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A forma e o tempo

decifrando Carlo Ginzburg


A forma e o tempo
decifrando Cor/o Ginzburg

Dein· l,.e rrei ra Camciro


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Haroldo Ccravolo Serczn
Joana .'v1onlck onc
~l aria Luiza Fl.!rrcira de Olh·ci ra
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Ru y Hraga
Cnpyright © 2022 Oei\·y ferreira Carneiro c Daniel Reze nde Berben Dias

Grajia atrwli:urdtr srsrmdo c> Acordo Or10grtijko da Líugua Portugu~sa ti~ 1990, qut•
<'lllrou emvigor 110 Bmsil ,., 2009.

Edição: llaroldo Ccravolo Serel..ll e Joana :\lonteleom:


Assistente a.:adêmica: Ta mar:t Santos
Prujctn gráfico, diagramação: ~la ria Beatriz de Paula Nlachado
Capa: Ana Júlia Ribeiro
Revisão: Alexandra Colontini
Imagem da capa: Lu isa Ciammitti

CIP·lllv\Sit. CAI't\I.OGAÇAO !'\:\ J'Ol'\TE


SJI\J>IC:\TO 1\:\CIOI\:\1. J)OS EDITORES DE LIVROS. RJ

C2881'

Carndro, l>d'T J:crrrira.


t\ forma~ o tempo : decifrando Carlos G im.burg I Dci'1' Ferrei ra Carneiro.
J>anid lkt~ndc ll~rllcn Oi.1s. - I. ~d. · Súo Paulo: Alameda, 2022 ..
297 p. ; 21 crn

Indu i hibliugrafb <' intlic<'.


ISB~ ':17X655':161\ 116':1.

I. (,inl.hurg. Carlu, 1':1~':1- • En,ai<><. 2. Historiugratia. 3. ,\Jicro·histioria.l. Dias.


Danid llcLcntlc Bcrhcr . 11. Titu](l.

22 -71\9'.17 \.f)J); ':11Ji .2


CJ>l;: 112 ·':l·t
Para Isabel/a. filha amada
Para Mcírcia, minha mêíe

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Rua 13 de :vlaio, 353 - Bela Vista
CEP 0 1327-000 - São Paulo, SP
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Extraviei-me no tempo.
Onde estarão meus pedaços?
.~v1uito se foi com os amigos
que já nfio ouvem nem fal am.

Estou disperso nos vivos,


em seu corpo, em seu olfato,
onde durmo fe ito aroma
ou voz que também nüo fala.

Ferreira Cullar
Sumário

Prefácio 11
Introdução 21
Parte I 31
Capítulo 1 37
Mimetismo: entre a filologia e a história
Capítulo 2 85
Um escravo da coisa em si: a defesa
do métierdo historiador
Parte 11 131
Capítulo 3 135
No rastro da forma : Nachleben, Pathos(ormeln
e Logosformeln
Capítulo 4 169
Catábase: a viagem ao mundo dos mortos
Parte 111 201
Capítulo 5 207
Microstoria e História Global
Capítulo 6
Prefácio
231
Per5pectivismo: o história do mundo
de Carlo Ginzburg
Considerações finais 273
Referências bibliográficas 281 Carlo Cinzburg é o historiador vivo mais con hecido; é um
Agradecimentos 293 au tor prolífico (escreveu dezenas de traba lhos, dentre livros e en-
sa ios). Além disso, contou sua trajetória de estud ioso em numero-
sas entrevistas, filmes e nas novas inh·ocluções que acompanham
as ainda numerosas reimpressões dos seus escritos.
Por que, então, um livro sobre o método de Carla G inzburg?
A razão disso se manifesta ao ler as p{lginas que se seguem.
Seus autores apresentam uma pesquisa autêntica e não uma
exegese; fazem uma operação inédita, aquela de procurar, en-
contrar, analisar os elos que conectam os grandes trabalhos mo-
nográficos de Cinzburg, Os andarilhos do bem, O queijo e os
vennes, História noturna, às dezenas ele ensaios que constituíram
grande parte da sua produção ao longo destas (dtimas décadas.
Por meio de um processo de busca aprofundada, identificam in-
terlocutores, contendentes e dão forma à desafios não sempre
explícitos. Em última instância, reconstroem a continuidade de
um trabalho in telectual desenvolvido ao longo de muitas déca-
das. Uma continuidade ofuscada pela clivcrsicladc das formas que
assumiu - precisamente, monografias, artigos, ensa ios - , e pelas
leituras que suscitou .
Reu nidos em um grande número de voll lll1CS (os mais
importantes parecem-me Olhos de madeira, Relações de força,
12 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbcrt Dias A forma c o tempo 13

O fio e os rastros, e por último La lettera uccide), os ensaios de Esta leitura lenta elucicla a centralidade avassaladora de duas
Ginzburg foram, com frequência, organizados pelos seus leitores figuras, de fato citadas frequentemente por Carlo Ginzburg, mas
em rubricas temáticas, retórica e prova contra a assimilação entre cu ja influência, nos mostram Deivy Carneiro e Daniel Berbert
história e literatura; imagens e poder, estranhamento, distância Dias, é absolutamente pervasiva. As obras desses dois intelectuais
e perspectiva ... , que tiveram como consequência a dilu ição dos marcaram ele maneira muito profunda o olhar ele Ginzburg, lhe
laços internos e o ofuscamento do projeto em que cada um se imprimindo uma direção. Mais que isso, é como se lhe levassem
inseria, conforme perceberam Deivy Carneiro e Daniel Berbert pelas mãos em todas as ocasiões: Auerbach e Warburg. Falando
Dias. t\ operação que realizam é um trabalho de recomposição ele si, Carlo Ginzburg escreveu:
elas peças - ou seja, cada ensaio- em um outro desenho, consti-
Quando eu era criança, sonhava em ser escritor, o que
tuído pelas referências veladas e também ocultas. Operação dife-
era até previsível já que minha mãe escrevia. Depois,
rente, por exemplo, daquela proposta pelo próprio Ginzburg na
pensei em ser pintor. Pintei na adolescência, cheguei
nova edição ele Mitos, emblemas, sínais, reeditada em 2010 pela a estudar um pouco de pintura, mas, num dete rmina-
Editora Einaudi, que identificava, nos ensa ios mais recentes, ul- do momento, percebi que não era pinto r. E o curioso
teriores desenvolvimentos do programa apresentado em Sinais, é que tanto a literatura como a pintura l:êm a ver com
sobre a prova, a série e o caso: um exercício ele cônscia autob io- o que faço hoje. Existe uma dimensão literária no tra-
grafia intelectual. balho do historiador e tenho muita consciência desse
Aqui, ao contrário, a reconstrução elo pro jeto é uma ope- elemento. Existe também esse amor pela pintura, que
ração externa, conduzida por meio de conexões que, no· limi- é muito importante para mim. 1

te, podiam não estar totalmente visíveis aos olhos elo próprio
Auerbach e V/arburg criaram métodos que muito contribuí-
Ginzburg, uma vez que esse processo ele busca aprofundada se
ram a suscitar e nutrir o debate nos campos ela literatura e ela
realiza explicitamente através daquelas ferramen tas que o his-
arte. Trata-se de campos cuja característica são também a coexis-
toriador adota nas próprias pesquisas; em que cada leitura das
tência, em seu interior, de traços formais e ele invenções ou varia-
fontes é praticada a "contrapelo", contra a intenção dos autores/
ções contextuais, bem como de uma pluralidade ele cronologias:
atores, para além da sua plena consciência, dando novamente
em suma, de morfologia e história, o outro elo do trabalho ele
vida para contextos inesperados. Deivy e· Daniel sustentam ter
Carlo Ginzburg que está presente em toda sua produção e que
praticado, nos escritos de Ginzburg, aquela "leitura lenta", in-
dita temas e urgências.
tensa, que para Nietzsche constituía a base ela filologia, e que
No que concerne Auerbach, Deivy Cameiro e Daniel Bcrbert
inspirou em Ginzburg o encontro fundamental com Auerbach.
Dias mostram como a leitura ele Mimesis significou para Ginzburg
Trata-se de um dentre os elementos mais importantes do novo
empirismo que é anunciado em Sinais, e tem como primeira
ABREU, Alzira Alves; COMES, )\ngela de Castro & OLIVEIRA,
condição a libertação elo ob jeto de estudo de todos os pretensos Lucia Lippi. "História e Cultura: Conversa com Carlo Ginzburg".
pré-conhecimentos que pesam como fardos sobre ele. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 3, n. 6, 1990, p. 255.
14 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 15

a descoberta ele um procedimento de análise, cu ja base é a elabo- palavras de Auerbach, é um momento em que os historiadores se
ração de técnicas e ferramentas de distanciamento que propiciam apresentam como aqueles "que interpretam as ações, as situações
proieções e esperas no leitor, para lhe permitir ver o próprio ob- e os caracteres dos seus personagens com uma certeza objetiva".
jeto com o vigor do primeiro olhar, não sobrecarregado por ne- A postura que a leitura lenta e intensa encoraja é, pelo con-
xos causais ou genealogias já estabelecido: "é necessário ler com trário, aquela que institui um paralel ismo entre historiadores e
uma atenção fresca, espontânea e sustentada, e é preciso ter um atores sociais, em que predomina a dúvida, a incerteza quanto
cuidado escrupuloso com as classificações prematuras", escreve à direção das ações, das pesquisas e das interpretações. Esse ca-
Auerbach. Este aporte se aplica em i\ilímesís, minho não linear, não só não é ocultado para restituir produtos
bem-acabados, mas é colocado ante a cena; a construção da pes-
preferivelmente para um texto de extensão limitada,
quisa é parte essencial do trabalho elo historiador. ".t\ão se deve
e que parte de uma análise, chamada microscópica,
levar a cozinha na mesa", avisava, em algum momento, Lorcl
elas suas formas linguísticas e artísticas; dos motivos
do seu conteúdo e ela sua composição; e no decorrer
Acton.·• Todavia, procuramos transgredir o máximo possível esse
desta análise, [se) eleve usar todos os métodos semân- preceito ele etiqueta hístoriográfica:
2
ticos, sintá ticos e psicológicos atuais...
Ao invés de um frango assado com acompanhamen-
to de fritas, o leitor encontrará, em seu prato, um
Adotado por Ginzburg, este procedimento deve dirigir a leitu-
frango vivo e grasnante, com penas e barbeias; sain-
ra de cada fonte, com o ob jetivo de construir um empirismo que
do do âmbito da metáfora, não uma pesquisa bem
não é ele forma alguma o grau zero da pesquisa, mas é, ao invés,
acabada e terminada, mas o vaivém da pesquisa .. .'
uma conquista, obtida com grande esforço por meio ele um pro-
cesso "de distanciamento".3 começava assim, em 1975, Jogos de paciência, livro escrito com
Parece-me importante salientar um ponto: esse empirismo Adriano Prosperi sobre O Benefício de Cristo, um elos textos reli-
não positivista é apresentado e elaborado no ensaio Sinais, em um giosos mais controversos elo XVI século. Esse procedimento possuí
momento em que a historiografia - aquela italiana em especial implicações enormes: convida a história à mesa das outras ciên-
- reivindica a própria legitimidade a partir da inscrição das suas cias sociais; a impulsiona a tornar explícitos métodos, escolhas e
análises no interior ele quadros predeterminados por grandes pa- provas, que, ao invés de segredos do ofício, tornam-se um campo
lavras ele ordem, como modernização, progresso, luta de classe. A ele confronto com outras disciplinas. Inaugura, em suma, a possi-
pergunta que é direcionada para os jovens historiadores não é "qual bilidade ele um confronto interdisciplinar, não a partir ele posições
problema você se propõe a estudar", mas "qual hipótese quer verifi- ele princípio, mas a partir dos caminhos tomados pelos diferentes
car" (a citação é totalmente autobiográfica). Para dizer isso com as procedimentos empíricos. O enconlro com Auerbach e depois

2 i\UERBACI-1, Erích. Epílogo. In: ,'vJímesis: a representação da realícla- 4 CINZBURG, Carlo & PROSPERI, ;\driano. Ciochi di pazienzct: un
cle na literatura. 6" ed. São Paulo: Perspectiva, 2015. semin;írio sul Beneficio di Cristo. Macerata: Quodlibet, 2020, p. 13.
3 Idem. 5 Idem.
16 Dcivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 17

con~ Warburg é esse: uma aposta interdisciplinar que se baseia em esl intéressant se passe dan s l'ombre..."6 de Céline, e de Bloch:
empréstimos, trocas, métodos e gestos colocados à prova. "O que há de mais profundo na história poderia ser também
Análise "microscópica", leitura lenta, estratégias de cons- o que há de mais certo".7 Trazer à tona o que é mais profundo
trução de uma empiria não positivista, e, portanto, reflexões significa realizar aquele vertiginoso borbulhar dos contextos de
sobre as fontes: cada uma destas operações, centrais no traba- análise que se tornou uma característica do seu trabalho, e que
lho de Ginzburg, como nos mostram Deivy e Daniel, remetem encontrou em História Notturna a sua realização mais completa;
para pressupostos, reflexões e métodos que animaram um grupo aquela na qual o leitor é levado para contextos cronológicos e
de pesquisadores reunidos em torno de uma revista, Quaderni geográficos amplíssimos e muito diversos. Mas, mais uma vez,
Storici, entre os anos 19i0 e 1980, elaborando os contornos ela o livro de Deivy e Daniel possui o mérito de nos mostrar a con-
"Micro-h istória"- E:doardo Grendi, Giovanni Levi, Carlo Poni. tinuidade do percurso da obra ele Ginzburg; também, e talvez,
As mesmas opewções são centrais na construção dos trabalhos de especialmente na adoção ela forma ele "ensa io", que adquiriram
muitos pesqu isadores e muitas pesqu isadoras da geração sucess i- seus escritos ao longo das últimas décadas.
va, gue se nutriram nas discussões dessa escola (como quem aqui
J'e:>q)loitais alors lcs possibilit<::s cl'accélé rntion et de
escreve) . Os trechos circunscritos de t\uerbach dialogam com os
ralentisscment que m'offra it la forme littéraire de
estudos de caso construídos pelos antropólogos de ~;Ja n c h estcr
l'essai pour mettre enscmblc, dans un récit fragmen-
no decorrer dos mesmos anos. A leitura lenta, a descrição, a pos- té par de brusques discontinuités, des phénomenes
tura assumida pelo pesquisador/a frente ao próprio objeto, tão séparés dans un are de plusieurs millénaircs. 8
centrais no trabalho de í\uerbach, são elementos que inspira m
tanto as pesquisas dos etnometodólogos, quanto as refl exões de O ritmo "tortuoso, volúvel e descontínuo do ensaio" permi-
'vVittgenstein, nutrindo pelo menos duas gerações. "ão obstan- te incursões disciplinares e cronológicas; permite quebrar a falsa
te, lhe sejam atribuídas resolutamente duas almas, uma social e linearidade do tempo histórico, mostra a contemporaneidade do
uma cultu ral, a miuo-história foi, e continua sendo, muito com- passado, embaralha as cartas, entre causas e efeitos, entre textos
pacta em torno das mesmas e fu ndamentais batalhas. c contextos; em suma, permite aquela leitura a contrapclo da
A originalidade do trabalho ele Ginzburg, nos mostra esse história tão estimada por Ben jamin, e reproduz o estranhamente
livro, está na articulação inédita entre esta refl exão e aquela evocado por vVarburg, Auerbach; mas também, de modos dife-
do outro, imprescindível mestre, Aby vVarburg. O conceito de rentes, por Proust e Tolstoi.
Pathosform el, sobre o qual o autor molda aquele de Logos{ormel,
é o camin ho pelo qual se dá corpo àquela pluralidade e coe- 6 "Tudo aquilo que é interessante acontece nas sombras..." (Tradução elo
au tor).
xistência de cronologias que caracteriza, conforme Cinz burg i BLOCH, Marc. lntroduçc7o: Apologia da Ilislória: ou o o{rcio do histo-
(e Benjamin), todos os ob jetos históricos. Duas citnções, con- riador. Rio ele Janeiro: Zahar, 2002,
vergentes, são colocadas corno epígrafes em dois livros de Carlo 8 "Explorei então as possibilidades ele aceleração e desaceleração ofere-
cidas a mim pela forma literária do ensaio paTil montar, em uma nar-
C ini.:burg, c fa lam da centralidacle deste projeto: "Tout ce qui rativa fragmentada por súbitas descontinuidades, fenômenos separados
em um arco ele v<írios milênios". (Tradução do au tor).
18 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Reze nde Berbert Dias A forma e o tempo 19

Esse método ele trabalho é absolutamente original, e não Olhos de madeira). La Créquiniere, um nome, é aqu i o ponto de
tem igual no panorama historiográfico atual. Para Deivy Carneiro partida para fazer repercutir a análise na esfera profunda das cultu-
e Daniel Rezende Berbert Dias ele é capaz de responder ao de- ras ela alteridacle. Em seu texto, e no encontro com o seu censor, se
safio que a história global apresentou para cada pesquisador no põem, nos dizem Deivy Carneiro e Daniel Berbert Dias, as bases
decorrer elas últimas décadas, e especialmente para a micro-his- para comparações de grandíssima escala.
tória. O "jogo de escalas" que, de fato, coloca em xeque sua per-
tinência (existem níveis- escalas - difere~tes?) é característico ***
elo método ele Ginzburg, seria aquele mais eficaz para proceder Na introdução a esse livro, Deivy e Daniel afirmam terem
análises diacrônicas e supralocais; para desafiar a capacidade de se comprometido a "usar Ginzburg para ler Ginzburg", ou seja,
generalização das microanálises e, junto, contribuir na produção ele "replicar grande parte dos seus movimentos, estéticos ou inte-
de uma história global não banalmente generalizante. lectuais, nas análises elos seus próprios textos". Uma operação ele
O exemplo mais explícito, ao qual os autores dedicam um mimetismo que, ê.lssinalam, reverbera também na forma de "en-
grande espaço, é a análise do texto - um caso enconb·ado "por saio" assumida pelos capítulos que escreveram. Talvez há algo a
acaso", par hasard -,publicado em 1706, por um enigmático au- mais relacionado aos contextos escolhidos para focalizar a traje-
tor, La Créquiniere - militar em um entreposto colonial francês tória de Ginzburg. Na reconstrução que eles faz em, os elemen-
do sudeste indiano: Con{ormíté eles coutumes eles Indiens oríentaux tos fundadores , corno vimos, são gestos metodológicos adotados
avec celles des Juífs et des autres peuples de l'antíquité, junto com e absorvidos a partir ele leituras fundadoras, frequentemente liga-
o di;ílogo que, nas margens do texto, se dá entre o autor e o censor das ao tempo da formação e da juventude, mas profundamente
elo Lvro.9 O experimento real izado com as ferram entas que vimos radicados . l\a trajetória intelectual de Ginzburg as experiências
anteriormente em execução - estranhamente, leitura lenta, des- biográficas são alimentadas unicamente pelas leituras; os interlo-
coberta de Logosformel - permite a Ginzburg se interrogar acerca cutores da pesquisa- são autores identificados uma vez por todas:
de um fenômeno tão geral como a atitude, ambígua, feita de pro- Auerbach e Warburg são os fios condutores que perpassam déca-
ximidade e distância, dos Europeus fren te os povos conquistados; das de experiências permanecendo substancialmente imutados.
e sobretudo, de reencontrar- nas origens do problema posto por . A impressão de extraordinária (excessiva, talvez?) coerência que
\Varburg e Leo Spitzer, da existência ele uni "perspectivismo cris- é dada ao leitor dessas páginas é talvez o custo que um traba-
tão" - a relação dolorosamente ambivalente do cristianismo dian- lho ele indagação tão minuciosa sobre as "origens" do método
te do judaísmo (tema enfrentado amplamente também no livro de Gin zburg comporta. Obviamente, outra leitura seria possível;
onde viagens, encontros, conversações, conAitos, indignações e
intervenções sobre o tempo presente, empreitadas coletivas, po-
9 Para maiores detalhes ver: G INZBURG, Carlo. "Microhístory and
deriam ter tido um espaço e peso completamente diferente; em
world history". In J. Beutley, J., Subrahrnanyam, S. & \Viesner-Hanks,
M. (Eds.}, The Cambridge World History. Cambridge: Cambriclge que a biografia poderia ter se diluído em um autorretrato de gru-
Universily Press. 2015, p. 446-473 .
po (Passerini), 10 ou em uma série de listas de lugares visitados, de
objetos manuseados e trocados, de encontros (Perec ). 11
Mas esta leitura das inAuências profundas e interiorizadas,
que prevalecem em comparação aos tempos mais curtos das ex- Introdução
periências sociais faz talvez parte, ela também, do mimetismo de
que os autores nos falaram . Esse també m é, talvez, o produto ele
uma leitura de Ginzburg através ele Ginzburg que este livro nos
propõe, em um curioso jogo de referências cruzadas.

Simona Cerutti- EHESS Esse livro começou a ser escrito com o propósito de am-
Paris, maio de 2022 pl ia r e aprofundar o tema que havíamos tratado no ensa io A pena
e o {Jincel: decifrando a narrativa literária de Carlo Ginzburg. 1
Ensaio que por sua vez nasceu ela percepção de que o historiador
italiano utilizava o mesmo estranhamento praticado por Proust
e m um trecho fundamental que abre a terceira pa rte de História
Noturna,> e gue acabou se tornando uma espécie ele gênese
que fun damentou nossa in terpretação ela obra de Ginzburg: a
peculiar descrição do pe nte greco-cita, no qual a linguagem da
escultura grega foi adaptada para figurar uma cena de batalha
que provavelmente aludia algunia lenda cita. A narrativa desse
objeto, utilizada por Ginzburg, como veremos, é permeada do
uso de procedimentos literários que de alguma maneira buscava
aproximar o leitor do objeto em questão.

CARNEIRO, Deivy F. & DIAS, Daniel R. B. "A pena e o pincel: deci-


frando elemen tos da narrativa literária de Carlo Ginzburg". In: RO)AS,
Carlos Antonio Aguirre. (Org.). Malíneras, indícios)' Suba/tem idades
en el Sigla XXI. Presencia viva de fltlenocchia. Hamenaje a la. Obra de
Carla Cinzburg. I" ed. Santigo/Chile: Cuadernos dei Sofía Ediatorial,
2021, v. 1, p. 25-44.
2 C INZBURC, Carlo. 1-Jist6ria Noturna . Decifrando o Sabá. I" ed. São
10 Pi\SSERJNI, Luisa. A mem6ría. entre {Jolítíca e emoção. São Paulo: Paulo: C ia das Letras, 1991.
Letra & Voz, 2011.
li PEREC, Ceorgcs. A vida modo de usar. São Paulo: Cia. das Letras, 2009.
22 Deivy Ferreira Carneiro c Daniel Rezende Berbert Dias A forma c o tempo 23

Em abril de 2021 tivemos uma surpresa agradável. Ka aula interpretação e que nos possibilitou ler parte de sua obra de ma-
magna de Francesca Trivcllato, realizada no Programa de Pós- neira parcialmente inédita.
Graduação da UFU, ao discutir algumas das obras de Carlo Todavia, nossa leitura aqu i proposta - e nenhuma outra -
G inzburg no intuito de questionar se o livro História Noturna é capaz de apreender todas as significações possíveis do texto.
seria um livro de História Global, Trivellato apresentou a capa Podemos dizer que a nossa leitura é uma tradução; uma tentativa
da primeira edição dessa obra. Para nosso espanto, fi gura na de síntese de uma obra parcialmente conexa produzida ao longo
capa italiana justamente o pente construído pelo artesão grego. de mais de meio século. E como síntese, por mais que adequada,
Mesmo estando numa fase ma is avançada da redação desse li- não capta a totalidade de intenções, sejam as manifestas ou as
vro, percebemos que estávamos seguindo, assim como o caçador inconscientes; não capta vários elementos presentes em zonas
segue sua presa, ind ícios certeiros que fundam entavam nossas de indeterminação semântica.~ Quando falamos da leitura pro-
hipóteses; que corroboraram muito da percepção inicial do nosso posta nesse livro, queremos dizer que ao apreendermos as ideias
ensaio e das linhas que se seg~tcm . c sentidos produzidos por Gim:burg, estamos produzindo novas
Tentamos expandir a compreensão da relação entre alguns significações c novos sentidos de sua obra . Assim, estamos co ns-
elementos formais (artísticos) e, sobretudo, procedimentos lite- cientes ele que, apesar de todos nossos esforços, sempre haverá
rários e a obra de Carlo G inzburg. Como resultado das reAexões um desnível entre a enunciação do texto e a leitura a significação
adv:ndas dessa atividade, ltlll segundo tema subjacente e mais que dele fizemos. ;
vasto apresentou-se: a reAexão sobre as conexões e dependências Desta fei ta, no desenvolvimento daquilo que se escre,·e, ou-
que ligam o que se escreve ao que se lê. Tal questão carece de vimos basicamente a "voz" do próprio Carlo Ginzburg. Ao ana-
alguns esclarecimentos. lisa r parte de sua obra, buscamos decifrar elementos daquilo que
Assim como ensina E-l ansen, acreditamos que nenhuma lei- move e influencia sua feitura, através de interlocutores reconhe-
htra pode ser considerada natural; como a única possível. resse cidos, citados em entrevistas, textos c notas, corno por exemplo,
sentido, qualquer leitura é sempre uma formalidade pratica que Tolstoi, Mareei Proust, Leo Sp iLccr, Agostinh o ou Vico. Mas sem
pressupõe outras formalidades simbólicas; formalidad es históri- sombra de dúvidas fomos percebendo que tanto Erich Auerbach
cas situadas e datadas.' Consideramos então os livros, artigos c quanto Aby Warburg deveriam ser os co-protagonistas deste livro.
ensaios de Carlo Ginzburg aqui analisadôs como obras eviden- Isso ficará visível para o leitor. Os textos, métodos e conceitos
temente final izadas, mas ainda inacabadas: como textos que são, de ambos estarão quase tão presentes quanto os do historiador
seus trabalhos estão sempre abertos às iniciativas de inttmeros italiano. Talvez por isso seja justamente no cotejo da obra desses
tipos de leitores. Em nosso caso, como historiadores, domina- dois intelectuais judeus com a de C inzbu rg que possamos ofe-
mos alguns saberes e técnicas que nos permitiram construir uma recer alguma contribuição sobre poss ibil idades de decifrar, pelo
menos em parte, aqui lo que se escreve através daquilo que se leu.
3 llANSEN, João Adolfo. '"Nenhuma lei tura é natural: o livro como sig- 4 Ibidem.
no". São Paulo. Ensaio Geral, n. I, 2021, p. 12. 5 fbidem,p.l5c22.
24 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 25

No ato de escrever o livro e lidar em profusão com os escri- ci l a percepção ele que forma e o quanto essas influências deter-
tos e técnicas de Ginzburg, e também de Auerbach e \Varburg, minam o pensamento do leitor "final".
dentre outros, construímos uma relação mimética do nosso texto Nós, todavia, apl icando alguns dos métodos utilizados
com aqueles sobre os quais nos debruçamos. No ato de escre- por Ginzburg no intuito de ler sua própria obra, procuramos
ver sobre Ginzburg, nos vimos, evidentemente de uma maneira minimizar essas dificuldades inerentes a esse tipo de análise.
profundamente menos hábil e capaz, replicando muito de seus Procuramos mapear quais métodos e conceitos ele se apropriou
movimentos, quer fossem estéticos quer fossem intelectuais, nas criativamente ou seletivamente (como diria i\ilichael Lowy
análises de seus próprios textos. - através de afinidades seletivas6 ) de Erich Auerbach e de Aby
Esse elemento metodológico e gnosiológico do nosso texto Warburg, por exemplo. Desse último, enfatizamos em especial
fo i proposital: queríamos ler Ginzburg ela mesma forma e, com os a adaptação ou paráfrase elo conceito ele Pathosformel para o
mesmos instrumentos, que ele lê, segundo nossas análises, outros conceito ele Logosformel, onde a viagem elas imagens através do
autores e textos - usar Ginzburg para ler Ginzburg. Um exemplo tempo é trocada pela viagem elas ieleias e conceitos no tempo.
disso foi que em determinado momento da redação, os capítulos Percebemos também a influência ele \Varburg na composição
começaram a adquirir, uns mais que outros, um tom ensaísti- do método incliciário criado por Ginzburg. Observamos deta-
co. Mantemo-los em capítulos, sem, contudo, retirar-lhes certas lhadamente como o autor ele O queijo e os vermes se apropriou
peculiaridades ele um ensaio. Tal corno Ginzburg (Auerbach e da leitura filológica de Auerbach, mas para aplicá-la na leitura
Warburg) procuramos também, denlro ele nossa capacidade limi- ele documentos históricos. Também sua concepção ele Figura se
tada, estar atentos a detalhes periféricos que pudessem ser reve- tornou um dos pilares sobre a qual o autor italiano edificou sua
ladores e capazes de nos fornecer associações até aqui pouco no- percepção ele concepção histórica, e do modo como europeu
tadas pela historiografia. Para tal, procuramos lê-lo bem devagar. concebeu sua relação com outro, seja do passado ou ele outra
Sejamos mais claros com exemplos. Em muitos de seus en- cultura. E, em relação ao uso de procedimentos literários, obser-
saios mais recentes, Ginzburg constrói o cerne de sua análise vamos como Ginzburg fez uso elo estranhamente e das ekphrasis
através ela aplicação ele elementos daquilo que ele chama de para construir sua narrativa.
Logosformel: el e examina e analisa como uma icleia, conceito ou Por conta disso alertamos ao leitor que acabamos por optar por
pensamento foram transmitidos ele um autor para o outro autor e algo que para alguns possa parecer não tanto adequado: em vários
leitor e os efeitos dessa transmissão e uso. Ele tenta estabelecer a momentos elos capítulos, trouxemos longas citações ele corpo ele tex-
realidade historicamente observável ele como essas icleias e con- to; trouxemos fragmentos nem sempre curtos daqueles que são ob-
ceitos são lidos e utilizados ao longo elo tempo, tanto como adap- jeto ele nossa análise com o intuito de mostrar ao leitor nossa leitura
tação quanto como reformulação. Entretanto, como ele analisa fi ltrada pelas lentes filológicas e indiciária elos autores em questão.
conceitos e icleias "originais" que viajaram por séculos até serem
lidas e utilizadas por outras pessoas, se torna extremamente difí- 6 1 0\VY, lVlichael Redenção e utopia: O judaísmo libe rtário na Europa
C e ntra l. São Paulo: Perspectiva, 2020.
26 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 27

E por fim, dois últimos esclarecimentos: como o leitor aten- lando perceber como esse procedimento literário possibilitou ao
to perceberá, os capítulos ímpares acabaram servindo como uma historiador italiano uma man eira ele fugir de um certo simplisrno
espécie de preparação e apresentação dos capítulos pares. Essa h istoriográfico. Por fi m, anal isamos os usos que Ginzburg faz ele
forma de escrita foi proposital, evidentemente: apresentar numa outros dois procedimentos literários: a ekphrasís e a enargeía.
primeira etapa, grosso modo, os autores, métodos e conceitos im- No segundo capítulo analisamos, mesmo que tangencial-
portantes para nossa reflexão no in tu ito de, em seguida, analisar mente, as discussões acerca do papel da narrativa no resultado fi-
as implicações dessas questões na obra de Carlo Ginzburg. Em nal ela pesquisa em História, nos atentando para as conh·ibuições
segundo lugar, nossa breve introdução tem um sentido metodo- de Hayclen \Vhite e elos elementos trazidos para o debate pelo
lógico: nosso texto também tenta se firma r no estranhamento chamado G iro Linguístico. Ao debater com alguns autores liga-
proustiano, que será discu tid o no primeiro capítulo. Então mais elos à virada retórica, Ginzburg afirma que vários pesquisadores
elo que dar todas as pistas e spoilers acerca das formas utilizadas ligados a essa perspectiva analítica anularam algumas das distin-
para a criação desse livro, preferimos deixar para o leitor o prazer ções entre ficção e história. 1\esse sentido, observamos a resposta
da descoberta. Passemos então para urna breve explanação do dada pelo historiador italiano a essas questões não através de seu
conteúdo dos seis capítulos que compõem essa obra. conhecido debate com \Vhite nos anos 1990. Examinamos o uso
Ginzburg afirma ter começado a praticar o ofício de histo- que Ginzburg faz dos elementos estilísticos em seu texto com o
riad::>r7 utilizando os instrumentos interpretativos desenvolvidos in tuito de provocar efeitos epistemológicos-cognitivos. Aqui, os
por Leo Spitzer e Erich Auerbach, com o intuito ele ler textos procedimentos literários aparecem para solidificar elementos de
não literários, tais como os processos ela Inquisição, para con- verdade histórica e não para atribuir a esta a categoria ele narra-
duzir interpretações originais a partir ele fo ntes documentais. tiva apenas literária.
Portanto, no primeiro capítulo de nosso livro, nos dedicamos a Na segunda parte do Iivro duas perguntas se tornaram o fio
tentar traçar as minúcias e meandros do método desses fil ólogos condutor de nossa reAexão: como é possível ritos, mitos e ima-
para assim tentar perceber de forma ma is aprofundada quais os gens se carregarem de ternporalidade? Quais são as relações exis-
"instrumentos interpretativos" esses autores desenvolveram, con- tentes entre as imagens, as ideias e o tempo? Desde Aristóteles
comitantemente com a empresa de distinguir como Ginzburg sabemos que tempo, memória e imaginação estão relacionados
utilizou-se deles em seu ofício. Ainda neste capítulo, partimos enhe si e que a imagem invariavelmente está carregada ele afec-
de um ensaio sobre o procedimento literário conhecido como ção, sensação e pensamento. Enh·etanto; é com o historiador Aby
estranhamento, presente em seu livro Olhos de Madeira, 8 ten- \Varburg que aprendemos que as imagens são feitas ele tempo;
que são momentos de memórias históricas cuja origem é indis-
cernível elo seu vir a ser. 9 De acordo com Agamben, as imagens
7 GINZBURC, Carlo. l\ 1enhuma ilha é uma ilha: quatro visões da litera-
tura inglesa. I" eel. São Paulo: Companhia elas Letras, 2004.
(e aqui ousamos a acrescentar, os ritos, os mitos e as icleias) feitas
8 GINZBURC, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distân-
cia. I" eel. São Paulo: Cia. elas Letras, 200 1 9 ACAMBEN, Ciorgio. Ninfas. I' eel. São Paulo: Heelra, 2012, p. 29.
28 Deivy Ferreira Carneiro c Daniel Rezende Berbert Dias A forma c o tempo 29

de tempo e memória, devem ser percebidas como carregadas de de discutirmos melhor nossas hipóteses, achamos importante
vida; vida como sobrevivência de algo que foi c de algo que será .10 examinar as contribuições que alguns historiadores c historiado-
No capítulo 3, a importância da obra e das reAexões de Aby ras direta c indiretamente relacionados com essa corrente hislo-
vVarburg para a forma çflo de algumas das mais fun damentais fer- riográlica deram ao debate, no intu ito de fazer um contraponto
ramentas analíticas utilizadas por Carlo Ginzburg em seu faze r com as ideias de Carla Ginzburg acerca da possível relação enh·e
historiográfi co. Para tal, apresentamos os principais conceitos e a Microstoria e a História Global.
seus usos na obra do historiador de Hamburgo para, em seguida, Nosso objetivo no último capftu lo é discutir assim a con-
no capítulo 4, anal isarmos a adaptação dessas discussões realiza- tribuição que Carlo Ginzburg oferece para um importcm tc de-
das por Ginzburg, o que gerou uma das mais criativas interpreta- ba le historiográfico internacional que perdura há alguns anos:
ções do canteiro da historiografia do século XX. Assim como os a micro-história é capaz de contribuir para o desenvolvimento
procedimentos literários, estranhos à maioria dos historiadores ele uma Global History empírica, menos abstrata e menos ge-
de sua geração, os procedimentos metodológicos de um histo- ncra lizante? Discutiremos essa contribuição ao debate numa
riador da arte foram fundam entais para a construção ela maneira perspectiva pouco convenciona l: sublinhamos a in flu ência de
como Ginzburg vê c constrói a sua (micro)História. procedimentos adaptados da Il istória ela Arte e da Filologia na
Na última parte elo livro traremos à tona uma contribuição construção narrativa e epistemológica que Ginzburg estabelece.
interessante ele Ginzburg para o desenvolvimento recente da mi- Mostramos então a radicaliclacle ela micro-h istória de
cro-história italiana. Anal isaremos de que forma a proposta mi- Ginzburg através da análise de algumas elas suas contribuições
croanalítica do historiador italiano se sobrepõe a uma discussão mais recentes (mas que englobam a refl exão de uma vida) que
dos anos 1990 e 2000 sobre uma pretensa diferença entre uma dcmoslram como os seus estudos de caso, lidos em conj unto, fo-
micro-história social e uma micro-história cultural. No capitulo ram capazes ele revelar o comportamento europeu em relaçflo ao
5, com o intuito de contextualiza r o que dissemos acima, fare- outro em longa duração, tanto cronológica quanto espacial. Em
mos uma breve cl i~c ussão de corno alguns micro-historiadores suma, através ela análise ele indícios presentes em parte de suas
italianos percebem a relação entre a micro-história c a I lislória pesquisas, esperamos decifrar o que há ele mais geral e amplo
Clobal. Para algum leitor desavisado é importante ressaltar que (no sentido microanalítico elos termos) no pensamento ele Carlo
não consideramos a Microsloria italiana como uma escola ou Ginzburg e revelar, dessa maneira, a raclicalidade ele seu projeto
movimento uniforme: longe disso. Sabemos que se tra ta de um e a irrelevância ele se pensar a micro-história italiana em termos
movimento heterogêneo que se uti lizou das mais va riadas con- "sociais" e/ou "culturais".
lribuições metodológicas da antropologia, sociologia c fi losofia; Enfatizando o que escrevemos no infcio desta introdução,
movimento esse muito difícil de ser enquadrado em un1 rótulo acreditamos que elementos literários e textua is possue m no es-
historiográfi co. Entretanto, para fim didáticos e com o intuito copo metodológico do historiador italiano uma imporlãnc.ia
tão grande quanto os elementos ditos historiográfi cos para o
lO Ibidem, p. 29.
30 Dcivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias

rcsul ta do das suas pesquisas. Procuramos examinar neste livro


especialmente a inAuência de procedimentos adaptados de Aby
Warburg (Logos{ormel) e Erich Auerbach {leitura fi lológica da
História) por Ginzburg, na reformulação da sua concepção de
PARTE I
(micro)história, tal como no debate com os pós-modernistas ou
na questão da micro-história c história global. Não supomos, evi-
dentemente, que um estudo das referências literárias que mar-
caram a fo rmação de G inzburg consiga explicar totalmente seu
pensamento ou Oagrar suas intenções. Se recorremos a obras que
ele cons idera fundamentais em sua fo rmação, foi com o único
propósito de demarca r as linhas de força de sua argumentação. Quando eu era criança, sonhava em ser escritor o
'
Entre o uso 0 11 adaptação consciente de um conceito ou que e ra até previsível já que mi nh;~ mãe escrevia.
Depois, pensei em ser pintor. Pintei na adolescência,
método c a uti lização dos mesmos de forma completamente in-
cheguei a estudar um pouco de pin tura, mas, num
consciente existe uma vosta grad uação de situações que pode-
determinado momento, percebi que não era pintor. E
mos definir como ín{luência ele um texto em outro. Contudo, o curioso é que tanto a literatur<t como n pintura têm
no livro, não exploramos essa faceta ela intertextualidadc. Nos a ver com o que faço hoje. Existe uma dimensão lite-
concentramos em tentar captar correlações, afinidades e sime- rária no trabalho do historiador c tenho muita cons-
trias cnlre o texto ele Ginzburg e alguns de seus interlocutores ciência desse elemento. Existe t·ambém esse amor
sem tentar distingu ir sua "intencionalidade". Q uando no livro pela pinrura, que é muito importante para mim. 1
falamos influência, estamos abrangendo todas essas gradações.
Assim começa a resposta ele Carlo Ginzburg à pergunta
Em um texto sobre os cinquenta anos de Andarilhos do
"por que história?", feita pela historiadora Lucia Lippi Oliveira.
Bem, Carlo Ginzburg, associou a leitura de um livro a uma sé-
Em setembro de 1989, pouco tempo depois do lançamento de
rie de caixas chinesas: aquele que lê estaria lendo, ecoados ou
seu livro História Noturna, o historiador italiano veio ao Brasil
referidos, outros livros juntos, direta e indiretamente. "Não só
para uma série de palestras a convite ela USP, ela Unicamp e do
isso: enquan to lê um livro irá lembrar, contemporaneamentc, ele
PPGAS elo Museu Nacional (UFRJ). Nessa ocas ião concedeu
maneira consciente ou inconsciente, ele muitos outros". 11 Esse li-
a Lippi, Alzira Alves de Abreu e Ângela ele Castro Gomes uma
vro concede parte deste conceito também àquilo que se escreve;
entrevista marcada por um certo descompasso en tre as tenta ti-
uma ten tativa ele contribuição para compreensão ela labiríntica
vas das entrevistadoras ele extrair do autor um panorama ele in-
relação entre leitura c escrita.
ABREU, i\lzira Alves; COMES, Ângela de Cast ro & OU VEIRA
li C I ~ZBU RC, Carla. "Os Andarilhos do Bem, cinquenta anos depois". Lucia Lip~i., ':Histó~ia e Cultura: conversa com C<1rlo C inzburg":
In: VENORAME, Mafra; Ki\RZBURC, Alexandre. Mícro-1-listória: um
Estudos 1-/Jstoncos. Rw de Janeiro, vol. 3, n. 6, 1990, p. 255.
método em traus(onnaçào. 1" ed. São Paulo: Letra & Voz, 2020, p. 347.
32 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 33

fluência s e interlocutores dentro da historiografia e uma latente cou muito mais profundamente do que qualquer li-
vontade do entrevistado em direcionar o assunto para influência vro de história, inclusive os de Marc 131och. Assim
da literatura (e da pintura, ainda que de forma mais indireta) na também Dostoievski. Ou seja, os romances foram os
livros que mais me tocaram.3
sua formação intelectual, nas escolhas dos objetos de estudo e na
construção do seu texto. Ainda acrescenta:
Pouco depois da declaração supracitada, ao ser pergunta-
do a causa de ter escolhido as feiticeiras como tema de estudo, Devo mencionar ainda outra grande descoberta que
Ginzburg, após uma breve reflexão sobre a ligação entre o fato fiz em minha vida: o Warburg lnstitutc, em Londres.
de ser judeu e a escolha de estudar elementos marginais c here- [... ] Fiquei fascinado pelo instituto, pela história dt~
ges, afirma: arte, pela possibilidade de trabalhar com história
da arte numa perspectiva mais ampla. [... ] Na Itália
I h1via ainda outro elemento mui lo profundo em meu como no Brasil, as pessoas perceberam meu traba-
inte resse pelas feiticeiras: a fascinação pelos contos lho através da tradição dos /\n nales. Sem dúvida os
de fadas que minha mãe lia quando eu era criançn. Annales foram importantes para mim. 1\os t'tltimos
Isso foi uma coisa que retornou e teve um papel mui- 15 anos tenho sido regularmente convidado a ir <1
to importante, por exemplo, no livro que acabo de Paris para discutir com o grupo dos Annales. !VIas
publicar na lt<ília, História Noturna. É um livro so- acho que meu arcabouço intelectua l é mais hetero-
bre o sabá que será traduzido aqui pela Companhia gêneo. Houve outras coisas que me marcaram.~
das Letras. Essa ligação entre as feiticeiras e os contos
de fadas também teve um papel fundamcntal. 2 Novamente as historiadoras parecem pouco interessadas em
explorar a heterogeneidade da formação c amplitude teórico-me-
Ignorando a aparente "deixa" do entrevistado para que o todológica de Ginzburg: "O senhor também sofreu influência
assunto continuasse ao explorar as nuances da mencionada li- do marxismo?" Abreu o interpela, reconcluzindo a conversa à
gação, as entrevistadoras preferiram aproveitar a menção feita à um caráter mais tradicional.
Benedetto Croce um pouco antes: "O senhor falou em Croce. A entrevista prossegue, e uma pergunta de Lippi parece
Vico também foi uma influência em seus anos ele fo rmação?". agradar ao entrevistado, justamente porque lhe dá oportunidade
Contudo, no meio ela resposta a essa pergunta sobre Vico, de voltar-se para o tema da construção do seu texto: "O senhor
Ginzbu rg retoma o assunto da literatura: é um historiador italiano internacionalmente conhecido. Como
se deu sua inserção nos meios intelec tuais internacionais?".
Acredito que no fundo os livros de história talvez não
Ginzburg então afirm a:
tenham sido a coisa mais importante que li. Acho
CJlle Guerra e paz de Tolstoi, por exemplo, me mar-
3 Ibidem, p. 258.
2 Ibidem, p. 257. 4 Tbidem, p. 259.
34 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 35

Acho que esta é uma pergunta importante porque permanecer como apanágio de um grupo restrito de
tem implicações que vão muito além do meu caso profissionais? Poderemos interessar pessoas que não
pessoal. [ ... ] a partir do século :i\'Vlll, XIX, surgiram são profissionais se dividirmos com elas não apenas o
temas que se justificavam por si mesmos sobretudo resultado da pesquisa, mas também o caminho per-
porque csta,·am ligados a histórias nacionais. Este corrido para chegar até ele. t\s vezes a pesquisa pode
era o {ramework, o quadro geral. Era em relação a ser mais fascinante do que o resultado.;
esse quadro que os temas eram mais ou menos jus-
tificados. Evidentemente havia temas que não eram E mais à frente, ainda respondendo a pergunta "A pene-
interessantes c importantes apenas para uma deter- tração de seus livros teria sido facilitada por uma conjuntura
minada comunidade nacional, como a Revolução intelectual que tende a valorizar a história das mentalidades, a
Francesa ou a descoberta da América. Mas sempre história social?" essa pergunta, ele reto m a~~ natureza artfstica do
h;1via essa mediação da histó ria nacional. E penso
seu texto:"[ ... ] E isso está ligado ao fato ele que sempre tento con-
que nada elo que fiz passa por essa mediação. r\ con-
trolar o que escrevo, ou seja, sempre procuro criar efeitos. Isto é
scquê ncia disso é que a história que faço, que pode-
ria ser abordada ele uma maneira inteirame nte local,
muito importante para mim, e muito consciente. Há em meus
pode ser traduzida para o japonês. [... ] Penso que a livros um lado meio romance elo século xrx, um lado meio coup
traduzibilidade de meus livros está ligada ainda a ou- de lhéâtre. Procuro criar esses efeitos, controlar as lei turas [ ... ]".6
tro elemento. Entre os historiadores italianos sempre Ao longo de toda a entrevista, Ginzburg quis deixar claro
prevaleceu, e prevalece até hoje, com raras exceções, que a inAuência da pintura e, principalmente, da literatura na
a tendência a escrever para profissionais. Há muito sua forma de ver e de escrever história foi, talvez, ma ior que a
ele implícito no que se escreve, e isso dificulta a tra- importância de historiadores ou de correntes h istoriográficas,
dução. Cantimori, por exemplo, escrevia ele uma
tais quais o marxismo e os Annales. Por conseguinte, algumas
maneira muito complicada, cheia de parênteses, de
questões se tornam importantes: qual seria esse lado meío ro-
subentendidos. Eu era fascinado por ele como his-
mance presente nos livros do autor? Meio coup de théâtre? Que
toriador, mas desde muito cedo decidi que gostaria
de trabalhar ele maneira diferente, de escrever tan- efeitos seriam esses que ele procura criar? Qual a relação que
to para profissionais quanto. para um público mais Carlo Cinzburg mantém com técnicas próprias a fi lólogos e
amplo. E foi o que fiz em Os andarilhos do Bem e escritores? 1\osso objetivo nesses dois primeiros capítulos é
O queijo e os rermes. Mesmo o livro que será publ ica- tentar responder essas perguntas seguindo pistas deixadas pelo
do aqui pela Paz e Terra, sobre Piero clclla Francesca, próprio autor em alguns ele seus textos. E somado a isso, o que
é um livro que tem um lado técnico, e, no e ntan to, fu ndamentará as análises que se seguem é um conselho do pró-
foi lido na Itália por um público que não e ra for-
prio historiador italiano. Segundo ele, "para dizer algo sign i-
mado apenas por profissionais. A icleia de escrever
para um público amplo me parece ser um fim Clll si
5 Ibidem, p. 260.
mesmo. Se a pesquisa é importante, por que deveria 6 Ibidem, p. 260.
36 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbcrt Dias

fi ca tivo sobre o método histórico deveriam analisar-se não só


os resu ltados finais, mas também o caminho que se percorreu
para se chegar até eles. Se assim não for, surgi rá uma imagem
distorcida do trabalho dos historiadores".' Mimetismo:
entre a Filologia e a História

l.
Em seu artigo "adeus a crítica" 1 o poeta ameri ca no e Karl
Shapiro faz a seguinte afirmação:

[... ] contesto o princípio subjace nte à explicalíon


de texte. Um poema não de via servir como le ma de
estudos linguísticos, semânlicos ou psicológicos ( ... ]
poesia não é linguagem, mas uma linguagem suis
generis, que só pode ser enlendida, parafraseada ou
traduzida como poesia [... eu preferia designar a pa·
lavra da poesia como 'não-palavra' ( ... ] um poema é
uma construção lite rária composl :~ de 'não-palavras'
que, tomando distância do sentido, alcançam por
meio da prosódia um scntido-além-do-sentido. 2

Para confrontar tal assertiva, Lco Sp itzcr analisou uma es-


trofe de um poema do próprio Shapiro. Ylas não sem antes faz er
notar que essa atitude de poetas, em revolta à críticos que tentam
explicar sua poesia, data elo período romântico, e "não teria ocor-

SPTIZER, Leo. Três poemas sobre o êxtase: Jolw Douue, San /rum de La
7 C INZBURG, Ca rla. " l~kfJhrasis e citação". In: A J'vlicro-história e ou- Cruz, Ricfwrd Wagner. ]·' cd. São Paulo: Cos~c & Naify, 2003, p. 35.
tros ensaios. I'' cd. Oifcl: Lisboa, 1989, p. 21 5. 2 Ibidem, p. 35 e 36.
38 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 39

rido a Dante, San Juan de Cruz, Racine ou :\llilton [... ]". 3 Assim o ria entre o vento que sopra e a morte de tantos ho-
filólogo vienense passa para análise do trecho de Nostalgia: mens) c do ritmo já descrito que se entrevê um outro
plano, o ela poesia. Desse modo, por meio de palavras
J\ilinha alma está à janela do meu quarto cotidianas, surge a possibilidade ele uma lógica além
E eu, dez mil mi lhas ao longe da lógica humana, a lógica do destino que determina
Meus dias são tomados pelo som fatídico do oceano, o sopro elo vento e a morte dos homens 7
Sal e névoa e espuma amarga,
Que o vento sopre, pois, muitos homens hão de morrer. 4 Seguindo em sua explicação do texto, Spitzer localiza dois
exemplos históricos, nas baladas folclór icas de François Villon
Nos versos acima, o poeta que havia lutado na Segunda c em Shakespeare; o uso de semelhante expediente usado por
Guerra na frente americana do Pacífico, observa o oceano de sua Shapiro em seu poema "em que se confere a palavras de aparên-
janela, começa a nos esclarecer Spitzer. Shapiro então pensa nos cia trivial uma nova função: sugerir a necess idade de submissão
companheiros de guerra que não voltaram à pátria. "l\ão apenas a ao destino, figurada pelos elementos". Assim conclui sua brevís-
situação exterior e interior é clara",; afirma, "também a prosódia é sima análise ele fo rma diversa do que afirma Shapiro, asseveran-
assimilável e explicável". An tes disso jéí havia apontado ao falar do do que poesia consiste "em palavras, cujo sentido é presen,ado e
artigo supramencionado que "por 'prosódia' o senhor Shapiro re- que, pela magia elo trabalho prosóclico elo poeta, alcançam um
fere-se não apenas ao ritmo poético como também às associações "sentido-além-do-sentido". Dessa maneira, a tarefa do filólogo ao
poéticas e as figuras de linguagem". 6 Continua então dissecando explicar o texto seria assinalar como se deu essa transfiguração,
os pormenores do texto, trabalhando em consonância com o poeta sem, contudo, neces-
sitar de sua aprovação, retraçando "paciente e analiticamente o
[.. .] o quinto verso, que é o refrão do poema, quebra o caminho do racional ao irracional -distância que o poeta pode
ritmo do quarteto precedente com seu anapesto inicial ter coberto de um único salto auclaz". 5
c o choque subsequente ele duas srlabas tônicas (let lhe
Partindo de uma única estrofe de um poema de Shapiro,
wínd blów), evocando o impacto do destino [... ] Tvlas as
escolhida especialmente devido sua irradiação conter as conclu-
palavras wind blow, man c die são ainda palavras da lín-
gua inglesa, que preservaram su<)S conotações cosh•mei-
sões necessárias ao seu intento, o filólogo vienense confronta,
ras (de resto não inteiramente racionais); é tão-somente fazendo uso da técnica da explícation de texte, -os argumentos do
por obra de disposição na oração causal (ou melhor, poeta contra a própria explícation de texte.
pseudocausal, pois não há nenhuma conexão necessá-

3 lbidem, p. 36
4 lbídem, p. 38.
5 Ibídem, p. 38. 7 Ibidem, p. 38 e 39.
6 Idem. 8 Ibidem, p. 39.
40 Dcivy Fcrrcim Carneiro e Dan iel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 41

2. l<1r sobretudo o Sr. L. Spitzer) e serve-lhes para fina lidades que


. Em ,1~4 3, no seu exílio em Istambul devido a perseguição ultrapassam a prática escolar;" (... ] um instrumen to de pesquisas
naztsta, Ench Auerbaeh escreveu seu Introduction Aux Etudes de c de novas descobertas". 12
Philologie Romane9 com o objetivo de fornecer a seus estudantes a sua forma pedagógica o método consistia na análise de
turcos um quadro geral do desenvolvimento da literatura ociden- poemas ou passagens escolhidas, através das quais se pretendia
tal. Na primeira parte, em que fala da filologia e suas diferentes alcançar: a) compreensão gramatical do trecho, b) estudo da
form~ts, nos apresenta em um de seus tópicos a explication de versificação ou ritmo da prosa, c) exprimir com suas próprias
texte, em que diferencia a explicação de textos que há algum palavras a estrutura do pensamento, do senti mento e ou aconte-
tempo começa ra a ser praticada, da tradição que vinha desde cimento da passagem. A partir disso d) compreender o que havia
a Antiguidade, e que cresceu em importância durante a Idade no texto de particularmente característico do autor ou de sua
Ylédia, denominada "comentário''. 10 Diferente dessa, ele afirma época, tanto na form a como no con teúdo. Dito isso, j{l podemos
que a exf;licalion de texte possuía outros procedimentos c fin s. vislumbrar várias particularidades presentes, por exemplo, no
"Q mmto aos procedimentos,'' o filólogo alemão diz, "sua origem breve exemplo elo embate de Spitzer com Shapiro.
deve ser procurada, ao que me parece, na prática pedagógica das Já o desenvolvimento ele um caráter científico que tal mé-
escolas. Um pouco por toda parte, sobretudo na França [... ]".11 todo didático conqu istou veio combinando essa prática escolar
Inevitável associaçJo desse trecho ao nome ele Gustave Lanson, com várias correntes do pensamento de sua época, entre as quais,
crítico literário, que foi um grande defensor e difusor do méto- Aucrbach ci ta, a estética de Croce, a fi losofia fenomenológica
d~ formalista francês, principalmente como ferramenta pedagó- ele Husserl e as análises de história da arte de H. \VolfAin . Assim
gica, e que possui por característica ser anti-sistêmico e apostar Auerbach nos dá um panorama de como praticar tal método:
numa a abordagem minuciosa e erudita dos textos combinando-a
A explicação literária se aplica de preferência a um
com uma profunda investigação histórica .
texto de extensão limitada, e parte de uma análise
O termo e os procedimentos da explication de texte em sua por assim dizer microscópica de suas formas linguís-
origem remetem a esse tipo de análise feita na França, prede- ticas e artísticas, dos motivos do conteúdo e de sua
cessora d~t close reading inglesa. Contudo, prossegue Auerbach, composição; no curso dessa análise, deve servir-se de
"esse método foi consideravelmente desen~olvido c enriquecido todos os métodos semânticos, sintáticos e psicológi-
por alguns fil ólogos modernos (entre os romanistas, é preciso ci- cos atuais, é mister fa zer abstr:~ção de todos conhe-
cimentos anteriores que possuímos ou ac reditamos
9 possuir do texto c do escritor em questão, de sua bio-
AUERI3AC H, Erich. lntroduction Aux Etudes de Philo/ooie Romrme:
Klost·ern 1a1111, Vittorio, 1965. 1:>
grafia, dos julgamentos c das opiniões correntes ao
10 AUF:RI3ACH, Erich. Ensaios de Literatura Ociden!ctl. z• ecl. São seu respeito, das influê ncias que ele pode ter sofrido,
Paulo: Editor:J 34, 20 12, p. 38 e 39.
11 Ibidem, p. 38 c 39. 12 Ibidem, p. 38 e 39.
42 Dcívy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma c o tempo 43

etc; cumpre considerar somente o texto propriamen- te cinquenta línguas literárias"Y Juntando-se a esse problema ela
te dito e observá-lo com atenção intensa, sustentada abundância, ele segue acrescentando a necessidade de ocupar-se
de modo que nenhum dos movimentos da língua e
para além do texto literário em si com as condições religiosas, fi-
do fundo nos escape (... ] Todo o valor da explicação
losóficas, políticas e econômicas em que ele foi produzido, sem
de textos está nisso: é preciso ler com atenção fresca,
espontânea e sustentada, e é preciso guardar-se escru-
ignorar mesmo as artes plásticas e a música nesses lins. 16
pulosamente de classificações prematuras. Somente Segundo ele a abundância de material produz uma espe-
quando o texto estiver inteiramente reconstruído, em cialização cada vez maior, que por sua vez faz surgir métodos
lodos os seus pormenores e no conjunto, é que se cada vez específicos de pesquisa "ele modo que, em cada área
deve proceder às comparações, às considerações his- de espec ialização (e mesmo para cada corrente ele pensamen-
tóricas, biogr<lficas c gerais [ ... ]n to dentro delas), forma-se uma espécie de linguagem secreta".
Por fim ainda se acrescenta conceitos e métodos provenientes
Essa explicação literária, portanto, tem como marca primor-
de outras correntes; sociologia, psicologia, correntes filosófi-
dial a escolh a ele um trecho ela obra do autor, sem pre usando
cas e etc . Diante de tal contexto, "num lurbilhão de ex igên-
como funda men to dois elementos: um ponto de partida e a "ir-
cias e perspectivas a que é quase impossível atencler", 17 e sem
radiação" que o trec ho possa proporcionar.
querer limitar-se a um campo estritamente restrito e a con-
Funcionando ele maneira próxima a de um mote, o ponto ele
ceitos de pequenos círculos de colegas, o autor se pergunta
partida é definido como "um ponto de apoio que permita atacar
como é possível pensar numa filologia sintético-cicntflica da
o problema". Dele extraí-se um "grupo bem delimitado e contro-
literatura mundial.
lável de fenômenos" como numa combinação de glosas elas quais
"Não partir de considerações amplas e gerais, mas sim de
se tira alguma harmonia, a interpretação de tais fenômenos "deve
um único fenômeno bem delimitado e quase estreito" ,' ~ afir-
ter força de irradiação suficiente para ordenar e interpretar um
ma Auerbach usando o livro de Ernest-Robert Curtius sobre
conjunto de fenômenos muito mais amplo que o original". H
Literatura europeia e Idade Média Latina como exemplo de
Dessa forma, em seu clássico ensaio sobre uma Filologia para
êxito: "em suas melhores partes a obra consegue mobilizar mas-
a literatura mundial, Auerbach tenta estabelecer um método para
sas enormes de material sem cair na mera acumulação, antes
enfrentar o obstáculo de praticar uma filologia sintética diante
promovendo uma irradiação a partir de poucos cxemplos". 19 É
ela opulência cada vez maior de material, métodos e pontos de
importante perceber que se nesse texto publicado em 1952, as
vista relacionados à literatura global-internacional: "Material ele
técnicas do explication de texte aparecem como fe rmmen ta para
seis milênios, de todas as partes da Terra, e em aproximadamcn-
15 Idem.
IG Ibidem, p. 363.
17 Ibidem, p. 364.
13 lbiclem,p.40e41 18 Ibidem., p. 366.
14 lbiclem,p.369. 19 Ibidem, p. 367.
44 Dcivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berb ert Dias A forma c o tempo 45

lidar com a opulência, na grande obra de Erich Auerbach, ela foi Em Mimesis, encontramos o "ponto de partida" elo livro
fundamenta l num contexto antípoda. Mimesís foi escrito duran- t'IHinciado no próprio subtítulo "a representação da realidade na
te a Segunda Guerra Mundial, durante seu exílio em Istambul, literatura ocidental", e ao longo elos seus vinte capítulos, cada
com acesso profundamente reduzido a fontes primárias, c com- 111n tratando de uma época, Auerbach nos oferece "u ma inter-
pletamente ,·edaclo a fontes secundárias.20 p• elação ela realidade através da representação literária". J\ão
Nesse cenário, mais do que falar da "força de irradiação" dos \t: m motivo o autor é apresentado como um dos mais frequentes

trechos escolhidos para a construção deste grande tomo, importa 1111erlocu tores de C inzburg nas suas polêmicas contra o ataque
salien tar a excepcional capacidade do filólogo alemão em por C'élico às possibilidades de verdade. Aliás, a imitação do real no
assim dizer ele "fazê-los irradiar". Ele mesmo via nesse processo Iex to literário, pode ser considerada para além de 1\11imesis o
duplo ele escolha-irradiação (e em todo expediente da ex{Jlication lema que orientou praticamente toda a obra do fi lólogo Alemão.
de texte) não só um mecanismo metodológico científico, mas 1\o primeiro capítulo, que faz de certo modo também opa-
também uma tática ligada a processos mais subjetivos c intuiti- pel da introdução, já ficam claras as estratégias que Auerbach
vos. Um procedimento que conjuga "erudição" e "faro", por que uti lizará ao longo do livro: esm iuçar meticulosamcnlc os frag-
mesmo com a escolh a elo ''melhor elos pontos de partida" ainda mentos selecionados, identificando e reAetinclo sobre sua estru-
sim será preciso "mu ita arte para ater-se sempre ao obj eto" já que tu ra sintático-gramatical e estético-narrativa, partindo posterior-
"Por toda parte espreitam conceitos já cun hados, mas poucas ve- lll Cnte para comparações intertextuais, c no decurso de todo esse
zes adequados, apesar de frequentemen te sedutores por seu tom processo, ou melhor justamente em decorrência dele, construir
e pela orientação da moda". 21 uma série de percepções.
Para Aucrbach a explícation de texte, além de uma técnica, Nesse primeiro capítulo ele utiliza dois textos que julga re-
é também um talento e uma arte a ser combinada necessaria- presentantes de estilos que considera fundamentais na antiguida-
mente com uma grande erudição. Todas as características de tal de: o grego e o hebraico. Temos assim a parte da Odisseia em
método que abrangemos acima (e algumas outras), se fazem pre- que Homero narra o reconhecimento ele Ulisses por sua antiga
sente, com toda sua potência e virtude, na já referida e principal ama através de sua cicatriz, e Abraão no processo de receber e
obra de Erich Aucrbach, a qual gostaríamos de analisar com um cumprir a ordenança divina de sacrificar seu próprio filho à Deus.
pouco mais de cuidado nas linhas que se s·eguem. Auerbach abre o ensaio contextualizando e descrevendo o texto
homérico para logo em seguida esquadrinhá-lo da seguinte forma:
3.
Tudo isso é modelado com ex;~ tid ão c relatado com
vagar. Num discurso direto, pormenorizado e fluen-
20 C INZI3URC, C<Jrlo. "A áspera verdade: um desafio de Stenclhn l aos te [.. .] a ligação sin lál ic;, entre as partes é perfei-
hisloriaclores". In: O Fio e os Rastros: verdadeiro, fa lso e {ictfcio. 1" ecl. tamente clara; nenhum contorno se confunde. Ilá
São P:lltlo: Companhia das Letras, 2007, p. 175. também espaço e tempo abundantes para descri-
21 AUF:RBACH, Erich, op. cít., p. 371.
46 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 47

