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Roque Santeiro - O Filme - Segundo Tratamento

EXT. ASA BRANCA / CIDADE SANTA - DAY


Vista do alto, a recém-construída Cidade Santa - espécie de
Disneylândia em tamanho bem menor de Asa Branca - ainda está
deserta àquela hora... Exceto pela fila de carros que chega
e estaciona. Deles descem PORCINA, SINHOZINHO MALTA e o
Prefeito FLORINDO ABELHA, junto com uma legião de
fotógrafos. A comitiva sai caminhando, sempre vista do alto,
enquanto já se ouve a voz de PORCINA.
PORCINA
E foi então que, naquele dia, tava
eu na beira do rio lavando minhas
roupas de viúva...
PORCINA pára...
E numa mudança de PV, vê-se pela primeira vez o seu rosto.
Os fotógrafos fazem a festa em torno de PORCINA enquanto
ela, de forma bem canastrona, continua a contar sua
história. Os repórteres anotam ou gravam, todos concentrados
nela.
FLORINDO e SINHOZINHO observam à parte.
PORCINA (CONTINUACAO)
...Quando de repente meu ex-
marido, o falecido Roque Santeiro
me apareceu, caminhando sobre as
águas...
Leva a mão ao seio.
PORCINA (CONTINUACAO)
Com uma luz vermelha e
brilhante, a lhe sair do peito...
FLORINDO - (BAIXO, PARA SINHOZINHO)
Ôpa, essa luz daí é nova!
PORCINA
E me disse: sobre essa pedra
erguerás uma catedral.
Os repórteres reagem, espantados, até os fotógrafos ficam
paralisados.
PORCINA se dá conta de que foi longe demais e então
conserta.
PORCINA (CONTINUACAO)
Quer dizer: uma capela!

EXT. CIDADE SANTA / LAGO ARTIFICIAL - DAY


Os mesmos de antes.
Porcina aponta a igreja cenográfica, em cujo frontispício se
vê a pintura naïf de um homem, usando uma bata azul e
caminhando sobre as águas.
PORCINA
E foi assim que procurei as
autoridades. O (aponta) senador
Sinhozinho Malta me deu todo apoio
e conseguiu as verbas em
Brasília... E nós mandamos
construir essa capelinha, e em
torno dela uma cidade santa...
Ela aponta o shopping recém-acabado: as lojas estão abrindo,
e diante de uma delas ZÉ DAS MEDALHAS e LULU acenam para os
fotógrafos.
PORCINA (CONTINUACAO)
Com direito a hotel, shopping-
center e tudo! Aqui o povo virá
todos os dias render homenagem ao
meu ex-marido, o santo que nos
tirou da morte certa nas mãos do
bandido Navalhada... E aqui o
martírio de Roque Santeiro será
representado uma vez por ano.
Porcina fica a apontar dramaticamente para a capela, os
olhos revirados. Os fotógrafos se agitam. Fotos e mais
fotos.
FLORINDO
(baixo, a Sinhozinho) Ela já está
exagerando.
SINHOZINHO intervém.
SINHOZINHO
E como faz hoje vinte anos
que a viúva Porcina viveu esse
milagre...
Porcina sai do meio transe.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
Eu, o senador Sinhozinho Malta, com
a preciosa ajuda do Prefeito de Asa
Branca/
FLORINDO
(interrompe) Florindo Abelha,
eu mesmo/
SINHOZINHO
(interrompe) Vou não apenas abrir
este parque, a Cidade Santa
destinada à devoção de Roque, mas
também vou lhe prestar outra
homenagem...

EXT. ESTRADA DE FERRO / TREM / - DAY


Sobre o vagão descoberto de um trem de cargas, enrolada em
plásticos (que estão meio soltos e flutuam levados pelo
vento), vai uma estátua de bronze representando um homem
numa atitude dramática: o rosto crispado e a mão a apertar o
peito ferido a bala, como se atingido pelo tiro naquele
instante.
Sobre estas imagens ouve-se a voz de SINHOZINHO:
SINHOZINHO
Vou inaugurar sua estátua na praça
principal da nossa cidade de Asa
Branca, com a presença de um dos
representantes máximos da igreja, o
Arcebispo...

EXT. CIDADE SANTA / LAGO ARTIFICIAL - DAY


E SINHOZINHO MALTA termina o seu discurso.
SINHOZINHO
Que vai advogar junto ao Vaticano a
beatificação de Roque, pra que um
dia ele seja reconhecido como santo
e assim possa se tornar nosso
padroeiro!
ZÉ DAS MEDALHAS, que se aproximara com uma imagem de Roque
nas mãos, aproveita a deixa e ergue a imagem.
ZÉ DAS MEDALHAS
Olha o Roque Santeiro aí,
gente!
Os fotógrafos em ação.
FLORINDO
Graças a ele a cidade de Asa Branca
encontrou sua vocação para o
turismo...
SINHOZINHO
...E a fé que move montanhas...
ASTROMAR, que vinha chegando, entra na dança.
ASTROMAR
E este será o nosso futuro!
SINHOZINHO trata de apresentar os recém-chegados.
SINHOZINHO
José das Medalhas, ilustre
comerciante local... E o
historiador Astromar Ribeiro,
nomeado por mim diretor desta
Cidade Santa.
Juntam-se todos: SINHOZINHO, PORCINA, FLORINDO, ASTROMAR e
ZÉ DAS MEDALHAS, e posam pras fotos. JÚNIOR, o filho de
SINHOZINHO, vem chegando.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
E agora meu filho Júnior, que é meu
suplente no Senado, vai levá-los
para um lauto café da manhã numa
das minhas fazendas. Quando o trem
chegar com a estátua serão todos
avisados.
PORCINA se adianta.
PORCINA
E eu vou cumprir minha tarefa de
todos os dias...
MINA surge com uma enorme cesta de pães, da qual PORCINA se
apossa.
PORCINA (CONTINUACAO)
Vou distribuir o pão dos pobres.
E, com a cesta de pães nas mãos, ela faz pose para os
fotógrafos.
JÚNIOR sai com os jornalistas.
ASTROMAR
Pensei que iam perguntar de quem é
o shopping center...
SINHOZINHO
Se perguntassem eu já tinha a
resposta.
FLORINDO
Ia dizer que era seu?
SINHOZINHO
O benefício que este shopping
center trará é de todos: ele
pertence à comunidade!

EXT. ESTRADA DE FERRO / TREM - DAY


Sul de Minas Gerais.
O trem de cargas serpenteia pela região de paisagens
montanhosas. Sobre um vagão descoberto, enrolada em
plásticos (que estão meio soltos e flutuam levados pelo
vento), segue a estátua de bronze. O trem corre no seu leito
entre as montanhas. O maquinista, a observar da janela, vê
alguma coisa lá adiante: uma cidade se aproxima. Detalhe da
mão do maquinista, que puxa uma alavanca. Ouve-se o apito da
locomotiva. Da PERSPECTIVA do maquinista: a cidade lá na
frente mais perto. Exposta no vagão aberto, com os plásticos
a flutuar, a estátua entra na cidadezinha atraindo a atenção
dos que a vêem. O trem pára na estação, e só então se vê a
placa dourada, pregada ao pé da estátua, na qual se lê uma
inscrição:
HOMENAGEM DO POVO DE ASA BRANCA A ROQUE SANTEIRO, SEU
MÁRTIR.

EXT. CIDADEZINHA / ESTAÇÃO - DAY


O trem está parado na estação da cidadezinha. Muitos
curiosos diante do vagão sobre o qual jaz a estátua. Dois
homens tratam de prender de novo os plásticos que a
escondiam, e que se soltaram durante a viagem. O maquinista,
sentado na parte mais afastada do vagão e indiferente àquilo
tudo, come de colher o conteúdo de uma marmita. O CEGO
JEREMIAS e seu guia, destacados do bando de curiosos, estão
mais próximos dele. JEREMIAS usa óculos escuríssimos. Dá
cotovelada no guia enquanto fala.
CEGO JEREMIAS
Quem ta comendo aí?
GUIA
O maquinista.
O cego bota a mão no ombro do guia, que o leva até o
maquinista.
CEGO JEREMIAS
O que achou da estátua?
MAQUINISTA
Bonita ela é.
CEGO JEREMIAS
Parece com o santo?
MAQUINISTA
Não posso dizer. Não conheci Roque
Santeiro...
CEGO JEREMIAS
Pois eu conheci.
MAQUINISTA
Foi?
CEGO JEREMIAS
A gente se falava todo dia...
O cego tira os óculos, e mostra seus olhos inteiramente
brancos.
CEGO JEREMIAS (CONTINUACAO)
Mas nunca vi o rosto dele.
O cego bota os óculos de novo, leva a mão ao ombro do guia,
que o leva.Os dois passam pela multidão. No meio dela alguém
alheio ao cego e seu guia observa a estátua. Saberemos
depois que é ROQUE SANTEIRO. Os dois homens acabam de
prender de novo os plásticos que protegem - e escondem - a
estátua. O cego e o guia vão até a porta de um dos vagões de
carga e entram lá. O maquinista fecha a marmita, guarda-a
numa mochila, levanta-se, vai até a locomotiva, entra nela e
aciona o apito. ROQUE SANTEIRO se aproxima da locomotiva e
se dirige ao maquinista.
ROQUE
Esse trem pára em Asa Branca?
MAQUINISTA
É pra lá que a estátua vai.
O maquinista aciona o apito de novo, e não ouve o que ROQUE
resmunga.
ROQUE
Eu também...
ROQUE SANTEIRO dá mais uma olhada na estátua, agora toda
coberta. Ouve-se o apito da locomotiva. O trem começa a se
mover. Roque corre em direção à porta do vagão de carga e,
enquanto o trem vai aumentando a velocidade, dá um pulo e
entra lá.

INT. TREM / VAGÃO DE CARGA - DAY


A luz do dia entra pela porta do vagão, que ainda está
aberta. Lá dentro estão uns dez passageiros, todos
clandestinos como ROQUE. O CEGO JEREMIAS e seu guia mais ao
fundo. O cego tira os óculos e os entrega ao guia. O menino
limpa os óculos na ponta da camisa suja e os devolve. O cego
trata de colocá-los no rosto. O menino abre o embornal que
carrega a tiracolo e tira de lá um pão. Vai levá-lo à boca,
mas o cego, num gesto rapidíssimo, o arrebata de sua mão.
CEGO JEREMIAS
Tu anda roubando minhas esmolas!
O cego bota o pão quase inteiro na boca e dá o que resta,
apenas um pedaço mínimo, ao menino. O menino mastiga
desconsolado. ROQUE está sentado num canto. Ao lado dele um
velho abre uma bolsa de couro cru, tira de lá uma lata cheia
de uma gororoba estranha e lhe mostra.
HOMEM DA GOROROBA
É servido?
ROQUE
Não, obrigado.
Lá no fundo, CEGO JEREMIAS reage ao ouvir a voz, pára de
mastigar e fica alerta.
HOMEM DA GOROROBA
Já vi que é cheio de luxo.
ROQUE
Pelo contrário.
O cego, lá ao fundo, ainda mais alerta.
ROQUE aponta a lata do HOMEM DA GOROROBA.
ROQUE (CONTINUACAO)
Jabá com farinha de mandioca?
Ele leva a mão à lata que o homem lhe estende de novo, tira
um pouco do seu conteúdo com os dedos e o leva à boca
enquanto conclui.
ROQUE (CONTINUACAO)
Já comi muito!
O cego levanta tão bruscamente que os óculos lhe caem, e
então se vê seus olhos esbranquiçados arregalados de
espanto. Ele tateia com a bengala. Vai se encaminhar em
direção às vozes que acabou de ouvir. Neste momento o trem
freia bruscamente, e ele cai no chão se estabacando todo.
CORTA PARA

EXT. FORA DO TREM - DAY


Fora do trem, que freia bruscamente, e vai parar diante de
centenas de pessoas, armadas de foices e ostentando faixas
do MST, que estão sobre os trilhos a impedir a passagem.

INT. DENTRO DO TREM - DAY


Na cabine da locomotiva o maquinista arranca os cabelos em
desespero.
MAQUINISTA
Baderneiros... É a terceira vez só
este mês!
Através da porta aberta do vagão ROQUE e o HOMEM DA GOROROBA
espicham o pescoço e vêem o que está acontecendo lá na
frente.
HOMEM DA GOROROBA
São os "sem terra" de novo!
ROQUE
E agora?
HOMEM DA GOROROBA
Até a televisão chegar o trem não
passa.
ROQUE e o HOMEM DA GOROROBA recuam.
Lá no fundo, o guia ajuda CEGO JEREMIAS a levantar, e em
troca recebe algumas bengaladas. O guia tenta contê-lo, mas
o cego se desvencilha dele e, com a bengala em riste, sai
caminhando em direção à porta.
HOMEM DA GOROROBA (CONTINUACAO)
Sabe aquela estátua lá no vagão de
carga? É Roque Santeiro. Vai ficar
na praça de Asa Branca, vem um
Arcebispo inaugurar. Querem que a
igreja reconheça os milagres dele!
Pra isso vão abrir uma Cidade Santa
pra contar a história dele: como se
fosse um teatro! Ia ser a maior
festa. Mas com essa confusão aí
fora... A estátua não chega a
tempo.
ROQUE
A não ser que vá andando... Ou
Roque chegue lá em pessoa.
HOMEM DA GOROROBA
Só se for outro milagre. Faz vinte
anos que ele morreu...
O cego chega perto deles e dá uma chuchada na barriga de
ROQUE com a ponta da bengala.
CEGO JEREMIAS
Quem é você, que tá falando com a
voz do outro?
ROQUE olha pra ele e o reconhece: leva o maior susto.
ROQUE
Jeremias!
O cego agora fica assustadíssimo.
CEGO JEREMIAS
Não é imitação, é ele mesmo! Mas
não pode ser... Faz vinte anos e
você devia tar/
ROQUE o interrompe, mudando o tom de voz.
ROQUE
Que é isso ceguinho, tá me
confundindo com outro!
O cego lhe dá várias chuchadas na barriga com a bengala.
CEGO JEREMIAS
Assombração!
ROQUE dá um safanão na bengala do cego.
ROQUE
Cai fora!
O cego tenta bater em ROQUE com a bengala, mas este o
empurra. O cego recua, enquanto o guia corre a ampará-lo.
Ele começa a gritar enquanto chicoteia o ar com a bengala.
Os outros passageiros se aproximam curiosos.
CEGO JEREMIAS
Essa voz é do morto!
ROQUE recua ao ouvir aquilo, perde o pé e cai pela porta do
vagão afora.
CORTA PARA

EXT. FORA DO DO TREM - DAY


Do lado de fora do trem. ROQUE cai sentado no chão. O Cego
surge na porta do vagão, de bengala em riste, sempre
esbravejando.
CEGO JEREMIAS
É o morto que tá falando! O morto!
O Cego se curva no abismo da porta, ameaçando se jogar sobre
ROQUE. Atrás dele o guia e o HOMEM DA GOROROBA tentam contê-
lo. ROQUE se levanta, se mistura com os sem terra e vai se
afastando. O guia e o HOMEM DA GOROROBA puxam o Cego pra
dentro do vagão. O maquinista perde seu tempo apitando. O
Cego esbraveja. O guia e o HOMEM DA GOROROBA tentam acalmá-
lo.
CEGO JEREMIAS (CONTINUACAO)
Era ele, tenho certeza!
HOMEM DA GOROROBA
Ele quem, ceguinho?!
CEGO JEREMIAS
Sinhozinho Malta não vai gostar
disso.

INT. CASA DE SINHOZINHO / ESCRITÓRIO - DAY


A porta se abre de par em par. O prefeito FLORINDO ABELHA e
sua esposa, DONA POMBINHA, entram dramaticamente a tempo de
ver SINHOZINHO MALTA ainda a desligar o telefone. JÚNIOR,
seu filho, de pé ao lado dele. SANTUSA, a mulher de
Sinhozinho, aparece atrás do casal. JÚNIOR, o filho deles,
vem com ela. SINHOZINHO se dirige a JÚNIOR.
SINHOZINHO
E os jornalistas?
JÚNIOR
Tão numa visita guiada à fazenda.
SINHOZINHO
Ótimo, mantém aquela corja ocupada.
FLORINDO se adianta.
FLORINDO
Escute, senador...
SINHOZINHO MALTA o interrompe.
SINHOZINHO
Não precisa nem falar. Já sei de
tudo: foram os Sem Terra de novo!
SINHOZINHO levanta, ergue o braço e sacode o punho, no qual
o relógio meio solto faz um ruído típico.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
Tou certo, ou tou errado?
FLORINDO
Certíssimo!
SINHOZINHO caminha em direção à porta, passa pelos que lá
estão e sai. Os outros todos seguem atrás. Ouve-se sua voz
FORA DE CENA.
SINHOZINHO
Aqueles filhos de uma égua!
NO CORREDOR
SINHOZINHO segue em frente, os outros sempre atrás.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
Além de invadirem minha fazenda e
derrubarem meus pés de laranja,
agora querem estragar MINHA festa?
NA SALA
SINHOZINHO desemboca na sala, sempre seguido pelos demais.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
Vem uma caravana de Brasília só pra
prestigiar a inauguração da Cidade
Santa de Roque Santeiro!
FLORINDO
O Arcebispo já está a caminho!
SINHOZINHO pára e se volta para os demais.
SINHOZINHO
E não me sai daqui sem prometer que
vai pedir ao Vaticano a
beatificação do nosso santo mártir!
Pra isso temos que dar a ele uma
demonstração de fé: vamos plantar
aquela estátua lá na praça!
POMBINHA
Mas como, Sinhozinho?
SANTUSA
Se ela vem no trem, e ele está nas
mãos dos Sem Terra!
SINHOZINHO
Eu dou um jeito.
SINHOZINHO se volta para JÚNIOR, seu assessor e filho.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
Ligue praquele empreiteiro nosso
amigo e peça emprestado o
helicóptero.

EXT. ESTRADA DE FERRO / MAIS ADIANTE - DAY


Os Sem Terra gritam slogans, agitam foices e bandeiras,
ameaçam jogar paus e pedras no trem, que continua parado. O
maquinista, que observava pela portinhola de vidro, recua e
fecha-a. ROQUE olha para trás, não vê sinal do cego, e
continua a se afastar do trem, andando entre os Sem Terra.
Aos poucos ele vai atraindo a atenção dos que o cercam.
Alguém o mostra a um sujeito que é o LÍDER da manifestação.
Ele observa o estranho caminhar por entre os Sem Terra, e
logo vai até ele. O LÍDER se coloca diante de ROQUE, que
pára e fica a olhar para ele.
O LÍDER
Quem é você, companheiro?
Quando ROQUE vai falar, o LÍDER se antecipa.
O LÍDER (CONTINUACAO)
É segurança da ferrovia: um meganha
infiltrado!
A multidão ruge de ódio ao ouvir isso. Um grupo avança
contra ROQUE com suas foices erguidas, e ele entende o que
está para acontecer: é um linchamento, ou no mínimo uma
surra.
ROQUE
Não tem nada de segurança aqui, eu
só tô de pas/
Mas o LÍDER o interrompe.
O LÍDER
Acabem com ele!
Roque vê: agora é uma multidão que avança sobre ele. Ele
recua, sai correndo e, perseguido pelos Sem Terra, some mato
adentro.

EXT. TRILHAS DO MATAGAL - DAY


Cenas entrecortadas em MONTAGEM DESCONTÍNUA:
ROQUE a correr pelo meio do mato. Ele cai, se lanha nos
galhos e espinhos, se rasga todo. O suor lhe cobre o rosto e
empapa a camisa. Sempre com a impressão de que está sendo
seguido: ouve gritos ora longe, ora perto, ruídos de galhos
que se quebram... Clima de paranóia. ROQUE sempre a correr,
cada vez mais arfante... Até que tropeça feio, rola por uma
ribanceira abaixo... E vai cair no meio de uma curva da
estrada de asfalto. ROQUE fica ali sentado no chão,
perplexo. Até que vê a placa à sua frente, na qual lê-se a
inscrição:
ASA BRANCA, 37 quilômetros.
Ele está a olhar a placa, quando ouve o ruído: é um
helicóptero. ROQUE levanta, olha para o céu e vê o
helicóptero passando. Distraído ali, no meio da estrada, não
vê o ônibus desembocar atrás de si na curva. Sustso de
ROQUE. Buzina, som de freios, grande estardalhaço: o ônibus
para a apenas alguns centímetros de ROQUE... Tão perto que
ele vê bem diante de si o papel, colado no seu pára-brisas,
no qual está escrito:
ASA BRANCA, CIDADE DOS ROMEIROS.
A porta do ônibus se abre. ROQUE vai até lá.
MOTORISTA
Essa foi por pouco. Agradeça a
Roque Santeiro.
ROQUE
E vai ser pessoalmente. Tem lugar
pra mais um?
MOTORISTA
Só se for em pé... E lá no fundo.
ROQUE entra no ônibus, que está lotado. O ônibus vai embora.
EXT. ESTRADA DE FERRO / TREM - DAY
Os Sem Terra, todos sentados no chão, esquecidos da
manifestação e com suas foices baixadas, observa o trabalho
da tripulação do helicóptero, que trata de prender a estátua
a alguns cabos de aço.
Os passageiros do trem juntos com eles.
CEGO JEREMIAS
Será que vai demorar muito?
MAQUINISTA
Já tão acabando.
GUIA
E se a gente pedir carona pra eles?
CEGO JEREMIAS desdenha.
CEGO JEREMIAS
Nem esmola eles me deram...
Os tripulantes do helicóptero prendem os cabos de aço ao
helicóptero. O piloto aciona o motor, as pás se movem cada
vez mais rapidamente. O helicóptero levanta vôo, os cabos
aos poucos vão se espichando... Até que, sob os olhares
maravilhados de todos, a estátua se move e, levada pelo
helicóptero, alça vôo.

EXT. PRAÇA DA CIDADE SANTA - DAY


A Cidade Santa ainda recebendo os últimos retoques das mãos
dos operários. A igreja e o resto do lugar - uma praça da
qual saem várias ruas - é visivelmente cenográfica. Mas são
reais as pessoas, que já ocupam todos os espaços, entram e
saem das lojas do shopping center, acendem velas e rezam
diante da capela.
Diante de sua loja no shopping, ZÉ DAS MEDALHAS e LULU,
oferecem suas mercadorias aos passantes.
LULU
Velas, medalhas, santinhos!
ZÉ DAS MEDALHAS
Relíquias de Roque Santeiro!
Eles exibem as mercadorias.
LULU
Lascas do madeiro santo!
ZÉ DAS MEDALHAS
Garrafas do vinho sagrado!
Romeiros examinam as mercadorias.
ZÉ DAS MEDALHAS (CONTINUACAO)
Imagens do santo mártir!
LULU
Miniaturas da capela! Chaveiros!
MIGUEL, o adolescente filho do casal, filma tudo com sua
câmera... Até focalizar CLARINHA, uma garota de sua idade,
que se destaca da multidão e lhe faz um sinal. MIGUEL passa
a filmá-la e vai atrás dela. ZÉ DAS MEDALHAS vê o filho ir
atrás da moça e não gosta. Fala baixo com Lulu.
ZÉ DAS MEDALHAS
Aposto que o teu filho vai levar
aquela oferecida lá pra casa.
LULU
Nosso filho, não é, Zé?
ZÉ DAS MEDALHAS
(resmunga)
Nunca se sabe.
LULU
(horrorizada)
Zé!
ZÉ DAS MEDALHAS
Vivem de esfregação, Lulu!
LULU
São dois meninos...
ZÉ DAS MEDALHAS
Menino que faz menino?!...
ZÉ DAS MEDALHAS tira o celular do bolso e vai discando
enquanto fala.
ZÉ DAS MEDALHAS (CONTINUACAO)
Vou já contar pro pai dela.
Alguém atende ao telefone do outro lado, e ele já reage.
ZÉ DAS MEDALHAS (CONTINUACAO)
Astromar?

