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Janaina de Fatima Silva Abdalla

Maria Beatriz Barra de Avellar Pereira


Tania Mara Trindade Gonçalves
(ORGANIZADORAS)

Ações Socioeducativas:
Estudos e Pesquisas

DEGASE
Rio de Janeiro
2016
Conselho Editorial Janaina de Fátima da Silva Abdalla
Alexandre de Moraes Lessa
Christiane da Mota Zeitoune

Comissão Científica Ida Cristina Rebello Motta


Maria Beatriz Barra de Avellar Pereira
Tania Mara Trindade Gonçalves

©Janaina de Fátima Silva Abdalla Direitos desta edição adquiridos pelo


Maria Beatriz Bara de Avellar Pereira DEGASE. Nenhuma parte desta obra
Tania Mara Trindade Gonçalves pode ser apropriada e estocada em
sistema de banco de dados ou pro
cesso similar, em qualquer forma ou
meio, seja eletrônico, de fotocópia,
gravação, etc., sem a permissão da
editora e / ou autor.
Janaina de Fatima Silva Abdalla
Maria Beatriz Barra de Avellar Pereira
Tania Mara Trindade Gonçalves
(ORGANIZADORAS)

Ações Socioeducativas:
Estudos e Pesquisas

DEGASE
Rio de Janeiro
2016
Governador do Estado do Rio de Janeiro Luiz Fernando Pezão

Secretário de Estado de Educação Wagner Victer


Diretor-Geral Alexandre Azevedo de Jesus
Departamento Geral de Ações Socioeducativas
DEGASE

Diretora da Escola de Gestão Janaina de Fátima Silva Abdalla


Socioeducativa Professor Paulo Freire
Capa Assessoria de
Sistematização Institucional

Diagramação Assessoria de
Sistematização Institucional

Revisão Coordenação da revisão


Júlia Nunes

Equipe de revisão:
Fernando Pimentel Henriques
Érika Cristine Ilogti de Sá
Núbia Graciella Mendes Mothé
Ações Socioeducativas
Estudos e Pesquisas
Janaina de Fátima Silva Abdalla
Maria Beatriz Barra de Avellar Pereira
Tania Mara Trindade Gonçalves
Organizadores

Estudos e Pesquisas desenvolvidos no Sistema


Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro

Escola de Gestão Socioeducativa


Paulo Freire –ESGSE

Diretora
Janaina de Fatima Silva Abdalla

Equipe Técnica
Ida Cristina Rebello Motta
Maria Beatriz Barra de Avellar Pereira
Marizélia Barbosa
Tânia Mara Trindade Gonçalves
Bianca Ribeiro Veloso
Lívia de Souza Vidal
Paula Werneck Vargens

Apoio Técnico Administrativo


Amanda Taufie Mendonça
Arnaldo Dutton Albuquerque da Silva
Luciana Cássia Costa da Silva Santos
Miguel Eduardo de Azevedo Martins
Mírian Maria da Fonseca
Sumário

Ações Socioeducativas: Estudos e Pesquisas 11


Janaina de Fatima Silva Abdalla
Maria Beatriz Barra de Avellar Pereira
Tania Mara Trindade Gonçalves

Parte I “Sistema Socioeducativo – reflexões e desafios”

Poder, Estado e adolescentes envolvidos em atos ilícitos 23


Janaina de Fátima Silva Abdalla

A contradição do sistema socioeducativo 45


Joyce da Silva Ferreira

Adolescentes infratores brasileiros: desafios para a 63


socioeducação
Janaina Specht da Silva Menezes
Paulo Fernando Lopes Ribeiro

Gestão em saúde no sistema socioeducativo no Estado 87


do Rio de Janeiro
Christiane da Mota Zeitoune

PARTE II “Educação, formação e o Sistema Socioeducativo”

Pedagogia Social e sistema socioeducativo: diálogos 107


possíveis
Margareth Martins de Araújo

A importância das diferentes vivências nos cursos 123


de Licenciatura: a formação docente através das
experiências no sistema socioeducativo
Stephany Petronilho Heidelmann
Gabriela Salomão Alves Pinho
Maria Celiana Pinheiro Lima

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 8


Relações de poder e produção de subjetividade: 139
desafios da contemporaneidade
Thereza Cristina da Silva Nunes

PARTE III “Gênero e sexualidade na socioeducação”

Transitando entre territórios: modos de subjetivação e 153


relações de gênero no contexto socioeducativo
Carolina Soares da Rosa
Juliana Damiana dos Santos Silva
Karoline Baptista Peres
Thiago Melicio

Gênero e sexualidade: o que a socioeducação tem a ver 165


com isso?
Jimena de Garay Hernandez
Gabriela Salomão Alves Pinho
Luisa Bertrami D’Angelo
Anna Paula Uziel

A visita íntima do adolescente no sistema socioeduca- 187


tivo: um dispositivo da sexualidade
Juraci Brito da Silva
Sílvia Maria Melo Gonçalves

PARTE IV “Pesquisa e Socioeducação”

Família na política socioeducativa: uma análise dos 20 anos 203


Ida Motta

Escutar é sempre um ato possível: a responsabilização 223


no discurso da psicanálise
Maria Geni Rangel Leite
Paulo Eduardo Viana Vidal

9 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


“Eles não sabem o que se passa aqui dentro”: 239
problematizando o campo e o fazer da pesquisa com
adolescentes em conflito com a lei
Andressa Melo Silva
Francinne Campelo
Raiane Barreto Teixeira
Thiago Melicio

A representação social do psicólogo do DEGASE 255


e a importância da fala e da escuta durante o
acompanhamento de medida socioeducativa a partir de
um caso de cumprimento de semiliberdade: o caso Luna
Letícia Montes Penha

O que eles falam sobre o jovem não é sério? Mídia, 271


Violência e Direitos Humanos
Maira Bruna Monteiro Santana
Ingrid Monteiro Siss Braga
Loise Lorena do Nascimento Santos
Thiago Melício

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 10


Apresentação

Ações Socioeducativas:
estudos e pesquisas

Janaina de Fátima Silva Abdalla 1


Tania Mara Trindade Gonçalves2
Maria Beatriz Barra de Avellar Pereira3

O Departamento Geral de Ações Socioeducativas – Novo


DEGASE, através da Escola de Gestão Socioeducativa Paulo
Freire (ESGSE), órgão da Secretaria de Estado de Educação
do Governo do Estado do Rio de Janeiro tem a satisfação de
apresentar o livro Ações Socioeducativas: estudos e pesquisas,
fruto de pesquisas científicas realizadas nos últimos anos
por diferentes pesquisadores, professores e profissionais da
socioeducação tendo como campi as unidades socioeducativas
do Departamento Geral de Ações Socioeducativo.
No contexto atual a política de formação implementada
pela ESGSE, instituição formadora no âmbito de governo do
Estado do Rio de Janeiro/DEGASE, que se apoia na definição de
“escola de governo” (CARVALHO 2005)4, este livro se inscreve
na política de estudo, pesquisa e formação dos operadores do
sistema socioeducativo, na cooperação técnica e na parceria
com universidades e entidades da sociedade civil, e, no
desdobramento, na produção de saberes científicos no campo
1 Doutora em Educação/UFF, Pedagoga, Diretora da ESGSE Paulo Freire/ DEGASE e
Profª da Faculdade Gama e Souza;
2 Serviço Social/UERJ, Pós-Graduação em Políticas Sociais/UERJ, Assistente Social
da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro - Secretaria Municipal de Desenvolvimento
Social – SMDS, Assistente Social do DEPE-ESGSE Paulo Freire/DEGASE
3 Psicologia/USU, Especialização em Psicologia Clínica/UERJ, Mestrado pelo
Programa de Pós-Graduação em Psicanálise/UERJ, Psicóloga do Município do Rio de
Janeiro/CAPS ad Mané Garrincha, Psicóloga do DEPE-ESGSE Paulo Freire/DEGASE;
4 CARVALHO Paulo Sergio. Escolas de governo e cooperação. X Congreso
Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública,
Santiago, Chile, 18-21 Oct. 2005 http:/repositorio.enap.gov.br/handle/1/1/1246

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 12


dos saberes-fazeres da ação socioeducativa no atendimento à
adolescentes envolvidos com a violência5 e em atos ilícitos.
Este livro faz parte da coleção “Ações Socioeducativas”,
publicações realizadas pela ESGSE – Novo DEGASE: o primeiro
em 2013 - “Ações Socioeducativas, saberes e práticas: formação
dos Operadores do sistema socioeducativo do Estado do Rio
de Janeiro”6 e o segundo – “Ações Socioeducativas: Formação e
Saberes Profissionais”7, em 2015.
A publicação em livro das contribuições trazidas pelo(as)
diferentes estudiosos(as), pesquisadores(as) e profissionais
da socioeducação tem sido um fator importante no processo
de construção da política Socioeducativa no Estado do Rio de
Janeiro, uma referência para a formação, teorização e prática
socioeducativa. Numa difícil e trabalhosa operação que envolve
o trabalho dedicado, qualificado e competente de toda a equipe
do Novo DEGASE. Em especial, a equipe da ESGSE, à Direção
Geral, à Coordenação Administrativa e Financeira - COAFI, a
Assessoria em Medidas Socioeducativas e Egresso - AMSEG e as
demais coordenações e assessorias.
Este livro é mais um resultado (o terceiro) destes esforços.

Importância da pesquisa na socioeducação


De modo geral, as pesquisas por si só, sejam elas em
qualquer abordagem, representam ferramenta importantíssima
no desenvolvimento de uma sociedade.
Sabe-se que a pesquisa científica no campo das ciências
sociais e humanas é um processo permanentemente inacabado
5 “Produtores e vítimas da violência, portanto em situação de vulnerabilidade social”
– ABDALLA, 2013
6 ABDALLA, F.; SILVA, S. Ações Socioeducativas Saberes e Práticas – Formação dos
Operadores do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro. 1º ed. Rio de Janeiro:
Novo Degase. 2013, 257 p.
7 ABDALLA, F.; SILVA, S.; VELOSO, B. Ações Socioeducativas – Formação e Saberes
Profissionais. 1º ed. Rio de Janeiro: Novo Degase. 2015, 217 p.

13 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


e, nesse processo, a pesquisa surge como uma proposta de
investigação que, sem perder seu caráter científico, possibilita
que os investigados, no caso especifico, os profissionais,
adolescentes e famílias envolvidos com a violência no sistema
socioeducativo, tenham maior participação, apropriação dos
processos e dos resultados obtidos. Não se tratam de cobaias, mas
sim, de coautores no processo de construção do conhecimento
sobre a socioeducação.
O fato das pesquisas não desprezarem o contexto e
aceitarem o ponto de vista do investigado, como dado de análise
nos traz uma riqueza maior quanto à realidade estudada.
As pesquisas realizadas em um sistema complexo como
o atendimento socioeducativo, com seus diferentes sujeitos, os
temas apresentados podem ser considerados inéditos uma vez
que, um mesmo campo pode ser abordado por determinado
pesquisador, segundo a visão de um referencial ou a partir de
um método que ainda não tenha sido contemplado em outras
pesquisas. Isso, por si só, já garante uma riqueza de significados.

À medida que se colhem os depoimentos, vão sendo levantadas e


organizadas as informações relativas ao objeto da investigação e,
dependendo do volume e da qualidade delas, o material de análise
torna-se cada vez mais consistente e denso.8 DUARTE, 2002. P.

Nas pesquisas, que ora apresentamos, em formato de artigos,


levaram-se em conta o caráter dinâmico dos próprios sujeitos
pesquisados, portanto mutáveis e historicamente constituídos.
Nessa perspectiva as pesquisas/artigos, e, portanto, este
livro, possibilita-nos visualizar a produção de conhecimentos
científicos, por levarem em conta a realidade vivenciada pelo
objeto em estudo, mediante seu contexto histórico e social.

8 DUARTE, Rosália. Pesquisa qualitativa: reflexões sobre o trabalho de campo. Cad.


Pesqui., São Paulo , n. 115, p. 139-154, Mar. 2002 . Available from <http://www.scie-
lo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742002000100005&lng=en&nrm=i-
so>. access on 23 Aug. 2016. http://dx.doi.org/10.1590/S0100-15742002000100005.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 14


Destacamos que alguns pesquisadores atuam como
profissionais do DEGASE, entendemos que esta possibilidade
nos traz grande oportunidade entre a produção científica e os
saberes / fazeres da prática socioeducativa.
Compreendemos, que há risco de “saber impregnado” como
alerta Durhan (1986)9 sobre as muitas armadilhas embutidas no
processo de identificação subjetiva que se estabelece na coleta de dados,
especialmente quando entrevistador e entrevistado compartilham
um mesmo universo cultural, neste caso, universo institucional.
Porém, como afirma Velho (1986)10, é preciso sempre ter em
mente que sua subjetividade precisa ser “incorporada ao processo de
conhecimento desencadeado” (p. 16), o que não significa abrir mão
do compromisso com a obtenção de um conhecimento relativamente
objetivo, não neutro, mas buscar as formas mais adequadas de lidar
com o objeto de pesquisa.
Para Abdalla (2013)

Não há pesquisa neutra, os saberes teóricos e práticos e a metodologia


escolhida para a realização de um estudo acadêmico-científico devem
ser conduzidos por uma “atitude crítica” do pesquisador, pois as
estratégias para a produção de saberes se articulam em “verdades,
poder e sujeito ético” (2013, p 39).

Abdalla (2013) e Julião (2009) afirmam que o pesquisador /


profissional ético a parti de um olhar mais amplo e crítico dos fatos
da pesquisa em seu campo de atuação profissional, proporciona
uma leitura “entre linhas” dos dados coletados. Pois consegue
compreender detalhes da “dinâmica da administração pública,
muitas vezes invisíveis e/ou incompreensíveis aos olhos de
qualquer cidadão”. (JULIÃO p. 24-25)
9 DURHAN, E. R. A pesquisa antropológica com populações urbanas: problemas e
perspectivas. In: CARDOSO, R. (org.). A Aventura antropológica: teoria e pesquisa.
Rio de Janeiro: Paz e Terra,1986, p. 17-38.
10 VELHO, G. Subjetividade e sociedade: uma experiência de geração. Rio de Janeiro:
Zahar, 1986.

15 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Portanto, apurando os olhares pelo saber prático construído
anteriormente e investindo no rigor teórico-metodológico
durante o processo de pesquisa, procuramos desvelar os sentidos
simbólicos produzidos pelos discursos na prática cotidiana.

O livro
Todas as pesquisas/artigos deste livro foram apresentadas
por seus autores/pesquisadores, recortes/sínteses de teses,
dissertações, monografias e estudos realizados no DEGASE nos
últimos anos. Compreendemos não ser possível a publicação na
integra dos conhecimentos, análises, reflexões e problematizações
apresentadas em tais publicações acadêmicas11.
Pretende-se com esta publicação divulgar e apresentar os
saberes científicos visando os seguintes objetivos:
(1) problematizar as diferentes questões e perspectivas sobre
o sistema socioeducativo; (2) análise e reflexão sobre os saberes
científicos apresentadas pelos pesquisadores e (3) análise de
proposições científicas nas interfaces com os saberes da prática,
na política implementada pelo sistema e no processo de formação
inicial e continuada de seus profissionais.
A obra se divide em quatro partes, apresentando artigos de
pesquisadores/estudiosos e pesquisadores/operadores do sistema
socioeducativo estadual que se articulam desvelando os saberes.
A Parte I “Sistema Socioeducativo – reflexões e desafios”
inicia-se com o artigo Poder, Estado e adolescentes envolvidos em
atos ilícitos, de Janaina de Fátima Silva Abdalla. A autora, partindo
da análise histórica das instituições socioeducativas, apresenta
e analisa os paradoxos entre as políticas públicas em direitos
humanos na socioeducação e as práticas cotidianas gerando
dispositivos disciplinares de encarceramento/controle e, ao
mesmo tempo, produzindo resistências, fabricando processos de
subjetivação dos adolescentes em privação de liberdade. O artigo,
11 Todas Teses/ dissertações e estudos encontram-se arquivadas na ESGSE

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 16


em síntese, apresenta importantes discussões sobre as políticas
públicas e o sistema de garantia de direitos nos últimos anos
voltados a crianças e adolescentes no Brasil.
Dando continuidade à temática, Joyce da Silva Ferreira, através
do artigo A contradição do sistema socioeducativo, fundamentam-
se na análise histórica e estrutural do sistema socioeducativo,
trazendo para a discussão sua contradição entre a punição e a
violência e a garantia de direitos aos adolescentes, sem descartar o
caráter simbólico, cultural, social e político enraizado na sociedade
brasileira. A indagação que mobiliza a autora é: “como um sistema
destinado ao encarceramento pode assegurar direitos?”.
Janaina Specht da Silva Menezes e Paulo Fernando Lopes Ribeiro,
no artigo Adolescentes infratores brasileiros: desafios para a
socioeducação, buscam refletir sobre a educação relacionada
aos adolescentes e jovens envolvidos com a prática de atos
infracionais. Destacam, entre outros resultados de pesquisa
documental, bibliográfica e análise de campo, a necessidade de
a socioeducação ampliar seus limites, “buscando encontrar na
integração entre os profissionais que orbitam em seus espaços e na
colaboração entre diferentes áreas, setores, secretarias e unidades
federadas, formas de efetivar e potencializar sua (atu)ação”.
No artigo Gestão em saúde no sistema socioeducativo no
Estado do Rio de Janeiro, a autora Christiane da Mota Zeitoune,
através de um recorte histórico de 2013 a 2015, apresenta as
ações da Coordenação de Saúde Integral e Reinserção Social do
Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro analisando
o processo de implantação e implementação das diretrizes da
Política Nacional de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes em
Conflito com a Lei – PNAISARI.
A Parte II “Educação, formação e o Sistema Socioeducativo”,
desta obra, composta por três artigos, problematiza, analisa
e desvela diferentes perspectivas do processo de educação/
escolarização dos adolescentes em risco social e formação dos
profissionais /operadores do sistema socioeducativo.

17 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


No primeiro artigo “Pedagogia Social e Sistema Socioeducativo:
diálogos possíveis”, da professora e pesquisadora Margareth
Martins de Araújo, apresenta a pedagogia social como uma
possibilidade de estabelecer um diálogo entre a escola e os
historicamente excluídos, as crianças e os jovens em situação de
conflito com a Lei e ou em privação de liberdade.
Através do artigo “A importância das vivencias nos cursos
de licenciatura: a formação docente através das experiências
no sistema socioeducativo” as autoras Gabriela Salomão Alves
Pinho, Stephany Petronilho Heidelmann e Maria Celiana Pinheiro
Lima, relatam e analisam o processo de formação acadêmica e
científica de graduandos na interface com o campo empírico de
pesquisa-ação em instituição de privação de liberdade no Sistema
Socoieducativo – DEGASE. A partir dos resultados obtidos com
a atividade, discute-se a importância da proposta para os futuros
professores numa perspectiva de responsabilidade social, bem
como o impacto de atividades de alfabetização científica para os
jovens em cumprimento de medida socioeducativa.
Finalizando a Parte II, Thereza Cristina da Silva Nunes, no
artigo “Relação de poder produção de subjetividade: desafios
da contemporaneidades,” apresenta um estudo bibliográfico e
documental buscando compreender como as relações de poder
e produção de subjetividade que estão presentes na sociedade
são desveladas na realização do fazer profissional no sistema
socioeducativo - DEGASE e, no desdobramento, propõem a
necessidade de repensar os instrumentos técnico-operativos
usados no exercício profissional.
A Parte III “Gênero e sexualidade na socioeducação”,
composta por três artigos de pesquisadores que transitam nos
espaços acadêmicos e nas unidades socioeducativas do Novo
DEGASE, apresenta análises e reflexões sobre a temática gênero
e sexualidade e, também, no que se refere às perspectivas
críticas acionadas de experiências vivenciadas, possibilitam-nos
proposições para o sistema socioeducativo.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 18


O artigo “Transitando entre territórios: modos de
subjetivação e relações de gênero no contexto socioeducativo”,
de Thiago Melicio, Carolina Soares da Rosa, Juliana Damiana dos Santos
Silva e Karoline Baptista Peres, propõe uma análise de discurso das
adolescentes em privação de liberdade sobre gênero e iniciação
ao tráfico a partir de experiências cotidianas na unidade feminina
do Departamento Geral de Ações Socioeducativas.
Ana Paula Uziel e as pesquisadoras Jimena de Garay
Hernandez, Gabriela Salomão Alves Pinho e Luisa Bertrami D’Angelo,
no artigo “Gênero e Sexualidade: o que a socioeducação tem
a ver com isso?” relatam e discutem as diversas práticas que
atravessam o cotidiano da socioeducação, no que tange ao
gênero e à sexualidade a partir de pesquisa sobre sexualidade
na contemporaneidade desenvolvida em algumas unidades de
privação de liberdade do DEGASE.
Resultado de pesquisa-intervenção na perspectiva da
análise institucional em uma unidade de privação de liberdade
de adolescentes do sexo masculino do DEGASE, Juraci Brito da
Silva e Sílvia Maria Melo Gonçalves, no artigo “A visita íntima
do adolescente no sistema socioeducativo: um dispositivo
da sexualidade”, problematizam e desvelam a percepção dos
adolescentes sobre a possiblidade da implementação da visita
íntima no sistema socioeducativo.
Na ultima parte desta publicação, PARTE IV “Pesquisa e
Socioeducação”, apresentamos cinco artigos frutos de pesquisas
de variadas metodologias e abordagens teóricas tendo como eixo
condutor os diferentes atores sociais da comunidade socioeducativa:
as famílias, os adolescentes e os profissionais. Acreditamos que
respeitar esses vários ângulos de análise é também colaborar para
que novas iniciativas no atendimento sejam postas em prática,
considerando a necessária diversidade das contribuições.

19 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


No artigo, “Família na política socioeducativa: uma
análise dos 20 anos”, Ida Motta objetivou fazer um estudo das
propostas voltadas para o atendimento de famílias na Política
Socioeducativa dentro do Departamento Geral de Ações
Socioeducativas do Estado do Rio de Janeiro nos últimos 20
anos, a partir da metodologia de análise documental e histórica
dos marcos legais para o sistema nacional.
O artigo “Escutar é sempre um ato possível: a
responsabilização no discurso da psicanálise” de Maria Geni
Rangel Leite e Paulo Eduardo Viana Vidal tem como objetivo
“discorrer sobre a responsabilização que implica o exercício da
fala sob a perspectiva do discurso da psicanálise tendo em vista a
socioeducação”. E ainda, afirmam os autores, “permitir ao sujeito
adolescente elaborar em seu nome a sua narrativa é pertinente à
psicanálise”, e, portanto, a ação necessária implementada pelos
profissionais na socioeducação.
Thiago Melicio e os pesquisadores Andressa Melo Silva,
Francinne Campelo e Raiane Barreto Teixeira no artigo ‘Eles não sabem
o que se passa aqui dentro”: problematizando o campo e o fazer
da pesquisa com adolescentes em conflito com a lei” buscam
refletir acerca do sistema socioeducativo e da maneira com que a
metodologia de pesquisa pode ser empregada neste campo.
O artigo “A representação social do psicólogo do DEGASE
e a importância da fala e da escuta durante o acompanhamento
a partir de um caso de cumprimento de liberdade: o caso
Luna”, de Letícia Montes Penha, problematiza o saber-fazer
do profissional psicólogo e suas representações sociais, no
desdobramento, enfatiza a importância da fala e da escuta na
ação deste profissional na socioeducação.
Através do artigo “O que eles falam sobre o jovem não
é sério? Mídia, violência e Direitos Humanos”, o psicólogo,
professor e pesquisador Thiago Melicio e as graduandas de
psicologia e pesquisadoras Maira Bruna Monteiro Santana, Ingrid
Monteiro Siss Braga e Loise Lorena do Nascimento Santos, apresentam

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 20


uma análise qualitativa de notícias online, a partir de termos
como “menor”, “adolescente”, “maioridade penal”, entre outros.
Procurando problematizar processos de alteridade por meio de
articulações entre as formas de agenciamento da mídia e as falas
de adolescentes que estão na unidade feminina do DEGASE-RJ.

Convite à leitura
O presente livro reúne contribuições que, contrariamente ao
pensamento único e homogeneizador, mostram a multiplicidade,
a riqueza, a variedade das perspectivas e sujeitos da socioeducação.
Saberes científicos que se constituem em um espaço historicamente
construído, é claro, com velhos e persistentes saberes-fazeres,
mas que se introduzem aquelas preocupações que estão no
cerne destes novos-velhos tempos, vidas cotidianas dos jovens-
adolescentes envolvidos com a violência e atos ilícitos: violência,
sexualidade, escuta, subjetividade, gênero, aprisionamento,
resistências ... No conjunto, as contribuições aqui apresentadas
constituem um panorama de questões que afetam aos diversos
campos de saberes, de fazeres e de construir uma politica
socioeducativa inclusiva e amorosamente restaurativa.
Convidamos a leitura-ação!

21 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Parte I
“Sistema Socioeducativo – reflexões e desafios”
Poder, Estado e adolescentes envolvidos em atos ilícitos
Janaina de Fátima Silva Abdalla1

Resumo
Este artigo apresenta e analisa os paradoxos entre as
políticas públicas em direitos humanos na socioeducação e as
práticas cotidianas voltadas para os adolescentes em conflito com
a lei. Partimos da análise histórica das instituições educacionais
para adolescentes envolvidos em atos ilícitos. As análises
empreendidas se fizeram a partir do entrecruzamento dos aportes
teóricos advindos, principalmente do pensamento de Michel
Foucault, Gilles Deleuze e Michel de Certeau. Concluímos que
as práticas punitivas de sanção e de socioeducação se articulam
com as tensões históricas no cotidiano, gerando dispositivos
disciplinares de encarceramento/controle e, ao mesmo tempo,
produzem resistências, fabricando processos de subjetivação
dos adolescentes: “menor/bandido” “adolescente/infrator”
ou “adolescente em conflito com a lei/socioeducando”. A
(auto) responsabilização do adolescente pelos atos ilícitos e
a intervenção socioeducativa prevista pelo amparo legal na
doutrina da proteção integral ainda, é um desafio para os
Sistemas Socioeducativos.

Palavras chaves: adolescentes; unidades socioeducativas;


Estado; poder; resistências

1 Pedagoga e Diretora da Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire – Novo


DEGASE; Mestre em Comunicação Imagem e Informação - Programa de Pós
Graduação em Comunicação - UFF ( 2003); Doutora em Educação – Programa de
Pós Graduação em Educação – UFF ( 2013) – Coordenadora do Instituto Superior de
Educação e Professora Universitária – Faculdade Gama e Souza.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 24


A criminalidade e a violência são, hoje, uma das
preocupações centrais dos habitantes das grandes cidades. Nesse
contexto, as infrações cometidas por adolescentes vêm causando
alarde, e essa contundência discursiva aparece na mídia como
se fossem os atos somente de responsabilidade dos próprios
adolescentes, consideradas infrações penais por eles praticadas.
No Brasil, não são poucos os que responsabilizam o próprio
Estatuto da Criança e do Adolescente pelo envolvimento dos
mesmos em atos de violência.
Para os críticos do Estatuto, a política de “proteção
integral” da criança e do adolescente, imposta pela Constituição
de 1988, pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança
e pelo Estatuto, criou um ambiente de impunidade que tem
incentivado o ingresso destes jovens no mundo do crime.
Nesse sentido, propugnam por medidas estatais mais duras em
reação à criminalidade, reclamando, inclusive, a diminuição da
maioridade penal. Um subproduto ainda mais perverso dessa
sensação de impunidade é o extermínio.
Essas críticas, a rigor, escondem as reais motivações
socioculturais e econômicas que impelem os adolescentes
para o mundo da criminalidade. Escondem também o sistema
socioeducativo incapaz de “ressocializar” e que apenas amplia
o potencial ofensivo desses jovens no momento em que deixam
de estar sob a proteção do sistema, fomentando, qualitativa e
quantitativamente, a criminalidade.
Para além do discurso da população, veiculado pela mídia,
qual é o discurso do Estado quanto às ações socioeducativas e
políticas públicas para a infância e adolescência?

O Estatuto da Criança e do Adolescente e o adolescente


em conflito com a lei
A atualização e o desenvolvimento do atendimento aos
adolescentes em conflito com a lei, particularmente no Brasil, foram

25 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


feitas, ao longo do século XX, a partir dos conceitos de “ajuda”,
“assistência” e “ressocialização”, perseguindo-se, pois, objetivos
assistencialistas e não uma verdadeira inclusão social desses
sujeitos. Tudo sob a égide daquilo que, a priori, é considerado o
“melhor interesse” desse adolescente, ainda que, na maioria das
vezes, o seu real interesse não seja visualizado. Essa intenção,
entretanto, só permanece no discurso oficial e a realidade revela
uma face – perversa – do mundo do adolescente infrator.
O entendimento do que é considerado o “melhor
interesse” desse sujeito social esteve sempre marcado por
permanentes contradições dicotômicas: medida versus pena,
educação/assistência versus controle/repressão, vitimação
versus delinquência.
Assim, o Estado oscila pendularmente entre duas tendências,
apresentadas como antagônicas: os Modelos de Proteção
Administrativa e os Modelos da Penalidade Judicial (NOGUEIRA
NETO, 1998). No Brasil, diante das peculiaridades enfatizadas pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente, que afirmava ser preciso
adotar medidas socioeducativas, caminhou-se para uma solução
eclética: instaurou-se um tipo de atendimento que pode ser
classificado como judicial-administrativo, ou seja, o adolescente
infrator continua submetido às sanções legais do Judiciário,
de quem recebe as medidas socioeducativas que deverão ser
cumpridas administrativamente em unidades de internação;
essas unidades, entretanto, estão submetidas ao rígido controle do
Poder Judiciário e dos Conselhos da Criança e do Adolescente.

Das Medidas Socioeducativas


Para o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no caso
do adolescente, com 12 anos completos e menores de 18 anos,
envolvido em atos ilícitos, a inimputabilidade não quer dizer
irresponsabilidade. Isto é, o adolescente, assim como a criança,
não recebe pena, como o adulto, diante da infração cometida;

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 26


são inimputáveis. A criança, porém, é considerada também
irresponsável, por isso os pais ou seus substitutos é que devem
comparecer com ela perante a autoridade, enquanto se aplicam
a ambos, criança e familiares, medidas chamadas de proteção.
Em relação ao adolescente, entretanto, embora não receba pena (e
permaneça inimputável), será sujeito a medidas socioeducativas,
quais sejam: (i) advertência; (ii) obrigação de reparar o dano; (iii)
prestação de serviços à comunidade; (iv) liberdade assistida;
(v) inserção em regime de semiliberdade; (vi) internação em
estabelecimento educacional; (vii) além de qualquer uma das
medidas de proteção previstas no art.101, I a VI (ECA, art. 112).

Infância, adolescência e práticas de privação de liberdade


Desde as origens da história da privação de liberdade,
quando as transformações na esfera produtiva introduziram a
mudança no viés capitalista-moderno, o qual estabelecia o tempo
certo dessa privação, nem todos foram sujeitos de direito destas
transformações: crime-pena/tempo/produção.
Paradoxalmente, quem ficou fora do processo produtivo também
ficou fora dos “benefícios” da “revolução democrática”. Na verdade,
e aqui aparece o eufemismo que está na base de toda a sequência
posterior, a infância-adolescência é marginal e clandestinamente
incorporada ao processo produtivo, ficando, entretanto, fora do
discurso oficial do trabalho. Essas premissas determinavam não que
a infância ficasse isenta das práticas de privação de liberdade, senão
que as mesmas se organizassem sob as formas radicalmente distintas
de legitimidade do mundo dos adultos criminosos.
O conceito de infância e de juventude também influenciou
na construção legalista da área, como vimos anteriormente. A
reeducação, ao invés do castigo, e as medidas de segurança, no
lugar das penas, constituíram os eufemismos específicos que
legitimaram, na prática, privações de liberdade sem processo,
sem garantias e, sobretudo, sem um tempo definido de duração.

27 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


A cultura da internação-proteção e do “sequestro dos
conflitos sociais” se manifestou com toda intensidade na
construção do “menor delinquente abandonado”. Eis aqui a
história do “menor” como objeto da compaixão-repressão. Nesse
enfoque, as práticas concretas que dele derivam imperavam e
ainda imperam até os nossos dias.
Nesse ponto, é conveniente fixar um momento na dimensão
ético-jurídica dessas práticas. Se tomarmos como contexto
momentos históricos do Brasil, como exemplo e modelo, essas
práticas poderiam ser consideradas como prejudiciais ou ilegítimas,
embora não como ilegais à época. Porém, os “excessos” nas
políticas de privação de liberdade no Brasil, ainda hoje, descansam,
paradoxalmente, sobre uma base jurídica menorista: a doutrina
da situação irregular. Podemos citar como exemplo a detenção
de adolescentes em instituições para adultos quando o aparelho
jurídico e administrativo estatal não está devidamente equipado.
Nesse sentido, é imprescindível tomar consciência da
ruptura absolutamente radical que implica, nesse campo, o
Estatuto da Criança e do Adolescente. As experiências de privação
de liberdade devem ser reconstruídas, em consequência, sobre
bases de ação e legitimidade, na doutrina da proteção integral.
Em primeiro lugar, é necessário tomar consciência do fato
de que a privação coativa da liberdade deverá ser o resultado de
uma infração jurídica grave e devidamente comprovada, tal qual
dispõe o art. 122 do Estatuto. Em segundo lugar, representa um
enorme desafio trabalhar no campo das técnicas de privação de
liberdade no marco jurídico do Estatuto.
É necessário reconhecer que fomos formados em uma
cultura correcionalista, a qual pressupunha a conveniência
de processos de ressocialização – ainda que com as melhores
intenções – com práticas sociais (não jurídicas, não judiciais)
de privação de liberdade. O novo caráter jurídico-restritivo da
privação de liberdade implica a necessidade do desenvolvimento
de uma nova cultura: uma cultura de tolerância, que não significa

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 28


outra coisa senão o duro aprendizado (nosso) de conviver com a
diversidade. Os comportamentos socialmente indesejáveis, mas
não antijurídicos, podem e, em muitos casos, devem ser objetos
de políticas específicas: mas isso, sim, absolutamente despojadas
de conteúdos de caráter coercitivo.
O Estatuto, abarcando o melhor da normativa e da doutrina
internacional, consagra o princípio do “incompleto institucional”;
ou seja: colocar a instituição responsável pela privação de
liberdade em uma situação mais dependente possível do mundo
real. Entretanto, o princípio do “incompleto institucional” só
poderá ser realizado se implantado, simultaneamente, o princípio
do “incompleto profissional”.
Os órgãos deliberativos e gestores do Sistema
Socioeducativo, em especial as instituições executoras das
medidas socioeducativas de privação de liberdade, devem
promover a articulação da atuação de diferentes áreas da
política social. Nesse papel de articulador, a incompletude
institucional é um princípio fundamental e norteador de todo
o direito da adolescência, que deve permear a prática dos
programas socioeducativos e da rede de serviços. Demanda a
efetiva participação dos sistemas e políticas de educação, saúde,
trabalho, previdência social, assistência social, cultura, esporte,
lazer, segurança pública, entre outras, para a efetivação da
proteção integral de que são destinatários todos adolescentes.
Portanto, a instituição de privação de liberdade deverá ser
“dependente” dos demais aparelhos sociais e dos profissionais
que compõem a rede de serviços na incompletude profissional,
sendo indispensável à articulação das várias áreas para maior
efetividade das ações e participação da sociedade civil.
Nessa perspectiva, rompe-se com o paradigma da
completude institucional ou instituição completa através do qual
se aprisionam e excluem os adolescentes em conflito com a lei,
justificando o “bom e necessário atendimento” pela instituição
total (GOFFMAM, 1996).

29 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


A medida de privação de liberdade encerra em si mesma uma
contradição profunda, mas não indecifrável ou irresolúvel. O grau de
sua eficiência está dado pelo grau de sua “não necessidade”. Liberar-se
da cultura de sua necessidade e transformá-la num meio contingente e
aleatório constitui o melhor caminho de sua construção-reconstrução.
(COSTA, 2004, p. 37)

O autor aponta a perspectiva de um trabalho a partir da


“utopia positiva”, no sentido de que a melhor instituição para
a privação da liberdade é aquela que não existe e que a melhor
sociedade é aquela que supera a necessidade de sequestrar
conflitos sociais que podem ser resolvidos por outras vias.
Segundo Emilio Garcia Mendez (1992),

despojadas de seus eufemismos, as leis de menores na América Latina


propõem uma correspondência perversa entre a realidade cruel e um
direito absurdamente repressivo. As leis de menores na América Latina
eliminam, negativamente, a distância entre a norma e a realidade. O
caráter garantista único do Estatuto da Criança e do Adolescente
inaugura uma brecha positiva entre direito e realidade, que somente
técnicas baseadas em profundas razões humanitárias e uma política
consequente de respeito aos direitos humanos conseguirão reverter.
(MENDEZ, 1992, p. 15)

Privação e restrição de liberdade: paradoxos socioeducação


e aprisionamento
Para implementar a socioeducação, é fundamental
reconhecer no “infrator” um sujeito com direitos, ou seja, um
cidadão, o que parece ser um exercício extremamente complexo.
Como compreender o paradoxo entre os relatos-denúncias das
condições em que se apresentam as instituições socioeducativas
em uma sociedade que se democratiza e clama pelos direitos
humanos? E essa mesma sociedade, paradoxalmente, exige
punições mais severas e um sistema socioeducativo mais rígido
(violento!?) para com os adolescentes infratores?

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 30


Segundo Caldeira (2000), “a cidadania brasileira é disjuntiva
porque, embora o Brasil seja uma democracia política e embora
os direitos sociais sejam razoavelmente legitimados, os aspectos
civis da cidadania são continuamente violados” (p. 343).
Convivemos perplexos com os avanços da legislação
que prevê a proteção integral da criança e do adolescente, as
conquistas nos movimentos de direitos humanos e grupos que
responsabilizam o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente
(Lei 8069/90) pelo envolvimento de jovens em atos de violência,
justificando que tais medidas proporcionaram um ambiente de
impunidade que tem incentivado o ingresso dos adolescentes
no mundo do crime. Nesse sentido, propugnam por medidas
estatais mais duras em reação à criminalidade, reivindicando
inclusive a diminuição da maioridade penal.
Um subproduto ainda mais perverso desse paradoxo é
a existência da violação de direitos nas instituições em que se
pretende o exercício de um processo socioeducativo, em que se
pretende a proteção da vida (VICENTIN, 2004).
Quase sempre as instituições de atendimento aos
adolescentes em conflito com a lei funcionam apenas como
espécies de depósitos de “infratores”, ainda que se apresentem
como organizações racionais com determinadas finalidades
oficialmente confessadas e aprovadas. Frequentemente, esses
objetivos definidos pela legislação implicam reforma das
instituições na direção de um padrão ideal. Essa contradição
entre o que a instituição realmente faz com os adolescentes em
conflito com a lei e aquilo que oficialmente deveria fazer constitui
a face mais perversa de atuação do Estado contra esses sujeitos
excluídos de sua própria existência.

31 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Internação Provisória2
O fluxo inicia-se com a apreensão do adolescente em
conflito com a lei por unidade policial em situação de flagrante
de ato infracional e/ou por determinação judicial (mandado de
busca e apreensão por descumprimento de medidas impostas
anteriormente e/ou por denúncias previamente apuradas,
indicando cometimento de ato infracional). O adolescente
apreendido é encaminhado à delegacia especializada – Delegacia
de Polícia da Criança e do Adolescente - DPCA. Os municípios do
estado que não possuem delegacias especializadas não cumprem
as determinações legais na apreensão e encaminhamento do
adolescente em conflito com a lei.
Este procedimento processual, internação provisória, deve ser
aplicada no caso de indícios de cometimento de ato ilícito grave ou
de risco da comunidade e do adolescente (integridade física e moral).
Apesar de a internação provisória não ser, de fato, uma
medida socioeducativa, e sim uma medida processual de natureza
cautelar, alguns aspectos referentes a ela precisam ser esclarecidos.
A internação provisória aproxima-se bastante da
medida de internação, ainda que tenha finalidade totalmente
diversa: enquanto esta tem caráter sancionatório e implica o
reconhecimento de que o adolescente cometeu um ato ilícito,
aquela tem o escopo de garantir a aplicação da lei e está ligada aos
fins do processo judicial. Ambas as medidas, entretanto, retiram
do jovem o direito de ir e vir e, portanto, devem ser aplicadas
em último caso, isto é, somente quando imprescindíveis para se
atingir a finalidade pretendida: a proteção integral.

2 A internação provisória é um procedimento aplicado antes da sentença julgada, quan-


do há indícios suficientes de autoria e materialidade do ato infracional cometido pelo
adolescente ou quando há um descumprimento de ordem anteriormente aplicada pelo
Poder Judiciário. Conforme prevê o artigo 183 do Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), a internação provisória caracteriza-se pela privação de liberdade com duração
máxima de 45 dias, período em que são realizados os estudos técnicos que subsidiam a
aplicação da medida socioeducativa determinada pelo Poder Judiciário

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 32


Considerando-se os prejuízos que a privação de liberdade
ocasiona na vida de um adolescente, ainda mais numa fase em
que sequer há juízo de culpabilidade, a internação provisória
é regida pelos mesmos princípios constitucionais da medida
socioeducativa de internação3. Isso significa que os jovens que
cumprem a internação provisória possuem os mesmos direitos
daqueles que cumprem uma medida de internação e que as
obrigações dos estabelecimentos para adolescentes internados a
título provisório e definitivo são coincidentes4.

Medida de Semiliberdade5 e Medida de Internação6


Segundo as orientações do ECA, o regime de semiliberdade
pode ser determinado desde o início ou como forma de transição
para o meio aberto, pois possibilita a realização de atividades
externas às unidades socioeducativas, independentemente de
autorização judicial. Não há prazo determinado de duração
para as medidas socioeducativas restritivas e privativas de
liberdade: semiliberdade e internação, respectivamente, cabendo
à autoridade judicial avaliar cada caso, salvo o período máximo de
três anos da aplicação da mesma medida.
De acordo com o ECA, a medida de internação só deve
ser aplicada mediante a prática de atos infracionais graves. A

3 Segundo estabelece o artigo 227, da Constituição Federal, “§3º: O direito à proteção


especial abrangerá os seguintes aspectos: V- obediência aos princípios de brevidade,
excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quan-
do da aplicação de qualquer medida privativa de liberdade”.
4 Ver artigos 124 e 94 do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA
5 ECA - Art. 120. O regime de semiliberdade pode ser determinado desde o início, ou
como forma de transição para o meio aberto, possibilitada a realização de atividades
externas, independentemente de autorização judicial. § 1º São obrigatórias a escolari-
zação e a profissionalização, devendo, sempre que possível, ser utilizados os recursos
existentes na comunidade. § 2º A medida não comporta prazo determinado aplicando-
-se, no que couber, as disposições relativas à internação.
6 ECA - Art. 121. A internação constitui medida privativa da liberdade, sujeita aos
princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa
em desenvolvimento.

33 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


internação não poderá ultrapassar três anos; caso o adolescente
permaneça na medida de internação ao final desse período,
deverá ser liberado, colocado em regime de semiliberdade ou de
liberdade assistida.
O trabalho socioeducativo passa a ser visto como uma resposta
às premissas legais do Estatuto da Criança e do Adolescente, bem
como às demandas sociais do mundo atual.
Segundo Costa (2006), a socioeducação decorre de um
pressuposto básico de que o desenvolvimento humano deve se dar
de forma integral, contemplando as múltiplas dimensões do ser.
A opção por uma educação que vai além da escolar e profissional
está intimamente ligada a uma nova forma de pensar e abordar o
trabalho com o adolescente.

A unidade educativa deve ser capaz de oferecer um leque, um cardápio,


uma pluralidade de modalidades educativas ao educando, que lhe
possibilite desenvolver sua autonomia (capacidade de decidir segundo
suas crenças, valores, pontos de vista e interesses); sua solidariedade
(capacidade de atuar como solução e não como problema em questões
relativas ao bem comum); sua competência (desenvolvimento de
competências pessoais, relacionais, produtivas e cognitivas). (COSTA,
2006, p. 67)

Na última década, observa-se avanços significativos na


estrutura administrativa, espacial, e no processo de planejamento
das ações dos sistemas socioeducativos na tentativa de humanizar
o sistema, porém as técnicas disciplinares e de controle sobre o
corpo do adolescente-delinquente, que se desvelam em ações
cotidianas, demonstram a permanência da visão disciplinar e de
docilização do adolescente em conflito com a lei.
Analisar as instituições de internação, os lugares de
aprisionamento, é, imediatamente, referir-se às complexas relações
de saber/poder que atravessam e traduzem os dispositivos
disciplinares ao longo de toda a extensão da sociedade. Mas em
que consistem esses dispositivos disciplinares? Como a sociedade

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 34


e as instituições socioeducativas de privação de liberdade
constituem os processos de subjetivação do adolescente em
conflito com a lei?
A disciplina é uma tecnologia específica do poder, ela é “um
tipo de poder, uma modalidade para exercê-lo, que comporta todo
um conjunto de instrumentos, de técnicas, de procedimentos, de
níveis de aplicação, de alvos; ela é uma física ou uma anatomia
do poder, uma tecnologia” (FOUCAULT, 2000, p. 177).
No entanto, como explicita Foucault (2000), todo
poder corresponde também a uma resistência, muitas vezes
microscópica, surda, velada e não explosiva. As instituições
são, sobretudo, lugares de instauração de forças. O que existe,
então, nessa unidade de internação é uma relação de poder/
saber, que subjuga e adestra esses corpos? Seria constituída
historicamente esta imagem/saber das instituições de
internação e de seus internos? E qual seria o papel da mídia
na perpetuação dessa imagem?
Os dispositivos disciplinares presentes nas instituições
socioeducativas se materializam nas práticas institucionais, isto é,
nas técnicas de distribuição dos adolescentes através da inserção
dos seus corpos em espaços individualizados, classificatórios,
combinatórios: os alojamentos, a escola, o pátio, o refeitório, os
lugares demarcados em horários estabelecidos, sob vigilância
constante. O olhar hierárquico das câmeras de vídeo7 está
presente continuamente, para que, ininterrupto, o adolescente se
sinta potencialmente vigiado.
Há o controle do tempo, das atividades, dos corpos, que
são aperfeiçoados pelas sanções normalizadoras: manter-se em
filas, mãos para trás, silêncios, perda de objetos pessoais, corte
de cabelos, uniformes, com o objetivo de produzir o máximo
de rapidez e eficiência no processo de “ressocialização” do

7 Diante dos avanços tecnológicos , muitos sistemas socioeducativos tem optado por
instalar câmeras de filmagem em locais estratégicos que transmitem e gravam imagens
constantes para setores de segurança do Sistema Socioeducativo.

35 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


adolescente-delinquente. E, finalmente, a disciplina implica um
registro contínuo do conhecimento: o exame. Ao mesmo tempo
em que exerce um poder, produz um saber sobre o adolescente-
delinquente e seus desvios. Mais do que isso, com o exame, o
adolescente em conflito com a lei passa a ser o “delinquente”, ao
mesmo tempo, efeito e objeto do poder e do saber: “o exame não
se contenta em sancionar um aprendizado; é um de seus fatores
permanentes” (FOUCAULT, 2000. p. 155).
É neste jogo saber-poder-saber que se estrutura a sociedade
disciplinar. Ainda que na sociedade contemporânea se possa perceber
uma sofisticação nas estratégias disciplinares, como o avanço da mídia
e das tecnologias de controle, rompendo os muros e atravessando os
sujeitos (corpo, mente e alma), as estruturas disciplinares continuam
ativas e atuantes; em particular no caso das instituições socioeducativas,
os dispositivos disciplinares se perpetuam em alto grau.
O poder disciplinar, segundo Foucault (2000), manifesta-
se na estrutura de parâmetros e limites do pensamento e
da prática, sancionando e prescrevendo comportamentos
considerados normais ou desviantes. Foucault busca extrair
das relações de poder, histórica e empiricamente, os seus
operadores de dominação.
O autor destaca que, em vez de orientar a pesquisa sobre
o poder para o âmbito do edifício jurídico da soberania, para
o âmbito dos aparelhos de estado ou das ideologias que o
acompanham, devem-se privilegiar a análise sob o ponto de vista
da dominação, dos operadores materiais, das formas de sujeição,
das conexões e utilizações dos sistemas locais dessa sujeição, e,
enfim, os dispositivos de saber.
Como esse tema da socioeducação vem se configurando
no campo da socioeducação? O que tem motivado os estudos
e reflexões sobre disciplina punição versus educação nas
instituições socioeducativas? Como os socioeducadores
enfrentaram esse debate? Que alternativas formularam para
o controle-sanção na execução das medidas socioeducativas

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 36


de crianças e jovens? Como isso se articula com o projeto de
formação ou governo moral? Que outros desdobramentos essa
questão poderia promover e provocar?
O século XVIII, para Foucault, pode ser caracterizado como
o tempo do fim dos suplícios físicos, mas também como o tempo
de recomposição das formas de controle disciplinar.
Se a punição não mais se centralizava no suplício do
corpo, como técnica de sofrimento, agora o objeto de punição
passou a ser a perda de um bem ou de um direito. Com isso,
a transformação das formas punitivas dos suplícios deu lugar
a uma “suavidade” dos castigos, ocorrendo o deslocamento da
punição sobre o corpo, implicando em um novo regime de poder,
em um emaranhado de saberes, técnicas e discursos científicos,
que se formam e se entrelaçam com a prática do poder de punir.
O regime de poder disciplinar produz saberes que
estrategicamente vão servir de mecanismo para moldar o
comportamento dos indivíduos. Desse modo, os espaços a serem
construídos são determinados por modelos que possibilitam o
vigiar dos indivíduos para controlá-los e discipliná-los. Foucault
(2000c) apresenta a ideia do Panóptico, em que a relação de poder
é de uma sujeição constante do indivíduo: vigiado, enclausurado
e distribuído em espaços uteis.
Conforme Foucault (2000) analisa:

A regra das localizações funcionais vai pouco a pouco, nas instituições


disciplinares, codificar um espaço que a arquitetura deixava geralmente
livre e pronto para vários usos. Lugares determinados se definem para
satisfazer não só a necessidade de vigiar, de romper as comunicações
perigosas, mas também de criar um espaço útil. (p.123)

Os procedimentos disciplinares ficam cada vez mais


meticulosos: a punição e a vigilância são mecanismos de poder
utilizados para docilizar e adestrar as pessoas para que essas
se adaptem às normas estabelecidas nas instituições, através da

37 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


tecnologia da vigilância de poder que incide sobre os corpos
dos indivíduos, controlando seus gestos, suas atividades, sua
aprendizagem, sua vida cotidiana.
Nesse sentido, o corpo será submetido a uma forma de
poder que irá desarticulá-lo e corrigi-lo através de uma nova
mecânica do poder. As práticas disciplinares permitem o controle
das operações dos corpos e a sujeição constante de suas forças,
impondo-lhes uma relação de docilidade e utilidade.
Para o referido autor:

[...] O poder disciplinar é [...] um poder que, em vez de se apropriar e


de retirar, tem como função maior “adestrar”: ou sem dúvida adestrar
para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças
para reduzi-las; procura ligá-las para multiplicá-las e utilizá-las num
todo. (...) “Adestra” as multidões confusas (FOUCAULT, 2000, p.143).

