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— resgate etnoarqueológico do
Cemitério Judaico de Gurupá, Pará, Brasil
Forgotten Matzevot kevurah 141
— ethnoarchaeological research of the
Jewish Cemetery in Gurupá, Pará, Brazil
Claudia Cunha1,2a*, Fernando Marques3, Diego Fonseca4, Cássia Benathar,
Elton Farage5, Helena Lima3b, Alegria Benchimol3c
Matzevot kevurah esquecidas — resgate etnoarqueológico do Cemitério Judaico de Gurupá, Pará, Brasil
A maioria dos criptojudeus ou cristãos- provenientes da Turquia, Líbano, Síria e
-novos provinham de Portugal e Espanha, Egito (Benchimol, 1998; 2009).
os megorashim (exilados ou expulsos da A economia da comunidade judai-
Ibéria) (Moreira, 1989). Como em outras ca de Belém detinha-se principalmente
regiões do Brasil, estes haviam aqui che- no comércio, com o estabelecimento de
gado não como componentes de gran- grandes casas comerciais familiares já no
des levas migratórias, mas individualmen- início do século XIX. Os imigrantes tosha-
te ou em pequenos grupos familiares no vim magrebinos, na sua maioria homens
século XVII e teriam procurado integrar de jovens solteiros e posteriormente suas
forma discreta a população local, abando- famílias, foram integrados à vida econô-
nando as evidências externas ou públicas mica da comunidade na forma de vende-
da sua fé (Moreira, 1989; Falbel, 2008). dores, regatões que achavam na interiori-
Durante o século XVIII e início do zação oportunidades comerciais levando
XIX, a maior parte do contingente mi- produtos das “casas aviadoras” judaicas da
gratório viria do Norte da África — par- capital para o interior e trazendo produ-
ticularmente do Magreb, os toshavim tos do extrativismo com destaque para
(forasteiros), originalmente falantes de as drogas do sertão e posteriormente a
árabe e berbere, com predominância de borracha (Moreira, 1989). Neste contexto,
marroquinos. Para além da fuga às perse- os judeus se engendravam em uma com-
guições religiosas, estes buscavam novas plexa rede social de comércio a crédito, o
oportunidades de fazer dinheiro na Ama- chamado sistema de aviamento, enraiza-
zônia (Moreira, 1989; Benchimol, 1998; do em vários territórios da bacia amazô-
2009). Considerando-se o caráter indivi- nica no século XIX (Meira, 2017: 94).
dual da presença judaica durante o Brasil Na região do Baixo Amazonas, locali-
Colônia, os autores referidos assumem dades mais populosas acabaram concen-
como primeira leva migratória de facto o trando comunidades judaicas compostas
fluxo vindo do Magreb a partir do sécu- inicialmente por regatões e suas famílias
lo XVIII. Posteriormente, a anexação das trazidas de Belém, que fizeram da sede
regiões da Alsácia e Lorena à Alemanha do município de Gurupá e de outras lo-
calidades do Baixo Amazonas entrepos- monarquia secular contribuíram para um
tos comerciais entre a capital e o interior aumento migratório judaico para a Ama-
(Benchimol, 2009). Na segunda meta- zônia (Benchimol, 2009) e para uma cres-
de do século XIX, mais da metade dos cente liberdade religiosa, o que resultou
grandes comerciantes em Gurupá eram na criação de suas casas de orações, que
144 judeus (Moreira, 1989). Os registros carto- mais tarde tornar-se-iam as primeiras
riais locais apontam para um grande fluxo sinagogas de Belém, respectivamente a
comercial e aquisição de extensas pro- Essel (Eshel) Abraham (em 1823 ou 1824)
Claudia Cunha, Fernando Marques, Diego Fonseca, Cássia Benathar, Elton Farage, Helena Lima, Alegria Benchimo
priedades rurais por judeus. Muitas dessas e a Shaar Hashamain, cuja data de fun-
casas comerciais estavam nos lugares de dação enquanto sinagoga é controversa,
extração da borracha, eram os chamados mas deve ter acontecido entre 1826 e
‘barracões’. O “comércio de aviação”, do 1835 (Benchimol, 1998; 2009). Remete a
qual os comerciantes judeus faziam parte, este período o surgimento do primeiro
abastecia as localidades interioranas de cemitério hebraico na capital do Estado,
produtos industrializados (como quero- a Necrópole Israelita na Avenida Serze-
sene, tecidos, ferramentas, etc.) e levava delo Corrêa (Moreira, 1989).
