Você está na página 1de 32

RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE DE VIAÇÃO CAUSADO POR

VEÍCULO AUTOMATIZADO

Manuel Felício

INTRODUÇÃO

A ficção científica tem alimentado, desde sempre, o imaginário humano. Quer com
base nela, quer através dela, as pessoas vão ideando e, simultaneamente, concretizando os
vislumbres de um futuro que depressa se torna presente. A insatisfação congénita do ser
humano é o combustível da criação pela qual a espécie humana procura incessantemente
atingir o zénite. A tecnologia é um dos veículos da criatividade humana e, se pode dizer-se
que acompanha o Homem desde os primórdios da sua existência em modos, pelo menos,
mais rudimentares, não se pode negar que ao longo das últimas décadas o seu
desenvolvimento tem vindo a atingir patamares crescentemente marcantes e desafiantes.
Mas não só de idealismo e certeza se faz o progresso. O cepticismo e a dúvida – desde que
não crónicos – afiguram-se imprescindíveis na sua função orientadora e inquisitória num
caminho que, já se sabe, é duro e sinuoso. O campo da robótica não é excepção. São várias
as preocupações suscitadas nesta área, e, em particular, no que à condução automatizada diz
respeito, pelo papel determinante que poderá vir a desempenhar. Interrogações a respeito da
privacidade, ética, segurança, cultura e normas sociais marcam a discussão em torno do lugar
que os veículos autónomos, como tantos outros artefactos robóticos, tomarão na vivência
comunitária e na relação do indivíduo consigo e com o outro.
Por ora, colocaremos essas ânsias de lado. O problema de que pretendemos ocupar-
nos refere-se à responsabilidade civil extracontratual decorrente de um acidente de viação
causado por um automóvel autónomo. Procurar-se-á apurar quem deverá, e de que forma,
responder, buscando conciliar a intenção responsabilizatória com as concepções de
antropocentrismo e humanismo e com as finalidades que, a título de doutrina ressarcitória,
devem ser protegidas e prosseguidas.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 493


1. Breve enquadramento histórico do desenvolvimento de veículos autónomos –
promessas e desafios

Partindo da indispensabilidade do transporte de pessoas e mercadorias enquanto


uma das forças motrizes do mundo como o conhecemos – um mundo de transações, a todos
os níveis, globais – o advento de veículos autónomos surge envolto numa névoa tanto de
promessas como de receios e desafios. Depois da construção de auto-estradas, da produção
de veículos movidos a energia eléctrica, da introdução de tecnologias como Adaptative
Cruise Control (AAC), Active Park Assist (APA) ou Lane Keeping Assist System (LKAS),
entre outros avanços tecnológicos, a introdução de veículos autónomos nas estradas do
mundo vem romper com a monotonia do controlo humano sobre os veículos terrestres. Este
caminho da condução automatizada vem-se fazendo, com sucessos e insucessos, desde a
década de 80 do século passado, tendo ganho impulso com o recente investimento de marcas
líderes no campo da tecnologia e da indústria automóvel. Entre as potenciais vantagens dos
veículos autónomos, contam-se o aumento da segurança na circulação rodoviária e
consequente redução de acidentes, maior mobilidade para pessoas incapacitadas e
dependentes, a fluidez do tráfego, a redução dos custos de transporte, a gestão mais eficiente
do combustível com repercussões evidentes a nível climático e, por fim, o reordenamento do
território. Contudo, romantizar e enaltecer apenas aquilo que têm para oferecer seria ingénuo.
Em boa verdade, as promessas enumeradas são, igualmente, as causas dos desafios que se
colocam e dos receios que poderão sustentar o ceticismo do público. De entre vários,
realçam-se a perda de emprego, o agravamento do fosso entre ricos e pobre e a ocorrência
de mutações e rupturas a nível económico, em especial no setor dos seguros. De qualquer
das formas, no momento actual, o desenvolvimento das tecnologias acima mencionadas,
embora já não embrionário, ainda é demasiado primitivo para se asseverar certeira e
inequivocamente se e quando se tornará a regra. Não menos verdade, contudo, é a afirmação
de Ryan Abbott, referindo que as decisões devem ser tomadas com base em dados
insuficientes e que esperar pelo conhecimento absoluto poderá implicar o sacrifício dos
benefícios no altar da precaução1.

1
Ryan Abbott, «The Reasonable Computer: Disrupting the Paradigm of Tort Liability», SSRN Scholarly Paper,
2016, 41.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 494


2. A influência determinante das opções a nível do regime da responsabilidade
extracontratual no desenvolvimento tecnológico – o efeito (des)enfreador

Nos dias que correm, são já notórios os esforços de diversas entidades no sentido
de regular este campo da robótica2. O debate adensa-se à medida que a sociedade global se
prepara para a introdução, com data ainda indefinida, de veículos automatizados no seu seio.
Cientes dos perigos do desenvolvimento de tecnologias num vácuo regulamentar e da
dificuldade da lei em acompanhar a inovação tecnológica, as autoridades e entidades
competentes procuram dar resposta ao problema através da previsão de normas legais,
normas técnicas, códigos de conduta e demais instrumentos ao seu dispor3. Neste sentido, a
definição de um regime de responsabilidade civil capaz de responder cabalmente aos
desafios que se lhe coloquem assumirá um papel relevantíssimo na promoção da inovação e
competitividade no mercado e, simultaneamente, na tutela dos interesses e expectativas dos
utilizadores. O que não significa que os interesses enunciados sejam totalmente compatíveis.
Antes pelo contrário.
O foco na responsabilidade do produtor, fundada no papel de fabricantes de
hardware e, em especial, de programadores e criadores de software em detrimento da
responsabilidade do condutor poderá ter um efeito adverso e dilatório no desenvolvimento e
comercialização dos automóveis em estudo4. Há, contudo, autores que defendem que o efeito
dissuasor não será tão gravoso como se possa pensar, não se justificando o receio de efeitos
nocivos no incentivo à introdução de sistemas deste tipo na indústria automóvel5.
Por outro lado, definir como regra a responsabilidade do proprietário ou condutor
poderá, apesar de todas as vantagens de que possa vir a beneficiar, demover aquele da
aquisição de um veículo cujo modus operandi é de difícil perceção e o qual poderá vir, num

2
Fazemos, aqui, menção à actividade legislativa neste âmbito nos Estados Unidos da América, com foco,
contudo, na previsão de normas a que terão de obedecer os testes com veículos autónomos, National
Conference of State Legislatures – National Conference of State Legislatures. Washington: NCSL. [Consult.
5 Jan. 2018], <http://www.ncsl.org/research/transportation/autonomous-vehicles-self-driving-vehicles-
enacted-legislation.aspx>.
3
Erica Palmerini, et al, Robolaw – Guidelines on Regulating Robotics, 2014, 11.
4
Matthew U. Scherer, «Regulating Artificial Intelligence Systems: Risks, Challenges, Competencies, and
Strategies», Harvard Journal of Law and Technology, v. 29, nº 2, 2015, 388: “Tort law influences future
behavior primarily through the deterrent effect of liability”; Nidhi Kalra, James Anderson, Martin Wachs,
Liability and Regulation of Autonomous Vehicle Technologies, 2009, 22.
5
Cf. F. Patrick Hubbard, «“Sophisticated Robots”: Balancing Liability, Regulation, and Innovation», Florida
Law Review, v. 66, nº 5, 2014, 1859.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 495


futuro mais distante, a não poder controlar. Solução esta que culminaria, como a acima
abordada, na impossibilidade de criação de um mercado competitivo.
Na demanda pela, entre outras vantagens assinaladas, redução da sinistralidade
rodoviária, o regime da responsabilidade civil a definir tanto poderá acelerar a introdução
das tecnologias no mercado como, inversamente, desencorajar a aplicação das mesmas6. As
decisões a nível de dogmática responsabilizatória deverão, primordialmente, concretizar
uma finalidade ressarcitória e, reflexivamente, uma finalidade preventiva, traduzindo a
pugna pela segurança e razoabilidade que devem pautar a actuação dos produtores e a
utilização de veículos automatizados.
Dito isto, a necessidade de regulação não se esgota, como é evidente, na definição
de um regime adequado em matéria de responsabilidade civil extracontratual. Sendo a
robótica e a Inteligência Artificial fenómenos transnacionais, as respostas aos problemas por
eles levantados terão de ser, também elas, transfronteiriças. Aponta-se, em particular, a
preponderância da harmonização internacional em matéria de normas técnicas para a
uniformização do mercado e consequente tutela dos interesses e expectativas do público.
Afigura-se relevantíssima, pela força que adquire da livre circulação de pessoas e bens, a
intervenção da União Europeia, legitimada também pelo risco que a fragmentação a nível
regulatório poderá acarretar para o desenvolvimento tecnológico e a competitividade do
mercado.

6
Ryan Abbott, op. cit., 17.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 496


3. Breve referência ao modo de funcionamento de um veículo autónomo

Cumpre, de forma a melhor compreender que opções deverão ser adoptadas no que
ao regime da responsabilidade delitual concerne, abordar brevemente o modo de
funcionamento de um veículo autónomo, referindo a tecnologia que incorpora e os vários
níveis de automação a que poderá operar.
A autoridade estadunidense para a segurança no tráfego rodoviário havia
estabelecido, num documento publicado em 2013, cinco níveis distintos de automação. Mais
recentemente, e seguindo as recomendações da Sociedade de Engenheiros da Mobilidade em
documento publicado em 2014 e revisto em 20167, acrescentou um nível aos cinco
inicialmente delineados, numa escala composta por seis níveis em que o primeiro
corresponde à ausência de automação e o último à automação completa da condução8. Em
função do nível de automação do veículo, serão diferentes o hardware e as tecnologias nele
incorporadas, em virtude das funções e tarefas que ao sistema automatizado cabe cumprir.
De qualquer das formas, essencial para a tarefa dinâmica de condução, seja esta levada a
cabo pelo condutor ou pelo sistema de condução automatizada, será a instalação de sensores
– radar, lidar, GPS, câmaras - que permitam saber onde se encontra, identificar e interpretar
objectos circundantes e tomar a melhor decisão em conformidade com a informação que
recolha9. Para que tal aconteça, prevê-se que os sistemas de condução automatizada
cumpram um processo complexo, comum no ramo da robótica, composto por três fases:

7
Para considerações mais aprofundadas sobre o tema, SAE International, Taxonomy and Definitions for Terms
Related to Driving Automation Systems for On-Road Motor Vehicles, 2016; U.S. Department of Transportation,
Automated Driving Systems 2.0: A Vision for Safety, 2017.
8
Sumariamente, os níveis de autonomia estão, de presente, definidos da seguinte forma:
- Nível 0: Ausência de automação, cumprindo ao condutor todas as tarefas de condução;
- Nível 1: O veículo poderá encarregar-se, não simultaneamente, do controlo de movimento longitudinal ou de
movimento lateral;
- Nível 2: Automação parcial, pelo que o sistema de condução automatizada poderá encarregar-se
cumulativamente do controlo de movimento longitudinal e de movimento lateral, tendo o condutor de se
encarregar das restantes tarefas e supervisionar o funcionamento do sistema;
- Nível 3: Automação condicionada, sendo que o sistema se encarrega de todas as tarefas dinâmicas de
condução mas mantém a expectativa de intervenção e resposta adequada do utilizador quando tanto lhe seja
pedido ou quando haja falhas sistémicas;
- Nível 4: Automação alta, sendo o veículo capaz de executar todas as tarefas dinâmicas de condução em
determinadas condições não havendo a expetativa de intervenção do utilizador;
- Nível 5: Automação total, podendo o veículo executar todas as tarefas dinâmicas de condução em quaisquer
condições, não havendo a expetativa de intervenção por parte do utilizador.
9
Harry Surden e Mary-Anne Williams, «Technological Opacity, Predictability, and Self-Driving Cars»,
Cardozo Law Review, v. 38, 2016, 137.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 497


Sense, Plan, Act. Função fulcral do veículo será, então, captar e analisar estímulos de uma
realidade – a rodoviária – em constante mutação.
Do previamente exposto retira-se, facilmente, que são inúmeros os factores
potencialmente influenciadores do funcionamento de um veículo automatizado. O
desempenho dos sensores incorporados no veículo, em especial os desafios colocados à
execução da sua função em condições climáticas adversas e possíveis defeitos e avarias, bem
como a adopção de sistemas de comunicação entre veículos – V2V – e entre veículos e
infraestruturas – V2I - são passíveis de suscitar questões quanto à confiabilidade dos sistemas
em estudo, sendo inegáveis os problemas que virão a levantar em sede de responsabilidade
civil. No mesmo sentido, o fenómeno da aprendizagem automática e crescente
imprevisibilidade de acção dos sistemas, em conjunto com a opacidade que os caracteriza,
dificultará a tarefa de compreensão e cooperação com os sistemas de condução
automatizados10.

10
Em geral, Harry Surden e Mary-Anne Williams, op. cit.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 498


4. Problematização decorrente das especificidades da condução automatizada – o
papel dos diversos actores.

De entre os desafios que se nos colocam com o advento dos veículos autónomos,
afigura-se particularmente espinhoso aquele que subjaz ao presente estudo. São muitas as
particularidades da condução automatizada que, em face de acidentes provocados pelos
respetivos sistemas, levantarão questões às quais é imperioso dar resposta. Em particular,
aquela que encerra em si uma das mais prementes interrogações em sede de dogmática
ressarcitória – quem? A quem podemos e devemos assacar a responsabilidade, de entre todos
os intervenientes na concretização do sonho, outrora futurista, da condução automatizada?
Genericamente, “who pays”11? Surgem como possíveis alvos de responsabilização o próprio
12, 13
veículo, o produtor , o proprietário do veículo e o condutor, se ainda nele pudermos falar.
Importa também clarificar que cada uma das alternativas avançadas apresenta méritos
distintos, não sendo, contudo, líquida a sua bondade. São múltiplos os factores14 a ter em
conta e dependendo deles assim será diferente a oportunidade da sua aplicação.
Apoiando-nos na distinção entre responsabilidade subjectiva e objectiva e
concretizando as finalidades da responsabilidade civil, refletiremos, agora, sobre as soluções
legais que, de iure constituto e de iure constituendo, se nos apresentam aplicáveis.

4.1. Veículo Autónomo – Ferramenta ou Pessoa?


4.1.1. E-persons?

À medida que o ser humano se vai apartando do volante, cedendo os destinos do


veículo à mão do sistema de condução automatizada, vai pairando na atmosfera jurídica a

11
Ugo Pagallo, The Law of Robots: crimes, contracts, and torts, Springer, 2013, 43.
12
O termo “produtor” corresponderá a qualquer das hipóteses previstas no art. 2º do DL 382/89 de 6 de
Novembro, que transpôs para o ordenamento jurídico nacional a Directiva 85/374/CEE, do Conselho, de 25 de
Julho de 1985.
13
Brendan Gogarty; Meredith Hagger, «The Laws of Man over Vehicles Unmanned», Journal of Law,
Information and Science, v. 19, 2008, 123: “Regardless of how autonomous a UV is, there will always,
ultimately, be human agents that can potentially be held responsible. They would include: software and
hardware developers; manufacturers; systems engineers; operators; and those who decide to deploy them, or
set the parameters for their deployment”.
14
Tais como o nível de automação e a possibilidade de intervenção do tripulante do veículo, variáveis de caso
para caso, que terão influência na determinação da solução que melhor se adequa na prossecução das
finalidades da responsabilidade civil.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 499


questão, não parcas vezes revisitada, associada à atribuição de personalidade jurídica a seres
e entidades que não sejam seres humanos. No caso concreto de sistemas dotados de
inteligência artificial, a justificação encontrada repousa na sua crescente complexidade e
sofisticação. Mobilizando a lógica de lugares paralelos com pessoas colectivas15, o
reconhecimento de robots enquanto seres dotados de personalidade jurídica16, ou e-persons
– com todas a consequências éticas, jurídicas, sociais e ontológicas que acarretaria – é
pensada, acima de tudo, como um meio para evitar problemas como a litigiosidade
decorrente do acidente ou a previsão de mais uma fonte de responsabilidade extra-contratual
com base no comportamento de outrem – como é o caso de animais ou de mandatários17.
Como resultado, o ser humano ver-se-ia exluído do esquema de apuramento da
responsabilidade, escudado pela recém-adquirida personalidade jurídica de entidades
artificialmente inteligentes.
Tanto é o que se pode dizer em abono da solução apontada. Para além dos
problemas evidentes que suscitaria em termos da existência de um direito de propriedade de
um ser humano sobre outro ser dotado de personalidade jurídica, bem como do direito à
propriedade da entidade artificialmente inteligente – indispensável para a assunção e
cumprimento do dever de indemnizar – levanta meta-questões a propósito do resvalamento
para o tecnocentrismo. De igual forma, não nos parece assimilável o caso de pessoas
colectivas ao de robots. As primeiras necessitam, para a sua constituição, de um elemento
pessoal18, a presença de pessoas naturais que legitimam, pelo seu papel na definição e
concretização dos destinos da pessoa colectiva, a atribuição de personalidade jurídica a esta
última. Para além disso, a tendência para estabelecer uma analogia entre entidades dotadas
de inteligência artificial e seres humanos afigura-se, como defende Mafalda Miranda
Barbosa, desdignificante para estes. Para a autora, falta aos robots a assunção de uma relação

15
Tom Allen e Robin Widdison, «Can Computers Make Contracts?», Harvard Journal of Law and Technology,
v. 9, n. 1, 1995.
16
Erica Palmerini, et al, op. cit., 206: “By pushing the ontological argument further one may conclude that
robots – in some cases at least, namely when autonomous – amount to subjects, rather than objects; hence some
sort of – legal – personhood should be attributed to them, with all the consequences that may be derived
therefrom in terms of rights and liabilities”.
17
Ugo Pagallo, op. cit., 134.
18
Cf., quanto a este ponto, C. A. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4º edição (por A. Pinto Monteiro
e P. Mota Pinto), Coimbra Editora, 2012, 140 s. e 271 s.; Mafalda Miranda Barbosa, «Inteligência Artificial,
E-Persons e Direito: Desafios e Perspetivas», Revista Jurídica Luso-Brasileira, Ano 3, nº 6, 1480 s.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 500


de cuidado com os outros e a “pressuposição ética” em que aquela assenta, bem como, em
última análise, a “dimensão espiritual e da alma”19.
Sem prejuízo do que se disse no parágrafo anterior, a verdade é que a posição
plasmada no Draft Report with Recommendations to the Comission on Civil Law Rules on
Robotics, elaborado por Mady Delvaux, aconselha a criação de um estatuto legal específico
para robots, prevendo-se que, pelo menos aos robots mais sofisticados, seja atribuída
personalidade jurídica, bem como um conjunto específico de direitos e obrigações20.

4.1.2. E-servants?

Uma segunda solução, exposta por Ugo Pagallo21 a propósito da responsabilidade


contratual, mas extensível a casos de responsabilidade extracontratual22, surge como uma
versão mitigada da proposta acima referida e funda-se numa comparação entre a condição
dos escravos na Antiga Roma e dos robots do mundo moderno23. Não obstante ser res e,
portanto, objecto do direito de propriedade do dominus como qualquer outro bem que a este
pertencesse, o escravo não deixava de ser homo24, dotado de inteligência, consciência e
capacidade volitiva. Podia, desse modo, praticar certos actos jurídicos em benefício do
senhor. Acontecia, contudo, que embora beneficiário dos actos celebrados pelo escravo, o
dominus não podia tornar-se devedor em virtude da actuação do escravo no comércio
jurídico25. Inicialmente, de forma a salvaguardar a integridade deste, o pretor oferecia aos
credores um meio de demandar os senhores dos escravos com quem negociassem com

19
Mafalda Miranda Barbosa, «Inteligência Artificial, E-Persons e Direito: Desafios e Perspetivas», cit.,
1482.
20
Draft Report with recommendations to the Commission on Civil Law Rules on Robotics (2015/2103(INL)),
de 27 de Janeiro de 2017, §59, alínea f).
21
Ugo Pagallo, op. cit., 103 s.
22
Ugo Pagallo, op. cit., 133.
23
As questões que, a um tempo, se colocavam quanto à condição jurídica do servus colocam-se, hodiernamente,
no âmbito da robótica. Curiosa, a este título, é a escolha de palavras de A. Santos Justo, «A Escravatura em
Roma», Boletim da Faculdade de Direito, v. LXXIII, Coimbra, 1997, 27, quando afirma que “os escravos
tinham capacidade negocial, eram considerados servidores dos seus domini, porta-vozes ou máquinas
inteligentes que permitiam aumentar os seus patrimónios e estender o círculo das suas actividades jurídicas”.
24
A condição humana, diz-nos A. Santos Justo, actuava como limite de disposição do senhor sobre o seu
escravo ao inibir o exercício abusivo do ius utendi et abutendi. À medida que os robots forem adquirindo
feições cada vez mais humanas, quer físicas, quer intelectuais, prevê-se a discussão em torno de semelhante
limitação ao direito de propriedade sobre algo que, ao invés do que os escravos alguma vez deveriam ter sido,
é exclusivamente res.
25
A. Santos Justo, op. cit., 27.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 501


recurso a actiones. Mais tarde, surge a criação do peculium26. Tratava-se de um património
autónomo pertencendo de facto ao escravo, que se reconduzia juridicamente a propriedade
do dominus. Atingia-se, desta forma, um equilíbrio entre o interesse do dominus – em não
ser prejudicado pela relativa autonomia dos seus escravos – e das contrapartes negociais, que
podendo agora demandar o servus, viam a sua posição tutelada27. Ugo Pagallo fala assim de
um pecúlio digital, um portefólio atribuído pelo proprietário, no nosso caso, ao seu veículo
ou, inclusivamente, por este amealhado28 e que limitaria o valor de uma indemnização
hipoteticamente devida à quantia constante do património de facto do veículo autónomo.
Apesar de menos rompente com as concepções, já assinaladas, subjacentes ao mundo
jurídico enquanto criação humana, a ideia avançada pelo autor é desaconselhada. Com efeito,
não prefiguramos a existência de entidades munidas de inteligência artificial paralelamente
à de seres humanos, no sentido em que uns e outros coexistam na mesma comunidade como
semelhantes. Antes, os robots deverão existir, com mais ou menos autonomia, como um
meio colocado à disposição de pessoas jurídicas e mobilizado para a prossecução dos fins –
lícitos, evidentemente - de quem os utiliza. Como tal, sendo propriedade e mobilizados por
alguém, não se apresentam razões para que não seja esse alguém a responder, em princípio,
pelos danos causados pelo veículo autónomo em circulação.
Por outro lado, não se entende a desejabilidade da limitação da indemnização ao
valor do pecúlio digital. Sendo este valor, em última análise, pertencente ao proprietário do
veículo, seria injusto ignorar esse facto de modo a tutelar um interesse que não se sabe bem
qual é29. Sendo a ideia de reparação ou indemnização “a finalidade precípua da
responsabilidade civil”30, defender a previsão de um pecúlio digital implica admitir que
casos haverá em que essa finalidade será debilmente concretizada. Será o dano e não uma
qualquer soma colocada nas mãos de um sistema de condução automatizada a delimitar o
valor indemnizatório.

