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Psicoterapia institucional:

.
uma reVlsao -
Julio Vertzman*
Maria Tavares Cavalcanti*
Otavio Serpa Jr. *

Introdução
Talvez seja difícil para o leitor imaginar o porquê, no início da década de
90, quando pelo menos em nosso país florescem, por vários cantos, expe-
riências que repensam no terreno da práxis o espaço asilar, de estarmos
escrevendo um artigo sobre a ps~r3!ch~~ills~itllC1211ill: Afinal de contas
este é um movimento prestes a se tomar "cinqüentão" e, embora continue
produzindo inúmeras reflexões a respeito de um possível dispositivo capaz
de lidar com o problema da psicose, já faz parte da história da psiquiatria.
Em primeiro lugar deixemos claro que ~ste movimento não sejnspira
nU!ll~<:~'1)O~~1~2rtÇo <J.ue~propºe.Q. firo_(la~~ünstitui~o:e~~~psi!luiá!ricas, que
ãcredita que o único lugar de sujeito do louco seja 110 seio da sociedade que
o excluiu, ou que questiona a existência da doença mental, tomando-a como
uma construção social, sendo portanto prescindível no lidar com a loucura.
Muitos certamente pensarão que resgatar este saber será colocar-se na
contramão da história, num momento em que o estatuto do objeto deste
"olhar psi", o doente mental, o psicótico, e os dispositivos de exclusão e
aberração propostos por este olhar, os asilos, são postos em xeque.
Entretanto, se resolvemos produzir este escrito é porque, após ter lido os
textos de seus idealizadores, bem como ter vivenciado de perto os efeitos
que esses pressupostos produzem numa instituição,** não mais podemos
conceber uma aproximação terapêutica de psicóticos sem levá-los em conta.

Memhros fundadores do Projeto Casa Verde. Rio de Janeiro.


** Na Clínica de La Borde em Cour-Cheverny, França.
Psicoterapia institucional: uma revisáo 19
18 Psiquiatria sem hospício

Utilizamos deliberadamente as palavras psicótico e terapêutico por somente porque são privados de ar e liberdade" (citado in
acharmos que o olhar clínico, embora não sendo o único a poder falar da 1978; 460).
Ou ainda a descrição feita por Delarive (1789) de uma casa para cuidar
loucura, ainda tem muito a dizer sobre essa possibilidade do existir
de alienados: "Esta casa está situada a uma milha de York, no meio de um
principalmente quando implica sofrimento. preconceito ima-
campo fértil e risonho; o que ela provoca não é a idéia de uma prisão, mas
ginarmos que os psicóticosnão são capazescieJeconheCê-lo e demandar
antes a de uma grande fazenda rústica; está cercada por um grande jardim
tratamento.
fechado. Nada de barras nem de grades nas janelas" (citado in Foucault,
Uma instituição psiquiátrica, desde que adquira uma disposição capaz de
acolher e escutar esse indivíduo com uma organização psíquica particular,
1978; 459).
Para Foucault o desacorrentador dos loucos inaugura o nascimento de
pode ser um legítimo lugar de tratamento e tecido de vida para determinados
um "campo asilar puro", onde o alienado aparecerá numa objetÍvidade até
sujeitos. Obviamente a instituição que mencionamos de fonna alguma pode então mascarada pelas perseguições e furores que o mantinham aprisionado.
ser confundida com o asilo; passamos, então, ii descrição de alguns pontos A desse momento cria-se um lugar onde a "loucura deve aparecer
de vista que demonstrarão a radicalidade desta distinção. É preciso superar numa verdade pura, ao mesmo tempo objetiva e inocente"; isso não ocorre
o maniqueísmo com que habitualmente lidamos com a questão da loucura, no entanto sem uma contradição intrínseca, pois "aquilo que a loucura
manifestada pela assertiva: na socieclade, os lJ~austrat(IIJ1Jl0 ganha em precisão em seu esquema médico, ela perde em vigor na percep-
asilo. Na verdade esta é uma falsa questão. . .~ ... ção concreta. O asilo, onde ela deve ellcontrar sua verdade, não mais
permite distingui-Ia daquilo que não é sua verdade. Quanto mais ela é
Histórico e psicoterapia objetiva, menos é certa. O gesto que a liberta para verificá-la é ao mesmo
tempo a operação que a dissemina e oculta todas as formas concretas da
ParJ falarmos do histórico da psicoterapia institucional talvez devêssemos razão" (Foucault, 1978:467). Contradição que não será resolvida pela psi-
nos reportar ao início da história da psiquiatria ou mesmo da história da coterapia institucional, embora esta lance novos dados que permitirão uma
loucura, mas isso nos obrigaria a toda uma revisão crítica do conceito de ampliação da abordagem dessa questão .
