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Matzevot kevurah esquecidas

— resgate etnoarqueológico do
Cemitério Judaico de Gurupá, Pará, Brasil
Forgotten Matzevot kevurah 141
— ethnoarchaeological research of the
Jewish Cemetery in Gurupá, Pará, Brazil
Claudia Cunha1,2a*, Fernando Marques3, Diego Fonseca4, Cássia Benathar,
Elton Farage5, Helena Lima3b, Alegria Benchimol3c

Resumo O Cemitério Judaico de Gurupá, no Abstract The Jewish Cemetery of Gurupá,


Pará, esteve em uso entre a segunda metade in Pará, Brazil, was used as the burial ground
do século XIX e a primeira metade do século for the local Jewish community between the
XX como local de sepultamento da comuni- second half of the 19 th century to the first
dade judaica local, estabelecida na região por half of the 20 th century. Having established
conta do comércio a retalho que teve seu auge commercial enterprises in the region during
durante o Ciclo da Borracha. Com o fim deste, o the Amazon Rubber Boom, the community
êxodo de grande parte das famílias praticantes collapsed along with that market in the early
do judaísmo, a consequente desestruturação 1900s. After that, immigration of most prac-
desta comunidade e a conversão dos rema- ticing Jewish families and the conversion of
nescentes ao cristianismo, o cemitério entrou the remaining ones to Christianism led to the
em desuso. As lápides, em sua maioria escritas abandonment of the space. The meaning of
em hebraico, perderam significado com a mor- its headstones was lost as the Hebraic spea-
te dos mais velhos ainda falantes do idioma. O king elderly died. The main objective of this
trabalho aqui apresentado envolveu a limpeza study was the recovery of information on the
do espaço cemiterial e dos túmulos, o regis- cemetery and on the community it served.
tro gráfico e fotográfico do espaço, a tradução This work consisted of the cleaning of the

1 Centro de Ciências da Natureza — Universidade Federal do Piauí, Brasil.


2 CIAS — Centro de Investigação em Antropologia e Saúde, University of Coimbra, Portugal.
3 Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém, Pará, Brasil.
4 Universidade Federal do Pará, Belém, Pará, Brasil.
5 Associação Nacional dos Oceanógrafos, Balneário Camboriu, Santa Catarina.
a
orcid.org/0000-0002-5073-1704; b orcid.org/0000-0001-5787-7231; c orcid.org/0000-0003-0920-992X
* Autor correspondente/Corresponding author: claudiacunha@ufpi.edu.br

Antrop. Port. 2019, vol. 36: 141-163 • http://doi.org/10.14195/2182-7982_36_7


Artigo recebido: 21 de junho de 2018 – Aceite: 16 de outubro de 2018/ Received: June 21th 2018 – Accepted: October 16th 2018
das suas lápides e a recolha de informações space and the tombs, data collection and
orais junto à comunidade com o objetivo de translation of the dedications on the heads-
resgatar parte da memória do espaço e da co- tones; graphic and photographic register of
munidade à qual ele servia. O estudo revelou the space and collection of the oral history
aspectos inéditos da Antropologia Funerária of the place among people living in Gurupá.
de uma comunidade judaica na Amazônia e Main results included new data on the Fu-
142 do seu esforço na manutenção das tradições nerary Anthropology of this community and
hebraicas apesar do isolamento. their struggle to keep their traditions in the
isolation of the Amazon jungle.
Claudia Cunha, Fernando Marques, Diego Fonseca, Cássia Benathar, Elton Farage, Helena Lima, Alegria Benchimo

Palavras-chave: Cemitério; Judeus; Ciclo da Keywords: Cemetery; Jewish; Amazon Rub-


Borracha; etnoarqueologia. ber Boom; ethnoarchaeology.

Introdução nhuma riqueza) e uma maldição a quem


o profanar. A frase, perdendo seu caráter
A expressão “Matzavtot Kvurat” (pe- de advertência original é atualmente
dra do túmulo, no plural “Matzevot kevu- entendida como parte da fórmula Tal-
rah”) seguida pelo nome do ocupante múdica para garantir que a memória do
do túmulo encima todas as lápides ins- morto não será esquecida. Este trabalho
critas em hebraico e ainda legíveis do tem como objetivos principais (I) res-
Cemitério Judaico de Gurupá (CJG), Pará. gatar parte do que foi esquecido sobre
Esta introdução à dedicatória do túmulo um espaço funerário hoje não mais uti-
é empregada com pequenas variações lizado na região do Baixo Rio Amazonas;
desde pelo menos o Período do Segun- (II) contextualizar a presença judaica em
do Templo (530 AEC–70 EC) no território Gurupá e, (III) usando a perspectiva da Et-
hoje ocupado por Israel (Hachlili, 2005), noarqueologia cemiterial, levantar infor-
mas que tem raízes ainda mais antigas mações sobre o CJG e seus ocupantes.
na região da Judeia. Bloch-Smith (1992) Segundo Moreira (1989), a presença
atribui seu uso em túmulos da Idade do judaica no Estado do Pará (Brasil) é ates-
Ferro (século VII AEC) a uma estratégia tada em documentação oficial desde o
para inibir saqueadores. Normalmente início do século XVIII, embora de forma
a frase seguida do nome do dono do dispersa e pouco numerosa. Na maior
túmulo aparece acompanhada de uma parte dos casos, os indivíduos aparecem
advertência (a de que o túmulo contém nos documentos oficiais e crônicas do pe-
apenas os ossos de seu ocupante e ne- ríodo como “cristãos-novos” ou, em situa-
ções depreciativas, com epítetos negati- provocaria a expulsão de judeus dessas
vos atribuídos a praticantes do então cri- regiões num segundo fluxo migratório
me de judaísmo. De uma maneira geral, a para o Pará. Já no início do século XX,
perseguição religiosa do período acabou seguiu-se a esse um terceiro movimento
gerando a figura do criptojudeu, osten- de famílias asquenazes (judeus alemães,
tando uma persona social cristã mesmo poloneses e de países do Leste Europeu 143
que em privado ainda praticasse a sua de língua ídiche). Uma quarta leva mi-
religião (Moreira, 1989; Benchimol, 2009). gratória era composta por foinquinitas