26
A. Santos Justo, op. cit., 28.
27
Ugo Pagallo, op. cit., 103.
28
Pagallo fala a este propósito da criação de chauffeurs autónomos, veículos que desempenhariam a função ora
realizada, entre outros, por taxistas. Excluindo-se o factor humano, todas as transações concretizadas em
virtude da prestação do serviço de transporte seriam levadas a cabo pelo próprio veículo.
29
A desresponsabilização do ser humano contraria, sobremaneira, o próprio sentido do direito, levando aquele
a preterir as fundações deste, de que é exemplo a relação de cuidado com o outro.
30
Mafalda Miranda Barbosa, Lições de Responsabilidade Civil, 1ª edição, Princípia, 2017, 43.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 502


Não se afigura, depois do previamente exposto, desejável um mecanismo de
responsabilização da inteligência artificial. Tanto transparece do Parecer do Comité
Económico e Social Europeu sobre “Inteligência Artificial – Impacto no mercado único
(digital), na produção, no consumo, no emprego e na sociedade”31. No mesmo sentido,
Nathalie Nevejans, em European Civil Law Rules in Robotics, convoca o risco de uma visão
inebriada do robot baseada na retratação ficcionista das últimas décadas - abrindo caminho
à assunção perniciosa da criação artificial como alter ego da humanidade32 - apontando
também que se o principal propósito da atribuição de personalidade jurídica a um robot é
torná-lo susceptível à responsabilidade33 na ocorrência de danos, há esquemas ressarcitórios
mais eficientes34, sem se correr o risco de banalização dos pilares do sistema jurídico.

4.2. O Produtor

Ao contrário de outros produtos tecnológicos colocados ao dispor do público, a


opacidade, já mencionada, em íntima relação com a crescente autonomia e o fenómeno de
machine learning, para além dos entraves colocado à tarefa regulatória ex ante, assumir-se-
á igualmente problemática chegado o momento de determinar ex post a responsabilidade
pelos danos causados pelo sistema de condução autónomo. Destacam-se quatro
características35 do modo de pesquisa e desenvolvimento destas tecnologias que interferirão,

31
Transcrição parcial do parágrafo 3.33 do parecer: “O CESE opõe-se a qualquer forma de personalidade
jurídica para os robôs ou para os sistemas de IA, pois tal acarreta um risco moral inaceitável. Caso venha a
concretizar-se, os efeitos preventivos e corretivos decorrentes da responsabilidade civil poderão desaparecer,
uma vez que o fabricante deixará de assumir o risco da responsabilidade, que terá sido transferido para o robô
(…). Por outro lado, há o risco de utilização indevida e de abuso de uma forma jurídica desse tipo. Não faz
qualquer sentido estabelecer uma comparação entre esta situação e a responsabilidade limitada das sociedades,
já que neste último caso existe sempre uma pessoa singular que é responsável em última análise”.
32
Nathalie Nevejans, European civil law rules in robotics, 2016, 14.
33
Erica Palmerini, et al, op. cit., 206: “(…) the choice of attributing robots legal personhood would not be
grounded on the ontological nature of the machine, rather on a purely instrumental argument of the opportunity
of limiting liability or identifying an autonomous centre of imputation of rights and duties, like in the case of
a corporation”.
34
A autora aponta, por exemplo, a criação de um seguro de robots, sugerindo a combinação com um fundo de
compensação.
35
Matthew U. Scherer, ob. cit., 369: “From a regulatory standpoint, some of the most problematic features of
AI are not features of AI itself, but rather the manner in which AI research and development can be done.
Discreetness refers to the fact that AI development work can be conducted with limited visible infrastructure.
Diffuseness means that the individuals working on a single component of an AI system might be located far
away from one another. A closely related feature, discreteness, refers to the fact that the separate components
of an AI systems could be designed in different places and different times without any conscious coordination.
Finally, opacity denotes the possibility that the inner workings of an AI system may be kept secret and may
not be susceptible to reverse engineering.”

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 503


com toda a probabilidade, na resposta dada à pergunta “Quem paga?”. Do modo de
desenvolvimento e produção até ao seu funcionamento, os sistemas de inteligência artificial
são, para o público em geral, ininteligíveis. Daí que, indaga Matthew U. Scherer, poderá
haver relutância por parte dos tribunais em assacar a responsabilidade ao end user do sistema.
Por outro lado, continua o autor, a decisão de responsabilizar os produtores ver-se- á
dificultada pela multiplicidade de entidades e agentes envolvidos na cadeia de produção e
distribuição, no nosso caso, de veículos autónomos. Antes de mais considerações, impõe-se,
contudo, uma abordagem, ainda que breve, aos conceitos de produtor, produto e defeito
como percebidos em matéria de responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos. Para
tanto, analisaremos o constante do Decreto-Lei 383/89 de 6 de Novembro36.
Resulta logo do art. 2º a definição de produtor e percebe-se, de imediato, a
amplitude da noção “que não só compreende o produtor real, em sentido verdadeiro e
próprio, mas também se estende a outras pessoas que como tal se apresentem, que importem
produtos na Comunidade Europeia e que forneçam produtos anónimos, se não comunicarem
à vítima a identidade do produtor comunitário ou do importador, ou a de algum fornecedor
precedente”37. A largueza desta definição levará, no nosso caso, à chamada à colação de
todos os participantes na criação e produção do veículo, sejam produtores de matéria prima,
de partes componentes – como será o caso dos sensores incorporados no veículo -, do
produto acabado e, com destacada relevância, do software developer.
Para a definição de produto mobilizamos o art. 3º que, depressa reparamos, apenas
abrange as coisas móveis, sem prejuízo de estas se encontrarem incorporadas noutra coisa
móvel ou imóvel. Dito isto, não se colocam dúvidas de maior. O veículo, como todas as
partes componentes, são coisas móveis. Porém, no que aos sistemas de condução
automatizada concerne, o software desempenha um papel central. Enquanto bem imaterial,
caberá aquele na definição de produto constante do referido artigo? Diz Calvão da Silva38
que sim, equiparando os programas estandardizados de computador às obras intelectuais
materializadas, pelo que o produtor terá também de responder pelos danos cuja causa sejam
defeitos de software.39

36
Este diploma transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva 85/374/CEE, em matéria de responsabilidade
decorrente de produtos defeituosos.
37
J. Calvão da Silva, Responsabilidade Civil do Produtor, Coimbra, Almedina, 1990, 546.
38
J. Calvão da Silva, op. cit., 615 s.
39
Nas palavras do autor: “Os defeitos de software (…) são possíveis (…). Na verdade, o mercado está a ser
inundado de tal forma por software genérico e estandardizado (…) que não admira a forte tendência doutrinária

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 504


Por fim, de acordo com o art. 4º do decreto-lei em análise, o carácter defeituoso de
um produto afere-se com recurso à “segurança com que legitimamente se pode contar, tendo
em atenção todas as circunstâncias”, sendo estas prontamente precisadas através de três
elementos de valoração: a apresentação do produto, a utilização razoável do mesmo e o
momento da entrada em circulação daquele. A questão que se coloca aqui é a da
determinação do grau de segurança a ter em conta. Sabe-se que não é uma segurança absoluta
porque tanto flui da terminologia utilizada no texto legal. E, se por um lado não será uma
segurança absoluta a legitimamente expectável, também não será aquela segurança
conformada pelas expectativas subjectivas do lesado. Atentar-se-á, isso sim, às expectativas
objectivas do público, “à segurança esperada e tida por normal nas concepções do tráfico do
respectivo sector de consumo”.
Tecidas as necessárias considerações, cumpre agora analisar o regime da
responsabilidade do produtor, sempre de olhos postos nas especificidades da condução
automatizada.

4.2.1. Responsabilidade objectiva e solidária do produtor

Um dos objectivos logrados com o DL 383/89 foi a unificação dos regimes de


responsabilidade contratual e extracontratual sob a égide de um sistema uno assente na
responsabilidade objectiva do produtor, “independentemente da culpa, pelos danos causados
por defeitos dos produtos que põe em circulação”40. É um regime de responsabilidade pelo
risco que se pauta, acima de tudo, pela protecção do público em geral e pela justeza na
distribuição do risco e no equilíbrio de interesses em cena. Bastará, portanto, ao lesado
provar o dano, o defeito e o nexo de causalidade entre ambos para que surja uma pretensão
indemnizatória. Ao produtor, impedido de arguir a ausência de culpa na sua actuação, restará
a exclusão de responsabilidade por uma das causas previstas no art. 5º do DL 383/89, sem
prejuízo do também disposto nos arts. 7º, 11º e 12º41.

para (…) incluir os danos decorrentes dos seus defeitos na responsabilidade do produtor, responsabilidade que
assim já não é uma utopia”.
40
Conforme se diz no art. 1º do DL 383/89.
41
Os artigos têm como epígrafes, respectivamente, “Concurso do lesado e de terceiro”, “Prescrição” e
“Caducidade”.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 505


A referência a este regime, nas palavras de Calvão da Silva, de “responsabilidade
objectiva limitada”42 faz-se exactamente a propósito da delimitação das ocasiões em que ao
produtor deverá ser assacada a responsabilidade em casos de acidente de viação causado por
um veículo autónomo. Dada a sua indispensabilidade para o adequado funcionamento de um
sistema de condução autónoma, relevarão aqui, sobremaneira, os defeitos dos sensores
incorporados no veículo e a nível de programação de software. Questiona-se,
inclusivamente, se não caberá ao produtor a responsabilidade pela invasão do sistema de
condução por parte de um hacker ou de um vírus que poderá, por si, assumir o controlo do
veículo e causar um acidente. Tratando-se de uma vulnerabilidade do sistema de segurança
por aquele desenvolvido e instalado no automóvel, a “segurança com que legitimamente se
pode contar” tendo em conta, entre outras circunstâncias, “a utilização que dele
razoavelmente possa ser feita” poderá indiciar a presença de um defeito43. Dessa forma, e
porque a responsabilidade do produtor é também, de acordo com o art. 6º do decreto-lei em
apreço, solidária, são chamados a responder todos os intervenientes na cadeia de produção,
pelo que o lesado poderá exigir de todos a totalidade da indemnização. Isto sem prejuízo da
possibilidade de afastamento da responsabilidade, constante da alínea f) do art. 5º do DL
383/89, mediante prova de que, “no caso de parte componente, o defeito é imputável à
concepção do produto em que foi incorporada ou às instruções dadas pelo fabricante do
mesmo”. Assim, provando o fabricante da parte componente que o defeito pertence à
concepção do produto final ou que aquele resultou do cumprimento de instruções dadas pelo
fabricante do produto final, é considerado único responsável o produtor do resultado final44.

