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Originalmente publicado em:


ANDRÉ, Richard Gonçalves. A imigração japonesa no Brasil: história e
memória, fronteiras e interpenetrações. História e-história, v. 1, p. 1-21, 2009.
O periódico encontra-se atualmente fora do ar.

A Imigração Japonesa no Brasil: História e Memória, Fronteiras e


Interpenetrações

Richard Gonçalves André•


Resumo: O ano de 2008 marcou o centenário da imigração japonesa para o
Brasil, o chamado Imin 100, de modo que os meios de comunicação de massa
reconstruíram, baseados no memorialismo preexistente, discursos oficiais
sobre o imigrante nipônico, sua história e contribuição cultural. Por um lado,
criou-se uma narrativa linear e homogênea espacial e temporalmente
ressaltando os lugares comuns épicos em torno de indivíduos que, saindo de
sua terra natal, aventuraram-se em um país estranho, ascenderam socialmente
e foram assimilados ao universo brasileiro. Por outro, enfatizaram-se
estereótipos orientalistas ou modernos sobre o Japão, praticamente ignorando
a complexidade do imigrante japonês em território brasileiro. Todavia, tais
visões perdem de vista os debates sociológicos, antropológicos e históricos
que têm sido desenvolvidos acerca do assunto nas últimas décadas. Essa
produção de conhecimento ressalta o preconceito sofrido pelos japoneses, o
racismo próprio à intelectualidade nacional durante o século XX e, entre outras
questões, chamam a atenção para os atores sociais que fogem ao perfil
histórico do imigrante japonês, figura múltipla e historicamente complexa que
transcende os sugeridos estereótipos. Este artigo tem por objetivo apresentar
um quadro sobre alguns dos principais discursos sobre a imigração japonesa
no Brasil, relacionando as representações alardeadas pelos memorialistas e
reproduzidas pela mídia aos debates acadêmicos travados nos últimos anos.
Palavras-chave: imigração, japoneses, história, memória.


Mestre e doutorando em História pela UNESP, campus de Assis.
2

Abstract: The year of 2008 marked the centenary of Japanese immigration to


Brazil, the called Imin 100, reconstructing the mass media, based in the
preexistent memorialism, official discourses about the Japanese immigrant, his
history and cultural contribution. On the one hand, it was created a space and
temporally linear and homogeneous narrative emphasizing the epical common
places about the individuals that, leaving from their mother country, lived an
adventure in a strange country, ascended socially and were assimilated to
Brazilian universe. On the other hand, it was emphasized orientalist and
modern stereotypes about Japan, practically ignoring the complexity of
Japanese immigrant in Brazilian territory. However, those visions ignore the
sociological, anthropological and historical debates that have been developed
about of the subject in the last decades. This knowledge production emphasizes
the preconception suffered by Japanese, the racism proper of the national
intellectuality during XX century and, among other questions, calls the attention
to the social actors that are different from the historical profile of Japanese
immigrant, multiple and historically complex figure that transcend the suggested
stereotypes. This paper intends to present a board about some of the principal
discourses about Japanese immigration in Brazil, relating the representations
divulged by memorialists and reproduced by media to the academic debates
done in the last years.
Keywords: immigration, Japanese, history, memory.

A palavra “comemorar” deriva do prefixo “co”, que significa


“junto”, e do radical “memor”, que remete à memória. Portanto, de modo geral,
seria algo como “lembrar conjuntamente” de determinado fenômeno. Todavia,
como têm demonstrado os cientistas sociais desde, pelo menos, as
contribuições do sociólogo francês Maurice Halbwachs1, a memória individual e
social não é um processo inocente, já que pressupõe, por parte de
determinados agentes produtores, a seleção, a ressignificação e a reprodução
de determinados eventos, períodos e personagens com determinados fins,
sejam ideológicos, no sentido que os intelectuais marxistas atribuíram ao
conceito, ou identitários, constituindo um conjunto de elementos culturais que

1
HALBWACHS, M. A Memória Coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.
3

fornecem identidade a indivíduos, grupos sociais ou mesmo nações2. Pode-se


mesmo falar em invenção de tradições, como sugerem os historiadores
britânicos Eric Hobsbawm e Terence Ranger3, com o objetivo de criar ou recriar
memórias fictícias supostamente calcadas numa longa duração e perpetuadas
até o presente sem modificações, o que constitui a ilusão atemporal da
“tradição”4. Em determinados períodos, os discursos memorialistas emergem e
são ritualizados publicamente por intermédio de festas, marchas militares e,
entre outros exemplos, feriados: basta citar ocasiões como a Independência
para os brasileiros, a Revolução de 1789 para os franceses e, entre os
japoneses, o aniversário do tennô (天皇), o imperador teoricamente enviado
pelos céus5.
O Imin 100 (移民百年祭), o centenário da imigração
japonesa no Brasil, constitui um dos momentos nos quais os discursos
memorialistas foram (e continuam sendo) articulados para a reprodução de um
determinado conjunto de recordações sociais que representa, de modo
generalizado, a “memória” dos nikkeis6 (日系) brasileiros. Entretanto, como
enfatizado, uma vez que as recordações sociais referem-se a elementos
construídos (não se tratando de um a priori), é válido questionar e, portanto,
problematizar o que foi eleito como memorável e as suas funções na atualidade.
Dessa forma, pode-se compreender também o seu avesso, isto é, o que foi
silenciado e as razões para o silêncio que, de acordo com o sociólogo M.
Pollak, não significa necessariamente esquecimento7. A partir disso, o presente
artigo tem por objetivo compreender os principais lugares comuns relacionados
à memória oficial sobre os nikkeis no Brasil, tendo em vista, principalmente, as

2
POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, v. 2, n. 3, 1989, pp.
9 e 10.
3
HOBSBAWM, E.; RANGER, T. (orgs.). A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1984.
4
BURKE, Peter. Unidade e Variedade na História Cultural. In: Variedades de História
Cultural. Trad. Alda Porto, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, pp. 239 e 240.
5
Para a latinização de palavras japonesas, utilizo o padrão proposto por James Curtis Hepburn.
MICHAELIS. Dicionário Prático Português-Japonês. São Paulo: Cia. Melhoramentos,
Aliança Cultural Brasil-Japão, 2000, s.p. As expressões japonesas são seguidas de seu
respectivo ideograma (kanji, 漢字), já que muitas das traduções são apenas aproximadas.
6
Pelo termo nikkei, compreende-se todos os japoneses e descendentes que passaram a residir
na América. LESSER, Jeffrey. A Negociação da Identidade Nacional: Imigrantes, Minorias e
a Luta pela Etnicidade no Brasil. Trad. Patrícia de Queiroz Carvalho Zimbres, São Paulo:
EDUNESP, 2001, p. 226.
7
POLLAK, M. Op. Cit., p. 5.
4

comemorações concernentes ao Imin 100 (especialmente em Londrina, no


norte do Paraná). Além disso, serão buscadas as relações entre esse discurso
e os debates acadêmicos que têm sido realizados, pelo menos, desde a
segunda metade do século XX, demonstrando alguns de seus distanciamentos
e mesmo interpenetrações.

