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Renato Dagnino
perspectivas, duas a duas, dá origem aos dos quadrantes delimitados pelos dois
quatro “tipos científico-tecnológicos” (ou eixos.
concepções) representados em cada um
NEUTRA
DETERMINISMO INSTRUMENTALISMO
otimismo da esquerda marxista otimismo liberal/positivista/
tradicional: força que molda e moderno no progresso: produzida
empurra inexoravelmente a em busca da verdade e da
sociedade mediante exigências de eficiência e submetida ao controle
eficiência e progresso que ela externo e a posteriori da Ética,
própria estabelece; hoje oprime mas pode ser usada para satisfazer
amanhã, quando “apropriada”, infinitas necessidades da
liberará e conduzirá ao socialismo “sociedade”
CONTROLADA
AUTÔNOMA PELO HOMEM
SUBSTANTIVISMO ADEQUAÇÃO SÓCIO-TÉCNICA
crítica marxista/pessimista da postura engajada e otimista:
Escola de Frankfurt: valores e construção social a ser reprojetada
interesses capitalistas incorporados mediante a internalização de valores
na sua produção condicionam sua e interesses alternativos às
dinâmica e impedem seu uso em instituições onde é produzida:
projetos políticos alternativos pluralidade, controle democrático
interno e a priori
CONDICIONADA POR
VALORES
O teste - Qual é o seu tipo científico- orientação) “para o bem” é algo estranho
tecnológico? - consistia em classificar a ao mundo do conhecimento científico-
pessoa num dos quatro tipos. Para isso, tecnológico e dos que o produzem: a
dei como referência adicional a descrição “Ética”. Só se esta não for respeitada pela
de cada um deles reproduzida abaixo. sociedade, esse conhecimento poderá ser
O primeiro tipo, que combina as usado “para o mal” e ter implicações –
perspectivas do controle humano da sociais, ambientais etc - indesejáveis.
tecnologia e da neutralidade de valores, é O segundo tipo, que combina
o dos Instrumentalistas. Apesar de serem autonomia e neutralidade, é o dos
herdeiros do iluminismo e positivismo, Deterministas. Segundo eles, sua visão
eles expressam uma visão contemporânea decorre da interpretação do que Marx
que concebe a tecnologia como uma escreveu no final do século 19. O avanço
ferramenta gerada pela espécie humana contínuo e inexorável da C&T (ou, no seu
(em abstrato e sem qualquer jargão, o desenvolvimento das “forças
especificação histórica ou que diferencie produtivas”) seria a força motriz da
os interesses de distintos segmentos história que, pressionando as “relações
sociais) através de métodos que, ao serem técnicas e sociais de produção”, levaria a
aplicados à natureza, asseguram à ciência sucessivos e mais avançados “modos de
atributos de verdade e, à tecnologia, de produção”. Para eles, a tecnologia não é
eficiência. Dado que pode atuar sob controlada pelo Homem; é ela que,
qualquer perspectiva de valor, o que utilizando-se do avanço do conhecimento
garante o seu uso (e também a sua do mundo natural, verdadeiro e neutro,
molda (e empurra para um futuro cada tecnologia capitalistas, ou ela, por não
vez melhor) a sociedade mediante as poder ser controlada, nos conduziria à
exigências de eficiência e progresso que catástrofe e à barbárie.
ela estabelece. A tecnologia que serve ao Os Substantivistas (pessimistas) se
“capital” e oprime a “classe operária” é a diferenciam dos Deterministas. Estes, ao
mesma que, apropriada por ela depois da aceitar que a C&T, por não ser portadora
“revolução”, a “liberaria” e permitiria a de valores, é o servo neutro de qualquer
construção do ideal do “socialismo”. projeto social, inclusive o da sociedade
O terceiro, que entende a C&T como igualitária e sustentável que cada vez
dotada de autonomia e intrinsecamente mais pessoas almejam, idealizam um final
portadora de valores, é o dos sempre feliz para a história da espécie.