42
J. Calvão da Silva, op. cit., 517. Em sentido diverso, A. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, v. 8,
Coimbra, Almedina, 2014, 692: “O produtor tem o dever de lançar no mercado (apenas) produtos que não
provoquem danos nos destinatários. Quando responda, é porque não cumpriu. Não se trata de mera ilicitude
imperfeita que temos vindo a reclamar na generalidade dos casos de responsabilidade pelo risco. Optamos,
pois, pela natureza subjectiva da responsabilidade aqui em jogo”.
43
A resposta assumirá, porém, contornos diferentes na presença de open platform software, por meio do qual
o proprietário do veículo poderá proceder a alterações a nível do funcionamento do sistema de condução
autónomo. Nesse sentido, Erica Palmerini, et al., op. cit., 23: “Moreover consumers could interfere with robots
as long as their software system works on an open platform, that would be open to third party innovation that
a manufacturer could not anticipate”. Igualmente, James M. Anderson, et al, Autonomous Vehicle Technology:
A Guide for Policymakers, RAND Corporation, 2014, 71: “vehicle owners also pose possible security threats.
Many technology enthusiasts seek access to their own systems to gain control over elements that are otherwise
locked down by the manufacturer (…). [Autonomous vehicles] will surely be as big a temptation for “jail
breaking” as users seek to improve performance or run their own software, almost certainly while risking
safety. This will require manufacturers to ensure users cannot hack into the vehicle’s hardware and software
systems”.
44
Maria da Graça Trigo, Responsabilidade Civil – Temas Especiais, Lisboa, Universidade Católica, 2015, 115-
116.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 506


A propósito do regime da responsabilidade do produtor, reveste-se ainda de especial
importância a correcta informação do público em geral, de modo a refrear as expectativas
que possa formar quanto ao funcionamento e potencial dos veículos autónomos. Evidencia-
se, aqui, o papel da apresentação do produto em estreita ligação com a tipologia de defeitos
de informação45. Verificando-se a inadequação, a insuficiência ou mesmo a falta de
informações, avisos ou instruções, o produtor está sujeito a responsabilidade nos mesmos
termos em que estaria por defeitos intrínsecos à estrutura do produto. A dimensão subjectiva
da definição de produto defeituoso poderá muito bem vir a ser, pelo menos na fase de
introdução no mercado, o calcanhar de Aquiles da indústria da condução automatizada.
Sem prejuízo das reflexões vertidas nos parágrafos acima escritos, a mobilização
da responsabilidade do produtor afigura-se tumultuosa. Particularmente no concernente a
software, assevera Curtis E. A. Karnow46 que, para além de uma falha num sistema complexo
nem sempre se dever a negligência humana no desenvolvimento ou na utilização do
programa, são indesmentíveis as questões suscitadas quanto à confiabilidade do software. As
interrogações sucedem-se: não respondendo o produtor pelos defeitos de desenvolvimento –
aqueles que o estado dos conhecimentos científicos e técnicos, no momento em que o
produto foi colocado em circulação, não permitia detectar -, porque exteriores ao alcance da
sua actuação e intervenção e, portanto, impossíveis de prevenir, deverá o produtor responder
por aqueles “defeitos” que, seja qual for o estado da arte, inelutavelmente ocorrerão, ainda
que com reduzida frequência? Até que ponto deverá o produtor responder pela imperfeição
crónica – da qual padece também o criador – da sua criação, tendo presente que, em concreto
no domínio da condução, esta reúne todas as condições para o superar? Ao mesmo passo,
outra inquietação se afigura: chegado o momento em que o veículo autónomo, abandonando
o jugo programático do seu produtor e

45
Segundo Calvão da Silva, op. cit., 638, “o público espera que a “segurança externa” do produto – aquela que
lhe é infundida pela sua configuração, pela sua forma, pela sua embalagem e etiquetagem, pela sua publicidade,
pela sua descrição e modo de emprego, numa palavra, pela informação a seu respeito – não falte, tal como crê
na sua segurança interna”. No mesmo sentido, Maria da Graça Trigo, op. cit., 114: “(…) há que ter presente,
antes de mais, que a definição de produto defeituoso inclui uma dimensão subjectiva; em segundo lugar, que,
para esse efeito, muito relevam a apresentação e informação constantes do produto”.
46
Em Curtis E. A. Karnow, «Liability for Distributed Artificial Intelligences», Berkeley Technology Law
Journal, v. 11, nº 1, 1996, 162, o autor fala de “inherent problems with software reliability”, em especial no
caso de intelligent agents: “The long-term operation of complex systems entails a fundamental uncertainty,
especially in the context of complex environments, including new and unpredictable environments. That, of
course, is precisely the situation in which intelligent agents are forecast to operate”. O autor prossegue,
estendendo estas conclusões ao próprio hardware e termina atirando que “It is thus no surprise that, from time
to time, software fails, property is damaged and people are killed”.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 507


dotado de aprendizagem automática, se entrega à comunhão com o meio em que circula, daí
bebendo e assimilando, ao ponto em que, face a uma qualquer situação, actua de forma
distinta de qualquer outra pré-definida no programa-base, deverá o produtor responder pela
autonomia idiossincrática da sua criação?
Líquido é que a problemática da responsabilidade civil do produtor, pode dizer-se,
foi despoletada pela transformação sócio-económica e pela inovação no seio da sociedade
enquanto reflexo da revolução industrial que consigo trouxe o progresso científico e
tecnológico em consonância com o propósito de tutela do público em geral, pela acção da
finalidade preventiva da responsabilidade, e do lesado pelo efeito da finalidade ressarcitória.
Poderia justificar-se a responsabilidade do produtor com recurso a argumentos de justiça na
distribuição de riscos. Seguindo a máxima ubi commoda ibi incommoda, a actividade
realizada pelo produtor é fonte de riscos inevitáveis. Ditam exigências de justiça e
solidariedade social e de segurança pessoal que responda pelos riscos indissociáveis da
indústria técnica e tecnológica moderna quem deles tira proveito. Outrossim, a decisão de
responsabilizar o produtor poderá fundar-se, já não no dever, mas na possibilidade de melhor
suportar as consequências danosas do defeito, sendo a internalização de custos a resposta
mais adequada47. Poderia o produtor inclusivamente recorrer ao seguro para atenuar os
custos que aos commoda se contrapõem48, distribuindo posteriormente os prémios daquele
nos preços dos produtos49 50.
Em suma, “strict liability creates a stronger incentive for manufacturers to make
safer products, and manufacturers may be better positioned than consumers to insure against
loss”51. Restringida que está a responsabilidade do produtor aos casos em que na origem do
acidente esteja um produto defeituoso, resta saber em que momento temporal do progresso
tecnológico assumirá este regime contornos persecutórios, assim entendidos por uma

47
Interiorização esta apenas momentânea, já que redundaria em exteriorização com a disseminação do custo
dos defeitos dos produtos pelos consumidores, cf. J. Calvão da Silva, op. cit., 532.
48
Sobre o seguro do produtor, vide J. Calvão da Silva, op. cit., 534 s.
49
Guido Calabresi, «Some Thoughts on Risk Distribution and the Law of Torts», The Yale Law Journal, v. 70,
1961, 500: “”Enterprise liability” – the notion that losses should be borne by the doer, the enterprise, rather
than distributed on the basis of fault – is usually explained in such terms. A statement of this kind is generally
followed by an additional one which implies that the enterprise can pass the loss on to the consumers in price
rises, and that therefore enterprise liability is really a form of “risk spreading””.
50
Não se exclui a possibilidade de ocorrência de efeitos adversos no mercado por, em virtude do aumento do
preço do produto, a procura por parte do público decrescer.
51
Ryan Abbot, op. cit., 32-33.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 508


indústria que, por muito que consiga suprimir a necessidade de intervenção humana na
condução, dificilmente conseguirá eliminar a imperfeição que lhe é tão característica.

4.3. Proprietário ou utilizador

Eis-nos chegados ao momento de analisar a posição do proprietário ou utilizador


do veículo, o seu end user. Apesar de repisada a ideia de que o ser humano poderá vir a ser
definitivamente afastado da tarefa de condução, ele nunca se verá totalmente excluído do
loop, porquanto sempre terá de ser levada a cabo a tarefa de, por exemplo, indicar o destino
ao veículo autónomo. Por ser, portanto, o sujeito que maior proximidade manterá da actuação
do veículo autónomo – da fonte do risco - e aquele que do sistema de condução autónoma
retira mais comodidades, não se estranharia que lhe fosse atribuída a responsabilidade por
danos resultantes de acidentes de viação por aquele provocados.
A propósito da solução de atribuir responsabilidade ao utilizador ou proprietário do
veículo, importa convocar a distinção feita entre os diversos níveis de automação52,
reflectindo sobre a necessidade ou não de previsão de diferentes soluções consoante
estejamos em presença de um veículo parcial ou totalmente autónomo. Por outras palavras,
deverá o direito da responsabilidade civil prever regimes diferentes para os casos em que
poderá ser exigida a intervenção do utilizador e para os que casos em que esta é totalmente
excluída? Ideia que não apoiamos, à partida, é o ajustamento da atribuição de
responsabilidade consoante o tipo de utilizador, como preconiza Jeffrey K. Gurney53. O
autor, reconhecendo a insuficiência do regime da responsabilidade do produtor como
resposta aos danos resultantes de acidentes de viação causados pela tecnologia em estudo,
distingue quatro tipos de tripulante: o disabled driver, o diminished capabilities driver, o
distracted driver e, por fim, o attentive driver. Partindo desta distinção, o autor defende que
o produtor deverá responder totalmente por acidentes causados por veículos que se
encontrem em modo autónomo no momento do sinistro e sejam tripulados por um disabled
driver, ao passo que deverá responder parcialmente no caso da presença de um diminished
capabilities driver ou distracted driver. Ao produtor só não seria assacada responsabilidade
no caso de o tripulante do veículo ser um attentive driver, sendo este o único responsável

52
Vide, supra, nota 10.
53
Jeffrey K. Gurney, «Sue my car, not me: Products Liability and Accidents Involving Autonomous Vehicles»,
Journal of Law, Technology & Policy, v. 2013, nº 2, 2013, 255 s.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 509


pelo acidente mesmo que o automóvel opere em modo autónomo. Este exercício de
flexibilização do regime tendo em atenção as características dos tripulantes não é, de todo,
desejável. Por um lado, pressupõe a utilização de veículos autónomos por pessoas inaptas,
pelo menos enquanto puder ser exigida pelo sistema a intervenção de um humano na tarefa
de condução. Falamos, aqui, dos disabled drivers, como pessoas cegas, aos quais é negada,
actualmente, a possibilidade de conduzir um carro. Por outro lado, limita a responsabilidade
do distracted driver, que, pese embora o carácter maioritariamente autónomo que a condução
assumirá, nem por isso se prevê legitimado a menosprezar o dever de cuidado que
o onera, para mais num ambiente tão volátil como o rodoviário.
Cabe-nos, agora, proceder a uma análise das possíveis soluções para a aferição da
responsabilidade do proprietário ou do utilizador. Para tal, seguiremos de perto os
ensinamentos de Ugo Paggalo, com o auxílio imprescindível de fontes complementares.