INT. SEDE DA CIDADE SANTA - DAY


Enquanto fala ao telefone, ASTROMAR vê pela janela Miguel a
filmar Clarinha lá embaixo, no meio dos romeiros.
ASTROMAR
Pode deixar, que estou de olho...
Ele vê quando Miguel alcança Clarinha, toma-a nos braços e a
beija.
ASTROMAR (CONTINUACAO)
E também acho que vão acabar
fazendo besteira.
Miguel puxa Clarinha, que reluta um pouco, mas afinal vai
com ele.
ASTROMAR (CONTINUACAO)
Mas eu dou um jeito.

EXT. PRAÇA DA CIDADE SANTA - DAY


ZÉ DAS MEDALHAS desliga o celular. Lulu entrega mercadoria a
cliente, recebe o dinheiro e dá o troco enquanto falam.
ZÉ DAS MEDALHAS
Assunto resolvido.
LULU
Tomara que Astromar não bata na
Clarinha.
ZÉ DAS MEDALHAS
Ela bem que tá merecendo... E o
Miguel também! Mas dele sou eu quem
cuido.
Ouve-se uma voz de mulher que brada ali perto.
PORCINA
ALÔ!!!
ZÉ DAS MEDALHAS E LULU se voltam na direção da voz e vêem
quem fala: é PORCINA. Ela está diante da igreja com o
celular colado ao ouvido. PORCINA fala ao celular sempre aos
brados.
PORCINA (CONTINUACAO)
O quê?!
ZÉ DAS MEDALHAS
Hoje ela tá com a moléstia!
PORCINA fala ao celular.
PORCINA
Não to ouvindo nada!
MINA segura o cesto cheio de pães ao lado dela.
PORCINA sempre ao celular.
PORCINA (CONTINUACAO)
Helicóptero?!...
Ouve-se a voz de SINHOZINHO vinda do celular.
SINHOZINHO
Isso mesmo, Porcina!

INT. PREFEITURA / GABINETE DO PREFEITO - DAY


SINHOZINHO fala ao celular enquanto olha pela janela. Ouve-
se o barulho do helicóptero vindo lá de fora.
SINHOZINHO
Não tá ouvindo não?
Ouve-se a voz de PORCINA vinda do celular.
PORCINA
Nossa Senhora!

EXT. PRAÇA DA CIDADE CENOGRÁFICA - DAY


PORCINA a olhar completamente pasma: um helicóptero sobrevoa
o local, numa visível citação de "A Doce Vida", a
transportar, amarrada a um cabo e envolta em plásticos, a
estátua de Roque Santeiro. Ouve-se a voz de SINHOZINHO vinda
do celular.
SINHOZINHO
Nossa Senhora não: é Roque Santeiro
mesmo!
PORCINA dá uns passos incertos, como se quisesse seguir o
helicóptero. MINA, sempre com o cesto nas mãos, vai atrás
dela. A multidão que rezava e acendia velas em torno faz o
mesmo. Enquanto isso se ouve a voz de SINHOZINHO vinda do
celular.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
Já que o trem está nas mãos dos
desocupados...

INT. PREFEITURA / GABINETE DO PREFEITO - DAY


SINHOZINHO fala ao telefone enquanto olha pela janela.
O barulho do helicóptero se ouve fora de cena.
SINHOZINHO
...Eu falei com aquele
empresário... É, AQUELE! E dei um
jeito. E quanto a você, venha
logo...

EXT. ASA BRANCA / CIDADE CENOGRÁFICA - DAY


PORCINA ao celular, ainda meio abobalhada a olhar para o
helicóptero. Em torno dela a multidão agora histérica e a
gritar: "Roque, Roque!"
ALTERNAR IMAGENS DE SINHOZINHO E PORCINA FALANDO AO CELULAR.
SINHOZINHO
Fique aqui, junto do pedestal, e
faça cara de choro quando baixarem
a estátua do seu falecido.
PORCINA
Tou simples demais, preciso trocar
de roupa!
SINHOZINHO
Então faça isso logo!
PORCINA
E o helicóptero?
SINHOZINHO
Falo com o piloto pelo rádio e ele
dá umas voltas.
PORCINA desliga o telefone e dá um grito.
PORCINA
MIIIIIIIINAAAAA!
MINA
Tou aqui!!! E já falei que não sou
surda. O que foi?
PORCINA
Vambora pra casa!
MINA
E o pão dos pobres?
PORCINA já vai se afastando.
PORCINA
Joga fora!
MINA deposita o cesto de pães na porta da capela e se dirige
aos fieis.
MINA
Estejam à vontade!
Fiéis avançam sobre a cesta de pães e a esvaziam em questão
de segundos.
PORCINA, que olhava a cena de longe, resmunga.
PORCINA
Bando de esfomeados!...
EXT. FRENTE DA CASA DE ZÉ DAS MEDALHAS - DAY
MIGUEL e CLARINHA vêm se aproximando da casa aos beijos.
CLARINHA
Só vou até o portão.
MIGUEL
Entra um pouquinho... Não tem
ninguém em casa.
CLARINHA
Por isso mesmo.
MIGUEL
Eu te mostro o que já filmei pro
meu documentário.
Da varanda da casa, sem ser notado, ASTROMAR observa os
dois.
CLARINHA
Jura que é só pra isso?
MIGUEL
Juro.
CLARINHA
Nesse caso... Eu entro.
ASTROMAR se apresenta aos dois.
ASTROMAR
É o que você pensa!
CLARINHA fica assustadíssima ao vê-lo.
CLARINHA
Pai!
ASTROMAR
Já pra casa!
CLARINHA sai correndo. ASTROMAR se volta para MIGUEL.
ASTROMAR (CONTINUACAO)
Se fizer mal pra minha filha eu te
mato!
ASTROMAR vai embora. MIGUEL ergue a câmera, trata de filmá-
lo até que ele some na esquina, e então segue na direção
contrária.

EXT. ASA BRANCA / CIDADE CENOGRÁFICA - DAY


O helicóptero, sempre a transportar a estátua de Roque
Santeiro envolta em plásticos, sobrevoa a Cidade Santa de
novo. Os romeiros a reagir diante daquela visão insólita.
PORCINA, agora ao lado do carro, a olhar a cena apreensiva.
Ela vê quando o helicóptero passa diante da nuvem negra, que
começa a se formar à distância. MINA se aproxima.
PORCINA
Vai chover!
MINA
A tevê anunciou temporal pra hoje
logo cedo...
Porcina mostra a nuvem.
PORCINA
No dia da festa?!
MINA
É verão: chove forte, mas logo
passa.
Mina percebe a apreensão da patroa.
MINA (CONTINUACAO)
Que cara de enterro é essa?
PORCINA aponta o helicóptero com a estátua lá no alto.
PORCINA
Tem alguma coisa errada.
MINA
Se cada dia que passa a senhora
fica mais rica por causa de Roque
Santeiro... O que pode tar errado?
PORCINA
(aflita)
Não sei! Vou é embora pra minha
casa.
PORCINA entra no carro e liga o motor. MINA vai entrar no
carona, mas PORCINA arranca e deixa-a na mão. MINA resmunga.
MINA
Já vi que ela vai ter um daqueles
ataques de novo.
MINA olha em direção ao helicóptero, preocupada. Tira o
celular do bolso, disca... Alguém atende do outro lado.
MINA (CONTINUACAO)
Sinhozinho?

INT. PREFEITURA / GABINETE DO PREFEITO - DAY


SINHOZINHO, a olhar pela janela, fala no celular. Lá de fora
vem o ruído agora distante do helicóptero.
SINHOZINHO
Mas ela ficou assim só por causa da
chuva? Não, vai dar uma volta, não
se preocupa... Eu me entendo com
Porcina.
SINHOZINHO desliga o celular e sai em direção à porta.

INT. PREFEITURA / ANTE SALA - DAY


SINHOZINHO vem do interior do prédio com SANTUSA e JÚNIOR.
SANTUSA
O Arcebispo pode chegar daqui a
pouco... E você vai sair pra ouvir
as bases?!
SINHOZINHO
Não se preocupe Santusa, eu não
demoro.
SANTUSA
Mas Sinhozinho...
MATILDE vai entrando, com NINON E ROSALY. SINHOZINHO fala
meio que pra elas.
SINHOZINHO
Eu sou um senador da República! Fui
eleito pelo povo! Meu lugar é ao
lado dele, é meu dever ouvilo,
encaminhar suas aspirações e
satisfazer seus desejos!
SINHOZINHO se volta para Santusa com um ar grave.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
Sim, minha querida esposa, vou
ouvir as bases.
SINHOZINHO sai. MATILDE, que ouviu o que ele disse, fala
baixo para as meninas.
MATILDE
Ele falou "base", mas quis dizer
"Porcina"...
As meninas riem. JÚNIOR se dirige a MATILDE.
JÚNIOR
A senhora deseja?
MATILDE
De você, nem uma palavra.
MATILDE se volta para Santusa.
MATILDE (CONTINUACAO)
Mas quero agradecer à sua mãe por
ter intercedido junto ao seu pai
pra que a gente viesse à festa.
MATILDE vai até SANTUSA.
MATILDE (CONTINUACAO)
Obrigada, dona Santusa.
SANTUSA
Não fiz nada demais. A senhora é
comerciante, paga impostos, faz
parte da comunidade. Tem todo
direito de participar da festa de
Roque Santeiro.
SANTUSA estende a mão a MATILDE, que a aperta.
MATILDE
Fico lhe devendo essa gentileza.
MATILDE se volta para NINON e ROSALY.
MATILDE (CONTINUACAO)
Vamos, meninas.
ROSALY lança um olhar significativo para Júnior... Que se
faz de morto. As três saem. JÚNIOR estende um lenço para
SANTUSA.
JÚNIOR
Apertando mão de caftina!...
SANTUSA
Não é doença, filho, é profissão.
SANTUSA aceita o lenço e limpa a mão com ele.

EXT. FRENTE DA PREFEITURA - DAY


Estão ali à frente FLORINDO, POMBINHA e a filha deles,
CININHA. MATILDE sai com NINON E ROSALY. POMBINHA reage
indignada ao vê-las.
MATILDE
Bom dia, prefeito.
FLORINDO
Hum.
Matilde se dirige a Pombinha.
MATILDE
Como vai a Primeira Dama?
Pombinha ignora Matilde ostensivamente.
POMBINHA
Isso aqui já esteve menos mal
cheiroso.
Matilde fala alto com as meninas.
MATILDE
Vá ver é o sovaco dela!
NINON e ROSALY riem, debochadas. Elas vão embora.
POMBINHA
A culpa é de Santusa, que dá trela
pra essas putas!
MIGUEL, a filmar com sua câmera, passa por eles e entra na
Prefeitura.

INT. PREFEITURA / ANTE SALA - DAY


JÚNIOR examina uns papéis com enfado, até que os larga sobre
a mesa.
ENTRA AQUI,
SOBRE O ROSTO
DELE, UM FLASH:
Rosali, semi-vestida com roupa de couro, chicote nas mãos, a
chicotear o traseiro nu de Júnior, que geme de prazer.
ROSALY
Safado! Vagabundo! Muquirana!
Ordinário!
VOLTA AO ROSTO DE JÚNIOR. Ele levanta e vai sair para o
interior da prefeitura. MIGUEL entra com sua câmera, JÚNIOR
o vê.
JÚNIOR
Se veio pra entrevistar o senador/
MIGUEL
(corta)
Sou Miguel, filho do Zé das
Medalhas.
JÚNIOR
Ah, sim.
MIGUEL
Vou fazer um documentário sobre a
festa. Queria fazer uns takes na
frente da prefeitura...
MIGUEL aponta em direção à janela.
MIGUEL (CONTINUACAO)
Dá pra eu posicionar minha câmera
ali?
JÚNIOR
(dá de ombros)
Por mim.
JÚNIOR sai para o interior da prefeitura.

INT. PREFEITURA / BANHEIRO - DAY


JÚNIOR entra no banheiro e fecha a porta. EM DETALHES: ele
abre o cinto, baixa as calças, depois as cuecas. JÚNIOR olha
pela janelinha que dá para a praça: através dela vê ROSALI,
MATILDE e NINON distribuindo papeluchos com os romeiros. Aos
olhos dele, a imagem desfoca, e só ROSALI fica em foco a
evoluir ali na praça. JÚNIOR entra em êxtase enquanto se
sacode todo.
JÚNIOR
Ai Rosali, ai Rosali, ai Rosali!!!!

INT. PREFEITURA / ANTE SALA - DAY


MIGUEL coloca a câmera sobre o parapeito da janela, enquadra
e, através do visor, vê FLORINDO, POMBINHA E CININHA do lado
de fora.

EXT. FRENTE DA PREFEITURA - DAY


O helicóptero, sempre a transportar a estátua de ROQUE
SANTEIRO, sobrevoa a cidade de novo. As nuvens agora mais
evidentes lá no fundo.
FLORINDO
Só espero que tenha bastante
combustível.
POMBINHA
É. Até Sinhozinho dar um jeito na
viúva...
CININHA reage, despeitada.
CININHA
Viúva sem nunca ter sido!
FLORINDO
Chega! Dona Porcina é viúva de
Roque Santeiro, e ponto final!
CININHA
A gente era namorado, e ele não
casou nem comigo!
POMBINHA
E dou graças a Deus por isso: ia
ser uma vergonha pra nós se ele
tivesse casado com você, aquele/
POMBINHA engasga: não consegue dizer a palavra.
CININHA
Aquele o quê, mãe?
FLORINDO
Vamos parar com essa conversa!
Mas CININHA o ignora.
CININHA
Aquele negro! Era isso que você ia
dizer? Sim, meu namorado era negro!
Mas vocês fizeram Roque virar
branco pra vender melhor essa
história do milagre/
POMBINHA desengasga.
POMBINHA
Os santos não têm cor!
CININHA
NEGRO! Eu tenho o retrato dele,
esqueceu?
FLORINDO
Tem porque escondeu! Mas no dia em
que achar eu taco fogo!
CININHA
E quanto à "viúva", ela trabalhava
era na zona e/
FLORINDO
Chega, eu já falei! Se continuar
com essas sandices chamo o
psiquiatra, digo pra lhe dar uma
injeção...
CININHA reage apavorada.
CININHA
Não, pelo amor de Deus!
FLORINDO
Mando lhe internar outra vez!
Um instante... E CININHA recua, já em prantos.
CININHA
Eu vou pra casa.
CININHA dá alguns passos e então se volta.
CININHA (CONTINUACAO)
Vou beijar o retrato do meu amor!
CININHA se afasta e se mistura à multidão de romeiros que
ocupam cada vez mais a cidade.
POMBINHA
Eu queria ter pena dela... Mas não
consigo!
FLORINDO
Nem deve! A gente teve o maior
trabalho pra mudar a imagem do
santo... E Cininha pode estragar
tudo!
Enquanto eles falam a CÂMERA RECUA até a câmera de vídeo
pousada sobre o parapeito da janela, atravessa-a e, numa
MUDANÇA DE PONTO DE VISTA, passa a acompanhar a cena no seu
visor. POMBINHA se desespera.
POMBINHA
E o pior que é mesmo verdade: Roque
era negro/
Mas FLORINDO CORTA.
FLORINDO
Agora é você quem me vai bancar a
maluca?
FLORINDO pega no braço de POMBINHA.
FLORINDO (CONTINUACAO)
Olha que também te mando pro
hospício!
Ele a leva embora.
MIGUEL, pasmo com o que acabou de - registrar - tira a CAM
da janela.

EXT. CENTRO DE ASA BRANCA - DAY


Em prantos, desnorteada, CININHA acompanha o fluxo da
multidão e se deixa levar... Até parar diante de um poste no
qual uma placa indica o caminho: CIDADE SANTA. Alguém a
empurra, ela quase cai, se encosta afinal numa parede, olha
uma vitrine... Dezenas de bonecos de ROQUE na mesma posição
em que ele aparece na estátua, todos brancos... CININHA, a
olhar para os bonecos, transtornada. Ela não vê o ônibus que
abre caminho a buzinadas em meio à multidão... Nem o
passageiro que está de pé no fundo e por isso pode ser visto
através do pára-brisas traseiro: é ROQUE SANTEIRO, o negro.
EXT. FRENTE DA CASA DE PORCINA - DAY
PORCINA pára o carro diante da mansão luxuosa, desce,
deixando a porta aberta, e entra lá.

INT. CASA DE PORCINA / SALA - DAY


PORCINA atravessa feito um raio a sala exagerada e
espaventosa.
PORCINA
De que adianta ter uma escrava se
ela é inútil?
Ela entra pela porta que leva para o corredor.

INT. CASA DE PORCINA / CORREDOR - DAY


PORCINA caminha pelo corredor a resmungar, e se perde lá no
fundo.
PORCINA
Todo dia a mesma coisa. Fico rouca
de tanto gritar pela desgraçada...
MINAAA! E ela se faz de surda!

INT. CASA DE PORCINA / QUARTO - DAY


Porcina entra feito um furacão, sempre a matraquear em voz
alta.
PORCINA
Peniqueira de meia tigela! Sonsa!
Safada/
E ela se corta ao ver SINHOZINHO deitado na sua enorme cama
de casal.
PORCINA (CONTINUACAO)
Não sabia que estava aí.
SINHOZINHO
Mina ligou pra mim.
PORCINA
Além de tudo aquela vadia é
alcagüete!
SINHOZINHO
Ficou preocupada contigo! Está
nervosa por quê?
PORCINA não sabe o que dizer.
PORCINA
É... O meu vestido pra festa.
SINHOZINHO aponta em direção a uma cadeira enquanto fala.
SINHOZINHO
Mina deixou ali logo cedo.
PORCINA olha em direção ao vestido e faz cara de nojo.
PORCINA
Esse eu não quero mais.
SINHOZINHO
Mandou fazer especialmente pra
hoje!
PORCINA
Mas agora tô achando muito sem
graça.
Porcina corre em direção ao vestido e começa a rasgá-lo.
PORCINA (CONTINUACAO)
É ridículo! Feio! Horroroso!!!!
SINHOZINHO
(enfático) Mas o que é isso
criatura, tome juízo!
Porcina pára, atônita. Olha pros pedaços do vestido em sua
mão.
PORCINA
Esse vestido custou os olhos da
cara!
SINHOZINHO
Então não sei? Eu é que paguei!
PORCINA
Você não, foi aquele fornecedor lá
do Senado/
SINHOZINHO a interrompe com um gesto.
SINHOZINHO
Cuidado com o que fala. Hoje em
dia, com essa mania de grampo...
(abranda) O que foi que lhe deu?
De repente PORCINA parece assustadíssima.
PORCINA
Um pressentimento ruim!... A maior
nuvem negra lá no céu, aquela
estátua me passa voando diante
dela... Parecia um anjo do mau!
SINHOZINHO
Porcina...
PORCINA
Tive pesadelo a noite toda. Sonhei
que dava tudo errado!
PORCINA sai do quarto. SINHOZINHO levanta da cama e vai
atrás dela, enquanto se ouve a voz dela fora de cena, cada
palavra numa entonação diferente.
PORCINA (CONTINUACAO)
Errado, errado, errado, ERRADO!

INT. CASA DE PORCINA / SALA - DAY


PORCINA desemboca na sala com SINHOZINHO MALTA atrás dela.
SINHOZINHO
Mas meu anjo, minha flor, minha
filha, meu céu, por que tu fica aí
feito uma cacatua a repetir essa
besteira?
PORCINA
Não é besteira, eu sei! Toda vez
que sinto esse gosto de fígado
podre na minha boca/
SINHOZINHO toma-a nos braços e lhe dá o maior beijo de
língua. Ela não corresponde, apenas fica atônita... Até que
ele a larga, faz um gesto de quem tenta sentir um sabor na
boca... E então se manifesta.
SINHOZINHO
Minha língua foi até o teu
estômago... E não senti gosto de
fígado podre nenhum.
PORCINA
Homem, pare de brincadeira, meus
pressentimentos não falham, se tou
dizendo que vai dar tudo errado/
SINHOZINHO
Faz vinte anos que dá certo!
PORCINA
Nunca me casei com Roque, nem ele é
santo!
SINHOZINHO
Fale baixo!
SINHOZINHO sai em direção à porta da sala, que está aberta.
PORCINA
É tudo mentira, e um dia alguém vai
descobrir!
SINHOZINHO vai fechando a porta enquanto fala.
SINHOZINHO
Como, me diz? Roque é o único além
de nós que sabe de toda a verdade,
e ele tá morto/
Ele interrompe o gesto de fechar a porta ao ver FLORINDO
ABELHA.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
(mais para Porcina )
Prefeito Florindo Abelha!
PORCINA, ao ouvir isso, tenta se controlar.
FLORINDO
Interrompo alguma coisa?
PORCINA se volta num rompante.
PORCINA
Claro que não, oras!
SINHOZINHO
Não viu que a porta tava aberta?
FLORINDO
Mas o senhor ia fechar.
SINHOZINHO
Ia, mas não fechei!
E ele faz o gesto característico de balançar a pulseira.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
Tou certo ou tou errado?
FLORINDO
Bom, Sinhozinho Malta, na verdade/
PORCINA o interrompe com impaciência.
PORCINA
Deixe de mas, mas e diga logo a que
veio!
FLORINDO
O pessoal da mídia já está lá na
praça. É só a viúva chegar, que o
helicóptero baixa a estátua.
SINHOZINHO
(se volta para Porcina )
Tá vendo só?
FLORINDO apela, falando com Porcina.
FLORINDO
Os fotógrafos só querem saber da
senhora.
PORCINA
É mesmo? (pausa) Vá lá e peça a
eles pra esperar cinco minutos.
SINHOZINHO
Ou seja: pelo menos meia hora.
FLORINDO recua e vai embora. SINHOZINHO fecha a porta e vem
até Porcina.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
Ninguém duvida que você seja viúva
do santo!
PORCINA
Mas nem ele era santo nem eu sou
viúva!... Meu Deus, eu sou uma
mulher honesta!
SINHOZINHO
(pasmo)
Desde quando?
PORCINA
Não aguento mais ficar repetindo
essa mentira!...
SINHOZINHO
Quer ser expulsa daqui com u'a mão
na frente e outra atrás? Ta
disposta a virar quenga de novo?
PORCINA parece considerar a possibilidade.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
Quer ser pobre outra vez?
PORCINA
(aflita) Isso não! Quenga, tudo
bem, eu agüentava o tranco. Mas
pobre de novo nem morta!
SINHOZINHO
Nesse caso... O pessoal da mídia tá
esperando.
SINHOZINHO vai até a porta, abre-a e mostra o caminho.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
Vá lá e conte suas lorotas sobre
Roque Santeiro. Se eles acreditam é
porque querem...
PORCINA
Vou me trocar.
PORCINA sai para o interior da casa. SINHOZINHO suspira
aliviado.

INT. ASA BRANCA / LANCHONETE - DAY


No visor da câmera, as cenas finais da seqüência gravada por
MIGUEL.
POMBINHA
Eu queria ter pena dela... Mas não
consigo!
FLORINDO
Nem deve! A gente teve o maior
trabalho pra mudar a imagem do
santo... E Cininha pode estragar
tudo!
POMBINHA
E o pior que é mesmo verdade: Roque
era negro/
FLORINDO
Agora é você quem vai bancar a
maluca?
FLORINDO pega no braço de POMBINHA.
FLORINDO (CONTINUACAO)
Olha que também te mando pro
hospício!
MIGUEL congela a imagem na câmera. CLARINHA ao lado dele.
MIGUEL
Que é que tu acha?
CLARINHA
Roque Santeiro... Negro?
Clarinha olha para o balcão da lanchonete. Sobre ele uma
imagem de Roque, branco, na mesma posição em que aparece na
estátua.
CLARINHA (CONTINUACAO)
Cininha é doida.
MIGUEL
Mas dona Pombinha confirmou!
CLARINHA
Então por que nas imagens ele é
branco?
MIGUEL
É mais fácil adorar um santo branco
que um preto.
CLARINHA
Se for isso... É preconceito!
MIGUEL
Mais que isso, é um escândalo! E é
nisso que vou focar meu filme.
CLARINHA
Cininha disse que a foto tá
escondida na casa dela? .
MIGUEL
Essa hora a família já ta toda na
festa. Se a gente conseguisse
entrar lá...
CLARINHA
Eu sei como fazer isso.

