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Ciência & Ensino, vol.

1, número especial, novembro de 2007

OS ESTUDOS SOBRE CIÊNCIA, TECNOLOGIA E


SOCIEDADE E A ABORDAGEM DA ANÁLISE DE
POLÍTICA: TEORIA E PRÁTICA

Renato Dagnino

Introdução No que se refere ao Ensino CTS,


considero que ao lado das abordagens
A demanda que me foi encaminhada
baseadas em disciplinas como a
para colaborar neste número especial da
Sociologia e a Filosofia da Ciência e,
Revista Ciência e Ensino ressaltava que
também, da Tecnologia, da Economia da
minha contribuição deveria ser curta e
Tecnologia, etc, a da Análise de Políticas
orientada a divulgar o campo CTS junto a
poderá contribuir para decisivamente
professores do ensino fundamental e
para cumprir os seus objetivos de oferecer
médio. Deveria também, estimulá-los a
aos interessados uma visão crítica a
estabelecer uma relação entre os
respeito da Ciência e da Tecnologia e da
conteúdos abordados pelo campo e a sua
forma como elas são ensinadas. Em
realidade. Sugeria, finalmente, que ela
particular para explicitar as questões que
fosse representativa de uma das
se situam na interface entre a policy e a
abordagens possíveis ao campo. Ou, mais
politics que apesar de reconhecidas como
precisamente, daquela com a qual me
importantes, permanecem obscurecidas
sentia mais capacitado para materializar
devido à incipiente utilização de
essas duas demandas.
abordagens capazes de tratá-las
Colocadas essas condições de
adequadamente.
contorno, optei por escolher a abordagem
De maneira a ilustrar como a
interdisciplinar com a qual tenho
Análise de Políticas pode ser empregada
trabalhado mais intensamente nos
no Ensino CTS, este trabalho se baseia na
últimos anos. Conhecida nos países de
minha experiência como professor do
capitalismo avançado onde foi gerada a
Programa de Pós-graduação em Política
partir de uma confluência entre a
Científica e Tecnológica da Unicamp e da
Administração Pública, a Ciência Política
disciplina Ciência, Tecnologia e Sociedade
e outras disciplinas pelo nome de Análise
oferecida aos alunos de graduação da
de Políticas (Policy Analysis), ela é ainda
UNICAMP.
muito pouco usada na América Latina
A próxima seção apresenta alguns
para estudar as políticas públicas em
dos elementos analítico-conceituais dessa
geral. E, mesmo nos países onde isto
abordagem. Seu foco é a elaboração do
ocorre, ela é pouco empregada para tratar
conceito de “modelo cognitivo da
políticas relacionadas à produção e
política”, que me parece central para a
difusão de conhecimento. No entanto, ela
análise da relação CTS e, em particular,
me parece indispensável para facilitar o
dos aspectos políticos (na sua dupla
entendimento da relação CTS.
acepção de policy e de politics) com ela durante o processo de formulação da
entremeados. Ou seja, para a análise da agenda e da tomada de decisões
Política de C&T. (momento da formulação da política),
É em torno desse conceito que foi devem merecer especial atenção daqueles
organizada a terceira seção. Ela reúne que utilizam essa abordagem e para
dois artigos de divulgação científica analisar as políticas de ciência e
publicados no jornal da UNICAMP tecnologia.
relatando minha experiência naquela Começo com o conceito de problema
disciplina. Eles têm por objetivo explorar (ou situação-problema). A esse respeito,
a questão do modelo cognitivo da Política quatro aspectos merecem ser lembrados.
de C&T. Ou, mais precisamente, do (a) um problema social não é uma
modelo cognitivo do seu ator dominante, entidade objetiva que se manifesta na
isto é, a comunidade de pesquisa. esfera pública de modo naturalizado,
como se ela fosse neutra e independente
em relação aos atores - ativos e passivos -
1. Elementos analítico-conceituais
da abordagem de Análise de do problema; (b) não há situação social
Políticas problemática senão em relação aos atores
que a constroem como tal; (c) reconhecer
Esta seção apresenta conceitos e uma situação como um problema envolve
fatos estilizados pertencentes ao um paradoxo, pois são justamente os
instrumental de Análise de Políticas atores mais afetados os que menos têm
necessários para entender a noção de poder para fazer com que a opinião
“modelo cognitivo da política”, no qual se pública (e as elites de poder) a considere
baseia a seção que segue. Noção que, como problema social; (d) a condição de
retrospectivamente, hoje permite melhor penalizados pela situação-problema dos
fundamentar o argumento que desenvolvi atores mais fracos costuma ser
em outros trabalhos, de que a política obscurecida por um complexo sistema de
científica e tecnológica (PCT) não deve manipulação ideológica que, com seu
seguir sendo entendida como uma policy consentimento, os prejudica.
desprovida de um caráter de politics, cujo Em seguida, é possível introduzir o
objetivo seria “estimular o progresso conceito de agenda da política pública (do
científico e tecnológico” e “promover o processo decisório, ou do processo de
desenvolvimento econômico e social”. formulação da política, ou ainda, agenda
A característica que considero mais decisória). Ela é o conjunto de problemas
marcante desta abordagem é a ou demandas que os que governam
possibilidade que oferece de analisar (ocupam o aparelho de Estado num
criticamente o conteúdo das políticas determinado momento) admitem
públicas buscando evidenciar como ele é (voluntariamente, ou sob pressão) e
determinado pelos interesses e valores classificam como objetos sobre os quais
dos atores envolvidos com sua elaboração vão atuar.
(formulação, implementação, e Os problemas enfrentados (e
avaliação). Em especial, como eles, percebidos) pelos grupos sociais, ou
embora em geral não sejam explicitados
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atores, envolvidos com uma política entre as duas agendas, maior a