Substantivistas. Eles compartilham a O quarto tipo, por designar um
crítica do marxismo tradicional feita pela grupo em formação não tem ainda
Escola de Frankfurt a partir da década propriamente um nome. Os que estão
dos sessenta. Segundo ela, enquanto a formulando o conjunto de idéias que
idéia de neutralidade atribui à C&T a defendem o chamam de Adequação
busca de uma eficiência (abstrata, mas Sócio-técnica. Eles combinam as
substantiva), perspectivas da C&T como passível de ser
a qual pode servir a qualquer controlada pelos grupos sociais (negando
concepção acerca do modo ideal de sua autonomia) e como portadora de
existência humana, o compromisso com a valores.
concepção capitalista dominante (que Concordam com o
embora pareça natural e única, é Instrumentalismo: a C&T é controlável. E
ideologicamente sustentada), faria com com os Substantivistas: os valores
que seus valores fossem incorporados à capitalistas por terem sido internalizados
C&T (capitalista). Em conseqüência, ela à C&T lhe conferem características que
não poderia ser usada para viabilizar tendem a reproduzí-los e reforçá-los no
propósitos de indivíduos ou grupos contexto social. Características que
sociais que patrocinem outros valores e implicam conseqüências social e
interesses. Ela carregaria consigo valores ambientalmente catastróficas, e que
que têm o mesmo caráter exclusivo das tendem a inibir mudanças político-
religiões que estipulam as crenças, sociais.
orientam a conduta e conformam o Ainda assim, vêem na C&T uma
inconsciente coletivo de grupos sociais. A promessa de liberdade. Aceitam a
tecnologia capitalista tenderia contribuição dos sociólogos da tecnologia
inevitavelmente a se afinar com os valores (e da ciência), que desde a década de 1970
imanentes da “sociedade tecnológica”, têm mostrado o caráter de construção (e
como a eficiência, o controle e o poder. negociação) social das mesmas por
Valores divergentes – alternativos - não “grupos sociais relevantes” ao longo de
conseguiriam nela sobreviver ou um processo “natural”; isto é, legitimado
prosperar, tal o poder de determinação da pela correlação de forças vigente na
C&T. Ou abandonaríamos a ciência e sociedade. E acreditam na possibilidade
Ciência & Ensino, vol. 1, número especial, novembro de 2007
de que atores sociais com menor poder plano teórico para o das instituições
insiram seus valores e interesses na públicas de pesquisa e ensino onde, à
agenda decisória que preside a dinâmica medida que as demais concepções da C&T
da C&T tornando-a funcional para seu sejam questionadas, se irão conformar
projeto político. Por isso, se resignam de agendas decisórias cada vez mais
forma ambivalente a “não jogar a criança ancoradas em projetos políticos
com a água do banho”. Rejeitam, então, a alternativos, é um primeiro passo com ela
postura de “implosão” das estruturas da coerente. Passo que terá que contar com a
C&T que decorre da concepção participação crescente dos movimentos
Substantivista. sociais no processo decisório dessas
Discordam dos Deterministas, instituições de maneira a garantir que
afirmando que a C&T atualmente ocorra, de fato, a Adequação Sócio-
disponível não pode ser usada para técnica.
construir um estilo de desenvolvimento E então, qual
significativamente diferente do existente é o seu tipo tecnológico? Se quiser
(capitalismo), ainda que ganhe força o entrar na nossa estatística, responda:
projeto político que o defende. Nem como rdagnino@ige.unicamp.br.
algo que pode ser usado “para o bem”
(entendido, este, como o abrandamento 2.2 Os modelos cognitivos da
das tensões sociais) se orientado pela Política de C&T e os alunos da
“Ética”, como ingenuamente querem os disciplina Ciência, Tecnologia e
Instrumentalistas. Tampouco aceitam que Sociedade
seja um apêndice indissociável de valores
e interesses privilegiados em função da Como fiz num artigo que publiquei
vigência de um tipo de organização aqui (Qual é o seu tipo científico-
particular da sociedade (capitalista), tecnológico?), vou me basear em minha
como pensam os Substantivistas. experiência como professor da disciplina
Sua proposta de Adequação Sócio- Ciência, Tecnologia e Sociedade da
técnica consiste no “reprojetamento” das graduação da Unicamp, para mostrar
tecnologias atualmente disponíveis. Num como meus alunos, “fantasiados” de
processo sócio-técnico contra- policy makers, aprendem a detectar as
hegemônico que se inicia pela incoerências desses modelos e a propor
desconstrução da tecnologia, que soluções para suas falhas.
