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DUAS

PALAVRAS

Ao anunciar a ruína do templo e os últimos dias do
mundo, Nosso Senhor predisse: “E porque abundou a
iniquidade, se há de resfriar a caridade de muitos”. “Quoniam
abundavit iniquitas, refrigescet caritas multorum”. (Mt 24,
12).
Parecemos chegados a estes dias sombrios: resfria-se
a caridade, o fervor de tantas almas, enquanto a iniquidade
cresce assustadoramente. A tibieza é o grande flagelo, é o
espinho mais doloroso do Coração de Jesus; sobretudo a
tibieza das almas consagradas a Deus, das almas outrora fiéis
à graça.
Não se presta bastante atenção à tibieza, esta
mediocridade perigosa e funesta na vida espiritual; daí tanta
falsa piedade e esta ausência do verdadeiro espírito
evangélico, do sentido cristão na vida de muitos devotos e
devotas. O espírito de sacrifício, o senso da
responsabilidade, a seriedade, a tremenda seriedade da vida
cristã de que fala Bossuet, tudo isto anda aí tão esquecido,
tão mal compreendido. Só almas fervorosas poderão salvar
este mundo paganizado. Almas de elite. Almas de neve e
corações de fogo, no dizer do Pe. Mateo. Mas elas são tão
raras, tão raras, meu Deus!
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Que este livrinho seja uma centelha e provoque
incêndios e ilumine algumas almas. Eu o consagro ao Divino
Coração de Jesus, fornalha ardentíssima de amor.
Cor Jesu, flagrans amore nostri, inflamma cor nostrum
amore tui! Coração de Jesus, todo abrasado de amor por nós,
inflamai nosso coração nas chamas de vosso amor!

Junho de 1937
Mons. Ascânio Brandão

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I. O QUE É A TIBIEZA?

A tibieza é uma doença espiritual, e das mais graves e
perigosas. É o verme roedor da piedade. Micróbio terrível!
Mina o organismo espiritual, sem que o enfermo o perceba.
Enfraquece a pobre alma, amortece as energias da vontade.
Inspira horror ao esforço, afrouxa a vida cristã. Espécie de
languor ou torpor, diz Tanquerey1, que não é ainda a morte,
mas que a ela conduz sem se dar por isso, enfraquecendo
gradualmente as nossas forças morais. Pode-se compará-la
a estas doenças que definham, como a tísica, e consomem
pouco a pouco algum dos órgãos vitais. É uma sonolência,
um sistema de acomodações na vida espiritual.
O tíbio não quer lutar, tem horror ao combate da vida
cristã. Não compreende a palavra de Nosso Senhor no
Evangelho: “Eu não vim trazer a paz, mas a guerra”! Guerra
ao pecado, guerra às paixões, guerra à indiferença. “Quem
não é por mim, é contra mim”!
O tíbio não compreende este radicalismo sublime do
Evangelho e da cruz. Numa palavra o define bem o Espírito
Santo: É morno, nem frio, nem quente. Nem o ardor da
caridade, o fogo do amor, nem o gelo da descrença, da
impiedade e da morte da alma.
A tibieza é uma inércia espiritual, um estado
lamentável da alma. É a mediocridade que se contenta com
não ofender a Deus pelo pecado mortal, mas não quer evitar
o pecado leve, nem fugir do relaxamento na vida espiritual.

1 Ascética e Mística, 1270, Cp. IV, Tom. II


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Enfim, para defini-la com precisão e distingui-la do
que a ela apenas se assemelha (como a aridez e outras
provações da vida espiritual), vamos dar a sua definição.

Definição
A tibieza define-a S. Afonso pelo que a caracteriza: o
pecado venial. A tibieza, diz o Santo Doutor, é o hábito do
pecado venial plenamente voluntário. Guardemos bem esta
definição: para a tibieza essencial são necessárias três
condições:
1. O pecado venial plenamente voluntário;
2. O hábito do pecado venial voluntário;
3. A paz com este hábito e a ausência de esforços para
se corrigir.
Desde que falte uma destas condições, já não há
tibieza propriamente dita.
Uma alma talvez caia de vez em quando em alguma
falta venial; cai por fragilidade, por miséria. Emenda-se logo,
toma boas resoluções, corrige-se. Todavia é tão grande a
fraqueza humana! Uma vez ou outra chora uma falta venial.
Não é tibieza: houve o pecado venial, mas não o hábito do
pecado venial e muito menos ainda a paz com o pecado
venial. Há esforço, generosidade, boa vontade,
arrependimento sincero.
O Pe. Desurmont define a tibieza, comentando
admiravelmente S. Afonso: “A tibieza é o hábito não
combatido do pecado venial, ainda que seja um só. É um
hábito fundado num cálculo implícito: ‘Esta falta não
ofenderá a Nosso Senhor gravemente, não me há de condenar.
Pois vou cometê-la’. É um ato dificílimo de se desarraigar da
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alma. É um hábito muito espalhado sobretudo entre as
pessoas que fazem profissão de piedade e entre as almas
consagradas a Deus”.