. loucura, que se faz necessária, mas não é nosso objetivo no momento. Neste O que nos parece fundamental em termos do resgate que a psicoterapia
artigo nos limitaremos a uma revisão do que seja a psicoterapia institucional institucional fez dos atos de Pinel e outros diz respeito ii recuperação do asilo
e para tal iniciaremos abordando o nascimento do asilo. Por que o nascimen- enquanto um lugar "terapêutico" onde as relações se estabeleceriam numa
to do asilo? Porque, como veremos no decorrer do artigo, a psicoterapia "transparência virtuosa" e o tratamento dispensado ii loucura seria "humano,
institucional, diferentemente de outras correntes dentro da psiquiatria, não benevolente e razoável" (Foucault, 1978). Sem se propora resolver a questão
propõe o fim do hospital psiquiátrico (talvez o asilo da modemidade); pelo asilo/não-asilo, visão médica da loucura/visão não-médica da loucura, a
contriÍrio, pensa que ele seja necessário para alguns sujeitos, em virtude de psicoterapia institucional aborda essas questões a partir do interior do asilo.
suas alienações psicóticas, assunto do qual trataremos mais adiante. O Cl~~e Para entendermos por que isto ocorre, temos que nos reportar ao início
a psicoterapia institucional busca é a transfonnação do hospital psiquiátrico mesmo do movimento que mais tarde seria chamado de psicoterapia insti-
te~itã~de~aelltro para fora. Questiomível? Talvez ... Mas deixemos que a tucional francesa.
história nos demonstre como chegamos ii proposição desta transformação O começo desse movimento confunde-se com a história de um homem.
do asilo. Como nasceu o asilo? Trata-se de François Tosquelles, um catalão, discípulo de Mira y López, que
Segundo Michel Foucault, em seu cliÍssico livro História da Loucura, o fugindo do franquismo em 1939 dirigiu-se ii França e em janeiro de 1940
nascimento do asilo situa-se 110 fim do século XVIII, quando na França Pinel foi trabalhar no Hospital Psiquiátrico de Saint-Alban (Lozere, Pirineus
desacorrenta os alienados e Tuke, na Inglaterra, os reúne em seu Retiro. franceses), onde pennaneceu muitos anos, tendo sido inclusive seu diretor.
Como não reconhecer nestas descrições traços do que mais tarde será a De imediato, era necessário garantir a sobrevivência dos doentes (entre 600
psicoterapia institucional? e 700) durante a Grande Guerra. Tarefa di fícil: durante esse período morre-
Diz Pinel: "Cidadão, tenhocerfeza de que esses alienados são tão ram 40.000 doentes mentais na França, de fome. Para isso foi preciso
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Psicoterapia institucional: uma rcvisfio 21

organizar o asilo e os doentes, nem que fosse para que estes saíssem à cata
de comida pelos campos. Além disso, Tosquelles vinha de uma experiência do Inspirado por essa experiência e convencido de que a melhora
~la Espanha onde já se reL1etia sobre a possibilidade de introduzir no espaço do ambiente hospitalar era extremamente terapêutica, Hennann Simon
mstitucional a psicamílise, bem como os "princípios de uma psiquiatria escreveu um livro sobre a terapia ativa, o que muitas vezes é confundido
comunitária que permitissem transformar as relações entre os que prestam com terapia ocupacional, não se reduzindo no entanto a esta. Para Simon o
assistência e os alienados, no sentido de uma abertura para o mundo da doente mental pode e deve ter responsabilidades, havendo sempre uma pa rte
loucura" (Roudinesco, 1986; 209). sã com a qual podemos contar; e muitos dos sintomas psíquicos que o
. O que i.~portava em St. Alban era o cuidado mais ativo possível da paciente apresenta são na verdade reflexo do ambiente no qual este se
PSlc.ose: IllIClalmente não havia sido dado ainda o nome de psicoterapia encontra mergulhado. Esses sintomas melhoram sensivelmente através de
mstJtuclOnal, o que só foi OCorrer muito mais tarde, quando em 1952 uma terapêutica mais ativa e de uma modificação do meio hospitalar.