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A maioria dos criptojudeus ou cristãos- provenientes da Turquia, Líbano, Síria e
-novos provinham de Portugal e Espanha, Egito (Benchimol, 1998; 2009).
os megorashim (exilados ou expulsos da A economia da comunidade judai-
Ibéria) (Moreira, 1989). Como em outras ca de Belém detinha-se principalmente
regiões do Brasil, estes haviam aqui che- no comércio, com o estabelecimento de
gado não como componentes de gran- grandes casas comerciais familiares já no
des levas migratórias, mas individualmen- início do século XIX. Os imigrantes tosha-
te ou em pequenos grupos familiares no vim magrebinos, na sua maioria homens
século XVII e teriam procurado integrar de jovens solteiros e posteriormente suas
forma discreta a população local, abando- famílias, foram integrados à vida econô-
nando as evidências externas ou públicas mica da comunidade na forma de vende-
da sua fé (Moreira, 1989; Falbel, 2008). dores, regatões que achavam na interiori-
Durante o século XVIII e início do zação oportunidades comerciais levando
XIX, a maior parte do contingente mi- produtos das “casas aviadoras” judaicas da
gratório viria do Norte da África — par- capital para o interior e trazendo produ-
ticularmente do Magreb, os toshavim tos do extrativismo com destaque para
(forasteiros), originalmente falantes de as drogas do sertão e posteriormente a
árabe e berbere, com predominância de borracha (Moreira, 1989). Neste contexto,
marroquinos. Para além da fuga às perse- os judeus se engendravam em uma com-
guições religiosas, estes buscavam novas plexa rede social de comércio a crédito, o
oportunidades de fazer dinheiro na Ama- chamado sistema de aviamento, enraiza-
zônia (Moreira, 1989; Benchimol, 1998; do em vários territórios da bacia amazô-
2009). Considerando-se o caráter indivi- nica no século XIX (Meira, 2017: 94).
dual da presença judaica durante o Brasil Na região do Baixo Amazonas, locali-
Colônia, os autores referidos assumem dades mais populosas acabaram concen-
como primeira leva migratória de facto o trando comunidades judaicas compostas
fluxo vindo do Magreb a partir do sécu- inicialmente por regatões e suas famílias
lo XVIII. Posteriormente, a anexação das trazidas de Belém, que fizeram da sede
regiões da Alsácia e Lorena à Alemanha do município de Gurupá e de outras lo-
calidades do Baixo Amazonas entrepos- monarquia secular contribuíram para um
tos comerciais entre a capital e o interior aumento migratório judaico para a Ama-
(Benchimol, 2009). Na segunda meta- zônia (Benchimol, 2009) e para uma cres-
de do século XIX, mais da metade dos cente liberdade religiosa, o que resultou
grandes comerciantes em Gurupá eram na criação de suas casas de orações, que
144 judeus (Moreira, 1989). Os registros carto- mais tarde tornar-se-iam as primeiras
riais locais apontam para um grande fluxo sinagogas de Belém, respectivamente a
comercial e aquisição de extensas pro- Essel (Eshel) Abraham (em 1823 ou 1824)
Claudia Cunha, Fernando Marques, Diego Fonseca, Cássia Benathar, Elton Farage, Helena Lima, Alegria Benchimo

priedades rurais por judeus. Muitas dessas e a Shaar Hashamain, cuja data de fun-
casas comerciais estavam nos lugares de dação enquanto sinagoga é controversa,
extração da borracha, eram os chamados mas deve ter acontecido entre 1826 e
‘barracões’. O “comércio de aviação”, do 1835 (Benchimol, 1998; 2009). Remete a
qual os comerciantes judeus faziam parte, este período o surgimento do primeiro
abastecia as localidades interioranas de cemitério hebraico na capital do Estado,
produtos industrializados (como quero- a Necrópole Israelita na Avenida Serze-
sene, tecidos, ferramentas, etc.) e levava delo Corrêa (Moreira, 1989).
os produtos da floresta (entre eles a bor- O dogma talmúdico exige que o
racha) para os centros urbanos maiores praticante do judaísmo siga uma série de
(Meira, 2017). A sede do município de regras não apenas em vida. Estas regras
Gurupá funciona até hoje como merca- sofrem pequenas variações não apenas
do abastecedor do comércio para outras diacrônicas mas também culturais, resul-
localidades menores em seu território ou tantes na maior parte dos casos de inter-
mesmo municípios vizinhos. pretações rabínicas diferentes do texto
As perseguições religiosas promo- talmúdico por linhas filosóficas diversas
vidas pela Inquisição Portuguesa que se dentro do judaísmo. Ao morrer, o indi-
faziam sentir também na colônia inibiam víduo é sujeito a um longo e complexo
a articulação comunitária judaica e a ex- tratamento funerário que se encerrará, na
pressão da sua identidade. Este cenário sua face pública, cerca de um ano após a
sofreria mudança gradual em direção à morte e, na sua face privada ou familiar,
liberalização progressiva do culto judai- prolongar-se-á para além disso, com re-
co e gradual assimilação à sociedade na- gras de observância à memória do morto
cional apenas a partir do último quartel por aqueles que em vida lhe foram mais
do século XIX (Falbel, 2008). próximos a nível familiar. As diretrizes
A abertura dos portos em 1808, a descritas pelo Talmude sofrem pequenas
extinção da Inquisição Portuguesa em diferenças dentro das várias correntes
1821, a Independência do Brasil em 1822, do judaísmo, mas, em geral, incluem um
e, posteriormente, a instauração de uma período entre o falecimento e o enterro
(Aninut) em que a família faz os prepara- judaico na localidade, a inumação tradi-
tivos para o funeral e executa a purifica- cional, como vários aspectos da cultura,
ção do corpo (Tahará). Esta primeira fase busca soluções de compromisso com a
pode ser exclusivamente de responsabili- fé oficial de forma a manter-se o máximo
dade familiar, mas, no caso de judeus que possível de acordo com o dogma. Nestes
vivem em comunidades urbanas, é quase casos, o enterro é permitido como defi- 145
sempre compartilhada com a Chevra Ka- nitivo se cumpridas algumas regras: todo
disha local (associação religiosa encarre- o lote onde está a sepultura ou sepultu-