O poder disciplinar se exerce sobre os corpos individuais


por meio de exercícios especialmente direcionados para a
ampliação de suas forças. Esses exercícios tinham como objetivo
o adestramento e a docilização dos corpos. “É dócil um corpo
que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser
transformado e aperfeiçoado” (FOUCAULT, 2000, p.118).
Foucault (2000) reafirma que nas relações de poder há
sempre resistência. O poder não é somente força negativa, mas
também produtiva. Uma vez que o poder está sempre presente,
a resistência também está, uma vez que onde há poder há
resistência, sendo que essa não é uma posição de exterioridade
em relação ao poder. A resistência é o outro lado do poder, faz
parte dele, articula-se com ele de forma intrínseca.
Para Foucault, a palavra-chave da dinâmica das relações de poder
é a resistência. Nesse sentido, há sempre a possibilidade de mudar
uma situação, de dentro dela, já que em nenhum lugar se está livre das
amarras do poder. É preciso, então, construir novas articulações, gestos
singulares, falas e práticas cotidianas de resistência. É desse lugar – ou
seja, de dentro – que se pode construir a resistência.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 38


Ainda que a mudança não seja efetuada no tempo desejável,
há sempre a possibilidade de sua existência. Ao estarem presos,
os adolescentes, os socioeducadores, as suas famílias – real ou
simbolicamente – constroem também práticas de liberdade. E
essa possibilidade de resistência começa nas mudanças possíveis
dos adolescentes, dos socioeducadores e dos gestores, através
dos atos de astúcia. Seriam esses atos de astúcia respostas à
vigilância, ao controle, ao poder e à disciplina? A resistência,
então, se operaria em atos, astúcias cotidianas (CERTEAU, 2000).
Esses atos são formas de comunicação intergeracional,
caracterizadas como relacionais, simbólicas e de experiência/luta.
A comunicação assim entendida seria a principal materialização
da existência desses sujeitos e o caminho encontrado para não
serem subjugados? São essas linguagens-arte que constroem a
subjetividade e as táticas cotidianas de sobrevivência e libertação?
Pequenas liberdades, luta de forças:

Eu acho que isso aí de não ter mais solução é uma palavra muito forte,
porque se eu quero mudar, eu vou mudar. Se eu botar na minha cabeça
que eu vou mudar, eu quero, eu posso e eu vou. Qualquer oportunidade
eu iria agarrar, porque é uma oportunidade, e eu não posso desperdiçar,
é uma oportunidade pra largar o crime de mão (Adolescente internado,
Fantástico, 22/07/2012).

Considerações finais
O propósito principal deste estudo foi apresentar e analisar
os paradoxos entre as políticas públicas em direitos humanos, as
diretrizes e a legislação para os adolescentes em conflito com a lei
inseridas nos planos e projetos do Estado Brasileiro, e as práticas
cotidianas de disciplina e controle que constituem um lugar/
espaço de aprisionamento para educar-disciplinar adolescentes.
Ao mesmo tempo em que procuramos desvelar essas práticas
discursivas e o panorama sociocultural que as constituem,
tentamos compreender os sentidos produzidos por essas
narrativas no processo de subjetivação dos adolescentes que por

39 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


vezes se autointitulam “menores infratores” ou “adolescentes
infratores”. Esses sujeitos são nomeados pelos profissionais que os
atendem como “educando-aluno”, “adolescentes em conflito com
a lei”, “adolescentes em situação especial de desenvolvimento”,
“adolescentes”, “menores”, “bandido”, “bebel” ou destituídos
de um nome.
Ao estudarmos a história das instituições responsáveis
por (re)acolher, assistir e educar crianças e jovens, atualmente
adolescentes envolvidos em atos ilícitos, deparamo-nos com a
criminalização da infância e juventude pobre que nasce com a
própria modernização brasileira.
No final da década de 1980, a sociedade se “humaniza”.
Como não cuidar das crianças e jovens pobres que não tiveram
alternativa, se não o crime? Houve um retorno à visão do
assistencialismo excludente, com maior investimento nas
instituições de aprisionamento-acolhimento: instituições
maiores, mais distantes e internação por maior tempo.
Estruturam-se novas configurações sociais e políticas,
tais como a Constituição Cidadã (1988). Houve a ampliação
dos movimentos populares, dos sindicatos e do Movimento
Nacional dos Meninos de Rua e, por fim, o Estatuto da Criança e
do Adolescente é promulgado em 1990.
O poder é pulverizado, saímos de um poder soberano da
ditadura, avançamos em um movimento da sociedade civil, na
microfísica do poder, na sociedade disciplinar e anunciamos a
sociedade de controle.
E as nossas crianças e jovens ainda menores infratores? O
Estado brasileiro capitalista e neoliberal indica a descentralização
político-administrativa e a corresponsabilidade dos três entes
federativos: federal, estadual e municipal.
Gilles Deleuze anuncia: “estamos saindo da sociedade
disciplinar para a sociedade de controle”, as “sociedades
disciplinares são aquilo que estamos deixando para trás”.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 40


“Estamos entrando nas sociedades de controle, que funcionam
não mais por confinamento, mas por controle contínuo e
comunicação instantânea.” (DELEUZE, 2000, p223)
Entretanto, nas instituições socioeducativas, os muros
continuam de pé e os adolescentes continuam aprisionados e
submetidos a todas as perversões e privações de liberdade. Para
a sociedade é lá que eles devem ficar, porém, melhor atendidos.
É a exclusão do convívio social e a inclusão nos equipamentos
sociais que lhes foram negados durante a vida lícita.
Surge o termo “adolescente em conflito com a lei”, sujeito de
direito e de proteção integral. Com o ECA, o Juiz permanece com
o poder de avaliar e aplicar as medidas de sanção/punição aos
adolescentes envolvidos em atos ilícitos. Auxiliando a decisão-
controle dos juízes, entram em cena os executores das medidas,
através dos relatórios biopsicossociais, com poder de progressão
ou regressão da medida socioeducativa.
Nos sistemas socioeducativos estaduais, houve a
continuidade dos problemas estruturais da internação/
privação da liberdade e de direitos. O perfil socioeconômico
dos adolescentes permaneceu o mesmo: os segmentos pobres da
população e de caráter étnico bem visível – os negros.
No estudo histórico das instituições e na configuração e
produção social do adolescente-menor infrator, das questões que
procuramos responder surgem outras que apenas se enunciam.
Algumas que emergiram recentemente, ao lado de outras há
muito presentes na história dos adolescentes em conflito com
a lei. O que procuramos, sobretudo, foi dar a esses sujeitos a
possibilidade de ocupar um espaço, torná-los visíveis, fazendo
com que ganhassem novas cores.
Sem dúvida, a tessitura carcerária das instituições
de internação dos adolescentes “infratores”, constituída
historicamente, possibilita a criação de uma armadura desse
saber-poder e desses sujeitos. O adolescente infrator – homem

41 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


conhecido como tal e assim divulgado à exaustão pela mídia – é
o efeito-objeto desse investimento analítico, dessa dominação-
observação (FOUCAULT, 2000).
A instituição que pretende socioeducar, escolarizar
e profissionalizar adolescentes, autorredirecionando os
seus projetos de vida para a não reincidência infracional,
paradoxalmente apresenta relatos de violência institucional e
dispositivos de docilização e violação do “eu”, acabando por
produzir a delinquência.
O esforço de alguns profissionais, através da presença
pedagógica junto ao adolescente, e as alterações e mudanças das
estruturas físicas produzem cotidianamente a própria instituição
socioeducativa, por vezes punitiva, educativa, protetiva e curativa.
Assim, pensamos que a relação saber/poder nunca é
unidimensional. Ela é exercida não apenas como modo de
dominação do forte sobre o fraco, mas também como ato de
resistência, expressão de um modo criativo de produção cultural
e social de forças. Claramente, em todas as relações de poder,
disciplina e controle, há elementos de expressão cultural, práticas
criativas inspiradas em lógicas diferentes.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 42


REFERÊNCIAS

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei 8.069/90, de


13 de julho de 1990. Brasília: Senado Federal, 1993.

CALDEIRA, T. P. R.. Cidade de muros: crime, segregação e


cidadania em São Paulo. São Paulo: EdUSP, Editora 34, 2000.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1 Arte de fazer.


Petrópolis: Editora Vozes, 2000.

COSTA, A. C. G. As Bases Éticas da Ação Sócio-educativa. Belo


Horizonte: Manuscrito impresso, 2004.

COSTA, A. C. G.. Por uma política de execução das medidas


socioeducativas: Conceitos e Princípios norteadores. Coordenação
técnica. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2006.

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Pelbart. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Editora 34, 2000.

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Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 44


A contradição do sistema socioeducativo

Joyce da Silva Ferreira1

Resumo
Este artigo destina-se a analisar o sistema socioeducativo
e suas especificidades. Propõe-se a caracterizá-lo como um
sistema contraditório onde a punição e a violência fazem-se
presente, ainda assim, garante direitos. Os eixos da discussão
estão fundamentados na análise histórico estrutural, sem
descartar o caráter simbólico, cultural, social e político enraizado
na sociedade brasileira. A indagação que se instaura é: como um
sistema destinado ao encarceramento pode assegurar direitos?

Palavras-chave: sistema socioeducativo; contradição;


encarceramento.

Este artigo destina-se a analisar o sistema socioeducativo e


suas especificidades. Propõe-se a caracterizá-lo como um sistema
contraditório onde a punição e a violência fazem-se presente,
ainda assim, garante direitos.
A pesquisa em questão é fruto de uma reflexão iniciada no
mestrado sobre a temática da socioeducação, cujo tema é “Inserção
no mundo do trabalho: as perspectivas de adolescentes em
cumprimento de medida socioeducativa de internação marcados
por uma identidade social estigmatizada” defendida em 2014
no Departamento de Serviço Social da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Cabe apontar, também, a inserção
como Assistente Social do sistema socioeducativo que ajudou a
melhorar a percepção sobre a questão apresentada aqui.
1 Assistente Social. Doutoranda em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação
da UFRJ, Mestre em Serviço Social pelo Programa PUC-Rio, especialista em Direito
Especial da Criança e do Adolescente pela UERJ e bacharel em Serviço Social pela UFF.
E-mail: joycedas.ferreira@gmail.com.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 46


Como caso emblemático que suscitou a pesquisa,
recordamos certa família que não tinha acesso ao serviço de saúde
dental em seu município. Somente, quando os adolescentes desta
família foram inseridos em uma unidade internação, os referidos
adolescentes e todos os membros da família (mãe e irmãs) foram
atendidos na instituição em serviço odontológico.
Este fato auxiliou na identificação de que: o sistema
socioeducativo conseguia garantir, ou mesmo ser porta
de entrada para o acesso a direitos, mesmo que de forma
contraditória e violenta. Um acesso invertido aos direitos sob a
égide do encarceramento.
Para tanto, o percurso escolhido neste trabalho para sustentar
o argumento foi: em primeira análise, discutir o debate teórico
defendido pela pesquisa sobre a socioeducação e apresentar os
parâmetros legais; em segundo momento apresentar a pesquisa
e os caminhos trilhados para sua realização. Nesta última
parte, priorizou-se o reconhecimento do campo de pesquisa,
assim como os atores pesquisados e os dados que ratificam os
argumentos da contradição.
Como campo de análise, este estudo se fixará na análise
da medida de privação de liberdade: internação. Ademais, tal
como Wacquant (2012), o debate segue a linha de não separar
as abordagens materialistas e simbólicas para compreender o
fenômeno do encarceramento, e no caso aqui o cumprimento de
medida socioeducativa de internação, uma vez que o objetivo
é apreender de forma totalizante tais questões. Sem cair num
ecletismo, a proposta é analisar através de um debate intertextual
as diversas dimensões da socioeducação, nos meandros das
microrrelações e nas macrorrelações sociais. Desta forma, os
eixos de discussão estão fundamentados na análise histórico-
estrutural, sem descartar o caráter simbólico, cultural, social e
político enraizado na sociedade brasileira.
A indagação que se instaura é: como um sistema destinado
ao encarceramento pode assegurar direitos?

47 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


A proposta de socioeducação difundida nos parâmetros
legais e seus impactos reais na vida dos adolescentes
O sistema socieducativo é o espaço para a responsabilização
do adolescente, de 12 a 182 anos de idade, que cometeu algum
ato infracional descrito no Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA, Lei 8.090 de1990), ou seja, uma conduta análoga ao crime
ou contravenção penal.
Os aparatos legais da Constituição de 88, do ECA e do SINASE3
preveem que a internação constitui medida sujeita aos princípios
de brevidade, excepcionalidade e respeito a condição peculiar
em desenvolvimento. Deve ser executada no âmbito estadual e
aplicada quando tratar-se de: ato com grave ameaça ou violência;
descumprimento reiterado e injustificável de medida anteriormente
imposta; e acometimento reiterado de infrações graves.
A internação assim como todas as medidas socioeducativas
devem ter como perspectiva fundamental, segundo as
prerrogativas legais, a garantia da Proteção Integral e assegurar
com absoluta prioridade os adolescentes como sujeitos de
direitos. Entretanto, no momento, o Sistema Socioeducativo
gera uma relação contraditória. Ainda que tenha a proposta de
uma política de contenção da classe pobre, deve disponibilizar
ao adolescente a possibilidade de ingresso às políticas públicas
e sociais através de atividades educativas, profissionalizantes,
culturais, esportivas, atendimento médico e acompanhamento
jurídico, ou melhor, de acesso aos serviços públicos de forma
adequada para a aplicação de medida socioeducativa.

2 Para os efeitos de socioeducação o adolescente pode estar em cumprimento de medi-


da até os 21 anos de idade, segundo o ECA.
3 Em janeiro de 2012, é instituído o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo
(SINASE) que regulamenta a
execução da medida socioeducativa destinado ao adolescente que pratique ato infra-
cional, Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012. Ainda que haja limites e necessidades de
maior discussão, este representa um importante avanço na perspectiva de melhorar a
execução da medida e unificar padrões de qualidade.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 48


Apesar das importantes críticas sobre o ECA e sua
efetivação, ele rompe com certos paradigmas, principalmente
com a “situação irregular” e propõe um direito para todos.
Não podemos olvidar, no entanto, que as “continuidades”
do antigo código de menores permanecem nesta legislação,
conforme afirma Silva (2005, p.31), por conta de um “processo
de reafirmação do controle do capital”. Mais ainda, o ECA possui
uma proposta contraditória, já que permanece em seu âmago um
caráter punitivo. Guindani (2005) afirma que diante do discurso
educativo permanece uma base punitiva.
A socioeducação possui características semelhantes ao
direito penal brasileiro, até porque em sua descrição o magistrado
deve fazer analogias ao crime tipificado no código penal.
Portanto, serão utilizadas algumas análises do sistema penal para
complementar este estudo. Sendo assim, Batista descreve que o
direito penal brasileiro tem um discurso de igualdade quando
suas bases são punitivas e de segregação. Logo,

(...) é apresentado como igualitário (...). Por fim, o sistema penal se


apresenta comprometido com a proteção da dignidade humana (...)
quando na verdade é estigmatizante, promovendo uma degradação na
figura social de sua clientela.
Sistema penal brasileiro é seletivo, repressivo e estigmatizante
(BATISTA, 2005, p.26)

Este aparato tem um objetivo estrutural de garantir o


encarceramento de uma classe. Para Wacquant (2012), faz
parte de uma lógica perversa com o objetivo de corroborar
para a expansão e expropriação dos lucros capitalistas. Ainda
que ele esteja analisando a prisão, o autor afirma que o papel
é conter os jovens pobres e negros que interferem no livre
funcionamento do sistema capitalista, pois se tem “(...) a prisão
não como um implemento técnico para o cumprimento da lei,
mas como o âmago de poder político, cujo emprego seletivo
e agressivo nas regiões inferiores do espaço social viola os

49 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


ideais da cidadania democrática” (WACQUANT, 2012, p.
12). A internação como medida socioeducativa representa a
segregação dos adolescentes de uma determinada classe em
espaços de isolamento e confinamento.
Em análise genealógica, Foucault (2009) descreve que o
encarceramento cumpre uma função simbólica importante:
para o adestramento dos corpos, transformação dos mesmos
em corpos dóceis. Toda a engrenagem constitui formas à
“(...) expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder um
castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto,
a vontade, as disposições” (FOUCAULT, 2009, p. 21). Cumpre
também uma função econômica, já que também tem um efeito
econômico com a produção de sujeitos disciplinados para
esta sociedade industrial, “ajustamento a um aparelho de
produção” (FOUCAULT, 2009, p.230) Para o referido autor, o
trabalho foi definido como um dos agentes de transformação
carcerária atribuído pela sociedade. Todavia, estabelece uma
relação de poder, tonando-se, com o isolamento, um “esquema
de submissão individual” e “ajustamento”.
Wacquant (2012), por sua vez, destaca que para além do
“adestramento” dos corpos, a prisão contemporânea assume a
função política de neutralização brutal dos sujeitos e de vigilância
das categorias sociais desfavorecidas por conta do avanço das
ações neoliberais. Para ele,

A marca punitiva das mudanças recentes tanto nas políticas assistenciais


quanto nas políticas judiciais aponta para uma reconstrução mais
ampla do estado (...). A penalização paternalista da pobreza almeja
conter as desordens urbanas alimentadas pela desregulamentação
econômica e disciplinar as frações precarizadas da classe trabalhadora
pós-industrial. (WACQUANT, 2012, p.12)

Ou seja, não é a insegurança criminal que tem solicitado


respostas do Estado e sim a insegurança social instaurada pela
crise do trabalho. Para a regulação destas instabilidades, o Estado

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 50


propõe a esta classe social o atendimento no sistema penal e na
assistência social, o que garante a conservação das bases estruturais
do sistema mesmo em grave crise (WACQUANT, 2012).
Neste foco centralizado nas questões macrossociais,
Rusche & Kirkchheimer (2004) apontam que as práticas penais
específicas possuem determinações históricas e estruturais. Elas
cumprem uma função singular na sociedade, são demandadas
por uma ordem societária que tem como diretriz a produção
material e das relações sociais. Para os autores, as principais
determinações das penas são as questões materiais. Ou seja,

Todo sistema de produção tende a descobrir formas punitivas que


correspondem às suas relações de produção. (...) o uso e a rejeição de
certas punições e a intensidade das práticas penais, uma vez que elas são
determinadas por forças sociais, sobretudo pelas forças econômicas e,
consequentemente, fiscais. (RUSCHE & KIRKCHHEIMER, 2004, p. 20)

Como outra característica, Moreira (2005) ao apontar os


estudos de Zaffaroni (1990), declara que para o autor o sistema
penal é a manifestação de poder, assim é palco de disputas
políticas. Como já assinalado, não há como distanciar as análises
dos autores sobre o encarceramento. Elas se complementam,
uma vez que a privação de liberdade cumpre as funções de
corroborar o ordenamento social vigente com a subalternidade
das classes, sanciona a função de poder e controle, manipula os
sujeitos e os modela, garante a produção, abafa as tensões, e, por
último, cumpre uma função política.
Cabe, no entanto, estabelecer que a base estrutural é o
horizonte para a concretude destas funções. Já que, “(...) embora
o direito penal seja modelado pela sociedade – e, em última
instância, hão de prevalecer sempre as variáveis econômicas que
determinam suas linhas fundamentais” (BATISTA, 2005, p.22).
Não há como afirmar que o sistema socioeducativo, um
aparato tão complexo deve ser analisado somente por um
prisma. Garland (1999), ao analisar o castigo, identifica a mesma

51 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


necessidade. Para o referido autor, “El objetivo del análisis
siempre debe ser captar esa variedad de causas, efectos y
significados que trazan su interacción, más que reducirlos a una
sola divisa”4 (GARLAND, 1999, p.325).
O cenário histórico, social e político brasileiro apresenta que
a diretriz seguida sempre foi a de criminalização e de contenção
dos pobres. E o sistema socioeducativo, seguindo esta linha,
representa um aparato estatal de confinamento desta classe
criminalizada. Todavia, o sistema socioeducativo representa
um sistema paradoxal, capaz de assumir dupla função. Ainda
que tenha a proposta de uma política de encarceramento, deve
disponibilizar ao adolescente a possibilidade do ingresso às
políticas públicas e sociais, e o faz. Contraditoriamente, somente
a partir da perda do direito a liberdade, os adolescentes acessam
direitos que deveriam ser assegurados de forma preventiva.
Ratificando a análise, insta apresentar o caso de certo jovem
que ao ingressar no sistema socioeducativo, para cumprimento
de medida de internação, não sabia informar seu nome completo,
data de nascimento, idade, entre outras informações. Ao
indagado como não sabia informações básicas sobre sua vida,
ele respondeu que nunca havia sido registrado. O nome que
constava no processo judicial era, na verdade, o nome do seu
primo. Ele utilizava a certidão de nascimento deste primo para
estudar, assim, se apropriou deste nome. A partir da internação e
de sua visibilidade como “infrator”, seu registro de nascimento
estava sendo providenciado.
Ou seja, em acompanhamento no sistema socioeducativo, o
adolescente, em certo grau, mesmo que este grau seja precarizado
e equivocado, passa a ser ouvido por profissional qualificado e
tem a possibilidade de acesso a alguns direitos outrora negados.
Cabe salientar que, o ingresso de jovens no sistema não é capaz
de romper com a subalternidade.
4 Tradução livre: “O objetivo da análise sempre deve ser captar essa variedade de
causas, efeitos e significados que traçam sua interação, mais que reduzi-los a uma só
insígnia”.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 52


Vera M. Batista, descreve o conceito desenvolvido por Nilo
Batista de Cidadania negativa. Para a autora, o grupo, em contexto
de vulnerabilidade, que possuem um passado de escravidão e
na contemporaneidade representa os marginais, só tiveram o
acesso ao avesso da cidadania. Estes “(...) só conhecem o avesso
da cidadania através dos sucessivos espancamentos, massacres,
chacinas e da opressão cotidiana dos organismos do sistema
penal”. (BATISTA, 2003, p.133)
É necessário, neste momento, apresentar os resultados
da pesquisa empírica que comprova a contraditoriedade do
sistema socioeducativo.

Os contornos da análise
O objetivo, neste momento, é apresentar a pesquisa e
os caminhos percorridos. Cabe aqui explorar o perfil dos
adolescentes pesquisados e o campo de pesquisa. A condução
garante o reconhecimento da subjetividade dos atores
pesquisados e suas condições de vida.
A primeira parte fundamenta-se sobre os caminhos
traçados até a obtenção dos resultados. Por último garantem-
se o debate teórico e os resultados alcançados, bem como o
discurso dos adolescentes sobre suas vivências.
O perfil dos adolescentes ratifica o perfil dos adolescentes
em cumprimento de medida socioeducativa no Brasil, onde os
dados demonstram ser: negros, pobres, com baixa escolaridade,
em cumprimento de medida por atos cometidos principalmente
contra o patrimônio ou o trabalho no tráfico5. Este grupo tem o
racismo como principal fator de segregação na sociedade; ele
categoriza quem será ou não usuário do sistema socioeducativo
5 Dados nacionais podem ser analisados em: CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA.
Programa Justiça ao Jovem. Disponível em <http://wwwh.cnj.jus.br/portal/images/
programas/justica-ao-jovem/relatorio_final_rio_de_janeiro.pdf>. Acesso em: 24 de
fev. 2014. ________. Panorama Nacional – A execução das Medidas Socioeducativas
de Internação. Brasília, Conselho Nacional de Justiça, 2012.

53 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


O sistema possui predileções, usuários preferenciais.
Segundo Moreira (1990) apud Zaffaroni (2005),

(...) sabemos que não são causas de crimes, mas são causa da prisionização
da pessoa; sabemos que eles fazem parte dos estereótipos, sabemos que
sem estereótipo não temos preso, sabemos que a prisão fixa os dados
do estereótipo (...) e também sabemos que a pessoa pratica esses crimes
contra a propriedade porque não sabe praticar os crimes usualmente
praticados pelas pessoas respeitáveis. Ou seja, tem treinamento para
os roubos, tem treinamento que é próprio dos feios, daqueles que têm
cara e reputação de ladrões. Só tem treinamento para esses roubos
não para outros. Estão treinados para isso e mais nada. Hoje sabemos
isso. O estereótipo e o treinamento são duas condições sociais da sua
vulnerabilidade na frente do sistema penal. Se não tivessem cara e
tivessem treinamento para praticar outros crimes, não estariam na
cadeia, sem dúvida; seriam pessoas respeitáveis. (MOREIRA apud I,
ZAFFARONI, 1990, p.55).

A fala deste autor, ainda que esteja referindo-se ao sistema


penal, é fundamental para a compreensão dos adolescentes
em internação que tiveram imposta uma Identidade Social
Estigmatizada6. Clarifica que não é qualquer pessoa elegível ao
sistema, nem quaisquer tipos de atos infracionais. No sistema
socioeducativo está apenas os adolescentes pertencentes a uma
determinada classe social com uma origem e cor ainda que os
atos não sejam os mais graves.

O que determina não é o ato infracional ou o grau de violência e


sim o lugar social o qual adolescente pertence.

6 A Identidade Social Estigmatizada é uma categorização depreciativa imposta


pela sociedade a um determinado grupo que não se encaixa nas determinações da
hegemonia. Esta categorização possui uma raiz histórica e cultural de uma classe de
dominadores que se sobrepõe a uma classe de dominados. Para melhor compreensão
sobre a temática ver: GUIMARÂES, Joyce Ferreira. Inserção no mundo do trabalho:
as perspectivas de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de
internação marcados por uma identidade social estigmatizada. Orientador: Irene
Rizzini. – Rio de Janeiro: PUC, Departamento de Serviço Social, 2014.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 54


A diretriz para o atendimento às classes pobres, em diversos
momentos históricos, caminhou em direção à criminalização e
a contenção. A meta para este atendimento, segundo Rizzini,
“(...) não era o alívio da pobreza tendo em vista maior igualdade
social; visava, ao contrário, o controle através da moralização do
pobre” (RIZZINI, 2011, p.50).
Com o recorte especificamente do grupo apresentado, cabe
neste momento identificar os escolhidos para a entrevista.

Tratamento dos dados


O percurso que foi seguido para a análise do material
exigiu o esforço de articular o discurso dos sujeitos e as reflexões
anteriores. Além dos cruzamentos entre dados empíricos
e teóricos, foram empreendidos cruzamentos destes dados
primários, colhidos no âmbito da presente pesquisa, bem como
de dados secundários, advindo de outras pesquisas publicadas
neste campo temático.
Para uma pesquisa qualitativa, foram entrevistados 20
adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de
internação na Escola João Luiz Alves. Todos tinham acima de
16 anos7. Cabe agora um retorno às indagações centrais deste
estudo: Como um sistema destinado ao encarceramento pode
assegurar direitos?

Escolarização
Os dados aqui levantados sobre a escolarização ratificam
a baixa frequência e a dificuldade em manter os adolescentes
nos bancos escolares. Este quadro impõe a problematização
sobre o tipo de escolarização que está sendo oferecido, além de
reforçar críticas sobre políticas públicas que pouco avançaram
no incentivo e a manutenção de alunos nas escolas. Ainda,

7 Para melhor compreensão do grupo pesquisado, indicamos a pesquisa acima citada.

55 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


os dados reiteram que os adolescentes em cumprimento de
medida socioeducativa representam o grupo excluído de uma
escolarização e profissionalização de qualidade.
Dos adolescentes pesquisados foi constatado que, no ensino
fundamental, estavam: 1º Ano - 1; 3º Ano - 1; 4º Ano - 1; 5º Ano
- 1; 6º Ano - 8; 7º Ano - 6; 8º Ano - 1. E apenas um adolescente no
1º no do ensino médio.
Todos os adolescentes estavam matriculados na escola
que funciona dentro da Unidade do DEGASE no momento da
entrevista. Antes da internação, apenas três estavam matriculados
em escolas em seus territórios e as estavam frequentando,
dezesseis estavam fora da escola e um não informou sua situação.
Dos adolescentes fora da Escola, 10 estavam há mais de dois anos
sem frequentar o ensino regular.
Desses 16 adolescentes fora da escola, as justificativas apontadas
para esta interrupção foram: sem vontade - 1; atividades ilícitas - 8;
repetência -1; desânimo - 4; indisciplina - 1; uso de drogas - 1.
Destaque para o envolvimento em atividades ilícitas. A
inserção principalmente no tráfico é um fator incompatível com
a permanência na escola. A escola perde o sentido e não cria
condições para a continuação desses adolescentes como alunos.
“Depois que entrei para o crime a escola perdeu a importância”
(Guimarães, 2014, p.87), entrevista com adolescente em
cumprimento de medida socioeducativa de internação, na Escola
João Luiz Alves, em janeiro de 2014, informando os motivos para
a sua saída da escola.
Sobre a justificativa desânimo, vale considerar que 3 dos 4
adolescentes que informaram esta resposta estavam no tráfico
de drogas no período em que deixaram os bancos escolares.
Novamente nos permite fazer a reflexão sobre a as dificuldades
de permanência na escola e o envolvimento em atividades ilegais.
É possível questionar se esta falta de acesso à educação
tenderia a reforçar a permanência de seus envolvimentos com

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 56


a prática de atos infracionais. Este conjunto de fatores parecem
formar um ciclo vicioso: a sociedade impõe a um determinado
grupo uma identidade estigmatizada, esta identidade por sua
vez o exclui do acesso aos direitos e o adolescente internaliza
esta identidade a partir da infracionalidade ou segregação. São
questões que se atravessam sem início ou fim, são concomitantes,
continuas e reflexivas.
Apenas a escola do sistema socioeducativo é capaz de
absorver esses adolescentes. É notório que, e não há espaço
para a ingenuidade, esta absorção vem acompanhada da ação
impositiva do Judiciário e da força.

Profissionalização
Não somente na escolarização, mas na realização de cursos
e preparação escolar profissionalizante verificamos o acesso
invertido aos direitos. Dentre os entrevistados: um realizou
cursos apenas em seu território, este não estava matriculado nos
cursos oferecidos pelo DEGASE; três já haviam feito cursos em
sua comunidade e no Sistema Socioeducativo; dezesseis haviam
realizado cursos apenas no DEGASE.

Políticas Sociais
O acesso aos programas, serviços, benefícios e projetos sociais
pouco aparece no discurso dos adolescentes. Dos entrevistados,
quinze indicaram nunca terem participado – pessoalmente ou
por meio de sua família - de qualquer programa social. Neste
momento, cabe destacar dois importantes apontamentos:

· os adolescentes pouco sabem sobre suas dinâmicas


familiares. Este fato é evidenciado pelas informações imprecisas
sobre a renda, trabalho e/ou idade dos membros familiares.
Desta forma, os adolescentes não apresentam clareza sobre

57 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


programas em que somente o Responsável Familiar participa,
tais como Bolsa Família ou CRAS;
· os adolescentes não indicam ter acesso aos serviços de
Proteção Social Básica como forma de prevenção à violação
de direitos ou rompimento dos vínculos familiares, tais como
Projovem, Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos,
Centro de Referência para a Juventude, entre outros.

Sobre os programas sociais: cinco indicaram que


participavam de programas sociais; dois acessaram o Bolsa
Família; dois participaram do PETI; um esteve em atividades no CRAS.

Demais Políticas
Conforme já apontado, é somente no sistema que o
adolescente tem ingresso nas políticas públicas, entre elas de
saúde, inclusive, com tratamento para uso abusivo de drogas. Há
uma equipe profissional que atende exclusivamente adolescentes
com esta demanda. Existe também atendimento médico para
demandas em clinico geral, para especialidades os adolescentes
tem prioridade nos atendimentos na rede municipal e estadual.
A prioridade se dá pelo cumprimento de medida, prioridade esta
que, por vezes, se estende à família, a partir do encaminhamento
da equipe técnica ou determinação judicial.

Conclusão
O sistema socioeducativo de uma forma contraditória
tem representado a porta de entrada para acessar alguns
direitos. Ainda que de uma maneira controversa utilizando
excessivamente a violência, com o encarceramento dos pobres,
com a promoção da miséria humana e subjugação dos resistentes.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 58


É notória que neste espaço impera a violência, a coerção, a
subalternidade, estigmatização, culpabilização, sistemas frágeis
e insuficientes, assim como serviços precarizados. Mas não é ele o
único responsável pelas mazelas dos adolescentes que ingressam
ali. Este espaço, também, proporciona ingresso em sistemas de
proteção e acesso a serviços/direitos. É paradoxal pensar que
o adolescente precisa perder o direito a liberdade e estar em
cumprimento de medidas socioeducativas para ter direitos.
Esta é a contradição da medida socioeducativa, somente
pela via da infração alguns adolescentes terão acesso a certos
direitos fundamentais. De acordo com o conceito de Cidadania
Negativa (Batista, 2003), isto é, apenas através da ação coercitiva
do Estado os sujeitos terão possibilidades de acesso a políticas e
serviços públicos.
A análise dos resultados da pesquisa demonstram as
lacunas sociais em âmbito de toda a sociedade, que excedem os
muros do sistema socioeducativo. Não é objetivo “demonizar”
ou “suavizar” a responsabilidade do sistema socioeducativo.
A compreensão é de que o sistema faz parte de uma lógica
superior ao âmbito apenas da socioeducação. Funcionário da
EJLA, ao referir-se a falência dos sistemas de proteção, discorre
que: “Quando o adolescente chega aqui significa que todo o
resto falhou”. (Guimarães, 2014, p.101), entrevista com servidor
do sistema socioeducativo, unidade Escola João Luiz Alves, em
janeiro de 2014.
Conforme Rusche & Kirkchheimer (2004), não há como
refletir sobre o sistema penal, para o caso deste estudo o
socioeducativo, sem situá-lo na totalidade. É necessário pensar
como um aparato coletivo “O sistema penal de uma dada
sociedade não é um fenômeno isolado sujeito às suas leis especiais.
É parte de todo o sistema social, e compartilha aspirações e seus
defeitos”( RUSCHE & KIRKCHHEIMER, 2004, p.282).

59 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Assim também, aponta Garland a importância de: “Señala
la interrelación de la penalidad con otras esferas de la vida social,
así como su papel funcional en la red de instituciones sociales8 ”
(Garland, 1999, p. 331).
Este estudo não se propõe a amenizar a realidade do
sistema socioeducativo. E sim, pretende demonstrar sua interface
com o aparto social mais amplo, com a sociedade de classe. A
contraditoriedade chega ao ponto em que adolescentes que
deveriam ter de forma preventiva acesso aos direitos, por vezes,
o tem através da infracionalidade e da violência.
Em face ao exposto, as propostas para amenizar estas
questões estão na emancipação humana, através da luta de
classes com vistas a equidade de acesso aos direitos, para uma
sociedade mais justa. De forma mediata, programas e serviços
de prevenção são alternativas importantes, criar estratégias no
rompimento da subalternização das classes e garantir não apenas
ingresso, mas permanência nas políticas será fundamental.

8 Tradução livre: “Marcar a interrelação da penalidade com outras esferas da vida


social, assim como seu papel funcional na rede de instituições sociais”.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 60


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63 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Adolescentes infratores brasileiros:
desafios para a socioeducação
Janaina Specht da Silva Menezes1
Paulo Fernando Lopes Ribeiro2

Resumo
Este trabalho tem por objetivo refletir sobre a educação
relacionada aos adolescentes e jovens envolvidos com a prática de
atos infracionais. Tendo como aporte metodológico as pesquisas
bibliográfica, documental e de campo e como fio condutor
algumas abordagens da mídia e os processos de higienização
social associados a esses adolescentes e jovens, especialmente
durante a realização de grandes eventos no País, o texto destaca,
entre outros resultados, a necessidade de a socioeducação
ampliar seus limites, buscando encontrar na integração entre
os profissionais que orbitam em seus espaços e na colaboração
entre diferentes áreas, setores, secretarias e unidades federadas,
formas de efetivar e potencializar sua (atu)ação.

Palavras-chave: Socioeducação, Adolescentes, Infratores, ECA.

Educar é sempre uma aposta no outro. Ao contrário do ceticismo dos


que querem ‘ver para crer’, costuma-se dizer que o educador é aquele
que buscará sempre ‘crer para ver’. De fato, quem não apostar que
existam, nas crianças e nos jovens com que trabalhamos, qualidades
que muitas vezes não se fazem evidentes nos seus atos, não se presta,
verdadeiramente, ao trabalho educativo.
(Antonio Carlos Gomes da Costa, 1999, p. 23).

1 Profa. Dra. da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e integran-


te do Núcleo de Estudos: Tempos, Espaços e Educação Integral (Neephi/Unirio).
2 Pedagogo do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE) da Secretaria
de Estado de Educação do Rio de Janeiro (Seeduc-RJ) e integrante do Núcleo de
Estudos: Tempos, Espaços e Educação Integral (Neephi/Unirio).

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 64


Carece de maiores estudos o fato de parcela significativa
da população brasileira denominar os adolescentes e jovens que
se envolvem com a prática de atos infracionais pelos termos
“menor infrator” e/ou “delinquente juvenil”, além de tantos
outros termos que o senso comum, fortalecido pelo uso intensivo
da mídia, vem naturalizando como forma de classificá-los e, por
conseguinte, excluí-los. Ao analisar essa questão pela perspectiva
socioeducativa, observamos que, mais do que um fator linguístico,
a intolerância para com os adolescentes infratores esconde esse
e outros problemas, os quais vêm paulatinamente influenciando,
de forma negativa, a sua socialização.
Aliada a essa inquietação, cabe analisar como a educação
tem sido promovida para esse público tão peculiar. No
Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, é responsabilidade do
Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE)
atender aos adolescentes que cumprem medidas socioeducativas
3
de internação e semiliberdade, as quais são aplicadas pelos
Juizados da Infância e da Juventude. Mas, qual seria a finalidade
do DEGASE?
Primeiramente, é necessário destacar que, embora
o DEGASE4 esteja vinculado à Secretaria de Estado de
Educação (Seeduc) e tenha por responsabilidade promover a
socioeducação no Estado do Rio de Janeiro, cristalizando, por
conseguinte, a imagem do sistema socioeducativo, ele não se
constitui propriamente o sistema socioeducativo do Estado. O
DEGASE é um dos órgãos que compõem o Sistema de Garantia
de Direitos(SGD), constituindo-se no executor das medidas
socioeducativas de internação e semiliberdade. A esse respeito,
Oliveira (2015a, p. 104) lembra-nos que: “[...] por este motivo,
3 De acordo com Liberati (2003, p. 100): “As medidas socioeducativas são aquelas ati-
vidades impostas aos adolescentes, quando considerados autores de ato infracional.
Destinam-se elas à formação do tratamento integral empreendido, a fim de reestrutu-
rar o adolescente, para atingir a normalidade da integração social”.
4 Diferentemente de outros estados, no Rio de Janeiro, o DEGASE está vinculado à
Secretaria de Educação, e as unidades do Departamento são sistematicamente fiscali-
zadas pelo Ministério Público.

65 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


espera-se que sua atuação [do DEGASE] se efetive de forma
articulada e integrada com as demais instâncias públicas
governamentais e da sociedade civil”.
Cabe ao DEGASE o papel de “promover socioeducação no
Estado do Rio de Janeiro, favorecendo a formação de pessoas
autônomas, cidadãos solidários e profissionais competentes,
possibilitando a construção de projetos de vida e a convivência
familiar e comunitária” (RIO DE JANEIRO, 2013, p. 29). Sob
essa perspectiva, faz-se fundamental a constituição de políticas
intersetoriais voltadas para o atendimento dessas pessoas que
se encontram marginalizadas, ou que continuam invisíveis para
uma significativa parcela da sociedade e, especialmente, para o
Estado, de modo a–tendo por base o acesso a uma educação que
as estimule a se tornarem pessoas críticas e as auxilie no desafio
de construírem novos projetos para suas vidas– promover sua
socialização e seu pleno desenvolvimento. A esse respeito,
Oliveira e Assis (2015, p. 844) observam que a real modificação
da sociedade exige “despertar o interesse das autoridades e da
sociedade para a necessidade de priorizar ações para a infância
e adolescência”, demandando, portanto, investimentos social e
político, de modo a “trazer de volta à sociedade, com dignidade,
os jovens infratores”.
O necessário enfrentamento dessa questão, por parte do
Estado brasileiro, emerge da análise dos dados do Gráfico 1,
os quais revelam que o número de adolescentes submetidos
a medidas de restrição e privação da liberdade, no País, vem
progressivamente aumentando.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 66


GRÁFICO 1 – Evolução da privação e restrição de liberdade
dos jovens infratores no Brasil – 1996-20115

Já o Quadro 1 possibilita observar que, de 2010 para 2011,


a maioria dos estados brasileiros apresentou crescimento das
medidas socioeducativas de internação e internação provisória,
em contraposição à diminuição da medida de semiliberdade, o
que pode caracterizar uma certa rigidez por parte dos juízes da
infância e da juventude no que tange à aplicação da medida de
internação. Contudo, convém observar que, conforme dados do
Censo Demográfico de 2010, no âmbito de uma população total
de adolescentes na faixa etária de 12 a 18 anos incompletos (pouco
mais de 20 milhões), “apenas 0,09% desse total encontra[va]-se
em cumprimento de medidas socioeducativas em meio fechado”
(BRASIL, 2015b, p.8).

5 Fonte: Levantamento Nacional de Atendimento Socioeducativo (BRASIL, 2015b)

67 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


QUADRO 1 – Demonstrativo dos estados brasileiros que
tiveram elevação ou redução das taxas referentes à restrição ou
privação de liberdade – 2010-20116

- Não houve elevação ou diminuição significativa da taxa de


internação no Rio Grande do Norte, a qual se manteve estável
nesses anos.
- Não houve elevação ou diminuição da taxa de semiliberdade
no Pará, a qual se manteve estável nesses anos

A conjugação das informações presentes no Gráfico 1e


no Quadro 1 permite constatar que em um contexto de avanço
da população de adolescentes infratores acautelados no país–o
qual, no período de 2010 a 2011, apresentou taxas crescentes
de internação, internação provisória e semiliberdade–, o Rio de
Janeiro, provavelmente pela prévia constatação da necessidade
de enfrentamento dos problemas associados ao aumento do
contingente de adolescentes em conflito com a lei, em situação de
restrição ou privação de liberdade, constituiu-se no único estado
brasileiro a incluir no Plano Estadual de Educação (PEE)7 eixos

6 Fonte: BRASIL; 2015b. As Unidades Federadas estão listadas em ordem crescente


7 O PEE do Rio de Janeiro foi aprovado por meio da Lei n° 5.597/2009 (RIO DE
JANEIRO, 2009).

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 68


específicos voltados para as medidas socioeducativas e para a
educação prisional, na modalidade jovens e adultos (SOUZA;
MENEZES, 2014)8 .

A perpetuação do termo “menor infrator” no (con)texto


brasileiro
O fato de os adolescentes envolvidos com ilicitudes virem
sendo denominados “menores infratores”, tanto pela mídia
quanto por parte da sociedade, tem provocado, ao longo do tempo,
prejuízos a esses jovens, como, por exemplo, sua estigmatização.
Se a palavra “menor” foi utilizada no Código de Menores de 1927
(BRASIL, 2015) e no Código de Menores de 1979 (BRASIL, 2015a)
para designar os jovens que são objetos de medidas judiciais,
a manutenção dela no contexto atual promove a preservação
de uma espécie de signo que rotula, principalmente, aqueles
indivíduos pertencentes às camadas mais desfavorecidas. A
perpetuação de tal denominação associa-se ao caráter pejorativo
com o qual se impregnou o senso comum, de tal forma que
algumas manchetes (Quadro 2), por vezes, parecem contrapor
menores e adolescentes, como se ambos não fossem investidos
das mesmas características, sendo que a palavra “menor”, na
grande maioria das vezes, está vinculada àquele que cometeu o
ato infracional.

8 A pesquisa realizada por Souza e Menezes (2014) abarcou os 11 (onze) PEEs aprova-
dos na vigência do Plano Nacional de Educação (PNE) 2001-2010 (Alagoas, Amazonas,
Bahia, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Paraíba, Pernambuco, Rio de
Janeiro, Tocantins).

69 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


QUADRO 2 – Títulos de notícias com destaque para os termos
“menor” e “adolescente”9

Embora o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA),


instituído por meio da Lei nº 8.069/1990, tenha utilizado as palavras
“criança” e “adolescente” para designar todo indivíduo com menos de
18 anos de idade, a mídia, ao continuar utilizando a palavra “menor”
para caracterizar o adolescente infrator, estigmatiza aquele a quem
se faz associar, contribuindo para que ele se mantenha à margem
da sociedade, uma vez que vincula a esse adolescente um caráter de
negatividade, incentivando sua segregação. Nesse sentido, Kiddo
(2015, [s/p]), ao observar que: “As palavras não são neutras e têm
muita força. Carregam símbolos, ideologias, histórias [...]”,destaca
que “o termo ‘menor’ ainda é frequentemente usado para classificar
as crianças e os adolescentes no Brasil, mas não todos. Aplicado
como dispositivo de controle e coerção, o menorismo [...] incide suas
normas para uma única classe social” (KIDDO, 2015, [s/p]).
Esse autor, para além de refletir sobre a contribuição da
mídia no processo de estigmatização dos adolescentes autores
de atos infracionais, discute ainda a reprodução da lógica da
exclusão e da desigualdade associada aos filhos das camadas
populares, os quais, diferentemente daqueles com origem nas
9 Elaborado pelos autores.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 70


elites econômicas, são designados como “menores”, podendo ser
caracterizados, em geral, como negros, pobres e residentes das
periferias urbanas, “perfil” esse que chancela as desigualdades
sociais, políticas e econômicas. Geralmente, o “menor”
corresponde à criança e ao adolescente que se encontram em
situação de vulnerabilidade social, em grande parte das vezes,
afastados, inclusive, do alcance de políticas públicas.
Durante a elaboração do ECA, foi substituída a palavra
“menor”, assim como outros termos que fortaleciam a concepção
menorista. Mais do que a simples troca de expressões, tais mudanças
buscaram ampliar a compreensão associada à necessidade de se
desenvolver uma visão mais humana e menos preconceituosa
em relação aos jovens em conflito com a lei, lembrando, a todo
momento, sua condição de crianças ou adolescentes.
Nesse sentido, no Quadro 3, são apresentadas algumas
das mudanças promovidas pelo ECA nos termos associados aos
adolescentes em conflito com a lei. O foco aqui reside na distinção
dos termos considerados inadequados, os quais, por conseguinte,
poderiam promover prejuízos ao pleno entendimento dos
direitos dos adolescentes que cometem atos infracionais.

71 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


QUADRO 3 – Mudanças promovidas pelo ECA nos termos
relativos aos adolescentes infratores10

Além da questão menorista, vinculada aos dois Códigos


de Menores11 implementados antes da aprovação do ECA, outro
problema, associado aos adolescentes que se envolvem com atos
infracionais, refere-se à questão da higienização social, que, de
forma subliminar, continua a ser promovida em nosso País.

10 Fonte: Brasil (2012a, p. 77), adaptado pelos autores.


11 No caso, o Decreto nº 17.943-a, de 12 de outubro de 1927 (BRASIL, 2015), substituí-
do pela Lei n° 6.697, de 10 de outubro de 1979 (BRASIL, 2015a).

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 72


Adolescentes infratores e higienização social
A higienização social, ou limpeza social, caracteriza-se pelo
extermínio ou supressão dos direitos dos indivíduos considerados
“indesejados” pela sociedade. Cruz-Neto e Minayo (2015, p.
211) entendem que, “dentro de um processo político-ideológico
com um nítido propósito de destruição de vidas, referendado
na necessidade de exclusão do outro”, a higienização social
manifesta-se por meio da iníqua ideologia que entende que
existem seres humanos “inferiores” e, portanto, merecedores de
receberem tratamento condizente com sua condição de vida. Tal
pensamento ganha destaque nas sociedades capitalistas em que
a vida dos menos favorecidos parece ter menos valor.
De acordo com o relatório do Mecanismo Estadual de
Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro12 ,o número de
adolescentes apreendidos e encaminhados para o Departamento
Geral de Ações Socioeducativas aumentou mais de 45% no
Município13 , durante a realização da Copa do Mundo de Futebol
de 2014 (RIO DE JANEIRO, 2015).O documento destaca ainda
que este fato possibilita o entendimento de que “se instalou no
estado, quiçá no Brasil, um verdadeiro Estado de exceção, em
que adolescentes eram apreendidos pelas forças de segurança e
mantidos privados de sua liberdade pelo Poder Judiciário com
vistas à higienização da cidade sede da partida final da Copa do
Mundo de Futebol”. (RIO DE JANEIRO, 2015, p.77).
O referido relatório revela que o preconceito e a segregação
orbitam em torno da questão do adolescente em conflito com a
lei, especialmente no que tange à realização de grandes eventos
no Estado, provavelmente no País. A esse respeito, ativistas
de direitos humanos apontam para uma possível repetição do
processo de higienização social, durante os Jogos Olímpicos de
2016, a ser concretizado por meio da “retirada de pessoas em

12 Instituído por meio da Lei nº 5.778, de 30 de junho de 2010 (RIO DE JANEIRO, 2010).
13 O relatório aponta que o número de adolescentes privados de liberdade passou de
1.005, em 4 de julho de 2013, para 1.487, durante a Copa do Mundo de 2014.