Da.um~zo~J e KoecWin, num artigo publicado nos Anais Portugueses de Do ponto de vista de Hermann Simon os três malefícios que ameaçam
PSlquwtna, chamaram assim o que era feito em St. Alban. O que eslava em os doentes mentais num hospital psiquiátrico e contra os quais devemos lutar
questão .na época era a abertura das instituições para que elas se tomassem são: a inatividade, o amhiente desfavorável e o preconceito do próprio doente
terapêut~cas, sempre utilizando o arsenal teórico-prático da psicanálise. O em relação à sua responsabilidade. É impressionante a semelhança entre os
nome .pslcoterapia institucional surpreendeu Tosquelles, pois para ele o que métodos preconizados por Hennanll Simon para combater estes três proble-
se f~zJa em St. Alba.H dizia respeito muito mais a uma teoria dos conjuntos mas e o que a psicoterapia institucional propõe como forma de transforma-
-.seja do POI~t? de vlst~ da percepção (psicologia gestáltica) ou do ponto de ção de um hospital em um ambiente terapêutico: colaboração de todos os
vista matemalico,queeuma questão institucional,muito embora posterior- membros do pessoal; ensinamentos do pessoal; práticas de reuniões médi-
~nel~te. 0_ desenvolvimento teórico tenha conduzido a uma distinção entre cos-enfermeiros-doentes; entrevistas clínicas comuns; estudo das resistên-
IIlslitUlçao e estabelecimento, em que o estabelecimento diria respeito à cias interiores dos psiquiatras e demais membros da equipe; respeito às
empresa, ao imóvel, à administração etc., e a instituição ou institlli~'ões defesas do doente evitando tocar diretamente nas partes vulneráveis e
(plural porque dentro de um estabelecimento podem existir várias im;titui- levando cm conta o "negativismo fisiológico"; preparação do doente para ii
çõe~) co.rresponderiam ao lugar de trocas, de vida, enfim, tudo o que ocorre batalha da existência através de uma atitude lógica e justa; atitude não
no l~l~enor do estahelecimento, desenvolvimento teórico este que acabou permissiva; otimismo terapêutico sem manifestação de angústia frente aos
rall.llflcando na noção de coletivo, * no qual a estratégia no processo de cura problemas de comportamento; valorização dos doentes por sua participação
sena a de comprometer no processo terapêutico os vários "coletivos", tanto no funcionamento do hospital etc. Além disso, Hennann Simon descreve
dentro quanto fora do hospital, dentro e fora da família de origem, dentro e reuniões diárias do pessoal e organização dos trabalhos ai ravés de "grades", *
fora dos lugares de trabalho ou de lazer freqüentados pelos doentes.
que é exatamente como funciona atualmente a clínica de La Borde.
. ~Iél~ da psica~lálise uma oulra fonte importantíssima da psicoterapia Inúmeras outras fontes importantes para a elaboração teórica e pnítica da
ll1stltuClollal, conSiderada mesmo o fermento teórico da experiência de SI.
psicoterapia institucional foram citadas por Oury em seu artigo "Thérapeu-
Alban, é a ohra de Harmaun Simon, cujo livro Por uma terapêutica ativa do
tique institutionnelle", que apareceu inicialmente na Encyclopédie Médico-
HosJJ. ital Psiquiátrico teve sua primeira tradução francesa feita naquele
Chirllrgicale, Psychiatrie, 1972. Entre essas fontes poderíamos citar Marx
hospital. Hennann Simon, um psiquiatra alemão, foi surpreendido no início
e seu conceito de alienação, Moreno e a sociometria, Kurt Lewin e a noção
do século XX pela melhora dos doentes internados no hospital psiquiátrico
de campo social, autores que trabalharam com grupos, como Bion, enlre
em que aluava quando estes foram empregados para trabalhar na constmção
outros.
Em relação à psicanálise é imp0I1ante destacar o papel que ii e1ahoração
A noçã~ d~ ~oleti~o é bastante c~mplexa, tendo sido extensamente desenvolvida por Oury em teórica de L1can sobre a questão das psicoses teve para o movimento de
um se~lOafl~ re~hzado no HospItal de SI. Anne (Paris) durante o ano de 1984. Remetemos o
ie~~~. a publtcaçao desse seminário: Sém;lIaire de Saill/e-Alllle - Le collecli!; Paris. Scarab~.
o conceito de "grille ", traduzido por nóscomo grade. scd abordado mais adiante. neste mesmo
artigo.