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gada de ações relacionadas com as ceri- ras deve ser comprado em uma área ain-
mônias fúnebres da comunidade). O en- da vazia do cemitério e cercado de forma
terro é, da mesma forma, controlado pelo a constituir um terreno próprio separado
dogma, desde as orações que são ditas à (Programa Lugares da Memória, 2015).
procissão fúnebre, quantas e quais pes- Surgem assim espaços reservados para
soas podem atender à cerimônia e onde enterramentos judaicos, como acontece
o morto pode ser inumado. Neste caso, no cemitério Anglicano em Belém, pou-
vale a pena ressaltar que é vedado que co anterior à primeira necrópole israelita
o morto seja enterrado em local público. local (Moreira, 1989). No caso de inuma-
Assim, o espaço funerário é uma proprie- ções em cemitérios cristãos ou ecumêni-
dade particular do falecido ou família ou cos, é permitida a exumação dos restos
é um lote comprado no cemitério local mortais para reenterro em um cemitério
administrado pela Chevra Kadisha. Na au- judaico posteriormente.
sência de familiares, é esta instituição que O interesse em trabalhar no sentido
se encarrega dos preparativos, do enterro de resgatar parte da história da comuni-
e dos procedimentos posteriores a este dade judaica preservada na necrópole
(Tzippel, 2012). É reforçada pelo dogma aqui discutida foi despertado nos auto-
talmúdico a necessidade de simplicidade res pela constatação do estado de aban-
e uniformidade nas estruturas funerárias dono e esquecimento desta estrutura
em um cemitério judaico. Não são per- urbana por parte da comunidade local.
mitidos adornos elaborados ou túmu- Quatro dos autores (CC, CB, EF e AB) têm
los suntuosos e é determinado que sua também ligações afetivas, religiosas, ét-
construção siga a tradição local, de forma nicas e/ou familiares com o espaço e
a que um não se sobressaia a outro. As- seus ocupantes.
sim, a escolha de materiais e as soluções
construtivas tendem a ser relativamente Materiais e métodos
uniformes.
Em contextos de repressão à fé ju- Neste trabalho, optou-se por uma
daica ou na inexistência de um cemitério abordagem não invasiva e conservado-
ra dentro dos preceitos do Talmude, que rui (Rodovia dos Trabalhadores), atual-
defende a não violação do túmulo após mente na periferia da sede municipal de
a inumação, exceto em situações excep- Gurupá (Figura 1).
cionais e com autorização rabínica. A primeira notícia formal da existên-
O Cemitério Judaico de Gurupá cia deste sítio é dada por um trabalho
146 (CJG), com uma área murada de 298 m2, monográfico sobre a História dos Judeus
fica localizado na Rodovia Gurupá-Pucu- em Gurupá (Benathar, 2015). Na mesma
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Figura 1. Localização da cidade de Gurupá e do Cemitério Judaico em relação à malha urbana


e desta em relação ao Arquipélago do Marajó e do Brasil.
rua que o CJG, a 150 m, está localizado 2015), encontra-se parcialmente aban-
o que resta do Cemitério de Santo Antô- donado pela comunidade (Figura 2),
nio, segunda necrópole cristã da cidade. com o poder público efetuando apenas
Apesar de bastante afetado por vanda- a poda da vegetação sazonalmente por
lismo, roubo de materiais construtivos e questões de segurança pública. Ocasio-
avanço da urbanização, as poucas lápi- nalmente, o espaço é usado para depó- 147
des ainda presentes apontam para o seu sito de lixo clandestino e como local de
uso no século XIX, ou seja, contemporâ- consumo de drogas lícitas (álcool princi-

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neo à necrópole judaica. A localização de palmente) e ilícitas.
ambos é condizente com a legislação em Ao início do trabalho, ervas dani-
vigor desde o início do século XIX, que nhas cobriam parcial ou completamente
determinava a localização de cemitérios alguns túmulos e havia grande quanti-
nos arredores das cidades por questões dade de lixo acumulado no espaço do
de higiene e saúde pública (Reis, 1991). cemitério. Os túmulos encontravam-se
O espaço, que pertence formalmen- tomados por colônias de líquenes e em
te ao Centro Israelita do Pará (Benathar, alguns casos semienterrados. Devido ao

Figura 2. Vista parcial do cemitério antes da intervenção.


estado de conservação do cemitério, foi uma problemática específica. Neste tra-
necessária a implementação de medidas balho, tentamos compreender práticas
de limpeza da área intramuros e dos tú- funerárias e dinâmicas sociais judaicas
mulos em si de forma a possibilitar o re- a ela relacionadas na cidade de Gurupá,
gistro e análise. Para o procedimento de Pará, Brasil, no final do século XIX e iní-
148 limpeza das lápides utilizou-se apenas cio do século XX. Faz-se isso a partir da
água e escovas de nylon. Colaboraram conciliação de aspectos da Antropologia
na limpeza dos túmulos alunos de Ar- Funerária e cultura material relacionada
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queologia e voluntários da comunidade, com os espaços dos mortos (nomeada-


principalmente crianças e jovens alunos mente estruturas e espaços funerários)
das escolas locais, sob supervisão dos ar- e o etnoconhecimento local sobre esta
queólogos no terreno (CC, FM e DF). parcela da comunidade.
Tendo em vista que «os jazigos cons- A abordagem de recolha de dados
tituem artefatos datáveis com precisão, em campo consistiu em: (I) registro grá-
já que nas lápides tumulares ficam em fico e fotográfico do sítio antes, durante
geral impressas as datas de nascimento e e após a intervenção; (II) análise das es-
falecimento dos indivíduos que aí foram truturas funerárias abrigadas no espaço
enterrados» (Lima, 1994: 89), utilizou-se intramuros (técnicas construtivas, mate-
as datas dos túmulos para construir uma riais empregados, distribuição espacial);
cronologia de uso do espaço cemiterial e (III) coleta de dados biográficos a partir
assim tornar possível uma confrontação das inscrições dedicatórias em lápides,
perante a documentação histórica sobre com posterior tradução daquelas cujo
os judeus em Gurupá e também à história texto está em hebraico, e por fim, (IV)
oral recolhida junto aos moradores locais. coleta de informações orais com os mo-
Considerando-se que este é um sí- radores do entorno do cemitério.
tio de cariz funerário judaico, desenhou- Documentação primária foi consul-
-se uma abordagem etnoarqueológica tada nos arquivos históricos locais, prin-
não invasiva do cemitério enquanto cipalmente os pertencentes ao Cartório
sítio arqueológico Contemporâneo. A Lobato de Único Ofício de Gurupá.
Etnoarqueologia, amplamente utilizada
na Amazônia para responder a questio- Resultados
namentos sobre sociedades indígenas
do passado através do estudo dos seus Foram identificados até o momento
congêneres contemporâneos (Silva, 29 túmulos (Figura 3 e Tabela 1) em uma
2009), tenta conciliar dados etnográficos área murada ligeiramente trapezoidal.
recolhidos junto a populações atuais e Este número não corresponde ao total de
evidências arqueológicas para abordar tumulações no sítio, uma vez que podem
existir campas soterradas, principalmente mites do conjunto de túmulos poderiam
na sua porção Leste e Sudeste onde há verificar esta hipótese.
acúmulo de aterro e restos de vegetação. O muro do cemitério em cimen-
Existe uma discordância entre a orienta- to e alvenaria apresenta evidências de
ção geral da distribuição dos túmulos e o períodos construtivos distintos. O lado
traçado do muro atual, estando este con- Sul e quase todo o lado Oeste são mais 149
junto em um bloco disposto em diagonal antigos do que os demais e devem cor-
em relação ao espaço murado. Não há responder a parte do cercado construído

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evidências à superfície de um muro limi- provavelmente na década de 1930, du-
tando este bloco de estruturas, porém há rante a administração de Jacob Marcos
que se pensar na possibilidade de haver Benathar enquanto intendente de Guru-
existido uma cerca circunscrevendo o es- pá (posteriormente inumado no túmulo
paço original. Apenas escavações nos li- 25 do CJG). A parede Norte é mais recen-

Figura 3. Configuração atual do CJG e distribuição dos túmulos no espaço intramuros.