ção bt:m ordenada, uniformemente bem ilumina- os próprios fenômenos isolados, também as suas
da, dos utensílios, das manipulações e dos gestos, relações, os entrelaçamentos temporais, locais, cau-
mostrando todas as articulações sintáticas; mesmo sa.is, finais, consecutivos, comparativos, concessivos,
no dramático instante do reconhecimento não se antitéticos e condicionais vem a luz perfeitamente
deixa de comunicar ao leitor que é com a mão di rei- acabados. ( ... J E este desfile de fenômenos ocorre
ta que Ulisses pega a velha pelo pescoço, para im- sempre em primeiro plano, isto é, sempre em pleno
pedir-lhe que fale, enquanto a aproxima de si com presente espacial c tcmporal. 24
outra mão. Claramente circunscritos, brilhantes e
uniformemente iluminados, homens c coisas estão De tal forma, nesse molde, por cinco páginas, Auerbach nos
estcílicos ou em movimento, dentro de um espaço fornece uma dissecção meticulosa desse excerto ela Odisseia para
perceptível; com não menor clareza, expressos sem finalmente introduzir, seu avesso, o texto elo velho testamento:
reservas, bem ordenados até nos momentos de emo- "A singularidade elo estilo homérico, fica ainda mais nítida quan-
ção, aparecem sentimentos e icleias.ZZ
do se lhe contrapõe outro texto, igualmente antigo, igualmente
épico, surgido ele um outro mundo el e form as".Z> Fntão o que se
Importante destacar que estilo homérico não é uniforme-
segue é outra vez um exame detalhista do relato elo sac rifício ele
mente aniílogo ao clássico-antigo em geral, posteriormente a
lsague, contudo agora beneficiado pela constante possibilidade
doutrina de separação ele estilos não permitiria numa tragédia tfio
de cotejo com a obra elo poeta grego:
minuciosa representação ele acontecimentos coticlianos. 23 Mas,
principalmente no cotejo com a passagem bíblica que virá, o tex- Depois disto, Deus fJrOvou Abraão. E disse-lhe:
to do poeta grego se mostra ideal para os propósitos ele Auerbach, Abraão! -Eis-me aqui, respondeu ele. Já este princf-
que prossegue falando do trecho da Odísseía: pio nos deixa perplexos, quando viemos de I lomero.
Onde estão os interlocutores? Isto não é dito. Mas
Os diversos membros dos fenômenos s;io postos sem- o leitor sabe bem que não se acham no mesmo lu-
pre em clara relação mútua; um n(unero conside- gar terreno, que um deles, Deus, deve vir de algum
rável de conjunções, advérbios, partículas e outros lugar, deve irromper de alguma altura ou profunde-
instrumentos sintáticos, todos claramente delimita- za no terreno, para falar com Abraão. De onde vem
dos e sutilmente graduados•na sua significação, des- ele, de onde se dirige a Abraão? ;\ada disto é dito.
lindam as personagens, as coisas e as partes dos acon- Ele não vem, como Zcus ou Poseidon, das Etiópias,
tecimentos entre si e os põem simultaneamente, em onde se regozijara com um holocausto. Nada se diz,
correlação mútua, ininterrupta e Aucnte tal corno também, da causa que o movera a tentar Abraão
terrivelmente. Ele não a discutim como, Zeus, com

22 i\UERBi\C l J, Erich. Nlimesis: a representação da realidade 11a literatu-


ra. 6" ed. Siio Pau lo: Perspectiva, 2015, p. 2. 24 Ibidem, p. 4-5.
23 Ibidem. 25 Ibidem, p. 5.
48 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 49

outros deuses [ ... J também não nos é comunicado o t'll lrega" 28 todo restante não é manifesto, "fica no escuro".
que ponderara no seu próprio coração; inesperada e Mas no aprofundamento ela análise, a aparente "pobreza"
enigmaticamente penetra na cena [ ... ). 26 llaquilo que é iluminado do texto hebraico carrega consigo uma
pnrl icular "riqueza", pois como só aquilo na ação que é decisivo
Nesse ponto elo texto, Auerbach já partira para oub·a carac-
deve ser salientado o que acontece entre os pontos culminan-
terística ele seu procedimento filológico: ten tar enxergar através
l t.:s "é inconsistente; tempo e espaço são indefinidos e precisam
ela escrita, seja ela literária ou historiográfica, peculiaridades da
de interpretação; os pensamentos e os sentimentos permane-
realidade daqueles que a produziram, assim a comparação, não
cem inexpressivos: só são sugeridos pelo silêncio e por discursos
restrita aos dois textos, dialoga também com o conhecimento esta-
fragmentários". 29 Como todo texto é profundamente unitário e
belecido que se possui ou julga-se possu ir daquelas sociedades que
conduzido para um especial e único destino, adqu ire diferentes
produziram a obra. "Dir-se-á que isto se explica a partir da singular
c enigmáticos "segundos planos". Auerbach inclusive transfere
noção divina elos judeus, tão diferente ela elos gregos. Isto é correto,
essas características para os personagens do texto bíblico que se-
mas não uma objcção"Y Então o autor segue refletindo sobre a so-
riam mais ricos em segundos planos que os homéricos: "eles têm
lidão sem forma e residência do Deus primitivo dos judeus, carac-
mais profundidade quanto ao tempo, ao destino e à consciência.
terística que se desenvolveu e se afirmou profundamente na sua
[ ... ] seus pensamentos e sentimentos tem mais camadas e são
peleja contra os muito mais inteligíveis deuses do oriente próximo.
mais intrincados.30
Sustentando, por conseguinte, que: "A noção judaica ele Deus não
O embate comparativo entre os dois textos, e suas relações
é somente causa, mas antes, sintoma do seu particular modo de
com o ambiente em que foram produz idos, que ocupa todas as
ver e representar." Para embasar tal afirmação, ele segue na análise
páginas do primeiro capítulo de ivlimesis, riquíssimo em nuances
do texto mostrando como tal posição fica mais tangível quando se
e perspectivas, é um elos exemplos mais sublimes das inúmeras
volta para o outro interlocutor do texto, Abraão: "Onde ele está?
possibilidades cognitivas da explícation de texte.
Não o sabemos. Contudo ele diz: Eis-me aqui". Mas como explica
Já nesse ponto podemos perceber algumas características do
a seguir, a palavra hebraica "eis-me aqui" teria mais um sentido
método filológico de Auerbach presentes na obra elo Ginzburg.
de "vede-me" ou "ouço" e não fala de um lugar real no qual opa-
Por exemplo, após transcrever literalmente uma parte considerá-
h·iarca se enconb·aria, mas "o seu lugar mqral em relação a Deus
vel do processo inquisitorial ele Menocchio, o historiador italia-
que o chamara: estou aqui, à espera de tuas ordens." .1-\ssim segue
no afirma:
Auerbach, nada dos interlocutores hebreus é manifesto além ele
"palavras, breves, abruptas, que se chocam duramente, sem prepa- Assim, na sua linguagem densa, recheada de metá-
ração alguma; quando muito, a representação de um gesto ele total foras ligadas ao cotidiano, IVlenocchio explicava sua

28 Ibidem, p. 6.
26 Ibidem, p. 6. 29 Ibidem, p. 6.
27 Ibidem, p. 6. 30 Ibidem, p. 8.
50 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma c o tempo 51

cosmogonia tranquilamente, com segurança aos d.1 Igreja da criação baseada na bíblia. Cinzburg segue esse cami-
inquisidores [ ... ) Apesar da grande variedade de ter- nlu>, associando a fala do inquirido a um mito indiano presente no
mos teológicos, um ponto permanecia constante: a \~·da que remeteria a um estrato da cultura oral. 'lambém enxerga
recusa em atribuir à divindade a criação do mundo
no discurso de t\ilenocchio reverberações da Reforma Protestante e
-e, ao mesmo tempo, a obstinada rcafirmação do
da difusão da imprensa de Cutemberg.
elemento aparentemente muito bizarro: o queijo,
os vermes-anjos nascidos do queijo. l i Outra ca racterística que nos parece também marcante da
nfJ{icatíon de texte compartilhada por Cinzburg c Auerbach,
Após essa designação de certas peculiaridades da constru- ,. uma atitude, por assim dizer, "otimista" em relação a pos-
ção da argumentação de Menocchio, Ginzburg passa a com- ' ibilidade el e extrai r-se conhec imento de urn texto mediante
pará-la com um texto a qual ela possivelmente possa esta r co- o procedimento fi lológico, independente de suas característi-
nectada. "Talvez se ja possível detectar aqui um eco ela Divina cas ontologicamente "parciais". Assim, quando, por exemplo,
comédia ('Pu rgatório', X 124-25): ... ve rmes, nascidos {)(Lra for- At tcrbach se vê diante da narração sintatiC<lmcntc confusa, de-
mar angélica Borboleta" e segue assinalando que Mcnocch io sordenada ortograficamente e visivelmente direciollado para
reproduz li tera lmen te, em outra momento de seu testemunho, ~ns eclesiásticos de Gregório ele ToLtrS, não se fu rta de re tirar
o comen tário ele Vcllutcllo sobre esses versos. !'vias "porque jus- dela alguma compreensão histórica . O fragmento analisado
tamente aqueles versos[ ...] fica ram gravados na sua mente?". 32 por ele em Jv limesís está na História dos 17rcm.cos, no qual o
Para responder tal questão o historiador vale-se da relação entre Bispo Gregório conta a disputa sanguinária cnlrc dois perten-
a fala do moleiro e o meio na qual ela foi produzida: "a insis- centes da incipiente nobreza franca , Sicário c Cramnesindo,
tente remissão ao queijo e aos vermes tinha uma função pura- pequenos senhores.
mente analógico-explicativa. A experiência cotidiana do surgi- l\a descrição das características textuais, o filólogo faz notar
mento de vermes do queijo servia para l'vlenocchio explicar o os aspectos da língua falada presente no texto, onde a multidão
nascimento dos seres \·iventes". 33 de dados é exposta de forma apressada c pouco ordenada fazen-
Um pouco mais a frente Ginzburg continua a contextualizar o do com que a prosa, tal qual de um falante se confunda e se re-
pensamento elo Moleiro enxergando a cosmogonia de .VIenocchio pita. Orações se convertem em "monstruosidades gramaticais",
como "substancialmente materialista e tendencialmente científica" ora explicando demasiadamente detalhando um episódio pouco
observando que a doutrina ela geração espontânea, comparti] hada importante para trama central, ora simplesmente abandonan-
por todos os intelectuais da época, era mais científica que a doutrina do personagens ou deixando desfechos pouco satisfatoriau1ente
concl uídos. :YJas essas características já possibilitam Auerbach
faze r uma primeira e frutífera comparação:
31 GINZI3U RC, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um
moleiro perseguido pela Jnquisição. s• rcimp. São Paulo: Companhin Evidentemente, um autor clássico leria ordenado os
das Letras, 1996, p. l O1. acontecimentos de modo mais claro - supondo-se
32 Ibide111,p. J02.
que ele se tivesse dedicado a urn tema semelhante.
33 Ibidem, p. 102.
52 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbcrt Dias A forma e o tempo 53

[... ] eles não a teriam narrado de maneira alguma. Ao analisar a documentação inquisitorial, Carlo C inzburg
Para eles e para seu público uma tal história não teria ]'·lll'tc partilhar desse "otimismo", como por exemplo no estudo
tido o mínimo interesse. H 'I'~~' abre a coletânea de ensaios Mitos, Emblemas e Sinais, sobre
11111 processo de 1519 que ocorreu em Modena, no qual uma
Já a partir dessa diferença de ordenação e escolha de objetos
, .unponesa é acusada de feitiçaria. Chiara Signorini, era como se
dos textos da Antiguidade para o escrito l\íledieval pode-se captar
d1amava, e como nos relata o historiador italiano a mesma ini-
a "estreiteza do horizonte de Gregório, a sua pouca visão de um
d.dmente negou possuir qualquer ajuda diabólica, seus poderes,
todo amplo e estruturado" O Império romano esfacelou-se, agora
url rttlOLI, viriam de Deus, que remediaria assim as injustiças que
o historiador encontra-se numa posição diferente. "Gregório não
\ofria por ter sido expulsa de uma pequena propriedade em que
está mais num lugar para onde confluem todas as informações do
vivia. Blasfemara contra a proprietária que adoeceu e quando ins-
orbis temtrwn [... ] não é capaz de pensar no todo da Igreja [ ... ]
lada a curá-la comprometeu-se a fa zê-lo mediante oração a Deus e
b1do fica circu nscrito localmente, tanto material como mental-
o~Grmou aos inquisidores ter visões de Nossa Sen hora. Conquanto
mente". H Contudo, ao con trário de seus antecessores que rece-
posteriormente parte de suas confissões não se adequasse às expec-
biam informações geralmente por relatórios em escrita padroni-
l;tlivas preestabelecidas pelos inquisidores, foi por fim torturada,
zada, de forma mediata e racional, Gregório viu ou obteve relatos
"assumindo" o aspecto demoníaco de suas práticas.
orais bastante imediatos dos fa tos que narra. Dessa forma o seu
"É evidente que as confissões da acusada se devem exclu-
texto "possu i uma vivacidade visual e revela um empenho em imi-
sivamente à tortura; e, no entanto, se enganaria quem por isso
tar diretamente o acontecido jamais almejado pela Historiografia
decidisse não as levar e!n con ta".3i Com essa atitude o historia-
romana". Mais importante ainda na narrativa do Bispo, Auerbach
dor italiano começa a comparar as fal as de Ch iara, na fase inicial
consegue ler vestígios das circunstâncias históricas:
do processo quando os juízes atuavam apenas "induzindo" as
Ainda mais, tudo isso é psicologicamente grandio- respostas da acusada, com as confissões obtidas através de tor-
so, uma cena altamente arrebatadora entre dois ho- tura. "As duas narrações são constituídas- por assim dizer- dos
mens, c totalmente impregnada da estranha atmos- mesmos elementos (al iás simplicíssimos), ainda que o resultado
fera da época merovíngia: a violência indisfarçada, final venha a ter sinais opostos".'8 Dessa forma a identidade entre
o repentino, que apaga toda lembrança do passado c Nossa Senhora e o Diabo, sempre presente para o intcrrogador,
exclui qualquer previsão do futuro, c, por outro lado, que por exemplo chega numa pergunta a usar as mesmas pala-
o mínimo efeito da moral cristã que, apresenlad;l de
vras de Chiara num depoimento anterior, trocando, Virgem por
forma mais primitiva, não chega a penetrar nos espí-
ritos mais brutos.l6
37 GINZBURC, Carla. "Feitiçaria c piedade popult1r: notas sobre um
34 AUERBAC II, Erich. ivlimesis ... op. cít., p. 73. processo modeneuse de 1519". In: Mitos, Emblemas e Sinais: morfolo-
35 Ibidem, p. 73. gia e história. 1• ed. São Paulo: Companhia elas Letras, 1989, p. 3 t.
36 Ibidem, p. 74. 38 Ibidem, p. 33.
54 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma c o tempo 55

Diabo. Destarte ainda que tenda assim a flexionar a confissão lcs inquisitoriais. Com esse recurso, o historiador italiano acaba
para vontade elo juiz, tanto sob sugestão como através tortura, por produzir uma filologia irradiadora c figurai adaptada para o
não o faz totalmente, como percebe o historiador, fruto do cotejo ca nteiro de obras elos historiadores.
ele declarações da acusada. Semelhanças e diferen ças da confis- Mas a influência desse método, sobretudo elo grande livro
são por tortura, apesa r do elemento deformador que possui, são de Aucrbach, não se restringe somente a isso, conforme veremos
mediante o procedimento fi lológico úteis para o descortinar ele <~segu ir.

características de crenças básicas não só da acusada, mas tam-


bém capazes de lançar vislumbres da cultura da sociedade em 4.
que a mesma está inserida: ·o segundo capítulo de Mímesís, após analisar trechos de
escritores romanos, Petrônio e Tácito, Auerbach nos leva final-
A virgem que apareceu para Chiara identifica-se real-
mente com o diabo; mas isso, que para o padre-vigá-
mcnlc ao Evangelho ele Marcos e a narrativa da negação ele
rio explicava-se com o pacto que ligara a feiticeira ao Pedro, onde a combinação dos dois estilos analisados no primei-
demônio para sempre, tem para nós um significado ro capftulo começa se concretizar com bastante clareza . ' Ial per-
diferente e mais profundo. A divindade, como Chiara cepção possibilita ao autor fazer emergir aquele que se mostrará
pode concebê-la c venerá-la, é uma divindade que o tema central do livro: a quebra pelo cristianismo da graduação
intervém para livrá-la de suas angústias, ora lançando de estilos c objetos, oriunda da Antiguidade Clássica.
um malefício sobre os patrões que a expulsaram, ora
curando-os para fazer com que ela volte a herdade de- À primeira vista já se percebe que aqui não se pode
les; c não importa que seja uma divindade celeste ou falar ern divisflo de estilos. A cena, que pela sua
demonfaca. A convergência da religião ortodoxa e da localização e personagens - considere-se especial-
religião dcmonfaca sob um mesmo plano de religio- mente o seu baixo nível social - é essencialmente
sidade clcment<1r mostra, com uma clareza totalmen- realista, aprcsen t·a a mais profunda problemnticida-
te lnminosa, como podia ser estreito o limite que as dc c tragicidadc. Pedro não é mera figura acessória
separava no ânimo dos fiéis, especialmente em zonas que serve apenHs de iluslratio, como os soldados
rurais onde a fé religiosa frequentemente se mesclava Vibulcno c Percênio, apresentados como simples
com elementos supersticiosos ou pré-cristãos.l9 patifes e tratantes, mas é, no mais elevado, profun-
do e trágico dos sentidos, uma imagem do homem.
Assim como nesses dois exemplos, são bastante habituais Evidentemente, esta mistura dos campos estilísticos
nos textos de Ginzburg variações e adaptações desse tipo ele abor- não implica intenção artística alguma, mas se baseia,
dagem; uma espéc ie ele ajuste pessoal do uso da explíca.tíon ele primordialmente, no caráter dos escritos judeu-cris-
tãos, manifestando-se com maior deslumbramento e
texte para an<llises de documentos históricos, cspecialmenl·e fon-
evidencia na encarnação de Deus num homem elo
mais baixo nível social, na sua peregrinação pela ter-
39 Ibidem , p. 33.
56 Dcivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 57

ra entre homens comuns e circunstâncias ordinárias texto solene e muitas vezes cheio de tragicidade.'12 este ponto
e na sua paixão ignominiosa, segundo os conceitos novamente gostaríamos de tentar perceber como Ginzburg no-
terrenos, inAuenciando, evidentemente, da maneira toriamente emprega o escrutínio da literatura ocidental realizado
mais decisiva, os próprios conceitos do trágico c do
por Auerbach, como aporte metodológico-conccilua l:
subiime, graças a grande difusão e repercussão que
estes escritos encontraram em tempos posteriores." Quem leu Mimesís, o grande li\'ro de Erich
[... ] Pedro é convocado, da vulgar cotidianidade da Auerbach, há de lembrar que ele se constrói sobre
sua vida, para desempenhar o mais portentoso dos a tensão, desenvolvida dentro ela tradição literária
papéis; aqui, a sua aparição, assim como aliás tudo ocidental, entre uma ideia de hierarquia estilística (c
que tem a ver com a prisão de Jesus, não passa, no social) herdada da Antiguidade clássica c a subversão
contexto hisórico-universal do Império Romano, de dessa ideia pelo cristianisrno:Jl
um incidente provinciano, um acontecimento local
se111 qualquer signifi cado, ao qual ninguém, a não ser Esse trecho pertence ao ensaio David, Marat: Arte, polítíca,
as pessoas imediatamente envolvidos, presta atenção; relígião. 44 Nele Ginzburg parte do detalhe "L'an de11X" no qua-
contudo, quão importante, em relação à viela norma l
dro Ma rclt em seu últímo suspiro de Jacques-l.ouis David. Essa
ele u m pescador elo lago Genesaretc c que imensa os-
data, referente a 1793, alude ao novo calendário da República
cilação pendular [... ] realiza-se nele![ ... ] Uma figura
de tal procedência, um herói de tal debi lidade, mas
nascida da Revolução Francesa e de certa forma celebrava a ex-
que ganha de sua própria fraqueza a maior elas forças, tinção ele todos os fundamentos cristiios. Os Revolucionários, nos
um tal vaivém do pêndulo, tudo isto é incomp,ttível conta o autor ital iano, "embriagados por Plutarco e Rousseau,
com o esh lo elevado da literatura clássica.~ 0 viam a Antiguidade, Roma c Atenas, como modelos de civismo e
de virtudes heroicas" Y David, teria após a revolução, assumido o
Essa nova perspectiva introduzida pelo cristianismo na qual papel próximo a um "cenógrafo político", tendo projetado desde
o cotidiano, seus temas e objetos, passam a ser tratados de forma cerimônias políticas, funerais, roupas, selos e moedas. Também
séria,41 e o processo no qual a linguagem realista que deles trata os retratos dos mártires revolucionários.
conflu i para um estilo elevado e sublime, passa então a ser o mote O ensaio passa a revelar as inspirações cl{lssicas, princi-
dos próximos capítulos. Assim Auerbach nos mostra que durante palmente advindas do período que passou em Roma, com que
toda idade média c renascimento, houve um realísmo sério que David pintou o quadro sobre .Marat, mas "as lembranças classi-
representou acontecimentos corriqueiros da realidade num con-
42 AUERBAC H, Erich. 1Vfimesis ... op. cit., p. ;Q.
43 C INZBURG, Carla. "David, Marat: arte, polftica c religião". In:
40 AUERBAC H, Erich. J'Vlimesis... ofJ. cit., p. 35 e 36. Medo, reverência e terror: quatro ensaios de iconografia {wlftica. 1" ed.
41 A palavra "séria" está ligada a hierarquia de estilos, e não possui o sen- São Paulo: Companh ia das Letras, 2014, p. 43-44.
tido exa lo que tem no português corrente, está por exemplo ao lado de 44 lbidem, p. 44.
"trágico" e "sublime" nas gradações do estilo elevado. 4; Ibidem, p. 37.
58 Dei V)' Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 59

cizantes estavam mescladas a algo comp~etamente diferente". 46 a qual a realidade cotidiana e prática só poderia ter
Então nesse momento a citação supracitada aparece, e o pensa- seu lugar na lite ratura no campo de uma espécie de
estilística baixa ou rnédia. 48
mento de Auerbach é apropriado por Ginzburg para fazer-nos
notar um conteúdo cristão, escondido no quadro ele inspirações
Em seu e nsaio sobre a M icro-história, 49 a infl uência ele
clássicas, transpondo o conceito li terário para a iconografia.
'lolstoi como continuador elo pro jeto stendhaliano aparece expli-
Tal hierarquia social e estilística foi subvertida pelos citamente declarada. Todavia, a voz de Auerbach aparece implí-
Evangelhos [...] A rep resentação de um herói que cita, porém claramente presente, como alicerce teórico para as
morre esfaqueado numa ba nheira constituía uma vio- estratégias da mic ro-h istória ele Ginzburg:
lação análoga [...] pode-se di zer o mesmo em relação
aos objetos humildes que David reproduziu com tan- :\!Ias o impulso por esse tipo de narração (mais ge-
ta nitidez. [... ] iv!arat em seu último suspiro fa lava urna ne ricamente, o impulso a tratar a história) me vinha
língua clássica, mas com o mesmo sotaque cristão.47 mais de longe; de Cuerm e paz, da convicção expres-
sa por Tolstoi de que um fenômeno histó rico só pode
Essa tensão entre a hadição clássica e a narrativa cristã, se torna r compreensível por meio da reconstrução da
eixo central de Mímesís, é, segundo o próprio fi lólogo alemão, a ti vidade de todas as pessoas que deles participaram
[... ] No romance de Tolstoi, o mundo privado (a paz)
a brogada fi nalmente pelos realistas franceses, o que ele fato tem
e o mundo público (a guerra) ora correm paralela-
grande impacto formador em G inzburg. Assim, qua ndo ele diz
mente o ra se e ncontram [ ... ] Desse modo, Tolstoi
na entrevista às pesquisadoras brasileiras que "Há em meus livros
avançava pelo caminho esplendidamente aberto por
um lado meio romance do século XIX" somos levados imedia- Stendhal com a descrição da batalha de \Vaterloo
tame nte a pensar nas palavras contidas no epílogo de Jvlimesis: vista através dos olhos de fabrício del Dongo.;o

Tornou-se-me claro que o realismo moderno, da Por "esse tipo de narração" o autor está se refe rindo especi-
forma q ue se formou no começo do século XIX na
ficamente a escolh as que fez na escrita ele O queijo e os vermes
França, real iza como fenômeno estético uma total
para enfre ntar os seguintes dilemas teóricos:
solução daq uela doutrina: [ .. .] Q uando Stendhal e
Balzac toma ram personage1is quaisquer da vida co- ... a figu ra do histo riado r-narrador onisciente que
tidiana no seu condicionamento às circunstâncias esquadrin ha os mais ínfi~os detalhes de um acon-
h istóricas e as transfo rmaram em objetos de repre-
sentação séria, problemática e até trágica, quebraram
a regra clássica da difere nciação dos níveis, segundo 48 AUERBACI-1, Erich . Mimesis ... op. cit., p. 500-501.
49 GINZBURC, Carlo. lVlicro-bistória: duas ou três coisas que sei a res-
peito. In: O fío e os rastros: verdadeiro, falso, fíctrcío . 1' ed. São Paulo:
46 ibidem, p. 43. Companhia das Letras, 2007.
47 lbidern, p. 44. 50 Ib idem , p. 265-266.
60 Dcivy Ferreira Carneiro c Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 61

tccimento ou as motivações recônditas que inspi- Assim, por exemplo, aqui onde o escritor atinge a
ram comportamentos dos indivíduos, dos grupos impressão mencionada colocando-se a si próprio,
sociais ou dos Estados, impôs-se pouco a pouco por vezes, como quem duvida, interroga c procura,
como óbvia. i\ las ela é apenas uma das muitas pos- como se a verdade acerca a sua personagem não lhe
síveis, assim como os leitores de Mareei Proust, fosse mais bem conhecida do que às próprias perso-
de Virgínia Woolf. de Robert Nlusil sabem, ou de- nagens ou ao leitor. Tudo é, portanto, uma questão
veriam saber muito bem [ ... ] Antes de escrever O de posição do escritor diante da realidade do mundo
queiio e os Vennes ruminei muito tempo sobre as que representa; posição que é, precisamente, total-
relações entre hipóteses de pesquisa e estratégias mente diferente da posição daqueles autores que in-
narrativas. [... ] Esse projeto, sob certos aspectos terpretam as ações, as situações e os caracteres das
paradoxal, podia traduzir-se num relato capaz de suas personagens com segnrança ob jetiva, da forma
transformar as lacunas da documentação numn su- que, anteriormente, ocorria em gemi. [... ] O que é
perfície uniforme. Podia, mas evidenteme nte não essencial ao estilo de Virgínia \1'/oolf, 6 que não se Lra-
devin: por moti vos de que eram no mesmo tempo de ta apenas de um sujeito, cujas imprcssõc.~ conscie n-
ordem cognitiva, ética e estética. Os obstáculos pos- tes são reproduzidas, mas de muitos sujeitos, amiúde
tos à pesquisa e ram elementos constitutivos da do- cambiantes; [ ... ] Da pluralidade elos sujeitos pode-se
c umentação; logo deviam tornar-se parte do relnlo; concluir que, apesar de tudo, trat::1-se d::1 inte nção ele
assim hesitações e silêncios do protagonista, diante pesquisar uma realidade objetiva, ou se ja nesse caso,
das perguntas dos perseguidores - ou das minhns. de pesquisar a "verdadeira" Nlrs. Ramsay. Embora
Desse modo, as hipóteses, as dúvidas, as incertezas seja um enigma, e assim se mantenha fundamen-
tornavam-se parte da ve rdade obtida {e necessaria- talmente, é como que circunscrita pelos diferentes
mente incompleta). O resultado ainda podia ser conteúdos de consciência dirigidos a ela (inclusi\·e
definido como "história narrativa"? Para um leitor por ela mcsma).;2
que tivesse um mínimo de familiaridade com os ro-
mances do século XX a resposta era óbvia. 11 As implicações teórico-metodológicas dessas palavras ecoam
não só nas escolhas narrativas feitas pelo historiador em O queijo
Mais uma vez C inzburg parece valer-se de percepções e os vermes, mas ressoam por toda sua obra, tanto no tom muitas
de i\uerbach para enfrentar conAitos d~ seu ofício c de sua vezes autobiográfico ele seus livros e ens~ios; na natureza profun-
prática como historiador. .1\o último capítulo de i\IIimesis, damente plural e erudita em sua abordagem a temas e objetos
o fi lólogo alemão analisa um trecho de O farol, ele Virgíni a de estudo; e em sua atitude anti-positivista e crftica de certos
Woolf numa perspectiva muito próxima àquela expl icitada no elementos pós-modernos diante dos limites que circunsc revem
trec ho acim<l : o ofício de historiador.

5I Ibidem, p. 266. 52 AUERBACH, Erich. JVlimesis ... op. cit., p. 483.


62 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma c o tempo 63

Sobre um assunto de certa forma correlato, e que pode ilu- l' Ccomo uma tentativa ele executar essa atividade tão difícil de
minar essa reAexão, Aucrbach escreveu: escrever história furtando-se ao máximo de "fazer concessões à
técnica do lendário". À luz do pensamento de Auerbach, muito
Ora, na maioria dos casos, a diferença cnlre a lenda e mais próximo da lenda, estariam, por exemplo, textos de outras
história é, para o leitor um pouco experiente, fáci l de
correntes historiogr{lfieas, porque não dizer textos cien tíficos em
descobrir. Se é difícil distinguir, dentro de um relato
si, que generalizantes e pouco atentos a anomalias e desvios aca-
histórico, o verdadeiro do falso ou do parcialmente
iluminado, pois isto requer uma cuidadosa fo rmação
bnm, no tTato dos acontecimentos, repetindo a estrutura ela lenda
histórico-fi lológica, é fácil , em geral, separar a lenda onde "tudo o que ocorrer transversalmente, todo atrito, todo res-
da história. Sua estrutura é diferente. Mesmo quan- lante, secundário, que se insinua nos acontecimentos e motivos
do a lenda não se denuncia imediatamente maravi- principais, todo indeciso, quebrado c vacilante, tudo o que con-
lhosa, pela repetição de motivos conhecidos, pelo funde o claro curso da ação e a simpl es direção elos personagens,
desleixo na localização espacial ou temporal, ou, Judo isso é apagado.H
por outms coisas semelhantes, pode ser reconheci-
Em seu História No turna, C inzburg reconhece: "Acerca
da rapidamente, o mais das vezes por sua estrutma
da história humana sabemos e havemos de saber sempre mui to
que se descnvoh-c de maneira excessivamente linear.
pouco", 5; tal como Mrs. Ramsay se manterá um enigma para
Tudo o que ocorrer transversalmente, todo o restan-
te secundário que se insinua nos acontecimentos e Auerbach, nflo obstante, ambos parecem concordar que alguma
motivos principais, todo indeciso, quebrado e vaci- objetividade sempre será possível.
lante, tudo o que confunde o claro curso da ctção e a
simples direção elos personagens, tudo é apagado. A 5.
lenda ordena o assunto de modo unívoco e decidido, A meia marrom, que é o título desse último capítulo ele
dest.aca-o da sua restante conexão com o mundo, de
IV/ imesís, traz Auerbach revelando-nos o desfecho elas conse-
modo a este não poder intervir de maneira pertur-
quências da invasão do cotidiano pelo elemento sério, solene e
badora. Escrever história é tão difícil que a maioria
dos historiadores vê-se obrigada a fazer concessões à
dramático. Em seu O Farol, Virgínia Woolf com maestria ím-
técnica do lendário. 53 par, como foi tentado tam bém por vários autores ele sua época,
evidencia o momento qualquer, sem usá-lo no intuito de fazer
Desse modo, na escrita de Ginzburg, a inserção dos percal- progredir a ação, mas em si mesmo, assim: 56 •
ços, das dúvidas, das perguntas não respondidas e das limitações
em uma pesquisa na própria narrativa é, mais que qualquer ou-
tro "gênero" literário, uma submissão elo texto, em seus aspectos 54 Ibidem, p. 16.
formais, à intervenção "perturbadora" elo mundo. O texto apare- 55 GINZBURC, Carlo. I Iistória Notuma. Decifrando o Sahá. l" cd. São
Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 293.
53 AUERBACH, Erich. Mimesis ... o(J. cit., p. 15 e 16. 56 r\UERBACII, Erich. Mimesis... op. cit., p. 497.
64 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berb ert Dias A forma c o tempo 65

... tornou-se visível algo de totalme nte novo c ele- De certa forma, esse desfecho de Mimesis evidencia uma
mentar: precisamente, a plelora de realidade c alleridade. Por um caminho igualmente filológico, que abran-
profundidade vital de qualquer instante ao qual ge inclusive Homero, Vico concebeu seus primeiros homens,
nos entregarmos sem preconceito. Aquilo que nele
poetas com seu formalismo mágico a elaborar uma variedade de
ocorre lr-J ie-se de acontecimentos internos ou ex-
instituições com fórmu las e cerimônias fantásticas, "seres sem
ternos, embora se refira muito pessoalmente aos
homens que nele vivem, concernem também, c
raculdade de raciocínio",CJO mas com "um poder de imaginação
justamente por isso, ao elementar e comum a to- tão grande que os homens civilizados teriam dificuldade em con-
dos os homens em geral (... ]. Quanto mais for va- ccbê-lo".61 Já os últimos homens de Auerbach são seres racionais
lorizado [o instante qualquer], tanto mais aparece que através de uma gradual acumulação de processos dialéticos,
claramente o caráter elementarmen te comum ela dos mais variados, vai condensando sinteticamente sua existên-
nossa vida .... ;; cia material e intelectual em apenas uma.
Numa carta da tada de 3 ele janeiro ele 1937, Aucrbach es-
Nesse sentido, um episódio elos mais triviais, como a me-
creveu a Walter Benjamin: "Para mim, está se tornando cada
dição de uma meia, ganha grande profundidade real e decisiva
vez mais claro que a atual sit·uação intermJCional nada mais é
para a vida. E diante desse acon tecimento, não sem alguma me-
que uma astúcia ela providência [/ist der Vorse lnmgl, destinada a
lancol ia, Aucrbach sustenta que é possível perceber também que
nos levar por um caminho tortuoso c sanguinário, rumo a uma
"já agora as diferenças entre as formas de viver e pensar dos ho-
internacional trivialidade c um esperanto cu ltura l".62 A palavra
mens dim inuíram. Os estratos populacionais e as suas diferentes
providência relacionada ao desenvolvimento da história humana
formas de viela torna ram-se inextricavelmente mesclados".;s Essa
dificil mente pode ser desvinculada do pensamento de Vico, ain-
diminuição que ilumina a comunidade do momen to qualquer,
da ma is na fala de um profundo estudioso de sua obra. Ginzburg
antecipa um estado ainda mais fatídico das coisas a ser vivencia-
ta mbém abordou o assunto, partindo de Mimesis, mas também
do no futuro:
mencionando a referida missi\'a em seu ensaio Tolerancia e co-
Por baixo das lutas e também através delas, realiza-se mércio: Auerbach lê Voltaire. 63
um processo de igualização econômica e cultural; Partindo da leitura que Auerbach faz da sexta das Cartas
ainda há um longo caminho a ser percorrido para se Pilosó{ícas de Voltaire, sobre a bolsa de valores de Londres, o
chegar a uma viela comum do homem sobre a terra, historiador italiano afirma que entre os vários tipos de realismos
mas esta meta já começa a se tornar visível. 59
60 AUERBACH, Erich. Ensaios de literatura ocidental... op. cil'., p. 349.
ól Ibidem, p. 349.
ó2 GINZBU RC, Carlo. "Tolerância c comércio: Aucrb;1ch lê Voltaire".
;7 Ibidem, p. 497. In: O fio e os rastros: verdadeiro, falso, {ictrcio. t• ed. São Paulo:
58 Idem. Companhia das Letras, 2007, p. 212.
59 Ibidem, p. 497. 63 Ibidem, p. 112.
66 Dcivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 67

analisados em Mimesis encontra-se um que pode ser il ustrado morta".67 Armas que Ginzburg usa de diversas formas, contextual
pelos 1ivros de Stendhal e Balzac onde experiências particulares c textualmente, como veremos não só nesse capítulo, rnas nos
e cotidianas entrelaçam-se com as forças impessoais da história. que virão. Portanto, como fizemos com t\uerbach, será necessá-
O mercado mundial, retratado através da Bolsa de Londres, seria rio fazer uma jornada através elos conceitos do estranhamento,
uma dessas forças. Mas "Auerbach, por sua, vez preferiu salientar especialmente elo como historiador italiano o entende e o utiliza
as características voluntariamente cleformadoras ele uma descri- em alguns de seus trabalhos.
ção que, tirando os detalhes das cerimônias religiosas fora ele seus
respectivos contextos, faz delas algo de absurdo e cômico".64 Ao
falar dessa "técnica do refletor" própria da propaganda, o filólogo 6.
alemão, estaria associando-a inclusive ao nazismo. Ginzburg por Compreender certos elementos da filologia, tal qual pratica-
sua vez enxerga na composição elo texto de Volta ire uma carac- dos por Auerbach e Spitzer, são fundamentais para visualizarmos
terística diferente: ;1 manei ra como Ginzburg constrói sua metodologia ele análise.

Entretanto, o historiador italiano se utiliza constantemente ele


Para e xprimir a irrelevância das d iferenças re ligiosas,
Voltaire serviu-se do estranhamento, isto é, elo proces- outros procedimentos literários para respaldar não somente seu
so literário que transforma uma coisa familia r - u m estilo narrativo, mas também como forma de produzir conheci-
o bje to, um comportamento, uma intuição - numa mento histórico, para criar efeitos ele verdade. Dentre esses pro-
coisa estranha, insensata, ridícula. Chklovski, que foi cedimentos, o estranhamento merece um exame minucioso.
o primeiro a ide ntificar e analisar esse procedimento, De acordo Olga Guerizoli-Kempinska, o "estranhamento"
notou que os fi lósofos fizeram largo uso dele. Nas ( ocrpaHeHMe) carrega consigo traços do contexto de sua elabora-
cartas fi losóficas, encontrámo-lo a cada passagem. 65 ção: de reivindicações extremas da revolução russa, por um lado,
e de exigências estéticas da forma ela obra de arte, por outro.68
Auerbach, enuncia o autor italiano, provavelmente não te-
Ginzburg, refletindo sobre o pensamento do escritor russo
ria lido o ensa io de C hklovski e enfatizou somente "os riscos, não
Viktor Chklovski, no ensa io Estranhamento que abre seu livro
o potencial crítico" da técnica ele Voltaire, "um juízo unilateral
Olhos de Madeira, afirma que dois traços do primeiro formalis-
que surpreencle". 66 Ginzburg, contudo, afirma que os procedi-
mo russo se tornam aparentes em sua obra: a arte como mecan is-
mentos artísticos e literários seriam apenas meros instrumentos,
mo e a crítica literária entendida como 'conhecimento rigoroso.
"uma arma (e o estranhamento também é uma) pode servir
O autor ele Uma Teoria da Prosa revelaria em seus textos que o
tanto para matar uma criança ou impedir que uma criança seja
peso elos hábitos inconscientes é tão forte que se tornam automa-

64 ibidem, p. 11 3. 67 Ibidem, p. 120.


65 Ibidem, p. 116. 68 GUERIZOLI-KEMPISSKA, Olga. "O estrauharnen to: um exílio re-
66 Idem. pentino da percepção". Gragoalá. Niterói, n. 29, 2010, p. 64.
68 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 69

tizados e acabam por engolir tudo: coisas, roupas, móveis etc.69 ~ui ria
retirar o indivíduo do estado blasé; conseguiria libertá-lo da
Com o intuito de deixar cada vez mais expostos os mecanis- percepção automatizada elo cotidiano, elemento esse identificado
mos da arte que prolongam o tempo da percepção e produzem o por George Simmel, em um texto inaugural da sociologia urbana
estranhamente, ChkJo,·ski constrói uma série de procedimentos: publicado nos primeiros anos do século XX, como elemento fun-
primeiramente, busca "quebrar palavTas" para potencializar o al- damental para a compreensão da vida em metrópoles.n
cance emocional de sua sonoridade e fazer que elas se tornem
estranhas (cTpaHHbie) e parecidas com palavras de uma língua
"estrangeira" (11HOCTpaHH&lli). Em suma: o artista deveria pre- Para Chklovski, a arte deve ter como um de seus pro-
zar por algo que se apresentasse como não-familiar ao receptor. pósitos remover algo do âmbito ela percepção au tomatizada.
Al ém disso, o escritor russo objetivava, por meio elo procedimen- Concebendo-a como um procedimento; como mecanismo que
to ela "ilusflo cintihmte", criar uma barreira psicológica no leitor. levaria à compreensão de que forma mesma atua, não com sua
Ao destroçar as fronte iras disciplinares entre teoria literária origem, deixando claro um certo desinteresse pe.la história, típica
e pintura, C hklovski enfatizo o papel do espectador na sua con- dos formal istas russos. Ao refletir sobre essas questões, G inzburg
figu ração. Além disso o literato russo aponta também para a i111- também se pergunta se essa sensação ele estran hamento gerada
portâ11 eia da "faktura" para a constituição da pintura enquanto por uma arte como mecanismo eleve ser vista como sinônimo
objeto estético c não uma representação da natureza.i0 de arte em geral ou como um procedimento relacionado a uma
Nessa produção de uma arte como uma "forma difícil", tradição literária específica.73
Chklovski pretendia libertar a percepção elo intérprete de uma Para responder essas questões, o historiador italiano come-
espécie de letargia mental. Quanto maior a produção de "estra- ça com o que faz de melhor: procura o uso do procedimento
nhamente" realizado pela arte, maior a sua eficácia estética. O de estranhamente não desde sua origem, mas por meio de usos
escritor russo acreditava que a verdadeira obra de arte deveria ser sim ilares desse conceito na história de maneira correlata. Inicia
sinônimo de insólito e do não-fami liar.;1 De acordo com Vaz, o assim seu percurso analisando as reflexões do imperador romano
elemento central que esse procedimento fornece, tão importante .VIarco Aurél io. De acordo com o imperador-filósofo, pautado
no formalismo russo, é a crítica ao estado passivo do su jeito no numa técnica dos estoicos, era fundamental cancelar a icleia de
mundo contemporâneo frente a quantidade absurda de estímulos representação como um passo necessário para se compreender
externos que recebe. A arte, seja ela a pintura ou a escrita, conse- ou alcançar a percepção exata elas coisas, c assim, atingir a virtu-
de. Teríamos então, já na Roma antiga, um procedimento de es-
69 G INZI3URG, Ca rlo. "Estranhamen to: pré-história de u n1 procedi- tranhamente: destituir a representação elas coisas para controlar
lii ClllO litenírio". In: Olhos de Madeira: nove reflexões sobre a distiln-
cia. 1• ed. São Paulo: Companhia das Letras, ZOO J, p. 15-16.
70 G UERIZOLI-KEMPISS KI'\, O lga, of>. cit., p. 68. 72 SIM:NfEL, George. "A metrópole c a vida mcnt<JI". In: VELI IO, O távio.
71 VAZ, Valtcir. "Rcificação c estranhamento: i\ dorno e Chklovski''. O fenômeno urbano. I" cd. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1987.
QORPUS. F'lorianópolis. Edição n. 17. UFSC. s/d e s/p. 73 G JNZBURG, Carlo. Estranhamento ... op. cil., p. J8.
70 Dcivy Perreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 71

as paixões; subdividir as coisas e olhá-las de longe, buscando seu Entretanto, Ginzburg revela que JVlarcel Proust, em sua obra Em
princípio causal, para alcançar uma percepção exata elas coisas.i4 busca do tempo perdído,'6 apresenta uma noção diferente de es-
Ao tentar mostrar a admiração que Tolstoi - realista russo lranhamento, noção esta cara aos procedimentos narrativos que
e mestre elo uso do estran hamcnto - tinha por J\llarco Aurélio, o próprio historiador italiano adota em seus textos e em suas pes-
Ginzburg busca diluir o anacronismo do termo aplicado ao quisas, questão central para nossos objetivos no presente texto.
pensamento romano da l\ntigu iclade. Não nos interessa per- Para o autor de O queijo e os vermes, o estranhamento pare-
correr todo o caminho ela transmissão elo estranhamento como ce ter um sentido oposto na obra de Proust: "proteger o frescor
proced imento literário desde os estoicos até os forma listas rus- das aparências contra a intrusão das idcias, apresentando as coi-
sos, passando pelo frade franciscano Anton io ele Guevara, por sas 'na ordem da sua percepção', ainda não contaminadas por ex-
Montaigne e pela literatura francesa iluminista. É suficiente plicações causais". 77 Ao invés de nos apresentar as coisas em sua
afirmar que Tolstoi aprendeu com Voltai re, segundo Ginzburg, ordem lógica, começando pela causa - ou desejando alcançá-la
o uso do estranhamento como expediente deslegitimador em to- -, a imagem ao avesso nos mostra primeiro o efeito, revelando a
elos os níveis, seja o pol ítico, o religioso ou o social. Ou seja, um ilusão que nos instiga, que nos atrai.
procedimento libertador das falsas representações ele um objeto, Tanto nos formalistas russos quanto em Proust, observa-se a
arte, pessoa etc.i5 tentativa de apresentar as coisas como se vistas pela primeira vez.
De tal modo, teríamos com os russos o estranhamento em Entretanto, segundo Ginzburg, o resultado é diferente: entre os
sua aplicação plena: nos afastarmos do ob jeto para procurar seu primeiros, é latente uma preocupação com uma crítica social e
princíp io causal e anular suas representações para fugirmos do moral. Já com o segundo, percebe-se uma imediatez impressio-
óbvio, o reconhec imento, segundo Ginzburg, que nossos hábitos nista. E aqui a literatura, a pintura e a arte em geral se encontra-
perceptivos tornam gastos e repetitivos. À vista disso, para o histo- riam com o estranhamente.
riador ital ia no, deveríamos, para ver as coisas segundo a premissa De acordo com Ginzburg essa perspectiva impressionista
do estranhamento, olhar as coisas como se elas não tivessem ne- em Proust pod e ser visual izada em O tempo reencontrado, ro-
nhum sentido. mance que condu i a Recherche, no qual o narrador descreve os
rt importante ressaltar que, na utilização usual do estranha- quadros de Elstir.
menta como procedimento, seja em Matco Aurélio, Tolstoi ou
Chklovski, há a descrição das coisas e objetos como se fossem Ora, o esforço de Elstir pa,ra não ~>:por as coisas como
ele sabia que eram, e sim segundo essas ilusões de ótica
vistas pela primeira vez. No interior dessa tradição, o estranha-
de que nossa primeira visão é feita, levara-o precisamen-
mente é util izado para a superação das aparências com o intuito
te a lançar luz sobre algumas dessas leis da perspecti-
de alcançar-se uma compreensão mais profunda da realidade.

76 PROUST, l'VIarcel. Em busca do tempo perdido. São Paulo: l\ova


74 Ibidem, p. 19. Fronteira, 201 7.
75 lbidern, p. 32-37. 77 Jbiden1, p. 36.
72 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 73

va, que mais impressionavam então, porque a arte era o in tuito de trazer os fatos e eventos descritos diante elos olhos do
a primeira a desvendá-las. Um rio, por causa da curva leitor por meio de recursos que tornam uma imagem cheia de
em seu curso, u m golfo, por causa ela aparente aproxi- vivacidade, mediante a enumeração de suas peculiaridades ma is
mação das falésias, pareciam abri r no meio ela planície
sensíveis. Normalmente, é relacionada a outros procedimentos
ou das montanhas um lago absolutamente fechado por
retóricos que contribuem para produzir o mesmo efeito de vi-
todos os lados. Num quadro retratando Balbec num dia
tórrido de verão, uma reenb·ância do mar, encerrada
suali zação, tal como a enargeia/evidência.79 Seria assim uma
em muralhas de granito rosa, parecia não ser o mar, composição narrativa que expõe detalhaclamente e ele maneira
que começava mais longe. A continuidade do oceano evidente um ob jeto; seja personagens, ações, lugares, épocas ou
era sugerida apenas pelas gaivotas que, volteando sobre modos. Em suma, um procedimento retórico-poético a serviço
o que para o espectador parecia pedra, absorviam, ao da elocução e da argumentação, ou modernamente a serviço da
conh·ário, a umidade das águas 75 descrição. Dentre os usos antigos de ekphrasís, para nossos ob je-
tivos, enfatizamos sobretudo a ekphrasis ínten>entiva e hipotática
Ao descrever minuciosamente os quadros de Elstir, uma espé-
épica, narrativo-histórica, na qual o observador está tomado por
cie de pintor tipo-ideal do impressionismo, além de mostrar os usos
um espanto frente àquilo que lhe é apresentado. 80
daquilo que ele definirá como estranhamente proustiano, Ginzburg
A ekphrasis, escreve Meli na Rodolpho, apresenta virtudes
nos mostra que esse relato elo escritor francês também se insere na
essenciais de exercícios ele retórica: a clareza e a vivacidade
antiga tradição da ekphrasís; uma tentativa extremamente elaborada
(enargeia), para que quase se veja o conteúdo da descrição.81 A
de forn ecer uma transcrição verbal no intuito de trazer ao leitor a vi-
ekphrasis é então um discurso periegético- que narra em torno -
vacidade e a plaus:biliclade de evento, fato ou objeto narrado. :VJais colocando sob os olhos do leitor, com enargeía, "vividez", o que
uma vez, um procedimento 1iterário é utilizado pelo historiador deve ser mostrado. 82 Sobre a vivacidade, é importante ressaltar
italiano, como veremos a seguir, não apenas como recurso estilís- que, por ser mimética, a ekphrasís apresenta a clareza elocutiva,
tico: em Ginzburg, o uso dos procedimentos literários fundamenta
obtida pelo uso de palavras próprias, cscolh i.das (detecta), metá-
a produção de objetividad'e, mas não uma objetividade positivista. forns (traslata), hipérboles (supra /ata) e sinôn imos (dufJlicata). 83
Estranhamente, filologia, ekfJhrasís e enargeia são utilizados para Ruth 'Vebb, por sua vez, afi rma que a distinção entre descri-
trazer efeitos de verossimilhança; de verdade.(uma verdade parcial e ção (representação de objetos estáticos) e nar_ração (representa-
possível, evidentemente) aos seus textos historiográficos.

7. 79 RODOLPHO, Melina. "Écfrase e Evidência". Let. Cláss., São Paulo,


v. 18, n. 1, p. 94.
Ekphrasís poderia ser definida como um procedimento em- 80 tviARTINS, Paulo. "Uma visão periegemática sobre a écfrase". Revista
pregado em textos retóricos, poéticos e também históricos, com Classica, v. 29, n. 2, 2016, p. 163 e 166.
81 RODOLPHO, Melina, op. cit., p. 95.
82 HANSEN, João Adolfo. As categorias epidíticas da ekphrasis. REVTSTA
78 PROUST, Mareei. A. la recherche du temps perdu. Vol. l. 5eme ed. USP, São Paulo, n.7l, setembro/novembro 2006, p. 85.
Paris Ferré, 1960, p. 838-839. 83 lbídem, p. 92.
74 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 75

ção de ações ou eventos) é algo absolutamente moderno. Além mencionado nos antigos manuais de retórica sol> a
disso, para ela, a ekphrasis na retórica antiga "estaria entre essas designação de enargeia, sendo esta a alma d<1 ekphra -
duas categorias, sendo frequentemente uma narração vivida e sis, c era comum não só entre historiadores como
entre poetas e oradores. É da epopcia homérica que
detalhada de eventos, incorporando o Auxo temporal da narrati-
nos vêm os exemplos mais antigos. Ora, no caso da
va circundan te".84 O dispositivo ecfrástico objetiva assim guiar o
historiografia, longe de minar a confiança do leitor,
espectador ao redor da cena descrita, explorando ao máximo as a enargeia conlribufa para aumentar a credi bilidade
possibilidades que a imagem encerra. Não poderíamos deixar de do relato, na medida em que aproximava a observa-
dizer que em contextos ecfrásticos, a expressão "enargeia" apare- ção indireta do leitor da observação direta (alllo psia)
ce para tratar do aspecto de vivacidade dos textos. do historiador ou da testcmunha.87
Todavia é importante ressaltar que a ekphrasis não é textual-
mente acionada sozinha. Ela seria a figura retórica por excelência Pau lo Martins, analisando um texto de Ilansen, nos mostra
da en.argeia; nesse sentido, a enargeia parece corresponder ao con- lambém que o efeito ele prova pretendido pelos historiado res gre-
ceito ele evidência da tradição latina, produzida através ele diversos gos em nada difere do mesmo efeito em narrativas ficcionais pelo
pro<.:edimentos rctóricos.85 O vocábulo grego enargeía quer dizer simples motivo de serem ambos efeitos. Nesse sentido Hansen
tambén1, além ele vivacidade, "clareza, nitidez e percepção (visão) propõe: "corno exercício de eloquência, a ekplzrasis é uma prag-
clara". O resultado da enargeia, portanto, requer mecanismos am- mática: evidencia justamente a habilidade do orador que espan-
plificadores, dentre os quais se encontra a ekphrasís. Essa amplifi- ta a audiência com a narração da falsa fictío tornando o efeito
cação contribui não só para o deleite, mas também nos casus dos provável porque sua imaginação é alimentada pelos topoí ela
textos de história, para reforçar a credibiliclade.56 memória partilhada".58 Ainda segundo Martins, essa produção
Soares, ao tratar da ekphrasis entre os historiadores gregos, a de efeito de sentido da ekphrasis, resguarda além virtudes estilís-
situa juntamente com a enargeía e seu desenvolvimento diacrô- ticas, também as argumentativas.
nico, aplicando-lhes função argumentativa:
:\esse senlido, ainda que no texto hisloriográfico a é-
cfrase seja prova que substitui uma autoljlía e isto lhe
Os historiadores antigos (...) tinham por hábito con-
dê um valor argumcntativo; na obra de ficção, a figu-
ferir assertividade e autorid;'lde às suas narrativas his-
ratividade da imagem descrita - mesmo que não se ja
tóricas insuAando-lhes vividez pictórica, de modo a
probatória- não lhe rapta o mesmo tipo valor, com-
gerar impacto emocional e visual na mente dos ou-
portando-se em acordo ao dulce et uli/e horaciano, na
vintes ou leitores. Este processo é frequentemente

87 SOARES, M. T. !VI. "EkfJhrasis e Enargeia 11<1 ll istoriografia de


84 WF.BB, Ruth . Ek(Jhrasis, lmagination and Persuasio11 in Ancient Tucídides e no Pensamento Fil osó ~ co de Paul Ricocur". '/'alia Dixit
Rhetorical 'l'heory mui Practice. I" ed. Surrcy: Ashg~te, 2009, p. 64. São Paulo, v. 6:, n.l , 20 l l , p. 1-23.
85 RODOLPII O, tvlelina, op. cit., p. 98. 88 t\pud: .\IIARTir--;S, Paulo. "Uma visão periegemálica sobre a écfrase".
86 lbide111, p. 102. Revista C/assica, São Paulo, v. 29, n. 2, p. 174.
76 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbcrt Dias A forma e o tempo 77

medida que o dulce lhe garante o deleite (de/ec/are) dos estéticos entre os quais aqueles que conjecturam a represen-
textual, produzido por virtudes que lhe emprestam sa- lação da transcendência no sentido de sublime, ou ainda, segun-
bor e vividez, enquanto o utile lhe advém do caráter do ele, em expressões que dão lugar a dimensões temporais e
probatório e didático (mouere et docere) do texto cc-
t•spaciais não usuais ou incomuns.92 !\esse sentido, afirmar que
frástico, que empresta caráter visual ao texto."'>
11111 texto histórico, como narrativa que é, partilha de elementos

Mais do que um recurso retórico de poetas e escritores com um texto ficcional, não passa de um truísmo. O mais im-
da antiguidade, enargeía e ekphrasis tiveram amplo uso desde portante seria indagarmos por que compreendemos como reais
a historiografia greco-romana. Os historiadores da antiguidade, os fatos contidos em textos históricos.9 '
na falta das fe rramentas indispensáveis ao historiador moderno,
8.
tais como as provas documentais, conferiam autoridade às suas
narrativas por meio de vivacidade imagética, ele modo a gerar Ciente dessas questões, acreditamos, por exemplo, que
impacto visual, mas também emocional na mente elos leitores ou C inzburg construiu seus argumentos sobre uma questão de
dos ouvintes de seus textos. Esse efeito aumentava a credibilida- éllribuição de uma obra artística, seguindo um ca minho seme-
de do relato na medida em que aproximava o observador indireto lhante. Em um artigo recente, 94 Ginz.burg ao ;malisar caso do
ao testemunho (autopsia) seja elo historiador ou de algum espec- connoisseurship9s Philip Pouncey acerca ele uma atribui ção feita
tador claqu ilo que foi narrado. 90 por ele a Bastianino, um pintor de Ferrara elo século XVI, de um
Koelb,91 reavaliando o trabalho suprecitado de Webb, faz desenho preservado na Christ Chmch, Oxford . O que torn ou
uma consideração importante. Segundo ela o conceito de ek- essa atribuição possível? A reconstrução dessa trajetória (em or-
fJhrasis vai ressurgir no final do século XIX reduzido à simpl es dem cronológica inversa) abriu caminho para a reflexão sobre o
descrição de obra ele arte. E mais do que isso: afirma que foi Leo papel desempenhado pela ekphrasis (descrição verbal) na produ-
Spitzer, em seu artigo sobre "Ode on a Grecian Urn" de John ção do connoisseurship.
Keats, o primeiro a disseminar o conceito reduzido no âmbito da O argumento central do historiador italiano é interessan-
1 eoria Literária e elo ·ew Criticism. te. Segundo ele, a metáfora embutida na expressão "Leitura de
Concordamos com Paulo Martins quando ele afirma que
entender que a modern idade apenas restringiu a ekphrasis como 92 NlARTI NS, Paulo, op. cit., p. 193.
93 Gl t\ZBURG, Carlo. Ekphrasis e cítaçao ... op. cíl , p. 217.
um conceito em sinédoque é equivocado visto que ela teve suas 94 Gl t\ZBURG, Carlo. "On Small Diffcrences. Ekphrasís and
possibilidades ele uso ampliadas, em coadunação aos novos acor- Connoisseurship". In: Pele r i\ronsson, i\nclre j Slávik, Birgitta Svcnsson,
Kungl.lmages in 1-Iístory. Towards em (Audío)vísrwl Historíograf>h y. 1''
ed. Vitterhets Historie och Antikvitets i\knclemien, Stockho1m 2020, p.
89 Ib idem, p. 175. 17-37.
90 SOARES, M. T. M, op. cit., p. 1 95 Nesse caso o termo pode ser tradu7.ido como pessoa que tem gra nde
91 KOELI3, J. II. The poetícs o{ descríption: ímagined places in European conhecimento sobre artes e com grande habilidade para icleutificação
literalure. )'' ed. New York; Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2006. e atribuição de artistas individuais a obras, pelo esti lo e técnica.
78 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 79

imagens" implica, se tomada literalmente, que as imagens são Como essa sequência foi possível? De acordo com Ginzburg,
textos, ou comparáveis aos textos. Esta abordagem tem sido repe- para responder a esta pergunta é preciso abordar um elemento
tidamente aplicada, mas com resul tados questionáveis. Uma rota crucial ela obra de Longhi: seu estilo literário denso e vívido, que
alternativa, menos simplista, segundo Ginzburg, é que nossa re- contribuiu (juntamente com seus dons extraordinários como con-
lação com as imagens sempre implica uma mediação verbal de noísseur) para sua lendária fama entre historiadores da arte do
algum tipo . 1\tlesmo o connoisseur - um historiador de arte lacô- século XX. 98 Em suma, Ginzburg percebeu através ela frequente
nico - como definiu Erwin Panof.<;ky, tacitamente se baseia tam- utilização de ekphrasis, um recurso literário, Longhi transformara
bém em palavras: palavras como ekphrasis e descrição. Assim, ler seu texto numa ferramenta cognitiva - criando equivalências ver-
imagens significa, antes de tudo, traduzir imagens em palavras, bais às obras de arte- que permitiu a Pouncey (ou a sua esposa)
para então clescrevê-las. 96 identificar o desenho como sendo feito por Bastianino. Nos textos
Apesar ele ser apresentado como um "aplicador" do método ele Longhi, sentenças nominais densamente metafóricas funciona-
morelliano - identificação de obras através de pequenos detalhes ram como um comprom isso entr·e a linearidade ela linguagem ver-
que revelariam a psicologia do artista - Pouncey, na verdade, bal e a não linearidade das imagens.99 A sua linguagem ecfrática,
conseguiu atribuir a autoria do desenho a Bastianino sobretu- às vezes descartada como uma resposta estética pessoal às pinturas,
do através da sua leitura ela obra Officína Ferrarese , de Roberto estava de fato enraizada, na maioria das vezes, em uma longa tra-
Longh i. Em um parágrafo ele 16 linhas, Longhi identificou dição que remonta aos eruditos locais e, finalmente, aos próprios
Bastianino, praticamente desconhecido fora ele Ferrara, como artistas. Assim, a brilhante atribuição de Pouncey elo desenho ela
"o grande poeta elo maneirismo ital ia no depois de El G reco", Christ Church a Bastianino mostra a qualidade experimental c
e concluiu que seus "titãs nebulosos acinzentados" (títaní cíne- preclitiva das ekf;hrasís metafóricas de Longhi.
rei e nebbiosi) esperançosamente o farão, em um futuro próxi- Em outro texto, questionando urna interpretação desenvol-
mo, o artista favor ito de algum "jovem crítico". Trinta e cinco vida por Quentin Skinner, de que A Utopía'00 seria urn gênero
anos depois, as três palavras ele Longhi que retrataram a obra de teoria política renascentista que se ocuparia na definição da
de Bastianino - " titãs nebulosos acinzentados" - abriram cami- melhor forma ele Estado, Ginzburg buscou uma interpretação
nho para a atribuição de Pouncey acerca do desenho da Christ que insere esse livro em um gênero bem diferente. Fazendo uso
Church. É inegável que o elemento da visibil idade ecfrástica em dos conceitos da tradição retórica grega (ek phrasís e enargeia),
questão foi o uso sistemático das cores como forma ele explici- ele percebeu que Thomas t'dore fez amplo uso de recursos des-
tar o cromatismo ou sua ausência, reivinclicadas pela évápyeta e critivos eloquentes, com o intuito de comunicar a quem lia sua
pela aa<p~v na:, características essenciais do procedimento poéti- obra, a sensação de ter estado lá, presente no ambiente elos fatos
co-retórico aqui observado.97