EXT. CASA DO PREFEITO / JARDIM - DAY


MIGUEL levanta um anão de jardim diante da casa.A chave
embaixo dele.
MIGUEL
Como é que você sabia disso?
CLARINHA
Meu pai é namorado de Cininha,
esqueceu? Como ela vive perdendo a
chave, a mãe sempre deixa uma cópia
escondida aqui.
MIGUEL pega a chave das mãos dela. Ele abre a porta e os
dois entram na casa do prefeito.

EXT. ASA BRANCA / PRAÇA - DAY


Em torno do pedestal, à espera da estátua, o povo a rezar e
acender velas. BEATO SALU chega com seu séqüito de fiéis,
todos vestindo camisolões andrajosos como ele, e vai até o
pedestal. Ele fala em tom de pregação.
BEATO SALU
Tomai e bebei!...
Aponta em direção à estátua.
BEATO SALU (CONTINUACAO)
Pois este é o meu sangue! A estátua
do meu filho Roque vai chegar daqui
a pouco, e a igreja vai fazer dele
um santo como eu!
CININHA vem chegando e o vê.
CININHA
Beato Salu!
CININHA vai até o BEATO SALU.
CININHA (CONTINUACAO)
Aproveita e diz pra eles que seu
filho era negro!
O BEATO SALU a empurra com violência.
BEATO SALU
Cala essa boca, sua endemoniada,
sai daqui!
O povo em torno já interessado no barraco. Os fiéis do BEATO
SALU avançam em direção a CININHA, que recua. CININHA vai se
refugiar atrás do ônibus que acabou de parar. Os romeiros
descendo sob o olhar transtornado dela... Até que ela se
fixa num deles: é ROQUE! CININHA solta um grito pavoroso.
CININHA
ROQUE!!!!!
ROQUE se volta e a vê.
CININHA (CONTINUACAO)
É ele!
CININHA abre os braços e dá dois passos incertos na direção
de ROQUE.
CININHA (CONTINUACAO)
Eu lhe esperei esses anos todos!...
ROQUE, prestes a ser flagrado, e sem querer que isso
aconteça, recua, se mistura aos romeiros e trata de se
esconder dela. CININHA vai atrás dele aos gritos.
CININHA (CONTINUACAO)
É ele! É o meu amor!
ASTROMAR, que vinha chegando e a vê assim transtornada, vai
até ela e trata de contê-la.
ASTROMAR
Mas o que é isso, é minha noiva,
comportese/
Mas CININHA o interrompe.
CININHA
Sua não: dele! Pra sempre!
ASTROMAR
Do que é que você ta falando?
CININHA
Do único noivo que tive. Roque
Santeiro!
ASTROMAR
Ele está morto, Cininha!
O povo a essa altura já formou um círculo e está em torno
deles de butuca.
CININHA
(aponta )
Eu vi quando ele desceu daquele
ônibus.
Os fiéis, que estavam a apreciar o escândalo, reagem
histéricos... E CININHA solta um grito.
CININHA (CONTINUACAO)
ROQUE voltou!
BEATO SALU ergue o seu cajado aos gritos. Descontrole geral.
Ouve-se o helicóptero, que descer com sua carga envolta em
plásticos. ASTROMAR, atônito, solta CININHA, que cai
desmaiada. Cininha, vista do helicóptero, caída no meio da
praça, com a multidão a formar um círculo em torno. Chegam
SINHOZINHO, PORCINA, FLORINDO e POMBINHA. Os dois últimos
vão se debruçar sobre a filha. Os fotógrafos chegam e tratam
de fotografar o helicóptero que, aos poucos, vai colocando
sua carga sobre o pedestal. O BEATO SALU, os braços para o
alto, grita como se estivesse possuído.
BEATO SALU
Aleluia, Senhor! Glória a Jesus!
Viva meu filho Roque!
Os beatos fazem coro com o SALU. Os outros romeiros se
juntam ao coro. CININHA começa a voltar a si.
CININHA
Era Roque, o amor da minha vida,
ele estava ali!
PORCINA fica atônita ao ouvir aquilo. SINHOZINHO lhe dá um
empurrão em direção ao pedestal.
SINHOZINHO
Vá lá!
PORCINA vai se colocar junto do pedestal. Ergue os braços em
direção à estátua, num gesto de adoração. Em torno os
fotógrafos fazem a festa. SINHOZINHO e ASTROMAR diante de
POMBINHA E FLORINDO, que tratam de levantar CININHA.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
O que aconteceu?
ASTROMAR
Ela disse que viu Roque descer do
ônibus!
SINHOZINHO
Então endoidou de vez.
CEGO JEREMIAS, que vinha se aproximando trazido pelo guia,
intervém.
CEGO JEREMIAS
E se eu lhe disser que não?
Todos se voltam pra ele.
CEGO JEREMIAS (CONTINUACAO)
Eu também vi Roque Santeiro!
Ele tira os óculos e mostra os olhos cegos.
CEGO JEREMIAS (CONTINUACAO)
Com esses olhos que um dia a terra
há de comer!
FLORINDO
Mas o que é que ta acontecendo?
SINHOZINHO
Não se preocupe, a gente vai
descobrir.
Ele caminha em direção ao pedestal, enquanto a estátua,
sempre envolta em plásticos, pousa sobre este. Os homens
soltam os cabos, e o helicóptero vai embora. PORCINA sempre
a posar para as fotos, até que alguma coisa lhe chama a
atenção: alguém a observa no meio dos romeiros... E ri de um
jeito mau, perverso para ela: aquele rosto não lhe é
desconhecido... Pode ser ROQUE! Ela vai dizer alguma coisa,
quando se ouve um trovão distante vindo lá do céu, que
começa a ficar nublado. SINHOZINHO, FLORINDO, POMBINHA e
ASTROMAR em torno de CININHA.
FLORINDO
Só faltava cair um temporal pra
estragar a festa.
ASTROMAR
É o que vai acontecer daqui a
pouco.
SINHOZINHO
Cala essa boca de praga!
SINHOZINHO se dirige a FLORINDO e POMBINHA.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
Melhor levar essa doida pra casa.
Os dois saem com a filha, ASTROMAR vai atrás deles.
SINHOZINHO olha PORCINA, vê que alguma coisa está errada com
ela. ROQUE, ao ver SINHOZINHO se aproximar de Porcina, recua
e some.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
Que cara é essa?
PORCINA
Não foi só a doida da Cininha: eu
também vi! Roque bem ali no meio do
povo, rindo pra mim!
SINHOZINHO sente que alguma coisa está lhe fugindo ao
controle. Neste momento chegam ZÉ DAS MEDALHAS E LULU aos
gritos...
LULU
O Arcebispo, gente!
ZÉ DAS MEDALHAS
A caravana já está na entrada da
cidade: ele vem aí!
Novo trovão ribomba... ROQUE, escondido no meio da multidão
de romeiros, se afasta... E vai se colocar diante da igreja
de estilo colonial num canto da praça, em cuja parede
aparece uma placa na qual se lê:
Nesta igreja Roque Santeiro, nosso santo mártir sofreu o seu
martírio e morreu.
Roque lê a inscrição. Ouve-se o trovão que ribomba.

EXT. ASA BRANCA / RUA PRINCIPAL - DAY


Os carros seguem pela rua principal da cidade: trata-se de
um cortejo. No da frente estão o arcebispo - vamos chamá-lo
de VOSSA EMINÊNCIA - e o padre-auxiliar - o PADRE ROCHA.
O ARCEBISPO olha pela janela com um ar de nojo.
PADRE ROCHA
Vossa Eminência precisa fazer isso?
VOSSA EMINÊNCIA
É o meu cálice!
PADRE ROCHA
Vai cair um temporal a qualquer
momento!
VOSSA EMINÊNCIA
Deus sabe o que faz, não há como
fugir aos seus desígnios.
Um raio corta o céu, o trovão ribomba de novo... E a
comitiva desemboca na praça.
SINHOZINHO, ASTROMAR, ZÉ DAS MEDALHAS E PORCINA correm em
direção ao carro do ARCEBISPO.
JÚNIOR, que vinha chegando com SANTUSA, se adianta e abre a
porta do carro. Mal o ARCEBISPO desce, MATILDE, com NINON e
ROSALI do lado, se apressa em fazer uma vênia, pegar a mão
dele e beijá-la.
LULU
(resmunga)
Quenga maldita!
LULU limpa a mão do ARCEBISPO com o lenço... E então a
beija. Mas o ARCEBISPO não percebe nada disso, pois está de
olhos pregados no decote de PORCINA. Ela vai pegar a mão
dele para beijá-la, ele recua.
VOSSA EMINÊNCIA
Cubram essa mulher!
PORCINA
Que é isso?!
PADRE ROCHA fala baixo com Sinhozinho e Santusa.
PADRE ROCHA
É o decote dela!
MATILDE, que ouviu, resmunga.
MATILDE
E eu é que sou quenga.
SANTUSA desdobra um véu e o coloca sobre os ombros de
PORCINA.
SINHOZINHO
E agora vamos à estátua.
Um raio risca o ar, um trovão ribomba.

INT. CASA DO PREFEITO / SALA - DAY


DETALHE de um porta-retratos sobre a mesa com uma foto de
Cininha. Miguel a procurar em móveis e gavetas. Clarinha
chega do interior da casa.
CLARINHA
No quarto da Cininha não achei
nada.
Ela vai ajudar Miguel nas buscas.
CLARINHA (CONTINUACAO)
Será que essa foto existe mesmo?
MIGUEL
Do jeito que ela falou/
E neste instante se ouve a voz lá fora.
CININHA
Não inventei coisa nenhuma, eu vi!
Susto de Miguel e Clarinha. Ele vai até a janela e olha
através da vidraça.
Do PONTO-DE-VISTA de Miguel lado de fora da casa: Cininha,
Florindo e Pombinha vão chegando.
FLORINDO
Então destrambelhou de vez.
Miguel se volta para Clarinha em pânico.
MIGUEL
Vão nos dar um flagra!
CORTA PARA

EXT. FRENTE DA CASA DO PREFEITO - DAY


Pombinha vai até o anão de jardim, se abaixa para pegar a
chave... Mas Florindo tira a dele do bolso e mostra.
FLORINDO
Eu tenho a minha!
Florindo introduz a chave na porta.
CORTA PARA

INT. CASA DO PREFEITO - DAY


Florindo entra, seguido de Pombinha e Cininha.
CININHA
Era Roque, eu juro! Ele estava
olhando pra mim!
FLORINDO
Chega! Nós vamos receber o
Arcebispo, e você não me sai mais
daqui!
Florindo e Pombinha saem.
CORTA PARA
EXT. FRENTE DA CASA DO PREFEITO - DAY
Florindo dá duas voltas na chave.
POMBINHA
Vai deixar ela trancada?
FLORINDO
Só pra garantir.
Os dois se afastam apressados.
CORTA PARA

INT. DENTRO DA CASA DO PREFEITO - DAY


Cininha se volta para a sua foto, na moldura sobre a mesa.
CININHA
Por que fez isso comigo, meu amor?
Através de uma fresta na porta de um armário, Miguel e
Clarinha vêem a cena: Cininha falando com sua foto como se
ela fosse de outra pessoa.
CININHA (CONTINUACAO)
Se voltou pra Asa Branca, por que
fugiu de mim ?
Ela pega a foto e a beija apaixonada. Dentro do armário,
Miguel, enquanto olha pra Clarinha faz um gesto que
significa: ela está doida, sim!

EXT. ASA BRANCA / FRENTE DA IGREJA - DAY


Roque ainda parado ali, diante da igreja. O trovão ribomba.
Roque olha para o céu: as nuvens cada vez mais negras. Ele
se volta para a porta da igreja, estende a mão, empurra...
Está aberta.

INT. ENTRADA DA IGREJA - DAY


A porta da igreja se abre lentamente com um rangido. Roque
entra e fica um instante parado na penumbra a olhar em
torno, até que seu olhar encontra o altar, no qual, por trás
de imagens de gesso, há uma grande placa vazia na parede
indicando que alguma coisa foi retirada dali. Roque avança
em direção ao altar até ficar diante dele. Uma luz intensa
aos poucos vai iluminando seu rosto... E então se ouve a voz
de Sinhozinho Malta atrás dele.
SINHOZINHO
Já vi isso aí pra mais de mil
vezes... E nunca deixei de me
impressionar.
Aparece aqui o letreiro sobre a imagem:
VINTE ANOS ANTES.

INT. ALTAR DA IGREJA / 20 ANOS ANTES - DAY


Os dois são vistos agora de costas diante do altar... Que
não é mais o mesmo da imagem anterior, pois lá não estão as
pobres estátuas de gesso e, no lugar da placa vazia, há um
painel monumental, à maneira dos retábulos das igrejas
ortodoxas, todo pintado em ouro.
Sinhozinho se vira para Roque, este olha para ele, e então
se vê que são vinte anos mais moço...
Pois a partir daqui teremos um flash-back.
O reflexo do ouro do retábulo ilumina intensamente o rosto
deles.
SINHOZINHO
Os padres tinham cada idéia...
Trazer uma beleza dessas pro fim do
mundo? Tudo em ouro!
ROQUE
Não foram os padres, foi um
fazendeiro português/
SINHOZINHO
(completa)
Que se considerou beneficiário de
um milagre e resolveu presentear
nossa igreja com esse retábulo:
conheço a história. Mas ele
encomendou isso aí ao Aleijadinho!
Não é justo que um tesouro desses
fique escondido aqui!... Um bom
antiquário pagaria qualquer preço
por ele.
ROQUE
E o senhor vai vender?
SINHOZINHO
Mas não pra ficar com o dinheiro.
Vou investir no futuro de Asa
Branca. Uma campanha eleitoral
custa caro! Ainda mais pro Senado.
Se for eleito senador, em vez de um
tesouro inútil no altar da igreja,
a cidade terá um representante em
Brasília, e isso sim: não tem
preço! Eu não vou roubar: vou
expropriar! O problema é o
sacristão, que mora na igreja:
você. Se puder contar com sua
ajuda...
ROQUE
Qual é o plano?
SINHOZINHO
Já ouviu falar de Navalhada?
ROQUE
Claro: maior bandido!
SINHOZINHO
De noite o bando de Navalhada
invade a cidade. Vão aprontar a
maior confusão, mas é tudo armado.
O objetivo é não deixar ninguém
chegar nem perto da igreja.
ROQUE
E o padre?
SINHOZINHO
Navalhada dá um jeito. Enquanto
isso você trabalha tranqüilo:
desaparafusa o painel da parede,
bota no carro de mão, sai pelos
fundos, vai até o cáis na beira do
rio...
ROQUE
Lhe entrego, recebo meu
pagamento...
SINHOZINHO
E faz o que quiser de sua vida.
ROQUE
Sumo daqui pra sempre!
SINHOZINHO
Sem nenhuma dúvida.
Roque olha de novo para o retábulo, ou painel, que brilha
intensamente. Ouve-se o som de um tiroteio.

EXT. ASA BRANCA / PRAÇA - NIGHT


Os homens de Navalhada toca o terror na praça de Asa Branca,
que é bem menor que no presente. Tiros, correria, o povo em
pânico tratando de se esconder em suas casas, portas que se
fecham...
Navalhada, com um chapéu a lhe desabar sobre os olhos, um
rifle nas mãos, grita suas ordens no meio.
NAVALHADA
Quero todo mundo se borrando de
medo!
Navalhada mostra-se melhor sob a luz de um poste. Vê-se mais
de perto a feia cicatriz que atravessa sua bochecha direita.
Navalhada dá vários tiros pro alto, ouvem-se gritos de todo
lado. Ele vai se postar diante da igreja. Dois de seus
homens tiram o padre de lá praticamente arrastado e o soltam
no meio da praça.
NAVALHADA (CONTINUACAO)
Vai procurar outra paróquia, padre!
Navalhada atira várias vezes em torno dos pés do padre, que
sapateia pra fugir das balas e, na primeira pausa do
bandido, sai correndo e some numa esquina. Os bandidos
morrem de rir daquilo. Navalhada se coloca diante da porta
da igreja, municia a arma, dá vários tiros para o alto...
NAVALHADA (CONTINUACAO)
Daqui ninguém passa!

INT. IGREJA / NAVE - NIGHT


Roque, com muito esforço, coloca o retábulo sobre o carrinho
de mão, cobre-o com uma lona, dá uma última olhada à parede,
se benze... E então ajeita alguma coisa na cintura, sob o
paletó: é uma pistola. Ele sai empurrando o carrinho.

EXT. IGREJA / FUNDOS - NIGHT


Roque sai pela porta dos fundos da igreja empurrando o
carrinho de mão. Um capanga de Navalhada, que está escondido
ali, vê quando ele sai, faz sinal de positivo. Roque
responde erguendo o polegar de uma das mãos, e segue em
frente.

EXT. FRENTE DA IGREJA - NIGHT


Gritos, tiros, correria. Navalhada à porta da igreja, sempre
de arma na mão. O homem que viu quando Roque saiu pelos
fundos se aproxima, cochicha alguma coisa no ouvido de
Navalhada. Este se dirige aos comparsas.
NAVALHADA
A polícia vai chegar daqui a pouco.
Já fizemos a nossa parte, agora é
dar no pé, vambora!
Sempre tocando terror, dando tiros pro alto e ameaçando os
curiosos que aparecem nas janelas, Navalhada e seu bando
entram nos carros e saem a toda. O padre surge numa esquina,
vê que o caminho está livre e sai correndo em direção à
igreja.
INT. IGREJA / NAVE - NIGHT
O padre entra correndo feito um louco pela igreja adentro
até chegar diante do altar. Ele dá um grito e cai de
joelhos...E então se vê que, no lugar ocupado pelo retábulo
a parede agora está vazia, tal como continua até hoje.
Florindo Abelha, também vinte anos mais moço, entra na
igreja e vai se colocar ao lado do padre.
PADRE
Cadê o escrivão? Por que o Roque
não impediu essa desgraça?
FLORINDO
Aposto que tentou... E os bandidos
levaram ele.
PADRE
A essa altura está morto!
FLORINDO
Deu a vida pra salvar o tesouro da
igreja...Virou mártir!

EXT. BEIRA DO RIO / PIER - NIGHT


Sinhozinho descobre sofregamente o retábulo que, assim
exposto, brilha à luz da lua. Roque à frente dele.
ROQUE
Vamos resolver o nosso lado?
SINHOZINHO
Calma rapaz, quero apreciar um
pouco mais essa belezura.
Navalhada chega com seu bando. Roque não gosta nem um pouco
daquilo. Insiste com Sinhozinho.
ROQUE
Se puder dar a minha parte agora...
Sinhozinho troca um olhar com Navalhada.
SINHOZINHO
Quem vai te pagar é Navalhada.
Roque sente que tem alguma coisa errada.
ROQUE
Não fiz trato nenhum com ele!
Navalhada faz sinal pra dois capangas, que se aproximam de
Roque. Ele recua, ao mesmo tempo em que saca o revólver.
ROQUE (CONTINUACAO)
Não se metam a bestas que eu atiro!
SINHOZINHO
Só se for com a bunda!
NAVALHADA
Peguem ele!
Os dois partem pra cima de Roque. Ele atira, e fere
mortalmente um deles.
NAVALHADA (CONTINUACAO)
(aos capangas)
Mata esse safado!
Os homens todos sacam das armas. Roque, num pulo, se joga no
rio e mergulha. Navalhada, Sinhozinho e seus homens, ali à
beira do cáis, atiram todos em direção à água várias
vezes... Mas não vêem nenhum sinal de Roque.
SINHOZINHO
Será que a gente acertou nele?
NAVALHADA
Se não apareceu pra respirar... Tá
morto! E como a correnteza é forte,
o corpo vai aparecer bem longe.
SINHOZINHO
Então... Tudo terminou como eu
queria.
Navalhada vai até o capanga no qual Roque atirou o examina.
NAVALHADA
Esse aí já era: ta morto!
SINHOZINHO
Mesmo assim ainda me serve.
(aponta) Bota ele naquele barco.
Dois capangas de Navalhada fazem o que Sinhozinho mandou

EXT. MARGEM DO RIO / MATAGAL - NIGHT


Roque aflora da água, respira sôfrego, olha em torno, vê os
galhos de mato que pendem da margem sobre a água, se agarra
a um deles, faz força, aos poucos consegue se agarrar a um e
outro galho até chegar à margem. Ele fica ali um instante,
cansado, arfante, deitado na lama... Depois levanta e se
embrenha pelo mato.

EXT. BEIRA DO RIO / PIER - NIGHT


O corpo do bandido morto já dentro do barco, que ainda está
atado ao píer. Sinhozinho com uma tocha acesa na mão. O
bando, compungido, a olhar a cena: Navalhada derrama o
conteúdo de um galão sobre o corpo. Sinhozinho se aproxima
com a tocha.
SINHOZINHO
Na antiguidade, um Imperador,
quando morria, era despachado pra
eternidade assim!
Ele ateia fogo ao barco. Navalhada corta a amarra que prende
o barco e este sai boiando a queimar. Sinhozinho fala baixo
com Navalhada.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
O sacristão que fazia santinhos de
madeira, deu a vida tentando salvar
o bem mais precioso de Asa Branca.
É uma bela história a de Roque
Santeiro. Quem é que não vai
acreditar?
O barco a queimar desliza lentamente pelo rio.

EXT. FRENTE DE CASA MISERÁVEL - NIGHT


Uma casa miserável no meio de lugar nenhum. Uma luz vermelha
sobre a porta. Roque chega ainda trôpego diante da casa.
Caminha até a porta, vai bater... Quando escuta o ruído de
um carro se aproximando. Roque corre a se esconder no mato.
Do seu esconderijo, ele vê, meio ofuscado, a luz dos faróis
do carro que chega. Ele pára, e dele descem Sinhozinho Malta
e Navalhada, que vão entrando na casa. Dois homens de
Navalhada, que também vieram no carro, ficam ali fora. Roque
fica imóvel no seu esconderijo.

INT. CHOUPANA / CÔMODO - NIGHT


Porcina em trajes menores, abismada, diante de Sinhozinho.
Navalhada nas sombras.
PORCINA
O senhor quer que eu reconheça o
corpo de Roque?
SINHOZINHO
Isso mesmo. Não era a amante dele?
PORCINA
A gente só saiu uma vez! E ele foi
só mais um no meio de uma leva de
homens, como é que eu posso
reconhecer/
Sinhozinho a interrompe.
SINHOZINHO
Quer deixar de ser puta?
Uma pausa.
PORCINA
Rezo por isso todo santo dia!
SINHOZINHO
Suas preces serão atendidas... E
você ainda vai ficar rica!
PORCINA
Então como é que eu faço?
SINHOZINHO
Vai lá na beira do rio, diz que
aquele tiçãozinho que era ele, e
que vocês tinham casado em segredo!
A certidão não se preocupe, eu
arranjo no cartório.
PORCINA
E a fortuna?
SINHOZINHO
Você vai ganhar muito nos próximos
anos... Mas antes eu lhe dou um
adiantamento.
Porcina se volta pra porta que leva ao interior da casa.
PORCINA
Minaaaaaaa! Traz o meu vestido
preto!