os produtos da floresta (entre eles a bor- O dogma talmúdico exige que o
racha) para os centros urbanos maiores praticante do judaísmo siga uma série de
(Meira, 2017). A sede do município de regras não apenas em vida. Estas regras
Gurupá funciona até hoje como merca- sofrem pequenas variações não apenas
do abastecedor do comércio para outras diacrônicas mas também culturais, resul-
localidades menores em seu território ou tantes na maior parte dos casos de inter-
mesmo municípios vizinhos. pretações rabínicas diferentes do texto
As perseguições religiosas promo- talmúdico por linhas filosóficas diversas
vidas pela Inquisição Portuguesa que se dentro do judaísmo. Ao morrer, o indi-
faziam sentir também na colônia inibiam víduo é sujeito a um longo e complexo
a articulação comunitária judaica e a ex- tratamento funerário que se encerrará, na
pressão da sua identidade. Este cenário sua face pública, cerca de um ano após a
sofreria mudança gradual em direção à morte e, na sua face privada ou familiar,
liberalização progressiva do culto judai- prolongar-se-á para além disso, com re-
co e gradual assimilação à sociedade na- gras de observância à memória do morto
cional apenas a partir do último quartel por aqueles que em vida lhe foram mais
do século XIX (Falbel, 2008). próximos a nível familiar. As diretrizes
A abertura dos portos em 1808, a descritas pelo Talmude sofrem pequenas
extinção da Inquisição Portuguesa em diferenças dentro das várias correntes
1821, a Independência do Brasil em 1822, do judaísmo, mas, em geral, incluem um
e, posteriormente, a instauração de uma período entre o falecimento e o enterro
(Aninut) em que a família faz os prepara- judaico na localidade, a inumação tradi-
tivos para o funeral e executa a purifica- cional, como vários aspectos da cultura,
ção do corpo (Tahará). Esta primeira fase busca soluções de compromisso com a
pode ser exclusivamente de responsabili- fé oficial de forma a manter-se o máximo
dade familiar, mas, no caso de judeus que possível de acordo com o dogma. Nestes
vivem em comunidades urbanas, é quase casos, o enterro é permitido como defi- 145
sempre compartilhada com a Chevra Ka- nitivo se cumpridas algumas regras: todo
disha local (associação religiosa encarre- o lote onde está a sepultura ou sepultu-
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gada de ações relacionadas com as ceri- ras deve ser comprado em uma área ain-
mônias fúnebres da comunidade). O en- da vazia do cemitério e cercado de forma
terro é, da mesma forma, controlado pelo a constituir um terreno próprio separado
dogma, desde as orações que são ditas à (Programa Lugares da Memória, 2015).
procissão fúnebre, quantas e quais pes- Surgem assim espaços reservados para
soas podem atender à cerimônia e onde enterramentos judaicos, como acontece
o morto pode ser inumado. Neste caso, no cemitério Anglicano em Belém, pou-
vale a pena ressaltar que é vedado que co anterior à primeira necrópole israelita
o morto seja enterrado em local público. local (Moreira, 1989). No caso de inuma-
Assim, o espaço funerário é uma proprie- ções em cemitérios cristãos ou ecumêni-
dade particular do falecido ou família ou cos, é permitida a exumação dos restos
é um lote comprado no cemitério local mortais para reenterro em um cemitério
administrado pela Chevra Kadisha. Na au- judaico posteriormente.
sência de familiares, é esta instituição que O interesse em trabalhar no sentido
se encarrega dos preparativos, do enterro de resgatar parte da história da comuni-
e dos procedimentos posteriores a este dade judaica preservada na necrópole
(Tzippel, 2012). É reforçada pelo dogma aqui discutida foi despertado nos auto-
talmúdico a necessidade de simplicidade res pela constatação do estado de aban-
e uniformidade nas estruturas funerárias dono e esquecimento desta estrutura
em um cemitério judaico. Não são per- urbana por parte da comunidade local.
mitidos adornos elaborados ou túmu- Quatro dos autores (CC, CB, EF e AB) têm
los suntuosos e é determinado que sua também ligações afetivas, religiosas, ét-
construção siga a tradição local, de forma nicas e/ou familiares com o espaço e
a que um não se sobressaia a outro. As- seus ocupantes.
sim, a escolha de materiais e as soluções
construtivas tendem a ser relativamente Materiais e métodos
uniformes.
