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Rudolf Steiner

Como atua o Carma


O passado e no tecer do próprio destino

Tradução de
Gerda E. Hupfeld

1
O sono foi amiúde designado o irmão mais jovem da morte. Numa
observação superficial, esta comparação simboliza, talvez mais do que se tenda
a aceitar, os caminhos do espírito humano — pois existe uma idéia do sentido
em que estão relacionadas as inúmeras encarnações pelas quais esse espírito
humano passa. No artigo intitulado “Reencarnação e carma do ponto de vista
das concepções necessárias à moderna Ciência Natural”1, expus que a atual
mentalidade científico-natural, desde que realmente compreenda a si própria,
conduz à remota doutrina da evolução do espírito humano eterno através de
muitas vidas. A esse conhecimento se segue necessariamente a seguinte per-
gunta: como essas vidas diversificadas se relacionam entre si? Em que sentido a
vida de um homem é o efeito de suas encarnações anteriores, tornando-se
motivo para outra? Uma imagem da relação entre causa e efeito, neste campo, é
fornecida pela comparação com o sono.
Posso imaginar que existam muitos acreditando estarem no topo do
cientismo, vindo a achar as explicações seguintes “sem qualquer rigor
científico”. Posso entendê-los, por saber que a esta objeção necessariamente é
impelido quem não tem experiências no campo supra-sensível e, ao mesmo
tempo, não possui a necessária reserva e modéstia para admitir que ainda
poderia aprender alguma coisa. Pelo menos uma única coisa essas pessoas não
deveriam dizer: que os acontecimentos aqui apresentados “contrariam a razão”
e que “com a razão não podemos comprová-los”. A razão nada pode fazer além
de combinar e sistematizar fatos. Fatos podem ser vivenciados, mas não
“atestados com a razão”. Com a razão tampouco podemos atestar uma baleia.
Ou esta deve ser vista ou, então, descrita por alguém que a viu. Assim também
ocorre com os fatos transcendentais. Se ainda não estivermos tão avançados
para vê-los por nós mesmos, alguém nos deverá descrevê-los. Eu posso
assegurar a todos que os fatos transcendentais que descreverei a seguir são,
para quem cujo sentido superior está desenvolvido, tão “objetivos” quanto a
baleia.2
Eu me levanto de manhã. Minha atividade cotidiana esteve interrompida
durante a noite. Não posso retomar esta atividade pela manhã de forma
arbitrária, se é que deve existir regra e coerência em minha vida. Com aquilo
que fiz ontem foram criadas as precondições para aquilo que terei de fazer hoje.
Preciso ligar-me ao resultado de minha atividade de ontem. No pleno sentido da
palavra, é válido que minhas ações de ontem sejam meu destino de hoje. Eu
mesmo formei as causas às quais devo anexar os efeitos. E encontro essas
causas após me haver afastado um pouco delas. Elas fazem parte de mim,
mesmo que eu tenha estado separado delas por algum tempo.
Há ainda outro sentido em que os efeitos de minhas vivências de ontem
fazem parte de mim. Certamente eu mesmo fui transformado por eles. Admita-
se que eu me tenha empenhado em algo que só tenha conseguido realizar pela
metade. Fiquei pensando por que esse fracasso parcial me atingiu. Quando eu
tiver de fazer outra coisa similar, evitarei erros conhecidos. Adquiri, portanto,
uma nova habilidade. Com isto minhas vivências de ontem são as causas de
minhas habilidades de hoje. Meu passado permanece ligado a mim; continua
vivendo em meu presente, e continuará a me seguir em meu futuro. Por meu
passado eu criei a situação em que me encontro atualmente. E o sentido da vida
exige que eu fique atado a esta situação. Não faria sentido se, sob condições
normais, eu não habitasse uma casa que eu tivesse mandado construir para
mim.
Eu não deveria acordar hoje, mas ser criado novamente, a partir do nada,

1 Reinkarnation und Karma, vom Standpunktd der modernen Naturwissenschaft notwendíge


Vorstellungen. Dornach, Rudolf Steiner Verlag, 1960 (in GA Nr. 34) e 1978 (em separata
juntamente com o presente texto). Edição brasileira sob o titulo Reencarnação e carma, em
tradução de Lélio Candiota de Campos. São Paulo, Ed. Antroposófica, 1990. (N.E.)
2 Nas edições iniciais o texto deste parágrafo constava numa nota de rodapé, tendo sido incluído no corpo
do texto por sua importância fundamental. (N. E. orig.)

2
se os efeitos de minhas ações de ontem não fossem meu destino de hoje. E
novamente criado a partir do nada deveria ser o espírito humano se os
resultados de suas vidas anteriores não ficassem ligados aos subseqüentes. Sim,
o homem não pode viver em outra situação que não aquela criada por sua vida
anterior. Ele não o pode tal como aqueles animais que, após sua migração para
as cavernas no Kentucky, perderam a visão e não poderão viver mais em outro
lugar senão nessas grutas. Eles provocaram por seu feito, pela migração, as
condições de sua vida posterior. Uma entidade que uma vez foi ativa não está
mais isolada na continuação: colocou-se a si mesma em suas ações. E tudo o
que ela vier a ser estará, a partir daí, ligado ao que surgirá de suas ações. Esta
associação de uma entidade com os resultados de suas ações é a universal lei do
carma. A atividade que se tornou destino é carrna.
É por isso que o sono é uma boa imagem para a morte: durante o sono o
homem está, de fato, subtraído à cena onde o destino o espera. Enquanto
dormimos, os acontecimentos continuam correndo nesse cenário. Por certo
tempo não temos influência nesse curso. Não obstante, reencontramos os
efeitos de nossas ações e precisamos reatar-nos a elas. Nossa personalidade
realmente se encarna de novo a cada dia em nosso universo factual. O que
esteve separado de nós durante a noite está, de certa forma, disposto ao nosso
redor durante o dia.
Assim acontece com os atos de nossas encarnações anteriores. Seus
resultados estão incorporados ao mundo em que estamos encarnados; porém
fazem parte de nós tal como a vida nas cavernas pertence aos animais que, por
esse tipo de vida, perderam a visão. Tal como esses animais só podem viver
quando reencontram as imediações às quais se adaptaram, assim o espírito
humano só pode viver no ambiente que criou por suas ações correspondentes a
ele próprio.