Espécies de tibieza
A tibieza propriamente dita é a que definimos: o
hábito do pecado venial voluntário, e a paz com este hábito.
Há, entretanto, outras espécies de tibieza.
1. A tibieza de fragilidade e irreflexão. Até os Santos
a experimentaram; só a Virgem Imaculada não a teve. Nosso
Senhor permite nos Santos algumas fragilidades e misérias
para conservar neles as virtudes fundamentais da
humildade, a desconfiança de si, a compaixão para com as
misérias alheias, o desapego da terra e o desejo do céu.
Oh! os santos tiveram as suas pequenas fragilidades e
misérias. Como se humilhavam!
Um dia S. Vicente de Paulo, num ato irrefletido de
amor próprio, envergonha-se de um parente pobre! Como se
humilhou perante seus irmãos por esta falta!
S. Teresinha, no leito de morte, sente-se pobrezinha e
imperfeita com uma fragilidade: “Como sou feliz, diz ela,
vendo-me tão imperfeita e com tanta necessidade da
misericórdia do Bom Deus no momento da morte”.
Santa Bernadette, o anjo de Lourdes, lamenta as suas
imperfeições, a teimosia que a humilhava tanto. S. Catarina
Labouré lamenta igual defeito. Guido de Fontgalland expia
no leito de dores o que ele chamava as suas preguiças.
Poderia multiplicar os exemplos; são as misérias inerentes a
esta pobre natureza humana.
A perfeição inteira e absoluta não se encontra neste
mundo. O Concílio de Viena condenou o erro dos que
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afirmavam que o homem, nesta vida mesmo, pode adquirir
um tal grau de perfeição, que se torna impecável e incapaz
de progredir na virtude. Tal foi também o erro dos
Iluminados.
O Concílio de Trento é mais claro ainda: condena
quem disser que o homem pode, durante esta vida, evitar as
mais pequeninas faltas, a não ser por um privilégio especial
de Deus; e este privilégio só o teve Maria Santíssima (Sess. 6,
can. 23).
A tibieza de fragilidade é inevitável, não nos
perturbemos com ela. Recorramos à oração, aos
sacramentos e sobretudo à Santa Eucaristia, e nos
purificaremos sempre destas fragilidades e misérias.
2. Tibieza da vontade. É mais grave que a de
fragilidade: é a vontade enfraquecida. Deus a permite para
confusão de nosso orgulho e para melhor nos convencer de
nossa miséria. Um firme propósito, um gesto de
arrependimento sincero, com a resolução de se vigiar com
mais cuidado, e tudo está reparado. A tibieza de vontade é
facilmente remediável.
3. Tibieza do pecado venial voluntário e habitual. É
desta que aqui vimos tratando.

Sinais da tibieza
Os sinais da tibieza em geral são os oito seguintes:
1. Omissão fácil das práticas de piedade. A alma
fervorosa tem a sua vida de piedade toda dirigida por um
regulamento particular, fácil de ser observado e bem
criterioso. Não omite facilmente qualquer prática de
piedade. É de uma fidelidade extrema, sobretudo à
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meditação. Se graves ocupações ou verdadeira necessidade
a impedem, procura, logo que seja possível, suprir a falta.
A alma tíbia sob qualquer pretexto omite os exercícios
de piedade, passa dias sem meditação, e até mesmo sem
práticas de piedade de qualquer espécie. Ora, isto é
exatamente o contrário do fervor. “Não digo que isto prove
tudo — diz o Pe. Faber2 — mas prova muito. Seja como for,
sempre que existir tibieza, existirá este sintoma”.
2. Fazer os exercícios de piedade com negligência.
Na tibieza também há oração, missas, confissões,
comunhões, terços, etc., mas a rotina vai inutilizando tudo —
a rotina e a má vontade. Confissões e comunhões mal
preparadas, orações com inúmeras distrações voluntárias, e
(o que é pior ainda) a falta de generosidade e de todo esforço
para se corrigir.
3. Outro sinal de tibieza é a alma sentir-se
aborrecida com o pensamento de que tudo vai mal na sua
vida espiritual. Não se sente inteiramente à vontade com
Deus. Não sabe exatamente onde está o mal, mas tem certeza
de que tudo não está em ordem. É um mau estar, um
aborrecimento interior. E, sem paz, o tíbio se agita
inutilmente e vai deixando arraigar-se-lhe no coração o
hábito do pecado venial.
Este sinal anda sempre com os dois primeiros: desde
que faltou generosidade numa alma para ser fiel aos seus
deveres de piedade, estas omissões e negligências acabam
deixando-a num estado lamentável de aborrecimento das
coisas santas e até de Nosso Senhor.

