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O Shaikh al-Islâm da América: Shaikh Sâtti Mâjid Sûwâr al-Dhahab

(Hei Xuanfeng/Shaikh Muhammad Sharîf ibn Farid)

Como um jovem que cresceu na Nation of Islam (Nação do Islã), sempre me


contaram que uma das razões pelas quais o Islã nos Estados Unidos se extinguiu entre os
milhões de muçulmanos africanos escravizados trazidos ao país foi porque ninguém da
África ou do mundo islâmico veio redimir ou salvar “as ovelhas perdidas” dos descendentes
de Abraão (a.s.); até que “um homem meio original” que às vezes atendia pelo nome de
Fard Muhammad W.D. Fard ou Wali Fard veio em 1929.1
Entretanto, isso está longe da verdade. A primeira aparição de um movimento
islâmico pós-escravatura entre afro-americanos nos Estados Unidos foi a obra de um
imigrante sudanês chamado Muhammad Sâtti Mâjid, que em 1904 desembarcara na costa
dos EUA e reviveu os valores africanos islâmicos originais, perdidos durante os períodos de
escravidão e pós-Guerra Civil.
O Imâm Sâtti Mâjid era da etnia núbia do norte do Sudão e veio para os EUA com o
intuito de chamar os afro-americanos de volta para a sua herança islâmica. Ele foi o
primeiro a tentar “legitimar e institucionalizar o Islã como parte da configuração
religiosa americana”.2
Durante a sua breve estada nos EUA antes de ser deportado, ele estabeleceu pelo
menos cinco sociedades beneficentes africanas e islâmicas, feitas para melhorar as
condições espirituais e sociais dos afro-americanos e dos irmãos muçulmanos imigrantes.
Sâtti Mâjid fundou a Muslim Unity Society [Sociedade da União dos Muçulmanos],
a Islamic Missionary Society [Sociedade Missionária Islâmica], a Red Crescent Society
[Sociedade do Crescente Vermelho], a Islamic Benevolent Society [Sociedade Beneficente
Islâmica] e a African Moslem Welfare Society [Sociedade do Bem-Estar dos Muçulmanos
Africanos]. Essa última foi fundada em Pittsburgh, Pensilvânia.3
Ele organizou células em cidades tais como Filadélfia, Akron, Cincinnati, Cleveland
e Baltimore, e foi responsável pela propagação inicial do Islã entre os afro-americanos na
virada do século. Nas suas próprias palavras, o Imâm Sâtti Mâjid esboçou os focos e
objetivos das suas atividades:
“Tenho vivido na terra da liberdade e justiça durante vinte e cinco anos, durante
os quais testemunhei uma animosidade injustificada quanto ao Islã. Respondi às essas
visões danosas constantemente. Primeiramente comecei respondendo às essas visões
escrevendo artigos sobre o Islã, mas cheguei a perceber que escrever artigos em defesa
do Islã não era suficiente.
Comecei o meu trabalho pregando sobre a tolerância e sobre amar a natureza do
Islã. Encontrei uma resistência ferrenha e feroz. Mas pela virtude e graça de Allah, e
aceitação do Tio Sam, ninguém poderia mudar a minha mente de perseguir o meu sonho.
Senti que a minha alma não descansaria até que eu mostrasse às pessoas o verdadeiro
Islã. Naquele ponto ninguém poderia me parar ou impedir os meus esforços. O número
de pessoas que fui capaz de converter ao Islã cresceu consideravelmente.” 4
Sâtti Mâjid também viajou ao Egito e de volta à sua pátria no Sudão para obter uma
fatwa (parecer legal) quanto a Timothy Drew (também chamado de O Nobre Drew Ali), o
fundador do Moorish Science Temple [Templo da Ciência Moura] e a sua modalidade de
Islã. Nas suas próprias palavras, o Shaikh disse:
“Tenho desafiado Drew Ali a cada passo no caminho, urgindo-o a recuar da sua
mentira e fabricação de versículos e ditos que não são do Alcorão que foi revelado ao
Profeta Muhammad (s.a.w.s.); eu o desafiei frisando a autenticidade do Alcorão. Drew
Ali recusou-se a submeter-se e reconhecer o ultraje das suas alegações.”5
Enquanto isso, nos Estados Unidos Sâtti Mâjid era responsável por mais de dois
litígios legais bem-sucedidos contra jornais que caluniavam o Islã e o seu povo. Assim,
estabeleceu uma norma tática no uso do sistema legal anglo-americano para proteger,
manter e avançar valores islâmicos africanos. Sâtti Mâjid também foi responsável por
supervisionar o bem-estar de muitos muçulmanos imigrantes em Nova Iorque, assim como
o retorno aos seus países em segurança.
Devido à influência de Sâtti Mâjid ter se estendido dos Estados Unidos para a
Europa e de volta para a África, ele fora o primeiro líder mundial real para a população
muçulmana e afro-americana e transmitiu aos seus seguidores um senso de amor pela
África e pelo pan-africanismo. Muitos dos seguidores de Sâtti Mâjid se tornaram membros
ativos da UNIA (Universal Negro Improvement Association – Associação Universal para o
Progresso Negro) liderada por Marcus Garvey. 6
O Shaikh al-Islâm Sâtti Mâjid foi o primeiro a direcionar a visão da comunidade
internacional à violação dos direitos civis e humanos dos afro-americanos nos EUA.
Em 17 de dezembro de 1928 um discípulo afro-americano do Imâm Sâtti Mâjid
chamado Elijah Muhammad escreveu o seguinte ao Shaikh:

“Respeitável Pai, Shaikh al-Islâm da América,


Reverendo Sâtti Mâjid,
Honorável Senhor,

São os seus filhos da fé islâmica lhe escrevendo estas poucas linhas para lhe
informar de que estamos muito bem no tempo presente. A nossa membresia continua
crescendo. Também encontrará anexa a carta que deveríamos lhe mandar e esta noite
estamos lhe enviando doze cartas que vamos elaborar e lhe enviar, agradecendo-o pelas
muitas palavras gentis que nos dissera quando estávamos na sua presença. Também
oramos pelo seu sucesso na sua longa jornada. Encerro desejando que Allah esteja com
você.