conformam agendas particulares. Entre probabilidade de enfrentamento entre os
elas, está a agenda de governo, que que governam e os demais atores
expressa os valores e interesses daqueles envolvidos, e maior a exigência de
que governam. governança (capacidade de governar). E,
A agenda da política pública pode, alternativamente, maior a probabilidade
então, ser entendida como uma média de que o governo venha a abandonar a
ponderada pelo poder relativo do ator das sua agenda (e seu projeto político) ou
agendas particulares dos atores. incorporar a ela problemas provenientes
Considerando que o termo ator é usado da agenda de seus adversários para obter
para designar um coletivo (grupo social, seu apoio político.
organização, etc, em geral não- A agenda decisória é o núcleo da
monolítico), convém salientar que o política e pode ser considerada como o
mesmo vale para uma agenda particular: Estado em processo. São as sucessivas
ela também é uma combinação dos tomadas de decisão sobre agendas
valores e interesses de indivíduos conformadas a partir de sucessivas
diferentes com poder distinto. interações entre atores juntamente com o
Nem todos os problemas que resultado desses processos, o que vai
conformam as agendas particulares têm a estabelecendo os contornos (ou o “mapa”)
mesma facilidade de fazer parte da do aparelho de Estado. A agenda, num
agenda decisória (ou agenda da política) horizonte de prazo menor, é um reflexo
e, assim, impor aos que governam a da relação entre Estado e sociedade e
necessidade de atuar sobre eles. A força expressa a direção de um governo. A
ou debilidade de um ator pode ser maneira como é elaborada expressa a
avaliada pela sua capacidade de vitalidade ou debilidade da vida pública
aproximar a agenda decisória de sua em um sistema político e influencia,
agenda particular. Um governo forte é através de um processo realimentado
aquele que consegue impor - mediante controlado por sutis mecanismos
coerção aberta, mediante o ideológicos, o modo como se vai
convencimento, ou através de conformando a agenda dos atores com
mecanismos ideológicos - a sua agenda de menor poder.
governo, fazendo com que os outros Para aprofundar essa questão, é
atores sociais a aceitem como sendo a necessário entender que a agenda
agenda decisória. Ou, em outras palavras, decisória é um resultado de três tipos de
que consegue fazer com que a agenda conflito que devem ser identificados pelo
decisória se confunda com a sua agenda analista de política: (a) os abertos, acerca
de governo. A força de um governo de problemas pertencentes às agendas
(governabilidade) é inversamente particulares de atores com poder
proporcional à distância entre a agenda semelhante, que se explicitam
de governo e a agenda decisória que a naturalmente por ocasião de seu embate
contém. ao longo do processo decisório, e que
Assim, quanto maior a disparidade aparecem conformando a agenda
decisória; (b) os encobertos, que, embora realimentação com a agenda e com o
percebidos pelos atores mais fracos, não projeto político do ator. De fato, dado que
chegam a ser incorporados à agenda a maneira como ator percebe a realidade
decisória devido à debilidade dos mesmos (modelo cognitivo) lhe permite entendê-
e são por isto de difícil observação; (c) os la de uma forma mais coerente com seu
latentes, cuja expressão como problemas projeto político, mais sintonizada com
que conformariam a agenda particular de eles tenderá a ser a sua agenda.
um ator mais fraco nem chega a ocorrer, Dependendo do poder relativo do
dado que é obstaculizada por mecanismos ator, seu modelo cognitivo poderá ser
ideológicos controlados diretamente (ou percebido como correto, ser socialmente
com a mediação de instrumentos legitimado, e influenciar decisivamente a
legitimados na sociedade) pelos atores forma e conteúdo da política. No limite, e
mais poderosos; e pelo correspondente semelhantemente ao que ocorre no caso
consentimento dos mais fracos. das agendas quando um ator dominante
A identificação dos conflitos latentes consegue impor a sua agenda como a
é ainda mais difícil do que a dos agenda da política, quando existir um ator
encobertos. Ela não pode ser feita “a olho capaz de enviesar significativamente o
nu” mediante a consideração da agenda processo decisório, a política incorporará
decisória conformada a partir da relação o modelo cognitivo particular desse ator.
entre os atores. Ela exige uma análise Ele passará a ser o “modelo cognitivo da
profunda do contexto político e ideológico política”; o qual passará a servir de
e das relações de poder existentes entre os referência para todos os atores
atores atingidos por uma dada política, intervenientes, levando iterativamente ao
assim como do seu modelo cognitivo. Isso fortalecimento do poder do ator
porque, no limite, os atores mais fracos, dominante. O que irá dificultar
por sequer serem capazes de formular progressivamente a irrupção de conflitos
uma agenda particular (uma vez que não encobertos e latentes e, inclusive,
percebem claramente os problemas que influenciar o modelo cognitivo dos atores
os prejudicam), nem conseguem com menor poder.
influenciar a conformação da agenda A debilidade dos atores mais fracos
decisória para poderem participar do influencia, então, a conformação da
processo de decisão. agenda decisória e, por extensão, o
À medida que um ator entra em conteúdo da política, de três maneiras.
interação com outros atores e agendas, no Primeiro, porque o menor poder do ator
âmbito de processos decisórios, sua diminui a probabilidade de que sua
agenda passa a dar origem ao seu modelo agenda particular (ainda quando
cognitivo particular. Isto é, o modelo, a escoimada dos seus conflitos encobertos)
partir do qual ele irá descrever, explicar e “entre” na agenda decisória. Segundo,
prescrever acerca do objeto da política e porque sua agenda particular não
do seu contexto, e irá participar no costuma refletir todos os problemas que
processo decisório. Pode-se dizer que o efetivamente o prejudicam (devido à
modelo cognitivo possui uma relação de existência de conflitos mantidos como
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latentes em função dos mecanismos dominante atua no sentido de fazer valer