4.3.1. Presunções legais

Se é de afastar a possibilidade de reconhecimento de personalidade jurídica à classe


mais avançada de robots, as características que levaram à colocação da possibilidade –
crescente interatividade, autonomia, adaptabilidade e auto-aprendizagem – estão igualmente
na génese de paralelos que vêm a ser traçados entre robots e seres biológicos de capacidade
intelectual relativamente avançada, mas limitada. Com efeito, ao reconhecer ao robot as
qualidades acimas elencadas, somos igualmente obrigados a admitir que ele não é mais uma
mera ferramenta, um braço mecânico condenado à eternidade de selar embalagens numa
fábrica. Falamos de entidades concebidas para a convivência com o meio, exponenciado as
suas potencialidades na aprendizagem e aprimorando atributos ao enfrentar e ultrapassar o
mundo-obstáculo. Podemos, portanto, assemelhar ao robot-autónomo – a que se opõe o
robot-ferramenta – os menores ou os animais. Se olharmos ao direito que em Portugal
vigora, os artigos 491º e 493º/154 do Código Civil dispõem, respectivamente, sobre a

54
“Artigo 491º - Responsabilidade das pessoas obrigadas à vigilância de outrem
As pessoas que, por lei ou negócio jurídico, forem obrigadas a vigiar outras, por virtude da
incapacidade natural destas, são responsáveis pelos danos que elas causem a terceiro, salvo se mostrarem que
cumpriram o seu dever de vigilância ou que os danos se teriam produzido ainda que o tivessem cumprido”.
“Artigo 493º - Danos causados por coisas, animais ou actividades
1 – Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem
tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 510


responsabilidade das pessoas obrigadas à vigilância de outrem e sobre responsabilidade por
danos causados por coisas, animais ou actividades.
O art. 491º, que versa sobre o dever de vigilância sobre pessoa com uma
incapacidade natural – o caso da menoridade –, estatui que o obrigado à vigilância é
responsável pelos danos causados a terceiro por aquela a não ser que ilida a presunção de
não cumprimento do dever correspondente ou prove a irrelevância do seu comportamento
para a verificação do dano. O art. 493º/1, por sua vez, estabelece, a propósito dos danos
causados por coisa móvel ou animal, uma presunção de culpa ilidível pelo lesante ou,
alternativamente, a possibilidade de o obrigado à vigilância, à imagem do art. 491º, provar a
indiferença da sua actuação para a verificação do resultado. Quanto aos danos causados a
outrem no exercício de uma actividade perigosa – art. 493º/2 -, estabelece-se, à semelhança
dos arts. 491º e 493º/1, uma presunção de culpa com a diferença de, neste caso, se reportar
a um dever prevenção do perigo55.
Interessantes, a este nível, são três preceitos apresentados à discussão por Ugo
Pagallo, aquando da analogia entre a relação pais-filho ou vigilante-animal e utilizador-
veículo autónomo, inclusive focando a diferença entre o regime da responsabilidade dos
American parents e dos Italian parents. Da lei americana, o autor mobiliza o parágrafo §316
do Restatement (Second) of Torts:
"A parent is under a duty to exercise reasonable care so to control his minor child as to prevent
it from intentionally harming others or from so conducting itself as to create an unreasonable
risk of bodily harm to them, if the parent
(a) knows or has reason to know that he has the ability to control his child, and

causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente
produzido ainda que não houvesse culpa sua.
2 – Quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza
ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as
providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir”.
55
Se este preceito se aproxima dos outros dois pela previsão de uma presunção de culpa, deles se aparta pelo
modo de ilisão daquela. Nos arts. 491º e 493º/1, como já se disse, poderá o lesante afastar a presunção de culpa
provando, quer o cumprimento do dever de vigilância, quer a produção dos danos mesmo se tivesse ele tivesse
sido cumprido. Por sua vez, o art. 493º/2, comportando um agravamento do ónus da prova a cargo do pretenso
lesante, exige, para a exclusão da responsabilidade, a prova de que aquele empregou todas as providências
exigidas pelas circunstâncias. Desconsidera-se, portanto, a relevância da real causa da lesão ou a indiferença
do não cumprimento do dever de prevenção, restando ao réu a demonstração do cumprimento cabal do dever de
prevenção do perigo que o onerava. Cf., para estas e outras considerações, nomeadamente a natureza e o alcance
das presunções de culpa estabelecidas em sede de responsabilidade delitual, Mafalda Miranda Barbosa, «Os
artigos 491º, 492º e 493º do Código Civil – questões e reflexões», Boletim da Faculdade de Direito, v. XCIII, t.
1, 2017, 349 s.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 511


(b) knows of or should know of the necessity and opportunity of exercising such control56.",
ao passo que, do Codice Civile Italiano, o autor enuncia:
o art. 2048º - “Responsabilità dei genitori; dei tutori, dei precettori e dei maestri d’arte
Il padre e la madre, o il tutore, sono responsabili del danno cagionato dal fatto
ilecito dei figli minori non emancipati o delle persone soggette alla tutela, che
abitano con essi. La stessa disposizione si applica all’affiliante.
(…)
Le persone indicate dai commi precedenti sono liberate dalla responsabilità
soltanto se provano di non avere potuto impedire il fatto”.
o art. 2052º - “Danno cagionato da animali
Il proprietario di un animale o chi se ne serve per il tempo in cui lo há in uso, è
responsabile dei danni cagionati dall’animale, sai che fosse sotto la sua custodia, sai
che fosse smarrito o fuggito, salvo che provi il caso fortuito”.
No plano da condução automatizada, qualquer uma das presunções da lei portuguesa
acima transcritas poderia ser aplicada57 - com as devidas adaptações - em particular, em casos
de acidentes de viação causados por veículos não absolutamente autónomos. Com efeito,
havendo margem para intervenção do utilizador em situações críticas às quais o automóvel
não esteja em condições de responder convincentemente, aquele deverá ser, ultimamente,
responsabilizado, porquanto ao não cumprir o dever de vigilância e prevenção de que estava
incumbido, descurou, culposamente, o dever de cuidado assumido para com o outro e
incorreu em responsabilidade delitual subjectiva por omissão – art. 486º do Código Civil.
Afastará, porém, essa responsabilidade, em termos gerais, mediante prova, ou do
cumprimento do dever de vigilância e prevenção ou da indiferença da sua actuação para a
verificação do dano. As normas italianas, por sua vez, apesar de versarem sobre causas de
responsabilidade idênticas às dos arts. 491º e 493º do Código Civil, prevêem um regime mais
estrito para os obrigados à vigilância58.

56
Fala-se, neste âmbito, de propensão do menor para produzir determinados danos. Por exemplo, num caso em
que um menor brinque frequentemente com uma fisga, tendo já partido duas janelas de sua casa, e, certo dia,
brincando com a fisga, causa uma mossa no carro de luxo do vizinho, os pais tinham ou deveriam ter
conhecimento da propensão do filho para a causa de danos daquele tipo.
57
A disposição americana levanta algumas questões, nomeadamente no que à “dangerous propensity” diz
respeito. Dificilmente, como nos diz Pagallo, poderão os proprietários ou utilizadores apurar uma qualquer
propensão para a produção de certo dano que não se verificará noutros modelos. Para isso, contribui a crescente
autonomia e imprevisibilidade de actuação dos veículos autónomos. De qualquer forma, a dangerous
propensity pela qual os pais são chamados a responder assume, no caso de robots, contornos de defeito de
software, pelo que se poderá reconduzir à responsabilidade do produtor.
58
No que ao art. 2048º do Codice Civile diz respeito, não bastará a prova da impossibilidade de obstar o facto
danoso, antes se exigindo, fruto do labor jurisprudencial, a prova da transmissão de uma boa educação e do
cumprimento adequado do dever de vigilância – cf. Giovanna Visintini, Trattato breve della responsabilità

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 512


Até que ponto será, porém, adequada a previsão de um regime de responsabilidade por
factos ilícitos do utilizador do veículo autónomo quando este assuma todas as tarefas da
condução e não permita, de todo, a intervenção daquele? Não se configura aqui, um qualquer
dever de vigilância ou prevenção até porque, por muito que possa querer, ao utilizador será
vedada a assunção dos destinos do automóvel. Não deveria equacionar-se, pelo propósito de
tratamento igual de todos os veículos autónomos, a simples adaptação do presentemente
previsto nos arts. 503º e 505º do nosso Código Civil?59