73 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


situação de vulnerabilidade das ruas, principalmente menores de
idade” (PLATONOW, 2015, p. 1). Tal afirmação está alicerçada
no fato de essa medida, segundo o Mecanismo Estadual de
Prevenção e Combate à Tortura, vir sendo reiterada a cada nova
ocorrência de grandes eventos no Rio de Janeiro, tendo sido
verificada durante a Conferência Rio+20, em 2012, na Copa das
Confederações, em 2013, e na Copa do Mundo de 2014, ocasião
em que se constatou um significativo aumento do número de
internação de crianças e adolescentes, especialmente durante os
dias de realização dos jogos (PLATONOW, 2015).
Esse fenômeno aponta para uma possível política velada de
“limpeza social”. Segundo Sudbrack:

Apesar da implementação da democracia há, em nosso país, uma tradição


de práticas autoritárias e totalitárias – particularmente dos agentes públicos
– que atentam contra os direitos humanos e permanecem, a partir de 1985,
período que dá início à (re)democratização. Com efeito, existem certos
grupos de pessoas que se tornam, ao longo dos anos, o alvo da violência
ilegal do Estado e da sociedade (SUDBRACK, 2015, p. 28)

O resultado de tais ações contribui para o avanço do número


de internações e, consequentemente, para a superlotação nas
unidades do DEGASE.
A esse respeito, dados associados ao Centro de Recursos
Integrados de Atendimento ao Menor (CRIAAD), localizado no
Município de São Gonçalo/RJ, onde são acautelados adolescentes
que cumprem medida socioeducativa de semiliberdade, revelam
que os meses com maior número de entradas convergiram com o
período da Copa do Mundo de 2014.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 74


Gráfico 2 – Número médio de adolescentes no CRIAAD São
Gonçalo/RJ, nos meses do ano de 201414

Partindo da informação de que a Copa do Mundo de


Futebol no Brasil ocorreu no período de 12 de junho a 13 de julho
de 2014, os dados do Gráfico 2 permitem observar que, nos meses
de agosto e setembro, subsequentes à realização do mundial,
o número de adolescentes encaminhados para o cumprimento
da medida socioeducativa de semiliberdade, no CRIAAD São
Gonçalo, apresentou um aumento considerável. Entre outros
fatores, podemos inferir que tal fenômeno decorreu da progressão
da medida recebida pelos adolescentes, os quais, em um primeiro
momento, foram internados compulsoriamente, ocasião que
coincidiu com a realização da Copa, para, após o encerramento do
evento, receberem uma medida mais branda, refletindo, assim, no
aumento do atendimento nas unidades de semiliberdade.
Outro aspecto que merece destaque diz respeito ao fato
de o CRIAAD São Gonçalo apresentar capacidade para atender
14 Elaborado pelos autores a partir dos dados fornecidos pelo CRIAAD São Gonçalo/RJ.

75 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


apenas 32 (trinta e dois) jovens, sendo que o Gráfico 2 comprova
que, em oito dos doze meses (66,7%) do ano de 2014, o número
médio de adolescentes atendidos ultrapassou esse limite, expondo
as difíceis condições a que estão submetidos esses adolescentes
durante grande parte do tempo em que se encontravam
vinculados àquele Centro, o qual, durante o mês de agosto do
ano observado, comportou um atendimento médio diário 50,4%
superior à sua capacidade. Essa constatação remete à necessidade
de o Estado promover políticas que coíbam a persistência de tal
problemática, não só em ocasiões perpassadas pela realização
de grandes eventos, mas que impliquem mudanças no cotidiano
desses sujeitos sob sua responsabilidade, cujos direitos parecem
carecer de efetivação.
Muitas das ações do Estado acabam por encobrir as falhas
produzidas por uma sociedade iníqua, que não consegue atender
satisfatoriamente aos adolescentes que se envolvem com atos
infracionais. Oliveira (2015), analisando a questão da internação
indiscriminada de adolescentes, percebe-a como um retrocesso
daquilo que preceitua o ECA.
A par desse pressuposto, Costa (2006) é enfático ao afirmar
que a educação, na sua perspectiva social, poderia consolidar-
se como uma estratégia viável para promover mudanças de
paradigmas e desenvolver articulações que permitiriam ao
adolescente em conflito com a lei conquistar um novo estilo
de vida que, entre outras possibilidades, o favorecesse em sua
ascensão ao mundo do trabalho.

Socioeducação: conceitos e fundamentos


Para Costa (2006, p. 11), a educação social prepara os
adolescentes infratores para “o convívio social pleno, buscando
colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão, seja como vítima ou
como autores dessas práticas, além de se autopromoverem nos

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 76


planos pessoal, social produtivo e cultural”. Assim, partindo da
compreensão de que o foco da educação é essencialmente social,
vale observar que:

O conceito de socioeducação ou educação social, no entanto, destaca


e privilegia o aprendizado para o convívio social e para o exercício
da cidadania. Trata-se de uma proposta que implica em uma nova
forma do indivíduo se relacionar consigo e com o mundo. Deve-
se compreender que educação social é educar para o coletivo, no
coletivo, com o coletivo. É uma tarefa que pressupõe um projeto social
compartilhado, em que vários atores e instituições concorrem para o
desenvolvimento e fortalecimento da identidade pessoal, cultural e
social de cada indivíduo. (PARANÁ, 2015, p. 27).

Para Carvalho e Carvalho (2015, [s/p]), “as ações intituladas


como Educação Social normalmente contam com a participação ativa
da sociedade civil”, possibilitando observar que a educação social/
socioeducação pode ser entendida não apenas como uma estratégia
indutora de enfrentamento dos problemas de segurança das
cidades promovido pela sociedade como também, especialmente,
enquanto possibilidade de construção de um novo projeto de vida e
formação para esses jovens em conflito com a lei que se encontram
em situação de privação ou restrição de liberdade.
A socioeducação decorre de um pressuposto básico que
compreende que o desenvolvimento do ser humano deve
acontecer de forma integral, contemplando as diferentes
dimensões do indivíduo15 , devendo pautar-se por uma
educação que vai além daquela oferecida pela escola ou pelo
aprendizado profissional. Nesse sentido, é preciso conectar-
se, essencialmente, a uma nova forma de pensar e desenvolver
o trabalho com o adolescente (ABDALLA, 2013; ABDALLA;
PAULA, 2013).

15 De acordo com Costa (1999, p. 53), “o trabalho educativo é – e sempre será – uma
fonte inesgotável de aprendizagem. Basta querer aprender. O automatismo e a rotina
fazem com que experiências valiosas se percam por falta de sensibilidade, interesse
e sutileza do educador em captá-las e delas fazer a matéria de seu crescimento como
pessoa, como profissional e como cidadão”.

77 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Contudo, a socioeducação carece de maiores estudos no
campo acadêmico brasileiro. Na verdade, esse é um termo
relativamente novo, o qual vem paulatinamente incorporando-se
ao vocabulário daqueles que estudam o fenômeno da juventude
e seu envolvimento com a ilicitude. Não é compreensível que
um assunto tão pertinente continue a receber tão pouca, ou
nenhuma, atenção por parte significativa da sociedade e, em
especial, do Estado. A invisibilidade do tema só aumenta os
desafios enfrentados pelos próprios adolescentes infratores,
além de fomentar o preconceito.
Assim, tendo por referência que “todos que atuam nessas
unidades [de privação de liberdade] (pessoal dirigente, técnico
e operacional) são educadores (socioeducadores) e devem,
independente da sua função, estar orientados nessa condição”
(JULIÃO, 2015, p. 4), é necessário que esses profissionais
se invistam das reflexões norteadoras da educação social,
apoderando-se e empoderando-se de seus conceitos e princípios,
de modo a melhor fundamentar suas ações. Alicerçados na plena
compreensão do seu papel e entendendo que “todos os recursos
e esforços devem convergir, com objetividade e celeridade, para
o trabalho educativo” (JULIÃO, 2015, p. 4), esses profissionais
terão melhores condições de contribuir para uma maior
potencialização dos resultados do trabalho socioeducativo.
De modo mais geral, é necessário que todos aqueles
que atuam na educação de adolescentes em conflito com a lei
percebam-se como educadores potenciais e, sob essa perspectiva,
envolvam-se e, consequentemente, corresponsabilizem-se com
o processo de educar. Assim, a socioeducação há que ampliar
seus estritos limites, buscando encontrar, na integração entre
profissionais que orbitam em seus espaços e na colaboração
entre diferentes áreas, setores, secretarias e unidades federadas,
formas de efetivar e potencializar sua (atu)ação.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 78


Considerações finais
O Brasil carece que a socioeducação ganhe o destaque
que lhe é devido, tanto no contexto das políticas públicas em
educação quanto no âmbito das instituições públicas de ensino
superior. O fenômeno associado ao envolvimento da infância e da
juventude com a ilicitude deve subsidiar a promoção de estudos
e pesquisas voltados para a socioeducação, possibilitando, assim,
agregar maior aporte teórico-metodológico a essa concepção
de educação, de modo a viabilizar melhores condições para o
desenvolvimento do trabalho educativo associado a essa parcela
da população.
Os adolescentes e jovens em conflito com a lei têm direito
a uma educação que favoreça seu desenvolvimento intelectual,
físico, psicológico, espiritual e social, que os prepare e fortaleça
para o exercício da cidadania. Todavia, na contramão dessa
possibilidade, a estigmatização desses adolescentes e jovens
vem sendo promovida continuamente, entre outros motivos,
por lacunas e/ou frágeis enfrentamentos na esfera do Estado, da
sociedade, das famílias, das instituições e/ou dos profissionais
que deveriam se responsabilizar pela díade educação-socialização
desses sujeitos.
O crescimento de uma cultura de exclusão – fortalecida
pela mídia e por governos, em que a higienização social
encontra especial apoio durante, por exemplo, a realização de
grandes eventos no país – constitui-se opção lesiva associada aos
adolescentes e jovens em conflito com a lei, e cujos resultados, ao
estimularem a segregação e o preconceito, vão de encontro tanto
ao maior desenvolvimento desses sujeitos quanto a um maior
desenvolvimento do próprio Estado.

79 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Por fim, é relevante destacar que, embora a educação
destinada aos indivíduos que se encontram em situação de
restrição e privação de liberdade venha conquistando maior
espaço nas agendas das políticas públicas – quiçá das associadas
à segurança pública em detrimento das vinculadas à própria
educação –, ainda há muito a caminhar, uma vez que, entre outros
desafios, os avanços das políticas públicas para a educação vêm
se revelando lentos e distantes da urgente realidade daqueles a
quem devem atender.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 80


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em: 14 out. 2015.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 86


Gestão em Saúde no Sistema Socioeducativo
do Estado do Rio de Janeiro

Christiane da Mota Zeitoune 1

Resumo
O objetivo deste artigo é apresentar as ações realizadas no
período de 2013 a 2015 pela Coordenação de Saúde Integral e
Reinserção Social do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de
Janeiro para implantação e implementação das novas diretrizes
da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes
em Conflito com a Lei – PNAISARI - e a consolidação de um
modelo de gestão participativa pautada no planejamento,
monitoramento e avaliação.

Palavras-chave: adolescente em conflito com a lei, saúde,


responsabilidade, política pública.

Introdução
Embora o Estatuto da Criança e do Adolescente, que agora
completou 26 anos, tenha representado um avanço do ponto de
vista do marco legal, o mesmo não aconteceu na implementação
de políticas públicas eficazes de promoção da cidadania de forma
a garantir a doutrina de proteção integral expressa na lei.

1 Doutora em Teoria Psicanalítica pela UFRJ (2010). Mestre em Psicologia Clínica pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1992). Psicóloga do Departamento
Geral de Ações Socioeducativas do Estado do Rio de Janeiro. Coordenadora de Saúde
Integral e reinserção Social do Departamento Geral de Ações Socioeducativas do
Estado do Rio de Janeiro, cargo assumido em janeiro de 2013. Professora substitu-
ta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (2011-2012).
Membro do Comitê da Política Editorial (CPE) do NOVO DEGASE. Parecerista ad hoc
da Revista Psicologia: Teoria e Pesquisa.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 88


A precariedade das políticas de prevenção, proteção e
inclusão social para a juventude faz com que muitos jovens
fiquem sem perspectivas de futuro. Por outro lado, é importante
considerar o modo de laço social a que estamos expostos no
mundo contemporâneo ocidental. Vivemos em uma época em que
em que as leis simbólicas, que regem os laços sociais, não têm tido
consistência para assegurar as relações do sujeito com o outro, em
função do declínio dos ideais, da crise de autoridade e do empuxo
ao consumo. Conseqüentemente, estamos confrontados com
certos tipos de comportamentos de jovens que colocam as ações
dos educadores em xeque e nos desafia a novas intervenções.
NoBrasil,éatravésdocumprimentodamedidasocioeducativa
que o adolescente é convocado a responder juridicamente pelo ato
infracional cometido. Pela lei, o sujeito poderá responsabilizar-se
por aquilo que lhe escapa e que aparece realizado em ato.
Todas as medidas socioeducativas buscam a
responsabilização do adolescente respeitando sua “condição
peculiar de pessoa em desenvolvimento” (BRASIL, 2012). A
proposta do processo socioeducativo é trazer o adolescente
para o centro de suas ações e planejar com ele todo o trabalho
a ser realizado, de modo que ele possa ser protagonista, ativo
no processo subjetivo de construção de seu projeto pessoal, se
implique nas suas escolhas de vida e se responsabilize por elas.
Isto se dá através de um trabalho interdisciplinar. Exige
metodologia, profissionalismo, políticas intersetoriais. É um trabalho
dinâmico que busca, através de uma ação interdisciplinar, integrada,
uma intervenção com o adolescente de promoção da cidadania. Mas,
sem perder de vista que estamos lidando com sujeitos, de modo que
esse trabalho deve estar sempre comprometido com a ética, com a
singularidade e com a diferença para que esse sujeito possa recolher
a responsabilidade diante do ato infracional cometido e seja capaz
de realizar escolhas e inventar soluções diferentes daquelas que o
levou a cometer o ato infracional.

89 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Não é uma tarefa fácil. Sabemos dos desafios da
socioeducação e o quanto somos capturados pela nossa rotina
e demandas institucionais, que engessam a nossa prática e nos
distanciam das ações socioeducativas. Nesse sentido, desde
que eu assumi a Coordenação de Saúde Integral e Reinserção
Social (CSIRS) do Departamento Geral de Ações Socioeducativas
em 2013, com as diversas áreas técnicas2, estamos trabalhando
no sentido de promovermos ações integradas e políticas
intersetoriais buscando, assim, romper com uma cultura de
institucionalização e fortalecer o paradigma da atenção integral
expressa na lei.
A proposta deste artigo é apresentar as ações realizadas no
período de 2013 a 2015, pela Coordenação de Saúde Integral e
Reinserção Social (CSIRS), para implantação e implementação
das novas diretrizes da Política Nacional de Atenção Integral à
Saúde de Adolescentes em Conflito com a Lei – PNAISARI - e a
consolidação de um modelo de gestão participativa pautada no
planejamento, monitoramento e avaliação.

Um Pouco de Historia...
No Estado do Rio de Janeiro, o Departamento Geral
de Ações Socioeducativas (DEGASE) é o órgão responsável
pela execução das medidas socioeducativas de Internação e
Semiliberdade, designadas nos arts. 120 a 125 do Estatuto da
Criança e do Adolescente. Foi criado em 1993 e, atualmente, está
vinculado à Secretaria de Estado de Educação.
Nos últimos anos o DEGASE vem passando por um amplo
processo de reordenamento institucional reformulando conteúdo,
método e gestão, com o objetivo de reposicionar o atendimento

2 A Coordenação de Saúde Integral e Reinserção Social (CSIRS) é composta pelas se-


guintes divisões: Divisão Biomédica, responsável pelas áreas médica, enfermagem,
odontologia, nutrição, farmácia; Divisão de Psicologia, responsável pela área da psi-
cologia; Divisão de Serviço Social, responsável pela área de serviço social e Núcleo de
Promoção à Saúde do Trabalhador (NUPST), com uma equipe multidiscipliar.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 90


socioeducativo no Estado do Rio de Janeiro visando atender
as diretrizes preconizadas na Lei 12.594/2012, que institui o
Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) e
regulamenta a execução das medidas socioeducativas, investindo
em um alinhamento conceitual, estratégico e operacional para
adequar-se a essas diretrizes. (DEGASE, 2012)
Neste sentido, o DEGASE passou por uma reorganização
do espaço físico das suas instalações, estabeleceu parcerias com a
organização da sociedade civil, ampliou o seu quadro de recursos
humanos e investiu na capacitação e aperfeiçoamento contínuo
dos profissionais. (DEGASE, 2014)
Um dos parâmetros da ação socioeducativa é a garantia da
atenção integral a saúde do adolescente, observando o princípio
da incompletude institucional, de acordo com as diretrizes
destacadas no artigo 60º da Lei 12.594/2012, bem como as
Portarias GM/MS nº 1.082 e 1.083, ambas de 23/05/14, que
redefinem a Política Nacional de Atenção integral à Saúde de
Adolescentes em Conflito com a Lei – PNAISARI.
A PNAISARI tem como objetivo garantir a atenção à saúde
do adolescente em cumprimento de medida socioeducativa em
meio aberto e fechado, no que diz respeito à promoção, prevenção,
assistência e recuperação da saúde, no Sistema Único Saúde;
favorecer o fortalecimento de redes sociais de apoio, assim como,
uma maior atuação das secretarias estaduais e municipais de saúde
no aporte às necessidades de atendimento e manutenção dos
serviços existentes nas unidades socioeducativas. (BRASIL, 2015)
Os desafios são enormes. Historicamente a prestação de serviços
de saúde nas unidades de execução das medidas socioeducativas
aplicadas aos adolescentes autores de atos infracionais sempre foi
marcada pela oferta de ações pontuais, campanhas sanitárias e
pelas condições de ambiência inadequadas a promoção de saúde
dos adolescentes nas unidades socioeducativas.

91 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


O “Relatório de Avaliação dos Serviços de Saúde das
Unidades de Internação e Internação Provisória do Departamento
Geral de Ações Socioeducativas”, elaborado em 2012, pela Área
Técnica de População Privadas de Liberdade da Superintendência
de Atenção Básica da Secretaria Estadual de Saúde, apresentava
um panorama das condições de atendimento dos serviços de
saúde das unidades socioeducativas: Ausência de protocolos e
fluxos de atendimento na atenção básica, de modo que não havia
critério estabelecido para o acesso dos adolescentes aos serviços de
saúde; ausência de ações educativas de promoção e prevenção nas
unidades de maneira continuada; não havia notificação regular
das doenças de notificação compulsória; os imunobiológicos
do esquema vacinal preconizado pelo Ministério da Saúde não
eram ofertados de maneira regular; equipe de Saúde Mental
fragmentada; necessidade de elaboração do Plano Operativo
Estadual; ausência de protocolo no atendimento ao servidor.
Para mudar esse cenário era fundamental uma construção
coletiva. Sistematizar as ações, construir protocolos, estabelecer
fluxos e rotinas, e garantir o acesso do adolescente a todos os
níveis de atenção à saúde, por meio de referência e contra-
referência, no Sistema Único de Saúde (SUS), da maneira como
está colocada, hoje, na Política Nacional de Atenção Integral aos
Adolescentes que cumprem medida socioeducativa.

Caminhos percorridos - Avanços e Desafios na implementação


da Política Nacional de Atenção Integral aos Adolescentes
que cumprem medida socioeducativa
Inicialmente, era importante ouvir as equipes, integrar
e planejar as ações de acordo com a metas estabelecidas no
Caderno de Alinhamento Estratégico do DEGASE e das
diretrizes das normativas da socioeducação – ECA e SINASE –
e da Saúde – Portaria nº GM/MS 687/2006 e Portarias GM/MS
1.082 2 1.083/2014.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 92


Promovemos, então, reuniões semanais com todas as áreas
técnicas da Coordenação de Saúde Integral e Reinserção Social
(CSIRS) para definirmos prioridades e estratégias de atuação. Logo
ficou evidenciado a importância de descentralizarmos as ações e
aproximarmos da Secretaria Estadual e Municipal de Saúde.
Dessa forma, no ano de 2013, mediada pela Secretaria
Estadual de Saúde, realizamos várias reuniões com as equipes
municipais de saúde dos municípios onde há um Centro de
Socioeducação – Rio de Janeiro, Belford Roxo e Campos dos
Goytacazes – visando a definição e pactuação de fluxos para
atenção integral à saúde dos adolescentes privados de liberdade,
com a oferta regular dos imunobiológicos do esquema vacinal
preconizado pelo Ministério da Saúde; com ações em saúde de
detecção dos agravos hepatite, sífilis e HIV por meio do teste
rápido e realização de exame dermatológico nos adolescentes;
teste de acuidade visual; ações de educação em saúde com
palestras sobre DST/AIDS; corpo e autocuidado, saúde oral,
alimentação saudável, etc.. Nesse momento, o município
ofertou e realizou capacitação e treinamento em hanseníase e
dermatoses para os profissionais do DEGASE.
Nas áreas de Psicologia e Serviço Social, através das
respectivas Divisões, foram construídos os Cadernos com as
“Diretrizes para Prática da Psicologia no Sistema Socioeducativo”
e as “Diretrizes para a Prática do Serviço Social no Sistema
Socioeducativo”. A metodologia proposta aos profissionais
para a construção deste material de referências técnicas foi a
de grupos de trabalho, formada por profissionais do campo
de ação socioeducativo, com experiência nos atendimentos
técnicos, nas diferentes medidas socioeducativas, na abordagem
individual, grupal e familiar e que tivessem evidenciado,
durante o exercício de sua prática, o compromisso ético com
os adolescentes e seus familiares. O objetivo era sistematizar
todas as ações e trabalhos desenvolvidos dentro da Instituição
em cada área de atuação técnica.

93 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Ainda neste ano, as Divisões de Psicologia e Serviço Social,
em parceria com a Divisão de Pedagogia, sistematizaram e
implantaram o Plano Individual de Atendimento (PIA) no
DEGASE com a publicação da Portaria DEGASE no. 154.
Com entrada de novos profissionais, do Concurso
realizado em 2011, das áreas de Psicologia, Serviço Social
e Terapia Ocupacional, reorganizamos a Equipe de Saúde
Mental das Unidades de Internação e Internação Provisória,
priorizando-se o trabalho em rede e voltado para a perspectiva
da incompletude institucional.
O trabalho das Equipes de Saúde Mental das Unidades
de Internação e Internação Provisória se desenvolve a partir
do reconhecimento do sofrimento psíquico que o próprio
encarceramento produz na vida dos adolescentes, onde o
afastamento da família e do convívio social, a institucionalização
e o padrão de rigidez das normas e regras impostas acabam
acarretando ou agravando as demandas de cuidado em saúde
mental. A proposta dessas equipes é desenvolver um trabalho que
se volte para: a possibilidade de oferecer escuta subjetiva, a partir do
reconhecimento da necessidade de atenção singular que possibilite
o aparecimento do sujeito; desenvolver ações de prevenção de
agravos em saúde mental aos adolescentes em sofrimento psíquico,
que ali estão internados por determinação judicial, incluindo aqueles
com demandas decorrentes do uso prejudicial de álcool e drogas e,
ainda, favorecer o acesso desses adolescentes à rede de serviços de
atenção em saúde mental de base territorial.
Em outubro de 2013 promovemos o I Seminário Interno
de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas para que as Equipes
de Saúde Mental das Unidades de Internação apresentassem o
seu trabalho. A apresentação dos trabalhos evidenciou o alto
índice de medicalização dos adolescentes atendidos.
Esse Seminário deixou, então, como missão para as
Equipes de Saúde Mental a revisão de protocolos clínicos e
diretrizes terapêuticas, com o objetivo de fortalecer o manejo

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 94


psicossocial e a desconstrução do fluxo inicial de acesso a
este serviço, que tinha muitas vezes como primeiro ponto da
atenção o médico psiquiatra, que sem os elementos necessários
para uma avaliação ampliada, acabava por iniciar a abordagem
dos casos com o uso de medicação.
No ano de 2014 iniciamos uma nova etapa de consolidação
das ações da CSRIS com a realização de um levantamento
da Atenção Integral à Saúde do Adolescente3. Inicialmente
essa ação ocorreu nas unidades de privação de liberdade e,
posteriormente, foi estendida às unidades de semiliberdade
tendo como parâmetros de observação e análise a Portaria
GAB/SAS 647/2008.
O objetivo era identificar e compreender as rotinas e
procedimentos de saúde realizados nas unidades de internação,
rede de serviços de saúde utilizada pelas unidades de internação
e unidades de semiliberdade, as equipes de trabalho e as
dificuldades e potencialidades de cada unidade socioeducativa.
Em Fevereiro de 2014 fomos convidados para participar
de uma Videoconferência na Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (UERJ), organizado pela Coordenação-Geral de
Saúde de Adolescentes e Jovens/MS e a Coordenação Geral do
SINASE/SDH com a participação das Coordenações Estaduais
de Saúde de Adolescentes e Jovens e do Sistema Socioeducativo,
com o objetivo de discutir o processo de implantação e
implementação das novas diretrizes da Política Nacional de
Atenção integral à Saúde de Adolescentes em Conflito com a Lei
– PNAISARI - e propor ações para esse processo. A PNAISARI
redefine as diretrizes da Política Nacional de Atenção Integral
à saúde do Adolescente em Conflito com a Lei, em Regime de
Internação e Internação Provisória (PNAISARI), incluindo-se
o cumprimento de medida socioeducativa em meio aberto e
fechado e foi publicada em maio de 2014.

3 A responsável pela realização desse trabalho foi a médica do DEGASE Eliana Souza
e Silva. É importante ressaltar que a partir desse momento, com o trabalho desenvolvi-
do pela Dra. Eliana Silva, tivemos grandes avanços na oferta dos serviços de saúde nas
Unidades Socioeucativas e na elaboração do Plano Operativo Municipal.

95 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Diante dessas novas diretrizes, a Coordenação de Saúde
Integral e Reinserção Social (CSIRS), por meio de sua equipe de apoio
técnico realizou encontros descentralizados de saúde nas unidades
de socioeducação do DEGASE, envolvendo os profissionais
da socioeducação visando apresentar a Portaria e realizar um
diagnóstico da situação sanitária das unidades de internação,
internação provisória e semiliberdade e identificar as demandas,
necessidades e principais agravos à saúde desta população.
Esses encontros descentralizados ocorreram nos seguintes
Pólos Regionais: Norte e Região Serrana, abrangendo os
Municípios de Campos dos Goytacazes, Macaé, Nova Friburgo
e Teresópolis; Região Litorânea, abrangendo os Municípios de
Cabo Frio, Niterói e São Gonçalo; Médio Paraíba, abrangendo os
Municípios de Barra Mansa e Volta Redonda; Baixada Fluminense,
abrangendo os Municípios de Belford Roxo, Nilópolis, Nova
Iguaçu e Duque de Caxias; Região Metropolitana, abrangendo
o Município do Rio de Janeiro envolvendo, assim, todas as
unidades socioeducativas do DEGASE.
A metodologia de trabalho utilizada pela CSIRS priorizou
o enfoque da educação permanente em saúde, valorizando
as experiências locais desenvolvidas pelos profissionais da
socioeducação e da rede de saúde na perspectiva da promoção,
prevenção, assistência e reabilitação da saúde do adolescente em
cumprimento de medida socioeducativa e buscou, em articulação
com os atores envolvidos neste processo, a adequação dessas
ações às diretrizes e fluxos de atendimento estabelecidos nas
portarias Nº 1.082 e Nº 1.083 de 23 de Maio de 2014.
As ações desenvolvidas pela CSIRS em direção a
implementação da portaria e na construção dos Planos
Operativos Municipais buscou além do fortalecimento da rede
intersetorial de proteção do direito da criança e do adolescente,
trabalhar na perspectiva de reconhecer os adolescentes
em cumprimento de medida socioeducativa como atores
fundamentais na promoção e restabelecimento integral de sua

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 96


saúde. Nesta direção foram realizados grupos operativos com
os adolescentes visando à identificação de suas demandas de
saúde e possibilitando a efetivação de um espaço de escuta e
fala desses sujeitos a partir do enfoque do trabalho coletivo em
saúde. (DEGASE, 2014)
Todo esse levantamento foi apresentado na Oficina
PNAISARI organizada pela Coordenação-Geral de Saúde
de Adolescentes e Jovens/MS realizada nos dias 29 e 30 de
Abril na Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro. Essa
Oficina procurou reunir os profissionais da Atenção Básica
e de Saúde Mental dos 14 (catorze) municípios onde há uma
unidade socioeducativa de internação, internação provisória
e semiliberdade, bem como os profissionais do Sistema
Socioeducativo com o objetivo de apresentar a nova Portaria,
sensibilizar esses profissionais para as questões relacionadas à
saúde integral dos adolescentes em cumprimento de medida
socioeducativa e construir o grupo de trabalho responsável
pela elaboração do Plano Operativo Municipal.
Conseguimos avançar na construção do Plano Operativo
em vários municípios, entre eles: Belford Roxo, Teresópolis,
Cabo Frio, São Gonçalo, Macaé, Nilópolis e aprovamos o Plano
Operativo Municipal de Volta Redonda.
Outra ação importante desenvolvida no ano de 2014 foi a de
Prevenção e Enfrentamento do Tabagismo, que envolveu todos
os segmentos do sistema socioeducativo, mas teve as equipes de
Saúde Mental e os adolescentes como principais protagonistas.
Novamente priorizando-se a perspectiva da construção
coletiva, em 2014, foi criado um grupo de trabalho composto por
profissionais do DEGASE, de diferentes áreas de atuação, entre
eles: psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais, enfermeiros e
farmacêuticos, coordenado pela médica Dra. Eliana Souza e Silva,
com o objetivo de elaborar e sistematizar o “Protocolo Clínico e
Diretrizes Terapêuticas em Saúde Mental na Adolescência”. Este
documento apresenta referenciais técnicos e orienta os diversos

97 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


profissionais envolvidos no atendimento ao adolescente, que
cumpre medida socioeducativa, nos cuidados em saúde mental,
destacando o manejo psicossocial como o trabalho mais relevante
a ser desenvolvido. Isso teve importantes efeitos no trabalho que
foi a desmedicalização do adolescente.
Todas essas ações, as experiências de trabalho realizado
com a rede psicossocial dos municípios, os resultados das ações
de enfrentamento do tabagismo e do uso de psicofármacos e o
“Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas em Saúde Mental
na Adolescência” foram apresentados no II Seminário de
Saúde Mental, Álcool e outras Drogas e I Seminário de Atenção
Integral à Saúde do Adolescente em conflito com a lei.
Investimos, ainda, na Capacitação Profissional.
Implantamos a Caderneta do Adolescente e, por fim,
construímos, a partir de um Grupo de Trabalho, que reuniu
psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais,
enfermeiros e agentes socioeducativos das Unidades de
Internação, o “Programa de Saúde Sexual e Saúde Reprodutiva
para implantação do Programa de Visita Íntima no DEGASE”.
No ano de 2015, o processo de trabalho foi realizado em
três eixos: Educação Permanente; Planejamento e Metas; Rotinas
e Protocolos. A Educação Permanente, desenvolvida em parceria
com a Escola de Gestão Socioeducativa, é um eixo fundamental
da atenção integral ao adolescente em cumprimento de medida
socioeducativa para que os profissionais possam atuar nas
Unidades Socioeducativas de maneira integrada, com a troca
de experiência, saberes, diálogo e trabalho em equipe.
No eixo Planejamento e Metas as diversas áreas técnicas
da Coordenação de Saúde organizaram o seu planejamento de
2015 e estabeleceram suas metas tendo por base o planejamento
estratégico do DEGASE. Essas metas foram avaliadas em
reuniões trimestrais. Isto levou a uma ampla discussão do
processo de trabalho e sistematização das ações, que envolveu
os profissionais e fortaleceu o trabalho interdisciplinar.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 98


No eixo Rotinas e Protocolos procuramos construir
rotinas técnicas visando a organização funcional da Atenção
Integral à Saúde do Adolescente nas unidades socioeducativas
do DEGASE, com o objetivo de implementar a Política
Nacional de Atenção Integral ao Adolescente em Conflito com
a Lei no Estado do Rio de Janeiro (PNAISARI, 2014), atender
as recomendações do Sistema Nacional de Atendimento
Socioeducativo (SINASE, 2012), e atingir uma das metas do
Planejamento Estratégico do DEGASE, que visa a implantação
de normas, rotinas e procedimentos. Promovemos a adequação
dos serviços de saúde das Unidades socioeducativas, com a
compra de materiais, lotação de profissionais, construção do
Regimento Interno, treinamento e capacitação.
As atividades desenvolvidas ao longo de 2014, tais como
os Encontros Regionais de Saúde, as Capacitações em Saúde
Integral do Adolescente e a Oficina sobre Atenção à Saúde
do Adolescente resultaram na elaboração dos documentos
técnicos: “Atenção Integral á Saúde do Adolescente no Sistema
Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro”; “Rotinas e Fluxos
em Saúde Integral do Adolescente em Conflito com a Lei”;
“Atenção à Saúde Bucal do Adolescente em Conflito com a Lei”;
“Atenção em Saúde Mental e o Adolescente em Conflito com a
Lei”; “Manual de Boas Práticas em Assistência Farmacêutica” e
“Manual Técnico de Avaliação Nutricional”.
Em 2015 esse material foi reunido nos cadernos Linha
de Cuidado em Saúde do Adolescente: “Caderno Linha de
Cuidados em Atenção Integral à Saúde do Adolescente e do
Adolescente em Conflito com a Lei”; “Linha de Cuidados em
Saúde Mental e o Adolescente em Conflito com a Lei” e o
“Caderno de Vigilância em Saúde no Sistema Socioeducativo”.
Todos esses documentos foram encaminhados para publicação
digital e encontra-se em fase de revisão.

99 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Ainda neste ano de 2015, através das Divisões de Psicologia e
de Serviço Social, tivemos importantes avanços na sistematização
do trabalho com as famílias. Em abril foi instituído um Grupo de
Trabalho, que reuniu profissionais das diversas modalidades de
atendimento socioeducativo, profissionais da Escola de Gestão
Socioeducativa e da Assessoria de Medidas Socioeducativas e
ao Egresso. Esse Grupo de Trabalho elaborou o “Programa de
Atenção às Famílias” que será implementado no DEGASE.
A Divisão de Serviço Social teve uma importante atuação
na discussão da dinâmica do trabalho no acompanhamento
socioeducativo na perspectiva da interdisciplinaridade, da
humanização dos processos de trabalho e das linhas de cuidado
no campo da saúde do adolescente, pois sistematizou as ações da
assistência religiosa no DEGASE com a publicação no Diário Oficial
do Estado do Rio de Janeiro da Carta de Princípios como ferramenta
propulsora de uma nova visão de viés educativo, fortalecimento,
reconhecimento e respeitabilidade institucional frente às ações dos
assistentes religiosos nas Unidades socioeducativas. O resultado
desse trabalho foi apresentado no encontro do FONACRIAD
realizado em setembro em Vitória - Espírito Santo.
A Divisão de Psicologia esteve a frente da construção do
Programa de Saúde e Sexualidade para a implantação da Visita
Afetiva no âmbito do Departamento e, ao lado da Divisão de
Serviço Social, na discussão da garantia da identidade de gênero
de adolescentes transexuais e homossexualidade no contexto de
privação de liberdade. O resultado desse trabalho, também, foi
um eixo de discussão no encontro do FONACRIAD realizado
em setembro em Vitória - Espírito Santo.
No campo da Saúde Mental destacamos a ampliação das
equipes de referência em saúde mental, o monitoramento dos
casos graves, as ações de educação continuada e a articulação
com a Rede de Atenção Psicossocial dos municípios.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 100


Iniciamos uma ação importante no âmbito da prevenção
ao uso prejudicial de álcool e outras drogas nas unidades de
semiliberdade, através de uma cooperação técnica com a
Secretaria de Prevenção à Dependência Química (SEPREDEQ)
No campo da prevenção e promoção à saúde do
trabalhador, realizado pelo Núcleo de Promoção à Saúde do
Trabalhador (NUPST), destacamos o “Encontro de Saúde do
Trabalhador”; a implantação do Projeto Sentinela no CENSE
DOM BOSCO; elaboração do projeto de Prevenção as Doenças
Crônicas, com cronograma de visita as Unidades e ações a serem
desenvolvidas; desenvolvimento do Projeto de Enfrentamento
ao Tabagismo para Servidores e ações realizadas em datas
comemorativas, segundo calendário da saúde.
Com esta organização conseguimos atender às demandas dos
adolescentes e garantir o cuidado contínuo, diário e a implantação
de ações fundamentais para melhorar a qualidade de vida
desta população. Outro aspecto importante desse trabalho foi o
desenvolvimento de ações voltadas para o fortalecimento dos
vínculos com os dispositivos de saúde dos municípios que possuem
unidades socioeducativas em seu território, fundamentais para a
garantia da efetivação do atendimento aos adolescentes. Avanços
vêm sendo conquistados por meio de reuniões intersetoriais, onde
são feitas pactuações de ações e fluxos, que culminaram na assinatura
dos planos operativos municipais em 07 (sete) municípios.

Considerações Finais
A socioeducação tem interfaces com diferentes sistemas e
políticas. A formação de uma rede integrada de atendimento é
tarefa essencial para a efetivação das garantias dos direitos dos
adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas,
contribuindo efetivamente no processo de inclusão social e
promoção da cidadania rompendo uma política de segregação.
Assim, para garantir o acesso na Rede de Atenção à Saúde e

101 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


uma atenção humanizada, individualizada e de qualidade
aos adolescentes e seus familiares é necessário romper com a
fragmentação das políticas setoriais e planejar as ações.
O planejamento das ações possibilita estabelecer estratégias,
prioridades e identificar as vulnerabilidades na execução do
trabalho. A falta de planejamento faz com que sejamos engolidos
pela rotina e urgências institucionais atuando apenas nas demandas
espontâneas. É importante realizar reuniões de equipe e visitas
técnicas, que promovam a integração entre os profissionais, a
discussão dos processos, a troca de experiências, estudos de casos,
revisão de fluxos e rotinas, e, por conseguinte, novas invenções.
Estabelecer um processo permanente de monitoramento e
avaliação do processo de trabalho é fundamental para se alcançar
melhores níveis de qualificação e oferta das ações e serviços. Isso
foi realizado através de reuniões trimestrais com as diversas áreas
técnicas.
O trabalho desenvolvido pela equipe da Coordenação de
Saúde Integral e Reinserção Social ao longo desses anos caminhou
nesse sentido. Consolidou um modelo de gestão participativa
com planejamento, monitoramento e avaliação. Uma gestão
participativa implica todos os atores que integram a execução do
atendimento socioeducativo, compartilha responsabilidades e
tem compromisso com os resultados. (BRASIL, 2006)
As políticas públicas repousam sempre no universal, mas
podemos pensar em políticas afinadas com a diferença e com o
singular, por isso é importante que os profissionais envolvidos
no atendimento ao adolescente tenham uma escuta que,
fundada na ética, faça surgir o sujeito implicado nas suas ações
e responsabilizado por elas. Daí a importância da capacitação
permanente dos profissionais envolvidos neste trabalho, da troca
de experiências e de uma gestão democrática e participativa
comprometida com a execução de uma política orientada pela
responsabilidade social, pela clínica e pela inclusão desses
adolescentes nas políticas publicas de saúde, de modo a romper
com uma cultura de institucionalização que perpetua nesse País.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 102


REFERÊNCIAS

BARROS-BRISSET, F. O. Por uma política de atenção integral


ao louco infrator. Belo Horizonte: Tribunal de Justiça do Estado
de Minas Gerais, 2010.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil,


Senado Federal, Brasília, 1988.

_______. Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069/90,


Ministério da Justiça, Brasília, 1990.

_______. Secretaria Especial de Direitos Humanos. Sistema


Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE). Brasília:
CONANDA, 2006.

_______. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do


Direito de Crianças e Adolescentes a Convivência Familiar e
Comunitária. Brasília/ DF, dezembro de 2006.

_______. Ministério da Saúde. Portaria GAB/SAS 647. Brasília, 2008.

_______. Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo –


Lei Federal nº 12.594, de 18/01/2012.

_______. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção


Integral à Saúde de Adolescentes em Conflito com a Lei –
PNAISARI. Portarias GM/MS 1.082 e 1.083. Brasília: 2014.

103 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


DEGASE. Plano de Atendimento Socioeducativo do Governo
do Estado do Rio de Janeiro - PASE - Decreto nº 42.715 de
23/11/2010. Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro -
ANO XXXVI - Nº 213. Governo do Estado do Rio de Janeiro.
Secretaria de Estado de Educação. Departamento Geral de
Ações Socioeducativas, Rio de Janeiro, 2010.

________. Caderno de Alinhamento Estratégico. Rio de Janeiro:


Novo Degase, 2012.

Seminário de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas, 2., Seminário


de Atenção Integral à Saúde do Adolescente em conflito com a
Lei, 1., 2014. Prevenção e Enfrentamento do Tabagismo. Rio
de Janeiro. Rio de Janeiro: DEGASE. Inédito.

________. Plano Operativo Municipal de Volta Redonda. Rio
de Janeiro, 2014. Inédito.

________. Manual de Boas Práticas em Assistência Farmacêutica.


Rio de Janeiro, 2014. Inédito.

________. Manual Técnico de Avaliação Nutricional. Rio de


Janeiro, 2014. Inédito.

________. Atenção Integral à Saúde do Adolescente no Sistema


Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro. In: Linha de
Cuidados em Atenção Integral à Saúde do Adolescente e do
Adolescente em Conflito com a Lei. Rio de Janeiro: 2015. Inédito.

________. Rotinas e Fluxos em Saúde Integral do Adolescente


em Conflito com a Lei. In: Linha de Cuidados em Atenção

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 104


Integral à Saúde do Adolescente e do Adolescente em Conflito
com a Lei. Rio de Janeiro: 2015. Inédito.

________. Atenção à Saúde Bucal do Adolescente em Conflito


com a Lei. In: Linha de Cuidados em Atenção Integral à Saúde
do Adolescente e do Adolescente em Conflito com a Lei. Rio
de Janeiro: 2015. Inédito.

________. Atenção em Saúde Mental e o Adolescente em


Conflito com a Lei. In: Linha de Cuidados em Saúde Mental
e o Adolescente em Conflito com a Lei. Rio de Janeiro: 2015.
Inédito.

________. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas em Saúde


Mental na Adolescência. In: Linha de Cuidados em Saúde
Mental e o Adolescente em Conflito com a Lei. Rio de Janeiro:
2015. Inédito.

________. Linha de Cuidados em Atenção Integral à Saúde do


Adolescente e do Adolescente em Conflito com a Lei. Rio de
Janeiro: 2015. Inédito.

________. Linha de Cuidados em Saúde Mental e o Adolescente


em Conflito com a Lei. Rio de Janeiro: 2015. Inédito.

________. Vigilância em Saúde no Sistema Socioeducativo.


Rio de Janeiro. 2015. Inédito.

________. Carta de Princípios da Assistência Religiosa


prestada aos Adolescentes em Cumprimento de Medida
Socioeducativa. Portaria DEGASE nº 207 de 24/06/2015. Diário

105 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Oficial do Estado do Rio de Janeiro, p. 30. Governo do Estado do
Rio de Janeiro. Secretaria de Estado de Educação. Departamento
Geral de Ações Socioeducativas, Rio de Janeiro, 2015.

ZEITOUNE, C. M. “Ética, lei e responsabilidade – Considerações


sobre o atendimento clínico aos adolescentes em conflito com
a lei”. aSEPHallus (Online), v.IV, p.43 ­60, 2009. Disponível
em http://www.nucleosephora.com/asephallus/numero_08/
index.html. Acesso em 30/07/2016.

ZEITOUNE, C. M. A Clínica psicanalítica do ato infracional


– Os impasses da sexuação na adolescência. Tese de
doutorado em Teoria Psicanalítica. PPGTP/UFRJ, Rio de
Janeiro, 2007. Disponível em http://www.psicologia.ufrj.br/
teoriapsicanalitica. Acesso em 30/07/2016.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 106


Pedagogia social e sistema socioeducativo:
diálogos possíveis
Margareth Martins de Araújo1

Resumo
A produção da vulnerabilidade da infância e de juventude,
em nosso pais, tem sido invisibilizada e, quando percebida
naturalizada, ao longo dos anos. São milhares de crianças e
jovens que perdem boa parte de suas vidas ou até mesmo a
totalidade delas, ao se envolverem em situação de conflito com
a Lei ou de privação de liberdade. Resultado de um projeto de
sociedade espoliador e excludente que faz com que lutem em
tão tenra idade, pelo acesso aos bens produzidos. Se falarmos
em quantitativos, trata-se de um verdadeiro genocídio. Quando
na escola, essas crianças e jovens lançam diariamente, inúmeros
desafios aos educadores, estabelecem novas regras, exigem
diferentes posturas e imprimem múltiplas lógicas ao fazer
docente daqueles que, por elas se deixam afetar, se permitem
com eles aprender, para ensiná-los cada vez mais e melhor. Suas
vivências e experiências, ao serem consideradas e incorporadas
às dinâmicas escolares, produzem novos sentidos à pedagogia,
desvelando outras possibilidades educacionais. Diante desse
processo é possível dialogar com seus saberes, afirmar suas
identidades e promover o sucesso escolar dos historicamente
excluídos. Nesse cenário surge a pedagogia social como uma
pedagogia que resgata vidas, estabelece pactos e instaura poder.

Palavras-chave: Educação, Pedagogia Social, Direitos


Humanos, Inclusão.
1 Doutora em Educação – UNICAMP; Coordenadora do Grupo de Ensino, Pesquisa e
Extensão em Pedagogia Social da FEUFF - Projeto PIPAS-UFF; Professora da Faculdade
de Educação da Universidade Federal Fluminense; Coordenadora do Curso de
Extensão em Pedagogia Social da FEUFF; Coordenadora do Curso de Especialização
em Pedagogia Social da FEUFF; Membro da Associação Brasileira de Pedagogia Social.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 108


Pedagogia Social: uma pedagogia sensível

Chorei, não procurei esconder


Todos viram, fingiram
Pena de mim, não precisava
Ali onde eu chorei
Qualquer um chorava
(Noite Ilustrada)

No presente estudo, desejo retratar a Pedagogia Social como


um componente da Pedagogia que se responsabiliza diretamente
pela inclusão das crianças em situação de vulnerabilidade social
no universo escolar. Quanto mais a população de um país é
entregue à própria sorte, maior se faz a necessidade da Pedagogia
Social, que se traduz em um fazer pedagógico voltado para a
realidade das crianças e adolescentes expostos a todo o tipo de
dificuldades oriundas de uma educação direcionada para um
público com valores e necessidades bem diferentes. Dificuldades
estas que não abrangem apenas o âmbito educacional, mas
também o social, o político e o afetivo, por exemplo.
Ao abraçarmos a Pedagogia Social como tema de trabalho,
como foco do nosso interesse e como questão reflexiva, o fazemos
por perceber o quanto precisamos aprender com os sujeitos do
flagelo social brasileiro, para com eles trabalhar. São milhões de
crianças e jovens que não se veem contemplados no cotidiano
das escolas, que se sentem alijados de um processo do qual seus
próprios pais e avós, quem sabe, também o foram e, por mais
que possa parecer uma “questão hereditária”, trata-se de um
processo histórico de exclusão que, ao longo dos anos, transforma
em marginais seres humanos capazes, competentes e brilhantes.
Quase nada do que aprendi me auxilia para com eles lidar.
É preciso me formar, me alfabetizar em uma nova forma de ser e
estar educadora para construir um novo sentido para o magistério
por mim exercido. Penso existir, em algum lugar, educadores que

109 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


comunguem com minhas ideias. É para eles e com eles que abrimos
um espaço de trabalho como este. As questões investigativas aqui
contidas são construídas, principalmente, na dor, no calor do
exercício de um fazer que se impõe a cada dia, a cada hora. Não
diferente, suas respostas são oriundas do amor e do compromisso
forjados a ferro e fogo no cadinho da existência humana. Apenas
um educador capaz de enxergar-se em seus educandos será capaz
de resgatá-los do processo de indigência educacional em que se
encontram e, ao resgarem, também se resgatam.
Aproximação com o sistema socioeducativo, para alguns
educadores sociais, pode se constituir a partir de um misto de
alegria e de tristeza. Alegria por conseguirem um novo espaço
de trabalho, e tristeza por travar contato direto com jovens em
situação de privação de liberdade. Uma sensação de tempo
perdido e de inoperância poderá invadi-los, mas não imobilizá-
los. Dessa aproximação poderá nascer a possibilidade de
construção de novas ações socioeducativas, coletivas e solidárias.
Estão na fronteira, no limite de suas percepções e ações.
Por estarem imersos no limite, importa observar o que afirma
Edgar Morin (1990, p.100): “No limite tudo é solidário. Se tendes
o sentido da complexidade tendes o sentido da solidariedade.
Além disso, tendes o sentido do caráter multidimensional de
qualquer realidade”.
Para os que se dedicam à educação, é como se fosse um
confronto direto com o próprio fracasso. Um fracasso que também
é histórico, político e social. Um fracasso de toda sociedade que
falhou ao educar seus filhos. Há um Provérbio Africano que diz:
“É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”. Qual a
ou as partes da nossa aldeia falhou ou falharam na educação dos
nossos jovens? Qual foi a dinâmica que construiu aquele fato?
Como chegaram até ali? Como será o futuro após uma experiência
como essa que marca tão profundamente a existência humana?

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 110


Ao participarem de encontros formadores de educadores
sociais em sistema socioeducativos, alguns se questionam: Onde
estarão? O que estarão fazendo nesse exato momento? Como
são tratados? Quem os ampara em momentos de frio e de dor?
Quais aprendizados acumulam? Por onde passa a educação que
recebem? Que direitos têm os privados de direitos? São tantas as
indagações que merecem ser registradas para posterior exercício
de compreensão.
Visualizar jovens algemados gera, nos militantes da
educação, certo impacto e indignação, capazes de funcionar
como energia propulsora de um novo fazer. Para além de chorar,
é preciso reagir e construir propostas de superação. Trabalhar
durante todo o processo educacional, de forma preventiva,
não é nada fácil, mas trabalhar com os excluídos do sistema, de
forma curativa, é mais desafiador ainda. É preciso impedir que
reincidam. A Pedagogia Social também deles se ocupa.

Pedagogia social e educação social

Educação é um processo social, é desenvolvimento.


Não é preparação para a vida, é a própria vida.
(John Dewey)

Reflexões acerca da educação de crianças e jovens em


situação de vulnerabilidade são sempre bem vindas e nos
remetem a um fazer pedagógico que, necessariamente, precisa
considerar seus textos e contextos de emergência. Por contexto
de emergências, compreendemos o estado de sofrência humana,
no qual muitos se encontram. A pobreza, o desemprego e a fome,
aliados ao descaso dos governantes para com essa parcela da
população, se tornam diretamente responsáveis pela produção
da desigualdade social crescente de forma desgovernada
e irresponsável, matando sonhos, exterminando o futuro,
tramando contra a vida e, consequentemente, contra o país.