2 O Progresso na vida espiritual. - Trad. (Cap. XXV).


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4. O quarto sinal é agir sem pureza de intenção, sem
ordem nem método. A pureza de intenção consiste em
fazermos com um fim honesto e sobrenatural todas as ações
de nossa vida: práticas de piedade, deveres de estado,
trabalhos de cada dia ou qualquer coisa por mínima que seja.
É aquele olhar interior sempre fixo em Deus e desviado das
criaturas.
Tudo fazer para a glória de Deus, e ver em tudo a
vontade de Deus e a ela se submeter com espírito de fé e
resignação. Eis a mais pura intenção que se pode imaginar, o
mais elevado princípio e o mais perfeito ideal de uma alma
fervorosa. Os santos não tinham outro motivo nem visavam
outro fim na terra.
S. Madalena de Pazzi sentia-se arrebatada em êxtase,
ouvindo esta palavra: a vontade de Deus! S. Inácio legou à
Companhia de Jesus, como rica herança, o seu lema: A.M.D.G.
— “Ad majorem Dei gloriam: Tudo para a maior glória de
Deus!
A pureza de intenção é a alquimia celeste que
transforma todas as nossas boas obras em ouro de méritos
para o céu; sem ela, perdemos cada dia riquezas
incomensuráveis.
A alma tíbia faz tudo por amor próprio e capricho,
seguindo em tudo a natureza. É a leviandade, a preocupação
da vontade própria, os cálculos muito humanos, a vaidade
quando faz o bem, o desejo de agradar às criaturas e de
aparecer. Anda em busca de louvores e aborrece o sacrifício
oculto, a abnegação e outras virtudes que não brilham aos
olhos das criaturas e constituem o segredo do Rei! E Deus
recompensa as nossas ações, diz Santa Madalena de Pazzi, a
peso de pureza de intenção. Oh! como a tibieza rouba e
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despoja a pobre alma, quando lhe arrebata a pureza de
intenção!
5. Contentar-se com a mediocridade e negligência
em formar hábitos de virtude. Se a mediocridade já é
desastrada na ciência, na literatura e na arte, o é em
proporção verdadeiramente calamitosa quando se trata da
prática da virtude. O medíocre não gosta da palavra
santidade. Não compreende o heroísmo das almas
generosas, a abnegação, o sacrifício. Para ele, a virtude
heroica é exagero!
A santidade é um misticismo! E o que entende por
misticismo? Algo de loucura e de anormal. Contenta-se com
o meio termo, e assim não se esforça por adquirir hábitos de
uma virtude sólida.
6. O desprezo das pequenas coisas. Os santos fugiam
das menores imperfeições, e se purificavam a cada dia das
pequeninas faltas. O tíbio, não. Ri-se do que ele chama
“escrúpulo” das almas fervorosas, isto é, a fidelidade nas
pequenas coisas.
E não nos esqueçamos destas grandes verdades.
Primeira: os santos se tornaram santos pela repetição
contínua de uma multidão de ações insignificantes, pelo
cuidado infatigável das pequeninas coisas. E segunda: só
fizeram eles grandes coisas quando chegaram à santidade.
Os pequeninos sacrifícios ocultos, as pequeninas
cruzes, as pequeninas virtudes, as pequeninas mortificações,
tudo isto a cada dia, a cada minuto, aceito com generosidade,
como santifica uma alma! É o caminho batido de S.
Teresinha, a pequenina via da Infância espiritual. Que fonte
riquíssima de graças!
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A tibieza, porém, seca esta fonte, esteriliza a vida
espiritual. Sonha com êxtases e comete cada dia o pecado
quase sem remorso. E os pecados veniais, sob o disfarce de
pequeninas faltas inevitáveis à fraqueza humana, vão se
multiplicando assustadoramente na alma e alimentando a
tibieza até ao pecado mortal e, sabe Deus, até ao
endurecimento do coração!
É muito grave desprezar habitualmente as
pequeninas coisas. S. Gregório chega a dizer que se deve ter
mais receio das pequenas faltas que das grandes. Porque
estas provocam logo o arrependimento e causam horror;
aquelas não assustam, e vão preparando surdamente a ruína
espiritual; e (o que é pior) sem remorso da consciência, e até
sob a capa da virtude.
7. Pensar mais no bem já feito do que no bem que
ainda resta a fazer. É uma presunção que leva a descansar
e afrouxar no caminho do sacrifício e da virtude, porque
julga ter feito alguma coisa no passado para a salvação; nada
de esforço e generosidade. Nosso Senhor dizia no seu
Evangelho que, depois de termos feito muito, deveríamos
dizer: “Somos servos inúteis” e prosseguir na luta, porque o
ideal da perfeição é o Infinito: “Sede perfeitos como vosso Pai
Celeste é perfeito”.
A tibieza, como já dissemos, contenta-se com a
mediocridade. Julga ter feito muito a alma tíbia, porque no
passado foi bem fervorosa e trabalhou pela sua santificação,
lutou, praticou boas obras de zelo e de caridade, sacrificou-
se na luta do bem. Agora, quer repouso. Descansa, não luta
mais. Deixa-se ficar na indolência e faz de seu coração o
campo do preguiçoso. S. Paulo pensava justamente o
contrário: “Irmãos meus, não considero que alcancei o prêmio,
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mas uma coisa eu faço: esquecendo o que está atrás de mim,
esforçando-me por alcançar o que está na minha frente,
prossigo até ao alvo, para alcançar o prêmio da suprema
vocação de Deus em Cristo Jesus. Sejamos nós, quantos
queremos ser perfeitos, do mesmo espírito” (Filip 3, 13).
O tíbio não se compara aos mais santos e fervorosos,
mas sempre se julga melhor do que tantos outros piores do
que ele, e é assim que adormece tranquilamente. Não quer
progredir na virtude.
S. Gregório compara a vida cristã a uma barca em que
se navega contra a corrente: quem sobe, há de remar
sempre, ou é arrastado pela correnteza. S. Agostinho, no seu
estilo incisivo e claro, assim fala: “Se dizes: ‘Basta’ estás
perdido!". Sim, no dia em que se cruzam os braços na luta
pela santificação da alma, tudo está perdido! Adeus,
santificação, e talvez: Adeus, salvação eterna!
S. Bernardo pergunta: “Não quereis adiantar? Dizeis:
‘Quero ficar e viver onde cheguei’? Quereis o impossível!”.
“O demônio — diz S. Teresa — conserva muitas almas
no pecado ou na tibieza, fazendo-as crer que é orgulho aspirar
à santidade”. Que perigosa ilusão! Lembrem-se os tíbios,
sobretudo se já receberam graças de Nosso Senhor, como
por exemplo sacerdotes, religiosos e almas consagradas a
Deus... oh, lembrem-se de que é terrível abusar da graça. E
“muitas almas chamadas à santidade — diz o Pe. Desurmont,
baseado em S. Afonso — ou se salvam como santos, ou
arriscam a sua eterna salvação”.
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Escreveu o Santo Doutor: “Se alguém na vida religiosa
(e poderíamos acrescentar: na vida de piedade) quer se
salvar, mas não como santo, corre o risco de se perder”3.
Todos estes sinais de tibieza andam em geral com este
último e inflável:
8. Pecado venial voluntário e habitual. Os outros
sinais podem ser atenuados ou alguns falham, mas este é
infalível: onde existe o hábito do pecado venial, existe a
tibieza com todo o cortejo de males e desgraças que ela
acarreta à vida espiritual.

