uma criança e um bebê com epilepsia, muita coisa. E ela não conseguiu
mais, então ela parou. Então quando eu tinha uns 7 anos, aí a minha madrinha fez um
concurso na Crysler, e a gente falou: mãe, vai fazer, vai fazer, porque meu pai jogava
tudo na cara da gente, assim, né, então era muito, muito pesado. Mãe, vai fazer um
concurso. E ela, aa... mas... ela fez até a quarta série, porque antigamente era só até o
fundamental, a gente, meu, a gente não tinha o que vestir, você não tem noção, tem...
miséria total, quando fala, meu vô que plantava cana, plantava alface, plantava as
coisas, a gente comia o que era plantado, a galinha que matava, coisa assim, no
Campestre (bairro bom de Santo André) aí ela foi prestar concurso por causa da
gente. Aí ela fala, ah, eu não vou passar, quanto tempo que eu não estudo... e ela
passou e aí ela se efetivou no Padre Agnaldo, e aí foi, e foi, e aí que a gente começou,
que ela começou a melhorar, aquele contexto todo... daí o meu pai falava: o que você
ganha em um mês eu ganho em uma semana... só que ele não colocava aquele
dinheiro ali... e foi assim, foi assim, aí meu irmão, é... tinha dislexia, e quem
descobriu isso foi a professora Valeria que é efetiva daqui, e trabalha na DE, ela
descobriu, ele repetia, sei lá quantos anos ele repetiu a quinta série... e ele sempre foi
muito bonzinho, gostava de história, de filosofia, mas nessa parte de exatas, gente...
Não ia, e aí ele reprovava, reprovava, reprovava, sempre na... acho que ele fez uns 4
ou 5 anos de quinto ano, aí a professora Valeria que descobriu e meu pai não queria ir
pro psicólogo porque os pais precisam ir juntos, uma briga. E aí foi, e hoje ele é
concursado pela prefeitura de Rio Grande da Serra.
R. M. – Não, ele trabalha na parte de zoonose, ele não fez faculdade. Nenhum
dos meus dois irmãos fez faculdade.
R. M. – Cornélio...
Pascoal - Coitado...
R. M. – É...
R. M. – É.. a Concheta eu não conheci. Mas meu vô, nossa, ele protegia muito
a gente. E aí ele morreu em 1990, ele morreu, aí foi triste, muito triste... e aí, que mais
que você quer saber...
Pascoal – Você colocou um negócio... foi uma infância pobre... você usou até a
palavra miséria... e maravilhosa... que legal né?
Pascoal – Já contou.
294
R. M. – Tá... aí.... o que aconteceu, a gente ouviu ele saindo, isso era 8h, daí
8h30 a gente recebe a notícia que ele morreu. 8h30 (a conversa fica baixa... e as
295
lágrimas começam a vencer) meia hora depois, foi triste demais né... até hoje
mexe com a gente.. então, é assim, a gente ia viajar. O bairro inteiro parou. O bairro ia
viajar, porque a gente era muito conhecido no bairro né, no Campestre, a gente jogava,
os meninos jogavam futebol na pracinha, ali em frente a igreja São Judas, minha mãe
trabalhava na escola, e nessa época ela trabalhou no Juarez, minha tia era merendeira
do Tocantins que agora é a Diretoria de Ensino, então todo mundo conhecia a gente,
todo mundo então assim, tava muito lotado, muito lotado, e era feriado. Ele morreu
dia 14 de novembro e o enterro foi dia 15 era feriado, mas eu acho que ninguém
viajou porque tava o bairro inteiro lá, o bairro inteiro. Foi triste demais, triste demais.
E todo mundo daquela época ainda lembre dele, sabe, porque ele é muito barulhento,
ele era muito animado, a gente sempre foi muito animado, quem era mais calmo,
quem é mais calmo é meu irmão Rogerio, que ele é o mais calmo, mais centrado, o
resto é tudo bagunceiro, muito bagunceiro, meu irmão Ricardo, ele é perturbado e
bagunceiro, então a gente é muito bagunceiro, fala muito alto, fala demais.
Pascoal –Qque interessante... minha família também é assim, na hora que você
vê, tá tudo... parte de mãe no caso.
R. M. – E quando ele morreu, minha tia era muito barulhenta também, meio
que apagou... mesmo assim ela tentou... ela tentava, você via que ela tentava, ela teve
uma depressão muito forte, né, que assim, lá, o banheiro era fora da casa, no quintal, e
a gente tomava banho de porta aberta, e aí o pessoal sentava na porta pra conversar,
menos o Rogerio que fechava... mas os meninos da minha prima que eram mais velhos
que eu, era tão normal aquilo, entre a gente hoje a gente pensa.. meu... tudo
adolescente, e primo pode ficar com qualquer primo né... mas a gente não, a gente não
ficava.. então a gente tomava banho com a porta aberta e eles ficava tudo sentado
assim conversando, entendeu, assim, porque era um cubículo o banheiro, porque num
sei que lá... (o clima da conversa já ganhou sorrisos) tinha plateia. Era meio assim,
entendeu, e... e aí... só o meu primo Fábio tomava com a porta fechada, meu irmão
296
Rogerio, o Ricardo não, era o mais velho e o mais sem vergonha assim, então a
gente foi criado meio assim, jogado, sei lá...
R. M. – É.... fiquei... daí eu ficava lá com ela, o dia inteiro, porque ela
vomitava e tal tal e eu nunca tive nojo dessas coisas assim, a Preta, a minha prima
dizia: você vai com a mãe? Eu dizia... vô... então assim era praticamente que tinha...
assim no fim, no último ano, no ultimo mês, quem ia muito lá era a minha prima Paula
que era da última casa. Quando o meu primo morreu minhas tias já não moravam mais
lá.... elas estavam na minha infância. Quando o meu primo morreu eu já tinha 17 anos,
então, minha tia já tinha saído, a Paula já tava casada e até com filho já, então a Paula,
a Paula que ficava lá, porque ela não trabalhava. Daí fazia a unha, minha tia nunca foi
vaidosa, qualquer coisa tava bom pra ela. E ela que ficou, quando o médico disse, olha
pode vir visitar que não tem mais jeito, também foi muito triste mas o sofrimento dela,
meio que foi preparando a gente. E ela antes de ir, deixou uma carta dizendo ande
297
estava as coisas, que era pra cuidar não sei que lá, que era pra passar a
aposentadoria dela pro meu tio, ela deixou tudo certinho assim, e ela não era
organizada, mas eu acho que ela sabia, e ela falou lá.. e eu não gosto nem de ler...
(novamente o choro) que estava preparando que ela tava super-feliz porque ela sentia
muita falta do meu primo e tal tal tal tal.. tanto que não era pra ninguém chorar, que
ela tava indo em paz, que não sei que lá... só que ela falou pra gente abrir o envelope
depois se acontecesse alguma coisa, né? Então, isso foi muito... as lágrimas foram
mais intensas... deixou uma carta pra cada um... então foi muito... foi muito
impactante, mas ela tava sofrendo demais. E acabou que a minha prima não meio que
sozinha, né. E aí foi isso...
Pascoal – Sabe o que você me fez lembrar? A minha tese de doutorado tem um
diálogo do Alcibíades que era o amante do Sócrates. Ele faz uma pergunta pra
Alcibíades que eu vô fazer pra você: você desejaria viver com aquilo que você já
possui ou morrer se não lhe fosse possível conquistar mais nada?
R. M. – É... ela com certeza é a pessoa que mais me ama no mundo, não tem...
os filhos amam sim... mas amam até uma certa idade, depois eles acabam casando,
tendo filhos, daí que eles descobrem o verdadeiro amor, né, porque a gente só
descobre o verdadeiro amor depois que tem um filho. Porque depois que você tem um
filho...
R. M. – ...tudo muda né... então assim, mesmo as brigas que você tem, você
fala, meu... é difícil ser mãe, ser pai...
Pascoal – ...ainda mais quando você percebe que com tão pouco ela fez tanto,
né... se você vê que ela foi até o quarto ano, como você disse, que estava trabalhando
e deixou de trabalhar pra cuidar do irmão e do pai, e menino pequeno...
R. M. – ...então assim, e ela tem aquele jeitão de brava, mas acho que é a vida,
ela não é, ela não é...
298
Pascoal – Então, você acha que tem tudo... se você não fosse conquistar
mais nada...
R. M. – Lógico que não! Eu tenho minha filha com saúde, que eu acho que o
que acaba com pai e com a mãe acho que é um filho sem saúde, porque filho doente é
complicado, não estou falando de deficiência não, porque se Deus me mandasse uma
criança com deficiência é porque eu conseguiria levar isso perfeitamente, então,
lógico que seria mais difícil, mas se Deus mandasse uma criança com deficiência,
lógico que eu iria cuidar com todo amor. Minha filha, graças a Deus, é saudável de
saúde, não tô falando de deficiente, e lógico e não tem deficiência nenhuma. Tem o
meu marido, que a gente se dá muito bem, né, porque eu acho que a gente só descobre
que tem um casamento sólido só quando a gente passa por dificuldades. Porque
quando a gente tem dinheiro e pode viajar fica muito fácil, né, mas quando a gente
passa por grandes dificuldades é que a gente descobre se ama ou se não ama, porque
também você chegar em casa, depois de um dia trabalho e a luz tá cortada, é
complicado né, então você só descobre o verdadeiro amor só quando você tem a
dificuldade lá, porque com dinheiro é fácil, é fácil, você ficar vamo no sei que lá,
vamo no... vamo no resort, aí é fácil, agora, no pega pra capa, vamo contar pra ver se
dá pra comprar pão, aí que você vê... meus irmãos que amo de paixão, amo meus
irmãos, assim, nossa, meus irmãos é tudo pra mim, a gente se ama, né, minha sogra e
meu sogro presente, eu ganhei um presente, minha sogra e meu sogro é um presente
pra mim, eu fui muito abençoada. Muito abençoada com minha sogra e meu sogro.