A cada nova manhã o corpo humano é como que novamente permeado de


alma. A ciência reconhece ocorrer, com isto, algo que ela não consegue
apreender aplicando somente as leis obtidas no mundo físico. Tenha-se em
mente o que o pesquisador natural Du BoisReymond falou sobre isto em seu
discurso “Sobre os limites do conhecimento da Natureza”:

Um cérebro inconsciente por qualquer razão — por exemplo, dormindo sem


sonhar — não percebe mais cientificamente [Du Bois-Reymond diz “astro-
nomicamente” ] segredo algum, e também durante o conhecimento científico do
corpo restante estaria totalmente decifrada toda a máquina humana, com sua
respiração, suas batidas cardíacas, seu metabolismo, seu calor, etc., até à
essência da matéria e da energia. A pessoa adormecida sem sonhar é com-
preensível como o mundo antes de existir consciência; mas tal como o mundo se
tornou duplamente incompreensível com o primeiro sintoma de consciência,
assim acontece também ao adormecido com o despontar da primeira imagem
onírica.3

Isto não pode ser diferente — pois o que o pesquisador descreve aqui como
a pessoa adormecida sem sonhar é aquilo que, no homem, está sujeito somente
às leis físicas. Mas a partir do momento em que aparece novamente permeado
de alma, segue as leis da vida anímica. Dormindo, o corpo humano segue
somente as leis físicas: o homem acorda e a luz do agir racional entra como uma
faísca na existência puramente física. Corresponde inteiramente ao sentido do
pesquisador natural Du Bois-Reymond exprimir-se do seguinte modo: não se
pode examinar de todos os lados o corpo adormecido; não se poderá achar nele
o anímico. Contudo este anímico continua a corrente de suas ações conscientes
no ponto onde a interrompeu antes de adormecer.

3 Emil Du Bois-Reymond, Über die Grenzen des Naturerkennens, Leipzig 1872. págs. 26 e ss.

3
Sendo assim, o homem pertence — também no que tange a esta observação
— a dois mundos. Num deles ele vive fisicamente, sendo que essa vida física
pode transcorrer pela linha das leis físicas; no outro ele vive espiritualmente
consciente, e sobre essa vida nada podemos saber por meio de leis físicas. Se
quisermos estudar uma vida, precisaremos ater-nos às leis físicas da Ciência
Natural; mas se quisermos entender a outra vida, precisaremos conhecer as leis
do agir consciente — por exemplo, a Lógica, o Direito, a Economia Politica, a
Estética e assim por diante.
O corpo humano adormecido, sujeito apenas às leis físicas, jamais pode
realizar algo ligado ao sentido das leis da razão. Porém o espírito humano traz
essas leis da razão para dentro do mundo físico. E à medida que as houver
trazido, ele as reencontrará quando, após uma interrupção, retomar o fio de sua
atividade.
Permaneçamos ainda, por um instante, na imagem do sono. A
personalidade deve religar-se hoje aos seus atos de ontem, para que a vida não
careça de sentido. Ela não poderia fazê-lo caso não se sentisse ligada a esses
atos. Eu não poderia receber o resultado de minha atuação de ontem se em mim
mesmo não houvesse ficado algo dessa atuação. Se hoje eu tivesse esquecido
tudo o que vivenciei ontem, seria um novo homem e não poderia ligar-me a
coisa alguma. É a minha memória que me possibilita o reatamento com minhas
ações de ontem. Esta memória me prende às conseqüências de meu agir. Aquilo
que, no verdadeiro sentido, faz parte de minha vida racional — por exemplo, a
lógica — é hoje o mesmo de ontem. Isto se aplica também ao que ontem de
maneira alguma e, acima de tudo, jamais entrou em meu círculo de visão.
Minha memória une meu agir lógico de hoje ao meu agir lógico de ontem. Caso
só dependesse da lógica, poderíamos de fato iniciar uma nova vida a cada
manhã; mas a memória fica guardando o que nos prende ao nosso destino.
Desse modo eu me encontro realmente, de manhã, como uma entidade
tríplice: reencontro meu corpo, que durante meu sono obedeceu somente a leis
físicas; reencontro a mim próprio, meu espírito humano, que hoje é o mesmo de
ontem e possui o mesmo dom da ação racional de ontem; e encontro, guardado
na memória, tudo o que o dia de ontem e todo o meu passado fez de mim.
E com isto temos ao mesmo tempo um quadro da entidade tríplice do
homem. Em cada nova reencarnação o homem se encontra num organismo
físico sujeito às leis da natureza exterior; e em cada encarnação ele é o mesmo
espírito humano, constituindo, como tal, o elemento eterno nas várias
encarnações. Corpo e espírito situam-se frente a frente; entre ambos deve haver
algo como a memória entre minhas ações de ontem e de hoje — e isso é a alma.4
A alma guarda os efeitos de minhas ações das vidas passadas; faz com que o
espírito apareça, na nova encarnação, como aquilo que a vida anterior fez dele.
Assim se ligam o corpo, a alma e o espírito. Eterno é o espírito; nascimentos e
morte vigoram na corporalidade segundo as leis do mundo físico; a alma os une
sempre de novo, tecendo o destino a partir das ações.