O pecado venial
Embora em grau inferior, o pecado venial oferece,
todavia, os mesmos caracteres de malícia que o pecado
mortal. A rainha Maria Teresa de França, esposa de Luís XIV,
chorava uma falta venial; a delicada consciência da Princesa
a deixava inconsolável.
— Como?! disseram-lhe... tanta lágrima, por uma falta
leve, um pecado venial?!
— Sim, pode ser venial, mas é mortal para o meu
coração!
Tudo quanto ofende a Nosso Senhor, nunca é leve ou
coisa de pouca importância para uma alma fervorosa; e o
pecado venial é uma ofensa a Deus. Há nele três
circunstâncias agravantes:
1) Uma injúria à Majestade Divina;
2) Revolta contra a Autoridade de Deus;
3) Ingratidão à Bondade Eterna.

3 La volonté de se sauver en saint — Pe. Desurmont.


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Deus, em cuja presença estamos, é ofendido, e por
uma bagatela: um ato de preguiça, uma vaidade, uma
desobediência! Não desprezemos o que fere tanto ao
Sagrado Coração de Jesus!
O pecado venial ofende a Deus. E isso não basta para
que o aborreçamos? Embora seja venial, sempre é mortal
para nosso coração e para a delicadeza de nossa consciência.
É uma injúria à Majestade Divina. Num dos pratos da
balança colocamos a vontade de Deus e a sua glória, e no
outro, o nosso capricho e nosso prazer, e ousamos preferi-
los a Deus! Que ultraje!
Diz S. Teresa: “É como se alguém dissesse: Senhor,
apesar desta ação vos desagradar, não deixarei de fazê-la.
Não ignoro que a vedes, sei perfeitamente que não a quereis,
mas prefiro a minha fantasia e a minha inclinação do que a
vossa vontade”.
E seria coisa sem importância proceder desta forma?
“Quanto a mim — acrescentava a Santa4 — por mais leve que
seja a falta em si mesma, acho, pelo contrário, que é grave e
muito grave”.
Não cometamos o pecado venial deliberado sob o
pretexto de que não ofende a Deus gravemente. É pecado, e
basta isto para ser objeto de nosso ódio.
O pecado venial é uma revolta contra a Autoridade
Divina. É como se disséssemos a Nosso Senhor: Quero vos
obedecer, Senhor; mas quando esta obediência não me
aborrecer e quando me agradar, e quando eu bem quiser. Isto
é obediência? Não é uma injúria e um desrespeito à
Autoridade Divina?

4 Caminho de Perfeição, cap. XLI.


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Mas o que é mais triste no pecado venial é a
ingratidão sem nome que ele encerra. Desta ingratidão
queixou-se Nosso Senhor à S. Margarida Maria, mostrando-
lhe o seu Divino Coração rasgado pela lança e cercado de
uma coroa de espinhos. Estes espinhos eram a imagem das
almas ingratas, sobretudo das almas consagradas a Deus que
vivem na tibieza; são as que mais ferem o Sagrado Coração
do Bom Jesus.
Uma injúria à Majestade Divina! Uma revolta contra a
Autoridade Divina! Uma ingratidão à Divina Bondade! Meu
Deus, meu Deus! Isto é leve? Oh! combatamos o pecado
venial deliberado.
“Eu me lançaria num oceano de chamas se fosse preciso
— dizia S. Catarina de Sena — para evitar um só pecado
venial; e preferiria permanecer neste fogo a dele sair por um
só pecado venial”. Exagero? Não. Os Santos sabem melhor
avaliar o que é uma alma, o que é um Deus ofendido e o que
é uma eternidade que se arrisca!
Estejamos prontos, se for preciso, a padecer e morrer,
mas não cometer um só pecado venial! Oh! quem nos dera
tão bela disposição!

Castigos do pecado venial
O pecado venial é punido severamente pela Justiça
Divina e às vezes com terríveis castigos!

A mulher de Ló se transforma em estátua de sal por
um pecado venial de curiosidade. Moisés é privado da
consolação de ver a terra prometida por um pecado venial
de desconfiança. Quarenta e dois meninos, porque
zombaram do profeta Eliseu, são punidos e mortos pelas
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feras. Ananias e Safira, fulminados por um pecado venial de
mentira!
E pode-se dizer ainda que o pecado venial é de pouca
importância? Deus o castigaria assim com tanta severidade?
São castigos temporais. Mais terríveis, porém, são os
castigos espirituais.
O pecado venial leva ao abuso da graça; e quando se
abusa da graça, a fonte das graças vai secando! Ai! em que
abismos se precipita quem abusa da misericórdia e esbanja
o tesouro da graça! Cuidado! Tremei! Nada tão grave e de
maior responsabilidade como o emprego da multidão de
graças que Nosso Senhor nos prodigaliza a cada dia!
“As contas das graças — diz S. Afonso — são mais
severas que as dos próprios pecados!". E o pecado venial,
sobretudo o hábito do pecado venial, eis aí também o estado
de contínuo abuso da graça! E Deus ofendido, por castigo,
retira a sua graça ou vai dá-la a outros. Haverá mais
tremendo castigo?

II. CONSEQUÊNCIAS E MALES DA TIBIEZA
A tibieza tem consequências funestas na vida espiritual
e acarreta para a alma os males do pecado venial.