EXT. FRENTE DE CASA MISERÁVEL - NIGHT


Do seu esconderijo, Roque vê quando Porcina - já vestida de
preto -, Sinhozinho e Navalhada saem da casa e vão até o
carro. Sinhozinho abre a porta de trás, pega a mão de
Porcina, beija-a, e depois a ajuda a entrar no carro. Os
capangas de Navalhada também entram no carro, e este vai
embora. Roque um instante ali, sem saber o que fazer...
Ouve-se sobre a sua imagem a voz de Sinhozinho vindo de uma
cena anterior.
SINHOZINHO
Eu não vou roubar: vou expropriar!
O problema é o sacristão, que mora
na igreja: você.
Roque ainda tentando se situar naquilo tudo... E então ele
levanta, entra no mato de novo e se afasta.
Enquanto ESCURECE lentamente se ouve um barulho distante de
buzinas que vai aumentando...
ATÉ QUE CLAREIA
E ENTÃO ESTAMOS
NO:

EXT. CENTRO DE SÃO PAULO - DAY


Aquela confusão de sempre num dia de semana da Avenida
Paulista. Um homem parado diante de uma banca de jornais a
ler as manchetes: é Roque. Sobre esta imagem aparece o
letreiro:
VINTE ANOS DEPOIS.
Roque fixa sua atenção num dos tópicos da primeira página de
um jornal, que diz:
ASA BRANCA QUER BEATIFICAÇÃO DE ROQUE SANTEIRO.
Roque tira as moedas do bolso, compra um exemplar do jornal,
procura a notícia lá dentro... Enquanto ESCURECE lentamente,
o barulho da cidade vai sumindo...
ATÉ QUE CLAREIA
E ENTÃO ESTAMOS
DE NOVO NA:

INT. ENTRADA DA IGREJA - DAY


Roque diante das imagens de gesso e a parede vazia onde
antes esteve o retábulo precioso. Ouve-se o som de fogos
vindo lá da praça. Roque caminha em direção à lateral da
igreja, entra por uma porta diante da qual se vê uma escada,
trata de subir...

EXT. IGREJA / TORRE - DAY


Roque desemboca na torre estreita da igreja na qual fica o
sino. Ele vai se debruçar sobre a amurada e, assim meio
escondido, vê a festa da inauguração da sua estátua em curso
lá embaixo.
PONTO DE VISTA de Roque: Porcina, o Arcebispo, Padre Rocha,
Florindo, Pombinha, Zé das Medalhas, Lulu, Astromar e outros
ilustres ouvem Sinhozinho a meio de um discurso.
SINHOZINHO
E assim Roque Santeiro morreu,
tentando salvar o bem mais precioso
de Asa Branca...
CORTA PARA:

EXT. ASA BRANCA / PRAÇA - DAY


Sinhozinho continua com o discurso.
SINHOZINHO
Por isso, por saber de sua fé
inquebrantável e do valor de seu
sacrifício é que eu, vosso
representante no Senado, Sinhozinho
Malta, envidei esforços e consegui
trazer até aqui o Arcebispo, para
inaugurar essa estátua e
reivindicar, em nome do povo bom
desta cidade, que peça ao Vaticano
a beatificação do nosso santo
mártir!
Mais fogos espocam no ar. A massa de romeiros aplaude.
Porcina se agita e o véu lhe cai dos ombros. Ao lado dela, o
Arcebispo vira o rosto para o outro lado. Santusa se
aproxima e trata de cobri-la de novo. Sinhozinho faz um
sinal e Porcina vai se colocar ao lado da estátua, que
continua coberta com panos e plásticos. A expectativa em
torno. O Arcebispo em nenhum momento vai olhar para Porcina.
Uma fita tem que ser desamarrada para que ela enfim se
liberte e apareça. Porcina vai até a estátua e desfaz o laço
de fita. Depois puxa os plásticos que a cobrem... Mas eles
não saem.
PORCINA
(resmunga )
Merda!
Ela tenta de novo, não consegue...
PORCINA (CONTINUACAO)
(resmunga)
Puta que o pariu!
E então Sinhozinho vai até lá, pega em outra ponta do
pano...
SINHOZINHO
(fala baixo )
Olha essa boca de latrina!...
PORCINA
(fala baixo)
A bosta do Arcebispo nem olha pra
mim, fica só com aquela cara de
nojo!
SINHOZINHO
Deixa pra lá.
Puxa várias vezes o plástico... E nada.
PORCINA
Não falei que ia dar errado?
SINHOZINHO
(fala baixo) Agora chega!
Os dois puxam o pano, que cede revelando a estátua: Roque
Santeiro de pé, os joelhos dobrados, o rosto virado para um
lado, a mão no peito sobre um ferimento de bala... E Beato
Salu agarrado às suas pernas. Os fotógrafos fazem a festa.
Matilde cochicha com Ninon e Rosaly.
MATILDE
Eu não falei que a gente ia se
divertir?
Florindo cochicha com Pombinha.
FLORINDO
Como foi que o Beato Salu entrou
ali?
POMBINHA
Aproveitou a confusão e se meteu
por debaixo dos plásticos!
Beato Salu ergue os braços. Seus fiéis, reunidos num bloco
no meio da multidão, gritam em coro: "aleluia, aleluia!"
BEATO SALU
Antes de morrer meu filho Roque
Santeiro, que agora é santo como
eu, fez voto de pobreza, por isso
filisteus, arrependeivos!
Sinhozinho faz um gesto para Rodésio, que está num canto com
dois homens...
BEATO SALU (CONTINUACAO)
Pois Deus vos manda através de mim
um recado.
Beato Salu aponta para Sinhozinho Malta.
BEATO SALU (CONTINUACAO)
A ganância e a avareza serão a
vossa desgraça e o vosso fim!
O Arcebispo se adianta, e sua voz troveja quando ele fala.
VOSSA EMINÊNCIA
Quem é este ímpio que se atreve a
falar em nome do Senhor?
Rodésio e os dois homens se precipitam sobre o Beato Salu.
BEATO SALU
Eu sou o Pai, Roque é o filho, e
agora só falta o/
Rodésio e os dois homens arrancam Beato Salu dali e saem a
arrastá-lo... Ouve-se o piar de um pássaro lá no alto. O
Beato olha e vê um pássaro de porte médio a sobrevoar a
praça.
BEATO SALU (CONTINUACAO)
Espírito Santo!
Rodésio e seus homens arrastam o Beato e o levam embora. Os
fiéis de Salu vão atrás aos gritos. Sinhozinho e Porcina
olham a estátua de alto e baixo... E quando o olhar deles
chega à sua cabeça uma cagada de pássaro lhe cai em cima.
Todos olham para o alto, horrorizados com aquele ultraje...
E vêem o pássaro lá no alto sobrevoando.
PORCINA
Isso é um insulto!
Sinhozinho Malta saca da arma que traz escondida na cintura
e, num gesto rápido, atira... E acerta: o pássaro solta um
último e lancinante grito, desaba no chão e fica lá morto.
Um instante de absoluto silêncio...
E então se ouve a gritaria generalizada da multidão de fiéis
e romeiros, que se aproximam da estátua e tratam de tocar
nela e abraçá-la aos gritos de ROQUE, SANTINHO, ROQUE, MEU
SANTO...
Porcina fala baixo para Sinhozinho.
PORCINA (CONTINUACAO)
Tá todo mundo rezando. Mas
dinheiro, que é bom...
Sinhozinho vai até a estátua e, enquanto fala, tira um
cheque do bolso.
SINHOZINHO
Atenção fiéis, Roque Santeiro
aceita doações que nos ajudem a
honrar melhor sua memória, é só
fazer o depósito naquela caixa ao
pé da estátua...
Sinhozinho vai até a caixa, exibe o seu cheque no ar...
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
Essa é a minha doação... Dez mil
Reais!
O povo aplaude entusiasmado. Sinhozinho vai ficar ao lado de
Porcina de novo.
PORCINA
Dez mil Reais?!...
SINHOZINHO
E daí? Vai voltar pro meu bolso...
Sinhozinho vai até o Arcebispo. Júnior, que estava ali
perto, vai com ele.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
E quanto a Vossa Eminência?
PADRE ROCHA
Está cansada!
SINHOZINHO
Meu filho Júnior vai leválos à
minha fazenda, lá Vossa Eminência
pode repousar algumas horas... E
assim estará em plena forma logo
mais à noite para a inauguração
oficial da Cidade Santa.
Júnior sai com Padre Rocha e o Arcebispo... Que se vê diante
de uma acintosa Porcina. Esta lhe faz uma vênia... E permite
que o Arcebispo, através do seu decote, lhe veja até o
estômago. O Arcebispo vira o rosto pro outro lado e vai
embora. Sinhozinho se aproxima de Cego Jeremias, que está
ali desconsolado com seu guia do lado.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
Fique perto da estátua e cante o
ABC do morto.
CEGO JEREMIAS
(grita )
Como é que eu vou fazer isso se ele
tá vivo?
Zé das Medalhas, que ia passando com Lulu a apregoar suas
mercadorias e ouviu, intervém.
ZÉ DAS MEDALHAS
Quem tá vivo?
SINHOZINHO
A mãe do curioso!
Zé das Medalhas e Lulu se afastam. Porcina, Florindo e
Pombinha se aproximam. Sinhozinho fala com o cego.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
Quero todo mundo que diz ter visto
o falecido lá na prefeitura!
Ele se volta para Florindo.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
Inclusive a destrambelhada de sua
filha.
De novo o PONTO DE VISTA de Roque, lá no alto da torre da
igreja: ele vê Sinhozinho se afastar, seguido de Porcina,
Florindo, Pombinha, o Cego Jeremias e seu guia e Rodésio. A
multidão continua a circular em torno da estátua na praça.
Roque recua.

INT. CASA DE FLORINDO / SALA - DAY


Cininha a dormir no sofá, abraçada ao próprio retrato. A CAM
desvia e vai mostrar a porta do armário, que se abre
lentamente. Miguel e Clarinha vão sair de lá, quando ouvem
ruídos na fechadura, recuam e voltam a se trancar
apressadamente. A porta se abre e entram Florinda e
Pombinha. Esta olha para a filha e tem um instante de
ternura. Vai até ela e lhe faz um carinho enquanto fala.
POMBINHA
Não era melhor deixar ela dormindo
até passar isso tudo?
Cininha abre os olhos.
CININHA
Quem falou que eu tou dormindo?
FLORINDO
É bom mesmo que esteja acordada,
Sinhozinho quer falar contigo.
CININHA
Sobre o quê?
PORCINA
Essa história de ter visto o
falecido.
CININHA
Ele está vivo!
PONTO DE VISTA de Miguel e Clarinha através da fresta no
armário.
CININHA (CONTINUACAO)
E eu o vi! Ele estava lá como Deus
o fez/
Pombinha sapateia de ódio.
POMBINHA
Não agüento mais ouvir falar
naquele negro!
Florindo pega Cininha pelo braço e sai puxando em direção à
porta.
FLORINDO
Você vem comigo.
Pombinha vai atrás deles. Os três saem. A porta do armário
se abre, Miguel e Clarinha saem de lá.
CLARINHA
Até que enfim!
MIGUEL
Agora é com a gente mesmo.
E eles começam a remexer tudo... Sem dar importância à
moldura, com a foto de Cininha, que esta deixou sobre o
sofá.

EXT. ASA BRANCA / RUA PRINCIPAL - DAY


Matilde, Ninon e Rosaly a distribuir panfletos com os
jornalistas.
MATILDE
E não esqueçam rapazes, na boate
Sexus o primeiro drinque é sempre
por conta da casa... E de noite,
além das meninas, a grande atração
é o Dijei Aloprado... E também
temos/
Ela se corta ao ver Florindo e Pombinha entrarem na
Prefeitura, a levar Cininha pelo braço... E então completa.
MATILDE (CONTINUACAO)
Música ao vivo!

EXT. FRENTE DA BOATE SEXUS - DAY


Matilde, seguida de Ninon, Rosaly e um séquito de
jornalistas, entram na boate.

INT. BOATE SEXUS - DAY


Matilde vai até o aparelho de som e o liga. Junto com a
música, entram os efeitos luminosos, típicos de uma boate
meio brega. Matilde se volta para o grupo de jornalistas.
MATILDE
O primeiro drinque é por minha
conta, mas o relax com os meninas
tem um preço fixo. (bate palmas)
Cadê as bailarinas?
Algumas moças em trajes sumários vêm do interior da casa.
Duas delas sobem no queijo e começam a se exercitar nos
canos. Garçons surgem do nada com bandejas cheias de
drinques e vão servindo. Um jornalista se aproxima de
Matilde e passa a mão nela, mas ela o afasta com jeito.
MATILDE (CONTINUACAO)
Eu não exerço a profissão, meu bem,
só administro.
O jornalista vai tentar com uma das meninas. Matilde se
reúne de novo com Ninon e Rosaly.
MATILDE (CONTINUACAO)
Primeiro entraram na prefeitura
Sinhozinho Malta, a viúva e o cego.
Agora chegaram lá Florindo Abelha,
o estupor da mulher dele, e a
maluca da filha...
ROSALY
Só pode ser uma reunião de
emergência.
NINON
Num dia como hoje?
MATILDE
O que será que está acontecendo?
Mal ela diz isso e um cliente entra na casa... É Roque. Ele
pega um copo na bandeja de um garçon que vai passando, e
trata de sentar num canto.

INT. CASA DE FLORINDO / SALA - DAY


Tudo revirado. Miguel e Clarinha olham em torno.
CLARINHA
Quando eles virem essa bagunça...
MIGUEL
Vão achar que entrou ladrão na
casa.
CLARINHA
A gente não achou foto nenhuma!
MIGUEL
Ainda falta procurar lá dentro.
Miguel se aproxima de Clarinha, se insinuando.
MIGUEL (CONTINUACAO)
A gente aproveita e namora um
pouquinho.
Ele a beija, ela não refuga, mas deixa claro que não está no
clima.
CLARINHA
Acho melhor desistir.
MIGUEL
Nada disso. Vamos começar pelo
quarto de Cininha. (olha em torno)
Depois a gente arruma isso tudo.
Eles saem para o interior da casa... Ainda sem ligar para a
moldura, com a foto de Cininha, que está jogada sobre o
sofá.

INT. PREFEITURA / GABINETE DO PREFEITO - DAY


Sinhozinho na cadeira do prefeito. Florindo de pé ao seu
lado. Diante deles Porcina, o Cego Jeremias com seu guia e
Cininha. Pombinha à parte. Sinhozinho se dirige aos três à
sua frente.
SINHOZINHO
Agora me digam: o que foi que vocês
viram?
CININHA
Eu vi Roque descer de um ônibus de
romeiros.
PORCINA
E eu o vi no meio do povo, a olhar
pra mim... E ele tava rindo!
CININHA
Se estava rindo era da sua cara
deslavada!
Porcina se volta pra ela disposta a dar o troco.
PORCINA
Escuta aqui, sua lambisgóia
destrambelhada/
Sinhozinho a interrompe.
SINHOZINHO
As duas me façam o favor de parar
com isso!
Elas obedecem. Sinhozinho se volta para o cego.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
E você, Jeremias, viu o quê?
CEGO JEREMIAS
Eu não vi nada...
Ele tira os óculos e mostra os olhos esbranquiçados.
CEGO JEREMIAS (CONTINUACAO)
Porque Deus me tirou esse dom
quando eu ainda era menino.
O cego bota os óculos de novo.
CEGO JEREMIAS (CONTINUACAO)
Mas ouvi a voz dele e reconheci na
hora! Quem tava naquele trem era
Roque Santeiro!
Sinhozinho se volta para o guia.
SINHOZINHO
Como ele era?
GUIA
Preto e metido a besta. Quando o
cego falou, ele levou o maior
susto. Pulou do trem e saiu
correndo!
CININHA
Estão vendo só como eu não estava
delirando?
SINHOZINHO
Estava sim... Você e todos os
outros!
FLORINDO
Mas se três pessoas dizem que viram
Roque/
Sinhozinho interrompe.
SINHOZINHO
Ou ficaram doidas, ou estão
mentindo! Pois todos aqui tão
fartos de saber que Roque não era
um preto metido a besta... Era
branco... E está morto!
CININHA
Pelo amor de Deus, senador, se
estou lhe dizendo/
Sinhozinho interrompe de novo.
SINHOZINHO
Não vou repetir duas vezes: Cego
Jeremias, vá na praça e trate de
cantar o ABC de Roque Santeiro.
Dona Pombinha, leve sua filha pra
casa... O assunto tá encerrado!
Jeremias sai com o guia, Pombinha com Cininha.
FLORINDO
Senador, por mais que o senhor diga
que não/
Sinhozinho o interrompe.
SINHOZINHO
Você não acredita em mim... E eu
muito menos. Tudo indica que um
visitante ilustre desceu do céu e
baixou na nossa cidade.
PORCINA
Então é ele mesmo?!
FLORINDO
Se o corpo nunca apareceu... É
claro que ele pode estar vivo!
PORCINA
E só agora deu as caras?
FLORINDO
O que ele quer?
SINHOZINHO
Isso ele vai dizer quando aparecer
na nossa frente de uma vez por
todas... E até lá nós é que vamos
nos fingir de mortos!

INT. CASA DO PREFEITO / SALA - DAY


Miguel e Clarinha acabam de arrumar a sala.
CLARINHA
Pelo menos deu pra arrumar tudo de
novo
MIGUEL
É. Mas nem sinal da tal foto.
CLARINHA
Invenção da Cininha! Até meu pai,
que namora com aquela doida, diz
que ela é/
E ela se corta ao ouvir barulho de chave na fechadura.
Correm pro armário, e mal têm tempo de fechar a porta, pois
Pombinha já entra com Cininha.
POMBINHA
Não é melhor tomar um calmante?
CININHA
Não, mãe...
POMBINHA
Mas minha filha/
Cininha interrompe.
CININHA
Roque vai me procurar a qualquer
momento! Tenho que ficar bem
acordada.
Pombinha pega a filha pelo braço. Cininha se deixa levar.
POMBINHA
Que castigo, meu Deus, que sina!
As duas somem no interior da casa. Miguel e Clarinha abrem a
porta do armário rumo à porta de saída... Mas, quando estão
lá, Miguel pára de repente... E, SOBRE o rosto de Miguel,
entra INSERT da cena em que Cininha, do PONTO DE VISTA deles
dentro do armário, beija a própria foto na moldura:
CININHA
Por que fez isso comigo, meu amor?
Através de uma fresta na porta de um armário, Miguel e
Clarinha vêem a cena: Cininha falando com sua foto como se
ela fosse de outra pessoa.
CININHA (CONTINUACAO)
Se voltou pra Asa Branca, por que
fugiu de mim ?
Ela pega a foto e a beija apaixonada.

FIM DO INSERT.
Ainda o ROSTO de Miguel. Ele se vira em SLOW MOTION e olha
para o retrato emoldurado sobre o sofá. Clarinha na
expectativa, Diante da porta já aberta. Miguel caminha em
direção ao sofá, pega a moldura, olha-a um instante... E
então, com gestos rápidos solta a parte de trás, retira o
papelão que está ali e, entre este e a foto de Cininha, acha
outra foto. Clarinha, ao ver isso, se aproxima. Os dois se
debruçam sobre a foto, e então se lê a dedicatória que está
escrita nela:
"A Cininha Abelha, com o amor eterno do seu sempre Roque
Duarte".
Miguel e Clarinha batem punhos fechados um no outro, num
cumprimento triunfal. Ele entrega a foto pra ela, fecha a
moldura e a coloca outra vez sobre o sofá... Eles vão sair,
quando ouvem a voz de Florindo Abelha vindo lá de fora.
FLORINDO
Mas quem deixou a porta da rua
aberta?
MIGUEL
É o prefeito!
CORTA PARA
EXT. FRENTE DA CASA DO PREFEITO - DAY
Florindo olha pro céu e reage...
FLORINDO
O pior é que a meteorologia tava
certa: vai chover!
Florindo vai entrando na casa.
CORTA PARA

INT. DENTRO DA CASA DO PREFEITO. - DAY


Miguel e Clarinha correm para o armário e se trancam lá de
novo. Florindo entra na casa, fecha a porta por dentro com a
chave e segue para o interior desta.
CORTA PARA

INT. DENTRO DO ARMÁRIO - DAY


CLARINHA
Ele fechou a porta! E agora?
MIGUEL
Vamos pular a janela!
Os dois chegam a abrir a porta do armário, quando ouvem as
vozes que vêm chegando.
FLORINDO
Ainda bem que ela dormiu pesado.
Pombinha e Florindo entram na sala.
POMBINHA
Por causa do sossegaleão que eu
dei.
FLORINDO
De qualquer modo vou fechar a porta
por fora.
Os dois saem. O barulho da porta sendo fechada por fora.
Miguel e Clarinha saem do armário correm em direção à
janela, abrem...
CLARINHA
Tem grades!
Miguel vai até as outras janelas, abre-as também...
MIGUEL
Todas elas!
Neste momento se ouve a voz de Cininha vindo do interior da
casa.
CININHA
Pensam que engoli a droga do
sossegaleão?...
Miguel e Clarinha correm de novo para o armário e se
fecham... Cininha entra na sala e vai direto à porta.
CININHA (CONTINUACAO)
Estão muito enganados!
Ela leva a mão ao trinco da porta.
CININHA (CONTINUACAO)
Tenho que ir atrás de Roque, ele
veio me buscar, a gente vai
embora...
Cininha mexe no trinco, mas este não abre e ela constata o
óbvio.
CININHA (CONTINUACAO)
Está trancada por fora!
Cininha olha em torno: A foto jogada sobre o sofá. Ela vai
até lá, pega-a e fala com ela.
CININHA (CONTINUACAO)
Você veio atrás de mim, meu amor,
eu sei! Querem impedir que a gente
fuja... Mas não adianta.
Cininha cobre a foto de beijos.
CAM desvia, vai até o armário, entra nele através da
fresta...
Miguel mostra a foto de Roque a Clarinha. Ela sorri. Ele se
aproxima e, imitando Cininha, cobre a moça de beijos. Ela
deixa que ele faça isso, os dois vão ficando cada vez mais
íntimos... Cininha liga a televisão, ouve-se a voz do
locutor...
LOCUTOR
Daqui a pouco, diretamente da
Cidade Santa de Asa Branca, o
espetáculo da paixão de Roque
Santeiro!
Cininha senta diante da televisão.
CAM procura o armário de novo, entra pela fresta e flagra,
lá dentro, Miguel e Cininha se amando na maior delicadeza
pra não fazer barulho.
INT. CASA DE SINHOZINHO / QUARTO - DAY
O Arcebispo a dormir numa cama de dossel. Cortinas
transparentes o protegem. Através de uma delas vê-se o seu
rosto: no sono ele tem um ar transtornado. A CAM se aproxima
cada vez mais do seu rosto...
ESCURECE.
E quando CLAREIA de novo é dia e estamos na praça de Asa
Branca.
Com gestos solenes, diante da multidão em suspenso, o
Arcebispo se aproxima da estátua ainda coberta com o
plástico, desamarra a fita, puxa o plástico uma vez, duas,
uma terceira já mais bruscamente. Ele se desprende afinal,
mas debaixo dele, em vez da estátua, quem está na mesma pose
dela é Porcina, completamente nua, com a mão a tapar o
ferimento sobre o seio.
O Arcebispo solta um grito de horror...
E agora o padre já está lhe dando um copo d´água. Santusa e
Júnior também estão lá.
VOSSA EMINÊNCIA
Coisa horrível!
SANTUSA
Mas foi apenas um sonho.
PADRE ROCHA
Se Vossa Eminência quiser ir
embora...
JÚNIOR
Não! A inauguração da Cidade Santa
começa daqui a pouco, o carro já
está lá fora lhe esperando...
SANTUSA
Vossa Eminência não se preocupe, eu
lhe preparo um chá calmante.
Santusa sai, seguida de Júnior. O padre pega o copo vazio
das mãos do Arcebispo.
VOSSA EMINÊNCIA
Aquela tal de Porcina é um monstro!