ideológicos vigentes). Terceiro porque o seus interesses. A segunda é a que se
“modelo cognitivo da política”, cujas ocupa da identificação das falhas (ou
características dependem dos valores e déficits) de implementação vis-à-vis às de
interesses do ator dominante, tende a formulação. Essa dimensão indica com
atuar no sentido de dificultar ainda mais freqüência que embora, obviamente, o
a irrupção de conflitos encobertos e insucesso da política só se materialize
latentes. quando ela é implementada, as razões que
Elementos de caráter político- o explicam remetem ao momento da
ideológico atinentes aos atores, às redes formulação. Portanto, por mais que
que eles conformam e aos ambientes em possam estar asseguradas as condições
que se verificam as atividades abarcadas para a implementação perfeita, uma
pela política, fazem parte do conjunto de política mal formulada (apoiada num
informações necessário para entender os modelo cognitivo pouco coerente com a
processos e tomada de decisão. realidade, num modelo normativo
Muitas vezes, não são os atores irrealista, ou numa agenda irrealista ou
pertencentes ao grupo econômica ou bloqueada) jamais poderá ser bem
politicamente mais fraco, penalizado por implementada.
uma situação-problema, os que procuram Como outros tratados nesta seção,
incorporá-la à agenda decisória. E, sim, os pontos levantados nos dois últimos
os que se sentem com ela ideologicamente parágrafos são especialmente pertinentes
identificados e que possuem poder para para a análise da PCT brasileira.
atuar conseqüentemente.
Alternativamente, pode ocorrer que um
2. Dois exemplos de aplicação da
ator passe a defender a agenda particular abordagem de Análise de Políticas
de um outro que, embora dotado de poder ao campo Ciência, Tecnologia e
econômico ou político, se encontre Sociedade
ausente do processo decisório por não
estar consciente daquilo que, segundo o Esta seção foi organizada em torno
primeiro ator, seriam os seus interesses. de minha experiência na disciplina
Isso tenderá a ocorrer quando o ator já Ciência, Tecnologia e Sociedade oferecida
engajado na elaboração da política aos alunos de graduação da UNICAMP e
pressente que isto pode trazer vantagens explora a questão do modelo cognitivo da
para a defesa da (sua) agenda particular Política de C&T.
advogada pelo seu grupo ou para um Ela transcreve dois artigos
segmento em processo de diferenciação publicados no jornal da UNICAMP que
ou ao qual pretende se filiar. tratam o modelo cognitivo do ator
Explicar o êxito ou fracasso de uma dominante dessa política (a comunidade
política supõe a consideração de duas de pesquisa), a partir da maneira como
dimensões. A primeira é a dos atores ele aparece refletido na percepção dos
intervenientes no processo decisório, em alunos que iniciam a disciplina. Ambos
que se procura entender como o ator adotam um percurso narrativo que
abrange três movimentos: a explicitação
do modelo cognitivo, sua desconstrução e abaixo, inspirado nos trabalhos dos
a proposição de um modelo alternativo. professores Andrew Feenberg e Hugh
O primeiro artigo envereda pelo Lacey.
tema da filosofia da ciência e da O eixo vertical representa, na parte
tecnologia para tratar de um elemento superior, a perspectiva que considera a
central do modelo cognitivo daquele ator: ciência e a tecnologia (ou a Tecnociência)
a concepção que ele possui acerca da C&T como neutras, isto é, livre dos valores (ou
(ou da Tecnociência, termo que busca interesses) econômicos, políticos, sociais
denotar a grande e crescente interconexão ou morais dominantes numa dada