1) Aborrece Deus Nosso Senhor e o obriga a nos
abandonar. Que terrível sentença aquela do Apocalipse! O
Bispo de Laodicéia caíra na tibieza, e S. João, em nome de
Deus, lhe manda dizer: “Eu conheço as tuas obras, porque não
és frio nem quente” (Apoc 3, 15). Conheço as tuas obras!
Havia, pois, algum trabalho, alguma virtude naquele homem;
não era de todo mau. Mas… não era frio nem quente; era
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tíbio, morno, frouxo, algo indiferente na obra da sua
santificação. Faltava-lhe o fogo da caridade.
E como o Senhor castiga, e com ele, a toda alma no
lamentável estado de tibieza? “Antes fosses frio ou quente”.
Como? Deus prefere também o gelo do pecado e da morte da
alma à vida enlanguescida e agonizante da alma tíbia? Sim!
“Utinam frigidus esses aut calidus” — Antes fosses frio ou
quente! E aí vem o castigo: “(...) Mas porque não és frio nem
quente, eu começo a te vomitar de minha boca”. Que castigo
tremendo! Deus rejeita a alma tíbia como nosso estômago
vomita a água morna ou um alimento que provoca náuseas.
A tibieza aborrece a Nosso Senhor e o obriga a nos
abandonar à nossa própria sorte, ao nosso capricho e
orgulho, à nossa grosseira sensualidade. Não há maior
castigo. É a mais funesta das consequências da tibieza e a
origem de todos os males. Devemos meditar o texto de S.
João no Apocalipse e trazê-lo sempre na memória e gravá-lo
no coração!
2) A tibieza enfraquece a alma. E a enfraquece de
três maneiras: afasta-nos a graça, fortifica os inimigos da
alma e abre o coração para aquele mau uso das criaturas de
que nos fala S. Inácio nos seus Exercícios Espirituais.
Na tibieza, a pobre alma contrai uma enfermidade
perigosa que a vai empobrecendo dia a dia, e fazendo perder
as energias. Quando S. Tomás e S. Afonso comparam a tibieza
à tuberculose, dão bem uma ideia da gravidade daquela
doença espiritual. O tuberculoso sente-se enfraquecer dia a
dia, minado por uma febrezinha impertinente que o vai
consumindo. A tibieza produz a febre do orgulho e do amor
próprio, febre da vaidade, febre da sensualidade e de mil
pequenas faltas e infidelidades; e a pobre alma vai
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caminhando para o túmulo do pecado mortal e do hábito do
pecado.
A estátua de Nabucodonosor era bela e gigantesca:
cabeça de ouro, peito de prata, ventre de bronze, pernas de
ferro, e pés de ferro, argila e barro. Rola uma pedrinha da
montanha e bate violentamente nos pés de barro: toda a
massa imensa da estátua veio a baixo.
Bela estátua é a da alma no estado de graça! Mais rica
e preciosa que a estátua de Nabucodonosor. Entretanto, às
vezes, ai! tem o pedestal de uma matéria frágil: o barro do
pecado venial, o barro da tibieza. Aí vem uma pedrinha de
uma ocasião perigosa, de uma tentação grave, e… rola toda
uma vida de espiritual e se destrói todo um passado de
virtudes até heróicas. O inferno bateu no ponto fraco, e
venceu!
3) A tibieza é o caminho do pecado mortal. Diz S.
Gregório: “Ordinariamente não nos tornamos maus de
repente; não passamos subitamente do fervor ao pecado
mortal. É mister uma escada, é a tibieza; um ponto de apoio: a
tibieza. Se não desceis um degrau desta escada e dela fugis,
estais salvos”.
A experiência demonstra que dificilmente se ficará
muito tempo no hábito do pecado venial deliberado, sem se
chegar ao pecado mortal. Não quer dizer isto que uma
multidão de pecados veniais faça um pecado mortal; mas a
facilidade em cometer o pecado venial prepara a alma e a
dispõe a cair facilmente no pecado mortal.
“Quem despreza as pequenas coisas, cairá pouco a
pouco”, diz o Espírito Santo (Eclo 19, 1). Aplicando este texto
às almas tíbias, diz um intérprete que as almas perdem em
primeiro lugar a devoção. Depois vão passando das faltas
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leves, que consideram sem importância, às faltas graves, aos
pecados mortais, e do estado de graça passam ao estado de
pecado.
Quem comete facilmente o pecado venial, dificilmente
escapará dos pecados mortais, afirmam experimentados
mestres da vida espiritual. “Por um justo castigo de Deus —
diz S. Isidoro — os que fazem pouco caso dos pecados veniais,
das faltas leves, vêm a cair um dia nos maiores pecados”.
S. Agostinho tem uma frase que deve merecer de nós
sérias reflexões. Segundo ele o pecado mortal é uma
montanha que esmaga, que mata, e os pecados veniais são
grãos de areia. Acontece, porém, que o desprezo das faltas
leves faz com que a alma venha a perecer como estes
infelizes, que morrem sufocados sob um montão de areia. É
verdade que só o pecado mortal dá morte à alma, e os
pecados veniais, por mais numerosos que sejam, não nos
podem tirar a graça santificante. “Mas — diz S. Gregório — o
hábito dos pecados veniais tira aos nossos olhos a malícia do
pecado grave, e em breve não receamos mais passar das faltas
mais leves aos maiores pecados”.
O mal da tibieza é tirar a sensibilidade, a delicadeza de
consciência. E haverá um estado mais lastimável de alma que
essa cegueira de coração?
As crônicas do Carmelo contam que a Venerável Soror
Ana da Encarnação viu um dia no inferno uma alma que na
terra foi tida como pessoa de certa virtude. Ora, a infeliz, no
suplício eterno, tinha o rosto coberto de insetos que
representavam as inumeráveis faltas veniais de que estava