Tabela 1. Túmulos identificados no CJG. Em itálico, inscrições em português.
n.º Tipo a Nome Dedicatóriab Óbito
c
Lápide de Túmulo/ Iosef El-Rrarat/ N”LBO ,
1 A Iosef El-Rrarat dia 23 do mês de/ AV Rarraman ano de 02/08/1896
5656/ LP”Kc
Lápide de Túmulo/ (D)o jovem malogrado
150
2 A Itzrak Sanani Itzrak/ Sanani, N”LBOc dia 18/ Do mês de 13/05/1906
IAR, ano/ 5666/ LP”Kd
Claudia Cunha, Fernando Marques, Diego Fonseca, Cássia Benathar, Elton Farage, Helena Lima, Alegria Benchimo

Lápide de Túmulo/ Avraham Sicsu/ N”LBOc


3 B Avraham Sicsu dia 06 do mês de Elul/ Ano 5646/T ” N TZ 06/09/1886
B He
Lápide de Túmulo/ (D)o jovem/ malogra-
4 A Itzrak Sicsu do/ Itzrak Sicsu/ N”LBOc dia 20 do mês de 25/02/1886
adar 01/ Ano 5646/ LP”Kc
Lápide de Túmulo/ O jovem Yhuda Sicsu/
5 A Yhuda Sicsu N”LBOc [trecho ilegível]/ 15 do mês de 26/11/1901
kislev/ Ano 5662/ T” N TZ B Hd
6 B Sem suporte para inscrição
Suporte para inscrição destruído ou au-
7 A
sente
Lápide de Túmulo/ (d)o idoso, correto/
temente a Deus, Moshê/ o Levy, filho de
8 A Moshê Levy 16/10/1893
Itzrak, N”LBOc/ dia 06/ do mês de chesvan/
ano 5654
Lápide de Túmulo/ (d)o idoso, correto/
Morderray/ Azancot, filho de yakov/ E
Morderray
9 A aconteceu seu descanso / (No) dia 18 do 24/01/1886
Azancot
mês / Shevat no ano/ 5646, LP”Kd/ T ” N TZ
B He
10 A Sem suporte para inscrição
11 A Sem suporte para inscrição
12 C Sem suporte para inscrição
13 C Sem suporte para inscrição
Lápide de Túmulo/ (D)a senhora,/ a respei-
tada,/ discreta/ chamada SOL, esposa do
14 A Sol Serfaty senhor/ respeitado Itzrak Serfaty, NL”Oc/ no 13/12/1889
dia 09 do mês de tevet/ no ano de 5649,
LP”Kd/ T ” N TZ B He
n.º Tipo a Nome Dedicatóriab Óbito
Suporte para inscrição destruído ou au-
15 C
sente
Lápide de Túmulo/ [trecho ilegível]
16 A Itzrak (Isak) NLB”Oc/ Itzrak/ no dia 05, SHABAT 1º do 19/02/1926
mês de adar/ ano 5686/ T ” N TZ B He 151
Lápide de Túmulo/ (D)a senhora/ respei-
tada/ discreta,/ sofrida/ Sol/ Esposa de/
17 A Sol Ben-atar 05/08/1891

Matzevot kevurah esquecidas — resgate etnoarqueológico do Cemitério Judaico de Gurupá, Pará, Brasil
Morderray Ben-atar/ Falecida no dia 1º de/
Av ano 5651
Lápide de Túmulo/ (D)o jovem, malogrado,
Menarrem/ Ben-Atar, filho de Morderray/
Menahem de NLB”Oc dia 20/ Mês de nissan, ano 5671/
18 A Mordejay Be- LP”Kc — T ” N TZ B He 18/04/1911
nathar --------------------
Nasceu em 1881/ Menahem de Mordejay/
Benathar/ Fallecido em 18 DE/ ABRIL DE 1911
Suporte para inscrição destruído ou au-
19 B
sente
Clara (...); Isaac
Elarrat; Brro- [Linha superior ilegível] / Clara/ Istousel(?)/
sel(?) Jacob; Isaac Elarrat/ Brrosel [ou Bitosel] Jacob/ Ser-
20 A Serfaty Nilba; faty Nilba/ Iomsiba (Ioshua?) Asar/ Jomsel 28/08/1915
Ioshua Asar; Lahodes/elul [trecho ilegível] / 5674/ 28 8
Jomsel Laho- 1915
des
Parte superior em hebraico parcialmen-
te destruída/ NLB”Oc, dia 12 de av/ Ano
5682/T ” N TZ B He
---------------------
21 A Sultana Castiel Aqui repousam os/ Restos mortaes da/ Inno- 06/08/1922
cente e/ sempre chorada/ Sultana Castiel/
Nascida em 18-10/906,/ e/ Fallecida a 6-8-
922/ Paz á (sic) sua juvenil alma/ Recordação
de/ Seus paes e irmãos/
Macei [trecho ilegível] / Clara/ [trecho ilegível]
22 A Clara Serfaty / Serfaty/ [trecho ilegível] / [trecho ilegível]/ 1919
1919
n.º Tipo a Nome Dedicatóriab Óbito
Lápide de Túmulo/ Itzrak filho de
Benjamim [trecho ilegível] / [trecho ilegí-
23 A Itzrak 09/1900
vel] / Mês de elul [?], do ano [trecho ilegí-
vel] / 5660, LP”Kd

152 Lápide de Túmulo/ (D)o jovem, malogrado,


24 A Amram Peretz Amram Peretz filho de/ Yossef/ N”LBOb/ 14 24/11/1893
do mês de reshvan/ Ano 5654/ LP”Kd
Claudia Cunha, Fernando Marques, Diego Fonseca, Cássia Benathar, Elton Farage, Helena Lima, Alegria Benchimo