Minha sogra é fantástica, meu sogro um amor, são pessoas do bem, coração
maravilhoso, tudo o que eles puderem fazer por mim eles fazem, sabe, é tudo o que tá
no alcance, né gente, é que a vida, quando a gente fala assim, as pessoas julgam muito
a vida através do dinheiro, vivemos em um país capitalista, consumo, a gente ali, a
gente tem muito amor, entendeu? O dinheiro é o que falta, mas o que a gente tem
também, nossa, eu não posso reclamar, graças a Deus não falta nada, nem na casa da
minha mãe, nem na casa da minha sogra, nem na nossa casa... então, você vê é meu
núcleo, ele tá bem...
Pascoal – Nada disso que você conquistou tem relação com a educação, ou
tem?
299
R. M. – aaaa....
R. M. – Eu acho que tem também, né, eu acho que assim, é, eu acho que o que
é importante é ter saúde, mas através da escola, ganhando pouco ou não eu consegui
pagar a minha casa, a gente comeu ovo, mas a gente tinha um teto pra tá dentro. Né,
então, eu acho difícil você não ter onde ficar. Meu trabalho, meu serviço que me
proporcionou que eu pudesse ter um teto pra morar, é... o renascimento, ele fica mais
fácil quando você sabe se relacionar com os outros. Ano passado eu tinha 720 alunos,
então algumas coisas você compreende melhor porque você acaba vivenciando na
escola e acaba relevando algumas coisas, porque não é assim, e muitas coisas eu olho
pro aluno, eu penso... se fosse meu filho eu faria desse jeito? Porque tem hora que
você olha e você tem vontade de dar um grrrr... mas se uma professora fizesse isso
com meu filho eu não iria gostar. Então, vamos tentar ser diferente, então eu acho que
uma coisa auxilia a outra. Eu acho que depois que eu tive a minha filha eu também, eu
fiquei mais compreensiva mais com eles, eu fiquei mais compreensiva com eles...
aaa.. num sei, eu acho, eu acho que tem a vê também, tudo tem... não tem nada que
não esteja ligada, acho que tudo não esta amarrado, isso é isso... não não tem. Acho
que tudo tá amarrado. Eu também não consigo mais dar aula pra PEB 1 porque
antigamente eu não sofria tanto, e agora eu sofro demais...
R. M. – Não, não tenho também... Então, não é questão de ruim, não... mas
acho que tenho sensibilidade demais... é demais.. mas eu nunca chorei em sala de
aula...
Pascoal – Nunca?
R. M. – Não...
Pascoal – Meu Deus... você não tem coração... Mas pra gente terminar,
terminar mesmo, educação, pra você, nessa sua trajetória de quase 40 anos de
magistério, 40 não, mas você já tem quase 20 né?
R. M. – É... 18...
300
R. M. – Então, eu acho que educação você tem que ter a base, e todo mundo
fala isso, mas a educação é base de tudo, eu acho que tem que melhorar muito, só que
a educação é um todo, não é só a escola, é a família também, eu acho que a família é a
base principal, a escola não faz milagre, não sei se é isso que sua pergunta tá...
Pascoal – E sabe o que eu acho muito bonito no que você tá falando? Porque
eu perguntei pra você.
Pascoal – Não, com uma coisa você revelou exatamente o que é educação
quando você falou da dona Wilma, quando você falou do seu pai, quando você falou
do seu Cornelio, da dona Concheta, quando você falou da miséria, quando você falou
do amor, você pra falar da Rosana, você falou do todo... e parece que educação é
exatamente isso pra você...
Pascoal – Você sorriu, você chorou... você lembrou e você quis esquecer,
que legal isso.
R. M. – Eu sou muito manteiga derretida, acho que todos lá em casa são assim,
manteigas derretidas.
Pascoal – A parte boa é que a dureza da vida não te fez uma pessoa estúpida,
mas uma pessoa sensível.
R. M. – É... eu acho.
R. M. – É... eu acho ... eu acho... acho que é muita sensibilidade, mas poderia
ser um pouquinho menos... ia me ajudar, porque tudo eu choro...
4. Docente J. A.
Conversa com professor J. A.
J. A.– Não. Nunca planejei. Nunca parei para planejar, a ordem natural das
coisas, casar, ter filho, profissão, tal.
J. A.– Foi natural. Tipo, até a faculdade foi natural. Eu não tinha ideia do que
ia fazer na faculdade. No terceiro ano. É difícil saber. Mas minha primeira opção foi
física e a segunda era história.
J. A.– Eu acho da ora os dois, eu ainda vou querer fazer faculdade de história.
Eu ainda quero fazer história.
J. A.– Acho muito louco história, às vezes eu vejo esses fatos históricos e me
sinto meio idiota por não saber algumas coisas. Eu estudo história por prazer. Mas eu
não...
302
J. A.– Tanto é que a parte que eu mais gosto da física é a história da ciência,
acho muito louco isso, o nascimento da física com a filosofia, o começo da
humanidade, desde que o cara olhou para o céu e começou a plantar e colher na época
certa né, tal. Mas eu comecei a curti mais física foi no terceiro ano. Tinha um
professor que fazia uns experimentos lá e eu achei muito louco. E eu comecei a ir
bem.
J. A.– Eu estudei em uma escola que chama Viva a Vida, em São Bernardo.
Pascoal – É particular?
J. A.– Ele fazia, cara. Mudou de professor. Tinha um professor que era bem
tradicional, tinha aula tradicional, mas tinha experiência e eu achei da ora.
J. A.– Foi. Isso, tipo, determinou minha vida. Eu entrei na faculdade de física e
eu achei da ora mesmo. O primeiro ano eu falei isso é muito louco, isso é o que eu
quero. E no segundo ano eu entrei no estágio na Sabina. E a Sabina foi a melhor coisa,
melhor que a faculdade para mim.
J. A.– A R.M entrou depois, ela não foi fazer estágio lá né. Acho que a Rosana
era formada já. Ela se formou em oitenta e um rs...
Pascoal (risos) – ... oitenta e cinco... vai ser muito legal quando eu transcrever,
e você conheceu a sua esposa.
303
Pascoal – Por quê? Teve o quê? Esse projeto acabou depois que mudou a
prefeitura?
304
J. A. – Então, depois que mudou o partido a gente ainda continuou. Mas, meu,
depois que entrou o Aidan. Acabou tudo, assim. Ele queria acabar com a Sabina. Ele
falava na nossa cara, assim, que queria acabar. Ele chegava assim na Sabina, a gente
tava fazendo o evento, ele dizia: esse aí é o projeto que vai acabar? E tal... como ele
aparecia ele era bem, bem trouxa...
Pascoal – (risos)
J. A. – Não, era sempre ensino não formal. Eu trabalhei a maioria, agora não,
né. Eu tô há cinco anos aqui. Mas eu trabalhei boa parte da minha vida, desde 2007,
praticamente, no ensino não formal.
305
Pascoal – Todos eles olham? Deve ser, tipo, a primeira experiência com um...
Pascoal – Parece.
J. A. – Não, só quando ele aparece. Quando ele está na visão já é meio ruim de
ver. Porque no horizonte tem a atmosfera daí dá turbulência, ele fica meio dançando,
zuado, qualquer coisa que tá no horizonte é ruim de ver até com o céu limpo.
Pascoal - Nossa, que louco, né? Sua vida foi por um caminho que não foi
programada. E não foi, tipo: vou fazer física, vou trabalhar no Sabina.
306
J. A. – Acho que muito “F” de matemática teve que pegar essas aulas. Daí eu
fique como O o ano todo. Meu, foi um azar, acabou o brinca ciência e o observatório a
prefeitura encerrou o contrato. Fiquei ferrado, assim...
Pascoal – Em 2013 eu só dei aula como eventual, porque eu não tinha ainda
habilitação como filosofia. Então só fui...
Pascoal – Daí o ano todo de 2013 como eventual, e em março de 2014 peguei
umas aulas na área de filosofia e em julho efetivei no Estado como professor de
filosofia. Mas 2013 foi difícil.
J. A. – É quarenta, mas acho que se você fica mais um ano, acho que fica 200.
Pascoal – Ah é?
J. A. – É. Acho que tem essa. Não sei se tem mais ou caiu. Mas antes eram 200
direto... a eles tem essa para economizar dinheiro, só pode ser né, veio?
Pascoal – Ainda não tem. O O não tem esse direito. Isso é muito triste.
J. A. – O IAMSP, mano, por mais que seja no Ibirapuera, não é ruim, minha
esposa fez pré-natal lá, e não é ruim.
Pascoal – Ainda que pra fazer o pré-natal você tem que faltar na aula.
J. A. – Se você pegar o ano de 2015 eu tenho muita falta. O ano que ele
nasceu. Todo mês tinha uma falta pelo menos. Porque tinha que ir lá. Depois que ele
nasceu, tivemos algumas complicações. Ele perdeu peso, ficou 20 dias sem fazer coco.
Pascoal – Eu fico pensando que quando você foi o oprimido e passa a uma
situação de poder, porque a direção é poder, as pessoas mudam.
308
Pascoal - Cara, é muito louco o professor ter sido... você lembra o nome dele.
J. A. – Arthur.
Pascoal – Nossa que legal. Deve ser muito louco ter uma pessoa.
Pascoal – Que interessante cara, nossa. Você acha que os professores de física
os poucos, que são poucos de física, são aptos para as funções deles? Na sua
experiência no Sabina.