INT. CASA DE PORCINA / QUARTO - DAY


Porcina, o olhar sequioso, observa enquanto Sinhozinho acaba
de contar as pilhas de dinheiro. Ele pega algumas das pilhas
e olha pra Porcina.
PORCINA
Quanto?
SINHOZINHO
Muito mais do que eu sonhava! A
inauguração da estátua foi um
sucesso, Porcina!
Ele joga as pilhas de dinheiro para o alto, as notas caem
sobre os dois em SLOW MOTION.
PORCINA
Quem diria? Já cobrei cinco mil
réis pra tirar o atraso de homem lá
na zona, e agora tomo banho de
dinheiro!
Ela junta as notas de novo. Sinhozinho trata de arrebatá-las
de sua mão.
SINHOZINHO
A Fundação Roque Santeiro para a
Proteção do Meio Ambiente agradece!
PORCINA
(amuada)
E minha proteção do meu meio
ambiente? Não ganha nada?
Sinhozinho separa algumas notas e entrega a ela.
SINHOZINHO
Pros seus alfinetes.
PORCINA
Não esqueça dos alfinetes do
prefeito.
Sinhozinho vai separando as pilhas enquanto fala.
SINHOZINHO
Do prefeito... Do padre... Do
pastor... Do juiz... Dos
vereadores... Do pessoal lá de
Brasília... Etc., etc., etc...
PORCINA
Sem esquecer o de Roque Santeiro.
SINHOZINHO
Lá vem ela com este assunto.
PORCINA
Só pode ser por isso que ele veio:
pelo dinheiro!
SINHOZINHO
Se foi, a gente dá o que ele
merece.
PORCINA
E se ele pedir muito?
SINHOZINHO
Aí só tem um jeito... Mas eu não
digo qual.
PORCINA
Eu te falei logo cedo que não ia
dar/
SINHOZINHO
(corta)
Agora não é hora. Vim aqui pra
festejar contigo o nosso sucesso!
Porcina faz o doce.
PORCINA
Tive um dia cheio, tou morta de
cansada...
SINHOZINHO
Se eu fizer de cachorrinho tu te
anima?
PORCINA
(aponta o chão)
Só se for quatro!
Sinhozinho cai de quatro e, imitando cachorro, com a língua
de fora, vem lamber o pé dela.
SINHOZINHO
Auf, auf, auf!
PORCINA
(dá pontapé)
Cachorro mais sarnento!
SINHOZINHO
(insiste) Auf, auf, auf!
Sinhozinho vai subindo por cima dela, aos poucos ela vai
aderindo ao jogo.
PORCINA
Cachorro mais semvergonha...
Tarado!
SINHOZINHO
Auf, auf, auf!
Ele lambisca o pescoço e o rosto de Porcina, que cai na
gargalhada.
PORCINA
Tenho cosca!
SINHOZINHO
Auf, auf, auf!
PORCINA
(dá mordida nele)
Auf, auf, auf digo eu!
SINHOZINHO
Mas que cachorra da moléstia!
PORCINA
(morde outra vez) Safado!
E os dois ficam ali, aos latidos, atracados... Até que a luz
de um relâmpago ilumina o céu, o trovão ribomba após alguns
segundos...
PORCINA (CONTINUACAO)
(horrorizada) A festa!
SINHOZINHO
Não se preocupe, palavra de
Sinhozinho Malta: com chuva, Roque
Santeiro ou o diabo a quatro... a
festa vai ser o maior sucesso!
Entra já aqui a música da cena seguinte.

INT. BOATE SEXUS / SALÃO - DAY


Ninon e Rosely, ao som de uma música sensual, mostram suas
aptidões nos dois canos sobre o queijo. Sentado no mesmo
lugar, Roque está de costas para elas. Matilde se aproxima
dele.
MATILDE
Que tal uma hora de relax com uma
das meninas?
ROQUE
Não... Só vim por causa de Roque
Santeiro.
MATILDE
Nós também viemos parar aqui pelo
mesmo motivo.
Roque olha em torno.
ROQUE
E o que Roque tem a ver com isso?
MATILDE
Seu enorme talento para produzir
dinheiro. De todos os milagres que
atribuem a Roque esse é o único que
reconheço.
ROSALY
Então vamos rezar por ele.
Roque levanta e vai embora sob o olhar de Matilde. Ninon e
Rosaly continuam a evoluir sobre o queijo.

EXT. ENTRADA DA CIDADE SANTA - NIGHT


Filas enormes diante das bilheterias. Zé das Medalhas e Lulu
a distribuir panfletos com os romeiros.
ZÉ DAS MEDALHAS
E não se esqueça de passar na nossa
loja lá no shopping.
Lulu vê Astromar ali perto e o mostra a Zé. Os dois vão até
lá.
ZÉ DAS MEDALHAS (CONTINUACAO)
Cadê Miguel mais Clarinha?
ASTROMAR
Ninguém sabe.
LULU
O senhor disse que ia ficar de olho
neles!
ASTROMAR
No meio dessa confusão toda? Perdi
o contato.
Ouve-se um grito: é o Arcebispo!
Astromar, Lulu e Zé se voltam a tempo de ver a comitiva de
carros que vai chegando. Sinhozinho, Santusa e Júnior no
primeiro, o Arcebispo e o padre auxiliar no segundo,
Porcina no terceiro - um conversível -, Florindo e Pombinha
no quarto. Uma chegada triunfal. O povo aplaude. Num lugar
privilegiado perto do portão, Roque aprecia a cena.
Sinhozinho sai do carro, volta-se para o povo e abre os
braços...
CORTA PARA

INT. SALA DA CASA DO PREFEITO - DAY


Diante da televisão, Cininha vê quando Sinhozinho solta um
brado.
SINHOZINHO
Viva Roque Santeiro!
O povo aplaude histérico... E então Cininha tem sua atenção
voltada para alguma coisa num canto da tela... Um vulto que
se esgueira e vai entrando sem ser percebido na Cidade
Santa...
CININHA
(grita )
É ele!

EXT. ENTRADA DA CIDADE SANTA - DAY


Roque passa sem ser visto pelos porteiros, que prestam
atenção à chegada da comitiva. Um relâmpago corta os céus,
seguido pelo ribombar do trovão. Roque se perde no meio das
pessoas que já estão dentro da Cidade Santa. A comitiva,
agora a pé, e sob os aplausos do povo, também vai entrando.

INT. CASA DO PREFEITO / SALA - NIGHT


Cininha, completamente descontrolada, dá socos na porta e
tenta arrancar as grades das janelas.
CININHA
Tenho que sair daqui!
Através da fresta na porta do armário Miguel e Clarinha vêm
aquilo.
CININHA (CONTINUACAO)
Roque foi me procurar na festa!
Ela pega um cabide que está esquecido sobre a mesa, vai até
a porta, enfia o arame na fechadura, começa a mexer de um
lado pro outro, desesperada até que se ouve um clic, Cininha
reage pasma... A porta está aberta! Cininha sai correndo.
Miguel e Clarinha saem do armário.
MIGUEL
Como a gente vai saber que essa
foto é mesmo de Roque Santeiro?
CLARINHA
Os arquivos do meu pai! Ele vai
escrever um livro sobre Asa Branca
e o milagre, tem várias pastas de
recortes da época sobre o
assunto...
MIGUEL
Vamos já pra tua casa!
Eles saem

EXT. ASA BRANCA / PRAÇA PRINCIPAL - NIGHT


Cininha entra na praça a correr, pára diante da estátua,
fica a olhar um instante... E então fala com a estátua.
CININHA
Eu sei por quê você voltou... Pra
me buscar!
Um relâmpago risca o ar, o trovão ribomba... Cininha solta
um grito de pavor e sai correndo. Miguel e Clarinha também
desembocam na praça, e passam a mil por hora.

EXT. CIDADE SANTA / ENTRADA - NIGHT


Cininha chega correndo e tenta passar na catraca, não
consegue. Um segurança vem ver o que está acontecendo, ela
se dirige a ele...
CININHA
Me deixa entrar!
SEGURANÇA
Só com ingresso.
CININHA
Perdi o meu!
SEGURANÇA
Então já era.
CININHA
Eu sou Cininha Abelha, filha do
prefeito, se você me barrar ele te
dá um chute na bunda...
SEGURANÇA
Tá bom!...
O segurança libera a catraca, Cininha entra... Outro
relâmpago risca o céu, ouve-se o ribombar do trovão...

EXT. CIDADE SANTA / LAGO ARTIFICIAL - DAY


"Roque Santeiro", o ator, de pé sobre o barco, com os
bandidos de arma em punho a vigiá-lo nas margens...As falas
são amplificadas, já que os atores usam microfone
ROQUE
Ninguém vai roubar o tesouro da
nossa igreja... Eu não vou deixar!
"Porcina", a atriz, surge da escuridão aos gritos.
PORCINA
Não Roque, pelo amor de Deus, não
me faça essa loucura!
CORTA para o palanque onde estão Porcina, Sinhozinho,
Santusa, Júnior, Florindo, Pombinha, Astromar, o Arcebispo e
o padre-auxiliar.
PORCINA (CONTINUACAO)
Essa lambisgóia não parece nada
comigo... Nem peito ela tem!
Ouve-se a voz de "Roque".
ROQUE
Eu tenho uma arma!
Porcina repete junto com "Porcina" atriz.
PORCINA
Mas eles são muitos!
Pombinha comenta com Santusa.
POMBINHA
Da próxima vez ela vai querer fazer
ela mesma... Quanto quer apostar?
SANTUSA
Sinhozinho não vai permitir.
POMBINHA
(maldosa)
Será?
O Arcebispo fala baixo com o padre-auxiliar.
VOSSA EMINÊNCIA
Quanto tempo vai durar essa
canastrice?
PADRE ROCHA
Roque morre, aí tem um intervalo...
E depois vem o último quadro,
quando ele ascende aos céus.
Ouve-se a voz de "Roque", o ator, fora de cena.
ROQUE
Eles são muitos, mas tenho Deus ao
meu lado!
VOSSA EMINÊNCIA
Ele que nos perdoe...
CORTA para a cena: "Roque", o ator, a encarar os bandidos,
"Porcina", a atriz, no auge da aflição ali na margem.
ROQUE
Devolvam o tesouro da igreja!
"Navalhada", o ator, intervém.
NAVALHADA
Não!!!!!
ROQUE
Pois então se preparem para sofrer
a ira divina!
"Roque" saca de sua arma.
A multidão, que ocupa todos os espaços em torno do lago,
reage aos gritos... "NÃO FAÇA ISSO", "PELO AMOR DE DEUS,
ROQUE", "ELES VÃO LHE MATAR!" No meio daqueles rostos
desesperados vê-se um único que permanece impassível: é o
próprio Roque.
Os bandidos todos atiram uma interminável rajada de balas em
direção a Roque, com direito a som amplificado e efeitos de
luz. Roque, atingido no peito, repete a posição em que
aparece na estátua lá da praça. O público no maior
desespero: para eles é tudo real! Uma explosão faz o barco
pegar fogo, uma cortina de fumaça o envolve...
Vê-se, no detalhe, o ator mergulhar na água do lago e, sem
que ninguém dê atenção a isso, sair nadando.
"Navalhada" grita com sua voz amplificada.
NAVALHADA
O tesouro é nosso, cambada...
Vambora!
Os "bandidos" saem de cena. "Porcina", a atriz, a fazer
gestos desesperados em direção ao barco.
PORCINA
Meu marido, o amor de minha vida...
Porcina, a verdadeira, repete junto com a atriz no palco.
PORCINA (CONTINUACAO)
ELE ESTÁ MORTO!
"Sinhozinho", o ator, chega correndo na margem do Rio de
arma na mão.
SINHOZINHO
Que desgraça! Vim correndo para
ajudar Roque Santeiro neste bom
combate... Mas não cheguei a tempo!
Ele passa um braço protetor sobre os ombros dela.
PORCINA
E agora, Senador Sinhozinho Malta,
o que faremos?
"Sinhozinho" olha dramaticamente para o barco em chamas.
SINHOZINHO
Rezaremos por Roque Santeiro... E
para o resto dos nossos dias
honraremos sua memória!
As luzes se apagam - inclusive as chamas falsas no barco
incendiado. O povo aplaude histérico. No meio dele vê-se
Cininha a procurar em torno.
CORTA PARA

EXT. CIDADE SANTA / LAGO ARTIFICIAL - DAY


A margem do lago artificial onde não há público: "Roque", o
ator, tenta sair da água com certa dificuldade, até que a
mão negra e lhe oferece ajuda: é o verdadeiro Roque.
O ator aceita a ajuda, segura a mão de Roque e este o retira
da água.
CORTA PARA

EXT. CIDADE SANTA / PALANQUE - DAY


De novo no palanque. Porcina se abana.
PORCINA
Louca pra tomar uma caipirinha.
O Arcebispo ouve e reage horrorizado. Sinhozinho lhe fala
entredentes.
SINHOZINHO
Olha o Arcebispo.
Garçons com bandejas de refrescos, que Santusa identifica:
suco de abacaxi, suco de laranja e limonada. Ela oferece um
copo ao Arcebispo, que recusa. Os outros todos aceitam.
Ficam ali a confraternizar. Ouve-se a voz do locutor vinda
do serviço de som.
LOCUTOR
Atenção: as lojas do shopping já
estão funcionando. Após um
intervalo de meia hora teremos o
grande momento do nosso
espetáculo... A ascensão aos céus
de Roque Santeiro!
Sinhozinho fica à parte com Florindo.
SINHOZINHO
E o sujeito?
FLORINDO
Até agora nem sinal.
INT. CIDADE SANTA / CAMARIM - DAY
"Roque", o ator, entra já falando, com o Roque verdadeiro
atrás de si.
ROQUE
E olha que em garoto eu nadei pelo
Fluminense, lá no Rio de Janeiro...
Mas não adiantou. Aquela água
parecia geléia! Ainda bem que você
me ajudou. Mas agora me dá licença,
eu tenho que me concentrar pra cena
de ascensão de Roc/
E ele se corta, porque Roque lhe dá uma tremenda paulada na
cabeça. O ator desaba e fica no chão desmaiado. Roque o
examina, vê que ele não acorda tão cedo, larga o pedaço de
pau...
ROQUE (CONTINUACAO)
Dorme com os anjos!
O relâmpago risca o céu lá fora... E ouve-se o ribombar do
trovão.

INT. CASA DE ASTROMAR / ESCRITÓRIO - NIGHT


Clarinha procurando freneticamente em várias pastas. Miguel,
com sua câmera na mão, filmando em torno. Clarinha se volta
para Miguel.
CLARINHA
Deixa isso pra lá... Me ajuda aqui!
Miguel pára de filmar e vai até ela.
MIGUEL
Achou alguma coisa?
Clarinha abre uma pasta.
CLARINHA
Os jornais da semana em que Roque
morreu.
Miguel larga a câmera e começa a folhear os jornais.
MIGUEL
Tem alguma foto dele?
CLARINHA
Tem.
Ela puxa a pasta para si, folheia rapidamente e mostra.
CLARINHA (CONTINUACAO)
Mas não está aqui.
Ela aponta um buraco na página do jornal. Miguel se curva e
lê a legenda que está impressa embaixo dele.
MIGUEL
"Roque Santeiro, o sacristão morto
pelos bandidos".
Miguel e Clarinha se olham.
CLARINHA
Alguém recortou!

EXT. CIDADE SANTA / LAGO ARTIFICIAL - DAY


A multidão aguarda o reinício do espetáculo. No meio dela,
Cininha a procurar em torno. No palanque, Astromar falando
com Pombinha e Florindo.
ASTROMAR
Tem certeza que ela está dormindo?
POMBINHA
Como um anjo!
ASTROMAR
Coitada de minha noiva.
FLORINDO
Amanhã ela acorda melhor.
Chegam Zé das Medalhas e Lulu.
POMBINHA
E a loja lá no shopping?
ZÉ DAS MEDALHAS
Tamos faturando os tubos!
LULU
Agora ficou por conta dos
empregados.
ZÉ DAS MEDALHAS
A gente veio ver a grande cena:
Roque canta pra subir!
POMBINHA
Olha a blasfêmia...
ASTROMAR
Por falar em blasfêmia...
Ele fala visivelmente se dirigindo a Zé das Medalhas.
ASTROMAR (CONTINUACAO)
Alguém aí viu minha filha?
Zé e Lulu se olham. Sinhozinho e Porcina se aproximam.
SINHOZINHO
Se quer achar a menina é só ir
atrás do filho de Zé das Medalhas.
Aquilo vai acabar em casamento!
PORCINA
Isso se antes ela não ficar
buchuda...
Astromar reage indignado.
ASTROMAR
Escute aqui, viúva, é da minha
filha que está fal/
As luzes se apagam no palanque. Ao mesmo tempo as luzes se
acendem no lago artificial. Efeitos de som e luz... E o
barco "pega fogo" de novo. Todos se acotovelam no palanque
para ver o espetáculo. O Arcebispo põe a mão na amurada,
sente alguma coisa cair sobre ela... Um pingo d´água! Ele
ergue a mão espalmada, sente cair outro pingo... Ouve-se a
voz do locutor vindo do sistema de som.
LOCUTOR
O corpo de Roque Santeiro queimou
no incêndio, mas sua alma pairou
livre sobre a terra... Até que
ascendeu aos céus!
E então os efeitos especiais da Cidade Santa chegam ao auge.
A música - que se dependesse de mim seria "We Will rock you"
- entra a um milhão de decibéis, a luz dos canhões varre a
multidão ensandecida, o barco, envolto em chamas e fumaça se
mexe lentamente, as pessoas no palanque entram em êxtase
diante daquele espetáculo...
E então Roque - não o "ator", mas o verdadeiro - surge do
meio das chamas e da fumaça sobre o barco, os braços
abertos, e aos poucos vai subindo como se flutuasse...
CORTA PARA

EXT. CIDADE SANTA / PLATÉIA - DAY


O povo histérico, Cininha no meio dele em êxtase a ver
aquilo...
CORTA PARA

EXT. CIDADE SANTA / PALANQUE - DAY


No palanque, todos pasmos a olhar a cena...
PORCINA
É ele!
SINHOZINHO
O filho da puta em pessoa!
PADRE ROCHA
É um negro!
VOSSA EMINÊNCIA
Vade Retro! É o demônio!...
CORTA PARA

EXT. CIADE SANTA / PALCO - DAY


Roque, de braços abertos enquanto ascende aos céus, começa a
gritar. Ele usa o microfone do ator que pôs a nocaute, e
sua voz se ouve amplificada.
ROQUE
ROCK! ROCK! ROCK! ROCK!
E a multidão inteira responde como se obedecesse a Fred
Mercury.
MULTIDÃO
ROCK! ROCK! ROCK! ROCK!
A histeria diante daquela imagem absurda é generalizada... E
se torna ainda pior quando o relâmpago risca o céu com
especial magnitude, o trovão que vem a seguir abafa todos os
outros sons, o vento sopra... A chuva se abate sobre a
Cidade Santa com um vigor de tempos jurássicos.
CORTA PARA

EXT. CIDADE SANTA / PALCO DO TEATRO - DAY


Preso à engenhoca que o faz ascender, Roque vê ali do alto o
caos que se instaura. As pessoas correm desordenadas,
paredes cenográficas desabam, no palanque os ilustres se
atropelam na tentativa de sair dali e ir embora...
CORTA PARA

EXT. CIDADE SANTA / PALANQUE - DAY


Num canto do palanque, alheio à gritaria, Rodésio aponta sua
arma em direção a Roque, Sinhozinho do lado dele a observar
tudo.
SINHOZINHO
Agora!
CORTA PARA

EXT. CIDADE SANTA / PALCO DO TEATRO - DAY


Roque tentando se livrar das amarras que o prendem à
engenhoca...
CORTA PARA

EXT. CIDADE SANTA / PALANQUE - DAY


Do PONTO-DE-VISTA de Sinhozinho: Roque se solta no exato
instante em que Rodésio atira. Ele cai no lago.
SINHOZINHO
Deu pra acertar?
Rodésio balança a cabeça negativamente.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
O fela da mãe tem sete vidas!
Sinhozinho olha em torno e vê o caos em que foi transformada
a Cidade Santa: o povo em pânico está destruindo tudo.
Florindo se aproxima dele.
FLORINDO
Que prejuízo, meu Deus!
SINHOZINHO
Se pelo menos fosse dinheiro do
governo... O que é que vou dizer
aos investidores?
Chuva, chuva e mais chuva, ventania, relâmpagos, trovões que
ribombam...

INT. CIDADE SANTA / CAMARIM - NIGHT


O ator desmaiado no chão. Lá fora se ouvem os ruídos do
temporal. Roque, ao lado dele, tira as roupas encharcadas de
"Roque" e vai vestir as suas, que estão jogadas em cima de
uma cadeira. Mas aí vê as roupas do ator, melhores e mais
sofisticadas, penduradas num cabide. Roque fica a olhar um
instante para as roupas do ator... E então amontoa as suas,
joga-as num canto, e trata de vestir as do outro.

INT. PREFEITURA / GABINETE DO PREFEITO - NIGHT


Sinhozinho abre a porta com estardalhaço e entra seguido de
Rodésio, que carrega Porcina nos braços. Logo atrás vem o
prefeito, Pombinha, Zé das Medalhas e Lulu. Todos molhados
até os ossos. Lá fora se ouvem os ruídos do temporal.
POMBINHA
Até numa hora dessas a viúva banca
a fresca?
PORCINA
Fresca é a sua mãe, aquela p/
SINHOZINHO
(corta )
A coitadinha torceu o pé!
LULU
Também... Com aquele salto sete e
meio!...
FLORINDO
Senhoras, por favor, isso não é
hora!
Florindo e Sinhozinho vão se colocar à parte.
SINHOZINHO
O sujeito está a fim de me
afrontar!
FLORINDO
Como ele conseguiu tomar o lugar do
ator?
SINHOZINHO
Na marra, só pode ser. Mas isso é
só um detalhe. O que interessa é
que agora eu vi: ele está aqui!
FLORINDO
Não é melhor ir atrás dele?
SINHOZINHO
Não, vamos esperar que dê notícias.
Santusa e Júnior entram com Padre Rocha, os três no maior
desespero, e molhados até os ossos.
SANTUSA
Sinhozinho, pelo amor de Deus: o
Arcebispo!
SINHOZINHO
O que aconteceu?
SANTUSA
Foi arrastado pelo povo!
Sinhozinho se volta para Rodésio.
SINHOZINHO
Vai atrás dele!
EXT. ASA BRANCA / RUAS CENTRAIS - NIGHT
Em TAKES DESCONTÍNUOS:
O caos. Só os relâmpagos iluminam a cidade sem luz. Trovões.
A chuva cai forte.
A multidão descontrolada, em pânico, arrasta o Arcebispo
que, meio em estado de choque, se deixa levar, e aos poucos
é despido de sua pompa. Alguém lhe arranca o chapéu, outro
leva sua capa, um terceiro rasga sua batina púrpura, um
quarto puxa-a... Por último lhe tiram o colarinho, o rosário
que leva no pescoço... E ele surge do meio daquilo tudo como
um homem vestido normalmente.
O arcebispo em desespero, tentando se agarrar em alguma
coisa, até que consegue: a coluna de uma varanda. Ele fica
ali, tentando resistir aos que insistem em arrastá-lo. A
porta da casa diante da qual ele parou se abre, impulsionada
pelo vento.
O arcebispo, num arranco, se joga em direção àquela porta,
pára diante dela...
Enquando a CAM vai mostrar o letreiro luminoso, que está
apagado por causa da falta de luz e identifica o local: é a
BOATE SEXUS.