98 C II\'ZBURC, Carlo. On Small Di((erences .. op. cit., p. 21-22.


96 CINZBURC, Carlo. On Small Di(ferences .. ofJ. cit, p. 17. 99 Jhidem, p. 30.
97 !VIARTI NS, Paulo, op. cit., p. 186. 100 MORE, Thomas. A Utopia. São Paulo: Penguin/Cia. das Letras, 2018.
80 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 81

descri tos. Assim, na ficção de More, G inzburg identifica dois dos". Nunca é tarde para se lembrar que desde os antigos; que
gestos contraditórios: ele um lado, o autor ele Utopía buscou in- desde Políbio e Homero, a presença ele enargeía está diretamen-
serir em seus escritos detalhes concretos, voltados a comprovar te relacionada com o campo ela experiência direta e ass im com
a veracidade desses; e de outro, dar a entender que se tratava ele <1 garantia de verdade histórica .103 Nesse sentido, corno veremos,

uma narrativa completamente inventacla:101 ele oscilava o tempo o historiador italiano, de várias maneiras, fez amplo uso da enar-
todo entre o plano ela realiclnde e aquele ela ficção. geía com o intuito ele colocar a realidade ínvísível diante elos
i\ pnrtir dessa percepção, o historiador italiano formula a olhos ele seus leitores. A enargeía, procedimento que oferece um
seguinte questão: A ficção de More era um mero expediente lite- cfeilo ele verdade, é atingida pela ekphrasis (descrição) . Nesse
rário, ou algo mais sério? Para compreender o significado dessa sentido, é a narrativa do historiador é o que proporciona urna
obra, Ginzburg insere o livro em uma dada tradição literária . descrição. HH E, esses conceitos, mesmo sendo caracterizações si-
Assim, A Utopia eleve ser vista dentro de uma h·adição, que re- tuadas entre a historiografia e a retórica, aparecem em Ginzburg
monta a Luciano ele Samósata, na qual, em um mesmo texto, como um meio de realizar uma autopsía, ou seja, propiciar uma
era mesclada o preceito horaciano de utilidade e deleite; de uti- visão direta de algo através do estilo.10;
lidade e diversão . Em suma: o texto se util izava de uma máscara
ecfrástica que velava uma verdade superior. 9.
E esse sentimento de verdade era apresentado através do uso Quando Ginzbmg analisa Menocchio ou narra a prisão de
de ekphrasís, ao mesmo tempo, impregnadas de características C hiara Signorini, alguns desses expedientes narra tivos acima es-
saturnais com o intuito de divertir e que suavizavam ou mascara- tão presen tes na construção textual, criando um quadro descriti-
vam a "verdade" apresentada: mistu rando diversão e gravidade, vo de alguma vividez, sempre com o objetivo de trazer verossimi-
retratava com eficácia os costumes, emoções e paixões humanas, lhança e/ou efeitos de verdade ao texto:
nos convidando menos a ler elo que a ver com nossos próprios
olhos. 102 Desta fe ita, Ginzburg afirma que longe ele se tratar de l\llas era principalmente moleiro; usava as vestimen-
um exemplo ele declamatío, um gênero retórico baseados em tas tradicionais de moleiro veste, capa e capuz de lã
branca. E foi assim, vestido de branco, que se apre-
argumentos inteiramente imaginários, o texto de l'vlore, como
sentou para o julgamento. 11){)
dissemos acima, faz uso ele sátiras, invenções, e recursos literários
de inversão, mas também de el?phrasís e enargeía nos momentos Em 5 de janeiro, Chiara é levada à presença do pa-
que procurava trazer lucides e vivacidade em trechos "mascara- dre-vigário e de Tommaso·Forni, bispo ele Hierápolis

lO1 GINZBURG, Carlo. "O Velho e o Novo mundo vistos da Utopia". In: 103 C 11\ZBURG, Carlo. EkfJhrasis e citação ... op. cit., p. 219.
Nenhuma ilha é uma ilha: quatro visões da literatura inglesa. ]• ed. São 104 ldem.
Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 25. 105 Idem , p. 220.
102 Ibidem, p. 35. 106 GINZB URG, Carlo. O queijo e os vermes... op. cit., p. 31.
82 Deivy Ferreira Carneiro c Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 83

e vice-vigário-geral de Nlódena, e é interrogado pela ~nremos uma pergunta que, de alguma maneira direcionou his-
primeira vez. A sua captura fora movimentada: tenta- loriador italiano ao longo de muitos dos seus trabalhos: porque
ra fugir, escondera-se debaixo de uma cama, resistira; deveriam os historiadores, mergulhados em fontes cartoriais e
a tudo isso (que aos olhos dos juízes constituía um notariais, perder tempo com o cstranhamento e conceitos se-
forte indício de culpa) ela dá justificativas confusas
lnelhantes elaborados por teóricos da literatura? A resposta é
e cmbaraçadas. 107
importante, pois demonstra tanto a ligação de Ginzburg com a
I iteratura, quanto revela a sua vinculação com os procedimentos
Observemos como a escolha de narrar a captura de Chiara caros à micro-história italiana, elementos esses centrais para o
posteriormente a informação de que fora levada a presença do desenvolvimento de nosso ob jetivo, que ficarão ma is claros na
juiz para interrogatório, numa pequena quebra do Auxo tempo- tíltima parte desse livro.
ral, traz uma certa surpresa. Isso, somado ao aparecimento sú- Na inb·odução de Nenhuma ilha é uma ilha, Ginzburg compa-
bito e inusitado elo adjetivo "movimentada" convida ao leitor a ra sua pesquisa sobre a literatura a uma partida de xadrez entre dis-
preencher men talmente ele forma ativa os curtos episódios que ciplinas, inserindo-se no gênero ensaístico, no qual "move-se como
se seguem. "Deba ixo da cama" especialmente, por se referir a o cavalo, ele modo imprevisível, saltando ele uma disciplina para ou-
um "local" mais específico e bastante comum, auxilia na visua- tra, de um modo textual para outro".108 De acordo com Miranda, o
lização mais clara daquilo que se imagina. Por fim, só que de realismo literário al imentado por Carlo Ginzburg em sua teoria ela
forma inversa, observamos no primeiro trecho acima a descrição história vai de encontro a uma espacial idade que tentava encontrar
das vestes do moleiro, que são brancas, para então se afirmar que soluções para a fragmentação elos grandes quadros explicativos elas
vestido com eles, e totalmente de branco, ele se apresen tou ao ciências humanas e da literatura épica elo século XL'<. 109
julgamento. São esses pequenos detalhes; escolhas da produção Portanto, para Ginzburg, o estranhamento ajudaria ao his-
textual e que poderiam ser escritas de diferentes formas - que toriador em sua narrativa histórica, a revelar ao leitor que os fa tos
para muitos são provavelmente triviais e irrelevantes para o resul- em si mesmos não possuem sentido apriorísticos ~ é o desenrolar
tado final alcançado por uma pesquisa - que serão o foco elo pró- do processo que dá sentido aos fatos. Os atores não controlam o
ximo capítulo. Veremos como esses detalhes são fundamentais processo, pois não há previsibilidacle no conjunto elas ações. Essa
para Ginzburg criar efeitos que carregue1n consigo predicados percepção, central na concepção de ação e estratégias presente
cognitivos para seus textos. nas obras ela micro-história, eleve sempre estar-presente no texto
Para concluir e mostrar ao leitor a importância de toda essa produz ido também por historiadores.
reflexão sobre conceitos literários que Ginzburg promove, anal i-
108 CINZBURC, Carlo. Nenhuma ilha é uma ilha ... op. cit., p. 11- 15.
107 C INZBURC, Carlo. "Feitiçaria e piedade popular: notas sobre um I 09 MIRANDA, Breno t\nderson Souza de. "C ario Cinzburg ern sua espa-
processo modenense de 1519". In: jVlilos, Emblemas e Sinais: morfolo- cialidade literária próxima, dentre outras". Anais do SILEL. Volume 3,
gia e hist6ria. !" ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. Número I. Uherlândia: EDUFU, 2013, p. 3
84 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias

O estranhamento proustiano seria para Ginzburg um dos


elementos centrais elo seu projeto historiográfico, um antídoto
contra o risco de banalizarmos a real idade; de sobrepor a ela ele-
mentos apriorísticos e esquemas prontos. E tal perspectiva, além Um escravo da coisa em si:
de dar ao texto de G inzbu rg um forte elemento an ti-positivista, a defesa do métier do historiador
o oporia a algumas tendências pós-modernas que tornam quase
indistintos os limites entre a história c a ficção.
Aberto ao diálogo com algumas experimentações estilísticas
do pós-modernismo, mas distanciando-se sempre de suas vertentes
ditas ni ilistas, a narrativa realista do autor rejeitaria claramente a
ideia de ser possível ao historiador apenas escrever um texto pri-
vilegiando a forma/expressão/alusão, ou, em oposição, um lcx-
lo regulado apenas em contet•clo/realidade/materialidade. Para O historiador c o poeta não se diferenciam pelo fato
Ginzburg, "mesmo supondo que a história seja científica, ainda de um usar prosa c o outro, verso. A obra de He rócio to
sim sena . prec•so. pmta-
. ' Ia como Elst.1r pm · .110
. tava o mar, ao revés" poderia ser versificada, com o que não seria menos
Justamente essas experimentações estilísticas com seus obra de história, estando a métrica presente ou não. i\
efeitos e consequências tanto do ponto de vista epistemológico diferença está no fato de o primeiro relatar o que acon-
como formal serão o tema do nosso próximo capítulo. teceu realmente, enquanto o segundo, o que poderia
ter acontecido.•

Aristóteles sustenta acima duas idcias sobre a produção tex-


tual de um historiador: que relate o que aconteceu realmente c que
o aspec to forma l do texto não altere o seu status de obra de história.
1\ ntre os anos que sepa ram o lançamento de Andarilhos do Bem
( 1966) c História Noturna ( 1989), a historiografia ocidental pas-
sou por transformações profundas, mudanças associadas em parte
à discussão dessas duas ideias aristotél icas.' Ness~ período, a produ-
ção intelectual de Carlo Ginzburg polemizou, direta ou indireta-
Inen te, com as posições tanto daqueles ditos positivistas como com

ARISTÓTOLES. Poética. Tradução, textos complementares c notas


11 0 C I)IZBURC, Carlo. Estrcmlwmento .. . op. cit., p. 41. Edson Bini. 1• ed. São Paulo: EDIPRO, 201 1, p. 55.
86 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 87

a elos chamados céticos e clesconstrucionistas. Na primeira parte Diferentes entre si, estas considerações trouxeram novas poss ibi-
deste capítulo gostaríamos ele reconstruir uma parcela dessas dis- 1idades que permitiram pensar o texto histórico não apenas como
cussões sobre as possibilidades da escrita histórica, tanto por sua fruto ele uma pesquisa fundamentada em métodos, mas também
importância para a compreensão de parte ela obra do historiador como um artefato literário.''
italiano, como no intuito de preparar o caminho para a segunda Em um texto importante sobre as consequências e os confli-
parte, na qual tentaremos reAetir sobre as potencialidades elo tex- tos historiográficos advindos com o Giro Lingufstico, Geoff Eley
to de Ginzburg a partir ele outros elementos. ;malisou essa transformação ocorrida na prática ela história social
cn tre as décadas ele 1970 e 1990. Em sua opinião, a mudança
2. decisiva ocorreu por volta de 1980, quando uma nova geração
A icleia de "retorno" da importância dos aspectos narrativos ele historiadores formados nos anos 1960 e início dos anos 1970
na produção das pesquisas históricas ganhou novo fôlego com chegou à maturidade profissional. Sob o impacto da mudança
as reflexões do historiador Lawrence Stone, em seu polêmico de contextos políticos, ela ascensão do feminismo e ela história
artigo The revíval o{ narratíve, publicado em 1979. O objetivo das mulheres, houve uma virada para formas linguisticamente
central do ensaio perpassa pela discussão dos li mites explicati- concebidas ele história cultural, que dividiram a geração entre
vos dos grandes modelos historiográficos (eshuturais) em voga aqueles que permaneceram comprometidos com o que Eley
até então, apontando para aquilo que, anos depois, seria chama caracteriza como "uma história social inquietamente engrande-
ele a crise elos paradigmas. Stone argumentava que na escrita da cedora" e aqueles que passaram a se definir como historiadores
história a forma do texto seria tão significativa quanto o conteú- culturais, ou seja, que se concentraram no discurso e sua atuação
do, relembrando à tribo elos historiadores alguns elementos que na construção ela viela sociaP
denotavam a vizinhança entre historiografia e ficção. 2 Ainda de acordo com Eley, o filósofo l\tlichel Foucault foi
Entretanto, quando se analisa os pressupostos ele Stone, fundamenta l para essa transformação. A elaboração de Foucault
fica claro que ele apenas arranhava a verdadeira superfície do da icleia da conexão indissolúvel entre con~1ccimento e poder
problema. De acordo com Teixeira e Azevedo, a partir elas con- fomentou uma nova compreensão da própria ideia de poder, que
tribuições, ainda nos anos 1960, ele Roland Barthes, Hayclen passa a ser concebido como algo descentrado e disperso como
\Vhite, 1\ilichel de Certeau, Paul Veyne, ·Paul Ricoeur, dentre
operação historiográfica". To(Joi, Rio ele Janeiro, .v. 9, n. 16, jan.-jun.
outras, a questão ela importância dos elementos textuais foi trazi- 2008, p. 68.
da para o primeiro plano das reflexões teóricas ela historiografia. 3 4 ALI'viEIDA, Renata Geraissati Castro de. "Os limites entre a História e
a Ficção". História da historiografia. Ouro Preto, n. 22, de<:embro ele
2 OLIVEIRA, Carlos Eduardo França de. "Narrativa e conhecimento 2016, p. 202.
histórico: alguns apontamentos". Historica. São Paulo. Arquivo do ELEY, Geoff. "ls ali the world a tcxt? F'rom social historv to the his-
Estado de São Paulo, s/d, p. 2. lory of society two decades !ater". In: SPIEGEL, Gabriel!~. Practici11g
3 AZEVEDO, Danrlei de Freitas; TEIXEIRA., Felipe Charbel. ''Escrita History: New Direc:tions in Hislorical Writing after the Linguistic Tum.
ela história e representação: sobre o papel da imaginação do sujeito na I" ed. London: Routlcdge, 2005, p. 33.
88 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma c o tempo 89

uma "microfísica" em toda a sociedade c suas práticas sociais. lt•\lo do historiador, haveria então uma série de elementos extra-
O impulso do trabalho de Foucault teria sido auxiliado pelo sur- 11•'\ lttais que impossibilitam uma objetividade plena por parte elo
gimento de narrativas da história devedoras, de várias formas, à hisloriaclor. Contudo, como veremos adiante, para o método for-
Meta-história de Hayden 'vVhite; à antropologia simból ica de llllllista proposto por 'vVhite, apenas os aspectos internos as obras
Cl ifford Geertz, e o "desconstrutivismo" de Derrida. Como re- ·wriam relevantes, tais como enredo, argumento e icleologia. 11
sultado combinado dessas inAuências, a textualidade tornou-se Atentar à noção ele línguistic turn é uma forma ele introduzir
uma metáfora para a realidade em geral.6 .t percepção segundo a qual um sujeito racional e consciente
Pode-se afirmar que, atualmente, há certo consenso de que t capaz de apreender uma realidade externa ao discurso. Para

Hayden White e seu livro Meta-história ( 1973) foram o elemen- i11 (i meros autores vinculados às discussões ela virada I ingu ística,
to fundamental para a discussão mais recente sobre a dimensão t' lll.retanto, a "realidade é apresentada ele acordo com os concei-
li terária do ofício elo historiador. 7 Sua iVIeta-história problema- tos com que a nomeamos, isto é, ela [a realidade] existe a partir
tizou as fronteiras entre as humanidades e as ciências sociais e da linguagem, e não fora dela". 12 Carlo Ginzburg destaca a vin-
mostrou como essas últimas também são construídas em torno n dação ela linguístíc turn il luta travada nas últimas décadas do
de estratégias narrativas e retóricas, mesmo quando vinculadas às século XX contra o alegado "positivismo" da história h·adicional.
suas mais rigorosas regras de evidência e metodologia científica, Questionando a possibilidade ela história alcançar a prova, os
confrontando a história "objetiva" com os princípios morais e es- simpatizantes elo linguistic turn insistem na dimensão retórica ela
téticos que ordenam e informam sua produção.8 Em suma, para historiografia. Baseado nesta observação, Ginzburg argumenta
Hayden White, haveria uma aproximação radical entre história e que a "virada linguística" seria mais bem compreendida se fosse
literatura, na perspectiva da construção de uma poética na escri- vista, sobretudo, como uma "virada retórica". 13
ta da história. Nesse sentido, a história seria fundamentalmente Conforme este raciocínio, a separação rígida entre ficção e
escritura, isto é, um artefato literárioY historiografia se tornou extremamente problemática. Se a escrita
i\ partir dessa discussão, a perceção dos efeitos que o elemen- ficcional abre espaço para a narrativa verossímil , uma pesquisa
to retórico e literário causa em um texto historiográfico, impôs a produzida por um historiador seria basicamente uma consh·ução
necessidade de tornar mais consciente e metodicamente regulável textual: "a seleção e recorte ele documentos, a elaboração elas
o uso que os historiadores fazem elas formas ele constitu ição his- hipóteses e o próprio desenvolvimento ela pesquisa". 14
tórica ele sentidos preexistcntes. 10 Entre os rastros do passado e o
13, n. 25, jul./clez. 20 12, p.l43.
6 Ibidem, p. 34. li ALMEIDA, Renata Gcraissati Castro de, op. cit., p. 206.
7 AZEVEDO, Danrlei de Freitas; TEIXEIR-\, Felipe Charbel, op. cit., 12 VIEIRA, Fernando Gil Portela. "t\ ficção como limite: reAexões sobre
p. 68. o diálogo entre história e literatura". Fronteiras: Revista Catarinense de
8 Ibidem., p. 40. 1-Iístóría, Florianópolis, B.l7, 2009, p. 20.
9 OLIVE IRA, Carlos Eduardo França de, op. cit., p. 3. 13 GINZBURG, Carla. Relações ele (orça: história, retórica, prova. 1• ed.
lO \tLARCELINO, Douglas Attila. "A narrativa histórica entre a vida e o São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 68.
texto: apontamentos sobre um amplo debate". Topoí, Rio de Janeiro, v. 14 VIEIRA, Femando Gi l Portela, op. cit., p. 21.
90 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 91

Toda essa analíse simplicaficada que trouxemos até aqui não 11:rich Auerbach" .18 Segundo ele, toda forma ele discurso, é cla-
faz jus à complexidade e diversidade do debate sobre a questão 1 n, conjugaria os planos metafóricos e metonímicos, mas haveria

da relação entre história, narrativa, ficção e literatura. É impor- M.:mpre um campo dominante. Seria o uso elos tropos poéticos
tante ressaltar, contudo, que além das discussões no interior elos t(li C estruturariam a abordagem da metáfora e da metonímia

grupos simploriamente chamados de pós-modernos, os funda- t:omo polos elo comportamento linguístico.
mentos ela línguistic turn circularam, suscitando debates e críti- Para White, as noções de realismo tais quais apresentadas
cas de historiadores vinculados aos t\nnales e à M icro-história. 1; 11as análises de Auerbach sobre a literatura ocidental ou pelas
el e Gombrich sobre as representações imagéticas deveriam ser
3. rcelaboraelas no que se refere à relação entre a representação e
Nosso intuito nesse capítulo não é ressuscitar o debate os elementos empíricos. Para \:Vhite, as obras ditas realistas não
Gínzburg x White ocorrido ao longo dos anos 1990. Vários pes- possuiriam qualquer acesso mais imediato a realidade.19 vVhite
quisadores já o fizeram e tomaram lado no litígio. Analisaremos propôs novas interações entre história e literatura, trazendo o sis-
apenas alguns aspectos que consideramos importantes em Meta- lema tropológico de análise utilizado no campo literário para o
história com o intuito de ressaltar que tais teses servem corno plano da historiografia, empregando o sistema ele quatro trapos,
indicettivos de uma mudança mais profunda nas discussões sobre conforme classificação feita pelos retóricos elo século XVI.2°
a natureza do conhecimento histórico.16 É importante destacar que, em uma espécie ele senso co-
Ginzburg não foi o único a tecer críticas às teses da linguis- mum historiográfico, as críticas às reflexões de \:Vhite têm sido
tic tum. Antes então de analisarmos os pressupostos do autor de atribuídas sobretudo a Ginzburg, por conta elo ácido debate
História Noturna, vejamos etlgumas dessas considerações contra entre os dois ocorrido da Un iversidade ela Cal ifórnia. Contudo,
determinadas teses que fundamentaram as críticas pós-modernas inúmeros foram os críticos das perspectivas propostas pelo histo-
à historiografia "moderna". riador norte-americano. De acordo com Dominick LaCapra, por
Para os fins estabelecidos nesse capítulo é importante res- exemplo, haveria urna incongruência na perspectiva de White,
saltar que para Hayden White, 17 o discurso histórico não pos- pois sua clesconstrução do estatuto científico do discurso his-
sui um status diferenciado da prosa literária realista. Tal fato é tórico não se afastou ela mesma estrutura referencial de caráter
estabelecido por ele, sobretudo, quando '\eelabora a noção de metafísico e universalista que pretendeu critjcar. 21 Além disso,
realismo conforme empregada nas obras de Ernst Gombrich e partindo ele uma concepção "formalista" elo historiador, \Vhite

18 i.VIi\RCELINO, Douglas Ati la, op. cit., p. 133.


19 Ibidem, p. 133.
15 ALl\1EIDA, Renata Cera issati Castro de, op. cil., p. 204. 20 WHITE, I-layden, op. cit. p. 46
16 IVIARCEL!t\0, Douglas Attila, op. cit., p.l31. 21 LACAPRA, Dominick. 1-listory 6 criticism . I" ed. lthaca; Londres:
17 WHITE, Hayden. J'vleta·hist6ria. A ímagirwção histórica no século XJX. Cornell University Press, 1985. p. 34. Apud: ivll\RCELINO, Douglas
l • ecl. São Pauk: Eclusp, 1992. Attila, op. cit., p. 135.
92 Deivy Ferreira Carneiro c Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 93

tenderia a perceber os registros documentais de uma forma sim- ronta da essência dos estudos históricos).H As crfti cas ele Arthur
plista, sem apreender as fontes como "redes de resistências" que \ larvick à Hayden Whitc estão assentadas no contraste entre o
impõem desafios à imaginação do historiador na sua tentativa de que, segundo ele, os pós-modern istas e meta{fsicos dizem que os
"reconstrução do passado"Y historiadores fazem c o que eles realmente fazem. 26
Outra crítica importante acerca do pensamento de White diz Marvick distingue assim entre a investigação meticulosa de
respeito a sua visão acerca do fato histórico, presente na ideia de aspectos delimitados do passado humano, conduzida por pesqu isa
"prefiguração do campo histórico" por parte do historiador. De empírica sistemática das fontes históricas, e as investigações e con-
acordo com Marcelino, para além da discussão sobre o fundamen- clusões especulativas sobre a história, baseadas na assunção prévia
to inconsciente do alo poético de figuração narrativa da "rea lida- do que a história é. \Vhite seria então um metafísico, não porque
de", \Vhilc parece acreditar na existência de um nível de experiên- pretende ter descoberto a essência ou natureza do passado em seu
cia histórica ainda não dotado ele sentido, como se existissem fa tos Meta-História, mas por ter desvelado a nature7.a ou essência dos
em estado bruto e o significado pudesse ser descolado do plano estudos históricos pela apresentaçilo de quéltro princfpios poéticos
das ações dos sujeitos históricos .H Na discussão sobre a difi culdade (metáfora, metonímia, sinédoque e ironia) correspondentes a três
ele estabelecer um~1 hierarquia entre interpretações mais ou me- diferentes estratégias explicativas (enredamcnto, mgumentação e
nos adequadas desse fenômeno, Hayden \Vhite responderia dife- ideologia) empregadas pelos historiadoresY
renciando "proposições existenciais singulares", relativas a fa tos já Jáas críticas fomentadas por Ceorges Jggers estão concentra-
"estabelecidos como fa tos", da construção de enredo operada pelo das, de um modo geral, na relação entre o textuctlismo formalista
ato de figuração poética da experiência histórica passada. l\cssc c o discurso histórico na concepção ele Hayden \íVh itc. 28 A abor-
sentido, tal "proposição deixaria transparecer as contradições do dagem textual fonnalista do historiador norte-americano assevera
uso de todo o arsenal crítico estruturalista conJuntamente com que o texto pode ser lido e analisado sem referência a um refe-
uma visão praticamente "positivista" de fa to histórico". 24 rente, seja ele tomado como acontecimento externo ao texto, seja
LaCapra, contudo, não foi o único a fomentar duras críticas como contexto (de acontecimentos) também externo ao texto. 29
ao pensamento de \íVhite. Arthur Ylarvick, por exemplo, classi-
fica Hayden Whi te como fJós-modernista historiográfico (parti- 25 NV\RQUEZ, Rodrigo Oliveira. Três Polêmicas com Hayden While.
dário da posição epistemológica de que a historiografia não é Revista de Teoria da História. Goiània. Ano 2, Número 5, junho/ 201 I,
p. 54. .
uma ciência) c metafísico (no sentido de que ele constrói uma
26 MARVICK, Arh ur. 'T wo Approacbes to H i~ l orici! l Sludy: The
cpistclllologia total i ~a ntc c rcdutiva a partir da qual pretende dar Mctaphiysical (Including "Posmodernism")" and the l listorical.forna/
o( Contenporary History. vol. 30, n. 5, 1995, p. 5.
27 MARQUEZ, Rodrigo Oliveira, op. cit., p. 55.
28 ibidem, p. 58.
22 Ibidem, p. 135 29 IGGERS, George. ''H istoriography belweeu Scholarship anel Poctry:
23 Ibide111 , p. 136. Reflections on Hayclen White's Appronch lo llistoriography".
24 Ibide111, p. l36. Rethinking History. vol. 4, n. 3, 2000, p.382.
94 Dei V)' Ferreira Carneiro c Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 95

Outra questão levantada contra \Vhite refere-se a sua teoria t'Jilacordo consiste no erro ele \~'h ite em sustentar que em razão
dos tropos, que para lggers permanece basicamente inalterada em de toda historiografia conter elementos ficcionais, elas são fun-
seus trabalhos posteriores ao .\tleta-História. 30 Com respeito à teoria damentalmente ficções e não estão sujeitas a controle através da
elos tropos, lggers critica o seu valor metodológico como meta-lin- \'Cri{icação nas fontes históricas: para Haydcn Whitc não há ape-
guagem para descrever c explicar a natureza elo discurso historio- nas muitas interpretações narrativas de quaisquer conjuntos de
gráfico: ao fazer uso do método formalista para analisar a estrutura documentos, mas todas elas têm o mesmo valor-rerdade, por isso os
e a evolução (mudança) do pensamento histórico do século xrx, lÍnicos fundamentos para optar entre uma interpretação narrativa
\tVhite restringe-se b<lsicamente a reconstruir as sentenças teóri- de um segmento da História ao invés ele outra não são epistemoló-
cas (conceitos e argumentos ele longo alcance) de cada autor e gicos, mas, em última análise, estéticos c morais. H
a examinar a inAuência que autores anteriores exerceram sobre Apesar de todo o impacto ca usado pelo debate ficção/nar-
os posteriores. "O sistema dos tropos - e suas diferentes extensões rativa/história, François Dosse afirma que nos anos 90, visando
nos níveis elo cnreclamento, argumentação e ideologia- como a manter a autonom ia ela História e reafirmá-la contra sua a redu-
base da análise forma l elos textos de historiadores e fi lósofos ela ção à fi cção,36 houve um consenso mín imo entre os historiadores
história impõem uma consistência que obscurece as conb·acliçõcs sobre a "intenção ele verdade". A noção ele prova continua como
ou ao menos preenche lacunas no sistema ele pensamento históri- parte preponderante do trabalho elo historiac)or, que ao construir
co dos diferentes autores analisados". 31 0bscurece as mudanças, suas interpretações tem a obrigação ele fornecer os dados que
maiores ou menores, que um autor sofre ao longo ela publicação permitem dar credibilidade a mesma, e por meio do caráter de
ela sua obra. Isso porque os textos dos autores oitocentistas, como prova o historiador colocaria sua escrita dentro do campo ela his-
quaisquer outros, respondem a questões colocadas por seus auto- tória e não da ficção H
res. Essas questões não são inerentes aos textos, mas colocadas em
acordo com as intenções do autor. ·ão decidir se um texto histo- 4.
riográfico é melhor, mais correto ou mais verdadeiro do que outro Com esses poucos exemplos objetivamos mostrar que a ques-
é uma conseqüência da abordagem formalista de 'vVhitc. 32 tão dos métodos ele administração da prova é, portanto, central
Vinculadas a essas duas questões, George Iggers entra em para muitos historiadores, discordantes elas teses neocélicas, no
acordo com uma série de afirmações ele Hayden \i\'h ite feitas no que concerne a pesquisa histórica. O próprio C inzburg afirma
l\!leta-1-lístóríall c em Trópicos do Discurso. HO que Iggers não está que somente somos capazes de produzir effect de véríté se relacio-
narmos nossas asserções a algt1m tipo de prova.JI! Renunciar a tal
30 Ibidem, p. 381.
31 ICCERS, George. "llistoriography between Scholarship anel Poelry:
Rcflcctions on llayclen \Vhite's Approach to Historiography". Rethi11king 35 Ibidem, p. 67.
l-lislor)'. vol. 4, n. 3, 2000, p. 384.
36 Dr.LACROIX, Chislian; DOSSE, François c GARCIA, Patrick. "Uma
32 MARQUEZ, Rodrigo Oliveira, op. cit., p. 66.
crise da História? (as décadas de 1980-1990). In: Corre11tes históricas
33 WtliTE, llayden. ~'l eta-história: a Imaginação Histórica do Século
na França (séculos XIX e XX.j. I" ed. Rio de Janeiro: Ed. da FGV; São
XIX. São Paulo: Edusp, 20 19. Paulo: Ed. da Unesp, 2012.
34 \VI IITE, I Jayclen. Tró(JÍcos do Discurso: Ensaios Sobre a Crítica da 37 ALMEIDA, Renata Geraissati Cnstro de, Of>. cit., p. 211 .
Cultura. São Paulo: Eclusp, 2014 38 GJ)JZBURG, Carlo. Ekphrasis e citação... op. cit., p. 230.
96 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 97

formulação seria renunciar o estabelecimento verdades, mesmo rontes, as quais influem profundamente (ainda que não ele ma-
que parciais e com todas as questões epistemológicas envolvidas. neira exclusiva) sobre os modos pelos quais os dados históricos são
De acordo com Antoine Prost, é muito mais importante que os rccolhiclos, eliminados, interpretados - e, por fim, narrados.40
historiadores aprimorem seus métodos, consolidem seu arcabou- Como exemplo dessa reflexão podemos citar a análise que
ço (como sempre faz Carlo Cinzburg) elo que a transformar seu C inzburg realiza acerca ela presença ele certas metáforas em as-
ofício em produção de peças literárias. O historiador eleve assumir pec tos metodológicos da obra de Marc Bloch. Em poucas, mas
plenamente as exigências metodológicas ele sua pretensão relativa densas, páginas C inzburg examina a forma como IVlarc Bloch
a um regime próprio ele verdade. Se assim não o fizer, das duas, apresenta seu método regress ivo, no Iivro As características origí-
uma: ou todos os métodos são válidos e a história não passa de in- nctis da hist6ria rural francesa,·'' a partir ela metáfora com o cine-
terpretação e ele pontos de vista subjetivos, ou então, em história, ma e com a fo tografia. A História, segundo o historiador francês,
existem verdades (parciais, é claro) que dependem elo rigor dos não projeta uma imagem fossilizada do passado ao presente.
métodos adotados. No primeiro caso, a história teria urna função J\a verdade, devemos buscar, enquanto historiadores, a partir
social próxima a do romance, distinguindo desse apenas pela pro- ela última película, desenrolar o filme ao contrário, resignados
fundidade do seu sentido. No segundo caso, o historiador pode a encontrar não poucas lacunas, mas decididos firm emente a
arvorar a legítima pretensão de deter um saber verificaclo. 39 respeitar a sua mobilidade.
De acordo com Cinzburg, a postura defendida hoje, em re- A partir daí, o historiador italiano aplica seu principal mé-
lação às narrativas historiográficas, lhe parece simplista porque todo de análise, que explicaremos na parte 2 desse livro, para
examina, normalmente, parte da questão, ou seja, analisa apenas nos mostrar, historicamente, como Bloch retomou, para a sua
o produto literário que lhes tornaram possível, sem levar em conta metMora elo filme, os termos ele Maxine clu Camp, presentes em
as pesquisas realizadas (arquivísticas, filológicas, estatísticas, den- suas Lembranças do ano de 1848. 42 Da mesma forma, o historia-
tre ou tras.). Segundo ele, deveríamos, pelo contrário, deslocar a dor italiano argumenta que, possivelmente, a ideia metodológica
atenção do produto literário final justamente para as fases prepara- ele tomar as lacunas documentais como elemento narrativo, tenha
tórias; investigar exatamente a interação recíproca entre os dados sido inspirada no conhecimento que Marc Bloch possuía ela obra
empíricos com os vínculos narrativos que se dão no processo ele de Flaubert:n
pesquisa. Não se eleve esquecer a obsetvaÇão de que as pergun-
tas elo historiador são colocadas sempre, direta ou indiretamente,
40 GINZB URG, Carlo . Decifrar um espaço em branco. In: Relações
em formas evidentemente narrativas. E, para o autor de História de força. História, Retórica, Prova. 1" ed. São Paulo: Companh ia das
Notuma, essas narrações provisórias delimitam exatamente um Le tras, 2000, p . 114.
âmbito de possibilidades; instâncias mediadoras entre questões e 41 BLOCH, Marc. Les caracteres origínaux de l'histoire rurale Françaíse.
Paris: i\rmand Colin, 1999.
42 Dn Camp, Maxine. Lescon.vulsionsde Paris. Episodes de la Commune.
39 PROST, Antoine. Doze lições sobre a História. la ed. São Paulo: Paris: 1-lachette Livre BNF, 2017
Autêntica, 2009, p. 22 1. 43 Ibidem, p. 115 .
98 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 99

Com essa pesquisa (de como determinadas ideias - a metá- h os de tais protocolos". -esse sentido, segundo os autores, "uma
fora do filme e a questão narrativa - viajaram no tempo e no es- obra de ficção pode ser construída a partir de dados ou materiais
paço até o grande M<lrC Bloch), Ginzburg revela como a própria reconhecidamente históricos sem que perca por isso sua né:ltmc-
existência elo expediente narra tivo é capaz de gerar uma via de :tll liecional, sem que deixe de ser um discurso cuja carncterfstica
pesquisa. Além disso, essa análise exemplar nos ajudaria a perce- cotrsista numa irrealização do real: ela não cumpre parâmetros
ber, segundo ele, o grande erro que é o argumento neocético da ele conhccimento". 4 i
separação radical das narrativas históricas da pesquisa sobre a qual Entretanto a relação entre a narrativa histórica e a ficc io-
estão baseadas. Em suma, para Cinzburg, toda c qua lquer forma mrl não é apenas de afastamento, mas também de aproxirné:lção.
de história, desde a mais analítica e estatística a mais "literária", bso ocorre na construção ele uma narrativa produtora de sentido.
teria seu texto mediado pelo elemento narrativo. Contudo, não é Assim, por meio ela narrativé:l, "a imaginação adquire um papel
esse elemento que definiria o resultado apresentado no texto fina l constitutivo junto ao objeto histórico, e que, portanto, a tentativa
da pesquisa.44 Se para alguns neocéticos falar ele realidades situa- de substituir esta narrativa por uma lei geral incidiria na destruição
das fora elo texto seria uma ingenuidade positivista, o historiador desse próprio objeto". Todavia é importante ressaltar que a ima-
italiano nos mostra com os argumentos e exemplos aqui evocados, ginação não funciona ela mesma maneira na história e na ficção,
que todo texto tem fissuras, c que dessas fissuras podem sair - c li)J$ mesmo assim "ela possui, em ambas, o papel de dar forma ao
quase sempre saem- elementos inesperados. 45 objeto, urna vez que os protocolos, na operação historiográfica,
Além disso, como destacam Azevedo e Teixeira, "o jogo da adquirem uma função limitada junto à síntese imaginativa"."'5
imaginação não é livre nem em relação ao material do real, com
o qual ele opera, nem em relação aos protocolos ele val idação 5.
elo conhecimento, que o delimitam".46 Ao contrcírio das estraté- Ao dialogar com autores ligados à virada retórica, Cinzburg
gias ficc ionais, os procedimentos do discurso historiográfico tem alirma que vários pesquisadores ligados à essa perspectiva ana lí-
como fundamento assegurar n ligação entre o texto e um suposto tica se utilizam ele porções "historiográficas incliviclualizaclas, ge-
real, fazendo com que o objeto histórico cumpra padrões de ade- ralmente fora do contexto ignorando o trabalho preparatório de
quação a discursos de realidade; "padrões estes que determinam pesquisa que as tornara possívcis",49 anulando a distinção entre
também o modo com que o historiador irá articular os vestígios ficção e história, entre narrações fan tásticas e com pretensão ele
do real, os quais tendem a ser organizados segundo os parâme- ,·erdadc. Segundo ele, uma verificação das pretensões de verda-

44 lbiclem, p. 116. 47 Ibidem, p. 78.


45 G INZBURG, Ca rla. As vozes do outro - uma revoltn inclfgena nas 48 Ibidem., p. 79.
ilhas Marianas. In: nelaçües de força. História, Retórica, Prov<~. 1" ed. 49 G lNZBURG, Carlo. Provas e possibilidades (Posfácio n r\atalic
São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 99. Zemon Davis, O retorno de Martin Guerre). In: O fio e os rastros.
46 AZEVEDO, Damlci de l"reitas e TEIXEIRA, Felipe Charbel, op. cit., Verdadeiro, falso, fictício. la ed. São Paulo: Companhia das Letnrs,
p. 77. 2007, p. 320-327.
100 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 101

ele implicaria necessariamente na discussão elos problemas rela- lc/1 ele argumenta a existênc ia de um forte nexo entre história,
cionados às fontes, às técnicas ela pesquisa e sobretudo, à questão 11a concepção moderna do termo, e retórica, na formulação de
ela prova. Se esses elementos são desdenhados, como faz vVhite, Aristóteles. Tal nexo é representado pela noção ele prova. Além
segundo o historiador italiano, a historiografia se configura como disso, Ginzburg observa que a visão ele Aristóteles sobre a retórica
puro e simples documento ideológico.;o Essa discussão, contu- corresponderia à mesma concepção de retórica do "pós-moder-
do, é característica da pesquisa de Carlo Cinzburg em distinguir nismo cético": a retórica entendida apenas como arte elo conven-
perguntas legítimas, respostas plausíveis e possibilidades válidas, cimento a partir das figu ras de linguagens. 55
para avaliar os muitos modos como se emaranham a vida huma- Carlo Ginzburg, então, reformula alguns argumentos ela
na, o tempo histórico, os relatos e o conhecimen to." Retórica de Aristóteles, situando o entímema como o núcleo
A fim ele lidar com essas questões, G inzburg propôs uma da prova, que, por sua vez, seria o núcleo racional ela retórica.
releitura ela Retórica ele Aristóteles, colocando a questão ela prova Pode-se acrescentar que Ginzburg se concentra efetivamente na
no centro ela discussão sobre a retórica em contraposição à utili- heurésis - a busca ela argumentação- como o lugar das provas,
zação simplesmente estilístico dela realizada pelos "pós-moder- o núcleo da retórica de Aristóteles e da prática historiográfica
nistas céticos".;2 como a praticada no período moderno.;6
Para Cinzburg, as considerações da Retórica ele Aristóteles
Contra essas tendências [as "pós-modernistas cép-
sobre a prova podem fazer sentido se Iidas na perspectiva do
ticas"], ressalte-se, ao contr<írio, que uma maior
conteúdo moderno do termo "história". É essa a conexão entre
consciência ela dimensão narrativa não implica uma
retórica, prova e história. Esta última adquire, dessa forma, um
atemwç<io das possibilidades cognoscitivas da histo-
riografia, mas, ao contr<írio, sua intensificação . É pre- "núcleo essencial", que consiste na reconstrução da história hu-
cisamente a partir daqui, portanto, que deverá come- mana através de indícios que, por sua vez, implicam numa série
çar u ma crítica radical da linguagem historiográfica de conexões necessárias (tekmeria) que fornecer iam um caráter
de ·que, por ora, só temos algumas referências_,; de certeza. E fora dessas conexões naturais, o. h ist0riaclor circula-
ria apenas no âmbito elo verossímil (eilws)."
Reestabelecer e reavaliar a noção de prova, a partir ele
Aristóteles, fo i o caminho encontrado por. C inzburg para reba-
ter a esta premissa dos neopirronistas. Em um artigo instigan- 54 GJNZBURG, Carlo. "Sobre Aristóteles c,a história, mais uma vez".
In: Relações de {orça. História, Retórica, Prova: I" ed. São Pau lo:
Companhia das Letras, 2000, p. 49.
50 GINZBURG, Carlo. Provas e possibilidades (Posf;ício a Natalie Zemon 55 ZANJN, Caio. O guardião da História: a noção de prova na historio-
Davis, O retorno de lVIartin Guerre). In: O fio e os rastros. Verdadeiro, grafia de Carlo Ginzburg de '99' c1 2006. TCC. Porto Alegre: UFRGS,
falso, ficlfcio. 1" ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 320-327. 2009, p. 45.
51 Ibidem, p. 14. 56 Idem .
52 Ibidem, p. 14 57 GINZBURG, Carla. "Sobre Aristóteles e a história, mais uma vez", op.
53 G INZBURG, Carlo. ''Provas e Possibilidades", ofJ. cit., p. 327. cít., p. 50.
102 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma c <0 tempo 103

Cinzbu rg se firma na concepção de que a prova é o m:ícleo ser levan tadas sobre o motivo ela QJmissão dos três tipos de retórica
da retórica, e de que também a retórica, como a história, trata de na interpretação elo ital iano. Un1a delas seria que uma retórica
eventos passados. Dessa forma, o núcleo da retórica seria, igua l- tal como a aristotélica, com os ttrês elementos ausentes, não re-
mente, o da história, desde que considerada como faz Aristóteles, sultaria eficaz na sua argument;ação posterior sobre Tucídides
a partir da prova. ;8 Nesse sentido, o historiador italiano critica que ele realiza ao longo do seu artigo62 e, nesse sentido, "essa
enfaticamente a percepção da retórica apenas como um proce- retórica da prova heurística não poderia ser associada a um saber
dimento estilístico, dominada pelas fig uras de linguagem, e que indiciário e antiquário, pois o est;atuto incerto dos raciocínios re-
têm como objetivo único a efi cácia em detrimento da idcia de tóricos tiraria da demonstração o ·vínculo lógico necessário para a
verdade. Ao contrário, ele reforça a tese que versa sobre a capaci- construção pretendida pelo historiador ital iano". 63 Ainda segun-
dade dos historiadores de provar suas inferências sobre os aconte- do Ogawa:
cimentos passados, mas não ele maneira positivista, remontando
o te n110 prova n ~o diz respeito apenas aos proces-
o passado como "ele fato aconteceu". A relação entre narrativa
sos de leitura de documentos, mns à argumen tação
e a documentação não se dá em um espaço interpreta tivo sem
e à persuasão. Ginzbmg evita allrmar que a prova
fron teiras ou universa l, mas mui to bem delimitada pela historici- histórica deve persuadir, mas o elemento estü im-
cladc dos eventos retomados através da própria clocumentação.>9 plicado na comparação morfológica. Esse tipo de
A partir dessa leitura podemos compreender o sentido dessa comparação combina procedimentos como a leitura
retórica da eficácia, exposta por Ginzburg. Sua contrapartida no antiquária, fi lolo$ia c iconologia, mas ainda assim
debate é a retórica da prova, a qual, como vimos, está calcada- exige persuasão. Não devemos esquecer que se algo
não sem problemas - sobre um raciocínio indiciário.60 Pode-se é provável é porque ele também é incerto. A proba-
supor que essa retórica indiciária teria consigo tanto o compo- bilidade é o mote do texto que mais se aproxima de
um manifesto, Provas c possibilidades, escrito como
nente documental quanto o persuasivo.61
posfácio para O retorno de Ylartin Gucrrc. As lacu-
Após esses bre\·es apontamentos, é importante destacar que
nas documentais do caso de Martin Cucrrc levaram
a interpretação da obra de Aristóteles construída por Ginzburg a autora, :'\atalic Zcmon Davis, a tentar preencher
foi ob jeto de críticas. Segundo Ogawa, apenas hipóteses podem as lacunas, mas !emprc cuidadosamente, com inú-
meras medidas de cautela, apontando mais proba-
58 OCAWA, Carlos Eduardo de Almeida. História, Retórica, Poética, bilidades que certezas. Nesse sentido, a interpreta-
Prova: ctleilum de C ar/o Cinzburg da Retórica de Arísl6teles. Dissertação
de Mcstr<~do, São Paulo: USP, 20 10, p. 51-)2. ção de Gi nzh ur~ parece ser mais uma solicitação
59 Ibidem, p. 52 externa. Talvez atraído pela possibilidade de explo-
60 Ibidem, p. 73. rar o passado através do estabelecimento dos fatos,
61 Para nwiores detalhes acerca desse elemento persuasivo ver:
C INZOU RC, Carlo. "Lorenzo Valia e a Doação de Conslanti uo".
In: Relações de (orça . História, Retórica, Prova. I" ccl. Siio Paulo: 6Z C INZBU RC, Carlo. Sobre Aristóteles e a história, mais u111a vez, op. cit.
Companhi<l das Letras, 2000. 63 OCAWA, Carlos Eduardo de Aloeida, op. cir., p. 75.
104 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 105

Cinzburg tenha sido levado a aproximar Tucídides t·trculação ele teses céticas generalizaram os pressupostos de que
de Aristóteles. Preocupado que estava com o pri- finalidade da historiografia é o convencimento, não a verdade;
meiro livro da Retórica, Cinzburg não percebeu a "de que os textos historiográlicos c os ficcionais são auto-referen-
influência subterrânea da Poética de Aristóteles. Ao ciais por estarem articulados internamente por uma dimensão
compor a Introdução de Relações de (orça, percor-
retórica; ele que uma obra historiográfic a constrói um modelo
rendo o caminho até Nietzsche, tornando evidente
lcxtual autônomo à maneira de um romance, sem nenhuma re-
seu apelo à metáfora, Cinzburg não retrocedeu até a
l<tção demonstrável com a realidade extratextual à qual se refere,
primei r<1 teorização da metáfora, feita por Aristóteles
tanto na Poética quanto na Retórica.6<1 isto é, sem vínculo com evidências ou provas".66
Esse debate, dos quais alguns nuances foram destacados
Apesar da crítica, é importante destacar que a obra de <tqui, e cuja grande parte das polêmicas hoje parece rclativamen-
G inzburg é marcada, nessa perspectiva, por uma preocupação le superada, gravitam muito em lorno da filosofia da História e
constante com uma distinção en tre o que hoí de especificamente da Epistemologia. Fala-se mu ito da escrita historiográfica c ele
estético e o que há ele histórico nas representações mtfsticas, no in- seu vínculo incerto com o que aconteceu realmente. E na per-
tuito ele superar uma oposição enb·e a abordagem histórica e uma cepção elas fragilidad es cognitivas que o aspecto formal carrega
abordagem estilística. ·esse sentido ele propõe a criação ele recur- consigo está gênese ele todas essas reflexões. Gostaríamos nas
sos metodológicos e modelos cognitivos que possibilitem articular linhas que se seguem arriscar uma estratégia que parte de fun -
criteriosa e adequadamente temporaliclacle e estrutura, aconteci- damentos diferentes.
mento e representação, indivíduo e coletividade, conteúdo históri-
co e forma artística, verdade e ficção, micro e macro dimensões.M 6.
Além disso, no livro Relações de Força, Ginzburg considera "Há que fazer falar as coisas"67 ao invés ele se falar por elas,
que a vinculação entre retórica e eficácia fo i transferida radical- nos ensinou Erich Auerbach. E é nesse sentido que pretendemos
rnente para a historiografia, ele modo que isso passou a pautar o analisar alguns textos ele Carlo G inzburg, não em busca daquilo
valor elo saber e ela história, o que abriria caminho para justificar que neles é frágil cognitivamente, em virtude de suas escolhas
a superioridade elas armas de fogo e da civilização elos conquis- formais, mas ao contrário no encalço daquilo que, justamente
tadores, inegavelmente eficazes. Em suma, algumas décadas ele em decorrência disso, pode ser fértil e proveitoso. Comecemos
por um trecho de seu livro O queijo e os'vennes:
64 Ibidem, p. 126.
65 VIEIR.'-\, Beatriz de l'vloraes. "Um 'giro linguístico' em torno de Carlo O próprio aspecto das páginas escritas por
Cinzburg, Haydcn Wh ite e Erich Auerbach". In: RAI\CEL, ;\tfarcelo Menocchio, com letras coladas umas às outras, mal
de Mello; PEREIRA, :,tlat·eus Henrique Faria; ARAÚJO, Yn ldei Lopes
de (orgs). Cademo de resu111os (}Anais do 6o. Se111iruírio Brasileiro de
Históric1 da Historiografia - O giro-língufstico e c1 historiografia: bclian- 66 Te/em, p. 4 e 5.
ço e perspectiras. 1" ec.l. Ouro Preto: EdUFOP, 2012, p. 2. 67 AUERBACH, Erich. Ensaios da literatura ocidental, op. cil., p. 371.
106 Deivy I=erreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 107

ligadas entre si (segundo um tratado contemporâ- do exame do "A'' gótico da inscrição na parede de uma cena
neo de caligrafia, assim fariam "os transmontanos,
de crime; a escrita titubeante de Menoeehio, corroborada pelo
as mulheres e os velhos"), mostra claramente que o
cotejo com outras pistas (o traço de um escrivão e os dizeres de
autor não tinha muita familiaridade com a escrita.
um tratado de caligrafia), possibilita o acesso a realidades não
Impressão bem diferente causa o traçado fluente
alcançáveis de forma direta.
e nervoso de dom Curzio Cellina, escrivão do em
Montereale e um dos acusadores de Menocchio no A reconstituição de aspectos da vida do autor da carta é: a)
segundo processo. Com certeza Menocchio não ti- afirmada "com certeza" no que diz respeito a sua ausência de
nha frequentado escola alguma de nível superior, e estudo superior, e b) apresentada com uma compleição conjec-
aprender a escrever deve ter lhe custado muito, mes- turai, sobre a égide do verbo transitivo direto "deve", no que se
mo fisicamente, o que se percebe por alguns sinais trata de seu dispêndio para grafar. É interessa nte perceber esse
que mais parecem talhados na madeira do que traça- acuro na diferença de "en tonação", já q11e à obviedade ele (a)
dos sobre o papel68
repousa na situação socioeconômica c cu ltural de i\llcnocch io
Nesse trec ho G inzburg começa a analisar uma carta que enquanto a igualmente óbvia tese ele (b) funda-se em vestígios
l\llcnocch io, encarcerado, en tregou aos juízes de seu processo mais fugidos, o que confere especial im portância ao ntributo me-
inqu isitorial. As primeiras conclusões desse exame, que orb itam tafórico que liga "mais parecem talhados na madeira" à "traços
em torno da fa lta de intimidade com a escrita, são erigidas a par- sobre o papel". Essa pequena figura de linguagem é responsável
tir das impressões captadas pelo historiador de aspectos da grafia por uma certa evocação vivaz do esforço do moleiro ao escrever,
do moleiro fri11lano: 69 "letras coladas umas às outras, mal ligadas c que mais que visual, no caso específico possui um efeito empá-
entre si", "mais parecem talhados na madeira do que traçados tico-sensual para o leitor. Tal recurso narrativo é aqui utilizado
sobre o papel". Estamos diante do modelo epistemológico expli- então não somente como um Aorcio estético, mas, ainda que
citado em seu artigo "Sinais" sendo usado na prática. Tal qual distante de seus conceitos mais tradicionais, como uma forma de
fomentar evidência; como prova.
um caçador reconstrói mentalmente a forma e o movimento de
A termo "evocação vivaz" pode soar exagerado, ainda mais
uma presa através de sua pegada na lama ou Sherlock Holmes
descobre a verdadeira nacionalidade de ym criminoso através quando compararmos o texto acima cornos poemas homéricos,
como aquele sobre a cicatriz ele Ulisses, que Erich Auerbach
usou no ensaio ele Mimesis para contrapbr os dois estilos funda-
68 Cll ZBURC, Carlo. O queijo e os vem1es, op. cit., p. 142.
69 F.sse provavelmente seja uso mais físico, no sentido de tangível e mate-
mentais da literatura antiga, o grego c o hebraico. A [mpressão
rill l, que um historiador (enquanto paleógrafo) pode fazer de um ma- é que de certa forma estamos mais perto da tradição de escrita
nuscrito como fonte histórica, porque ainda que uma perícia físico-quí- dos hebreus do que o "representar os fenômenos acabadamente
mica elo suporte material onde foi registrada a carta e das substâncias
palpáveis e visíveis em todas suas partes, claramente definidos
ut'i li7.aclos para a marcação do traço gráfico possam dizer muito sobre
sua história, tais conhecimentos dão-se no âmbito que se pode chamnr
paradigma galilaico.
108 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma c o tempo 109

em suas relações espacia is e temporais" 70 que Auerbach definiu 111ento, no enredo particular das tcmporaliclades no qual ele está
como características da narração em Homero. No texto sobre o mserido. 73 Nesse sentido, para o autor de 1-l istória Noturna, assim
sacrifício de Abraão o filólogo judeu indica "Do outro lado, só como para \1\lalter Benjamin, nós supomos, o evento, a obra ou
é acabado formalmente aquilo que nas manifestações interessa o estudo de caso estaria diretamente relacionada a unicidade, a
as metas da ação; o restante fica na escuridão. Os pontos culmi- autenticidade e a tradição transmitida por ele; o seu "aqui e agora",
nantes e decisivos para a ação são os únicos a serem salientados; uma trama peculiar de espaço e tempo.74 Esses elementos tornam
o que há entre eles é inconsistente; tempo e espaço são indefini- a o objeto em análise característico de seu respectivo contell.io,
dos c precisam de interpretação; os sentimentos e pensamentos ubarcando os mais variados componentes que foram resgatados
permanecem inexpressos". 71 Tal qual o eloísta tem seu texto con- enquanto sobrevivência do passado e alocados nele enquanto
dicionado por sua intenção religiosa, ético-normativa c ps icológi- "presente em tensão" c que são ele total importância para a sua
ca,72 o texto de Ginzburg está em seus aspectos narrativos, naqu i- compreensão, tornando-o ünico e autêntico c, ao mesmo tempo,
lo que é iluminado c naquilo que fi ca na escuridão, submetido a mutável, na medida em que permite diferentes formas ele inter-
ca rta escrita por Menocchio. Esse aspecto, a relação fonte-texto, pretação. Na obra ele Ginzburg, a utilização de recursos literários
ou em outras palavras, o quanto e como o escrito historiográfico na narrativa histórica não transforma a História em Literatura. Na
elo autor se constrói sobre aquilo que considera uma fonte, é tam- verdade, a mescla desses recursos epistemológicos restauram o
bém algo que pretendemos averiguar nas linhas que se seguem. objeto enquanto imagem dialética; permitem a formação de ima-
Ainda que seja limitado, nos moldes que estabelecemos aci- gem textual "na qual o outrora se encontra com o agora em um
ma, o texto do historiador italiano, como tentaremos perceber, lampejo"7>, formando uma coerência t'mica e específica através de
é profundamente imbuído do impulso artístico. E não é só fruto desintegração da linearidade da narração historiográfica.
de uma tentativa de agradar o leitor ou de gosto estético particu-
lar, mas sim de um projeto cognitivo: os procedimentos literários 7.
usados por Cinzbmg em seus te.:dos funcionam como um ele- Vejamos então corno Ginzburg desenvolve parte dessas
mento a mais para fundamenta r o estatuto de prova dos temas e questões naquele que talvez seja seu livro mais polêmico. A
documentos analisados. terceira parte de História Noturna, Conjecturas Euroasiáticas,
Podemos dizer que essa forma ele trab·alhar com a história, começa de forma incomum. O historiador italiano inicia-a nar-
entre a estética, a retórica e a prova, utilizada pelo historiador rando aparentemente um combate sing\.dar: "Dois homens en-
italiano, recupera a "imagem dialética" do texto historiográfico
na medida em que restaura e individualiza a especificidade e a 73 C RlBA UD1, Maurizio. "Forma, tensão c movimento: a plasticidade da
singularidade dele enquanto um objeto, um evento e/ou um mo- História". ln: VEN DRAM E, Maíra c KARSBURC, AJexandre. i\ifícro-
hístóría: um método em franRformaçao. I" cd., São Paulo: Letra & Voz,
2020, p. 59.
70 Aucrbilch, Erich. Mímesís, oJJ. cít., p 8. 74 BENJAMI:--1, \Valter. A obra de ar/e na era de sua reprodutíbílíclade
71 Ibidem, p. 9. técnica. Porto Alegre: L&PM, 2019, p. 59 e seguintes.
72 Ibidem, p. 11. 75 GRlBAUDI, Maurizio. Forma, lensc1o e movímeuto, op. cít., p. 60.
11 o Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 111

frentam-se ... ".76 A narrativa avança e, num segundo momento, bata lha que enfeite o pente aludisse a uma lenda cita, sugerida
a imagem cresce evocando algo mais próximo de uma batalha ao artesão pelo autor da encomenda".79
"entre eles, um homem a cavalo, peito coberto por uma couraça, Dessa forma, o autor escolhe nos apresentar uma "perso-
feita ele escamas, empunha uma lança curta voltando-se contra nagem" central elo livro, os ci tas, que serviriam ele ponte a uma
um elos homens a pé .. ."[ ... ] "Por terra, jaz um cavalo revirado." vasta e complexa troca cultural, entre Asia e Europa (dentre as
Então a ação cristaliza-se "As barbas, os cabelos, as escamas, ela qua is a chamada arte animalista), e que nessa terceira e decisiva
couraça, os bordados elas roupas, elos corpos musculosos elo cava- parte elo livro surgem para dar a Ginzburg a chance de traçar
lo morto e do vivo resplandecem com uma luz dourada unifor- relações h ístóricas documentadas a uma profunda dispersão de
me", nos fazendo entender que estamos provavelmente diante dados morfológicos encontrados no continente eurasiano (levan-
ele algo esculpido em ouro. O texto prossegue dando mais pistas tada na segunda parte elo livro). Nesses dois primeiros parágra-
sobre a natureza do objeto, sobre seu tamanho e adereço: "Cinco ros estamos diante de uma escolha pela técnica literária, que,
minúsculos leões agachados sustentam os combatentes". Até que como já vimos no capítulo anterior, pode ser chamada ele estra-
fi nalmente a peça é desvendada em sua total idade "Do pedestal nhamento proustiano. Os citas são apresentados a nós "através
em que se apoiam os leões, partem os longos dentes paralelos de ele fragmentos contraditórios que compõem um quebra cabeça
um pente. Também de ouro são os leões e os dentes do pente". 77 ou uma ad ivinha".80 Esses "fragmentos" são, no caso específico,
Ao revés, como o Elstir de : Vlarcel Proust pintava o mar, nós uma sucessão de cenas hem mais elaboradas e vividas (ekphrasis
somos apresentados a um pente de ouro. Mas que pente é esse? e enargeia ) que se pensarmos no exemplo anterior ela carta ele
Qual sua importância para o livro que, nesse ponto, prometia Menocchio. Temos o duelo sucedido pela batalha, o pente de
dar um caráter histórico a dados morfológicos profundamen te ouro, o chefe cita narrando o mito ele seu povo, o artesão grego
homogêneos, mas dispersos em sociedades, tempos c espaços trabalhando às margens elo Mar l\egro e uma rnulher recebendo
completamente heterogêneos?78 seu presente.
J\o parágrafo seguinte, G in zburg continua construindo em A escolha ele técnicas artísticas carrega c_onsigo uma multi-
seu texto quadros que, sobrepostos, vão progress ivamente re- forme riqueza cognitiva que, muitas vezes, um texto científico e
velando a história e natureza elo objeto: "Três séculos antes de esquemático dificilmente alcançaria.
C risto, um artesão grego, que provavelmente vivia numa das ci- História Noturna, acima ele tudo, é um c~tud o sobre narra-
dades elo mar Negro, cinzelou e fundiu esse pente para a mulher, tivas. É um estudo de como e porque elas permanecem ou mu-
a concubina ou a fi lha ele algum chefe cita.( ... ] Talvez a cena de dam com sua transmissão no tempo e no espaço. Pelas próprias
palavras finais do autor, ao concluir o livro, "o que se pretendeu
analisar aqui não foi um conto entre tantos, mas a ma triz de to-
76 CJNZBURG, Carlo. História Notunw. Decifrando o Sabá. 1" ed. São
Paulo: Cia das Letras, 1991, p. 187.
77 Gll\ZBU RC, Carlo. História Noturna, op. cil., p. 187. 79 Ibidem , p 187.
78 Ibidem, p 183. 80 Gll\ZBURG, Carlo. Estranfwmento, op. cit., p. 36.
112 Dcivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 11 3

dos os contos possíveis". 81 Com isso em mente, observemos que penteadeira, o espelho, bem como o pente, objeto não por acaso
o fio condutor do primeiro parágrafo do texto que estamos anali- 11tilizado como exemplo emblemático na aná lise de Cinzburg.
sando tem um elemento essencialmente temporal, isso é, que a Inclusive a expressão "resplandecem com uma luz dourada uni-
sucessão de imagens evocadas faz nossa imaginação viajar, ainda forme", quem vem logo na sequência do detalhamento das ca-
que de forma abrupta e descontínua, do evento narrado até sua racterísticas dos personagens que supostamente estão envolvidos
transformação em uma escultura, da origem do mito (que, por numa batalha, e traz à tona uma questão sempre importante na
definição inalcançável, mergulha nas brumas do passado) até construção da ekphrasis, a cor, pode ser vista como uma virada
confecção do objeto pelo artesão. na narrativa que nos lança da luta para sua representação escul-
De forma semelhante, o segundo parágrafo nos leva pelo tural. Assim fica claro que tal dispositivo é facilmente utilizável
caminho espacial, quando a narrativa migra ele uma cultura para em consonância com o estranhamente (também com ekphrasis
outra. Assim, esses dois parágrafos, com seu caráter respectivamen- e enargeia), e agindo como que por simbiose potenc ializa m seus
te dia crônico e sin.crónico, coadunados pela técnica narrativa, efeitos literários.
{lm cionam como sinédoque do que é o âmago do livro, de sua ncl- Retomando nossa reAexão, os vislumbres intelectivos propi-
lmezct e até mesmo de sua estrutura. Também em ambos os casos ciados por todo esse conteúdo artístico presente nesses dois pará-
acompanhamos a materialização da fonte histórica: o pente. grafos analisados, reverberam ao longo do restante do capítulo,
E a escol ha desse objeto não nos parece casual. Todas agregando a seus tópicos, com os quais mantém contiguidade
as observações que fizemos sobre as pecul iariclades do tex- semântica, uma virtude cognitiva inefável e subjacente, como
to, as nuances ele sua feitura, por si só, justificam sua eleição. exemplificam os trechos a seguir:
Entretanto, acred itamos que possivelmente sua seleção envolve
Os citas não sabiam escrever. O que deles sabemos
também a aplicação de outro recurso artístico: o coup de théa-
provém das escavações arqueológicas e das descri-
tre. Caracterizado como um procedimento teatral, ou mesmo
ções de observadores externos, sendo lleródoto o pri-
um efeito, no qual um evento imprevisto marca uma mudança meiro deles. ::\a massa de objetos encontrados nos tú-
repentina na dinâmica dramática e/ou na situação das persona- mulos os manufaturados citas (broches, ornamentos,
gens, modificando o curso da ação e retomando o interesse para de carroças, taças) juntam-se aos de produção grega.
certos atores ou movimentos. No século XIX, o drama teatral Dentre estes llltirnos, o pente de puro com a cena de
utilizou-o prolificamente, principalmente fazendo uso de ob- batalha. O contraste entre código estilístico e reali-
jetos ligados ao mundo feminino, 52 tais como a escrivaninha, a dade designada faz lembrar, de imediato, os relatos e
as descrições contidas no quarto 1ivro de lleródoto,
81 GINZl3URC, Carlo. História Notuma, op. cit., p 369. consagrado justamente aos citas. [... ]
82 Evidc 11te que havia também o uso de objetos do mundo masculino,
como a adaga c as armas de fogo. Ao serem usados :'1 cxaustiio, tais
efei tos - tanto os objetos masculinos quanto femininos- acabaram por
se tornarem clichê, sendo substituídos por efeitos c~ té ticos c de movi- mentos realizados pelos atores.
114 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 115