1. Imin: Divulgação e Vulgarização


Os eventos relacionados ao Imin, palavra que significa
“imigração”, não constituem uma novidade histórica. Desde a chegada das
primeiras famílias japonesas ao Brasil, em maior ou menor escala, difusa ou
concentradamente, comemora-se a vinda dos primeiros imigrantes ao país, o
que suscita uma série de festividades e publicações. Somente para citar um
exemplo, no cinquentenário foi encomendado um denso estudo estatístico
sobre os diversos aspectos, da agricultura à religião, das colônias nipônicas em
território brasileiro, encabeçado por Teiti Suzuki (o resultado, em dois volumes,
foi publicado em 1969)8. Nos oitenta anos, as comemorações alcançaram o
Estádio do Pacaembu, em São Paulo, onde uma multidão pertencente à Soka
Gakkai Brazil International (SGBI), como num “telão humano”, escreveu
expressões como Kasato Maru (o primeiro navio trazendo japoneses ao Brasil)
e nomes de imigrantes que se tornaram célebres, como Ryoichi Kodama, que
veio ao país com treze anos de idade9. Em Rolândia, no norte do Paraná, onde
existe o Museu Agrícola da Imigração Japonesa, desde 2006 foi construído um
pilar representando o aniversário da imigração. Nos anos seguintes, foram
construídos mais dois, culminando no pilar representativo do centenário.
O que torna os cem anos particularmente significativos são,
principalmente, três aspectos: em primeiro lugar, para as comemorações do
Imin 100, o próprio peso simbólico do centenário, encerrando uma longa

8
SUZUKI, T. The Japanese Immigrant in Brazil. Tokyo: University of Tokyo Press, 1969, 2
volumes.
9
IKEDA, Daisaku; KODAMA, R. Sol e Terra: Sinfonia do Desbravador: Saga de um Pioneiro
da Imigração Japonesa no Brasil. São Paulo: Editora Brasil Seikyo, 2008, pp. 18 – 21. A Soka
Gakkai (創価学会) é uma das chamadas novas religiões japonesas que, criada em 1930 por
Tsunesaburo Makiguchi, surgiu como uma ramificação leiga do Budismo Nichiren (日蓮).
Popularizou-se no Brasil a partir da segunda metade do século XX, inclusive entre o público
não-descendente, ganhando o nome Soka Gakkai Brazil International. PEREIRA, Ronan Alves.
Associação Brasil Soka Gakkai Internacional: sua Organização e Difusão no Brasil. In: VIII
Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina, n. 8, 1998. Anais das VIII Jornadas
sobre Alternativas Religiosas na América Latina. 1998, s.p.
5

duração. Em termos de imaginário, o período sugere uma tradição, no sentido


acima empregado, que teria sido trazida diretamente do território japonês e
reproduzida no Brasil in totum da primeira à sexta geração de nikkeis. Desta
forma, mais importaria para as comemorações a ilusão estática do
tradicionalismo que propriamente as transformações históricas, o que será
explorado mais adiante.
O segundo elemento caracterizador do Imin 100 foi a ampla
divulgação e participação do público não-descendente. Trata-se de aspecto
presente nos outros anos, como atesta o citado telão humano na década de
1980, composto pelos membros da SGBI que, segundo o atual presidente da
instituição, D. Ikeda, perfazia, em sua maioria, 70% de não-descendentes10.
Porém, em 2008, essa característica foi maximizada e envolveu não apenas a
presença de autoridades públicas, como o Presidente da República Luís Inácio
Lula da Silva, mas também o público em geral. Inclusive, diversos setores da
sociedade participaram ativamente dos festejos, como alunos e professores de
escolas públicas e particulares que expunham seus trabalhos em pavilhões
decorados com todo o convencionado exotismo nipônico. Foi realizada vasta
publicidade abarcando praticamente todos os meios de comunicação de massa,
como o jornal (não apenas de natureza nikkei, como o Paraná Shimbun, mas
também a Folha de Londrina e o Jornal de Londrina), a televisão, o rádio (foi
criada para o evento uma rádio nikkei), a panfletagem, a decoração citadina,
entre outros aspectos. Ao final do Imin 100 em Londrina, foram contabilizados
aproximadamente duzentos e quarenta mil visitantes.
Em terceiro lugar, de modo geral, o volume de produções
materiais e intelectuais relacionado à conjuntura foi mais significativo que nos
outros anos. Construíram-se praças públicas, como a Praça Tomi Nakagawa
(em homenagem à última remanescente do Kasato Maru, falecida em 2006)
em Londrina, com direito a vários torii (鳥居, imensos portões destinados à
passagem dos deuses), assim como praças em Rolândia e Curitiba (com
direito a castelo à moda japonesa); monumentos foram erigidos, como o citado
pilar no Museu Agrícola da Imigração Japonesa; enfeites foram espalhados
pelas cidades, dos quais se podem citar os koibonori (鯉幟, carpas de pano

10
IKEDA, D.; KODAMA, R. Op. Cit., p. 19.
6

simbolizando a virilidade) e faixas com inscrições bilíngues de irasshaimase (い


らっしゃいませ, “bem-vindo”) foram penduradas em rodoviárias e aeroportos.
Inumeráveis textos de natureza jornalística foram publicados na Folha de
Londrina (incluindo-se um suplemento especial no dia do centenário), no
Paraná Shimbun, na Folha de São Paulo, no São Paulo Shimbun, em revistas
especializadas em cultura japonesa, como a Made in Japan, e outras
especialmente publicadas para as comemorações. A mídia televisiva exibiu
reportagens e dossiês sobre cultura japonesa, seja em canais abertos, como a
Rede Globo, seja naqueles por assinatura, como o Discovery Channel. A
publicação de livros, sejam acadêmicos ou memorialistas, tem sido abundante,
como “Sol e Terra”, transcrição de conversa entre D. Ikeda e R. Kodama11;
“Sobô”, romance de Tatsuzô Ishikawa escrito na década de 1930 e traduzido
para o português12; “Cem Anos de Imigração Japonesa: História, Memória e
Arte”, produzido por uma série de especialistas no tocante ao assunto13, entre
outros. As revistas científicas também abriram espaço para a questão, como a
Revista Nures (periódico do Núcleo de Estudos Religião e Sociedade), que
dedicou dois de seus números às religiões e religiosidades nipônicas14, e a
internacionalmente conceituada Japanese Journal of Religious Studies, editada
pela Universidade de Nanzan (no Japão), cujo último tema foi voltado para o
Brasil15.
É difícil mapear a quantidade de produções relacionadas ao
assunto, já que o centenário fomentou, como sugerido, uma quantidade
significativa de trabalhos. Nunca o mercado editorial foi tão prolífico em
publicações, especialmente tendo em vista que o assunto foi pouco explorado
pelas ciências sociais brasileiras, mais voltadas para outros grupos imigrantes,
como italianos, alemães e portugueses, a despeito do crescimento que pode
ser notado nos últimos anos16. De qualquer modo, a despeito do boom
bibliográfico, muito material de significativa qualidade mistura-se a textos que

11
Ibidem.
12
ISHIKAWA, T. Sobô: uma Saga da Imigração Japonesa. Trad. Maria Fusako Tomimatsu,
Monica Setuyo Okamoto e Takao Namekata, Cotia: Ateliê Editorial, 2008.
13
HASHIMOTO, Francisco; TANNO, Janete Leiko; OKAMOTO, M. S. (orgs). Cem Anos de
Imigração Japonesa: História, Memória e Arte. São Paulo: EDUNESP, 1998.
14
Revista Nures, n. 9, mai/set. 2008.
15
Japanese Journal of Religious Studies, 35/1, 2008.
16
LESSER, J. A Negociação da Identidade Nacional. Cit., pp. 9 e 10.
7

prescindem de profundidade intelectual, de caráter descritivo e que apenas


reproduzem os lugares comuns em torno do Japão.
No Brasil, o centenário foi, em parte, um evento de cunho
econômico e político. Houve uma súbita moda nipônica que trouxe a maioria
dos clichês à tona, do exótico ao moderno, voltada diretamente ao comércio,
seja dos mangás (漫画, as histórias em quadrinho japonesas), dos animês
(palavra que deriva de animation e designa as animações nipônicas), dos
brinquedos, das roupas (estampadas com ideogramas, inclusive do lado
avesso), dos adesivos, dos filmes, das músicas (principalmente do jpop, estilo
que mistura elementos ocidentais aos orientais), das artes marciais e, entre
outras questões, até mesmo dos penteados, já que um estabelecimento em
Londrina anunciava alisamento de cabelo à japonesa. As editoras, incluindo-se
as universitárias, não ficaram atrás diante da conjuntura adequada, lançando
todo tipo de livros sobre cultura japonesa e dando margem a algum
oportunismo intelectual.
Por outro lado, o centenário permitiu a publicação de
diversas reflexões aprofundadas sobre a cultura japonesa e os assuntos a ela
relacionados, gerando um avanço nos debates acadêmicos. Intelectuais com
experiência no campo participaram ativamente na produção de conhecimento,
como Frank Usarski17, Eduardo Basto de Albuquerque18, Rafael Shoji19, Ronan
Alves Pereira20, todos especialistas em religiões nipônicas no Brasil que
publicaram artigos no último dossiê do Japanese Journal of Religious Studies;
podem-se citar, ainda, as produções de J. Lesser21 e, entre outros, R. Dezem22,
que se tornaram, nos últimos anos, autoridades no tocante às questões