J. A. – Eu acho que são. Eu conheço poucos... mas os que eu estudei que estão
em salas de aula são pessoas boas. A gente vê a característica de cada um né, tinha um
moleque lá que queria seguir a vida acadêmica, e seguiu, tenho um colega que seguiu,
fez doutorado e tá dando aula na federal do Macapá. Passou no concurso, mudou, foi
embora. Tem galera que ficou só no fundamental. Eu vejo que, pelo menos a galera
que eu estudei não são frustrados. Que eu acho mó triste isso, você vê uma porrada de
professor mó frustrado. Você entra quando é novo pra dar aula mó empolgado, eles
dizem viixi, sai daqui veio, sabe... é que você é novo por isso tá assim. Mano, eu gosto
de dar aula. Tem um pessoal que fica mó triste quando tem que dar aula.
Pascoal – Deve ser a pior coisa do mundo quando é a única opção que se tem e
é uma opção que te deixa infeliz. Você acha que é a estrutura que ferra com tudo?
J. A. – Acho que ajuda. Por mais que a gente esteja em uma escola boa, a gente
nivela por baixo. A gente é a melhor escola de Santo André, mas meu, ce pega as
escolas particulares, nós não estaríamos nas tops 50, eu acho. É feio o negócio.
contempla, outra que na privada é uma disciplina normal, que faz parte do
currículo e tal.
J. A. – Eu vejo de professor isso, falando, meu não dá pra passar isso. Coisa
que dá pra passar. Pra dar uma puxada. Ano passado eu passei uma matéria e eu vi
que eles acompanharam, veio.
Pascoal – Tudo faz parte da mesma sopa... você, olhando para a sua trajetória
que não teve um roteiro, você, como você se sentiria que você não conseguiria
conquistas material... você tem 32 anos e chegou no seu ápice, você não conquistaria
mais nada.
Pascoal – É, tipo isso, você não vai ganhar o “the best” professor do ano, não
vai ter purpurina. Essa foi uma pergunta que o próprio Sócrates fez para Alcibíades
dessa maneira: você se contentaria em viver com o que você tem ou preferia morrer se
não pudesse adquirir bens maiores?
J. A. – Então acho que piorou essa situação. Porque você vê muitas pessoas
hoje com depressão, porque a conquista nunca é suficiente. Compra um carro, sempre
terá um melhor, celular sempre um mais novo, o capitalismo engole a gente, o
consumismo. Porque é legal, né, você ter todo ano um carro do ano. Mas porque é
legal? Ele vai te levar para outros lugares? Pra lua? Eu estava a algum tempo atrás,
quando a gente casou, a gente começou a melhorar, porque minha esposa é bem
desprendida do material, e as vezes eu ficava pilhado porque eu queria trocar de carro,
pilha besta. Vejo a molecada, ne, muita gente depreciava. Eu não sei veio, deve ter
algum estudo que relacione isso com bens materiais.
Pascoal – É, mas será que não é euforia? Será que alegria não é um momento?
Será que a felicidade não é esse olhar para a sua história de vida, que você não pensou
ou planejou e você chegou em lugares dentro da realidade brasileira, que dentro da
realidade brasileira, você faz parte dos poucos 10% da sociedade brasileira...
J. A. – É um absurdo. Outro dia eu fiz um teste no UOL pra ver em qual classe
social você pertence.. é uma merda de pensar... só existe isso por que...? Porque a
gente gosta de ver que tem gente mais ferrado que a gente. Perguntas assim.. quantas
tvs, geladeiras, etc... tem forno ainda, veio...
Pascoal – Você preenche aquilo e descobre que faz parte da porcentagem dos
15% da população brasileira....
Pascoal – O pobre é feliz? O cara que está em fase terminal da vida sendo
derrotado por um câncer?
J. A. – Num sei, às vezes ele acha que teve uma vida plena e tá satisfeito com a
vida e tá bom.
Pascoal – Estar satisfeito né... pra quem não está satisfeito com nada, nada é
suficiente.
312
J. A. – Se deixar essa menina rica na pobreza, será como, será que ela vai
voltar? Será que ela volta aterrorizada, achando, mó preconceituosa, ou foi um
crescimento pessoal. Não é só aluno.. Aqui na escola... é ruim falar, mas tem
professores que são preconceituosos demais. Uma professora disse que tinha um aluno
que não servia para limpar a piscina da casa dela. O aluno ficou puto.
Pascoal – Tudo é dinheiro. Você é bem-sucedido se tem dinheiro, tem uma boa
educação se tem dinheiro...
J. A. – Da Vinci, mesmo, era filho bastardo, não pôde fazer faculdade, tudo o
que ele fazia não era considerado ciência. Newton não, tudo o que ele falava era lei.
Pascoal – Você me fez pensar que ainda hoje a educação é muito condicionada
a grana.
J. A. – Aaa... claro que é. E a gente romantiza isso. Você pega aquele moleque
que anda 10km pra ir pra escola, atravessa rio... a galera romantiza, mas isso é uma
bosta, o muleque não tinha que andar tanto assim para ir para a escola...
J. A. – Ele pode alcançar o que o outro alcança nesse sistema? O que o outro
demora 1 ano pra alcançar ele vai demorar 10 às vezes.
Pascoal – a gente esquece que olhar pra vida, uma analogia que pode caber
bem, é um prédio de 23 andares, uma coisa é o cara do quinto do subsolo chegar ao 23
e outra coisa é o cara que tá no 22 chegar no 23.
J. A. – E se for olhar... é... ele não tá errado. Ele não poderia falar isso, por ser
um ministro da educação... devia falar em favor da educação, mesmo que fosse um
falso moralismo...
Pascoal – Então, é verdade se ele está olhando para trás e para o agora, mas
não tem que ser verdade se ele estiver olhando para o pra frente. O horizonte utópico
não pode ser perdido de vista.
J. A. – Ele não devia ter dito isso. Se ele disse isso é porque ele pensa isso.
Pascoal – Exatamente...
J. A. – Não falou como a gente que está dizendo que é e precisa mudar, ele diz
é e ponto. E o Olavo de Carvalho, como você vê o Olavo de Carvalho nessa situação?
Pascoal – Cara... não sei se você viu, mas eu postei um post de um livro dele.
Peguei um livro na Saraiva deste cara. O livro era O que você precisa saber para não
314
J. A.– Aaa... o Eistein tem um livro assim, são pequenas crônicas sobre
determinados temas. É bastante filosófico, se tiver lá em casa vou te emprestar. Esses
físicos são bem ferrados.
J. A.– É da ora ver a forma de pensar desses caras, li uns capítulos e eu vi que
esses caras vê um futuro que a gente nem viveu ainda... mas e aí, o livro?
J. A.– Eu já vi várias citações dele e o cara assim, é bem chulo né... fala uns
palavrão que não tem nada a vê. Não se espera isso de alguém culta.
J. A.– Você que é filósofo e teólogo deve ficar, ó, triste com essas coisas, né?
J. A.– Você é os dois... risos... já pode escrever um livro... você tem que
escrever um livro. A gente tem que se salvar disso.
Pascoal – Não, do médio. Veio com um outro livro do Olavo de Carvalho. Ele
é filósofo, ele disse. Não, ele não é filósofo.
Pascoal – Onde ele é formado? Onde pegou o diploma? Ele não é filósofo. Ele
se diz autodidata, mas não é filósofo. O aluno disse, mas você não precisa do aval dos
outros para dizer que é filósofo pra poder se afirmar...
Pascoal – ... porque você está nessa escola então, se você não precisa do aval
dos outros pra se formar?
J. A.– A gente pode parar pra pensar nisso, se você é autodidata é legal, mas
não pode descredibilizar.
J. A.– É humilhar...
J. A.– E o moleque?
Pascoal – É, ele achou que eu ia achar da ora, mas ele ficou meio assim depois
que eu falei por que você estuda... assim.. a gente tem um bom relacionamento, ele me
falou em quem votou, um moleque de 16 anos quis votar.
J. A.– Parece que ele não se bica com o Guedes, né? O Olavo de Carvalho...
Pascoal – ... é, parece que um fala uma coisa, outro fala outra coisa. Parece que
vai ter um racha.
J. A.– Condomínio...
Pascoal – Significa que você não é dali e tudo pode acontecer, então... não
garante nada. A ideia e essa. Se você tem o selinho tá garantido, se não... inclusive
317
ano passado nós não fomos pro Rio, porque, meu, que medo.. minha esposa
achava que não, de boa...
Pascoal – Campo Grande, lá do Rio... e, pra gente terminar, poderia falar ... a
ideia não é uma entrevista certo ou errado, mas você olhando pra educação, imagina
que você é um...
Pascoal – ...não (risos). Como você analisa a educação hoje e como você olha?
Eu sei que é profético e tals...
J. A.– É difícil..
J. A.– É perigo, perigoso esse movimento. Não sei se eles vão começar a
desvalorizar, tipo, não preciso fazer faculdade, não que ele vá se dar mal na vida,
porque faculdade não é o ponto principal pra determinar se a pessoa vai se dar bem na
vida, e tal... aquele lance que se dar bem é ganhar dinheiro. Mas é... a gente vê, meu, o
cara se elegeu por notícia falsa, a gente tem muito muleque aqui que traz notícia que
você fala, meu... você aprendeu isso em história... a gente aprendeu, mas por que a
gente aprendeu isso?
J. A.– É, então, é... vi que esse dia um cara do PSL ele levou pro ministro da
educação de inserir o livro do Ustra nas escolas. Não é a mesma coisa que você incluir
o livro do Hitler e trabalhar, quando você vai ensinar sobre o nazismo... eles querem
inserir esses livros desses caras como se tivesse outro olhar, um olhar que não, a
ditadura não foi tudo isso o que se fala... quem vendeu essa ideia pra você foi esses
comunistas safados... então, tudo o que a gente aprendeu na escola. Não sei... será que
vai mudar a escola a esse ponto? Eu tenho medo desse novo ministério da educação.