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psicoterapia institucional, uma vez que a leitura do que se passa com os "Sob um certo aspecto, a psicoterapia institucional pode ser comidera-
pacientes é no mais das vezes feita a partir do referencial teórico deixado da como a elaboração das condições necessárias para poder trabalhar. "
por Lacan, embora o fundamental para a psicoterapia institucional seja a Eis aíuma possível definição, formulada porOury (Oury, 1976; 250). Parece
suspensão dos preconceitos, ou seja, a utilização do maior número possivel não? Então vamos tomá-Ia como ponto de partida.
de referenciais teóricos disponíveis para a compreensão e a interferência A fim de aprofundannos a proposição acima apresentada, retomemos,
nesse fenômeno tão complexo que é a psicose. A isso Tosquelles denominou como fez o próprio Oury, o conceito de "paloplastia". Esse conceito foi
"escuta polifônica" da instituição. introduzido na psiquiatria em 1923, por Bimbaum, num trabalho em que
Um outro autor muito caro à psicoterapia institucional em tenHOS de pretendia fonnular os princípios da "análise estrutural" em psiquiatria
elab,or~ção psicanalítica e sobretudo de tratamento psicoterápico das psico- (Bimba um, 1974). Vejamos o que ele queria dizer com isso. Ora, é sahido
ses e Gisela Pan~ow, que desenvolveu todo um traba lho a respeito da questão que as psicoses constituem um grupo de fenômenos altamente complexos,
~o corpo nas pSicoses, defendendo que o "acesso fundamental à psicose se onde variados elementos, de significação diversa, entram em jogo: fatores
Inscreve em estruturas espaciais" (citado in Oury, 1976; 248). É a ela que biológicos e psicológicos, externos e intemos etc Em suma, as psicoses,
de~emos em grande parte o destaque Como fundamental da dissociação na orgânícas ou funcionais, não se caracterizam por sua fixidez, partindo de um
I '
pSiCose e a proposta de um tratamento psicoterápico através da tentativa de início rígido e imutável e caminhando a uma evolução inelutável. Na sua
recuperação desses fragmentos corporais dissociados, espalhados e imersos confonnação entram tantos fatores que uma abordagem meramente descri-
na totalidade. A psicoterapia institucional responderá a essa questão ofere-
tiva não dá conta de sua complexidade. É preciso considerar as intcrações e
cendo também ao psicótico uma "fragmentação", onde este poderá fazer
inter-relações il1temas de todos os seus fatores constituintes, aqueles que
vínculos com os mais diversos elementos, como terapeutas ou mesmo
lhes são específicos e aqueles que são contingentes, circunstanciais, aciden-
elementos do espaço, como ii sede de um aleliê, um gato, uma árvore elc.
tais, mas de igual importância na apresentação clínica e na evolução do
. Em relaç'ão a.o desenrolar histórico da psicoterapia institucional podemos
quadro môrhido. Em outras palavras, é preciso distinguir aqueles fatores qUl'
?I~e.r que a partu do núcleo de St. Alban várias outras experiências foram
são "patogênicos" daqueles que são "patológicos" para considerar sua
lmci~d~s na Fral1~a, muitas das quais fracassaram. Hoje restam alguns
contrihuição final na estruturação da psicose.