17
USARSKI, F. “The Last Missionary to Leave the Temple Should Turn Off the Light”:
Sociological Remarks on the Decline of Japanese “Immigrant” Buddhism in Brazil. Japanese
Journal of Religious Studies. Cit., pp. 39 – 59.
18
ALBUQUERQUE, E. B. Intellectuals and Japanese Buddhism in Brazil. Japanese Journal of
Religious Studies. Cit., pp. 61 – 79.
19
SHOJI, R. The Failed Prophecy of Shinto Nationalism and the Rise of Japanese Brazilian
Nationalism. Japanese Journal of Religious Studies. Cit., pp. 13 – 38.
20
PEREIRA, R. A. The Transplantation of Soka Gakkai to Brazil: Building the “Closest
Organization to the Heart of Ikeda-Sensei”. Japanese Journal of Religious Studies. Cit., pp.
95 – 113.
21
LESSER, J. De Nikkei para Brasileiro e Vice-Versa: o Papel da Etnicidade na Luta Armada
de São Paulo. In: HASHIMOTO, F.; TANNO, J. L.; OKAMOTO, M. S. (orgs). Cem Anos de
Imigração Japonesa. Cit.
22
DEZEM, R. Um Exemplo Singular de Política Emigratória: Subsídios para Compreender o
Processo de Formação dos Núcleos Ijûchi de Colonização Japonesa no Estado de São Paulo.
In: HASHIMOTO, F.; TANNO, J. L.; OKAMOTO, M. S. (orgs.). Op. Cit.
8

concernentes à imigração nipônica no Brasil. É válido referenciar também a


participação desses pesquisadores em encontros científicos e palestras, o que
deu margem à divulgação de parte de suas pesquisas em anais de eventos.
Além disso, importantes catálogos com indicações de fontes para o estudo dos
imigrantes foram publicados, como, por exemplo, o “Guia de Fontes para a
História da Imigração Japonesa no Paraná”, que localiza documentos de
diversas naturezas no Estado, desde os prontuários do Departamento de
Ordem Política e Social (DEOPS) a depoimentos orais23.
Não obstante as contribuições de caráter aprofundado,
parece ter emergido, no centenário, dois discursos diferentes relacionados ao
assunto, ainda que eventualmente apresentem interpenetrações: por um lado,
a perspectiva memorialista alardeada pelos meios de comunicação de massa
no tocante aos festivais e, por outro, as produções acadêmicas, que não
influíram de modo significativo nas imagens próprias às comemorações. Não
se pode ignorar que, ao lado desses dois lugares discursivos, houve outros
enunciados, inclusive de caráter crítico às festividades, que surgiram de modo
mais ou menos marginal em alguns jornais, revelando que a memória
concernente à imigração japonesa é plural. De qualquer modo, tratarei somente
dos primeiros, já que a abordagem dos últimos seria questão para outro texto.

2. O Exótico e o Moderno
O discurso relacionado às festividades possui diversos
lugares comuns que, não obstante terem emergido no centenário, foram
longamente construídos e reproduzidos dentro e fora do país. Um dos
principais, o que constitui uma ironia, é a marginalização da memória da
imigração japonesa no Brasil em favor da reprodução de dois estereótipos
calcados, por um lado, no exotismo orientalista e, por outro, na modernidade.
Ao se observar a publicidade do Imin 100, é possível encontrar
recorrentemente expressões como “legado japonês”, “tradição” e, entre outros,
“cultura milenar”. No entanto, o conceito “tradição” e suas variantes remetem a
um conjunto de idéias e práticas que são legadas ao longo do tempo sem
sofrerem transformações históricas, o que constitui uma ilusão, já que, em

23
MARCHETTE, Tatiana Dantas (org.). Guia de Fontes para a História da Imigração
Japonesa no Paraná. Curitiba: EDUEL, Brasil Seikyo, 2008.
9

diferentes espaços e tempos, as concepções são destinadas a práticas


distintas. Os próprios aspectos da cultura pré-migratória, ao entrarem em
contato com o contexto brasileiro a partir de 1908, modificaram-se consciente
ou inconscientemente. Somente para citar um exemplo, vale referenciar o bon
odori (盆踊り), a festividade fúnebre de origem budista que, no Brasil, começou
a incorporar elementos da festa de São João e, ao mesmo tempo, da cultura
pop.
A idéia de tradição alardeada na publicidade remete à figura
do exótico, que vem sendo construída desde o século XVI, quando os primeiros
portugueses entraram em contato com o Japão e escreveram seus primeiros
relatos (isso para não falar das expedições de Marco Polo nos séculos XIII e
XIV). Depois disso, o arquipélago permaneceu fechado aos ocidentais até a
Restauração Meiji em 1868, que derrubou o shôgun (諸軍) e devolveu os
poderes ao imperador. No século XIX, tornou-se moda na Europa o chamado
Japonismo, movimento cultural que exaltava certas imagens baseadas no
exótico, como as gueixas, as vestimentas, a dança, a música, a literatura, o
teatro, entre outros aspectos24. Por isso, diversas formas artísticas ocidentais
começaram a inspirar-se no Oriente como modelo de composição, como é o
caso da poesia e a apropriação de estilos nipônicos como os haiku (俳句) ou
haikai (俳かい). Mais que do Japão “real”, falava-se de um lugar imaginário que
alimentava a fantasia ocidental. Portanto, aplicando o raciocínio do sociólogo
Edward Said, o Oriente (entendido aqui como Japão) foi uma construção do
Ocidente25. Mesmo com o conhecimento do Japão “real” a partir de 1868,
quando o país recebeu a visita de diversos representantes estrangeiros
(médicos holandeses, filósofos e militares norte-americanos, professores de
arte italianos, etc.), o estereótipo exótico permaneceu no imaginário ocidental,
o que sobrevive até hoje por intermédio de filmes (ver “Memórias de uma
Gueixa”, 2005, dirigido por Rob Marshall), fotografias e guias turísticos. O
estereótipo foi popularizado no Brasil desde antes de 1908, como sugere R.