entre elas). A análise das concepções sociedade. Na parte inferior, a que a
atualmente dominantes e a proposição de entende a C&T (daqui para frente no
uma concepção alternativa é um passo singular) como condicionada por esses
essencial para a construção de um novo valores. Segundo a perspectiva neutra, o
modelo cognitivo para a Política de C&T. resultado material da C&T (um
O segundo, utiliza uma ferramenta dispositivo técnico qualquer), é
de planejamento estratégico aplicada para simplesmente uma concatenação de
a explicação de uma situação-problema mecanismos causais “que pode ser usado
(referida através da pergunta: que anda para o bem ou para o mal”. Já para aquela
mal no Brasil com a relação Ciência, que entende a C&T como condicionada
Tecnologia e Sociedade?) para analisar os por valores, o artefato tecnológico,
elementos mais importantes do modelo enquanto entidade social, possui um
cognitivo da comunidade de pesquisa. E, modo especial de carregar valores em si
a partir da crítica a esses elementos, próprio e a reforçá-los.
formular uma nova explicação da No eixo horizontal se representa, à
situação-problema proposta e, em esquerda, a perspectiva que considera a
conseqüência, da sua solução. C&T como autônoma e, à direita, a que a
entende como controlada pelo Homem
2.1 Qual é o seu tipo científico-
(ou pelos grupos sociais). De acordo com
tecnológico?
a primeira, a tecnologia, apoiada na
Para motivar meus alunos de ciência e no método científico e em busca
graduação da disciplina de Ciência, da eficiência crescente, teria suas próprias
Tecnologia e Sociedade a praticarem os leis imanentes, seguindo uma trajetória
conceitos de construção social da linear e inexorável, governada por esse
tecnologia, determinismo tecnológico, impulso endógeno. A sociedade apenas
neutralidade da ciência, etc, sugeri a eles aceitaria seus impactos e tentaria tirar
um exercício. Tratava-se de submeter um dela o melhor proveito. Segundo a última,
professor, um colega ou eles mesmos, a a sociedade estaria em condições de
um teste, semelhante aos que aparecem decidir em cada momento como a C&T se
naquelas revistas que lemos nos irá desenvolver. Dela dependeria o
consultórios. próximo passo da evolução dos sistemas
Baseado na pergunta-título deste técnicos.
artigo, o teste admitia quatro opções de A combinação das quatro
resposta dispostas segundo o gráfico
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perspectivas, duas a duas, dá origem aos dos quadrantes delimitados pelos dois
quatro “tipos científico-tecnológicos” (ou eixos.
concepções) representados em cada um
NEUTRA
DETERMINISMO INSTRUMENTALISMO
otimismo da esquerda marxista otimismo liberal/positivista/
tradicional: força que molda e moderno no progresso: produzida
empurra inexoravelmente a em busca da verdade e da
sociedade mediante exigências de eficiência e submetida ao controle
eficiência e progresso que ela externo e a posteriori da Ética,
própria estabelece; hoje oprime mas pode ser usada para satisfazer
amanhã, quando “apropriada”, infinitas necessidades da
liberará e conduzirá ao socialismo “sociedade”
CONTROLADA
AUTÔNOMA PELO HOMEM
SUBSTANTIVISMO ADEQUAÇÃO SÓCIO-TÉCNICA
crítica marxista/pessimista da postura engajada e otimista:
Escola de Frankfurt: valores e construção social a ser reprojetada
interesses capitalistas incorporados mediante a internalização de valores
na sua produção condicionam sua e interesses alternativos às
dinâmica e impedem seu uso em instituições onde é produzida:
projetos políticos alternativos pluralidade, controle democrático
interno e a priori
CONDICIONADA POR
VALORES