111 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


O contexto de emergências obriga os atores sociais com os
quais trabalhamos, incluindo familiares e núcleos de convivência, a
descobrir, ou até mesmo, a criar novas formas de sobrevivência. Os
obriga a reinventar a vida, a viver um dia de cada vez, não por falta
de planejamento ou organização, mas por falta total de perspectiva.
Creio não ser difícil, através de um breve exercício de
empatia, que nos coloquemos, apenas por alguns minutos,
mesmo que de forma imaginária, em seus lugares e que
absorvamos a dor que emana do seu sofrimento, as emergências
que atuam cotidianamente em suas vidas e a dureza da exclusão
histórica, política, social, educacional e econômica. Algumas
vezes pergunto-me: A escravidão acabou ou sobrevive através
de múltiplas e diferentes formas? Os escravos de hoje são
descendentes diretos dos ontem, os presídios, os atuais navios
negreiros e os senhores de escravos, os governantes. São
sucessivas gerações de abandono, uma trama macabra e violenta
contra a cidadania brasileira, contra os filhos da pátria, contra a
vida! Trata-se de um autêntico atentado contra a humanidade.
Por mais improvável que possa parecer, como diz Cazuza: Eu
vejo o futuro repetir o passado.
Fruto do flagelo humano, crianças e jovens, atualmente, se
veem às voltas com formas diferenciadas de viverem suas infâncias
e juventudes, de se moverem no mundo, de ser gente, pois vivem
em um contexto de emergência que os obriga a descobrir ou até
mesmo criar novas formas de sobrevivência. Reinventam suas
vidas em contextos adversos e tentam como podem se por de pé
na vida, apesar das projeções a eles destinadas. É preciso virar
esse jogo, é preciso reinventar a vida, é preciso outras infâncias
e outras juventudes. Volto a me questionar: Como fazê-lo juntos
aos que privados estão de sua liberdade? Realmente deveriam
estar privados de liberdade? Não seria o caso de colocar em ação
lápis e livros? Segundo Monteiro Lobato: Um país se faz com
homens e livros. Será melhor que nossos governantes aloquem
verbas no presente para no futuro não precisar fazê-lo com a
privação de liberdade. É preciso construir o futuro com educação!

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 112


Vejamos alguns dados que podem nos auxiliar no
aprofundamento das nossas reflexões, publicadas no site
Dourados Agora: “Enquanto o país investe mais de R$ 40 mil
por ano em cada preso em um presídio federal, gasta uma
média de R$ 15 mil anualmente com cada aluno do ensino
superior — cerca de um terço do valor gasto com os detentos”.
Algo no mínimo intrigante ocorre aqui, pois verbas existem,
mas quem as administra? A favor de quem administram? Não
seria no mínimo coerente alocar verbas na educação – forma
preventiva de administrar, do que na detenção – forma curativa
de administrar? Que tal educação integral em horário integral no
lugar de presídios desintegrados em horário integral? Observem:
O tempo passa, mas as marcas ficam. A quem interessa esse
estado de coisas? O que estão construindo nossos governantes
através de suas políticas públicas equivocadas que, ao longo de
décadas diz, de forma interdita que: Vale a pena roubar?
É com profunda estranheza que verifico, ao longo de
décadas, em nome de uma pseudo justiça social e com narrativas
justificadoras perante a sociedade, os vários programas sociais
como: Bolsa Família, Auxílio aluguel, Programa Minha Casa
Minha Vida, Brasil Carinhoso, Farmácia Popular, Merenda
escolar (O mais antigo), entre outros; se perpetuarem, virarão
regra quando deveriam ser a exceção. É evidente: quem vive
em contexto de emergência tem pressa, é preciso fazer algo com
urgência. Mantê-los em situação de indigência, fazendo dos
programas sociais moedas de troca (voto), sem de fato existir
a mínima possibilidade de geração de emprego e de renda, é
no mínimo revelador do desinteresse existente por parte dos
governantes, de retirar a população da situação na qual se
encontra. Parece que o jogo que está sendo jogado é: dar dinheiro,
mas não dar poder. Para manter a todos subservientes, dóceis,
submissos e necessitados. Vale a pena ressaltar que o poder
advindo do conhecimento liberta, e um povo instruído se liberta.

113 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Também é indispensável sinalizar que o montante
individual utilizado por cada programa é inversamente
proporcional aos auxílios recebidos por políticos no exercício
de suas funções. Quando trocarão a política de enriquecimento
ilícito por uma política governamental lícita? Parece-nos que a
inversão de valores nos trouxe ao caos social em que estamos
imersos. É uma construção humana passível de ser modificada
através do exercício de uma justiça social pautada na criação
de emprego e na geração de renda. Retirar o povo brasileiro do
estado de indigência em que foi colocado, significar fazer o país
crescer para todos, de forma ampla e democrática.
Outros dados do site Dourados Agora nos informa que,

na comparação entre detentos de presídios estaduais, onde está a maior


parte da população carcerária, e alunos do ensino médio (nível de ensino
a cargo dos governos estaduais), a distância é ainda maior: são gastos,
em média, R$ 21 mil por ano com cada preso — nove vezes mais do que
o gasto anual por aluno no ensino médio, R$ 2,3 mil (Mozart, 2011, p..1)

A má administração financeira gera esgotamento de verbas


e colapso financeiro em qualquer gestão, e demanda tempo, muito
tempo para corrigir equívocos e, em especial, na área política de
uma nação. Há uma entropia, seguida de miopia, na forma pela
qual nossos governantes atuam, levando ao atual quadro no qual
se encontra nossa sociedade.
Hoje, a mídia escrita e televisiva anunciou que o Brasil alcançou,
em três meses, a triste marca de um milhão de desempregados.
Para nós o desemprego é uma das maiores formas de violência que
uma população pode estar exposta, pois traz indignidade, revolta
e desesperança, e é gerador de múltiplas violências, entre elas, o
ingresso de jovens em sistemas socioeducativos. Muitos que ali se
encontram, furtaram para se alimentar.
É evidente que, em um sistema cuja superlotação seja a
tônica, a qualidade de atendimento deixa de passar apenas pela
alocação de verbas. Acreditamos que deva passar, principalmente,

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 114


pela atitude preventiva por parte de todos os profissionais que
atuam no governo e no sistema. Se não reinventarmos outra
concepção pedagógica para compreender os fatos e tratarmos
da origem e não dos efeitos, acabaremos por ter nas mãos um
sistema inadministrável. É como criar um monstro que, com o
passar do tempo, se voltará contra seu criador.
Um dos sinais de maturidade encontrado no
desenvolvimento humano é a condição que temos de nos
responsabilizar por nossos atos. Ao olhar a situação do sistema
socioeducativo, como estrangeira que sou, é muito fácil perceber
a existência de algo muito errado. Não é preciso ser matemático
nem realizar grandes operações para detectar que, em um sistema
onde a entrada é cada vez maior do que a saída e a retenção se
prolonga por muito tempo, em breve algo ocorrerá.
Observem uma fala recorrente (ouvida várias vezes de
diversos servidores da área), entre profissionais do sistema
coletada em situação de pesquisa- Pedagogia Social para o século
XXI – Projeto PIPASUFF, 2015: “Isto aqui é uma panela de pressão
pronta para estourar”. A competência de acompanhar o sistema
de perto, de forma compromissada e responsável, parece-nos ser
de todos. Olhando de fora, tudo nos leva a crer na inexistência
de uma ação integrada entre todas as equipes e setores do
governo, para que, longe da fogueira de vaidades, reflitam sobre
a concretude do real e passem a trabalhar de forma integrada
sobre como superar o estado atual no qual o sistema se encontra.
Dúvidas em relação à possibilidade organizativa e teórico-
prática, por parte dos profissionais que compõem o sistema, não
as tenho, mas habita em mim a clareza da necessidade urgente da
ação integrada onde o planejamento, a execução, a avaliação e o
replanejamento das ações sejam constantes sempre perpassadas
pelo diálogo, pela escuta sensível (BARBIER, 1999/2000), e pelo
respeito ao dito pelo outro. Dentro da perspectiva da Pedagogia
Social, todos que trabalham no sistema, direta ou indiretamente,
educam. Se trabalhamos em um sistema socioeducativo, lidamos

115 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


com educadores, independente da função que assumem. Este
fato nos remete ao entendimento de que nossas armas devam ser
lápis, cadernos, livros, diálogos e exemplos.
Educar pelo exemplo é, permanentemente, a metodologia
principal a ser trabalhada pelo educador social. Dentro de um
sistema socioeducativo, cabe perguntar: quem nossos jovens têm
como exemplo? Sabemos que nossas crianças e jovens precisam de
valores, princípio e limites... Quais os valores, princípios e limites
são passados, através dos exemplos, pela e na socioeducação?
Quem se responsabiliza por eles? Privar de liberdade apenas,
não adianta. A visão punitiva, e nada formativa que, ao longo
dos anos trabalhamos, gerou a “panela de pressão” mencionada
inúmeras vezes por profissionais da área. É preciso desconstruí-
la, através de ações humanizadas e éticas que valorizam o ser
humano. Cabe lembrar os versos da música “Volta por cima” de
Noite Ilustrada: “Chorei, não procurei esconder /Todos viram,
fingiram/ Pena de mim, não precisava/ Ali onde eu chorei/
Qualquer um chorava (...)”( Noite Ilustrada, 1962).
Eles já estão “na cruz”, inclusive com uma “coroa de
espinhos”. Eles e suas famílias. Qual o seu papel? Julgar?
Classificar? Excluir? Ou compreender, acolher, amparar e auxiliar
no processo de superação? Olhem para eles, são como você. O
que os fez desviar. Já pararam para compreender que são frutos
de uma sociedade doente como a nossa que produz o infrator
para penalizá-lo? Já ouviram suas angústias? Sabem sobre seus
sonhos? Já se colocaram em seu lugar? Já pararam para pensar que
emprestam suas vidas para que possamos olhar para esse sistema
espoliador, degradante e desumano ao qual pertencemos?

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 116


Pedagogia social, a pedagogia da superação

Dar a volta por cima que eu dei


Quero ver quem dava
(Noite Ilustrada)

Nós, da Pedagogia Social, ao olharmos para a questão


do erro, trazemos a certeza de que ele pertence ao humano:
“Quem nunca errou atire a primeira pedra” (Noite Ilustrada,
1962). Acreditamos que os erros podem e devem se constituir
em possibilidades de acertos, através da qual aprenderemos
refletindo, nos reorganizando, nos preparando para ser e estar
cada vez melhor. Já diziam os gregos: “O ser humano existe
em devir” (Heráclito, 1998, pag.35). Por que damos sentido de
totalidade às partes? Por que não somos capazes de exercitar a
compreensão, a inclusão no lugar do julgamento e da exclusão?
Concordo com a punição do erro, mas penso que o
estreitamento dos limites e as organizações de novas regras possam
ser mais eficientes do que a reclusão. Para John Dewey: Educação
é um processo social, é desenvolvimento. Não é preparação para a
vida, é a própria vida.
Sendo a educação um processo social, nos parece um
desrespeito a esse princípio, a privação de liberdade. Que tipo
de desenvolvimento é realizado? Para o autor, educação é vida
e não preparação para a vida... Ao interromper sua vida e não
prepará-la para que sejam mais, superem seus erros e evoluam.
O que fazemos então?
O trabalho da Pedagogia Social nos permite afirmar a
existência de um tripé que constitui um desafio permanente para o
educador social: o primeiro pilar é o da construção de sua própria
identidade. Uma identidade que só faz sentido atrelada ao outro,
ou seja, ao aluno. O segundo é o da aceitação, ou seja, é preciso

117 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


aceitar seu aluno como ele é, com suas histórias e memórias,
com seus textos e contextos de emergências. É possível afirmar
que o processo de aceitação do outro passa, principalmente, pela
própria aceitação, caso contrário, não passará de mero discurso
representado por palavras soltas ao vento. Falamos, portanto,
do testemunho vivo de um fazer capaz de por em diálogo o
binômio teórico-prático, invocando permanentemente a questão
da coerência, o que nos é bastante desafiador.
E finalmente, porém não menos importante, o terceiro
pilar é o da responsabilidade. Para além de se identificar
com os educandos e neles se reconhecer e, aceitá-los em sua
legitimidade, o educador social precisa responsabilizar-se por
eles. Responsabilizar-se a tal ponto por seu fazer pedagógico
que será impensável não incluir o sucesso dos educandos no
rol do seu próprio sucesso. Falamos, portanto, de uma relação
de pertencimento capaz de compreender educador e educando
como partes integrantes de uma mesma realidade, não fazendo
mais sentido a existência de um sem o outro.
Ao refletir sobre os jovens em situação de privação de
liberdade muitos questionamentos são construídos e os mesmos
passam a nos acompanhar por toda vida. O Rio de Janeiro obteve,
nas últimas semanas, temperaturas muito baixas, algo em torno
de 10-15 graus, ou seja, frio para os padrões cariocas. Dificilmente
passamos ao largo dessa situação sem pensarmos como eles
estarão. Terão agasalhos, calçados, meias? Terão o mínimo de
conforto para passarem o frio? Era preciso, além da privação
de liberdade, passarem por tanta penúria além daquelas que
estiveram expostos desde a infância? É preciso colocar-se no lugar
do outro, nos libertando das amarras da nossa formação, livres de
conceitos e preconceitos.
A seguir, através de contextos interativos, demarcaremos
fronteiras e possibilidades para o devir. Para isso, é preciso
compreender o educador social reflexivo como aquele profissional
que percebe o teor pedagógico existente na prática e busca com

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 118


ela aprender. A reflexão passa a ser uma forte aliada às práticas
de sucesso ao se falar em socioeducação. É com padre Antônio
Vieira, ao falar sobre o modo de diagnosticar dos antigos, que
aprofundaremos nossos achados agora:

sacrificavam os animais; consultavam-lhes as entranhas e, conforme


o que viam nelas, assim prognosticavam. Não consultavam a cabeça,
que é o assento do entendimento: senão as entranhas, que é o lugar do
amor; pois não prognostica melhor quem melhor entende, senão quem
mais ama. (...) Não há lume de profecia mais certo do que consultar as
entranhas dos homens. De que homens? De todos? Não, dos sacrificados.
(...) Se quereis profetizar o futuro, consultai as entranhas dos homens
sacrificados: Consultem as entranhas dos que se sacrificaram e dos que
sacrificam: e o que elas disserem, isso se tenha por profecia (VIEIRA,
1998, p..45)

Por não separar o pesquisar do viver, o educador social


reflexivo parte do princípio fundamental do ensinar a todos e
a cada um. É possível afirmar a inexistência de uma pedagogia
que o faça abrindo mão da convivência e do diálogo. O segredo
de ensinar a todos e a cada um está dentro de cada um. É preciso
que o educador social reflexivo, através de movimentos de
interação e de interlocução, aprenda com os educandos sociais,
como ensiná-los. Cada um com um tipo de inteligência e com sua
singularidade dará o tom do aprendizado.
Observar, viver e conviver, planejar, construir e reconstruir
práticas alternativas de superação pedagógica para ensinar cada
vez mais e melhor a todos e a cada um. Percebemos que não há
receita de bolo. Cada caso é um caso, mas é possível afirmar a
existência de saberes acumulados permissores de multiplicação.
A partir da compreensão de práticas locais e globais, o educador
social reflexivo será capaz de avançar em sua odisseia marcada
pela tenacidade, disciplina e coragem. Como disse Anita, 16 anos,
uma das jovens por nós pesquisada: “É preciso do nada tirar o
infinito”(Relatório de Pesquisa, Projeto PIPASUFF, 2014). Eis a
alquimia cotidiana do educador social: fazer fluir vida em contexto
de morte. Por mais pesado que possa parecer, basta observar o
cotidiano de cada um e verão que é realidade.

119 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Segundo Humberto Maturana (1998), realizar reflexões
acerca da situação política de seu país, o Chile, nos alerta para:

A aceitação do outro como um legítimo outro na convivência constitui


a convivência social como a única convivência na qual o modelo de
conviver surge e se dá na aceitação, e não na negação que surge na
exigência de que o outro seja diferente. Não é o medo do castigo que
detém o crime na vida social – ele simplesmente não aparece. O crime
surge depois que a convivência social tiver se rompido. (MATURANA,
1998, p.83)

Aceitar o outro em sua legitimidade se faz necessário, nas


práticas socioeducativas não é diferente. Importa acolher o dito
para resignificar práticas. Trata-se de um exercício cotidiano
capaz de nos fazer paulatinamente desenvolver uma escuta
sensível (BARBIE, 1999), evitando a surdez permanente que
tomou conta de inúmeras instituições. É preciso considerar que,
em se tratando de gente, seres humanos, há de se ter diálogo, e
não monólogo. Abrir mão da hierarquia do saber-poder através
do exercício permanente de humildade também contribui para
o fortalecimento dos processos de aceitação. Aceitar o outro
em sua legitimidade, significa, dentre inúmeras possibilidades,
principalmente, aceitá-lo por inteiro, como é, sem restrições ou
atitudes hierarquizadas.
Através da Pedagogia Social é possível afirmar que o ser
humano aprende com o corpo inteiro, sendo necessário repetir
objetivos e não as atividades. Como fica essa afirmativa diante
da socioeducação? Quais as possibilidades de aprendizagens que
estão expostos os jovens sem situação de privação de liberdade?
Quais os ensinamentos marcarão seus corpos e mentes? Quem
são os verdadeiros educadores sociais que os ensinam pelo
exemplo? Quais são os exemplos aos quais estão expostos?
Como ensinar com e na privação de liberdade se acreditamos
que educar é vida?

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 120


O século XX não conseguiu diminuir as diferenças entre
ricos e pobres, alfabetizados e não alfabetizados, entre tantas
outras situações fortemente marcadas por questões de raça, de
gênero, de etnia. Os jovens em situação de privação de liberdade,
em sua grande maioria, são afrodescendentes e, oriundos de
famílias que tiveram seu direito à escolarização negado. Trata-
se de uma construção humana, possível de ser transformada. É
preciso que educadores sociais e autoridades governamentais
olhem para o que está ocorrendo e se responsabilizem por mudar
esse quadro catastrófico no qual esses jovens se encontram.

São crianças e jovens que não sonham com o futuro. Nem


sabem que podem tê-lo. Seus sonhos foram roubados... Os sonhos
dos seus familiares também. Toda família espera o nascimento
de uma criança e não de um jovem em conflito com a lei. Trata-se
de uma construção social. É possível afirmar que não nasceram
com armas nas mãos. Quem os arma? Por que o tráfico se anuncia
como um espaço promissor para a sobrevivência. Quem ou o
que, joga nossos jovens para essa realidade?

O futuro ameaçado é uma categoria por, nós cunhada, para


se referir ao estado de desprezo, desqualificação, desumanização
e desrespeito no qual, crianças, jovens e suas famílias, em todo
país, se encontram. Por incrível que pareça nossos governantes,
através de políticas públicas equivocadas, tramam contra o
futuro da população. São gerações após gerações entregues
a própria sorte. Desconsiderar esse contexto de emergências é
tramar contra o futuro.

121 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Eis o nosso apelo a juízes, promotores, advogados,
profissionais envolvidos com a interdição humana. Olhem com
solidariedade, compaixão e humanidade. Cooperem para que o
bem floresça a partir da correção de condutas face ao erro. Com
firmeza e sem rigidez, com ética e estática educamos jovens
para uma vida melhor. Sei ser tarefa para muitos, mas é toda
aldeia... Lembram?

Mais uma vez, recorro a Noite Ilustrada: “Reconhece a queda


e não desanima/ Levanta, sacode a poeira e / Dá a volta por cima.”
(Noite Ilustrada, 1962). Assim encerro essa reflexão afirmando
ser a Pedagogia Social em espaços de privação de liberdade, a
pedagogia da volta por cima! A pedagogia da Superação.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 122


REFERÊNCIAS

BARBIER, R. O educador como passador de sentido.


Universidade de Brasília, Faculdade de Educação, cátedra
UNESCO de Educação a Distancia, 3º Curso de Especialização
em Educação Continuada e a Distância, 1999/2000.

DEWEY John. Educação e vida. Editora Melhoramentos, 10ª


Edição, São Paulo, 1978.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários


à prática Educativa. Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1996.
HERÁCLITO. “Fragmentos.” In: Os Filósofos Pré-Socráticos, por
Gerd A. (org.) BORNHEIM, p. 35-46. São Paulo, SP: Cultrix, 1998

HERÁCLITO. “Fragmentos.” In: Os Filósofos Pré-Socráticos, por


Gerd A. (org.) BORNHEIM, p. 35-46. São Paulo, SP: Cultrix, 1998

MATHIAS, Antônio Jacinto. É preciso uma aldeia inteira para


educar uma criança. Cadernos CENPEC, São Paulo, 2006.

MATURANA, Humberto. Emoções e linguagem na educação e


na política. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 1998.

MORIN, Edgard. Introdução à teoria da complexidade. Lisboa,


Instituto Piaget, 1996.

VIEIRA, Padre Antônio. Sermões. São Paulo, Companhia das


Letras, 1998.

SITES:
www. dourados agora. com.br, MOZART, pag. 1, 2011.
www.vagalume.com.br
www.projetopipasuff.com.br

123 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


A importância das diferentes vivências nos cursos
de Licenciatura: a formação docente através das
experiências no sistema socioeducativo 1

Stephany Petronilho Heidelmann2


Gabriela Salomão Alves Pinho 3
Maria Celiana Pinheiro Lima4

Resumo
Este artigo tem por objetivo relatar e analisar a importância
de propostas curriculares, referente às licenciaturas, que propicie
vivências em diferentes espaços educativos. Temos como foco
deste material uma feira de ciências realizada por alunos de duas
turmas do curso de Licenciatura em Química do IFRJ-CDUC1 no
Centro de Atendimento Intensivo Belford Roxo (CAI Baixada)
do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE).
A partir dos resultados obtidos com a atividade, discute-se
a importância da proposta para os futuros professores numa
perspectiva de responsabilidade social, bem como o impacto
de atividades de alfabetização científica para os jovens em
cumprimento de medida socioeducativa.

1 Este artigo contou com a colaboração de Flávia de Almeida Pereira, Flávia Roberta
Bezerra Balbino, Janice Cristina da Silva Luiz Cabo Verde e Luise Melo de Aguiar,
licenciandas em Química pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do
Rio de Janeiro (IFRJ) campus Duque de Caxias.
2 Licenciada em Química pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do
Rio de Janeiro (IFRJ) e mestranda em Ensino de Química na Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ).
3 Graduada em Psicologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), mes-
tre em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e doutora em
Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).
Professora, pesquisadora e extensionista do Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Rio de Janeiro.
4 Licenciada em Química pela Universidade Federal do Ceará (UFC), mestre em Química
Inorgânica pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e doutora em Ciência e Tecnologia
de Polímeros pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora, pesquisado-
ra e extensionista do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 124


Palavras-chave: Socioeducação. Ensino de Ciências.
Formação docente.

Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos,


apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de
objeto um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende
ensina ao aprender. (FREIRE,1996, p. 25)

Durante a licenciatura, os alunos enfrentam diversas


escolhas e empecilhos referente ao (des)caminho de formação
e construção do “ser professor” (OLIVEIRA, 2007). Em muitas
instituições de ensino superior, a formação de professores tem
sido feita ainda em uma lógica engessada, pouco diversificada
e escassa de experiências práticas. Quando se trata de educação
em espaços alternativos, o processo é ainda mais excludente,
visto que grande parte dos currículos de licenciatura não visa
esse tipo de formação.
Na comunidade escolar ainda encontra-se uma forte
tendência em estabelecer tentativas de homogeneização do
ensino onde a reprodução de aulas com modelos tradicionais
geralmente são altamente valorizadas, excluindo e desvalorizando
a possibilidade de outras formas eficazes de construção do
conhecimento e a vivência do aluno. Cria-se um discurso que
prestigia a educação formal como crítica, racional e embasada
teoricamente, marginalizando as possibilidades formativas de
trabalhar com diferentes contextos e espaços (GARCIA, 2005).
Tal distanciamento entre metodologias que fujam ao
tradicionalismo de uma sala de aula regular e os cursos de
formação docente compromete também a possibilidade de,
a partir do trabalho com espaços alternativos, desenvolver a
formação social do educando, onde o senso comum e preconceitos
sejam desconstruídos, contribuindo para a superação de
fragilidades formativas e para a construção de identidades
docentes pautadas pela responsabilidade social e pela dimensão
ética do ser professor.

125 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Sendo o professor um sujeito potencialmente capaz de
motivar o processo emancipatório de seus alunos, destacamos
a necessidade de que este esteja desde sua formação inicial
desenvolvendo sua capacidade crítica, reflexiva e criativa. Ghelli
(2004, p.2) complementa ainda que “(...) o conhecimento não
está pronto, ele é construído e reconstruído constantemente.”
Destaca-se também a Resolução CNE/CP 01 de 2002 que
estabelece em seu art. 7º que as instituições formadoras deverão
manter “interação sistemática com as escolas de educação básica,
desenvolvendo projetos de formação partilhados” e em seu art. 8º
que a avaliação dos cursos de formação envolva a “qualidade da
vinculação com escolas de educação infantil, ensino fundamental
e ensino médio”.
A carreira docente é construída através das relações
estabelecidas cotidianamente que promovem o desenvolvimento
profissional, como aponta Pinto:

A profissão de professor é um construto social, e, como tal, está sujeita


a mudanças. Não somos naturalmente professores. Construir professor
envolve, muitas vezes, ter de lidar com concepções estigmatizadas,
tais como missão, sacerdócio, vocação, amor, dentre outras. Envolve
também, muitas vezes, uma concepção de profissão de menor status
social se comparada a outras como as liberais, por exemplo. A docência
não é constituída apenas pelo que está explícito em uma base curricular.
É, em grande parte, o que não verbalizamos, mas significamos, que se
constitui em elemento formador. (PINTO, 2010, p.111).

Grande parte desta construção social envolve diretamente


as vivências as quais os licenciandos estão sujeitos ao longo da
graduação. E as instituições formadoras têm um grande papel
em propiciar aos alunos estas vivências, principalmente no
que diz respeito aos espaços não formais de aprendizagem e o
envolvimento de questões sociais.
Assim, concordamos com Arroyo (2008, apud SANTOS e
SCHNETZLER, 2010) quando este destaca o equívoco cometido ao
se desvincular o jogo de poder existente na sociedade, do papel da

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 126


educação e da formação cidadã, o que acaba por contribuir para uma
visão antagônica à realidade e que se aproxima do convívio social
harmônico. Dentro da perspectiva de formação cidadã, destaca-se a
necessidade de desenvolver nos indivíduos também um interesse
pelos assuntos comunitários, para que estes compreendam as
implicações de suas decisões, bem como assumam um compromisso
de cooperação e responsabilidade social.
Atualmente as desigualdades sociais e o desrespeito às
diferenças são naturalizados na sociedade e, por consequência,
no ambiente escolar. A sociedade e a escola são atravessadas
por uma lógica que produz a exclusão de determinados grupos
para o favorecimento de outros, desconsiderando os valores
igualitários defendidos em diferentes declarações mundiais
como, por exemplo, a Declaração dos Direitos Humanos.
Diante desta problemática, a inserção dos jovens
graduandos nas instituições de socioeducação possibilita a
vivência com a profissão e muitas vezes a desconstrução do
imaginário social e coletivo acerca da desvalorização da docência.
Podemos observar que outros olhares sobre o fazer docente,
sobre as escolas públicas, sobre o adolescente em conflito com
a lei, sobre o papel social da escola, bem como a relação entre
professor e alunos e as metodologias de ensino e aprendizagens
podem ser (re)construídos, contribuindo para uma formação
mais crítica, questionadora e fundamentada.
Partindo do entendimento que este trabalho contempla uma
pequena parcela das licenciaturas, que é privilegiada por possuir
relatos de experiências em diferentes espaços de formação docente,
o presente artigo tem por objetivo problematizar a elaboração e
os resultados de uma atividade de formação docente realizada
no espaço Centro de Atendimento Intensivo Belford Roxo (CAI
Baixada) do Departamento Geral de Ações Socioeducativas
(DEGASE), que é vinculado à Secretaria Estadual de Educação
e tem como missão promover socioeducação no Estado do Rio
de Janeiro, favorecendo a formação de pessoas autônomas,

127 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


cidadãos solidários e profissionais competentes, possibilitando
a construção de projetos de vida e a convivência familiar e
comunitária. Para tal, relatamos aqui a construção e realização
de uma feira de ciências em tal espaço, como atividade avaliativa
de turmas de duas disciplinas do Curso de Licenciatura em
Química do Instituto Federal do Rio de Janeiro - campus Duque
de Caxias, Química Geral I e Contemporaneidade, Subjetividade
e Práticas Escolares.

A construção do espaço socioeducativo como possibilidade


educativa para os licenciados
Durante a construção e leitura das referências bibliográficas
a serem utilizadas para elaboração da atividade, foram realizadas
diversas discussões sobre as expectativas dos licenciandos
com a proposta, que provocaram debate e reflexão acerca da
criminalização da pobreza em nossa sociedade, o perfil dos
adolescentes que cumprem medida em instituições de privação
de liberdade e as suas vivências após a realização da Feira de
Ciências no sistema socioeducativo.
Uma das questões abordadas foi a forma como a escola lida
com os ditos alunos problemas, caracterizados por indisciplina,
falta de atenção e subversão à regras, e em alguns casos a prática
de delitos durante esse período. Esses alunos são marginalizados
por um sistema educacional que reproduz exatamente as
desigualdades da sociedade capitalista, onde os mesmos são
segregados do todo por sua cor, classe social, construção cultural,
entre outros fatores.
Segundo Deleuze (1987, apud SILVA, 2009), conforme
repetimos em atitudes que esses estudantes não são bem-vindos
na escola, nem na sociedade, ocorre a internalização da forma
como é visto e passa a ser a forma como enxerga a si.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 128


Na medida em que o “acusado” passa a se ver como um ser integrado ao
conjunto de comportamentos, enquanto representação de si próprio, que
os rótulos impõem, a sua forma de estar no mundo passa a estar submetida
a tais rótulos e o seu comportamento ganha outro significado. Não só
aos olhos do acusador, mas principalmente, aos seus próprios olhos. Ele
passa não só a ser visto como alguém rotulado, mas passa a internalizar os
comportamentos que esteriotipizam uma forma de estar no mundo, como
forma transgressora e desviante. Assim, o efeito de acusação de desviado
e/ou transgressor provoca reações não só no campo molar, mas, também,
no campo molecular (DELEUZE, 1987; apud SILVA, 2009, p. 91).

Outro ponto chave trabalhado foi o discurso meritocrata


reproduzido em muitos âmbitos, que alega condições iguais, não
levando em consideração o entre-lugar de onde o adolescente se
coloca. Silva (2012) relata de forma clara esse massacre:

A lógica dessa sociedade é ainda mais perversa do que se apresenta,


pois sempre deixa brechas para que alguns rompam as barreiras e
sejam transformados em regras, e para que ela, enquanto sociedade
capitalista, posse se autoafirmar democrática e manter a ideologia de
que a meritocracia é uma lógica justa (SILVA, 2009, p.96).

Com isso é criada de forma massacrante a ilusão do fracasso


por condições cognitivas, psicológicas e patológicas, culminando,
portanto, no afastamento do objetivo da escola quanto a uma
formação que não invisibilize a construção e o contexto social de
cada aluno e o considere como sujeito único, enxergando suas
demandas e trabalhando a partir destas para sua construção cidadã.
Partindo do entendimento de valorização da vivência e do
contexto de cada aluno, as práticas contextualizadas aparecem
como uma possibilidade de considerar as experiências dos alunos
e aproximá-los do conteúdo, estabelecendo interações entre o
estudante e professor, onde a partir de uma problemática comum a
realidade dos discentes, é possível identificar a utilização/inserção
prática do conhecimento no dia-a-dia, construído uma maior
identificação e apropriação do conteúdo por parte dos alunos.

129 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Para atender a tal propósito foi pensado em utilizar
uma Feira de Ciências como uma proposta diferenciada para
contextualização, mediação e construção de conteúdos de uma
forma ativa, participativa, criativa, com embasamento teórico e
experimento ilustrativo, possibilitando o aprendizado além da
tradicional prática em sala de aula. De acordo com Pavão (2006):

Do ponto de vista metodológico, as feiras de ciências podem ser


utilizadas para repetição de experiências realizadas em sala de aula;
montagem de exposições com fins demonstrativos; como estímulo para
aprofundar estudos e busca de novos conhecimentos; oportunidade
de proximidade com a comunidade científica; espaço para iniciação
científica; desenvolvimento do espírito criativo; discussão de problemas
sociais e integração escola-sociedade (PAVÃO, 2006, p. 2).

Levando em consideração que “As Feiras de Ciências (...) se


apresentam então como um convite para abrir todas as janelas: da
curiosidade e interesse do Aluno, da criatividade e mobilização
do Professor, da vida e sentido social da Escola” (LIMA, 2005, p.
21) e que a mesma no ambiente escolar, independentemente de
sua origem, as feiras cientificas ou culturais estimulam o aluno
a um planejamento, a pesquisa detalhada e a capacidade crítica.
No entanto, para além disso, tais estratégias podem servir
como agentes de promoção social se forem realizadas em
ambientes não formais de ensino. Em ambientes socioeducativos
de privação de liberdade, as feiras representam também um
importante método de ressocialização.
A proposta elaborada consistiu então na produção de trabalhos
relacionados ao ensino de ciências, com ênfase em química onde,
através das bibliografias indicadas, montou-se um projeto que
atendia ao contexto em que os licenciandos estavam inseridos,
sempre buscando a adequação da linguagem ao público trabalhado,
o estímulo do lúdico e a contextualização dos conteúdos escolhidos.
A Feira de Ciências foi realizada por 30 (trinta)
alunos matriculados nas disciplinas de Química Geral I e

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 130


Contemporaneidade, Subjetividade e Práticas Escolares (CSPE). Os
estudantes foram divididos em 06 (seis) grupos com cinco a seis
integrantes cada. Durante as pesquisas e elaboração das apresentações
os alunos foram acompanhados pelas professoras responsáveis pelas
respectivas unidades curriculares. As experiências apresentadas
mostraram a preocupação de atribuir significado e sentido aos
conteúdos, contextualizando os temas ao cotidiano, problematizando
e discutindo as necessidades de mudanças para solucionar os
problemas. Os temas abrangeram assuntos como: meio ambiente, a
química das cores, sistema digestivo, reciclagem e estamparia.
Antes da data marcada para realização da feira de ciências,
foi realizada com as turmas uma prévia de 10 (dez) minutos da
apresentação de cada grupo, onde através da troca de experiências
e orientação foram trabalhados os últimos detalhes, como por
exemplo, a adaptação da linguagem.
Embora a proposta inicial fosse utilizar a quadra do
DEGASE, a direção da instituição socioeducativa solicitou que
fosse utilizado o pátio. Organizados em um grande círculo, cada
grupo ficou com uma mesa de aproximadamente 1m2 onde o
experimento/atividade foi montada e os licenciandos receberam
em suas intervenções didáticas quatro adolescentes internos por
vez, e estes circularam entre os grupos ao longo da realização da
atividade. Cada apresentação durou em média dez minutos.
As propostas iniciavam com uma conversa descontraída,
onde os futuros professores perguntavam aos internos sobre
o cotidiano deles e atividades que realizavam no DEGASE e a
partir disso, os grupos realizavam uma ligação entre o dia-a-dia
dos internos com o tema apresentado e construíam seus diálogos
considerando o relatado pelos adolescentes.
O modelo de avaliação foi construído com base nos relatos,
observações e na avaliação dos licenciandos em relação à
realização dos objetivos propostos com a atividade. Em alguns
momentos do texto seguinte, falas dos futuros professores são
transcritas, identificando-os com nomes fictícios.

131 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Vivências e possibilidades formativas
A proposta da Feira foi um duplo desafio a ser enfrentado
pelos licenciandos, pois para muitos foi a primeira experiência
com a atividade docente, mediando o conhecimento, tomando
consciência de que as formas mecanizadas de ensino não
alcançariam os objetivos de promoção de uma atividade lúdica,
contextualizada e pensada para o espaço educativo onde
estavam inseridos. Desta forma, concorda-se com Pacífico (2010)
que a criação de possibilidades didáticas encontra-se relacionada
à vivência de práticas, onde ocorra o estímulo à criatividade, ao
aprendizado e à intervenção.
Na elaboração das metodologias que serão utilizadas é de
suma importância que o professor fique atento às situações de
vivência do aluno que permitam desenvolver conceitos químicos
importantes para que a partir delas, com suas ações e o uso de
linguagem química seja possível formar o pensamento químico
do estudante constituindo situações conceitualmente ricas
(MALDANER, 2000). Entretanto, estabelecer essa relação entre
o cotidiano do aluno e os conteúdos a serem abordados não é
tarefa simples como aponta Zanon (2008):

A problematização de uma situação real com a intencionalidade de


interpreta-lá teoricamente à luz das ciências, contextualizando conceitos
científicos a serem significados, é um desafio que clama outro: o de ampliar
os horizontes do cotidiano, fazendo-o evoluir, complexificando-o, em
interações típicas de uma aula (...) (ZANON, 2008, p. 255).

O segundo desafio enfrentado pelos discentes refere-se


à desconstrução de preconceitos naturalizados na sociedade
acerca do ambiente de realização da proposta, uma instituição
de privação de liberdade para adolescentes em conflito com a lei.
Como relatou um estudante:

A minha experiência com o DEGASE fugiu a todas as expectativas que


por mim foram criadas. Primeiro porque eu moro em um raio de um
quilometro do mesmo, e temi por minha segurança... A princípio eu tive

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 132


sim esse pensamento de preconceito, eu diria mais especificamente que eu
tive medo do desconhecido, por ser uma instituição pouco conhecida por
mim e hostilizada pela população que mora ao redor. Depois eu tive o
conflito interno de como eu iria conduzir esse trabalho, onde a proposta
inicial era de realizar uma feira de ciências, para um público que eu não
fazia ideia do conhecimento prévio. A linguagem foi alterada, o trabalho
totalmente ajustado, combinando a ciência em química e conceitos básicos
da psicologia aplicada a educação, como Piaget e Vygotsky, por exemplo.
Por fim, eu sai de DEGASE totalmente encantada com o interesse dos
alunos, e assim, me encontrando cada vez mais na iniciação a docência,
tendo hoje uma visão totalmente diferente da que tinha antes, enxergando
aqueles meninos como alunos, iguais aos que encontramos na sala de
aula. (PEDRO, IFRJ campus Duque de Caxias, jan. 2016).

A experiência didática vivenciada pelos futuros docentes trouxe


muitos benefícios, entre eles, conhecer e ter contato com realidades
desconhecidas ou discriminadas por muitos. Promoveu uma
mudança de pensamento, opinião e atitude em relação ao ambiente.
Proporcionou também o crescimento pessoal e o desenvolvimento
da criticidade para avaliar a função social do docente.

Eu acredito que a experiência no DEGASE tenha me servido para ver a


importância do professor na formação dos alunos, ficou bem claro para
mim que os meninos do DEGASE não tinham diferenciação nenhuma dos
outros de fora da região, uma orientação certa de um professor poderia
mudar o destino deles. (LAURA, IFRJ campus Duque de Caxias, jan. 2016).

Eu achei incrível porque você simplesmente percebe que os alunos lá


são os mesmos do ensino público [...] E “dar aula” e ver eles gostando
do que faziam era simples recompensador. Acho que contribuiu para
eu notar que independente de eu concordar ou não em como eles levam
a vida dentro de sala são como quaisquer outros alunos e devem ser
tratados como tais. (ALICE, IFRJ-campus Duque de Caxias, jan. 2016).

133 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Outra observação benéfica para os licenciandos foi a
oportunidade de trabalhar em grupo, aumentando assim
capacidade de argumentação, a capacidade de comunicação oral,
escrita e as relações interpessoais. Perrenoud (2001, p.128) diz
que “(...) os professores que experimentam o trabalho em equipe
sabem que a cooperação é uma luta: contra si mesmo, contra suas
próprias ambivalências; contra os outros (...)”.
O espaço e a experiência oferecida a partir do contato com
estudantes e a instituição CAI Baixada foi única e pouco visada nos
cursos de licenciatura na sociedade atual. Proporcionou muitos
questionamentos do porquê e para quê seguir a carreira docente.
Este local gerou um misto de sentimentos, de estarmos lidando
com adolescentes “normais”, que encontraríamos em qualquer
sala de aula pelas quais já passamos e passaremos, e, ao mesmo
tempo, com expressões e atitudes sistematizadas e reprimidas por
um sistema que nos deixa a dúvida de ser de fato “educativo”.
O sistema socioeducativo atual, mesmo avançando em diversas
áreas, visa em muitos momentos à punição ao invés da reeducação.

As causas da violência, como as desigualdades sociais, o racismo, a


concentração de renda e a dificuldade ao acesso a políticas públicas,
não se resolvem com a adoção de leis penais mais severas e sim através
de medidas capazes de romper com a banalização da violência e seu
ciclo perverso. (BRASIL, 2013, p.15)

Como já colocado anteriormente, é grande a dificuldade com


relação ao ensino de ciências, principalmente quando envolvem
questões matemáticas, visto que grande parte dos estudantes
possui um censo comum de aversão a matérias relacionadas às
ciências exatas. Além disso, deve-se destacar a responsabilidade
por parte dos docentes quanto à metodologia utilizada em suas
aulas e a permanência de um olhar positivista sobre a mesma.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 134


A partir da análise foi possível concluir que, dentre outros
fatores, o desinteresse é motivado por uma espécie de barreira
imaginária criada pelos alunos, que pode ser facilmente resolvida
com aulas contextualizadas que pudessem ser chamativas a
ponto de aguçar a curiosidade e podermos trabalhar em cima
dos questionamentos dos mesmos.
Durante a execução da feira, foi possível observar internos
bastante interessados em discutir e compreender o que estava
sendo abordado. Alguns eram mais tímidos, embora ainda assim
demonstrassem interesse em sua quietude. Um ponto que merece
destaque foi que ao final da Feira os jovens pediram para que os
licenciandos retornassem com mais experimentos/materiais didáticos,
pois eles gostaram bastante da Feira e pleitearam mais espaços
promotores de alfabetização científica, além de outras atividades.
Esta experiência foi para os licenciandos e não só para os
adolescentes do CAI Baixada, a possibilidade de não reprodução
de preconceitos e normas da sociedade onde vivemos, fazendo
assim a tentativa de exercer e ter sensibilidade em fazer aquilo
que os estudantes com os quais trabalham achem estimulantes.
Além da possibilidade de ver no garoto marginalizado alguém
que pode e quer aprender como qualquer outro.
Outro ponto importante foi a aceitação da proposta da Feira
pelo diretor geral e pelos funcionários do DEGASE, visivelmente
empolgados com a atividade, desejando retorno dos licenciandos
para a realização de novo projetos e parcerias, ou com em suas
próprias palavras, motivados por essa “rebelião universitária”.

135 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Conclusão
O diálogo construído entre as disciplinas de Química Geral
I e Contemporaneidade, Subjetividade e Práticas Escolares foi um
facilitador para a produção dessa Feira, pois foi possível através
do conhecimento do conteúdo técnico e da preocupação de formar
um docente com uma linguagem facilitadora e com a perspectiva
do papel social da escola instigar a curiosidade dos jovens.
A Feira possibilitou aos licenciandos constatar o
interesse dos adolescentes pelas atividades através de seus
questionamentos, dúvidas e interpretações dos experimentos
apresentados, interligando sempre com algo das suas próprias
vivências, fazendo uma troca de experiências e conhecimentos.
O apropriamento de novos conhecimentos, a troca de
experiências entre os alunos do IFRJ e os internos do DEGASE, e
a importância de projetos como este para a formação de todos os
envolvidos nesse processo educativo que é distante das realidades
apresentadas e discutidas comumente nos cursos de licenciatura.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 136


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137 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


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Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 138


Relações de Poder e produção de subjetividade:
desafios da contemporaneidade
Thereza Cristina da Silva Nunes1

Resumo
As questões abordadas neste artigo pretende de forma
breve possibilitar a melhor compreensão e a necessidade de
aprofundar os estudos nas temáticas Relações de Poder e
Produção de Subjetividade que estão presentes no cotidiano de
nossas vidas, nas práticas profissionais e que se propagam em
toda a sociedade, mas muitas vezes já não produzem a crítica
e análise necessária para um fazer diferenciado ou a indagação
que possibilita a busca de novos horizontes. Neste contexto, a
intenção é desenvolver os temas abordados e relacionados com
as Relações de Poder, segundo a bibliografia de Michel Foucault
e com breves reflexões sobre subjetividade do livro Micropolítica:
Cartografias do Desejo, de Felix Guattari e Suely Rolnik, de
1996. E, como os processos de subjetivação são constituídos e
disseminados, considerando as lógicas presentes na sociedade
e na realização do fazer profissional, tornando, assim, relevante
num processo de reflexão sobre as práticas existentes e na
construção de um novo fazer no sistema socioeducativo.

Palavras Chave: Estudo; Poder; Subjetividade, Reflexão; Práticas.

Este estudo nos oferece um campo conceitual que amplia


a forma de se pensar a vida e refletir sobre várias questões
para pensar as práticas profissionais, humanas, e as produções
na realização das pesquisas. Além, alerta para a tendência das

1 Socioeducadora do Departamento Geral de Ações Socioeducativas, Mestranda em


Políticas Públicas e Formação Humana da UERJ, Especialista em Gerência de Projetos
pela FESP/UFRJ e Assistente Social pela UVA.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 140


pesquisas de alimentar o que está posto e não o de duvidar,
problematizar e refletir o que estas práticas existentes produzem.
É produtivo o registro do estudo e a reflexão sobre
subjetividade e seu processo de produção em nossas vidas,
através da história, das práticas nas relações sociais da família,
estado, escola, comunidade, trabalho, dentre outros, pois viabiliza
o poder perceber e entender os efeitos de subjetivação destas
práticas nos diversos contextos, através do modo de existir.
Desse modo, os conteúdos apresentados nos desafiam para
novas formas de se pensar a vida, na perspectiva de que não há
certo ou errado e sim a possibilidade de novos caminhos, através
de ferramentas metodológicas efetivas que não contribuam para
as formas instituídas e hegemônicas que nos atravessam de
forma contínua.

O enfoque do poder por Foucault


O filósofo francês Michael Foucault, aborda a questão do
poder em diversos momentos de suas pesquisas, obras, cursos e
entrevistas, sendo sua problematização amplamente discutida, de
forma diferenciada da tradicional versão presente na sociedade.
O autor rompe com o conhecimento do mesmo e os efeitos de
dominação apenas ligados ao Estado e ao funcionamento de
seus aparelhos institucionais (exército, policia, justiça), os quais
mantêm a ordem social. Ainda, traz para a reflexão que este
poder só funciona porque na base, em sua operacionalização,
existem as “relações de poder”. Assim:

[...]. O exercício do poder não é um fato bruto, um dado institucional,


nem uma estrutura que se mantém ou se quebra: ele se elabora se
transforma, se organiza, se dota de procedimentos mais ou menos
ajustados (FOUCAULT, 2010, p.247).

141 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Partindo da concepção que o poder permeia, produz,
induz ao prazer, forma saber, produz discurso na sua dinâmica
e vai muito além de uma noção negativa que tem, por função,
reprimir, percebe-se que seus efeitos circulam de forma contínua,
individual e coletiva. Isso significa mais eficazes, menos
dispendiosos e descontínuos do que as técnicas utilizadas no
espetáculo público e do exemplo, utilizadas pela repressão na
sociedade de controle (FOUCAULT, 2005)
Foucault (2005) aponta o “Poder” como problema de
todo o mundo. O autor sinaliza que, apesar dos instrumentos
conceituais, teóricos do século XIX só percebem o problema do
mesmo na relação com os problemas econômicos, pois havia uma
promessa de que, com a resolução destes, os efeitos de poder
estariam resolvidos. No transcorrer do século XX, é descoberto
que todos os problemas econômicos podem ser resolvidos,
porém os excessos permanecem. Ou seja, o poder possui uma
dimensão mais ampla que identifica o individuo, parte de um
corpo social dinâmico e relacional, portanto, em funcionamento
de forma especifica e não geral.
Há efeitos de verdade que a sociedade mundial produz
a cada instante. Essas produções de verdade não podem ser
dissociadas de poder e dos mecanismos destes Tais mecanismos
induzem essas produções de verdades e, consequentemente
efeitos de poder que permeiam essas relações verdade/poder,
saber/poder e tal questão preocupa o autor, que assinala:
“Não tenho teoria e tão pouco tenho um instrumento certo”
(FOUCAULT, 2003, p.229).
Foucault (2003) mais uma vez, apresenta a questão do poder
como um objeto desconhecido e sem um método definido, mas o
reconhece nas relações que existem e permeiam toda a sociedade
e que mudam conforme a época e, de acordo com cada estratégia,
se utiliza de métodos e técnicas diferentes. Ainda, o autor aponta
que na sociedade há infinitas relações de poder entre homem e
mulher, filhos e pais, professores e alunos, patrões e empregados,

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 142


entre aquele que sabe e aquele que não sabe, dentre outras. Estas
relações estão presentes onde existe vida social e coletiva.
Na vida cotidiana no interior da sociedade, “[...] há milhares
e milhares de relações de poder e, por conseguinte, relações de
forças de pequenos enfrentamentos, microlutas, de algum modo”
(FOUCAULT, 2003, p.231). O que demonstra as diversas formas
de resistências, e assim reversíveis. Não há relações de poder que
sejam completamente triunfantes.
Foucault (2003) aborda a questão do sujeito sem representar
uma teoria nem uma metodologia. Tem como objetivo criar uma
história dos diferentes modos pelos quais os seres humanos
tornaram-se sujeitos. Apresenta, então, os três modos de
objetivação que transformam os seres humanos como sujeitos:
modo de investigação, através da ciência; modo do sujeito
produtivo, através do trabalho; e o modo de estar vivo, através
da história natural ou na biologia.
Na questão do sujeito dividido em relação aos outros,
Foucault (2010) chama de “práticas divisórias” e, como exemplos,
“cita o louco e o são, o doente e o sadio, os criminosos e os “bons
meninos” (FOUCAULT, 2010, p.231). O sujeito constitui o tema
geral de sua pesquisa. Foi necessário entender as dimensões de
uma definição de poder para estudar a objetivação do sujeito.
Há a necessidade de se conhecer as condições históricas da
situação presente, bem como o tipo de realidade com a qual se está
lidando. Ainda Segundo Focault, para compreender as relações,
devemos investigar as formas de resistência e as tentativas de
associá-las a estas relações.
Neste caminho, o artigo aborda a questão do poder, seus
fundamentos, por quais lógicas vão se instituindo na dinâmica das
relações entre os sujeitos na sociedade e como produzem o regime de
verdade, bem como serão pontuados os processos de subjetivação.