culpada. E destas, umas lhe diziam: Por nós começaste! E
outras enfim: Por nós te perdeste!
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Não é esta, porventura, a sorte de tantas almas? Numa
visão terrível foi revelado a S. Teresa o lugar que lhe seria
reservado no inferno, se, desprezando a graça, se deixasse
levar por uma falta leve, que depois, multiplicada, a levaria
ao abuso da graça, ao pecado e à condenação final. Oh! e diz-
se que o pecado venial é de pouca ou nenhuma importância!
E vive-se e dorme-se tranquilamente no estado de tibieza!
Que cegueira!
4) A tibieza leva à cegueira espiritual. As moléstias
corporais costumam ser imagem das moléstias da pobre
alma. Se procurarmos uma imagem feliz da tibieza,
encontrá-la-emos na cegueira. A tibieza é uma cegueira,
escreve o piedoso oratoriano Pe. Faber, cegueira que não
conhece a si mesma, não suspeita o seu estado, nem admite
que outros tenham melhor vista. É uma cegueira judicial,
porque houve um dia em que viu melhor e agora não se
lembra mais do que viu nem mesmo que tinha olhos.
Esta cegueira vem de três causas: os pecados veniais
frequentes, a dissipação do espírito e a paixão dominante.
Sobretudo a paixão dominante! Esta é uma violência externa,
que nos leva a fechar os olhos e conservá-los assim, para nos
lançar no abismo; e a consciência neste estado de cegueira
se falsifica, não tem mais equilíbrio, não tem firmeza. Daí as
trevas, e que trevas espessas!
E nesta escuridão, os maus instintos do espírito
humano, diz ainda o Pe. Faber, como corujas noturnas, se
tornam mais animados e ativos: é um despertar de maus
pensamentos, de paixões que já se julgavam mortas. Já não
há mais aquele horror ao pecado. A moleza dos costumes, o
comodismo, a vida sensual, leviandades repetidas, certa
amargura secreta do próximo, faltas de caridade, mentiras,
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maledicências; enfim o orgulho e a sensualidade, aves
noturnas agourentas, anunciam a morte próxima da infeliz
alma tíbia. Finalmente, vejamos o pior dos males, a mais
tremenda consequência da tibieza.
5) A tibieza prepara a impenitência final. — Será
possível? dirá alguém. Sim, a experiência o tem provado mil
vezes! Tibieza é o abuso da graça, e o abuso da graça teve
quase sempre, como consequência última, a impenitência
final.
“Deus non irridetur” - Com Deus não se brinca!
Conheceis a palavra de S. Paulo? “A terra que bebe
muitas vezes as águas da chuva e que só produz cardos e
espinhos, está reprovada e próxima da maldição. Será
entregue ao fogo e reduzida a cinzas” (Hb 6, 7) . Deus nos
chama, bate, bate mil vezes à porta do coração. É
desprezado. Ai! um dia o candelabro da graça com todas as
suas luzes será transportado para outro lugar: “Eu mudarei
teu candelabro” (Apoc 2, 5). E ai! Meu Deus! Pobre alma: o
abismo da impenitência final a espera! E ela sorri
presunçosa, dorme tranquila na inconsciência, na cegueira
do seu lamentável estado!
Conheceis a história dolorosa de Tertuliano? Um
apologista famoso, um batalhador pela causa da Igreja! Uma
obstinação, uma falta de docilidade à Igreja, e ei-lo na
heresia, e na heresia morre…
Lamennais fulgurava com todo o seu talento na Igreja
da França. Em torno deste homem a flor do pensamento
católico se congrega para ouvi-lo como a um oráculo. Que
gênio! Diretor de almas como raramente se viu outro!
Entretanto, um orgulho secreto de sábio o vai minando. A
vaidade, talvez, de se sentir grande, admirado, um oráculo da
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Igreja da França. Havia nele uma tristeza que impressionava
o Pe. Lacordaire, seu amigo. Veio a provação, a hora da luta,
a prova de fogo. Ei-lo revoltado, inimigo da Igreja,
blasfemador, herege e apóstata. Até à hora da morte renega
tudo quanto amou, pregou e defendeu com ardor. A
sobrinha, toda aflita, lhe pergunta quase à hora da morte:
— Meu tio, meu tio, queres um padre, não é? Um padre,
meu tio… Lamennais, obstinado, responde com aspereza: —
Não! Insiste a sobrinha. E ele: — Não, não e não! Deixem-me
em paz! No dia seguinte, 27 de fevereiro de 1854, às 9 horas
da manhã, expirou o desgraçado na impenitência final.
O que preparou tamanha ruína? Oh! sem dúvida a
tibieza! Uma alma fervorosa não tocaria jamais assim o
fundo do abismo.
A história de muitas apostasias e escândalos que
amarguram a Igreja, não teve muita vez a sua origem na
tibieza?! Ninguém cai de repente. Ninguém chega à
impenitência final sem uma vida tíbia no começo! Eis as
lamentáveis e muitas vezes irremediáveis consequências da
tibieza.
Despertemo-nos por amor de Deus, por amor da nossa
pobre alma. Despertemo-nos deste sono perigoso!
Desanimar? Seria pior. Confiança! A confiança faz milagres.
A enfermidade é gravíssima e parece mesmo incurável;
entretanto, um bom regime, um bom médico, um bom clima,
a podem curar.
O bom médico: um confessor zeloso e experimentado,
bem santo e bem enérgico. O bom clima: um meio fervoroso,
a companhia de almas piedosas e santas, uma atmosfera
onde se respire o sobrenatural. E um bom regime: a volta
decidida, enérgica, constante, às práticas de piedade, custe o
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que custar! E a mortificação. Sobretudo o regime eficaz da
oração. A oração mental, principalmente a oração mental; e
esta parece mesmo o remédio específico.