Em contextos de repressão à fé ju- Neste trabalho, optou-se por uma
daica ou na inexistência de um cemitério abordagem não invasiva e conservado-
ra dentro dos preceitos do Talmude, que rui (Rodovia dos Trabalhadores), atual-
defende a não violação do túmulo após mente na periferia da sede municipal de
a inumação, exceto em situações excep- Gurupá (Figura 1).
cionais e com autorização rabínica. A primeira notícia formal da existên-
O Cemitério Judaico de Gurupá cia deste sítio é dada por um trabalho
146 (CJG), com uma área murada de 298 m2, monográfico sobre a História dos Judeus
fica localizado na Rodovia Gurupá-Pucu- em Gurupá (Benathar, 2015). Na mesma
Claudia Cunha, Fernando Marques, Diego Fonseca, Cássia Benathar, Elton Farage, Helena Lima, Alegria Benchimo
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neo à necrópole judaica. A localização de palmente) e ilícitas.
ambos é condizente com a legislação em Ao início do trabalho, ervas dani-
vigor desde o início do século XIX, que nhas cobriam parcial ou completamente
determinava a localização de cemitérios alguns túmulos e havia grande quanti-
nos arredores das cidades por questões dade de lixo acumulado no espaço do
de higiene e saúde pública (Reis, 1991). cemitério. Os túmulos encontravam-se
O espaço, que pertence formalmen- tomados por colônias de líquenes e em
te ao Centro Israelita do Pará (Benathar, alguns casos semienterrados. Devido ao
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evidências à superfície de um muro limi- provavelmente na década de 1930, du-
tando este bloco de estruturas, porém há rante a administração de Jacob Marcos
que se pensar na possibilidade de haver Benathar enquanto intendente de Guru-
existido uma cerca circunscrevendo o es- pá (posteriormente inumado no túmulo
paço original. Apenas escavações nos li- 25 do CJG). A parede Norte é mais recen-
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Morderray Ben-atar/ Falecida no dia 1º de/
Av ano 5651
Lápide de Túmulo/ (D)o jovem, malogrado,
Menarrem/ Ben-Atar, filho de Morderray/
Menahem de NLB”Oc dia 20/ Mês de nissan, ano 5671/
18 A Mordejay Be- LP”Kc — T ” N TZ B He 18/04/1911
nathar --------------------
Nasceu em 1881/ Menahem de Mordejay/
Benathar/ Fallecido em 18 DE/ ABRIL DE 1911
Suporte para inscrição destruído ou au-
19 B
sente
Clara (...); Isaac
Elarrat; Brro- [Linha superior ilegível] / Clara/ Istousel(?)/
sel(?) Jacob; Isaac Elarrat/ Brrosel [ou Bitosel] Jacob/ Ser-
20 A Serfaty Nilba; faty Nilba/ Iomsiba (Ioshua?) Asar/ Jomsel 28/08/1915
Ioshua Asar; Lahodes/elul [trecho ilegível] / 5674/ 28 8
Jomsel Laho- 1915
des
Parte superior em hebraico parcialmen-
te destruída/ NLB”Oc, dia 12 de av/ Ano
5682/T ” N TZ B He
---------------------
21 A Sultana Castiel Aqui repousam os/ Restos mortaes da/ Inno- 06/08/1922
cente e/ sempre chorada/ Sultana Castiel/
Nascida em 18-10/906,/ e/ Fallecida a 6-8-
922/ Paz á (sic) sua juvenil alma/ Recordação
de/ Seus paes e irmãos/
Macei [trecho ilegível] / Clara/ [trecho ilegível]
22 A Clara Serfaty / Serfaty/ [trecho ilegível] / [trecho ilegível]/ 1919
1919
n.º Tipo a Nome Dedicatóriab Óbito
Lápide de Túmulo/ Itzrak filho de
Benjamim [trecho ilegível] / [trecho ilegí-
23 A Itzrak 09/1900
vel] / Mês de elul [?], do ano [trecho ilegí-
vel] / 5660, LP”Kd
Tipo de túmulo de acordo com os materiais construtivos: (A) cobertos apenas por rochas irre-
gulares; (B) em tijolo maciço sem argamassa, sem lápide; (C) em tijolo e cobertos por lápide.