A função de intermediários culturais por eles desen- percepção", ainda não contaminadas por explicações causais".&-!
volvida parece, nesse caso, bastante fundada. làlvez ,\inda que o pente greco-cita não seja um representante direto
indícios linguístícos possam fornecer uma base mais dé1 arte animalista, ele é "uma fonte direta, ele primeira mão,
sólida também à tentativa de reconslnti r crenças do 11 ão fi ltrada por olhares ou esquemas externos",85 o que explica,
tipo xamânico. Como vimos, estas eram partilhadas
em grande parte, as escolhas narrativas do autor ao começar o
por popul<1ções que fala vam línguas que tant·o indo-
capftulo. Aqui o texto não só se edifica sobre pente, mas tem sua
-europeias quanto urálicas. O exemplo do húngaro
c do osscta indica que isso não excluía troca linguís- arquitetura influenciada por suas características particulares e as
ticas. Junto com palavras, podiam circular também ligações destas com tese da pesquisa. A análise ele um outro lex-
crenças, ritos, costumes. E, naturalmente, coisas. [... ] to, um ensaio fundamental de Ginzburg, talvez possa nos ajudar
ainda mais a confirmar e expandir essas ideias.
A discussão sobre a origem da arte animalista perma-
nece bem accssa; contudo, a função de ponte entre
8.
Ásia c Ettropa desempenhada, também nesse caso,
pelos cit as está fora ele discussão.[ ... ] Pela mediação Por milênios o homem foi caçador. Durante in(tme-
direta e ou indireta dos citas, elementos da arte das ras perseguições, ele aprendeu a reconstruir as for-
estepes transmigraram provavelmente para sarmáti- mas e movimentos das presas invisíveis pelas pegadas
ca, a escandinávia e a céltica. [... ] na lama, ramos quebrados, bolotas de esterco, tufos
... à diferença dos testemunhos sobre as crenças xa-
de pêlos, plumas emaranhadas, odores estagnados.
Aprendeu a farejar, registrar, interpretar c classificar
mânicas, os produtos da chamada arte animalista são
pistas infinitesimais como fios de barba. Aprendeu a
uma fonte direta, ele primeira mão, não filtrada por
fazer operações mentais complexas com rapidez ful-
olhares ou esquemas cultu rais externos (executando
minante, no interior ele um denso bosque ou numa
os nossos, é claro). Esses produtos confirmam que a
clareira cheia de ciladas. Gerações e gerações de ca-
transmissão histórica que havíamos proposto como
çadores enriqueceram e transmitira;11 esse patrimô-
hipótese é, se não certa, ao menos vcrossímil".8l
nio cognitivo.s6
Esse último trecho, em particular, faz eco a uma passagem
Se Sinais fosse escrito respeitando uma. hipotética linha
na qual Ginzburg contrapõe o estranhamento segundo Proust ao
cronológica, o texto acima, que abre a parte li, certamente se-
estranhamente segundo Tolstoi: "O objetivo de Proust parece,
em certo sentido, o oposto: proteger o frescor elas aparências con-
84 CIJ\ZBURC, Carlo. Estranhamenlo, op. cit., p. 36.
tra a intrusão elas icleias, apresentando as coisas "na ordem de sua 85 C IJ\ZBURC, Carlo.llistória ,1\,'otuma. Decifrando o Sabá. l" ed. São
Paulo:Cia dasLetras, l99l,p.l89.
86 C INZBURC, Carlo. Sinais: raí7.es de um paradigma indiciário. In:
Mitos, emblemas e sinais. Morfologia e história. 1• cd. São Paulo:
83 C lt\ZBURC, Cnrlo. /listória Notuma, op. cil., p. 187-199. Companhia das Letras, 1989, p. 151.
116 Deivy Fcn eira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 117

ria o começo do ensaio. Na parte l, o historiador italiano co- (:simplesmente do singular pelo plural, mas da parte pelo todo.
meça a expor o modelo epistemológico que aflorou no fim do t•:ntretanto ao partir do particular, ou melhor de vários casos par-
século XVIII. Da convergência dos métodos de Morelli, Freud c Liculares para então desembocar no geral, o processo narrativo (e
Sherlock Holmes, Ginzburg conclui que começara "a se afirmar lambém cognitivo) não se torna completamente generalizante,
nas ciências humanas um paradigma indiciário baseado justa- já que viemos de acontecimentos repletos particularidades e por-
mente na semiótica. Mas as suas raízes eram mais antigas"117 diz menores que não podem ser preteridos na abstração intelectual
o autor nos levando então a esse ponto do ensa io. necessária para formação de um "todo". Pensemos noutro exem-
O trecho escolhido tem uma característica bastante oblíqua. plo si milar, o "percurso narrativo" que nos leva do testemunho
A personagem central, "o homem", inicialmente se apresenta bas- ele dom Bartolomeo Sgabarizza sobre Paolo Gasparutto e sua
tante indefin ido, impessoal e extensivo, um procedimento meto- atividade de cura de enfeitiçados, que abre o livro Os cmdarílhos
nírnico bastante comum aos textos elas ciências humanas, disse-se: do bem que culmina na generalíssima tese de História noturna.
as sufragistas, os romanos, os povos de língua indo-europcia c etc., De volta ao Sinais, ao contrário elo que acontecia nos textos
associando a conjunlos humanos ações un iformes. Mas aqui esse analisados anteriormente, em que palavras como "deve" e "tal-
recurso exacerbara-se, visto que o pretérito perfeito do singular vez" conferem um tom de elucubração a narrativa, mostrando
dom ina todo parágrafo, primeiro com o verbo "haver" ligado ao uma fundamentação mais sutil (como no caso do primeiro texto)
ad jetivo caçador, depois com os demais verbos que surgem para ou mesmo fruto da imaginação do autor (como no segundo),
paulatinamen le aprofundar a natureza das atividades da ação cen- aqui o texto é bastante confortável em todas suas afirmações,
tral, caçar. A construção ecfrástica com suas imagens, odores c até como demonstra o uso do pretéri to perfeito (foi, afJrendeu, enri-
mesmo sensações táteis evocam um sujeito que ao mesmo tempo queceram). Isso se deve ao fato de as fontes ulilizaclas na sua con-
indiviso toma para si metonimicamente a representação do "Lodo" fecção serem muitas e variadas. Assim, diferentemente elos dois
do grupo humano ao longo de vários milênios. textos analisados anteriormente que eram concebidos sobre um
De forma antípoda no texto antes desse parágrafo ,·iemos da material exíguo, a extensão elo material que fundamenta o ex-
análise de processos intelectua is bastante particulares, até mesmo certo permite que Ginzburg trabalhe melhor a questão literária.
excêntricos, de indivíduos (um deles personagem fictício ) inte- O recurso à ekphrasis aqui, por exemplo, aparece ele forma mais
gmn tes ele um recorte espaço-temporal redúzido, para então nos rica, transbordando a mera questão visual, inçlo em direção ao
depararmos com a lotalídade do grupo humano numa longuís- olfato (até mesmo o paladar). Pouco a frente no texto, ao propor
sima duração realizando, aprimorando e expandindo um "mes- a famosa hipótese índemonstrável de que a própria icleia de nar-
mo" processo cognitivo, aqui observações, análises e reflexões rativa tenha nascido numa sociedade ele caçado res, o pretérito
do micro e do macro imbricam-se e dialogam avultando texto imperfeito retoma junto à carência das fontes.
e tese. Por isso, na relação mctonímica acima a subslituição não Se pensarmos novamente no ensa io que abre I\!1 imesis, o
fragmento selecionado tem um efeito muito sim ilnr à interrupção
87 Ihidem, p. I ; I. que acontece no momento em que a anliga ama ele Ulisses eles-
118 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 119

cobre sua cicatriz. Homero então passa a narrar a caça ao javali, tas vezes antes que se comece a escrever. Supor que
o incidente ela juventude do herói que dá origem aquela marca. possa ser conhecida mesmo antes do início da pes-
Jnclusive o debate que se segue sobre a pretensão elo poeta no quisa significa exasperar as possibilidades propiciadas
pelas características fo rmais do ensaio. É o que julgo
uso que faz das digressões em sua obra pode ser transposto, devi-
ter feito, mesmo que não de caso pensado.59
damente ambientado, para o escrito historiográfico especificado.
Ainda que comparações e digressões a tempos e locais diferentes
r\ssim o itinerário da pesqu isa ele certa forma seguiria o
não sejam, de forma alguma, estranhas à redação de outros histo-
"andamento tortuoso, caprichoso e descontínuo do ensa io"90 e
riadores, acreditamos que a fragmen tação ela linha temporal na
ambos, ao tornarem-se verdadeiros ao longo ele seu percurso, es-
prosa ginzburguiana possui um caráter autoral, refletido.
tariam correlacionados cognitivamente ao estranhamente prous-
Em seu ensaio sobre o estranhamento, que se inicia com tiano. Prova disso é que, ao continuar sua reflexão, Ginzburg nos
uma carta de Viktor Chklovski à Roman Jakobson no ano de
conta que os motivos sub jetivos que influenciam o corno pro-
1922, por exemplo, somos levados retrocedendo no tempo a
cede em suas investigações estão relacionados justamente com
Tolstoi, depois ao imperador Marcos Aurélio, então avançamos
ensaio Sinais:
novamente cruzando pelos Moralistas franceses do século XVI
e finalmente desembarcando em Proust. Esse vagar pelo firma- Retorno aquele ensaio, que desde então tem conti-
mento e retroceder e avançar e pelos séculos é uma constante na nuado a alimentar subterraneamente meu trabalho,
sua composição, perceptível tanto em livros como em ensaios. porque a hipótese sobre a origem da narração al i fo r-
Nessa atitude a relação causa-efeito é constantemente subvertida mulada também pode lançar luz sobre as narrativas
históricas - voltadas, ao contrário das outras, para a
para o leitor. Ginzburg, ao refletir sobre seus métodos de pesqui-
busca da verdade, e, contudo, rnoddadas, em cada
sa (e a forma de apresentá-las em seus textos), afirma que muitas
uma das suas fases, por perguntas e respostas elabo-
vezes a resposta se apresenta sem que ele saiba qual é a pergun- radas de forma narrativa. Ler a realidade às avessas,
ta.88 Esse percurso segundo ele estaria 1igado tanto a motivos ob- partindo de sua opacidade, pa.ra não permanecer
jetivos quanto subjetivos. Os ob jetivos estariam relacionados a prisioneiro dos esquemas da inteligência: essa ideia,
imposição elo gênero ensafstico: cara a Proust, parece-me exprimir um ideal de pes-
quisa que inspirou também estas páginas.91
Para quem lê um ensaio, a meta, o terminus ad quem
de um percurso em gera I tortuoso, é por definição Mais que iluminar as narrativas his.tóricas voltadas para a
desconhecida, donde a surpresa que acompanha a busca ela verdade, mas sim defendê-las e defender a possibil idade
leihua dos melhores espécimes dessa forma literária.
Para quem escreve, porém, a meta é conhecida, mui-
89 Ibidem, p. 12.
90 Ibidem, p. 13.
88 CINZBURC, Carlo. Nenhuma ilha é uma ilha, op. cit., p. ll e 12. 91 Ibidem, p. 14.
120 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A íorma e o tempo 121

de sua existência é o que Gin zburg procura fazer num ensa io lctânea O fio e os rastros, um livro em que, através de ensaios
que entendemos ser fundamental na sua obra, e em toda discus- de temas dos mais variados, Ginzburg aborda a relação entre o
são presente nesse capítulo, por isso, dele será o último fragmen- relato e a realidade. 93 Para podermos anal isar uma faceta que
to que procuraremos analisar. consideramos importante da natureza formal deste excerto e do
ensaio em si será necessária uma breve digressão.
9. O Tractatus Coislínianus VI, que possivelmente foi baseado
Crocc havia mencionado a distância, sublinhada por na parte perdida da Poética de Aristóteles, define três tipos de
Tolstoi em Guerra e paz, entre um acontecimento personagem para comédia: o "bufão" (bomoloclws ), o "impostor''
real - uma batalha por exemplo - c as lembranças (alazón) e o "irônico" (eirô).94 Aristóteles coloca dois desses per-
fragmentárias e distorcidas destes que servem de base sonagens em oposição, alaz6n e eirô, ao postular que a virtude
para os relatos dos historiadores. O ponto de vista de é um estado ele cará ter pertinente à escolha que se encontra si-
Tolstoi é conhecido: a distância só pode ser preenchi-
tuada no meio elo caminho entre dois pólos, associados um ao
da recolhendo as memórias ele todos os indivíduos
impostor e o outro irônico. A percepção dessa oposição pode ser
(a té mesmo o mais humilde soldado) direta o u indi-
retamente envolvidos na batalha; Croce rejeita essa
notada também quando pensamos no modo socrático, onde a
solução, como sendo absurda: "0rós, a todo instante, ironia surge no ato de se perguntar (eí rein) ao interlocutor para
conhecemos toda história que nos importa conh ecer"; confrontar suas opiniões, na intenção ele que ele se contradiga e
portanto, a história que não conhecemos é idêntica se refute. A ironia apresenta-se então como rival da impostura.
ao "eterno fantasma da 'coisa em si"'. Serra, ao ~e de- Giambattista Vico leu na criação dos trapos de li nguagem
finir ironicamente como "um escravo da coisa em si", eta pas ela evolução ela história humana. Assim associou à metáfora
escreveu a Croce que se sentia mu ito mais próximo a Era dos deuses, metonímia e sinécloque à Era monárquica dos
ele Tolstoi: "só que", acrescenta, "minhas dificuldades
heróis, e finalmente a ironia à Era dos homens95 e também relacio-
são, ou me parecem ser, mais complicadas" [... ] Serra
nou a ironia com em algum sentido com a exr,osição e confronto
sabia mui to bem que qualquer documento, a despeito
da fals idade: A ironia certamente não pôde começar se.não nos tem-
de seu caráter mais ou menos d ireto, sempre guarda
uma relação altamente problemática com a real idade.
pos da reflexão, porque ela forma-se a partir do falso, em virtude de
!Vfas a real idade ("a coisa em :si") existe. 92 uma reflexão que assume a máscara de verdade. 9~ Assim para Vico,
só com a perda da simplicidade infantil do dos primeiros homens
Esse lTecho se encontra já ao fim do texto Unus Testis, o que a falsidade (e também a reflexão e a· ironia) foram possíveis,
extermínio dos judeus e o princípio da realidade, e integra a co-
93 Ibidem, p. 7.
94 Tractatu s Coislinianus 6, XII personagens, p 3.
92 GINZB URG, Carlo. "Unus testis - o extermínio dos judeus e o princí- 95 VI CO, Giambattista. Princ{f)ios de uma ciência nova: acerca da nature·
pio da realidade. In: O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. l" ed. za comum das nações. 2• ed., São Paulo: Abril Cultural, 1979, p 89-91 .
São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 228-229. 96 ibidem, p. 9l.
122 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 123

"que os primeiros homens da gentilidade tendo sido tão simpl6rios das conclusões que Auerbach chegou no final ele Mimesis sobre
quanto as crianças, que por natureza são verazes, as primeiras fábu- li questão da homogeneização, conforme explicitamos no pri-

las não puderam fingir nada de falso. E terão sido, necessariamente, nlciro capítulo.
como acima definimos, narrativas verdadeiras".9i Assim podemos retornar ao trecho do ensaio de Ginzburg
Em 1945, o crítico literário Kenneth Burke, em seu ensaio pa ra discutir seus atributos irônicos. Como expediente literário
Four master tropes, revive os quatro trapos de Vico. Assegurando 11 ironia acaba sendo trivialmente associada a troça ou a zom-

que seu intento não está relacionado com o "uso puramente fi- baria . Esse não é o caso, já que o tom e o tema elo ensaio (e elo
gurativo"9~ dos trapos, mas na percepção do "seu papel na des- Lrccho selecionado) são profundamente sérios para o autor que
coberta e descrição da verdade". Apresentados na mesma ordem tenta confrontar a ideia que assimila narrações históricas à narra-
que Vico, a ironia, o quarto e último tropo é aproximada por ções ficciona is, e é um enfrentamento direto ao ataques daque-
Burke à dialética: les chamados por Ginzburg ele céticos. Provavelmente trata-se
neste ensaio, de implicações mais sérias; de críticas das posições
A ironia surge quando se tenta, pela interação de
oriundas do pensamento de Hayclen White, que se levadas ao ex-
termos uns com os outros, produzir um desenvolvi-
tremo, poderiam fornecer fundamentos para teses negacionistas.
mento que usa todos os termos. Assim, do ponto de
vista de sua forma total (esta "perspectiva das pers-
Originalmente foi apresentado no congresso The extermination
pectivas"), nenhuma das "su b-perspectivas" partici- o{ the jews and the Limits of Representatíon que foi realizado em
pantes pode ser tratada corno precisamente correta abril de 1990 na cidade ele Los Angeles. Essa frontalidade comba-
nem como precisamente errada. Todas são vozes; o u tiva produziu uma redação com características bastante particu-
personal idades ou posições, que integralmente afe- lares quando comparado aos outros ensaios elo livro e da obra elo
tam umas às outras. Quando a dialética é formada de autor. Os textos de diversos autores que C inzburg nos apresenta,
modo ap ropriado, elas são o número de personagens geralmente ligados por uma Logosformel, e que perm ite-l he fa-
necessários para produzir o desenvolvimento total. 99
zer associações inesperadas e pouco convenci~~ais> surgem para
assim guiar-nos pelas trilhas tortuosas de seus ensaios. ivlas em
Nesse ponto se lermos o itinerário da providência que para
Um1s Testis as citações e os citados ma is se colidem as vistas do
Vico levou o homem da metáfora à ironia,_sobre o prisma dos
leitor que o conduzem. Pierre Vidal-Naquet aP.arecc em oposi-
conceitos !Topológicos ele Burke, não estaremos muito distantes
ção a Robert Faurisson e sua tese da inexistência elos campos de
97 Ibidem, p. 9 1. extermínio nazista, Croce e Giovanni Centile divergem, e \Vhite
98 BURKE, Kenneth. "Four mas ter tropcs". In: A Crammar of,'vlotíves. 1'' se insatisfaz com a atitute "realista" ele Croce. Assim os textos
ed. Berke ley: University ofCalifornia Press, 1969, p. 503. Para maiores
expostos, funcionam geralmente como teses e antíteses um dos
deta lhes de u ma boa análise de Pike ver: KERN, Danie la Pinheiro
Machado. "Breve história da tropologia literária. Os tropos princ ipais e outros, já que defendem icleias em geral bastante contrárias en tre
os c hicagoans". Seminário. V li Sai<Jo de Ensino, História da Arte. Porto si, dando ao texto um aspecto dialético.
Alegre: UFRCS, p. 363.
99 BURKE, Kenneth, op. cít., p. 51 Z.
124 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 125

O próprio Ginzburg, quando aparece falando com sua pró- Retornando ao fragmento que abre essa parte elo capítulo, o
pria "voz", mostra-se propício a ironia, "os princípios jurídicos historiador italiano nos apresenta três pontos de vista sobre o tema
não podem ser transferidos com todo seu peso para pesquisa his- da distância entre um fato e a memória desse fato, a posição ele
tórica" afirma para logo em seguida introduzir o pensamento 'lolstói (tese), o juízo contrário ele Benedetto Croce (antítese) e
elo historiador do direito François Baudouin e do jesuíta Henri confissão ele Renato Serra, que se define ironicamente como "um
Griffet que a partir de perspectivas diferentes correlacionaram escravo da coisa em si" e se posiciona ao lado de Tolstói ainda que
direito e história, conclu indo "que a conexão entre provas, ver- reformule sua posição levando em conta às objeções céticas ao acei-
dade e hisl6ria, sublinhadas por Griffet, não pode ser descartada tar a relação altamente problemática entre o documento e a reali-
facilmente". 100 A própria icleia contida na ironia, ele inversão se- dade (síntese). A definição de ironia de Burke, relacionada com a
mântica util izacla no sentido de crítica, denuncia a censura ou dialética, se encaixa bem nesse trecho. A ideia central do fragmento
desvalorização do discurso que aparentemente se profere, poden- também serve ele base conceitual para conclusão que Ginzburg dá
do ser estendida a textos que Ginzburg cita, mas cujo conteúdo ao ensaio, e ele certa forma, a todo tema desse capítulo:
notoriamente discorda.
Serra repelia explicitamente qualquer perspectiva po-
Também é de uma ironia bastante rebuscada e acurada are-
sit:ivista ingênua. l'vfas as suas observações nos ajudam
construção do desenvolvimento intelectual de White e a incerta,
a repelir também um ponlo de vista em que se somam
mas provável, inAuência ele Gentile em seu pensamento, aliada positivismo (ou seja, uma "pesquisa histórica positiva"
com a afirmação ele que sua concepção da história do primeiro baseada na decifração literal dos documentos) e relati-
teria pontos ele contato com ideologias dos regimes fasc istas. A vismo (ou seja, "narrações históricas" baseadas em in-
passagem que encerra essa parte e especialmente dotada de sa- terpretações simbólicas, inconte;áveis e irrefutáveis).
bor irônico: As narrações baseadas numa só testemunha discutidas
na primeira parte deste ensaio podem ser considera-
\Nhite convida a considerar sem "sentimental ismo" das casos experimentais que refutaiT) a existência de
o nexo entre uma concepção da história por ele im- uma distinção tão nítida: uma leitura diferente ela do-
pl icitamente elogiada e as "ideologias elos regimes cumentação disponível influi imediatàmente sobre
facistas". Ele define essa atitude como "convencio- a narração. Uma relação análoga, embora em geral
nal". Mas a menção do nome de Gentile (junto ao menos evidente, também pode ser conjecturada em
de Heidegger) nesse contexto não parece em absolu- plano mais amplo. Portanto uma' atitude totalmente
to convencional. 101 cética em relação às narrações históricas não tem fun-
clamento.101

I00 Cli\ZBURC, Carlo. Unus teslis, o extermínio dos judeus e o princípio


da realidade, op. cit., p. 215.
IOI Ibidem, p. 227. 102 Ibidem, p 229. e 230.
126 Dcivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 127

A reconstituição de uma batalha e seus meandros, mais ain- l'onfronto de trechos de autores que possuem argumentos diver-
da, a possibilidade ela apreensão da batalha como uma associa- ~t·ntcs- expor e confrontar a ideia, falsa para Cinzburg, que a
ção metonímica que serve de exemplo ela relação do historiador at·alidade objetiva de um evento histórico, como o holocausto, não
e suas com as suas fontes. Esse é por fim o assunto do trecho. possa ser afirmada pelos historiadores. O mesmo parece acontecer
E que reaparece como um dos subtemas condutores do ensaio rom os outros três textos analisados, cuja metáfora no primeiro,
de Ginzburg, Micro-historia: duas ou três coisas que sei a respei- a sinédoque no segundo e a metonímia no terceiro, além de ou-
to,•oJ iniciado com a análise de elementos da obra ele George Iras atributos formais que fizemos notar surgem correlacionados
R. Stewart, que entre outras escreveu O ataque de Pickett. Uma com certa necessidade oriunda do objeto c do tema. Contudo essa
micro-hist6ria do ataque final em Gettysburg, 3 de julho de 1863, q11cstão formal que ressaltamos e todos seus efeitos cognitivos, por
onde analisa minuciosamente a batalha decisiva ela guerra civil 111ais importantes que a consideremos para a concepção textual elo
americana. Nesse ensa io, os romances ele Stendhal e Tolstói com ;1utor não deve obscurecer um tema que é central para C inzburg
se us personagens romanescos e sua narrativa sobre confrontos c para sua escrita, um assunto que já abordamos no tópico 5 quan-
bélicos, fazem "emergir a penosa inadequação com que histo- do tratamos ela concepção de prova do aul·or c sua relação com
riadores haviam enfrentado o acontecimento histórico por ex- a Retórica de Aristóteles, mas que agora gostarfamos ele retomar
celência".10'1Já no tópico em que analisa Kracauer, é o quadro de forma mais minuciosa, já que viemos dessa atenta análise ele
de Alhrccht Altdorfer, a Batalha entre Alexandre e Dario à beira aspectos formais do texto do autor ital iano.
do lsso, que aparece como elemento cognitivo para relacionar o
representar de um confl ito armado com o ofício do historiador. 10.
Assim é nesse contexto que o fragmento surge, de forma bastante No segundo ensaio de Relações de força, Ginzburg traz à tona
semelhante ao de Unus testis, nesse ensaio sobre a micro-histó- o texto de Lorenzo Valia, Discurso sobre a falsa e enganadora doa-
ria, só que ao invés de servir como espécie de argumento fin al, ção de Constantino. 10 ; Nele demonstra a farsa do chamado decreto
aqui o texto nos guia até Lembranças de uma batalha de !talo ele Constantino, documento que circulava durante a Idade ~Iédia
Calvino. Essa dupla aparição serve para reforçar sua relevância, certificando que o Imperador, em gratidão a cura miraculosa de
e também para ressaltar a convergência da opinião de Ginzburg sua lepra pelo Papa Silvestre, havia doado um terço elas terras do
com a de Serra. Império à Igreja ele Roma. 1\a primeira parte elo discurso, Valia,
Os elementos irônicos, ainda que não sejam o cerne do tex- através de uma série ele diálogos imaginários de Constanlino com
to e seu elemento principal, parecem surgir como uma espécie seus filhos e entre o Imperador c o Papa, demonstra a impossibi-
de "sintoma" forma l de um artigo que se propõe- mediante ao lidade da doação do ponto ele vista psicológico. ra segunda parte
a falsidade elo documento é clemonstracl<J num debate pormeno-
I03 CINZI3URG, Carlo. "IV!icro-história: duas ou três coisas que sei ares-
peito", op. cil., p. 249. 105 GINZBURG, Carla. "Loreuzo Valia e a doação de Consl;mtino", op.
I04 Ibidem, p. 266. cit., p. 64.
128 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 129

rizado ele suas anacronias e seus erros grosseiros. Um texto com No final de seu ensaio já citado sobre a retórica aristotélica,
duas facetas: a primeira parte ancorada na Retórica, cu jo autor C inzburg aborda um tema que também se faz presente em seu
polemista, usa diálogos fictícios para provar um ponto de vista; e ensaio Unus Testis; uma afinidade, ainda que ambígua, entre his-
a segunda iniciadora ela moderna crítica histórica que apontava toriadores e juízes, que pode iluminar metodologicamente essa
os helenismos e barbarismos anacrônicos no documento como vinculação ela prova e da retórica:
sinal ele sua fa lsidade. No ensa io Ginzburg aponta que a no-
Juízes e historiadores se associam pela preocupação
ção ele retórica de Valia viria de seu interesse entusiasmado por
com a definição dos fatos, no sentido mais amplo
Quintiliano, de qt..:em possuía dois códices da Institutio Oratoría.
do termo, incluindo tudo que se inscreve, de algu-
Neles, Quintiliano fala amplamente sobre as provas: ma forma, na realidade [... ) Nas ú ltimas décadas,
ele modo cada vez mais frequente, os historiadores
Entre as provas externas, não baseadas na arte oratória
têm trabalhado com fontes judiciárias [.. . )l\t1as o
("inartificiales"), Quintiliano listava "os preconceitos,
impulso ele se ocupar de fontes judiciárias pe rmitiu
as opiniões públicas, os interrogatórios, as escrituras
tocar, por um lado, na ambígua proximidade e ntre
[tabulae], o juramento e os testemunhos: coisas que
h istoriadores e juízes e, por outro, na importância
estão presentes na maior parle dos litígios forenses"
da retórica judiciá ria para qualquer discussão de
(v, I, 1). :\a edição comentada da lnstitutio Oratoria,
metodologia ela h istóriai 08
que apareceu em Veneza em 1493, lê-se que por "ta-
bulae" entendiam-se os testamentos c os diplomas
Essas reflexões nos levam a pensar em livros como os
("instrumenta"). O constitutum Constantini podia,
perfeitamente, entrar nessa categoria.106
Andarilhos do Bem, o Queijo e o Vermes e I-1 istória Noturna, com
sua vasta pesquisa documental largamente pautada, inclusive
\fia is a frente no ensaio, Ginzburg afirma que foi Quintiliano ele fontes judiciárias (inqu isição); e seu o minucioso exame de
quem conservou e transm itiu a herança intelectual de Aristóteles fontes e esmero na construção textual na intenção de produzir
referente a Retórica.107 Assim, a tradição ela retórica aristotél ica efeitos artísticos, e porque não dizer, retóricos. Esses livros (e
cujo núcleo central o historiador italiano aponta estar baseado também seus ensaios) inserem Ginzburg na própria ·tradição que
na prova, teria chegado até Valia por interlJlédio ele Quintiliano, ele atribui a Lorenzo Valia que une Retórica, História e Prova.
de tal forma que as duas partes de seu discurso sobre a falsidade Observamos assim que nos quah:o fragmentos analisados
da doação de Constantino não se apresentam tão inconciliáveis, nesse capítulo, que nos textos ele Gin~burg, 'elementos como
quanto se mostram quando analisadas a partir de um ponto de metáfora, metonímia, sinédogue e ironia·, assim como os dema is
vista que opõe o discurso retórico a apreensão da verdade. expedientes literários que fizemos notar, não são elementos que
atuam como possível "falsificador"; ou na transformação de seus

106 Ibidem, p. 72.


107 Ib idem, p. 75. I08 Ibidem, p. 75
130 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias

argumentos em peças literárias. O uso de recursos e procedimen-


tos literários atuam diretamente na possibilidade de apreensão
da realidade: mesmo fundamentados por um forte aparato retó-
rico, esses são construídos em redor da prova. PARTE 11

Desde a antiguidade clássica a discussão das tensões, con-


Aitos e interdependências entre a palavra e a imagem são um
elemento central dos caminhos e cruzamentos entre as artes. O
cerne desse debate foi a percepção de que texto e imagem se
coadunam em vários momentos e de várias formas, colaborando
para a fruição ela arte enquanto tal e para os deslocamentos ope-
rados entre a visualidade e a linguagem verbal.
A máxima de Horário Ut píctura poesis (poesia é como pin-
tura) foi exaustivamente discutida por intelectuais, já em sua con-
temporaneidade, mas sobretudo no período do Renascimento e
ao longo dos séculos XVIII e XIX. Essa singela passagem, escrita
em uma epístola dedicada aos Pisões, filhos de urna família nobre
elo império romano, fez com que ressurgisse :: como sobrevivên-
cia? -em v<1rios contextos, importantes debates qu~ discutiram
semelhanças e divergências entre as duas artes. O Renascime nto,
objeto central elas análises de Aby \Narburg, f<?i um período no
qual esse debate foi retomado. Os fundarFientos .mais amplos des-
sa querela não cabem agora em nossa discmssão, mas é importan-
te destacar que Warburg proporá uma teoria acerca dessas rela-
ções, ainda no século XIX, que será fundamental para o método
analítico de Carlo Ginzburg e sua compreensão.
Aby \Varburg fbi extremamente sagaz em perceber que a ima-
gem contém em si um potencial cinético; um Pathosformel mnési-
132 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 133

co que carrega algo que poderíamos b·acluzir como uma viela pós- Veremos que tal discussão, cuja superfície apenas arranha-
tuma (Nachleben); como uma sobrevivência de um passado cuja mos, tão fundamenta l para a História da Arte warburgu iana e para
origem pode estar perdida. Essa percepção é fundam ental para a a fi losofia de Benjamin, é indispensável para que tenhamos uma
história. E através dessa operação historiográfica que as imagens verdadeira ideia da operação historiográfica realizada por Carlo
- e também ideias, ritos, mitos e conceitos - transmitidas pelas Ginzburg. A partir, principalmente, de seu Hist6ria Noturna, as
gerações an teriores a nós ganham nova viela e que um passado que imagens, ritos, mitos e ieleias são, de alguma maneira, apresenta-
parecia concluído em si, se recoloca para nós, sempre em movi- elas aos leitores, carregadas de uma ambivalência latente, que em
mento, tornando-se novamente passível de ser conhecido. 1 contato com as lentes do historiador, readquirem vida; seja como
É interessante notar que outro judeu na diáspora, \Valter sobrevivência, seja como reelaboração. G inzburg, também em
Ben jamin, poucos anos depois de Warburg, ao trabalhar em outros trabalhos, ao analisar a transmissão ele ideias e imagens
seu livro sobre as passagens parisienses, percebeu claramente pelo tempo e pelo espaço, nos mostra que essas questões se en-
o aspecto dialético das imagens. Essas, segundo Benjamin, só contram numa espécie de entroncamento entre o individual e
podem ser captadas e definidas por meio elo movimento, sendo coletivo; entre o presente e o passado.
seus significados compreendidos na dialética entre a imobilida-
de e a retomada elo movimento; na pausa carregada ele tensão
entre essas duas. Somente nesse momento, dialeticamente, um
instante do passado é colocado em relação com o presente. 2 I~
preciso ressaltar, contudo, que essa reflexão de Benjamin não
vale apenas para a imagem, mas para toda a sua compreensão
da História. 3 Segundo ele, o tempo histórico deve ser visto de
forma descontínua, sem respeitar linearidades, causalidades. Ao
con trário, é justame nte pelos saltos e pela instalação ele um novo
tempo que abandone o tempo histórico "oficial", que seria possí-
vel uma compreensão dialética ela realidade. 4

CANTINHO, :VIaria João. "Aby \Varburg e \Valter Benjamin: a legibi-


lidade da Memória". História Revista, Goiânia, v. 21, n. 2, p. 24-38,
maio/ago. 2016, p. 37.
2 BEI\')AMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora da UFMC,
2018. A respeito dessa questão, ver, em especial, o fragmento!\ 3, 1.
3 CRUZ, Claudio Celso Alano. O livro das passagens e o conceito de
imagem dialética em Walter Benjamin. Caderno de Letras, no 30, Jan-
i\br-201 8,p.ll 7.
4 Ibidem,p. l24.
No rastro da forma:
Nach/eben, Pathosformel
e Logosformel

l.
Aby Warburg foi um historiador autodidata e sua produção
não constituiu um conjunto organizado de forma coerente em
livros ou em publicações planejadas pelo próprio autor. Os livros
editados com seus escritos foram produtos do interesse da siste-
matização de outrem. Enfrentou em boa parte da vida crises ele
depressão e colapsos ele ordem psicológica. Sua atividade acadê-
mica geralmente foi voltada para palestras em conferências onde
expunha resultados ele suas pesquisas, bem como na consol ida-
ção de sua biblioteca. Grande parte de seus textós permaneceu
inédita até o final ele sua vida. 1 A primeira reunião cldes ocorreu
no início da década de 30, produto ele um projeto editorial lide-
rado por Gertrucl Bing, que dirigia, naquele momento, a biblio-
teca do instituto Warburg ao lado ele Fri~ ~axF
Como veremos, os conceitos warbui·guianos devem ser vis-
tos como um importante marco na viragem ela historiografia

FERNA:--JDES, Cássio. Introdução. In: Aby \Varburg. A presença


do Antigo. Escritos Inéditos - Volume 1. 1' ed. Campinas: Editora da
Unicamp, 20 18, p. 14-1 5.
136 Deivy ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 137

contra de uma visão redutora da história, sobretudo aplicada a Já nos anos 1960, pode-se observar uma importante reto-
temas como a fotografia, o cinema e a história de arte. Mas não mada dessas questões através de autores como Carla Ginzburg,
só isso: sua obra abre também uma perspectiva importante acer- William Heckscher e Ernst Gombrich, que se debruçaram de
ca dos símbolos e elas memórias e de como esses ''viaja m" pela maneira mais detida sobre a obra do historiador da arte alemão.
e ao longo da História. É precisamente a partir dos conceitos No fina l do século XX, as contribuições de Aby Warburg ao estu-
de "sobrevivência ou vida póstuma dos antigos" (Nachleben der do ela arte e da cultura passaram por um novo reconhecimento,
Antike) e de Pathosformel que Warburg segue na definição de sua por meio ele reedição de suas obras e publicação de textos até
con tri bu ição historiográfica. 2 então inéditos, fazendo com que a inAuência de seu pensamento
Edgar Wind, contemporâneo de Bing e Saxl, ao anali- alcançasse novas dimensões. Se até os anos 1980 o pensamento
sar os fundamentos teóricos de seu pensamento, destacou a de \Varburg era apropriado, grosso modo, mediado pelas análises
concepção de total idade da cultura, no inter ior ela qual a arte e trabalhos de E. Gombrich, E. Panofsky, E. Wincl e C . Bing,
preenche uma função necessária. Além disso, ele apresentou a partir de então, a publicação ele sua obra completa, incluin-
em alguns ele seus trabalhos as dife renças entre o método de do palestras e trabal hos desconhecidos até sua morte, propiciou
Warburg e o forma lismo de autores como Riegl e \VolfAin. aos interessados acesso direto aos seu pensamento e às suas con-
Segundo Wind, para Warburg a imagem jamais poderia ser tribuições historiográficas. A partir de então, o historiador ele
desligada de sua relação com a rel igião e a poesia, com o culto Hamburgo se torna uma referência incontornável para a História
e a arte dramática antiga, pois isso seria o mesmo que suprimir ela Arte e para a análise das imagens.
seu elemen to vitaP Esse mesmo historiador destaca o papel Mas afinal, quais eram seus objetos de pesquisa? Para os nos-
crucial do conceito de memória social no pensamento teó- sos propósitos, em linhas gerais, podemos dizer que ele esteve
rico ele Warburg, criador de um paradigma de investigação, imerso, ao longo da sua trajetória ele pesquisa, na análise sobre o
segundo Wind, que poderia ser chamado de "sobrevivência ingresso do estilo antiquizante na arte do primeiro Renascimento
ela antiguidade" [Naclzleben der Antíke], no qua l chega-se ao Aorentino, com ênfase nas últimas décadas .elo ....
Quattrocento. É
tema das leituras e recepções da Antigu idade como formas de esse o tema principal de sua tese sobre o Nascimento ele Vênus
configuração elos símbolos e ela memoria. I\ esses termos, seu e a Primavera de Sandro Botticelli. 5 Segundo ele as duas pintu-
programa de pesquisa poderia ser resumido no problema da ras, surgidas da encomenda do "príncipe" elo e~tado ele Florença,
função da memória histó rica ela antiguidade nos fenômenos Lorenzo ele :Médici, foram concebidas ·sob a -base iconográfica
da tradição europeia .4 fo rmulada pelo humanista, dramaturgo· e poeta da referida re-

2 CAI\'TINHO, 1\ilaria João. Aby Warburg e \Valter Benjamin, op. cit. p. 24.
VIEIRA NETO, Scrzcnando Alves. ReAexões sobre a recepção crítica 5 WARBURG, Aby. "O nascimento de Vênus e A primavera de Sandro
de i\by Warburg. 1\evista de Teoria da História. Goiilnia, Vol. 22, n. 2, Botticelli". In: WARBURG, Aby. f-list6rias de fantasmas para gente
dezembro de 2019, p. 306. grande: escritos, esboços e conferências. 1• ed. São Paulo: Companhia
4 Ibidem. das Letras, 2015, p. 27-86.
138 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A formn c o tempo 139

pública, Angelo Poliziano, que atuou como mediador da relação meio da linguagem dos gestos. Essa perspectiva foi apreendida
de Botticell i com poeta romano Ovídio. Warburg analisa então e adaptada a partir da leilma do livro de Charles Darwin "The
como em sua representação da antiguidade clássica, as obras do ExfJression of the emotíons ín man and animais", no gual o pai da
pintor Aorentino teriam sido inAuenciadas pela perspectiva de teoria ela evolução concebe que os gestos e as expressões humanas
lei tura humanista da tradiçflo homérica transmutada por Ovídio. "naturais" seriam h·aços enfraquecidos de ações e reações impul-
A imagem, assim, é concebida como um fenôm eno antropo- sivas: nossas expressões faciais c nossos gestos seriam um resfduo
lógico total, uma cristalização de uma condensação particular- simbólico daquilo que inicialmente fora um elemento biológico
mente significativa do que era uma cultura em um determinado instintivo útil para sobrevivência da nossa espécie.
momento de sua história. Assim a imagem não deveria nunca ser Segundo Oidi-Huberman, o livro de Darwin permitiu a
dissociada do agir global dos membros de uma sociedade nem Warburg pensar na regressão que atuava nas imagens da mais
do saber próprio de uma época.6 Segundo ele, a história da arte elevada cultura. Os gestos do Laocoonte constituem a dínamo-
deveria disponibilizar seu material a uma "psicologia histórica grafia de um resíduo simbólico de ações corporais primitivas.
da expressão human a" ainda inexistente c clcsvcncilhar-se elos Em suma, a lembrança inconsciente, que pereniza (perpétua)
esquematismos ela história política e da doutrina dos gêneros a aí atualiza (renova) o primitivismo (a ancestraliclade) elos movi-
fim de encontrar seu próprio caminho evolutivo.i Em suma, a mentos expressivos, desliga os, por meio elos processos de associa-
categoria histórica que permanece como objeto de análise de ção e antítese (oposição) disso a necessidade imediata transforma
Warburg durante toda sua vida é o paganismo, em sua acepção os em formas manipuláveis em todos os campos da cultura.9
ma is ampla de um fenômeno cultural primitivo, o qual retoma Outro conceito fundamental para a compreensão do pensa-
de forma culturalmente dominante em vários momentos his- mento de vVarburg, a Pathos{ormel ou "Fórmula de Pathos", ex-
tóricos como Nachleben der i\ntíke (sobrevivência elos antigos) pressaria inicialmente esse encontro entre o homem e o mundo,
e permanece como potência dormente em vários grupos e nos entre o homem, o trauma e o medo, resultando em uma fixação
próprios indivíduos.~ visual, baseada em um processo el e mimetizaçã,p de·algumas qua-
Ainda no firn do século XJX, em suas primeiras pesqu isas, apa- l idades (biomórficas) que se tomam petrificadas e fixadas como
rece um elemento gue acompanhará constantemente os demais imagem. O referente original se caracteriza por exceder os limi-
trabalhos ele Warburg: a tensão de afetos expressa nas imagens por tes da consciência cotidiana humana, ameaçando sua segura nça
e coerência. 10 Além disso, a imagem, que é o resultado do en-
6 DIDI-1-JUBERMAN, Ceorges. Imagem Sobrevi1·ente: 1Jistória da Arte contro, registra a excessiva vitalidade da forçâ externa em formas
e tempo dos fanta smas segundo i\by Wc~rburg. 1• ed. São Paulo:
Contraponto, 2013, p. 40.
7 VIEIRA NETO, Sc r7.cn~ndo Alves, op. cit., p. 308. 9 DIDI-HUBERiVIA:--J, Georgcs, o(J. cit., p. 200-209.
8 STEINBERC, Michael. t\by Warburg's Kreu~lingc 11 lccturc. In: lO Eli'AL, Adi. "A "fórmu la de Pathos'' ele Warburg nos contextos psicnna-
WARBURC, Aby. lmages {rom the region o{ the Pueblo lndíans o( lrtico e Banjaminiano". Arte do Ensaios. Revista do ppgav/eha/ufrj Rio
North i\merica. i•' ed. lthaca: Cornell University Press, 1995, p. 70. ele Janeiro, n. 35, agosto 2018, p. 198.

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140 Dei V)' Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 141

que usualmente expressam movimento. Em suma, A "Fórmula consegue apontar as hibriclizações características elos objetos ar-
de Pathos" guardaria uma memória do encontro traumático com tísticos, ao sobrepor ternporalidades distintaY
essa força ameaçadora da natureza e no curso do tempo, sendo Deste modo, para \Varburg o homem elo Renascimento re-
fixada como um produto cultural, expressando conteúdos dife- corria às fórmulas do patético na tentativa de romper com as for-
rentes c particulares à medida que a história se desenvolve.11 mas medievais de expressão. O Renascimento italiano se consti-
Segundo Felipe Charbel, o conceito ele Pathosformel deve tui, pois, como o campo privilegiado de estudos para Warburg,
ser compreendido também à luz da teoria psicanalítica ele fins já que tal período se configura como o exemplo histórico que
do XIX e início do século XX, sobretudo a partir da teoria ele melhor apresenta o funcionamento da memória cultural e das
Richard Semon, bastante citado por \Varburg. De acordo com sobrevivências primitivas, e para ele somente através ela noção de
Semon, a memória é concebida como a capacidade ele reagir Pathosformel as representações dos mitos antigos poderiam ser
a um evento ao longo de um período; ou seja, uma forma de compreendidas como testemunhos de estados de espírito trans-
preservar e transmitir energia desconhecida para o mundo físico formados em imagens.14
deixando engramas. A energia potencial conservada neste "en- De acordo com Ginzburg, vVarburg demorou a resolver as
grama" pode, em condições adequadas, ser reativada e clesc;n- implicações e os fundamentos ela sua noção Pathosfonneln, em
regacla. A partir da leitura de Semon, \Varburg entende que o parte, devido aos obstáculos gerados pela sua leitura da obra de
exame ela permaEência elas Pathosformeln associadas às práticas Darwin: haveria no pensamento do historiador de Hamburgo
primordiais ele paganismo uma etapa decisiva para a compreen- uma tensão não resolvida entre a transmissão histórica e/ou
são ela arte renascentista, condição decisiva para que ela alcan- morfológica de movimentos corpora is ligados ao patético.
çasse um historicamente reconhecido grau de excelência. 12 Paradoxalmente, o mesmo Darwin que lhe ajudara a perceber
Nesse sentido, para vVarburg, cada época seleciona e elabo- que as expressões e os gestos humanos emotivos seriam resquí-
ra clctcrminaclas Pathosformeln ele acordo com suas necessidades cios de elementos instintivos associados à conservação da nossa
de expressão. Tais fó rmulas se mantêm vivas e em contato com a espécie, o atrapalhou na consolidação de l11}1 conceito empi-
"vontade seletiva" ele uma época, elas podem se modificar trazen- ricamente aplicável. Se a expressão das emoções é .o resultado
do novos significados. Neste sentido, ao perceber uma dimensão de um processo evolutivo (biológico) que une o homem e os
dionisíaca elo Renascimento, oposta à visão· habitualmente ele- animais, a busca por elementos históricos csp~cíficos de trans-
fendida, de um Renascim ento apolín eo no qual triunfariam a missão cultural não faria sentido. Foi somente na introdução
ordem, a clareza e a harmonia, tal como, inclusive, clefcnclcra ao Atlas de Mnemosyne, escrito na véspera de sua morte ( 1929),
Jacob Burckharclt, referência importantíssima para ele; Warburg que \Varburg evocou uma questão importante: os "engramas da

l i Ibidem, p. 198. 13 TAVARES, Marcela Bo telho. O(s) lempo(s) da imagem: urna investi-
12 TEI À'E IRA, Felipe C harbcl. Aby Warhmg e a pós vida das Pathos(ormeln gação sobre o esta(uto temporal da imagem <I partir da obra de Dídi-
antigas. História da Historiografia. O uro Pre to, número o;, setembro de Hubermam. Dissertação de Mestrado. UfO P, Ouro Preto, 20 12, p. 44.
201 0, p. 144. 14 Jdem, p. 7 5.
142 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 143

experiência emocional [que] sobrevivem como o patrimônio puramente decorativos, possuíam suas raízes na Antigu iclacle. 17 O
hereditário da memória". Vemos encarnado, por um lado, no movimento transforma-se, assim, em su jeito principal de análise,
diagrama que retrata a transmissão histórica reconstruída para cujo fundamento estaria também nas fontes Iiterá rias (poéticas
explicar, por exemplo, a iconografia elos afrescos de Schifanoia; e filosóficas).' 8 No vento renascentista que faz movimentar a vê-
por outro, as imagens justapostas, que evocam paralelos e opo- nus recém-nascida para a beira da praia, Warburg descobre que
sições a ntitéticas, que se aglomeram nas mesas de lvlnemosyne. esse elemento exterior às figuras era indicativo de influência da
Durante décadas, a mente de \Varburg se deslocou entre essas t\ntiguiclacle. Dessa problemática, surgiria um dos conceitos cen-
duas alte rnativas. A noção ele Pathosformel, segundo G inzburg, trais em nossa análise, Pathosformel, empregado por Warburg em
15
eleve ser percebida dentro dessa tensão pendular. seus estudos posteriores.
A partir dessas questões, podemos fazer e ntão algumas afir- A partir de então essa tese aparece como substra to ele pra-
mações sobre a tese de fundo que apareceria em quase todos ticamente todas as pesquisas produzidas por Warburg ao longo
os trabalhos do historiador ela arte ele Hamburgo. Para ele, os ele sua viela, como em seu texto sobre a arte elo retrato e a bur-
gestos "clássicos" presentes nas artes da antiguidade remonta- guesia flore ntina;19 em seu estudo sobre o antigo romano na ofi-
riam, em suas formul ações primordiais, a um período no qual cina de Ghirlanclaio.20 Está presente em "A aparição elo estilo
a representação dos mitos era uma realidade ritual que comovia ideal all'antiqua na pintura elo primeiro renascimento". Nomes-
profundamente aqueles povos, repercutindo em seus gestos e fei- mo sentido observa-se ainda nas análises ele Warburg referente
ções como reações biológicas. Desta feita, esses gestos estariam à astrologia, em seus estudos sobre os afrescos elo Palácio disse
presentes e naturalizados nas esc ulturas e pinturas antigas como Schifanoia de Ferrara,21 sobre o impacto da profecia da atividade
uma espécie de sobrevivência primitiva. 16 O fato de um pintor,
um escritor, etc. usar uma imagem que tem sua fon te em uma
17 WARBURC, Aby. "De Arsenal a Laboratório". In: \Vi\RBURG, t\by. A
"Fórmula de Pathos" é, para \Varburg, evidência ela necessidade presença do Antigo, op. cil., p. 40.
de a cultura conectar-se a movimentos e qualidades primordiais 18 CA:VIPOS, Daniela Queiroz & FLORES, lVIari.a Bernardete Ramos.
A nudez dcsconcertante ele vênus: Botticelli, t\by \Varb urg e Gcorges
que animavam a imagem ancestral.
Didi-Huberman. História e Arte: temporalidades do sensível. Ana Lucia
Aplicando essa perspectiva no exame dos detalhes e dos Vilela, lVlaria Elizia Borges (organizadoras). Vitória: Editora Milfontes,
in dícios ela arte renascentista, \Varburg cómprecndeu que o 20 19, p. 106. •
movimento dos acessórios elas imagens (cabelos, vestimentas, 19 \VARBURG, Aby. "EI arte dcl retrato y la, burgu~sia florentina". In:
Aby \Varburg. El renascímiento dei paganismo: aportaciones a la hislo·
movimento, etc.) que até então e ram inte rpretados como dados ria cultural dei Renascimento europeo. :Vbdrld: Alianza Editorial, 2005,
p. 147-1 76.
20 \VARBURC, Aby. "O antigo romano na oficina de Ghirlandaio". Tn:
WARBURC, Aby. A (Jresença do 1\ntigo, op. cit., p. 197-216.
15 GINZBURC, Carlo. Le forbící di Warburg. Schifanoia: notizie dell'is- 21 WARBURC, Aby. "Arte italiana e astrologia internacional no Palazzo
tituto di studi rinascimentali di Perrara. 2012, p. 42 e 43. Schifanoia em Ferrara". In: \VARBURG, Aby. Histórias de fantasmas
16 FERI\Al\OES, Cássio, op. cit., p. 22. fJCira gente grande, op. cit., p. 99- 128.
144 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 145

pagã nos textos e imagens nos tempos de Lutero, 22 e também em vVarburg então começa a encarar, como dissemos, a história
um estudo sobre a influência da Sphaera barbaríca nas tentativas da arte em termos de uma memória errática de imagens que re-
de ordenação cósmica elo Ocidente.B gressam constantemente como sintomas ele uma psicologia his-
Além disso, estava presente no centro do estudo sobre as tro- tórica da expressão humana e a "sobrevivência dos antigos" se
cas culturais entre o sul e o norte ela Europa no século "'A.'V quando consolida como objeto central elo seu programa historiográfico: 29
analisou o efeito da arte italiana em Oürer e nos gravadores ger- mais precisamente os modos com que certos motivos caracterís-
mânicos24 e nas pinturas e tapeçaria Aamenca, 2' bem como a arte ticos da arte e literatura pagãs foram retomados nos séculos )0..1
religiosa e cortesã em Landshut. 26 Nessas pesquisas \Varburg faz e XVI, não necessariamente como tópicas figurativas, mas como
notar, que ao contrário da luminosidade mecliterrânica dos italia- forças psíquicas ativadas pela memória culturaP0
nos, os germanos encontraram no reconhecimento ele sua angús- O conceito de Nachleben é central dentro do esquema de
tia o mais profundo pathos da almaY É assim que a ":VIelancolia" cognoscib ilidade da história proposto por Warburg. A origem do
ele Oürer pode ser vista não apenas como manifestação elas forças conceito é detalhadamente descrita por Oidi-Huberman, que
mais obscuras e imobilizantes, mas também como a emergência esclarece sua analogia direta com os trabalhos do etnólogo bri-
da reflexão e do pensamento; é assim que a "polaridade" se torna, tânico Edwarcl B. Tylor, fundador da Antropologia Sociocultural
uma categoria interpretativa de todos os fenômenos culturais. 26 na Inglaterra. Tylor fo rmulara a noção de survival para pensar os
detalhes triviais, tendo tentado, inclusive, formular uma teoria
22 WARBURC, Aby. ''A profecia da Antiguidade pagã em texto c imagem da linguagem emocional e imitativaY Enquanto os defensores
nos tempos de Lute ro". In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas da teoria da seleção natural pensavam na sobrevivência dos mais
para gente grande, ofJ. cit., p. 129-198.
23 WARBURC, Aby. "A influência da Splwera barbarica nas tentativas
adaptados, Tylor pensou a sobrevivência dos elementos culturais
de ordenação cósmica do ocidente". In: WARBU RG, Aby. Histórias de ma is inadaptados e inapropriaclos. 32
fanta smas para gente grande, op. cit., p. 189-348. Depois de 'T'ylor, foi Jacob Burckhardt que forneceu as prin-
24 WARBURG, Aby Warburg. "Dürer e a Antiguidade italiana". In:
cipais referências na formu lação do conccitg det sobrevivência
Histórias de fantasmas para gente grande, op. cit., p. 87-98.
25 \·\-~'\RBURG, Aby. "Arte flamenco y primer Rcnascimienlo florentino". warburguiano. Em seus estudos sobre a arte do Renascimento,
In: WARBURG, Aby. El renascimiento del paganismo, op. cit., p. 229- Burckharclt afirmou que a Renascença não criou nenhum estilo
244; WARBURG, i\by. "EI tra bajo campesino em los tapices Aamen- orgân ico próprio, sendo impura, nos seus estilqs artísticos como
cos". In: WARBURG,Aby. El re nascimicnto de] paganismo, op. cit., p.
257-264. na temporalidacle complexa ele suas idas e vindas entre o pre-
26 WARBURG, Aby. "Arte religioso y cortesano en Landshut". In:
\\~>\RBURG , Aby. El renascimienlo de[ paganismo, ofJ. cit., p. 147-176.
27 WARBURG, Aby. "A posição do artista nórdico e do artista meridional 29 Ibidem, p. 72.
a respeito do tema das imagens". In: \\-~\RBURC, Aby. A presença do 30 T EIXEIRA, Felipe Charhcl. Aby Warb urgea pós vida das Pathosformeln
Antigo, op. cit., p. 88-90. antigas, op. cit., p. 136.
28 GUERREIRO, António. Aby \Vnrburg c os arquivos ela memória. 31 DIDI-HUBERiVIAN, Ceorges, op. cit., p. 58.
Enciclopédia e Hipertexto. slcl 32 1~'\VARES, :~VIarce la Botelho, op. cit., p. 42.
146 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 147

sente vivo e a Antiguidade rememorada. vVarburg irá nomear o Assim, as Nach leben ele Warburg são um conceito estrutu-
modo temporal dessa impureza de sobrevivência. 33 ral e constitui um modelo temporal próprio às imagens, abrindo
E é também em Nietzsche que encontramos um dos funda- fe ndas nos modelos de tempowlidade, logo, nos modelos de his-
mentos de onde vVarburg parte para pensar a sobrevivência e a toricidade, pois ela revelaria paradoxos, ironias do acaso e mu-
polaridade fundamental enh'e o dionisíaco e o apolíneo ganha um danças não retilíneas 37 que surgem não somente na história elas
valor central. A icleia de polaridade para \Varburg se torna uma ca- obras ele arte, como também em todo o mundo da cultura, em
tegoria interpretativa vital, pois lhe permitiu compreender como todo o mundo das imagens. E é devido a isso que as imagens nos
algumas formas, ou fórmulas, vindas elo passado, principalmente permitem ler a história, já que nos apresentam o tempo, não o
ela Antiguidade clássica, podiam ressurgir em determinadas épo- tempo linear, cronológico, mas um tempo repleto de anacronis-
cas, sendo acolhidas e rcatual izaclas, enquanto outras não. Essas mos, saltos, irrupções, revoluções.'8
formas que sobrevivem possuem força para ressurgir em urna A partir do que foi dito, é possível perceber que a sobrevivên-
nova época, tendo muitas vezes seu sentido invertido. Desta feita, cia não oferece nenhuma possibilidade de simplificar a tempo-
1\ietzsche forneceu para \Varburg elementos para pensar uma es- ral idacle histórica, vista como uma ideia transversal a qualquer
tética das forças e considerar o pathos na sua potência formadora. 34 recorte cronológico. Descreve um outro tempo e impõem o pa-
O conceito de Nachleben implicaria, nesse sentido, uma radoxo ele que as coisas mais antigas às vezes vêm depois das coi-
complexificação do tempo histórico, já que pressupõe a convivên- sas menos antigas, assim por exemplo astrologia do tipo indiana,
cia de tempos heterogêneos em um mesmo presente. Aquilo que a mais remota que existe, encontrou um valor de uso na Itália
sobrevive, a forma sobrevivente, segundo \Varburg, não sobre vi- todo século XV depois de ter sido suplantada e tornado obsoleta
ve triunfalmente à morte elos seus concorrentes. Ao contrário, ela pelas ash'ologias grega e árabe medieval.
sobrevive, sintomaticamen te e fantasmaticamente, à sua própria A sobrevivência, portanto, torna complexa a temporalidade
morte, talvez, em um eterno retorno. " Trata-se da justaposição histórica, liberando uma margem ele indeterminação na correla-
de tempos distintos na imagem, ou seja, as Nachleben remetem a ção histórica dos fenômenos. Isso quer dizer gue as ideias de h'a-
uma sobreposição temporal da História, em que o passado estaria elição e transmissão possuem uma complexidade a,temorizante:
em parte detido no presente, e ao mesmo tempo o presente seria são históricas, mas são também anacrônicas, feitas de processos
constituído por passados múltiplos. Dessa fôrma, afirmar que o conscientes e processos inconscientes, de esqu ~cim en to se redes-
presente carrega a marca ele inúmeros passados é afirmar antes cobertas, de inibições e destruições e assimilações inversões de
ele tudo a indestrutibilielade ela marca elo - ou elos- tempo sobre sentido de subl ima ações e a lterações.'~ Nesse sentido, o projeto
as formas mesmas de nossa vida atuaJ.3 6 warburguiano pode ser definido, segundo ele, como uma ciência

33 0101-HUBERMAN, Ceorges, op. cit., p. 58.