24
DEZEM, R. Matizes do “Amarelo”: a Gênese dos Discursos sobre os Orientais no Brasil
(1878 – 1908). São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2005, pp. 127 – 129.
25
SAID, E. W. Orientalismo: o Oriente como Invenção do Ocidente. Trad. Tomás Rosa Branco,
São Paulo: Companhia das Letras, 1990, pp. 13, 16 e 17. O autor tem como objeto o Oriente
Médio, porém o raciocínio segundo o qual o Oriente enquanto representação seria uma
construção oriental é válido para o Japão.
10

Dezem em sua análise das revistas cariocas do início do século XX26, e


reconstruído nas comemorações, praticamente ignorando as especificidades
da cultura japonesa e suas transformações no Brasil, que não é algo congelado
no espaço e no tempo, mas o resultado de uma profunda dialética cultural. Não
é casual que o evento relacionado ao Imin 100 em Londrina estivesse repleto
de moças trabalhando para escolas, vestindo o tradicional quimono e dizendo
na ponta da língua ohayô gozaimasu (お早うございます, isto é, “bom dia”,
mesmo depois do almoço). Houve quem lamentasse, após a visita do príncipe-
herdeiro japonês ao Brasil, que Naruhito não tivesse vindo com trajes
tradicionais (shintoístas?), mas com terno e gravata.
Porém, após a Segunda Guerra Mundial, o Japão emergiu
enquanto potência industrial de ponta, adicionando aos lugares comuns
exóticos a visão do moderno, da produção automobilística à atual robótica.
Num dos pavilhões do Imin 100 em Londrina, todo decorado em visual high
tech, houve uma exposição de robôs e outros produtos com tecnologia de
ponta. Aparentemente, as representações modernas entrariam em choque com
o tradicionalismo exótico, porém é justamente a combinação da tradição ao
moderno, juntando o estático ao veloz, que compõe a identidade externa
construída sobre os japoneses. Após a segunda metade do século XX, essa
representação mista começou a ser reproduzida por intermédio dos meios de
comunicação de massa, afirmando que uma das principais características
nipônicas seria a capacidade de promover o desenvolvimento econômico,
voltado principalmente para a indústria de ponta, sem perder as raízes
calcadas em tradições milenares, conciliando presente e futuro. Essa noção
fica clara numa das propagandas publicadas num suplemento do Paraná
Shimbun logo após a visita do príncipe-herdeiro: um garoto nikkei segura um
robô, cercado por alguns hashi (箸, os “pauzinhos” usados para comer)
estampados com mulheres trajando quimonos. As representações
propriamente iconográficas, o robô remetendo ao moderno e os hashi
indicando o tradicional, são reforçadas por uma mensagem escrita: “Pode não
aparentar, mas Kevin Hamasaki tem 100 anos.”27

26
DEZEM, R. Matizes do “Amarelo”. Cit., pp. 239 – 288.
27
Paraná Shimbun. Londrina, 28 jun. 2008, n. 1697 (suplemento especial, p. 7).
11

É preciso cautela ao analisar tais representações. Embora


se trate de um conjunto de imagens atribuídas ao Japão, os próprios japoneses
ostentam essa identidade desde os anos posteriores à Restauração Meiji. O
país passou por um rápido processo de ocidentalização, como salientado,
apropriando estilos de vestuário, arquitetura, filosofia, pintura e estratégias de
guerra próprias ao Ocidente, sem perder, contudo, os caracteres próprios à
cultura nipônica28. Isso não quer dizer, entretanto, que a atribuição das visões
exótica/moderna dê conta de sua totalidade, o que significaria um
generalização abusiva (algo como dizer que o Brasil é inteiramente perpassado
pela Floresta Amazônica, ainda que os brasileiros possuam um ethos
fundamentado na natureza exuberante). Além disso, ressaltando essa
perspectiva cristalizada no imaginário ocidental, o discurso relacionado aos
eventos do Imin 100 perdeu de foco justamente o que caracteriza o centenário:
o imigrante e o seu papel em território brasileiro. Pouco se fala sobre o mesmo,
com exceção de clichês fossilizados em torno de 1908, o Kasato Maru e a
labuta intensa. O (pre)conceito exótico não ajuda muito a compreender os
diferentes aspectos concernentes à imigração japonesa, isso para não falar dos
robôs e de crianças-gênio.

3. Harmonia Brasil/Japão
O segundo lugar comum relacionado aos discursos
comemorativos que gostaria de chamar a atenção diz respeito à harmonia
entre Brasil e Japão que sempre teria existido. Na publicidade, a ideia tornou-
se recorrente, afirmando a celebração da “união de povos e culturas”, que os
“[...] os primeiros imigrantes [...] logo foram acolhidos como irmãos [...]”,
salientando a “[...] cultura milenar aproximada por um século de amizade” e,
entre outros exemplos, os “100 anos de integração”29. A propósito, na rádio
nikkei durante os eventos do Imin 100 em Londrina, o slogan era “Brasil e
Japão, 100 anos de paixão”. O próprio R. Kodama afirmou, em entrevista
concedida a D. Ikeda, que os japoneses foram “[...] vistos no começo como
uma espécie rara de gente, mas acolhidos sem discriminação [...]” (mesmo
tendo sido proibido de dirigir durante a Segunda Guerra Mundial, lembrando

28
DEZEM, R. Matizes do “Amarelo”. Cit., p. 124.
29
Folha de Londrina. Londrina, 18 jun. 2008 (suplemento especial, pp. 8, 15, 37 e 40).
12

que Kodama foi o primeiro motorista nipônico no Brasil)30. É possível que a


ideia de harmonia entre os dois países e, por conseguinte, japoneses e
brasileiros, aproprie elementos de um discurso maior existente em território
brasileiro concernente à “democracia racial”, sugerida pelo sociólogo Gilberto
Freyre31. A concepção, bastante questionada nos últimos anos pelas ciências
sociais brasileiras, tornou-se moeda comum na economia simbólica nacional, já
que foi apropriada por diversos autores em diferentes regiões do país para
inumeráveis fins, construindo memórias isentas de conflitos.

4. Mito de origem
Outro lugar comum diz respeito à afirmação de 1908 como
período de ruptura que haveria iniciado as relações entre Brasil e Japão. A
periodização refere-se a um marco para a caracterização do próprio centenário
e, de fato, possui uma importância significativa, já que marca o evento no qual
as primeiras famílias japonesas chegaram ao porto de Santos. Em boa parte da
publicidade e dos livros memorialistas, a vinda do navio Kasato Maru tornou-se
mais que um episódio, mas um mito de origem para a história da imigração
nipônica em terras brasileiras. Porém, segundo o historiador francês Marc
Bloch, todos os recortes temporais são “[...] sempre, num determinado sentido,
arbitrários [...]”32, isto é, não são fenômenos inscritos na natureza, mas criações
humanas (como é de fato a idéia de tempo). Assim, na medida do possível, é
necessário problematizar as periodizações e investigar se, antes de
constituírem um corte, carregam também permanências de concepções e
práticas anteriores, e 1908 não é exceção, como demonstrarei adiante a partir
de algumas análises historiográficas.
A afirmação acrítica de 1908 permite e elaboração da
memória da imigração japonesa como uma narrativa linear e destituída de
maiores rupturas, possuindo um início, meio e fim. Como afirmado, a vinda do
Kasato Maru representaria um mito de origem no qual diversas famílias teriam,
numa trajetória épica, atravessado cinquenta e dois dias de viagem numa

30
IKEDA, D.; KODAMA, R. Op. Cit., p. 139.
31
FREYRE, G. Casa-Grande & Senzala. 41. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 46. Somente
para citar um exemplo de autor que aplica a democracia racial em âmbito regional (no caso, a
história do Paraná), MARTINS, Wilson. Um Brasil Diferente: Ensaio sobre o Fenômeno de
Aculturação no Paraná. São Paulo: T.A. Queiroz, 1989.
32
BLOCH, M. Introdução à História. Lisboa: Publicações Europa-América, 1997, p. 183.
13

embarcação, comendo ostras e cantando as esperanças de enriquecimento e


retorno à terra natal. No Brasil, os japoneses teriam sido acolhidos como
irmãos (democracia racial), trabalhado duro na terra, ascendido socialmente,
migrado para as cidades e incorporados totalmente à sociedade brasileira. Sua
trajetória assemelhar-se-ia à do pioneiro (palavra que deriva do pioneer norte-
americano desbravador do far west) ou do bandeirante, outra figura cara ao
imaginário nacional, que teria aberto caminho em meio ao sertão inculto.
Questionarei essa linearidade, o que não quer dizer negar os méritos dos
primeiros imigrantes, mas de problematizar a história inserindo-lhe
contradições.