INT. BOATE SEXUS / SALÃO - NIGHT


Velas por todo lado, as meninas e alguns clientes tentam
mantê-las acesas.
Matilde vem do interior da casa com um pacote de velas.
MATILDE
Estas são as últimas, vamos
economizar;
Uma lufada de vento entra pela porta aberta e apaga algumas
velas.
MATILDE (CONTINUACAO)
(caminha em direção à porta) Pelo
amor de Deus, gente, a porta está
ab/
E ela se corta, ao ver o Arcebispo, em trajes comuns e todo
desalinhado, aparecer na porta diante dela.
MATILDE (CONTINUACAO)
Vossa reverendíssima!
VOSSA EMINÊNCIA-
Reverendíssima não: eminência!
MATILDE
Desculpe.
VOSSA EMINÊNCIA
Eu preciso de ajuda!
Ninon e Rosaly se aproximam já bem animadinhas.
ROSALY
Cliente novo é?
NINON
E deve estar a perigo: nem esperou
que estiasse!
MATILDE
(baixo, para as duas) Cala a boca!
Matilde manda com um gesto que as duas se afastem. Elas
obedecem. O Arcebispo, que enquanto isso olhava em torno,
fixa o olhar no queijo, com os dois canos em cima, semi-
iluminado pelas velas.
VOSSA EMINÊNCIA
Isso aqui é uma... casa de
tolerância!
MATILDE
Bem vossa reverendíssima, quer
dizer, eminência: primeiro esse é o
meu lar e só depois/
VOSSA EMINÊNCIA
Eu vou embora.
O Arcebispo se volta para sair... E, do seu PONTO DE VISTA,
vê-se a multidão descontrolada a gritar e correr do lado de
fora da casa em meio à chuva. Matilde surge por trás dele.
MATILDE
Na falta do céu, o que o senhor
prefere: o inferno ou o purgatório?
O Arcebispo se volta para ela.
VOSSA EMINÊNCIA
Claro que é o purgatório.
MATILDE
Pois então bateu na porta certa.
Entre! Ninguém vai lhe faltar com o
respeito na minha casa.
O Arcebispo entra. Matilde fecha a porta.

INT. PREFEITURA / GABINETE DO PREFEITO - NIGHT


Sinhozinho ao telefone.
Porcina, Florindo, Pombinha, Santusa, Júnior, Zé das
Medalhas e Lulu na expectativa.
SINHOZINHO
Vossa Eminência está na sua casa?!
PORCINA
Era só o que faltava: no covil das
quengas?
FLORINDO
Agora é que ele não pede a
beatificação de Roque...
SINHOZINHO
Não se preocupe dona Matilde, vou
mandar meu filho Júnior agora
mesmo.
Júnior já fica todo animado.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
Vossa Eminência não quer sair
daí?!... Ah, sim.
Sinhozinho se dirige aos demais.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
Ele vai tomar um banho primeiro.
POMBINHA
Nossa Senhora, o Arcebispo caiu na
gandaia!
SINHOZINHO
De qualquer modo o Júnior vai aí.
E, por favor...
CORTA PARA

INT. BOATE SEXUS / BANHEIRO - DAY


O Arcebispo nu, de costas, entrando numa banheira, em meio a
muitas velas acesas. Matilde vê esta cena através da porta
do banheiro entreaberta enquanto fala ao telefone.
SINHOZINHO
(voz ao telefone) Até meu filho
chegar, trate de garantir a
integridade dele.
MATILDE
(ao telefone) Não se preocupe
Sinhozinho, eu farei isso... Mas
por favor, não me culpe se ele não
for mais o mesmo quando sair daqui.
Matilde desliga o telefone, e vê o Arcebispo se acomodar na
banheira.
CORTA PARA

INT. PREFEITURA / ANTE SALA - DAY


DE VOLTA À PREFEITURA. Sinhozinho desliga o telefone.
Santusa se aproxima e fala baixo com ele.
SANTUSA
Não acredito: vai deixar o
Arcebispo naquela casa?
SINHOZINHO
Ele está sendo muito bem tratado.
Porcina solta uma risada debochada.
PORCINA
Eu bem que imagino.
SANTUSA
Escuta Sinhozinho/
SINHOZINHO
(corta, ríspido )
Júnior já foi pra lá!
PORCINA
Grandes novidades: ele faz isso
todas as noites...
Santusa encara Porcina.
SANTUSA
Desculpe, mas a viúva está
insinuando o quê?
PORCINA
E eu lá sou mulher de insinuar
alguma coisa? Estou dizendo que seu
filho é cliente assíduo da boate de
Matilde... E quando ele está lá...
Faz um gesto estalando os dedos e ri debochada.
PORCINA (CONTINUACAO)
O couro come!
Florindo cochicha com Pombinha.
FLORINDO
Agora eu quero ver.
Santusa vai se colocar diante de Porcina.
SANTUSA
Se pensa que vou suportar esse tipo
de/
Mas ela não completa a frase, porque Cininha entra já aos
gritos, molhada até os ossos e toda desgrenhada.
CININHA
Onde ele está? Eu falei e ninguém
acreditou, mas agora todos viram
com seus próprios olhos: Roque
voltou pra mim! Cadê ele, onde está
meu noivo?
SINHOZINHO
Pelo amor de Deus: ataque de
loucura outra vez?
Ele levanta.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
Dona Pombinha, leve ela pra casa,
dona Lulu lhe ajuda. Santusa minha
filha, vá com elas.
Cininha resiste, mas Pombinha e Lulu conseguem arrastá-la. O
grupo sai. Na porta, Santusa se volta e fala com Porcina.
SANTUSA
Depois nós conversamos.
Depois que Santusa sai, Sinhozinho se volta para Porcina.
SINHOZINHO
Que mania de provocar a Santusa!
PORCINA
Só faço isso porque ela se acha.
SINHOZINHO
Já temos problemas demais!
Neste momento alguém surge na porta que ficou aberta... É
Roque!
ROQUE
Alguém aí falou em problemas?
Sinhozinho, Porcina, Zé das Medalhas e Florindo pasmos.
ROQUE (CONTINUACAO)
Um deles sou eu... E esse a gente
pode resolver já.

INT. CASA DE ASTROMAR / ESCRITÓRIO - NIGHT


Miguel e Clarinha reviram tudo, no ambiente mal iluminado
por duas velas.
CLARINHA
Se foi o meu pai que recortou a
foto do jornal...
MIGUEL
Claro que foi!
CLARINHA
Então por que não deu um sumiço
nela?
MIGUEL
O Professor Astromar é um
historiador! Ele não ia destruir
uma relíquia/
Miguel se corta, pois Astromar surge ali na porta. Ele olha
em torno, vê a bagunça em que está o local e reage
indignado.
ASTROMAR
Mas o que é isso?!...
Astromar vai até a escrivaninha.
ASTROMAR (CONTINUACAO)
Separei o material dessas pastas
com o maior cuidado, e agora...
Tudo misturado!
Astromar se volta para a filha.
ASTROMAR (CONTINUACAO)
O que esse rapaz está fazendo aqui
contigo?
Clarinha, em pânico, sem saber o que dizer.
CLARINHA
Escuta, pai...
ASTROMAR
Meu escritório! Reviraram tudo!...
Miguel se adianta, já com a foto de Roque nas mãos.
MIGUEL
Desculpa professor, Clara não tem
culpa, eu é que bagunçei seu
escritório.
ASTROMAR
Por quê?!...
MIGUEL
Tava procurando uma explicação pra
isso.
Ele mostra a foto de Roque. Astromar, ao vê-la, reage forte,
mas logo tenta disfarçar.
ASTROMAR
Mas... Essa foto... Quem é esse?
MIGUEL
A gente sabe, e o senhor também: é
Roque Santeiro.

INT. PREFEITURA / GABINETE DO PREFEITO - NIGHT


Durante esse começo de conversa Roque abre uma caixa de
prata sobre a mesa, vê que ela contém charutos, tira um,
corta a ponta com os dentes e o acende com um isqueiro que
está ao lado da caixa. Porcina apenas ouve, com os olhos
fixos em Roque.
SINHOZINHO
Deixa ver se entendi direito: você
quer metade de tudo que a gente
ganha com os seus milagres?
ROQUE
Isso mesmo. E não é só daqui pra
frente. Também quero botar a mão
nos atrasados.
ZÉ DAS MEDALHAS
Mas é muito dinheiro!
FLORINDO
Nem dá pra saber quanto.
ROQUE
Vocês tão faturando às minhas
custas há vinte anos!
SINHOZINHO
Nós, não: a municipalidade. O
erário público!
ROQUE
A maior parte foi pras suas burras!
Sinhozinho tinha uma merreca de uma
fazenda quando sumi daqui, e agora
é milionário... E senador da
República!
SINHOZINHO
Por meu próprio esforço.
ROQUE
Porque financiei suas campanhas:
desde a primeira!
SINHOZINHO
Isso são águas passadas.
ROQUE
Quer dizer que esses aí não sabem
da história toda?
SINHOZINHO
Só o que me interessa.
Roque solta uma baforada de fumaça do charuto na cara de
Sinhozinho.
ROQUE
E o que me interessa é que muita
grana rolou por causa da minha
"morte". Mas como estou vivo... Só
saio daqui depois de receber o que
tenho direito.
Rodésio entra nesse instante. Roque vê. Rodésio fica
discretamente ao fundo.
SINHOZINHO
Seria mais fácil providenciar a sua
morte de fato.
ROQUE
É, seria. Mas aí teriam que
inventar outro milagre pra explicar
meu sumiço. Deixei com minha esposa
lá em São Paulo uma carta pra ser
entregue ao meu advogado no caso de
minha morte. Nela eu conto porque
tive que fugir daqui no passado...
E porque voltei agora. Falo das
mentiras que inventaram a meu
respeito pra ganhar dinheiro...
Ele solta outra baforada na cara de Sinhozinho.
ROQUE (CONTINUACAO)
Dou os nomes todos. Não esqueço um
só detalhe. Se me acontecer alguma
coisa de ruim, essa carta vai
apontar os culpados.
Sinhozinho, Florindo e Zé das Medalhas se entreolham.
SINHOZINHO
Levando em conta a sua chegada
intempestiva... Temos que pensar na
sua proposta.
ROQUE
Não é melhor dizer: ultimato?
SINHOZINHO
O que seja... Amanhã lhe damos uma
resposta.
Porcina levanta.
PORCINA
Até lá você fica em minha casa.
SINHOZINHO
Mas que intimidade e essa?!
PORCINA
Prefere que ele fique no hotel e dê
na vista? Afinal, oficialmente
continua morto... E eu sou a viúva!
Porcina encara Roque.
PORCINA (CONTINUACAO)
Vamos?
Ela vai à frente. Roque vai atrás... Mas antes de sair se
dirige a Rodésio, que está perto da porta.
ROQUE
A barba é um bom disfarce... Mas eu
te reconheci no primeiro instante.
Roque sai.Rodésio leva a mão a arma, enquanto faz menção de
ir atrás de Roque. Sinhozinho intervém.
SINHOZINHO
Nem pense nisso, Rodésio... Não
antes da hora.

EXT. FRENTE DA PREFEITURA - NIGHT


Porcina abre a porta do conversível e seca o banco com um
lenço.
PORCINA
Chuva maldita!
Antes de entrar Roque se dirige a ela.
ROQUE
O dinheiro lhe fez bem: você
melhorou muito!
PORCINA
É. Mas se você estragar tudo vou
acabar na zona de novo.
Ela entra no carro, Roque faz o mesmo...
MUDANÇA DE PONTO DE VISTA:
Astromar, que vinha chegando, vê quando o carro sair com os
dois.

INT. PREFEITURA / GABINETE DO PREFEITO - NIGHT


Sinhozinho, Florindo e Zé das Medalhas em plena discussão.
FLORINDO
Pelo amor de Deus, sou candidato à
reeleição, não posso correr nenhum
risco!
SINHOZINHO
É a mim que você diz isso? O
sujeito mal olhou pra vocês! Ele me
ameaçou o tempo todo!
ZÉ DAS MEDALHAS
O fato é que, se a gente não tomar
uma providência, estaremos
trumbicados. Mas dar o que ele
pede?
SINHOZINHO
Nem mortos!
FLORINDO
Então como a gente faz?
SINHOZINHO
Eu cuido de tudo. Enquanto isso
vamos manter o homem dentro de um
casulo: no maior segredo!
Astromar, que vinha chegando e ouviu, intervém.
ASTROMAR
Temo que isso não seja mais
possível.
Todos se voltam para ele.
ASTROMAR (CONTINUACAO)
O filho de Zé das Medalhas mais a
minha filha descobriram que o
sujeito é negro, e está aqui: eles
sabem que Roque Santeiro está vivo!

EXT. FRENTE DA CASA DO PREFEITO - NIGHT


Cininha debruçada na janela.
Ouvem-se batidas à porta do quarto lá dentro. Ela ignora.
Entra a voz de Pombinha, que está fora de cena.
POMBINHA
Cininha, minha filha, já está
dormindo?
Cininha se volta para o interior do quarto.
CININHA
Como posso dormir se você fica
batendo na porta do meu quarto a
cada minuto?
POMBINHA
Desculpa.
Silêncio.
Da janela, Cininha olha o céu, agora estrelado.
CININHA
Vivo, vivo, vivo...
O barulho do carro se aproximando. Cininha olha sem ser
vista enquanto ele passa: é o conversível de Porcina, com
ela e Roque de passageiros. O carro dobra na esquina.
CININHA (CONTINUACAO)
Vivo!

INT. PREFEITURA / GABINETE DO PREFEITO - NIGHT


Sinhozinho com Florindo, Zé das Medalhas e Astromar. Rodésio
ao fundo.
SINHOZINHO
Vivo, mas não por muito tempo... Eu
prometo!
ZÉ DAS MEDALHAS
(chocado)
Homicídio, Sinhozinho?
SINHOZINHO
O correto é dizer: justiçamento.
Sinhozinho se dirige a Astromar.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
Tem certeza que os garotos não vão
abrir o bico?
ASTROMAR
Miguel quer vender o filme pra
televisão! Mas eu pedi um prazo de
dois dias... E eles concordaram.
SINHOZINHO
Roque tem que sumir antes disso.
ZÉ DAS MEDALHAS
O sujeito tem advogado, esposa... E
essa história da carta... Ele
amarrou tudo antes de vir!
FLORINDO
A gente não pode ficar de rabo
preso!
SINHOZINHO
Não sei, mas não achei que ele está
com essa bola toda não: e se for
tudo mentira?
FLORINDO
A gente não tem como descobrir!
SINHOZINHO
É o que o prefeito pensa.
ZÉ DAS MEDALHAS
Sinhozinho já tem algum plano?
SINHOZINHO
Tenho. Mas é segredo. E agora, me
dão licença...
FLORINDO
Claro, pode ficar à vontade no meu
gabinete.
Saem Florindo, Zé das Medalhas e Astromar. Sinhozinho vai
até Rodésio.
SINHOZINHO
Tenho uma missão pra você: é ultra-
secreta.

INT. CASA DE ASTROMAR / QUARTO DE CLARINHA - NIGHT


Miguel e Clarinha deitados na cama, nos braços um do outro.
A foto de Roque encostada à base de um abajur sobre a mesa
de canto.
CLARINHA
Você não tá com medo?
MIGUEL
Não, tão cedo teu pai não volta pra
casa.
CLARINHA
Não é disso que tou falando, é de
Roque Santeiro. A gente se meteu na
história errada!... Isso é maior
que a gente, tá todo mundo
envolvido!
MIGUEL
E daí?
CLARINHA
Melhor deixar pra lá.
MIGUEL
Agora não dá mais.
CLARINHA
Deixar nossos pais na pior?
MIGUEL
Teu pai me pediu dois dias: eu dei.
Depois vou pra capital, monto o
material que tenho filmado e vendo
pruma emissoras de televisão. Azar
de todo mundo!
Miguel abraça Clarinha.
CLARINHA
Tou preocupada, Miguel!
MIGUEL
Deixa pra lá. Esquece! A gente está
junto...
Ele a cobre de beijos. Por cima do ombro dele, Clarinha vê a
foto.

INT. QUARTO DE MATILDE / BANHEIRO - NIGHT


O Arcebispo levanta nu da banheira, espalhando água para
todos os lados. Matilde se aproxima por trás dele com uma
toalha e começa e enxugá-lo.
VOSSA EMINÊNCIA
A senhora é muito... Caridosa.
MATILDE
Não seria melhor dizer: carinhosa?
VOSSA EMINÊNCIA
Talvez.
MATILDE
Anos de profissão! Sei como agradar
meus clientes
O Arcebispo se retrai ao ouvir isso.
MATILDE (CONTINUACAO)
Não é seu caso, por Vossa Eminência
tenho o maior respeito. Mesmo
assim...
VOSSA EMINÊNCIA
Pois não?
MATILDE
Queria lhe perguntar sobre Roque
Santeiro: o que o senhor achou?
VOSSA EMINÊNCIA
É tudo mentira. Um verdadeiro
circo!
MATILDE
Mas o povo acredita.
VOSSA EMINÊNCIA
Porque é ingênuo.
MATILDE
Porque Deus escreve certo por
linhas tortas.
Matilde começa a vestir o Arcebispo com suas roupas cheias
de pompa. A cena tem um quê de ritualístico.
VOSSA EMINÊNCIA
É meu dever denunciar aquela farsa!
MATILDE
Muita gente acredita no milagre. E
não é só nesse, o mundo está cheio
deles. As pessoas precisam crer em
alguma coisa! Até em certas
mentiras. Se Vossa Eminência
denunciar esse milagre elas irão
atrás de outro... Nem que seja fora
da sua Igreja.
VOSSA EMINÊNCIA
Isso é fanatismo! Não é à
verdadeira fé.
MATILDE
A fé não é racional! Se o povo crê,
mesmo que seja numa farsa, reafirma
a força da Igreja. Isso é ou não é
Deus escrevendo certo por linhas
tortas?
VOSSA EMINÊNCIA
Era o que faltava para coroar o meu
dia: uma discussão teológica com a
dona do bordel!
MATILDE
E o pior é que também sou boa
nisso.
Vossa Eminência está quase pronta. Falta apenas o chapéu.
VOSSA EMINÊNCIA
A senhora está sugerindo que eu
peça a beatificação de Roque
Santeiro?
MATILDE
Só estou lhe dizendo pra não
afastar mais fiéis de sua Igreja...
Pois assim estará traindo a sua
crença.
Matilde põe o chapéu no Arcebispo. Depois vai até a porta,
abre-a... E fala com os que estão lá fora.
MATILDE (CONTINUACAO)
Vossa Eminência está pronta.
Entram Júnior e o Padre Rocha.
Matilde vai até o Arcebispo, ajoelha-se e beija sua mão. Ele
põe a outra mão sobre a cabeça dela, num gesto de benção...
E depois sai com os que estavam à sua espera.

EXT. FRENTE DA CASA DE PORCINA - NIGHT


Porcina pára o carro. Roque, ao lado dela, olha a casa.
ROQUE
Minha viúva mora bem!
PORCINA
Viúva... Sem nunca ter sido.
Porcina desce do carro e caminha em direção a casa. Roque
vai com ela.
PORCINA (CONTINUACAO)
Mas era a única pessoa que lhe
conhecia de perto.
ROQUE
Só por que dormiu três vezes comigo
no puteiro?
PORCINA
Essa parte da história ninguém
sabe!
Eles entram na casa.

INT. CASA DE PORCINA / SALA - NIGHT


Porcina entra seguida de Roque. Ele vê a bandeja com várias
garrafas de bebida e alguns copos, e vai se servir enquanto
conversam.
PORCINA
Depois que você morreu e seu corpo
foi queimado dentro do barco, lá no
atracadouro...
ROQUE
Aconteceu tudo isso comigo?!
PORCINA
(ignora )
Só eu podia lhe reconhecer!
ROQUE
E aí reconheceu o corpo que não era
meu... E ainda falou que era casada
comigo.
PORCINA
Idéia do Sinhozinho! Ele
providenciou até certidão lá no
cartório.
ROQUE
E quando foi que comecei a virar
santo?
CORTA PARA

EXT. FRENTE DA CASA DE PORCINA - NIGHT


Do lado de fora da casa.
Cininha entra no banco de trás do carro e fica a olhar a
casa.
Ouve-se a voz de Porcina fora de cena.
PORCINA
A filha do prefeito nunca se
conformou. Nem com sua morte, nem
com o nosso casamento. Um dia lhe
viu na janela do quarto olhando pra
ela!
CORTA PARA

INT. CASA DE PORCINA / SALA - NIGHT


PORCINA - Aí Sinhozinho teve a idéia: mandou-me dizer que
eu também lhe vi no local de sua morte... E que você me
pediu pra construir a capela. A gente começou a aceitar
donativos. Alguém rezou pra Roque Santeiro e disse que sua
prece tinha sido atendida. Começou essa história dos
milagres, sua fama cresceu... Asa Branca virou lugar de
romaria...
ROQUE
E hoje todo mundo vive disso.
PORCINA
É. De um jeito ou outro a cidade
vive às suas custas.
Ela vai até Roque, pega o copo dele, bebe um gole...
PORCINA (CONTINUACAO)
Falei tanto... Me deu até sede!
Ela devolve o copo a Roque. Ele também bebe um gole.
PORCINA (CONTINUACAO)
E você? Demorou tanto pra aparecer
de novo...
ROQUE
Pra não ser morto... E também não
sabia que minha falsa morte rendia
esse dinheiro todo. Mas agora que
sei... Quero a minha parte.
Os dois se encaram um instante. Porcina aponta o caminho e
vai saindo.
PORCINA
Venha, vou lhe mostrar seu quarto.
CORTA PARA

INT. CASA DE PORCINA / QUARTO DE HÓSPEDES - DAY


Porcina entra seguida de Roque, que já vem falando.
ROQUE
Vocês já ganharam demais às minhas
custas.
PORCINA
Demais nunca é bastante!
ROQUE
Não posso ficar sem nenhum.
Porcina se volta.
PORCINA
Tudo bem. Mas cinqüenta por cento é
muito!
Os dois estão frente a frente, de olho no olho,
perigosamente próximos.
ROQUE
O dinheiro lhe fez bem.
PORCINA
Foi?
ROQUE
Ficou mais bonita!
PORCINA
Também posso lhe dizer o mesmo.
ROQUE
Você e Sinhozinho...
PORCINA
Que é que tem?
ROQUE
Tão juntos?
PORCINA
Até onde a decência permite.
ROQUE
Ou seja: são amantes... Mas não
assumem.
PORCINA
Você não tem nada a ver com/
Ela se corta. Avança até ele e o segura pelos braços.
PORCINA (CONTINUACAO)
Vou lhe dar um conselho: aceite o
que Sinhozinho lhe oferecer, seja o
que for... E váse embora!
ROQUE
(olha nos olhos dela )
É isso que você quer?
PORCINA
O que eu quero ou deixo de querer
não interessa!
ROQUE
(mais perto ainda)
Será que não?
PORCINA
Eu fui sua viúva praticamente a
vida inteira! É claro que... Tinha
que me sentir... Envolvida!
Os dois ficam um instante de olho no olho... E então caem
nos braços um do outro e se beijam. Mina, que vinha entrando
e vê aquilo, reage apavorada e foge sem ser vista.
PORCINA (CONTINUACAO)
(sem parar de beijar )
Eu não quero fazer isso!
ROQUE
(sem parar de beijar)
O que há de mal se um morto aparece
e cisma de beijar sua viúva?
PORCINA
O mal é que você tá vivo! Nós dois
estamos!
ROQUE
Então vamos aproveitar enquanto é
tempo...
CORTA NUM ZOOM
DRAMÁTICO PARA:

INT. CASA DE PORCINA / QUARTO DE HÓSPEDES - DAY


Porcina e Roque na cama se amando... Até que os dois caem
cada um para um lado, exaustos.

EXT. ASA BRANCA / PRAÇA - NIGHT


Mina atravessa a praça na maior pressa. Ela olha a estátua
rodeada de flores e iluminada pela luz de velas... E nesse
instante as luzes se acendem de novo na cidade. O povo saúda
com a maior gritaria a volta da luz às suas casas. Mina se
afasta apressada.