hospitaiS que se dizem seguidores e praticantes dessa corrente, dentre os
Agora talvez fique mais claro o que queria dizer "elaboração das condi-
quais tal~ez o mais conhecido seja a Clínica de La Borde. Alguns pontos no
entanto ficaram marcados na história da psiquiatria francesa e entre estes ções necessárias para poder trabalhar". É que a psicoterapia institucional
poderíamos citar a lei que aconselha os hospitais a criarem um clube deve trabalhar o meio, o ambiente, a fim de que o mesmo permita revelar,
terapêutico e,a ~ssociaç'ão das "Croix-Marines", oficializada em] 949 e que para melhor tratar, o processo psicôtico no que este tem de "patogênico",
tem como objelIvo encontrar soluções sociais satisfatórias no domínio extra específico, metabolizando o que existe de "patoplástico", entendido aqui
e intra-hospitalar. Mas talvez o mais importante tenha sido ii influência lia mais precisamente como as aparências mórhidas resultantes das intcr-rela-
formação de toda uma geração de psiquiatras franceses e de outros países. ções entre a pessoa c o meio, bem como a alienação social, que se adiciona
à própria alienação psicótica, tudo isso inOuindo na apresentação sintoma-
Aspectos teóricos tológica, na duração das fases, na evolução da perturbação. Poderíamos
tomar como exemplos extremos de "paloplaslia" a deterioração de pacientes
o qu: ~ a psic~terapia institucional? Definir qualquer coisa é sempre tarefa ahandonados em asilos ou a agitação daqueles que são colocados em
no mllumo arnscada, sobretudo se o que pretendemos colocar como objeto instituições restritivas, superpovoadas, aviltantes. Mas cumpre ressaltar que
da definiç~o é a psicoterapia institucional, tão arredia a generalizaçõ~s e os fatores patoplásticos não incidem apenas sobre os pacientes, mas ta mhém
talvez for ISSO mesmo tão freqüentemente confundida e até ignorada. Daí a sobre aqueles que trabalham nas instituições, e nesse sentido poderíamos
nec~ssldade de tentannos aqui, com o auxílio da literatura específica, lembrar todos os "sistemas de medos" que deles se apossam: medo da evasão
baSicamente francesa, esboçar algumas regularidades e princípios gerais dos pacientes, medo da agressividade, medo do encontro entre os sexos
desse campo de saber e prática. opostos e por aí vai. É a partir disso que se diz, em psicoterapia instituciona I,
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que p~ml uma illstituição poder ser terapêutica é preciso que ela "se trale" que os "axiomas" possam funcionar é preciso um trabalho pennanente de
antes. desembaraçamel1to de todos os seus empecilhos, envolvendo nesse processo
No entanto esta primeira aproximação do que é li psicoterapia institucio- a crítica da hierarquia e da fixidez dos papéis, estatutos e funções, e ii criação
nal é ainda muito ampla, muito vaga. Através de que elementos sr p~)de da já citada superfície de vida, que possibilite os encontros. Mas em que
passar tudo isso que acabamos de mencionar? Antes de respondermos consiste isso?
diretamente a essa questão convém allalisanuos, de forma sucinta, como é já falamos na liberdade de circulaçiío: a possihilidade de que cada
abordada a psicose na psicoterapia institucional, devido à importância que possa traçar o seu caminho, seu percurso. Mas isto deve encontrar
isto tem nos desdobramentos subseqüentes.
respaldo em alguma coisa que impeça que essa circulação se torne uma
Há na esquizofrenia um "desbaratamenlo" mcntal que necessita dc
err!lucia ociosa, alienada, sem destino, que só serviria para agravar o despe-
atenção integral para que o esquizofrênico possa csta r cm algum lugar,
daçamento esquizofrênico. É preciso que todo paciente encontre em seu
porque, por essência, ele não est,í em lugar nenhum. Isso em 1l1lH,;ão do
caminho os citados "lugares concretos": os ateliês e os diversos serviços,
"corpo dissociado", do "espaço despedaçado", que são aspectos essenciais
essenciais no funcionamento da clínica, como a cozinha, a administração, a
da existência esquizofrênica (Pankow, 1987). Essas características nos
farmácia, lugares que funcionam como locais de encontro, onde a transfe·,
remetem à qucstão da transferência. Como ela se passa com essas pessoas'!
rência podc se cstabelecer. O que está em jogo não é o funcionamento de
Da mesma forma é uma transferência dissociada, estilhaçlda, de investimen-
cada ateliê em si. Em um ateliê onde se fazem trabalhos com cerâmica, por
tos muHirreferenciais - e é preciso, a partir disso, reagrupar os "pedac,;os"
exemplo, não importa ensinar a fazer vasos, cinzeiros, nem a qualidade do
daqueles que perderam a sua unidade, que estão "à deriva". Neste sentido,
para que isso se dê é preciso dispor de uma supcrfície de vida, de uma produto, da mesma fonua que um paciente que passa pela cozinha não é
organização do espaço, das trocas, da circulação e é nesse terreno que vai obrigado a permanecer aí a manhã toda descascando batatas ou fritando
aluar a psicoterapia institucional. "A psicoterapia institucional pode ser bifes. Esses locais estruturados e concretos contam pelo que pennitem de
igualmente definida como o que permite a criação de campos transferen- reorganização do espaço, como aquilo que viabiliza o estabelecimento das
ciais multifocais" (Oury, 1976; 252). relações transferenciais múltiplas. A função dos ateliês e serviços é estabe-
Agora podemos voltar à pergunta que fazíamos anteriormente sohre lecer aquilo que Tosquelles chamou "tecido institucional" (Oury, 1976;
como isso se passa. Entraremos então no mérito dos chamados "axiomas de 253): redes vivas e concretas mas desprovidas de rigidez, distintas comple-
base", que se referem às condições mínimas necess,írias para a criac,;ão desses tamente dos ritos e estereótipos institucionais, estahe lecendo as "relações
campos !rans[erellciais múltiplos, implicando trajetórias pessoais, possihi- complemcntares indiretas" (Oury, 1976; 253), transitórias por excelência,
lidades de encontro c sobretudo possibilidades de escolha. Eles são quatro: remetendo incessantemente a outras relações, outras redes de troca. São
essas possihilidades de múltiplos contomos, desvios, percursos absoluta-
@) Liberdade de circulação. mente individuais, que permitem acolher o que hiÍ de singular em cada
@) Lugares estruturados concretos: ateliês, serviços (cozinha, adminis- psicôtico que chega à instituição. Em síntese, é o que permite o seu trata-
tração etc.). mento.