318
Principalmente essa nota do MEC, você viu? A nota que o MEC mandou falando
do jornalista do O Globo.
J. A.– Você não viu? Meu, eles lançaram uma nota oficial cheio de erros de
português. Uma nota oficial do MEC você não espera erros de português, e falando
que o jornalista foi treinado pela KGB, um bagulho mó... isso é oficial, nota do MEC
e virou piada. Você vê esses caras do MBL falando coisas que, errando fatos
históricos, falando que o Marx se arrependeu das ideias dele na primeira guerra, essas
ideias estão se propagando entre os jovens, não só entre os velhos. Você vê esse cara,
o Kim, ele tem 36 anos, é novo.
Pascoal – Até tenho... mas acho que uma coisa você estar lá como crítico, outra
coisa é você assumir, sem reflexão, e reproduzir... é papagaio.
J. A.– Acho que tá acontecendo isso.. eu não sei... tipo até a hora que só fala,
beleza, mas chegou no poder, véio, por isso que eu tô meio receoso, tipo esse cara, o
ministro da educação, é discípulo do Olavo de Carvalho, dizem que ele já trabalhou
em cursos que não eram aprovados pelo próprio MEC, é perigoso demais....
J. A.– A menina que vai cuidar agora, alguma coisa do MEC, eu vi que ela é
advogada, tem 27 anos, e na tese de mestrado dela, ela falou sobre escola no lar, o
ensino em casa...essa é a experiência dela, e ela vai assumir um cargo lá...
319
J. A.– É, essa moça que vai assumir a pasta. Eu não sou contra a educação em
alguns casos, mas casos extremos, né velho, caso que o aluno não consegue ir para a
escola. Tipo nos EUA, que tem aquele inverno e o aluno vai ficar 2 meses sem ir pra
escola, daí não tem como.
Pascoal – E você me fez lembrar uma coisa, a gente tava discutindo felicidade,
né, conversa de felicidade né... daí será que estamos discutindo o atributo ou uma
classificação ou característica, não a felicidade em si. A educação a gente discute
muito o que é externo à educação e esquece de discutir o que é realmente educação. a
gente discuti ideologia, questão de religião, só que a gente esquece de discutir o que é
realmente a educação. E educação, não se educa sozinho...
J. A.– A sociedade tem que falar sobre isso. É isso que os direitos humanos
falam e a sociedade cai em cima... você fala.. ah.. esse moleque aí é vítima da
sociedade, ele é vítima da sociedade... você acha que uma criança vendendo bala com
6 anos de idade não é vítima da sociedade? Ele é vítima da sociedade. Eu sou
responsável também pela educação desse moleque.
Pascoal – Você falou do Paulo Freire e não tem como né?... ele diz ninguém
educa ninguém, ninguém se educa sozinho, todos se educam em reciprocidade. Cara...
exatamente isso, aí você quebra aquela ideia do professor que é o dono do
conhecimento e o aluno o depósito, você inverte aquela lógica que o aluno é o cliente
e o professor é funcionário, você faz a educação ser educação.
J. A.– Eu tenho um amigo, padrinho de casamento, ele diz que tem um pouco
de trauma de uma aula que ele teve de geografia, ele sempre curtia essa coisa de
dinossauro, e tals, ele sempre foi muito curioso com essas coisas do planeta. Ele é
paleontólogo hoje. Ele pegou um mapa e disse para o professor.. nossa, professor,
parece que encaixa né? A África com a América. A professora só faltou falar: você é
idiota, velho? Aí depois ele foi estudar, ele descobriu a Pangeia. Risos... eu, quando
estava na escola, aprendi que o verão era quando nós estávamos mais próximos do sol,
e o inverno a Terra estava mais longe do Sol. Meu, não tem nada a vê.
Pascoal – Eu até acho que a igreja pode ensinar que Deus fez o mundo em 6
dias, e no sétimo descansou...
320
J. A.– Tem que pensar isso de uma maneira filosófica... tipo, quando você
falou do professor ser a verdade, essa foi a verdade que eu aprendi, ele aprendeu isso e
foi chamado de idiota, e mudar esse paradigma é difícil. Tem professor que não vai
mudar. Tem professor que adoraria ter um palco na sala, como era antes, pra tá acima
dos alunos. As salas da Fundação ainda são assim, elas têm um palquinho do
professor, não é pra ver melhor, mas pra destacar a hierarquia.
Pascoal – Daí ele tem uma verdade, dos seis dias e 1 dia de descanso, daí você
tem que aprender aquilo, você tem que aceitar aquilo, e você não pode ver outra coisa.
J. A.– Ainda mais na ciência... você pega a teoria do Big Bang, e surge outras
teorias, e vai surgir, porque existem várias falhas na explicação, na hora que surgir
uma explicação melhor não é mais a teoria do Big Bang. A teoria do Big Bang foi até
aqui, beleza. E, tipo, isso não vai ser algo que vai doer, é comum. A ciência aceita
isso.
J. A.– E a própria igreja aceita isso. Toda igreja séria aceita isso. Você pega o
Vaticano, é... se todo o caso ele achar que a pessoa é louca é exorcismo, tipo, não
existiria louco... meu, imagina quantas pessoas que foram exorcizadas que tinham lá,
Asperger... quantos milagres não são mais milagres porque tem explicação científica..
J. A.– A bactéria evolui, ela tem que trocar de remédio. Se a própria bactéria
evolui, como você não vai acreditar na evolução?
Pascoal – É verdade, né, e quando você quer que a educação seja aquilo que eu
entendo que ela seja, cara, é você violentar o que é a educação. Cara, só pra concluir,
você mostrou que a educação é um todo da vida.
J. A.– Eu aprendi a ter mais medo, medo de morrer, eu não tinha isso antes, a
cada dia você mede as palavras pra ensinar, você tem um cuidado maior. É porque
eles não aprendem muito até certo ponto. Eles querem mamar, e dormir e não ficar
sujo. O cérebro não tá formado.
321
Pascoal – ... adultos que querem comer, beber, se trocar da sujeira e dormir. E
a educação simplesmente tá...
J. A.– ... a educação era pra ser a base da sociedade. Os Royalties aí do pré sal
era pra ser 70% da educação, se você tem isso, a gente que trabalha sabe que é
automático, se você tem educação você vai ter tudo de qualidade, você pega os países
mais desenvolvidos, a Finlândia, e a Suíça, uma puta sociedade desenvolvida, a escola
são sensacionais, você já viu como são as escolas lá?
J. A.– É claro que é difícil ter uma estrutura dessa, você pelo tamanho, a gente
tem que lutar um pouco por isso.
Pascoal – Esse horizonte a gente não pode perder. Porque meu, imagina se em
vez de ter um São Caetano, nós tivéssemos um ABC, uma Grande São Paulo...
aumentando as proporções.
J. A.– Daí você volta naquele negócio do egoísmo, você viu que tem um
movimento pra libertar São Caetano do Brasil, São Caetano...
Pascoal – Não...
J. A.– Vi no Facebook se era piada entrei pra ver e os caras alopram. Mas
parece que é um bagulho sério, São Caetano é meu país, tipo o sul é meu país, São
Paulo é meu país.
J. A.– Mas, eu não sei se eles querem ampliar, porque meu, já tive amiga
que foi assaltada em São Caetano, eles não fizeram BO em São Caetano, então, até
que ponto os índices são altíssimos lá, e tipo não foi só um caso, tenho um amigo que
trabalha na delegacia em Santo André e tipo, ele fala que é assim mesmo, você passa
15h pra fazer um BO lá, até lá você fazer um BO em Santo André, daí essas horas faz
com que as pessoas desistam de fazer o BO. E fala que isso é normal.
Pascoal – E, você falou, eu acho que eles não querem essa mudança. Eu tive
uma discussão com uma pessoa, conversa, daí a pessoa dizia que o presidente não
quer, o ministro não quer, falei mas...
Pascoal – ... não quer mudança, transformação. Mas o que o presidente quer,
tem que ser muito menor do que a sociedade pensa. Então é muito mais fácil...
J. A.– E foi né... tem aqueles índices lá de 80 milhões de pessoas não votaram
nele... mas ele ganhou. Quantas pessoas votaram nele? 40 milhões? Então, 40 milhões
de pessoas pensam assim, é muita gente que a gente conhece.
J. A.– Mas assim, mas por que 40 milhões de pessoas pensam assim? Falta de
educação?
J. A.– A USP não (risos), é considerada esquerdista safada. Eles devem ficar
putos com os índices da USP em ser melhor da américa latina.
J. A.– Eu vejo isso nos alunos, principalmente nos alunos reacionários que
postam coisas achando que a USP.. meu, nem tentei passar na USP porque lá é
esquerdista. Nem tentou? Você tá ligado que não ia passar. Era o moleque que menos
estudava e não fazia nada, pode passar? Pode. Pode ter um ano de estudo e explodir,
mas...
Pascoal – Não, não passa. Assim, a minha dificuldade com a USP é que o
perfil de escola...
Pascoal – ... eu super respeito, mas não é o tipo de escola pra mim...
J. A.– A Federal do ABC parece ser mais interdisciplinar, tal, e você conversa
com qualquer um de qualquer curso. A USP parece um calabouço, os departamentos,
o laboratório de física, você entrava no prédio, descia umas escadas de madeira, tudo
velho, sentia voltando no tempo e tudo muito fechado. Tudo muito fechado.
J. A.– Acho que tinha que ser assim.. a educação tinha quer ser assim.
Meu amigo Ademir... vamos continuar a nossa conversa... mas sem gravar..
5. Docente H. F.
Sentamos na arquibancada da quadra. Ele tirou o tênis e começamos a
conversar.