Lápide de Túmulo/ (D)o malogrado,/ Yakov,


filho de Mordechay/ Ben-Atar, o Levy/
Lembra-se sua morte/ N”LBOc, no dia 03/
do mês de elul/ ano de 5710/ T ” N TZ B He
Jacob Marcos
25 A ------------------------ 15/08/1950
Benathar
Jacob Marcos/ Benathar/ Nascido 30-8-
1887,/ Falecido 15-8-1950/ Respeitosa e/
Saudosa/ Homenagem de/ Seus filhos e/
Primos
Suporte para inscrição destruído ou au-
26 A
sente
Lápide de Túmulo/ [trecho ilegível] / Mes-
27 A Messod Cohen sod filho de Itzrak, o Cohen/ NLB”Oc, no dia 18/12/1896
13/ do mês de tevet/ Ano de 5657/ LP”Kd
Lápide de Túmulo/ (D)a senhora/ CLARA,
esposa de/ Shlomô, o Levy/ que faleceu no
dia 1 do Shabat pequeno/ 17 do mês/ Elul
Clara Alcaim do ano de 5689/ LP”Kd, T ” N TZ B He
28 A 22/09/1929
Levy --------------------
D. Clara Alcaim Levy/ Nascida a 2-6-1900,/
Fallecia a 22-9-1929/ Infinitas saudades/
Do seu esposo, paes,/ Filhos e irmãos.
[Linha superior ilegível] / Restos/ Mortaes
29 A Estrella Serfati de/ Estrella Serfati/ Fallecida em 1917 [OU 1917 ou 1919
1919]. Trecho semiapagado]

Tipo de túmulo de acordo com os materiais construtivos: (A) cobertos apenas por rochas irre-
gulares; (B) em tijolo maciço sem argamassa, sem lápide; (C) em tijolo e cobertos por lápide.
a. Barras separam cada linha do texto nas lápides.
b. Acróstico N”LBO “Que sua alma esteja no mundo das almas”.
c. Acróstico L”PK “Um breve resumo”.
d. Acróstico T ” N TZ B H “Que sua alma seja amarrada à Luz da Vida”.
te e corre a 1,5 m para lá da fundação do Quatro túmulos (T06, T10, T11 e T12)
muro original. Relatos dos moradores estavam parcialmente soterrados e sua
apontam para a sua construção recente cobertura foi exposta com remoção de
(século XXI) motivada por um acidente uma camada (<10 cm de profundidade)
automobilístico que derrubou este tre- composta majoritariamente de restos ve-
cho do muro original. A parede Leste getais (raízes e ervas) e pouco sedimento. 153
parece ser contemporânea a esta última Os danos observados às estruturas
e serve de limite a uma construção parti- tumulares são de cariz natural (meteori-

Matzevot kevurah esquecidas — resgate etnoarqueológico do Cemitério Judaico de Gurupá, Pará, Brasil
cular posterior a 2001. zação, ataque de plantas e animais) e de
Durante o trabalho de campo, pro- cariz antrópico. Estes últimos são mais
cedeu-se à limpeza do cemitério com a preocupantes e incluem acúmulo de lixo
recolha do lixo. Posteriormente, os túmu- no espaço, vandalismo (ver fratura no T1,
los em si foram intervencionados com a Figura 4) e roubo de lápides (Benathar,
poda de ervas e a limpeza dos líquenes e 2015) em, pelo menos, dois túmulos
detritos sobre as lápides (Figura 4). (T15 e T26) (Figura 5). O cemitério não

Figura 4. T1 antes e após procedimento de limpeza com remoção de líquenes e ervas daninhas.
dispõe de qualquer sistema de seguran- bre alguns túmulos, nomeadamente os
ça ou vigilância. Os moradores mais pró- que trazem inscrição bilíngue.
ximos, principalmente os mais idosos, Na década de 1950, o intendente
encarregam-se (nem sempre com suces- Wilson Benathar doou o espaço do CJG
so) de coibir danos maiores. Eles relatam ao Centro Israelita do Pará numa tentativa
154 o progressivo abandono da área a partir de garantir a perpetuação da integridade
da década de 1950, quando ocorreu o do espaço nos moldes da tradição judai-
último enterramento. Benathar (2015) ca (Benathar, 2015). Motivações familiares
Claudia Cunha, Fernando Marques, Diego Fonseca, Cássia Benathar, Elton Farage, Helena Lima, Alegria Benchimo

assinala que o abandono do cemitério devem ter influenciado nesta iniciativa,


enquanto espaço religioso ocorreu em uma vez que seu pai, Jacob Benathar
1943, quando os Castiel, última família (T25), seu avô, Marcos Jayme Aben-Athar,
praticante da religião judaica, deixam sua avó, Sol Benathar (T17), e seu tio, Me-
Gurupá. Contudo, uma reapropriação narrem Ben-Atar (Benathar) (T18), estão
do espaço parece ocorrer no dia de fina- entre os judeus ali sepultados.
dos, data religiosa cristã, quando pessoas Em termos de materiais construtivos,
nem sempre identificadas como paren- foram identificados três tipos de túmulos
tes dos mortos vão ao espaço acender (Figura 6): (A) cobertos apenas por uma
velas. Evidências dessa prática (restos de camada de rochas irregulares; (B) outros
parafina derretida) foram observadas so- em tijolo maciço sem argamassa e sem

Figura 5. Túmulo de indivíduo não adulto (T15) onde é possível observar a argamassa de as-
sentamento da lápide hoje ausente.
lápide, e, por fim, outros em tijolo maci- familiares ou, na ausência deles, da Che-
ço ou vazado com argamassa e cobertos vra Kadisha a colocação de uma lápide
por lápide (C). A maioria das lápides foram (a matzvat kvurat) em que são escritos o
feitas em mármore, exceto a do T25, exe- nome do falecido e fórmulas dogmáticas
cutada em material lítico não identificado. de encomenda da alma do morto. Às ve-
Os túmulos 10 e 11 parecem apontar para zes são incluídos o nome do pai, mãe ou 155
uma cronologia mais recuada no que se esposo, e dados biográficos restritos. A
refere ao material construtivo. Além de colocação desta lápide é obrigatória após

Matzevot kevurah esquecidas — resgate etnoarqueológico do Cemitério Judaico de Gurupá, Pará, Brasil
claramente mais degradados que os de- o Shivá (período do luto). A cerimônia de
mais, são ambos construídos com tijolos dedicação da lápide ocorre na maior par-
maciços e artesanais sem evidência de te dos casos um ano após a morte, salvo
produção industrializada. exceções prescritas no ritual que podem
O tipo mais frequente de tumula- alterar essa data. Cinco túmulos (núme-
ção, Tipo C (15/29), corresponde à forma ros 16, 20, 22, 23 e 29) são uma variação
canônica de inumação judaica: sepulcro do tipo C: não têm lápide em pedra, mas
coberto com lápide com inscrições. Se- possuem inscrição dedicatória em arga-
gundo o Talmude, é responsabilidade dos massa. Apesar do mau estado de con-