a. Barras separam cada linha do texto nas lápides.
b. Acróstico N”LBO “Que sua alma esteja no mundo das almas”.
c. Acróstico L”PK “Um breve resumo”.
d. Acróstico T ” N TZ B H “Que sua alma seja amarrada à Luz da Vida”.
te e corre a 1,5 m para lá da fundação do Quatro túmulos (T06, T10, T11 e T12)
muro original. Relatos dos moradores estavam parcialmente soterrados e sua
apontam para a sua construção recente cobertura foi exposta com remoção de
(século XXI) motivada por um acidente uma camada (<10 cm de profundidade)
automobilístico que derrubou este tre- composta majoritariamente de restos ve-
cho do muro original. A parede Leste getais (raízes e ervas) e pouco sedimento. 153
parece ser contemporânea a esta última Os danos observados às estruturas
e serve de limite a uma construção parti- tumulares são de cariz natural (meteori-
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cular posterior a 2001. zação, ataque de plantas e animais) e de
Durante o trabalho de campo, pro- cariz antrópico. Estes últimos são mais
cedeu-se à limpeza do cemitério com a preocupantes e incluem acúmulo de lixo
recolha do lixo. Posteriormente, os túmu- no espaço, vandalismo (ver fratura no T1,
los em si foram intervencionados com a Figura 4) e roubo de lápides (Benathar,
poda de ervas e a limpeza dos líquenes e 2015) em, pelo menos, dois túmulos
detritos sobre as lápides (Figura 4). (T15 e T26) (Figura 5). O cemitério não
Figura 4. T1 antes e após procedimento de limpeza com remoção de líquenes e ervas daninhas.
dispõe de qualquer sistema de seguran- bre alguns túmulos, nomeadamente os
ça ou vigilância. Os moradores mais pró- que trazem inscrição bilíngue.
ximos, principalmente os mais idosos, Na década de 1950, o intendente
encarregam-se (nem sempre com suces- Wilson Benathar doou o espaço do CJG
so) de coibir danos maiores. Eles relatam ao Centro Israelita do Pará numa tentativa
154 o progressivo abandono da área a partir de garantir a perpetuação da integridade
da década de 1950, quando ocorreu o do espaço nos moldes da tradição judai-
último enterramento. Benathar (2015) ca (Benathar, 2015). Motivações familiares
Claudia Cunha, Fernando Marques, Diego Fonseca, Cássia Benathar, Elton Farage, Helena Lima, Alegria Benchimo
Figura 5. Túmulo de indivíduo não adulto (T15) onde é possível observar a argamassa de as-
sentamento da lápide hoje ausente.
lápide, e, por fim, outros em tijolo maci- familiares ou, na ausência deles, da Che-
ço ou vazado com argamassa e cobertos vra Kadisha a colocação de uma lápide
por lápide (C). A maioria das lápides foram (a matzvat kvurat) em que são escritos o
feitas em mármore, exceto a do T25, exe- nome do falecido e fórmulas dogmáticas
cutada em material lítico não identificado. de encomenda da alma do morto. Às ve-
Os túmulos 10 e 11 parecem apontar para zes são incluídos o nome do pai, mãe ou 155
uma cronologia mais recuada no que se esposo, e dados biográficos restritos. A
refere ao material construtivo. Além de colocação desta lápide é obrigatória após
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claramente mais degradados que os de- o Shivá (período do luto). A cerimônia de
mais, são ambos construídos com tijolos dedicação da lápide ocorre na maior par-
maciços e artesanais sem evidência de te dos casos um ano após a morte, salvo
produção industrializada. exceções prescritas no ritual que podem
O tipo mais frequente de tumula- alterar essa data. Cinco túmulos (núme-
ção, Tipo C (15/29), corresponde à forma ros 16, 20, 22, 23 e 29) são uma variação
canônica de inumação judaica: sepulcro do tipo C: não têm lápide em pedra, mas
coberto com lápide com inscrições. Se- possuem inscrição dedicatória em arga-
gundo o Talmude, é responsabilidade dos massa. Apesar do mau estado de con-
Figura 6. Tipologia dos túmulos identificados. Da esquerda para a direita, túmulos 11 (tipo A),
8 (tipo B) e 12 (tipo C).