O teste - Qual é o seu tipo científico- orientação) “para o bem” é algo estranho
tecnológico? - consistia em classificar a ao mundo do conhecimento científico-
pessoa num dos quatro tipos. Para isso, tecnológico e dos que o produzem: a
dei como referência adicional a descrição “Ética”. Só se esta não for respeitada pela
de cada um deles reproduzida abaixo. sociedade, esse conhecimento poderá ser
O primeiro tipo, que combina as usado “para o mal” e ter implicações –
perspectivas do controle humano da sociais, ambientais etc - indesejáveis.
tecnologia e da neutralidade de valores, é O segundo tipo, que combina
o dos Instrumentalistas. Apesar de serem autonomia e neutralidade, é o dos
herdeiros do iluminismo e positivismo, Deterministas. Segundo eles, sua visão
eles expressam uma visão contemporânea decorre da interpretação do que Marx
que concebe a tecnologia como uma escreveu no final do século 19. O avanço
ferramenta gerada pela espécie humana contínuo e inexorável da C&T (ou, no seu
(em abstrato e sem qualquer jargão, o desenvolvimento das “forças
especificação histórica ou que diferencie produtivas”) seria a força motriz da
os interesses de distintos segmentos história que, pressionando as “relações
sociais) através de métodos que, ao serem técnicas e sociais de produção”, levaria a
aplicados à natureza, asseguram à ciência sucessivos e mais avançados “modos de
atributos de verdade e, à tecnologia, de produção”. Para eles, a tecnologia não é
eficiência. Dado que pode atuar sob controlada pelo Homem; é ela que,
qualquer perspectiva de valor, o que utilizando-se do avanço do conhecimento
garante o seu uso (e também a sua do mundo natural, verdadeiro e neutro,
molda (e empurra para um futuro cada tecnologia capitalistas, ou ela, por não
vez melhor) a sociedade mediante as poder ser controlada, nos conduziria à
exigências de eficiência e progresso que catástrofe e à barbárie.
ela estabelece. A tecnologia que serve ao Os Substantivistas (pessimistas) se
“capital” e oprime a “classe operária” é a diferenciam dos Deterministas. Estes, ao
mesma que, apropriada por ela depois da aceitar que a C&T, por não ser portadora
“revolução”, a “liberaria” e permitiria a de valores, é o servo neutro de qualquer
construção do ideal do “socialismo”. projeto social, inclusive o da sociedade
O terceiro, que entende a C&T como igualitária e sustentável que cada vez
dotada de autonomia e intrinsecamente mais pessoas almejam, idealizam um final
portadora de valores, é o dos sempre feliz para a história da espécie.
Substantivistas. Eles compartilham a O quarto tipo, por designar um
crítica do marxismo tradicional feita pela grupo em formação não tem ainda
Escola de Frankfurt a partir da década propriamente um nome. Os que estão
dos sessenta. Segundo ela, enquanto a formulando o conjunto de idéias que
idéia de neutralidade atribui à C&T a defendem o chamam de Adequação
busca de uma eficiência (abstrata, mas Sócio-técnica. Eles combinam as
substantiva), perspectivas da C&T como passível de ser
a qual pode servir a qualquer controlada pelos grupos sociais (negando
concepção acerca do modo ideal de sua autonomia) e como portadora de
existência humana, o compromisso com a valores.
concepção capitalista dominante (que Concordam com o
embora pareça natural e única, é Instrumentalismo: a C&T é controlável. E
ideologicamente sustentada), faria com com os Substantivistas: os valores
que seus valores fossem incorporados à capitalistas por terem sido internalizados
C&T (capitalista). Em conseqüência, ela à C&T lhe conferem características que
não poderia ser usada para viabilizar tendem a reproduzí-los e reforçá-los no