Figura 6. Tipologia dos túmulos identificados. Da esquerda para a direita, túmulos 11 (tipo A),
8 (tipo B) e 12 (tipo C).
servação, ainda é possível ler a inscrição Esta serviria de base para a lápide. Não
Matzvat Kvurat (Lápide do Túmulo) em existe evidência de que algum desses
duas delas (T16 e T23) apesar de a priori cinco túmulos tenha recebido a matzvat.
as respectivas matzevot não estarem lá. Foi possível coletar dados biográ-
Dentro do tipo mais comum de se- ficos da maioria dos túmulos (20/29,
156 pulcro no CJG (Tipo C), o formato mais 68,9%) com base em inscrições tumula-
frequente é um tumulus com ou sem res. A maioria destas (13/20, 65%) estão
lápide em forma geométrica composta em hebraico apenas (Figura 7), o que
Claudia Cunha, Fernando Marques, Diego Fonseca, Cássia Benathar, Elton Farage, Helena Lima, Alegria Benchimo

por um trapézio encimado por um semi- condiz com a tradição talmúdica de op-
círculo na cabeceira. tar apenas pela língua oficial religiosa.
Os túmulos 12 e 13 apresentam um Cinco lápides (25%) apresentam inscri-
padrão construtivo mais básico prescrito ções tanto em português quanto em
pelo Talmude e que consiste em marcar hebraico (Figura 8). Os túmulos 20 e 22
a extensão da cova com pedras. Já os contrariam o dogma religioso ao não
túmulos 06, 10 e 11 são construídos se- usar a língua canônica judaica.
guindo uma lógica mais elaborada, que O túmulo 20 é uma exceção no ce-
é a construção de uma estrutura tumular mitério e uma contradição às regras do
em alvenaria para o período após Shivá. Talmude. Apesar de o enterro judaico ser
normativamente individual, este sepul-
cro apresenta a inscrição de nomes de 6
indivíduos. As inscrições em argamassa
estão parcialmente apagadas por dete-
rioração do material, mas ainda é possí-
vel ler o nome de, pelo menos, dois indi-
víduos do sexo feminino — Clara (sobre-
nome ilegível) e Nilba Serfaty, e quatro
outros indivíduos do gênero masculino
com sobrenomes de diferentes famílias
(Isaac Elarrat, Jacob Brrosel[?], Ioshua
Asar) e um último indivíduo cujo nome
aparece bastante danificado e pratica-
mente ilegível (Jomsel[?] Lahodes[?]).
No CJG, foram identificados sobre-
nomes correspondentes a 12 famílias:
El-Rrarat, Elarat (n=2); Sanani (n=1); Sicsu
Figura 7. Detalhe da inscrição dedicatória do (n=3); Levy (n=2); Azancot (n=1); Serfaty
T27, escrita apenas em hebraico conforme ou Serfati (n=4); Ben-Atar ou Benathar
dogma talmúdico.
(n=3); Castiel (n=1); Peretz (n=1); Brrosel
(n=1); Lahodes (n=1); Cohen (n=1).
As dificuldades da vida no interior
do Pará no final do século XIX e início do
século XX transparecem em alguns adje-
tivos usados em inscrições para se referi- 157
rem a certos indivíduos com “malogrado”
(T02, T04, T18, T24, T25) ou “sofrido” (T17).

Matzevot kevurah esquecidas — resgate etnoarqueológico do Cemitério Judaico de Gurupá, Pará, Brasil
Os registros cartoriais mencionam alguns
óbitos expectáveis por doenças infeccio-
sas tropicais. A “sofrida” Sol Benathar, que
agora sabemos estar inumada no túmu-
lo 17, teve uma história de vida marcada
por tentativas de gerar uma menina em
vão (Benathar, 2015), tendo concebido
somente meninos: Menarrem, “o jovem,
o malogrado” (T18), Jacob Marcos (T25) e
um inocente1. Natimortos e óbitos de ges-
tantes em parto não eram incomuns na
comunidade.
Às dificuldades no que se refere aos
cuidados de saúde naquele ponto isolado
do território soma-se a rejeição social. O
judeu era para o geral da população o dei-
cida, o errante, o usurário, a pessoa nefasta
(Benchimol, 2009). Algumas das famílias
judaicas, como os Aben-Athar e Castiel,
prósperas financeiramente, sofriam com
o isolamento, agressões, resultando em
casos de depressão em alguns indivíduos
e na ruptura da estrutura familiar com
membros que, fugindo à pressão local,
iam embora sem nunca mais regressar,
nem mesmo pela ocasião do falecimento
dos familiares (Benathar, 2015).
Figura 8. Lápide do T25 com dedicatória es-
1
crita em hebraico e português. Consta no registro de nascimento a expressão inno-
cente, isto é, criança que morre logo ao nascer. Registro
de Nascimento. Termo: 167/168. p. 93. Ano 1890.
Em 1948, ao abordar o modo de derando-se que: (I) existe um túmulo pro-
viver em Gurupá, o antropólogo ame- vavelmente coletivo (T20) em que estão
ricano Charles Wagley relata pela ótica inscritos nomes de 6 indivíduos e que (II)
de seus interlocutores judeus como se- 9 túmulos (9/29, 31%) não trazem inscri-
ria o panorama na primeira metade do ções lapidares, podemos inferir um total
século XX: regozijo nos dias prósperos de 25 indivíduos identificáveis, sendo
158
durante o Ciclo da Borracha, as dificul- que 8 destes (32%) são do sexo feminino
dades de vida em condições precárias (concentrados de forma geral na metade
Claudia Cunha, Fernando Marques, Diego Fonseca, Cássia Benathar, Elton Farage, Helena Lima, Alegria Benchimo