servação, ainda é possível ler a inscrição Esta serviria de base para a lápide. Não
Matzvat Kvurat (Lápide do Túmulo) em existe evidência de que algum desses
duas delas (T16 e T23) apesar de a priori cinco túmulos tenha recebido a matzvat.
as respectivas matzevot não estarem lá. Foi possível coletar dados biográ-
Dentro do tipo mais comum de se- ficos da maioria dos túmulos (20/29,
156 pulcro no CJG (Tipo C), o formato mais 68,9%) com base em inscrições tumula-
frequente é um tumulus com ou sem res. A maioria destas (13/20, 65%) estão
lápide em forma geométrica composta em hebraico apenas (Figura 7), o que
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por um trapézio encimado por um semi- condiz com a tradição talmúdica de op-
círculo na cabeceira. tar apenas pela língua oficial religiosa.
Os túmulos 12 e 13 apresentam um Cinco lápides (25%) apresentam inscri-
padrão construtivo mais básico prescrito ções tanto em português quanto em
pelo Talmude e que consiste em marcar hebraico (Figura 8). Os túmulos 20 e 22
a extensão da cova com pedras. Já os contrariam o dogma religioso ao não
túmulos 06, 10 e 11 são construídos se- usar a língua canônica judaica.
guindo uma lógica mais elaborada, que O túmulo 20 é uma exceção no ce-
é a construção de uma estrutura tumular mitério e uma contradição às regras do
em alvenaria para o período após Shivá. Talmude. Apesar de o enterro judaico ser
normativamente individual, este sepul-
cro apresenta a inscrição de nomes de 6
indivíduos. As inscrições em argamassa
estão parcialmente apagadas por dete-
rioração do material, mas ainda é possí-
vel ler o nome de, pelo menos, dois indi-
víduos do sexo feminino — Clara (sobre-
nome ilegível) e Nilba Serfaty, e quatro
outros indivíduos do gênero masculino
com sobrenomes de diferentes famílias
(Isaac Elarrat, Jacob Brrosel[?], Ioshua
Asar) e um último indivíduo cujo nome
aparece bastante danificado e pratica-
mente ilegível (Jomsel[?] Lahodes[?]).
No CJG, foram identificados sobre-
nomes correspondentes a 12 famílias:
El-Rrarat, Elarat (n=2); Sanani (n=1); Sicsu
Figura 7. Detalhe da inscrição dedicatória do (n=3); Levy (n=2); Azancot (n=1); Serfaty
T27, escrita apenas em hebraico conforme ou Serfati (n=4); Ben-Atar ou Benathar
dogma talmúdico.
(n=3); Castiel (n=1); Peretz (n=1); Brrosel
(n=1); Lahodes (n=1); Cohen (n=1).
As dificuldades da vida no interior
do Pará no final do século XIX e início do
século XX transparecem em alguns adje-
tivos usados em inscrições para se referi- 157
rem a certos indivíduos com “malogrado”
(T02, T04, T18, T24, T25) ou “sofrido” (T17).
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Os registros cartoriais mencionam alguns
óbitos expectáveis por doenças infeccio-
sas tropicais. A “sofrida” Sol Benathar, que
agora sabemos estar inumada no túmu-
lo 17, teve uma história de vida marcada
por tentativas de gerar uma menina em
vão (Benathar, 2015), tendo concebido
somente meninos: Menarrem, “o jovem,
o malogrado” (T18), Jacob Marcos (T25) e
um inocente1. Natimortos e óbitos de ges-
tantes em parto não eram incomuns na
comunidade.