INT. PREFEITURA / GABINETE DO PREFEITO - NIGHT


Sinhozinho, com um ar sinistro, diante de uma agitadíssima
Mina.
SINHOZINHO
Você tem certeza?
MINA
Aquele homem tem parte com o
capeta: enfeitiçou a viúva!
SINHOZINHO
E os dois... Foram pra cama?
MINA
Mas ela não teve culpa.
SINHOZINHO
(furioso)
Chega!
Mina reage, apavorada.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
Volte pra casa e esqueça.
MINA
Mas a pobrezinha tá lá com aquele/
Sinhozinho segura Mina pelo pescoço e vai apertando.
SINHOZINHO
O que foi que você viu sua
desgraçada?
MINA
O falecido levou a viúva pra cama/
SINHOZINHO
(corta)
Quer que eu te mate feito um porco?
MINA
Tá me machucando!
SINHOZINHO
Que foi que você viu, me diga?
MINA
(com dificuldade)
Pelo amor de Deus!
SINHOZINHO
Vamos, fala o que você viu!
MINA
Nada! Eu não vi nada, minha vista
anda meio turva. Eu me enganei!
SINHOZINHO
Isso mesmo.
Sinhozinho solta Mina, que cambaleia estrebuchando.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
Agora volte pra casa, se tranque no
seu quarto, e não me saia de lá,
mas nem que a vaca tussa.
Mina sai aos tombos.
Sinhozinho vai até um espelho, se olha.
Depois volta à escrivaninha, abre uma gaveta... Tem um
revólver lá dentro.
Sinhozinho pega o revólver, bota na cintura e sai.

EXT. FRENTE DA CASA DE ASTROMAR - NIGHT


Rodésio chega com dois homens. Cada um deles tira uma touca
de ninja do bolso e cobre com ela a cabeça.
MUDANÇA DE PONTO DE VISTA:
Através dos vidros da janela Astromar vê quando os três se
aproximam da porta de sua casa.

INT. CASA DE ASTROMAR / SALA - NIGHT


Penumbra. Os mascarados entram silenciosamente na casa de
Astromar.
Astromar sai das sombras, e eles estacam.
ASTROMAR - Por favor: nada de violência!
Astromar recua e some.
Os três mascarados entram na casa.
Astromar reaparece e sai pela porta da rua.
CORTA PARA

INT. CASA DE ASTROMAR / CORREDOR - NIGHT


Os três mascarados desembocam ali. Várias portas. Rodésio
aponta em direção a uma delas. Os três caminham naquela
direção.
CORTA PARA

INT. CASA DE ASTROMAR / QUARTO DE CLARINHA - NIGHT


Quarto de Clarinha. Ela e Miguel dormem na cama, abraçados.
Ele segura a câmera com uma das mãos.
A porta se abre devagar, os três mascarados entram.
Rodésio olha em torno, e vê a foto de Roque encostada à base
do abajur. Vai até lá, pega-a e a guarda no bolso do paletó.
Depois caminha em direção à cama. Com jeito, sob o olhar dos
outros dois, tenta tirar a câmera da mão de Miguel... Mas
não consegue e este acorda.
MIGUEL
Mas que droga é essa, o que é que
está/
Rodésio lhe dá uma bofetada.
Clarinha acorda e, ao ver aquilo - três mascarados dentro do
seu quarto, um deles agredindo Miguel -, levanta e tenta
sair correndo... Mas um dos mascarados a agarra.
CLARINHA
(grita, desesperada) Pai, pai,
pai!!!!!!!

EXT. FRENTE DA CASA DE ASTROMAR - NIGHT


Do lado de fora da casa, Astromar ouve os gritos da filha.
CLARINHA
Alguém me ajude! Socorro! Pai, pai!
Astromar tapa os ouvidos com as mãos e fecha os olhos com
força.

INT. CASA DE ASTROMAR / QUARTO DE CLARINHA - NIGHT


Clarinha aos gritos, meio histérica, esperneia nos braços do
mascarado.
Miguel, atacado pelos outros dois, não quer soltar a
câmera... Mas Rodésio lhe dá outra bofetada, agora mais
violenta, e o derruba. Na tentativa de se amparar em meio à
queda, Miguel solta a câmera, e Rodésio a alcança.
Rodésio faz sinal para que o terceiro mascarado solte
Clarinha e ele faz isso, empurrando-a sobre a cama.
Os três vão sair, mas Miguel levanta e avança sobre Rodésio.
MIGUEL
Me dá meu filme!
Num gesto rápido, Rodésio saca da arma e aponta pra Miguel,
que pára.
CLARINHA
(grita)
Não faz isso!
Miguel pára e fica a olhar em direção à arma. Os três homens
saem. Miguel vai atrás, mas, antes que chegue à porta,
Clarinha se lança sobre ele e o agarra.
CLARINHA (CONTINUACAO)
Chega, Miguel, chega!
Miguel quer se livrar dela, mas ela não o larga.
Clarinha olha em direção ao lugar onde estava a foto: não há
mais nada.
CLARINHA (CONTINUACAO)
Eles pegaram a foto!
MIGUEL
Levaram minha câmera!
Astromar entra aos brados.
ASTROMAR
Eu estava chegando, três homens
saíram correndo daqui, o que foi
que/
Ele corre a abraçar a filha.
ASTROMAR (CONTINUACAO)
Minha filhinha!
CLARINHA
Eu tou bem, pai, eu tou bem!
Astromar cobre a filha de beijos. Lágrimas lhe caem dos
olhos.
Miguel senta na cama e põe a cabeça entre as mãos.
Astromar e a filha em prantos.
ASTROMAR
Eu sou um crápula!

EXT. FRENTE DA CASA DE PORCINA - DAY


Cininha dorme no banco de trás do carro de Porcina.
Sinhozinho passa pelo carro sem vê-la e segue em direção a
casa. Antes de entrar ele ajeita alguma coisa por baixo do
paletó... E vê-se que é a arma.

INT. CASA DE PORCINA / QUARTO - DAY


Penumbra. Roque, de bruços, e Porcina, de costas, dormem
sobre a cama. A porta se abre devagar, e Sinhozinho entra.
Ele fecha a porta atrás de si, a olhar para a cama. Nesse
momento Porcina abre os olhos e o vê. Um instante dos dois
assim, de olho no olho... Ela faz um gesto com a cabeça,
mostrando as roupas de Roque amontoadas sobre uma
cadeira.Roque se mexe em pleno sono. Porcina se vira, deita
sobre Roque e o abraça. Sinhozinho vai até a cadeira onde
estão as roupas de Roque. Devagar, sem fazer o menor ruído,
e sem olhar para a cama, trata de dar uma geral nelas.
Enquanto ele faz isso a CAM, que o via de longe, vai se
aproximando... E está bem perto quando ele examina o último
ítem - a carteira. Vê quanto dinheiro tem - pouquíssimo.
Abre o talão de cheque: já foram gastas todas as folhas.
Nada mais, nenhum cartão de crédito ou de banco... Apenas um
pedaço de papel de cor parda, que a CAM detalha. Nele está
escrito um número de telefone. Sinhozinho bota o papel no
bolso, depois revira de novo a carteira em busca de mais
alguma coisa... E não acha mais nada. Sinhozinho bota de
novo a carteira de Roque no lugar onde a achou, depois dá
meia volta, sai e fecha a porta atrás de si sem olhar mais
para a cama... Na qual Porcina, sempre abraçada a Roque e de
costas para a porta, mantém os olhos abertos.

EXT. ASA BRANCA / PRAÇA PRINCIPAL - DAY


Ainda é muito cedo. Romeiros já se reúnem em torno da
estátua de Roque, a rezar e acender velas. Diante da
Prefeitura, os ilustres da cidade beijam a mão do Arcebispo
que, com o Padre Rocha ao lado, aparece de novo em toda a
sua pompa. Estão lá Florindo, Zé das Medalhas, Lulu,
Astromar, Santusa, Júnior e outros mais. Pombinha chega e
vai se colocar ao lado do marido.
POMBINHA
(sussurra)
Cininha não levantou até agora!
FLORINDO
(baixo)
Tomara que ela não acorde tão cedo.
Sinhozinho chega correndo.
SINHOZINHO
Desculpe Vossa Eminência, fui fazer
uma visita rápida às minhas
bases...
Ele pega a mão do Arcebispo e a beija enquanto fala.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
Vou rezar muito, pedir bastante a
Deus para que o senhor encaminhe
bem o nosso preito.
O Arcebispo tira delicadamente a mão... Mas com certo nojo.
O Padre Rocha encaminha sua eminência ao carro. Ele vai
entrar lá, quando vê Matilde a observar tudo à distância. Os
dois trocam um olhar intenso. O Arcebispo ergue a mão e a
abençoa.
POMBINHA
Ele está abençoando a quenga!
Matilde baixa a cabeça em sinal de respeito.
O Arcebispo entra no carro e o seu cortejo vai embora.
Santusa se aproxima de Sinhozinho.
SANTUSA
Onde o senhor andava?
SINHOZINHO
Não já falei?
SANTUSA
Você só me traz vergonha!
Santusa se volta para Júnior.
SANTUSA (CONTINUACAO)
Botou minhas malas no carro?
JÚNIOR
Sim senhora.
SANTUSA
Então vamos.
SINHOZINHO
Pra onde, Santusa?
SANTUSA
Prum lugar onde me sinta
respeitada!
Ela vai embora com o filho. Sinhozinho comenta com Florindo.
SINHOZINHO
Ela vai... Mas, pra minha desgraça,
sempre volta.
Sinhozinho entra na Prefeitura.

INT. PREFEITURA / GABINETE DO PREFEITO - DAY


Sinhozinho entra no gabinete do prefeito. Rodésio já está lá
esperando. Ele retira de uma sacola a câmera de Miguel e a
foto de Roque e entrega a Sinhozinho. Este lhe devolve a
câmera.
SINHOZINHO
Isso ai pode jogar no rio.
Sinhozinho pega o isqueiro sobre a mesa, acende-o e leva a
chama a uma das pontas da foto, que pega fogo.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
Me espere lá fora.
Rodésio sai. Sinhozinho bota a foto a queimar dentro de um
cinzeiro. Depois tira o pedaço de papel pardo que achou na
carteira de Roque do bolso, vê o numero que está lá escrito,
pega o telefone e disca... Alguém atende do outro lado.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
(ao telefone)
Eu queria falar com Roque Duarte...
Ouve-se uma voz de mulher do outro lado.
MULHER
Roque Duarte?
SINHOZINHO
A senhora é a esposa dele?
MULHER
Tinha até graça.
CORTA PARA

INT. QUARTO DE HOTEL - DAY


Quarto de hotel barato. A mulher fala ao telefone perto da
janela, da qual se vê o letreiro na fachada, que diz:
HOSPEDARIA DOS VIAJANTES.
MULHER
Aquilo não tem mulher nem ninguém
na vida, meu senhor. Quem quer
saber daquele traste?...
Ouve-se a voz de Sinhozinho do outro lado.
SINHOZINHO
Mas a senhora é o que de Roque
Duarte?
MULHER
Dona do hotel em que ele se
escondia. Saiu daqui de madrugada
sem pagar a conta: deixou duas
semanas penduradas! Mas foi bem
feito pra mim. Dar guarida a
vagabundo? O sujeito não
trabalhava, nem tinha onde cair
morto. Dizem que foi viciado em
drogas!
Ela se toca.
MULHER (CONTINUACAO)
E o senhor quem é?
CORTA PARA

INT. PREFEITURA / GABINETE DO PREFEITO - DAY


De novo no gabinete do prefeito. Sinhozinho ouve a mulher do
outro lado.
MULHER
Tá querendo o quê com o sacana do
Roque Duarte?
Sinhozinho desliga bruscamente, fica um instante
pensativo... E então levanta e vai até a janela. Através
dela ele vê Rodésio a postos do lado de fora.
SINHOZINHO
Rodésio!
O outro se volta para Sinhozinho.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
Sabe aquilo que você não fez há
vinte anos?
RODÉSIO
Matar Roque Santeiro?...
SINHOZINHO
Vou lhe dar outra chance. E dessa
vez não falha!

INT. CASA DE PORCINA / QUARTO - DAY


Penumbra. Porcina a dormir na cama. Roque ao lado dela já
acordado. Ele levanta, vai até a janela, abre uma fresta da
cortina... E vê que já é dia. Roque pega suas roupas, que
estão espalhados pelo chão, trata de vesti-las, lança um
último olhar em direção a Porcina e depois sai do quarto.

EXT. FRENTE DA CASA DE PORCINA - DAY


Cininha dorme a sono solto caída no chão entre os dois
bancos do carro. Roque sai da casa e caminha em direção ao
carro. Quando vai abrir a porta ouve a voz de Porcina.
PORCINA
Ei!
Ele se volta e a vê na janela.
PORCINA (CONTINUACAO)
Pra onde vai?
ROQUE
Dar uma volta.
PORCINA
Não pode!
ROQUE
Não demoro. Qualquer coisa...
Ele tira o celular do bolso e mostra.
ROQUE (CONTINUACAO)
Liga pro teu celular.
Roque entra no carro sem ver Cininha ali caída, dá partida e
vai embora.

INT. CASA DE ASTROMAR / SALA - DAY


Miguel e Clarinha frente a frente.
CLARINHA
Pára com esse negócio de filme,
Miguel!
MIGUEL
Não posso.
CLARINHA
A gente podia estar morto!
MIGUEL
Por isso mesmo. Agora é que não
desisto. Vou atrás do Beato Salu.
Ele não vai negar que o filho é
negro. Talvez tenha uma foto dele!
Vamos.
CLARINHA
Eu te adoro!...
Miguel e Clarinha se beijam.
CLARINHA (CONTINUACAO)
Mas não tou mais a fim de correr
atrás do perigo.
MIGUEL
E eu não vou insistir.
CLARINHA
Te cuida!
MIGUEL
Não se preocupa. Quando voltar falo
com teu pai. Quero casar contigo!
Eles se beijam.
Miguel sai sob o olhar de Clarinha.

INT. PREFEITURA / GABINETE DO PREFEITO - DAY


Sinhozinho ao telefone. Diante dele Florindo, Zé das
Medalhas e Astromar.
SINHOZINHO
O sujeito saiu?
Porcina responde ao telefone, fora de cena.
PORCINA
Quando vi já era tarde. Mas ele
disse que voltava.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
Pois quando voltar, diga que já
chegamos a um consenso.
Ele desliga o telefone. FLORINDO - E que consenso foi esse
a que Sinhozinho chegou?
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
O único possível. E não quero ouvir
dos senhores um ai sequer. Minha
decisão é irrevogável: Roque
Santeiro está morto... E vai
continuar morto!

EXT. ASA BRANCA / ESTRADA DE TERRA - DAY


O carro sai da estrada de terra e vai parar debaixo de uma
árvore. Ao volante, Roque desliga o motor, ergue a capota,
desce e fecha a porta... Tudo isso sem ver Cininha, que
continua a dormir entre um banco e outro. Roque se afasta.

EXT. VILAREJO DO BEATO / CABANA DE BEATO - DAY


É um acampamento improvisado, de tendas, com alguns toques
esotéricos. No centro de tudo uma cabana de madeira. Roque
atravessa o acampamento - sem que os fiéis, ocupados com
seus afazeres, se preocupem com ele - e entra na cabana. CAM
dá uma olhada em torno, flagrando um e outro devoto do Beato
Salu em meio a alguma ocupação, até chegar à entrada do
acampamento e mostrar que Miguel acabou de chegar.

INT. CABANA DE BEATO - DAY


Beato Salu e duas mulheres em meio ao preparo de um chá num
panelão. Roque entra... E o Beato o vê. Um instante dos dois
se olhando intensamente.
BEATO SALU
Quem é você?
Roque fala cheio de emoção.
ROQUE
Pai!
BEATO SALU
Sim, sou o pai do meu povo. Mas
você não é um deles.
CORTA PARA

EXT. VILAREJO DE BEATO / CABANA DE BEATO - DAY


O exterior da cabana. Miguel chega a tempo de ouvir a frase,
pronunciada por Roque, lá dentro.
ROQUE
Eu sou seu filho!
Miguel estaca.
CORTA PARA

INT. CABANA DE BEATO - DAY


De volta ao interior da cabana. Roque, tomado pela emoção, a
encarar o Beato Salu.
ROQUE
Seu filho Roque!
BEATO SALU
Mas que blasfêmia é essa?
Roque avança e vai se colocar diante do Beato Salu.
ROQUE
Não tá me reconhecendo? Roque
Duarte, seu filho!
Beato Salu pega o cajado e o ergue ameaçadoramente. Está
muito agitado.
BEATO SALU
Sai da minha frente, seu tição!
ROQUE
Pai!
BEATO SALU
Meu filho era branco feito eu! A
mãe dele é que/
ROQUE
(completa num grito)
Era negra!
BEATO SALU
(conserta)
Parda! Morena! Tisnada de sol!
Agora você...
Parte pra cima de Roque com o cajado em riste. Cada vez mais
agitado.
BEATO SALU (CONTINUACAO)
Como se atreve a vir aqui? Meu
filho era branco! Branco! Ele
morreu, e agora tá no céu: virou
santo!
ROQUE
Pai, pelo amor de Deus, eu só
queria/
Mas o Beato começa a lhe dar bordoadas com o cajado.
BEATO SALU
Fora daqui satanás! Vaite embora!
Desaparece, some da minha frente,
fica longe de mim!
Roque recua para fugir das bordoadas e sai da cabana.
O Beato Salu continua dando bordoadas no ar, cada vez mais
agitado, até que cai no chão a espernear e a babar
descontrolado, os olhos revirados.
As mulheres correm até ele e tratam de contê-lo.
Aos poucos o Beato se acalma, abre os olhos...
ROQUE
Eu tive uma visão! Meu filho Roque,
branco como a neve, sentado à mão
direita de Deus Pai!

EXT. VILAREJO DO BEATO / CABANA - DAY


Roque parado diante da cabana, ainda abaladíssimo com o que
aconteceu. Miguel, à parte, disfarça enquanto o observa... E
tira algumas fotos dele com o celular. Os fiéis do Beato
Salu, às voltas com seus afazeres, indiferentes aos dois.
Roque vai embora.

EXT. ASA BRANCA / TRILHA - DAY


Roque, ainda muito abalado, vem caminhando pela trilha. Vê-
se Miguel, que o segue lá no fundo, tentando não ser visto.
Roque vai em frente. O celular toca. Roque para, tira o
celular do bolso e atende.
ROQUE
Alô!
CORTA PARA
INT. NOME DO SET - DAY
Porcina do outro lado da linha.
PORCINA
Sou eu, a tua viúva.
CORTA PARA

EXT. ASA BRANCA / TRILHA - DAY


Roque ao telefone. Ouve-se a voz de Porcina ao telefone.
PORCINA
Tou ligando pra dizer que
Sinhozinho e os outros já chegaram
a um consenso.
ROQUE
Eles vão me dar o que eu quero?
PORCINA
Tudinho. Sinhozinho está à sua
espera na prefeitura. De lá vocês
vão pra casa dele acertar tudo.
Miguel vem se aproximando por trás de Roque sem ser visto.
ROQUE
Eu vou agora mesmo.
PORCINA
Deixe meu carro na frente da
Prefeitura... E antes de ir embora
passe aqui... Pra nossa despedida.
Roque desliga, e sai caminhando de novo. Miguel, que está
logo ali atrás, o chama.
MIGUEL
Roque Santeiro!
Roque se volta para ele.
MIGUEL (CONTINUACAO)
Eu já sei de tudo.
ROQUE
Sabe o quê, garoto?
MIGUEL
Não teve milagre coisa nenhuma,
você está vivo. E não é como
aparece naquela estátua: é negro!
ROQUE
E o que você vai fazer a respeito?
MIGUEL
Denunciar a farsa! Contar pra todo
mundo! Mas pra isso preciso de sua
ajuda.
ROQUE
Deixa de besteira!
MIGUEL
Então não foi pra isso que você
veio? Pra acabar com esse monte de
mentiras?...
ROQUE
Eu vim atrás da minha parte no
dinheiro!
MIGUEL
Então é igual a eles!
ROQUE
Você também vai ser quando deixar
de ser menino!
MIGUEL
Mesmo sem sua ajuda, vou contar pra
todo mundo.
ROQUE
Se fizer isso eu te desminto. Não
posso ser Roque Santeiro, pois
estou vivo e sou negro!
Miguel se descontrola e parte pra cima de Roque.
MIGUEL
Você é igual a eles sim: não vale
nada!
Roque acerta um soco em Miguel que o derruba.
ROQUE
Tenho novidades pra você: não sou
igual a eles...
Dá meia dúzia de chutes violentos em Miguel.
ROQUE (CONTINUACAO)
Sou pior ainda!
Roque vai embora correndo. Miguel fica ali caído.

EXT. ASA BRANCA / ESTRADA DE TERRA - DAY


Roque, sempre a correr, chega perto do carro. Ele abre a
porta do motorista, entra, liga o motor... Liga o rádio a
todo volume... A música é a mesma que se ouviu durante sua
"ascensão" na Cidade Santa. Cininha, ao ouvir aquilo, acorda
meio alucinada.
CININHA
Rock!
Ela levanta no banco de trás e o vê ali, pasmo a olhar pelo
retrovisor. Roque desliga o som do carro.
CININHA (CONTINUACAO)
Meu amor... Eu estava desesperada,
pensei que você tinha escolhido a
viúva, mas você está aqui comigo...
Veio me buscar, não foi?
Ela o abraça pelas costas.
CININHA (CONTINUACAO)
Vamos embora!
Roque tenta se livrar.
ROQUE
Vamos sim, mas não agora, antes eu
tenho que/
Cininha sempre agarrada a Roque vai passando para o banco da
frente do modo mais atabalhoado possível.
CININHA
Eu me guardei durante vinte anos!
Começa a beijá-lo freneticamente.
CININHA (CONTINUACAO)
Fiquei virgem!
ROQUE
Virgem?
CININHA
À sua espera! Do meu noivo, daquele
que seria meu marido! Eu sabia que
você vinha me buscar, sabia... Mas
esperei demais, e agora... Sim, a
hora chegou...
Ela monta em cima dele, levanta a saia.
CININHA (CONTINUACAO)
Me tira os tampos!
ROQUE
Cininha!...
Ela começa a desabotoar a calça dele.
CININHA
Vamos, acaba logo com isso, não
agüento mais de tanta vontade... Me
ame, Roque, me ame, e depois... Me
leve embora pra longe desse
inferno!
Roque não resiste mais e entra no clima. Cininha
completamente histérica. Os dois na maior transa.

INT. PREFEITURA / GABINETE DO PREFEITO - DAY


Sinhozinho a olhar pela janela.
DO PONTO DE VISTA DELE: a estátua de Roque Santeiro cercada
de fiéis.
Sinhozinho se volta. Estão diante dele, na expectativa:
Florindo, Zé das Medalhas e Astromar.
SINHOZINHO
Muito bem senhores: está quase na
hora. E como eu sei que estão todos
se borrando de medo... Podem ir pra
suas casas, e fechem as portas e
janelas!
Saem todos. Sinhozinho vai sentar na cadeira do prefeito,
abre a primeira gaveta da escrivaninha e vê dentro dela o
brilho do revólver que está lá guardado.