143 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Entendendo a questão do poder e subjetividade
A pesquisa de Foucault tem a primeira fase na arqueologia
do saber, a segunda fase se preocupa com a questão do poder
e a terceira fase passa para a questão da ética e da história das
sociedades. Seus estudos sobre o saber, o poder e o sujeito
inovaram o campo reflexivo sobre estas questões.
A questão do poder é amplamente discutida por
Foucault, mas não no seu sentido tradicional, inserido na esfera
governamental e de forma hierárquica, e sim inserido em todas
as esferas da sociedade, nas relações sociais, nos segmentos
sociais, enfim na vida cotidiana numa realidade dinâmica.
O poder foi estudado e apresentado de maneira que
“(...). Ninguém se preocupava com a forma como ele se exercia
concretamente e em detalhe, com sua especificidade, sua técnica
e suas táticas” (FOUCAULT, 2005, p. 6), não apenas como
repressor, soberano, aparelho do Estado, mas também na forma
de produção, criador de verdades, de saberes e disciplina no
sujeito. Presente na vida social e coletiva, agindo sobre o outro e
na relação com o outro, o poder é exercido.
Esta perspectiva de poder iniciada por Foucault é bastante
consistente para pensar e refletir sobre essa questão nos dias de
hoje voltado para a sociedade contemporânea. O poder não é
uma coisa, não é um objeto fixo, ele é um exercício, um conjunto
de dispositivos em constante engrenagem de funcionamento,
que circula e funciona em rede. Não tem uma sede fixa.
Para Foucault (2010) o poder se constitui de dispositivos de
sujeição, os quais são, ao mesmo tempo, disposições de produção
dos indivíduos. Somos fabricados pelo poder, através da família,
escola, igreja, instituição, locais de convivência e de produção de
subjetivação na sujeição, como o controle, domestificação, fabricação
de corpos, e atos, existindo enquanto práticas na realidade da vida.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 144


O ser humano passou a pertencer à lógica de classificação como,
por exemplo, na idade: infância, adolescência, juventude e idoso,
e, em diversas formas é esquadrinhado e dividido, criando saberes
que possibilitam o embasamento para a divisão de subjetividade.
“Daí a necessidade de um poder politico capaz de esquadrinhar...”
(FOUCAULT, 2005, p.86), e assim por definirem padrões.
Portanto, entende-se que a produção de subjetividade não
é algo natural, mas uma produção que se dá a partir da relação
com outro, com o acontecimento, com a descoberta, ou seja, que
produz efeitos nos corpos e nas formas de viver. Logo, “(...) a
subjetividade é essencialmente fabricada e modelada no registro
do social” (GUATTARI & ROLNIK, 1996, p. 31).
Desse modo, o poder deve ser pensado com seus fundamentos
econômicos e de classes, e entendido como um conjunto de
mecanismos que produzem os indivíduos que vivem na sociedade,
sem uma coordenação única. Assim, agimos na ilusão de que
somos livres e com opiniões próprias, mas, na verdade, agimos
em conformidade naquilo que o poder produz em nós.
O sujeito atravessa toda a obra de Foucault: Sujeito e o
Saber, Sujeito e o poder, Sujeito e Sujeito de si próprio, ou seja,
consigo mesmo. Com entrelaçamento dos efeitos do saber, do
poder e da verdade fazendo parte da construção histórica. Não
sendo algo dado, tornando-se sujeito nas relações de poder,
atuando como sujeito de conhecimento, sujeito de ações sobre os
outros e sujeito de ações sobre si.
Diante do estudo histórico das obras de Foucault sobre
maneiras de existir do sujeito, obteve-se uma compreensão de
como os modos de subjetivação são constituídos e disseminados,
percebendo-se que os modos de subjetivação passam por várias
transformações no caminhar da história.
Ao compreender que o processo de subjetivação nos atinge,
que estes modos de subjetivação estão vinculados aos sistemas
vigentes, e que o conhecimento nos permite uma reflexão sobre as

145 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


práticas antes naturalizadas e depois compreendidas, que são produzidas
intencionalmente e são fundamentais para a sujeição, relacionamos esta
constatação com o apontado por Guatarri e Rolnik (1996), a seguir:

Tudo o que é produzido pela subjetivação capitalística – tudo o que


nos chega pela linguagem, pela família, e pelos equipamentos que
nos rodeiam – não é apenas uma questão de ideia, não é apenas uma
transmissão de significações por meio de enunciados significantes.
Tampouco se reduz a modelos de identidade, ou a identificações
com polos maternos, paternos, etc. Trata-se de sistemas de conexão
direta entre as grandes máquinas produtivas, as grandes máquinas
de controle social e as instâncias psíquicas que definem a maneira de
perceber o mundo. (GUATARRI E ROLNIK, 1996, p.27).

Evidencia-se ser necessário conhecer a sociedade na qual se


vive fazer um diagnóstico, refletir sobre o momento presente e,
assim, decidir quais as posições a serem tomadas, não existindo
uma linha de conduta única. Dessa forma, geralmente, estas
decisões estão entre a submissão ou as práticas de transgressões.
As práticas de transgressões podem ser pontuais, para além
de inovadoras, de brechas, de resistência à denominação daquilo
que é imposto pelo sistema e pelo mercado. Na realidade social
existem diversas relações de poder e, consequentemente, várias
relações de forças de pequenos enfrentamentos, microlutas que,
de algum modo, representam resistência.
Neste sentido, Foucault (2005) apresenta uma nova interpretação
em relação aos marxistas, no sentido de rebelião, revolução e através
deste movimento alcançar a transformação radical de estrutura
política, econômica e social. O autor apresenta um caráter historicista,
isto é, a história do presente torna possível que algo aconteça através
dos modos de comportamentos, mas não os determina. Considera os
acontecimentos em seu tempo, história e espaço:

Não se trata de colocar tudo num certo plano, que seria o do acontecimento, mas
de considerar que existe todo um escalonamento de tipos de acontecimentos
diferentes que não têm o mesmo alcance, a mesma amplitude cronológica,
nem a mesma capacidade de produzir efeitos. (FOUCAULT, 2005, p.5)

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 146


Quanto ao papel do intelectual, Foucault (2005) chama de
intelectual universal aquele que representa a consciência de todos,
dono da verdade e fala por todos. O intelectual específico é aquele
que trata de um assunto respaldado no saber cientifico, sendo
garantida a última palavra sobre o saber que domina. Considera
assim, o especialista com vivencias em lutas reais e cotidianas.
Vale ressaltar que Foucault, em seus trabalhos, começou
a realizar meios, através das práticas ricas no nosso cotidiano
profissional e que se realimentam neste processo de teoria e prática,
para que as pessoas passassem a falar por si, como por exemplo, o
preso falar da prisão, o doente do hospital e assim por diante.
Ressalta, ainda, que os próprios intelectuais fazem parte desse
sistema, e a ideia de que eles são agentes da consciência e do discurso
também faz parte do sistema. Sua posição no sistema de produção
capitalista, na ideologia que é produzida ou imposta, e em outro
lugar no seu próprio discurso, revelava uma determinada verdade
que incomodava. Havia então o intelectual maldito e o socialista:

O papel do intelectual não é mais o de se colocar um pouco na frente


ou um pouco de lado para dizer a muda verdade de todos; é antes o
de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo
tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber, da “verdade”, da
“consciência”, do discurso”. (FOUCAULT, 2005, p.71).

Foucault, então, desafia formas de atuação nos espaços nos


quais, de alguma forma, o poder é exercido pelo intelectual, na
busca de um novo caminhar, muitas vezes, na decisão de cada
momento, frente à situação de hegemonia do sistema vigente,
que por vezes é produzida de forma banal, prática e naturalizada.
Propõe o autor que se possa pensar e enfrentar de forma crítica
a organização do trabalho, com atuação diferenciada da lógica
instituída, através das brechas, para além do que nos é submetido.

147 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Breves reflexões das práticas socioeducativas
Neste artigo, ressalto a questão do poder abordado por
Foucault em suas pesquisas, obras e, com os diferentes modos
nos quais as relações de poder se produzem e como seus efeitos
atuam na produção de verdade. Pensar na produção da verdade
torna-se necessária para que, ainda de forma tímida, seja
apresentada e compreendida a produção de subjetividade neste
contexto do sistema socioeducativo.
Cabe destacar a importância de se observar com atenção,
na prática, como estas relações de poder atuam sem aparecerem
de forma clara como “poder” e de forma silenciosa movimentam
a dinâmica social nas relações de diversos segmentos, como a
política, a família, a igreja, a justiça e a sociedade como um todo.
Segundo Foucault (2005), talvez estas relações de poder
estejam entre as coisas mais escondidas no social, por isso seu
problema sempre foram os efeitos de poder e produção de verdade.
A história sempre apontou a crítica da sociedade através do
caráter econômico e não se aprofundou nas questões das relações
de poder, as quais possuem elementos que podem anteceder
e constituir a questão econômica que, de forma mais ampla e
subjetiva, faz parte deste cenário.
Nesse viés, para Foucault, o poder não existe, o que
existe são as relações de poder. Ele acredita no poder como um
instrumento de diálogo entre os indivíduos de uma sociedade. O
poder é uma realidade dinâmica que proporciona ao ser humano
manifestar sua liberdade.
Neste contexto, a ideia que Foucault apresenta é a de fugir
da análise e, através do acontecimento, identificar como as
condições históricas produzem verdade e criam lógicas que vão
se instituindo na sociedade. O capital opera por certa lógica e
esta lógica é produzida nas relações existentes no cotidiano.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 148


Foucault relacionou seus estudos às instituições (quartéis, fábricas,
prisões, hospitais psiquiátricos e escolas), através de comportamentos
humanos estabelecidos e homogêneos, proporcionando reflexões
acerca dos sistemas em seus interiores instituídos.
Várias são as razões pelas quais estas questões remetem à
reflexão das práticas no atendimento socioeducativo, destinados
aos adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas,
após apreensão por cometimento de ato infracional. Nestes
casos, é identificado claramente o corpo sendo utilizado como
estratégia de controle, por uma lógica e ordem de produção que
requer uma padronização sobre estes adolescentes (Foucault,
2000), com o objetivo da ação disciplinadora na manutenção e
garantia da ordem na operacionalização das ações cotidianas.
Segundo Foucault (2005 e 2010), as tecnologias de poder
funcionam também como produtoras de subjetividade e representam
características que podem ser utilizadas como parte da construção
histórica de uma visão mecanicista e reducionista da sociedade.
Vale ressaltar que legislações não faltam para garantir a
efetividade de direitos da adolescência em sistemas de privação
e restrição de liberdade, como a Constituição da República
Federativa, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, o
Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE,
dentre outros. As políticas estão em processo de articulação e
existem movimentos direcionados, dos operadores e executores
deste trabalho, para a construção de novas práticas com o
compromisso éticopolitico dos diversos profissionais que atuam
nesta ação de fundamental importância na sociedade, ao tratar
de adolescentes em processo de formação e desenvolvimento.
Segundo (FOUCAULT, 2003, p.232) “[...], as relações de
poder são relações de força, enfrentamentos, portanto, sempre
reversíveis”. No entanto, as verdades produzidas na sociedade
e representadas nestas unidades de atendimento socioeducativo
refletem o quanto as relações de poder produzem verdades
arraigadas por décadas e vem dificultando o processo de
mudança de cultura nesta política, que exige novas práticas.

149 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Vale, nesse sentido, uma última citação de Foucault:

Não se trata de libertar a verdade de todo sistema de poder – o que


seria quimérico na medida em que a própria verdade é poder – mais
de desvincular o poder da verdade das formas de hegemonia (sociais,
econômicas, culturais) no interior das quais ela funciona no momento.
(FOUCAULT, 2005, p. 14)

Foucault ainda levanta a questão de que esse regime de


verdade não é apenas ideológico ou superestrutural, mas foi
uma condição de formação e desenvolvimento do capitalismo;
e que, facilmente, hoje, entendemos e compreendemos a sua
manutenção na sociedade contemporânea.
O grande desafio é o de desvincular o poder da verdade das
formas de hegemonia já cristalizadas e produzidas da maneira
tão natural com que funciona no momento, e problematizar as
práticas existentes nos dias de hoje.
Diante desta temática, vale destacar o Curso de Sexualidade
– Abordagem Interdisciplinar, o Curso de Saúde Mental,
Subjetividade e Socioeducação oferecidos na Escola de Gestão
Socioeducativa Professor Paulo Freire – ESGSE, do Departamento
Geral de Ações Socioeducativa – DEGASE/RJ e o:

Curso de Identidades e Juventudes – Ementa: A proposta transita por


dois temas fundamentais que atravessam as relações entre estes dois
públicos, os profissionais e os adolescentes e jovens, ou seja, juventudes
e diferenças. Os dois temas escritos no plural já sinalizam que a
proposta parte do pressupôs que estes profissionais lidam com diversas
juventudes, com trajetórias bem distintas, porém com similitudes quanto
a determinados contextos de vida. Com isso pretende-se debater a
experiência de ser jovem a partir da ótica da diferença, considerando as
múltiplas identidades que perpassam esta condição, como a questão da
territorialidade e das relações étnico-raciais (RELATÓRIO DAS AÇÕES
DE FORMAÇÃO INICIAL E CONTINUADA DA ESGSE DE 2015, p.51).

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 150


Os cursos citados demonstram uma maior aproximação
das universidades, uma busca de conhecimentos e encontros
com possibilidades da formação e ampliação de grupos de
trabalho, além da participação das diversas áreas de atuação
junto aos adolescentes na promoção de diálogos sobre as diversas
temáticas, com a perspectiva de iniciativas diferenciadas das
formas de intervenções no interior do sistema socioeducativo.
Enfim, este estudo proporcionou conhecimentos novos,
reflexões valiosas, enriquecedoras, e, também, uma constatação
de que, ao mesmo tempo, a descoberta de desconexão e o
surgimento de dúvidas conseguem promover o movimento de
autorreflexão, de se questionar o tempo todo.
Assim, novos saberes produzem a sensação de que tudo
em torno está embaçado e embaralhado, provocando reflexões
para novas ações. Questões estas que são de grande interesse e
importância para nossas vidas e, principalmente, para as vidas
daqueles que de alguma maneira poderão contribuir para a
construção de práticas diferentes e transformadoras.
Contudo, com a necessidade de estudo permanente e o
aprofundamento das temáticas e os elementos que as constituem,
para que sempre se renovem e se abram novos caminhos neste
processo de aprendizagem e reflexão sobre as práticas cotidianas.

151 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei Federal nº


8.069, de 13 de julho de 1990.

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Lei Federal nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012.

GUATARRI, Félix e ROLNIK, Suely. Micropolitica. Cartografias


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FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Tradução


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_________, M. Poder e Saber In M. Barros de Motta (Org.),


Estratégias, Poder-Saber. Ditos e Escritos IV, (PP.223-240) Rio de
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Michel Foucault; uma trajetória filosófica; para além do
estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro, Forense
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_________, M. Microfísica do Poder. Verdade e Poder. Rio de


Janeiro: Edições Graal, 2005.

DEGASE, Relatório das Ações de Formação Inicial e Continuada


da ESGSE Professor Paulo Freire, 2015. Rio de Janeiro.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 152


Transitando entre territórios: Modos de Subjetivação
e relações de Gênero no contexto Socioeducativo

Carolina Soares da Rosa1


Juliana Damiana dos Santos Silva2
Karoline Baptista Peres3
Thiago Melicio 4

Resumo
O trabalho a seguir pretende analisar a experiência
cotidiana de adolescentes em conflito com a lei no estado do
Rio de Janeiro, na unidade feminina do Departamento Geral de
Ações Socioeducativas. Através da cartografia psicossocial e de
encontros realizados na instituição, propomos abordar temáticas
que emergiram do discurso das adolescentes como gênero e
iniciação ao tráfico.

Palavras-Chave: Sistema Socioeducativo, Relações de


Gênero, Ato Infracional, Território Existencial, DEGASE.

Introdução
O presente trabalho tem como objetivo discutir e colocar em
análise questões emergentes ao longo do trabalho de campo que
está sendo realizado na unidade feminina do Departamento Geral
de Ações Socioeducativas (DEGASE), denominada Professor
Antonio Carlos Gomes da Costa (PACGC), no Rio de Janeiro.
O intuito é problematizar temáticas levantadas pelas próprias
adolescentes em conflito com a lei, tais como gênero, sexualidade,

1 Graduanda em Psicologia, Psicologia/UERJ


2 Graduanda em Psicologia, Psicologia/UERJ
3 Graduanda em Psicologia, Psicologia/UERJ
4 Doutor em Psicologia, Professor Adjunto em Psicologia/UERJ

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 154


tráfico, entre outros, observando suas transversalidades com o
sistema socioeducativo.
Nesse sentido, a pesquisa debruça-se em material produzido
por encontros semanais, ocorridos desde novembro de 2015, entre
um grupo de estudantes de psicologia, componentes de equipe
de supervisão de estágio em psicologia da UERJ e um grupo de
cerca de 8 (oito) adolescentes internas do DEGASE, com duração
de 2 horas. Em função da grande rotatividade e disponibilidade,
já que participam de outras atividades da unidade, o grupo de
adolescentes é flutuante, variando seus membros. Os encontros,
por sua vez, possuem dinâmica constantemente reorganizada,
tendo intenção de uma escuta atenciosa, troca e reflexão sobre os
mais diversos modos de existência e suas potencialidades.
A metodologia orientadora da pesquisa é a cartografia
psicossocial bem como o referencial teórico da produção de
subjetividade, pautada, entre outros, nas discussões promovidas
por Kastrup, Passos e Escóssia (2009). Assim, segundo os autores,
mais do que uma metodologia tradicional, que estabelece
procedimentos específicos a serem realizados, a cartografia refere-
se a uma postura epistemológica de produção de conhecimento,
que não possui caminhos pré-determinados e que, por isso, inicia
seu campo sem saber o resultado que irá alcançar, debruçada em
um processo em constante movimento, tendo como objetivo a
ruptura com o comum e o natural.
Kastrup e Passos (2013) afirmam que a participação
dos sujeitos envolvidos na pesquisa cartográfica se dá de
forma a fazer valer os protagonismos do campo e a inclusão
ativa no processo de produção de conhecimento, gerando
uma intervenção na realidade, já que provoca um escape
aos modos de organização do conhecimento e às instituições
marcadas pela hierarquia do corporativismo dos iguais. Assim,
há uma mudança da posição tradicionalmente destinada ao
pesquisador, que sai do lugar interpretativo da realidade que
está sendo estudada, do ponto de vista da terceira pessoa, e
passa a ocupar um lugar de quem se interessa, compartilha e se
implica, coletivamente, na produção de dados.
Durante a pesquisa, pautada na postura cartográfica,
procura-se construir uma prática contrária às crenças positivistas
e verticais, criticando as verdades absolutas e promovendo
questionamentos acerca do que está sendo realizado, sem assumir
o papel de técnico, especialista que irá solucionar os problemas
imediatos. O intuito é colocar em análise o lugar que a pesquisa
ocupa na unidade e, consequentemente, nos encontros com as
adolescentes, bem como quais articulações tornam-se possíveis
entre os temas levantados e os modos de viver, imbricados em
pessoas que vivenciam o sistema socioeducativo.

Entre homens e mulheres: transitando pelas formas


de sociabilidade
Ao longo dos encontros, as adolescentes traziam diferentes
falas sobre suas experiências, tanto relacionadas ao momento
anterior, como diretamente envolvidos com o cotidiano do
DEGASE. Uma das questões repetidamente tratada por elas
foi o tema do poder masculino, do exercício da masculinidade
e dos espaços a ela conferidos. Esse processo aparece tanto nos
relatos de violência que sofreram por homens (namorados,
familiares, colegas e outros), quanto nos relatos em que as
meninas “assumiam o papel do homem”, para poder ter os
poderes e privilégios historicamente e culturalmente instituídos
como deles. Assim, chama a atenção em suas histórias de vida,
comportamentos que seguem preceitos socialmente conferidos,
quase que exclusivamente, ao sexo masculino, como ter relações
com várias mulheres, mas exigir exclusividade de todas elas.
Almeida (1996) dá destaque à chamada “masculinidade
hegemônica”, que para ele é um consenso vivido, que funciona
como modelo cultural ideal que, mesmo se não for conquistado
por nenhum homem, exerce sobre eles e sobre as mulheres um
efeito controlador, uma naturalização e uma necessidade de
normatização. Cria-se um campo prático e discursivo em que,
para o autor, observa-se a ocupação de espaços privilegiados de

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 156


poder relacionados ao masculino, que controlaria os recursos, ao
passo que implica na subordinação dos espaços ocupados pelo
feminino, a partir da lógica de controle e naturalização.
Guacira Louro (2008), autora que discute sexualidade e
gênero, defende a ideia de que ser homem e ser mulher não é
algo dado naturalmente, mas sim proveniente de construção que
ocorre de maneira continuada ao longo da vida. Nesse processo
constitutivo, faz-se necessário destacar instâncias importantes,
tais como, a família, a escola, a igreja, as instituições legais e
médicas. É importante considerar que as relações sociais se dão
a partir da lógica sexo/gênero, onde a sexualidade biológica é
transformada, em seus sentidos e modelos complementares,
pela atividade humana, criando hierarquias que promovem
a continuação da diferença entre necessidade e capacidade
humana de organizar progressivamente os mundos sexuais reais
ou imaginários.

A construção dos gêneros e das sexualidades dá-se através de inúmeras


aprendizagens e práticas, insinua-se nas mais distintas situações, é
empreendida de modo explícito ou dissimulado por um conjunto
inesgotável de instâncias sociais e culturais. É um processo minucioso,
sutil, sempre inacabado. Família, escola, igreja, instituições legais e
médicas mantêm-se, por certo, como instâncias importantes nesse
processo constitutivo (LOURO, p. 18, 2008).

Judith Butler (1990), na obra Problemas de Gênero:


Feminismo e subversão da identidade, considera que o gênero
possui intersecções com modalidades raciais, classistas, étnicas,
sexuais e regionais. As figuras homem e mulher vão além da
condição de ser macho e fêmea, sendo efeitos de construções
sociais e culturais de grande complexidade, modelados por
regras e códigos. Desse modo, concebemos a variedade do que
é ser mulher em cada contexto, destacando-se um descompasso
entre padrões culturais tradicionais e a regras de postulação da
igualdade presentes no contexto contemporâneo.
Assim, quando nos debruçamos sobre o território feminino
do sistema socioeducativo e vemos circular junto às adolescentes
falas sobre suas imersões em atividades ilegais, observamos, por
vezes, discursos que tratam da participação ativa do homem na
iniciação delas nos atos infracionais, principalmente no tráfico de
drogas. É comum ouvir quando relatam os casos em que foram
apreendidas pelo sistema jurídico socioeducativo, situações
que apontem para a presença masculina, como o transporte de
drogas para namorado, armazenamento de entorpecentes em
casa para um amigo, familiar ou parceiro, apreensão pela polícia
por simplesmente estarem acompanhando o companheiro,
entre outras. Entretanto, cabe ressaltar que, mesmo aparecendo
em vários relatos, esta não é o processo totalizante dos casos.
Há também os contextos em que as adolescentes são usuárias
de drogas e, como dito em um dos encontros, “estava no lugar
errado e na hora errada” (M. 06/05/2016), assim como meninas
que ingressam no trafico de forma espontânea.
No âmbito da problematização de territórios femininos em
contextos ilegais, Zaluar (1993) discute que a presença da mulher
envolvida em atividades do tráfico está intimamente ligada às
suas relações afetivas, dinâmica também observada no sistema
socioeducativo. Barcinski (2009) ainda ressalta o fato de que muitas
mulheres ligadas não apenas à esfera do tráfico, mas em atividades
relacionadas a crimes no geral, costumam reproduzir estereótipos
condicionados ao que é o feminino, o relacionado à necessidade de
gerir o cuidado. Muitas delas procuram proteger seus relacionamentos
afetivos e pessoais, ingressando ao tráfico em razão da relação
amorosa ou até pela necessidade de sustentar os filhos.

Foi por tráfico, na praia. Estava eu e meu namorado quando a polícia


chegou. Levaram nós dois. Na hora de assumir a droga falei que era
toda minha, que ele só tinha parado para me pedir uma informação.
Ele foi liberado e vim parar aqui. (Entrevistada L., PACGC, 11/12/15).
Ele me ligou uns dois dias depois e nisso ele me ameaçou, dizendo que
eu tinha que fazer um favor pra ele, pois se eu não fizesse ele ia matar
minha família. E aí eu parei pra pensar: ‘e agora, o que eu vou fazer?’.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 158


Eu não tinha outra solução. Eu tive que fazer. Foi aí que ele me ligou
no outro dia e falou o lugar e a hora e o dia para me pegar para fazer o
favor pra ele(...) Aí que ele me disse dentro do carro que era pra mim
vir pra cidade com ele para transportar droga pra ele (...) E foi aí que
tudo pra mim acabou. (Entrevistada A., PACGC, 27/11/15)

Nesse sentido, torna-se necessário lançarmos um olhar


para o grupo de adolescentes com o qual estamos interagindo.
Primeiramente, o trabalho procura se pautar na ideia de Butler
(1990) de não universalizar o ser mulher, bem como não
universalizar o que é ser adolescente. A forma com que elas se
expressam ao se relacionarem com essas figuras masculinas estará
inevitavelmente sustentada pelos elementos de gênero, de classe
e cor já mencionadas. Incluir os eixos que marcam a realidade
das adolescentes é entender como se compõem suas identidades
enquanto futuras mulheres e como são construídas suas posições
sociais (BARCINSKI, 2009). Em nossa pesquisa podemos
constatar que o grupo de internas no DEGASE é em grande
parte composto por adolescentes negras, de classe econômica
baixa. Esses dados são marcadores para se pensar a dinâmica das
experiências que podem vir a desenvolver. Um relacionamento
social e afetivo para a uma adolescente negra e periférica toma
contornos diferentes se comparado ao relacionamento de
adolescente branca, classe média, por exemplo.
O peso da discriminação racial vivenciado pelo negro se
agrava nitidamente quando se tratam de corpos femininos
negros, que, na base da pirâmide social, vivem sob a égide do
patriarcado, tendo que lidar desde a inferiorização da sua estética,
passando pela objetificação sexual, até o preterimento amoroso.
Analisando o passado histórico de exploração e experiências
vividas pelo povo negro absorvido por suas gerações, Hooks
(1995) aponta os entraves que não impossibilitam, mas
dificultam a forma como o negro vivencia seus relacionamentos,
as distorções que essas relações podem ter causado quando se
trata de expressar o amor. Os negros, tanto do gênero masculino

159 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


como feminino, compartilham desse processo discriminatório.
Ainda que tenham vivido de formas diferentes, criaram defesas
e vulnerabilidades comuns entre eles, diferentemente de homens
e mulheres brancas (LORDE, 1984). Portanto, enxergar as forças
que agenciam o relacionamento de uma adolescente negra no
tráfico nos convoca à análise de sua fala e elementos da sua
experiência que não podem ser vistos isoladamente.

Retornando o campo do DEGASE, torna-se importante


reconhecer que para além das hierarquias do tráfico, existem
relações de poder que perpassam papéis de gênero historicamente
e socialmente construído que, como mencionamos anteriormente,
delineia as relações afetivas entre homem e mulher, ou entre as
adolescentes e seus parceiros. Aliado a isso, observa-se que a
participação feminina no tráfico existe, mas ainda é uma exceção,
enquanto que a regra é uma prática reconhecidamente masculina.
Além disso, essa participação é condicionada ao protagonismo do
homem e subordinada ao homem, onde dificilmente elas teriam
possibilidades de chegar a posições de chefia (BARCINSKI, 2012).

T., participante dos encontros, conta que a maioria começa


como “fogueteiro”, posição de primeiro escalão no tráfico. Ser
fogueteiro consiste em avisar aos traficantes quando a polícia
chega à comunidade, soltando fogos de artifício para dar o alerta.
Conforme relato, ela recebia cento e cinquenta reais do tráfico
por semana para desempenhar essa função, para a qual ela pensa
em retornar. Outra participante, R., relata que é comum “estar na
atividade” para cuidado de um homem, mencionando a vez em
que ela precisou ficar vigiando a frente da casa de um traficante
para ele dormir, pronta para acordá-lo caso a polícia chegasse.

Apesar dessas adolescentes e mulheres ainda não


desempenharem personagens principais na esfera do tráfico,
frente às outras adolescentes e a sua própria comunidade, elas
adquirirem um status de poder e visibilidade (BARCINSKI,

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 160


2012). É notável a diferenciação hierárquica feita pelas próprias
adolescentes quando algumas delas cumprem medida por roubo,
por exemplo. Geralmente as oriundas do tráfico demonstram
um comportamento de superioridade em relação às demais,
conforme comentário: “Nós todas estamos por tráfico (se
referindo ao grupo que estava no encontro) (...) Não entendo essas
garotas, que vem pra cá porque roubou cordão, celular. Fica aqui
dentro esse tempo todo por causa de um cordão” (Entrevistada
E., PACGC, 19/02/16). É nesse contexto que Barcinski (2012)
aponta a atividade do tráfico também como uma possibilidade
para essas adolescentes e mulheres resistirem a uma série de
invisibilidades sofridas na sociedade em que vivem.

Uma pausa conclusiva em um processo em construção

A experiência com as internas do DEGASE tem


proporcionado intensas trocas. Diversas questões permanecem
em aberto e estamos, a todo momento, colocando em análise,
juntamente com elas, os discursos e as interações que aparecem,
assim como o lugar que ocupamos neste território. Apareceu de
forma persistente em todos os encontros o tema da sexualidade e
todas as suas complexidades, tais como a questão da hierarquia
imposta entre os homens e as mulheres no momento em que se
fala de tráfico, por exemplo, as diversas formas de relacionamento
que se constituem no cenário intramuros e a problemática de
gênero enquanto uma construção permanente e contextual.

Adentrar na instituição e participar desse processo


juntamente com elas nos abriu uma possibilidade de afetar e
ser afetadas por cada historia. Considerando a singularidade da
trajetória vivida por cada uma, nos aproximamos de um campo de
sensibilização em que é possível acompanhar parte das paisagens
psicossociais, contornadas por esses corpos femininos em
privação de liberdade no sistema socioeducativo. Nesse período,
pudemos observar o quanto as práticas no DEGASE agenciam
realidades tanto de lógicas específicas ao espaço intramuros,
como em alguns dos relacionamentos entre as adolescentes, como
de lógicas que fazem eco dos moldes sociais e culturais vividos
extramuros. A pesquisa prossegue em andamento, apostando nos
desdobramentos que ainda estão por vir. Isso faz parte de utilizar
a cartografia como metodologia: sabemos o ponto de partida, mas
nunca sabemos aonde iremos chegar.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 162


REFERÊNCIAS

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do Sul de Portugal. Anuário Antropológico. v. 95, p. 161-19, 1996.

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existencial. Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção
e produção de subjetividade. Porto Alegra: Sulina, 2009.

BARCINSKI, M. Expressões da homossexualidade feminina no


encarceramento: o significado de se “transformar em homem”
na prisão. Psico-USF. Bragança Paulista. v. 17, n.3, p. 437-446,
set/dez, 2012.

BARCINSKI, M. Centralidade de Gênero no Processo de


Construção da Identidade de Mulheres Envolvidas na Rede do
Tráfico de Drogas. Revista Ciência & saúde coletiva. Vol.14
No.5. Rio de Janeiro, 2009.

BARCINSKI, M. Mulheres no tráfico de drogas: a criminalidade


como estratégia de saída da invisibilidade social feminina.
Contextos Clínicos. Vol. 1 No. 5. Porto Alegre: Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2012.

BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da


identidade. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1990.

HOOKS, B. Vivendo de Amor. In: Werneck, J. O livro da Saúde


das Mulheres: Nossos Passos Vêm de Longe. 2ª Edição. Rio de
Janeiro, 1995.

163 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


KASTRUP, V e PASSOS, E. Cartografar é traçar um plano comum.
Fractal, Rev.Psicol. v. 25 - nº 2, p. 263-280, Maio/Ago, 2013.

LORDE, A. Age, Race, Class and Sex: Women redefining


difference. Extracttaken for Sister Outsider. Berkeley, CA, 1984.

LOURO, G. Gênero e Sexualidade: Pedagogias Contemporâneas.


Pro-Posições. v. 19, n.2 (56), p. 17-23, 2008.

PASSOS, E; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. Pistas do método da


cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade.
Porto Alegra: Sulina, 2009.

SCOTT, J. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”.


Educação e Realidade. Porto Alegre, n. 16 (2), p. 5-22, jul/dez, 1990.

ZALUAR, A. Mulher de Bandido: Crônica de uma Cidade Menos


Musical. Estudos Feministas. No. 1, p.135-142, 1993.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 164


Gênero e sexualidade: o que a socioeducação tem a
ver com isso?

Jimena de Garay Hernandez1


Gabriela Salomão Alves Pinho2
Luisa Bertrami D’Angelo3
Anna Paula Uziel 4

Resumo
Gênero e sexualidade atravessam e constituem nosso
cotidiano em seus mais diversos aspectos. A sexualidade coloca-se
enquanto importante dispositivo na construção de subjetividades,
envolvendo uma série de saberes, poderes e forças que engendram
e são engendrados por práticas específicas. Para compreender as
íntimas conexões entre mudanças e permanências relacionadas
à sexualidade dos/as jovens, sugerimos aprofundar a discussão
incorporando a noção de gênero, tão cara às Ciências Sociais nas
últimas décadas. Este texto relata e discute as diversas práticas
que atravessam o cotidiano da socioeducação, no que tange
ao gênero e à sexualidade, tais como visita familiar, relações
afetivas e/ou sexuais entre internos/as, vestimenta, fotografias,
refeições, vigilância, entre outras.

Palavras-chave: gênero; sexualidade; socioeducação;


juventude

1 Doutoranda em Psicologia Social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.


2 Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-RJ). Professora, pesquisadora e extensionista do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro.
3 Mestranda em Psicologia Social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro
4 Professora associada do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro e coordenadora do Laboratório Integrado em Diversidade Sexual e de Gênero,
Políticas e Direitos (LIDIS/UERJ).

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 166


Tradicionalmente os estudos sobre sexualidade e
juventude 5estão focados em dois temas: gravidez e prevenção
de DST/AIDS. A sexualidade das/os jovens, neste caso, torna-se
praticamente reduzida a riscos, intimamente ligada ao processo
de reprodução, restrita à penetração e de cunho organicista.
A associação dominante e às vezes exclusiva entre
sexualidade, gravidez e prevenção de doenças sexualmente
transmissíveis limita ou escamoteia a pluralidade vivenciada da
sexualidade por eles/as na atualidade. A sexualidade coloca-se
enquanto importante dispositivo na construção de subjetividades,
envolvendo uma série de saberes, poderes e forças que engendram
e são engendrados por práticas específicas (Foucault, 1988).
Para compreender as íntimas conexões entre mudanças
e permanências relacionadas à sexualidade dos/as jovens,
sugerimos aprofundar a discussão incorporando a noção de
gênero, tão cara às Ciências Sociais nas últimas décadas, à medida
que insere neste contexto a perspectiva da desigualdade, seja ela
construída em torno do sexo e do gênero, da classe social, da cor
da pele, da orientação sexual ou da identidade de gênero.
Diante dos efeitos que as pressões de setores religiosos
têm produzido na limitação das discussões sobre sexualidade,
gênero, orientação sexual e direitos sexuais e reprodutivos,
sobretudo nas escolas, parece relevante apostar em discussões

5 Mesmo entendendo a importância da instauração do conceito de “adolescente”


no sistema socioeducativo, em contraponto aos termos usados para se referir aos
sujeitos que são atendidos por este – sobretudo o de “menor” –, gostaríamos de
aproveitar este espaço e problematizar o conceito de “adolescente”, por nos parecer
intimamente atrelado à perspectiva desenvolvimentista que universaliza e retira a
potência dos sujeitos, ao ditar as características consideradas inerentes a essa etapa da
vida (COIMBRA, BOCCO e DO NASCIMENTO, 2005). Como estas autoras, parece-
nos mais interessante o uso do termo juventude, e inclusive juventudes, que, mesmo
não resolvendo o impasse da cristalização de uma “fase da vida”, questão também
apontada pelas autoras, parece oferecer um terreno mais aberto ao entendimento
da pluralidade, diferença e desigualdade nas experiências dos sujeitos considerados
jovens. O foco, então, está no entendimento dos modos de inserção dos sujeitos em
suas condições de vida históricas e concretas, as quais, por sua vez, têm múltiplas
formas de serem apropriadas.

167 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


nos espaços onde crianças e jovens se encontram, de forma que
se continuem os esforços de relações sociais igualitárias e justas.
Daí a configuração do sistema socioeducativo como campo fértil
para a pesquisa intervenção.
Primeiramente, parece importante definir alguns conceitos
que têm orientado nosso percurso. Entendemos a sexualidade
como um modo de constituição do sujeito, já que desempenha
um papel importante nos modelos de governo de si, pois nela se
articulam as regulações de populações e as disciplinas individuais
do corpo (CHARTIER, 2002). Ao considerá-la como não natural,
pode-se extrair o seu caráter totalizador: se a sexualidade é
histórica, ela não existe a priori; ela se constrói, produzindo
sujeitos através de práticas discursivas e não discursivas, o
que possibilita considerá-la como dispositivo (FOUCAULT,
1999; DELEUZE, 1989) de sujeições e escapes, saberes, práticas
divisórias com os/as outros/as e conosco. E é através disso
que nos constituímos como sujeitos de saber, como sujeitos que
sofrem ou exercem relações de poder, como sujeitos morais.
Para Gayle Rubin (1986), todo sexo é político, no sentido de
que a sexualidade tem estado sempre marcada por conflitos de
interesse e manobras políticas. Uma sexualidade que, ao longo
da história, tem atravessado diferentes momentos de pânico
moral, bem como momentos associados ao controle de vícios,
atos, práticas e desejos.
Da mesma forma, o gênero, como aponta Joan Scott (1990),
se insere na experiência subjetiva da construção de si, mas
também se relaciona com o poder político, pois “para reivindicar
o poder político, a referência tem que parecer segura e fixa,
fora de qualquer construção humana, fazendo parte da ordem
natural ou divina” (SCOTT, 1990, p. 17). Desta forma, feminino
e masculino são entendidos como estruturas limitadas e opostas
que se articulam a partir de corpos sexuados. Esse entendimento
tem sustentado as instituições políticas que procuram impor
limites sobre a complexidade que implica a vivência humana.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 168


As práticas reguladoras atuam junto com a produção de
performatividades de gênero, entendidas como “ficções sociais
prevalentes, coativas, sedimentadas [que geram] um conjunto de
estilos corporais que aparecem como uma organização natural [...]
dos corpos em sexos, em uma relação binária e complementar”
(BENTO, 2003, apud JUNQUEIRA, 2007, p.9). Essas ficções
“consolidam e naturalizam regimes de poder convergentes de
opressão masculina e heterossexista” (BUTLER, 2003, p.59). Sobre
a suposta naturalidade do sexo, Butler é categórica ao afirmar
que, tal qual o gênero, o sexo é ele próprio produto de construção
social, uma vez que se inscreve em um corpo generificado e
discursivamente constituído (BUTLER, 2003).
Este texto pretende discutir gênero e sexualidade na
socioeducação, a partir de uma pesquisa sobre sexualidade na
contemporaneidade, que vem sendo desenvolvida em algumas
unidades do DEGASE. Em 2014, uma equipe interinstitucional,
composta por professores/as e alunos/as da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, do Instituto Federal do Rio de Janeiro, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Fundação Oswaldo
Cruz, começou uma pesquisa no Sistema Socioeducativo no
estado do Rio de Janeiro (DEGASE). Com o tema Sexualidade,
esta equipe tem procurado abordar com os meninos e as
meninas suas práticas, prazer, medos, fantasias, construção ou
desconstrução de identidades, experimentações, intervenções
corporais, estética, relação com a pornografia, iniciação sexual,
dentre outras temáticas.
O sistema socioeducativo, assim como outras instituições
que recebem jovens, precisa lidar, no cotidiano, com questões
referentes ao exercício da sexualidade e à produção do gênero,
que interpelam a todos constantemente, ainda que nem sempre
sejam reconhecidas ou nomeadas. Nesta pesquisa, buscamos
explorar a perspectiva dos diversos sujeitos que circulam
nas unidades, em especial as/os jovens, que raramente são
consultados/as no desenho de políticas dirigidas a eles/as,
e as/os funcionárias/os dos diferentes segmentos – agentes

169 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


socioeducativos/as, corpo docente das escolas, equipes técnicas,
direções, pessoal administrativo, gestão – sendo possível pensar
e conversar sobre os pontos de vista e vivências desses sujeitos.
No cotidiano e em espaços que nomeamos como cursos, a ideia é
construir, junto com estes/as profissionais, novas possibilidades
de abordar e discutir esta temática no cotidiano, levando em
conta as experiências dos/as funcionários/as do sistema como
sujeitos inseridos no dia a dia da instituição.
Ainda que não se pretenda resolver os impasses
institucionais decorrentes da dificuldade de se inserir de forma
mais presente a discussão sobre sexualidade e gênero, imagina-se
que a inserção de agentes externos como os/as pesquisadores/
as-extensionistas possa produzir novos deslocamentos e facilitar
o diálogo sobre essas questões, que têm sido mais um fator de
tensão nesses universos marcados pela violência e práticas de
confinamento e exclusão.
Ao longo de 2015 e 2016, nossa equipe de pesquisa
tem transitado por três unidades de internação do sistema
socioeducativo: o Centro de Atendimento Intensivo Belford Roxo
(CAI Baixada), o Educandário Santo Expedito (ESE) e o Centro
de Socioeducação Professor Antonio Carlos Gomes da Costa
(PACGC, unidade feminina). Neste trânsito, foram realizadas
entrevistas individuais e em grupo com as/os jovens e com as
e/os funcionárias/os, como as/os agentes socioeducativas/
os, a equipe técnica, as/os diretoras/es e coordenadoras/es,
bem como com professoras/es e equipes gestoras das escolas
municipais que funcionam dentro das unidades. Com os/as
jovens, também foram realizadas diversas atividades em grupo
usando disparadores como fotografias e materiais para desenhar,
assim como entrevistas em grupo e individuais.
No PACGC e no ESE, foram priorizadas as entrevistas
individuais e em grupo com as jovens, nos quais foram abordadas
questões relativas à iniciação sexual, vivência da sexualidade e
experiências afetivo-sexuais na unidade.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 170


Na Unidade CAI Baixada, depois dos encontros com os
jovens, foi realizado um curso de extensão – certificado pela
UERJ em parceria com a Escola de Gestão Socioeducativa
Paulo Freire (ESGSE) – com funcionárias/os dos diversos
segmentos, intitulado “Gênero e Sexualidade nos Cotidianos
da Socioeducação”, cuja proposta foi problematizar e fomentar
a reflexão dos atravessamentos das questões ligadas a gênero
e sexualidade na prática cotidiana da instituição. Vale ressaltar
que a possibilidade de abrir brechas num cotidiano marcado
pela urgência e pelo acúmulo de demandas trouxe como
resultado a circulação de ideias e a promoção do diálogo entre
colegas de trabalho que pouco se comunicavam. Perceber que a
intervenção da pesquisa produziu a desconstrução de discursos
tão cristalizados sobre o fazer cotidiano, a partir dos relatos de
experiências compartilhados por membros da equipe técnica,
agentes socioeducativos, estagiárias, coordenadores de plantão,
cozinheira entre outras/os funcionários/as, se caracterizou
como o grande ganho desses encontros.
Paralelamente, o grupo de pesquisa também foi convidado
a realizar dois cursos junto à ESGSE. O curso, realizado nos meses
de junho e julho de 2015, teve como proposta fornecer aportes
teóricometodológicos para os profissionais do Sistema, nas temáticas
da sexualidade que pudessem ser relevantes para o exercício
profissional no sistema socioeducativo, principalmente no trabalho
com os jovens. Para 2016, o curso “Gênero, violência e socioeducação”,
partindo das experiências das pessoas que transitam pelo sistema
socioeducativo, se propõe a promover debates que transformem o
cotidiano, em especial no que tange a questões de gênero e violência.
Neste percurso e nos seus múltiplos caminhos, algumas questões
permanecem pulsantes: Por que falar sobre gênero e sexualidade no
contexto socioeducativo? De que modo estas questões aparecem no
dia a dia da instituição? Como os/as jovens em cumprimento de
medida socioeducativa de internação são atravessados/as por estes
dispositivos? Estas foram algumas questões que nos impulsionaram
a pensar e escrever sobre esta temática.