5. Debates Acadêmicos
A história da imigração japonesa não é uma narrativa linear
e isenta de conflitos. De acordo com a historiografia recente, já no século XIX a
intelectualidade brasileira, apegada às idéias provenientes da Europa,
sobretudo da França, havia apropriado as teorias racistas elaboradas pelo
francês Arthur Gobineau, segundo o qual os seres humanos poderiam ser
divididos, basicamente, em três tipos hierárquicos: os negros, que possuiriam
um nível baixo de cultura e intelectualidade; os amarelos (dentre eles os
japoneses e os chineses, considerados de modo genérico), situados num
patamar intermediário e, por fim, os caucasianos, que estariam no ápice da
civilização33. Percebe-se que não havia separação entre os conceitos de raça,
ligado aos caracteres propriamente físicos, e cultura, envolvendo língua,
religião, costumes, política, artes e, entre outros aspectos, a moral (essa
divisão seria realizada posteriormente pelo antropólogo Franz Boas e, no Brasil,
por G. Freyre, que foi seu aluno na Universidade de Colúmbia34). Portanto,
segundo o pensamento de época, certas raças gerariam determinados tipos
culturais, sendo no determinismo raça/cultura que reside a essência de teoria

33
DEZEM, R. Matizes do “Amarelo”. Cit., pp. 206 e 207.
34
FREYRE, G. Op. Cit., pp. 44 e 45 e ORTIZ, Renato. Memória Coletiva e Sincretismo
Científico: as Teorias Raciais do Século XIX. In: Cultura Brasileira e Identidade Nacional. 2.
ed. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 19. Segundo Ortiz, não se pode falar de “bricolagem” das
ideias européias pela intelectualidade brasileira, já que se tratava, antes, de uma apropriação
(o que pressupõe seleção, recorte e ressignificação) que aplicava as concepções estrangeiras
ao contexto local. Além disso, entre a produção do ideário racista e as apropriações brasileiras,
haveria um intervalo, havendo algumas concepções de Gobineau sido criticadas na própria
França. Ibidem, pp. 29 e 30.
14

racista, mesmo que os autores eventualmente troquem os pólos da hierarquia


(por exemplo, um dos pioneiros no estudo da história do Paraná, Romário
Martins, afirma que o tipo racial melhorado seria o mulato pelo simples fato de
possuir valores semelhantes aos dos povos caucasianos35). A miscigenação
entre diferentes levaria à degradação36, embora os teóricos racistas nem
sempre estivessem em consenso a esse respeito.
Baseados nesse ideário, os intelectuais brasileiros aplicaram
o raciocínio aos japoneses, tendo em vista, parcialmente, a rápida e fracassada
experiência com imigrantes chineses no século XIX: na década de 1810, foi
encetado um projeto de plantio experimental de chá em decorrência da crise da
cana-de-açúcar no Nordeste, de modo que foram trazidos chineses ao Rio de
Janeiro para o cultivo da planta (o historiador norte-americano Warren Dean
fala de trinta indivíduos, ao passo que Lesser sugere até quinhentos, uma
diferença nada razoável37). Não obstante a decadência açucareira, não houve
maiores interesses no chá, acabando os imigrantes por dispersar-se em
território brasileiro.
O segundo momento ocorreu aproximadamente seis
décadas depois, conjuntura na qual a cafeicultura paulista encontrava-se em
crescimento devido à expansão das ferrovias em direção ao interior do Império,
permitindo estender os cafezais a novas áreas, possibilitando a conexão destas
aos portos38. Entretanto, devido à diminuição da quantidade de escravos desde
a abolição do tráfico em 1850, aos custos de trazer imigrantes europeus e à
própria expansão da cafeicultura, houve um significativo problema relacionado
à escassez de mão-de-obra, um dos principais itens discutidos no Congresso
Agrícola de 1878. A posição dos participantes foi polarizada: os pró-chineses
afirmavam as vantagens de trazer trabalhadores asiáticos para as lavouras,
como os baixos custos e a docilidade (em contraposição, por exemplo, aos
italianos) e, por outro lado, os anti-chineses utilizavam boa parte das teorias
racistas correntes e afirmavam que os chineses seriam degenerados física e
moralmente e que, acrescentando-se ao elemento negro, iriam tornar-se um
35
MARTINS, R. História do Paraná. Curitiba: Travessa Editores, 1995, pp. 155 a 158.
36
DEZEM, R. Matizes do “Amarelo”. Cit., p. 210.
37
DEAN, W. A Ferro e Fogo: a História e a Devastação da Mata Atlântica Brasileira. Trad. Cid
Knipel Moreira, São Paulo: Companhia das Letras, 1996 e LESSER, J. A Negociação da
Identidade Nacional. Cit., p. 40.
38
DEAN, W. Op. Cit., pp. 220, 224 – 227.
15

perigo para a “raça” brasileira, que seria degenerada por intermédio da


miscigenação. Os preconceitos foram representados na popular Revista
Ilustrada pela pena de Ângelo Agostini, que caricaturou os chineses como
ladrões de galinha (o estereótipo mais popular), moralmente degenerados,
suicidas, intelectualmente inferiores, fisicamente fracos, preguiçosos, sujos,
etc.39 Por fim, na década de 1880, D. Pedro II negou a entrada desses
imigrantes no Brasil, alegando que a sua introdução agravaria o problema
étnico brasileiro40.
Embora a imigração chinesa tenha fracassado em termos
numéricos, os preconceitos criados sobre o grupo étnico foram, como sugerido,
parcialmente utilizados no discurso antinipônico. Portanto, as representações
em torno do japonês no Brasil estavam sendo construídas desde, pelo menos,
1878, o que constitui o centro da tese proposta pelo historiador R. Dezem em
“Matizes do ‘Amarelo’”, permitindo recuar o estudo da imigração japonesa para
antes de 1908 (por isso, a sua periodização abrange 1878 – 1908). Nas
primeiras décadas do século XX, observa-se a utilização desses lugares
comuns pela intelectualidade brasileira com o objetivo de sustentar o discurso
contra os imigrantes japoneses, que seriam física e moralmente inferiores. Em
1908, ano de chegada do Kasato Maru, o jornal curitibano Diário da Tarde
expunha argumento que utilizava os principais tópicos do ideário racista
construído por Gobineau. Segundo o periódico, a miscigenação com o
brasileiro geraria

“[...] na nossa raça as características deles [japoneses] que, com


franqueza, não são grandemente apreciáveis. [...] Nós, com nosso
tipo nacional já bastante minguado, que híbrido iremos produzir
cruzando-o com raça fisicamente ridícula? A saúde, a beleza e a
41
força não são apenas ornamentos dispensáveis [...]”