INT. QUARTO HUMILDE / BANHEIRO - DAY


Rodésio, com uma navalha na mão, ainda de chapéu e barba, a
olhar sua imagem refletida num caco de espelho meio
embaciado. Ele começa a raspar a barba com a navalha.
CORTA PARA

EXT. ASA BRANCA / PRAÇA PRINCIPAL - DAY


INSERT do flash-back em que Roque lembrou do que lhe
aconteceu no passado: Navalhada, com um chapéu a lhe desabar
sobre os olhos, um rifle nas mãos, grita suas ordens no meio
da praça.
NAVALHADA
Quero todo mundo se borrando de
medo!
Navalhada mostra-se melhor sob a luz de um poste. Vê-se mais
de perto a feia cicatriz que atravessa sua bochecha direita.
Navalhada dá vários tiros pro alto, ouvem-se gritos de todo
lado.
CORTA PARA

INT. QUARTO HUMILDE / BANHEIRO - DAY


Em cortes descontínuos, Rodésio sempre a raspar a barba.
CORTA PARA

EXT. ASA BRANCA / PRAÇA PRINCIPAL - DAY


INSERT do flash-back:
Navalhada chega com seu bando. Roque não gosta nem um pouco
daquilo. Insiste com Sinhozinho.
ROQUE
Se puder dar a minha parte agora...
Sinhozinho troca um olhar com Navalhada.
SINHOZINHO
Quem vai te pagar é Navalhada.
Roque sente que tem alguma coisa errada.
ROQUE
Não fiz trato nenhum com ele!
Navalhada faz sinal pra dois capangas, que se aproximam de
Roque. Ele recua, ao mesmo tempo em que saca o revólver.
ROQUE (CONTINUACAO)
Não se metam a bestas que eu atiro!
CORTA PARA

INT. QUARTO HUMILDE / BANHEIRO - DAY


Rodésio, sempre a se barbear, até dar o serviço por findo.
Ele tira o chapéu, se aproxima do espelho, faz a mão
deslizar na marca que tem no rosto... E então se vê que
aquela marca no rosto de Rodésio é a mesma cicatriz de
Navalhada. Ele se volta, olha para as armas que estão dentro
do coldre ali perto...
CORTA PARA

EXT. ASA BRANCA / LAGO - DAY


INSERT do flash-back:
NAVALHADA
(aos capangas)
Mata esse safado!
Os homens todos sacam das armas. Roque, num pulo, se joga no
rio e mergulha. Navalhada, Sinhozinho e seus homens, ali à
beira do cáis, atiram todos em direção à água várias
vezes... Mas não vêem nenhum sinal de Roque.
SINHOZINHO
Será que a gente acertou nele?
NAVALHADA
Se não apareceu pra respirar... Tá
morto!
CORTA PARA

INT. QUARTO HUMILDE - DAY


Rodésio pega as armas, coloca-as na cintura... E depois vai
até o cabide, pega a capa a Antônio das Mortes e a veste: é
a mesma que usava no dia em que Roque Santeiro escapou e
suas garras.

EXT. ASA BRANCA / ESTRADA DE TERRA - DAY


Roque derreado dentro do carro. Cininha transfigurada. Os
dois falam ao mesmo tempo, sem prestar atenção no que o
outro diz.
ROQUE
Deu tudo errado: o roubo... Minha
vida...
CININHA
Pra tudo tem conserto, meu amor.
Agora a gente tá juntos de novo...
ROQUE
Parece maldição!
CININHA
Eu sei! É horrível esperar a pessoa
que a gente ama, sem saber se essa
espera um dia vai ter fim!...
ROQUE
Aqui nesse lugar ninguém presta. Só
você.
CININHA
Mas eu sabia que você vinha me
buscar um dia, eu sabia... Por isso
me guardei. Pra viver esse momento
tão bonito... Pra gente poder
fugir!
ROQUE
Assim que botar a mão no que é meu
de direito...
CININHA
Sim, sim, agora sou toda sua!
ROQUE
Vou embora daqui.
Cininha cobre Roque de beijos.
CININHA
Juntos. Juntos!
Roque se apruma.
ROQUE
Agora eu tenho que ir.
CININHA
Vá, faça o que tem de fazer... Eu
estarei pronta!
Roque liga o motor do carro. O carro manobra, pega a estrada
de terra e se afasta... Miguel, escondido atrás de uma
árvore, sempre a fazer fotos com o celular. A última foto
que ele faz CONGELA.
FADE IN

EXT. FRENTE DA CASA DE ASTROMAR - DAY


FADE OUT
Miguel mostra as fotos para Clarinha.
CLARINHA
Se ele diz que não é Roque... De
que adianta essas fotos?
MIGUEL
Não dá pra entender? Roque Santeiro
tá vivo! Essa história do
sacrifício dele é mentira! A gente
foi criado no meio dessa farsa...
CLARINHA
Todo mundo em Asa Branca vive
disso: meu pai, o teu... Foi a
farsa que nos deu boa vida, pagou
nossos estudos.
MIGUEL
A gente não sabia de nada! É
diferente. Mas você tá certa: hoje
essas fotos não servem pra nada.
Mas um dia elas vão me ajudar a
desmascarar todo mundo!
Clarinha torna-se fria a partir daqui.
CLARINHA
Olha Miguel, você falou em casar
comigo...
MIGUEL
Vou conversar com teu pai ainda
hoje.
CLARINHA
Esse negócio de desmascarar todo
mundo... Não sei se quero te
acompanhar nisso.
MIGUEL
Prefere ficar do lado da mentira?
CLARINHA
Meu pai, Miguel, tua família!
Pessoas que me viram crescer, meus
amigos... Não ia ter coragem de
virar as costas pra eles. Desculpa.
Mas cuidar só da minha própria
vida.
Clarinha entra em casa sem olhar pra trás. Miguel, arrasado,
guarda o celular no bolso e vai embora.

EXT. FRENTE DA CASA DO PREFEITO - DAY


Roque pára o carro. Cininha lhe dá um chupão daqueles e
depois desce.
CININHA
Por favor, não se atrase.
ROQUE
Ainda estou na minha hora.
Ela entra em casa. Roque engrena a primeira e vai embora.

INT. CASA DO PREFEITO / SALA - DAY


Cininha entra toda feliz da vida. Vai dizer alguma coisa,
quando ouve as vozes lá dentro, e então pára.
FLORINDO
Eu lhe disse pra ficar de olho!
POMBINHA
E eu fiquei!
CORTA PARA

INT. CASA DO PREFEITO / QUARTO DE CININHA - DAY


Florindo está ao lado da cama, onde "alguém" está deitado,
coberto da cabeça aos pés. Ele levanta a ponta do lençol
enquanto fala... E então se vê que em vez de uma pessoa o
que está lá é um amontoado de travesseiros.
FLORINDO
Deixar a maluca de sua filha sair
escondido?
POMBINHA
Não é a primeira vez que ela some.
FLORINDO
Mas hoje é diferente... A coisa vai
feder!
POMBINHA
O que está acontecendo, por que
você não me diz?
FLORINDO
É o sujeito! O desgraçado que
voltou dos profundas do inferno pra
perturbar nossas vidas...
CORTA PARA

INT. CASA DO PREFEITO / SALA - DAY


Na sala, Cininha a ouvir a conversa que vem lá de dentro.
FLORINDO
De hoje ele não passa!
Susto de Cininha ao ouvir isso.
POMBINHA
Florindo!
FLORINDO
Sinhozinho está na prefeitura
esperando, vai levar o sujeito pra
casa dele na fazenda...
CORTA PARA

INT. CASA DO PREFEITO / QUARTO DE CININHA - DAY


Florindo no auge da aflição.
FLORINDO
Meu Deus Pombinha, não agüento mais
a pressão, minha cabeça está
explodindo, tenho que dividir isso
com alguém, a gente se reuniu e já
está decidido...
CORTA PARA

INT. CASA DO PREFEITO / SALA - DAY


Na sala, Cininha a escutar tudo.
FLORINDO
Sinhozinho vai matar Roque
Santeiro!
Pombinha solta um grito de pavor lá dentro... E Cininha leva
as mãos à boca pra não fazer o mesmo. Ela recua, vai até uma
cômoda, abre, procura de baixo de lençóis e fronhas e
acha... Um revólver. Cininha guarda o revólver na calcinha e
sai.

EXT. FRENTE DA CASA DO PREFEITO - DAY


Cininha sai de casa, cambaleia ali na frente meio tonta,
olha pro alto... O sol intenso a brilhar. A sobre luz deixa
Cininha completamente cega, ela não enxerga nada em torno,
até que do nada sai em SLOW MOTION o conversível de Porcina
com ela ao volante. A luz volta, Cininha se joga diante do
carro de Porcina.
CININHA
Onde você achou esse carro?
PORCINA
Onde estava parado, ora... Alguém,
que não precisa mais dele, deixou
lá perto da prefeitura.
Cininha vai ficar ao lado da porta do carro.
CININHA
Foi Roque, o meu noivo! Fica
sabendo que ele só voltou pra me
buscar... Vai me levar embora!
PORCINA
Vai mesmo?
CININHA
Vai sim, vai!
PORCINA
Só se for pro cemitério...
Porcina dá a mais debochada de todas as gargalhadas. E,
enquanto sua gargalhada continua a ecoar sobre o rosto
atormentado de Cininha, ela vai embora com o carro e some na
primeira esquina. Cininha sai correndo.

EXT. ASA BRANCA / ERMOS - DAY


Cininha corre feito uma louca pela estrada abaixo. Ela pára,
olha para o canavial ali na margem... E então se embrenha
através dele cortando caminho.

EXT. FAZENDA / CASA GRANDE - DAY


O carro pára diante da fazenda. Roque Santeiro, dentro do
carro com Sinhozinho, observa a casa grande.
ROQUE
Bela fazenda.
SINHOZINHO
Tenho essa e mais dezesseis. Só em
Mato Grosso são oito.
ROQUE
Tudo comprado às minhas custas.
SINHOZINHO
Depois que a gente se acertar você
também pode ter seu pedaço de
terra.
Os dois descem do carro.
CORTA PARA

EXT. FAZENDA / CANAVIAL - DAY


Cininha correndo feito uma louca pelo canavial a fora.
CORTA PARA

EXT. FAZENDA / CASA GRANDE - DAY


Sinhozinho e Roque caminham em direção à casa grande e
entram lá.

INT. CASA GRANDE / SALA PRINCIPAL - DAY


Sinhozinho e Roque entram.
ROQUE
E sua mulher mais seu filho?
SINHOZINHO
Estão lá dentro. Mas não se
preocupe, pedi que hoje não me
aparecessem em nenhum momento.
Sinhozinho vê Rodésio, vestido como Navalhada, se mostrar de
relance numa porta e sumir de novo.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
(indica o caminho)
Vamos passar pro escritório.
CORTA PARA

EXT. FAZENDA / CANAVIAL - DAY


Cininha sempre a correr pelo canavial em takes descontínuos.
CORTA PARA

EXT. FAZENDA / SAÍDA DO CANAVIAL - DAY


Cininha sai do canavial sempre a correr. Do seu PONTO-DE-
VISTA: já se vê a casa grande da fazenda de Sinhozinho lá
embaixo. Cininha a correr naquela direção.
CORTA PARA

INT. CASA GRANDE / ESCRITÓRIO - DAY


Sinhozinho e Roque entram no escritório. O primeiro vai até
a caixa sobre a escrivaninha, abre, mostra ao outro.
SINHOZINHO
Já sei que você aprecia um bom
charuto.
ROQUE
Agora só quero saber é do meu
dinheiro.
SINHOZINHO
Bom, eu e os outros fizemos umas
contas...
Sinhozinho abre a gaveta. Vê-se a arma lá dentro. Tira de lá
um papel, que entrega a Roque.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
E chegamos a este montante.
Roque examina o papel.
CORTA PARA
EXT. FAZENDA / CASA GRANDE - DAY
Cininha, sempre a correr, chega diante da casa grande da
fazenda de Sinhozinho: cansada, arfante. Ela vê o carro de
Sinhozinho ali parado. Cininha ajeita alguma coisa na
calcinha: a arma! Ela entra na casa.
CORTA PARA

INT. CASA GRANDE / CORREDOR - DAY


Rodésio/Navalhada, pé ante pé, vem pelo corredor.
CORTA PARA

INT. CASA GRANDE / SALA DE SINHOZINHO - DAY


Cininha já na sala. Faz um esforço enorme para conter a
respiração. Tira a arma que está dentro da calcinha e, com
ela em punho, segue para o interior da casa.
CORTA PARA

INT. CASA GRANDE / ESCRITÓRIO - DAY


No escritório, Roque a examinar o papel que Sinhozinho lhe
deu.
SINHOZINHO
Ali está mais iluminado.
E Sinhozinho, habilmente, faz com que Roque fique de costas
para a porta. Mal ele faz isso, Rodésio/Navalhada surge na
porta já de arma em punho. Roque, sempre com o papel na mão,
encara Sinhozinho.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
O que achou?
ROQUE
Não sei se é justo, mas pra mim é
satisfatório.
SINHOZINHO
É uma montanha de dinheiro!
ROQUE
No papel. Quero ver ao vivo. Onde
está a grana?
SINHOZINHO
Ali na gaveta. É só um minuto.
Sinhozinho finge que vai pegar o dinheiro e assim se afasta
de Roque. Rodésio/Navalhada ergue o rifle, vai atirar em
Roque... Neste momento alguém encosta uma arma em suas
costas e o paralisa. Sinhozinho, sem mover sequer um cílio,
vê a cena toda: é Cininha. Tudo acontece lá atrás no maior
silêncio, e assim Roque, de costas para a porta, não percebe
nada. Sinhozinho se curva para abrir a gaveta, fica um átimo
ali, parado... Roque estranha.
ROQUE
Tem alguma coisa errada?
Sinhozinho se ergue e se dirige a Roque.
SINHOZINHO
Um detalhe na sua história me
deixou curioso.
ROQUE
Qual é?
SINHOZINHO
Você foi pra São Paulo... Casou...
Reação de Cininha ao ouvir isso.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
Demorou muito pra achar sua cara
metade?
ROQUE
Mal saí daqui. Namoramos uns
meses... E casamos.
SINHOZINHO
Então faz quase vinte anos.
ROQUE
Isso mesmo.
SINHOZINHO
Vive bem com sua mulher?
ROQUE
Temos o maior tesão um pelo outro.
SINHOZINHO
Mas chegou aqui e logo deu um jeito
de dar um pega na Porcina.
ROQUE
Só pra lembrar os velhos tempos.
SINHOZINHO
Gostava de Cininha e dormia com a
outra.
ROQUE
Quem disse que eu gostava de
Cininha?... Ela é que cismou
comigo!
SINHOZINHO
Mas vocês não eram noivos?
ROQUE
Só na cabeça dela.
Lágrimas começam a escorrer dos olhos de Cininha.
ROQUE (CONTINUACAO)
Sabe que ela ficou virgem até
agora? Esperando por mim! E não
esperou à toa não: hoje mesmo
apareceu na minha frente, e eu, ó:
créu!
SINHOZINHO
Você comeu a filha do prefeito?!...
ROQUE
Comi só não: tireilhe os tampos.
SINHOZINHO
Que tal?
ROQUE
Não fique ofendido, já que é amante
dela, mas deve saber porque estou
falando isso: Porcina é mil vezes
melhor!
Cininha não agüenta mais. Esquece Rodésio-Navalhada e,
sempre de arma em punho, avança em direção a Roque.
CININHA
Roque!
Roque se volta para ela num susto.
CININHA (CONTINUACAO)
Desgraçado!
Ela descarrega a arma e acerta todos os tiros nele. Os dois
últimos, como Bette Davis em "A Carta", ela dá com ele já
caído.
Sinhozinho e Rodésio/Navalhada assistem à cena impassíveis.
Roque estrebucha e morre. Cininha larga a arma... Cai no
chão feito um molambo... E fica como se não estivesse ali:
completamente ausente. Sinhozinho fala pra
Rodésio/Navalhada.
SINHOZINHO
Trata de tirar essa fantasia, ô
palhaço!
Rodésio/Navalhada recua e some.
Sinhozinho vai até Roque, pega o papel que ele ainda segura,
dá uma olhada nele.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
Cinco milhões de Reais: imagina!
Sinhozinho vai até o telefone, disca. Alguém atende do outro
lado. Sinhozinho fala ao telefone.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
Florindo Abelha? Aconteceu uma
tragédia!
Ele fica a falar fora de áudio, enquanto a CAM vai mostrar
diante dele, no chão: Cininha imóvel, completamente surtada,
e Roque morto.
FADE IN.

EXT. FRENTE DA CASA DO PREFEITO - DAY


FADE OUT.
Pombinha e Astromar saem amparando Cininha metida numa
camisa de força, e a levam em direção à ambulância. Miguel,
discretamente postado, a filmar a cena. Sinhozinho, Florindo
e Porcina, à frente de uma multidão de curiosos, a observar
tudo.
FLORINDO
Coitada de minha filhinha...
SINHOZINHO
Doida demais...
PORCINA
Por mais que Cininha me odeie,
morro de pena da coitada: ir pra
clínica psiquiátrica de novo?
Ninguém merece isso...
Florindo fala baixo com Sinhozinho.
FLORINDO
E quanto ao morto?
Sinhozinho olha para ele espantadíssimo.
SINHOZINHO
Que morto?
CORTA PARA
EXT. ASA BRANCA / MEIO DO RIO - DAY
Rodésio, num barco no meio do rio, olha o cadáver de Roque
Santeiro, que tem uma pedra enorme amarrada a uma das
pernas... Saca da arma e lhe dá um monte de tiros. Depois o
empurra: o cadáver cai na água e afunda.
RODÉSIO
Vai desgraçado, volta pro lugar de
onde tu veio!
CORTA PARA

EXT. FRENTE DA CASA DO PREFEITO - DAY


Os mesmos, diante da casa do prefeito
SINHOZINHO
Não teve morto nenhum! Sua filha
surtou, por isso inventou aquela
história absurda!
Ele se volta para Santusa e Júnior, que estão atrás deles.
SINHOZINHO (CONTINUACAO)
Não foi, Santusa?
SANTUSA
Tudo que Cininha falou é invenção
dela. Eu estava lá e sou
testemunha: não tinha mais ninguém
na casa além de nós.
Sinhozinho pega na mão de Santusa, agradecido... Mas ela se
livra da mão dele com um gesto brusco.mAstromar e Pombinha
entregam Cininha aos enfermeiros, que a levam para dentro da
ambulância.mPombinha, em prantos, vem se alojar nos braços
do marido.mAstromar se aproxima de Sinhozinho, que fala com
ele.
SINHOZINHO
Quando ela tiver alta vocês se
casam.
PORCINA
Isso! Só mesmo um marido pra manter
aquela doida sob controle. O
problema dela é falta de homem!
A sirene da ambulância ecoa.Miguel filma enquanto a
ambulância vai embora.

EXT. ASA BRANCA / PRAÇA PRINCIPAL - DAY


Dois ônibus param na praça. Deles descem dezenas de
romeiros.
Surge uma inscrição sobre as imagens:
NOVE MESES DEPOIS.
Cego Jeremias e seu guia avançam, o primeiro já aos brados.
CEGO JEREMIAS
Senhores, eu vi! Com esses meus
olhos que a terra um dia há de
comer!
Ele tira os óculos e mostra os olhos esbranquiçados.
CEGO JEREMIAS (CONTINUACAO)
Vi Roque Santeiro tombar,
mortalmente atingido pelos tiros do
Dragão da Maldade.
O cego aponta em direção à estátua.
CEGO JEREMIAS (CONTINUACAO)
Ele tombou sim... Mas ergueu-se e
subiu aos céus... Onde está sentado
à mão direita de Deus Pai...
Cumprindo a sua missão de nos
salvar!
Os romeiros aplaudem. Vendedores de velas, ex-votos, flores
e bentinhos ocupam seus postos nos quiosques em torno da
estátua. Matilde, Ninon e Rosaly distribuem panfletos.
MATILDE
O primeiro drinque é grátis... E o
relax com as meninas é baratinho,
baratinho.
Os romeiros tratam de se aproximar dos quiosques para fazer
compras. Alguns, que já trouxeram suas próprias velas, vão
acendê-las. Um carro passa a toda pela praça e vai parar
diante da Prefeitura. Cego Jeremias, que ficou atento ao
barulho do carro, fala com o guia.
CEGO JEREMIAS
Não é o carro de Júnior?
O carro pára diante da prefeitura, Júnior desce e entra lá a
toda.

INT. PREFEITURA / GABINETE DO PREFEITO - DAY


Sinhozinho, Porcina, Florindo e Astromar no meio de uma
discussão.
PORCINA
Não senhor, a franquia de perfumes
é minha, não abro mão disso!
SINHOZINHO
Mas Porcina, o shopping é grande,
pode muito bem ter duas lojas de
perfumes!
FLORINDO
Além disso, como a sua loja é
isenta de impostos, a gente pode
cobrar o dobro da outra, e então/
Júnior entra apressado a exibir um papel
JÚNIOR
Novidades, pai, acabou de chegar um
telegrama lá da Arquidiocese...
SINHOZINHO
De Vossa Eminência?!...
Sinhozinho arrebata o papel das mãos de Júnior e o lê
avidamente.
JÚNIOR
O Vaticano deu início ao processo
de beatificação de Roque Santeiro!
SINHOZINHO
Trata de encomendar o foguetório...
E deixa que eu faço um discurso pra
comunicar ao povo!
Pombinha surge na porta.
POMBINHA
Agora não, tem um assunto mais
urgente... Cininha!
CORTA PARA

INT. CASA DE ASTROMAR / ESCRITÓRIO - DAY


Astromar abre a janela do seu escritório e grita para a
Cidade Santa, cheia de gente, diante dele.
ASTROMAR
Minha mulher entrou em trabalho de
parto!

INT. CASA DE ASTROMAR / QUARTO DO CASAL - DAY


Cininha solta um berro e se retorce toda. Lulu e Santusa
voejam em torno dela.
LULU
Força, força!
SANTUSA
Respira, respira!
Uma mulher cheia de autoridade surge na porta.
LULU
Pronto, Cininha, fica tranqüila,
chegou a parteira!
A parteira se aproxima da cama e dá início aos trabalhos.
Astromar, Pombinha e Florindo surgem na porta. Santusa os vê
e vai até lá.
SANTUSA
Dão licença?...
Ela fecha a porta. Cininha se contorce na cama sob as mãos
da porteira.
CININHA
Ai, que dor mais da moléstia!
CORTA PARA

INT. CASA DE ASTROMAR / SALA - DAY


Astromar, Florindo, Pombinha e Clara no auge da tensão e da
agonia a ouvir os gritos de Cininha.
CLARINHA
Vai dar tudo certo, pai, não se
preocupe.
Astromar reage agoniado.
ASTROMAR
Prematuro, filha... A gente casou
faz sete meses!
Cininha dá um último grito, uma espécie de uivo.
Todos em silêncio na maior expectativa...
E então se ouve o choro da criança.
ASTROMAR (CONTINUACAO)
Nasceu!
E eles se precipitam para o interior da casa.

INT. CASA DE ASTROMAR / QUARTO DO CASAL - DAY


Cininha sobre a cama, com o filho enrolado em panos já nos
braços. Santusa e Lulu à parte, muito sérias, a cochichar
com a parteira. Entram Astromar, Pombinha, Florindo e Clara,
e vão até a cama. Expectativa de Santusa, Lulu e a porteira.
Astromar chega perto de Cininha, faz um carinho no rosto
dela... E depois descobre o bebê que ela segura nos
braços.Reação forte de Astromar...
E só então a CAM mostra o bebê, junto com a fala de
Astromar.
ASTROMAR
É preto!
Florindo se curva diante do bebê e constata.
FLORINDO
É escurinho sim.
POMBINHA
Todo bebê é assim quando nasce...
Depois clareia.
Astromar, ressabiado, fica a olhar a criança... Porém não
diz mais nada. Cininha, alheia a tudo ao seu redor, se
concentra no bebê, cheia de ternura.
CININHA
Nosso filho. Nosso filho! Nosso
filho...
Todos ao redor da cama na qual, como uma Madona, ela embala
a criança. CAM se afasta devagar, sai pela janela, que está
aberta... E num movimento circular, do lado de fora da
janela, vai buscar a estátua de Roque Santeiro no meio da
praça, que fervilha de vendedores e romeiros... Até se
concentrar no Cego Jeremias, que, ao pé da estátua, saca da
viola e canta O ABC de Roque Santeiro.
FIM.

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