Também para a comparação entre alma e memória é possível reportar à


Ciência Natural de hoje. No ano de 1871 o pesquisador Ewald Hering publicou
um tratado intitulado “Sobre a memória como função geral da matéria
organizada”; e Ernst Haeckel concorda com os pontos de vista de Hering
dizendo, em seu trabalho “Sobre a geração de ondas das partículas vitais”, o
seguinte:

De fato, todo meditar mais profundo nos convence de que sem a admissão de
uma memória inconsciente da matéria viva as funções mais importantes são de
todo inexplicáveis. A capacidade da imaginação e da continuação, do pensar e
da consciência, do exercício e do hábito, da alimentação e da procriação baseia-
se na função da memória inconsciente, cuja atividade é infinitamente mais

4 V. pág. 12.

4
significativa que a da memória consciente. Hering diz, com razão, “que à
memória devemos quase tudo que somos e temos” .5

E então Haeckel tenta atribuir todos os processos de hereditariedade nos


seres vivos a essa memória inconsciente. O fato de o ente-filha ser semelhante
ao ente-mãe, sendo deste último transmitidas propriedades ao primeiro, deve
fundamentar, conforme esse argumento, na memória inconsciente do vivo, que
na seqüência da procriação guarda lembranças de formas anteriores.
Aqui não é o caso de se investigar o que há de cientificamente sustentável
nas exposições de Hering e Haeckel; pelos escopos que aqui se perseguem, só é
importante que o cientista pesquisador se veja obrigado, no ponto onde
ultrapassa nascimento e morte e onde deve supor algo que sobreviva à morte, a
aceitar uma entidade que ele imagina semelhante à memória. Ele naturalmente
lança mão de uma força supra-sensível, onde as leis da natureza física não
alcançam.
Aliás, deve-se reparar que aqui se trata, primeiro, somente de uma
comparação, de uma imagem ao se falar de memória. Não se deve acreditar
entendermos por alma algo que, sem mais nem menos, se equipara à memória
consciente. Mesmo na vida cotidiana, nem sempre está em jogo a memória
consciente quando se utilizam as vivências do passado. Os frutos destas vi-
vências nós os carregamos em nós, embora nem sempre recordemos
conscientemente o que foi vivenciado. Quem se lembra de todos os detalhes
pelos quais aprendeu a ler e a escrever? E a quem todos esses detalhes se
tornaram conscientes? O costume, por exemplo, é uma forma de memória
inconsciente.
Deve ser apenas indicativa a comparação entre a memória e o elemento
anímico, situado entre o corpo e o espírito, mediador entre o que é eterno e
aquilo que está inserido como corpo físico na seqüência formada por
nascimento e morte.

O espírito que se reencarna encontra, pois, dentro do mundo físico os


resultados de suas ações como sendo seu destino; e a alma conjugada a ele
intermedia sua ligação com este destino. Pode-se perguntar: como é que o
espírito pode encontrar os resultados de suas ações se, em sua reencarnação,
certamente é transferido para um mundo totalmente diferente daquele em que
esteve antes? Esta pergunta tem como base uma idéia muito superficial do
entrelaçamento do destino. Se transfiro minha residência da Europa para a
América, também passo a me encontrar num ambiente totalmente novo — e
apesar disto minha vida na América depende totalmente da anterior, na
Alemanha. Se me tornei mecânico na Europa, minha vida na América se
organiza de forma totalmente diferente do que se eu me tivesse tornado
bancário. No primeiro caso estarei certamente rodeado de máquinas, e no outro
de papéis de banco. Em todo caso minha vida anterior determina meu ambiente,
atraindo de certa forma, de todo o derredor, as coisas que lhe são relacionadas.
Assim ocorre com minha alma espiritual: ela necessariamente se cerca daquilo
que com ela se relacionou na vida anterior. Isto não pode contradizer a
comparação do sono com a morte, para quem está ciente de se tratar somente
de uma comparação — se bem que uma das mais acertadas. Para que de manhã
eu encontre a situação que eu mesmo criei no dia anterior, disto se encarrega o
decurso espontâneo dos acontecimentos. Para que eu reencontre, quando me
reencarno, um ambiente que corresponda ao resultado de minhas ações na vida
anterior, para tanto coopera o parentesco de minha alma espiritual, renascida,
com as coisas desse ambiente.
O que me faz entrar nesse ambiente? Diretamente as propriedades de
minha alma espiritual na nova reencarnação. Aliás, essas propriedades eu só as

5 Ernst Haeckel, Über die Wellenzeugung der Lebensteilchen oder die Perigenesis der
Plastidule (1875).

5
tenho pelo fato de as ações de minhas vidas anteriores as terem impregnado na
alma espiritual. Tais ações são, portanto, a causa real de eu haver renascido em
certas circunstâncias; e o que eu faço hoje será igualmente motivo para que,
numa vida posterior, eu encontre estas ou aquelas condições.
Assim sendo, o homem cria, de fato, seu destino. Isto só parece ininteligível
quando se observa a vida isoladamente, não a considerando um elo das vidas
consecutivas.
Desse modo se pode dizer que nada poderá atingir o homem, na vida, se
para tal ele próprio não houver criado condições. Pela compreensão da lei do
destino — do carma — somente se tornará compreensível por que “o bom
precisa freqüentemente sofrer e o mau pode ser feliz”. Esta aparente
desarmonia de unia vida desaparece quando se amplia a visão às muitas vidas.
Aliás, não se deve imaginar ser a lei do carma tão simples quanto um juiz
comum ou como a curadoria pública. Isto se assemelharia a imaginar Deus
como um velho de barbas brancas. Muitos incorrem neste erro; são
particularmente os opositores da idéia do carma que partem de tais premissas
errôneas. Eles lutam contra a idéia que eles endossam a respeito de quem
confessa o carma, e não contra a dos verdadeiros confessores.