A questão da miscigenação geradora de degradação racial encontra-se


explícita no artigo, cujo discurso não constitui exceção na história do Brasil,

39
DEZEM, R. Matizes do “Amarelo”. Cit., pp. 66 – 120.
40
Ibidem, p. 102 e LESSER, J. A Negociação da Identidade Nacional. Cit., p. 61.
41
CELESTINO Jr. apud SETO, Claudio; UYEDA, Maria Helena. Ayumi: Caminhos Percorridos.
Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2002, pp. 47 e 48.
16

sendo reconstruído não apenas por intelectuais, como também por figuras
ligadas ao Estado.
No entanto, como frisa Dezem, outras imagens foram
acrescentadas àquelas construídas sobre os chineses. A partir de 1868, além
do processo de ocidentalização, o Japão iniciou sua própria corrida imperialista,
buscando adequar seus conhecimentos e tecnologias bélicas àquelas
existentes no Ocidente, convidando militares de outros países, como Estados
Unidos e Inglaterra, para treinarem os exércitos nipônicos. Além disso,
armamentos foram comprados em larga escala, como o canhão Armstrong e
metralhadoras como a gatling gun, que foram decisivos, por exemplo, na
guerra civil que alguns han (藩, conceito traduzido imprecisa e anatopicamente
como “feudo”), como Satsuma e Chôshu, empreenderam contra o Shogunato.
Em meio século, os japoneses dominaram a Coréia, a China e, em 1905,
derrotaram a Rússia na Guerra Russo-Japonesa, marcando o Japão como
potência militar.
Nesse contexto, foi criado o medo do “perigo amarelo”,
esquizofrenia social elaborada nos Estados Unidos (que recebia imigrantes
japoneses desde 188442), onde se desenvolveu boa parte dos discursos
antinipônicos43 (no período da Segunda Guerra, essa visão seria divulgada,
inclusive, em capas de revistas em quadrinhos do Capitão América, o
representante por excelência do soldado norte-americano). No Brasil, os
tradicionais estereótipos foram associados à ameaça militar, compondo um
discurso racista e militarista contra o imigrante japonês que, a partir de então,
seria uma ameaça no interior do próprio país não apenas como concorrente ao
trabalhador nacional, mas enquanto espião de uma potência imperialista. Os
principais caracteres da visão podem ser encontrados nas palavras do Ministro
da Justiça, Francisco de Campos, durante o Estado Novo:

42
Ministry of Foreign Affairs. Overseas Migration Statistics. Tokyo, 1964. Apud LEÃO,
Valdemar Carneiro. A Crise da Imigração Japonesa no Brasil (1930 – 1934): Contornos
Diplomáticos. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 1989, p. 191.
43
Sobre o discurso antinipônico nos EUA, DEZEM, R. Matizes do “Amarelo”. Cit., pp. 179,
180, 182, 183, 187 e 188. Acerca da construção do “perigo amarelo”, ibidem, pp. 149 e 150 e
SAKURAI, Célia. Imigração Japonesa para o Brasil: um Exemplo de Imigração Tutelada. In:
FAUSTO, Boris (org.). Fazer a América: a Imigração em Massa para a América Latina. São
Paulo: EDUSP, 2000, p. 150.
17

“Nem cinco, nem dez, nem vinte, nem cinqüenta anos serão
suficientes para uma verdadeira assimilação dos japoneses, que
praticamente devem considerar-se inassimiláveis. Eles pertencem
a uma raça e a uma religião absolutamente diversas; falam uma
língua irredutível aos idiomas ocidentais; possuem uma cultura de
baixo nível, que não incorporou, da cultura ocidental, senão os
conhecimentos indispensáveis à realização dos seus intuitos
militaristas e materialistas; seu padrão de vida desprezível
representa uma concorrência brutal com o trabalhador do país; seu
egoísmo, sua má fé, seu caráter refratário, fazem deles um enorme
quisto étnico, econômico e cultural localizado na mais rica das
regiões do Brasil. Há características que nenhum esforço no
sentido da assimilação conseguirá remover. Ninguém logrará, com
efeito, mudar a cor e a face do japonês, nem a sua concepção de
44
vida, nem o seu materialismo.”

Entretanto, o discurso antinipônico não permaneceu apenas


teórico, uma vez que alcançou a forma de lei durante o primeiro governo do
presidente Getúlio Vargas, então pressionado pelos grupos nativistas que,
influenciados pelas teorias racistas em questão, posicionavam-se contra a
entrada de estrangeiros como trabalhadores no país. Na Constituição de 1934
(substituída em 1937), a primeira após a Revolução de 1930, uma emenda
reduzia a 2% a entrada de imigrantes de cada etnia no país. A entrada de
japoneses que, em 1934, havia sido de 21.930 indivíduos, caiu para 9.611 em
1935, uma queda de mais de 50% (em 1936, seriam apenas 3.300 pessoas)45.
A conjuntura das décadas de 1930 e 1940 foi difícil para os
imigrantes japoneses, já que, para além da lei dos 2%, o governo Vargas (que,
em 1937, assumiu postura declaradamente autoritária por intermédio do Estado
Novo) instaurou uma série de medidas restringindo a liberdade dos imigrantes
no país, não somente japoneses, mas também alemães e italianos. Em 1939,
foi proibido falar qualquer língua estrangeira em esfera pública e privada46 (o
que constituía uma impossibilidade prática, principalmente para os nikkeis); em
1932, o ensino do japonês foi proibido aos menores de dez anos, em 1934 aos

44
CAMPOS apud LENHARO, Alcir. Sacralização da Política. São Paulo: Papirus, 1986, p.
132.
45
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Anuário Estatístico do Brasil, 1951..
Apud LEÃO, V. Op. Cit., p. 31.
46
LESSER, J. A Negociação da Identidade Nacional. Cit., p. 233.
18

de catorze47 e, por fim, em 1941 todas as nihon gakkô (日本学校, escolas


ensinando cultura japonesa) foram tornadas ilegais; por fim, entre outros
aspectos, a Constituição de 1934 levou ao fechamento dos jornais e demais
periódicos em língua estrangeira, os principais meios informações disponíveis
aos imigrantes48. De qualquer modo, não obstante as restrições legais
impostas pelo estado, na prática continuou-se a falar japonês, as nihon gakkô
permaneceram, mesmo aquelas de fundo de quintal (como, de fato, eram em
sua maioria) e houve certa circulação de textos.
Porém, em 1939 iniciou-se a Segunda Guerra Mundial. A
princípio, o Brasil permaneceu hesitante e manteve política de neutralidade.
Contudo, em 1941 alguns navios foram afundados na costa brasileira e,
mesmo tendo mais afinidades com o perfil totalitário dos países do Eixo, o
governo aliou-se à Inglaterra, à França e aos Estados Unidos por razões
ligadas à dívida externa para com estas nações (os investidores britânicos
foram os principais financiadores na construção de ferrovias e redes
telegráficas no século XIX e continuavam a exercer influência financeira no
século XX). Além de enviar algumas tropas para combater na Itália, incluindo-
se soldados nikkeis como Raul Kodama (filho de Ryoichi Kodama49), o conflito
teve reflexos internos imediatos: os imigrantes e descendentes de italianos,
alemães e japoneses foram considerados “súditos do Eixo” e,
conseqüentemente, inimigos nas próprias fronteiras da nação. No dizer de
Ryoichi Kodama, “[...] Fomos considerados inimigos dos brasileiros que
moravam na ‘casa’ deles.”50 As determinações relacionadas à língua, às