Às dificuldades no que se refere aos
cuidados de saúde naquele ponto isolado
do território soma-se a rejeição social. O
judeu era para o geral da população o dei-
cida, o errante, o usurário, a pessoa nefasta
(Benchimol, 2009). Algumas das famílias
judaicas, como os Aben-Athar e Castiel,
prósperas financeiramente, sofriam com
o isolamento, agressões, resultando em
casos de depressão em alguns indivíduos
e na ruptura da estrutura familiar com
membros que, fugindo à pressão local,
iam embora sem nunca mais regressar,
nem mesmo pela ocasião do falecimento
dos familiares (Benathar, 2015).
Figura 8. Lápide do T25 com dedicatória es-
1
crita em hebraico e português. Consta no registro de nascimento a expressão inno-
cente, isto é, criança que morre logo ao nascer. Registro
de Nascimento. Termo: 167/168. p. 93. Ano 1890.
Em 1948, ao abordar o modo de derando-se que: (I) existe um túmulo pro-
viver em Gurupá, o antropólogo ame- vavelmente coletivo (T20) em que estão
ricano Charles Wagley relata pela ótica inscritos nomes de 6 indivíduos e que (II)
de seus interlocutores judeus como se- 9 túmulos (9/29, 31%) não trazem inscri-
ria o panorama na primeira metade do ções lapidares, podemos inferir um total
século XX: regozijo nos dias prósperos de 25 indivíduos identificáveis, sendo
158
durante o Ciclo da Borracha, as dificul- que 8 destes (32%) são do sexo feminino
dades de vida em condições precárias (concentrados de forma geral na metade
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com curiosidade pela comunidade do empregados na construção de quase to-
entorno que descreve algumas peculia- dos (exceto o T06) são de proveniência
ridades previstas em leis talmúdicas nos local e de fácil aquisição. Não há uso de
ritos funerários de Jacob Marcos Benathar argamassa industrializada em nenhum
(T25) e Simão Benayon. Estes manifesta- deles e nem qualquer evidência mate-
ram aos familiares em vida como deve- rial de colocação da matzeivá, elemento
riam ser enterrados, mesmo num contex- fundamental do sepultamento judaico.
to em que a comunidade judaica de Gu- Há algumas explicações possíveis para
rupá já estava em franco desprendimento esta ausência: as famílias desses cinco in-
das suas tradições (Benathar, 2015). divíduos abandonaram a cidade pouco
Nas lápides que passaram pelo pro- após os enterros, não completando o ri-
cesso de tradução, não foi possível iden- tual, ou não tiveram condição financeira
tificar o túmulo de Simão Benayon. Entre- de o fazer; ou a Chevra Kadisha em fase
tanto, mediante as informações fornecidas inicial não dispunha do conhecimento
pela família sobre os costumes judaicos mais aprofundado do dogma. A hipó-
deste, a ausência de sua matzvat no ce- tese financeira é pouco provável. Como
mitério pode ser atribuída à carência de os túmulos 16, 20, 22, 23 e 29 provam,
informação do procedimento funerário mesmo na ausência da lápide, formas
por parte dos familiares então vivos, todos alternativas de inscrições eram aplicadas.
já convertidos ao cristianismo. Os irmãos O túmulo 20 é uma ocorrência inusi-
do morto, Jacob e Salomão, ambos prati- tada no cemitério e, se de facto contém
cantes do judaísmo já não estavam mais seis indivíduos, contradiz o dogma tal-
vivos, e, ao que se sabe, já não havia mais múdico da inumação individual3. Duas
judeus nesta região. É possível afirmar que, hipóteses podem explicar suas inscri-
com a morte de Marcos Benathar e Simão ções: uma seria a transladação de mortos
Benayon, e com a partida de Gurupá da sepultados em um cemitério não judaico
família Castiel, se encerra o uso do espaço para o CJG como previsto na lei rabínica.
cemiterial como ditado pelas tradições tal-
múdicas no início da década de 1950. 3
Rabino Moisés Elmescany, comunicação pessoal
21/11/2017.