Como é que o homem está relacionado com o ambiente físico ao ingressar


em nova encarnação? Por um lado esse relacionamento resulta do fato de, no
ínterim entre as duas encarnações, ele não ter participado do mundo físico, e,
por outro, de sua evolução nesse ínterim. Fica claro, desde o início, que para
essa evolução nada pode fluir do mundo físico, pois a alma espiritual se
encontra fora dele. Por isso, tudo o que nela se passa ela agora pode haurir
somente de si mesma, ou melhor, do mundo suprafisico. Como estivesse
inserida na encarnação do mundo físico dos objetos, após a desencarnação lhe
foi retirada a influência imediata desse mundo, restando dele tão-somente o que
comparamos à memória.
Duas partes compõem esse “resíduo de memória”. Essas partes surgem
quando se leva em conta o que contribuiu para sua formação.
O espírito viveu no corpo e, por seu intermédio, relacionou-se com o mundo
das formas. Esse relacionamento encontrou sua expressão no fato de se
haverem desenvolvido, por meio do corpo, instintos, desejos e paixões, por cujo
intermédio se concretizaram atividades externas. Por ser corpóreo, o homem
age sob a influência dos instintos, desejos e paixões, que têm seu significado
por dois lados. Por um lado eles imprimem sua marca nas ações externas que o
homem executa; por outro formam seu caráter pessoal. A ação que executo é
conseqüência de meu impulso; e eu mesmo sou, como personalidade, o que esse
impulso expressa. A ação passa ao mundo exterior; o impulso fica em minha
alma tal como a representação em minha memória. E do mesmo modo como a
imagem representativa em minha memória é imediatamente reforçada por cada
nova impressão similar, assim o instinto é reforçado por cada nova ação que eu
executo sob sua influência. Assim vive em minha alma, por causa da existência
corpórea, uma soma de instintos, desejos e paixões. Tal soma denomina-se “cor-
po do desejo” (Kama rupa). Este “corpo do desejo” está intimamente ligado à
existência material, pois surge sob a influência da corporalidade física. A partir
do momento em que o espírito não está mais encarnado ele não pode, por isto,
continuar sua formação. O espírito deve livrar-se dele à medida que, por seu
intermédio, esteve ligado à vida física isolada. À vida física segue-se outra, em
que se processa essa libertação. Pode-se perguntar o seguinte: será que com a
morte não se destrói também esse “corpo do desejo”? A resposta é não; à
medida que em cada momento da vida física o desejo prevalece sobre a
satisfação, o desejo subsiste mesmo tendo cessado a possibilidade de satisfação.
Só um ser humano que nada deseja no mundo físico deixa de possuir um
excesso de desejo sobre a satisfação. Só um homem livre de desejo morre sem
conservar em seu espírito uma soma de desejo. E essa soma deve extinguir-se
após a morte. O estado dessa extinção é chamado “permanência no lugar do

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desejo” (Kama loka). Reconhece-se facilmente que esta condição deve demorar
tanto quanto o ser humano se sentiu ligado à vida dos sentidos.
A segunda parte do “resíduo de memória” é formado de outra maneira. Tal
como o desejo atrai o espírito para a vida passada, a outra parte lhe indica o
futuro. Por seu trabalho no corpo o espírito travou conhecimento com o mundo
ao qual esse corpo pertence. Cada novo esforço, cada nova vivência aumenta
este conhecimento. Via de regra, o homem executa melhor cada coisa na
segunda tentativa. A experiência, a vivência se estampa no espírito como uma
elevação de suas habilidades. É assim que nossa experiência age sobre o nosso
futuro, e quando não mais temos oportunidade de fazer experiências o
resultado das mesmas fica como “resíduo de memória”.
Contudo, nenhuma experiência poderia agir em nós se não tivéssemos as
habilidades para tirar proveito dela. O modo como podemos assimilar a
experiência, o que somos capazes de fazer a partir daí — disto depende o que
ela significa para o nosso futuro. Para Göethe, uma vivência era algo diferente
do que para seu camareiro; e através do primeiro ela tinha conseqüências
totalmente diferentes do que através do último. As habilidades que adquirimos
por meio de uma vivência dependem, assim, do trabalho espiritual que
executamos em relação à vivência.
Em certos momentos de minha vida eu sempre possuo em mim uma soma
dos resultados de minhas experiências. Esta soma constitui a predisposição
para habilidades que possam manifestar-se a seguir.
Essa soma é o que o espírito humano possui por ocasião de sua
desencarnação, levando-a para a vida supra-sensível. Se nenhum laço corpóreo
o liga mais à existência física, e tendo-se ele despojado dos desejos que o
acorrentam a ela, resta-lhe o fruto de suas experiências, o qual está totalmente
liberto da imediata influência da vida passada. Agora o espírito só se pode
preocupar com o que dá para formar o futuro. Sendo assim, após ter deixado o
“local do desejo”o espírito encontra-se num estado em que suas vivências de
vidas anteriores se transformam em germes — predisposições, habilidades, etc.
— para o futuro. Designa-se a vida do espírito nesse estado como sendo a
permanência no “local de enlevo” (Devachan). (“Enlevo” pode designar um
estado que faz esquecer toda preocupação pelo que passou, deixando o coração
bater meramente pelo futuro.) Fica óbvio que este estado perdura, em geral,
tanto mais quanto maior pretensão, maior aspiração exista, na morte, a adquirir
novas habilidades.
Naturalmente não se pode tratar, aqui, de desenvolver todos os
conhecimentos relacionados com o espírito humano. Só se deve mostrar como a
lei do carma age na vida física. Para tal basta saber, de início, o que o espírito
leva dessa vida física aos estados supra-sensoriais e o que disto ele traz de volta
para uma nova encarnação. Ele traz de volta experiências de vidas passadas
que se tornaram propriedades de seu ser.
Para avaliar o alcance disto, deve-se esclarecer o processo somente num
único exemplo. Kant diz: “Duas coisas preenchem a mente com admiração
sempre crescente: o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim.”
Cada ser pensante concorda que o céu estrelado não surgiu do nada, e sim
formou-se aos poucos. E foi o próprio Kant que em 1755 procurou explicar, num
escrito fundamental, a formação gradual de um cosmo. Mas tampouco se deve
aceitar o fato da lei moral sem uma explicação. Tampouco essa lei moral surgiu
do nada. Nas encarnações iniciais pelas quais o homem passou, a lei moral não
falava tanto, nele, quanto falou em Kant. O homem primitivo age inteiramente
de acordo com seus instintos, levando para as situações supra-sensíveis as
vivências havidas com tal comportamento. Aqui elas se tornam aptidão superior.
Já numa encarnação posterior, não atua mais nele o mero instinto: este já é
guiado pelos efeitos das experiências feitas anteriormente. E muitas
encarnações são necessárias até que o homem, originalmente entregue por
inteiro aos instintos, acareie com seu meio ambiente a lei moral purificada,
designada por Kant como algo que se pode admirar com tanto deslumbramento