34 Ibidem, p. 113. 37 TAVARES, :Ylarcela Botelho, op. cit., p. 50.
35 TAVARES, :Vlarcela Botelho, op. cit., p. 42. 38 Ibidem, p. 54.
36 0101-HUBER:VlAN, Ceorges, op. cit., p. 58. 39 0101-HUBER!'vlAN, Ceorges, op. cit., p. 69.
148 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 149

da cultura, como uma efetiva "ciência arqueológica do pathos da seja o primeiro dispositivo criado pelo homem para armazenar e
Antiguidade e seu destino na Renascença ital iana e flamenga ".-!() organizar a memória. É também onde podemos encontrar a icleia
E não seria apenas a sobrevivência de certas formas represen- de uma paisagem mental que já não está mais separada elo lugar,
tacionais, como a Ninfa, o cabelo, o drapeado das roupas, enten- uma vez que as artes da memória expõem a ligação entre pensa-
didas como tópicas figurativas mobilizados conscientemente pelos mento, lugares (loci) e imagens (imagine).44
pintores, mas o revigoramento mesmo de certas forças psíquicas Nessa perspectiva, \:Varburg elabora uma teoria dos símbo-
arraigadas na memória coletiva, cristalizadas como espectros em los, afirmando que eles são portadores de uma carga energética,
imagens dotadas de intensa força. 4 1 Estas imagens "sobrevivem", transmitidos aos artistas num estado de tensão elevada ao máxi-
já que nunca morrem completamente e estão sempre ressurgindo, mo. A polarização dar-se-ia - na sua carga negativa ou positiva
quando menos se espera. A sobrevivência, ah·avessa toda a anima- - quando houvesse um reencontro de uma nova época e elas suas
ção ela imagem, num confl ito entre o éthos apolíneo e o pathos necessidades vitais, podendo causar uma reinversão completa
dionisíaco, como abordado por Nietzsche em O nascimento da da significação. Tal concepção constitui o pressuposto ele onde
tragédia. Tratar-se-ia de um conflito, de uma instabil idade já iden- Warburg parte para expl icar a "sobrevivência" elas imagens e dos
tificada na cultura clássica. "O Quattrocento, conclu i Warburg, símbolos, no sentido em que essa mesma polarização possui o
soube apreciar esta dupla riqueza da Antiguidade pagã".42 poder ela reativação.4>
De acordo com José Geraldo ele Oliveira,4> teríamos assim na Os sina is imagéticos migrariam através das suas transforma-
obra de Warburg uma extensa análise ela relação ela memória com ções, conquistando, em alguns casos, novos significados, o que
a imagem. Antes, enlTetanto, é importante uma pequena digressão permitiria novas leituras. A imagem abre-se então a uma leitura
acerca dessa relação. A Mnemosyne rege, desde o início dos tem- dos seus extremos opostos - a tensão entre dionisíaco e apolíneo
pos, as relações entre memória e criação, conhecimento e poesia, nas obras de Dürer, por exemplo - procurando apreender neles
ciência e artes. Sob a sua égide, há 2.700 anos, iniciam-se as artes a sobrevivência das formas (Nachleben) e o deslocamento elos
da memória na Grécia, abrindo caminho para uma arte global, sinais iconográficos.46 As imagens viajariam ~ partir ele um mo-
combinando, pela primeira vez, o lugar e a memória, o espaço e o delo temporal acronológico, não-sucessivo; uma te.mporalidade
tempo, a representação e o movimento e a imagem e o pensamen- ele "dupla-face", anacrônica e "s intomática".
to. A associação entre o pensamento, o lugar· e a imagem, talvez, Essa concepção historiográfica apresenta ym modelo com-
plexo ele temporalidade da história que não é Qompatível com o
40 Idem. conceito de devi r, já que as cadeias da tradiÇão não se dão através
41 TEIXEIRA., Felipe Charbel. Aby Warburge a pós vida das Pathos(ormeln uma transmissão e uma recepção passiva, precisamente porque
antigas, op. cit., p. 139.
42 TAVARES, lVIarcela 13otelho, op. cit., p. 109.
43 OLIVEIRA, José Geraldo de. "Arqueologia de interface: Warburg, me· 44 Idem, p. 144.
mória c imagem". Revista Communicare. São Paulo.Volume 16- N° 45 CA!'\TINHO, Maria João, op. cit., p. 27.
2-2° Semestre de 2016, p. 143 e seguintes. 46 Ibidem , p. 36.
I SO DeiV)' Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 151

cada época particular transforma o material mnésico de acordo


com as suas cxigênciasY É por isso que o passado nunca é um E assim, ao longo deste e do próximo capítulo veremos
tempo concluído, pois está constantemente a emergir no presen- como as influências de Warburg na obra de Ginzburg vão além
te sem que este o possa dominar. Para \1\'arburg, a memória anu- das referências mais fáceis e usuais apontadas por alguns comen-
laria o abismo entre o passado e o presente. Desenvolvendo uma tadores da obra do historiador italiano.
teoria do símbolo, vVarburg revela que as sobrevivências seriam Quando lemos, em vários textos,;o o papel que a obra e os
imagens simbólicas, materializando e condensando esta tensão métodos desenvolvidos por Aby vVarburg desempenharam na
entre o passado e o presente, quebra o continuum da h istória:'~ rormação e no trabalho historiográfico ele Ginzburg, aquele apa-
A investigação histórica traria à luz conflitos tipológicos c trans- rece não mais como uma nota ele rodapé no pensamento do ita-
·h istóricos, focando naquilo que permanece e como permanece. li<mo. Muito se diz da influência que \.Varburg teve em G inzburg
apenas através da referência elo artigo, escrito em 1966, "De
2. Warburg a Gombrich", publicado posteriormente na Coletânea
O leitor de um livro sobre a metodologia de Ginzburg "M itos, Emblemas e Sinais". Neste artigo, G inzburg propôs-se a
pode esté:l r se perguntando o motivo de tão longa digressão ao desenvolver as contribuições metodológicas que Aby Warburg e
pensament·o e obm de Warburg, visto que o historiador italiano os seus continuadores forn eceram à disciplina da história da arte.
não poderia ser classificado como um historiador ela arte tout O objetivo deste ensaio historiográfico foi, segundo o his-
cottrl. Entretan to, como veremos, os conceitos warburguianos toriador italiano, rever a viabilidade da util ização de documen-
explorados alé agora são fundamentais para a compreensão do
fazer histórié:l de Cinzburg: desde a maneira como ele entende
50 Ver, por exemplo: DIERS, .\llichacl; C IRST, Thomas and VON
a transmissão de símbolos e memórias ao longo do tempo, alé a MOLTKE, Dorothea von. ··warburg and the \Varburgian Tradition of
forma como analisa crenças, mitos e ritos como expressões de Cultural History". New Cennan Critique, 1 o. 65, Culhtral History/
Culturdl Studie.s (Spring/Summer, 1995), p. 59-73; I~I PETT,
Nachleben der Antíke,49 e como adapta e modifica o conceito de
Leonardo & !VIORETTI, Franco. Totentanl. "Operalionalizing Aby
Pathos{ormel na construção elo conceito de Logosformel. \".'arburg's Pathosformeln". Pamphlels o{ the $tc111{0rd Lilerary Lab, 16,
November 2017. WOOD, Christopher S. "Aby \Varburg. Homo vic·
47 GUERREIRO, António, op. cit. tor'·. foumal o( Art Hisloriography Number 11 , Dccember 2014. No
48 Ibidem. Brasil, Espada Lima percebe a influência c)e War~urg na construção
49 Em uma conversa recente, G inzburg argumentou conosco que desde do pensamento de Carlo Ginzburg, mas foca cspccilicamcntc as obras
o início do seu contato com a obra de \Varbu rg, percebeu o concei- do historiador italiano produzidas nos anos 1960, não discutindo a in-
to de Nachlehen como algo muito vago e que não deu a ele muitn fluência do pensamento de Warburg na maneiru em que Ginzburg
atenção. Acreditamos, contudo, como demonstraremos nas próxim11s analisn a anomalia, o desvio e o excepciona l, desconsiderando o his-
p;íginas que, mesmo de forma indireta, Ginzburg se apro pria das "so- toriador ele Hamburgo como um dos principrtis fundamentos do mé-
brevivências" ao formu lar e aplicar seu conceito de Logosformcl. In: todo indiciário ginzburguiano. Ll:v1A, Hcnriqne Espacln. A micro·his·
G ll'\ZI3URG, Ca rlo. (sem assunto). Mensagem recebida por e-uw il - l6ria italiana: escalas, indfcios e singularidades. ]" cd. Rio ele Janeiro:
deivycarneiro@gmail.com- em 11/12/2021. C ivilização Brasileira, 2006, p. 295-300 e 367-358.
152 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 153

tos figurativos - ou seja, pinturas, desenhos ou gravuras- como historiador alemão nos seus escritos posteriores. 52 Encon tramo-
fontes documentais para a investigação histórica. Nesse ensaio, las por exemplo no texto publicado em 2012, em que o histo-
o "problema elo método que ocupou a atenção de Ginzburg foi riador italiano narra a experiência com o legado ele \Varburg ao
"o uso de evidências visuais (testemunho figurado) como fontes descrever o contato com a biblioteca \Varburg pela primeira vez
históricas". As fontes habituais dos historiadores de arte nos di- no verão de 1960, mediado por Delio Cantimori, seu orientador,
zem algo sobre a cultura em que foram produzidos? O que as que na época passava uma temporada de pesquisa por lá." Essa
obras de arte nos dizem sobre a sociedade e, ao contrário, como relação se estreitou no verão de 1964, quando foi convidado a
pode uma compreensão das tendências culturais e sociais gerais passar um mês no Instituto Warburg: foi hí que ele teve a icleia de
iluminar nossa compreensão das obras de arte? Nesta análise, o colocar o caso dos Benanclanti, numa perspectiva comparativa
que se deve fazer elas estruturas formais, especialmente esb·uturas de larga escala, aprofundando assim suas análises que aparece-
estéticas (ou estilísticas), que têm influência na produção desses riam posteriormente em Os Andarílhos do Bem.H
objetos? Além disso, quais serão os critérios para decidir se obras Em suma: a relação de Ginzburg com o Warburg lnstítute e
de arte elevem ser consideradas artefatos culturais?51 uma certa "filiação" ao pensamen to e a obra ele Warburg remon-
Nesse sentido, esse ensa io é, em parte, a expressão, por parte ta desde o início elos anos 1960. E a nossa hipótese central é que
de Ginzburg, ela sua admiração pela intenção de Warburg em essa relação se mantém direta e indiretamente por toda a carreira
reconstruir a ligação entre imagens [figurazioni] e as necessida- de Ginzburg. Em algumas obras essa aproximação é mais direta,
des práticas, gostos, mentalidade de uma determinada sociedade como veremos a segu ir e, em outras, aparece talvez, ele forma
- [neste caso] a de Florença no Quattrocento. Por fim, é im- mais intuitiva, até mesmo inconsciente, mas ainda sim de forma
portante ressaltar que nesse ensaio não aparece nenhuma filia- densa e fundamental.
ção de Ginzburg a um tipo ele método warburguiano, mas sim Uma maneira ele observarmos o tom dessa interação talvez
o diálogo com os discípulos de Warburg (Bring, Saxl, Panofsky se ja através do exame de alguns textos nos quais essa relação seja
e Gombrich) sobre a possib ilidade de se pensar um conceito de mais óbvia; livros que tratam diretamente de temas relacionados
cultura mais amplo, que será encontrado apenas em um diálogo "
à história da arte, como o livro dedicado ao estudo .de obras ele
posterior com M. Bakhtin na formulação da "circularidade cul- arte de Piero della Francesca e a coletânea de ensaios Medo,
tural" que permeia suas reflexões a respeito (]e Menocchio. Reverêncía e Terror.
Este ensa io é então uma das poucas obras em que Ginzburg
lida extensivamente com a obra ele Aby \Varburg e o seu legado
intelectual e institucional, com relativamente poucas alusões ao 52 GARCÉS, Fedcrico Ardila. "En tre el nachleben y el paradigma indi-
ciaria: Carlo G inzburg y el método Warburguiano en la historia dcl
arte". Historia Y Sociedad. N. 30, Medelín, Colomhia, 2016, p. 21.
51 MOLHO, Tony. Garfo Gin::burg: ReAections on the intelleclual cos- 53 GINZBURG, Carlo. Une !Vlachine à Pcnser. Common Knowledge,
mos of a 20th-century historian. History o{ Eu rofJean Jdeas, Florence, Volume 18, Issue 1, Winter 2012, p. 79.
30, 2004, p. 126. 54 Idem, p. 84.
154 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 155

Investigando Piero publicado originalmente em 1981, como lo para uma série ele associações livres realizadas pelo historiador
título inaugural da famosa coleção ":Ylicrostorie" e cuja pesqui- da arte, em geral baseadas numa pretensa decifração simbólic<l. ;·
sa e escrita datam da segunda metade dos anos 1970, ou seja, As pinturas deste artista, como o próprio C inzburg demons-
planejado no mesmo contexto de O queijo e os Vermes ( 1976), tra neste texto, têm sido alvo de múltiplas interpretações devido,
Sinais: raízes do paradigma indiciário (1977), O nome e o como em parte, à pouca informação que está disponível sobre eles e ao
( 1979), e mais de I Oanos após de A. Warburg a E. I I. Com brich quão enigmáticos são em termos do seu significado temático e da
( 1966)'; surge como uma obra de clara inspiração em Warburg sua proveniência. O método que Ginzburg util iza na sua inves-
(e também em Combrich). tigação inclui a análise con junta de aspectos eslilfsticos e dados
Assim como Warburg, que em toda sua tra jetória buscou específicos sobre os diretores das obras, que são ai imentados para
combater uma história da arte apenas fo rmalista, C inzburg, ao chegar a conclusões sobre as questões acima referidas.
examinar três quadros de Piero, rechaça um modelo de história Para evitar esses problemas, C inzburg buscou amparo,
da arte pautada na identificação de paralelismos entre processos como fez em outros trabalhos ao longo elos anos 1970, nas refle-
artísl·icos e processos socioeconôm icos. Esse livro de G in zburg xões de Gombrich e Warburg. Do primeiro, o historiador italia-
testemun ha claramente o rico uso ele instrumentos analíticos de no retira a perspectiva de partir da amll ise não tanto dos símbo-
reconhecimento e interpretação de símbolos identifi cados com los, e sim elas institu ições ou dos gêneros, para evitar a produção
o método wa rburguiano, evitando os excessos interpretativos que de uma análise iconológica selvagem. Para complementar, in-
as vezes incorreram continuadores da obra de \Varburg, tal qual vestiga também os comitentes. Tal forma de análise colocaria
Envin Panofsky. ;G em questão a relação entre a obra de arte c o contexto social em
::\essa obra, C inzburg analisa três das principais obras de que ela nasce.
Piero della Francesca- "O Batismo de Cristo", "A Flagelação" Do segundo, se apropria metodologicamente da decifração
e "O Ciclo de Arezzo". Rompendo com análises tradicionais da dos símbolos, mantendo a atenção ao contexto social e cultural
História da Arte e se recusando a fazer uma análise dos aspectos da produção da obra de arte. Isso se lradu7. numa reconstrução
propriamente formais, o historiador italiano critica a primazia, analítica da intrincada rede de relações microscóp.icas que todo
e a quase exclusividade da datação das obras baseadas exclusiva- produto artístico, até mesmo o mais rudimentar, pressupõe.>S
mente em fatos estilísticos. Segundo ele,-datar uma obra sobre Temos então como resultado uma anál ise rpicro-histórica, po-
essas bases apresenta fragilidades evidentes: como acon tece em deríamos dizer, de matriz warburguiana, aplicando seu próprio
mui tas pesquisas iconológicas, a obra se torna apenas um prclex- paradigma incliciário para remontar a tra jetória ele Piero e da
construção das possibiliclacles dos con textos em que as ob ras em
questão fo ram produzidas, a data de sua conclusão, a inserção ou
55 CIN7.BURG, Carla. Investigando Piero: o Batismo, o ciclo de 1\rezzo, a
Flage laç~o de Urbino. l' ed. São Paulo: Cosac Naify, 20 10, p. 312.
56 BU RUCUA, José Emilio. Hisloria, arte, cultura: De Aby Warburg a Carlo 57 CINZBURG, Carla. Investigaudo Piero, OJJ. cit., p. 17.
Gin:::burg. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2003, p. 136. 58 Ibidem, p. 18-20.
156
Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Bcrbcrt Dias A forma c o tempo 157

não de personagens contemporâneas nos quadros, as inspirações longe de neutro, aberto a interpretações diferentes e mesmo opos-
(relíquias, colunas, etc. ) usadas por Piero em suas composições, tas. Analisando a História Natural, ele Plínio, o velho, observa al-
as implicações políticas e religiosas dos quadros e a rede de rela- gumas passagens permeadas pela importância do gesto: O dedo
ções do pintor. com o mio que parece estar fora do quadro; o olhar que tudo vê e
Os quatro ensa ios do livro 1\!fedo, Reverência e Terrors9 tem o desenho elo boi, não de perfil, mas ele frente. Esses elementos ela
corno elo a análise da iconografia política, um projeto explici- antiguidade são reelaborados ml iconografia política da primeira
tamente warburguiano: o próprio autor afirma que o elemento guerra mundial e Ginzburg esboça a trajetória histórica de trans-
central que os unifica é o instrumento analítico utilizado em sua missão dessas "fórmulas do patético". Ele demonstra a difusão des-
feitura - a noção de Pathosformel. Nesses textos busca, de várias ses elementos iconográficos pela Europa, perpassando por Plínio,
maneiras, apreender e explicitar como gestos de emoção extraídos Aristóteles, Nicolau de Cusa, sendo cristianizado por Caravaggio
da antiguidade foram retomados por vários artistas e elementos c outros até chegar ao cartaz de Lord Kitchener e o uso do dedo
iconográficos, em alguns casos, de forma invertida, ou como sin- que aponta como elemento comercial, desde a venda ele cigarros à
tomas freudianos. Ele afirmtJ que a transmissão dtJs Pathos(onneln promoção de alistamento mi litar, que incutiria no observador um
depende sobretudo de contingências históricas. Já as reações hu- misto de terror, angústia, distanciamento hierárquico e admiração.
manas a essas fórmulas, dependeriam ele circunstâncias comple- Enfim, Ginzburg consegue demonstrar historicamente a l;a jctó-
tamente diferentes, em que os tempos mais ou menos curtos ela ria ele como artifícios visuais inventados por pintores helenísticos-
história se entrelaçam com tempos bastante longos ela evolução. fórmulas do patético- foram adaptados com êxito à vida elo século
Gostaríamos de dedicar algumas linhas a dois ensaios.60 XX c suas exigências.61
No ensaio "Seu pais precisa de você": um estudo de caso em No primeiro ensaio, que leva o mesmo nome do livro e que
iconografia polftica, percebemos uma exemplar aplicação da me- iconologicamente explora o frontispício ela primeira edição do
todologia warburguiana no intu ito de apreender a poderosa efi- l.eviatã.62 Ginzburg considera as raízes do termo awe (em que
cácia do gesto de Lorcl Ki!:chener. Fazendo uso do conceito de horror e veneração conAucm), usado por Hqbbes para traduzir
Pathosformel, Ginzburg examina como um gesto pode ser algo, o verbo grego apeírgeín, "manter sob controle", na sua versão de
A gt~erra do Peloponeso. A análise de Tucídicles, autor desse livro,
sobre o vazio de poder e dissolução da lei caus<ida pela peste que
59 Cl.'-JZBURG, Carlo. Medo, rel'erência e terror: quatro ensaios de icono-
grafia política. J• ed. São Paulo: Companhia das Letr.Js, 20 I 4. assolou Atenas em 429 a. C teria influenciado a ideia ele Hobbes
60 Terror e veneração estão no centro da análise do ensaio dedicado ao que o medo e a origem do estado cstariâm relacionados. Há,
Marat de Da\'id, onde Ginzburg demonstra a trajetória histórica de con tudo, uma mudança central nessa apropriação: a sobrevivên-
uma iconografia p<~gii c depois, cristã, a serviço da pintnra revolucio-
nária, revelando as rafzes religiosas de pinturas seculares. Noutro en-
s~ io revela a justaposição do antigo c do contemporâneo buscado por 61 C ll\ZBURC, Carlo. Medo, reverência e terror, op. cit, p, 95.
P1cnsso, no qual o nso de espadas e lâmpadas ajudam a lançar luzes 62 C I ZBURG, Carlo. Medo, Reverência e terror: reler Hobbcs hoje. In:
sobre Cuemica.
Medo, reverência e terror, op. cit.
158 Dcivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Bcrbert Dias A forma c o tempo !59

cía aqui ocorre com modificações. O que em Tucídides indica dos pelo historiador italiano. Em outro ensa io, aquele que tra-
a manutenção do controle por parte do Estado, em Hobbes se Ia da Utopia, de Thoméls .\llore, o detalhe da palavra "{estivus"
transforma em sujeição ao Estado, fazendo com que o medo, no presente no título completo da obra, serve para que Ginzburg
pensamento elo filósofo inglês, se torne o mecanismo de sujei- demonstre a apropriação das ideias do escritor satírico da antigui-
ção elo povo: para Hobbes o poder do Estado não estaria apenas dade romana, Luciano de Samósata, feita na obra de More e por
na força, como em Tucídides, mas na subjugação e resignação. Erasmo de Roterdã. 6; Em outro ensaio do mesmo livro a "intui-
!\esse sentido, Cinzburg, analisando as apropriações do conceito ção de uma afinidade morfológica"66 que une Tristam Shandy, o
de medo em Hobbes, propõe uma nova leitura do pensamento famoso livro de Laurence Stcrne e o dicionário hist6rico e critico
elo autor de O Levíalci: reinterpretando Tucíclides, o filósofo in- de Pierre Bayle, serve para pôr fim demonstrar-se que o segundo
glês percebe que o poder político secular se funda na força, mas influenciou tanto estrutura forma l da obra, assim como a perso-
não apenas nela. Ele se fundamenta no medo. O estado in cute nalidade do narrador do primeiro.67 Aqui a noção de Logos{ormel
terror, sentimento no qual se misturam o conceito de medo e se expande ainda mais, já que nflo umél ideia propriamente dita,
sujeição.6l O conceito de medo em Hobbes seria, na verdélde, mas a relação entre texto e notas do dicionário de Bayle, que
uma {órmu.la de ideía ou de pensamento, éldvinda de Tucídides, G inzburg chama de "centrípeta" (élo contrário das notas de uma
uma Logos{ormel. bíblia comentada por exemplo em que a relação seria centrífuga)
Concebido pelo próprio Ginzburg, o termo Logos{ormel, é similar aos diagramas de Sterne em seu livro, demonstrando a
aparece a primeira vez em seu ensaio Estilo, M ao evidcnciélr o imensa capacidade de fazer associações pouco convencionais,
uso que Agostinho e Baldassare Castiglione fazem do argumento porém esclarecedoras que tal ferram enta apresenta.
retórico de "adequação" de Cícero, demonstrando que esse fun- Já Rela.ções de força, 68 coletânea de textos teóricos publica-
ciona como um modelo cognitivo. Se a noção de Pathos{ormel do no Brasil dois anos depois de seu lançamento, culmina com
ilumina as raízes antigas de imagens modernas e a maneira como o ensaio "Além do exotismo: Picasso c Warburg". i\esse artigo
tais raízes foram reelaboradas, funcionando como sua paráfrase, o autor demonstra, ao analisar a ausência cl~ análise do cubis-
a Logos{ormel pode nos ajudar a perceber a raízes de idcias e até mo no grande livro de Panofsky, O signi{ic(Jdo nas ~ntes visuais,
mesmo de uma idcia cujo objeto seja uma emoção como seria o que tal "esquecimento" fez o historiador da arte perder de vista
caso do já citado frontispício elo Leviatã. um feito revolucionário na estética do início d? século XX; uma
Esse instrumento analítico aparece desde então como ele- ruptura irreversível com os cânones clá95icos do Ocidente reali-
mento metodológico fundamenta l em diversos ensaios produzi- zada por Picasso ao pintar as Senhoritas de Avignon. Ginzburg

63 lhidem, p. 29. 65 Ibidem, p. 71.


64 C INZBURC, Corlo. "Estilo: inclusão e exclusão". In: Olhos de madei- 66 C ll'\ZBURC, Carlo. Nenhuma ilha é uma ilha, op. cit., p. 11.
ra: 110ve reflexões sobre a distancia. ]" ed. São Pau lo: Companhia das 67 Idem, p. 64.
Letras, 2001, p. 143. 68 G INZBURC, Carlo. Relações de força, op. cit.
160 Deívy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 161

coloca-se então a analisar a obra e a importância do cubismo, fina l do século XJX, e onde as alusões a Warburg, com exceção
que não cabe aqui. Entretanto, mesmo ao ressaltar o aspecto re- da epígrafe, estão quase ausentes.
volucionário em Picasso, como a ruptura com a questão clássica t\ntes de continuarmos, é importante lembrar que \Varburg
das proporções, o texto foca também na questão da permanência não foi a única influência notória na elaboração desse paradig-
(Nachleben der Antíke) e ela persistência ele elementos do mundo ma . Ginzburg afirma se não tivesse lido a obra ele J\llarc Bloch
clássico e renascentista. (incluindo as publ icações póstumas), ele não teria sido capaz
ele escrever e desenvolver um modelo de pesquisa pautado na
3. análise de indícios: foi a distinção, formulada por Bloch, entre
Como temos visto, várias lições de \Varburg foram apreendi- testemunhos voluntários e involuntários que possib ilitou a refl e-
elas e incorporadas por Ginzburg à essência do seu métocJo69 e o xão elo historiador italiano a respeito ela importância elos indícios
apreço pelos detalhes foram assimiladas como diretri zes nortea- para a pesquisa histórica.71
doras de sua prática enquanto historiador. Não é, portanto, mera Fundamentado em elementos da sintomatologia, de mé-
coincidência a similaridade metodológica entre Aby Warburg e todos adivinhatórios, da medicina, da arte, do romance policial
a micro-história aos moldes ele Ginzburg. ou da literatura, Ginzburg propôs um tipo ele narrativa histórica
Sinais: raízes do paradigma indiciário/0 é sem sombra de baseada numa determinada esb·atégia epistemológica. O mé-
dúvidas um dos principa is ensaios do h isto riador italiano, e aque- todo morcll iano, fundamentado nos detalhes mais negligen-
le que traz em sua essência uma grande influência warburguia- ciáveis das pinturas para atribu ir-lhes sua verdadeira autoria, o
na. Além disso, lê-lo apenas e exclusivamente como um mani- qual Ginzburg associa ao método dedutivo de Sherlock Holmes
festo da então nascente micro-história carregaria uma sorte de e à sintomatologia de Freucl, são três temas que concatenados
anacronismo, já que tal corrente historiográfica ainda estava em evidenciam o paradigma epistemológico que delineou se no fi-
gestação inicial. É importante ressaltar que esse ensaio dos anos nal do século XIX. Aby Warburg, para além de sua contempo-
J970, que desde a epígrafe - Deus está nos detalhes - apresenta raneiclade com essa tríade e sua atenção par~ com os detalhes
algo central elo pensamento ele Warburg e que Cinzburg carre- acessórios nas esculturas e quadros analisados, como.reveladores
gará ao longo de sua carreira: a atenção ao indício, aos detalhes
e às pistas. Nesse texto, o historiador ital ia no .desenvolveu exten- 71 Para maiores detalhes desse assunto e da forma COf!10 Ginzburg desen-
volveu os conceitos de testemunhos voluntát:ios e inyoluntários, quaren-
sivamente as características elo modelo ou paradigma epistemo- ta anos depois do seu ensaio sobre os Sinais, ver: CÍNZBURG, Carlo.
lógico, que resgatou certas tradições das ciências humanas elo Rivelazioni involontarie: Leggere la storia coi1tropelo. In: GINZBURC,
Carlo. La Lettera Uccíde. Milano: ADELPHI, 2021 (Epub), p. 31-52. A
primeira versão desse artigo foi publicada como: G lr\ZBURG, Carlo.
69 VIEIRr\ 1\'ETO. Ser::enando 1\lves, op. cit., p. 301. "Unintentional Revelations: Reading History Against the G rain", in
70 C INZBURG, Carlo. Sinais: rafzes do paradigma indiciário. In: Mitos, Exploring the Boundaries of Microhisto ry. The Fu Ssu-nien l'v!emorial
Emblemas e Sinais: morfologia e história. 1" ed. São Paulo: Companhi<J Lectures, Instilute of History and Philology, Academia Sinica, Taipei,
das Letras, 1989. 20 17, p. 41 -81.
162 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma c o tempo I h.l

daquilo que existe de mais importante, certamente pode ser con- De acordo com Ginzburg, essa alusão ajudaria a entender
siderado como um dos que realmente produziram importantes como Warburg teria lido Morelli mediado pelas reflexões de
avanços ao aplicar e desenvolver o método morelliano. É im- Taube e também de Anton Springer. Os escritos de .Morelli sob
portante notar, contudo, que Cinzburg afirma, a partir de um o pseudônimo ele lwan Lermolieff provocaram, além de con-
experimento "logosfórmico", que a apropriação do pensamento trovérsias acaloradas, uma reação favorável ele alguns pesqui-
ele ..\IIorelli por Warburg não se deu, todavia, sem mediações.72 sadores, dentre eles, Springer. Ko seu ensaio Kunstkenner und
Segundo o autor de O queijo e os vennes, Certrud Bing, em Kunsthistoriker (1881), referindo-se aos métodos de Morelli, ele
suas anotações, trouxe elementos novos e significativos em re- propõe um paralelo entre o paleografista c o connoisseur. Em sua
lação à biogmfia daquele, escrita por Gombrich, o que permite perspectiva, para certificar a autenticidade de um documento, o
novas interpretações acerca da construção do pensamento do especialista em manuscritos medievais deveria se concentrar em
historiador da arte de Hamburgo. Segundo ela, Vlarburg havia detalhes marginais, em "floreios elos artistas"(Kunstlerschnõrkel).
dito em certo momento que o fundador da paleografia moder- O jovem Traube (nascido em 1861) provavelmente anali-
na, Ludwig Traubc, seria "O Grande mestre de nossa Ordem". sou cuidadosamente essas páginas, bem como os ensaios gue
O pesqu isador austrfaco seria assim um dos elos entre o au tor Springer escreveu posteriormente, cheio de ecos da obra de
do Atlas Mn.emosyne e :viorelli. Ao analisar uma cole tânea de Morelli. De acordo com Ginzburg, com essa informação, fi ca-
suas aulas de paleografia, publicadas após sua morte em 1909, ria perceptível o trajeto das teorias morcll ianas até Warburg: o
Cinlburg percebeu que Traube havia apresentado uma compa- paralelo entre paleografia e connoísseurship, proposto por Anton
ração entre manuscritos e pinturas, introduzida por uma home- Springer e retomado por Hubert Janitschek, poderia ter guiado
nagem às investigações de Giovanni Morelli.n Warburg (aluno deste último) não apenas para Springer, mas
A importância dessa referência a Morelli foi apontada por também para Traube. E a atenção desse aos erros dos copistas,
Augusto Campana, que Warburg havia conhecido em Rimini apontada por Ccrtrucl Bing, implicava uma reelaboração do mé-
em 1928, durante sua última viagem à Itália com Gcrtrud Bing. todo ele Morelli, nascido precisamente para. distinguir os origi-
Em sua aula inaugural, quando assumiu o ensino de paleografia nais das cópias. Atra,·és elo filtro ele Traube e Springer, as ideias
na Universidade de Urbino, Campana, em uma homenagem a de ..\llorelli atuaram no pensamento de Warburg.N
Traube, apontou a alusão "extremamente significativa" aos mé- Após essa breve digressão, retomemos nos~o raciocínio prin-
todos de Moreli i, insistindo na importância da relação entre pa- cipal: no prefácio de seu Mitos, emblemas e Sinais, Ginzburg
leografia c história ela arte. afi rma que seu ensaio sobre o paradigma indiciário nasceu, a
princípio, como uma justificativa indireta do seu modo de tra-
72 CINZI3URG, Carlo. Avan t-propos à Certrud Bing, Fragn1e111os s11r balho através de uma genealogia intelectHal f>rivadcJ.7; Ele afirma
1\by Warburg. Documents originaux et leur tmduction (mnçaise, éd.
Philippe Despoix et Martin Tremi, lnédi ts, Inshtut Na tional cl'fl istoire
ele l'i\rt, Pnris 2019, p. 13-17. 74 ibidem, p. 17.
73 Ibidem, p. H. 75 Ibidem, p. 8.
164 Dchry Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berberl Dias A forma e o tempo 165

isso pouco depois ele falar que sua tentativa ele acertar as contas em relação a aparições anteriores, porque somente assim somos
com a tradição intelectuaf,76 ligada ao Warburg Inslitute - fre- capazes de perceber o processo por meio do qual essa sobrevivên-
quentado por ele nos anos 1960- o havia obrigado desde então a cia induziu e estimulou, em uma determinada época e lugar com-
refletir "não só sobre o uso de testemunhos figurados como fonte pletamente diferentes da primeira representação patética da ninfa.
histórica, mas também sobre a permanência de formas e {6rmu- Em outro dos seus principais trabalhos,19 como já mencio-
las para além do contexto em que nasceram".n Temos aqui uma namos, ao analisar as Nachleben der Antike nas obras do pintor
afirmação tangencial da importância que a fórmula de pathos Sandro Botticelli, Warburg percebe a mediação de Poliziano em
desempenhou em seu pensamento desde então. Nesse sentido, relação aos hinos homéricos de Ovídio, carregados de detalhes
poderíamos considerar que não somente o paradigma indiciá rio, e acessórias, que influenciaram a construção iconográfica do ar-
mas a metodologia aplicada por Ginzburg em suas pesquisas, ao tista florentino. Em busca de detalhes e de figuras do patético, o
longo de sua carreira, para resolver seus problemas epistemoló- historiador hamburguês percebe a presença do antigo nos trajes
gicos, estariam ligados de forma bastante particular ao método em movimento, no uso de mênade como anjo, na caracterização
morclliano, mediado, em especial, pela leitura e infl uência de dos cabelos ao vento e o drapeado nos vestidos. I\cstc trabalho,
\Varburg e seus con tinuadores. Warburg mostra aquilo que aprendeu com Freud e muito prova-
É muito visível que o modo de Warburg proceder em suas velmente Morelli: o lugar do detalhe e elo sin toma na compreen-
pesquisas se assemelha a um caçador em busca de rastros ele um são de eventos mais amplos.
anima l. Essa metodologia se torna clara em seus estudos sobre a Para \Varburg, uma das principais maneiras de escapar da
"ninfa", 78 sinal ela Nachleben der Anlike, que aparece constante- ignorância acerca de um dado objeto é centrar a análise no de-
mente, inclusive em quadros ele temática cristã, representando talhe: é através deste que se adquire conhecimen to de uma coisa
Maria, mãe ele Jesus. Todavia, essa persistência ao longo das repre- que antes se ignorava. O mote de \Narburg- o bom Deus estâ no
sentações artísticas não quer dizer que seja uma regularidade de- detalhe/Der liebe Gott steckt im Detail- acaba por colocar o deta-
rivada de reproduções mecânicas de processos psíquicos causados lhe como essencial no conjunto e funcional n~ sua qualificação.
pela visão regular de uma jovem em movimento. J'\a verdade, a A economia do conjunto se articula em seus detalhe.s como sua
exploração da Pathosformel da ninfa consiste em descrever o des- parte integrante, e os detalhes participam do todo como elemen-
vio individual de uma nova aparição dessa moÇa em movimento tos necessários à sua identidadc.80 Fazendo assirp do detalhe um
vetor de mudança muito forte na História da Arte, inaugurando
76 C I ~ZBURG, Carlo . .Mitos, Emblemas e Sinais, op. cit. p. 8. não apenas uma escola de pensamento voltada para a iconogra-
77 Ibidem, p. 9 c I O.
78 Ver, dentre outros: 'vVARB URC, Aby. A Ninfa: uma troca de cartas
en tre André Jolles e Ahy Warburg. In: Aby Warburg. A fJresença do 79 WARBURG, Aby. "O nascimento da Vênus", op. cit.
Antigo, op. cil., p. 65-78; \VARB URC, Aby. O antigo romano nn oficina 80 CATTINARA, Enrico Castelli. La l1orza dei DettC~g li: eslelica, (iln-
de Chirl<mdaio. In: 'vVARBURC, Aby.i\ presença do Antigo, ofJ. cit., p. sofia, storía, epistemologia da Warburg a De/eu::e. Milauo: Mimesis
197-2 16. Edizioni, 2017, p. 19.
166 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 167

fia, mas uma abordagem que exprime especialmente uma liber- Assim, é importante lembrar que de acordo com Burucúa,
dade de movimento entre os trabalhos e dentro dos trabalhos de é muito provável que o método warburguiano seja uma espécie
arte, lhe permitindo se desvincular, como vimos, de categorias de antecedente e de fundamento desse paradigma indiciário, no
pregressas de anál isc da arte. Os detalhes abrem, para vVarburg, qual Ginzburg seguia Warburg tanto em uma história da cultura
um novo mundo e desenvolvem emaranhados que permitem atenta aos grandes quadros da antropologia, ao mesmo tempo
ao pensamento colocar à prova aquilo que a ciência tradicional em que os microfenômenos e os detalhes que compõem qual-
não consegue enfrentar: o detalhe como um valor estrutural de quer processo históricoY
libertação e de configuração nunca completamente exaurível, Entretanto, é preciso esclarecer que o paradigma indiciário
fundado na provisoriedade que a técnica de montagem dispõe proposto por Ginzburg possui avanços epistemológicos que vão
como uma promessa a um só tempo rigorosa e frágiJ.Sl muito além daquilo que ele encontrou no trabalho de 'vVarburg.
O lema de \iVarburg mostra então uma atenção minuciosa Como todo historiador sabe- ou deveria saber - o passado que
dada ao detalhe como instrumento para perturbar a crítica ela buscamos reconstruir nunca será conhecido ern sua totalidade.
arte e da História mu ito fec hada em suas categorias interpretati- Apesa r da incognoscibiliclacle ele todo ob jeto histórico, este deixa
vas c em suas fronte iras disciplinares, possu indo então um papel rastros selec ionados ele maneira casual e, às vcz.es, aleatória, que
mui to importante e que nos permite levar em consideração o nos chegam sempre deformados. O método indiciário ajuda a
outro. O cuidado com o acontecimento particular que revela a combinar os sinais de diferentes maneiras, fazendo que dos ras-
divindade de uma operação que é também um criar e um mani- tros disponíveis seja possível emergir melhores hipóteses. Assim,
pular sem limites, uma abertura que contrasta de uma maneira ao aplicarmos essa perspectiva analítica, conseguimos, antes de
com o conjunto. O bom Deus que está no detalhe não vale ape- tudo, explicar as evidências encontradas; expl icar as fon tes, e ten-
nas por sua perfeição valorativa e qualitativa, mas também pela tar ligá-las, como uma alternativa à impossibilidade de alcançar-
sua abertura insinuante que rende ao pormenor, ao particular, mos qualquer tipo de conhecimento direto do passado. 84
algo que em últi ma instância não é redutível ao todo do qual faz Além disso, o paradigma indiciário nos. mostra que, inde-
parte, c que de fato pode rejeitá-lo e rompê-lo. O cuidado com as pendentemente da teoria adotada pelo pesquisador,.as perguntas
minúcias, pode ser revelador tanto da qualidade de um objeto, e os problemas teóricos colocados corresponderão a respostas
quanto da sua falsificação: mas as duas operáções não estão no parciais (particulares). Essa contribuição de Gjm:burg para cria-
mesmo plano, nem tem o mesmo valor epistemológico, só por- ção a micro-história ajudou, já a partir dos anos 1980, na for-
que um identifica e o outro diversifica. E isso já permite pensar malização de importantes elementos metodológicos para extrair
no detalhe através de dois pontos ele vista diversos. vVarbu rg sou-
be inaugurar uma poética do detalhe.s2 83 BURUCÚA, José Emílio, o{J. cit. p. 10.
84 FAVERO, Giovanni. Método da históri;l e cí<:ncias sociais: para uma
micro-história aplicada. In: VEJ'\DRAME, Maír<l & KARZBURG,
81 Ibidem, p. 21-22. Alexandre. Micro·História: um método em lrmrs(ormaçao. l' cd. São
82 fbidem, p. 14. Paulo: Letra & Voz, 2020, p. 42.
168 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias

da análise dos eventos históricos novas hipóteses teóricas que,


evitando as simplificações, se tornaria uma ferramenta heurística
capaz de esclarecer generalizações e elucidar tendências gerais
através de elementos históricos particulares.8 ' Catábase: a viagem
A partir de então temos a consolidação de um paradigma ca- ao mundo dos mortos 1
paz de ana lisar elementos inesperados, mas fundamentais para a
explicação das dinâmicas peculiares da realidade estudada e que
capacita também ao pesquisador o questionamento da própria
fonte; a trabalhar ele maneira crítica acerca da sua construção e
criação, revelando fatos tidos como irrelevantes c assim, excluí-
dos da representação histórica, mas que surgem como "excepcio- 1.
nais norma is". Temos aqu i um paradigma capaz de ligar o parti-
Como já fo i dito, para Ginzburg, é da tensão n::ío resolvida
cular e o geral através de detalhes anteriormente não observados,
entre o histórico e o morfológico (ou biológico, também) que
mas que elementos margina is capazes de demonstrarem desvios 2
nasce a riqueza e os paradoxos presentes na obra de \Varbmg.
sign ificativos da norma.s6
O mesmo pode-se afirmar do seu llistória Noturna, cu ja terceira
Baseados nessa leitura, acreditamos que uma parte significa-
parte consiste justamente na tentativa de desfazer uma tensão
tiva dos artigos e livros de Ginzburg, resultantes de seu método
semelhante. Diante desse "parentesco" temático chega ser no
indiciário aplicado aos problemas dos significados das obras litc-
mínimo curioso que o nome de Vlarburg não apareça uma única
r;:írias c artísticas, estejam interligados, em termos de identifica-
vez no livro de um autor que tanto fora por ele influenciado.
ção, a alguma variação de aplicações da l\'aclzleben der Antike,
das Pathos{ormeln e das Logosformeln.
Para concluir esse capítulo é interessante ressaltar que não Catábase é uma categoria muito difícil de ser defi11ida, pois assume for-
analisamos aqui o conjunto ou a totalidade de textos nos quais se mas diferentes, fazendo com que se torne complicado dizer o que ela é e
percebe essa interação de Ginzburg com as obras de Warburg e aquilo que ela não é. De acordo com Barnabé, contudo, podemos dizer
que o conceito, embora possa ser associado, em um nível secundário, a
de ouLTOS historiadores ela arte. Como o lcit~r perceberá, o exa- um ritual ou manifestação religiosa é, acima de tudo: uma narrativa, um
me dessa interação, ou melhor, dessa interdependência entre as texto. Trata-se de uma descrição de viagem ;o lllUlldo subterrâneo dos
id eias, teorias c conceitos será um elos objetivos diretos e indi- mortos, liderada por uma personagem cxtraordin~ria c viva que tem um
proposito determinado e deseja retornar. Somente poderíamos descrever
retos de quase todo esse livro. E como veremos a seguir, essa
uma Catábase sh·icto sensu quando todos esses elementos comparecem
questão está presente ern um elos Iivros mais polêmicos e rna is na narrativa. Para maiores detalhes ver: 131\RNAB I~, Alberto. O que é
cri ticados já produzidos por Carlo G inzburg: História Noturna. Catábase? A descida ao mundo inferior na Grécia c no i\ntigo Oriente
Próximo. Revista de estudos de culturcz. São Cristóvilo (SE). v.7, n. 18,
85 Ibidem, p. 43. jan. jun./2021., p. 11-24
86 Ibidem, p. 44-45. 2 C INZBURC, Carlo. Medo, reverênciCI, terror, op. cíl., p. 11.
170 DeiV)' Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias 17 1
A forma e o tempo

Essa análise de um livro lançado em 1989 e já tão debatido sentimos a necessidade de voltar ao elo entre morfologia e histó-
se justifica. l\uma tentativa de leitura justaposta cl~1 obra desses ria, e suas implicações metodológicas. 4
dois autores buscaremos um propósito duplo: perceber mais acu- Essa amplitude metodológica da obra tem uma grande in-
rada mente a influência do pensamento e da escrita ele \Varburg Auência na perspectiva narrativa da mesma. Observamos que
em História Noturna,> e refletir sobre até que ponto as conclu- na primeira parte do livro, devido ao próprio tema ser melhor
sões desse livro podem lançar luz sobre os dilemas não resolvidos circunscrito e amparado em um corpus documental denso, o
do historiador da arte alemão. andamento narrativo acaba sendo mais linear, respei tando os
História Noturna é um livro metodologicamente ousado: domínios cronológico e geográfico. Já na parte central do livro,
com o intuito de decifrar o sabá, acaba por fim, revelando a "ori- C inzburg abandona as continuidades espaciais e cronológicas, e
gem de todos os mitos". E para tal, Ginzburg inova em relação constrói relações, por meio de afinidades morfológicas, de algu-
às abordagens típicas de seus trabalhos de até então. Apesar de mas con figurações míticas c rituais, documentadas num espaço
utilizar de ferramentas típicas da micro-história e ele fazer uso de de milênios e por vezes com milhares ele quilômetros ele distân-
ampla documentação empírica, ele se utiliza pela primeira vez cia. Já na parte final, Ginzburg alterna história e morfo logia no
de refl exões e aparatos estruturalistas, sobretudo lcvi-straussianas, intuito de tentar relacionar mctoclologias díspares e talvez até
e busca através ele análises morfológicas, ligar o micro ao muito mesmo contraditórias.;
macro. Ginzburg organiza o livro em três partes. l'\a primeira De acordo com Cora Presezzi,6 um elos problemas centrais
parte, ele reconstrói, a partir de uma análise ricamente docu- ele Hist6ria Noturna, exposto pelo próprio Ginzburg na intro-
mentada, o emergir da imagem inquisitorial do sabá. Em segu i- dução elo livro, é o da legitimidade da generalização elo caso
da, examina o denso e profundo estrato mítico e ritual do qual dos Benandanti, analisado em se u primeiro livro publicado em
nasceram as crenças populares que depois, via aparato inquisito- 1966, em face a excepciona lidade da documentação inquisi-
rial, foram forçada s a con nuir no sabá. Por fim, em uma análise torial analisada: poderia o Friuli se transformar em uma porta
mais morfológica, oferece possíveis explicações dessa dispersão para um horizonte mais amplo, báltico, esl'lvo, siberiano c até
de mitos e ri tos pela Ásia e Europa. mesmo eurasiá tico?
As três partes elo livro tiveram recepções muito diferentes. Entretanto, o problema da generalização implicava outro ain-
i\ primeira, a histórica, tem sido amplamente aceita - embora, da mais complexo: o da possibilidade ou mesmo necessidade de
como é a norma, tenha sido minuciosamente corrigida em vários
lugares. A segunda c a terceira partes têm sido frequentemente 4 CI:"'ZBURG, Carla. Medaglie e conchiglie: ancora su morfologia e
criticadas, e em alguns casos rejeitadas em massa: mas por trás Storia. Post(azione ala nuova edi::ione di "Storia Nottura". :Nli lano:
Adclphi, 20 19, p. 349.
das ob jeções apontadas, mais ou menos bem fundame ntadas
' 5 GINZBURG, Carlo. 1-l iMória No turna, op. cit., p. 26.
ó PRESEZZI, Cora. "Rilcggere Storia Noturna". In: Streghe. sciama-
ni. visionari: in margine a Storía Nottuma di Carlo Ginzburg. Roma:
3 Cl:"'ZBURG, Carlo. 1list6ria Noturna, op. cit. Viella, 2020, p.ll.
172 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma c o tempo 17 3

recorrer à morfologia no contexto de um esrudo histórico pautado Pode curar, porque pode ir em busca da alma perdida do doente,
na comparação de materiais míticos, registrado em documentos todavia, não é um "curador", estritamente fa lando. É capaz de
algumas vezes até datáveis cronologicamente, mas certamente "voar", de percorrer longas distâncias, e essas maravilhas que ele
atestando tradições orais pré-existentes, muito mais difíceis de se- realiza ocorre durante um transe estático, durante o qual a alma
rem colocadas de maneira absoluta numa cronologia. 7 1odavia, sai do corpo e viaja.9 Se hoje o xamanismo sobrevive numa zona
Ginzburg fez um in teressante uso da pesquisa morfológica como periférica, todavia vasta, existem indícios que em tempos anti-
uma espécie de sonda, utilizada para examinar o extrato mais pro- quíssimos veio a ser praticada em um espaço vastíssimo; os celtas
fundo de mitos e ritos, inacessíveis, segundo ele, por outros meios, certamente o praticavam, e houve séculos nos quais a Europa
ten tando sempre não cair na tentação de um difusion ismo simplis- era quase exclusivamente céltica, gerando extratos cultu ra is que
ta ou em um uma noção infantil de arquétipo. permaneceram como Nachleben der Antike em crenças no pe-
I\a segunda parte de História Noturna, Ginzburg mostra ríodo moderno.
as similaridades, mas com algumas variações, ele uma série ele Para organizar seus argumentos c hipóteses, G inzburg reú-
mitos, ritos e cultos de fundo xamânico presentes em boa parte ne então uma série de mitos e ritos que teriam permeado cultu-
ela F.uropa . Na sua interpretação, o sabá é um evento não ritual, ras europeias de origens célticas. O primeiro deles seriam as via-
mas mítico, no qual encontramos elementos originais, arca icos gens extáticas em companhias de divindades predominantemente
e elementos espúrios, derivados da incursão culta da repressão femininas, como as fadas na Escócia, Diana na França, Rcnânia
eclesiástica. A hipótese de Ginzburg é que a bruxaria testemu- e Itália centro-setentrional e as "l\tlulhcres de fora" na Sicília.
nha a permanência, na Europa, em séculos recentes, de uma Em segundo lugar, batalhas travadas em êxtase, tendo como fun-
cultura xamânica. ção principal a garantia da fertilidade dos campos e boas c?! hei-
O xamanismo analisado por ele não seria uma religião, mas tas: os Benandanti (Friuli); Mazzeri (Córsega); Kresniki (lstria,
uma manifestação, um comportamento que pode pertencer, e Eslovênia, Dalmácia, Bósnia, Monlenegro; Táltos (Hungria);
de fato pertence, a diversos sistemas religiosos; e o xamã não é Lobisomens (Livônia) e Xamãs (Lapônia). f:m terceiro, apari-
um sacerdote, mas uma personagem que dispõe de poderes parti- ções semi-animalescas durante os doze dias (Grécia); Em penúlti-
culares, adqu iridos após uma difícil iniciação e uma dura prepa- mo lugar, grupos de jovens disfarçados de animais, principalmen-
mção.6 A facul dade suprema do xamã é aquela de poder acessar, te durante os doze dias : Regôs (llungira); Eskari (.Vlacedônia,
entrar no mundo dos mortos, de saber descer ao inferno e ascen- Bulgária); Calusari (Romênia); Koljadanli (Ucrânia). Por fim,
der ao céu, de poder guiar no mundo dos mortos a alma saída aparição de mortos em dias pré-determinados: Bena ndanti
elo corpo, ou ainda acompanhar o espírito ele uma vítima sacra. (Friuli); Armiers (Ariege) e Mesultanc (Gcórgia).10

7 Ibidem, p. 13.
8 Mi\ NCi\N I.!: LL!, C iorgio. Concupiscen::a Líbraria. A cura di Sa lvalorc 9 Ibidem, p. l J 1.
Silvano f\'igro. Vlilano: i\delphi, 2020, p. J 11. 10 C l!\ZBURC, Carlo. História Notunw , o(>. cil., p. 103-104.
174 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 175

A partir desse resumo, percebe-se que as evidências que crenças cristalizadas no tema do complô a partir ela presença ele
Ginzburg apresenta são enormes. Tanto os Benandanti elo grupos heréticos e/ou marginais. Para Gi nzburg haveria uma
Friuli, quando os Lobisomens da Livônia estão inseridos numa con Auência, com adaptações, sobrevivências, sintomas de ele-
gama de exemplos comparáveis que surgem desde documentos mentos xamânicos advindos ela Asia central e da Sibéria c que
carolíngios até os sermões de Nicolau de Cusa e de processos formaria uma parte importante da mitologia popular e que na
inquisitoriais de bruxaria na Escócia. E as evidências advindas maioria dos casos desprovida de algum componente ritual.
da Europa oriental, são ma is ricas ainda. Essa análise ele cunho .Y'l csmo possuindo um grau ele isomorfismo inquestioná-
morfológica não se baseia em uma identidade estrutural perfeita- vel com um sistema ele crenças de origem xamânica de diversas
mente demonstrável, mas numa classificação politênica, na qual culturas, como Ginzburg explica esses elementos comuns em
fenôm enos são agrupados com base na quantidade de elementos regiões difíceis de comprovar o contato direto ele culturas? De
compartilhados e no qual nenhum elemento isolado é essencial fo rma clara, ele rejeita as teorias arquetípicas de Jung e Eliade e
para fazer que um desses fenômenos se ja class ificado como per- tenta, na parte três ele seu livro, integrar teoricamente morfolo-
tencente a um dos grupos. gia e História, através de uma leitura estru turalista pautada em
Ginzburg esclarece que todos esses mitos e crenças tem em Vcrnant, mas sobretudo em Lévi-Strauss (mas que gerou uma
comum, como elementos compartilhados, certos sinais físicos: simbiose muito distante elas teorias de Strauss) e nas leituras difu-
nascer com a pelica ou dedos extras, que habilitariam a pessoa a sionistas de Propp, mas sobretudo nas leitu ras que vVittgenstcin
se comunicar com os mortos; a possibilidade de entrar em transe reaIizon de Frazer. 11
ele caráter extático; voos mágicos em espírito em forma de algum É preciso ressaltar também que esse livro de Ginzburg atra iu
animal; batalha contra bruxas no intuito de proteger a colheita críticas de historiadores da Europa moderna, em particular os
ou, alternativamente, algum tipo de visita ao mundo dos mortos. historiadores sociais. 12 Para eles, o "xamanismo politênico" de
E por fim, voos noturnos ou transe em alguma época especial do I listória Noturna era fundamentalmente a-histórico: algo talvez
ano. Possuíam também em comum um substrato celtas. verdadeiro apenas os exercfcios comparativos.e interdisciplinares
Enfim, para Ginzburg, nessas regiões, por mu ito tempo, que ligam fenômenos de tempos e lugares amplarpcnte separa-
séculos ou milênios, matronas, fa das e outras divindades bené- elos. No entanto, xamanismo tornou-se para C inzburg a princi-
ficas c mortuárias habitaram , invisíveis, a Europa de inAuência pal chave interpretativa para explorar crenças folc lóricas profun-
céltica. Teríamos então elementos mais antigos c mais recentes das relacionadas ao sabá elas Bruxas. A '1hipótese engenhosa" de
que contribuíram para a cristalização estereótipo do sabá: o mais
antigo seria formado por reelaboração literária e inquisitorial do 11 Idem.
antigo mito celta da viagem ao mundo dos mortos (sendo mais 12 Para maiores detalhes das duras críticas recebidas por História Notunw,
ver o excelente artigo de Davide Ermacora. "Jnvaríant cultural {om1s
preciso, um estrato mnito profundo de origem celta, grega ou in Carlo Ginzburg's 'Ecstasíes': A thirty-year retrospective". 1-Iistoria re·
mesmo mecliterrânica); e mais recentemente, substratos dessas /ígionum. An intemational Joumal. Roma: F.1brizio Serra Editore, n. 9,
2017.
176 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 177

Ginzburg previa uma complexa rede ele experiências visionárias, tica dos gestos, compreendida intemacionalmcnte e
ele encontros com seres espirituais e, mais amplamente, a media- que falava ao coração por toda parte onde se tratavadc
ção dos vivos com o mundo dos mortos. Os críticos alegaram que arrebentar as amarras expressivas medievais. 14

o fundo sócio-histórico, ecológico, político e jurídico, e os efeitos


Na narrativa elo assombro diante ele uma escultura cujo con-
das mudanças de menor escala, foram sistematicamente ignorados
teúdo mítico era estranho para aqueles que a encontraram, po-
em favor ele uma teia de semelhanças morfológ icas superficiais. 13
de-se vislumbrar um predicado importante daquilo que V"arburg
A partir dessas discussões realizadas, nosso objetivo agora é
chamou mais a diante ele "superlativo da Iinguagem gestual"Y sua
revelar ao leitor a hipótese principal que guia a discussão nesse
capacidade de fascinar olhos alóctones, e talvez por isso ser acolhi-
capítulo: para além elas questões que o autor trata como objetivo
do em ambien te estrangeiro e que pode ser comfJTeendida intema-
elo livro (análise elos substratos mais antigo de crenças e sobrepo-
cionalmente e fa lava ao coração . Tal impressão se reforça na con-
sições sucessivas que levaram até o mito elo sabá através ela eles-
tinuação de seu raciocínio, quando narra o caminho percorrido
figuração real izada pelos inquisiclores), há em todo o livro uma
por essa "linguagem patética elos gestos", 16 "partin do de Atenas e
influência latente da metodologia warburguiana. Mesmo sem
passando por Roma, Mântua e Florença até chegar a Nuremberg,
Ginzburg citar Aby \Varburg em todo o livro, pode-se perceber a
onde encontrou abrigo na alma ele Albrecht Dürer". 17
inAuência do historiador de Hamburgo na form a como constrói
Esse acontecimento que Warburg relatou numa conferên-
e compreende a influência dos mitos e ri tos de um passado até
cia que proferiu no quadragésimo oitavo encontro de Filólogos
mesmo pré-histórico (Pa thosformeln ) em fo rmas e sobrevivências
Alemães, realizado em 1905, em Hamburgo, possuía na sua visão
(Nachleben) em vários presentes analisados ao longo ela obra.
certa importância, tanto que em 1914, retornou a ele ele forma
2. mais detalhada, numa oub·a conferência no Kunsthistorisches
lnstítut em Florença: 18
Quando, em 1488, uma pequena imitação do grupo ... permitam-me va ler-me das pa.lavra$ de Luigi Lolti,
do Laocoonle foi encontrada numa escavação feita o qual em Roma, com nosso G iovanni. Tornabuoni,
em Roma na calada da noite, aqueles que o desco- ia à caça das obras antigas por conta dos Medici.
briram, sem tomar nota do cooteúdo mitológico da I otti durante as escavações nohnnas empreendidas
J ' •

obra, ficaram então deslumbrados, em puro entusias-


mo artístico, com a expressão arrebatadora das figuras
agonizantes e com "certos gestos maravilhosos" (certí 14 WARBURG, Aby. Dürer e a Antiguidade itàliana, op. cit., p.78.
gesti mirabili); eis o latim vulgar da linguagem paté- 15 Ibidem, p.79.
16 Ibidem, p. 79
17 Ibidem , p. 79
·1·3·· · c i. C":·~ÃiRY:·l\. ABRY, ~vi.-A. Cathiard. "lcelandic Thorgeirsboli as 18 WARBURG, Aby. "O ingresso do estilo ideal antiquizante na pintura
an Alternative Case of Narrative Binding of the I-lide anel Caul Motifs do pri meiro Renascimento". In: \VARBURG, t\by. A presença do anti·
to Ginzburg's "Ecstasies", Trictrac, n. 5, 2012, p. 32. go, op. cit., p.91.
178 A forma e o tempo 179
Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias

numa Vigna do Cardeal della Roverc, teve a sorte de para predição oracular elo futuro. 2; Anos antes, no Congresso
encontrar, em 1488, uma pequena réplica do grupo Internacional de História ela Arte, em Roma, Warburg havia dito
do Laocoonte. O conteúdo mitológico da o bra não que "A simbologia complexa e fan tástica dessas figuras resistiu
lhe era claro nem o inte ressava particularmente. A l... ] Ainda que a clareza de seu contorno grego tenha no fu ndo
sua achniração entusiástica voltava-se apenas ao pa· se perdido na perambulação que os levou, durante os séculos,
lhos da forma: E encontraram três belos faunos sobre
da Grécia, passando pela Asia Ylcnor, Egito, Mesopotâmia c
uma base de mármore, todos os três cingidos por uma
grande serpente. Em minha opinião, são belíssimos.
Arábia, até a Espanha ... ". 26
É quase possível ouvir a vo;: deles; parecem expirar,
Devido a sua capacidade ele vagar e encontrar abrigo en-
gritam e se defendem com gestos admirá1•eis; o do meio lre culturas diversas, tanto como manifestações artísticas, e ou
está prestes a cair e dar o último suspiro. 19 como seres rel igiosos, os emigrantes deuses pagãos, 21 puderam
"retornar", como no caso dos afrescos no Palazzo Schifanoia.
As palavras de Luigi serviam tanto para Warburg confrontar Nesse contexto, o termo "retórica peregrina antiga" 28 usado por
a ideia de simplicidade nobre c grandeza serena da Antiguidade Wa rburg na palestra a respeito de Dürer parece extremamente
de vVínklemann ,20 outro historiador ela arte Alemão, como para adequado, não só para as "fórmul as ele pathos" mas para toda
expor a "perturbadora eloquência patética" 21 ela arte greco-roma- cstilfstica da arte helen fstica revi vida tanto no sul como no
na clássica. norte da Europa no período conhecido como Renascimento.
Também em seu texto sobre Lutero e Astrologia 22 "os deuses Principalmente se considerarmos o uso primevo ela palavra "re-
astrais" 23 viajam "fielmente transmitidos pela trilha que sai elo tórica"; como a arte de usar uma linguagem para comunicar de
helenismo e segue pela Arábia, Espanha e Itália até a Alemanha forma eficaz e persuasiva. Muito da sobrevivência elo antigo está
(onde, desde 1470, com a nova imprensa em Augsburg, em profundamente ligado à sedução que ele exerce como novo. Mas
Nuremberg e em Leipz ig, já concretizam, em texto e imagem, até que ponto o novo é realmente novo?
um Renascimento ávido por viajar)".24 :\tias a atração aqu i é exer-
cida, diversamente das fo rmulações ele Pathos, não pelo deslum- 3.
·.
bre puramente artístico e sim por uma religiosidade que se ba- Os mitos e ritos com fundo xamânicos que Carlo Gin7.burg
seia na ligação entre o homem c o mundo natural, utilizando-se estuda em seu História f\'oturna partilham também a capacidade
de uma intrincada relação entre astronomia c mitologia grega de se dispersar geograficamente e screni a_filhados por culturas