na Amazônia e o desprezo dispensado Sul-Sudeste do cemitério) e 17 (68%) são


a estes pelos moradores cristãos. Alegria do sexo masculino.
Castiel, uma de suas interlocutoras, per- Os dois túmulos menores nos quais
deu 9 dos 12 filhos que tivera antes de provavelmente foram inumadas crianças
partir para Porto Velho (Benathar, 2015). (T06 e T15) não apresentam inscrições
No CJG, encontra-se o túmulo de Sulta-
e é impossível atribuir gênero aos seus
na Castiel (1906–1922, T21), uma de suas
ocupantes.
filhas que faleceu em tenra idade. Dos
Em termos de periodização do uso
filhos de Moyses e Alegria Castiel, o livro
do espaço, é válido ressaltar que nove dos
de nascimentos2 registra a existência de
29 túmulos não apresentam data de óbito
três filhos: Jacob (1899), Raquel (1902),
por motivos vários: suas lápides foram rou-
Miguel/Mair (1903), não tendo sido en-
badas, as inscrições encontram-se apaga-
contrado o registro de Sultana.
das, o túmulo está parcialmente destruído
Em termos de acesso ao cemitério,
ou aparentemente nunca tiveram inscri-
estão inumados no CJG tanto indivíduos
adultos quanto não-adultos. As regras de ções dedicatórias. Os demais apresentam
nomeação oficial e religiosa de indivíduos data de óbito no calendário hebraico e em
no período de uso do cemitério (segunda seis túmulos aparecem também a data ou,
metade do século XIX e primeira metade pelo menos, o ano do óbito em calendá-
do século XX) normalmente não contem- rio cristão. Em quatro túmulos, aparecem
plavam a dissociação de sexo biológico e datas de nascimento do respectivo ocu-
gênero como conceito social normativo. pante. A partir das datas obtidas, pode-
Assumimos então como premissa que mos afirmar que o cemitério esteve em
nomes masculinos inscritos nas lápides uso para inumações pelo menos a partir
do cemitério devem corresponder a in- de 1886 e que este prolongou-se até pelo
divíduos do sexo e de gênero masculino, menos 1950, ano da lápide mais recente
o mesmo rationale sendo válido para os (T25), perfazendo uma média de pelo me-
nomes femininos. Sendo assim, e consi- nos quatro indivíduos inumados por déca-
da entre 1886 e 1929, com uma fase pos-
2
Respectivamente, Registro de Nascimento. Ter-
mo: 283. p. 95. Ano 1899; Termo: 339. Ano: 1902;
terior nas duas décadas seguintes em que
Termo: 363. Ano: 103. Cartório Lobato.
não há nenhuma inumação no espaço. Discussão e conclusão
Por fim, aparece apenas um enterramento
no ano de 1950 (T25). Os túmulos 06, 10 (Figura 9), 11, 12
Entre os moradores mais velhos da e 13, que formam um cluster bem de-
vizinhança ainda existe a memória dos finido à entrada do cemitério, podem
dois últimos sepultamentos, ao qual aten- corresponder às estruturas mais antigas 159
deram apenas familiares dos mortos, mas no CJG, representando uma fase em-
que foram acompanhados à distância brionária da Chevra Kadisha. Os materiais

Matzevot kevurah esquecidas — resgate etnoarqueológico do Cemitério Judaico de Gurupá, Pará, Brasil
com curiosidade pela comunidade do empregados na construção de quase to-
entorno que descreve algumas peculia- dos (exceto o T06) são de proveniência
ridades previstas em leis talmúdicas nos local e de fácil aquisição. Não há uso de
ritos funerários de Jacob Marcos Benathar argamassa industrializada em nenhum
(T25) e Simão Benayon. Estes manifesta- deles e nem qualquer evidência mate-
ram aos familiares em vida como deve- rial de colocação da matzeivá, elemento
riam ser enterrados, mesmo num contex- fundamental do sepultamento judaico.
to em que a comunidade judaica de Gu- Há algumas explicações possíveis para
rupá já estava em franco desprendimento esta ausência: as famílias desses cinco in-
das suas tradições (Benathar, 2015). divíduos abandonaram a cidade pouco
Nas lápides que passaram pelo pro- após os enterros, não completando o ri-
cesso de tradução, não foi possível iden- tual, ou não tiveram condição financeira
tificar o túmulo de Simão Benayon. Entre- de o fazer; ou a Chevra Kadisha em fase
tanto, mediante as informações fornecidas inicial não dispunha do conhecimento
pela família sobre os costumes judaicos mais aprofundado do dogma. A hipó-
deste, a ausência de sua matzvat no ce- tese financeira é pouco provável. Como
mitério pode ser atribuída à carência de os túmulos 16, 20, 22, 23 e 29 provam,
informação do procedimento funerário mesmo na ausência da lápide, formas
por parte dos familiares então vivos, todos alternativas de inscrições eram aplicadas.
já convertidos ao cristianismo. Os irmãos O túmulo 20 é uma ocorrência inusi-
do morto, Jacob e Salomão, ambos prati- tada no cemitério e, se de facto contém
cantes do judaísmo já não estavam mais seis indivíduos, contradiz o dogma tal-
vivos, e, ao que se sabe, já não havia mais múdico da inumação individual3. Duas
judeus nesta região. É possível afirmar que, hipóteses podem explicar suas inscri-
com a morte de Marcos Benathar e Simão ções: uma seria a transladação de mortos
Benayon, e com a partida de Gurupá da sepultados em um cemitério não judaico
família Castiel, se encerra o uso do espaço para o CJG como previsto na lei rabínica.
cemiterial como ditado pelas tradições tal-
múdicas no início da década de 1950. 3
Rabino Moisés Elmescany, comunicação pessoal
21/11/2017.
160
Claudia Cunha, Fernando Marques, Diego Fonseca, Cássia Benathar, Elton Farage, Helena Lima, Alegria Benchimo

Figura 9. Túmulo 10 construído com tijolos maciços artesanais e pequenas pedras.

Contudo, ao serem reenterrados, seria entre 1886 e 1950. Existem túmulos judai-
expectável que o fizessem em diferentes cos na comunidade do Carrazedo (Bena-
túmulos ou que, pelo menos, ficassem re- thar, 2015) e relatos orais foram recolhidos
gistradas várias datas referentes aos dife- sobre um terceiro cemitério do mesmo
rentes óbitos. Uma segunda hipótese seja período que existiria na comunidade do
a de que o túmulo contenha apenas um Moju, à margem do rio homônimo na
indivíduo (morto em 28/08/1915) e que Ilha Grande de Gurupá. Fontes primárias
os demais nomes se refiram a pessoas atestam a presença de várias famílias ju-
conhecidas do morto cujos corpos não daicas nesta comunidade entre finais do
puderam ser recuperados após o óbito. século XIX e primeiras décadas do século
Este tipo de enterro simbólico é dispen- XX (Benathar, 2015). Devido ao alto grau
sado, por exemplo a vítimas de grandes de destruição do Cemitério de Santo An-
tragédias cujos corpos por algum motivo tônio, é impossível saber se haveria algu-
não estão disponíveis para o ritual4. ma área segregada para enterramentos
Os mortos inumados no CJG não cor- judaicos no seu interior. As informações
respondem à totalidade de óbitos de in- disponíveis da pouca cultura material pre-
divíduos judeus do município de Gurupá sente no cemitério cristão apontam para
seu uso contemporâneo à necrópole ju-
4
Rabino Shamai Ende, Sinagoga Ieshivá Tomchei
daica, mas a história oral local sugere que
Tmimim Lubavitch Ohel Menachem, São Paulo.
Informação disponível em: http://pt.chabad.org/li- seu início como espaço funerário seria
brary/article_cdo/aid/3418520/jewish/A-Colocao- anterior. De qualquer forma, seguindo a
-da-Matsev.htm.
tradição talmúdica, é possível que tenha parte da comunidade judaica de Gurupá
havido muitos enterramentos particula- tenha aderido a esta diáspora e isto te-
res, principalmente na zona rural. nha contribuído para o declínio do uso
A cronologia relativa do CJG ofereci- de cemitério.
da pelas inscrições tumulares sugere uma Com a desestruturação da comuni-
média de 4,75 enterramentos por década dade e provável perda de membros fun- 161
entre 1886 e 1929 (embora este número damentais para sua malha religiosa, os
tenha sido maior se considerarmos as lá- judeus remanescentes, muitos filhos de