identifique suas características que Há quase dez anos que, no primeiro
decorrem da internalização dos interesses dia de aula, faço um exercício de mapa
e valores do “grupo social relevante”. E de cognitivo em que peço a cada aluno que
reconstrução, que promova sua escreva uma frase curta numa folha, com
substituição por outras características, letras bem grandes, respondendo à
coerentes com outros interesses e valores, pergunta “que anda mal no Brasil com a
que tornem a tecnologia funcional ao relação Ciência, Tecnologia e Sociedade”.
projeto político alternativo. A partir dessas cerca de 60 frases, eles
Trazer essa postura analítica do montam um fluxograma da situação
interligando mais ou menos 15 folhas
(escritas a partir das 60), que são C&T e fazem um exercício de
penduradas na parede, com flechas de planejamento estratégico a partir de um
causalidade, da esquerda para a direita. O fluxograma revisado, em que algumas
fluxograma, partindo das causas causas foram descartadas e outras
fundamentais, termina por explicar a adicionadas. Nele aparecem, bem à
situação-problema da relação Ciência, esquerda, causas como: “o modelo
Tecnologia e Sociedade no Brasil. econômico não precisa de C&T”, “os
A disciplina transcorre a partir do países desenvolvidos monopolizam a
modelo cognitivo que o fluxograma gerou. tecnologia”, “a comunidade científica tem
Vamos tratando nas aulas os meandros de uma visão neutra da C&T”, “má
problemas como “universidade está distribuição de renda não gera demanda
dissociada da sociedade”, “empresas não por C&T” “nossas exportações têm baixo
inovam”, “empresas preferem importar valor agregado”.
tecnologia a desenvolver”, “pesquisa e No exercício, trabalhamos primeiro
docência excessivamente voltadas para os conceitos de “causa-estrutural”. Isto é,
alta tecnologia”, “empresas não as determinadas pela natureza da área de
empregam pessoal qualificado que sai da C&T, como “os países desenvolvidos
universidade”, “recursos públicos para monopolizam a tecnologia”, ou pela a
C&T mal administrados”. Vamos também condição periférica de nosso país, como a
mostrando porque são ingênuas frases “má distribuição de renda não gera
como “empresas visam o lucro”, demanda por C&T”. Depois, tratamos os
“empresários não percebem a conceitos de “causa-institucional”,
importância da inovação”, “não existe derivadas do modelo das relações entre
empreendedorismo” e porque algumas Ciência, Tecnologia e Sociedade utilizado
são inverídicas, como “governo gasta para a elaboração da Política de C&T (o
pouco em C&T”, “empresários são modelo cognitivo desta política), de
atrasados” e, outras, equivocadas, como “governabilidade”, e de “causa-crítica”.
“universidade não desenvolve tecnologia” Em seguida discutimos porque as
ou “empresa não aproveita a tecnologia causas-estruturais - “empresas não
que universidade produz”. inovam”, “empresas preferem importar
Embora os alunos cheguem tecnologia a desenvolver”, “empresas não
repercutindo o senso-comum em que a empregam pessoal qualificado que sai da
neutralidade da ciência e o determinismo universidade” – por envolverem para sua
tecnológico se misturam para formar o supressão um processo de longo prazo
cimento do triunfalismo em que se que depende de uma abrangente e
fundamenta a concepção divulgada na complexa interação politics x policy, e
mídia, as leituras e as discussões vão sobre o qual os policy-makers da C&T
desconstruindo este senso-comum, e sua têm escassa governabilidade, não são
visão torna-se cada vez mais aguda, causas-críticas.
fundamentada e crítica. O recurso à abordagem
Nas últimas aulas, os alunos multidisciplinar dos Estudos sobre
assumem o papel de policy-makers da Ciência, Tecnologia e Sociedade lhes
Ciência & Ensino, vol. 1, número especial, novembro de 2007
forte sinal de
“alto-clero” pesquisa e docência
qualidade exógeno hegemoniza não satisfazem
PCT demandas sociais
empresa
inova pouco
globalização, perda de capacidade
neoliberalismo função ociosa
descentral.
P&D de ETN
_______________________
Renato Dagnino é professor do Depto. de
Política Científica e Tecnológica,
Instituto de Geociências, Universidade
Estadual de Campinas.
E-mail: rdagnino@ige.unicamp.br