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quanto o céu estrelado.
O ambiente dentro do qual o homem nasce mediante nova encarnação
apresenta-lhe os resultados de suas ações sob forma de seu destino. Ele próprio
entra nesse ambiente com as habilidades que formou a partir de suas antigas
vivências nos estados supra-sensíveis. Também por isto suas vivências no
mundo físico estarão, em geral, em grau tão superior quanto mais amiúde ele se
houver encarnado, ou quanto maiores houverem sido seus esforços em suas
encarnações anteriores. Por isto a peregrinação pelas encarnações será urna
evolução ascendente. Cada vez mais rico se torna o tesouro que. suas
experiências acumulam em seu espírito. E com isto ele enfrenta seu meio
ambiente, seu destino com crescente maturidade. Isto o torna cada vez mais
senhor do destino, pois trata-se justamente do que ele obtém de suas vivências:
ele aprende a interpretar as leis do mundo em que decorrem essas vivências.
Primeiro o espírito não se norteia no meio ambiente: ele tateía no escuro; mas
com cada nova encarnação mais claridade existe à sua volta. Ele adquire o
saber, o conhecimento das leis de seu mundo ambiente — ou, com outras
palavras, realiza com cada vez mais consciência o que antes realizava com
apatia. Cada vez menor se torna a pressão do meio ambiente; cada vez mais o
espírito consegue se autodeterminar. O espírito que se autodetermina a partir
de si próprio é o espírito livre. Um agir à luz totalmente clara da consciência é
um agir livre. (Eu tentei apresentar a essência do espírito humano livre em
minha Philosophie der Freiheít, editada em Berlim em 1893.6) A total liberdade
do espírito humano é o ideal de sua evolução. Não se pode perguntar se o
homem é livre ou não. Os filósofos que indagam desta forma a respeito da li-
berdade jamais poderão chegar a uma clara concepção acerca disto — pois no
presente estado o homem não é nem deixa de ser livre, mas encontra-se no
caminho para a liberdade. Ele é parcialmente livre, parcialmente não-livre. É
livre à medida que adquiriu o conhecimento, a consciência da conexão do
mundo. O fato de nosso destino, nosso carma se nos aproximar sob forma de
uma necessidade absoluta não é impedimento para a nossa liberdade. É que
agindo nós nos aproximamos, isto sim, desse destino que age: somos nós que
agimos de acordo com as leis desse destino.
Se acendo um fósforo, surge o fogo segundo as leis necessárias; mas
primeiro eu coloquei em atividade essas leis necessárias. Da mesma forma, só
posso executar uma ação no sentido das leis necessárias de meu carma; mas
sou eu quem coloca essas leis necessárias em atividade. E a ação que parte de
mim criará novo carma, tal como o fogo continua agindo conforme leis
necessárias após eu o haver acendido.

Com isto se lançou ao mesmo tempo uma outra dúvida, que em relação à
eficiência da lei do carma poderá apoderar-se de alguém. Talvez se pudesse di-
zer: se o carma é uma lei inalterável, então é um absurdo ajudar alguém. Pois o
que o atinge é o resultado de seu carma, e será simplesmente necessário que
isto ou aquilo o atinja. Certamente eu não posso anular os efeitos do destino
que um espírito humano criou em vidas passadas; mas trata-se de como ele se
ajeita com esse destino, e qual destino novo ele cria sob influência do velho. Se
eu o ajudo, posso conseguir que, por suas ações, ele dê ao seu destino um rumo
favorável; se omito a ajuda, então talvez suceda o contrário. Contudo, isto
dependerá de minha ajuda ser sábia ou não.
Uma evolução superior do espírito humano significa um contínuo caminhar
através de novas encarnações. Essa evolução superior se efetua pelo fato de o
mundo em que se realizam as encarnações do espírito ser cada vez mais
percebido por ele. Mas a este mundo pertencem as próprias encarnações.
Também com relação a ele, o espírito sai do estado de inconsciência para o da
consciência. No caminho da evolução está o ponto em que o homem, em total

6 A filosofja da liberdade, ed. brasileira em tradução de Alcides Grandisoli. 2ª ed. São Paulo,
Ed. Antroposófica, 1987. (N.E.)