4.3.2. Responsabilidade objectiva

A responsabilidade objectiva ou pelo risco destaca-se, acima de tudo, por não


depender de culpa do agente. Esta responsabilidade, de carácter excepcional – art. 483º/2 do
Código Civil – afirmou-se no campo dos acidentes de trabalho, tendo a sua aplicação
alcançado posteriormente outros domínios, como o dos acidentes de viação60. Leva,
pressuposta na sua aplicação, a perigosidade inerente de certas actividades que, ao mesmo
passo, são fonte de especiais proveitos, lucros ou vantagens para quem as enceta. Ditam,
portanto, determinados aspectos do sistema jurídico que o lesante responda sem necessidade
de apuramento de conduta deficiente: a já mencionada perigosidade da actividade e os
benefícios que dela se retiram, a tutela especial de bens jurídicos ou a protecção – em

civile, Casa Editrice Dott. Antonio Milani, 1996, 597 s.; Henrique Sousa Antunes, Responsabilidade civil dos
obrigados à vigilância de pessoa naturalmente incapaz, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2000, 61 s. Já
no âmbito da responsabilidade por danos causados por animais, assim como daqueles causados por coisas, as
disposições legais italianas, apesar da intenção originária de operarem somente uma inversão do ónus da prova,
vêm sendo interpretadas, fruto da ausência de referências específicas à culpa no texto legal como hipóteses de
responsabilidade objectiva - cf. Giovanna Visintini, op. cit., 652. No ordenamento jurídico nacional, semelhante
regime resulta da aplicação conjunta dos arts. 503º e 505º, precisamente em matéria de acidentes de viação, ao
qual dedicaremos algumas linhas mais à frente.
59
Joaquim Sousa Ribeiro, «O ónus da prova da culpa na responsabilidade civil por acidente de viação»,
Separata do número especial do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra – Estudos em homenagem ao
Prof. Doutor José Joaquim Teixeira Ribeiro, 1980, 3 s. O autor distingue actividades perigosas de carácter
geral de outras, como é o caso da circulação automóvel, de “periculosidade particularmente intensa”. Ademais,
confrontam-se os fundamentos e efeitos da aplicabilidade do constante dos arts. 493º/2 e 503º, no sentido em
que no primeiro se fala num desvio comportamental voluntário imputável ao lesante pelo que, no processo de
apuramento da culpa, a inversão do ónus da prova favorece a posição do lesado, não se prevendo a imposição
de qualquer limite ao montante indemnizatório. Por seu lado, a tutela estabelecida pelo art. 503º parte, não de
uma referência ao modo de agir do lesante, mas ao que simplesmente acontece enquanto decorrência da
situação de risco que aquele estabeleceu em proveito próprio. Estabelecendo-se o nexo entre a situação de risco
e o dano originado na esfera do lesado, o lesante é chamado a responder independentemente de culpa. Ao que
este preceito oferece em termos de amplitude de aplicação opõe-se, contudo, a profundidade da tutela, limitada
pelo preceituado no art. 508º do Código Civil.
60
Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, v. 1, 4ª edição, Coimbra Editora, 1986, 505.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 513


particular, ao nível processual – do lesado, para quem se mostrava e mostra difícil provar a
culpa do lesante61. Em consonância com as finalidades ressarcitória e preventiva, o pendor
distributivo da justiça a alcançar impõe que se proceda à alocação do dano da esfera de quem
o sofreu para a esfera de quem esteve na sua origem. Momento em que indagamos sobre a
pertinência da aplicação do instituto da responsabilidade objectiva ao fenómeno da condução
automatizada. Seguindo ainda Ugo Pagallo, no capítulo em que trata o tema dos torts, depois
de abordar a previsão de um regime em moldes semelhantes ao da responsabilização pelo
wrongdoing de incapazes naturais ou de animais, o autor reflecte sobre a hipótese de
responsabilidade objectiva partindo da ideia de “robots as agents of human interaction”62 e
da doutrina do respondeat superior. À análise do preceito que prevê a responsabilidade do
comitente, acrescentaremos breves linhas sobre o regime vigente em casos de acidentes
causados por veículos e, partindo do artigo redigido a propósito dos danos causados por
animais, sondaremos, como já foi feito, a possibilidade de previsão de uma cláusula geral de
responsabilidade objectiva assente na perigosidade.

4.3.2.1. Responsabilidade do comitente

O art. 500º do Código Civil prevê, no seu nº1, a responsabilidade do comitente,


independentemente de culpa, pelos danos causados pelo comissário, com a condição de
sobre este recair igualmente a obrigação de indemnização. No nº2 do mesmo artigo, limita-
se o escopo de aplicação do artigo aos factos danosos praticados pelo comissário no
exercício das suas funções.
Ora, tendo presente que, neste preceito, o termo comissão assume “o sentido amplo de
serviço ou actividade realizada por conta e sob a direcção de outrem” e que “pressupõe
uma relação de dependência entre o comitente e o comissário, que autorize aquele a dar
ordens ou instruções a este”, sendo esse o caso “do motorista perante o dono do veículo”63
e tendo já nós feito menção às características distintivas das entidades dotadas de
inteligência artificial e ao AI chauffeur de Ugo Pagallo64, este artigo poderia ser o esboço

61
Mafalda Miranda Barbosa, Estudos a Propósito da Responsabilidade Objectiva, 1ª edição, Princípia, 2014,
44-45.
62
Ugo Pagallo, op. cit., 130.
63
Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit., 507-508.
64
No mesmo sentido avança Samir Chopra, quando, a propósito das ameaças à privacidade perpetráveis com
recurso a agentes artificiais, defende a responsabilização das entidades que os utilizam com base na doutrina

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 514


de um regime a desenhar no futuro, assente na autonomia de actuação dos veículos
autónomos65.
Esta solução mostra-se, contudo, imprestável ao mobilizarmos os argumentos onto-
axiológicos a que fizemos referência supra. O art. 500º, ao exigir que sobre o comissário
recaia igualmente a obrigação de indemnizar, pressupõe, em princípio, a sua culpa. Como
bem sabemos, não sendo pessoas, os robots não são centro autónomos de imputação. Não
podendo agir de forma intencional, não fará sentido serem alvo de juízos ético-jurídicos de
censura por uma conduta deficiente e, portanto, não poderá haver legal responsability.
Igualmente verdade é que, ao contrário da responsabilidade por facto próprio decorrente dos
arts. 491º e 493º do Código Civil, o preceito ora em consideração determina a
responsabilidade por facto de outrem. A simples previsão de tal solução poderá, sem prejuízo
do que até agora se disse, ser precedente para a adopção futura de regime semelhante
adaptado às particularidades de agentes artificiais no geral e, concretamente, de veículos
autónomos66.

do respondeat superior. Em face da utilização de software para actividades de vigilância e monitorização, em


particular por entidades como a Google ou a NSA, o autor defende que, ao prever-se a legal agency das
entidades dotadas de inteligência artificial, aqueles sob cuja direcção o programa actua não se poderão escudar
no facto de o escrutínio de dados pessoais não configurar violação da privacidade por não ser executada por
pessoas humanas. Cf. Samir Chopra, «Computer Programs are People, Too», The Nation, 2014,
<https://www.thenation.com/article/computer-programs-are-people-too/>.
65
É também com base na doutrina do respondeat superior que Jack Boeglin apresenta o seu modelo que,
contudo, variará consoante o tipo de veículo envolvido. Nos casos de acidente provocado por aquilo a que
chama discretionary-uncommunicative vehicles, veículos autónomos que não comunicam com outros carros
ou infraestruturas e que permitem ao utilizador retomar o controlo do veículo, a responsabilidade caberia ao
utilizador. Para discretionary-communicative vehicles, o autor sugere quer a responsabilidade do fabricante,
quer do utilizador, variando consoante se desenhasse, pelo volume de informação a que o primeiro teria acesso
em virtude da comunicação permanente do veículo com outros automóveis e infraestruturas, a previsibilidade
de um qualquer perigo no ambiente rodoviário imediato e o dever de informar o utilizador do veículo sobre
esse mesmo perigo. Não se verificando, no caso concreto, esse dever, responderia o utilizador do veículo. No
caso de acidente causado por nondiscretionary-uncommunicative vehicles, o autor traça um curioso paralelo
entre o veículo e o táxi e entre, não o utilizador, mas sim a central de táxis e o fabricante do veículo, sugerindo
a reponsabilização deste. Por fim, no que a nondiscretionary-communicative vehicles diz respeito, a
dependência face à comunicação vehicle-to-vehicle e vehicle-to-infrastructure coloca problemas que o autor
pretende superar com a previsão da market-share liability, distribuindo os custos resultantes da
responsabilidade por todos os fabricantes daquele tipo de veículo autónomo de acordo com a sua quota de
mercado. Cf. Jack Boeglin «The Costs of Self-Driving Cars: Reconciling Freedom and Privacy with Tort
Liability in Autonomous Vehicle Regulation», Yale Journal of Law and Technology, v. 17, 2015, 185 s.
66
Neste sentido, Giovanni Sartor, «Cognitive Automata and the Law», EUI Working Papers, 2006, 21: “We
will argue that, even if only the user is liable (responsible) the fact that the user’s liability may depend upon
the cognitive states of his SA, differentiates SAs from other things or tools, and justifies drawing analogies to
vicarious liability for human actions”.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 515


4.3.2.2. Acidentes causados por veículos

Versando o presente estudo sobre responsabilidade por acidentes causados por


veículos autónomos, impõe-se-nos, inevitavelmente, uma análise ao exposto no art. 503º:
1 – Aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no
seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes
dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.
2 – As pessoas não imputáveis respondem nos termos do art. 489º.
3 – Aquele que conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos danos que causar, salvo se
provar que não houve culpa da sua parte; se, porém, o conduzir fora do exercício das suas funções
de comissário, responde nos termos do nº1.
Do seu texto, retiramos três conceitos que necessitam concretização à medida do
fenómeno da condução automatizada.
O primeiro é o de “direcção efectiva do veículo”. Diz-nos Dário Martins de Almeida
que por direcção efectiva se entende “um poder real ou material de utilização e destino” do
veículo copulado à faculdade “quer de manutenção ou conservação, quer de
superintendência ou vigilância”, não se limitando ao “mero fenómeno de condução”67. Até
que ponto, então, terá o proprietário ou utilizador do veículo autónomo a respectiva direcção
efectiva? Não se limitando a direcção efectiva à tarefa de condução, abre-se espaço à
assunção daquela por parte do utilizador do veículo. Para além disso, o utilizador terá,
sempre, um poder de facto sobre o automóvel, ainda que mínimo. O conceito de direcção
efectiva poderia ser adaptado ao fenómeno da condução automatizada, sempre, porém, com
as devidas cautelas. Urge distinguir correctamente a utilização do veículo em interesse
próprio e a utilização de serviço de transporte em interesse próprio num veículo. Não se
poderia, assim, assimilar a utilização de um veículo autónomo por parte do seu proprietário
ou de quem sobre ele tenha um direito compatível, como seria o caso, entre outros, do
locatário, do usufrutuário ou do comodatário – sem esquecer, contudo, os casos de furto ou
de utilização não autorizada -, à de pessoas que recorressem a um serviço de transporte
automatizado, que não podem sobre o veículo exercer poderes de manutenção, conservação
ou superintendência. Neste último caso, a direcção efectiva do veículo pertenceria
igualmente ao proprietário68 ou a quem o tivesse posto em circulação no seu próprio