propósitos de indivíduos ou grupos contexto social. Características que
sociais que patrocinem outros valores e implicam conseqüências social e
interesses. Ela carregaria consigo valores ambientalmente catastróficas, e que
que têm o mesmo caráter exclusivo das tendem a inibir mudanças político-
religiões que estipulam as crenças, sociais.
orientam a conduta e conformam o Ainda assim, vêem na C&T uma
inconsciente coletivo de grupos sociais. A promessa de liberdade. Aceitam a
tecnologia capitalista tenderia contribuição dos sociólogos da tecnologia
inevitavelmente a se afinar com os valores (e da ciência), que desde a década de 1970
imanentes da “sociedade tecnológica”, têm mostrado o caráter de construção (e
como a eficiência, o controle e o poder. negociação) social das mesmas por
Valores divergentes – alternativos - não “grupos sociais relevantes” ao longo de
conseguiriam nela sobreviver ou um processo “natural”; isto é, legitimado
prosperar, tal o poder de determinação da pela correlação de forças vigente na
C&T. Ou abandonaríamos a ciência e sociedade. E acreditam na possibilidade
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de que atores sociais com menor poder plano teórico para o das instituições
insiram seus valores e interesses na públicas de pesquisa e ensino onde, à
agenda decisória que preside a dinâmica medida que as demais concepções da C&T
da C&T tornando-a funcional para seu sejam questionadas, se irão conformar
projeto político. Por isso, se resignam de agendas decisórias cada vez mais
forma ambivalente a “não jogar a criança ancoradas em projetos políticos
com a água do banho”. Rejeitam, então, a alternativos, é um primeiro passo com ela
postura de “implosão” das estruturas da coerente. Passo que terá que contar com a
C&T que decorre da concepção participação crescente dos movimentos
Substantivista. sociais no processo decisório dessas
Discordam dos Deterministas, instituições de maneira a garantir que
afirmando que a C&T atualmente ocorra, de fato, a Adequação Sócio-
disponível não pode ser usada para técnica.
construir um estilo de desenvolvimento E então, qual
significativamente diferente do existente é o seu tipo tecnológico? Se quiser
(capitalismo), ainda que ganhe força o entrar na nossa estatística, responda:
projeto político que o defende. Nem como rdagnino@ige.unicamp.br.
algo que pode ser usado “para o bem”
(entendido, este, como o abrandamento 2.2 Os modelos cognitivos da
das tensões sociais) se orientado pela Política de C&T e os alunos da
“Ética”, como ingenuamente querem os disciplina Ciência, Tecnologia e
Instrumentalistas. Tampouco aceitam que Sociedade
seja um apêndice indissociável de valores
e interesses privilegiados em função da Como fiz num artigo que publiquei
vigência de um tipo de organização aqui (Qual é o seu tipo científico-
particular da sociedade (capitalista), tecnológico?), vou me basear em minha
como pensam os Substantivistas. experiência como professor da disciplina
Sua proposta de Adequação Sócio- Ciência, Tecnologia e Sociedade da
técnica consiste no “reprojetamento” das graduação da Unicamp, para mostrar
tecnologias atualmente disponíveis. Num como meus alunos, “fantasiados” de
processo sócio-técnico contra- policy makers, aprendem a detectar as
hegemônico que se inicia pela incoerências desses modelos e a propor
desconstrução da tecnologia, que soluções para suas falhas.
identifique suas características que Há quase dez anos que, no primeiro
decorrem da internalização dos interesses dia de aula, faço um exercício de mapa
e valores do “grupo social relevante”. E de cognitivo em que peço a cada aluno que