171 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


A partir das diversas experiências aqui mencionadas,
ousamos afirmar que a socioeducação é atravessada pelo
gênero e sexualidade e seus atores enfrentam desafios no dia
a dia da instituição, que exige respostas neste campo. Nossas
experiências de pesquisa apontam gênero e sexualidade como
potentes categorias de análise para a compreensão da dinâmica
e da organização do sistema educativo. Além disso, o sistema
socioeducativo é parte de um sistema de garantia de direitos,
e os jovens, por sua parte, como sujeitos de direitos, gênero
e sexualidade, se colocam como pontos estratégicos para a
discussão e efetivação da garantia de direitos.
A passagem pelo sistema socioeducativo interpela de certa
forma a produção das performatividades de gênero das/os
jovens, pois a privação da liberdade implica intensas afetações
dessas performatividades de várias formas. É importante destacar
que o ingresso no sistema socioeducativo, entendido como uma
instituição com suas regras, códigos, hierarquias e significados,
compõe uma série de experiências de intersecção com outras
instituições das quais esses sujeitos fazem ou fizeram parte, tais
como escolas, famílias, abrigos, e inclusive o tráfico de drogas,
cujas facções também podem ser consideradas instituições
produtoras de subjetividades. Neste sentido, cabe uma profunda
análise de como essas instituições se relacionam, por exemplo, no
caso específico das vivências em gênero e sexualidade dos jovens.
Talvez um dos pontos em que estas questões mais se
evidenciam é a forma com que a sexualidade e o gênero mobilizam
profundamente as unidades de internação do DEGASE quando
da visita familiar, sobretudo no caso das unidades masculinas.
Um intenso labor logístico acontece nos dias de visita, exigindo
uma série de regras de conduta de cada coletivo de sujeitos. Por
questões de segurança, as/os familiares são revistadas/os em
busca de celulares, drogas, dinheiro e outros artefatos proibidos
na unidade, o que provoca momentos constrangedores para todo
mundo e conflitos entre os/as familiares e as/os agentes. Vários
jovens relatam que não gostam que as famílias – especialmente as

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 172


mulheres – os visitem, pois percebem a revista como humilhante.
Também escutamos relatos de momentos em que, por exemplo,
uma agente teve que pedir para uma mãe tirar um piercing do
clitóris, momento muito conflitante para ambas. Espera-se que
este tipo de problema seja resolvido com a entrada dos scanners
nas unidades, pondo fim ou, minimamente, diminuindo
consideravelmente a frequência da revista íntima.
Na unidade feminina, as jovens em diversos momentos
relataram seu incômodo e temor de que seus/suas companheiros/
as de fora não se configurem como aptos para a visita familiar,
o que pode ser resolvido com um requerimento específico
à justiça para este quesito – fato que muitas delas disseram
desconhecer. Cabe ressaltar que as diferentes preocupações
logísticas e de segurança das unidades masculinas e feminina
no que tange ao dia de visita, conforme exposto, diferem entre
si não só pela quantidade reduzida de meninas em comparação
aos meninos, mas também e principalmente devido a uma série
de construções acerca das masculinidades e feminilidades,
conforme discorreremos a seguir.
Em relação à vestimenta, várias exigências são feitas, com
especiais restrições para as mulheres: decotes, roupa curta,
apertada ou transparente, dentre outras características que
revelem algumas partes do corpo que são entendidas como
provocadoras de fantasias sexuais são proibidas. O motivo
outorgado pelo sistema é a segurança, a gestão dos riscos, gerados
por situações em que olhares que sugiram certa sexualização
dessas mulheres – mães, irmãs, tias, esposas, namoradas – por
parte de outros jovens ou dos agentes provoquem conflitos entre
quem lança o olhar e os jovens familiares das mulheres que são o
alvo. Sobretudo porque, em nossa sociedade, é responsabilidade
dos homens manter a honra das mulheres da sua família. Os
agentes masculinos relatam ter uma série de restrições nesses
momentos, também provindas dessa gestão de risco, tais como
não usar óculos escuros, não levantar suas camisas e inclusive
não coçar a barriga. Ou seja, nada que sugira um movimento

173 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


entendido por sexual. Os jovens, por sua vez, dependendo
da unidade, colocam duas camisas ou a colocam por cima da
bermuda, ao contrário do resto dos dias.
Neste mesmo sentido, foi-nos relatado inúmeras vezes que
os jovens têm normas muito sólidas no que tange à masturbação
– o que não impede que sejam dribladas –, normas estas que são
impostas pelo tráfico e implementadas por eles, se estendendo
ao alojamento: eles não podem quebrar – se masturbar – nem
no dia nem um dia depois da visita familiar, já que, na lógica
proposta, poderiam estar pensando em alguma das mulheres
das famílias dos outros. Tampouco podem olhar as fotos das
companheiras que os outros recebem, o que se torna complicado
na situação atual de superlotação do sistema. A justificativa é
sempre a ameaça por conta do código do tráfico, que aposta em
determinada construção da masculinidade desses jovens. No
entanto, chama atenção a dificuldade do sistema em enfrentar
esses tipos de regras, que continuam perpetuando práticas e
discursos de reificação de desigualdade e violência. Observamos
e admiramos várias conquistas que o sistema tem conseguido
em esforços pela desconstrução de práticas prejudiciais à
saúde e bem-estar psicossocial dos/as jovens, tais como a
erradicação do tabagismo, a partilha de espaços comuns entre
jovens de diferentes facções e a contínua tarefa de desmontar a
ideia do “bandido”, instaurada nos desejos e projetos de vida
dos/as jovens. No entanto, cabe pensar sobre o que torna tão
naturalizadas determinadas práticas, como as que regulam as
vestimentas das visitantes.
Outra prática de controle acontece com as cartas e fotografias
recebidas, que devem ser avaliadas pela equipe técnica, a qual faz um
filtro do que pode ou não ser entregue aos jovens, prática condenada
inclusive pelo Conselho Regional de Psicologia, considerando que
a mesma fere o Código de Ética da profissão. Cartas com conteúdo
erótico ou fotos das namoradas que “deixem ver muita pele” não
são entregues, com a justificativa de risco de violência entre eles, o
que pode provocar mortes, como relatam já ter ocorrido.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 174


Outra forma em que se reafirmam essas normas de gênero
e sexualidade são as limitações colocadas para as técnicas e as
agentes femininas. Tratadas de “dona” pelos jovens e, como
algumas delas percebem, constantemente postas no lugar de
“mães”, uma série de exigências e vigilâncias parecem negar
qualquer tipo de expressão da sexualidade dessas sujeitas, e
muito menos qualquer tipo de insinuação de que possa existir
uma relação, mesmo que no imaginário, entre elas e os jovens –
além de pontuar este lugar complexo habitado por elas, em que
são, ao mesmo tempo, vigias e cuidadoras dos jovens. Destarte,
a circulação delas nas unidades masculinas é bastante restrita
em horários e espaços; as restrições da vestimenta impostas
às familiares se estendem às técnicas e a outras mulheres que
circulam nas unidades, incluindo nós, pesquisadoras, que em
várias ocasiões fomos interpeladas. Uma das justificativas dada
é que podemos, nós ou as funcionárias, provocar o interesse
sexual dos jovens, propagando um medo de que os jovens
enxerguem essas mulheres como possíveis parceiras sexuais;
certo pânico moral relativo a um potencial envolvimento sexual
com os jovens, o que justifica que o uso de palavrões ou qualquer
aproximação física sejam constantemente vigiados. Inclusive, os
jovens também têm regras que impedem esse tipo de contato,
como não trocar de roupas na frente das funcionárias, salvo
algumas exceções.
No PACGC, onde seria razoável esperar certo protagonismo
por parte das agentes femininas, visto que somente elas podem
ter contato físico com as jovens, bem como só elas podem
retirá-las dos alojamentos, o que observamos é que elas não só
se encontram em número reduzido, sendo maior o número de
agentes masculinos, como também se estabelece, entre o corpo de
agentes, uma relação em que o agente masculino tem, como uma
de suas funções, tomar conta e cuidar das agentes femininas – o
que coloca em pauta as questões de gênero. As internas tendem a
enxergar as agentes femininas como “muito mais boazinhas” do
que os agentes masculinos – de novo colocando em evidência as

175 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


produções acerca das masculinidades e feminilidades e o reforço
de masculinidades/feminilidades hegemônicas. Na relação dos
homens adultos com as meninas, percebe-se um tom jocoso nas
falas, bastante naturalizado em nossa sociedade.
O ingresso de jovens transexuais e homossexuais também
evidencia a presença das questões de gênero e sexualidade.
Ainda que pouco numeroso, este ingresso parece desestabilizar a
operacionalidade das unidades – lembrando que, na produção e
afirmação do modelo de masculinidade, a transgressão da norma
heterossexual e da identidade de gênero masculina ameaça
profundamente esse modelo. A maior parte dos jovens e, cabe
destacar, também alguns funcionários das unidades, partilha
de noções extremamente homofóbicas e transfóbicas, de cujas
expressões temos sido testemunhas ao longo da pesquisa, às
vezes com violentas reações ao tema e com o relato de práticas de
extrema violência a pessoas LGBT. O enfrentamento da questão
parece ser alocar essas pessoas no “seguro”.
No caso das mulheres transexuais, inclusive, algum avanço
tem sido feito no encaminhamento destas à unidade feminina e no
reconhecimento dos seus nomes sociais e suas performatividades
femininas – incluindo cabelo e vestimenta –, não sem provocar
desconforto e conflitos logísticos. No entanto, para quem fica nas
unidades masculinas e no caso dos jovens gays, o encontro com
os outros jovens está marcado por uma série de preconceitos,
que vão para além da separação de alojamento: recusa a usar os
mesmos talheres e copos, alegando que “a boca deles já tocou o
pênis de um homem, e de um homem gay6 “.
No entanto, mesmo negado veementemente pelos jovens,
já escutamos dos agentes responsáveis pelos alojamentos
relatos de aproximações eróticas entre aqueles, tais como
abraços “muito” carinhosos, dois jovens “demorando muito no
banheiro”, alguns dormindo de conchinha, outros colocando
lençóis nos beliches, um ganhando várias sobremesas e dizendo
6 Frase de um dos meninos participantes da pesquisa.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 176


que “está ‘fortalecendo’ os outros”, e inclusive a fabricação
de um preservativo com o plástico dos talheres. Igualmente,
parece interessante que um dos maiores problemas de saúde
na unidade seja a epidemia de DSTs, o que pode sugerir que
existem práticas sexuais entre eles ali dentro. Porém, quando se
fala em distribuição de camisinha no estabelecimento, a maioria
das pessoas considera isso desnecessário. É importante destacar
que a existência dessas práticas sexuais entre os jovens não
significa que sejam homossexuais, ou entendidos como tal, pois
argumentos como a naturalização da pulsão sexual dos homens,
a carência dos jovens e o estado de confinamento circulam entre
os/as funcionários/as.
Na unidade feminina, parece haver uma abertura maior
por parte das meninas em falar abertamente sobre os casos e
relacionamentos que mantêm entre si. Muitas delas afirmam não
ter tido, antes da internação, experiências com meninas. Quando
perguntadas a respeito das razões que as levam a manter relações
com outras jovens, aquelas que têm esta experiência pela primeira
vez afirmam ser por “carência”. Para a equipe técnica, agentes e
direção da unidade, é sabido que elas mantêm relações entre si, o
que não é nem aceito abertamente, nem definitivamente proibido.
Nas unidades masculinas, quem divide alojamento com
os jovens gays e as jovens transexuais são aqueles que entraram
no sistema por terem cometido um ato infracional relacionado à
sexualidade, o que os faz correr risco se ficarem em alojamento
coletivo. Será que de alguma forma se equipara um estuprador
a um homossexual? De que forma um estupro é considerado tão
aberrante em um contexto onde a cultura da violência contra as
mulheres e a culpabilização da violência sexual são tão presentes?
As masculinidades são entendidas como “configurações de
práticas que são realizadas na ação social e, dessa forma, podem
se diferenciar de acordo com as relações de gênero em um cenário
social particular” (CONNELL e MESSERSCHMIDT, 2013, p. 250).
Neste sentido, podemos explorar como as instituições de privação

177 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


de liberdade contribuem para a construção da masculinidade. O
acesso permitido pelo crime a certos bens, a certas relações com
certas mulheres, a certo tratamento por parte de uma sociedade
que insiste em marginalizar sujeitos com as características
que eles apresentam ao mesmo tempo em que bombardeia
com propagandas de consumo e nega os direitos básicos, leva
necessariamente à busca de pertencimento a um modelo de
masculinidade (Barker, 2008), que inclui envolvimento em
práticas de risco, falta de cuidado com a própria saúde, exercício
de violência contra as mulheres, entre outras práticas. Classe
social e raça são marcadores importantíssimos a considerar nas
análises das trajetórias desses jovens, mas também o gênero.
No caso das jovens, também está implicada uma noção de
feminilidade, e tal noção, quando pensada na perspectiva de uma
vida no crime, atravessa de maneira importante seus processos
de subjetivação e as práticas da/na unidade de internação. Se,
no caso dos jovens, esta masculinidade está sob constante olhar
e controle do tráfico na construção de um sujeito-bandido e de
uma masculinidade hegemônica, no caso das jovens tem-se, por
parte da população em geral, certo estranhamento a partir das
conjugações menina/crime, menina/violência.
Pensando nas suas inserções no mundo do crime, ainda
que muitas delas nos tenham relatado ocupar posições de menos
prestígio na hierarquia do tráfico, algumas disseram ocupar
cargos importantes nas “bocas”, e principalmente estas relataram
uma série de “cuidados” que o tráfico tem com elas, que são
mulheres e, portanto, necessitariam de proteção. Fica claro que,
mesmo no caso daquelas que ocupam espaços importantes no
tráfico, as tensões relacionadas ao gênero e à construção “da”
feminilidade e “da” masculinidade se colocam de maneira
proeminente, apontando para a complexidade destes lugares
sociais e da própria dinâmica das relações. Quanto às experiências
da internação, se, para os meninos, a mesma tem caráter de uma
fase a ser passada até a “prisão de verdade”, quando alcançarem
a maioridade, parte da trajetória deste sujeito-bandido, tal

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 178


expectativa não parece se dar para as meninas, ainda que muitas
delas relatem irmãs, tias e mães presas.
A convivência com as/os agentes socioeducativos/as se
apresenta como um tipo de relação diferente na vida desses/as
jovens. As diferentes atribuições e performatividades de homens
e mulheres que ocupam esse cargo constituem um campo
tenso de relações de poder, autoridade e também afetos com
as/os jovens. Por exemplo, os jovens pertencentes a algumas
facções não têm permissão nem para falar com os agentes, o
que revela outro requisito desse modelo de masculinidade: ser
leal à corporação. Igualmente, os jovens estabelecem regras
para os agentes nos dias das visitas, como já foi mencionado.
Assim, neste contexto de homossociabilidade, de privação de
liberdade, de patrulhamento dos corpos, se cria um território de
masculinidades em disputa, onde a dominação e a subordinação
também são performáticas, com múltiplos atravessamentos.
Miguel Vale de Almeida (1996) aponta que, no território de
disputa masculina, acontece uma,

avaliação do comportamento [...] feita em função de um modelo, e a


disputa dos atributos e da pertença ou não ao modelo provam que este é
uma construção ideal. Só que, como as avaliações se fazem a partir de actos
vistos e narrados, o comportamento dos homens tende a “mimetizar” as
prescrições do modelo (VALE DE ALMEIDA, 1996, p.171).

Certamente, em muitas das performatividades que eles


apresentam para nós, observamos essa mimetização, mas também
observamos uma diversidade de brechas nesses lugares tão
cristalizados. Por exemplo, em uma ocasião, um jovem relatou uma
troca de cartas muito sensível com uma jovem interna na unidade
feminina e pediu para uma de nós desenhar um coração. Igualmente,
podemos pensar não apenas em uma disputa de masculinidades,
mas em um campo tenso de regulações, transgressões e contestações
que atuam ao mesmo tempo, sem se suprimir.

179 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Outra coisa que se vê modificada na passagem pelo
sistema é o controle dos jovens sobre os corpos e as vidas das
companheiras. Primeiro, porque a estabilidade econômica
e o status que eles podiam fornecer nem sempre têm uma
continuidade, dependendo do cargo dele na facção, e, segundo,
porque, mesmo eles não querendo que a parceira esteja com
outros homens e, em alguns casos, que não saia nem para os
bailes, o controle deles fica bem mais restrito, mantido em
uma mínima medida através de notícias que as mães ou os
colegas possam trazer e das cartas que eles mandam e recebem.
De todo jeito, mesmo com o controle falho, fica uma ameaça
no ar, pois haverá represália caso ela tenha descumprido o
combinado, mesmo que ele só venha a saber depois. As jovens
que mantêm relações com outras meninas por fora do Sistema
também relatam seguir algumas regras do tráfico no que tange
à fidelidade da companheira. Conforme nos disseram, elas
recebem informações sobre suas companheiras nos dias de visita,
e duas delas descobriram, desta forma, que as companheiras
as estavam traindo. Ambas disseram que, quando saírem, irão
raspar o cabelo das companheiras – regra que marca o adultério
– para restaurar seu respeito. Esta apropriação é particularmente
interessante, visto que o “respeito” e a “honra” são questões
normalmente ligadas às construções de masculinidades.
Os jovens, por sua vez, repetem constantemente a
importância do “respeito”, termo usado por eles, com essas
mulheres. Nesse sentido, tem sido muito interessante a nossa
pesquisa, pois, desde o momento em que começamos a conhecer
o campo, houve uma grande insistência por parte da direção e
da equipe de que os jovens não iam falar conosco (pesquisadoras
mulheres) sobre essas questões. Relatando casos de palestras
sobre DSTs e outras anedotas, a instituição tinha certeza de que
o tema não poderia ser abordado por mulheres com os jovens.
No entanto, não é o que a pesquisa tem mostrado: os jovens
estão falando conosco sobre fantasias e práticas sexuais de
forma bastante fluida. Temos percebido, sim, uma censura deles
mesmos no uso de palavrões e nomes da genitália.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 180


Quando perguntamos sobre isso, eles falaram que era por
“respeito”, mas eles mesmos ponderaram que éramos nós que
tínhamos levado esse tema para eles, o que abre um precedente
para que a conversa aconteça. No final das contas, não somos
pessoas com as quais eles convivem diariamente e nem ocupamos
um lugar de poder sobre o destino deles, o que talvez ajude a
criar um momento diferente de troca.
Voltando ao tema da honra, mencionado antes, podemos
analisá-lo através de quatro eixos: o modelo de masculinidade,
os códigos do que pode e não pode, as práticas e relações para
sustentá-la e a violência como estratégia de resgate. Os jovens
estabelecem códigos, como não se masturbar, com a expectativa
de reificar o modelo de “guardião da sexualidade da familiar”. Já
que a honra, como dispositivo, denota um posicionamento social,
um status, quem transgride, contesta ou não consegue garantir
sua manutenção é considerado traidor da corporação masculina
e inferior socialmente. E, nesse sentido, os grandes fantasmas da
masculinidade são o “viado” e o “corno”.
Foi relatado para nós um caso em que um jovem deu um
chute na cabeça da namorada grávida durante a visita familiar.
A instituição conteve o conflito, mas não parece ter havido maior
repercussão. O que acontece no campo do gênero e da sexualidade
que é considerado tão alheio ao resto das experiências de vida?
Um último ponto que gostaríamos de abordar é a
implementação da visita íntima no sistema socioeducativo,
denominada atualmente visita afetiva. Esta polêmica remonta às
discussões na época da popularização da pílula anticoncepcional,
com forte cunho moral - uma sociedade apavorada com a ideia
de filhos/as gerados sem pai; pílula vista como um complô para
conter o aumento populacional de grupos marginalizados. Sem
falar no requisito para se ter acesso à pílula: as primeiras cartelas
foram liberadas para mulheres que apresentassem receita médica
e certidão de casamento, assim como regulado para a liberação
da visita íntima, atrelando a relação sexual ao casamento ou

181 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


a alguma relação estável, ou seja, à família, controlando as
relações e apartando o viés do prazer, da saúde e do direito. Essa
perspectiva, importante destacar, é norteada pelo SINASE.
O argumento da época da pílula anticoncepcional de que
tinha a “preocupação em tornar em ato moral e lícito uma ação
intrinsecamente imoral” parece bastante atual em relação à visita
íntima. Estas moralidades, ainda que reeditadas no contexto
socioeducativo, circulam quando o tema da visita íntima
aparece. Nos corredores, circula fortemente a ideia de que o
exercício da sexualidade não seria um direito, mas um privilégio.
Assim, a concepção de que se poderia utilizar a visita íntima/
afetiva como moeda de troca, em negociações entre equipe
e jovens, vem à tona, sendo este um dos poucos vieses pelos
quais o assunto pode ser debatido. Ademais, esta discussão
provoca que se trate de outros assuntos sensíveis, relacionados
à autonomia, monogamia, consentimento e homossexualidade,
que apresentam diversos desafios éticos.
Discursos variados têm sido proferidos nos nossos encontros
sobre este tema. Alguns jovens, por exemplo, aguardam ansiosos
esse momento, pois expressam que o que mais sentem falta ali
dentro é das mulheres. Outros consideram que não seria tão
interessante, pois um dos requisitos será demonstrar uma relação
estável com uma parceira e apenas uma poderia visitá-los. Os
requisitos para a visita íntima/afetiva incluem: que tanto o/a jovem
interno/a quanto a/o companheira/o tenham no mínimo 16 anos,
que tenham autorização dos responsáveis legais – ou da equipe
técnica –, que ele/a, o/a companheiro/a e a família passem pelo
Programa de Saúde e Sexualidade, e que se tenha apenas um/a
parceiro/a cadastrado/a por passagem. Poucos jovens poderão
ser beneficiados por esta política, apesar do grande rebuliço que a
discussão vem causando entre os atores da socioeducação.
No caso das/os funcionárias/os, boa parte delas/es se
opõe à implantação da visita. Os/as agentes parecem ser os/
as mais reticentes – ou os/as que o declaram mais abertamente,

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 182


mas escutamos críticas em todos os segmentos. Para uma parte
deles/as, o maior problema seria a estrutura das unidades, que
já não contam com algumas exigências básicas de higiene e
saúde, entendendo a sexualidade como um direito secundário.
Igualmente, algumas técnicas consideram que é necessário muito
mais maturidade dos/as jovens e da instituição para dar conta
desse novo processo. Por exemplo, questionam a recusa dos
jovens a usarem a camisinha, o que traria novos desafios para a
instituição no caso de alguma gravidez. Circulam discursos de
que não seria correto que o Estado permitisse que os/as jovens
tivessem relações enquanto sob sua tutela, ignorando o SINASE.
Igualmente, critica-se o fato de que essa exigência venha de
pessoas que não vivem o cotidiano e os desafios das unidades.
Para alguns deles, a possibilidade do exercício da sexualidade
com uma mulher seria praticamente um presente – termo usado
por um deles –, um privilégio, que os jovens não merecem diante
do que fizeram para estarem ali. Alguns inclusive acham quase
uma ofensa que uma das suas funções fosse cuidar do espaço
onde os jovens teriam a visita. Outros acham que se correria o risco
de os jovens acharem que eles observam as companheiras com
desejo, tal como acontece na visita familiar. Outro discurso que
escutamos considera inaceitável que jovens tão novos e, sobretudo
as namoradas, ainda mais novas, exerçam sua sexualidade.
Desta forma, observamos que o tema da visita íntima/
afetiva carrega consigo o pânico moral da iniciação sexual e da
sexualidade na juventude, o que merece toda uma discussão
sobre autonomia, sobre direitos sexuais e reprodutivos das/os
jovens e sobre a educação para a igualdade. Ou seja, a visita pode
ser um disparador para explicitar que sexualidade e gênero não
são só temas importantes no cotidiano da instituição, mas são
também eixos fundamentais na socioeducação, na proposta de
transformação dos/as jovens, na diminuição/erradicação do
machismo, da homo/lesbo/transfobia e da violência.

183 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Assim, com este texto e com outros desdobramentos da
nossa pesquisa, comprometemo-nos com um grande desafio que
tem se apresentado para nós: como visibilizar que, dentro de
uma proposta de socioeducação, entendida não apenas como um
exercício pedagógico de moldar a vontade política do outro, mas
de promover uma plataforma de ações e de ressignificações da
produção de lugares sociais, as questões de gênero e sexualidade
devem ser postas em análise e em transformação?

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 184


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Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 186


A visita íntima do adolescente no sistema socioeducativo:
um dispositivo da sexualidade

Juraci Brito da Silva 1


Sílvia Maria Melo Gonçalves2

Resumo
Este artigo é resultado de pesquisa realizada com
adolescentes do sexo masculino internados no Educandário Santo
Expedito – DEGASE RJ. O objetivo é saber como os participantes
percebem a possibilidade da visita íntima, em decorrência
da lei 12.594 de 2012. Um dos princípios que a sustenta é a
convivência familiar e a continuidade do vínculo entre o casal.
Trabalhamos com a ideia de visita íntima enquanto dispositivo,
pois entendemos que ela possa colocar em evidência questões
relacionadas à sexualidade do adolescente que, historicamente,
foram instituídas a partir de certa subjetividade, a do “menor”
infrator, do delinquente, entre outras. Apesar do Estatuto da
Criança e do Adolescente trazer o princípio da Proteção Integral,
ainda prevalecem discursos e práticas sustentados na Situação
Irregular do Código de Menores. Utilizamos como método a
pesquisa-intervenção na perspectiva da análise institucional. O
registro no Diário de Campo nos auxiliou na discussão sobre os
efeitos da institucionalização nas subjetividades dos adolescentes
privados de liberdade. Na mesma lógica, os trabalhadores
são marcados e acabam respondendo ao modus operandi do
encarceramento a que se submetem os adolescentes.

1 Psicólogo, Mestre em psicologia pela UFRRJ – Universidade Federal Rural do Rio de


Janeiro (conclusão março de 2016); especialista em psicologia jurídica – AVM – 2011;
psicólogo do quadro efetivo do DEGASE e da Secretaria de Saúde de Mangaratiba.
Email: britopsi@hotmail.com
2 Doutora em psicologia pela UFRJ (2006), Professora da Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro, do Programa de Pós-Graduação em Educação Agrícola (PPGEA/
UFRRJ), colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGPSI/
UFRRJ). Email: gsilviamm@gmail.com

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 188


Palavras–chave: Visita íntima, adolescente, sexualidade.

O presente artigo é parte de pesquisa realizada no


Educandário Santo Expedito- ESE, unidade de internação do
DEGASE – RJ, para adolescentes do sexo masculino, com idade
entre 16 e 21 anos. A pesquisa de campo ocorreu entre abril
de 2014 e dezembro de 2015. No período, foram selecionados
08 participantes que demonstraram perfis para a visita íntima,
segundo os critérios da Lei nº 12.594/2012 (SINASE).
O estudo teve como principal objetivo conhecer a percepção dos
adolescentes sobre a possiblidade da visita íntima. Portanto, foram
realizados dois encontros em grupo e uma entrevista individual,
com apoio de roteiro semiestruturado, nos quais se apresentavam,
de forma implícita ou explícita, temáticas como: sexo, intimidade,
união estável, relação com a instituição, relação homoafetiva, relação
de gênero. As entrevistas foram gravadas e transcritas sempre com
o consentimento do adolescente. Com vistas a fazer a análise das
relações institucionais, utilizamos o Diário de Campo.
Entendemos que a obrigação legal da visita íntima colocou
em movimento questões relacionadas à sexualidade. Nesse
sentido, nossa questão inicial é de que a visita íntima funcione
como dispositivo, ou seja, aquele que coloca em marcha ou em
evidência temas relacionados à sexualidade do adolescente
internado no sistema socioeducativo.
Ao apontarmos a visita íntima como dispositivo de análise
dentro da pesquisa, acreditamos que a instituição produz uma
subjetividade muito particular tanto para os adolescentes quanto
para os trabalhadores. A análise institucional, do ponto de vista
de René Lourau (1993) e de Foucault (2009), nos convoca a sair
do lugar do especialista, e fazer a análise de nossas implicações
no processo de pesquisa.
No levantamento bibliográfico e na revisão da
literatura, foram identificados apenas dois artigos sobre a

189 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


visita íntima de adolescente no cenário brasileiro. Por isso,
optamos em utilizar outros estudos sobre visita íntima no
sistema penitenciário brasileiro. A escolha de não investigar
visita íntima feminina deu-se pela necessidade de um recorte
metodológico e, também, por se considerar que a sexualidade
feminina apresenta aspectos particulares.
O interesse pelo tema deu-se pela inserção do pesquisador
no campo da socioeducação. A sua vivência e experiência nesse
território possibilitou o encontro com diversos atores, resultando
em embates produtivos, inventivos e desafiadores. Por isso,
desejamos que esta pesquisa possa contribuir para a produção
de conhecimento no campo da socioeducação, que vem tentando
se afirmar enquanto uma Política Pública.

Algumas questões teóricas


Identificamos, em nossa pesquisa, diversos autores
criticando a posição do judiciário, que parece ainda funcionar
com o critério menorista [da situação irregular]3, apontando os
familiares como responsáveis por não darem conta de suas proles.
Essa forma de entender a dinâmica familiar desresponsabiliza
o Estado na implementação de políticas públicas para os
adolescentes em conflito com a lei.
Em relação à prática do ato infracional, destacamos a
pesquisa de Gonçalves (2005), que critica os vários estudos
realizados com adolescência e juventude sob a ótica do
negativismo e, com frequência, o olhar a essa categoria se volta
para suas crises, seus excessos, seus conflitos e suas explosões.
A autora, ainda, afirma que alguns atos dos adolescentes, tidos
como violentos, deveriam ser compreendidos como busca de
sentido e vontade de participação. Em última análise, uma forma
desesperada de estabelecer vínculos.
3 O artigo 2º do Código de Menores de 1979 destaca que o menor em Situação Irregular
é aquele que está privado de suas condições essenciais à sua subsistência, saúde e instru-
ção obrigatória, ainda que eventualmente em razão de: falta, ação ou omissão dos pais
ou responsável; manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las; etc.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 190


Esta pesquisa tem como principal referencial a análise
institucional de Lourau (1993) e de Foucault (2009) a respeito
da prisão e, por aproximação histórica e prática, da instituição
socioeducativa onde são produzidas e forjadas subjetividades
por diversos saberes, em especial, por um especialismo que se
orienta por práticas marcadas e coladas numa moral na direção
do certo ou errado, do bom ou mau, do culpado ou inocente.
Convocamos Lourau (1993) para compreendermos os
processos institucionais e como as práticas se apresentam neste
campo. Segundo o autor, são nas tensões entre o instituinte e
instituído, ou seja, nas suas contradições, que a instituição se
revela. Por muito tempo, defendeu-se a ideia de que o instituído era
negativo e o instituinte, positivo. Porém, devemos abandonar essa
polarização, posto que a instituição comporta múltiplas formas de
existência e é a coexistência entre o instituinte e o instituído que faz
emergir sua universalidade, em outros termos, sua contradição.
Não é demais reafirmar nossa posição teórica, um viés
socioanalítico, no qual o pesquisador deve assumir uma postura
ativa e política. Esse lugar não comporta a proteção da neutralidade
como verdade axiológica da ciência positivista. Pesquisar funciona
como um ato de intervenção e isso “significa que o pesquisador é,
ao mesmo tempo, técnico e praticante” (LOURAU, 1993: 28).
A pesquisa intervenção enquanto método pretende
analisar as contradições presentes na instituição, ou seja, as
tensões produzidas entre/no instituído e instituinte. Agrega-
se, a esse ponto, a análise das implicações do pesquisador no
processo da pesquisa. E sobre isso afirma Lourau: “a história – e
em particular, a história das ciências – nos mostra as implicações
em situação de pesquisa como essencial do trabalho cientifico, -
mesmo tais implicações sendo negadas” (LOURAU, 1993: 16).
A instituição revela-se em um campo de disputa, onde se
articulam forças que não são visíveis, mas se atualizam no que
Baremblitt (2002) chama de organizações e de estabelecimentos,
por exemplo, um time de futebol, uma igreja, uma escola, um

191 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


partido político, um conjunto musical, um casal, uma família.
São nelas que as relações tomam forma, ganham vida, tornando
visível a instituição. Complementa essa ideia, o sentido de
instituição apresentado por Lourau: “a instituição não é uma
coisa observável, mas uma dinâmica contraditória, construindo-
se na e [em] história ou tempo. Tempo pode ser, por exemplo,
dez anos para a institucionalização de crianças deficientes
ou dois mil anos para institucionalização da igreja católica”
(LOURAU, 1993: 11). A forma como entendemos a instituição
é importante, neste estudo, para compreendermos os processos
que agenciam e produzem determinadas subjetividades no
campo socioeducativo.
As discussões apresentadas por Foucault (1979, 1985,
2009) sobre regime disciplinar e controle - poder e biopoder,
principalmente, seu entendimento sobre a instituição-prisão
-auxiliaram em nossas análises em relação às formas de sujeição,
uma vez que na instituição-prisão-socioeducação são fabricados
corpos para se ajustarem ao encarceramento.
Essa questão da produção de subjetividade nos levou à
análise da existência de um lugar do adolescente autor de ato
infracional. A produção desse lugar foi apontada por Misse (2007)
através do que ele chama de sujeição criminal. Isso ocorre quando
o sujeito aceita e se vê como criminoso, ou seja, incorpora um perfil,
um tipo ideal que será facilmente identificado pela sociedade.
Portanto, acreditamos que a subjetividade adolescente-infrator
é anterior à sua entrada no sistema socioeducativo, sendo esta
uma produção incessante no e pelo social.

A visita íntima como dispositivo de análise na


pesquisa intervenção
Acreditamos na potência da enunciação, na palavra que
faz circular e coloca em concretude o que estava em suspensão,
em níveis ainda não tão visíveis. Esta é uma das definições de

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 192


dispositivo, no mesmo sentido dado por Foucault (2009), como
uma máquina de fazer ver e fazer falar. Para Badaró (2012: 80),
“o dispositivo traz em si a possibilidade de inovar, de criar”. A
autora coloca que é possível inventar outros modos de se habitar
a prisão, para além das formas conhecidas da disciplina, da
vigilância e do controle.
O que buscamos entender foram as questões colocadas
em marcha pelo dispositivo visita- íntima. Por isso, apoiamo-nos
na forma de fazer pesquisa defendida por Lourau (1993). Para
ele, “o método de intervenção consiste em criar um dispositivo
de análise social coletiva”, e continua: “o trabalho socioanalítico
é colocar em cena o dispositivo” (LOURAU, 1993: 30).
Por fim, defendemos que seja colocada em análise a
sexualidade que, por ventura, venha a ser normatizada /
institucionalizada sob a justificativa da visita íntima como um
direito. Ou seja, o exercício da sexualidade não é apenas um
conjunto de normas a serem seguidas para garantir o encontro
do casal de forma disciplinada e padronizada; é preciso deixar
espaço para outras formas inventivas de existir.
Sabemos, com apoio da análise institucional, que o diferente
tende a ser capturado para funcionar dentro do “normal”. Assim,
“a institucionalização é o devir, a história, o produto contraditório
do instituinte e do instituído em luta permanente” (LOURAU,
199: 12). Nesse sentido, há de se estranhar a efetivação da visita
íntima a partir de modelos rígidos e prescritivos voltados a uma
intimidade sexual ideal.

Visita íntima como um direito


A socioeducação e a visita íntima fundamentam-se
na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), na
Convenção dos Direitos da Criança (1989), na Constituição de
1988, no Estatuto da Criança e do Adolescente, no Plano Nacional
de Convivência Familiar e Comunitária (2006) e no SINASE lei nº
12.594, de 18 de janeiro de 2012.

193 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


No que tange ao campo da saúde, a política socioeducativa
alinha-se aos princípios do SUS, visando à articulação com a rede
e atendimento no território, como sugerem o ECA e o SINASE.
Nesse sentido, a mais recente Portaria do Ministério da Saúde,
nº 1.082, de 23 de maio de 2014, (PNAISARI), estabelece novas
diretrizes para assegurar a Saúde Integral dos adolescentes em
regime de internação e internação provisória, seguindo os níveis
da promoção, da prevenção, da assistência e da recuperação da
saúde, nas três esferas de gestão. Isso se traduz na garantia ao
exercício da sexualidade e à relação íntima.
Não basta que esses direitos estejam garantidos, é preciso
entender as formas que a instituição concebe-nos. Diversos
estudos apontam que a socioeducação funciona na lógica da
instituição total, defendida por Goffman (1974), na qual os
sujeitos são coisificados ao receberem um número, terem a
cabeça raspada, dentre outras práticas. O confinamento resulta
na fragmentação, despersonalização e mortificação do Eu. Nessa
lógica, os adolescentes e trabalhadores passam a responder à
instituição sem se reconhecerem separados dela, mas numa
espécie de simbiose institucional.
Os estudos apresentados por Foucault (2009) nos ajudam
a compreender os níveis de violências a que são submetidos os
corpos aprisionados. Nessas instituições, eles são docilizados
por discursos que forjam: “corpos-machos”, “corpos-héteros” e
“corpos-úteis”. Nesse sentido, a prisão, e também a instituição
socioeducativa, na atualidade, respondem aos clamores da
sociedade, que podem ser traduzidos na seguinte expressão:
recebam esses corpos e não os devolvam e, se devolverem,
marquem-nos para que sejam sempre reconhecidos.
Essa questão toma outro contorno quando o sujeito
passa a ser excluído a partir de sua invisibilidade, de um não-
lugar. Considerando os ditames e as regras da “cadeia”, o
corpo homossexual não tem possibilidade de ser encenado na
instituição socioeducativa. Caso ele apareça, sua existência é

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 194


marginal, sendo reconhecido como “homem investido, aquele
que nega a sua natureza” (UZIEL, 2002: 38). Nessa lógica, o jeito
mais imediato de lidar com o não-homem é isolá-lo, excluí-lo,
tornando-o invisível. O discurso possível de ser proferido, nesse
caso, é o da proteção. Afinal, nesse território, parece não haver
lugar para o homem que não esteja colado à imagem ou ao signo
do macho. Qualquer forma de expressão de afeto ou sensibilidade
é interpretada como fraqueza, tanto entre os adolescentes quanto
entre os funcionários.
As observações do pesquisador registradas no diário de
campo possibilitaram trazer alguns discursos que circulam nos
corredores, nas reuniões, nos bate-papos e podem ser percebidos
como formas de dar vasão às angústias latentes na instituição:
“Vamos servir de porteiros para os adolescentes transarem”, “isso
não vai funcionar”, “É possível que os adolescentes não queiram se
expor”, “isso aqui vai virar hotelzinho”. Percebe-se uma intensidade
de sentimentos negativos frente à iminência desse acontecimento,
o que denuncia a necessidade de um trabalho prévio de escuta e
acolhimento para elaboração desses “fantasmas”.
Essas e outras evidências mostram que não será uma tarefa
fácil a efetivação desse direito, pois o imaginário social tem a
representação do adolescente como um ser irresponsável. Pensar a
convivência da intimidade sexual do adolescente em um espaço que
foi, e às vezes ainda é, palco de violação de Direitos Humanos deve
ser olhado com cuidado, pois se pode esbarrar na criminalização da
pobreza, conforme os apontamentos de Arantes (1995).
A visita íntima reafirma o lugar do adolescente em
nossa sociedade como sujeito de direitos. Esse acontecimento
fatalmente provocará que se considerem as várias formas e
modos de configurações familiares e como estas são encenadas
no mosaico social, a saber: as relações homoafetivas, a união
estável, o casamento civil, entre outras. Nesse sentido, Uziel
(2002) coloca que:

195 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


O aumento da coabitação sem casamento põe em questão a compreensão
tradicional de estabilidade familiar e torna mais fluidas as fronteiras da
instabilidade, dada a dificuldade de se constatar rupturas nas outras
formas de união. A complexidade das mutações familiares provém em
parte da fragilidade de sua visibilidade (UZIEL, 2002, p. 6).

Talvez, a intimidade sexual do adolescente retome a


urgência desse debate. A possibilidade da visita íntima, desde
seu início, tem produzido burburinhos nos corredores, nas
reuniões, nos almoços; o que pode ser entendido como uma forma
legítima de os trabalhadores se manifestarem: “Como permitir
que adolescentes irresponsáveis façam sexo!?”; “Nós, adultos,
seremos coniventes em casos de gravidezes ou transmissão de
doenças”; “O adolescente ainda não definiu sua escolha sexual,
por isso os adultos precisam decidir por ele”; “Se um pode, todos
podem; e aqueles que estão doentes?”. Esses são apenas alguns
fragmentos de fala e não pretendem responder, tampouco
generalizar, os possíveis impasses diante dessa questão; ao
contrário, identificam a importância do tema.

Corpo e sexualidade encarcerados


Não se encarcera só o adolescente, encarcera-se seu corpo, sua
sexualidade, sua subjetividade. Para Louro (2000), Almeida (2000)
e Foucault (1985), o gênero é um dispositivo de poder na cultura
ocidental moderna que ratifica um binarismo extremo entre o
masculino e o feminino. Há consenso entre esses autores de que o
sexo se refere à marca biológica, enquanto o gênero é construído no
processo individual, subjetivo, cultural, histórico e social.
Boa parte dos estudos produzidos pela sociedade, em
torno do sexo, tem consequências normativas visando ao seu
controle. “As muitas formas de fazer-se mulher ou homem, as
várias possibilidades de viver prazeres e desejos corporais são
sempre sugeridas, anunciadas, promovidas socialmente e, hoje,
possivelmente, de forma mais explícita do que antes” (LOURO,
2000, p. 4). Isso nos faz pensar sobre a vivência da visita íntima
numa instituição marcada por regras e normas bem definidas.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 196


Na mesma direção, Foucault (1985) afirma que a história
da sexualidade no ocidente é explicada por teorias repressivas
e esclarece que o que ocorreu foi uma explosão discursiva a
respeito do tema. Por isso, propõe que se pense esse investimento
político na vontade de saber sobre sexo. Foi através da confissão
que pôde ser dito o que ocorria, na intimidade, em relação ao
sexo. O seu controle tornou-se uma questão de polícia, de saúde
pública, de governo, e isso inclui a preocupação com a natalidade,
a fecundidade, a morbidade, a procriação, a expectativa de vida,
o aumento da população. Desse modo, na atualidade, diversas
áreas assumiram a função reguladora do sexo desde a infância,
a saber: a escola, a medicina, a psiquiatria, a psicologia. Essas
foram, e ainda são, as tecnologias de controle que mantêm os
corpos vigiados de modo que se tornem e continuem obedientes.
Constatamos, em nossa pesquisa, que o corpo adolescente,
no sistema socioeducativo, é marcado, performado, por uma
masculinidade hegemônica em discursos que estão próximos
aos produzidos no sistema prisional, conforme os estudos de
Almeida (2000). No entanto, existe a possibilidade de se tecer
outras masculinidades, outras subjetividades, outros corpos e,
nesse sentido, a visita íntima pode funcionar como dispositivo
“fora da regra”, mexendo com os lugares (jeitos de ser) instituídos.

Algumas considerações sobre o resultado da pesquisa


Apresentaremos, a seguir, uma parte das análises da
pesquisa, destacando apenas alguns fragmentos devido à
limitação espacial dessa publicação.
Constatamos duas questões centrais na fala dos
adolescentes: um sentimento de dívida com a sociedade; esse
sentimento é alimentado pela instituição, que, por vezes, os
lembra (ou as suas famílias) de seu débito (através de falas
afirmando seu desvio). Outro ponto é o descrédito na instituição.
Em geral, os adolescentes desconfiam do tratamento que será
dado às suas companheiras ao serem conduzidas à visita íntima.

197 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Eis a fala de um adolescente que revela o seu sentimento
em relação à instituição. “Aqui sou apenas um número, sou
bandido, menor, delinquente; só quero pensar no futuro quando
sair desse inferno”.
Diante dessa subjetividade marcada pelo sentimento de
dívida, de descrença, como é possível o adolescente fazer sexo, sentir
prazer, em um lugar onde deveria pagar pelo que deve à sociedade!
Talvez, isso explique o sentimento de muitos trabalhadores do
sistema socioeducativo de que a visita íntima é uma regalia, de que
é irresponsabilidade dos adultos permitir tal ato.
Em diversos momentos, nas falas dos adolescentes e dos
trabalhadores, vimos a instituição comparecer e é, segundo
Lourau (1993), na contradição que ela se faz visível. Falas do
tipo: “eles precisam aprender a limpeza, não estão acostumados
com isso”. Por outro lado, em muitos relatos, os adolescentes
preferem que suas companheiras tragam os lençóis e outros
objetos de higiene, no caso da visita íntima, pois não acreditam
na limpeza da instituição.
Identificamos nos discursos dos adolescentes, preocupação
com o momento da visita íntima para que não se torne algo vulgar
ou desrespeitoso, tanto por eles quanto pelos funcionários da
instituição. A intimidade com a companheira e seus familiares
foi defendida como algo a ser protegido. Apesar de o ato sexual
ser bastante valorizado pelo adolescente, ele consegue associá-lo
à afetividade, à convivência, à intimidade e à privacidade.
No que tange à visita íntima de casais homoafetivos, os
adolescentes mostraram-se resistentes em relação à convivência
e atividade no mesmo ambiente. Muito embora caibam ressalvas
a essas “resistências”, pois o gerente de boca de fumo, desde que
informe sobre sua condição sexual (com a expressão: tô de ralo),
pode conviver tranquilamente. Da mesma forma, esclarece-nos
outro adolescente: “Pra mim seria a merma coisa, mas tem gente
que bate neurose, por mim, tudo bem, pois vai trocar colchão, vai
trocar lençol. Mas tem gente que como, tem preconceito”. Essas

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 198


duas situações revelam que existe possibilidade de negociação
quanto à convivência homossexual. Por outro lado, a instituição
parece ter dificuldade de fazer essa negociação.
Nesta pesquisa, não tivemos a pretensão de esgotar o tema
visita íntima de adolescente no sistema socioeducativo, mas entender
os processos da sexualidade, do gênero e da instituição colocados em
marcha a partir desse direito. Por isso, apontamos a necessidade de
outras pesquisas sobre o tema, principalmente, quando a convivência
íntima estiver em execução no estado do Rio de Janeiro.

199 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


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Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 202


Família na política socioeducativa:
uma análise dos 20 anos
Ida Motta1

Resumo
O presente objetivou fazer um estudo das propostas voltadas
para o atendimento de famílias na Política Socioeducativa dentro
do Departamento Geral de Ações Socioeducativas do Estado
do Rio de Janeiro nos últimos 20 anos, a partir da metodologia
de análise documental, tendo como marcos legais o Estatuto
da Criança e do Adolescente - ECA e o Sistema Nacional de
Atendimento Socioeducativo - SINASE. Contextualizou-se
historicamente o processo de construção desses dois marcos
e verificou-se os conceitos de Doutrina da Proteção Integral,
Incompletude Institucional e Família nos programas elaborados
ao longo desse período: o Programa Golfinhos (1995), o Programa
de Atenção às Famílias – Espaço Golfinhos (2002) e o Programa de
Atenção às Famílias (2015). Concluiu-se que os conceitos elencados
estão presentes nas diferentes abordagens familiares analisadas,
trazendo contribuições para o campo da prática, ultrapassando o
plano jurídico (ECA e SINASE) e o político conceitual.

Palavras-Chaves: Família, Política Socioeducativa, Análise


Documental

O tema central deste estudo é o trabalho desenvolvido


com as famílias no DEGASE ao longo desses últimos 20 anos,

1 Assistente Social do DEGASE desde 1994, atuando na Escola de Gestão Socioeducativa


Paulo Freire. Assistente Social da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro – Secretaria
Municipal de Desenvolvimento Social – SMDS desde 1987, lotada na 7ª Coordenadoria
de Desenvolvimento Social. Graduada pela UERJ e Mestranda em Políticas Sociais
pela UFF. Pesquisadora do Núcleo de Direitos Humanos e Sociais da UFF. E-mail:
idamotta7cas@hotmail.com

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 204


contextualizando as propostas de intervenção junto a essas
famílias antes e posterior à implementação do Sistema Nacional
de Atendimento Socioeducativo (SINASE) no Rio de Janeiro.
O objetivo é analisar os conceitos que norteavam as
ações técnicas dirigidas para as famílias dos adolescentes aos
quais se atribuíram autoria de atos infracionais, no âmbito do
DEGASE a partir de dois marcos distintos: o Projeto Golfinhos,
implantado no movimento de institucionalização do Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA), mais precisamente em 1995 e,
o Programa de Atenção às Famílias do DEGASE elaborado em
2015 e articulado à dinâmica de implantação do SINASE. Além
desses dois documentos, optou-se também por considerar a
versão reformulada de 2002 do Projeto Golfinhos – Programa de
Atenção às Famílias – Espaço Golfinhos, como possível transição
entre referenciais de um e de outro.
Coube-nos esclarecer que esse estudo só foi possível ser
realizado pela inserção desta autora no Grupo de Trabalho
instituído em 2015 para elaboração do Programa de Atenção às
Famílias do DEGASE, considerando que o referido programa
ainda se encontra em fase de análise pela equipe gestora do
Departamento Geral de Ações Socioeducativas, para que
posteriormente seja implantado.
Avaliou-se ser oportuno o desenvolvimento da análise
proposta pelo empenho em aprofundar a importância do trabalho
com as famílias dentro do sistema socioeducativo, por entender
tratar-se de um direito social dessas famílias a existência de uma
política de atendimento às famílias dos adolescentes aos quais
se atribui autoria de ato infracional. Não obstante, puderam-
se destacar outros pontos que justifiquem a importância desse
estudo, como: (i) o número reduzido de estudos e pesquisas
efetuados em torno desse tema no Estado do Rio de Janeiro; (ii) a
importância da matricialidade sociofamiliar nas políticas sociais,
como mecanismo fundamental para efetiva garantia do direito
de crianças e adolescentes à convivência familiar e comunitária;

205 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


e, por fim, (iii) o crescimento do atendimento de adolescentes e
famílias na Política Socioeducativa do Estado do Rio de Janeiro,
tendo em vista que no ano de 2015, cerca de 8.460 adolescentes
foram atendidos em unidades do DEGASE.
O estudo tomará por base a metodologia de análise
documental que consiste em verificar, identificar e analisar
um determinado documento visando um objetivo específico,
considerando o que CELLARD (2010, p. 295) aponta que
“o documento permite acrescentar a dimensão do tempo à
compreensão do social”. A escolha dessa metodologia ocorreu
pela avaliação de que ela permitiria observar o processo de
evolução dos conceitos dentro da documentação estudada,
bem como as possíveis análises e inflexões relacionadas com o
contexto em que essas documentações foram produzidas.
Elegeram-se o ECA e o SINASE por entender que estes
marcos legais consagram um rompimento com a lógica
repressiva e punitiva em relação ao segmento infanto-juvenil no
Brasil, passando a sustentar os princípios dos Direitos Humanos.
Dentro da metodologia proposta, verificaram-se os conceitos
de Doutrina da Proteção Integral, Incompletude Institucional e
Família, por entender que partem de concepções que delinearam
mudanças numa prática política, originando um novo campo de
atuação, fundamentando a hipótese do nosso objeto de estudo
que indaga se ocorreu efetivamente evolução nas propostas de
atendimento às famílias.

Contextos Societários e os Marcos Legais


O Estatuto da Criança e do Adolescente, instituído em 13
de julho de 1990, tem seu berço imbricado num momento onde a
sociedade vivenciou a redemocratização do país, após um longo
processo de lutas, com a promulgação da Constituição de 1988:

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 206


A nova Carta proclamava o estabelecimento de um Estado democrático
reconhecedor de direitos civis, políticos, econômicos, sociais e
culturais. Alcançava-se um novo patamar de cidadania, comparável à
concepção clássica de Marshall, 1967: direitos civis, políticos e sociais
(IPEA, volume I, p. 07).

Resgatando a história, entre 1982 e 1983, implanta-se o


Projeto Alternativo de Atendimento de Meninos de Rua a partir
da união do Fundo das Nações Unidas para Infância - UNICEF,
Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor - FUNABEM e
Secretaria de Ação Social do Ministério da Saúde e Previdência
Social. Projeto este que ganha proporções enormes e avanços na
participação da sociedade de forma a culminar no I Seminário
Latino Americano de Alternativas Comunitárias de Atendimento
a Meninas e Meninos de Rua em Brasília, em novembro de 1984.
O movimento ganha força política, reforçando a ineficiência das
políticas assistenciais, correcionais e repressivas, até então em
prática (OTENIO; OTENIO; MARIANO, 2008, p. 06).
Em 1985, é criada a Coordenação Nacional do Movimento
de Meninas e Meninos de Rua e em maio de 1986 acontece o I
Encontro Nacional de Meninos e Meninas de Rua, com a tônica
da violência sofrida pelos jovens e passando pelos demais temas
como: saúde, sexualidade, trabalho, escola, família, dentre
outros. Eclode a luta pelos direitos da infância e adolescência!
A década de 80 foi um marco na discussão da democratização
das políticas sociais, delineada pela crise econômica e pela
manifestação popular organizada. É nesse bojo que o ECA é
promulgado, contando com a participação da sociedade civil e
demais entidades como a Frente Nacional de Defesa dos Direitos
das Crianças e dos Adolescentes, a Pastoral do Menor da Comissão
Nacional dos Bispos do Brasil, da Comissão Nacional Criança e
Constituinte, o UNICEF, além do Movimento Nacional de Meninos
e Meninas de Rua (OTENIO; OTENIO; MARIANO, 2008, p. 06).

207 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


O Estatuto da Criança e do Adolescente traz em sua
essência o produto de uma militância, refletindo o alicerce de
novas concepções onde crianças e adolescentes são considerados
sujeitos de direitos, na condição de pessoa em desenvolvimento
e com prioridade absoluta. Um novo marco na elaboração e
implementação das políticas públicas é instituído: uma doutrina
baseada na proteção integral da criança e do adolescente.
Passados dezesseis anos da promulgação do ECA, a
Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da
República e o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente apresentam o Sistema Nacional de Atendimento
Socioeducativo - SINASE:

(...)fruto de uma construção coletiva que envolveu nos últimos anos


diversas áreas de governo, representantes de entidades e especialistas
na área, além de uma série de debates protagonizados por operadores
do Sistema de Garantia de Direitos em encontros regionais que cobriram
todo o País (SINASE, 2006, p.13).

O contexto da elaboração e implementação do SINASE


foi marcado por um Brasil de desigualdades sociais, onde 1%
(um por cento) da população mais rica detinha 13, 5% (treze e
meio por cento) da renda nacional e 50% (cinquenta por cento)
da mais pobre detinham apenas 14,4% (quatorze vírgula quatro
por cento) dessa renda; com uma população de adolescentes (12
a 18 anos) na casa de 25 milhões, isto é, 15% (quinze por cento)
da população do país na época; a partir de dados subtraídos do
CENSO do IBGE de 2004. Essa desigualdade tornava-se mais
avassaladora quando considerávamos o segmento criança e
adolescente e, ainda maior quando se focava na questão racial,
onde a população negra conseguia apresentar um cenário de
disparidades ainda maior que a população branca do país: 20,5%
(vinte vírgula cinco por cento) de brancos tinham renda per
capita inferior a meio salário mínimo, contra 44,1% (quarenta e
quatro vírgula um por cento) dos negros, tomando por base os
dados do IPEA de 2005.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 208


Ao serem analisados os dados sobre acesso a escolarização,
confirmava-se que a população negra apresentava um quadro
socioeconômico e educacional mais díspares que a população
branca: a taxa de analfabetismo entre os negros era de 12, 9 %
(doze vírgula nove por cento), contra 5, 7% (cinco vírgula sete por
cento) da população branca nas áreas urbanas, segundo também
o IPEA. Dentro dessa realidade, é importante destacar os dados
de mortalidade juvenil naquele contexto: 72% (setenta e dois por
cento) dessa população morreram por causas externas (acidentes
de trânsito, homicídios e suicídios), sendo que 39,9% (trinta e nove
vírgula nove) por homicídios (SINASE, 2006, p.17-18).
Os dados referentes aos adolescentes a quem se atribuía
autoria de atos infracionais retratavam esse cenário apresentado.
A questão das desigualdades era latente para essa população
que não diferiria da parcela infanto-juvenil no quesito de acesso
às políticas sociais básicas. De acordo com o levantamento
estatístico produzido pela Subsecretaria de Promoção dos
Direitos da Criança e do Adolescente da Secretaria Especial dos
Direitos Humanos divulgando na época, o Brasil tinha cerca de
39.578 adolescentes no sistema socioeducativo, cerca de 0,2%
(zero vírgula dois por cento) do total de adolescentes entre 12 e
18 anos (SINASE, 2006, p.18).
Ficou evidenciada a necessidade de se pensar uma política
de atendimento que fosse integrada e articulada com as demais
políticas e sistemas, a partir de uma rede integrada de atendimento
e, é com essa finalidade que se elabora e implementa o Sistema
Nacional de Atendimento Socioeducativo:

A realidade dos adolescentes brasileiros, incluindo aqueles no contexto


socioeducativo, exige atenção do Estado e evidencia a necessidade de
uma agenda de urgências no sentido de se efetivar políticas públicas e
sociais e, sobretudo, ampliar os desafios para a efetiva implementação
da política de atendimento socioeducativa (SINASE, 2006, p. 19).

209 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


O desafio é o de implantar e implementar um sistema
que tem como seu princípio norteador a articulação entre as
políticas sociais básicas, interagindo com demais sistemas –
Sistema Educacional/Sistema Único de Saúde/Sistema Único
de Assistência Social/Sistema de Justiça - de forma a garantir
o atendimento socioeducativo do adolescente e de sua família;
compondo o Sistema e Garantia de Direitos - SGD.