47
KUMASAKA, Y. & SAITO, Hiroshi. Kachigumi: uma Delusão Coletiva Entre os Japoneses e
seus Descendentes no Brasil. In: SAITO, H. & MAEYAMA, Takashi (orgs.). Assimilação e
Integração dos Japoneses no Brasil. Petrópolis: Vozes, São Paulo: EDUSP, 1973, p. 451.
48
LESSER, J. A Negociação da Identidade Nacional. Cit., pp. 218 e 235.
49
IKEDA, D.; KOKAMA, R. Op. Cit., pp. 107 – 110.
50
Ibidem, p. 103. O “nós” e o “eles” subentendidos no depoimento de Ryoichi sugere uma
complexa noção de identidade – lembrando que, para Lesser, esta seria algo flexível. LESSER,
J. A Negociação da Identidade Nacional. Cit., p. 27. Em toda a transcrição do diálogo com
Ikeda, o imigrante afirma que o Brasil tornou-se sua segunda pátria, já que, diferentemente da
maioria dos japoneses que pretendiam retornar para o Japão, Kodama nunca teria pensado
nisso. Por isso, educou seus filhos como brasileiros, sem fazer questão de manter a identidade
pré-migratória. Ele próprio adequou-se aos hábitos nacionais, adotando uma postura
nipobrasileira. Contudo, em sua fala sobre o período da guerra, a separação entre o “nós”
(nipônicos) e o “eles” (brasileiros) torna-se clara. Não se trata de saber qual seria a “verdadeira”
identidade assumida por Kodama, mas de conceber que a imagem que fazia de si próprio
variava segundo as situações concretas. A flexibilidade identitária é a principal tese de Lesser
em “A Identidade Nacional”. O historiador explorou, em palestra recente, o raciocínio aplicando-
o à figura de Shizuo Ozawa, mais conhecido como Mario Japa, um dos líderes da Vanguarda
19

escolas e aos periódicos acirraram-se, tornando-se casos de polícia,


destacando-se a atuação do DEOPS, um dos principais instrumentos
repressores do Estado Novo. Marcia Yumi Takeuchi, historiadora que realizou
sistemático levantamento dos prontuários do DEOPS em São Paulo
relacionados aos nipônicos, indica que, dos 154 prontuários levantados, 16
relacionavam-se a japoneses que haviam sido detidos por falarem a língua
materna em público51. Diversas escolas clandestinas foram fechadas
violentamente por intermédio da ação policial, sendo os materiais confiscados e
transformados em verdadeiros dossiês, como demonstram os arquivos do
DEOPS-PR existentes no Arquivo Público de Curitiba52. Outras medidas
repressivas foram tomadas, adicionando-se às anteriores: para o deslocamento
espacial dos “súditos do Eixo”, era necessária a solicitação de salvo-condutos
junto à delegacia de polícia municipal e a autorização (ou rejeição) por parte da
instituição da região de destino53 (o Paraná foi um dos principais estados que
rejeitaram a vinda de nipônicos no período, utilizando os discursos racistas e
reproduzindo a esquizofrenia social do “perigo amarelo”54); os imigrantes foram
proibidos de dirigir, mesmo quando fossem proprietários de veículos55;
aparelhos de rádio foram confiscados56, alegando-se que poderiam transmitir
informações concernentes à guerra; os nikkeis não poderiam residir no litoral,
sendo transportados da noite para as colônias experimentais do governo; não
se podiam fazer reuniões de três ou mais pessoas, o que poderia acarretar em
conspirações e motins, etc. Como forma de garantir a eficácia das políticas de
controle, fomentava-se a delação, como demonstra Takeuchi, podendo todos
agirem como os olhos do governo, inspirando uma atmosfera de conspiração e
desconfiança mútua57.

Revolucionária Popular nas décadas de 1960 e 70. LESSER, J. Como Shizuo Ozawa Tornou-
se Mario Japa? Londrina, 26/06/2008.
51
TAKEUCHI, M. Y. O Perigo Amarelo em Tempos de Guerra (1939 – 1945). São Paulo:
Arquivo do Estado, Imprensa Oficial do Estado, 2002, pp. 13 e 14.
52
Ver, entre outros, Departamento de Ordem Política e Social do Paraná (DEOPS-PR).
Sociedade dos Jovens Japoneses. Pront 2191. DEOPS-PR, 1944 – 1946.
53
TAKEUCHI, M. Y. Op. Cit., pp. 27 e 32; LESSER, J. A Negociação da Identidade Nacional.
Cit., p. 237 e KUMASAKA, Y.; SAITO, H. Op. Cit., p. 452.
54
TAKEUCHI, M. Y. Op. Cit., pp. 117, 118 e 150.
55
Ibidem, p. 32.
56
Ibidem, p. 30.
57
Ibidem, p. 28.
20

A situação somente foi parcialmente normalizada com o fim


do conflito internacional em 1945. As escolas foram reabertas, o uso de outros
idiomas em esfera pública e privada foi permitido, as publicações voltaram ao
seu ritmo normal, entre outros aspectos. Isso se deve, além das razões
pertinentes ao cenário mundial, ao fim do Estado Novo e à relativa abertura
democrática da sociedade. A segunda metade do século XX representou um
período de mudanças para os imigrantes japoneses e descendentes no Brasil,
uma vez que parte deles ascendeu, segundo o sociólogo T. Maeyama, às
classes médias, migrou para as cidades e passou a ingressar no ensino
superior, em instituições como a Universidade de São Paulo (USP)58. Certos
traços da cultura pré-migratória puderam manifestar-se publicamente, como as
religiões (por exemplo, as Novas Religiões Japonesas, como a Soka Gakkai e
a Igreja Messiânica Mundial59) e os festejos, anteriormente restritos seja pela
força do discurso antinipônico, seja pela recomendação das próprias
companhias de emigração no sentido de não realizar proselitismo religioso no
Brasil, imaginado como um país católico60.
Todavia, pode-se dizer que a situação foi apenas
“parcialmente” normalizada devido à crise que ocorreu no interior da
comunidade nikkei após o final da guerra. As informações durante o conflito
internacional não encontravam repercussão imediata entre os japoneses e
descendentes, muitos situados em colônias rurais nas quais os meios de
comunicação, principalmente os rádios, não eram tão difundidos. Em 1946,
Hirohito, o imperador Showa (昭和), anunciou por intermédio de transmissão
radiofônica a rendição japonesa diante das ofensivas norte-americanas, que
culminaram nas bombas atômicas sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki
em 1945. Além disso, o soberano afirmou não ser descendente da divindade
solar, Amaterasu-o-mi-kami, lembrando que, segundo a mitologia nipônica
expressa pelo Shintoísmo (baseada no Kojiki, no Nihon Shoki ou Nihongi e no
Man’yôshu, os três livros mais antigos do Japão), a família real seria

58
MAEYAMA, T. Religião, Parentesco e as Classes Médias dos Japoneses no Brasil Urbano.
In: SAITO, H.; MAEYAMA, T. Op. Cit., p. 244.
59
Idem. O Antepassado, o Imperador e o Imigrante: Religião e Identificação de Grupo dos
Japoneses no Brasil Rural (1908 – 1950). In: SAITO, H.; MAEYAMA, T. Op. Cit., pp. 414 e 415.
60
LESSER, J. Op. Cit., pp. 188 e HANDA, T. O Imigrante Japonês: História de sua Vida no
Brasil. São Paulo: T.A. Queiroz Editor, Centro de Estudos Nipo-Brasileiros, 1987, p. 726.
21