160
Claudia Cunha, Fernando Marques, Diego Fonseca, Cássia Benathar, Elton Farage, Helena Lima, Alegria Benchimo
Contudo, ao serem reenterrados, seria entre 1886 e 1950. Existem túmulos judai-
expectável que o fizessem em diferentes cos na comunidade do Carrazedo (Bena-
túmulos ou que, pelo menos, ficassem re- thar, 2015) e relatos orais foram recolhidos
gistradas várias datas referentes aos dife- sobre um terceiro cemitério do mesmo
rentes óbitos. Uma segunda hipótese seja período que existiria na comunidade do
a de que o túmulo contenha apenas um Moju, à margem do rio homônimo na
indivíduo (morto em 28/08/1915) e que Ilha Grande de Gurupá. Fontes primárias
os demais nomes se refiram a pessoas atestam a presença de várias famílias ju-
conhecidas do morto cujos corpos não daicas nesta comunidade entre finais do
puderam ser recuperados após o óbito. século XIX e primeiras décadas do século
Este tipo de enterro simbólico é dispen- XX (Benathar, 2015). Devido ao alto grau
sado, por exemplo a vítimas de grandes de destruição do Cemitério de Santo An-
tragédias cujos corpos por algum motivo tônio, é impossível saber se haveria algu-
não estão disponíveis para o ritual4. ma área segregada para enterramentos
Os mortos inumados no CJG não cor- judaicos no seu interior. As informações
respondem à totalidade de óbitos de in- disponíveis da pouca cultura material pre-
divíduos judeus do município de Gurupá sente no cemitério cristão apontam para
seu uso contemporâneo à necrópole ju-
4
Rabino Shamai Ende, Sinagoga Ieshivá Tomchei
daica, mas a história oral local sugere que
Tmimim Lubavitch Ohel Menachem, São Paulo.
Informação disponível em: http://pt.chabad.org/li- seu início como espaço funerário seria
brary/article_cdo/aid/3418520/jewish/A-Colocao- anterior. De qualquer forma, seguindo a
-da-Matsev.htm.
tradição talmúdica, é possível que tenha parte da comunidade judaica de Gurupá
havido muitos enterramentos particula- tenha aderido a esta diáspora e isto te-
res, principalmente na zona rural. nha contribuído para o declínio do uso
A cronologia relativa do CJG ofereci- de cemitério.
da pelas inscrições tumulares sugere uma Com a desestruturação da comuni-
média de 4,75 enterramentos por década dade e provável perda de membros fun- 161
entre 1886 e 1929 (embora este número damentais para sua malha religiosa, os
tenha sido maior se considerarmos as lá- judeus remanescentes, muitos filhos de
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pides sem inscrições e os túmulos ainda uniões entre judeus e cristãos (Benathar,
por evidenciar). Contudo, entre 1930 e 2015) foram aos poucos abandonando
1949 não aparece nenhum registro ma- a fé dos seus ancestrais. Evidência deste
terial de enterramento entre as lápides abandono é a existência na cidade de
datadas, sendo de 1950 o último ainda integrantes de algumas famílias original-
identificável. Várias razões podem estar mente judaicas (nomeadamente Bena-
relacionadas ao pouco uso do espaço nas thar, Sicsu e Benayon) os quais, apesar de
décadas de 1930 e 1940 e seu abandono valorizar sua herança cultural familiar, já
na década seguinte. As principais são de não praticam mais o judaísmo. A adoção
cunho econômico, social e religioso. da fé cristã por essas famílias contribuiu
Benchimol (1998), embora ressalte a para o desuso do CJG.
importância das comunidades judaicas O abandono da fé judaica nes-
enquanto pioneiras na interiorização do sas famílias, implicou num abandono
comércio e consequente prosperidade da língua hebraica e, com a morte dos
para o interior do Pará e mais especifi- mais velhos que ainda a dominavam, os
camente para o Baixo Amazonas, admi- túmulos cujas dedicatórias estão nesse
te que estas falharam em produzir uma idioma foram caindo no esquecimento.