19 Ibidem, p.l 3l.


20 lbidem,p. l 29. 25 WARBURC, Aby. A inRuênci ::~ ela S(Jiwera barbárica, op. cil. .
21 Ibidem, p.l31 26 WARBURC, Aby. i\rte italiana e astrologia internacional, 0/J. c1l.,
22 WARBURC, i\by. A profecia da Antiguidade fJCigcl, OfJ. cil., p.l l l. p.l l l.
23 lbidem, p. 114 27 Ibidem, p.82.
24 Ibidem, p. 14. 28 \VARBURC, Aby. Dürer e a i\ntiguidade italiana, op. cil., p.79.
180 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 181

variadas: "Caçadores siberianos, pastores nômades da Ásia cen- Seja como for, ela propõe uma hipótese muito mais
tral, citas, trácios, celtas: a cadeia que havíamos sugerido para geral: a possibilidade de que culturas fugidas e tena-
explicar a difusão das crenças xamânicas da Ásia à Europa, das zes dos nômades das estepes tenham deixado traços,
estepes ao Atlântico ...". 29 profundos cmbor<t dificilmente documentáveis, em
outras culturas mais próximas de nós, a começar pela
Conludo, tal rota de difusão que o historiador italiano par-
grega. Talvez a circulação de imagens c crenças que
tindo de percepções basicamente morfológicas, demonstra ser delineamos se tenha tornado possfvel graças a uma
conciliável com uma trama documentada por relações históri- sedimentação preexistente. H
cas30 não assimila satisfatoriamente um motivo iconográfico par-
ticular: um cavalo com barriga no chão, quase esmagado contra Diante dessas questões e suas duas explicações possíveis,
o solo, conhecido como "galope voador":3 1 se ja a difusão ou derivação de uma fonte comum, Ginzburg
tenta seguir um outro caminho: integrar na análise os dados
... ignoramos o nde e quando o 'galope voador' teve
históricos externos e as características internas, eslruturais elo
origem e como se propagou. Na turalme nte, não se
fenômeno transmitido. E tudo isso em escala reduz ida, "isolan-
pode excluir a possibilidade de o motivo ter sido
inve ntado várias vezes em civilizações diversas, de do do conjunto de fenômenos examinados até agora um ele-
ma neira autônoma. !VIas o que levou a supor o con- mento específico - um pequeno detalhe" . Antes de prosseguir
trário foi sua convcncionalidade: trata-se de uma com nosso raciocínio, é in evitável ressa ltar já aqui o caráter
fórmula ao mesmo tempo extremamente eficaz c warburguiano desse "terceiro caminho" que tenta compreen-
sem equivalente na realidade. A analogia de fundo der permanência e dispersão conjugando dados históricos e ca-
com as questões colocadas pelos mitos e ritos exami- racterísticas internas, ainda mais quando nos vemos diante da
nados até aqui (surgiram de maneira independente? expressão um pequeno detalhe.
Propagaram-se a partir de um ponto e de um lugar
Esse pequeno detalhe vem através ela leitura de Lévi-Strauss.
precisos?) é evidente! 2
A partir de um mito dos índios tcrenas da Amazônia sobre a ori-
"
gem elo tabaco, em que o protagonista se torna manco após os
1\'essc ponto do livro a tensão entre história c morfologia,
que aparentemente tinha sido desfeita com a inserção elos citas sortilégios ele sua mulher, que o antropólogo francês nota que a
-
como mediadores entre oriente e ocidente, novamente se com-
' coxeadura aparece em inúmeros mitos c ritos, desde as Américas
plex ifica. O tema elo galope voador por aparecer em objetos com à China, da Europa continental ao Ylcdilcrrãneo. E segundo
origem e fisionomia distinta escapa a esse esquema: o antropólogo francês, todos esses mitos estariam ligados à mu-
dança das estações: "Uma conexão transcultura l que cobre uma
área tão imensa não pode, evidentemente, restringir-se a causas
29 G l.\JZBURC, Ca rlo. 1-listória Notu rna , op. cít., p.228
30 Idem., p.229. explicativas particulares. Se não se quer fazer remontar o rito da
31 lbidem,p.229
32 Ibidem, p.230. 33 Ibidem, p.230.
182 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 183

dança claudicante ao paleolítico (o que, observa o antropólogo, imagem, num plano literário ou metafórico, parece
explica ria sua distribuição, mas não a sua sobrevivência)".H particularmen te adequado a exprimir uma experiên-
Considerando a resposta ele Lévi-Strauss inadequada3; a tal cia além dos limites do humano: a viagem ao mundo
constatação, Ginzburg, através de uma profunda reflexão acerca elos mortos, realizada em êxtase ou por meio dos ritos
de iniciação [... ] Com isso, a noção de arquétipo é re-
~a estrutura de diversos mitos que vão da Grécia a China, de
formulada de maneira radical, por estar solidamente
Eclipo a Jacó, percebe que o desequilíbrio deambulatório sim-
apoiada no corpo. Para ser mais exato, em su11 au-
boliza nos seus mais variados isomorfismos uma conexão perma-
torrcprcsen tação. Podemos apresentar a hipótese ele
nente ou temporária com o mundo dos mortos. Mas até esse pon- que essa autorreprescntação opere como esquema,
to permanece a pergunta de "como é possível que mitos e ritos uma instância mediadora de caráter formal, capaz de
semelhantes ressurjam com tanta insistência em âmbitos cultu- rcclaborar experiências ligadas a car11cterísticas físi-
rais tão heterogêneos?" diante a qual o historiador italiano objeta cas da espécie humana, traduzindo-as em configura-
que na coxcadura mítico-ritual haveria um arquétipo: um símbo- ções simbólicas potencialmente univcrsais.31
lo elementa r que fa ria parte do patrimônio psicológico incons-
ciente ela humanidade. "[ ... J Nascida (a noção arquétipo) para As respostas, ou ao menos as trilhas pelos quais viriam as
captar algumas constantes ele fundo da psique humana [... ] ela respostas, que Warburg propôs para tentar harmonizar o conAilo
pressupõe a existência de símbolos evidentes por si mesmo, uni- entre história e morfologia, aparentemente orbitam em alguma
versalmente difundidos - os arquétipos - , cujo significado seria região entre o caminho que divide essas duas noções de arquéti-
compreensível ele maneira in tuitiva." 36 J\ilas nega ndo tais pressu- po. Na palestra sobre as memórias de sua viagem à América do
postos, o autor de História Noturna tenta sua própria explicação: forte3K ele se pergunta como se originam as expressões linguís-
ticas e em forma de imagem. Se pergunta também se é acordo
O mito nos convida a reconhecer na simetria uma com que sensação ou ponto de vista que elas são armazenadas no
característica dos seres ''ivos. Se a ela acrescentarmos arquivo da memória. Se existe alguma lei que rege o modo pelas
urna característica mais específic11 (... ] - manter-se quais se sedimentam c vêm novamente à tona;39 questões que ele
de pé -, depararemos com 11111 ser vivo, simétrico respondeu ela seguinte forma:
bípede. A difusão t-ranscultura l dos mitos e ritos cen-
trados na assimetria deambulatória talvez tenha sua O problema da "memória como matéria organiza-
raiz psicológica nessa percepção elementar, míni- da", que Hering formulou êom tanta felicidade, deve
ma, que 11 espécie humana tem de si mesma - da ser respondido com os meios de minha biblioteca, e
própria imagem corpórea. Assim, o que altera essa

37 Ibidem, p.257.
34 Ibidem, p.234. 38 \VARBURG, Aby. tvlemórias da viagem à regiao dos fndios pueblos na
35 Ibidem, p. 234. 1\mérica do Norte, op. cit., p.238.
36 Idem. 39 Ibidem, p.250.
184 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma c o tempo 18 5

também deve ser concebido, de um lado, mediante 4.


uma psicologia do homem primitivo - isto é, o ho-
"Toda a humanidade é - o tempo todo e para sempre - es-
mem que reage iletradamente e de imediato, porre-
Oexo - , e, de outro, mediante a do homem histórico
quizofrênica"."'1 Essa não é uma afirmação qualquer, ainda mais
e civilizado, que, consciente de si, lembra a fo rma- por seu contexto. Ela se encontra nas anotações que \.Varburg
ção sedimentada (histórica} de seu próprio passado e usou para a palestra sobre sua viagem à América do norte. Ele
do de seus antepassados. :'\o caso do homem primi- a proferiu no Sanatório Bellevue, em Kreuzlingen (Suíça), em
ti vo, a imagem mnêmica leva à ação religiosa; no do Zl de abril de 1923, onde já estava há alguns anos, para uma
homem civilizado, à anotação. Toda a humanidade audiência que incluía os pacientes ali internados. Nela a mente
é - o tempo todo e para sempre - esquizofrênica. humana diviclida42 entre a serena contemplação e o abandono
Talvez, em termos ontogenéticos, seja possível desig-
orgiástico, entre a ciência c a magia, impulso c ação- um con-
nar um comportamento frente às imagens rnnêmicas
ceito que emerge da observação dos índios pueblos - com certeza
como sendo precedente e primitivo, qtte, con tudo,
permanece latente. Nos estágios posteriores, a ima- tanto para o palestrante como para sua <Judi ência possuía uma
gem rnnêmica já não desencadeia um movimento significação viva e profundamente p<Hticular. De tal forma que
reflexo imediato e prático - seja ele bélico ou reli- posteriormente \Varburg tenha insistido de que sua apresentação
gioso; em vez disso, as imagens da memória passam não fosse concebida como resultados e sim "auxíl io aos pósteros
a ser conscientemente armazenadas em imagens ou na tentativa da reflexão própria, para opor resistências à tragé-
sinais. Entre esses dois estágios situa-se o tratamento dia da cisão entre a magia impulsiva e a lógica confrontadora. A
recebido pela impressão que se pode designar como
confissão de um esquizoide incurável, arquivada pelos médicos
forma simbólica de pcnsamento:'lJ
da alma"Y Apesar de tal recomendação, muito ele seu conteúdo
ressurgirá de forma mais polida, contida c ordenada no texto que
Warburg acreditava que junto com seu Atlas Mnemosyne,
o cotejo entre a psicologia do homem primitivo e do homem preparou para introdução de seu atlas ele imagens.1'1
"histórico c civilizado" trariam a solução para o problema da me- Segundo \i\'arburg tcorizou em suas memórias da viagem,
mória corno matéria organizada (que de forma indireta lançaria o homem é um animal manejaclor, cuja atividade consiste em
vincular e separar. Por conta disso:
luz sobre o embate entre história e morfologia). I\a tentativa de
resolver tais questões, tanto ele como Ginzburg se viram lança-
41 Idem.
elos cada vez mais em direção ao passado longínquo ela espécie
42 O termo esquizofrenia, das raízes gregas ~chi;:o (dividida) e phrene
humana, cada vez mais próximos da região limítrofe que sepa ra (mente). criado pelo médico suiço Paul Eugcn Bleuler, para substituir
o homem elos outros animais. dementia praecox (demência precoce) em bastante recente na época de
Warburg.
43 \~1ARBURG, Aby. Jvfemórias da viagem à região cios fndios Pueblos, op.
cit., p.238.
44 WARBURG, Aby. Mncmosync. O atlas das imagens. In: WARBURC,
40 Ibidem, p.251. Aby. A presença do Antigo ... op. cit., p.217.
186 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Bcrbert Dias A forma e o tempo 187

ele perde seu sentimento orgânico do próprio Eu, já Somente em 188;-1886, nos altiplanos do Kovo
que a miio lhe permite pegar as coisas reais, às quais, México, diante das danças com máscaras dos fndios
por serem ano rgâ nicas, falta um aparato nervoso, Hopi (cuja particular c ivi lização t.ive oportunida-
mas que mesmo assim ampliam ino rga nicamentc de de estudar po r vá rios meses), intuf que a obra
se11 fi:u. Essa é a tragédia do ser humano, que, ao de arte constitui o instrumento de uma c ultura
mani pular as coisas, amplia-se para alérn de sua ex- mágico-primitiva. Convenci-me de que o ho mem
tensão orgânica_-.; primitivo, e m qualque r parte da terra, geralme nte
transfere ;1 sua norma interior ao que, na chamada
Nesse sentido, para Vl~1 rburg o processo artístico estaria en- al ta cultura, usa-se representar corno um procedi-
Lre a mímica e a ciência: "Ele se utiliza da mão, que retoma a seu men to aparentemente estético . Fortalecido por essa
curso; ela imita, isto é, renuncia a qualquer outro direito de posse convicção interior sobre a condição espiritual do
homem pré-histórico, ao retornar, retomei a cultu-
relativo ao objeto, enquanto segue tateando sua extensão exter-
ra florentina do Quattrocenlo, e ade ntre i-me ne la,
na". Então, continua o historiador da arte, "O ato artístico é por
com a inte nção de analisar a estrutura espiritua l e
assim dizer um apanhar neutro, que não altera realmente a rela-
psfquica do homem re nasce ntista por um novo c
ção entre objeto e su jeito, rnas apenas - na escultura realmente mais amplo pressu posto. 45
pelo tato, na pintura só pelo traçado do contorno - assim ila com
os olhos e reprocluz":16 A palestra do Sanatório Bellcvue possui uma vasta rique-
a introdução elo Atlas, o que chamamos de ato artístico za de nuances e refl exões. Apesar de V\7arburg, em sua abertura,
não é outra coisa senão uma manipulação tátil do objeto, a fim enumerar ao público alguns motivos pelos quais não poderia ofe-
de que ele possa ser refletido de modo plástico ou pictórico. Esse recer uma introdução realmente profícua da vida anímica dos
ato artístico é equid islante, tanto pela maneira ele colher os ob- índios, como falta de condições ele refrescar e trabalhar a fundo
jetos, típica ela imaginação, quanto pelo modo característico ela profundas memórias da viagem (feita vinte e sete anos antes),
contemplação conceituaL4i Ass im podemos notar que o conteú- carência do domínio elo idioma dos pueblos., po'uco tempo de
do elo texto trabalhado para o Mnemosyne, apesar da natureza permanência no Novo México. 49 Contudo, além de· uma exímia
sintética, quase aforística, concorda com as considerações ano- e erudita memória, ele demonstrava ainda possuir sua imensa
tadas em Bellevue. Em outra conferência, feita em sua própria capacidade de associação baseadas em detalhes: "É sem dt1vida
biblioteca, no ano de 1927, \Varburg reafirma a importância de possível detectar, na cerâmica dos pueblo's ( ~nclúsive como é hoje
sua experiência norte-ameri cana para seu modo de pensar a arte. praticada), a influência da técnica espanl1ola medieval, tal como
foi traz ida aos índios pelos padres espanhóis, no século )(\!L F.u
mesmo vi, no museu de arte e arte aplicada de Hamburgo, um
4; \.VARBURC, Aby. Memórias da viagem à regido dos fnclios P11eblos, op.
cit., p. 249.
46 Ibidem, p.2;5. 48 'vVARBURC, t\by. De arsenal a laboratório, op. cit., p. 42.
47 WARBURC, Aby. Mnemosyne. O atlas das imagens, op. cit., p. 218. 49 WARB URC, Ab;·. lmage11s ela regicio dos í11dios Pueblos, ofJ. cit., p.l82.
A forma e o tempo 189
188 Dcivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbcrt Dias

azulejo que exibe o mesmo verni z esverd eado que observara em demoníaca alheia . .:\a medida em que o índio, disfar-
çado em sua máscara imitadora, imita, por exemplo,
lrês velhos vasos em Acorna".;o
um animal em sua aparência e em seus movimentos,
:\tlais a frenlc em sua explanação, o historiador alemão fa la
não é por diversão que desliza para dentro dele, mas
sobre dança dos antílopes dos zuiiis e da explicação que recebeu porque pretende, mediante a metamorfose de sua
sobre ela de Frank Hamilton Cushing, um etnólogo norte-ame- personalidade, sujeitar por mágica algo da natureza
ricano que aparece no texto como um mediador entre a cultura -tarefa que a personalidade hurnan<l não ampliada
europeia e indígena e cujas ideias claramente influenciaram de e inalterada não é capaz de realizar. A relação in-
forma bastante aguda, e talvez pouco analisada," o pensamento terior elos índios com os animais é completamente
de Warbllrg: diferente da relação do europeu. O índio considera o
animal um ser mais elevado, pois o caráter uniforme
Essa é, pois, uma dança de caça; nela, com o uso da de sua animalidade o faz dotado ele rnaior força, se
máscara, o animal é apropriado como que por anteci- comparado ao fraco ser humano. Tais explicações-
pação. Trata-se, portanto, originalmente da apropria- para mim novas c i1npressionantes- sobre a psico-
ção antecipada do animal, p<~ra o caso de um ataque logia da vontade ele metamorfose animal me foram
da caça. T.1l medida não deve ser considerada algo passadas, antes que eu viajasse, por Frank Hamilton
lúdico. Afinal, para os homens primitivos, as danças C ushing, pioneiro c veterano na luta pela compreen-
mascaradas significam, dentro elo processo de vincu- são da alma indígena. Esse homem com marcas de
lação ao que há de mais alheio à pcrsonaliclacle, a varíola e um ralo cabelo ruivo, cuja idade não se
mais radical das subordinações perante urna criatura consegue adivinhar, disse-me, enquanto fumava um
cigarro, que um índio certa vez lhe dissera: "Por que
o homem deve fi ca r acima elo animal? Veja o antílo-
50 Ibidem, p. l 89. pe, que é apenas correr, c corre muito melhor que
51 Algum tempo depois, de maneira particularmente interessante, o homem -ou o urso, que é força pura. Os homens
Warburg por assim dizer, toma para si uma tarefa análoga a do nor-
podem só um tanto, enquanto~ anin~al pode tudo
te-americano. Dmante o décimo congresso de História da Arte, reali-
zando em 1912, na cidade de Roma, ministrou urna conferência em aquilo que ele é". Esse modo ele pensar com ar de
que se propunha, como urna espécie de cicerone ou tmdutor, levar o fábu la é precursor - por mais estranho que soe - da
"homem do sul" a conhecer e compreender mélhor a élrte do norte. O nossa explicação genético-científica de mundo. Pois
historiador assumindo que a arte meridional seja "mais madura" c "em esses índios pagãos, assim. como~ os pagãos mundo
seu íntimo resid;~ a norma para um mundo elevado e purificado'' quan-
afora, relacionam-se - com base no te mor rcsveito-
do comparada à arte alemã, que segundo ele na visão dos estudiosos
so do que se costuma denominar tolemismo - com
italianos era "nascida numa condição de extrema angústia, inquietu-
de, rndezap e, numa citação de Vasa ri, "inclinada a ressaltar o aspecto o mundo animal ao acreditar que todas as espécies
falso, encontrando um:1 almndância ele símbolos em que reinflm, ao se jam ancestrais míticos elas tribos. Portanto, eles
contrário, a feliz casualidade c o jogo ingênuo". Wt\RBURC, t\by. ''A c:-:plicarn o mundo - por meio de um nexo inorgâ-
posição do artistn nórdico e do artista meridional a respeito do tema das nico - de um modo que niío é assim tão diferente
imagens''. In: \VARBU RC, ABY. A presença dos Antigos... op. cit.
190 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 191

do darwinismo; afina l, ao passo que re metemos a lei o que testemunha; um elemento com um sabor notoriamente for-
para o interior do processo evolutivo (que está fora mal que observa na coreografia, a dufJlicídade do coro trágico e da
do nosso alcance), por meio da própria natureza, peça satírica enxertados num mesmo ramo, faz ruir, a tendência
os pagãos buscam explicá-la pelo vínculo arbitrário mais imediata em ver, de forma unilateral, nessa cerimônia apenas
com o mundo animal. O que determina a viela elo
o elemento da espiritualização.54
assim chamado homem primitivo é um darwinismo
por meio ele uma afinidade eletiva mítica. 52
Talvez aqui, por quiasmo, ele tenha chegado à intuição
já citada de que a obra ele arte constitui o instru mento de uma
Seguindo relato ela viagem, no povoado ele Oraibi, Warburg cultura mágico-primitiva". Esse conceito, fundamenta l para seu
tem a oportunidade de observar a dança hwniskachina, que se dis- pensamento, pouco prestigiado por seus comentaristas, é o im-
tingue, entre outros detalhes, ela dança do antílope por estar ligada pulso fundamental que guia muitas de suas pesquisas, como na
a fertilidade e agricultura. Assim "todo o simbolismo no capacete tentativa de decifrar as imagens do Palazzo Schifanoia ou quan-
outra vez aponta, antes de tudo, para o universo em forma ele es- do tenta compreender a orientação elo cosmos no ocidente atra-
cada com o provedor da chuva, identificado como sempre pelas vés da Sphaera Barbaríca.
nuvens semicirculares e pelos riscos que escorrem dessas nuvens". Finalmente chegamos então à terceira dança, a cerimônia ela
l\tlais dez dançarinos, representando tipos femininos, tem o corpo serpente em Walpi, a qual \Varburg não presenciou, apenas viu fo-
completamente cobe1to por tecidos, para revelar que são homens. tos, e ouviu sua narração. Nelas os nativos dançam com cascavéis,
Enquanto dois sacerdotes jogam-lhes farinha sagrada, os dançari- capturadas na natureza, e domadas através ele uma série ele cerimô-
nos executam basicamente duas ações, "Ou as figuras femininas nias ao longo elos dias que culminam com sua devolução ao deser-
se sentam em frente aos homens e fazem sua música, que execu- to ele fom1a rih.1alística. Após a descrição pormenorizada da dança
tam batendo com uma peça de madeira em matracas, enquanto \Valpi, vVarburg, passa a expor imagens, mitos e ritos associados a
a coreografia elos homens consiste apenas em girar em torno ele si serpente na antiguidade para demonstrar que neles estiveram em
mesmos" ou "as figuras femininas se levantam e acompanham os voga hábitos culturais que chegam mesmo a exced~: a rudeza desfigu-
movimentos dos homens nesse giro ao redor ele si mesmos". 53 A rada do que vemos entre os indios. Começando pela Grécia, no culto
dança é executada de tal forma durante todo o dia, com os dança- orgiástico a Dionísio, em que "mênacles dançavam com cobras vivas
rinos sa indo elo assentamento para pequenos péríodos de descanso nas mãos, que se enrolavam em volta ele sua cabeça como um dia-
e ao contemplá-la, 'vVarburg nos conta sobre um momento que é dema, enquanto na outra mão levavam o animal dtlaceraclo na dan-
bastante marcante para ele, e de forma muito diferente da primei- ça sacrificai extática em honra à divindade", 55 passando pelo mito e
ra dança, \·Varburg se mostra claramente mais impressionado com pela escultura elo grupo Laocoonte, também "Esculápio, deus ela

52 vVARBURC, Aby.lmagens da região dos índios Pueblos, op. cit., p.20 1. 54 Ibidem, p. 214-215.
53 WARBURC, Aby. Imagens da região dos índios Pueblos, op. cil., p. 55 WARBURC , Aby.lmagens da regi<io dos índios Pueblos, op. cit., p. 214-
214-2 15. 215.
192 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma c o tempo 193
r
saúde na Antiguidade, tinha como símbolo a serpente, enrolada em sobre as serpentes, aparentemente o primeiro contato dele com
seu bastão terapêutico"/ 6 chegando a bíblia com a serpente de bron- a obra do historiador alemão:
ze que Moisés erigiu no deserto c o evento em que o Apóstolo Paulo
atira ao fogo a víbora que o picou. 57 Aproximei-me dos escritos ele Benjamin aos 23 anos,
Essa jornada, junto aos índios pueblos, ele perceptível com- através da escolha feita por Renato Solmi, nulw de
um belo ensaio introdutório: Angelus Novus, Turim
pleição antropológica, como pudemos notar, deixou uma ru-
1962. Quando li Ben jamin, já conhecia o ensaio
brica profunda no espírito e pensamento de Warburg. A busca
de Wnrburg A Lecture 0 11 Serpent-Ritual ("Instituto
de respostas para questões que envolviam o Quattrocenlo e o Journal ofWarburg", 11, 1939) (talvez até outros, mas
ressurgimento do paganismo greco-romano para além de suas não tenho ccrtcza). 59 (Tradução livre do italiano)
fronteiras espaço-temporais; na vida e na arte dos povos primi-
tivos é uma estratégia bastante similar àquela em que C inzburg Essa afirmação nos remete a algo de suma importância: em
recorre a Lévi-Strauss e suas considerações sobre mitos dos ín- História Noturna é utilizado com certa frequência um processo
dios da Amazônia. Além disso, diversas questões circunjacentes analítico mu ito parecido com o que Warburg usa com 8 serpente
conectam os textos (aqueles que Warburg relata sua viagem e na antiguidade: a busca por determinado elemento morfológico
História Noturna ), como por exemplo a tentativa mágico-ritual numa variada gama ele fontes. No in ício da sua segunda parte
ele influenciar a natureza através das danças e as batalhas pela desse livro, Ginzburg nos apresenta três declarações presentes
fertilidade travada pelos Benandanti; o apropriar-se da caça por em processos inquisitoriais.
antecipação através de uma dança mascarada e o disfarçar-se de Em 1319, o sacristão de uma aldeia dos Pirineus, conta ao
animal;;s o abandono orgiástico ela mente esquizóidc primitiva e Bispo e lnquisidor ela cidade de Pamiers que era um armier, o que
o êxtase xamânico. Entre as várias possibilidades de si111ilitudes, significava que possuía o dom ver e falar com as almas, essns se-
uma muito importante a nosso ver é, justamente, a qu e reúne gundo ele embora "n~o comam, bebem vinho elo bom c se aque-
aparições tipológicas cla serpente na antiguidade que acabamos cem ao fogo quando encontram urna casa COllJ~ muita le1 1ha; mas
de mencionar e a segunda parte de História Notunw. o vinho não diminui quando os mortos o bebem". No <,mo de H28
os montanheses do Valais afirmaram que "ao voltar elos encontros
5. noturnos, parávamos nas cantinas para beber o J'!lelhor vinho; de-
Em uma troca ele c-mails conosco, o próprio Carlo Cinzburg pois, cagá,·amos nos tóncis". Por fim em 1·575 no extremo oposto
afirmou que antes dos 23 anos já havia lido o texto de vVarburg do arco alpino um nobre friu lano afirmou a um lnguisidor e a um
vigário-geral que escutara em Cividale "que [Yioduco] era benan-
56 Idem.
57 lden1,p.Zl8. 59 C INZBURC, Carla. Saggio: una lettura eretica de/ /avaro di Ca rla
58 G ll\'ZBURC, Carlo.llistória Notuma, op. cit. O tópico 4 d:1 parte dois Cin::burg attraverso Aby Warburg e Walter Beniamín. [mensagem pes-
de história noturna "Disfarçar-se de animais" dedica-se a ocorrência de soal] Mensagem recebida por: <deivycarneiro@gmail.com>. em: 05
ritos que envoh'em o disfarçar-se c metamorfosear-se de animais. abr. 2020.
194 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 195

dante e que à noite, em gera l nas quinta-feiras, junta-se a outros e Importante perceber aqui que o que une bruxas, feiticeiros
se reúnem em certos locais para copular, dançar, comer e beber; e benandanti não são um único elemento como acontece com
que quando os mali andantí vão às cantinas, bebem e depois uri- a serpente de \Varburg. Tanto confissões de interrogados quan-
nam nos tonéis; e que, se não fossem os benandanti, o vinho se to descrições de tratados sobre os encontros noturnos possuem
estragaria e outras bobagens semelhantes ... ".60 semelhanças entre si, mas não um traço essencial que os iden-
Em busca de uma ligação entre esses testemunhos dispersos no tifique a todos de uma vez. Estão unidos por uma "semelhança
tempo e espaço, mas com uma clara similitude formal, o autor passa de família". Esse conceito que Ludwig Wittgenstein utilizou,
a levantar os paralelismos descritos em diversos tratados ele demonó- inAuenciado pelos retratos compósitos de Francis Galton, para
logos medievais e presentes nas confissões de mulheres acusadas de opor-se ao essencialismo platônico, onde segundo ele os membros
participarem do Sabá. Desses emergem o núcleo que fala sobre mu- formam uma. rede complicada de semelhanças, que se envolvem e
lheres que anelam a noite na garupa ele animais a serviço da Deusa se cruzam mutuamente, semelhanças de conjunto e de pormenor. 62
(Diana, Herodíade, enlTe outras). Enxergando nos voos noturnos Assim, durante toda parte dois de História Noturna, algum
uma experiência de caráter extático Ginzburg afinna: elemento morfológico aparece para expandir a série documen-
tal, nas quais estariam incluídos elementos culturais que depois
O acesso ao mundo das benéficas figuras fem ininas
confluíram no núcleo folclórico do sabá. Diferente da análise
que propiciam prosperidade, riqueza e saber to rna-se
mais ou menos desconectada, do ponto de vista histórico, da ico-
possível mediante uma mo rte provisória. O mundo
nografia da serpente na antiguidade que \Varburg nos apresen-
delas é o mundo elos mortos. [.. .] Essa identidade é
confi rmada por uma série ele convergências. O hábi- ta, esse tipo de classificação (por semelhança de famíl ia) muitas
to, até há pouco tempo registrado numa área geográ- vezes permite que anomalias e pequenas variações funcionem
fica muito vasta, de deixar água para os mortos em corno pon tes entre duas séries distintas, estabelecendo a pos-
determinados dias, a fim ele que matassem a sede ... sibilidade de uma derivação de mesma fonte, indicando já na
( ...] inesperadamente, o significado ela analogia ela análise puramente morfológica algum senso temp0ral-histórico.
qual havíamos partido to rna-se claro. Podemos apro- "
"As múltiplas variantes de um detalhe aparentemente marginal
ximar às bruxas e aos fe iticei ros do Valais tanto aos contêm uma história de milênios". 63
Benandanti quan to os bandos ele almas do Ariege,
Um exemplo fundamental desse processo Ç o caso do lobi-
pois o voo noturno rumo aos e ncontros diabólicos re-
somem livônio: "um velho de oitenta anos chan1ado Thiess, que
percutia, agora sob forma alterada c irrcconhecívcl,
um tema antiguissimo: a viagem c;...iática ao mundo
os conterrâneos consideravam um idólatra"'levado à inquisição
elos mortos. O núcleo folclórico do este reótipo do "confessou aos juízes que o interrogavam ser um lobisomem."
sabá enconh·a-se aqui.61 Afirmou que três vezes por ano os lobisomens da livônia iam até

60 G!NZBU RC, Carlo. f-listória Noturna, ofJ. cit., p. 106. 62 Ibidem, p. 123.
61 Ibidem, p. 122-123. 63 Ibidem, p. 280.
196 Dcivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma c o tempo

o inferno combater o demônio e seus feiticeiros pela fe rtilidade percepção de sobrevivências de crenças, mitos 0 11 resíduos, ora
dos campos: "os bruxos roubam os brotos de trigo, e, caso não se vivenciaclos de maneira direta, mas na maioria das vezes como
consiga arrancá-los deles, vem a carestia" _&~ E de forma alguma sintomas, no sentido freudiano elo termo. O conceito warbur-
cedeu à pressão dois inquisidores e confessou ter feito pacto, pelo guiano de Nachleben (e talvez, o de imagem dialética de Walter
contrário com obstinação continuou a afirmar que era inimigo Benjamin) está presente na forma como Ginzburg, "amarra" as
do Diabo e seus fei ticeiros.6 ; relações entre história e morfologia e tenta responder de alguma
Segundo Ginzburg, os relatos do velho Th icss invertiam maneira a difusão de mitos, ritos e crenças no espaço geográfi-
um estereótipo antigo, mas não apenas. Questionavam um es- co e temporal tão amplo. São perspectivas wa rbu rgu ianas; pers-
quema interpretativo relativamente recente, que inseria os lo- pectivas essas que perpassam, como dissemos anteriormen te, o
bisomens num con junto mítico germânico mais ampl o, de na- grosso de sua obra, mas que incrivelmente se encontram - pelo
tureza beli coso, tendo como eixo o tema exército dos mortos.66 menos nas citações- ausentes em f list6ri(l Noturna. Mas co mo
As ba ta!has pela fe rtilidade, e também o nascer com pelico vimos até aqui, essa ausência é apenas fo rmal. Ginzburg carrega
aparece m nessa altura do livro para unir lobisomens bálticos, também nessa obra uma visão de história permeada por insights
aos benandantí c através desses à a feiticeiros e bruxas. Com desenvolvidos por Aby \-Varburg.
jé1 dissemos, elementos morfológicos anômalos diversos servem Observemos, já ao fim ela parte três ele seu Iivro, como a
como vínculos pa ra aumentar cada vez mais a abrangência es- escrita de Ginzburg carrega consigo para além elo conceito de
pacial e temporal de fe nômenos culturais c que por fim ligarão sobrevivência, outra ideia cara a vVarburg, a de "inversão ener-
o êxtase xamãnico ao sabá elas bruxas. Ao fim do livro somos gética": tudo num movimento muito parecido com o que o his-
apresentados a diversos extratos mítico-rituais, que mesmo va- toriador alemão faz em seu texto, quando depois de analisar a
riando se sobrepõem ou correlacionam-se parcialmente, todos serpente como demônio, carrasco, numa visão pessimista, en-
ele algum modo ligados ao tema antiguíssimo da viagem, real contra-a enrolada no cajado de Esculápio, "na qual enfim pode-
ou metafórica, ao mundo dos mortos. mos saudar o gênio amigo do homcm":67
Sem usar declaradamente o conceito de Nachleben, te-
Até agora, analisamos um traço m(tico c rÚtt<tl em con-
mos claramente nessas formas de análise demonstradas até aqui
textos extremamente heterogêneos, mostrando que à
uma argumentação qu e vai mostrando e guiando o leitor pa ra a
persistência da forma correspondi<f substanci:tl cons-
tância do significado. Agora,' examinaremos a situação
64 Ibidem, p. .1 64. oposta, em que a uma forma quase idêntica correspon-
65 Ver também as considerações feitas recentemente por Ginzburg dem conteúdos diversos. Por que a forma se mantcve?65
acerca da relação eutre história e morfologia: Gl.\lZBURG, Carlo.
Conjullclive Allomalies - a reflection on werewolves. lll: GINZBURG,
Carlo & LINCOLN, Bruce. Old Thiess, a Livonian werewolf. I' cd.
Chicngo: The Universit:y of Chicago Press, 2020, p. I 09-126 67 \-VARBURG, Aby.lmagens da regido dos fndios Pueblos, op. cit., p. 223.
66 C ll\ZBU RG, Ca rlo. fl isl6ria Notuma, op. cil., p. 164. 68 G ll\ZBURG, Carlo. História Noturna, op. cil., p. 280.
198
Deivy Ferreira Carneiro e Daniet Rezende Oerbert Dias A forma c o tempo ,.,,,
6.
primeiro livro, a semelhança entre os 13enandantí e xamãs, proje-
Cada época seleciona e se apropria de determinadas sobrevivên- to que por fim se tornou o livro História Notu rna e sobre o qual
cias, à medida elas suas necessidades expressivas. Como Ginzburg naquele momento ele reflete:
nos mosh·a ao longo da terceira parte de História Noturna, as cadeias
da tr~dição .nã~ têm nada de uma transmissão e recepção passivas;
Não excluo a h ipótese de que tal projeto também es-
teja fadado a um parcial fraca sso. Mas vejo claramen-
um cllspens!Onlsmo mecânico, visto que cada época particular trans-
te que as dificuldades teóricas a e le ligadas rcaprescn-
forma o material mnésico de acordo com aquilo que poderíamos ta ram-sc a mim, porém, num outro plano, referente
c~1amar ~e n~cessidades contextuais. Teríamos aqui uma concep- niio a mitos, mas a pinturas.'0
çao de h1st6na na qual o passado fica detido no presente. Assim
em História Noturna, assim como em vários trabalhos de y1t. "\ar burg,' O que aproxima mitos e obras de arte segundo o historiador
ob~crvamos urn passado que nunca é um tempo concluído, pois italiano, é tanto o fato de "terem nascido e serem transm itidos
está constantemente a emergir no presente, de Hcordo com as ne- em contextos culturais e sociais específicos" e por também pos-
cessidades e leituras feitas a partir desse. Perspectiva extremamente suírem uma "di mensão formal" e, como i <~ pudemos demons-
próxima àquela de Walter Benjamin, que por outras vins, concebeu trar, essas duas faces da arte eram objeto constante da reflexão de
que cada momento do passado nunca é definitivo. Há assim tanto VVarburg. Percebemos também uma afinid ade entre a visão da
em vVarburg quanto em Benjamin, uma ruptura de uma noção li- arte como fruto de um impulso mágico-primitivo na tentativa de
near de tempo histórico, mas uma percepção de um constante co n- influenciar a natureza ao redor e o pensamento xamânico, e por
Aito entre presente e passado. conseguinte, em todos muitos extratos de mitos e ritos estudados
Em História Noturna é oferecida a ideia de que a imagem ao longo do livro. Essa percepção que liga mitos (c também ritos)
~crtencc ao tempo, mas não a um tempo único; um tempo dialé- as pinturas (e obras de arte em geral) ele certa forma orientou
tico carregado de sobrevivências. Das sobrerivências em movimen- nossos esforços ele demonstrar a influência não apenas método
t~, opera~tcs,como f~ntasmas e sinais dos que já foram e dos que warburguiano em História Noturna, mas t~.mb ém da própria
amda estao. 'Telas, Ilustrações, gravuras são in terpcnetradas por concepção de história do historiador hamburguês. .
apresentações de diferentes passados, umu v~z que 0 passado tal Todavia, o q11e esperamos que tenha ficado claro é que a
como foi é inacessível, logo, niio poderia, por si só, ser 0 objeto da relação entre morfologia e história que estamÇ>S analisando não
His:ória. Ao olhar traços e cores, pode-se perceber significações se deu de forma simplista: sem citar ou ·dialoga r com VVarburg,
mu1to além elas contidas no cenário vivido pelo autor cln obra".69 Ginzburg retoma elementos das Nachleben e das Pathosformeln
No prefácio de se11 Mito, emblemas e sinais, podemos vis- para compor, historicamente a transmissão cultural de mitos c
lumbrar o modo como essas hipóteses, ainda em processo de ritos de origem xamâ nica, como dissemos.
construção, se articulam. Conta-nos Ginzburg que ele havia se Por tíllimo gostaríamos de fazer notar que as várias correla-
col o~ado em apuros, com a decisão ele retornar aos problem<Js ções que analisamos podem ter também sentidos inesperados. Por
surg1dos com a documentação que tinha dado origem ao seu ter avançado em discussões de fisionomia próxima daquelas de

69 lhidem, p. I 05. 70 C I1\ZBURG, Carlo. i\tlitos, Emblemas e Sinais, op. cit. p. 12.
200 DeiV)' Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Bcrbert Dias

Warburg, muito das perspecti\nS de Ginzburg podem trazer uma


nov-<1 ótica sobre questões que ocuparam o historiador alemão. Um
bom exemplo é conceito de arquétipo tal qual é rcformulado em
1-lislória Noturna, <mcomcla na autorrepresentação do corpo como PARTE 111
"uma instância mediadora ele caráter formal, capaz de reclaborar
experiências ligadas a características fís icas da espécie humana,
traduzindo-as em configurações simbólicas potencialmente univer-
sais".71Tal concepção pode ser extremamente útil para se pensar a
Pathos{onnel, por sua relação com o corpo humano c seu gestual.
Essa noção não parece muito distante da mediação que ocor- "A micro-história italiana não é uma escola". É o que sem-
re através da natureza e de objetos no pensamento de \Varburg. pre lemos nos principais c ma is importantes "manuais" sobre
Temos por exemplo a serpente, o raio e escada aparecendo como essa corrente italiana que revolucionou a História Social a partir
elementos constitutivos ela cosmovisão dos índios pucbl os ou 0 dos anos 1970.1 Mas talvez seja, de fa to, algo que esqueçamos
homem mediterrâneo favorecido pelo sol que produz uma arte constantemente quando tentamos transformar seus elementos
mais lumin osa que o nórdico. O vocábulo grego lógos (usado na metodológicos em uma receita de bolo. E tal fato, por vc, es,
composição ela pa lavra Logos{om1el) possui duas acepções bási- foi esquecido não apenas por nós, entusiastas, mas também por
cas, pode significar tanto aquilo por meio do qual se exprime alguns de seus principais nomes.
um pensamento, ou aquilo qu e leva à própria formulação do A Microstoria surgiu na lt1lia como um questionamento ao
pensamento.n Talvez o corpo func ione de forma similar para as modelo macroscópico e quantitativo adotado pelos Annales ao
Pathos{ormeln, não apenas como meio para sua exprcssJo, mas longo dos anos 1960 e 1970: lrata-se de um tipo ele história com
também como um germe para sua formulação. recorte temporal de longa duração e recorte espacial macro que,
em resposta ao estruturalismo dominante na_academia fmn cesa
do período, não se debruçava sobre as muda~ças c .?s rupturas. 2
Além disso, ela também surgiu como uma tomada de posição
crítica frente aos modelos e instrumentos inte.rprelalivos da es-
querda italiana que, baseados em uma visão rígida e tcleológica

ROJAS, Carlos Antonio Aguirre . .'VIicro-hisl6rict: modo de uso. Mari ngá:


Eduel, 2012; LIMA, Henrique Espada. A Micro-história Ita liana. Rio
71 C I['.;ZBURG, Carlo. // is/6ria Noluma, op. cit., p. 257. de Janeiro: C ivilização Brasileira, 2006
72 I.OURENÇO, Frederico. A Bfblia - Volume 1: Noro 'lestamcm/o- os qua- 2 C INZBURC, Carlo. "M icro-história: duas ou três coisas que sei a res-
tro erangelhos. J• ed. São Paulo: Companhia das Letms, 2017, p. 319. peito'', OfJ . cit.
202 Oeivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 203

da história, adotavam representações do real e das hierarquias De acordo com alguns comentadores, a existência de um
sociais numa perspectiva conservadora e economicista. 3 "eixo social" e de um "eixo cultural" da microstoria aparece como
Já que a análise macro tende a ser extremamen te generali- algo evidente desde seu início. Apesar de terem em comum a
zantc c desprovida de dados empíricos, os micro-historiadores redução de escala de análise, as duas correntes teriam persegui-
buscaram descre,·er as estruturas sociais sem negligenciar as inte- do, na verdade, métodos e objetivos diferentes. Durante os anos
rações humanas. Assim, os instrumentos analíticos adotados pela 1970 e 1980, contudo, os investigadores ligados a essas duas ver-
micro-história permitiam a construção de uma história na qual as sões teriam convivido sem se interrogarem sobre seus respecti-
hesitações ele percurso, individuais e coletivas, apareciam de for- vos proceclimentos. 7 De modo genérico, havia, até os anos 1990,
ma clara e levava m ao questionamento das análises reducionis- uma micro-história social, representada por vários pesquisadores
tas que conjugavam uma ideia de desenvolvimento social linear italianos, tais como Giovanni Lcvi, Ecloarclo Grendi, Osvaldo
determ inado, ao mesmo tempo, por leis imanentes ela história:' Raggio, Angelo Torre, tvlauriz io Gribaudi e Simona Cerutti; e
Par<I resolver esta questão, os micro-historiadores propuse- havia a micro-história cultural, praticada por Carlo Ginzburg
ram problemas generalíssimos, mas ao reduzirem a esca la de com um forte diálogo com a terceira geração dos J\nnales.
observação, passaram a compreender sinais discrepantes que, Regressaremos a esse assunto antes do fim do capítulo.
em nível geral, não ~o n seguiriam explicar ou, sequer, perceber.> O problema da contextualização cultural se manifestou, a
Afinal de contas, para G iovanni Levi, o verdadeiro problema não partir dos anos 1990, por parte dos micro-h istoriadores sociais,
é de análise de um con teúdo específico, mas de procedimento, conforme a dura crítica que Edoardo Grendi faz ao trabalho de
isto é, demonstrar como pequenos fatos aparentemente insignifi- Carlo Ginzburg, em seu artigo Repensar a Micro-História.
can tes encontram-se repletos de significados históricos comple-
As proposições teóricas c metodológicas de Carlo
xos.6Todavia, por não ser uma escola, a micro-história não possui
Ginzburg- com sua tensão camcterística e sua for-
um conjun to teórico-metodológico próprio e único, o que abriu
mulação sugestivamente alternativa - sempre me
espaço para variados tipos de pesqu isas em que a redução de es- pareceram estar estreitamente•ligadas ao seu traba-
cala de observação se tornou um elemento paradigmático. Mas lho próprio, que se inscreve inteiramente no proble-
isso não se deu de forma pacífica. ma histórico e historiográfico das formas culturais.
Somos sensíveis, nele, à afirmação inequívoca de
3 C RIBAUDI, !VIau rizio. A longa marcha da ~1icro-I-I islória: da políti- u ma rigorosa honestidade exegética: a coerência
ca il estética? In: Vcndrame, Maíra I.; Karshurg, Alexandre e Moreira,
consigo mesmo c a experiência de autorrevelação.
Paulo Roberto S. Ensaios de Micro-História, Trajetórias e lmigraçc1o. 1"
cd. São Leopoldo: Ed. Unisinos. 20 16, p. 34.
4 Idem., p. 36. 7 CERUITI, Simona. "Microhistory: social rcl<Jtions versus cultural
5 Lfo:VI, Ciovanni. "O pequeno, o grande e o pequeno. Entrcvistn com models? Some reflections on stereOI)1 pcs aud historical practiccs".
Ciovanni l.cvi". Revista Brasileira de História. Vol: 37, n. 74, 20 17, p. A. M. Castrén, M. Lonkila ct M. Peltoncn (éd.). Between Sociology
170. and History. Essays on J'vlicrohistor)', Collective Action, anel Nation-
6 lbidem,p. 180. Buílding. SKS. Helsinki. 2004, p. 20-24.
204 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 205

:\ão acredito, em compensação, que Ginzburg te- ção trivial, a análise dos dois modelos de contextualização basea-
nha estado pessoalmente interessado na abordagem
va-se na experiência dos próprios atores (conforme as condições
anaiftica das mediações com o social, com as rela-
ele reconstituição elo pesquisador). A ação dos atores- sua liber-
ções intcrpessoais: seu discurso permanece interno
dade - era essencialmente individualizada na manipulação das
i\s formas expressivas, à relação complexa en tre cul-
lma de el ite c cultura popular, à aná lise e à recons- normas sociais.11
trução das articulações entre formas c aquelas que Nosso intuito não é discorrer cletalhadamente sobre o de-
e las engendram.s senvolvimento histórico de um procedimento metodológico ou
de uma corrente historiográfica. Para um leitor bem atento aos
AnaJisando esta crítica proferida por C rendi de uma maneira caminhos percorridos pela micro-história italiana, não é difícil
holística percebe-se que, de alguma maneira, ele busca estabe- afirmar que as pesquisas de Carlo Ginzburg apresentam a análi-
lecer um tipo de ortodoxia, postulando os métodos legítimos da se circunscrita dos indícios como um paradigma epistemológico.
micro-história: uma análise das experiências de grupos ou atores E mais que isso: o historiador italiano é o autor do paradigma
sociais partindo de uma leitura quantitativa e qualitativa de fontes ind iciário, que fundam enta a necessidade analítica de decifrar
cartoriais, observandó principalmente as redes de interdependên- certos indícios, aparentemente irrelevantes, para que possamos
cia que permitem uma visualização mais completa elo contexto.9 interpretar os múltiplos sina is que forn ecem acesso à essência
Entretanto, não são todos os micro-historiadores que con- do problema histórico. Para os Iins estabelecidos aqui, resta dizer
cordam com essa crítica de Grendi. Segundo Cerutti, as diferen- que Ginzburg tem sua perspec tiva analítica questionada dentro
ças entre a contextualização social e a contextua lização cultural da própria corrente que representa: mesmo acolhido no Brasil,
como práticas de pesquisa da microstoria não possuem ambições Argentina e E UA como sinôn imo de micro-história ita liana,
investigativas díspares. A decisão ele restringir o campo de obser- G inzburg seria mais um elemento marginal dentro dessa verten-
vação e pesquisar meciculosamente os protagonistas individuais te, segundo as críticas proferidas por Grendi e Lcvi.
elos processos históricos era unw reação con tra a arrog~ncia elo Nosso objetivo parte então de uma pe!spectiva diferente
senso comum histórico que ditava, do exterior, as cronologias, os daquela ele Edoarclo Grendi, apesar de concorclarltOS eotn ele
quadros de referência e as categorias analíticas, criando, frequen- que a micro-história de Ginzburg é sui generis. Acreditamos,
temente, anacronismos signilicativos.10 Para fugir dessa concep- entretanto, que sua especificidade no contextp mais amplo da
microstoria italiana produziu microanálises ainda mais radicais
8 GRENDI, Edoardo. "Repensar a Micro-História". In: Revel, Jacques.
fogos de Escalas: a experiências da microanálise. Rio de Janeiro: e mais globais do aquelas de seus colegas italianos. E com o in-
EdFGV. 1998. tni to ele demostrar nossa hipótese, seguiremos um caminho di-
9 GREND1, Edoardo. "Microanálise e História Social". lu: 1\LMEJDA,
Carla e OLIVEIRA, Mônica . Exercícios de micro-história. Rio de
Janeiro: EdFGV, 2009, p. 19-38. l i CERUTTI, Sirnona. ":-.Jormcs et pratiques, ou de la légitimilé de leur
lO CERUITI, Simona . .VIicrohistory: social relations I'Crsus cu ltural mo- opposilion". Les formes de l'cxpéríence. In: LEPETIT, Bernard. Une
deis, op. cit., p. 20. aulre histoire soeia/e. Paris: Albin Michel. 1995.
206 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias

ferente daquele que usualmente é seguido pelos divulgadores da


obra ele Ginzb urg: não nos preocuparemos aqui se o autor ele o.~
Andarilhos do Bem segu iu ou não os pressupostos metodológicos
(ela História Social c da Antropologia) defendidos por C rendi em Microstoria e História Global
seu artigo seminal publicado em 1977, 11 ou se ele faz uso de mé-
todos similares aos demais micro-historiadores. Nosso objetivo
nessa parte do livro será analisar a micro-história ele Ginzburg c
suas peculiaridades a partir do debate ela micro-história com os
pressupostos da chamada História Global.
l.
Nos últimos anos, vários historiadores ligados às perspectivas
da micro-história italiana empenharam-se em oferecer respostas
para algumas limitações epistemológicas da História Global, so-
bretudo a sua tendência generalizante e pouco empírica. ' Desta
feita, antes de analisa rmos a leitura e as respostas sui generis
produzidas por Ginzburg a essa questão, faremos um pequeno
desvio de trajetória para exa minarmos como outros "micro-histo-
riadores" se colocaram nesse debate. Como a discussão é ampla,
observaremos, a títu lo ele exemplo, algumas análises produzidas

Para um debate mais recente sobre essas questões indicamos a leitura


do volume 242 (supplement 14) da Revista Past 6 Present de 20 19.
Nele encontramos 11 rtigos de Ciovanni Lcvi, Christian De Vito,
Romain Bertancl, jcrocn Ouindan, dentre outros. !\ discussão nesse
11úmero é um pouco diferente daquela que proppmos aqui: parte de
uma perspectiva de crise de um tipo de História ~loba! e inserem o
debate com a micro-história como uma maneira de solucionar essa cri-
se. Evidente que a crise apontada não está relacionada com a história
cruzada ou corn a história conectada. A crise em questão seria daqueles
trabalhos de História Globa l pouco empíricos e generalizantes, bem
como daqueles trabalhos de cunho ideológicos e, por que não, impe-
rialistas e etnoeênlricas. Sobre o interesse na interação entre as duas
perspecli\'aS, ver também o número 1\tlicro-analyse et histoire globo/e
12 CRE 101, Edoardo. Microanálise e História Social, op. cit. publicado, em 2018, na revista Annales. Histoire, Sciences Sociale~.
208 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Bcrbcrt Dias A forma e o tempo 209

por Ciovanni Levi, Simona Cerutti, Angelo Torre, Francesca Mesmo com o sucesso que as histórias ele matriz braudelia-
Trivellato e Christian De Vi to acerca do tema. nas1 conheceram ainda nos anos 1940, é justo afirmar que foi
De acordo com Sebastian Conrad, a história global nasceu somente com o advento ela mais recente globalização, que os
da convicção que os instrumentos analíticos tradicionais utilizados historiadores começaram a questionar os parâmetros espaciais da
pelos historiadores para estudar o passado já não eram suficiente- sua disciplina, reabilitando o espaço enquanto categoria teóri-
mente adequados. Segundo ele, um dos problemas da história c ca .' A partir de então, a questão da escala adquiriu particular
elas ciências sociais enquanto disciplinas é o seu nacionalismo me- importância nesse campo de estuclo. 6 Ao invés de se basearem
todológico, ou seja, estão fundamentadas no estado nação como a em territorialidades fixas, os historiadores dessa vertente buscam
unidade de análise fundamental. Nesse sentido, para esse autor, o transcender territorialidades demarcaclas, conectando lugares elo
con hecimento do mundo teria sido pré-estruturado, tanto discur- interior de uma nação com outros níveis, supranacionais, explo-
siva como institucionalmente, de fo rma a obscurecer o papel das rando, desta feita, espaços que se sob rcpõem. 7
relações de intercâmb io e conexão para além ela escala nacional.2 Uma das estratégias mais popu lares para ultrapassar o con-
Outro prob lema identificado por C onrad, que talvez justi- finamento analítico elo estado-nação tem sido trabalhar dentro
ficaria uma história de contornos globais, é o fato de que as mo- de espaços mais extensos, supranaciona is, que estabelecem a
dernas disciplinas acadêmicas tenham nascido profundamente mediação entre as condições locais e as grandes constelações
eurocên tricas, colocando em primeiro plano os progressos eu ro- globais. Nesse contexto, os espaços intera tivos passaram para o
peus. Do ponto de vista metodológico, ao impor em ca tegorias primeiro plano; espaços esses que fa cilitavam as trocas entre dife-
que eram próprias ela Europa ao passado de todos os ou tros paí- rentes regimes políticos, até mesmo a grandes distâncias, por um
ses, as discipl inas modernas acabaram por transformar as demais longo período de tempo.s
sociedades em colônias europeias.3 O propósito ela história global É importante ressaltar que para a história global, ao contrá-
seria ent-Jo um apelo à superação dessa fragmentação, no intuito rio da micro-história, nenhuma escala ou unidade é intrinseca-
de alcançar um conl.ccimento mais compreensivo das conexões mente superior. Não existe uma unidade que.seja por definição
e interações que construíram o mundo moderno. E para isso, mais adequada que as outras. Portanto se as diferentes unidades
esse paradigma direcionaria seu foco para as questões da mobili- se complementam, podemos extrair a conclusão de que as pers-
clacle, elo intercâmbio, e dos processos que transcendem as fron-
teiras e as barreiras impostas pela icleia ele estado-nação, fazendo 4 É importante ressal tar, contudo, que esse sucesso .de um modelo ins-
pirado nas obras de Fernand Braudel, não obteve o mesmo sucesso
ela circulação e do interdlmbio das coisas, das pessoas, das iclcias dentre os historiadores anglófonos que se autodetinem como "glo-
e instituições os seus principais ob jetos de análise. ba is". Podemos dizer que essa inAuência esteve mais restrita à Europa
continental.
5 CONRAD, Sebastian, oJ>. cít., p. 141.
2 COI'\RAD, Sebastian. O que é História Global. I" ecl. Lisbo<l: Edições 6 Jbidem, p. 142.
70, 2019, p. 13. 7 lbídem, p. 149.
3 lde111., p. H. 8 lbídem, p. 144.
210 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A fom1a e o tempo 2 11

pectivas globa is não J:Odem tomar qualquer unidade por ga ran- Ao afirmar que a contraposição entre global e local não faz
tida, no sentido de componente essencial perfeita para abordar sentido, Levi argumenta que a micro-história, mesmo quando
um mundo cada vez mais integrado. Ao invés disso, elas necessi- faz uso de um lugar, de uma situação individual ou de um acon-
tam estar atentas aos processos que geram coesão e impulsionam tecimen to singular, procura sempre identificar relevâncias para
a própria existência de determinados lugares e regiões. 9 uma leitura de ampla dimensão.11 Além disso, ele também ar-
É importante lembrar, contudo, que desde os anos 1970, gu menta que apesar de tentar trazer respostas para a sua época,
abordagens como a história das mentalidades elos Annales, a a história global mais típica não traz inovações metodológicas
micro-história italiana, ela história vista ele baixo, os estudos fe- relevantes: ora se aproxima de perspectivas braudelianas e am-
ministas e ele gênero, assim como a linguistic tum , fragilizaram plamente generalizantes, ora cria sistemas explicativos em con-
as narrativas macro-históricas e desafiaram também as premissas figurações bastante teleológicas. Em suma, não se trata de uma
eurocêntricas. Além disso, devido à questão ela escala enquanto efetiva novidade, cuja intensidade do debate não se justificaria.
instrumento analftico, autores ligados à micro-história italiana Para além desses problemas ele ordem epistemológicos, Levi
têm entrado no debate mais recente acerca das potencialidades c afirma que a adoção ele uma perspectiva global apresenta difi-
limites ela história global, como veremos a partir ele agora. culdades de ordem prática: além de dominar inúmeras línguas,
Várias respostas foram dadas ao problema da relação entre o historiador deve consul tar inúmeros arquivos elos vários povos
o globa l e o local c, talvez, a mais enfática tenha sido aquela cuja conexão ele analisa, o que demandaria muito tempo e muitos
aprcsentad<J por Giovanni Levi. De acordo com ele, a história do recursos. Caso queiramos uma perspectiva global relevante, afir-
global surge em um período de intensa globalização socioeconô- ma Levi, precisamos devolver a palavra para todas as partes que
mica e tem origens contextuais e de exigências muito diferentes entram em conexão no campo que o historiador quer reconstruir.
da micro-história. O quadro político e cultural em que nasceu a Para ele, uma história global só faria sentido se fosse realizada
Global IJistory é aquele da crise do estado nação e da crítica ao como "história em partes iguais", como construída por Romain
curoccntrismo que surgem a partir da queda do muro de Berlim Bertrand: 12 uma história em busca de conexões,. de trocas e de in-
e do fim da URSS; do crescimento das desigualdades, da dimen- fluências; construída a partir ele uma documentação que dê voz
são das ondas rnigrató~ias da mobilidade da população em geral, equitativamente a culturas e sociedade em análise pelo historia-
da relevânc ia de todas as realidades antes consideradas sem histó- dorY Em suma, aquilo que veio a ser conhecida c;,omo história co-
ria. A história globa l surge na busca pela lógica das relações e das nectada . Para Levi, seria legítima uma história corectada que não
trocas que foram elementos ele uma progressiva e compli cada focasse em apenas um ponto no espaço, mas em redes de fatos e de
conexão, a qual configurou o atual mundo globalizaclo. 10