A Política Social Brasileira e a Política Socioeducativa


A abordagem sobre a política social não pretendeu historiar
a mesma, nem, tão pouco, aprofundá-la, mas sim entendê-
la no bojo do que se denominou Estado Moderno, a partir do
capitalismo, como proteção social à coletividade e forma de
intervenção estatal. Assim, tomamos por base Santos (1987),
ao afirmar que o Brasil só teve a cidadania, enquanto direitos
sociais, a partir dos anos 30, o que denominou “cidadania
regulada” (SANTOS, 1987, p. 75). Uma cidadania que só atingia
aos indivíduos que estavam inseridos no mercado de trabalho,
que não incomodava às classes dominantes.
É a partir dos movimentos sociais populares, finais dos anos
70, que se estimula uma cultura democrática, de participação
popular nas políticas sociais públicas, assegurando conquistas
no campo da cidadania e da participação popular, agudizando
a democratização da sociedade e do Estado. Essa noção de
cidadania que surge nesse contexto vem embebida da concepção
do direito de ter direito, de uma cultura de direitos. Essa concepção
permeou o conceito de Política Social que se tomou como
referência: o entendimento de Política Social a partir da visão de
cidadania, entendendo como uma relação estabelecida entre a
condição de ser cidadão e seu Estado, baseada na construção de
direitos e deveres (FLEURY, 1985). Tendo como base a relação e
articulação intrínseca entre o conceito de cidadania e os direitos
civis, sociais e políticos2 (MARSHALL, 1967).
2 Direitos civis (liberdade individual), sociais (desde um direito mínimo de bem-estar

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 210


O conceito de política social estaria relacionado com a ideia
de programas, planos e medidas que respondam aos direitos
sociais num dado contexto social, conforme já explicitado.
Entendendo essa política com objetivos conjuntos de proteção
social e de promoção social, de forma a responder por esses
direitos sociais e demais necessidades oriundas da desigualdade
social (CASTRO, 2012, p. 1014).
Castro (2012) vai tratar da normativa da política social
a partir desses objetivos, referindo-se às políticas sociais
voltadas para Seguridade Social e Previdência Social - Saúde,
Assistência Social e Previdência Social - com o objetivo de
proteção social e, as políticas sociais cujas ações vão desde a
formação e desenvolvimento do cidadão, até o que denomina de
democratização do acesso a ativos - Educação, Cultura, Trabalho
e Renda, Qualificação Profissional, Agricultura Familiar,
Economia Solidária, Habitação e Mobilidade Urbana - com o
objetivo de promoção social. Classifica como políticas de corte
transversal, àquelas que podem ter tanto o objetivo de promoção
social, como o de proteção social, enumerando as políticas de
gênero e raciais, bem como, as políticas focadas para segmentos
da população como criança e adolescente, idosos, etc.
Desta forma, a Política de Proteção Integral da Criança e
do Adolescente pode ser caracterizada como uma política social
com corte transversal, a partir da normativa de política social
estabelecida por Castro (2012); levando-se em consideração que
a política de proteção integral implica em quatro lindas de ação:
políticas sociais básicas3, políticas de assistência social4, políticas
de proteção especial5 e políticas de garantia de direitos6 .

econômico até o Direito de participação) e políticos (participar no exercício do poder


político).
3 Direito à educação, à saúde, ao lazer e à cultura.
4 Voltada para estado de vulnerabilidade social permanente ou temporário.
5 Violação dos direitos.
6 Atuação do poder público para defesa dos direitos instituídos.

211 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


A política socioeducativa vai estar ligada diretamente
na conjugação dessas quatro linhas de ação da política de
proteção integral, portanto, baseada na articulação de ações
governamentais dos três entes federais – União, Estados e
Municípios (SOUZA, 2008, p. 35). Evidencia-se a interface da
política socioeducativa com a política de assistência social e
demais políticas sociais; princípio básico do Sistema Nacional de
Atendimento Socioeducativo – SINASE7.

A Metodologia, os Conceitos e os Marcos Legais


O presente estudo pretendeu verificar se as propostas
elaboradas nos diferentes contextos societários tiveram
como base os marcos legais de referência da época. Como já
explicitado, a análise foi estabelecida a partir de três dos conceitos
que permeiam esses marcos – Doutrina da Proteção Integral,
Incompletude Institucional e Família - e que delineavam um novo
campo político, baseado em concepções que fortaleceriam uma
prática que poderia efetivamente propiciar oportunidades para
o desenvolvimento desses adolescentes - a quem se atribuiu
autoria de atos infracionais – e suas famílias, possibilitando a
construção de um projeto de vida para os mesmos. Essa consistiu
na nossa primeira etapa do estudo: a escolha dos conceitos.
Assim, pôde-se afirmar que os conceitos elencados para análise
pretendiam verificar as concepções que nortearam os programas
com a metodologia de abordagem familiar, de forma a responder
a problematização deste estudo que consistia em indagar, se o
atual programa de atenção às famílias do DEGASE (elaborado
em 2015) estaria dentro dos pressupostos do Sistema Nacional
de Atendimento Socioeducativo.

7 Essa política tem interfaces com diferentes sistemas e políticas e exige atuação dife-
renciada que coadune responsabilização (com a necessária limitação de direitos deter-
minada por lei e aplicada por sentença) e satisfação de direitos. Os órgãos deliberati-
vos e gestores do SINASE são articuladores da atuação das diferentes áreas da política
social (SINASE, 2006, p. 23).

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 212


Posteriormente, passamos para nossa segunda etapa do
estudo: identificar, a partir de um levantamento documental,
os documentos relacionados com o tema que foram produzidos
ao longo desses vinte anos de existência do DEGASE. Foram
identificados: o Projeto Golfinhos em 1995, a versão do Programa
de Atenção às Famílias – Espaço Golfinhos apresentada em 2002
e o atual Programa de Atenção às Famílias do DEGASE – 2015 -
em processo de análise e implantação. Estabeleceu-se o critério
de elencar os projetos e programas que foram implementados,
excetuando-se o atual Programa de Atenção às famílias do
DEGASE que se encontra em fase de implantação.
Num terceiro momento, avaliamos a necessidade de definir
os conceitos arrolados, portanto, entendeu-se por Doutrina da
Proteção Integral a concepção de que população infanto-juvenil
é composta por cidadãos com plenos direitos, com proteção
prioritária e em pleno desenvolvimento; a teoria da proteção
integral está explicitada na Constituição Federal8.
Como Incompletude Institucional, num dos princípios básicos
do SINASE, entende-se a articulação entre as políticas sociais
básicas, as políticas de assistência social, as políticas de proteção
especial e as políticas de garantia de direitos, isto é, as ações
governamentais e também as não governamentais que compõem
a política integral dos direitos da criança e do adolescente.
Entende-se que a aplicação da medida socioeducativa deve
perpassar pelas demais políticas públicas, não sendo alvo
específico da política socioeducativa (SINASE, 2006 p. 23). Por
último, estabelece-se o conceito de Família como assegurado
no SINASE (2006, p. 62): “(...) aquele grupo ou pessoa com os
quais os adolescentes possuam vínculos afetivos, respeitando os
diferentes arranjos familiares”.
8 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adoles-
cente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade
e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (EMENDA
CONSTITUCIONAL nº 65, de 2010).

213 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Passou-se, então, para uma quarta etapa do estudo que
consistiu identificar a presença ou ausência – de forma implícita
ou explícita – desses conceitos, na documentação estabelecida
para análise: Projeto Golfinhos (1995), Programa de Atenção às
Famílias – Espaço Golfinhos (2002) e Programa de Atenção às
Famílias (2015); etapa essa que se discorreu a seguir.

Análise dos conceitos e os resultados


O primeiro documento a ser analisado foi o Projeto
Golfinhos, implantado em maio de 1995, em duas unidades do
Departamento Geral de Ações Socioeducativas: Instituto Padre
Severino e Escola João Luiz Alves. Ambas as unidades foram
herdadas da FUNABEM, possuindo, na ocasião, péssimas
condições físicas e estruturais. O projeto Golfinhos foi elaborado
a partir da iniciativa de dois profissionais – um psicólogo e um
pedagogo, estatutários do DEGASE – ambos com especialização
em terapia familiar com formação na teoria sistêmica. A
proposta do Projeto era na linha terapêutica apresentando várias
“modalidades de atendimento”; forma como foi denominado o
trabalho com as famílias dos adolescentes.
Quando se realizou a análise dos conceitos, foram
identificadas as concepções que embasavam o da Doutrina
de Proteção Integral de forma implícita, sendo percebida a
preocupação dos profissionais em assegurar na elaboração do
Projeto Golfinhos o “exercício da cidadania” por partes dos
adolescentes, como “forma de mudança na sua trajetória de vida”,
atingindo uma autonomia, num processo de crescimento; assim
como a falta de um “projeto de vida” em parte dos adolescentes
atendidos naquela época (GOVERNO DO ESTADO DO RIO DE
JANEIRO, 1995, p.04).

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 214


Verificou-se que o adolescente estava sendo identificado
como um sujeito de direitos, com prioridade absoluta, em fase de
desenvolvimento físico, psicológico e moral. Observou-se também
o registro da importância da família para o desenvolvimento dos
adolescentes, reforçando esse conceito.
Em relação ao conceito de Incompletude Institucional, pôde-
se perceber a preocupação com a formação de rede interna e
externa, inclusive de apoio às famílias dos adolescentes, quando é
registrado no projeto a “falta de uma retaguarda de atendimento”
para os demais filhos daquela “matriz familiar”; como também,
ao ser sinalizada a necessidade de uma “rede externa de
atendimento especializado para as famílias” (GOVERNO DO
ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 1995, p.03 e 04).
É importante destacar a tônica de “rede de serviços”
naquela época, período da implantação da assistência social
como uma política, sendo fortalecida a articulação em rede e
adequação aos novos marcos legais: a concepção de instituição
total deixaria de existir.
Constatou-se, portanto, que a proposta de atendimento
familiar não se esgotava naquela instituição fechada, sendo
pensadas estratégias para construção do que foi denominado
como “rede interna e externa” para atendimento dos adolescentes
e suas famílias. Verificou-se que o conceito Família se apresentou
de forma mais ampliada, contendo “composições variadas”-
“famílias uniparentais”, “mistas de vários recasamentos”, “avôs
com função parental”; sendo também identificado um número
significativo de adolescentes que já haviam se tornado pais, “sem
preparo e orientação”.
Evidenciou-se uma amplitude no conceito de família,
bem como se delineou, nessa conjuntura, a matricialidade
sociofamiliar nas políticas públicas, isto é, a importância de
a família estar no foco das ações das diversas políticas sociais
básicas, como mecanismo para efetiva garantia do direito de
crianças e adolescentes à convivência familiar e comunitária.

215 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Passou-se então a análise do segundo documento,
Programa de Atenção às Famílias - Espaço Golfinhos (versão de
2002). A primeira consideração é que o documento se colocava
como um programa do DEGASE e não como fruto da inciativa
de profissionais da instituição, apresentando em linhas gerais
uma preocupação com os direitos humanos, baseado nas
fundamentações das Regras Mínimas das Nações Unidas, Regras
de Beijing (1990) e no ECA, isto é, baseado nos marcos legais
daquela época.
Como um programa, o Espaço Golfinhos apresentava ações
na área de pesquisa com a preocupação de uma retroalimentação
da temática, com a ideia de formação e capacitação de profissionais
para atuarem nesse trabalho, com a proposta de assessoria e
supervisão das ações que deveriam ser descentralizadas nas
demais unidades do DEGASE – visão de descentralização
política; além da previsão de captação de recursos para execução
do programa.
A proposta do Espaço Golfinhos apresentava uma
linha central de intervenção terapêutica com base na teoria
sistêmica, apontando para uma ampliação do trabalho com
equipe interdisciplinar e com ações ligadas às artes integradas.
Importante destacar o contexto da elaboração dessa proposta, pois
a discussão do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo
estava em plena ebulição, assim como o Sistema Único de
Assistência Social, cenário de plena implementação das políticas
sociais básicas e seus respectivos sistemas de atendimento.
Acentuava-se no documento a importância do mesmo se pautar
no campo dos direitos e um cuidado em não ser intitulado como
um mero programa assistencialista.
Um dos primeiros pontos observados foi a presença
explícita, no programa analisado, de dois conceitos como
princípios básicos dos marcos legais: Doutrina da Proteção
Integral e Incompletude Institucional. Além desses dois conceitos
e princípios, pudemos identificar vários termos utilizados na

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 216


elaboração do mesmo que reitera as concepções que baseiam
esses conceitos como “sujeito social”, “cidadania plena”,
“política de direito”. Em especial com o conceito de Incompletude
Institucional, o programa previa a construção de uma rede de
atendimento às famílias, enfatizando a necessidade de uma
rede interna e externa, “articulada com as políticas básicas,
de forma a garantir um atendimento integral ao adolescente e
sua família” (GOVERNO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO,
2002, p. 08).
Em relação ao conceito Família, não se identificou a
explicitação do mesmo, contudo, foi notório o destaque da
necessidade da “ampliação de uma rede social para atender
as famílias”, apresentando-se na elaboração da proposta uma
abordagem baseada na terapia sistêmica como “terapia familiar”,
“grupos reflexivos”, “oficinas temáticas” e “oficinas de artes
integradas”; além da preocupação com a “contextualização
social” (GOVERNO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 2002,
p. 13, 16 e 17).
Passamos então para análise do último documento elencado,
o Programa de Atenção às Famílias do DEGASE, elaborado em
dezembro de 2015, e em processo de implantação.
Este documento foi construído por um grupo de trabalho
de funcionários instituído oficialmente pela direção geral do
DEGASE – através do diário oficial do estado – e como fruto
de discussões entre várias categorias profissionais e propiciado
a partir de um espaço de capacitação desses trabalhadores.
O grupo de trabalho foi composto por profissionais de várias
categorias e de “unidades de privação e restrição de liberdade”
do DEGASE, produzindo um documento com base nas práticas
de trabalho com famílias que vinham sendo desenvolvidas em
algumas unidades. Pudemos observar que os três conceitos
(Doutrina da Proteção Integral, Incompletude Institucional e Família)
estão presentes no documento.

217 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Em relação ao conceito da Doutrina da Proteção Integral,
percebemos que a concepção que norteia o mesmo já é tratada
como um patamar de referência da política socioeducativa,
portanto, o conceito é bastante evidenciado dentro deste
documento. O Programa parte da indagação de como “garantir
o direito de toda criança e adolescente de crescer em família,
na comunidade e sem violência”. Sustenta a premissa de que o
atendimento socioeducativo precisa focar a abordagem familiar
como uma ideia de centralidade – matricialidade sociofamiliar
– conceituando família amplamente e a partir dos marcos legais
– Constituição de 88, ECA, SINASE, SUAS, PNCFC9.
O conceito Família foi destacado na documentação em
tese, assim como o conceito de Incompletude Institucional, onde
alguns objetivos específicos do Programa fortalecem esse último
conceito como: “Desenvolver a articulação de rede interna e
externa visando o atendimento familiar”, “Referenciar e contra
referenciar as famílias para rede ampliada de serviços de seu
território”, “Instituir um fórum permanente de Atenção às
Famílias com a participação dos socioeducadores, da rede
socioassistencial e de familiares para acompanhamento do
Programa” (GOVERNO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO,
2015, p. 11,12 e 13).
O Programa de Atenção às Famílias (DEGASE, 2015),
a partir da análise estabelecida, pôde-se verificar que para
além desses conceitos, apresenta uma proposta pautada na
socioeducação, numa prática interdisciplinar e intersetorial,
com a construção do Plano Individual de Atendimento – PIA e o
Plano de Atendimento Familiar.
Tal programa prevê as etapas da socioeducação como
o “Acolhimento” das Famílias, a instituição de um Fórum
deliberativo e como controle social da política socioeducativa,
assim como a realização de pesquisas como retroalimentação do
programa; além de destacar a necessidade de garantia de espaço
9 Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária – PNCFC.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 218


físico para realização das atividades com famílias, nas projeções
arquitetônicas de novas unidades do DEGASE e capacitação
continuada dos profissionais à frente da abordagem familiar,
na Escola de Gestão Socieoducativa Paulo Freire – Escola
Socioeducativa do DEGASE.

Considerações Finais
A partir do estudo realizado com base na metodologia de
análise documental, pôde-se constatar que toda a documentação
analisada (projetos e programas) foram norteadas pelos marcos
legais dos diferentes contextos (ECA e SINASE), apresentando
especificidades próprias e influenciadas por suas conjunturas.
Identificou-se que os conceitos Doutrina da Proteção Integral,
Incompletude Institucional e Família aparecem de forma explícita
e implícita na documentação elencada, tomando por base as
concepções que fundamentam os princípios dos direitos humanos.
Verificou-se ainda que a metodologia utilizada contribuiu
para alcançar nossos objetivos, pois permitiu identificar os sujeitos
sociais que construíram as propostas de intervenção, os interesses
pertinentes e os contextos sociais de cada produção, bem como as
concepções que permeavam os diversos cenários políticos.
As hipóteses que alavancaram este estudo foram elucidadas,
considerando que traçamos um paralelo entre as diferentes
abordagens familiares apresentadas, podendo ser observado que
houve uma ampliação e concretização dos conceitos analisados,
com base nas ações delineadas.
Observou-se que o atual Programa de Atenção às Famílias
do DEGASE, elaborado em 2015, e em fase de implantação,
apresenta uma proposta dentro das diretrizes do SINASE e
tomando por base os preceitos da socioeducação.
Avaliou-se ser pertinente a implementação do mesmo por
considerar o aspecto já evidenciado inicialmente: tratar-se de
um direito social dessas famílias a existência de uma política de

219 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


atendimento às famílias dos adolescentes aos quais se atribui
autoria de ato infracional; garantindo a execução de abordagens
familiares baseadas nas diretrizes emanadas por esse Programa,
nas diferentes unidades do DEGASE.
Por fim, entendeu-se que estudos como esse contribuem
para fortalecimento de projetos e programas da política
socioeducativa, podendo trazer importantes contribuições no
campo das práticas, ultrapassando o plano jurídico – ECA e
SINASE e o político conceitual.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 220


REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (Título


VIII – Da Ordem Social).

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei Federal 8.069,


de 13 de julho de 1990. Brasília: Secretaria de Estado dos Direitos
Humanos, Departamento da Criança e do Adolescente, 2002.

BRASIL. Presidência da República. Secretaria Especial dos


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223 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Escutar é sempre um ato possível:
A responsabilização no discurso da psicanálise
Maria Geni Rangel Leite 1
Paulo EduardoVianaVidal2

Resumo
Escutar é sempre um ato possível. Esta é a grande lição que
Freud nos ensina. A psicanálise veio a se constituir como ciência
a partir da experiência, reivindicada pelo real da clínica aonde
as pacientes histéricas eram desconsideradas em seu sofrimento
pelo saber médico da época. Freud toma a iniciativa de acolher
e escutar esse mal-estar. Este artigo toma em consideração,
portanto, a experiência freudiana para discorrer sobre a
importância de se apreender o sentido da escuta dos atos de
violência. Permitir ao sujeito adolescente elaborar em seu nome a
sua narrativa é pertinente à psicanálise. Esta nos permitiu analisar
a responsabilização do sujeito no seu próprio discurso revelando
o seu próprio enigma. Refletir sobre a articulação simbólica
implica questionar a responsabilização do sujeito da linguagem
e o que não está ali, no ato, à vista, mas no discurso, a fim de
possibilitar, a emergência da verdade do sujeito. A psicanálise,
por essa via, como propriamente se trata da clínica da escuta,
indica esta iniciativa sempre possível diante do sofrimento
humano. Põe-se em evidência a práxis socioeducativa no que diz
respeito à adolescência institucionalizada.

Palavras-chave: Práxis; escuta; psicanálise, socioeducação,


discurso, responsabilização
1 Psicóloga aprovada por concurso público para o DEGASE, onde exerceu sua ati-
vidade na socioeducação de adolescentes de 1998 a 2013. Atualmente aposentada.
Mestre e doutoranda em Psicologia: Estudos da subjetividade pelo Programa de Pós-
Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense.
2 Paulo Eduardo Viana Vidal, Doutor em Teoria Psicanalítica pela UFRJ, Professor
associado da graduação e pós-graduação do Instituto de Psicologia da UFF.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 224


Em sua primeira das “Cinco lições de psicanálise”, Freud
(1980a) fala dos impasses provocados por aqueles pacientes,
cujos sintomas não encontravam causas orgânicas. Freud observa
as vaidades do saber médico, mobilizadas por esses pacientes e
sua impossibilidade em dar uma resposta às suas dores, o que
culmina no desinteresse por esses pacientes. Referência à qual
não inclui Joseph Breuer3 que, segundo ele foi o primeiro a
utilizar a psicanálise como forma de tratamento de uma jovem
histérica4 no período (1880-82), interessado em escutar o que
sentia e prestar-lhe auxílio.
Em toda a obra freudiana desde seus estudos sobre histeria,
é evidente a preocupação de Freud com a escuta do paciente.
Essa atenção se revela igualmente importante quando se toma em
consideração a sua construção teórico-psicanalítica com enfoque
no Inconsciente. Fato que não deixou de ter a contribuição, em
particular, de uma paciente histérica de quarenta anos; Frau
Emmy Von N., com a qual, Freud (1980a), aplicou pela primeira
vez o método terapêutico de Breuer, que consistia, segundo ele,
em fazer uso de técnica investigativa dos sintomas apresentados
pela paciente, sob hipnose.
O que chama a atenção, especialmente nesse caso clínico
descrito por Freud, não consiste na apresentação do relato
sintomático conforme a descrição freudiana, mas a resposta da
paciente que surpreende o analista. Nesse sentido, é ele, Freud,
quem se dá conta que de conversa em conversa, sua paciente sob
hipnose recorda-se do que foi tratado, também sob hipnose, na
sessão anterior, mas nada sabe a respeito de sua vida, em vigília.

3 De acordo com Freud (1909/1980 b), p. 23) o Dr. Joseph Breuer era médico da Real
Academia de Ciências, nascido em 1842, conhecido por trabalhos sobre a respiração e
sobre a fisiologia do sentido do equilíbrio.
4 A história clínica e terapêutica desse caso se acha minuciosamente descrita nos
Estudos sobre histeria (1893-1895), volume II da Edição Standard brasileira da Coleção
das Obras Completas de Freud.

225 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


O tratamento prossegue e Freud (1980a) observa que, mesmo
sem perguntas dirigidas à paciente sob o efeito da hipnose, ele é
capaz de descobrir naquele dia a causa de seu mal humor. Durante
uma massagem a fim de lhe aliviar as dores observa que há uma
intenção no dizer dela e que o contexto de seus ditos encerra uma
reprodução razoavelmente completa das lembranças e das novas
impressões que a afetaram desde a conversa anterior com ele e
que, de modo inesperado, frequentemente, leva Freud a observar
o surgimento de reminiscências patogênicas desabafadas pela
paciente sem que lhe fosse dada qualquer sugestão (pela hipnose)
no sentido de expressá-las. Freud então afirma: “É como se
tivesse adotado meu método e estivesse fazendo uso de nossa
conversação, aparentemente não coagida e orientada pelo acaso,
como suplemento a sua hipnose” (FREUD, 1980b, p. 99-100)5 .
Assim Freud percebe os conteúdos inconscientes surgidos
à revelia do seu estado hipnótico e como essas elaborações
repercutem na abolição dos sintomas. Trata-se do compromisso
freudiano de apreender o discurso de sua paciente, de escutar
o seu sofrimento pelo conteúdo da fala que o revela. E assim
arriscar novas maneiras de tratar do sofrimento humano em
uma época em que ele mesmo declara que esse sofrimento era
desvalorizado e rechaçado por muitos do saber médico. Isso, por
si só, resume o sentido que queremos introduzir no que concerne
ao sentido de responsabilizar-se.
Para superar a cultura da violência, um dos maiores
desafios da contemporaneidade, consiste em assumir a posição
de escuta diante dos adolescentes autores de atos infracionais.
Escutar a adolescênciano interior das Unidades Socioeducativas.
Parcela considerável da adolescência para a qual, não raro,
as políticas públicas falham em sua função de prevenção no
sentido da articulação de estratégias coletivas que visem sanar
as fragilidades dentro da triste realidade institucional.

5 Conforme nota de rodapé: FREUD (1893-95/1980a, p. 100); talvez seja este o primeiro
aparecimento do que se tornou depois o método da livre associação.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 226


Lacan (1998, p. 14) afirma a práxis como “qualquer ação
realizada pelo homem que o põe em condição de tratar o real
pelo simbólico.”Faz-se mister, por essa via, fazer algo para que
se formule e se re-formule, sobretudo na operacionalização
das atividades da socioeducação onde não ocorrem, de forma
regular, atividades coletivas de conversação com os internos. Se
a lei federal 12.594 do ano 2012, a mais recente, conhecida por
SINASE (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo),
prevê um conjunto de ações articuladas e integradas em diversos
segmentos de atuação com a participação do adolescente
na elaboração, análise e revisão do seu Plano Individual de
Atendimento (PIA).
Como implicar o adolescente em seu planejamento de ações
socioeducativas sem espaços de conversação nos quais interajam
as equipes de trabalhadores sociais e os adolescentes e, além
disso, sem que o devido suporte logístico facilite minimamente o
desempenho das funções de trabalho? Concordamos com Lacan
(1998, p. 17) de que “é preciso estar no campo da formulação”,
uma vez que, segundo ele, o que faz surgir a diferença entre uma
ciência definida por um objeto e a mesma definida por um campo
de conhecimento ou entre campos e objetos distintos é justamente
se permitir estar “aonde é preciso estar, no b.a.ba da formulação”
(ibidem). Portanto, nosso objetivo neste artigo é discorrer sobre a
responsabilização que implica o exercício da fala sob a perspectiva
do discurso da psicanálise tendo em vista a socioeducação.

Responsabilidades
A palavra “responsabilidade”, de modo geral, indica o
compromisso com algo ou alguém, ou é empregada em relação a
algo ou alguém. Trata-se de uma noção que se subentende na relação
entre a mãe e o filho, quando ele é ainda sem palavras para formular
seu desejo. Pode-se subentender também no pai que assume, junto
a mãe de seu filho, o seu lugar e a sua função. Ou ainda, nas formas
de relacionamentos que se estabelecem entre os humanos, cujas
obrigações sociais ou não, exigem o ser responsável.

227 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


A criança, desde cedo, deve aprender a ter responsabilidade
com os deveres escolares. Os pais são responsáveis por proverem
o seu sustento e condições que permitam que se desenvolva
dentro do que a cultura daquele lugar estabelece. Enfim, essa
noção é semeada em todas as comunidades: familiar, social,
econômica, política, educacional... Entretanto, não se deve
desconsiderar a insistência da repetição de um discurso que
revela a prática que o sustenta. Deve-se refletir, portanto, sobre
o início de uma prática que pode significar uma mudança nessa
cultura, no discurso dos sujeitos que dela fazem parte. O exemplo
é a experiência freudiana.
Freud (1980b, p. 100), em outra época, observava sintomas
novos e registrava cada experiência bem- ou malsucedida, em
detalhes muito claros sobre os sintomas e a história apresentada
por seus pacientes. Ignorava o pudor em confessar, se em algum
momento contou ao paciente uma mentirinha (no caso de Frau
Emmy, em particular, ele o afirma) e com que intuito o fez.
Ao compartilhar as suas experiências e conhecimentos e
ao assumir uma posição de não saber, exatamente, para que o
paciente o indicasse. Freud situa a psicanálise em um patamar
de responsabilização colaborativa por tal descoberta, enquanto
método terapêutico. Assim, tanto Breuer (precursor do método
catártico) quanto Frau Emmy (a paciente que reivindica a fala e a
escuta de Freud), têm cada um a sua cota de responsabilidade no
início da experiência analítica. Naquela época, a falta de um saber
médico sobre os novos sintomas que se apresentavam no real
da clínica demandava do médico a busca de alternativas. Nesta
perspectiva, cabe interrogar se os sintomas das psicopatologias
sociais da atualidade não impõem tanto ao saber médico, assim
como às outras ciências que deles se ocupam o mesmo desafio?
Considerável número de adolescentes busca a satisfação no
entorpecimento por drogas que emperram o seu desenvolvimento
integral, no uso de arma de fogo, na prática de atos criminosos,
inclusive homicídio de pessoas a quem (supostamente; no

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 228


caso de pai, mãe, avó, irmão) deveria amar, no ganho fácil, no
“adultecimento” prematuro – entenda-se: viver pela própria
conta e risco.
A idéia de intimação singular em prol de uma coletividade
situa o conceito de responsabilidade no sentido do modo como
cada sujeito responde à falta que deve renunciar. Como afirma
Lacan (1998):

É que a uma nova verdade não podemos contentar-nos em dar lugar,


porque é de assumir nosso lugar nela que se trata. Ela exige que
nos mexamos. Não se pode atingi-la por uma simples habituação.
Habituamo-nos com o real. A verdade nós a recalcamos. (LACAN,
1998, p. 524-5)

Situam-se aí, nesse contexto, as máscaras do sintoma


(LACAN, 1999, p.330-331) que forçam a emergência da verdade
do desejo do sujeito, apresentando a ele o seu próprio enigma.
Para Quinet (2000, p. 25) “a resolução de se buscar um analista
está vinculada à hipótese de que há um saber em jogo no sintoma
ou naquilo de que a pessoa quer se desvencilhar”. O que aponta
para um saber sobre o sintoma que é suposto pelo sujeito.
Conforme Alberti (2000) o sintoma é a mais humana tentativa
de posicionamento frente ao mal-estar na civilização, ou seja,
frente à impossibilidade. Nesta perspectiva, Freud (1980f, p. 265)
aponta a eterna luta do homem para organizar os componentes
libidinais, adaptá-los constantemente para transformar o mundo
conforme seus anseios. De acordo com Freud se trata da eterna
luta contra a agressividade e, para ele, tal obstáculo se constitui em
grande desvantagem uma vez que a defesa contra ela pode causar
tanta infelicidade quanto a própria agressividade, que se sustenta
na relação das pulsões com a pulsão de morte. Luta em que Freud
espera que o amor, o eterno Eros seja ao final o vitorioso.
Em Freud (1980c), essa ideia surge com o mito do pai
totêmico que os filhos mataram. O pai tirânico que reinava como
senhor absoluto da horda primitiva, pois só ele tinha o direito

229 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


de possuir todas as mulheres, impedindo aos filhos o mesmo
gozo, expulsando-os, segundo Freud, na adolescência. Ao
retornarem e cometerem o parricídio tornam-se os responsáveis
pelo sentimento filial de culpa, razão do esvaziamento do lugar
do pai por um lado e por outro, a sua ocupação por um símbolo:
o totem. Surge a lei regida pelo símbolo do pai, que impede de
uma vez por todas o gozo com a mãe e as irmãs, assim como
o gozo próprio. A lei: não matarás nem cometerás o incesto,
inaugura a submissão à lei do pai através de sua representação
simbólica, isto é, o totem, que surge como o símbolo primeiro do
mundo simbólico representando o pai morto.
O pai morto, então, introduz o símbolo no lugar da falta
que a morte impõe. Esse mito, segundo Quinet (2004, p. 113) “faz
aparecer o gozo do Pai e seu poder de coação”. Nesse sentido, ele
afirma que o parricídio do pai primitivo e o totem que o representa
vêm confirmar que esse gozo está barrado para o sujeito.
Se o que primordialmente qualquer civilização exige é a
garantia da lei. Todos se tornam igualmente responsáveis por
seu cumprimento e se torna inadmissível que seja violada em
favor de um indivíduo. Todos estão submetidos à lei na vida
em sociedade. Portanto, não se pode discutir esta afirmação
freudiana (1980f), pois tendo em vista o desejo e a garantia da lei
nada se afeta no que diz respeito ao valor ético da lei. O estatuto
legal consiste no objetivo alcançado pela civilização e todos
contribuíram com a renúncia pulsional, exceto os incapazes de
entrar numa comunidade.
Ao assistir o filme: “O Filho” (Le Fils, 2002), dos irmãos
Dardenne (Jean-Pierre e Luc Dardene) se pode observar o dilema
de um pai diante da oportunidade de vingar-se do assassino de
seu filho: Um adolescente saindo em Liberdade Assistida após
cinco anos. Quando a assistente social lhe pergunta se aceitaria
mais um jovem aprendiz em sua oficina de carpintaria que
parece funcionar no próprio educandário, percebe pelos dados
da ficha cadastral de quem se trata. Decide aceitá-lo, não sem

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 230


hesitações. O adolescente não suspeita que seu professor seja o pai
de sua vítima. Nas muitas conversas entre eles, o carpinteiro tenta
fazê-lo constituir, sutilmente, a cena do crime. O adolescente não
parece sentir arrependimento pelo que fez no passado dizendo ter
sido punido por isso. Ao final do filme, o professor de carpintaria
viaja com ele para uma madeireira distante e o jovem tem a
oportunidade de identificar os tipos de madeira, ocasião também
em que ele convida o professor para ser também o seu tutor.
Interessante é o momento em que ele se identifica para o
adolescente, que ao saber ser ele o pai do menino que ele matara,
foge desesperadamente. O carpinteiro o alcança, o imobiliza,
chega a colocar as mãos em seu pescoço pronto para estrangulá-
lo, tal qual ele o fez com seu filho. Contudo, não consegue fazê-
lo. O oficineiro, então, nessa impossibilidade de concretizar o seu
plano, introduz a diferença: a castração de seu desejo.
Após esta cena, vemos o adolescente retornar e assumir o
trabalho com esse mesmo homem que pouco antes havia tentado
matá-lo, mas, que por não conseguir levar a cabo a tentativa,
através desse mesmo ato fracassado em suas intenções, lhe
transmite um limite interno: a função paterna. O lugar desejado
de ser pai (no sentido simbólico) se privilegia e ao sentimento de
vingança. Terá o filho (o infrator em processo socioeducativo) se
emprestado, na cena como o espelho do outro que ele matara?
Interessante é o momento, o qual o adolescente ocupa o seu
lugar próximo ao “ideal de pai” que deseja. Afinal, não nos
esqueçamos do convite que ele fizera ao professor de carpintaria.
Ser o seu Tutor. Termo com o significado daquele que ampara,
protege e defende.
O pai simbólico é uma metáfora. Assim garante Lacan em
diversos momentos de sua obra; especialmente no Seminário
cinco sobre as formações do inconsciente. Portanto, consiste em
uma função que exige alguém que a encarne e a transmita. Não
necessariamente coincide com o pai de carne e osso.

231 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Freud (1980d, p. 62) descreve as relações dependentes do eu
e destaca “a relação do supereu com as alterações posteriores do
eu” que “é aproximadamente semelhante à da fase sexual primária
da infância com a vida sexual posterior, após a puberdade. Se o
eu se submete ao imperativo categórico do supereu Freud explica
que isso ocorre da mesma forma “como a criança esteve um dia
sob a compulsão de obedecer aos pais” (Ibid.).
Segundo Žižek (2010, p. 99) o supereu freudiano consiste na
agência ética cruel e sádica que nos bombardeia com exigências
impossíveis e depois assiste “de camarote”6 nosso fracasso em
satisfazê-las.
Conforme Quinet (2004, p. 112) a leitura lacaniana da obra
de Freud permitiu a distinção entre o Ideal do eu e o Supereu,
cujos termos, segundo ele, ficam muitas vezes confundidos em
sua obra. Observa esse equívoco no artigo de Freud (1980d) O
ego e o id; o qual, o autor traduz por “O eu e o isso”. Afirma
que nesse artigo de Freud, o mesmo já descreve certas tarefas
do supereu que dita as regras para o eu “seja assim ou não seja
assim”. Nesse sentido, o autor nos esclarece que compete ao
supereu a encarnação dos escrúpulos e também é o responsável
pelo sentimento de culpa inconsciente.
Assim, a satisfação de nossas necessidades básicas de
sobrevivência e de autopreservação não nos é suficiente. O
apelo pulsional ecoa dentro de nós a partir de uma demanda.
Segundo Lacan, a demanda do Outro materno que é mediada
pela dimensão da linguagem. Assim, tudo o que se passa em nós,
em que medida pode ser dito?

O fazer com o simbólico faz falar o real do sujeito?


Articular o sentido dos discursos que se apresentam entre
os adolescentes que cumprem medida socioeducativa significa
tomar em consideração os relacionamentos, que se constroem
6 Acrescentado pelos Autores.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 232


e constituem por si mesmos ou em conseqüência destes,
“territórios” de conflito. Nem sempre perceptíveis ao cotidiano
institucional, pois, pela via de Lacan (1998, p.887), se “existe
fantasia, é no mais rigoroso sentido da instituição de um real que
cobre a verdade.”
Consideremos essa dinâmica de grupo7 realizada com
adolescentes: no quadro foram coladas diversas palavras:
violência, vida, morte, saúde, doença, fome, etc. Solicitou-se aos
mesmos que identificassem um problema na palavra escolhida
e procurassem uma gravura nas revistas que eles vissem como
a solução daquela palavra que representava o problema. Ao
final, quando cada gravura-solução estivesse colada abaixo da
palavra-problema, cada um justificaria a escolha feita.
Mediante as soluções concretas óbvias: alimento para a
fome, remédio para a doença e assim por diante. Duas gravuras-
solução sobressaíram: Um adolescente colou abaixo da palavra
violência, a gravura do ator que representa o capitão Nascimento
no filme “Tropa de Elite” (2007) empunhando um fuzil em
posição de tiro. Ao justificar a sua escolha disse: “Só matando!”8.
Outro adolescente, tendo escolhido a palavra “vida”,
colou abaixo a gravura de um cadáver sendo carregado pelos
bombeiros (apelidado por eles de rabecão), os quais pareciam
estar descendo um beco de uma comunidade. Ao justificar a sua
escolha para o grupo disse: “Nada como ver a morte pra a gente
lembrar como a vida vale”9 . O que essas frases nos sugerem em
termos da responsabilidade do sujeito que fala? O que evidencia
o seu discurso? O que move o olhar desses dois adolescentes
exatamente para essas cenas, e a expressarem frases portadoras
de apelo a algo que barre o insuportável, o impossível de tolerar?
7 O relato dessa dinâmica de grupo integra o capítulo: “O que implica falar”da se-
guinte Dissertação: LEITE, Maria Geni Rangel. A responsabilização em xeque: O dis-
curso do adolescente em semiliberdade no exercício da fala. Dissertação de Mestrado.
Niterói:UFF, 2013.
8 As expressões entre aspas se referem às falas de adolescentes no exercício profissio-
nal do psicólogo no curso da dinâmica que lhes fora proposta. Não se tratava à época
de um projeto de pesquisa.
9 Trata-se também, conforme nota anterior, do relato da fala do adolescente sem qual-
quer identificação do mesmo.

233 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


“Por que só matando?”, foi perguntado a ele. Então, o
adolescente expõe os sentimentos destrutivos que experimenta
em relação a injustiça que vê e sofre. O outro adolescente declara
que pensou apenas em como na sua idade já tinha visto tanta
“gente morrer”. Só restara ele de um grupo de amigos. Teria
comparecido ao enterro de todos eles. Então, se calou.

Como cada um responde é de sua responsabilidade


Esse modo singular de responder já concerne ao projeto de
como cada um lida com os impasses da existência. No que as
palavras formulam, o Outro do sujeito é um desejo secreto ou
um grande sofrimento causado por um pensamento angustiante,
talvez o de vir a ser morto como os amigos, embora isso só se
possa ler nas entrelinhas de seu dito. Por essa via, podemos
afirmar que, de acordo com Lacan (1998, p. 105) “a ação
psicanalítica se desenvolve na e pela comunicação verbal, isto
é, numa apreensão dialética do sentido. Ela supõe, portanto, um
sujeito que se manifeste como tal para um outro.”

Considerações Finais
A psicanálise como responsável por um discurso que se
concentra na linguagem do inconsciente nos faz vislumbrar
as possibilidades de se buscar alternativas para o sofrimento
humano, mesmo quando o real da clínica se apresenta tão
implacável aos denominados “técnicos do saber” pelos novos
sintomas contemporâneos dentre os quais é preciso destacar os
atos de violência praticados por adolescentes. A adolescência
aparece no contexto da hipótese freudiana da horda primitiva
em “Totem e tabu”
Na concepção de Freud (1980c) a religião totêmica constituiu
o resultado de uma ambivalência primordial de sentimentos
para com o pai, considerando a simultaneidade de sentimentos
de ódio e amor para com ele. Se o ódio foi satisfeito pelo ato de

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 234


agressão, contudo o amor assume o primeiro plano a partir do
remorso pelo ato praticado. Portanto, os filhos instituem o totem
em substituição ao pai morto. Este se constitui como uma punição
pelo ato de agressão, uma vez queo símbolo impõe restrições
destinadas a impedir a repetição do ato. Por isso, Freud cria em
sua concepção o supereu pela identificação com o pai e dá a este
agente o poder paterno.
Se o sintoma, conforme afirma Alberti (2000) surge como a
tentativa de o sujeito posicionar-se, diante da impossibilidade na
vida na civilização. “A palavra é uma mensagem para o sujeito
cujo sentido se inscreve e se oculta no sintoma” (LEITE, 1999, p.13).
Como foi mencionado anteriormente, a verdade da função
paterna está na linguagem. É por isso que no dizer freudiano
há uma incorporação de sua voz ditando a lei, ou seja, a voz da
consciência. O supereu, como foi denominado. É nesse sentido
que não precisa ser exatamente o genitor a comparecer neste
lugar. Conforme pudemos observar pela ilustração do filme “O
filho” (Le Fils, 2002), o pai introduz a sua função por intermédio
da linguagem.
Mesmo que o discurso humano se caracterize pela lacuna,
sempre haverá um vazio a solicitar a resposta, a demanda do
Outro (a linguagem) que nos constitui e faz parte do nosso eu.
A responsabilização na concepção da psicanálise, portanto,
visa atribuir implicação ao sujeito quando este dirige a alguém
as suas demandas. Seu discurso reclama, convoca, apela à
responsabilização. Assim se vislumbra a responsabilidade
do sujeito falante cuja mensagem não se endereça senão a ele
próprio, pois como afirma Lacan (1966, p. 873) “Por nossa posição
de sujeito, sempre somos responsáveis”.

235 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


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Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 238


“Eles não sabem o que se passa aqui dentro”:
problematizando o campo e o fazer da pesquisa com
adolescentes em conflito com a lei.

Andressa Melo Silva 1
Francinne Campelo 2
Raiane Barreto Teixeira3
Thiago Melicio 4

Resumo
A presente pesquisa busca refletir acerca do sistema
socioeducativo e da maneira com que a metodologia de pesquisa
pode ser empregada neste campo. Para tanto, aborda a análise
da implicação, autoridade etnográfica e cartografia, bem como o
tema da adolescência e da sistematização de resultados.

Palavras-chaves: Sistema Socioeducativo, Adolescente,


Metodologia, Diversidade, Cartografia Psicossocial.

As discussões em torno do contexto socioeducativo, dos


sujeitos nele envolvidos e das práticas por ele atualizadas,
trazem o debate de como as lógicas historicamente direcionadas
a esse campo transversalizam modos de pesquisa e produção
de dados. A presença do outro, principalmente no que tange ao
adolescente, e a maneira com a qual é agenciada faz com que
este trabalho pontue sobre como as transformações político
sociais podem impactar na produção de conhecimento e nas
possibilidades de participação deste grupo na definição de temas
e criação de pautas.

1 Graduanda em Psicologia, UERJ.


2 Graduanda em Psicologia, UERJ.
3 Graduanda em Psicologia, UERJ.
4 Professor Adjunto, Psicologia, UERJ.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 240


O surgimento do Código do Menor em 1927, sua
modificação em 1979 e a criação do Estatuto da Criança
e do Adolescente (ECA) em 1990, colocam em análise as
transformações da concepção de infância e adolescência,
bem como das formas de intervenção do Estado. Ao mesmo
tempo, do início do século XX aos dias atuais, são colocados
em evidência novas emergências e tensionamentos de
concepções teórico-metodológicas da pesquisa em ciências
humanas. Nesse sentido, se num primeiro momento ocorre
a hegemonia das redes de sentido que buscam fragmentar a
realidade, abordando cada esfera social separadamente, hoje é
possível observar novas práticas que não estão centradas em
avaliar, observar e classificar, mas, ao contrário, estão voltadas
para a potencialização dos encontros, considerando o sujeito
de maneira ativa e produzindo conhecimento COM ele e não
SOBRE ele.
Para a apresentação do presente campo problemático
torna-se importante destacar que no Brasil as primeiras
menções à expressão “menor” estavam presentes no Código
Criminal do Império, definindo as penas aplicáveis para casos
de cometimento de crime “por menores de idade”. Em texto
sobre o tema, Santos (2011) comenta que, na passagem para
o século XX, o termo migra do campo jurídico para o social,
caracterizando crianças nascidas nas camadas mais baixas da
pirâmide social. Assim, ao associar um caráter discriminatório
e pejorativo, passa a desempenhar uma estratégia de controle,
que liga pobreza e perigo, fazendo do “menor” uma criança
“potencialmente perigosa”.
Todavia, se por um lado, o Código de 1927 considerava
como “menor” (que deveria passar diretamente pela
intervenção e tutela do Estado) apenas os que denominavam
como infratores ou abandonados com idade inferior a 18 anos,
como relatado no Artigo 1º: “O menor, de um ou outro sexo,
abandonado ou delinquente, que tiver menos de 18 annos de
idade, será submettido pela autoridade competente ás medidas

241 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


de assistencia e protecção contidas neste Codigo” (sic); por outro
lado, o ECA aponta para uma diferença na conceitualização que
agora engloba todas as crianças, independente de sua condição
socioeconômica, conforme Artigo 2º: “Considera-se criança,
para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade
incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos
de idade”. Tal estatuto corroborou para uma sistematização do
sistema socioeducativo que proporcionou outros regimes de
cumprimento de medida para o ato infracional, sendo agora:
advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços
à comunidade; liberdade assistida; inserção em regime de
semiliberdade; internação em estabelecimento educacional.
Nessa perspectiva, procurando fazer eco a essas
transformações, a presente pesquisa visa abordar o campo
de maneira com que o “outro” não esteja condicionado por
representações cristalizadoras e homogêneas. Partindo da
experiência compartilhada entre pesquisadores e participantes,
a pesquisa tem como objetivo cartografar a produção de
modos de ser e estar no mundo, partindo de uma reflexão
geral sobre a temática do Sistema Socioeducativo, tendo como
analisador encontros junto a adolescentes que se encontram
na unidade de internação feminina do Departamento Geral de
Ações Socioeducativas do Estado do Rio de Janeiro, Professor
Antonio Carlos Gomes da Costa. O trabalho busca a promoção
de um espaço coletivo em que as referidas adolescentes
possam produzir as demandas dos encontros e realizar as
proposições de temas, configurando-se como um campo aberto,
tal qual preconizado no 19º artigo da Declaração Universal
de Direitos Humanos (UNESCO, 1948/1998, s/p), em que o
direito à liberdade de expressão implica na “liberdade de, sem
interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir
informações e ideias por quaisquer meios e independentemente
de fronteiras“. Intenta-se um espaço em que seja possível o
compartilhamento, conforme apontam Sade, Ferraz e Rocha
(2013) ao trazerem o tema da confiança, que derivaria de

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 242


con-fiar (tecer com, fiar com), no sentido de descentralizar
a prática de pesquisa para ampliar a potência de processos
coletivos na produção de saberes.

Pensando pontos de partida: o ethos do cartógrafo e a


análise da implicação
Como a pesquisa debruça-se tanto nas falas provenientes
dos encontros, como nos modos e posturas orientadores
das produções de pesquisa, cabe apontar que um elemento
importante das escolhas teóricas se refere à problematização da
neutralidade científica. Busca-se colocar em análise as práticas e
os lugares que ocupamos enquanto pesquisadores, valendo-se
do conceito de implicação, da Análise institucional, discutido
por Lourau (1993) e desenvolvido por Coimbra e Nascimento
(2008) na seguinte passagem:

Opondo-se ao intelectual neutro-positivista, a Análise Institucional vai


nos falar do intelectual implicado, definido como aquele que analisa as
implicações de suas pertenças e referências institucionais, analisando
também o lugar que ocupa na divisão social do trabalho na sociedade
capitalista, da qual é um legitimador por suas práticas. (COIMBRA,
NASCIMENTO, 2008, p.2)

Nesse contexto, a pesquisa aproxima-se da cartografia


psicossocial e da concepção de pesquisa-intervenção, segundo
a qual “intervenção sempre se realiza por um mergulho na
experiência que agencia sujeito e objeto, teoria e prática, num
mesmo plano de produção ou de coemergência” (KASTRUP,
2015, p.17). O processo de produção de conhecimento passa,
portanto, pela ideia de que toda pesquisa é pesquisa-intervenção
e que nossa implicação está na formação de um espaço aberto
capaz de promover o encontro de heterogêneos.

243 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


A Cartografia Psicossocial, tal qual pensada por Deleuze e
Guattari (1997) e desenvolvida por Rolnik (1989), entre outros,
aponta não tanto para uma metodologia enquanto conjunto
de procedimentos, mas sim para uma postura epistemológica
implicada, que visa “acompanhar processos” de produção de
subjetividade (KASTRUP, 2015, p 56). Segundo afirma Tedesco,
Sade e Caliman (2013), a pesquisa segundo o modelo cartográfico
não diz respeito a uma pragmática, mas a um ethos cartográfico,
que se estabelecerá na experiência compartilhada entre
pesquisador e participantes por meio da linguagem, produzindo
um conhecimento que esteja aberto à indeterminação, até que ele
se rompa em um plano comum.
O principal objetivo não se baseia em “coletar” informações
referentes às vivências das adolescentes, mas acompanhar as
paisagens psicossociais que se formam por meio das falas nos
encontros com elas. A atenção é direcionada ao que Tedesco,
Sade e Caliman (2013) denominam como experiência vivida e
ontológica. Segundo os autores, a experiência vivida refere-
se à experiência de vida do próprio sujeito relatada com suas
emoções e significações, enquanto a experiência ontológica vai se
direcionar ao plano de coemergência dos conteúdos.
Tendo visto os pontos de partida, vale destacar as preparações
e objetivos mais específicos nos encontros com as adolescentes

Encontro e pesquisa “com”: traçando planos comuns


A revisão bibliográfica do referencial teórico-metodológico
apontou para tentativa de criação de um “plano comum” entre
pesquisador e participantes da pesquisa, em que se torne possível
vivenciar e descrever um campo composto de heterogeneidades.
Segundo Kastrup e Passos (2013) é preciso pensar na pesquisa
cartográfica como um duplo movimento, onde ao mesmo tempo
em que se acessa o comum também é possível a criação do mesmo
pelo processo de conhecimento. Conhecer implica a participação

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 244


no processo de construção de mundo. Não é possível pensar
nesse plano comum como algo estático, pois requer movimentos
e afetações.
Assim, no exercício de construção de plano comum entre as
estudantes de psicologia e as adolescentes do DEGASE, refletiu-
se sobre os riscos de aproximação ou distanciamento excessivos
entre pesquisadoras e participantes, visto que entre ambos
os grupos haviam aquelas que vinham de locais e vivências
próximas ou de situações totalmente distintas. Em discussão
sobre o tema, Caiafa (2007) aponta que em ambas posições,
proximidade e distanciamento, ocorre um processo de perda de
força de alteridade. Para a autora, “não é questão de distanciar-
se para compreender o outro, nem tampouco de tomar-se
por esse outro, mas de ter algo a ver com ele, ‘alguma coisa a
agenciar com ele’” (CAIAFA, 2007, p.152-153). Utilizando-se
de discussões deleuzianas, Caiafa comenta que esse “algo a
ver” poderia ser nomeado como “simpatia”, no sentido de ser
um campo de compartilhamento que se estabelece a partir do
encontro aberto à diferença, que permitiria agenciar elementos
diversos, impedindo um distanciamento hierárquico da relação
pesquisador-campo de pesquisa e, ao mesmo tempo, criando
aproximação necessária para um afetar o outro.
Assumindo esse compromisso com a multiplicidade do
campo, foram revisadas e discutidas estratégias no campo
retórico de pesquisa, problematizadas na Antropologia como
“autoridades etnográficas” (BRANDÃO, 2003), que se referem
à legitimidade e validade atribuída ao texto acadêmico que
busca representar um contexto sociocultural específico. O ponto
aqui é refletir sobre as maneiras com que o texto acadêmico faz
referência ao grupo que está estudando e qual política acaba por
legitimar; se é uma política que o coloca na posição de quem
supostamente estaria trazendo “verdades sobre” o grupo, ou se
refere a políticas em que diferentes visões e problematizações
são “produzidas com” o grupo.