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consciência, consegue rever suas encarnações.
Esta é uma colocação da qual se pode facilmente zombar; e naturalmente é
muito fácil criticá-las com desdém. Mas quem o faz não tem noção da natureza
de tais verdades. E tanto o escárnio quanto a crítica estarão postadas como um
dragão diante do portal do santuário dentro do qual é possível conhecê-las. Pois
verdades cuja realização, para os homens, está somente no futuro, é óbvio que
ele não poderá encontrar como fato no presente. Só existe um caminho para
alguém se convencer de sua realidade; e este consiste em esforçar-se para ai-
cançar essa realidade.

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Respostas a algumas perguntas sobre carma
De acordo com a lei da reencarnação, deve-se imaginar que a
individualidade humana possui suas predisposições, habilidades, etc. como
efeito de suas vidas anteriores. Ora, será que a isto não contradiz o fato de tais
predisposições e habilidades — por exemplo, coragem moral, talento musical,
etc. — serem transmitidas diretamente de pais para filhos?
Interpretando-se corretamente as leis de reencarnação e carma, não se
acha contradição no acima expresso. Aliás, só se podem transmitir
hereditanamente aquelas propriedades do ser humano pertencentes ao seu
corpo físico e ao seu corpo etérico. Com o último se subentende o portador de
todos os fenômenos vitais (as forças de crescimento e de procriação). Tudo o
que está relacionado com isto pode ser transmitido diretamente. Já em menor
proporção se transmite hereditanamente o que está ligado ao assim chamado
corpo anímico. Aí se deve subentender uma certa disposição nas sensações. O
fato de se possuir um vivo sentido visual, uma audição bem desenvolvida, etc.
pode depender de os antepassados terem adquirido tais propriedades, tendo-as
transmitido por herança. Em contrapartida, ninguém pode transmitir a seus
descendentes aquilo que está relacionado com o ser espiritual propriamente
dito do homem, como por exemplo o rigor e a precisão de sua vida imaginativa,
a autenticidade de sua memória, o senso moral, as habilidades cognitivas e
artísticas adquiridas, etc. Estas são propriedades que permanecem encerradas
em sua individualidade, surgindo em sua próxima reencarnação como
habilidades, disposições, caráter, etc.
Porém agora o ambiente em que o ser humano reencarnado entra não é
casual, mas está em relação necessária com seu carma. Suponha-se, por
exemplo, que um ser humano tenha adquirido, em sua vida anterior, a
propensão para um caráter moral forte. Consta de seu carma o fato de essa
propensão aparecer numa reencarnação. Isso não poderia ocorrer se ele não se
encarnasse num corpo de natureza bem específica. Contudo essa condição
corpórea deve ter sido herdada de seus antepassados. A individualidade que se
reencarna tende, por sua inerente força de atração, àqueles pais que lhe podem
dar corpo adequado. Isto se deve ao fato de essa individualidade já se unir,
antes da reencarnação, às forças do mundo astral tendentes a certas
circunstâncias físicas. Desta forma o ser humano nasce naquela família que lhe
poderá transmitir as condições cármicas. Parece então, no exemplo da coragem
moral, que esta foi herdada dos pais. Na verdade o ser humano, por sua
natureza individual, escolheu a família que lhe possibilita o desabrochar da
coragem moral. Aí ainda pode entrar em consideração que as individualidades
dos filhos e dos pais em vidas anteriores já estiveram ligadas e, por isso mesmo,
encontraram-se novamente. As leis cármicas são tão complicadas que jamais se
pode formar um juízo das aparências externas. Só o pode, de certa forma,
aquele diante de cujos órgãos sensitivos os mundos espirituais estão

7 Publicadas no periódico Lucifer-Gnosis, editado pelo Autor de 1903 a 1908. As duas primeiras
perguntas constam no nº 17 e as três últimas no nº 19, respectivamente de outubro e dezembro
de 1904. (N.E.)

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parcialmente descobertos. Quem, além do corpo físico, também consegue
observar o organismo anímico (corpo astral) e o espírito (corpo mental) vê bem
claro o que foi transmitido ao homem de seus antepassados e o que é sua pro-
priedade, adquirida em vidas pregressas. Para a visão cotidiana estas coisas se
misturam, podendo facilmente parecer que só seria herdado o que é
condicionado carmicamente.
É inteiramente sábia a afirmação de que as crianças são “presenteadas”
aos pais. Elas o são totalmente, no que respeita ao espiritual. Mas aos pais são
presenteadas crianças com certas propriedades espirituais justamente por eles
possuírem a possibilidade de fazer desabrochar essas propriedades espirituais
das crianças.

Num bilhete do círculo dos leitores está a seguinte pergunta: “Então o


ensinamento teosófico não permite a existência do ‘acaso’? Eu não posso, por
exemplo, pensar que se trate do carma de cada um quando, num incêndio de
teatro, perecem quinhentas pessoas juntas.”
As leis do carma são tão emaranhadas que ninguém se deve admirar se à
primeira vista qualquer fato parece estar, para a compreensão humana, em
contradição com a validade dessa lei. Deve-se tornar perfeitamente claro que
este entendimento foi formado em nosso mundo físico, e que em geral estamos
acostumados apenas a admitir o que aprendemos neste mundo. Mas as leis
cármicas pertencem inteiramente aos mundos superiores (na Alemanha é usual
dizer “planos superiores”).
Caso se queira, por isto, em qualquer acontecimento que atinja o homem,
imaginá-lo provocado carmicamente da mesma forma como se imagina a
validade de um juízo puramente na vida físico-terrena, necessariamente se
deparará com contradições. Deve-se ter bem claro que vivências comuns
incidindo em várias pessoas no mundo físico pode significar para cada uma
delas, nos mundos superiores, algo completamente diferente. Naturalmente o
contrário tampouco é excluído, ou seja, que concatenações se ativem em
vivências terrenas conjuntas. Só quem consegue ver claramente em mundos
superiores pode dizer em detalhes o que sucede. Se as concatenações cármicas
de quinhentas pessoas se expressam de tal forma que essas pessoas pereçam
num incêndio de teatro, então são possíveis, entre outras, as seguintes
conseqüências:

1.As concatenações cármicas de nenhuma das quinhentas pessoas precisam


necessariamente ter alguma coisa a ver com as das outras pessoas
acidentadas. A desgraça conjunta está então, para o carma das pessoas em si,
mais ou menos como a sombra de cinqüenta pessoas numa parede está para o
mundo dos pensamentos e das sensações dessas pessoas. Uma hora antes,
talvez essas pessoas nada tivessem em comum; talvez em uma hora
novamente nada tenham em conjunto. O que vivenciaram em seu encontro no
mesmo espaço terá para cada uma sua conseqüência especial; mas seu
encontro é expresso no chamado perfil comum. Porém quem quisesse tirar
desse perfil alguma conclusão, no que respeita a um aspecto comum a essas
pessoas, estaria bem equivocado.

2. É possível que a vivência das quinhentas pessoas nada tenha a ver com
seu passado cármico, e justamente por causa dessa vivência se prepare algo
que no futuro as unirá carmicamente. Talvez essas quinhentas pessoas
ponham em funcionamento, numa época longínqua, um empreendimento
comum, e o desastre as tenha reunido para os mundos superiores. Ao místico
experiente é bastante conhecido, por exemplo, que agremiações formadas na
atualidade devem sua origem ao fato de as pessoas que se unem terem viven-
ciado, num passado longínquo, um desastre em conjunto.

3. Pode, realmente, um tal caso ser o efeito de uma culpa conjunta de tais

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pessoas. Nisto ainda existem inúmeras outras possibilidades. Todas as três
possibilidades indicadas podem, por exemplo, estar combinadas entre si, e
assim por diante.

Falar de “acaso” no mundo físico é certamente válido. E tanto quanto soa


incondicional a frase “Não existe acaso” ao se levar em consideração todos os
mundos, tanto injustificado seria eliminar a palavra “acaso” ao se falar somente
da concatenação das coisas do mundo físico. O acaso no mundo físico não é
causado pelo fato de neste mundo as coisas sucederem no espaço sensorial. A
medida que sucedem nesse espaço, elas devem também obedecer às leis desse
espaço. Mas nesse espaço podem coincidir externamente coisas que à primeira
vista nada têm internamente em comum. Do mesmo modo como é improvável
que meu rosto esteja realmente deformado por se mostrar deformado num
espelho irregular, tampouco as origens de uma telha caída do telhado, a qual
me machuca enquanto sou transeunte momentâneo, precisa ter algo a ver com
meu carma, proveniente do meu passado.
O erro que aí se comete consiste no fato de muitos imaginarem as
concatenações cármicas como sendo simples demais. Eles pressupõem, por
exemplo o seguinte: se este homem foi ferido por um tijolo, então deve ter
merecido carmicamente esse ferimento. Isto, porém, não é absolutamente
necessário. Na vida de cada ser humano surgem constantemente
acontecimentos que nada têm a ver com seu merecimento ou culpa no passado.
Tais acontecimentos encontram sua compensação justa mente no futuro. Pelo
que hoje me acontece imerecidamente, serei indenizado no futuro. Uma coisa é
certa: nada fica sem compensação cármica. Porém se uma vivência do ser
humano é conseqüência de seu passado cármico, ou causa de seu futuro
cármico, isto deve ser constatado em detalhe; e não pode ser decidido pelo
juízo acostumado ao mundo físico, mas somente por experiência e
observações ocultas.
Pode-se entender, segundo o ensinamento do carma, que uma alma humana
extremamente desenvolvida renasça numa criança desamparada e não-
desenvolvida? Para muitos, contém algo de insuportável e ilógico o pensamento
de se ter de começar sempre de novo no grau da infância.
O modo como o ser humano pode ser ativo no mundo físico depende dos
instrumentos físicos que ele possuí. Idéias superiores, por exemplo, só podem
ser expressas nesse mundo quando existe um cérebro totalmente desenvolvido.
Assim como o pianista tem de esperar até que o construtor lhe apronte o piano
a ponto de ele poder reproduzir suas idéias musicais, a alma deve esperar com
habilidades adquiridas em vidas anteriores até que as forças do mundo físico
hajam construído os órgãos corpóreos a ponto de estes se poderem tornar uma
expressão dessas habilidades. As forças da Natureza precisam percorrer seu
caminho, e a alma também. Existe, porém, desde o início da vida humana uma
cooperação entre forças da alma e do corpo; mas a alma age no corpo infantil,
ainda dócil e flexível, de maneira que este possa tornar-se mais tarde portador
daquelas forças adquiridas em períodos de vida passados. É realmente
necessário que primeiramente o ser humano reencarnado se adapte às novas
condições de vida. Se ele simplesmente aparecesse numa nova vida com tudo
anteriormente adquirido, não se adaptaria ao meio ambiente. Ele adquiriu suas
habilidades e forças sob outras circunstâncias, e num ambiente totalmente di-
verso. Caso quisesse simplesmente entrar no mundo em seu estado anterior,
seria aí um estranho. O período infantil existe para estabelecer harmonia entre
as antigas e as novas condições. Como se apresentaria em nosso mundo um
homem, ainda que inteligente, da antiga época romana caso simplesmente
nascesse neste mundo com suas forças adquiridas então? Uma força só pode
ser aplicada quando colocada em harmonia com o ambiente. Quando, por
exemplo, nasce um gênio, já existe a força genial no mais intimo cerne da
pessoa, chamado também de corpo causal. O corpo espiritual inferior (Kama

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manas) e o corpo de sentimentos e sensações (corpo astral) são, no entanto,
adaptáveis, indeterminados em certo grau. Essas duas partes da entidade
humana são então aperfeiçoadas. Nesse processo atuam o corpo causal, a partir
do intimo, e o ambiente, a partir do exterior. Quando este trabalho é realizado,
as duas partes podem ser instrumentos das forças adquiridas.
Não é, portanto, nada ilógico nem insuportável para o pensamento o fato de
se nascer como criança. Seria muito mais insuportável nascer como homem
pronto num mundo em que se fosse estranho.