67
Dário Martins de Almeida, Manual de Acidentes de Viação, 3ª edição, Almedina, 1987, 316.
68
No sentido de que do direito de propriedade surge a presunção de direcção efectiva e de utilização do veículo
pelo proprietário, ver Ac. STJ de 06-12-2001, relatado por Ribeiro Coelho.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 516


interesse. Nesse sentido opera também a decisão de responsabilizar o proprietário de um
veículo pelos danos causados pela combustão espontânea deste enquanto esteja
estacionado69. Não estando o proprietário a exercer efectivamente um poder sobre o veículo
no momento de deflagração do incêndio, nem por isso deixa de responder. E como não basta
a existência de riscos próprios do veículo para que ele responda, é também preciso que seja
considerado o detentor da direcção efectiva do veículo e utilizador em interesse próprio. Se
se entende que um carro estacionado pressupõe a direcção efectiva e a utilização em interesse
próprio do seu proprietário, por maioria de razão, a circulação de um veículo autónomo,
sendo o proprietário utilizador ou não, levar-nos-á a adoptar semelhante conclusão.
O requisito da utilização em interesse próprio não levanta questões de maior.
Qualquer esclarecimento que se possa fazer prende-se com a necessidade de precisar até que
ponto se fala de utilização em proveito próprio. Ora, basta dizer que esta não se limita ao um
lucro ou ganho em termos económicos, sendo considerados interesses próprios a recreação
ou a amabilidade de emprestar o automóvel a um amigo. Do dito decorre que, emprestando
gratuitamente a viatura a um amigo, o proprietário fá-lo no seu próprio interesse, e “porque
não deixa de manter a direcção efectiva, responde solidariamente com aquele por danos
causados nessa viagem”70. Da mesma forma, exclui-se a responsabilidade objectiva de quem,
como o comissário, utilize o veículo em proveito ou sob ordens de outrem. Para estes casos
se reserva a aplicação do nº3 do art. 503º do Código Civil.
Por fim, cumpre analisar o pressuposto dos riscos próprios do veículo. Dário
Martins de Almeida fala do “perigo que a viatura constitui, à mercê do qual fica a integridade
física das pessoas e do seu património”, “o perigo potencial da própria viatura enquanto
viatura – tantas vezes imprevisto e inevitável”71. Depreende-se que as notas de
imprevisibilidade e inevitabilidade não são novidades introduzidas pela realidade da
condução automatizada. Poderá até dizer-se que os receios suscitados com o advento dos
sistemas de condução automatizada são comparáveis aos riscos e perigos idealizados pela
comunidade aquando da introdução dos veículos a motor mais primitivos no meio
rodoviário. Assistir-se-á, portanto ao alargamento de um conceito – o de riscos próprios do
veículo – que por si só já é difícil de definir com precisão. Aos riscos do veículo, somam-se
os riscos do software, subtraindo-se os riscos do condutor.

69
Cf. Ac. Rel. Porto, de 20-11-2014, relatado por José Amaral.
70
Dário Martins de Almeida, op. cit., 317.
71
Dário Martins de Almeida, op. cit., 79.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 517


Superada que seja a dúvida em torno do significado de direcção efectiva do veículo,
ao art. 503º poderia ser a solução para o problema sobre o qual nos debruçamos. A própria
expressão “qualquer veículo de circulação terrestre” parece funcionar como fórmula de boas
vindas aos parentes emancipados do carro moderno.

4.3.2.3. A cláusula geral de responsabilidade objectiva assente na


perigosidade

Ao analisar o texto do art. 502º, a aplicar exclusivamente em caso de danos


resultantes da especial perigosidade decorrente da utilização de animais, somos tomados
pela ideia de que, para lá da utilização de animais, muitas outras são as actividades cuja
concretização encerra perigos extraordinários. A este propósito, tem vindo a colocar-se em
questão a possibilidade de aplicação analógica de preceitos como este a outros casos em que
a atribuição de responsabilidade deva prescindir de juízos de culpa72, bem como a
exequibilidade de uma cláusula geral de responsabilidade objectiva assente na perigosidade,
podendo optar-se pela atribuição da tarefa densificadora ao julgador ou, por outro lado, pela
previsão de um elenco de actividades qualificadas como ultrahazardous73, que se traduz na
impossibilidade de evitar a concretização do perigo, mesmo que uma pessoa especialista no
setor empregasse toda a diligência exigível74. Falar-se-ia assim de um residual risk7576.

72
Sobre os obstáculos que se colocam à aplicação analógica das hipóteses legalmente previstas de
responsabilidade objectiva, vide Mafalda Miranda Barbosa, Estudos a Propósito da Responsabilidade
Objectiva, cit., 97 s.
73
Na sociedade de risco em que nos encontramos comunitariamente inseridos, muitos são os riscos a que nos
predispomos. E, se para efeitos do disposto no art. 493º/2, o perigo a ter em conta será aquele que ultrapassa o
limite imposto pela normalidade, a previsão de uma cláusula de responsabilidade objectiva assente na
perigosidade convocará, obrigatoriamente, uma abnormally dangerous activity, um extrahazard. Para Curtis
E. A. Karnow, uma actividade pode ser considerada como ultrahazardous se for anormal, acarretar um risco
elevado e provocar danos elevados. Cf. Curtis E. A. Karnow, «The Application of Traditional Tort Theory to
Embodied Machine Intelligence», Robot Law, Edward Elgar Publishing, 2016, 51 s.
74
Mafalda Miranda Barbosa, Estudos a Propósito da Responsabilidade Objectiva, cit., 127.
75
De acordo com Erdem Büyüksagis e Willem H. van Boom, «Strict Liability in Contemporary European
Codification: Torn Between Objects, Activities, and Their Risks», Georgetown Journal of International Law,
v. 44, 2013, 612, os acidentes daí resultantes são tidos como inevitáveis, pois nenhuma acção humana seria
suficiente para os prevenir.
76
O art. 5º/101 PETL, com a epígrafe “Actividades Anormalmente Perigosas”, prevê a responsabilidade
objectiva daquele que exercer uma actividade anormalmente perigosa pelos danos que advenham do risco típico
dessa actividade. A perigosidade anormal resulta da criação de um risco previsível e bastante significativo de
dano, mesmo sendo empregue o cuidado devido, e do facto de não ser objecto do uso comum. O risco de dano
poderá ser considerado significativo quer qualitativamente – a gravidade do dano -, quer quantitativamente – a
probabilidade do dano.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 518


O que dizer da previsão de uma cláusula desta natureza e da consequente inclusão
da condução automatizada – considerada actividade anormalmente perigosa – sob o seu
escopo? Quer a visão centrada na actividade, quer a visão centrada no objecto que é
utilizado77, a serem concretizadas, não se poderiam aplicar a acidentes causados por veículos
autónomos. Como nos diz Curtis E. A. Karnow, a noção de ultrahazardous é volátil,
bastando, para deixar de o ser, que uma actividade se difunda e se torne mais segura. A
aplicação deste regime à condução automatizada assumiria, portanto, contornos transitórios,
cingindo-se à fase de introdução78 no mercado e adaptação às potencialidades do sistema de
condução automatizada79. Se, por outro lado, se assumir que a utilização de veículos
autónomos deve ser considerada, invariavelmente, uma atividade anormalmente perigosa,
decerto o mais recto a fazer será abandonar todo o progresso feito a esse nível e manter o
principal causador de acidentes de viação – o ser humano - ao volante.

4.3.2.4. Automated and Electric Vehicles Act: a responsabilidade objectiva e a


solução securitária

Passando do plano do hipotético para o plano do tangível, consideramos oportuna


a análise do Automated and Electric Vehicles Act, diploma britânico promulgado pela Rainha
no dia 17 de Julho de 201880. Num momento de incerteza quanto às soluções a adoptar, esta
proposta legislativa poderá guiar-nos na tarefa que, mais tarde ou mais cedo, se colocará ao
legislador nacional ou europeu, dela nos afastando ou acercando conforme se ache mais
adequado. O simples facto de se passar do pensado para o escrito constitui sinal claro de que
o paradigma está a mudar e que, simultaneamente, essa mudança é bem-vinda, conquanto
tenha de ser prevista e legalmente conformada.
Nesse sentido, a primeira cláusula determina a criação de uma lista de veículos
autónomos por parte do Secretário de Estado para o Transporte. A cláusula segunda prevê a
responsabilidade da seguradora por acidente causado por veículo autónomo quando este se

77
Erdem Büyüksagis e Willem H. van Boom, op. cit., 636 s.
78
Cf. Curtis E. A. Karnow, op. cit., 67.
79
Erdem Büyüksagis e Willem H. van Boom, op. cit., 636: “Therefore, driving a motor car is certainly a matter
of common usage, and for that reason falls outside the scope of this article – even though it may be subject to
strict liability under national regimes – whereas transporting highly explosive chemicals in a huge tanker cannot
be excluded by this provision.”.
80
A versão final promulgada pela Rainha, após discussão na Câmara dos Comuns e na Câmara dos Lordes,
está disponível em <http://www.legislation.gov.uk/ukpga/2018/18/pdfs/ukpga_20180018_en.pdf>.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 519


conduza, desde que o veículo esteja segurado no momento do acidente e se verifiquem danos
para o beneficiário do seguro ou para qualquer outra pessoa. Nos casos em que não tenha
sido celebrado contrato de seguro em virtude de isenção e verificando-se o controlo do
automóvel por parte do sistema de condução autónoma, é assacada a responsabilidade ao
proprietário do veículo.
Para efeitos de delimitação do conceito de danos, atende-se apenas ao dano morte,
danos pessoais – físicos e morais – e danos patrimoniais, sendo que a propósito destes se
procede à exclusão de danos no veículo autónomo, nos bens de terceiro transportados no
veículo ou em atrelado ou em bens submetidos à vigilância da pessoa segurada ou da pessoa
que circule no veículo autónomo. Prevê-se igualmente a limitação da responsabilidade do
segurador ou proprietário no que diga respeito a danos patrimoniais.
A terceira cláusula reveste-se também de elevada importância ao dispôr sobre o
concurso de comportamento culposo do lesado81, prevendo a susceptibilidade de limitação
da strict liability da seguradora ou proprietário do veículo quando para o acidente ou para a
ocorrência de danos tenha contribuído a conduta negligente do lesado. Na subsecção (2),
cláusula terceira, prevê-se ainda a exclusão da responsabilidade da seguradora ou do
proprietário do veículo no caso específico de a pessoa detentora do veículo provocar um
acidente ao, negligentemente, permitir que o veículo circule quando não seja apropriado
fazê-lo.
Assumindo o papel central no funcionamento de um veículo autónomo, o software
vem regulado na cláusula quarta. Não versa este preceito sobre defeitos de programação,
mas sobre a intervenção do proprietário ou de outrem com o conhecimento daquele ao nível
das definições do sistema de condução autónoma. Assim, pode ficar estabelecida na apólice
de seguro a limitação ou exclusão da responsabilidade da seguradora por danos sofridos por
pessoa segurada quando o acidente tenha resultado de alterações de software realizadas por
aquela ou com o seu conhecimento que sejam proibidas de acordo com a apólice ou quando
não tenha sido instalado qualquer safety-critical software, cuja essencialidade era conhecida
ou cognoscível para a pessoa segurada. Em relação a danos sofridos por pessoa segurada que
não seja o tomador do seguro, a limitação ou exclusão da responsabilidade por alterações de
software proibidas cinge-se às alterações que a pessoa sabe serem proibidas de acordo com
a apólice. No que concerne a danos sofridos por pessoa não segurada, as subsecções (3) e