Matzevot kevurah esquecidas — resgate etnoarqueológico do Cemitério Judaico de Gurupá, Pará, Brasil
pides sem inscrições e os túmulos ainda uniões entre judeus e cristãos (Benathar,
por evidenciar). Contudo, entre 1930 e 2015) foram aos poucos abandonando
1949 não aparece nenhum registro ma- a fé dos seus ancestrais. Evidência deste
terial de enterramento entre as lápides abandono é a existência na cidade de
datadas, sendo de 1950 o último ainda integrantes de algumas famílias original-
identificável. Várias razões podem estar mente judaicas (nomeadamente Bena-
relacionadas ao pouco uso do espaço nas thar, Sicsu e Benayon) os quais, apesar de
décadas de 1930 e 1940 e seu abandono valorizar sua herança cultural familiar, já
na década seguinte. As principais são de não praticam mais o judaísmo. A adoção
cunho econômico, social e religioso. da fé cristã por essas famílias contribuiu
Benchimol (1998), embora ressalte a para o desuso do CJG.
importância das comunidades judaicas O abandono da fé judaica nes-
enquanto pioneiras na interiorização do sas famílias, implicou num abandono
comércio e consequente prosperidade da língua hebraica e, com a morte dos
para o interior do Pará e mais especifi- mais velhos que ainda a dominavam, os
camente para o Baixo Amazonas, admi- túmulos cujas dedicatórias estão nesse
te que estas falharam em produzir uma idioma foram caindo no esquecimento.
cadeia produtora de bens e serviços Apesar dos moradores atuais que têm
duradoura e sustentável. Quando a con- sobrenomes judaicos relatarem que seus
corrência da borracha asiática atinge de “parentes” ou “ancestrais” estão lá enter-
forma dramática o mercado local, toda a rados, apenas são de facto identificados
rede comercial judaica no interior colap- como ancestrais reconhecidos e declara-
sa e com ela colapsam as comunidades dos aqueles cujos nomes aparecem em
judaicas, gerando um novo êxodo, desta alfabeto latino.
vez do interior para as grandes cidades O Cemitério Judaico de Gurupá per-
amazônicas (Belém e Manaus) ou outros manece como evidência material da his-
centros urbanos em regiões economi- tória dos judeus no interior da Amazônia.
camente mais viáveis. É expectável que, Mais do que isso, é um símbolo e um ele-
com o fim desse ciclo econômico, uma mento do imaginário popular sobre uma
época vista como dourada para a histó- Referências bibliográficas
ria local. Para além do mistério das suas
lápides em língua estrangeira, ele é em Benathar, C. L. L. 2015. História e memória de
si a materialização da presença de um Judeus em Gurupá: um estudo de caso a
povo misterioso mesmo para aqueles partir dos Aben-Athar (1890–1900). Traba-
162 que trazem os sobrenomes escritos nos lho de conclusão de curso. Faculdade de
túmulos do local. Sua preservação é uma História, Instituto de Filosofia e Ciências
incógnita e depende muito da ação de Humanas, Universidade Federal do Pará.
Claudia Cunha, Fernando Marques, Diego Fonseca, Cássia Benathar, Elton Farage, Helena Lima, Alegria Benchimo

alguns moradores do local e dos poucos Benchimol, S. 1998. Eretz Amazônia — os Ju-
familiares que ainda se identificam com deus na Amazônia. Manaus, Valer.
seus ocupantes. Benchimol, S. 2009. Amazônia — formação
social e cultural. 3.ª ed. Manaus, Valer.
Agradecimentos Bloch-Smith, E. 1992. Judahite burial practices
and beliefs about the dead. JSOT/ASOR
Os trabalhos de campo acontece- Monograph Series. JSOT Press, Sheffield.
ram no âmbito do sítio-escola interna- Falbel, N. 2008. Judeus no Brasil — estudos e
cional de Arqueologia do Museu Paraen- notas. São Paulo, EDUSP.
se Emílio Goeldi por meio do projeto Hachlili, R. 2005. Jewish funerary customs,
Origens, Cultura e Ambiente (OCA), em practices and rites in the Second Temple
cooperação com a Middle Tennessee Period. Leiden, Brill.
State University. O trabalho de campo Lima, T. A. 1994. De morcegos e caveiras a cru-
contou com a inestimável ajuda dos zes e livros: a representação da morte nos
estudantes de Arqueologia deste sítio- cemitérios cariocas do século XIX (estu-
-escola e de jovens voluntários da comu- do de identidade e mobilidade soclais).
nidade alunos das escolas locais. Nossos Anais do Museu Paulista, 2(1): 87–150. DOI:
agradecimentos vão também para os 10.1590/S0101-47141994000100010.
cidadãos de Gurupá que contribuíram Meira, M. A. F. 2017. A persistência do aviamen-
com valiosas informações e para as au- to: colonialismo e história indígena no
toridades locais que apoiam as iniciativas Noroeste Amazônico. Tese apresentada
de pesquisa no município, principalmen- ao Programa de Pós-Graduação em Me-
te à Sra. Raimunda Vieira Carvalho, antiga mória Social (PPGMS), Centro de Ciên-
zeladora do cemitério e vizinha deste há cias Humanas e Sociais, Universidade
mais de 70 anos. Agradecemos a ajuda Federal do Estado do Rio de Janeiro.
do Rabino Moisés Elmescany e sua espo- Moreira, E. 1989 [1972]. Obras reunidas de Ei-
sa que tão prestativamente acolheram dorfe Moreira — presença hebraica no
nossas perguntas sobre o tema. Pará. Vol IV: 9–32. CEJUP.
Programa Lugares da Memória. 2015. Cemitério
israelita do Butantã. Memorial da Resis-
tência de São Paulo, São Paulo. Disponível
em: http://docplayer.com.br/85011912-
-Programa-lugares-da-memoria.html.
Reis, J. J. 1991. A morte é uma festa: ritos fúne- 163
bres e revolta popular no Brasil do século
XIX. São Paulo, Companhia das Letras.

Matzevot kevurah esquecidas — resgate etnoarqueológico do Cemitério Judaico de Gurupá, Pará, Brasil
Silva, F. A. 2009. Etnoarqueologia na Amazô-
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Mus. Para. Emílio Goeldi — Ciências Hu-
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Chevra Kadisha do Rio de Janeiro. Dis-
ponível em: http://www.chevrakadisha.
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