Pascoal – Você entrou em 95 foi, parou, foi naquele período em que você foi
construir a casa pra sua irmã, pro seu irmão...
H. F.– Sim, e eu entrei pra trabalhar na Ford também, né. Daí a Ford, através
do sindicato, fez uma manipulação lá, e mandou todo mundo embora.
H. F.– E eu fazia parte desse todo mundo. Era um acordo do sindicado com a
direção da empresa.
Pascoal – Então se sua vida tivesse dado certo, então você não era professor...
H. F.– ...não.
H. F.– Professor foi uma oportunidade que Deus deu e eu acho assim que Ele
disse aqui você vai entrar e vai ficar. Aí, quando eu voltei, prestei concurso e fique.
H. F.– Não. Não teria, eu vim depois que a situação apertou e eu precisava
trabalhar, ai eu vim, mas não era...
H. F.– ...é.
H. F.– Casado.
Pascoal – Já sei da sua vida um pouco. Mas eu não sabia que você tinha
trabalhado na Ford.
325
H. F.– Não, ele não pediu pra cuidar, ele me colocou, pelo contrário, como
funcionário, observando as coisas pra contar. Tipo o tal do dedo duro. Eu nem me
inteirava das coisas. Lá eu era peão e ganhava dobrado. Recebia um salário por dentro
e um por fora. Mas eu nunca levei nada, porque eu não me inteirava de nada, não
queria saber o que tava passando. O que meu superior mandava eu fazer eu fazia. Aí,
quando o irmão dele, que trabalhou, e era administrador e era sócio dele na tecelagem,
começou a desviar o dinheiro dele, ele me mandou embora, por quê? Porque ele sabia
que o irmão dele roubava e o irmão dele sabia que eu trabalhava lá dentro olhando,
que eu tinha o contato com ele. Daí, o primeiro a ser mandado embora quando o irmão
começou a fazer malandragem, fui eu, né. Aí foi quando eu caí na área também...
não... aí eu comecei a dar aula. Fiquei desempregado e comecei a dar aula. Dei aula 8
meses e surgiu a oportunidade na Ford, aqui eu paro e vô trabalhar, fazer parte da
massa de manobra. Porque o sindicato lá tem uma força imensa e eu entrei em um
grupo que fazia parte de um acordo do sindicato com a empresa que eles no ano de
2000 e 2001 eles teriam que enxugar. Então eles pegaram um tanto de gente em 95,
por aí, pra mandar um tanto de gente embora em 2000. E o que aconteceu. Lá, quando
326
você entra, eles criam um número, o cadastro seu, conforme você vai mudando de
seção, você vai carregando aquele número de cadastro, só que o meu cadastro, na
turma que eu entrei, era pra ficar tampando buraco, significava o quê? Que quem não
tinha um lugar fixo ia embora. No ano de 2000, ela terceirizou alguns departamentos,
e como eu era parte da turma da massa de manobra, fui mandado embora. Fiquei
cobrindo setor esse, setor aquele, foi bão que eu aprendi um monte de coisa, mas fui
mandado embora. Também, é...
H. F.– Não dá pra ser franco e falar que você tá vendo o que você tá vendo.
Porque eu já vim de lá com formação, eu já vim de lá professor. Queira ou não te abre
um pouquinho mais a cabeça. Cê fez faculdade, eu creio que dá uma abertura. Aí você
tem uma visão crítica das coisas. Daí você no meio de peão, vendo um monte de gente
manipulado, ficava vendo aquilo.. Então... lá, o apelido que eu tinha lá, era de o
Professor, mas por deboche, não por mérito que eu consegui, aaa o professor, aaa o
professor, professor pra lá, professor pra cá, e você via que... e eu atendia, afinal d e
contas, eu tinha me licenciado. Né, eu sou um professor, pô. Lá eu não tinha função de
professor, o apelido era deboche. Mas, como eu nunca liguei, a gente aprendeu a fazer
uma coisa que é usar a cabeça um pouco mais do que os outros, então você usa tanto o
... quanto pro deboche... problema teu, se você quer continuar nessa escuridão,
problema teu, não que eu seja a solução, não sou nada disso, mas eu prefiro caminhar
pro outro lado.
Pascoal - Que da ora. É interessante porque o seu ingresso pra faculdade foi
muito engraçado. Você era peão, construindo a escola, depois te chamou pra estudar,
você estudou...
327
H. F.– ... e a própria escola me contratou pra trabalhar lá, né, então teve
uma união do útil com o agradável. Era um período que tinha uma inflação filha da
mãe, uma inflação ferrada, é, toda semana tinha que dar aumento pro meu salário e
pros peãos que trabalhavam comigo, a turma que trabalhava comigo, porque eu era
encarregado da manutenção. Aí eu dava aumento, daí quando eu chegava pro
tesoureiro pra ele do aumento, e falava olha, essa semana o salário é tanto. É.. mais...
ele ficava bravo. Lógico, né, que ele ia ficar bravo. Ele dizia, você falou com o
William. O William era o presidente da fundação. Não, não falei nada com o Willian,
não. Eu tô falando com você, porque é você que faz o pagamento, se o William achar
que tá errado, ele vem e fala pra mim. Aí vai ser o presidente da fundação educacional
falando pra mim que sou um subordinado dele. Aí nois vamo conversar e eu vou
justificar o porquê foi dado esse aumento. Aaa não, eu vou fazer o cheque aqui, mas
acho que ele não vai assinar, o tesoureiro falava, né. Daí fazia um cheque, entregava
pro William e ele assinava, nunca perguntou, sempre me pagou.
H. F.– Eu era. Hoje eu sou temente a Deus, né, tenho fé, nunca me batizei em
nenhuma outra igreja, então eu sou católico.
H. F.– Eu era, tinha uma facilidade de liderança, assim... teve uma eleição no
município lá, na época, instituiu o Conselho Municipal de Saúde, tinha que escolher
dois representantes para ser parte do Conselho Municipal de Saúde. E nós dentro de
uma sala lotada de líderes, de todos os bairros do município.
Municipal, e cada um puxou a sardinha pro seu lado. Aaa, eu quero construir um
posto de saúde perto do nosso bairro, não sei o que... e eu como não queria participar
do negócio, nem falei, daí viram que tinha muita gente pra falar, mudaram o esquema,
vamos fazer uma eleição. Cada um de nós aqui vota em duas pessoas. Eu nem tinha
falado nada, eu tava lá junto, eu era líder do bairro que tava. Chegou na hora da
eleição, quem ganhou estourado? Eu, que não tinha nem falado, feito nada, promessa
nenhuma, e um cara lá da roça foi eleito, o cara da zona rural foi eleito. Então eu fui
fazer parte do Conselho Municipal da Saúde. Mas eu acho que a liderança é inato,
você nasceu e tem isso.
H. F.– Tinha, na turma, com os professores, com a direção da escola. Mas tem
aquele negócio, é o que eu tô acabando de falar pro cê aqui... aí, depois de um tempo,
eu comecei a exercitar o não destacar para não assumir nada desses tipos de coisa.
Porque, porque liderança sem remuneração nenhum, hoje, não vale a pena, você só
fica com o trabalho. Eu era líder comunitário, não ganhava nada, mas trabalhava
muito, era líder da renovação carismática, não ganhava nada, Deus nunca esqueceu de
mim, isso eu sempre agradeço e agradecerei, porque eu nunca esqueci dele, então acho
que a gente faz o dia a dia, mostra pra Ele que você tá do lado dele. E você não
precisa ir lá na frente pregar, mostrar, e vestir roupas diferentes, pratica o evangelho, o
ama a teu próximo como a ti mesmo. Deus nunca descuidou de mim, ele sempre me
conduziu. Tanto que essa vaga na faculdade que eu te falei, foi através de um
chamado de Deus. Ele me colocou lá no momento certo, colocou as pessoas certa pra
falar comigo. Esse tesoureiro que não queria me pagar, ele que disse, ou por que você
não presta o vestibular, já tá aqui já. Você tem o ensino médio? Tenho. Por que você
não tem presta o vestibular, vai ter uma segunda chance, vai ter uma turma nova e não
sei o que e vai ter umas vagas novas. E eu... não sei se devo fazer. Paga a taxa de
inscrição e faz a prova, uai. Se ocê passar.... e foi o que eu fiz. Marcou a prova, tinha
150 candidatos, eu passei em 13.º então, tava bão... ou o resto era tudo cabeção, ou
eles foram mal e eu mió. Aí tinha 15 vagas, entrei nessa aí. Depois que entrei eu disse,
não vou sair. A partir do momento que eu paguei uma mensalidade, que era particular,
paguei uma mensalidade, se eu saí eu tô perdendo em um investimento que eu fiz. E
outra coisa, por isso que eu te falo que Deus cuida, Ele mesmo providenciando
trabalho pra mim um atrás do outro. E toda vez que tinha problema com menos
329
dinheiro, o que eu fazia? Aumentava o salário, não que eu fazia pra explorar, eu
fazia porque era o que tava acontecendo, aí sempre tive dinheiro pra pagar a faculdade
e cuidar da vida.
Pascoal – Então não foi uma escolha: aaa, eu vou ser professor de educação
física! O Helinho pequeninho sonhando em ser professor de educação física.
Pascoal – Engenheiro? Pensei que era jogador de futebol, você disse que
jogava bem.
H. F.– Não. Eu jogava, mas era coisa de jovem. Engenheiro, meu sonho de
estudar era engenheiro. Tinha facilidade com matemática, na época de escola, né,
então nunca tive problema com matemática, com essas disciplinas ligadas. Mas como
na cidade do Hélio só tinha escola superior de educação física, e o Hélio não tinha
dinheiro pra ir pra outras escolas, que tinha que pagar escola, transporte, pagar tudo. O
Hélio fez educação física na cidade dele.