@) Contratos facilmente revisáveis de entrada e saída. Mas o estahelecimento desses circuitos de relações complementares
.. Um acolhimento permancnte dispondo de grades simbólicas e de também só é possível se colocarmos em xeque as relações hierárquicas
mediações. clássicas (médicos x enfermeiros, ambos x pacientes, etc .), hem como requer
um esfon,;o incessante para redefinir "papel", "função" e "estatuto" (Oury,
É claro que estes pressupostos implicam uma mudança bastante ampla 1976). É nesse sentido que podemos considerar ii Iloção.de "transversalida-
da instituiçiío de tratamento mental. De outro modo, partindo dos quatro de", introduzida por Guattari (1974): "Dimensão contrária e compleme!llar
axiomas, como poderíamos falar em psicoterapia institucional confinada às estruturas geradoras de hierarquizaçâo piramidal e dos modos de
numa enfcrmaria isolada de um dado hospital, com espac,;o restrito e restri- transmissão esterilizadora de mensa/{em" ou a noção similar, mais recen-
tivo, com horários rígidos e sem margens para escolhas? Sendo assim, para temente colocada por Oury, de "relações oblíquas" (Oury, 1986a).
~ ..

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No que diz respeito a papéis, estatutos e funções, o que se propõe não é que aí estão presentes; mais uma vez, a necessidade da não cristalização
uma absoluta indistinção entre eles" Na Clínica de La Borde, por exemplo, dos papéis ou funções.
existem médicos, monitores, cozinheiros e "pensiona ires " (pacientes), em Mas existe uma organização essencial para o funcionamento de tudo que
suma, são estatutos diferentes. Mas a questão não é essa" O que importa não mencionamos até agora. Queremos nos re ferir aos chamados clubes terapêu-
é o fato de talou pessoa possuir um determinado estatuto, mas o risco, ticos. Ai reside talvez a noção fundamental da psicoterapia institucional, por
sempre existente, de que essa pessoa se confunda com o seu estatuto, como seu potencial de transfonnação no que diz respeito às estruturas hospitalares
se fulano de tal, médico, se definisse exclusivamente por isso e se ocupasse tradicionais. A história dos cluhes remonta à própria história da psicoterapia
somente dos ajustes de doses dos medicamentos ou das psicoterapias das institucional, ou seja, ao Hospital de Saint-Alban e a François Tosquelles,
quais está encarregado, ou beltrano, cozinheiro, tivesse como tarefa única que aí colocou em funcionamento o Club Paul Balvet.
preparar as refeições, não sendo nisso importunado pela presença de pacien- Os clubes constituem uma organização aulônoma 110 interior dos estahe-
tes. Ora, toda pessoa que trabalha numa instituição de psicoterapia institu-
lecimentos hospitalares e são geridos paritariamente por pacientes e técni-
cional está investida de um "coeficiente psicoterápico" (Oury, 19R6a),
cos" Na França eles são regulamentados pela lei de 1901 que rege as
condição de base para o estabelecimento da transferência muHifocal. Dessa
I ' organizações sem fins lucrativos. Assim, os estabelecimentos destinam uma
maneira a função terapêutica não é atribuição de poucos, definidos a priori,
detenninada quantia orçamentária aos clubes, quantia que é administrada
mas é compartilhada por todos, técnicos ou pacientes, cm
sem qualquer interferência da direção do hospital. No dizer de Oury (Oury,
função das constelações que se organizam em torno dos diversos pacientes.