III. REMÉDIOS DA TIBIEZA

A tibieza parece um mal incurável e o é realmente, não
porque haja na vida espiritual doenças incuráveis, mas
porque ela afeta a vontade, tornando-a fraca e rebelde, surda
à voz da graça. E geralmente o tíbio não se considera como
tal: ignora o mal que o vai perdendo. E esta ignorância, esta
obstinação, esta cegueira que acompanham a tibieza, fazem
dela um mal incurável. Entretanto a graça tudo pode! A cura
da tibieza é um milagre, mas no mundo espiritual a graça
opera milagres cotidianos.
Os autores apontam alguns remédios para a salvação
de uma alma tíbia.
1º Remédio: Descobrir a tibieza. Esta descoberta se
faz pela meditação e o exame de consciência. Descobrir que
somos tíbios é uma graça e das maiores, e o presságio de uma
cura miraculosa. Estaremos, porém, perdidos se não agirmos
logo com vigor, com prontidão e energia ao fazermos esta
assustadora descoberta. Ao perceber este estado de alma,
logo sem demora devemos recorrer à oração e mãos à obra.
2º Remédio: Fazer o que foi omitido e fazê-lo bem. A
omissão das práticas de piedade foi a causa da tibieza. Pois
bem. É preciso fazer sem demora, com energia, tudo o que se
omitiu, custe o que custar. É difícil! Sim, mas não é
impossível. Experimentar pelo menos um dia de fidelidade
absoluta e intransigente a todas as práticas piedosas
abandonadas: há de se ver a dificuldade diminuir. Depois,
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entrar na luta contra a preguiça, a rotina, o mau hábito. Não
obstante as muitas omissões, não desanimar.
Nada tão dificil como voltar à prática dos exercícios da
vida espiritual, sobretudo se há muito tempo vêm sendo
omitidos. À custa de esforço, de luta e de oração se consegue
alguma coisa. Oh! que ao menos não falte a boa vontade; já é
alguma coisa. Faça-se um pouco hoje, depois mais um
pouco… Quem sabe? Coragem! Confiança!
3º Remédio: Fazer tudo com método e com pureza
de intenção. Para o método, nada melhor que um bom e
criterioso regulamento particular, e neste marcar a hora da
meditação e fazê-la custe o que custar. Com isto, é certo, se
há de salvar o tíbio. Tibieza e meditação não podem andar
juntas: uma ou outra há de perecer. “In meditatione tua
exardescet ignis”, diz o profeta David. Na meditação se abrasa
o fogo da caridade, que é o fervor. Da pureza de intenção já
falámos; resta praticá-la.
4º Remédio: Meditação cotidiana. Todos os outros
exercícios de piedade (que o tíbio recomeça quando se
esforça por sair do seu lastimoso estado) têm a sua eficácia.
Nenhum, porém, como a meditação. Meia hora de meditação
cotidiana, bem preparada, e bem feita, eis o remédio
soberano e específico da tibieza. A meditação é o alimento
substancial do regime a que se deve submeter a alma
enfraquecida pela tibieza.
Disse: meditação bem feita. Sim, porque a tibieza é
companheira inseparável da meditação sem preparação
alguma, feita às pressas, sem método, com preguiça,
sonolência e má vontade. O remédio há de ser bem
preparado, bem dosado e bem tomado, para que seja eficaz.
Se a receita não for observada, o remédio poderá curar?
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Insisto: Meditação bem feita! Seja por que método:
Sulpiciano, Inaciano ou Afonsiano. Mas... torno a repetir:
Meditação bem feita!
5º Remédio: Uma penitência depois de cada falta.
Examinar qual o pecado venial que me retém escravo da
tibieza e castigá-lo toda vez depois de cometido. Uma
penitência para cada pecado. Não perdoá-lo!
A natureza é um cão: ladra, ameaça, quando corremos
medrosos. Um gesto de energia, um grito, uma bordoada, e
ei-lo abatido, humilhado, a correr de nós. Sem penitência não
se sai da tibieza. A mortificação e a meditação andam juntas
e constituem aquele espírito de oração e de penitência de
que nos fala o profeta.
6º Remédio: A mortificação. Custa muito, é verdade.
A tibieza caracteriza-se também pelo horror ao espírito de
mortificação. “Mortificai vossos membros”5 — diz o
Apóstolo S. Paulo; “Trazendo a mortificação de Jesus Cristo
em nosso corpo” (2 Cor 4, 10).
A mortificação é a vida do Evangelho em ação, e a
imitação da vida de Jesus Cristo. Querer sacrificar-se sem
mortificação é querer o impossível. “Se alguém desaprova a
penitência — diz S. João da Cruz — não lhe deis crédito, ainda
que faça milagres”.
As pequenas mortificações cotidianas são remédio
também para as pequenas faltas cotidianas: “Contraria,
contrariis”6. Espírito de sacrifício no cumprimento do dever.
Custa a meditação? Fazei-a por mortificação! Custa a oração
um dever penoso? Custa deixar alguma sensualidade?

5 (Col 3, 5).
6 “Contraria contrariis curantur”: esta é a chamada lei dos contrários, em

que os sintomas são tratados diretamente com medidas contrárias a eles.