81
Mafalda Miranda Barbosa, Estudos a Propósito da Responsabilidade Objectiva, cit., 115 s.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 520


(4) prevêem o direito de regresso da seguradora sobre a pessoa segurada com atenção aos
limites impostos na apólice.
São estas as disposições da proposta de lei britânica que importa mencionar82 e que,
por si, indiciam algumas das preocupações orientadoras de definição do regime legal a
aplicar.
Nas notas explicatórias da proposta, o foco é colocado na garantia de compensação
para a vítima, mesmo que ela seja o utilizador do veículo. Prevalece, portanto, a finalidade
reparatória da responsabilidade civil e a ideia de justiça comutativa na óptica aristotélica.
Partindo da solução do compulsory motor insurance para veículos convencionais, o
legislador pretendeu apenas prolongar a sua cobertura à novidade rodoviária. Receoso de
que o único recurso do lesado seja agir judicialmente contra o produtor, o legislador fala
mesmo de uma direct route of recovery, reminiscente de um no-fault scheme que,
prescindindo da comprovação de culpa ou real responsabilidade, pretende apenas garantir a
célere compensação do lesado. Bem se sabe que a tendência para a responsabilidade
absoluta, de tipo securitário ou assistencialista é um fenómeno de índole garantística cuja
adopção “oblitera qualquer sentido imputacional”, determinando “a aniquilação dessa
dimensão essencial da juridicidade”, pelo que a preocupação cega com a vítima é uma
ameaça à “dimensão de responsabilidade” da pessoalidade83. Não obstante, tem obtido
consagração, quer por meio de seguros de responsabilidade – como o seguro obrigatório de
responsabilidade civil automóvel – quer por mecanismos de reparação colectiva, como
fundos – de que é exemplo o Fundo de Garantia Automóvel, pese embora o seu carácter
subsidiário84. Dele é exemplo o seguro nacional de acidentes neozelandês, criado em inícios
da década de 70 do século passado85.
A ameaça do avançar e até do assoberbar da responsabilidade civil pela tendência
securitária não poderá, porém, obnubilar os bons predicados do regime. Apesar da aparente
autonomização do veículo em relação à figura do condutor, continua a prever-se a

82
Merece também uma brevíssima referência a cláusula 6, no sentido em que enuncia uma série de ficções de
conduta culposa para efeitos de harmonização com normas já em vigor naquele ordenamento jurídico,
procurando assim fortalecer a tutela conferida aos lesados.
83
Mafalda Miranda Barbosa, Estudos a Propósito da Responsabilidade Objectiva, cit., 135. Resumindo aquela
que é, para a autora, a finalidade última da responsabilidade, op. cit., 57: “Ao responsabilizar o sujeito, estamos
a afirmar que ele é pessoa e a recusar o seu tratamento como objecto. A finalidade última da responsabilidade
civil passa por aqui – pela reafirmação da pessoalidade de cada um.”.
84
Dário Martins de Almeida, op. cit., 481-483.
85
J. Sinde Monteiro, «Responsabilidade por culpa, responsabilidade objectiva, seguro de acidentes», Revista
de Direito e Economia, Coimbra, 1983, 14 s.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 521


possibilidade de conduta culposa do utilizador do veículo no que concerne à gestão de
software. De forma a densificar o regime, propor-se-ia até a possibilidade de
responsabilidade subjectiva nos casos em que os acidentes sejam provocados por veículos
não absolutamente autónomos, para cujo funcionamento sempre contribuirá a actuação do
condutor – quando lhe seja exigida pelo sistema de condução autónoma -, reservando-se
sempre a possibilidade de imputação – feita que seja a prova86 - do acidente e consequentes
danos à conduta culposa do condutor que, por incúria, não respondeu devidamente ao pedido
de intervenção emitido pelo veículo. A responsabilidade por culpa afastaria a hipotética
aplicação do art. 508º do Código Civil, que dispõe sobre os limites impostos à indemnização
por responsabilidade objectiva decorrente de acidente causado por veículos. Também na
direcção de preservação do sentido imputacional, mas com o propósito de limitar ou até
excluir a responsabilidade, funciona a concorrência de culpa do lesado enquanto
demonstração de que o regime está também informado de preocupações de justiça
distributiva. Poderá discutir-se, até, a imposição de responsabilidade objectiva ao
proprietário do veículo que aquele tenha posto em circulação no ambiente rodoviário, numa
fórmula semelhante à utilizada em sede de responsabilidade do produtor, reconduzindo-se
sempre ao condutor, pelo menos, a decisão de utilizar o carro, que se sabe ser imprevisível87.

86
Associada à prova da origem culposa ou não do acidente de viação surge a recolha de dados pelo sistema de
condução automatizada ou a instalação de black boxes nos veículos autónomos, de forma a facilitar a
conhecimento das circunstâncias em que o acidente tenha ocorrido, à imagem do que acontece em veículos de
circulação aérea. A utilização desses meios de recolha de informação remete-nos, quase instintivamente, para
a discussão em torno da protecção de dados do proprietário ou utilizador do veículo A este título, assume papel
de destaque o Regulamento 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho de 27 de Abril de 2016 sobre a
Protecção de Dados, aplicável desde 25 de Maio de 2018 que, sem embargo do foco colocado nos interesses
do titular dos dados, é insuficiente para responder às questões suscitadas, em geral, pelo tratamento de dados
por sistemas de inteligência artificial e, em concreto, pela produção e recolha de dados pelos sistemas de
condução automatizada. Por um lado, cumpre saber quem é titular dos dados recolhidos. Será aquele o
fabricante do veículo, o produtor do software, o proprietário ou o utilizador do veículo automatizado? Por outro
lado, justificam-se as reservas em torno da utilização dos dados recolhidos por parte dos intervenientes na
cadeia de produção do veículo. Da mesma forma, a eventual partilha com entidades como companhias de
seguros é causa de receio e insegurança, em virtude da possibilidade de criação de perfis de utilização de acordo
com os quais seja permitido às companhias de seguros conformar os termos do contrato de seguro. Como é
bom de ver, o foco nos contributos de sistemas de condução automatizada em áreas como segurança ou
mobilidade relegam para segundo plano as discussões em matéria de implicações para a privacidade dos end
users. Essa tendência deverá ser, contudo, invertida, sendo imperiosa a actuação do legislador de forma a tutelar
os direitos em risco.
87
Nas palavras de Paula Costa e Silva, a propósito da contratação automatizada: “Se não há uma vontade
contemporânea [ao negócio], o problema tranfere-se da “autoria” material para a imputação. (…) Os actos
vinculam (…) porque foram praticados por uma máquina, como todas imperfeita, que o homem utiliza em seu
proveito próprio. (…) A autonomia pode ser encontrada no momento em que o homem escolhe a máquina. A
partir de aqui, ele deve assumir os riscos próprios do seu funcionamento.”. Cf. Paula Costa e Silva, «A
Contratação Automatizada», Direito da Sociedade e da Informação, vol. IV, Coimbra Editora, 2003, 305.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 522


A verdade é que, sem a anexação de um seguro de responsabilidade ao regime de
responsabilidade objectiva, e tendo em conta as actividades que justificam a sua previsão, a
discrepância entre o dano que se verifica e a capacidade do lesante para efectivar a reparação
poderá ser demasiado acentuada para a satisfação da pretensão indemnizatória. Assim que,
na ausência do seguro, a primeva finalidade da responsabilidade objectiva ficaria
sobremaneira fragilizada, ficando as demais finalidades igualmente condicionadas.
A solução, parece-nos, passará pelo estabelecimento da responsabilidade objectiva
do proprietário do veículo, com a previsão de obrigatoriedade de contratação de seguro
obrigatório de responsabilidade civil automóvel, à imagem do que acontece nos dias que
correm. Ressalvada ficará a responsabilidade por culpa nos casos em que a actuação do
utilizador e não um mero acontecer esteja na origem do acidente e na consequente ocorrência
de danos, sendo que provado o desvio do comportamento do lesante, afastar-se-ão os limites
impostos à indemnização decorrente da responsabilidade objectiva. Falamos, mais uma vez,
nos casos de gestão do software e de utilização de veículos não absolutamente autónomos.
Prevê-se, igualmente, a criação de um mecanismo subsidiário de compensação dos danos à
imagem do Fundo de Garantia Automóvel. Nos casos em que o acidente decorra de defeito
do veículo ou do sistema de condução automatizada, deverá assacar-se a responsabilidade
ao produtor. Deixamos assim traçada uma proposta que se cruza, em alguns pontos, com o
contido no Draft Report with Recommendations to the Commission on Civil Law Rules on
Robotics88, bem como com as sugestões apresentadas por Nathalie Nevejans no European
Civil Law Rules in Robotics89.

88
Cf. parágrafos 24-29, 49, 52, 56, 57 e 58.
89
Cf. 16-18.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 523


Conclusão

O futuro, embora incerto, não é mais um cenário longínquo. Se, por um lado,
a incerteza que o caracteriza nos impede de tecer considerações absolutamente
correctas e conceber soluções ideais para as questões que se nos colocam, por outro,
a velocidade do progresso científico e tecnológico não permite uma atitude
complacente. A realidade da inteligência artificial, concretizada, por nós, no
fenómeno da condução automatizada, comprova-o. No que à responsabilidade por
acidentes causados por veículos automatizados diz respeito, pudemos encontrar
respostas e questões que deverão, acreditamos, conformar e guiar toda a abordagem
ético-jurídica que os ordenamentos jurídicos, de forma célere, mas consciente, terão
de concretizar.
Desse modo, entendemos que uma solução que passe pela atribuição de
personalidade jurídica a entidades dotadas de inteligência artificial é irrazoável e
perniciosa. Se partirmos de concepções antropocêntricas e humanistas, a própria ideia
de responsabilização autónoma de um sistema desse tipo colide com os alicerces do
sistema jurídico. Da mesma forma, outras soluções de jure constituendo, embora
menos radicais, afiguram-se desnecessárias para lidar com o problema sobre que nos
debruçámos.
Afastando-nos de uma intenção de desresponsabilização do ser humano –
que culminaria na disrupção do elo fundamental entre liberdade e responsabilidade -
, entendemos que o ordenamento jurídico se encontra já munido dos mecanismos
adequados para fazer face ao problema. A responsabilidade objectiva do produtor,
nos acidentes que se devam a defeito do veículo ou partes componentes, e a
responsabilidade objectiva do proprietário do veículo, cumulada com a
obrigatoriedade de contratação de seguro automóvel, bem como a criação de um
fundo de garantia são, parece-nos, soluções satisfatórias para responder à pergunta
que no início nos colocámos, sendo apenas necessária a sua adaptação ao fenómeno
em causa.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 524

Você também pode gostar