1976; 60), "o clube deve servir de suporte a toda psicoterapia institucio-
Oury até costuma brincar dizendo que a distinção entre as pessoas que eslão
nal". Deve ser uma verdadeira sociedade e não um artefato; é preciso que
na clínica não deve ser feita com base na função terapêutica, ou seja, os que
tenha uma historicidade, que seja um conjunto vivo, com leis, costumes, em
tratam e os que recebem tratamento, mas sim, enlre os que pagam c os que
síntese, uma armadura simbólica capaz de acolher espontaneamente o
recebem para estar na clínica. Em relação à hierarquia, vale ainda lembrar
estranho que chega, como dizíamos há pouco.
que as relações hierárquicas tradicionais só acarretam o empobrecimento do
contato, da iniciativa, da emergência da palavra, em suma, de tudo aquilo Mas é preciso não confundir o clube com um lugar, uma sala, por
que vai dificultar a transferência. exemplo, que abre em certos horários e onde os pacientes se encontram por
É em relação a tudo isso que é enfatizada a "ginástica dos papéis", a alguns momentos. Não obstante, essa confusão é freqüente e muitas vezes
possibilidade de transila r pelas diversas funções e pelos diversos espaços da simples reuniões ou atividades isoladas da terapia ocupacional são chamadas
clínica de uma forma flexível, capaz de receber as diversas demandas de clube. O clube é muito mais do que isso, é o que agrupa todos os ateliês
singulares das pessoas presentes. Aqui vale lembrar o conceito de "institu- c, mais ainda, é todo o sistema de encontros, um sistema de superfície, de
cionalização", fonnulado por GineUe Michaud (Oury, 1976; 255), como a agrupamento horizontal, facilitador de trocas. Sendo assim, não é uma coisa
constante reinvenção, a evolução permanente em função das mudanças das dada, que já nasce feita, pronta e acabada. É sempre a partir de uma dialética
demandas e como tal oposto à "institui~'ão" entendida como a cristalização que se constitui, fazendo-se e fazendo a instituição onde se encontra. Não
das respostas e funcionamentos, não assegurando a possibilidade de trocas. se pode dizer que um clube transforma um hospital ou que é preciso
Além disso, todo esse tecido institucional deve servir para atender a uma transformar o hospital primeiro para então introduzir o clube; é sempre um
função essencial na psicoterapia institucional: a função de "acolhimento"" movimento recíproco.
Oury, num de seus seminários de Saint-AlIlle, emjaneiro de 19~9, dizia que Todas as atividades cotidianas do hospital giram em tomo do clube: os
o problema do psicótico é um "defeito no acolhimento". Num outro trahalho ateliês, as saídas, as festas etc. A partir disso toma-se possível um exercício
ele formulava que o o acolhimento é "acolhimento do desamparo concreto de multiplicação de papéis e funções; é o clube que tece as relações,
(Hilflosigkeif)" (Oury, 1976; 208). E isso é possível pela existência de um ele é um lugar de existência. Além disso ele permite uma maior integração
coletivo dotado de uma annadura simbólica historializada que possa acolher e comunicação entre as pessoas que trabalham na instituição, favorecendo
cada um que chega na instituição, o que se torna viável na medida em que uma coerência maior nos rapports terapêuticos e também, pela diversidade
essa função de acolhimento está disseminada por Ioda a instituição, portodos das interações e encontros que pennite, uma ampliação das fontes de
I!II""".

Psicoterapia institucional: uma revisão 29


28 Psiquiatria sem hospício

clientes de paraísos prometidos. A reflexão que fazemos acerca da psicote-


informações e revelação de comportamentos, o que auxilia a tarefa diagnós"
rapia institucional não compartilha dessas ilusões. É claro que ela não
tica e terapêutica.
resolveu contradições básicas a propósito da loucura e talvez nem se propu-
Não poderíamos deixar de mencionar um outro aspecto relevante da
sesse a isso. Parte-se do princípio de que existem loucos, psicóticos, que
psicoterapia institucional, as reuniões, que evidentemente devem ter sefnpre
necessitam de um lugar para viver, e é isso que ela lhes oferece: um lugar
algo a ver com o que se passa no interior do coletivo soh pena de sairmos
onde poderão encontrar talvez algum ponto onde se ligar e com isto tomar
vitimados de uma grave doença: a "reunionite". A'i reuniões podem ser de
sua existência um pouco menos penosa.