Pascoal – 4 anos.
H. F.– Formei em 91, formatura mesmo foi em 92, daí eu formei, casei..
H. F.– 2003 eu prestei o concurso né, aí eu voltei naquele programa que tem
até hoje, escola da família, estava desempregado, a situação difícil, a Ford tinha
mandado embora, eu tava trabalhando cata aqui cata acolá, mas, não dá né. Você tem
filho, você tem que ter um emprego fixo. Segurança, né? Um emprego né... hoje eu já
330
penso diferente, mas na época eu pensava isso. Daí eu entrei, ... pro Estado na
escola da família, depois veio vindo aula uma atrás da outra porque aula eventual, e aí
fui ficando... ficando, primeiro concurso que teve prestei, passei, já consegui o cargo
meu, quando teve a oportunidade da prefeitura de concurso, prestei, passei, então.
Pascoal – Sabe o que eu acho muito bonito em você e por que eu queria
conversar muito com o senhor? É que o senhor consegue sempre ver o copo meio
cheio. E eu acho isso fantástico.
H. F. – Mas a vida é isso, uai. É o que eu acabei de falar. Aquele que está lá em
cima não discute, Ele vai te dando, por quê? Porque você distribui. Não adianta ser
negativo ou pessimista, tem que ser otimista, acreditar, vai dar, também não sei, Ele
quem cuida.
Pascoal – Você acha que onde você chegou é por causa da educação?
Pascoal – Mas parece que foi mais pelo seu jeito mais político, mais de
liderança, carismático.
H. F. – Eu acho que serve pra muita coisa. Eu acho que tudo é uma somatória.
A educação que nós fazemos aqui, é cada um faz do seu jeito, mas ela, eu acho assim,
a escola é o segundo local que a criança vai, que o indivíduo vai, primeiro família,
segundo escola, se não deu certo.
somatória... não tem essa de... ah não, o que a gente faz aqui não tem sentido, orra
meu, lógico que tem sentido, é com o que a gente faz aqui que eles vão saber trabalhar
em outra instituição que é pós a primeira, que é a família, e a segunda, que é a escola.
Ele vai entrar no mercado de trabalho depois ou no nível educacional superior, mas
sem o que nós fizemos aqui vai ficar complicado. Primeiro ele não vai conseguir
entrar, se ele não sair daqui com a certificação que é o papel carimbado, que passou
pela tua aula, que passou pela minha, que passou do J.A. e de todos nós aqui, ele não
vai conseguir chegar lá. Ele não vai conseguir ingressar lá. E tudo é um processo, né,
e nós fazemos parte do processo, né. E tenta fazer o melhor possível com todas as...
Pascoal – Tem uma frase que você fala que eu acho muito legal, fazer o melhor
possível dentro...
H. F. – ...dentro das possibilidades... Você tem que tentar fazer o melhor que
você consegue fazer dentro do que eles te oferecem de oportunidade aqui, oh.
H. F. – Eu acho que isso aí resume bem o que nós fazemos na escola. Por quê?
Porque o sistema, o sistema é, na minha opinião ele não quer que você venha aqui e
faça um trabalho bem feito, por isso que tem um monte de impeditivo. Por isso que
tem um monte de gente coordenando, e... dirigindo e... por quê? Querido, educação
não é pra ser feita de acordo, dentro do que deveria ser. A gente vem aqui e faz o
melhor que você pode, por quê? Porque eles te atrapalham em um monte de coisa.
Não atrapalham? O sistema não te atrapalha em um monte de coisa? Né? Em uma
escola que nem a nossa aqui, posicionada aonde ela é, com essa categoria de
professores que temos aqui e você sabe bem melhor que eu quantos professores que
temos aqui com uma qualidade, capacidade de ensinar muito mais do que a gente pode
fazer aqui. E ensina. Porque a gente faz isso aqui e a gente faz outra coisa aqui que é,
é... de extrema importância dentro da educação. A gente consegue ter amor pelos
alunos, amizade pelos alunos e é por isso que a gente consegue um resultado melhor
dentro da Diretoria de Ensino de Santo André, uma das escolas boas aqui, e é por isso
que eu tô aqui, porque eu gosto de fazer parte do que é bom, né. E a gente consegue
ter um resultado melhor. E é logico que aqui, como em todos os outros lugares, vai ter
333
o aluno que vai vir aqui, o aluno que vai vir aqui só pra (risos)..., matar o tempo,
vem aqui uai... Num importa. Vem! Deixa vim... Deixa vim.. passa por aqui. Comigo
ele não vai ficar, porque eu acho que a educação é de graça, você tem se você quiser.
A educação que nós temos aqui... essa aqui formativa, que fazemos aqui, a outra de
casa é importante você usar, mas a que nós fazemos aqui você adquire se você quiser,
pô. É fácil pro cê lá na sua faculdade? Alguma coisa cai de graça lá? Nada cai de
graça. E alguém fica te obrigando, te exigindo que você estude faça isso ou faça
aquilo? Não! Você vai fazer o seu trabalho dentro da qualidade que você entende que
tem que ser feito, isso é uma questão de caráter.
H. F. – Sim...
Pascoal – Porque tem muita gente que quando queria ou quando podia não
queria, agora quando quer não pode.
H. F. – Não pode... então... são coisas que você tem que... ou não pode... ou
ainda não quer mesmo, porque quando você quer você pode... você dá um jeito.
Porque existe um monte de fatores que te empurra pra isso. E aí é você que vai dizer
sim ou não se você quiser. Aí é uma decisão, é tua, mas que a oportunidade chego,
chego! Cê vai fazer... a mais... você mesmo é um exemplo que você já me falou, né?
Se você fosse seguir o que as instituições determinavam o que você ia fazer, você não
poderia, num é? A minha vida, também, me empurrou para um monte de lugar
diferente, até chegar em um lugar, oh... faz isso aqui, aí vô lá.. daí você faz e aproveita
da melhor maneira possível... dentro da faculdade também eu tinha uma certa
respeitabilidade dentro da sala de aula, eu não era o cdf, o número 1, mas eu nunca
tive nota vermelha e fechei tudo com nota boa.. nunca fiquei de DP, num fiquei
devendo nada de trabalho, nada, na biblioteca o aluno que mais lia... e trabalhava
dentro da faculdade. E qual era o período que eu tinha pra ler? Final de semana e a
noite. Não é... era o aluno que mais pegava livro na biblioteca, e num é pegar livro,
lia, estudava, e trabalho, na época não tinha computador, não tinha essa facilidade,
fazia a mão, pintava, final de semana inteiro...
H. F. – Não.. morrer não.. morrer não... é uma situação complicada né... bem
filosófica... mas morrer não, mas... eu acho que a vida ela nunca é só isso, você deixa
ela transformar no só isso ou não. Agora, se fosse pra resposta final, pum... aí fica
complicado né, mas eu sempre prefiro viver um pouco mais, morrer não.. morrer
quando vier o chamado memo, por opção minha, não...
Pascoal – Mas... se o H.F. fosse a partir de hoje, não fosse conquistar mais
nada, fosse ter os filhos que tem, a casa que tem, o carro que tem...
H. F. – Sim.
departamento que eu trabalho não vai pra atribuição, lá é por, por, você tem que
ter o perfil para aquele cargo. Então, é, trabalho com alunos especiais... tô feliz, dentro
da rede municipal eu tô muito feliz, ué, eu tô muito bem, então.. ah... aqui no Estado,
também. Dentro das escolas de Santo André aqui oh, eu rodei por 20, 30 escolas... na
periferia tudo aí eu dei aula.. tanto hoje, quando ando junto com a minha esposa, ela
que nasceu aqui fala: caramba, você conhece bem mais do que eu... lógico, que eu
andei pra tudo o que é canto, até chegar aqui no Galeão, então, quer dizer, se for pra
mim escolher uma escola pra dar aula, o Galeão pra mim tá excelente, porque o que
vem pra cá? Nós trabalhamos... dentro da rede pública nós trabalhamos com o que tem
de melhor do alunado. Problemas iguais aos outros lá da periferia, em termos de
sistema, de direção, de coordenação.
H. F. – É mesmo?
Pascoal – Mas eu acho isso muito bonito em você. Você consegue ver o copo
cheio..
Pascoal – Mas imagina, a gente tem um ministro da educação que falou que
faculdade é pra elite...
Pascoal – Então, mas uma coisa é você olhar pra traz e olhar para o agora;
outra coisa é você olhar pra frente...
H. F. – Ah... mas mesma coisa a nossa ministra lá da, do meio ambiente, sei lá
do que, a Damares, só fala asneira, eu acho assim, quanto mais tempo você tem o
microfone na mão falando, mais chance você tem de falar besteira, daí depois a
cobrança vem. O que aconteceu com esse pessoal aí é que eles viraram telhado, mas
quantas besteiras eu já falei na minha vida e que hoje não é nada daquilo.. por quê?
Porque a vida vai te dando oportunidade de pensar diferente, então eu acho que a
gente sempre tem que dar oportunidade... aaaa... quer reformar, acha que tá tudo
errado, muda, mostra pra mim como faz. É o que aconteceu com nós agora. Tiraram..
não é pra trabalhar com esse caderninho, não que eu achasse que isso aí é uma
maravilha, mas tem muita coisa que eu consigo aproveitar desse material e fazer o
melhor que eu posso.
H. F. – É, uai, aí...
Pascoal – Mas não saiu aquela resolução que a gente pode usar o
materialzinho?