reconstrução, que promova sua escreva uma frase curta numa folha, com
substituição por outras características, letras bem grandes, respondendo à
coerentes com outros interesses e valores, pergunta “que anda mal no Brasil com a
que tornem a tecnologia funcional ao relação Ciência, Tecnologia e Sociedade”.
projeto político alternativo. A partir dessas cerca de 60 frases, eles
Trazer essa postura analítica do montam um fluxograma da situação
interligando mais ou menos 15 folhas
(escritas a partir das 60), que são C&T e fazem um exercício de
penduradas na parede, com flechas de planejamento estratégico a partir de um
causalidade, da esquerda para a direita. O fluxograma revisado, em que algumas
fluxograma, partindo das causas causas foram descartadas e outras
fundamentais, termina por explicar a adicionadas. Nele aparecem, bem à
situação-problema da relação Ciência, esquerda, causas como: “o modelo
Tecnologia e Sociedade no Brasil. econômico não precisa de C&T”, “os
A disciplina transcorre a partir do países desenvolvidos monopolizam a
modelo cognitivo que o fluxograma gerou. tecnologia”, “a comunidade científica tem
Vamos tratando nas aulas os meandros de uma visão neutra da C&T”, “má
problemas como “universidade está distribuição de renda não gera demanda
dissociada da sociedade”, “empresas não por C&T” “nossas exportações têm baixo
inovam”, “empresas preferem importar valor agregado”.
tecnologia a desenvolver”, “pesquisa e No exercício, trabalhamos primeiro
docência excessivamente voltadas para os conceitos de “causa-estrutural”. Isto é,
alta tecnologia”, “empresas não as determinadas pela natureza da área de
empregam pessoal qualificado que sai da C&T, como “os países desenvolvidos
universidade”, “recursos públicos para monopolizam a tecnologia”, ou pela a
C&T mal administrados”. Vamos também condição periférica de nosso país, como a
mostrando porque são ingênuas frases “má distribuição de renda não gera
como “empresas visam o lucro”, demanda por C&T”. Depois, tratamos os
“empresários não percebem a conceitos de “causa-institucional”,
importância da inovação”, “não existe derivadas do modelo das relações entre
empreendedorismo” e porque algumas Ciência, Tecnologia e Sociedade utilizado
são inverídicas, como “governo gasta para a elaboração da Política de C&T (o
pouco em C&T”, “empresários são modelo cognitivo desta política), de
atrasados” e, outras, equivocadas, como “governabilidade”, e de “causa-crítica”.
“universidade não desenvolve tecnologia” Em seguida discutimos porque as
ou “empresa não aproveita a tecnologia causas-estruturais - “empresas não
que universidade produz”. inovam”, “empresas preferem importar
Embora os alunos cheguem tecnologia a desenvolver”, “empresas não
repercutindo o senso-comum em que a empregam pessoal qualificado que sai da
neutralidade da ciência e o determinismo universidade” – por envolverem para sua
tecnológico se misturam para formar o supressão um processo de longo prazo
cimento do triunfalismo em que se que depende de uma abrangente e
fundamenta a concepção divulgada na complexa interação politics x policy, e
mídia, as leituras e as discussões vão sobre o qual os policy-makers da C&T
desconstruindo este senso-comum, e sua têm escassa governabilidade, não são
visão torna-se cada vez mais aguda, causas-críticas.
fundamentada e crítica. O recurso à abordagem
Nas últimas aulas, os alunos multidisciplinar dos Estudos sobre
assumem o papel de policy-makers da Ciência, Tecnologia e Sociedade lhes
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ajuda a entender porque nossa de recursos econômicos, foi “pesquisa e