9 Ibidem, p. 163. 11 lbidem,p.2l.


1O I .EVI, G iovanni. "Micro-história e História Global". In: VENDRA~~ E. 12 BERTRAND, Roma in. L'J/isloire cl (Htrls égales. Hécits d 'u ne rencontre,
MMra & KARS13URG, Alexandre. Micro-História: um método em Orient-Occidenl (XVIe-XVIIe siecle). Paris: l.c Scuil, 20 1I.
lransfonnaçcio. 1• ed. São Paulo: Letra & Voz, 2020, p. 20. 13 LEVI, Giovanni. l'vficro-história e História Global, op. cil ., p. 25.
212 Deivy Ferreira Carneiro c Daniel Rezende Berbert Dias A forma c o tempo 213

lugares de relações que iluminam as conexões realmente signifi- Ainda segundo Torre, muitos autores 16 fizeram proposta~
cativas, gerando assim uma interpretação extremamente cautelosa de urna mediação possível entre historiografias que dominaram
em relação aos conte.xtos imperialistas nos quais essa moda global os últimos quarenta anos: uma historiografia do micro, as vezes
nasceu, que no fundo não fazem mais que ressaltar a superiorida- associada a uma historiografia de relações cotidianas ou de pe-
de política, econômica e cultural do Ocidente. quena escala; e um estudo da macro história, ligada a uma escala
Portanto, para Giovanni Levi, a produção de uma história planetária. Propuseram então uma "micro-história global" com
global seria relevante somente se concentrada no caráter global o intuito de unir áreas que, após um olhar mínimo cuidadoso,
do micro e elo macro, visto que a contraposição entre global c são realmente distantes e, se não inconcil iáveis, pelo menos he-
local não faz o menor sentido: a micro-história, ao reduzir a es- terogêneas.1i A crítica de Torre a algumas dessas respostas é a
cala de observação, identifica sempre leituras amplas c capa7.es propensão que várias delas possuem de ver a polaridade entre
de questionar as visões m<Jcro estabelecidas, evidenc iando o que local e global como algo análogo ao micro e ao macro; como
não seria imediatamente visível sem o uso de uma len te ele au- uma norma implícita segundo a qual o local seria o micro e o
mento.H Para concluir, é importante destacar que uma crítica global seria o macro. Essa configuração resultaria em erros bá-
possível ao posicionamento de Levi no debate é que nem sem- sicos dentro da proposta ela micro-históri a ital iana: o micro não
pre o ob jeto de suas críticas é preciso: quais autores e trabalhos é igual ao local. Além disso, o micro e o loca l não são objetos
exempl ificar iam essa história global imperialista e neolibcral? "pequenos", assim como o global e o macro não são necessa-
Para ele, a história conectada seria uma vertente da história glo- riamente o "grande". [sso porque nenhum desses conceitos têm
bal ou seria outra coisa? um espaço intrínseco, mas são sempre definidos de acordo com
Já Angelo Torre, em um recente artigo" indaga-se sobre os a perspectiva da observação.
possíveis limites da história local inserida na discussão do para- Para compreendermos o "local" ou o "global" seria impres-
digma da história global. Criticando a equação que relacionou cindível a introdução de uma dimensão espacial. Para simplifi-
local c global numa analogia similar àquela entre micro e macro,
ele reconstruiu as implicações metodológicas da denominada 16 A título de exemplo vcr:TRIVELLATO, F'r:mces~a. "ls There <1 Future
for ltalian Microhistory in lhe Age of Global llistol')·?". Cali{omia
"virada espacial" e examinou também as contradições de uma ltalian Studies 2, 201 1; PUTKAM, Lara. "To Study lhe fragmcnts/
anál ise metafórica do espaço. Torre percebeu que a recusa das vVhole: Microstory anel the Atlantic World". Joumal o{ Social History
expl icações cndógem1s por parte da história global lhe permitiu 39, n. 0 3, 2006, p. 615-630; TRIVELL~TO, Fmncesca. ''Un nouveau
combat pour l'histoirc au XX!e siêcle?'' ~nuales~ 1/istoire, Sciences
salientar os limites analíticos do paradigma da "circulação", so-
Sociales LXXXVI, n. 0 2, 20 15, p. 333-343; ROBISHEAUX, Thomas.
bre o qual esta se fLII~cla . "Microhistory and thc Historical lm:1ginalion: New F'rontiers". journal
o{ ,\iledieval anel Early Modem Studies, 47, 11. 0 I, 2017, p. 1-6; DE
14 Ibidem, p. 21. VfVO, F'ilippo. "Prospect or Refuge? ::VIicroh istory, ll istory on the
15 TORRI!:, Angelo. "Micro/macro: l local!globa l? F.l problcm<1 de l<1 lo- Large Scale. A Response". Cultural and Social Histor)' 7, n. 0 3, 2010,
0
cn lidad en una historia cspacializacla". Historia Crítica n. 69, 2018, p. p. 387-397.
37-67. 17 TORRE, Angelo. "Micro/macro: l local/global, op. cil. , p. 38.
2 14 DeiV)' Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Bcrbert Dias A forma c o tempo 215

car, ~l<me entende que o global não é a soma dos infinitos locais as sociedades locais com diferentes poderes jurisdicionais. 20 E é
dos quais é composto espacialmente, mas algo mais complexo, em termos de jurisdição que os atores sociais são definidos e se
com a capacidade de "capturar" cada um deles. Da mesma for- definem, e a imbricação entre as diferentes jurisdições é o aspec-
ma, o local não é o global reduzido a um mínimo, todavia tem to-chave que apenas uma análise topográfica consegue destacar.
seu próprio ponto de vista da realidade; um enfoque êmico, ou Somente essa perspectiva poderia, de acordo com Torre, colocar
seja, construído com práticas e categorias que pertencem a quem o historiador em contato com essas redes ele relacionamentos e
as usa. 16 O ideal então seria conectar espaços específicos com as os vários modos de produção de localidades. ·esse sentido, a
categorias próprias dos atores, que podemos observar na docu- análise da ação (local) seria o principal meio ele tornar explícitos
mentação histórica, permitindo assim que alcancemos resulta- e compreensíveis muitos aspectos elas sociedades globais, c acima
dos impensáveis com outras perspectivas. de tudo, a reprodução constante ele suas diferenças específi cas.
'Iornemos como exemplo o estudo das relações mercantis Ou se ja, a produção ela cultura não é apenas circulação e conta-
em escala global. "lorre considera que é apenas com o reconhe- minação, mas sobretudo- e de forma inegável- sclcção. 21
cimen to daqu ilo que acompanha as atividades comerciais e de Buscando uma abordagem talvez complementar a de
transporte que nos fará capazes de perceber como as atividades Angelo Torre, Simona Cerutti, uma historiadora social ela ltália
comerciais l:êm uma ligação próxima e necessária com a nature- moderna, e lsabelle Grangaucl, uma estudiosa da África do l\orte
za e a forma das relações locais. Esse diagnóstico, no entan to, re- otomana, revitalizaram mais uma forma de história comparada.22
quer uma abordagem metodológica êmica. Sabemos de fato que Elas focaram naquilo que acreditam ser a principal limitação ela
as sociedades loc lis são frágeis, que correm constante risco de comparação - o que limitaria enormemente a possibilidade de
ruptura c dcscont;nuidade. Seus diferentes segmentos (relações avanços metodológicos na constmção de Histórias Globais: a su-
de parentesco, etc.) podem ser desfeitas a qualquer momento por posta necessidade de flexibilizar os objetos de comparação, des-
conAito de interesses (bens comuns, gestão de recursos orgâni- vinculando-os de suas especificidades contingentes, reduzindo
cos, distribuição de recursos políticos).19
O reconhecimento dessa possibilidade de fragmentação 20 TORRE, Angelo. "Micro/macro: llocal/global?, op. cit., p. 56. Vertam-
permite que leiamos as fontes dos diferentes segmentos sociais bém: TORRE, Angelo. "Politics Cloaked in Worship. Statc, Church
c das diversas instituições locais como uma forma de afirmação, and Local Power in Piedmont 1570-1770". Pctst and Present, 134, 1992,
p. 42-92 . •
de busca por legitimidade ou reconhecimento, quando não ver-
21 TORRE, Angelo. "Micro/macro: l local/glob;tl?, op. cit., p. 58. Para
dadeiras e próprias estratégias de conquista e gestão elo poder. A maiores detalhes acerca de toda essa discussfio, ver também: TORRE,
existência ele conAitos também é um elemento que comun ica Angelo. Luoghi. La produzione di località in età moclenw e contempo·
ranea . .Vlilano: Donzelli, 20 11.
22 CERUTTI, Simona c G RA)JGAUD, lsRbelle. "Sources anel
18 Ibidem, p. 39. Contextualizations: Comparing Eighleenlh-Century 1\'orlh African
19 Ver por exemplo: R.ACCIO, Osvaldo. Faide e parente/e: lo Stato geno· and Western Europcan lnstitutions". Comparative Studies in Society
rese visto dal/a Fontanabuona. Turín: Einaudi, 1990. and History. 59(1), 2017, p. 5- 33.
216 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 217

assim os casos a um conjunto de dados homogêneos o suficiente plornáticos; essas instituições e os indivíduos que as utilizaram
para serem comparados. Com isso em mente, propuseram uma apresentavam preocupações semelhantes, configuradas de for-
abordagem comparativa focada em fontes ao invés de objetos, ma comparável, em relação à sucessão e sua conexão com o pa-
considerando a documentação examinada em termos de ações rentesco. Os termos <<OS pobres>>, «os estrangeiros», «direitos de
dotadas de inlencionalidade. i\ssim como em Torre, temos aqui propriedade» e «linhagem» possuíam significados e implicações
uma análise êmica. semelhantes em ambas as instituições. O não reconhecimento
Desafiando diretamente tanto estudiosos pós-coloniais disso representava um blind spot significativo entre as pesquisas
quanto aqueles defensores da história conectada, Cerutti e anteriores sobre o tema, o que resultou na visão de que o Bayt
Grangaud argumentam a possibilidade de construir compara- al-mâl fosse meramente uma agência de gestão de bens sem her-
ções a partir da análise ele fontes primárias produzidas por ins- deiros e que o droit d'aubaine fosse simplesmente um mecanis-
tituições e sociedade~ independentes e culturalmente diferentes mo para punir estrangei ros com propriedades em Turim. Essa
qttC não apresentaram qualquer processo ele convergência, mas proximidade entre as duas instituições foi o que possibilitou a
que enfrentaram problemas semelhantes, que no caso analisa- intercessão de relações tão densas dentro desse espaço no perío-
do, era o de proteger as propriedades de estrangeiros influentes do moderno. 23
em ambas as comunidades. Elas compararam então duas insti- Nessa abordagem de Cerutti c Grangaud, as comparações
tuições: o chamado droit d'aubaine e o Bayt al-mâl, essa última foram fundamentadas nas práticas, nas interações e nos procedi-
uma instituição fiscal islâmica tradicional encontrada em vários mentos de legitimação e de atribuição de significado fornecidos
governos da era otomana, cujas prerrogativas foram tipicamen- pelos próprios atores sociais em suas ações. Aplicada na análise
te reduzidas a gerenciar propriedades sem herdeiros e enterrar de instituições, essa abordagem pragmática revela como suas ati-
os pobres. Em teoria, ambos os direitos pertencem a diferentes vidades resultam das tensões entre as demandas expressas por
campos culturais e históricos. Ko entanto, uma análise cuida- diferentes grupos sociais, bem como das lógicas de governança,
dosa elas fontes produzidas por cada uma das duas instituições de consenso e de defesa corporativa que pro~avelmente defini-
ajudou a revelar os fundamentos dessas construções "culturais", ram suas fisionomias institucionais. Em suma, essa. abordagem
produzindo assim novos contextos nos quais ambas podem ser pragmática abriu um amplo caminho para a análise processual e
situadas - lançando luz sobre o processo de stla construção c sua generativa da formação de instituições estatais. da modernidade
comodidade de comparação. em sociedades culturalmente bastante diferentes. 24
Um exame altamente detalhado que respeitou completa- Outro historiador preocupado em oferecer subsídios para
mente as especificidades contextuais possibilitou a compreensão uma melhor relação entre a história global e a micro-história é
elas condições de circulação e contato. As semelhanças en tre as o italiano Christian C. De Vito. Seus últimos trabalhos tratam
atividndes do Bctyt al-mâl e do droit d'aubaine não eram sim-
plesmen te o produto de interações decorrentes de encontros di- 23 Ibidem, p. 32.
24 Ibidem, p. 32.
218 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma c o tempo 219

da relação enlre as práticas punitivas e as práticas imperiais da gar deve ser observada como resultante de dinâmicas relacionais,
monarquia espanhola e das repúblicas latino-americanas nos tanto internas quanto externas às suas fronteiras geográficas. 26
séculos XVIII e XIXI. Sem nenhum exagero podemos dizer De Vito inova na maneira de conccilualizar algo que, em
que elabora trabalhos que tentam conectar a perspectiva local nossa visão já está presente nos trabalhos de Cinzburg (comove-
e global, mediados pela ideia da conexão entre espacialidade e remos no próximo capítulo) c de Levi, por mais que ambos não
micro-história, desenvolvida inicialmente por Edoardo Grendi e tivessem, nos anos 1970 e 1980 preocupados com essa relação ela
Angelo 1orre. Observamos então nas pesquisas de De Vito uma micro-história com uma história de características globais. Através
micro-história que aborda a dialética que existe entre as singula- de sua história micro-espacial, De Vito observa a escala corno uma
ridades de cada lugar e as conexões produzidas entre os lugares construção social e um ob jeto de pesquisa histórica, criticando
através da circulação de indivíduos, de objetos, e de ideias que o uso do conceito de escala como fcrrament~1 analítica. I\a ver-
representam as ações de indivíduos e grupos sociais.H dade, seu argumento é que uma abordagem escalar esscncializa
De Vilo clcfcnclc a possibilidade de tratar, através de in- precisamente as divisões que a combin<lÇão da micro-história e da
vestigações parcialmente circunscritas, questões históricas fun - história global deveria superar, e obstru i formas mais produtivas
damentais, e reconstruir as dinâmicas concretas ele processos de pensar sobre a criação ele processos históricos. A perspectiva
históricos que seriam abstratos, colocando no centro ela análise micro-espacial conceitua processos históricos como resultado de
a atuação dos protagonistas históricos, sem omitir as trocas e inte- múltiplas práticas sociais ao longo do tempo e em locais singula-
rações de fenômenos históricos ocorridos em lugares específicos res, mas conectados. Assim, oferece alternativas aos usos binários
com o exterior. "o micro" e "macro" - local/global e agência/esb·utura- invocados
Entretanto, para ele, a partir dessas questões, o foco microa- por historiadores globais, ao mesmo tempo em que busca superar
nalítico deve ser expandido para uma abordagem mais aberta a oposição entre análises de curto e longo prazo.27
à dimensão espacial dos objetos históricos e deve fazer referên- As noções ele lugar e local mudam completamente a par-
cia explícita a produção da localidade, ou seja, a natureza so- tir dessa leitura. O local passa a ser visto e co!npreendiclo corno
cialmente c historicamente construída dos lugares. Cada lugar um espaço de interação, mesmo em uma pcrspecliva de uma
não deveria ser visto como uma ilha isolada nem simplesmente ampla área ele investigação (global, inclusive). Teríamos então
como espaço neutro que serviria apenas coino pano de fundo uma abordagem microanalítica que investiga a~ conexões e rela-
de fenômenos que acontecem no abstrato. Deve ser visto como ções entre lugares, especialmente aqueles marcados pelas trocas
uma espécie de laboratório da realidade histórica situada no cru- comerciais e pelas migrações. O foco da pesqu isa se deslocaria
:.:amento entre múltiplas conexões. A singularidade ele cada lu- para as redes sociais dos protagonistas históricos (a lgo não muito

25 DE VITO. Christian C. Por uma micro-história translocal. In: 26 Ibidem, p. I 04.


VENDRAME, Marra. KARSBURC, Alexandre. 1'vlicro-hist6ria, um 27 DE VJTO. Christian C. llistory Without Sca lc: the micro-spatial pers-
método em lrallS{omwçcio. l " ed. São Paulo: Editora Letra & Voz, 2020. pective. Past 6 Presenl, Supplemenl 14,2019, p. 348.
220 Deivy Ferreira Carneiro c Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 221

diferente da perspectiva de Giovanni Levi), rnas conjugadas, ao possibilidade seria o estudo ela circulação ele objetos e ideias; as
mesmo tempo, com a especificidade de cada lugar e as múltiplas relações sociais e representações culturais ligadas à produção,
conexões entre eles. transporte, distribuição e consumo de determinados produtos. 30
Segundo De Vito, por mais que os historiadores que po- Contudo, estudos funda mentados nessa perspectiva elevem
deríamos classificar como pertencentes à segunda geração da tomar um cuidado especial: precisariam reforçar as análises elas
micro-história tenham construído análises com uma cxplrcita diferenças entre os diferentes tipos de conexões, e entre as distin-
sensibilidade ao tema da cspacialidade (fundamentada no reco- ções entre lugares ligados, além do desequilíbrio de poder que
nhecimento da dupla descontinuidade, no espaço e no tempo, caracterizam esses espaços ele atores sociais que entram em rela-
e çla evolução cega de uma historiografia não determ in ística), 28 ção cnlre si. Para superar o probl ema o autor oferece o conceito
eles centraram-se exclusivamen te em circulações de curta dis- ele translocalidade, sua original contribuição para o debate mi-
tância. Por outro lado, os estudos microanalílicos relacionados cro-história/história gl obaI.
com a história conec tada deram prioridade à mobilidade de lon- A perspectiva translocal que aborda as diferenças e os equi-
ga distância c principalmente marítima, tal como os próprios tra- líbrios enh·e lugares, atores e redes sociais, conjuga-se bem com
balhos ele De Vi to e as pesquisas de Francesca Trivellato, quere- a epistemologia micro-histórica que coloca no centro da análise
constrói vidas globais, percursos individuais caracterizados pela as descontinuidades. Ao mesmo tempo, aumenta a sensibilidade
mobilidade entre várias partes do mundo como o campo mais espacial da micro-história, na medida em que evidencia a neces-
favoráve l de pesqu isas.29 sidade de estudar, ele maneira integrada, as ligações ele curta,
Christian De Vi to aponta também algumas estratégias utili- média de longa distância, dentro ou através de fronteiras políti-
zadas para a montagem daquilo que ele chama de micro-histórias cas, administrativas linguísticas e culturais. O enfoque fornecido
globa is. A primeira delas seria a construção de "vidas globa is", pela translocaliclade permitiria a discutir a separação e a união
biografias (comerciantes, missionários, fun cionários ele Estados, entre o global e o local, mediada por uma anál isc detalhada elas
piratas, marinhei ros, etc.) caracterizadas pela mobilidade en tre relações entre lugares e en tre grupos de indiví~u os/ 1
várias partes do mundo. Essa seria, talvez o campo mais favorável A respeito dos trabalhos do próprio De Vito, poqeríamos di-
para esse tipo de pesquisa. Além das biografias globais, uma outra zer que ele mesmo produziu uma micro-história translocal elo
processo ele reforma psiquiátrica italiana, analjsanclo várias Io-
caliclaelcs em vários países diferentes. Percebeu que cada lugar é
28 C RIBAUDI, .VIaurizio. Des micro-méchanismcs aux configurations
globales: causalité et temporalité historiques dans les formes d'évolu- excepcionalmente normal revelando assim a superfície normal-
tion ct de l'administration française au X!Xe sicclc. In: Schlumbolun, mente clescontinuada ela história. Observou também que a expc-
). (org.) Mikrogeschichte, macrogeschichte: complementar oder inkom-
mensurabel? Cottingen: \Val lstein Verlag, 1998, p. 83-128.
29 TRIVELLJ\TO, francesc<l. Familiaridade entre eslrcmhos: a diâspom 30 DE VlTO. Christian C. Por uma micro-história tran slocal, op. cil, p.
se{ardita, Lh·omo e o comércio transculturallw Idade .\ lodema. 1• cd. 107.
Lisboa: Edições 70, 2020. 31 Ibidem, p. I09.
222 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo ·'·' \

riência dos reclusos deportados, assim como as funções atribuí sincrônicas típicas da micro-história para a realizar análises diacrô-
das pelas autoridades coloniais eram muito distintas dependendo nicas típicas da história global, sem sacrificar, contudo, o conheci-
dos destinos finais. 32 mento de objetos singulares em troca ele generalizações. H
Os contextos seriam para ele as zonas de contato, as cone· Trivellato argumenta que a abordagem mais usual para res-
xões uniriam, de fato, os múltiplos contextos que se relacionam: ponder essas questões são os estudos de sujeitos e grupos- abor-
seria útil então segu ir o rastro (O nome e o como) de indivíduos, dagens biográficas - que transpassem as fronteiras linguísticas,
grupos, ideias e objetos. f\ o caso do estudo da reforma psiquiátri- políticas e religiosas, revelando, a seu modo, o imbricamento
ca, a especificidade de um determinado serviço hospitalar como ele tradições culturais produzidas pelo contato e pelos embates
o manicômio vinha da particular origem social e geográfica elos entre diferentes sociedades que seguiram a expansão europeia a
pacien tes e dos funcionários, da circulação das ideias elas técni- partir elo século XVL'6 Ela, contudo, se pergunta se analisar essas
cas profissionais aplicadas, os percursos culturais e profissionais biografias e trajetórias ele pessoas que ci rculam seria suficiente
dos expoen tes das instituições e dos movimentos sociais ao nível para nos apropriarmos da potencial idade que a mícrostoría pode-
municipal c provinciaP 3 Concluindo, a perspectiva trans!ocal ria fornecer para análises mais globais. Segundo ela, evocando
e micro-espacial aproximaria a micro-história da história global, Dominick LaCapra,37 um perigo e um erro comum na maioria
visto que o anti-determinismo da primeira forneceria uma base dessas análises com tons biográficos é que o foco seja principal-
epistemológica da qual carece a segunda. mente na narração literária, fazendo uso de poucas fontes pri-
Já Francesca Trivellato talvez tenha sido a historiadora que márias. Se isso não bastasse, muitos desses trabalhos acabam por
mais contribuiu para uma interação entre micro-história italiana construir generalizações a partir ele contextos específicos, mani-
c história conectada. Seu livro, The Famílíaríty o{Strangers- 'fhe pulando assim as escolhas e vivências através de uma narrativa
SefJhardíc Diaspora, Liromo and Cross-Cultural Trade in the mais colorida, mais redentora elas personagens, na qual as figuras
Early 1\llodern Period.H é um dos melhores trabalhos a utilizar as do passado tenderiam a se transformar em veículos ou vocaliza-
potencialidades da micro-história para resolver problemas ou res- dores de valores contemporâneos. •
ponder questões típicas da história global. Em suma, ela argumen- Para resolver esses problemas epistemológico~, Trivellato
ta como conceber a relação analítica adequada entre as escalas propõe a apropriação de dois caminhos desenvolvidos pelos pais
micro e macro e se ?ergunta como se apropriar das abordagens da micro-história. Em primeiro lugar, a perspectiva que Giovanni
Levi desenvolveu no seu A Herança Imaterial: a s:oleta sistemática
32 DE VlTO. C hristian C. / Luoghi dela psichiatria. Firenze: Polisl<1mpa, de dados, com o intuito ele que as ações c crenças individuais pos-
20 11 ; De Vito, Christian C. Verso uma microstoria transloca l (micro-
·Spatial Il islory). Quctclemi Storicí, v. 150, n. 3, 20 15, p. 815-833. 35 TRlVELu\TO. Francesca.fs there a future for ltctliau microhistory, op.
33 Idem. cít., p. 571-611.
34 TRIVELLATO, Francesca. The Famílíaríty of Strangers - The 36 lbidem, p. 571 .
Seplwrdic Diaspora, Livomo cmd Cross-Cultuwl Trade ín tire Early 37 LaCAPRA, Dominick. llislory, Langu<1gc and Reading: \Vaiting for
Modem Períod. Ynle: Yale University Press, 2009. Crillon. The American I-fistorical Review 100(3), 1995, p. 799-828.
224 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbcrt Dias A forma c o tempo
r
sam ser colocadas em relação às ações e crenças de paren tes, vizi- alguns católicos e mesmo alguns hindus de Coa, a capital da
nhos, conhecidos e superiores. E em segundo lugar, a perspectiva Índia portuguesa. 40
que Carlo Cinzburg lança mão em vários dos seus lrabalhos: um Trivellato demonstra então, empiricamente, como a vida e
distanciamento progressivo de um texto singular, de forma a iden- as estratégias econômicas dos sefaradi tas de Livorno tinham ao
tificar ecos e filiações através de uma série de textos selecionados mesmo tempo uma dimensão global e local. Segundo ela, o lo-
que seriam relacionados a tradições culturais diversas38 - aquilo cal c o global não podem ser concebidos por meio de uma série
que o próprio Ginzburg chama ele Logosformel. de círculos concêntricos ordenados hierarquicamente, se expan-
Foi essa abordagem que ela tentou construir em seu estu- dindo do menor para o maior: as al ianças famili<Jres, a diáspora,
do de um con junto de mercadores judeus sediados na cidade o Mediterrâneo, os Oceanos Atlântico e Índico, outras comuni-
portuária de Livorno, na Toscana, e sua extensa rede comercial dades mercantis e a economia política dos estados, todos esses
construída na primeira metade do século XVHI. J\essa pesquisa, elementos se intersectam um com o outro simultanea mente. E
ela procura mais que 7cstaurar a agência de um grupo oprimido o que é mais importante, nenhum deles oferece um contexto
ou joga r .l uz a obscuras rotas comerciais. O plano de fundo de explicativo a priori. Assim, nfío importa para qual direção rume a
seu trabalho é nos apresentar o papel da cultura e elas instituições história global, pode-se dizer que persistem o problema ela defini-
na ascensão do capitaiismo comercial europeu. 39 Do micro para ção de "contexto" e qual significado que ele tinha para os atores
o macro através da análise de múltiplas conexões. do passado, refl exões típicas da primeira geração da microstoria. 41
Uma coisa interessante nessa pesquisa é que ela consegue
romper com a icleia apriorfstica de que os comerciantes judeus, 2.
sempre vulneráveis a outsiders, se tornaram bem-sucedidos devi- Analisamos cinco interpretações de como a micro-história
do a uma sol idariedade interna étnica e outros traços culturais. E pode contribuir para a produção de histórias globais. As pers-
ao fazer isso, ela se apropria do modelo de investigação exaustiva pectivas de Torre e Cerutti, como vimos, são bem específicas. A
das relações ele nehrork levada a cabo por Levi no seu estudo primeira inova ao colocar a questão da espacialidadc para uma
sobre o Piemonte. Segundo ela, os sefaraditas de Livorno, por melhor compreensão ela relação entre o local c o·global. Já a
exemplo, não estenderam sua confiança incondicional para ou- segunda, inova epistemologicamente ao permitir novas perspec-
tros sefaraditas c, certamente, também deixa·ram de fora outros tivas de aplicação da chamada história comparada, método caro
judeus (na verdade, eles podiam ser enganados por judeus). Em e fundamental à história conectada. Quanto as outras três, elas se
vez disso, eles constru fram networks dentro ele networks que com- aproximam quando afirmam que a história macro de larga escala
prcencliam numerosos parentes e correligionários, mas também que mais tende a se benefi ciar com o cli{llogo com a micro-bis-

38 TRIVF.LLATO. Francesca. Js there a {uture for Jtalian microhistory, op.


cit. p. 589. 40 Ibidem.
39 TR I VF.LI~I\'rO , l"rancesca. The f<à miliarity o(Strangers, ofJ. cit. 41 Ibidem, p. 588.
226 Oeivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A fortllll l' o 11'1111111 I I I

tória é a chamada história conectadaY As reflexões de Lcvi, De complicada conexão que prefigurou a moderna soci(!dadc glo-
Vito c Trivcllato, apesar de guardarem diferenças, possuem ou- balizada:13 !vias é verdade que ele não aponta, com a frequência
tras semelhanças interessantes de serem discutidas aqui, mesmo necessária, exemplos de pesquisas globais semelhantes à história
que brevemente. braudel iana, nem aquelas de cunho eurocêntrico e relativista.
Giovanni Levi não chegou a produzir uma pesquisa empf- Ficamos em dúvida, do ponto de vista empírico, que trabalhos
rica de fôlego na qual colocasse em diálogo e debate as perspec- são dignos de críticas.
tivas da micro-história e da história global. Suas intervenções no Já os trabalhos de De Vito e Trivcllato guardam enormes
debate são mais teóricas e talvez um pouco apologéticas, no in- semelhanças, mas algumas diferenças importantes, já que o foco
tuito de mostrar as deficiências da maior parte dos trabalhos pro- conceitual de De Vito está mu ito ligado a questão da espacia-
duzidos com o rótulo de história global, bem como de mostrar lidadc; aquilo que ele chama de translocalidade. Segundo ele,
que as questões epistemológicas discutidas pela micro-história A micro-história e a história global operam ele forma diferente.
ital ia na desde os anos 1970 continuam relevante para a historio- t\ micro-história atua no nível analítico c propõe uma visão da
grafia, mesmo para abordagens de escala macro. história que prevê descontinuidades no espaço c no tempo, e a
Sua principal preocupação é demonstrar que uma série de centralidade dos agentes históricos, suas prá ticas e suas estraté-
abordagens globais que se vende como novidade, quando muito gias. A história global é principalmente uma abordagem mcto-
apresentam semelhanças com a história braudeliana, gencrali- clológica, caracterizada por seu foco em conexões que superam
zan te e serial, pratica:la sobretudo entre os anos 1940 e 1960. No fronteiras políticas e culturais. Ao reconhecer as distintas esfe-
pior dos casos, Levi identifica que muitas das histórias globa is ras de operação da micro-história e ela história global, a história
produzidas nos EUA e na Europa, trazem no seu bojo uma abor- micro-espacial rejeita qualquer conflito do tipo ele análise (por
dagem curocêntrica, imperial, relativista, no sentido pós-mo- exemplo, micro/macro) com seu escopo espacial (por exemplo,
derno, que afastam os pesquisadores da relação direta com os locallglobal).41
arquivos. Produzem no máximo uma história macro em procura Como apontamos, De Vito afinna tamb~m que os trabalhos
de uma arqueologia das relações e das trocas entrelaçadas numa clássicos de Lcvi (A Ilerança Imaterial) c ele Ginzbu.rg (O queijo
e os vermes) constroem um olhar detalhado das descontinuidades
42 Esse rótulo t;llvez se aplique a estudos focados é m fenômenos selecio- e rupturas do processo histórico, e a não previsibilidade da mu-
nados, abrangendo vasta área através de fronte iras religiosas, políticas, dança social, permite uma comprcensã0 mais realista elas expe-
lingufsticas ou econômicas e que, na maior parte das vezes, <ldOlilm
uma escala macro de análise. Além disso, a história conectada, em seus riências históricas. Segundo ele, contudo, esses dois pesquisadores
trab<llhos de melhor qualidade, questiona questões sobre o relativismo pouco contribuíram para o debate acerca da espacialidade e das
e o cu rocentrismo, buscando incorpo rar a perspectiva das sociedades possíveis relações entre história global e micro-história. Tal fa to é
uão ocide11lais. ;\ história conectada, ao modo praticado pelo gr;mde
histori<~dor indiano San jay Subrahmanyam, embora sem uma discus-
são direl<l sobre a micro-história, aponta então para convergências sin- 43 LEVI, G iovanni. J'vlicro·hist6ria e 1/istória Global, op. cit., p. 22.
crônicas e comparações de evoluções de longn duração no tempo. 44 DE VITO. Christian G.l-li.story Without Scale, OfJ. cit., p. 349.
228 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbcrt Dias A forma c o tempo

evidente por si só, visto que as preocupações das microanálises que cuidadosa de como justapor as unidades de análise das micro
C inzburg e Levi, produziram nos anos 1970 e 1980, não tinham e das macro-histórias em comparações no espaço e no tempo.
uma ainda inexistente história global como alvo e de alguma ma- Nesse sentido, as críticas de Grendi não se justificari::~m.
neira nasceram críticas as perspectivas braudelianas de História.
E é aqui que as perspectivas de De Vito e Trivellato se afas-
tam. Para além de tudo que falamos a respeito da interpretação
"conectada" realizada por Francesca Trivellato, podemos dizer
que ela acredita, mais do que De Vito, que tanto Ginzburg quan-
to Levi consegu iram nos legar um arrazoado com pleto de como
reca pturar essa inter-relação entre o local e o global. Ela argu-
menta que tanto a perspectiva microanalítica ele Levi (a coleta
sistemática de fo ntes e a construção de um robusto banco de
dados, como o intuito ele colocar em relação as ações e crenças
individuais) quanto a de Ginzburg (como veremos, uma leitura
fil ológica de fontes e uma análise dos ecos de icleias, conceitos
c fi liações que seriam relacionada a tradições cultura is diversas),
podem ser aplicadas eficientemente na escrita da micro-história
numa escala global, isto é, quando o macro também envolve um
espaço geográfico translocai Y
A partir ele agora o foco da nossa discussão será mostrar que
a contribuição de Car:o Ginzburg a esse debate é extremamente
profícua e tem muito a oferecer. Segundo o próprio, um caso
singular analisado em profundidade será suficiente para provi-
denciar a base para comparações extensivas. E como afi rmou
Trivellato, "poucos estudos empíricos escritos-por micro-historia-
dores italianos assumem expectativas tão amplas".46 Assim vere-
mos que Ginzburg entrega ao debate aqu ilo que promete: uma
micro-história que pode capturar o macrocosmo e uma leitura

4; 1'RIVELLATO. Francesca. ls there a {uture {or ltalianmicrohislory, op.


cit., p. 588.
46 ldem.
Perspectivismo: a história do
mundo de Carlo Ginzburg

1.
Como dissemos na introdução da terceira parte do livro,
o objetivo desse capítulo é discutir as contribuições de Carlo
Cinzburg para um importante debate historiográfico internacio-
nal: a micro-história é capaz de contribuir com o desenvolvimen-
to de uma Global I-Iistory empírica, menos abslrala e generali-
zante? Pode um caso individual, se explorado em profundidade,
ser teoricamente relevante?
Pretende-se, em linhas gerais, ressaltar a influência de pro-
cedimentos adaptados da História da Arte e da Filologia na cons-
trução narrativa de Ginzburg, partindo de um texto escrito re-
centemente.' Esses elementos literários e textuais possuem, em
seu escopo metodológico, uma importância tão grande quanto os
elementos historiográficos para o resultado de suas pesquisas. E é
esse o objetivo central desse texto: aprcicntar ~o leitor não os já
conhecidos recursos teórico-rnetodológicos pr~licados pelo autor
de O queiío e os vermes, mas exam inar especialmente a influên-
cia de procedimentos adaptados de Aby Warburg (Logosformel)

CINZBURC, Carlo. ~tli croh i s lory anel worlcl histo1y. In: J. Bcntley, J.,
Subrahmanyam, S. & Wiesner-Hnnks, M. (Eds.) The Ca mbridge \Vorld
History. Cambridge: Cambridge Universily Prcss. 201 ;, p. 446-473.
.' \ l Ih•lvy Fl'I'I'CII a CarneIro e Daniel Rezende Berbcrt Dias A (ormn c: o tr111pu 'li
r
e Erich Auerbach (leitura filológica da História) no modo como contas, um dos questionamentos que está na origem de diversos
Ginzburg concebe sua contribu ição ao referido debate, bem estudos micro-históricos diz respeito à compreensão de grupos
como na sua reformulação da sua concepção de micro-h istória. sociais e suas interações; suas formas de agir (c pensar}. Nessas
:\ão supomos, evidentemente, que um estudo das referências li- pesquisas, a análise aprofundada das escolhas e das práticas indi-
terárias que marcaram a formação de Ginzburg consiga explicar viduais produziria categorias verdadeiramente pertinentes e não
seu pensamento ou flagra r suas intenções. Se recorremos a obras anacrônicas. Mesmo seguindo caminhos diferentes, como vere-
que considerava incontornáveis, foi com o único propósito de mos, Ginzburg atinge objetivos similares, produzindo inclusive,
demarcar as linhas de força de sua argumentação. alguns avanços.'
Como \Valter Benjamin , Ginzburg adota um tipo especí-
fi co de leitura a contrapelo da História como perspectiva me- 2.
todológica, com o intuito de fugir de uma leitura positivista e Em um texto recente, Carlo G im:burg defende a hipótese
esquemática dos seus temas ele pesquisa. Entretanto, é preciso de que a micro-história, entendida como história analítica, longe
ressa ltar que sua especffica leitura a contrapelo não ocorre ape- de conlTastar com a História Globa l, é de fato uma ferramen ta
nas no campo do método, mas também no estilo. indispensável para ela.4 Seu primeiro argumento é o ele que ha-
Talvez seja verdade, por conta elas questões metodológicas veria uma aparente contradição entre ns análises micro e aquelas
que aqui scrfío apontadas, dentre outras, que Ginzburg ten ha fi- em perspectiva global, visto que pesqu isas analíti cas baseadas
cado às margens dentro do contexto maior do que foi produzido na análise de fontes primárias são muito difíceis de serem fei-
pela micro-história italiana, ou seja, que possua uma trajetória tas, por motivos óbvios, numa perspectiva mais ampla e global.
ele pesqu isa estranha àquela praticada por Grendi, Levi e outros Contudo, essa contradição é apenas aparente se adotarmos um
micro-historiadores. Acreditamos, todavia, que ele seja um mar- importante recurso metodológico: a comparação. Cinzburg, na
ginal dentro das margens; um excepcional normal. Concordamos verdade, acentua sua premissa ao afirmar que a melhor maneira
com Cerutti quando ela afirma que as supostas diferenças entre para realizarmos uma história comparada cn_;~ escala global é a
as duas form as de contextualização que caracterizaram a micro- adoção de certos pressupostos desenvolvidos pela micro-h istória.
-história ao longo de todos esses anos (uma contextual ização Mas, uma micro-história que precisa ser repensada do zero.
mais "cu ltural" e outra mais "social") não sê resumem à ques- Ao repensar a mi cro-história do zero, G iozburg segue um
tão elo terreno disciplinar e nem mesmo à questão do objeto de caminho, como observaremos, diferente da maioria dos micro-
estudo escolhido. Elas dizem respeito muito mais ao esta tuto -historiadores da sua geração. Ao contrário de Levi e Grcncli,
atribuído aos comportamentos e às relações sociais na recons-
tituição elo con texto de análise ele modelos cultura is. 2 Afina l de
3 GIKZBU RG, Carla . "Lati tudes, escravos e a Bfblia: um experimento
em micro-his tória". ArtCullura, Ubcrliinclia, v. 9, n. 15, p. 85-98, jul.-
2 CF.RUTTI, Simona. "1-Iistoire pragmatique, ou de la renconlre enlre -dcz. 2007, p. 86.
hisloire sociale <.!1 hisloire culturelle". Tracés, num 15 (2008), p. 150. 4 G L\IZBURG, C . :Vlicrohislory and worlcl history, OfJ. cil., p. 447-448.
234 Deivy Pen·eira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma c o tc ntpo •I I

que se ampararam em métodos e insights ela antropologia social história transformando a natureza através do trabalho. C inzburg
ele matriz britânica, o autor de Os andarilho do bem busca na argumenta também que essa influência direta de Vico em ~!J.arx
história da arte wa rburguiana c na filologia síntese de Auerbach, foi evidenciada por Paul Lafargue e que também teve grande im-
elementos para uma historiografia que possibilitou uma con- pacto no pensamento de Antonio Labriola. Segundo esse último,
clusões históricas em escala macro e que forneça subsídios da os homens agiriam em um ambiente artificial, que eles mesmo
micro-história para a feitura de pesquisas mais empíricas de his- construíram através de experimentos (mentais e de transformação
tória global. Para compreendermos suas escolhas epistemológi- da natureza) e tal fato, além de aproximar Vico a Marx, aproxima,
cas, propomos seguir seus próprios passos em um ensa io que ele nessa perspectiva, o materialismo às ciências empíricas.6
disc ute essas questões. Ginzburg segue sua argumentação afi rmando que por vá-
Ele constrói seus argumentos a partir de uma metodologia, rias vias essas questões chegaram até Col lingwood, para quem
que requer bastante erudição, e que consiste na análise profun- 0 conhecimento histórico seria uma reencenação de um pensa-
da ele ideias e conceitos de um te>..t o singular para, em seguida, mento passado, encapsulado em um contexto de pensamentos
apreender como essas icleias são apropriadas, conscientemen te ou presentes. A história como um ato de presentilicação.
não, em ouh·os textos, relacionados a b·adições culturais diversas - Ao analisar as ideias de Colli ngwood sobre a história,
uma leitura do cânone literário, historiogrâfico e filosófico, mas fora Ginzburg atesta sua discordância dessa presentifi cação idealista
das interf>retações canônicas. Mais especificamente, ele mosh·a ao do passado. Para o historiador italiano, a legítima "reencenação"
leitor como certa ideia, de início teológica - a de que o conhe- implicaria sempre uma experiência limitada e parcial, baseada
cimento verdadeiro de algo só pode ser obtido por quem o cria: no diálogo entre dois contextos, resultante de um diálogo assi-
somente Deus pode conhecer a natureza, enquanto o homem é métrico entre a linguagem dos observadores e a elos atores: entre
capaz de conhecer, por exemplo, a justiça, a história, a política dados éticos e dados êmicos.;
etc., por serem invenções humanas liga Hobbes a Giambattista
Vi co no que diz respeito aos experimentos mentais.; 6 Ibidem, p. 457.
7 Kenneth Pike foi um linguista protestante amct1cano, antropólogo e
A convergência entre Hobbes e Vico na questão dos experi-
missionário que em suas pesquisas de campo contrnstou ·dois nh·eis de
mentos mentais é explicada sem dificuldade. Jáa trajetória que liga amílise, a do observador e a do ator, chamado, respecti,·amente, de aná-
Vico a Marx é especulada por Ginzburg, que ãrticula muito bem lise ética (de fonética) e análise êmica (da fonologia.). Da forma como
esses conceitos foram apropriados por C i nz~urg, os dados éticos permi-
corno as ideias do italiano fu ndamentaram importantes elemen-
tem o acesso ao sistema - o ponto de partida da análise. F.lcs fornecem
tos centrais da fi losofic: marxiana. Uma ideia de cunho teológica resultados provisórios e unidades provisórias. Mas a análise final será
em Hobbes, rcelaborada por Vi co (é o ato de criar que transfor- formulada em unidades êrnica. Na análise ger<1l, a descrição ética inicial
ma o homem, o separando elas demais "bestas"), fornece a Marx é gradualmente refinada c fina lmente- em princípio, embora provavel-
mente nunca na prática - é substituída por uma desc rição to talmente
o escopo materialist<J fundamenta l de sua teoria: o homem faz a êmica. Para maiores detalhes sobre a forma que C inzburg se utiliza des-
sa metodologia de análise, ver o ensaio: C INB URC, Carlo. Le nostre pa-
5 lhídem,p. 451. ro/e, ele /oro Una rif/essione sul mestiere di storico, oggi. In: C INBURC,
236
Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo •' I?

3.
mentalizadas. As dinâmicas reconstituídas seguem as referên-
Par~ fins analíticos, faremos uma digressão a partir ele agora. cias simbólicas e os espaços de relações que forem pertinentes
1 nas diversas e sucessivas perspectivas individuais.10 Nessa ótica
Nossa h1pótese é a de que, ao fazer uso de técnicas inspiradas
em Warburg e Aucrbach, Cinzburg chega a conclusões pareci- adotada por Levi, experimentos físicos e mentais são realizados
das àquelas de Giovanni Levi8 acerca do caráter experimental da pelo historiador, já que ele deve examinar cada possibil idade da
micro-história. Evidente que são dois caminhos muito diferentes: forma concreta em sua dinâmica e complexidade, sem descartar,
Levi adapta para a Ilistória o modelo generativo utilizado pelo aprioristicamente, qualquer elemento, seja ele geral (global) ou
antropólogo Freclrik 13arth, no qual o modelo seria basicamente específico (micro/local). 11
u.ma pergunta geral (um experimento?) que se origina de formas No caso de Ginzburg, o experimento mental é fun damenta-
~!Jfcren~es a partir elo exame da vasta documentação coletada, elo por meio daquilo que ele chamou ele Logos{ormel, que como
as qua1s podem ser explicadas se aceitarmos que elas sejam 0 vimos é uma adaptação criativa elo conceito ele Patlwsformel cria-
resultado cumulativo de um número ele escolhas c decisões ele do por Aby Warburg. Ou seja, através de um procedimento adap-
ações criadas por meio ele processos de interação c refletem, ao tado da história da arte, Ginzburg consegue desenvolver formas
mesmo tempo, as coerções e incentivos com base nos quais as de fa zer experimentações no intuito de construir uma micro-his-
pessoas agem conforme um processo de escolha e obrigações em tória experimental tão radical quanto aquela realizada por Levi
cada contexto espccífico".9 e ou tros, partindo de princípios epistemológicos completamente
O modelo implícito ao qual essa abordagem remete é 0 de diferentes. Senão vejamos.
um processo histórico que se desdobra por meio ele dinâmicas Como sabemos, o concei to fund amental para a compreen-
q~1e ~oloca em análise configura ções sociais complexas, que são são do pensamento ele Aby Warburg, a Pathosfonnel, expressaria
nao-Imeares c, a cada momento, imprevisíveis. A análise ele Levi inicialmente esse encontro entre o homem e o mundo, entre o
é experimental, pois percebe a causalidade como uma ampla homem, o b·auma e o medo, resultando em uma fixaçã o visual,
abertura de possibilidades que precisam ser testadas e instru- baseada em um processo de mimetização de algumas qualidades
~

(biomórficas) que se tomam petrificadas c fixadas corpo imagem.


Já Carlo Gi nzburg, ao recorrer às Logosformeln procura sempre
C~ rio .. La Lel/era Uccide. :v1ilano: ADELPII1,"2021 (Epub), p. 82. A mostrar que não somente o patético, mas tam9ém as ideais, os
pnmena versão desse artigo foi publicada como: Cit,:ZDURG C· 1
"O \\1. 1 , , .1r o. pensamentos, as emoções e os conceitos são tra11smitidos em cir-
. ur _' ores, and fhci rs. A ReAection on the Historian's C raft, Today, in
I llstonc<ll Knowledge. In: FELLtvlf\:'J, S & Rt\1-IIK-\INEI\', M. Quest cunstâncias elas 111ais diversas e cornpl etamen le diferentes, nas
of Theory, ,\lethod and Evidence. Cambridge: Scholars Publishing
Cambridge, 2012, p. 97-1 19.
8 ;~vr, Giovan,ni. A 1-lemnça Imaterial: a trajetória de t/111 exorcista 110 lO C RI BAUOJ, M t~ uriz io. Escala, Pertinência, Configuração. Revel,
l1emon/e no seculo XVII. Silo Paulo: Civilização Brasileira, 2000. Jacques. Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro:
9 BARTH, Fredrik. Prccess and fonn in a sociallife. London: Routlcdge EdFGV, 1998, p. 129-130
1981, p. 32-47. •
l i LEVI, C iovanni. ,\1/ icro-hislória e ll islória Global, op. cil., p. 21.
,
238 Oeivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma c o tempo

quais os tempos ma is ou menos curtos da história se entrelaçam ser inspirada em grandes ca tegorias conceih1ais, mas por pontos
com os tempos longos da evolução. de partida concretos (mas também aleatórios), compreendidos
Dessa maneira, t:or meio da análise da ideia - Logos{ormel intuitivamente e depois aprofundados gradualmente. 14
-do homem como poeta (construtor, fabrican te) e como autor A micro-história, baseada em casos artificialmente escolhi-
da sua própria história, Ginzburg revela ao leitor que uma traje- dos, analisada de perto, deveria então ser considerada um caso
tória muito longa, baseada em uma série intrincada de leituras, extremo dessa perspectiva experimental. 15 Ylais que isso: a pers-
liga 1-lobbes a Coll ingwoodn E nessa trajetória decididamente pectiva microanalítica e experimental adotada por Ginzburg
descontfnua e, por vezes, contraditória, os temas do artifício e do ajudaria o historiador a formu lar hipóteses em uma escala muito
experi mento surgiram repetidamente. maior, em alguns casos até mesmo numa escala global, como
Para concluir toda essa discussão, Ginzburg questiona e re- veremos a segUir.
fo rmula o modelo idealista do historiador inglês fund amentando
metoelologicamcnte a construção de uma micro-história como 4.
um experimento contrafacutal e, assim como em Levi, um ex- Ainda em seu artigo sobre a "Micro-história e História do
perimento que é um meio, e não um fim. E isso é normalmente )/lundo", Ginzburg analisa um caso anômalo que perm ite a ele
realizado pelo historiador ital iano a partir de uma trajetória de construir uma micro-história experimental que fornece elemen-
pesqu isa extrem a m c 1~te cxpcrimcntal: 13 o entrelaçamento do tos para a construção de uma história em esca la macro. E, para
acaso e elas suposições (ideológicas ou não) na investigação his- compreendermos metodologicamente o que o historiador italia-
tórica. Mesmo não havendo alea toriedade absoluta, G inzburg no propõe, devemos seguir detal hadamente o caminho adotado
afirma que devemos tatear os arquivos e contar com a sorte, e o estudo de caso realizado por ele. 16
orientados é claro, por conjecturas razoáveis para lidar com a Inicialmente ele analisa um livro in titulado Con{ormité des
desproporção enlre uma enorme massa documental e a limita- coutumes des Indiens orientaux avec celles des juí{s el des autres
ção ele tempo presentl em qualquer pesquisa. Em suma, entre os peuples de l'antiquité, publ icado em 1706 pQr La Créquinicre
pressupostos dessa estratégia ginzburguiana de pesquisa, há, em - um militar que exerceu suas funções em posto colonial fran-
primeiro lugar, a ideia de se contornar, ainda que temporaria- cês localizado no sudeste da Índia. Ginzburg afirma que nada
mente, os pressupostos ela própria pesqu isa, através da curiosida- conhece da trajetória desse sujeito ou sobre o seu treinamen-
de associada com as ferramentas de busca dos arquivos, físicos ou to. A única afirmação feita em um pritheiro momento é que
digitais. Em um mundo como o nosso, a investigação não deve
14 Idem.
12 C INZBURG, C. Microhistory and world history, o{J. cit. 15 A natureza experimental da micro-história, c <1 diferença dela pam a
13 C INZBURC, Cn rlo. Conversare com Orion. In: G lNZBURC, Carlo. história contrafactual formulada pel<1 New Eco11omic 1-l istory foram
I ,a /.etter<1 Uccide, op. cit., p. 130-137. Publicado originalmente como: apontadas por Jacques Revel na sua introdução ao livro de C iovanni
C IJ\ZBU RC, C:ulo. Conversare con Orion. Quaderni Storici, XXXVI, Lcvi, A Herança ]material.
108 (diccmbrc 200 1), p. 905-13. lG C INZBURG, C . .\tlicrohistory anel worlcl history ... , op. cit.
240 Deivy Fcrrl•irn Carneiro e Daniel Rezende Berbcrt Dias A forma c o tempo 241

Conformité é um testemunho eloquente da hipótese formulada boa erudição. A gama de suas referências vão desde os textos dos
por Arnaldo Momigliano: que a etnografia surgiu do conheci- escritores gregos e latinos pagãos até os pais da lgreja (Agostinho,
mento de antiquários. Por quase dois séculos, antiquários foram Clemente Alexandria). De acordo com C inzburg, essa erudição
considerados pedantes inofensivos, alvo ele um tipo de escá rnio c a análise do Antigo Testamento pode ter despertado a curio-
benevolente. lVlomigl iano rcclescobriu o significado dessa tradi- sidade elo censor ele La Créqu iniere. O autor ele O queijo e os
ção e a h·ouxe de volta ao canteiro ele obras dos h istoriaclores. A vermes também revela as ações do censor (através elas suas anota-
historiografia moderna- esta é a tese defendida por Momigliano, ções nas margens elo manuscrito ele Paris), nos indicando como
mas também, indiretamente, por .\IJarc Bloch -nasceu da con- se deu essa interação. As reAexões de La Créquiniere sobre as
fluência entre os métodos antiquários e a história filosófica de atitudes indígenas em relação aos europeus não foram de forma
Voltaire. 1' Foram os antiquários quem nos ensinaram a analisar alguma censuradas. A inversão ele perspectiva -u m gesto poten-
cartas, construções, túmul os, etc., como documentos. E a partir cialmente subversivo- não colocava em causa a revelação divina
disso, o historiador transformaria os documentos em traços ele e por isso não ofereciam perigo.
uma vida real desaparccida .1s Para Cinzburg, o manuscrito parisiense eleve ser apreendido
No início de seu livro, La Créquiniere afirma que seu objeti- como um espaço no qual duas forças colidem, altenwndo mo-
vo era agir como alguém que, atualmente, classificaríamos como mentos de conflitos (censura) c interação. Nesse sentido, esse tex-
um etnógrafo: coletar info rmações sobre forma s de cul tivar a ter- to pode ser submetido a uma série ele experimentações repetidas;
ra, roupas, alimentos, provérbios e pecul iaridades linguísticas. um método generativo não a partir ela antropologia, mas a partir ele
Terminando o livro, ele acabou por abandonar comparações uma lei tura filológica aprendida com Eric Auerbach e Leo Sptizer.
etnográficas mais específicas, propondo uma reAexão global so- Essa cumplicidade imaginada (experimental) e inesperada en tre o
bre dois mundos diferentes: a Europa e o Oriente, analisadas em censor Raguet e La Créquiniere sugeriu ao historiador italiano a
termos de uma oposição entre a modernidade c a antiguidade. reformulação de uma hipótese feita anteriormente. O que parecia
A atitude contraditória ele La Créquiniere pode ser comparada ser uma ambivalência do Iluminismo como tal..- ora fund amenta
ao que Ginzburg chama de o lado sombrio do Il uminismo: a elementos para um pensamento em que o europeu s.e coloca no
Europa falava em nome dos povos colonizados no momento em luga r do outro, ora age de forma imperialista em relação ao outro
que estava colonizando o mundo.19 -resulta de suas raízes crist-Js. A ambivalência em relação ao ou tro
Uma edição do La Con{ormíté, permeada por anotações começa a ganhar contornos diacrônicos.
manuscritas do próprio au tor, arquivados na Biblioteca l\acional
da França, em Paris, mostram que La Créquin iere possuía uma 5.
Um documento anômalo; excepcional normal, que poss ibi-
l 7 C INZBURC, Carlo. Rivela:::íoni involonlarie: Leggere la sloria contro·
pelo. In: C I ~ZBURC, Carla. La Letlera Uc:cide, op. cil., p. 37. lita a Ginzburg realiza r um<1 rcAexão, um experimento mental
18 Ibidem. através de um estudo de caso. Ao anal isar o livro do "antiquário
19 GII\'ZBURC, C. Microhislory and world history. ofJ. cil., p. 464. etnógrafo" e seu diálogo com Raguet, Ginzburg percebe- com
242 Deivy Fcrrclr,l Carneiro e Daniel Rezende Berbcrt Dias A forma e o tempo I tI

a mesma perspectiva pautada nas Logosfonn eln que o gu iou ele 6.


Jlobbcs a Collingwoocl - um tipo de ambivalência como uma
Em uma entrevista real izada recentemente, Carlo
característica específica e duradoura do cristianismo, resultante
Ginzburg 22 afirmou o papel que a "filologia ampla" de
da relação entre o cristianismo e o judaísmo.
Giambattista Vico desempenhou na sua leitura sobre a histó-
A apropriação cristã da Bíbl ia hebraica como "Antigo
ria, bem como na maneira que se utiliza do dos procedimentos
Testamento" e como fund amento de uma série de profecias so-
do estranhamento e ela distância como artifícios para uma lei-
bre Jesus- sobretudo o livro de Isaías - implicou em uma re-
tura densa dos seus objetos de pesquisa. Pretendo aqui recom-
versão da relação histórica entre as duas religiões. 20 De tudo isso
por, à maneira do próprio Ginzburg, o caminho que liga Vico,
surgiu um entrelaçamento de continuidade e descontinuidade,
Auerbach e a reformulação que o autor de llíst6ría Noturna
deferência c desprezo, inclusão e negação. Para Ginzbu rg, essa
construiu acerca da micro-história italiana; reformulaçâo essa
atitude am bivalente produziu não apenas duas perspectivas de
que permite um novo olhar e uma excelente contribu ição para
leitura (alegórica e literal) para a Bíblia hebraica, mas a consln t-
se pensar a relação entre o micro c o global.
ção da própria noção de perspectiva histórica.
Em um livro - Scíenza Nuova - cuja importância foi desco-
Ass im, através do estudo de caso, mesmo gue anômalo, o
berta muito tempo depois elo seu lançamento, Vico afirma que
historiador ita liano apreendeu algo mais geral, mais amplo e, por
não há conhecimento sem criação, ou seja, somente o criador
que não, mais global: a ambivalência cristã como um fenôm eno
tem consciência daquilo que ele próprio criou. Dessa feita, i/
histórico duradouro. Segundo ele, essas ferramentas cognitivas
mondo della natura só pode ser conhecido por Deus, mas o mun-
- distância, perspecth,a, múltiplas estratégias de leitura- fun cio-
do histórico, ou político; o mundo da humanidade, pode ser co-
navam como armas na expansão colonial europeia. 21 :vias essas
nhecido pelos homens, já que foram eles que o fizeram. 23
mesmas ferramentas filológicas, como veremos agora, também
1\ão temos espaço para discutir agora toda a teoria de Vico,
forneceram a Ginzburg uma chave de leitura; a chave interpreta-
mas é importante relembrar que o napolitano construiu sua teo-
tiva para observar em um caso aparentemente sem grande impor-
ria sobre o conhecimento histórico com pouco material dispo-
tância, repercussões globais, tanto espaciais quanto cronológicas.
nfvel. Ele não possuía conhecimento científico das ·civilizações
pré e pós-neolítico; apenas um pouco de con hecimento da Idade
20 1
n verdade, em seu nrtigo Ecce, C inzbu rg argumenta que as passa- Média e apoiava-se, sobretudo, em um conhec imen to da filo-
gens de Isaías c outros profetas, interpretadas como profecias de Jesus, logia clássica e do direito romano. Co~ esse ·con hecimento e
rea lmente gerarctm as passagens corresponden tes dos Ev;111gelhos: urna
obvicd~ cle, da qual quase ninguém discute, mas que tem implicações
cxtraordimíri<lS. Para ma iores de talhes ve r: G INZBURC, Carla. "Ecc:e: 22 https://www.you tube.com/watch?v= F-lxAl1 tnAfC I•"8. A pdgina do
sobre as raízes culturais da imagem de culto cristã". In: C INZI3URG, L '\HTEV-UFU no YouTubc contém entrevistas, ren lizaclas em 2020,
Carla. Olhos de Madeira: nove reflexões sobre a distilncia ... Of>. cit., p. com os principais micro-historiadores italianos.
104- 121. 23 AUERBACH, Erich. Vico c o historicismo estético. In: Ensaios de
21 Ibidem, p. 472. I ,íteratura Ocidental, op. cit., p. 347.
244 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Bcrbcrt Dias A forma c o lcmpu

bastante imaginação, conseguiu interpretar, de forma inédita até que fala da fil ologia e suas diferentes formas, com o tcn 1a "I h·
então, o mito, a poesia antiga c o direito. Explication de texte":
Como afirma Auerbach, Vico cria uma teoria sobre o com-
A explicação literária se apl ica de preferência a um
portamento e desenvolvimento humano com base, sobretudo, na
texto de extensão limitada, e parte de uma análise
sua leitura filológica da direito romano e também com a leih.tra de
por assim dizer microscópica de suas formas lingufs-
pouco autores latinos que ele tinha à mão. Ele cria uma concep- ticas e artísticas, dos motivos do conteúdo e de sua
ção de história e de açJo humana, que chegará, como vimos, até composição; no curso dessa análise, deve servir-se de
Marx, na forma do homem que é o que é por transforma r a natu- todos os métodos semânticos, sintáticos e psicológi-
reza através do trabalho. Vico constrói esse pensamento através de cos atuais, é mister faze r abstração de todos conhe-
uma filologia irradiadora: partindo da análise do direito romano cimentos anteriores que possuímos ou acreditamos
(ou seja, a partir de um conjunto limitado de fontes), ele percebeu possuir do texto e do escritor em questão, de sua bio-
como os pensadores romanos ficcionaram instituições para mol- grafia, dos julga mentos c das opi11iões correntes ao
seu respeito, das inOuências que ele pode t·er sofrido,
dar o comportamento humano - nos alterando enquanto espécie
etc; cumpre considera r somente o texto propriamen-
- p;Jra poderem criar um controle sobre a sociedade.
te dito e observá-lo com atenção intensa, sustentada
de modo que nenhum dos movimentos da língua e
7.
do fundo nos escape [... )Todo o valor da explicação
Carlo C inzburg, evidentemente, não partilha totalmente de textos está nisso: é preciso ler com atenção fresca,
dessa perspectiva histérica desenvolvida por Vico. Entretanto, a espontânea e sustentada, e é preciso guardar-se escru-
pulosamente de classificações prematuras. Somente
metodologia de Vico med iada inicialmente por Auerbach- essa
quando o texto estiver inteiramente reconstruído, em
é a nossa hipótese, já que C inzburg faz uso de palavras c refle-
todos os seus pormenores e no conjunto, é que se
xões muito similares às de Auerbach quando analisa Vico nesse
deve proceder às comparações, às considerações his-
artigo sobre a micro-história e a história do mundo - forneceu tóricas, biográficas e gerais [.. .].2;..
ao historiador italiano ferramentas fil ológicas e epistemológicas
para a sua concepção de história e para a rcformulação e ama- A compreensão dessa metodologia é importante para nos-
du recimento da sua perspectiva microanalítica . .\!'Ias, antes de sos propósitos pois Ginzburg afirma ler começ{lclo a praticar o
adentrarmos nessa questão, reca pitulemos os elementos centrais ofício de historiador26 utilizando os instrumentos interpretati-
dessa fil ologia irradiadora, que produz ampl o con hecimento vos desenvolvidos por Leo Spitzer e Erich Aucrbach, com o
através da anál ise ele um material reduzido. intuito de ler textos não literários, tais como os processos da
E m seu Iivro Introcluction Aux Etudes de Phí lologíe Romane2'1 Inquisição, para conduzir interpretações origina is a partir de
escrito em 1943, Eric Auerbach termina a primeira parte, em

24 AUERBAC !-1, Erich. lntrodu ction Aux Eludes de Philologie H.omane: 25 Ibidem, p. 40-41.
Klostermann, Vittorio, 1965. 26 CJr-;ZBURC, Carla. Nenhuma ilha é uma ilha, Of>. cit., p, 14.
246 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 2'1 7

fontes documenta is. Relembremos então as particularidades ma - é precisamente por isso que elas são preciosas
elo explícation de texte e quais os "instrumentos interpretativos" [... ]" De qualquer modo, mesmo com o melhor elos
pontos ele partida é necessária muita arte para ater-se
esses autores desenvolveram.
sempre ao objeto. Por toda parte espreitam conceitos
A explicação do texto feita por Auerbach têm como ponto
já cunhados, mas poucas vezes adequados, apesar de
nevrálgico a seleção de ·.1m texto de extensão limitada, possuindo
frequentemente sedutores por seu tom e pela orien-
sempre como critério para tal escolha dois elementos fundamen- tação ela moela [... ).29
tais: um ponto de partida e a "irradiação" que o trecho possa pro-
porcionar. Auerbach afirma também a necessidade de se ocupar Auerbach acreditava que era preciso olhar paraAnsatzpunkte,
para além do texto literário em si com as condições religiosas, isto é, para pontos de partida, para detalhes concretos a partir dos
filosóficas, políticas e econômicas em que ele foi produzido, sem quais o processo global poderia ser reconstruído indutivamente.' 0
ignorar mesmo as artes plásticas e a música nesses fi nsY
Na escrita da sua obra-prima, i\llimeses, em condições ex- 8.
tremamente desfavoráveis de um judeu em igrado em Istambul, Filologia irradiaclora: a leitura ele pequenos trechos de obras
me parece mais elo que falar da "força de irradiação" dos trechos literárias (ou históricas) com o intuito de extrair desses textos
escolh idos para a construção desta magnífica obra, importa sa- conhecimentos para além deles mesmos. Um método anti pós-
lientar a excepcional capacidade elo filól ogo judeu em por assim -moderno, advindo ele uma slow reading (a pnrtir da experiência
dizer ele "fazê-los irradiar". Ele mesmo via nesse processo duplo como aluno ele Delio Cantimori) cb obra de Erich 1\uerbnch
de escolha-irradiação (e em todo expediente da explicatíon de que possibilitou a Carlo C inzburg, juntamente com suas aná-
texte) não só um mecanismo metodológico científico, mas tam- lises pautadas na transmissão históricas e/ou morfológicas de
bém um procedimentc ligado a processos mais sub jetivos e in- icleias, pensamentos, símbolos etc. - Logosformeln - , descobrir
tuitivos. Diante de tal contexto, ele se pergunta como é possível algo extremamente global e macro a partir ela feitura de vários
pensar numa filologia sintético-científica da literatura mundial estudos de caso: o perspectivismo cristão como, fund?mento do
"1\ão partir de considerações amplas e gerais, mas sim de um pensamento europeu que vai definir desde a forma que o homem
ún ico fenômeno bem delimitado e quase estreito".28 europeu construiu sua visão de mundo - como am bivalência,
conflito e multiplicidade - quanto a moderna filosofia ocidental
[... ) será mister, evidentemente uma erudição muito
vasta e um faro que só raramente se encon tra para e até mesmo o iluminismo. Através de limita<Jos êstudos de caso,
fazê-lo sem cometer numerosos erros. Como as ex- o historiador italiano fez irradiar elementos amplos e globais da
plicações de texto fornec em muito amiúde novos visão de mundo ocidental.
resultados c novas maneiras de formu lar um proble-
29 AUERBACH, Erich. lntroduction Aux Etudes de Philologie Romane,
27 AUERBAC H, Erich. Vico e o hístorícísmo estético, op. cit.p. 363. op. cít., p. 40.
28 Idem, p. 364. 30 AUERBACH, Erich. \fico e o historicismo estético, op. cit., 357-373.
248 DeiV)' Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo

Em um ensa io fundamen tal sobre a distância, Carlo Com os pais ela Igreja na antiguidade tardia se transforma em um
C inzburg afirma que, em qualquer cultura, a memória coletiva, método ele interpretação.H Uma ferramen ta intelectual capaz
transmitidas por ritos e cerimônias, reforça o nexo de um grupo não só de explicar, mas intervir na realidade. Resumidamente, o
com o passado. Todavia, isso não pressupõe ou gera uma refl exão procedimento figurai relaciona dois eventos ou pessoas, no qual
explícita sobre a distância que nos separa deles. Essa reflexão é o primeiro significa e anuncia o segundo, e o segundo preenche
gerada normalmente pela historiografia.31 e completa o primeiro. São chamados de fig ura e preenchimen-
Com o intuito de exemplificar esse raciocínio, Cinzburg re- to. É importante evidenciar que figura é um acontecimento real
lata o episódio da última ceia ele Jesus, na qual Ele afirma: "isso e histórico, existente por si só, contudo relacionado com outro
é meu corpo oferecido por vós; faze i isso em memória de mim" evento, igualmente real e histórico, por acordo ou similaridade.
(Lucas 22:19) e mostra como o apóstolo Paulo interpreta essas São atos concretos pertencentes ao tempo e a realidade seja do
palavras ele Jesus de uma forma um pouco diferente na primeira passado, presente ou futuro. Especificamente "todo conteúdo
epístola aos coríntios, transformando o corpo de Cristo no que das escrituras é colocado num contexto exegético", todo Velho
mui to mais tarde foi definido como corpus mystícum; um cor- Testamento se converte num amontoado ele {íguras, ou seja,
po místico no qual er2m incorporados todos os crentes. Tal fato, anunciações prévias elo surgimento de Jesus, dos eventos de sua
que implicava o desaparecimento de qualquer particulariclacle vida, e das consequências teológicas e escatológicas-salvíficas de
étnica, social ou sexual, gerou uma nova relação cristã com o sua pregação e morte na cruz. 34
passado judaico, assumindo novas formas. O impulso para esse tipo de interpretação vinha centrado na
De acordo com Ginzburg, em Agostinho, neoplatônico assim palavra grega typos encontrada nos primei ros escritos cristãos, es-
como São Paulo, o passado judaico e o passado cristão se unem por pecialmente nas epístolas paulinas. Em sua Carta aos Coríntios,
meio da noção de figura, conforme desenvolvida por E. Aucrbach. por exemplo, São Paulo classifica os judeus no deserto como
Dessa forma, as palavras ele João 6:53- "Se não comercles a carne typoí hêmõn (figuras de nós mesmos); e também classifica Adão
elo Filho do Homem e·não beberdes o seu sangue, não tendes vida como um typos de Cristo.35 ...
em vós mesmos" passa a ter um sentido figurado, no qual a memó- Auerbach é preciso em argumentar acerca da .importância
ria do sacrifício de Jesus seja recordada diariamente, mas também que a interpretação figura! teve para o sucesso do cristianismo des-
no momento da comunhão; da Santa Ceia. de seu princípio. No contexto judaico seria natvral que os novos
Figura, explica i\uerbach no ensaio que leva o mesmo nome, convertidos "procurassem prefigurações e confi.rmações ele Jesus
é um termo latino que se cristaliza na helenização da educação no Velho Testamento". Segundo ele, São Paulo "procurava eli-
romana, principalmente através de Varrão, Lucrécio e Cícero. 32 minar elo Velho Testamento seu caráter normativo e mostrar que

31 G INZBURC, Ca rlc. "Distância e Perspectiva: duas metáforas".


ln: Olhos de lV!adei~a: nove reflexões sobre a distancia. São Paulo: 33 Tbidem, p. 26.
Companhia das Letras, 200 1, p. 179. 34 i\UERBACH, Erich. 1V1imesis, op. cit., p. 41.
32 AUERBACH, Erich. F'ígura. 3• ed. São Paulo: Editora Atica, 2006, p. 14. 35 AUERBACH, Erich. Figura, op. cit., p. 43.
250 Deivy Ferreira Carneiro c Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 251

nele tudo é apenas sombra de coisas futuras". Posteriormente, na havia formulado: como seria possível que Deus tenha aceitado
expansão cristã em direção ao ocidente, a interpretação figurai sacrifícios judaicos no passado e que agora os condenava? Teria
europeia elo Velho Testamento aca ba por transformar um livro Deus mudado de ideia? Valendo-se da diferença entre pulchrum
que trata da história e leis de um povo pequeno e distan te, em (belo) e aptum (acleqllaclo), Agostinho afirma que os sacrifícios
uma série ele prcfigurações daquele Cristo que veio salvar, de for- juda icos eram adeqllaclos aos tempos antigos, mas que agora,
ma global, todos os homens. Por esse expediente fi gurai o Velho pela vontade de Deus, não o são ma is. O argumento formulado
Testamento "passava ser acei tável para celtas e germân icos; era por Cícero para tratar da diversidade de estilos encon trava assim
parte da religião universal da salvação e um componente neces- uma rcformulação inesperada e nova que pensada numa pers-
sário da igualmente magnífica e universal visão ela história a ser pectiva temporal, permitia Agostinho lidar com a imutabilidade
transmitida junto com a religião". 36 divina e a mudança histórica. ls
Completamente ciente dessas discussões de Aucrbach e, por Em sua obra t\ Instrução Cristã, o bispo de IIipona en-
que não, herdeiro delas, Ginzburg demonstra que, através do es- frentaria as diferenças culturais descritas no Velho Tcstmncnto.
tudo dos escritos de Cícero, que lera na adolescência, Agostinho Segu nclo ele, os textos que profbem uma ação vergonhosa (f7agi-
de f-1 ipona elaborou sua teologia cristã com forte fundamento lum), criminosa (facúw s) ou que ordenam ações úteis e benéfi-
vindo da retórica. Ele aprendera que as instituições e os costu- cas não deveriam ser lidos em sentido figurado. [nversamente, se
mes mudam ao longo do tempo. Agostinho via no passado judai- uma ordenança parece prescrever coisa vergonhosa, criminosa ou
co um caso especial, ligado ao presente cristão por uma relação benéficas é preciso compreendê-las em um sentido figurad o.l9
tipológica, uma leitura figurai - a ele que o Velho Testamento é, Ginzburg percebe então que os termos {lagitum c facinus , fun -
ao mesmo tempo, vercadciro e superado. 37 cionando como categorias assimétricas, serviram para 1\gostin ho
Entretanto, se a leitura figurai de Agostinho estabeleceu exemplificar, por exemplo, comportamentos constrangedores tal
uma relação tipológicn entre essas duas religiões, uma leitu- como a poligamia elos patriarcas:
ra literal do texto sagrado gerou outro caminho. No seu mais
As duas categorias não são sini'étricas. f"acinus re-
recente livro, La Lellera Uccide, Ginzburg retoma a utilização
fere-se a uma área invariavelmente négativa, livre
que o bispo de f-1 ipona fazia dos recursos da retórica, dando um
de mudanças. (Nas Confissões Agostinho falou das
passo além daquilo que nos apresentou em seu livro Olhos de peras que ele havia roubado quando menino como
Madeira . No ensaio Estilo: inclusão e exclusão, o historiador ita- {acinus). Flagitium, por outro lado, é um termo mais
liano demonstra como Agostinho encontra resposta, na de orato- evasivo, definindo uma série de ações cujo signifi-
re de Cícero, para a desafiadora pergunta que senador Volusiano cado (c julgamento moral relacionado) pode mudar

36 lbidem. 38 GINZBURG, Carlo. "Estilo: inclusão e exclusão", ofJ. cit., p. 14 1-142.