Podem duas encarnações subseqüentes assemelhar-se entre si, de modo


que, por exemplo, um arquiteto nasça novamente como arquiteto, um músico de
novo como músico?
Isto pode acontecer, mas não é absolutamente necessário. Tal similitude
acontece, mas não representa a regra. Chega-se facilmente, neste campo, a
idéias errôneas por se pensar nas leis da reencarnação como sendo ligadas
demais a fatores externos. Alguém, por exemplo, ama os países do sul da
Europa e pensa, poi isso, que em vida passada foi um sul-europeu. Porém estas
inclinações nem tocam o corpo causal. Elas têm significado somente para uma
vida. O que passa de uma encarnação a outra deve estar situado mais
profundamente no cerne do homem. Suponha-se, por exemplo, que alguém seja
músico numa vida. As harmonias e ritmos espirituais que vivem nos sons
alcançam o corpo causal. Os sons em si pertencem à vida física externa,
estando nas duas partes do homem que surgem e desaparecem. O corpo Kama
manas, que para os sons é o instrumento adequado, pode sê-lo em outra vida
para a contemplação das relações de números e espaço — e do músico pode
surgir um matemático. É justamente por este fato que o homem se desenvolve
num ser multifacetado através de suas encarnações, ao passar pelas mais varia-
das atividades em vida. Existem porém, como foi dito, exceções a esta regra, e
essas são explicáveis pelas grandes leis do mundo espiritual.

Como se deve observar carmicamente o caso em que o homem, por doença


cerebral, foi condenado à ídiotia?
Sobre todas estas coisas em especial não se deveria falar por especulações
e hipóteses, mas pela experiência científico-oculta. Responde-se aqui à
pergunta mediante um exemplo realmente ocorrido. Uma pessoa foi condenada,
em vida anterior, a ter uma vida de embotamento por subdesenvolvimento do
cérebro. Entrementes, entre sua morte e um novo nascimento ela pôde elaborar
em si todas as experiências opressivas de tal vida — o repúdio, o desamor dos
homens — e renasceu como verdadeiro gênio de beneficência. Um caso assim
mostra claramente como se erra ao relacionar carmicamente tudo com o
passado. Não se pode dizer sempre: este destino se origina desta ou daquela
culpa no passado. Com a mesma freqüência se deve pensar que uma vivência
qualquer não está relacionada com o passado, sendo certamente, e muito mais,
apenas a origem para uma compensação no futuro. Um idiota não precisa, em
absoluto, ter merecido seu destino por suas ações no passado; mas a
conseqüência cármica de seu destino futuro de modo algum falhará. Assim
como no comerciante o respectivo balanço se deve aos números do livro-caixa,
podendo ele, contudo, fazer sempre novas anotações de entradas e saídas, na
vida do homem podem suceder sempre novas ações, golpes do destino, etc.,
apesar de sua conta de vida ser a cada momento bem específica. Por isto o
carma não deve ser entendido como destino não-influenciável, como fatalidade,
mas totalmente compatível com a liberdade, com a vontade do homem. O carma
não exige resignação à sorte inalterável — ao contrário: traz a certeza de que
nenhuma ação, nenhuma vivência do homem fica sem conseqüência ou se
desenrola sem lei no mundo, mas se encaixa em lei justa, compensadora. É
justamente se não houvesse carma que reinaria arbitrariedade no mundo. Mas
assim eu posso saber que cada uma de minhas ações, cada uma de minhas
vivências se encaixa num contexto regular. Minha ação é livre, estando seu

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efeito absolutamente de acordo com as leis. Trata-se de uma livre ação do
comerciante quando ele realiza um negócio; o resultado disto se encaixa,
porém, regularmente em seu balanço.

Nota do Autor relativa à página 4

Para os que estão acostumados às usuais expressões teosóficas, assinalo o seguinte


(por certos motivos, extraio minhas expressões de uma linguagem oculta, que nas desig-
nações difere um pouco daquela contida nos escritos teosóficos difundidos mas,
naturalmente, concorda totalmente com eles quanto ao tema. Por isto quero conjugar
aqui as duas formas):
Cada uma das entidades — corpo, alma, espírito — é composta, por sua vez, de três
membros. Por isto o homem aparece formado por nove membros. O corpo é composto
por: 1) o corpo em si; 2) o corpo vital; 3) o corpo das sensações. A alma é composta por:
4) a alma sensitiva; 5) a alma do intelecto; 6) a alma da consciência. O espírito é
composto por: 7) personalidade espiritual; 8) espírito vital; 9) homem-espírito. No ser
humano encarnado se unem (confluem) os membros 3, 4, 6 e 7. É por isto que para ele
os nove membros aparecem diminuídos para sete, mantendo-se a tradicional divisão
teosófica do homem: 1) corpo em si (Sthula sharira); 2) corpo vital (Prana); 3) corpo
sensitivo permeado pela alma da sensação (corpo astral, Kama rupa); 4) alma do
intelecto (Kama manas); 5) alma da consciência permeada pela personalidade (Buddhi
manas); 6) espírito vital (Buddhi); 7) homem espírito (Atma).

Nota da tradutora relativa à pág. 10


Corpo causal é o nome usado no Oriente para designar o eu; nas escolas trans-
himalaianas é sempre chamado de “corpo cármico”, de carma, ação, causa que produz
incessantes renascimentos ou reencarnações.

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