comunidade científica, que teria escolhido docência não satisfazem demandas
há 40 anos como causa crítica da sociais” (ver o fluxograma abaixo). As
situação-problema da C&T brasileira a operações que segundo os alunos
insuficiência de pós-graduados, é hoje poderiam ser desencadeadas pelos
capaz de formar um “fluxo” de 40 mil policy-makers foram: “envolver a
mestres e doutores por ano. E, também, comunidade científica numa discussão
porque depois de 40 anos de ações sobre acerca do caráter não-neutro da ciência e
aquelas três causas (estruturais, mas não- não-determinista da tecnologia que lhe
críticas) através de políticas de estimule a adequar sua agenda de
cooperação universidade-empresa, as pesquisa ao cenário da democratização do
empresas públicas e privadas empregam País”; “motivar os líderes e partidos
um “estoque” de menos de 3 mil pós- políticos interessados em mudanças
graduados em P&D! socioeconômicas progressistas a
Depois, eles escolhem as causas- refletirem sobre as condições
críticas. Isto é, aquelas que são tecnocientíficas necessárias para sua
importantes para resolver a situação- viabilização”; “estimular os movimentos
problema, são oportunas politicamente e sociais envolvidos com a inclusão social,
sobre as quais se pode atuar definindo por um lado, e os professores e
operações, os atores envolvidos, os pesquisadores de Universidades e
recursos políticos, cognitivos e Institutos de Pesquisa públicos, de outro,
econômicos necessários, os prazos, os a desenvolverem estratégias para a
obstáculos e oportunidades etc. incorporação de seus valores, interesses e
Como é de se esperar, entre as projetos políticos às atividades de ensino
causas-críticas escolhidas predominam as e pesquisa realizadas no País”.
institucionais. Embora os alunos tendam A conclusão não poderia ser outra:
a privilegiar as estruturais, uma vez que se nossos alunos de graduação conseguem
elas são a origem do problema e “não contrabalançar com sua capacidade de
adianta tomar Melhoral para picada de aprender e espírito crítico, e mediante o
cobra”, eles logo percebem que no mundo aprendizado de conceitos, conteúdos e
da policy - politics vale o “paradoxo do metodologias que são ensinados numa
Melhoral” e que posturas voluntaristas única disciplina, a sua pouca experiência
tampouco funcionam. com área de C&T, o que não poderia se
No último ano, uma das favoritas, alcançar, caso a comunidade científica se
devido ao impacto em outras causas e dedicasse seriamente e sem preconceito a
sobre a situação-problema, à sua refletir sobre os modelos cognitivos que
viabilidade política e à baixa intensidade pautam sua ação.
percepção instr/ modelo
transdução
determin. da ofertista-
prestígio-poder
Tecnociência linear

forte sinal de
“alto-clero” pesquisa e docência
qualidade exógeno hegemoniza não satisfazem
PCT demandas sociais

condição fraco sinal


PCT
periférica de relevância disfuncional

empresa
inova pouco
globalização, perda de capacidade
neoliberalismo função ociosa

descentral.
P&D de ETN

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Renato Dagnino é professor do Depto. de
Política Científica e Tecnológica,
Instituto de Geociências, Universidade
Estadual de Campinas.
E-mail: rdagnino@ige.unicamp.br

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