37 C II'\ZBURG, Carlo. "Distância e Perspectiva: duas metcíforas", op. 39 Gl:--JZBURG, Carlo. La lettcra uccide: Su alcunc implicazioni di 2
cit., p. 184-186. Co, 3, 6. In: La Lei/era Uccide, 0{1. cit., p. 53 e 54.
252 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 253

dependendo de circunstâncias, horários e lugares. menção de uma diademas feita de ouro e adornada com pérolas,
Por exemplo, Agostinho observa: "se é escandaloso identificar a falsidade elo escrito, já que na época ele Constantino
[flagício] desnudar o corpo nos banquetes de pessoas os diademas eram feitos de pano ou seda. Esse tipo de leitura "ao
e mbriagadas c libidinosas, não é por essa razão um
pé da letra" também o possib ilitou duvidar da autoria do livro de
escândalo [flag ítium ] estar nu em banheiros públi-
Jó e insinuar que Moisés não havia escrito o Pentateuco sobretu-
cos. Portanto, deve-se considerar cuidadosamente o '
que convém às pessoas, lugares, circunstâncias, para
do o livro ele Deuteronôm io. Essas acusações só foram possíveis
não culpar imprudentemente supostas ações vergo- graças a uma longa tradição ele discussões exegéticas de judeus
nhosas [fagitía ].40 (Tradução livre) e cristãos e que, passando por Valia, culminaram no Tratado
Teo l6gico-Político de Spinoza que afirmava, denhe outras coisas,
Facínus, pertencendo ao domínio invariavelmente negativo, aquilo que Valia apenas insinuou:
estaria em certo escopo diametralmente oposto a pulchrwn, que
pertencia à esfera do positivo, igualmente imutável. Atuariam ele o escritor desses livros não só fala de :Vloisés na tercei-
ra pessoa, mas relata muitos testemunhos sobre ele
forma muito semelhante a flagítum e aptiunz, respectivamen te,
.. . em Deuteronômio- que contém a Lei escrita por
possibilitando assim que Agostinho lidasse com a mutabilidade
1\tloisés, e explicada por ele ao povo - Moisés fala e
dos comportamentos no tempo e espaço: fala de si mesmo em primeira pessoa ... Só que mais
tarde, no fina l do livro, o historiador [historictts],
Entre os antigos romanos era vergonhoso [flagílium J
depois de transcrever as palavras ele l'vloisés, retoma
usar uma túnica com mangas e longas até os pés. Já
novamente para se referir a ele na terceira pessoa.4 z
agora, para aqueles que estão em boas condições, é
(tradução livre)
vergonhoso [flagitium ], ao vestir a túnica, não usa-la
de tal maneira ...'11 (Tradução livre)
Ginzburg nos faz notar que ao longo da história do cris-
Seguindo o uso ele procedimentos retóricos relacionados à tianismo, as leituras tan to figurais quanto literais ela Bíblia, e as
leitura e interpretação de textos, Ginzburg nos leva, em seguida, ada ptações dessas leituras mediante artifícios cfa r~tórica, nas
até Lorenzo Valia, que teja mantido um diálogo silencioso e, em mais variadas discussões e situações, possibilitou ao europeu cris-
certas ocasiões polêmico. com Agostinho. Se o Bispo de H ipona tão relacionar-se com o outro ele uma forma singular: servindo
usou a mudança nos hábitos de se vestir como alerta para que os também como aparato tecnológico ele expaf!SâO e subjugação de
outras culturas.4> :
leitores ela Bíbl ia não reagissem ele forma anacrônica diante elos
acontecimentos relatados no velho testamento, Valia, por meio
de uma leitura literal elo Constantini Donatione, pôde, através da

40 Ibidem, p. 55 . 42 Jbídem, p. 67.


41 Ibidem, p. 56. 43 Ibidem, p. 72.
254 DciV)' Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbcrt Dias A forma e o tempo 255

9. Entretanto, como Ginzburg nos mostra, no discurso de


Paulo, o passado, o presente e o futuro coexistem, de forma in-
Em seu mais recente ensaio,++ Ginzburg ten ta abordar esse
timamente entrelaçada . .\!las ao longo dos séculos; ao longo dos
assunto de uma maneira diferente, retornando a análise exegéti-
milênios, essa relação mudou. O fracasso do segundo advento
ca do apóstolo Paulo a respeito do tema da re1·elação e como a
de Jesus, considerado iminente por seus discfpulos, levou a uma
interpretaçi:ío enviesada dessa questão pode ser postulada como
reformulação do elemento escatológico. E o elo entre presente
uma das muitas causas que gerou persegu ição aos judeus no sé-
e passado também foi alterado. A ligação ambfgua com o Antigo
culo XX. O historiador italiano inicia o ensaio com o debate en-
Testamento abriu o caminho, paradoxalmente, para a possibili-
volvendo os conceitos ele pro{ecíalrel'elação presentes no Tratado
dade de ler o texto sagrado à distância, em uma chave potencial-
Teo /6gico-Político de Spinoza. Para tentear compreender a pre-
mente histórica, como evidenciado pelas reAexões ele Agostinho
ponderância da análise do primeiro conceito e a quase ausência
sobre a poligamia dos patriarcas. A pa rtir de Lorenzo Valia, essa
do exame do segundo, C inzburg estabelece uma análise "logos-
forma de leitura chegou a Spinoza, a (Jegel e fina lmente, a al-
{6rmíccJ" da revelaçüo, enquanto termo judaico-cristão, que vai
ele Pau lo a alguns pastores luteranos da Alemanha nazista. guns luteranos nazistas. Tudo isso mostra como a visão cristã e
pós-cristã da história e o sign ificado clássico do laTopeiv grego
não foram percebidos como incompatfveis ao longo do tempo.
44 G INZI3U RC, Carb. Svelare la rivelazione: Una traccia . In: La 1\o último tópico ele La lettera uccide, G inzburg nos traz
Lellera Uccide, O(J. cit. p. 22 1-235. Nesse ensaio, C iuzburg fundi!-
men ta suas hipóteses a p<1rtir do discurso de Paulo aos Coríntios uma leitura de Na colônia fJena/, um conto de Frnnz Kafka, em
contido em 2 Cor. p2-18. :-Jesta passagem, o véu literal de Mo1sés que um explorador presencia um sistema ele "justiça maquinal"
(KáÀuppa) que era usado por ele após conversar com Deus no Sina i que através de um complexo mecanismo escreve com agulhas de
torna-se um véu metafórico (pq ávaKaÀurrTópevov), que impediria
os filhos de Israel de entender a nova aliança. A remoção do véu ferro a sentença na carne do condenado:" O autor italiano pro-
- revelação- ocorrerá, segundo Paulo, apenas com a convers;io do põe então que o conto seja apreendido numa leitura literal e na
povo judeu à Cristo. O que torna a metáfora da remoção do véu tão combinação de duas passagens próximas, conti~as na carta de São
significativa é a expressão "velha aliança" (rraÀmá ÔICl<páKIJ), que, nas
Paulo aos Coríntios (lembrando que o subtftulo do .ensaio é Su
letras de Paulo e uos Evangelhos, é encontrada apenas aqui. A reve-
lação de Deus em Cristo se apropriaria corretamente do significado a/cune implicazioní dí 2 Cor, 3, 6). A primeira delas é passagem
da revelação no Monte Sinai, que teria perm~111ecido obscura para que nomeia o texto e também o livro- a letra m_ata- e a segunda
os fi lhos de Israel. Entretanto, Paulo argumenta que essa revelação
diz que a Nova Aliança está escrita "nas t{lbuas de carne dos vossos
é marcada pela continuidade e desco ntinuidade, entre a nova fé c a
an tiga. E111 suma, Paulo te ria dese jado enfatizar implicitameutc que corações". :.VIas o conto de Kafka parece-nos estar ali não somen-
a aprop riação do an :igo pac to pela nova fé foi obra do próp rio Deus. te para que Ginzburg proponha-lhe uma interpretação ainda não
Apesar de Cristo ser o ápice da revelação, os judeus não estariam de tentada, ou por sua possível inspiraçflo que guiaria éJ pesquisa desse
fom dos planos di vinos pois, em algum momento, como Paulo mostr;l
em su<~ Carta aos Rcmw1os, os jude us se converteriam a Cristo. Deus
nunca rejeitaria seu povo escolhido: os cristãos são os ramos enxerta- 45 C lNZBURG, Carlo. La lettera uccide: Su alcune implicazioui di 2
dos, m:1s são os judeus que sustenta m a ra iz. Co, 3, 6., op. cit., p. 67 e 68.
256 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo 257

ensaio. Algo nas percepções, bastante complexas, que a leitura do segundo Ginzburg, devido a algum bl oqueio para o qual possa
conto traz, dialoga ele forma intrincada, e nem sempre explícita, ter contribuído a condição ele judeus assimilados dos dois. 46
com o restante do texto.."\s associações deste último tópico com o Ambivalência da consciência histórica é vista por Ginzburg
tema que traz os tipos de leituras que Agostinho, Lorcnzo Valia e como uma projeção secularizada da ambivalência cristã para
Espinoza fizeram da bíblia - e suas consequências - seria, como com os judeus: por um lado o modelo baseado na adaptação
dissemos, fruto da mente e perspicácia de um leitor que lê cons- divina, em que a verdade (judaísmo) conduz a uma verdade su-
tantemente fora elo câncne, e por consequência, consegue quase perior (cristianismo). E elo outro, um modelo puramente secu-
sempre propor uma interpretação nova. lar, baseado no conflito. O antagonismo entre as representações
Toda essa digressão nos faz chegar ao cerne da argumen- da realidade política nasce elas coisas, da sua natureza intrinsi-
tação ele C inzburg: nem os gregos nem os judeus construíram camente conAituosa - uma consciência advinda de uma longa
uma noção el e perspectiva histórica que nos é familiar. Somente experiência elas coisas modernas c de uma contínua lição elas
um cristí:io como Agostinho, reAetindo sobre a relação fatal entre coisas antigas.
o cristão e os judeus, entre Velho e .!\ovo Testamento, pôde for- Através elo artifício ela Logosformel Ginzburg demonstra que
mular a ideia, que se tornou um elemento crucial ela consciência tal perspectiva analítica aparece também em i\llaquiavel, ele for-
histórica, ele que o passado eleve ser compreendido tanto em seus ma secularizada, por meio ela sua visão ele que perspectivas dife-
próprios termos, quanto como um anel de uma corrente que, em rentes produzem representações diferentes da realidade política:
última análise, chega até nós. tanto a representação das posições políticas criadas pelo príncipe
Nesse ponto, mais especificamente numa perspectiva his- quanto daquelas criadas pelo povo são sempre perspectivas limi-
tórica, o historiador italiano avança em relação às conclusões tadas. Em suma, Maquiavel constrói um modelo muito diferen-
de Aucrbach a partir ele Spitzer. Erich Auerbach, em seu texto te daquele de Agostinho, na qual a verdacle conduziria a uma
Epilegomena :w Mfmesis, publicado em 1954, afirma que a mo- verdade superior (cristianismo). Seu modelo puramente secular,
derna visão perspccti,·i!\ta e "historicista" se desenvolveu plena- baseado na suposta "verdade efetiva das coisas~ fun damenta o
mente apenas há um século e meio. Ylas o mesmo Auerbach, no conAito como o antagonismo enlre as representações políticas
ensaio Figura, sugere que essa tal visão moderna possllía raízes das coisas. E nessas representações havia uma profunda dimen-
muito mais antigas. Já Lco Spitzer, no seu ensaio Linguistic pers- são estética advinda elas interações recíprocas, dirçtas e indiretas,
pectivism, afi rma que o perspcctivismo é inseparável elo pensa- do intelectual florentino com Mic helangeJ.o Buonarroti. 1\ uma
mento cristão, segundo o qual, o homem comum tem acesso à fantástica analogia entre a escultura e a política, Maquiavel
sa bedoria tanto quanto o homem culto e a letra ela lei e seu espí- construiu uma perspectiva que foi apropriada, no século XX, por
rito, podem ser compreendidos por qualquer um. Todavia, nem Mussolini: "Fazer uma república" afirmou o fl orentino, "s ignifi-
Aucrbach ne m Spitzer perceberam que o perspectivismo cristão
tinha suas raízes na relação ambivalente com o judaísmo, talvez, 46 GINZBURC, Carlo. "Distância e Perspectiva: duas metáforas", op.
cit., p. 288, nota 33.
25 8 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Bcrbcrt Dias A ful'nm 1: o l l'111po 259

ca moldar o povo, assim como um escultor molda o mármore"Y tenha notado, mas que é fundamental para a compreensão ele par-
Ambivalência e conflito se tornam fundamentais para análise ela te elo pensamento do filósofo. ;o
real idade na Europa ela modernidade- e do fasc ismo. Por fim, Ginzburg chega à conclusão de que os modelos
Ecos da teoria política de :Vlaquiavel chegaram, por vias elaborados por Agostinho a pa rtir ele Paulo, por Maquiavel, por
complexas, em Descartes. Da mesma forma, Leibniz que já era Leibniz e por Montaigne podem ser postos, respectivamente,
leitor de l\tlaquiavel, descobre a leitura do teórico florentino feita sob o signo da adaptação, do conflito e da multiplicidade. Todos
por Descartes. Para Leibniz, assim como Maquiavel, a perspecti- tiveram influên cia duradoura . Enquanto Hegel combinou o
va consistia numa metáfora que permite a construção de modelo modelo conflituoso de Maquiavel com a versão secularizada elo
cognitivo fundamentado numa pluralidade ele pontos de vista. modelo de Agostinho, a reelaboração do modelo conflituoso do
Contudo, enquanto o modelo de .Maquiavel se baseava no con- fi losofo florentino é evidente na obra de Karl .VJarx. Além disso,
flito, o de Leibniz se baseava na coexistência harmoniosa de uma o perspectivismo é fundamenta l para compreendermos a luta
infinita multiplicidade das coisas. 48 Temos aqui, o tercei ro modelo ele Nietzsche contra a ob jetividade positivista. Em suma, para
cognitivo de compreensão ela realidade. Modelo esse que também G inzburg, as metáforas ligadas à distância e à perspectiva ainda
pode ser remetido a Montaigne. Em seu texto Pedido de Desculpas desempenham função importante na nossa tradição intelectual
de Raymond Sebond, o fil ósofo francês constrói um texto parado- e foram elementos centrais na construção ela modernidade curo-
xal e permeado ele argumentos céticos nos quais apresenta o ser peia, para o bem e para o mal, como veremos agora.
humano como um ser desprovido de graça divina, antropomorfi za
a sua divinclade." 9 Ginzbmg nos faz lembrar que o fra ncês era des- 10.
cendente, do lado de sua mãe, de judeus espanhóis convertidos. O artigo sobre a distância, discutido an teriormente, é apenas
O ensaio acaba revelando o escárnio do orgulho do homem que um ponto de chegada das reAcxões contidas em vários outros
acredita ser o centro do mundo, fazendo seus leitores concluírem textos de G inzburg. Observamos que mesmo compreendendo a
o quão absurda a icleia ele que Deus poderia se e ncarn<:~r assumin- importâ ncia ele uma leitura figu rativa e metaf<írica, ele percebeu
do a forma humana. Um argumento agressivamente cripto-judeu, que também era necessário h·azer à tona aquilo que estava escon-
exibido diante elos olhos de todos: um segredo que talvez ninguém dido na dimensão literal do texto. Nesse sentido, é preciso ressal-
tar aqui que a leitura da Bíblia em uma chave Jiteral continuou
47 CINZBURC, Carlo. "Plasmare il popolo: Machiavelli, 'vlichelangelo". a agir nos mais variados conlextos: por exemplo, orientando os
In: La Lettera Uccíde, op. cit. p. 240. Publicado origina lmente como: projetos de colonização transoceânica de Je-an-Pierre Purry.H
C II\ZBURC, C~trl o. "Jinmin o Keisei suru: Ylakiaverri, [VIikcranjcro,
In: Soredemo. Makíaverrí, Pasukalu, IV!isuzu Shobo, Tokyo, 2020, p.
88-118." 50 lbidem, p. l77.
48 ibidem, p. 193. 51 C INZBURG, Carlo. "!.:1 latitudine, gli schiavi, la Bibbia: Un espe·
49 C ll\ZBURC, Carlo. /l segrelo di Montaigne. In: La Lellera Uccíde, op. rimcnto di microstoria". In: l.a Letlera Uccíde, op. cíl., p. 12-30.
cit. p. 172. Publicado originalmente como: CI:-JZBURC, Carlo. ''Latitude,
Jfl
260 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo

A partir da análise de suas memórias Ginzburg examina a ponto de vista político. E por fim, argumenta qu e Volla ire se
relação de ambivalência que marcou a viela ele Purry em relação serviu do estranhamento (procedimento literário que transforma
à escravidão e à colonização. Segundo ele, Purry foi capaz de algo familiar numa coisa estranha, insensata ou ridícula) para
ver a Terra como um todo, algo incomum em sua época. Como exprimir sua concepção da irrelevância elas diferenças religiosas
Purry conseguiu fazer isso? De acordo com Ginzburg, mesmo e, mais ainda, para destruir a aura sagrada em que tais religiões
que inicialmente, Purry pensasse com a Bíblia (essa lhe fornecia estavam envoltas.»
seus argumentos) e, a partir dela, ele pro jetava palavras, expe- Por fim, citaremos um último exemplo que amplifica nossos
riências e eventos sobre o Livro Sagrado. Por conta disso, em vá- argumentos. Em um estudo que partiu de um fragmento de um
rios momentos ele sua trajetória, por exemplo, a ambivalência de fragmento, Ginzburg oferece uma nova interpretação acerca da
Purry se transformara eTil confl ito: ora justificava a conquista eu- querela dos ritos chineses, ou seja, da estratégia adotada pelas
ropeia do mundo fundamentando-se em argumentos teológicos missões jesuítas na China,H através de uma leitura êmica.
elo livro elo Êxodo, ora defendia os não-europeus da brutalidade
expansion ista europeia.
53 !vias para o nosso interesse mais imediato, podemos dizer que urna das
Podemos mencionar um outro estudo de caso, que faz aflo- questões fulcrais desse texto é o exame que Ginzburg realiza do pers-
rar a visão de mundo cio europeu, a partir da análise do pers- pectivismo de Voltaire (carregado de conflito e ambivalência) acerca
pectivismo de um intelectual do Iluminismo: Voltaire. Nesse da questão racial. O micro-historiador nos mostra que a hierarquia ra-
cial e mesmo o racismo no pensamento de Voltaire era amplamente
texto;2 conseguimos perceber em con junto os elementos mais partilhada pelos iluministas. Essa visão racial em Voltaire foi reforçada,
importantes presentes na reflexão mais ampla do historiador de acordo com Cinzburg, pelos negócios mantidos pelo filósofo fran-
italiano. Ele começa o texto ponderando acerca da crítica que cês, que desde sua juventude, investi ra altas somas na Companhia das
Índias, que estava profundamente envolvida no comércio de escraviza-
Erich Auerbach faz a respeito de um texto de Voltaire, no qual o dos, bem corno na sua visão europeia e ambivalente acerca do outro: o
fi lósofo fran cês compara a Bolsa de Valores ele Londres com um racismo justificaria a pilhagem do mundo. Voltaire compartilhava com
verdadeiro templo no qual não há distinção entre pessoas que seus contemporâneos uma série de atitudes que afirmavam a injustiça
ao invés de negâ-la. A ambivalência no pensamento de Voltaire, que
professam religiões (cristianismo, judaísmo e islamismo) diferen-
rnarca a relação do europeu com o outro, é clara: o mesíi1o autor do
tes. Em seguida, através do recurso da Logosformel, nos mostra Tratado sobre a Tolerancía; o mesmo intelectual que divulgava uma
como essa fa la de Volta ire havia sido inspirada ho Tratado teoló- reflexão positiva sobre o vegetarianisrno e a necessjdade de empatia
gico-político de Spinoza, para quem Amsterdã seria a demons- para com os animais, propagava pensamento,s racist~s contra negros e
judeus. E a incapacidade de Voltaire de viver à altüra dos princípios
tração ele que a liberdade de pensamento não seria perigosa do universais do Iluminismo reforça a hipótese'central de Cinzburg de
que o europeu da modernidade é ambivalente em relação ao outro;
ora respeita, ora explora -normalmente com justificativas religiosas e
Slaves, and the 13ible: t\n Experiment in ivlicrohistory. Criticallnquíry, eventualmente com críticas filosóficas .
XXXI, 3 (primavera 2005), p. 665-83." 54 CINZBURC, Carlo. Ancora sui riti cinesi: Doeu menti vecchi e nuovi.
52 CINZBURC, Ca rlo. Tolerância e comércio - Auerbach lê Voltaire, ln: La Lettera Uccide, op. cit., p. 186-20 J. Publicado originalmente
op. cit., p. lI 2-138. corno: GINZBURC, Carlo. "Ancora sui ri ti cinesi: doeu menti vecchi e
262 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma e o tempo

Em termos gerais, a história é a seguinte: em 1720, Carlo guagem que era para eles, ao mesmo tempo, distante c ramiliur.
Ambrogio Mezzabarba, foi nomeado legado papal para as Índias O profundo conhecimento ela história ela Roma antiga e do latim
Orientais e para o Império chinês. A ele fora atribuída a tarefa de permitiu a eles lançarem um olhar neutro, desapegado e etna-
obter do Imperador K'ang-his a aceitação do decreto apostólico gráfico sobre a China. 5;
Ex ílla die ( 1715) no qual o Papa Clemente Xl havia proibido os Ao longo de dois milênios, uma pequena seita centrada na
ch ineses convertidos ao cato! icismo para participar do culto dos memória de Jesus cresceu para se tornar uma religião mundial
mortos, em particular :10 culto de Confúcio. Ao nosso ver, esses através ele adaptações, acomodações, transformações. Se dissemos
missionários partilhavam uma perspectiva, pautada na sua inte- mais acima que a perspectiva elos jesuítas ern relação ao outro era
ração direta com o "outro" similar à ele Leibniz: a possibil idade similar à ele Leibn iz, a verdade é o oposto disso. :VIuito tempo de-
coexistência harmoniosa de uma multiplicidade das coisas. pois ela morte de Ricci, surgiu uma versão francesa do seu tratado
Os jesuítas, em seu impulso missionário, tiveram que apren- Dell'amicízía. Ginzburg demonstra que essa versão foi lida e ano-
der chinês; a se vestir e se comportar como alfabetizados chine- tada por Leibniz, que ficou profundamente impressionado com
ses, bem como tentaram ser bem-vindos à elite letrada chine- as hipóteses do rel igioso italiano. E é aqui que o círculo se fecha.
sa. Esta atividade mul:ifacetada foi inspirada em um princfpio
fundamenta l: a acomodação. Matteo Ricci, um desses jesu ítas, ll.
escreveu sobre os chineses um tratado intitulado Dell'mnicizía. Correndo o risco de ser redundante, creio ser possível afir-
Nesse texto ele demonstrou que os chineses davam uma impor- mar que Ginzburg reformulou a micro-história no que diz res-
tância extraordinária à etiqueta. E no último capítulo, relata os peito a maneira ele se chegar a conhecimentos globais de longa
elementos sociais envolvidos nos funerais, casamentos e feriados duração, tanto temporais quanto espaciais, através ela análise de
ele vários tipos: "Essa mesma cortesia que fazem com seus Ídolos um conjunto de estudos de caso. Na verdade, a micro-história pri-
e na Casa ou nos tempos antes elo altar". Segundo ele, a home- meva de Ginzburg, produzida nos anos 1970 e 1980 (Andarilhos
nagem aos ídolos foi um gesto comparável à saudação dirigida a do Bem, ele 1966, também pode ser incluído nc;.~se pa~wrama), já
alguém que se encontrava nas ruas: uma cerimônia civil e social. nos fornece princípios para se pensar elementos macro: a análise
De acordo com Ginzburg, Ricci sabia que o significado original da cosmovisão ele um moleiro friuliano nos permite pensar na
da palavra latina rítus estava próximo de mos ("costume"), uma margem de manobra que os camponeses passa~am a ter depois
vez que não se limitava à esfera religiosa. Rito simplesmente sig- da invenção da imprensa móvel por Gutei11l?erg; bem como pe-
nificaria "ele acordo com as regras". A%im, os jesuítas olharam los efeitos políticos propagados da Reforma Protestante.
para a C hina através de uma lente antiquária, usando uma lin- Entretanto, em seus ensaios dos anos 1990 e 2000, Ginzburg
avança nesse movimento. Os estudos de casos, exam inados pela
nuovi. In: i\ dieci anni dall'apertura deli'Archivio de lia Congregazione adaptação elas lentes metodológicas e conceituais de Warburg e
per la Dottrinn della Fede: storia e archivi dell'lnquisizione (Roma, 21-
23 febbraio 2008), Scienze e Leltere, Roma, 20 11 , p. 131 -44. 55 Jbidem,p.l96.
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Auerbach, dentre outros, lhe fornece subsídios para uma leitura forma de transmitir a ideia de que locais específicos sflo "fr<~gttt et t ­
da relação do cristianismo com o judaísmo. Isso é muito impor- tos" através dos quais processos "universais" podem ser observados,
tante visto que o possibilitou perceber algo extremamente global da mesma forma que as ciências sociais abordam os estudos de
e macro: o fundamento gnosiológico da relação do europeu com caso como meras exemplificações de teorias predefinidas.;6 O fun-
o outro em longa duração. O cristianismo, nesse sentido, ao ser damento dessa leitura é que, ao, alternativamente, "ampliar" e "di-
visto por seus teólogos :::omo o ramo enxertado na oliveira, cujos minuir" o foco elo microscópio, diferentes aspectos ela vida ele cam-
galhos originais (judeus) haviam caído devido a sua incredulida- poneses e de ouh·os grupos subalternos tornam-se mais visíveis. Há
de no messias; e ao se ver como o verdadeiro Israel de Deus, fun- assim uma confusão entre o tipo de análise (m icro/macro) e seu
damentou uma relação de distância e continuidade entre cristãos escopo espacial (local/global), gerando assim diferentes potenciais
e judeus; uma relação de proximidade e hostilidade. heurísticos ao micro e à macro, de forma a impedir o estudo das
A insistência na unicidade ela Encarnação produziu assim relações entre os locais em todo o espaço.
uma nova percepção da história humana. E para o historiador Nossa hipótese caminha em outra direção: assim como a
italiano, o núcleo cen tral elo paradigma historiográfico pode ser perspectiva micro-espacial de Ch ristian De Vi to, a abordagem ele
visto como uma versão secularizada elo modelo de adaptação, Ginzburg enfatiza (assim como as perspectivas de Levi, Grendi,
com binado com doses variadas de conflito e multiplicidade. Torre e Cerutti, por exemplo) a natureza social e historicamente
Nosso modo de conhecer o passado estaria assim impregnado construída dos lugares, iluminado a necessidade ele investigar as
de uma atitude similar àquela cristã em relação aos judeus. Da conexões entre os locais, tornando a utilidade do conceito ele
mesma forma, a própria maneira como o europeu olhou para o escala desnecessária. 1sso porque, mesmo quando as escalas não
"outro" ao longo dos últimos 500 ou 600 anos - permeada por são colocadas em uma hierarquia- a escala macro/ global/gran-
conflito, mas eventualmente composta por doses de um perspec- de sendo geralmente considerada como 'superior' elo que a mi-
tivismo carregado ele multiplicidade, como o estudo ele caso ela cro/local/ pequena - essa visão conceitual atribui características
trajetória ela obra de La Créquiniere demonstra- também pode fixas e possibilidades de conhecimento a cada nível histórico e
ser remetida a essas questões tratadas aqui. a cada nível ele observação. Em suma, a história " pro.duzida por
Talvez seja importante retomar agora algumas questões que Ginzburg a história incorpora as práticas sociais em lugares sin-
discutimos acerca de C:1ristian De Vi to no capítulo anterior e que gulares, mas amplamente conectados.
são, por outros caminhos, fundamentais para a compreensão da Nos últimos trabalhos ele Ginzburg que tr9uxemos exem-
obra ele Ginzburg em seu conjun to. Durante muito tempo a mi- plificados acima, corno os locais (ele Amsterdã às fndias) surgem
cro-história realizada pelo autor ele Hístóría Noturna foi lida como
se produzisse uma associação quase que exclusiva entre "o micro"
56 Retomamos aqu i, em um sentido dive rso, a reflexão de De Vi to acerca
e o "local". Nesse sentido, a análise construída por Ginzburg em da import-:lncia ele se pensar a história ''fora" ela ideia de escala. Para
livTos como O queijo e os vem1es foi lida erroneamente como uma maiores detalhes ver: D E VITO. Christian G . Hístory Without Scale,
op. cit.
266 Dcivy Ferreira Carneiro c Daniel Rezende Berbert Dias A forma c o tempo
r
como zonas ele conta to, e as relações sociais dali resultantes fun- lhores trabalhos de alguns micro-historiadores - no qual deve-
damentam conexões que "unem" vários locais. Os indícios e si- mos utilizar uma gama enorme de documentos e sistematizá-los
nais produzidos pela circulação de indivíduos, objetos e ideias através de experimentos (também mentais) numa perspectiva
podem, portanto, ser seguidos pelo espaço e também ao longo "científica", produzindo uma visão mais realista dos comporta-
do tempo. In do além da divisão escalar entre macro/micro ao mentos sociais, Ginzburg inova na sua concepção da micro-his-
estudar as singularidades conectadas, Ginzburg constrói um tória. Importante destacar que não estamos aqui qualificando as
programa de história verdadeiramente comparada. Entretanto, diferenças entre os modelos usados por Cinzburg e Le,·i numa
diferentemente de .:VIarc Bloch, os estudos ele Ginzburg analisa- hierarquia. Acreditamos, de fato, que por caminhos bastantes di-
dos nesse livro permitem a percepção de como os discursos e as ferentes, ambos historiadores chegam a conclusões historiográfi-
ações, por exemplo, foram produzidos pela circulação - "loca l" cas parecidas. O trabalho realizado por G iovanni Levi tem um
ou "global"- de icl eias e ele pessoas influenciaram ele forma dife- valor epistemológico fundamenta l panl a Llistória. Ao longo das
rente as experiências dos indivíduos elas pessoas imbricados em últimas décadas e, em especial em seu livro A llerança Imaterial,
outros loca is. F.sse tipo de análise nos permite ir além das abor- ele tem destacado com maestria que estudos verdadeiramente
dagens h·aclicionais de micro e macro como sinônimos de níveis microanalíticos são capazes ele revelar a coexistência ele múlti-
nos quais agência e estrutura estão respectivamente Iocal izadas.s7 plas temporalidacles em relação a diferentes atores, esh·atégias
A história produzida por Ginzburg apresenta, em um mes- sociais e locais. Desta feita o tempo tem sido experimentado
mo estudo, elementos que se desenrolam de forma multissecular de forma diferente por grupos de elite c subalterno, homens e
combinados com a epistemologia microanalítica que destaca a mulheres, crianças e adultos, etc. As práticas sociais, portanto,
complexidade, a descontinuidade e a desigualdade. Nesse sen- emaranham indivíduos e grupos que não só est'âo espalhados por
tido, "assim como a s:ngularidade de um lugar é feita por suas várias localidades, mas que também carregam passados, memó-
conexões simultâneas através do espaço, ela também é estrutu- rias e expectativas distintas. Sincronia e diacronia se misturam
rada fora da multiplicidade de suas conexões passadas. Daí, a nas ações e práticas dos indivíduos de carne e..osso.
divisão tradicional entre análises sincrônicas e diacrônicas pode l\a verdade, nosso objetivo aqui é demonstrar qtJe Ginzburg
ser superada". s~ ·esse sentido, através do uso da morfologia e das reformula a sua micro-história em direção de uma história pauta-
Logos{ormeln, Ginzburg consegue destacar as diversas tempora- da em procedimentos ela Literatura c da li istór!a da Arte (proce-
l idades dos processos que se reúnem em eventos específicos c dimentos talvez menos "científicos" e mais artísticos). Esses pro-
produzem dinâmicas não planejadas c inesperadas. cedimentos lhe permitiram vislumbrar um elemento de longa
Nesse sentido, ma is que o uso ele um modelo generativo, duração no tempo e no espaço que moldou, de in úmeras formas,
adaptado da antropologia - que fundamentou muitos dos me- a relação do europeu consigo mesmo, com os "outros", com os
orientais e assim, com o mundo.
57 Ibidem, p. 360. O pesquisador italiano, através ele cam inhos poucos usuais aos
58 Ibidem, p. 366. historiadores da sua geração, nos revela que o "macro" não pode
268 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias A forma c o tempo

ser verdadeiramente conhecido sem antes analisarmos e conhe- com a História cultural dos anos 1970 e 1980, este hi~tcu iadw \t·
cermos, através de uma leitura êmica, a maneira como as pessoas, mostra insatisfeito com a caraterização mecânica ele um moleiro
em seus locais de interação com os outros, criam pcrspectivismo perseguido pela inquisição, e por meio da anál ise ela forma como
fundamentados na distância, conflito, ambivalência e também, na essa personagem realizava suas leituras, revelou aos seus leitores
multiplicidade. E para assimilannos tal coisa, precisamos aprender, a margem de manobra que possuía o mundo camponês no con-
através de uma leitura lenta e filológica, como as ideias, pensamen- texto da Reforma Protestante e da disseminação da imprensa.
tos, imagens e símbolos viajam no tempo e no espaço, para então, De certa maneira, Ginzburg nos mostra, ao analisar o caso de
serem apropriados, reelaborados e enfim, reformulados. Menocchio, que legitimação dos argumentos c das ações exige dos
atores sociais a mobilização ele uma bagagem de conhecimentos,
12. de interpretações, ele recursos cultmais e materiais, bem como a
E cabe agora retomarmos a discussão sobre as contrad ições capacidade ele manipulá-los. E esses elementos, essa cultura prag-
elo faze r história de C inzburg dentro do projeto da micro-his- mática, se tornam constitutivos da análise social, da mesma manei-
tória que apresentamos no início da terceira parte desse livro. ra que as estratégias, os objetos, as escolhas econômicas, as esco-
De acordo com a crítica mais contundente de Grendi, poder- lhas matrimoniais etc. Sendo assim, a contcxtualização cultural c
-se-ia questionar se Ginzburg realmente produziria pesquisas a contextualização social estão :Jliadas naquilo de mais fundamen-
ligadas ao que se convencionou chamar ele micro-história italia- tal da micro-história 59 e o método de Ginzburg estaria fundamen-
na. Segundo o historiador genovês, as vicissitudes biográficas de tado ern uma série ele pressupostos microanalíticos:
Menocchio (aquelas que o historiador estava em condições de
Em primeiro lugar: a análise de todo fenômeno so-
reconstituir) não eram nada além de "trampolins" a partir dos cial demanda a mobi lização de uma pluralidade de
quais a análise poderia decolar para reconstituir uma cosmologia contextos, visto que todo objeto é composto de uma
complexa. Ou seja, uma trajetória de pesquisa estran ha àquela série de estratos, isto é, de uma quantidade de ele-
praticada por Crencli, Lcvi e outros micro-historiadores. mentos que assentam suas raízes em cronologias de
Afinal ele contas, um dos questionamentos que está na ori- diferentes profundid ades. Em segundo lugar: o tra-
gem de diversos estudos micro-históricos diz respeito à composi- balho de exploração destas cronologias variadas é co-
ção dos grupos sociais. A análise aprofundada das escolhas e das locado a serviço da reconstituição d~s "experiências"
vividas; aquelas, segundo C inzburg, que "não se es-
estratégias individuais questionava a ideia, advinda ele um mar-
gotam nem na experiência consciente nem naquelas
xismo vulgm, que identidades individuais e sociais estavam liga-
que deixam seus traços na documentação", mas que
elas automaticamente à questão de classe. Tratava-se ele produzir são compostas também por uma dimensão incons-
categorias verdadeiramente pertinentes e não anacrônicas, pau-
tada em modelos ana líticos apriorísticos. Mesmo seguindo cami-
nhos diferentes, C inzburg busca objetivos similares. Discutindo 59 CERUTTI, Simona. "Histoire pragmalique, ou de la renconlre entre
hisloire sociale et histoire culturelle", O/). cíl., p. 157.
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ciente que deve ser levada em conta. Fina lmente, c natureza dos fenômenos sociais.61 A micro-história de C111. hll'l!·
em conexão com o último ponto, é necessário rea- como estudo de caso, implica necessariamente uma relação entre
lizar um "jogo de escalas", isto é, realizar variações um experimento circunscrito e sua generalização.
do ângulo de análise que permitiriam ao pesquisador A micro-história reformulada por Gin7.burg radicaliza a pos-
manter uma distância crítica. Isto tornaria possível
sibilidade de um conhecimento mui to mais amplo de valores
apreender aquilo que não estava presente na cons-
e ideias, sem, efetivamente, se voltar para as metodologias da
ciência dos atores, mas que, no entanto, era constitu-
tivo de suas experiências. Estes três pontos cardinais
História Social. O que ele propõe, na verdade, é uma história
constituem, no trabalho de Carlo C inzburg, uma na qual a ideia de escala 11ão faz sentido; uma história em que
"cadeia documental", isto é, um percurso que, a as noções ele sincronia e diacronia acabam por se unir. Também
partir do documento, identifica progressivamente os não seria exagero afirmar, que por outros intrincados caminhos,
contextos nos quais inscrever sua análise. Esta identi- G inzburg já havia tentado realizar algo semelhante no seu
ficação procede de uma maneira que podemos cha- História Noturna .62 Só que ao contr{lrio desse livro denso, que
mar de concêntrica - que vai gradualme nte elo sen-
provocou acalorados deba tes, Ginzburg ampliou seus argumen-
tido que os atores dão ao fenôme no em questão, e m
tos por meio de um conjunto de artigos c ensaios pautados em
direção ao sentido mais distante e mais imprevisíve l
estudos de casos, muitas vezes anômalos.
que escapn a compressão consciente desses mesmos
atores, e que é construída por meio de comparações. Retomando aqui a relação c as conexões que ligam o que
Ou seja, não é devido à distância, mas graças à d istân- se escreve ao que se lê, conseguimos perceber, através da leitura
cia.60 (Tradução livre ). que propusemos, um Ginzburg historiador, mas também um lei-
tor atento e criativo. Conseguimos observar como suas diligentes
Esses procedimen tos adotados por Ginzburg lhes permiti- preferências ele leitura -e incorporar em sua prática -de proce-
ram vislumbrar um elemento de longa duração no tempo c no
espaço que moldou, de inúmeras formas, a relação do europeu
consigo mesmo, com os "outros", com os orientais e assim, com 61 Cl ' ZBURC, Carlo. "L1 lalitudinc, gli schiavi,1a Bibbia. Uu esperi-
mcnto di microstoria", op. cit.
o mundo. O caso ele Jcan-Pierre Purry, por exemplo, um profeta 62 Atualmente existe uma tendência, defendida por exemplo, por
ela conquista do mundo do capitalismo, poderia quebrar algumas Fraucesca Trivellato, de que o livro li istória Notuma seria um dos pri-
das barreiras que dividem a micro história "social" da micro-his- meiros livros de micro-história G lobal. N<J verdade, o problema que
guia essa obra, como demonstramos ao longo desse livro, é muito mais
tória "cu ltural". Uma viela escolhida aleatoriamente consegue o embate para reso lve r problemas em que o contexto do ob jeto ;mali-
tornar "concretamente visível" a tentativa de unificar o mundo e sado não é passível de ser conhecido. O problema central da obra é a
suas impl ieações: apenas adentrando profundamente no interior te ntativa de responder essas questões através do diálogo e ntre a I Iislória
e i'vlo rfologia. Apesar ele fazer uso da hist6 rin compa rada entre crenças
de um incl ivícl uo te ríamos alguma probabil idade de entender a
em longa duração espalhadas por u111a enorme parte do ph111ela, dizer
que se trata de uma obra que oferece e lementos da micro-história para
60 lbidem,p. 160 a produção de uma obra de llist6rin C loba I, é 11111 pouco anacrônica.
272 Deivy Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Berbert Dias

dimcnlos literários (ekphrasis e estranhamente), Arte, Literatura


e História geraram as proposições historiográficas/filol ógicas do
seu fazer enquanto hi ~toriador: um projeto amplo e ambicioso;
uma micro-história que pensa elementos muito particulares den- Considerações finais
tro de uma dinâmica e uma concepção "global", mais aberta e
de longa duração. Um projeto que acaba por condensar e dina-
mizar sincronia, diacronia, escala, método, estilo, teoria, histori-
cidade, etc., numa iniciativa ambiciosa e criativa.
Assim, ao fim dessa trajetória, esperamos que tenha ficado cla-
ro ao leitor que todo o método ginzburguiano (uma confluência Mais que uma conclusão, nosso objetivo aqui seria mais
de procedimentos historiográficos, artísticos, literários, filológicos uma espécie de acerto de contas com o leitor a respeito do nosso
e que enfatiza a questão logosfórmica) acaba por gerar um texto subtítulo que, lido de forma apressada, pode transparecer uma
hislórico experimental, fruto ele um projeto que constrói uma ver- certa pretensão. "Decifrando" faz alusão e é uma homenagem ao
dadeira história com pa ~aela ele longuíssima duração e que deixaria subtítulo de História Noturna, obra que foi a grande inspiração
Marc Bloch, acredilamos, extremamente impactado. do nosso livro. Usamos uma conj11gação desse verbo transitivo
direto, cujos significados podem ser os seguintes: explicar, inter-
pretar, compreender o sentido de uma escrita desconhecida; com-
preender aquilo que é obscuro ou intricado. Nesse sentido, nossa
leitura percebeu e traz, por assim dizer, uma possibilidade de
uma chave hermenêutica para a leitura da obra do Cinzburg, a
partir de elementos figurativos c literais, assim como Agostinho
construiu sua interpretação do texto bíblico.
A icleia do livro foi mostrar um Ginzb"urg n:enos usual;
um Ginzburg para além do seu O Queijo e os Vermes e de uma
leitura fácil e superficial da sua micro-história à maneira como
ela é geralmente absorvida no Brasil c em boa parte da América
Latina. Aquilo que guiou nossa pesquisa foi mostrar a~ referências
e influências mais profundas na configuração dos seus métodos
ele pesquisa e na forma como ele constrói sua visão de História e
escreve textos historiográficos. Nesse sen tido, 6 que justificamos
a ausência ou uma tímida referência, nessa obra, da análise ele
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autores que geralmente são vistos como fundamentais e referên- leva ao segundo ponto: alguns autores visualizam essa influên-
cias fáceis na formação de Carlo Ginzburg: lVlarc Bloch, Delio cia ela Benjamin na obra e pensamento de Ginzburg por não
Cantimori, Arnaldo lomigliano, Franco Venturi, Adorno, Ersnt conhecer e não perceber a verdadeira importância ela obra de
Gombrich, Antonio Gramsei, Sigmund Freud, dentre outros. Aby \tVarburg na configuração dos métodos ginzburguianos. Foi
São pensadores que evidentemente estão presentes nas reAexões lendo a obra ele Warburg que percebemos que muito daquilo
de Ginzburg, mas que ao nosso ver, não foram os fundamentos que fora atribuído a uma pretensa influência de Benjamin, vinha
assim como Erich Auerbach e Aby Warburg, para a construção na verdade do historiador ela arte de Hamburgo. Os conceitos
de sua forma de pensar e escrever. de sobrevivência e Pathosfonnel guardam evidentes semelhanças
Entretanto uma ausência precisa ser justificada: \Valter com o conceito de imagem dialética de Benjamin c com a forma
Benjamin. I\o início desse projeto, imaginávamos que o filósofo com que esse compreende a configuração entre a temporal idade
judeu seria uma referência essencial na constituição elo pensa- histórica e o espaço. Lembramos, nesse momento, do conceito
mento ele Cinzburg. 1\!Juito ela percepção de História; ela inter- de afinidades eletivas, cunhado por Michacl Lowy, para definir
polação cnb·e passado, presente e fu turo na obra do historiador a confluência de pensamentos entre os intelectuais judeus que
italiano nos remclia, inicialmente, a uma possível inAuência elas viviam na Europa central e meridional no final na transição elo
Teses sobre a f-1 ist6ria ele Benjamin e ele seus conceitos ele Aura e século XIX para o XX. Em suma, percebemos que conceitos c
lmagem Dialética. Entretanto, dois momentos foram fundamen- teorias ele Ben jamin aparecem no pensamento ele Cinzburg
tais para a mudança da nossa percepção sobre essa influência. Em apenas ele forma pragmática e apenas em poucos momentos ela
primeiro lugar, na troca de e-mai ls com Carlo Ginzburg, ele nos sua tra jetória, sobretudo na sua trilogia sobre o tema da bruxaria,
deixou claro que via essa influência de forma secundária; que ha- quando precisou provar, com base em conjecturas morfológicas,
via lido Benjamin na sua juventude e que havia, talvez, uma mar- suas hipóteses e teorias.
ca do pensamento do filó;ofo judeu em pensamento, mas que não Nossa leitura mostrou que eram de fato Warburg e Auerbach,
era algo fundamental. Todavia, como afirmamos na introdução, e não Benjamin, os pilares que estruturaram a. forma de fazer
partimos da perspectiva que qualquer leitura é uma formalidade história do autor de História Noturna. E para tal, tivc111os que
prática fundamentada em formalidades simból icas c históricas si- vencer uma leitura superficial da influência de Warburg em sua
tuadas c clatadas. 1 Partimos também do pressuposlo que nem sem- obra, remetida por seus comentaristas, a apenas u.m artigo, escri-
pre a opinião do autor acerca da sua obra é o caminho mais fác il to na década de 1960 e que afirmava que essa influência ainda
para uma melhor compreensão dela. Nesse sentido, acred itamos havia sido mediada por autores como Gornbrich e Panofsky. Esse
ele forma desconfiada das impressões elo italiano. Artigo- "De A. Warburg a K E-l. Gombrich", presente na cole-
[i'o i então ao longo da pesquisa e ela escrita do livro que per- tânea Mitos, Emblemas e Sinais-, escrito por um C inzburg em
cebemos que realm ente essa influência era diminuta. E isso nos início ele carreira, como vimos na Parlc li, refere-se a um debate
sobre as possibil idades do método warburguiano para a História
HANSEN, João Adolfo. "Ne11huma leitura é natural", op. cit., p. 12.
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da Arte e não é uma defesa ou mesmo marca de uma identidade mos que os elementos dessa inAuência ainda não haviam sido
no método de vVarburg. desvendados por nenhum outro estudioso da obra de Ginzburg.
Percebemos então que a direção intelectua l do historiador Mostramos nos dois primeiros capítulos como o proced imento
italiano tinha sido constru(cla muito cedo em sua carreira. Desde chamado de explicatíon de texte deve ser visto como fundamen-
a década de 1960, e nas seguintes, a questão-chave ele sua obra tal para compreendermos como as fontes primárias e os ob jetos
permaneceu inalterada: quais padrões eram apropriados para os de pesquisa são analisados por C inzburg: como um ponto de
historiadores usarem em sua busca pela verdade? O que as fon- partida e como uma "irradiação" com força suficiente no or-
tes podem nos dizer? Como os historiadores podem utilizá-las a denamento e interpretação elos fenômenos em questão. Além
contrapelo daquilo que seus compiladores pretendiam transmi- disso, essa explication de texte forneceu ao historiador italiano
ti r? Como afirmou Tony Molho, a experiência c o conhecimen- confiança em relação a possibilidade de obtenção con hecimen-
to acumulados ao longo elas décadas tornaram C inzburg mais to ele um texto mediante o procedimento filológico, mesmo a
ousado e seus temas mudaram. Não se limitava mais aos sécul os partir de suas características ontologicamente "parciais". Sem a
XVI e XVII. Agora englobava os mais diversos objetos ele pesqui- compreensão dessa relação não é possível apreender a fo rma de
sa, desde Flaubert c Picasse, ele Hobbes a Vico e até Aristóteles, Ginzburg fazer história.
assim como outros pensadores da Antiguidade, da Idade i\ilédia Para além dos elementos fi lológicos, demonstramos o papel
e do Renascimento.1 Construiu assim uma leitura de autores ca- de procedimentos literários na fundamentação do método ginz-
nônicos ela Literatura, Filosofia e História, mas a partir de uma burguiano. O uso de uma narrativa permeada pelo e.~tranhcunento
subversão elas interpretações canônicas: através do artifício da lo- proustiano e pelas ekphrasis são utilizados pelo italiano não apenas
gosformel, procurou analisar o caminho da transmissão de ide ias, como meio para produzir efeitos narrativos e deixar a leitura de
memórias, conceitos c percepções entre os ma is variados pensa- suas obras mais Auidas e interessantes. Demonstramos que esses
dores. E assim, construiu uma sólida pesquisa que avançou para proced imentos, antes de luclo, oferecem efeitos de verossimilhan-
além elo positivismo anacrônico e elo relativismo pós-moderno. ..
ça e de verdade aos seus textos h istoriográficos, opondo-o a certas
Oito isso, chegou a hora de relembrarmos aos leitores a im- tendências pós-modernas que tornam quase indistintos os limites
portância de Auerbach e Warburg na constituição elos aparatos entre a história e a ficção. Em suma, mesmo utilizando técnicas
metodológicos de Carlo Cinzburg. literárias na análise de textos de pensadores e arpstas renomados,
Dizer que existe uma grande inAuência das renexões ele Cinzburg está fundamentalmente preocupado com a questão da
Erich Auerbach no pensamento de Ginzburg é quase uma forma prova, construindo momentos dialéticos em que restaura e indi-
de senso comum historiográ fico. O próprio historiador italiano vidualiza a especificiclacle e a singularidade dos seus objetos de
assumiu essa faceta ern im:ímeros b·abalhos e enlrevistas que pro- pesquisa, nas temporalidacles nas quais eles estão inseridos
duziu ao longo dos (Jlti mos 30 ou 40 anos. Entretanto, acredita- Deciframos também a intrincada relação enb·e os métodos
de Aby Warburg e aqueles de Carlo Ginzburg. Além de rccu-
2 tviOLHO, Tonr, op. cit., p. 133.
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r
perarmos e b·azermos ao leitor uma análise acurada da obra de por mais diferenças que apresente em relação à micro-história
Warburg, algo não tão comum na historiografia brasileira, mos- praticada por Levi ou Grencli, oferece ferramentas para com-
tramos o profundo débito do italiano em relação ao historiador preendermos aspectos gerais de nossa História através da análise
da arte de Hamburgo. circunscrita de casos e indícios.
Foi a partir dos conceitos de sobrevivência e de Pathosfonnel Partimos de um caminho pouco usual: procuramos analisar
que Ginzburg construiu seu conceito de Logosformel que, jun- as peculiaridades da sua maneira de construir uma micro-h istó-
tamente com a sua leitura filológica da História e com o uso de ria a partir ela sua contribuição para o debate com a chamada
procedimentos literários, possibilitou a criação da metodologia História Global, comparando sua perspectiva com a ele alguns
ele análise que tem sido utilizada na maior parte dos seus ensaios outros micro-historiadores, trazendo a história comparada ao
escritos desde a década de 1990 e tem transformado o italiano cerne ele nossas anál ises. Através do exame de uma série de estu-
em um elos historiadores mais importantes elos últimos cinquen- dos ele caso conseguimos ler a obra ele Ginzburg de uma forma
ta anos. Por fim, é importante ressaltar que tentamos comprovar mais ampla. Ao recorrer ao exame das Logosformeln, Ginzburg
esse vínculo metodológico, aplicando Ginzbmg para entender nos revelou como ideais, emoções e conceitos são transmitidos
Ginzburg no exame de trechos de História Noturna, seu livro em circunstâncias clissímeis, nas quais os tempos mais ou menos
mais denso . Para compreender a obra do italiano, tentamos mi- curtos se entrelaçam com os tempos longos da evolução históri-
metizar sua forma de pensar e escrever (sem a pretensão ele pro- ca. E tal leitura lhe permitiu perceber algo extremamente global
duzir um texto com a mesma qualidade, evidentemente) e "macro": o fundamento gnosiológico ela relação elo europeu
Acreditamos ter demonstrado também o papel que a leitura com o outro em longa duração. O cristianismo, ao se ver como
elo texto sobre a dança com a serpentes, escrito por \Varburg por o verdadeiro Israel de Deus, fundamentou uma relação de dis-
ocasião ele sua viagem antropológica ao território elos Pueblos, tância e continuidade entre cristãos e judeus; uma relação ele
assim como o conceito ele sobrevivência, tiveram um papel ele- proximidade e hostilidade que foi estendida também a qualquer
terminante na forma como Ginzburg analisou as anomal ias e o não europeu. O micro explica o macro.
núcleo folclórico elo sabá. Através ele um exame morfológico, o Concluindo, sabemos que nossa leitura 'da obr~1 ele Carlo
italiano conseguiu asseverar como cada época selecionou e se Ginzburg não é a única possível nem a única correta . Todavia,
apropriou ele determinadas sobrevivências que-deram origem ao podemos afi rmar, sem medo ele parecermos Rresunçosos, que
sabá das bruxas. Essa cadeia ele tradições em nada se aproxima deciframos aquilo que é fundamental na sua fo.rma de pensar e
com a icleia de b·ansmissões passivas, já que cada época, analisa- escrever História. E é aqui que encerramos·nósso ajuste ele contas.
ela em História Noturna, transformava o material mnésico "rece-
bido" de acordo com suas necessidades contextuais.
Por fim, deciframos também as peculiaridades ela micro-his-
tória de Ginzburg; uma micro-história excepcional normal que,
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Aby. A presença do Antigo A presença do Antigo: ensaios inédi-
tos. 1" ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2019.
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Aby Warburg. E! renascímíento del paganismo: aportaciones a
Agradecimentos
la hístoria cultural del Renascimento europeo. Madrid: Alianza
Editorial, 2005, p. 147-176.
WARBURG, Aby. "E! trabajo campesino em los tapices Aamencos".
ln: \t\1ARB URG, Aby. El renascimiento dei paganismo: aporta-
cíones a la historia cultural del Renascimento europeo. :Madrid:
Esse livro foi gestado no contexto ela pandemia elo corona-
Alianza Editorial, 2005 .
vírus, no Brasil, entre 2020 e 2021. Escrever a duas mãos já é
'vVARBURG, Aby. "Irr:agens da região dos índios Pueblos" In:
WARBURG, Aby. Histórias de fantasma (Jara gente grande: es- uma tarefa compl icada. Separados por mais de mil quilômetros,
critos, esboços e conferências. 1" cd. São Paulo: Companhia elas e, nesse contexto, tornou-se dramaticamente cansativo. Foram
Letras, 2015. dias fatigantes, muitos deles depressivos, algo que invariavel-
WARBURG, Aby. "1v1emórias da viagem à região dos índios pue- mente impactou nossas reflexões. Gostaríamos então, em pri-
blos na América do Norte, Fragmentos para uma psicologia do meiro lugar, de agradecer a todos os brasil eiros anônimos que
exercício primitivo da arte". In: \:V,'\RBURG, Aby. Histórias de mantiveram os serviços básicos funcionando e possibilitaram
fantasma para gente grande: escritos, esboços e conferências. 1" que continuássemos escrevendo nessa situação de calamidade.
ed. São Paulo: Companhia elas Letras, 2015. Gostaríamos também ele dizer que as centenas de milhares ele
WARBURG, Aby. "Mnemosyne. O atlas das imagens". In: brasileiros que perderam suas vidas não serão esquecidos: haverá
WARBURG, Aby. A Presença do Antigo A fmsença do Antigo: justiça para todos vocês!
ensaios inéditos. 1" eel. Campinas: Editora da Unicamp, 2019.
Esse livro não seria possível sem a ajuda de Carlo Ginzburg.
WARBURG, Aby. "O antigo romano na oficina de Ghirlandaio". " envi9u materiais
Desde o início ele acompanhou sua gestação;
In: WARB URG, Aby. A presença do Antigo: ensaios inéditos. I"
(inclusive inéditos) e debateu nossa pesqu isa em diferentes con-
ed. Campinas: Editora ela Unicamp, 2019. _
textos com mu ita empolgação. Somos gratos p~la animada inter-
WARBURG, Aby. "O nascimento de Vênus e A primavera ele
Sandro Botticelli". In: WARBURG, Aby. Histórias de fantas- locução. Da mesma forma agradecemos·a Sin1ona Cerutti pelo
mas para gente grande: escritos, esboços e conferências. I" ed. gentil prefácio, ao Luís Augusto Farina tti pela quarta capa e ao
São Paulo: Companhia das LelTas. João Fragoso pela orelha do livro.
WEBB, Ruth. Ekphrasís, Imagínation and Persuasíon ín Ancíent Agradecemos também ao colega Cléber Amaral Felipe.
Rhetorical Theory and Practíce. Surrey: Ashgate, 2009. Sempre disposto a ler e a corrigir o texto, também forneceu
WOOD, Christopher S. "Aby Warburg, I-Tomo víctor". Joumal ofArt inúmeros insights sobretudo acerca da relação entre História e
Hístoríography Number 11, December 20 14. Literatura e sobre o tema da ekphrasis.
294 Dei V)' Ferreira Carneiro e Daniel Rezende Bcrbcrt Dias

Christian De Vito foi um importante interlocutor e forne-


ceu dicas importantes a respeito da relação entre :\!Iicro-história
c História Global. Francesca Trivellato leu o quinto capítulo e
fez apontamentos significativos. Somos gratos aos dois.
Eu (Deivy) gostaria de agradecer a minha família, sobretudo
a Laura. Sem sua ajuda esse trabalho não seria concluído. Para
que cu pudesse pesquisar c escrever você renunciou a parte de
seu trabalho c cuidou amorosamente dos nossos filhos e de mim.
Obrigado por todo apoio e suporte. Dedico esse livro a Isabella e
ao Emanuel, mas principalmente a você.
Eu (Da niel) agradeço a David Berbert, sem a sua sagaci-
dade, talento e trabalho árduo para fazer prosperar os negócios
da famflia, eu não teria o tempo e os recursos necessários para
a esc rita dessas páginas. Esse livro é fruto de seus esforços tan-
to como dos meus, irmão. Agradeço também a minha irmã,
Danielle, que além ele ser a minha melhor amiga nessa vida,
como historiadora ouviu e leu muitas das icleias presentes aqui.
Dela também foram os primeiros livros que li (meio que surru-
piados) de Cinzburg. Ao Deivy, meu companheiro de escri ta,
minha eterna dívida por conseguir enxergar e estimular em mim
a possibilidade de ser escritor. Por último gostaria de honrar a
memória da escritora c professora de hebraico Betty Bacon, mis-
sionária batista inglesa, que tive a sorte de conhecer na infância.
Foi pelo empenho dela que me tornei um ávido leitor, pelo que
lhe serei eternam~nte grato.
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Esta obra fo i impressa em São Paulo


no inverno de 2022. No texto foi uti-
lizada a fonte Electra LH em corpo
10,5 e entreli nha de 15 pontos.

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