diversos tipos: administrativas, de estratégia terapêutica, de comunicação,
Dissemos anteriormente que a questão deniro/fora do hospitall1os parece
da secretaria do clube, só entre técnicos, entre técnicos e pacientes, reuniões falsa e está na hora de dizermos o porquê. Na medida em que se faz uma
de equipe; enfim, as possibilidades são inúmeras. leitura da psicose como uma condição onde o estar dentro/fora não é ainda
Bem, muito já dissemos sohre os aspectos teóricos da psicoterapia colocado, onde a percepção dos limites da imagem corporal se d;í de forma
institucional. Se ainda assim não foi possível tornar claro do que se trata, é fragmentada ou dissociada, quando concordamos com Oury em dizer que o
porque para isso é preciso efetivamente ter-se acesso a esses conceitos psicótico não está em lugar nenhum, o fato de um lugarde ligação se localizar
movimentando-se vivamente na prática cotidiana de uma instituição. À num hospital psiquiátrico ou em qualquer outro espaço da sociedade nada
guisa de síntese, fiquemos com a seguinte formulação de Oury: "O ohjetivo garante. A diferença reside no modo como é feita essa ligação e a capacidade
da psicoterapia institucional é criar um co/etivo orientado de ta/ mal/eira de, a partir daí, produzir-se uma fantasia em relação à qual o sujeito possa
que tudo possa ser empregado (terapias biológicas, a/1alíticas, limpeza dos se situar. Simplesmente propor o fim dos hospitais psiquiátricos seria tolher
sistemas alienantes sócio-econômicos etc.) para que o psicórico aceda a um nestes sujeitos, entre outras, a possihilidade de ligação. Lembremos que
campo onde ele possa se referenciar, delimitar seu corpo numa dia/ética justamente os contratos revisáveis de entrada e saída são axiomas de hase,
entre parte e totalidade, participa!' do 'cmpo instituciollal' pela mediaçâo e que a admissão do paciente em La Borde só se dá através de uma demanda
de 'objetos transiciof/ais', os quais podem ser o artificio do co/elivo sob o explícita sua, feita por carta e reconfirmada após uma entrevista e uma visita
nome de 'técnicas de mediaçâo', que podemos chamar 'objelos institucio- à clínica. Portanto fica-nos a impressão de que esta questão é muito mais
nais', que são tanfo ateliês, reuniões, lugares privi /egiados, júnçôes ele., complexa e a psicose permanece como um enigma.
quanto a participação em sistemas concretos de gesfâo ou de organizaçâo"
(Oury, 1976; 270). bibliográficas
Considerações finais BIRNBAUM, K., "The making of a psychosis", in Hirsch S.R. and Shepherd, M. (org),
Themes and varialions in european psyclrialry, John Wright and Sons Lld., Bristol,
Seria hastante sedutor chegarmos ao final deste hreve artigo propondo a 1974.
CLAVERIE, c., "Psychiatrie institutionnelle: aspects historiques~, in Renconlres de
abertura de espaços com clubes, ateliês, liherdade de circulação etc., e
Saint-Alban, La Psychiatrie Institutionnelle, 1986.
dizendo que, feito isso, resolvemos o prohlema da psicose. E'itanamos
OEUON, P., Psychose Toujours ... , L'Ouverture Psychiatrique, SCilfabée, CEMEA,
trazendo para o Brasil a possihilidade de "cura" que há muito estava Paris, 1974.
adormecida mesmo num país como a Franç'a - portanto, imitemos La Borde DELlON, 1'., -Psychothérapie institutionnelle et psychiatrie de secteur-, in Renconlres
e chegaremos ao nosso plus-ultra* no lidar com os loucos. de Saint-Alban, La Psychiatrie Institutinnnelle, 1986.
Estas ingênuas palavras mostram em forma de caricatura a amhição com DROGOUL, F., "Psychotherapie institutionnelle el castration", lhese pour le Dnc!nral
a qual por vezes alguns inventores de modelos (ratam suas invenções, en Medicine -Université de Paris - Sud, 1985.
principalmente ao difundi-Ias em países do terceiro mundo, tradicionais DROGOUL, F., "Propos sur la vie quotidienne en inslitulioll psychiatrique", mCll10ire
pour le C.E.S. de Psychiatrie, Université de Paris - Sud, 1987.
FOlJCAULT, M., História dq loucura na idade clássica, S. Paulo, Editora Perspectiva,
No sentido que a expressão adquire no último capí!ulo do conto "O alienis!'j", de Machado de 1978.
Assis.
30 Psiquiatria sem hospício

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