H. F. – Num sei, ué. Até onde eu sei, e foi lá no grupo nosso que não era pra
usar aquele material. Agora, que tem muita coisa ali que eu acho de extrema
importância trabalhar dentro da área da educação física, e eu trabalhava, porque você
nunca trabalhava exatamente o que vem ali, tanto é que é uma sugestão, quem lê ali,
naquela descrição da secretaria da educação, é uma sugestão de conteúdo, você
trabalha se for possível, se as possibilidades da tua escola, da tua realidade permitir,
né? Tanto que tem esporte lá que, por exemplo, ginástica olímpica, boxe, capoeira, blá
337
blá blá, blá blá blá, eu não tenho conhecimento prático pra trabalhar isso aqui, mas
eu tenho conhecimento teórico pra trabalhar o assunto. Sem precisar que o aluno
enfrente o outro aqui, e entre em uma luta de braço. Aqui dá pra mim fazer o jogo, a
luta, sem incitar essa luta que sugere lá. Né, porque, tem um histórico, o boxe, a
capoeira, o taekwondo, o tênis de quadra, o... ginástica artística, que nois não tem nada
aqui na escola que ofereça possibilidade de trabalhar isso, mas existe uma história,
que eu posso trabalha, que eu posso pesquisa e posso mostra os talentos que estão aí,
dentro dessas, então nós temos muitos talentos e dá pra aproveitar... agora tamo aí,
aguardando...
Pascoal – Tá!
H. F. – Você acha que é fácil chegar na, na universidade... foi fácil pro cê?
Pascoal – Não, não foi fácil. Eu só consegui porque minha mãe era faxineira,
eu consegui bolsa, porque eu era da igreja...
H. F. – E não é de elite?
Pascoal – Então, é o que eu quis dizer... uma coisa é você olhar pro sistema,
olhar pro sistema e perceber como um sistema de elite é tenebroso. E de fato é assim.
No Arbos eu tenho aluno que ele vai estudar de manhã na USP e a noite, sabe aonde
ele poderia estudar? Na UFABC... ele conseguiu, simplesmente, entrar nas duas
melhores universidades públicas de São Paulo de grátis. Que de manhã ele pode fazer
uma e se quiser a noite pode fazer outra... isso é de elite. O grupo que ele vai conviver
é de elite. Só que quando eu faço política eu tenho que olhar pra frente. Então se eu
penso política ainda legitimando um discurso que universidade faz parte da elite, o seu
filho faz parte da elite. Ele está na UNICAMP...
H. F. – Sim..
Pascoal – ... que hoje, na minha opinião, é a melhor do Brasil. Não é a melhor
de São Paulo.
Pascoal – Mas então, quando a gente olha pra frente a gente tem que pensar
em políticas educacionais.
H. F. – Sobre elite, ele tem noção disso, ele tem que ter noção disso que a
universidade é pra elite e o que eu vou fazer, o que qui eu vô fazer pra tentar mudar
isso, ou pra tentar aumentar a possibilidade de que os outros cheguem aqui?
Pascoal – Por exemplo, a UFABC, eu acho muito bonito, a proposta é que 50%
dos alunos lá tem que vir da rede pública, isso é um negócio muito legal né.
Pascoal – É, um estímulo.
Pascoal – Cota é errado? Certo? Você percebe que é o melhor possível dentro
das possibilidades.
Pascoal – Extremamente.
H. F. – Ele fez uma crítica nua e crua que é o que nóis tamo fazendo aqui,
da realidade.
Pascoal – Mas ele não falou como a gente pode fazer o melhor possível dentro
das possibilidades... e essa discussão não houve na fala...
H. F. – ... então, veja bem, é tão elitista que eu fiz faculdade, que nunca fui de
elite e você foi de elite?
Pascoal – Não...
Pascoal – Fiz...
H. F. – Então...
Pascoal – Minha mãe era faxineira, ganhei bolsa, participava de uma igreja,
igreja me deu oportunidade de fazer outro curso...
Pascoal – Ele poderia ter sido, esse meu aluno que de manhã vai estudar da
USP e a noite da UFABC...
H. F. – Exato meu amigo, por isso que eu te falei que eu tenho dó. Porque você
teve uma oportunidade eu tive uma oportunidade que ele não conseguiu ver a
oportunidade.
Pascoal – Você tinha sua família... seus irmãos, sua mãe e seu pai...
Pascoal – Lembro quando você me contou a sua história de quando você era
apanhador de algodão.
H. F. – Café.
Pascoal – Café... sua mãe também? Seu pai também? Tudo na roça?
Pascoal – Foi ela que falou: você vai estudar você trabalhar...
H. F. – Não... todos vão estudar. Ela não deu essa segunda opção. Porque,
porque meu pai ele fez o seguinte, ele era filho de fazendeiro, daí quando o meu avô
casou pela segunda vez, meu avô ele era casado com a mãe do meu pai, teve dois
filhos e a minha vó morreu. Daí o meu avô casou de novo, daí o que aconteceu? Ele
pegou a parte da fazenda por lei, legal isso, dividiu isso, a parte que era da minha vó,
dividiu em duas, pro meu pai e pra minha tia. Daí o que meu pai fez? Por ser um
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ignorante lá da roça, num ter muito conhecimento, porque meu avô também não
tinha ensinado isso pra ele. Só ensinou a ser trabalhador. Não ensinou ele administra.
Meu pai veio pra cidade, vendeu o que tinha lá e veio pra cidade. A cidade pequena,
quando chegou na cidade comprou um hotel, comprou uma linha de ônibus, essa linha
Santa Cruz que tem aí, ela começou lá, fazendo viagem de Muzambinho a Poços de
Caldas. Essa linha de ônibus, lá em casa tem essa, lá em Minas tem a foto dele com a
mão, com a mão do lado do ônibus assim. Na época era estrada de terra, ele era o
cobrador porque nem dirigir ele dirigia, comprou um ônibus... e aí, todo mundo
quando pega uma pessoa assim, com dinheiro, mas sem saber administrar, explora, a
pessoa encosta.. daí ele acabou com o que ele tinha muito rápido... o que era a herança
dele ele acabou muito rápido. E a minha mãe, aí nessa situação, o quê? Trabalhar.
Lavar roupa pra fora, passar roupa. Aquela coisa, né, que lá, a gente... por isso eu te
falei que a gente passou por períodos difíceis. Passar fome, ter que usar roupa que os
outro dava, e a roupa quando chegava na família, enquanto não virava trapo, ninguém
tirava o corpo, porque ia de um, pro outro, pro outro, pro outro e ia crescendo e
passava pro outro, então foi uma vida muito difícil, e aí minha mãe fez o que?
Estudar... vocês vão estudar.. e oh... (estalo com os dedos representando trabalhado).
E o meu pai quando acabou com tudo o que ele tinha, aí ele foi trabalhar de servente
de pedreiro porque ele não tinha profissão. Ele era trabalhador rural, né, e se ele não
fosse trabalhar lá com o meu avô.. porque lá, também, ele não aprendeu a trabalhar; lá
ele aprendia a obedecer ordem, ele não aprendeu a trabalhar.
H. F. – É, faz isso, faz aquilo e tá mal feito... porque era assim que educava na
época... num tinha aquele negócio de sentar com o filho pra conversar... o que a gente
faz hoje... tentar conversar... porque eu tento conversar com o meu filho mas.... só
tento neé... aí né, ele, ele acabou com tudo o que tinha... Estudar... Minha mãe dizia:
vocês vão estudar. Eu por exemplo, eu acho que eu tinha algum distúrbio, porque eu
levei pau no primeiro ano, no segundo ano... quer dizer, alguma coisa tava errado, eu
não conseguia aprender, eu não conseguir acompanhar. E aí no terceiro ano eu só
passei porque a professora né, passei direto, porque eu tive que repetir o primeiro, o
segundo, daí no terceiro e passei porque a professora era muito gente boa... assim...
H. F. – Não... ela não ligava pra mim... Porque se ela fosse boa de coração
ela tinha me ensinado.
esse eu acho que tem até hoje no colégio, porque plantamos umas árvores
centenárias lá e não pode cortar, né. E aí fui pro... e assim foi..
H. F. – Nada. Assim, não... foi acontecendo. É onde eu te falo, é Deus que vai
providenciando. Que vai aparando as arestas.
H. F. – Deu certo...?
Pascoal – Super...
6. Docente M.F.M
A professora M.F.M é professora efetiva de história e atua como vice-
diretora. Ela tem como responsabilidade auxiliar na gestão de 38 turmas (Ensino
fundamental II e Ensino Médio), além de duas coordenadoras pedagógicas e 64
docentes (categoria A, F ou O), além de docentes eventuais, profissionais da
limpeza, cantina, merendeiras, secretaria e docentes readaptados.
M.F.M – É... foram etapas né, então assim, eu tive planos, planejei e fui
realizando esses planos, desejos, né. Passo a passo. Então, primeiro casei, como disse,
tive um filho, e, depois fui fazer a faculdade. então, assim, é o desenvolvimento foi
bom para mim. Eu fiz o que eu deveria ter feito, é, até porque o meu companheiro,
meu ex-companheiro, me ajudou muito nesse desenvolvimento. A gente sempre
apoiou um ao outro e é muito importante ter o apoio de uma pessoa que tá ali do seu
lado, te dando uma força, dizendo vai. Tá difícil, mas vai. Tá difícil, mas eu te ajudo.
Eu sou muito grata a essa parceria que eu tive, né, então, eu tive que desenvolver essa
minha história, esse meu caminho profissional, praticamente sozinha, por que meus
pais não tinha condições de pagar uma faculdade, como muitos hoje tem, os pais
bancam, os pais vão lá e, sabe, apoiam seus filhos. Meus pais são pessoas simples.
Para minha mãe, eu terminar o ensino fundamental já tava suficiente. Mas eu queria
mais, e aí eu fui terminar o ensino médio, e depois pros meus pais tava tudo ótimo, né.