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Mortificai-vos um pouco, e vereis a transformação que em
breve se fará em vossa alma. A mortificação com a oração,
eis o remédio soberano da tibieza!
7º Remédio: Confissões e Comunhões bem
preparadas. Rigoroso exame de consciência antes da
confissão. A confissão do tíbio é rotineira e mal feita: procura
sempre um confessor muito brando e suave, não gosta de
uma palavra enérgica e severa no tribunal da penitência.
Disfarça os seus pecados. Não procura uma sólida direção
espiritual. Não costuma ter um confessor fixo. Confessar-se
não é para o tíbio uma mudança de vida, um firme propósito
de não mais pecar: é arranjar uma absolvição para poder
comungar!
Daí almas que no mundo e na vida religiosa se
confessam durante anos e anos, quase toda semana, e vivem
entretanto no mais lamentável estado de tibieza. Ai! O
Sangue de Jesus Cristo no Tribunal sagrado não é
aproveitado!
Depois, as Comunhões sem devida preparação, sem fé,
sem amor. Comunhões por rotina. Ações de graças lidas às
carreiras em manuais de devoção. Nem sequer um
pensamento sério, bem meditado, da presença real de Nosso
Senhor na hóstia consagrada! Pobre Jesus! Que sepulcros
gelados não acha ele todo dia no coração de tantas almas
tíbias!
Para sair da tibieza, a Santa Comunhão (que no dizer
do Concílio de Trento é o antídoto das faltas cotidianas) é um
remédio eficaz. Mas há de ser bem preparada. A leitura
espiritual, as jaculatórias, um pensamento eucarístico à
noite, ao deitar, e sobretudo uma vida isenta de pecado e em
luta contra o pecado, eis aí uma excelente preparação para
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as nossas Comunhões. Tirar da rotina a confissão e a
Comunhão, é um passo decisivo para sair da tibieza.
8º Remédio: A devoção ao Sagrado Coração de
Jesus. “As almas tíbias tornar-se-ão fervorosas” — prometeu
Nosso Senhor à S. Margarida. É o grande milagre, o perene
milagre desta devoção. O Sagrado Coração é uma fornalha de
amor; é fogo, e fogo puro da Divina Caridade. Jaculatórias ao
Divino Coração; a sua imagem diante de nós, conosco em
toda parte; falar desta devoção, propagá-la, estudá-la... Oh!
não encontro meio tão eficaz e poderoso para arrancar uma
alma da tibieza!
Leituras sobre o Coração de Jesus, o exercício da Hora
Santa, a entronização... Oh! como tudo isto abrasa mesmo o
coração mais gelado e faz milagres de conversões!
To-mar a peito fazer uma novena ao Sagrado Coração
de Jesus, para sair da tibieza. Fazê-la custe o que custar com
uma leitura apropriada, por exemplo: a história das
Aparições à S. Margarida Maria ou a vida desta discípula
predileta do Coração de Jesus. Ler este livro de fogo do Pe.
Mateo Crawley que eu desejava ver em muitas mãos: “Jesus,
Rei de Amor”.
E sobretudo, mais do que tudo, ler e reler o Evangelho,
as cenas tocantes do Evangelho, onde aparece, onde brilha a
misericórdia do Coração de Jesus. Oh! o nosso coração é
matéria inflamável: não resistirá muito tempo às chamas do
amor sem nelas se abrasar. E o Coração de Jesus nos põe
junto ao braseiro da caridade.
Quando os judeus foram levados ao cativeiro de
Babilônia, os sacerdotes esconderam o fogo sagrado num
poço. De volta, Neemias só encontrou lama. Com esta, regou
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a lenha e as vítimas do sacrifício, e as expôs ao sol; e o sol as
acendeu e queimou. Estava aceso de novo o fogo sagrado.
A nossa vida espiritual talvez era o fogo sagrado do
amor no templo vivo do Divino Espírito Santo, que somos
todos nós, os cristãos batizados. Lançamos este fogo no poço
da tibieza e ele se fez lama. E agora? O remédio? Vamos ao
sacerdote, o Neemias da Lei do Amor: uma boa e sincera
confissão. Depois, expor a lama de nossa pobre vida aos raios
do sol do Coração de Jesus e pedir, rogar, bradar que ele
consuma tudo e acenda de novo o fogo da caridade, o fogo
sagrado sem o qual não pode viver nossa alma, templo do
Espírito Santo. O sol do Coração de Jesus fará este milagre!
9º Remédio: O Rosário de Nossa Senhora. Pois já não
falamos das práticas de piedade como remédio da tibieza?
Porventura o rosário não é uma delas? Sim, mas é uma
especialíssima devoção, e vejo nela um remédio à parte,
além dos mais.
Ao Beato Alano de la Roche (como antes a S.
Domingos) a Virgem Santíssima prometeu muitas graças a
quem rezasse o seu saltério. Entre as quinze promessas tão
conhecidas para os devotos do Rosário, estão estas: “O
Rosário — disse Nossa Senhora — fará reflorescer as
virtudes, fará conseguir misericórdia para as almas. Atrairá
os corações dos homens para o céu e os levará do amor do
mundo ao amor de Deus, e os elevará aos desejos das coisas
eternas”. Não é fervor o que nestas palavras Nossa Senhora
promete aos devotos do Rosário?
Recitai bem o terço, e, se possível, o Rosário todos os
dias. Recitai-o como for possível, pedindo o fervor. Nossa
Senhora vos concederá esta graça.
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E a devoção ao Rosário é um grande sinal de
predestinação — diz Nossa Senhora na última promessa feita
ao Beato Alano de la Roche. A verdadeira devoção do
Rosário, tal como ela deve ser praticada, isto é, com a
meditação dos mistérios, é um remédio eficacíssimo na cura
da tibieza. E o é justamente porque tem um duplo caráter de
oração mental e vocal.
O Rosário salva os pecadores e faz o milagre de
converter os tíbios. Rezai-o bem, com atenção e
perseverança. Vereis que maravilhas ele realizará em vossas
almas, piedosos leitores.
Eis aí a terapêutica espiritual a ser empregada na
gravíssima enfermidade da tibieza. Coragem, vamos aos
remédios! A enfermidade é grave, e quase incurável, sim;
mas a Divina Misericórdia pôs em nossas mãos recursos
para tratá-la. Diz-se que é incurável a tibieza, e é verdade;
mas só quando não se empregam energicamente os meios de
combatê-la.

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