descendente dos primeiros deuses e, portanto, o tennô seria um ikigami (生き


神), isto é, um deus vivo61.
A devoção ao imperador era, pelo menos até os anos 1950,
um dos pilares da identidade nipônica, seja no Japão ou entre os imigrantes no
Brasil. Embora a religião não pudesse ser praticada publicamente, a
religiosidade ligada à devoção imperial manteve-se presente no interior das
colônias japonesas. Não é casual que os nipônicos investiram tanto em escolas,
inclusive depois de tornarem-se ilegais após 1941: mesmo situadas
eventualmente em “fundos de quintais”, as nihon gakkô não eram apenas
locais que ensinavam a língua japonesa (importante elemento identitário e que
conservou algo de um Japão perdido), mas também os valores da vida
cotidiana e ritualizavam periodicamente a fidelidade religiosa ao soberano62.
Era costume os sensei (先生, palavra traduzida como professor) escreverem no
quadro o calendário imperial. Diante de um altar com as imagens do imperador
e da imperatriz, ornamentado com o símbolo imperial do Japão, era lido o
kyôiku chokugo (教育勅語, mensagem referente à educação das crianças) e
prestada reverência aos pais da nação63. Nos aniversários do tennô,
realizavam-se festejos com gincanas, os chamados undôkai (運動会)64.
Portanto, o imperador representava um alicerce de identidade para os
imigrantes japoneses no Brasil.
Como sugere Maeyama, a derrota japonesa na Segunda
Guerra Mundial resultou no “[...] colapso do fundamento lógico e simbólico da
integração de identificação de grupo [...]”65 A perda súbita da identidade dividiu
os nikkeis em dois grupos: os kachigumi (勝ち組み ou facção dos vitoristas) e
os makegumi (負け組み ou facção dos derrotistas). Os primeiros, a despeito da
rendição transmitida em 1946, afirmavam a qualquer custo a vitória japonesa
no conflito internacional e que as informações então recebidas teriam sido
forjadas pela Aliança para desmoralizar os nipônicos. Os “derrotistas”,
61
VARLEY, H. P. The Introduction of Buddhism. In: Japanese Culture. Tokyo: Charles E.
Tuttle, 1986, p. 18 e EBERSOLE, Gary L. The Mythology of Death and the Niiname-sai. In:
Ritual Poetry and the Politics of Death in Early Japan. New Jersey: Princenton University
Press, 1989, pp. 107 e 108.
62
MAEYAMA, T. O Antepassado, o Imperador e o Imigrante. Cit., p. 436.
63
Ibidem, p. 436.
64
Ibidem, p. 439.
65
Ibidem, p. 437. Ver também KUMASAKA, Y. & SAITO, H. Op. Cit., p. 455.
22

expressão pejorativa cunhada por aqueles, referiam-se aos indivíduos que


aceitavam a derrota, considerados traidores da nação. Tratava-se de
posicionamento comum na época, como sugerido pelo drama produzido pela
emissora nipônica NHK em 2006, Haru to Natsu (“Haru e Natsu”). No entanto,
alguns indivíduos de orientação vitorista formaram grupos organizados com o
objetivo de promover a ilusão da vitória japonesa, como o Akebono e o Shindô
Renmei, que se tornou célebre publicamente por intermédio do romance de
Fernando Moraes, “Corações Sujos”.66
O Shindô Renmei era um grupo que contava com membros
espalhados por dezenas de cidades paulistas, paranaenses (como Uraí,
Londrina e Rolândia) e mesmo mineiras, segundo mapa apreendido pela
polícia em uma de suas sedes67. Segundo Kumasaka e Saito, tratavam-se de
cem mil adeptos espalhados por oitenta filiais68. Porém, sua principal região de
atuação foi o Estado de São Paulo, tendo em vista, especialmente, a cidade de
Bastos. Para fundamentar a vitória japonesa na guerra, o Shindô Renmei
falsificava dinheiro, realizava transmissões falsas do governo imperial, coletava
capital financeiro para a suposta vinda de autoridades nipônicas ao Brasil,
comercializava condecorações falsificadas, entre outros aspectos69. Havia
subdivisões grupais responsáveis pelos atentados, como o tokkotai e o keshitai,
praticados contra os derrotistas e as autoridades públicas brasileiras70. As
ameaças eram divulgadas publicamente fazendo uso de avisos colocados à
frente da propriedade da vítima, incluindo-se a elaboração precoce dos ihai (位
牌), as tabuletas memoriais de caráter budista destinadas aos ancestrais, que
Lesser analisa erroneamente como objetos destinados a “[...] lançar feitiços
maus sobre os ‘derrotistas’”71 Certamente, o ihai é destinado aos mortos, sendo
inserido no butsudan (仏壇, o relicário doméstico relativo ao Budismo japonês)
e reverenciado diariamente por intermédio de oferendas (osonaemono, お供え
物) como água, saquê e frutas, significando que o indivíduo converteu-se em

66
MORAES, F. Corações Sujos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
67
VIEIRA, Francisca Isabel Schurig. O Japonês na Frente de Expansão Paulista. São Paulo:
Pioneira, EDUSP, 1973, p. 256.
68
KUMASAKA, Y. & SAITO, H. Op. Cit., p. 457.
69
LESSER, J. A Negociação da Identidade Nacional. Cit., p. 243.
70
Ibidem, p. 244.
71
Ibidem, p. 243.
23

ancestral (senzo, 先祖) após os quarenta e nove dias referentes ao luto72. A


utilização feita pelo Shindô Renmei do objeto é original73 (nesse ponto Lesser
está certo), mas não se trata de lançar feitiços maus, e sim de antecipar o aviso
fúnebre sobre a morte próxima.
Houve um clima de hostilidades envolvendo o Shindô
Renmei, os derrotistas e a polícia paulista. Entretanto, após a ação enérgica
das autoridades públicas, seja pela repressão direta (com batidas sobre as
sedes do grupo), seja por intermédio de negociações com os líderes dos
vitoristas, o Shindô Renmei acabou por desaparecer, embora algumas
concepções próprias ao kachigumi tenham sobrevivido fragmentariamente.
Como ressalta Lesser, tratou-se da rejeição violenta da identidade brasileira,
uma das modalidades de compreensão de si enquanto grupo social74, após um
período em que a principal base do “ser japonês”, a devoção imperial que
fundamentou atitudes extremas como os kamikaze (神風) no Japão, havia
desaparecido subitamente com a derrota na guerra e o reconhecimento da
não-divindade do imperador, gerando, no dizer de Kumasaka e Saito, uma
“delusão coletiva”75.

5. Como foi possível observar, os discursos que emergiram


das festividades relacionadas ao Imin 100 possuem diversos lugares comuns,
dentre eles: a reconstrução de um estereótipo cristalizado sobre o Japão,
baseado no tradicionalismo exótico; a divulgação do imaginário moderno
relacionado à tecnologia de ponta, voltado principalmente para a robótica, que
se conjuga à tradição e reconstrói a visão do país que cria o futuro sobre as
raízes milenares (ambas as perspectivas ressaltam os pontos consagrados e
silenciam parcialmente sobre a imigração e suas contribuições no Brasil); a
afirmação de que as relações entre brasileiros e japoneses sempre teriam sido
harmoniosas, reelaborando a concepções da democracia racial e, entre outros
aspectos que não puderam ser aqui abordados, a ênfase em 1908 como um
período de ruptura. Procurei demonstrar que tais lugares comuns perdem de

72
FUJII, Masao. Maintenance and Change in Japanese Traditional Funerals and Death-Related
Behavior. Japanese Journal of Religious Studies, 10/1, 1983, pp. 40 e 45.
73
LESSER, J. A Negociação da Identidade Nacional. Cit., p. 243.
74
Ibidem, p. 22.
75
KUMASAKA, Y. & SAITO, H. Op. Cit., p. 449.
24

vista os debates acadêmicos que têm sido realizados nas últimas décadas, tais
como: a historicidade das representações em torno do exotismo; a
compreensão dos discursos sobre os japoneses como anteriores a 1908,
remontando, pelo menos, aos debates sobre os chineses a partir de 1878; o
processo de elaboração do pensamento antinipônico e seus principais tópicos,
relacionando os argumentos racistas às concepções militaristas; os efeitos
desses enunciados sobre os imigrantes durante a Segunda Guerra Mundial e,
por fim, a crise identitária decorrente do pós-guerra com o vitorismo
representado pelo Shindô Renmei. Apesar do centenário ter gerado uma
variedade de produções ligadas à cultura japonesa, os discursos oficiais sobre
a imigração permanecem superficiais e distanciados dos debates acadêmicos
que, ao longo das últimas décadas, têm sugerido que a história da imigração,
para além de algo linear e homogêneo, é um objeto perpassado de conflitos e
contradições.

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