Mas eu queria mais, queria mais. Então eu fui atrás dessa... han, dessas realizações e a
minha vida foi desenvolvendo assim, com o meu esforço, com a minha vontade
mesmo, não foi fácil Ser mãe, esposa, trabalhar fora e fazer faculdade foi assim, lição
de vida muito grande ter que dar conta de tudo, então eu sou assim, uma mulher que
tenho que me valorizar muito, por isso. Não posso deixar de citar, né, o meu ex-
companheiro que me deu assim muito apoio, mesmo, na minha história de vida. Eu
sou grata a tudo, principalmente a mim. Então é isso.
M.F.M – Não foi tranquilo, foi árduo. É, porque eu tinha uma criança pequena,
né. E eu fui, meti as caras e logo que eu comecei na faculdade, isso a mais de 20 anos
atrás, 23, 24 anos. Eu já comecei a estudar, então, eu estudava, eu tinha minha casa,
meu marido, meu filho e todos os trabalhos da faculdade, estudar. Eu estudava de
madrugada, depois que eu fazia todas as minhas tarefas, dormia 2, 3 horas por dia,
acordava cedo, ficava com o meu filho, então eu trabalhava, estudava a tarde, já no
finalzinho da tarde eu ia pra faculdade e não foi algo assim, tranquilo, mas valeu
muito a pena, porque, como eu disse anteriormente, foi um aprendizado, dar conta de
tudo né. Dar conta daquilo que eu queria pra mim. Eu queria abraçar o mundo. Eu
abracei e não me arrependo. Porque são coisas que, a vida, a gente aprende e desse
aprendizado ninguém vai tirar de mim. Acho que é isso.
345
Pascoal - Você está satisfeita com quem se tornou, com quem você é?
M.F.M – Olha, essa pergunta é... nossa.. é não sei. Eu estou satisfeita sim. É,
eu lutei muito pra chegar onde estou, mas ainda não estou satisfeita porque quero
mais. Quero ainda mais. Né, então, quando uma pessoa diz eu estou satisfeita, é
porque ela já realizou todos os seus desejos, tudo o que ela quer. Eu ainda não realizei,
né, porque eu ainda quero chegar além, mas eu sei que me tornei uma pessoa é, boa,
no sentido profissional eu sei que tenho que melhorar muito, porque não estou
satisfeita 100%, sempre acho que tenho que ir além. Como pessoa, eu estou satisfeita
com o que me tornei, mas também, quero melhorar sempre, porque a gente tem que
sempre buscar o aprimoramento, eu penso que se você está vivo você tem que buscar
sempre mais, sempre mais, e eu busco. Então, satisfeita, 100% ainda não, mas estou
feliz pela pessoa que estou me tornando a cada dia. A profissional que está
aprendendo a cada dia. Aprendendo com os adolescentes e as crianças, aprendendo
com os responsáveis desses adolescentes e dessas crianças, e com os colegas de
trabalho e é uma questão muito difícil, muito complexa.
Pascoal - Você se contentaria em viver com aquilo que possui ou morrer se não
fosse conquistar mais nada?
M.F.M – Nossa, essa também é difícil, porque, não... difícil. Não... não é
difícil, porque eu amo viver, eu não, é, pensaria em morrer de forma alguma se eu não
fosse conquistar mais nada, mas também eu não me contentaria nunca com aquilo que
eu possuo. Então, assim, é, eu acho que quando a gente tem vontade de viver, a gente
ainda é, tem folego, a gente quer conquistar coisas, e quanto mais você conquista mais
você quer conquistar. Por uma questão financeira, por uma questão de ego, por uma
questão de satisfação pessoal, enfim, é, eu não, eu não me contento com o que eu
tenho ainda, eu quero mais, mas, se alguém falar pra mim que eu não iria possuir mais
nada, eu também não queria morrer por causa disso. Então, é muito complexa essa
pergunta e é muito difícil de responder porque não dá, na minha concepção, dizer
“então eu prefiro morrer, já que eu não vou conquistar mais nada”. Eu não diria isso
porque eu amo viver, não penso em morrer. Não que eu tenha medo da morte, eu não
tenho medo da morte, mas eu amo a vida. É, então, olha só que coisa louca, se fosse
pra escolher, então tudo bem, eu diria, eu vivo com isso que eu tenho, mas eu tenho
uma gama muito grande de querer sempre mais pra mim, né, uma questão não só
financeira, mas uma questão, também, de satisfação pessoal. Então, eu, nossa, que
346
difícil, prô... que difícil.... ah, eu não... olha, eu não sei se essa resposta é muito
satisfatória pra você.
M.F.M – Eu acho que esse preparo foi da vida mesmo. Foi lidando com
pessoas e observando as pessoas, porque na faculdade a gente não aprende a prática, o
teórico é muito diferente da prática e quando eu pisei em uma sala, pela primeira vez,
eu saí assim, atordoada, porque era uma sala muito difícil , de nono ano, de alunos
repetentes, de uma escola difícil, a partir daquele momento, eu disse: não, eu quero
isso pra mim então eu tenho que me preparar, e como eu vou me preparar? Batendo de
frente com aluno? Tentando entender? Observando? Então veio na vivência, mesmo,
né? Com a prática, com o dia a dia, errei muito acertei muito. Erro ainda, mas esse
preparo vem da vida mesmo, vem de leituras, ouvindo educadores, ouvindo outras
experiências, observando outras pessoas, o trabalho de outras pessoas, aquilo que você
quer, que você acha correto pegar pra si, o que você não acha correto. Usar de
347
experiências de não posso fazer isso, que eu acho errado. É realmente a prática, é
ter a sensibilidade ser sensível, né, aos olhos dos outros. É você olhar pro outro, é
você observar o outro, observar a sua volta, observar tudo o que acontece e dali tirar
as suas experiências, aprendizagem e foi assim que eu considero o meu preparo. Eles
não estão apenas nos livros, mas ela está na vivência do dia a dia, na prática do dia a
dia.
Pascoal – Qual foi o papel dos professores em sua vida? Algum marcou sua
história? Como?
pô, o que você tem? Você não tá legal, enfim. E o outro foi um professor de ensino
médio que me ensinou a ver o mundo de outra forma, que o mundo era uma droga: ou
você se defende do mundo ou ele te engole. Não importa o que você seja... seja. Seja.
Se for pra ser uma diarista, seja a diarista, se for pra ser uma engenheira, seja a
engenheira, então ele passava isso pra gente, pra turma. Então me marcou muito esses
quatro professores, dois de uma forma mais humanizada e dois de formas mais
desumanizadas, vamos dizer assim.
M.F. M – Bom, eu acho que cada um, cada pessoa tem que saber o que ela
quer, ela tem que estar pronta, ela tem que se preparar. E como ela vai se preparar?
Vai se preparar pra ser boa ou mais ou menos? Se preparar para ser top ou meia boca?
Aí não dá, então, eu penso que quando eu me preparei, quando eu me preparei, eu
tinha me preparado buscando o meu melhor, não importa o outro, o outro é o outro, se
o outro não faz a coisa certa, eu vou, não é por isso que eu não vou deixar de fazer o
meu ser igual ao outro: meia boca. Eu não quero ser meia boca, quero ser sempre
melhor para mim, melhor para o outro. É uma questão, assim, ideológica, mesmo, de
idealizar aquilo, de se preparar de ser um bom profissional, né, de ganhar o seu
espaço, é, sendo capaz, aí o outro, que não executa corretamente, que não se prepara,
infelizmente, na educação, isso é muito grave, né, se for pensar em um professor que
não se prepara para dar aula, ele vai prejudicar os alunos, ele não vai se prejudicar, ele
vai prejudicar o aluno, isso é muito ruim. Eu não tenho que pensar, nisso, eu vou lá e
faço qualquer coisa. Não. Eu tenho que pensar que estou lidando com seres humanos e
que aquela pessoinha que está ali na minha frente, está esperando melhor de mim, o
aluno confia no professor, ele tem que confiar no professor, confiar no que o professor
está passando, quando ele chega na minha sala, mesmo que for pra levar bronca, ele
quer que eu seja justa e esteja preparada para ouvi-lo, então, a gente tem que pensar
no melhor desempenho, já que a nossa profissão trabalha diretamente com a educação
do outro. E isso é muito importante.
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7. Docente V.M
A professora V.M. é professora efetiva de matemática e atua como
coordenadora pedagógica do Ensino Médio. Estão sob sua responsabilidade 19
salas.
V. M. – Não sei ao certo, não tracei uma rota e a segui, a cada opção de
caminhos que a vida me deu me pautei em momentos que estava vivendo para optar
por qual direção tomar.
Pascoal - Você está satisfeita com quem se tornou, com quem você é?
V. M. – Não plenamente, às vezes sinto poder muito mais do que faço, mas
algumas mudanças dependem de fatores que ainda não consigo mudar.
Pascoal - Você se contentaria em viver com aquilo que possui ou morrer se não
fosse conquistar mais nada?
V. M. - Então, eu não vou preferir morrer nunca, eu vou morrer quando tiver
que morrer. Eu gostaria de mais? Gostaria de mais, mas, tá muito bom desse jeito. Se
melhorar, ótimo. Eu só não quero piorar.
V.M. – Esse preparo veio das formações que eu tive até hoje, que eu busquei
de experiência de vida, é, experiências profissionais, experiências pessoais.
Pascoal - Qual foi o papel dos professores em sua vida? Algum marcou sua
história? Como?
V. M. – Por que se eu não me preparar quem é que vai fazer isso por mim?
Ninguém! Independente da profissão que você escolher você precisa se preparar. Não
tem essa né, ninguém vai fazer isso. Só que em outras profissões você se prepara e
muitas vezes ali é o suficiente e na educação nunca é suficiente, sempre precisa buscar
mais. Penso eu assim.