Atenciosamente,
Elijah Muhammad” 7

Há alguma especulação de que esse “Elijah Muhammad” de Pittsburgh seja o


mesmo que mais tarde surgiu como o ministro principal de Fard Muhammad em Detroit
em 1932. Entretanto, não é verdade. O que é significante é que a alegação da NOI de que
Fard Muhammad tenha sido o primeiro a vir do oriente para trazer o Islã de volta para os
afro-americanos é uma falácia histórica. Somente um ano depois do desaparecimento de
Fard e a proclamação de Elijah Muhammad de que ele era o “mensageiro”, outro
muçulmano afro-americano discípulo de Sâtti Mâjid chamado Elias Mohamed escreveu ao
Imâm uma carta mostrando a perspectiva mundial e internacional que ele instilara nos
seus seguidores:

“Querido Pai,

Escrevo-lhe sobre a minha saúde e sobre a comunidade negra americana.


Escrevemos a você há vários meses em resposta à sua carta. Na nossa carta solicitamos
os livros traduzidos do árabe para o inglês. Temos a sensação de que você está
extremamente ocupado. Aqui estamos muito preocupados com o conflito ítalo-etíope.
Esperamos que a Etiópia não sofra nas mãos dos italianos. Se Allah quiser um dia
seremos capazes de voltar para a África. Temos nos alegrado sobremaneira com a
derrota dos colonialistas em muitas partes da África. Quero que tenha certeza que
estamos trabalhando duro para promover a palavra do Islã.
Pai, por favor nos mande a sua foto. Também não se esqueça de trocar todos os
nomes ingleses das pessoas que se converterem ao Islã. Mandei para você uma lista
longa com os nomes. Rogo que Allah nos capacite a ouvirmos mais de você de novo.

O seu filho, Elias Mohamed”8

O Shaikh al-Islâm da América Imâm Sâtti Mâjid respondeu a essa carta, informando
ao seu discípulo de que ele retornaria em breve aos EUA para completar a obra de trazer de
volta os afro-americanos à sua verdadeira herança religiosa e cultural.
Não obstante, o Departamento de Estado dos EUA recusou-se a lhe conceder um
novo visto. Assim, a resposta do governo dos Estados Unidos ao Imâm Sâtti Mâjid foi lhe
recusar um visto; no que esperavam que a sua influência sobre as minorias afro-
americanas/islâmicas fosse esmorecer.
O resultado foi que a principal organização “proto-islâmica-maçônica” liderada pelo
seu antagonista, O Nobre Timothy Drew Ali, conseguiu ganhar proeminência nas mentes
dos afro-americanos/muçulmanos, e a influência sunita de Sâtti Mâjid foi logo esquecida.
O Shaikh al-Islâm Sayyid Sâtti Mâjid dispendeu 24 anos, de 1904 a 1929, ensinando
Islã principalmente para afro-americanos em Nova Iorque, Filadélfia, Cleveland,
Pittsburgh, Akron e Cincinnati. Ele não só ensinou o Islã sunita ortodoxo, como também
conectou os seus alunos à sua herança islâmica africana. Apesar da falta de conhecimento
das realizações do Imâm Sâtti Mâjid, na mesquita de State Street liderada pelo Imâm
Dâwûd Faisel em Nova Iorque, na Primeira Mesquita de Cleveland e na Primeira Mesquita
de Pittsburgh o elo com as tradições islâmicas africanas persiste. 9

Notas:

1. E. U. Essien-Udom, “Black Nationalism: the Search for An Identity” [Nacionalismo Negro: a Busca por
uma Identidade], University of Chicago Press,1962
2. Ahmed Abu Shouk, “The First to Arrive: Satti Majid, 1904-29” [O Primeiro a Chegar: Sâtti Mâjid, 1904-
29], p. 21.
3. Artigos de Incorporação e Registro de Nomes para a African Moslem Welfare Society of America, 1º de
maio de 1928, com o Departamento de Estado; Escritório Corporativo, Harrisburg, PA, microfilme nº 95171.
Sou grato ao amigo pesquisador, Akil Fahd, por compatilhar esse documento comigo.
4. Op. cit., pp. 21-22.
5. “The First to Arrive: Satti Majid, 1904-29.”
6. Ahmed I. Abu Shouk, J.O. Hunwick & R.S. O’Fahey, “A Sudanese Missionary to the United States: Satti
Majid, ‘Shaykh al-Islam in North America’, and His Encounter with Noble Drew Ali, the Prophet of the
Moorish Science Temple Movement” [Um Missionário Sudanês para os Estados Unidos: Sâtti Mâjid, ‘Shaikh
al-Islâm da América do Norte’, e o Seu Encontro com O Nobre Drew Ali, o Profeta do Movimento do Moorish
Science Temple], Sudanic Africa, Vol. 8, 1997, pp. 150-157.
7. Op. cit., p. 24.
8. Ibid., p. 30-31.
9. “The First to Arrive: Satti Majid, 1904-29.”

Traduzido ao português por: Ya'qûb 'Abd al-Jabbâr Ghîmârâish (al-Brâzîli al-Tijâni)

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