cadeia produtora de bens e serviços Apesar dos moradores atuais que têm
duradoura e sustentável. Quando a con- sobrenomes judaicos relatarem que seus
corrência da borracha asiática atinge de “parentes” ou “ancestrais” estão lá enter-
forma dramática o mercado local, toda a rados, apenas são de facto identificados
rede comercial judaica no interior colap- como ancestrais reconhecidos e declara-
sa e com ela colapsam as comunidades dos aqueles cujos nomes aparecem em
judaicas, gerando um novo êxodo, desta alfabeto latino.
vez do interior para as grandes cidades O Cemitério Judaico de Gurupá per-
amazônicas (Belém e Manaus) ou outros manece como evidência material da his-
centros urbanos em regiões economi- tória dos judeus no interior da Amazônia.
camente mais viáveis. É expectável que, Mais do que isso, é um símbolo e um ele-
com o fim desse ciclo econômico, uma mento do imaginário popular sobre uma
época vista como dourada para a histó- Referências bibliográficas
ria local. Para além do mistério das suas
lápides em língua estrangeira, ele é em Benathar, C. L. L. 2015. História e memória de
si a materialização da presença de um Judeus em Gurupá: um estudo de caso a
povo misterioso mesmo para aqueles partir dos Aben-Athar (1890–1900). Traba-
162 que trazem os sobrenomes escritos nos lho de conclusão de curso. Faculdade de
túmulos do local. Sua preservação é uma História, Instituto de Filosofia e Ciências
incógnita e depende muito da ação de Humanas, Universidade Federal do Pará.
Claudia Cunha, Fernando Marques, Diego Fonseca, Cássia Benathar, Elton Farage, Helena Lima, Alegria Benchimo
alguns moradores do local e dos poucos Benchimol, S. 1998. Eretz Amazônia — os Ju-
familiares que ainda se identificam com deus na Amazônia. Manaus, Valer.
seus ocupantes. Benchimol, S. 2009. Amazônia — formação
social e cultural. 3.ª ed. Manaus, Valer.
Agradecimentos Bloch-Smith, E. 1992. Judahite burial practices
and beliefs about the dead. JSOT/ASOR
Os trabalhos de campo acontece- Monograph Series. JSOT Press, Sheffield.
ram no âmbito do sítio-escola interna- Falbel, N. 2008. Judeus no Brasil — estudos e
cional de Arqueologia do Museu Paraen- notas. São Paulo, EDUSP.
se Emílio Goeldi por meio do projeto Hachlili, R. 2005. Jewish funerary customs,
Origens, Cultura e Ambiente (OCA), em practices and rites in the Second Temple
cooperação com a Middle Tennessee Period. Leiden, Brill.
State University. O trabalho de campo Lima, T. A. 1994. De morcegos e caveiras a cru-
contou com a inestimável ajuda dos zes e livros: a representação da morte nos
estudantes de Arqueologia deste sítio- cemitérios cariocas do século XIX (estu-
-escola e de jovens voluntários da comu- do de identidade e mobilidade soclais).
nidade alunos das escolas locais. Nossos Anais do Museu Paulista, 2(1): 87–150. DOI:
agradecimentos vão também para os 10.1590/S0101-47141994000100010.
cidadãos de Gurupá que contribuíram Meira, M. A. F. 2017. A persistência do aviamen-
com valiosas informações e para as au- to: colonialismo e história indígena no
toridades locais que apoiam as iniciativas Noroeste Amazônico. Tese apresentada
de pesquisa no município, principalmen- ao Programa de Pós-Graduação em Me-
te à Sra. Raimunda Vieira Carvalho, antiga mória Social (PPGMS), Centro de Ciên-
zeladora do cemitério e vizinha deste há cias Humanas e Sociais, Universidade
mais de 70 anos. Agradecemos a ajuda Federal do Estado do Rio de Janeiro.
do Rabino Moisés Elmescany e sua espo- Moreira, E. 1989 [1972]. Obras reunidas de Ei-
sa que tão prestativamente acolheram dorfe Moreira — presença hebraica no
nossas perguntas sobre o tema. Pará. Vol IV: 9–32. CEJUP.
Programa Lugares da Memória. 2015. Cemitério
israelita do Butantã. Memorial da Resis-
tência de São Paulo, São Paulo. Disponível
em: http://docplayer.com.br/85011912-
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