245 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Em discussão acerca das autoridades experiencial,
interpretativa, dialógica e polifônica, Brandão (2003) comenta
a fecundidade das duas últimas, em função de assumirem, no
que tange à legitimação da pesquisa, a constante negociação
entre pesquisador e campo. Ressalta-se que mesmo em uma
produção polifônica, objetivo deste trabalho, não se quer dizer
que as vozes das adolescentes enquanto colaboradoras, e as das
graduandas, enquanto autoras do texto acadêmico, não estejam
condicionadas a incertezas que permeiam o trabalho de campo,
de modo que “o ponto mais importante na autoridade etnográfica
polifônica é a aceitação disciplinar de seu próprio não controle
dos dados obtidos e também da multisubjetividade envolvida no
trabalho de campo e na construção do texto” (BRANDÃO, 2003,
p.8-9). No caso da presente pesquisa, há a preocupação com que
os encontros com as adolescentes ocorram junto a uma postura
aberta e não hierarquizada, em que haja disponibilidade para o
diverso. Segundo Caiafa:

A ideia de disponibilidade para qualificar a atitude de campo pode ser


retomada: é preciso estar disponível para a exposição à novidade, quer
se a encontre muito longe ou na vizinhança. Trata-se de uma atitude
que se constrói no trabalho de campo. (CAIAFA, 2007, p. 149)

Todo adolescente é....?: o cuidado com a não generalização


A colocação em prática das discussões acima torna-se um
problematizador permanente. A criação de um plano comum
nos encontros do DEGASE e a reflexão sobre a implicação
dos envolvidos gerou tal mobilização que desde o início uma
pergunta ganhou terreno: afinal, qual a melhor nomenclatura
para se referir às participantes da pesquisa? O termo adolescente
seria adequado, ou se faz necessário sua discussão? Como as
participantes gostariam de ser chamadas?
Atualmente, tem-se que o período da adolescência é
carregado de significações que norteiam muitos estudos e novas
práticas. Basta se dedicar à revisão bibliográfica do tema para

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 246


perceber alguns dos riscos que são depositados nos adolescentes,
acentuando todos eles como próprios à sua “fase”. Para melhor
compreensão, reportaremos ao que Foucault (1996, apud COIMBRA
et al, 2005) nomeia como sociedade disciplinar. Nela os conhecimentos
sucedem aos indivíduos na forma de vigilância constante, no intuito
de determinar a forma como devem ou não agir, ou seja, os novos
saberes produzidos são contornados sobre a norma, na qual se
estabelecem padrões que orientam os pressupostos presentes nas
teorias desenvolvimentista que falaremos posteriormente.
Observa-se que, por vezes, trabalhos realizados com
adolescentes acabam por generalizar esta fase, acentuando
estereótipos que delimitam esse período da vida negativamente.
Como apontam Lyra e colegas (2002, p.11), essas delimitações
propiciam a construção de expressões como a própria “prevenção
da adolescência”, em que a pluralidade é subtraída por uma análise
social que homogeneíza o grupo. Assim, procurou-se conversar
junto às participantes da pesquisa, adolescentes que estão no
DEGASE feminino, a respeito de como gostariam de ser chamadas.
Em encontro realizado em 06 de maio de 2016, C, 15 anos
e R, 17 anos, dizem que pra elas o termo que mais adequado
seria o de “mulher”, uma vez que se veem como tal pelo fato de
terem filhos. Ao serem questionadas como o fato de serem mães
influenciava na maneira como se veem e se esta perspectiva
aparecia instantaneamente junto à maternidade, R. falou: “Não,
naquela época eu tinha dez anos, tive que passar por muita coisa
para amadurecer e me tornar mulher”.
Em outro encontro, ocorrido em 20 de maio de 2016,
quando questionamos a outras jovens sobre como elas se veem,
Y., 17 anos, relatou que “lá fora eu não quero ser chamada de
adolescente. Nunca!... Porque isso me faz lembrar do DEGASE
e eu não gosto”. Nesse sentido, nota-se o quanto a utilização
dos termos pode ser agenciador de elementos heterogêneos,
aglutinando em torno de si significados que apontam para
diferentes vivências.

247 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Algo aparentemente do campo da discussão nominal, como
pensar entre os termos “meninas, adolescentes, mulheres e outros”,
é capaz de agenciar afetos e marcações simbólicas socialmente
definidas, como o fato de ter experienciado a maternidade ter
levado à autodenominação “mulher” e a vivência no DEGASE
trazer a ideia de “adolescente” enquanto memória da privação de
liberdade. Nesse sentido, no mesmo encontro, Y. complementa
dizendo preferir ser chamada de “menina”, pela maior atenção ao
gênero e seus efeitos: “Adolescente é menino ou menina? Quando
fala menina, já se sabe que é mulher”. E continua: “Adoro quando
me chama de garotinha, porque meu pai chamava assim. Me faz
lembrar que na chácara da minha avó tinha um balanço e meu pai
colocou o nome do balanço de garotinha”.
Coimbra, Bocco e Nascimento (2005) nos apontam a
importância de discutir a noção de adolescência uma vez
que ela está atrelada à lógica desenvolvimentista (a qual tem
como maior pressuposto o aprimoramento racional a partir
das etapas de desenvolvimento) e é vista como obrigatória e
consequentemente similar a todos. Tal lógica imputa um padrão
de características que faz a diferenciação do normal e anormal na
adolescência, e passa a constituir uma “identidade adolescente”.
Assim, direcionam à crítica de Guattari e Rolnik (1986, p.68-69)
em que observam que: “a identidade é aquilo que faz passar
a singularidade de diferentes maneiras de existir por um só e
mesmo quadro de referência identificável”.
Na lógica desenvolvimentista, existe o jeito “certo” de ser
e de existir, limitando um território específico ao adolescente.
Contudo, apesar das forças homogeneizantes dificultarem
movimentos, elas não são intransponíveis. Há sempre espaços
para linhas de fuga, que por sua vez produzem uma ruptura na
linha de formas dominantes: “nas linhas de fuga, só pode haver
uma coisa, a experimentação-vida. Nunca se sabe de antemão,
pois já não se tem nem futuro nem passado” (DELEUZE,
PARNET, 1998, p. 36).

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 248


Organizando a diversidade: apontamentos iniciais de
cartografias e composições rizomáticas
Com a emergência das falas das adolescentes, nos
encontros semanais realizados no DEGASE feminino do Rio de
Janeiro, criou-se a necessidade de pensar em como sistematizar
as informações que elas compartilham conosco. A organização
da pesquisa, dentro da cartografia, tem demandado uma análise
que abarque as diversas falas, de forma a se criar um campo de
investigação que seja capaz de fazer circular reflexões sobre o
contexto sem, porém, delimitá-lo em uma representação fechada.
Assim, junto aos diários de campo produzidos em cada visita à
unidade, começou-se a trabalhar com a concepção de rizomas.
A ideia de rizoma, proveniente da botânica (caule, em
forma de raiz, com crescimento polimorfo), foi subvertida por
Deleuze e Guattari (1997) e posto à luz da filosofia da diferença.
Nessa ótica, os rizomas seriam linhas que se desdobram, se
conectam, se desenvolvem e se multiplicam. Essas linhas não se
fecham sobre si, estando abertas a experimentações, ou seja, não
se encaixam em estruturas, nem seguem uma linearidade.
Assim, buscou-se nesta pesquisa trabalhar com rizomas
ou composições rizomáticas enquanto um campo de conexão
das falas e vivências provenientes dos encontros. Tais campos
permitiriam o agenciamento dos enunciados de forma que as
principais temáticas emergentes pudessem ser interligadas entre
si, conforme lógica das falas ou das análises da pesquisa. Para
tanto, foram levantados marcadores sociais, que denominamos
de dispositivos, que nos pareciam ser importantes elementos
de agenciamento dos modos de subjetivação. Os dispositivos
são criados de acordo com a proporção de falas acerca de um
tema/vivência e, principalmente, da forma com que cria uma
densidade das falas em torno de si.
De certa maneira, em uma perspectiva ainda em formação,
esses dispositivos seriam disparadores que se sobressaem
provisoriamente nas linhas de produção de subjetividade.

249 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Como exemplos de dispositivos poderíamos apontar: (i) família
e as reflexões provenientes da culpabilização ou não pelo ato
infracional e/ou do aprofundamento da sensação de privação
de liberdade; (ii) participação no tráfico de drogas e a maneira
com que isso agencia um ethos específico, regulando as decisões
cotidianas; (iii) a vida no DEGASE e o quanto a rotina intramuros
possibilitam uma vivência sexual diferenciada das vivências
anteriores à institucionalização; etc. Desse modo, cada dispositivo
poderia gerar linhas de produção de subjetividade que poderiam,
a todo instante, criar linhas de conexão com outros dispositivos,
ou seguir em uma direção específica, que não gera repetição.
Essas linhas foram nomeadas como ramificações. Por exemplo,
dentro do dispositivo DEGASE, encontram-se ramificações que
abordam a relação com a instituição, com os agentes, com as
internas, a rotina, violência, entre outros.
O processo de levantamento e identificação dos dispositivos
é constante, estando aberto a reconfigurações. A emergência dos
mesmos, e de suas ramificações, ocorrem a partir dos encontros
e discussões ocorridos no DEGASE. Ao falarmos da rotina das
adolescentes no âmbito da internação, apareceram falas como:

Tem várias coisas pra gente fazer aqui, pra ficar fora do alojamento, tia.
Tem biscuit, tem oficina de artesanato... Eu gostava da aula de Ioga, era
um guarda que dava. (T., 14 anos, 26/02/16).

Nós ficamos muito presas, a rotina é muito chata. (S., 16 anos, 27/11/15).

Todavia, ao aprofundar mais o tema em questão,


observou-se que as falas se direcionaram por outra linha de
desenvolvimento. Ao passo que a experiência no DEGASE
tornou-se um disparador em destaque, um dispositivo, diferentes
ramificações tornaram-se presentes, como os efeitos das visitas
de familiares na experiência de solidão vivenciada na instituição.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 250


Cabe ressaltar o caráter mutável e transitório dos
dispositivos/ramificações e das falas. A nomenclatura de uma
composição rizomática, assim como da ramificação, pode mudar,
ser excluída e/ou associada a outro dispositivo/ramificação.
Com o andamento da pesquisa é possível também que se criem
novos dispositivos. Desse modo, destaca-se que o processo
cartográfico é pensado e feito coletivamente, enquanto grupo,
de forma dinâmica, onde as discordâncias e concordância são
registradas a fim de serem utilizadas como material de análise.

Considerações finais
O presente trabalho procurou abordar e refletir, mesmo
que de maneira inicial, tanto sobre o contexto do sistema
socioeducativo, como sobre o modo com que a pesquisa
nessa área pode ser realizada. Nesse sentido, o intuito foi o de
problematizar a neutralidade acadêmica por meio da análise da
implicação e da postura da cartografia psicossocial. Ao passo
que esses referenciais foram trazidos, a temática em torno
da homogeneização e generalização da adolescência ganhou
terreno, indicando o debate que perpassa toda a produção aqui
mencionada: como fazer com que as vicissitudes, especificidades
e potências do campo não sejam silenciadas por uma retórica
acadêmica comumente legitimada na esfera social?
Longe de querer esgotar a discussão, a pesquisa procurou
trazer e compartilhar justamente os seus pontos de inquietação,
como no último tópico em que indica a sistematização do material
produzido em torno de dispositivos e ramificações rizomáticas.
Ciente dos limites e alcances de sua empreitada, este trabalho
procura aqui trazer à tona os seus processos constituintes para
que, por meio de sua exposição, possa se enriquecer com a
discussão decorrente.

251 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Por fim, mais que um apontamento conclusivo, a pesquisa
procura trazer e compartilhar justamente os seus pontos de
inquietação, como os desafios em se produzir uma escrita
acadêmica que não subtraia as riquezas e singularidades do
campo. Visa, assim, fazer eco às transformações sociais que
colocam em xeque as lógicas de esquadrinhamento e classificação
reducionista e cristalizadora, que historicamente demandam
intervenções de caráter individualizante e de culpabilização da
diferença. Busca, portanto, fomentar práticas de produção coletiva,
trazendo as adolescentes dentro de sua pluralidade e diversidade.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 252


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Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 254


A representação social do psicólogo do DEGASE
e a importância da fala e da escuta durante
o acompanhamento a partir de um caso de
cumprimento de liberdade: o caso Luna
Letícia Montes Penha1

Resumo
O presente artigo apresenta alguns dos dados obtidos em
pesquisa realizada junto a adolescentes em cumprimento de
Medidas Socioeducativas no DEGASE2 , que teve como objetivo
conhecer as representações sociais do psicólogo que atua no
referido órgão, relacionando tais subsídios a um caso de execução
da medida de Semiliberdade e enfatizando a importância da fala e
da escuta na ação do profissional de psicologia na socioeducação.

Palavras-chaves: Ajuda. Adolescente. Fala. Psicólogo. Socioeducação.

Partindo da exposição de um caso de uma adolescente


do sexo feminino durante o cumprimento de MSE3 de
Semiliberdade, o caso Luna, o artigo visa ilustrar a ideia de
que o psicólogo que atua na socioeducação é de ajuda aos
adolescentes, conforme os elementos descobertos durante a
pesquisa. Participaram da referida investigação, adolescentes
em Internação Provisória e Internação em unidade do DEGASE
em Belford Roxo e em Semiliberdade no CRIAAD4 Ricardo
de Albuquerque, unidade que, no momento da pesquisa, era
responsável pela execução da medida em regime semiaberto

1 Mestre em Psicologia UFRRJ, Psicóloga no DEGASE


2 DEGASE Departamento Geral de Ações Socioeducativas
3 Medida Socioeducativa
4 Centro de Recursos Integrados ao Adolescente

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 256


aplicada a adolescentes do sexo feminino. O estudo contou
com a participação de 102 (cento e dois) adolescentes, sendo
relevante ressaltar que nenhum deles se recusou a contribuir.
O estudo de campo acerca das representações dos
psicólogos, além de mostrar que os adolescentes entendem
que o psicólogo que trabalha no DEGASE é um profissional
que representa ajuda, possibilitou também a descoberta de que
para os sujeitos participantes do estudo, a fala e a escuta são
fundamentais no processo socioeducativo. Novamente, o caso
Luna reitera e fortalece estes dados que, além de outras coisas,
demonstram conformidade com os marcos legais que regem
a socioeducação e o fazer do psicólogo neste campo de ação,
assim como com os embasamentos teóricos psicanalíticos.

O caso Luna5
Luna foi encaminhada ao CRIAAD para o cumprimento
de medida socioeducativa de semiliberdade e, no momento
da execução da medida, seus pais já estavam separados há um
tempo considerável. Após a separação, os cuidados de Luna
e de seu irmão mais velho ficaram inicialmente a cargo da
mãe. Posteriormente, os cuidados dos filhos se alternavam em
períodos em companhia materna e paterna, sendo que a maior
parte do convívio aconteceu em junto á mãe.
Durante os atendimentos realizados pela equipe e conforme
anotações feitas no PAS6 da adolescente, o pai de Luna sempre
pontuava a falta de juízo da ex-companheira, que segundo ele,
“vivia em bagunças” e criava os filhos desta maneira. Usava
o dinheiro da pensão que ele dava para o sustento dos filhos

5 Adolescente atendida no ano de 2015 no CRIAAD Ricardo de Albuquerque.


6 PAS – Prontuário de Atendimento Socioeducativo. Prontuário onde constam os re-
gistros dos atendimentos, encaminhamentos e documentos feitos pelos psicólogos, as-
sistentes sociais, pedagogos, médicos e enfermeiros, dentre outros profissionais, assim
como informações processuais jurídicas, dados e documentações pessoais dos adoles-
centes e de sua família.

257 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


irresponsavelmente, bebendo e indo a festas na comunidade
onde residiam e, diante desta situação, os filhos vivenciavam
privações financeiras constantes. O pai de Luna, Sr. N, resolveu
ele mesmo comprar alimentos e comprar roupas para os filhos,
não mais contribuindo com dinheiro. As considerações do pai
eram escutadas por Luna, que o fazia calada, vez por outra
dando sorrisinhos e confirmando os relatos de seu pai quando
este o pedia.
Segundo o Sr. N, a separação do casal aconteceu porque
“não combinavam” e “ela é maluca e irresponsável”. Havia
também a desconfiança de que a ex o havia traído e, no que se
refere à paternidade de Luna, a mãe dizia que ele não era o pai
dela. Diante disso, Sr. N não reconheceu legalmente a paternidade
da adolescente, apesar de afirmar que sabia que ela era sua filha,
pois se pareciam fisicamente, tinham pensamentos parecidos e
que a ex mulher quando disse o contrário, era para irritá-lo.
Sr. N. posicionou-se como o responsável legal e de referência
de Luna junto à justiça e ao CRIAAD. Era ele que comparecia
aos encontros com os responsáveis, aos acompanhamentos
individuais junto à equipe, o familiar que buscava e levava
Luna para os finais de semana em família, com quem a equipe
fazia contatos telefônicos. Sempre se apresentando como pai da
adolescente. Sua mãe só compareceu uma vez ao CRIAAD para
levar a filha para o fim de semana em família, do qual Luna não
retornou para continuar a cumprir a medida.
O pai avaliava que as orientações fornecidas pela mãe aos
filhos, não eram adequadas tanto quanto a conduta da mesma
não era. A mãe não exercia nenhuma atividade laborativa,
usava álcool e outras drogas, assim como o irmão de Luna. A
adolescente usava eventualmente maconha.
Aos 15 anos, a adolescente teve um filho. Quando a criança
estava com aproximadamente um ano e meio, adoeceu e, não
conseguindo se recuperar, faleceu. Segundo a adolescente,
o filho não foi bem atendido nas unidades de saúde em que

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 258


ela procurou ajuda. Não houve um diagnóstico do que ele
realmente tinha e a gravidade do estado de saúde do mesmo
não foi percebida. Foi liberada com o filho para casa e a doença
se agravou. Quando novamente retornou, já não havia muito
que fazer. Relatava com constância o quanto esperou pelo
atendimento do filho, o acolhimento médico pouco minucioso
e sua atitude de esperar calada. Não ter sido atendido e tratado
adequadamente quando ela buscou ajuda médica, segundo ela,
foi o motivo da perda de seu filho. Culpava os médicos que
o atenderam e também a si mesma, pois deveria ter “gritado”
e feito um “escândalo” para que a escutassem e para que seu
filho tivesse mais cuidados durante os atendimentos.
Luna considerava-se explosiva. Falava que se percebesse
que estava sendo discriminada por sua cor ou condição social,
brigava e lutava por seus direitos, fazia escândalo. Aos poucos,
descobre que o início desta postura se deu após a perda do seu
filho, que segundo ela não teria acontecido se tivesse adotado
uma posição menos passiva e gritado, reclamado por um
atendimento melhor para o bebê. Na ocasião em que o filho
adoeceu e veio a falecer, Luna e seu irmão estavam residindo
com a mãe. Seu pai dizia que teria tentado impedir que ela e o
bebê retornassem à casa materna, pois inicialmente ela, o bebê
e o namorado residiam com ele, mas ele impunha regras no
convívio familiar, que Luna não queria atender, preferindo a
moradia da mãe, que segundo ele, dava liberdade demais e não
colocava limites em Luna.
Assim como no momento do falecimento de seu filho,
na ocasião em que se envolve em situação de risco que culmina
com o cometimento do ato infracional, a adolescente residia com
a mãe e o irmão. Luna assassinou um homem mais velho, com
quem às vezes se relacionava sexualmente em troca de dinheiro
e presentes. Segundo ela, sua mãe foi quem os apresentou e
intermediou a relação dois, incentivando Luna a se envolver
com ele, que era conhecido dela.

259 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Como já pontuado, a adolescente considerava-se muito
explosiva e acreditava que esta era a maneira de alcançar seus
objetivos e reivindicar e lutar por seus direitos. Segundo ela,
o cometimento do ato infracional tinha o intuito de defender
sua honra, pois a vítima estava denegrindo a sua imagem,
espalhando pela comunidade em que viviam as coisas que faziam
na intimidade, chamando-a de vagabunda, vadia e prostituta.
Ao tomar conhecimento do que o homem estava dizendo a
seu respeito, e acreditando não ter ele o direito de fazer isso,
sentiu-se desrespeitada e aborrecida e foi procurá-lo, orientada
por sua mãe a fazê-lo e a dizer de seu descontentamento com o
mesmo. Queria que ele se desculpasse, mas durante o encontro,
ao contrário do que ela desejava, ele repetia o que havia dito
na comunidade, reafirmando que a considerava uma “vadia”.
Tomada pela raiva, Luna pega uma faca e, durante o conflito,
o fere. Acreditou que, por ter desferido um só golpe e por ter
saído do local deixando-o de pé, não o havia ferido gravemente.
No entanto, o ferimento foi fatal e mesmo sendo socorrido e
levado ao hospital, ele não resistiu e faleceu.
Após o ocorrido, Luna teve que deixar a comunidade,
já que havia o risco de ser morta pelo cometimento de ato
infracional em local liderado pelo narcotráfico. A mãe e irmão
também tiveram que deixar o local pelos mesmos motivos. Luna
foi para a casa do pai que, ao saber do acontecido, a repreendeu
e afirmou que ela deveria se responsabilizar por seus atos,
apresentando-a à delegacia. Diante do delegado comprometeu-
se a ficar com ela sob seus cuidados e a apresentar sempre que
solicitado. E assim, Luna ficou com o pai até a decisão judicial
de que cumprisse a MSE de Semiliberdade, e sua residência foi
o local de referência familiar durante todo o período em que a
adolescente esteve no CRIAAD.
Sempre disponível aos atendimentos, Luna se mostrava
falante, pontuando sempre seu comportamento explosivo e sua
enorme inclinação para lutar por seus direitos e defender suas
ideias. Aos poucos, conectou o início desta característica à culpa

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 260


sentida por não insistir em um atendimento mais cuidadoso
para seu filho. Além de explosiva, Luna era questionadora.
Questionava as regras da unidade e as decisões tomadas pelo
grupo de adolescentes.
Apresentava-se, por vezes, queixosa de que era
discriminada por outras adolescentes: tinham cabelo louro e/
ou liso, possuíam condições financeiras melhores que a sua e
se achavam superiores por isso. Seu comportamento diante
de situações em que se sentia desmerecida era tempestuoso,
sendo necessário muito trabalho da equipe para contê-la,
já que tendiam a culminar com violência verbal e ameaças
proferidas enquanto andava de um lado para o outro no pátio
da instituição, seguidas de cenas choro. “Parece uma louca”,
diziam. Com o tempo, ao se perceber prestes a “estourar”, Luna
pedia para ser ouvida. Segundo ela, falar a ajudava a aliviar
suas angústias. Principalmente as advindas da perda do filho e
da culpa de não o ter defendido.
Outra questão que se apresentava como fonte de
sofrimento para a adolescente era o fato de não possuir o nome
de seu pai em seu registro de nascimento, circunstância que
permaneceu até a saída de Luna da unidade, pois, apesar de
se comprometer a registrar a filha, por diferentes motivos,
não o fez. A adolescente possuía planos e, apesar da pouca
escolaridade, sonhava em ser advogada e lutar pelos direitos
das pessoas, assim como inserir-se no mercado de trabalho, ou
projeto em que pudesse receber alguma ajuda financeira.
Em atendimentos, falava das discriminações que algumas
pessoas sofriam na vida por causa da aparência, do sexo,
da cor da pele, assim como por suas vestimentas, e refletia
acerca de sua postura, por vezes agressiva e violenta, diante
de frustrações e de conflitos, e das possíveis consequências
da mesma no ambiente de trabalho. Uma das preocupações
de Luna era de como compraria novas roupas para trabalhar,
pois sabia que as suas eram curtas, justas e decotadas demais.

261 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


O pai sempre reclamava e apesar dela gostar de andar assim,
sabia que no ambiente de trabalho precisaria usar outro estilo
de vestimentas.
Durante um atendimento em que falava sobre estes
assuntos, sua mãe comparece pela primeira vez ao CRIAAD.
Foi para buscar a filha para o fim de semana em família. O pai,
desgastado, decidiu que não ia mais responsabilizar-se pela filha
aos finais de semana, já que ela não atendia suas orientações e
passou a frequentar bailes e bares, fazendo uso de álcool e outras
drogas em companhia materna. Quando sua mãe chegou para
levá-la, Luna ficou bastante constrangida com as roupas que
ela usava e reclamou. Orientou que a mãe se sentasse direito,
pois sua saia estava muito curta e apertada. A mãe riu de Luna,
fazendo pouco caso do que a filha dizia. A adolescente se calou
a partir de então, baixou a cabeça e visivelmente constrangida,
não participou mais do atendimento e ficou somente ouvindo
a sua mãe. Levada pela mesma para o fim de semana, não mais
retornou para cumprir a medida a ela aplicada. Alguns meses
depois foi novamente apresentada pelo pai, quem novamente
se responsabilizou por acompanhar Luna no cumprimento da
medida socioeducativa a ela aplicada.

As representações sociais do psicólogo do DEGASE,


suas relações com o caso Luna e a importância da fala e
da escuta no processo socioeducativo
Representações sociais são conhecimentos que circulam
socialmente e que surgem da necessidade de compreensão
de conceitos, situações, ou fenômenos desconhecidos por
determinado grupo de pessoas, mas que fazem parte do
cotidiano das mesmas. São conhecimentos fundamentais para
que determinada sociedade se situe diante de determinadas
situações, tomando decisões e fazendo escolhas.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 262


As representações sociais podem ser compreendidas como:

Um conjunto de conceitos, proposições e explicações originadas da


vida cotidiana no curso de comunicações interpessoais. Elas são o
equivalente, em nossa sociedade, dos mitos e sistema de crenças das
sociedades tradicionais; podem também ser vistas como a versão
contemporânea do senso comum. (MOSCOVICI, 1981 apud VALA;
JORGE, 2000, p. 458).

Assim como Luna verbalizava que o atendimento da


psicóloga a ajudava, os resultados da pesquisa realizada junto
a adolescentes em cumprimento de Medidas Socioeducativas
no DEGASE, a fim de conhecer as representações sociais do
Psicólogo da referida instituição, também apontam para tal
entendimento acerca do profissional em questão. Durante a
pesquisa, os adolescentes foram convidados a responderem
um questionário contendo duas tarefas de evocação livre, uma
delas com o termo indutor PSICÓLOGO DO DEGASE. Após as
evocações, os adolescentes responderam ainda a três perguntas
abertas, também relacionadas ao fazer do psicólogo no DEGASE.
A análise das evocações livres obtidas durante a coleta
de dados, mostra resultados em que os elementos ajuda,
atendimento, bom, conversar e o nome do profissional
(psicólogo que o acompanha na instituição), aparecem como
principais integrantes das representações dos adolescentes
sobre os Psicólogos. Porém, o elemento com o maior número
de evocações e o mais prontamente dito pelos adolescentes ao
ouvirem a expressão “psicólogo do DEGASE” é ajuda.
A palavra “ajuda” possui como alguns sinônimos: “1
Ação ou efeito de ajudar. 2 Auxílio, assistência, socorro”7.
Sendo assim, é cabível a interpretação de que o fato do referido
elemento ser o mais evocado significa que há um entendimento
de que o psicólogo do DEGASE é de auxílio durante o período de
permanência do adolescente no DEGASE.

7 http://michaelis.uol.com.br, acesso em 09 julho de 2016

263 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


O elemento ajuda é seguido por atendimento no que tange
à prontidão que foram evocados, o que sugere uma percepção
de psicólogo como um profissional que atende, o que demonstra
um saber em consonância com a literatura legal que no que diz
respeito às dimensões básicas do atendimento socioeducativo e
especificamente ao acompanhamento técnico ensina que:

Os programas de atendimento socioeducativo deverão facilitar o acesso


e oferecer – assessorados ou dirigidos pelo corpo técnico – atendimento
psicossocial individual e com frequência regular, atendimento grupal,
atendimento familiar, atividades de restabelecimento e manutenção dos
vínculos familiares, acesso à assistência jurídica ao adolescente e sua
família dentro do Sistema de Garantia de Direitos e acompanhamento
opcional para egressos da internação (SINASE, 2010, p.53).

O outro elemento integrante do núcleo central das


representações acerca do psicólogo do DEGASE junto aos
adolescentes é “bom”. É a segunda expressão mais evocada.
No entanto, a palavra “atendimento”, apesar de ter um número
menor de evocações, foi mais prontamente dito pelos sujeitos
entrevistados do que o elemento “bom”.
Na presente pesquisa, a expressão “ajuda” é seguida pelas
expressões “atendimento”, “bom”, “conversar” e o nome do
profissional (o nome próprio da(o) psicóloga(o) que atende o
entrevistado), no que se refere à prontidão da evocação. Diante
de tais dados, é possível transformar estas evocações em uma
frase: “ajuda através do bom atendimento, onde converso com o
profissional tal”.
A evocação da palavra “conversar” e o nome do
profissional indicam a compreensão de que a ajuda através dos
atendimentos tem como viés a conversa com um profissional
específico, que é reconhecido pelo adolescente, pelo nome. A
evocação do nome próprio do psicólogo que o acompanha no
DEGASE sugere ainda, a existência de uma ligação de trabalho
entre adolescentes e profissionais, sinalizando a importância da
manutenção desta vinculação para que a ajuda aconteça. A este

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 264


respeito, no que se tange a composição do quadro de pessoal
em cada modalidade de atendimento socioeducativo, o SINASE
assinala a relevância da consolidação do vínculo e que para que
o mesmo ocorra, se faz necessário o acompanhamento regular:

Para a composição do quadro de pessoal do atendimento socioeducativo


nas entidades e/ou programas deve-se considerar que a relação
educativa pressupõe o estabelecimento de vínculo, que por sua vez
depende do grau de conhecimento do adolescente. Portanto, é necessário
que o profissional tenha tempo para prestar atenção no adolescente
e que ele tenha um grupo reduzido destes sob sua responsabilidade
(SINASE, 2010, p.43).

Algumas pesquisas acerca da Representação Social do


psicólogo, também apontam para o entendimento de que o
psicólogo é um profissional que ajuda. Dentre elas, as realizadas
por Lahm e Boeckel (2008), e por Sobral e Lima (2013), que em
suas averiguações se depararam com “ajuda” integrada ao núcleo
central das representações sociais acerca do psicólogo. Cenci
(2006) cita as investigações de Sarriera e Ribeiro feitas em 1997,
em que já que sinalizam o entendimento do psicólogo como um
profissional que auxilia,

Na pesquisa realizada por Sarriera e Ribeiro (1997), o psicólogo é


percebido como um solucionador de problemas individuais, tanto de
ordem interna (psíquica) quanto externa (relações). Ele é procurado
pelas pessoas entrevistadas para que “ajude, auxilie, oriente, analise,
aconselhe, interprete” (p. 69). O trabalho deste profissional é descrito
como aquele que ajuda as pessoas e orienta o comportamento humano.
Ainda, segundo os mesmos autores, o psicólogo é considerado um
profissional muito importante, necessário e indispensável no âmbito
da saúde. (CENCI, 2006, p.45).

Importa salientar que, mesmo não fazendo parte do


grupo primeiramente evocado que integra o centro das
representações acerca do Psicólogo do DEGASE, o elemento que
estrutura o segundo quadrante é “alívio”. Apesar de único, este
componente carrega em si a capacidade de fortalecer e empoderar

265 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


consideravelmente os integrantes do núcleo central. A ajuda
através de conversas com um profissional, reconhecido pelo nome,
e com o qual os sujeitos estabelecem um vínculo, é entendido como
uma possibilidade de ficar bem e de aliviar as possíveis angústias
inerentes da privação total ou parcial da liberdade.
A compreensão de que o Psicólogo do DEGASE ajuda a
tranquilizar, a acalmar e aliviar, se verifica não somente na apreciação
das evocações, mas também na análise de conteúdo das respostas
obtidas através das perguntas abertas feitas aos adolescentes. De
acordo com as respostas fornecidas por adolescentes do sexo
feminino que cumpriam semiliberdade, a ajuda recebida vem
da possibilidade de se expressar, de aliviar através da fala suas
angústias: “Tem um papel muito importante, faz muita diferença.
Quando estou nervosa eu converso com a psicóloga e ela me dá
vários conselhos bons e me acalma”, “Tira um pouco do seu peso,
tira seus problemas”. E ainda: “Fico mais calma quando converso
com eles”, “Ajuda a manter o psicológico centrado”8
Na internação, onde a pesquisa foi realizada junto a
adolescentes do sexo masculino, surgiram respostas tais como:
“Ajuda o menino a ficar tranquilo aqui dentro, para ele sair mais
rápido. Ajuda se não tiver se sentindo muito bem”, “Ajuda o
próximo a organizar suas ideias, acalma muito. Dependendo de
uma atitude que a pessoa quer tomar, a psicóloga acalma ela”,
“Ajuda a ficar tranquilo”, “Acalma a gente”, “Nos faz por pra fora
tudo o que está guardado, nos ajuda a trabalhar com a mente”9 .
No caso apresentado, Luna demonstrou a necessidade de
ser ouvida durante os atendimentos e em sua demanda contínua
para que os mesmos acontecessem, e que estes, de acordo com ela,
a deixavam “mais calma, mais tranquila”. Durante os mesmos,
podia, dentre outras coisas, falar de sua enorme tristeza por ter
perdido seu filho e da culpa que sentia diante de tal perda, pois
8 Respostas dos adolescentes em cumprimento de semiliberdade, quando pergunta-
das sobre o que faz o psicólogo do DEGASE.
9 Respostas surgidas na internação, dadas pelos adolescentes quando perguntados
sobre o que faz o psicólogo do DEGASE.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 266


acreditava que poderia ter brigado para que o mesmo tivesse
sido melhor socorrido. Durante os atendimentos, esvaziava a
sua raiva e dava sentido a ela através da fala.
De acordo com Quinnet (2000), o que “caracteriza a
demanda não é apenas a relação do sujeito com o outro sujeito,
mas o fato de que essa relação se dá por intermédio da linguagem
através do sistema de significantes. (...) toda fala é uma
demanda” (QUINNET, 2000, p.89). A fala de Luna era demanda
de sentido, de significado e, quando falava, se sentia ajudada,
pois “não há fala sem resposta, mesmo que depare apenas com o
silêncio, desde que ela tenha um ouvinte” (LACAN, 1998, p.249).
“Psicólogo bom é aquele que ouve mais e fala menos”10 , ensinou
um dos adolescentes participantes da pesquisa.

Conclusão
Assim como Lacan destaca a importância de um ouvinte,
os adolescentes participantes da pesquisa, com suas ideias a
respeito do trabalho do Psicólogo do DEGASE e Luna, fortalecem
o entendimento de que a ajuda pelo atendimento deve primar
pela escuta, pois ser ouvido alivia e fornece importantes saberes
referentes aos adolescentes; saberes estes que deverão, dentre
outras coisas, subsidiar a elaboração dos Pareceres Psicológicos e
Planos Individuais de Atendimento, sendo uma das atribuições
do Psicólogo do DEGASE, como abaliza a literatura legal.
Os dados da pesquisa e o caso Luna indicam ainda que há um
entendimento dos adolescentes de que, no cotidiano socioeducativo, o
alívio das angústias através dos atendimentos, auxilia no cumprimento
da medida socioeducativa: “Ajuda o próximo a organizar suas ideias,
acalma muito. Dependendo de uma atitude que a pessoa quer tomar,
a psicóloga acalma ela”11, revela um adolescente em sua resposta.
10 Resposta fornecida por um adolescente que se encontrava em internação provisória
no momento da entrevista e elencada no subtópico nove.
11 Resposta surgida na internação, quando perguntado sobre o que faz o psicólogo do
DEGASE.

267 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Concluo o presente trabalho assinalando que, diante
da realidade socioeducativa do Rio de Janeiro, na vivência
da superlotação de suas unidades (conforme matéria de 05
de agosto de 2016, publicada no Extra Notícias12 e o artigo de
Uchoas, de 31 de julho de 2016, no Le Monde Diplomatique
Brasil13 ), a possibilidade de que o trabalho do psicólogo possa
se concretizar como “de ajuda” se esvai diante da dificuldade
de escutar os adolescentes periodicamente, reconhecer cada um
pelo nome e ser reconhecido pelo seu, oferecendo um espaço que
atenda a demanda de falar e ser ouvido, dando sentido a sua
história, a sua trajetória de vida e em vida.

12 http://glo.bo/2aZ0QLw, acesso em 05 ago.de agosto de 2016


13 Uchoas, L. Superlotado e desumano, 2016.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 268


REFERÊNCIAS

BRASIL. Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo:


SINASE. Secretaria Especial Dos Direitos Humanos.
Subsecretaria De Políticas Dos Direitos Da Criança E Do
Adolescente. Conselho Nacional De Direitos Da Criança E Do
Adolescente. 1 ed. Brasília: Secretaria dos Direitos Humanos,
2010. 100 p.

CENSI, C. M. Representação Social na Piscologia em um bairro


periférico de uma cidade no interior do Rio Grande do Sul.
Aletheia, v. jan/junho, de 2006.

EXTRA NOTÍCIAS. Nove jovens são hospitalizados após fogo


em unidade para infratores no rio. Disponível em: <.http://
glo.bo/2aZ0QLw>. Acesso em 05 de agosto de 2016.

LACAN, J. Escritos. 1 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. 937 p.

LAHM, C.R. & BOECKEL, M. G. Representação social do


psicólogo em uma clínica-escola do município de Taquara/RS.
Contextos Clínicos, v.1, n.2, p.79-92, 2008.

MICHAELIS ONLINE. Ajuda. Disponível em: <.http://


michaelis.uol.com.br.>. Acesso em: 09 julho de 2016.

SOBRAL, M. F. C. ; LIMA, M. E. O. Representando as práticas e


praticando as representações nos CRAS de Sergipe. Psicologia,
Ciência e Profissão, Brasília, v. 33, n. 3, p. 630-645, 201./ago. 2016.

269 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


UCHOAS, Leandro. Superlotado e desumano. Le Monde
Diplomatique Brasil. 31 de julho de 2016. Disponível em http://
www.diplomatique.org.br/acervo.php?id=3247. Acesso em: 01
de agosto de 2016.

VALA, J.; MONTEIRO, M.B. Psicologia Social. 4 ed. Lisboa:


Fundação Calouste Gulberkian, 2000.

QINNET, A. A descoberta do inconsciente. 1 ed. Rio de Janeiro:


Zahar, 2000.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 270


O que eles falam sobre o jovem não é sério? Mídia,
Violência e Direitos Humanos

Maira Bruna Monteiro Santana1


Ingrid Monteiro Siss Braga2
Loise Lorena do Nascimento Santos3
Thiago Melicio4

Resumo
Este estudo apresenta uma análise qualitativa das notícias
de três portais online, onde pesquisamos termos como “menor”,
“adolescente”, “maioridade penal”, entre outros. O trabalho,
tendo a cartografia como método, procura problematizar
processos de alteridade por meio de articulações entre as formas
de agenciamento da mídia e as falas de adolescentes que estão na
unidade feminina do DEGASE-RJ.

Palavras-Chave: Sistema Socioeducativo, Mídia, Alteridade,


Subjetividade.

Introdução
Estamos informados! E parece não haver muitos meios de
fugir dessa condição, pois a todo instante uma nova informação
chega até nós. Ao que pese a reflexão sobre o que representa
o estado de estar ou não informado e o risco de totalização
reducionista que a expressão pode trazer, observa-se, por outro
lado, justamente o constante fluxo informativo que emerge
e circula junto às vivências contemporâneas e que impede

1 Graduanda em Psicologia,UERJ
2 Graduanda em Psicologia,UERJ
3 Graduanda em Psicologia,UERJ
4 Professor Adjunto, Psicologia, UERJ

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 272


que reflexões como essas sejam realizadas. Diferentemente
do tempo em que o sujeito precisava “buscar informação”,
atualmente ocorre o bombardeamento das mesmas, que
chegam através de notificações, mensagens, notícias e emails,
entre outras infinidades de recursos midiáticos. Acostumamos-
nos a essa relação acelerada e instantânea, fazendo com que,
em uma progressiva naturalização desse processo informativo,
precisemos cada vez mais estarmos cientes dos trending topics de
cada dia. É amplamente compartilhada a necessidade de atender
todas as vibrações e toques que nossos aparelhos celulares
emitem. Há um mundo acontecendo e sendo atualizado, que
gera a urgência de não se perder nenhuma dessas atualizações.
Basta realizar alguns movimentos simples e a informação está
ali, atualizando-nos sobre o mundo, revelando seus prazeres e
seus perigos.
Todavia, enquanto um trabalho que, aqui, pretende
problematizar maneiras com que grandes portais de notícias
no Brasil, em recortes específicos, abordaram casos em que
adolescentes em conflito com a lei figuraram como protagonistas,
alguns questionamentos se tornam presentes: qual ou quais
entendimentos e informações de mundo estão sendo atualizados?
O constante bombardeamento de informações tem produzido
um cenário de diversidade e pluralidade de concepções ou
tem alavancado uniformizações de opinião em larga escala?
Como a informação instantânea se articula à proximidade e
ao afastamento de outrem? Quais implicações esses processos
podem ter no debate sobre a juventude, desigualdade social e
as políticas de socioeducação?
Assim, a discussão aponta, de maneira embrionária, à
alteridade e suas formas de emergência, bem como às suas
mediações (do encontro com outrem), ora no que tange à
divulgação difusa, descentrada e isolada da informação,
presentes na sociedade contemporânea; ora na maneira com
que a informação organiza e (re)apresenta grupos sociais
específicos, em especial os de adolescentes em conflito com

273 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


a lei. Não se intenta uma revisão extensiva do tema, mas sim
colocações que lançam luz à produção de uma alteridade, por
um lado, mais próxima e plural, que abre espaços para diferentes
entendimentos de pessoas e grupos e, por outro, a alteridade
radical, em que há uma cisão profunda entre “eu” e o “outro”,
produzindo generalizações e estereótipos (JODELET, 2002).

Agenciando Enunciados: Mídia e Alteridade nos processos


de produção de subjetividade
Os avanços realizados na área da tecnologia da informação
são notórios. Podemos não só acessar a informação com poucos
toques, como podemos produzi-la em poucos passos. A troca
se tornou instantânea. Mas, que troca é esta que se dá através
de sujeitos virtuais e não por meio de contatos pessoais? Nessa
discussão, Guareschi (2006) alerta sobre a perda do locus histórico
da política, a partir do momento que ela deixa de acontecer nos
locais públicos e passa a se efetivar cada vez mais por veículos
de comunicação e aparatos virtuais. Ao mesmo tempo em que
precisamos reconhecer a facilidade e praticidade de poder ter
em mãos e em tempo real toda informação necessária, é preciso
também refletir sobre quais possibilidades foram eliminadas,
como a proveniente do encontro e troca de idéias com o outro.
Notamos, nessa primeira aproximação, o quanto os
avanços tecnológicos agenciam outras formas de relações
humanas, transformando alguns dos processos produtores de
subjetividade. Guattari e Rolnik (1995, p.36) ressaltam que “a
produção de subjetividade constitui matéria prima de toda
e qualquer produção”. Segundo os autores, a subjetividade
refere-se aos modos de expressão que passam não só pela
linguagem, mas também pelos níveis semióticos. A marca dessa
produção é que ela comporta componentes heterogêneos de
poder, agenciando o corpo, o espaço urbano, os componentes
de mídia e de linguagem. Como o autor arremata:

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 274


ao invés de sujeito, de sujeito de enunciação ou das instâncias psíquicas
de Freud, prefiro falar em ‘agenciamento coletivo de enunciação’.
O agenciamento coletivo não corresponde nem a uma entidade
individuada, nem a uma entidade social predeterminada (GUATTARI;
ROLNIK, 1995, p.39).

Pensando, não em indivíduos fechados, que manifestariam


um psiquismo de ordem particular e isolada, mas em
composições coletivas de modos de subjetivação, que acarretam
em efeitos específicos no âmbito do sujeito, cabe observamos
como a transformação das relações humanas implicam em um
rearranjo nas possibilidades de agenciamento dos enunciados,
seja produzindo campos de diversidade, seja produzindo
homogeneização. Se vivemos na era da informação e a mesma
pode ser encontrada em um dispositivo de bolso, não é mais
necessário circular em busca dela. Ir até a banca de jornal pela
manhã, por exemplo, é um hábito que tem perdido espaço em
boa parte da população. Por mais simples que este exemplo possa
parecer, ele retrata como a deterioração de meios tradicionais
de informação por vezes passam pela associada diminuição de
interação e trocas sociais. Conforme aponta Abreu (2003), são em
universos como os das bancas, bares, botecos e outros espaços
eminentemente coletivos, em que ocorrem as imbricações
das redes de sociabilidade e da produção dos modos de ser,
fazendo com que a circulação de informações passe pelo crivo
dos sotaques, gestos e diferentes corporeidades. Uma ida ao
jornaleiro não é um ato tão individualizado quanto pegar o
celular e deslizar por sua tela. Ela envolve contato tanto com o
jornaleiro, como com os clientes da banca, transeuntes e outros
personagens, que dão contornos diferenciados à margem de
possibilidades de agenciamentos.
Fausto Neto (1999 apud NJAINE, MINAYO, 2002, p. 286),
também aponta para a questão da editoração, afirmando que
“nunca é demais repetir que há várias maneiras de sofrer e
morrer dentro das páginas e hierarquias editoriais dos jornais.
Sujeito sem voz, ou voz assujeitada à voz-leitora dos jornais, esse

275 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


é o mecanismo que caracteriza a moderna narrativa jornalística”.
São esses sujeitos e grupos sociais, assujeitados no discurso
midiático, aqueles que sentem o impacto do mundo em seus
corpos e em seus trânsitos. Desse modo, percebemos um processo
avesso à alteridade aberta, descrita por Deleuze (2007), que afeta
e é afetada pela diferença. Segundo o autor, no encontro em que
se agencia pela capacidade de afetação, o outro é capaz de nos
apresentar um novo mundo possível, atualizando nossa maneira
de ser e de compreender o que está a nossa volta a partir dos
elementos que ele traz para nossas percepções.
Estamos informados e isolados. Refletimos, assim, acerca das
subjetividadesqueestãosendoproduzidasapartirdofluxoextremamente
acelerado de informações. Se o outro é aquele que me apresenta um
mundo possível, me atualiza e me faz questionar, como pensar as
subjetividades presentes neste contexto fomentador do individualismo
e ávido por acompanhar o fluxo acelerado das informações?
Deleuze (2007) pontua que a eliminação do outro é aquilo
que dá abertura para o surgimento dos “duplos do mundo”, o que
favorece a repetição do mesmo. Nessa perspectiva, acabando com
a diferença, com a existência de outros elementos marginais na
percepção, a pessoa é capaz de estender seu mundo existencial a
tudo que a rodeia, o quanto lhe for necessário. Nesse sentido, cabe
observar nas circulações dos discursos midiáticos o quanto são
disparadores de tensão, contradição e diversidade ou de formação
de “duplos”, eliminando e homogeneizando as diferenças.
Njaine e Minayo (2002, p. 287) defendem que a mídia, além
de “narrar as notícias do dia, procurando cumprir sua função
informativa (...) configura e expressa um sistema de valores,
associado ao lugar do jornal como sujeito de enunciação”. Sobre
isso, Conde (2009) pontua que a forma como nos posicionamos
sobre os fatos com os quais nos deparamos no nosso cotidiano está
intimamente ligada à forma como são veiculados na mídia, pois a
última, em muitos momentos, confere contornos bem definidos e
fechados sobre os temas.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 276


Isto vai de encontro às quatro afirmativas de Guareschi
(2006), quem descreve que a mídia: constrói a realidade, dá valor
a ela, aponta qual é a agenda de discussão social e, por fim, se
apresenta como um novo personagem com o qual dialogamos,
mais até do que com os personagens em questão. Tudo isso se
articula, também, com Belloni (1998, p. 46), quando este diz que
ao difundir amplamente a informação para os públicos, “com
a mesma abordagem sensacionalista, os privilégios e ações das
classes dominantes e as ocorrências violentas, a ação da mídia
pode ter um efeito generalizador e provocar uma espécie de
naturalização da violência como uma volta da barbárie”.
No tocante aos efeitos desses processos nos grupos de
adolescentes, tema deste trabalho, Njaine e Minayo (2002, p. 296)
pontuam que “a ideologia que os discrimina e os desconhece
como sujeitos de direitos e os substantiva como ‘menores’
se produz na sociedade e se retrata na imprensa por meio do
estigma de marginalidade”. Tal reflexão pode ser articulada a
Goffman (1988) e seu conceito de estigma, em que determinado
sujeito é destituído de sua potência de vida:

[o sujeito estigmatizado] tem um atributo que o torna diferente de


outros (...) sendo, até [considerado], de uma espécie menos desejável -
num caso extremo, uma pessoa completamente má, perigosa ou fraca.
Assim, deixamos de considerá-lo criatura comum e total, reduzindo-o a
uma pessoa estragada e diminuída. (GOFFMAN, 1988, p.06)

Nesse sentido, procuramos articular a problematização


da mídia às falas de adolescentes que se encontram em conflito
com a lei. Para tanto, nossas atividades se desenvolvem no
PACGC (Professor Antônio Carlos Gomes da Costa), unidade
de internação feminina do DEGASE (Departamento de Ações
Gerais Socioeducativas). Neste campo, a postura orientadora da
pesquisa refere-se à cartografia social e ao modelo rizomático
que análise, em que diferentes composições podem derivar das
falas e encontros, tal qual o “uno que se torna dois, depois dois
que se tornam quatro” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.12).

277 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Sendo assim, entre algumas das ramificações da ação do nosso
trabalho (sempre contextualizadas pelas questões surgidas das
atividades na unidade), foi conferido foco à mídia online, por
sua capacidade ostensiva de alcance e facilidade de acesso, e às
narrativas das adolescentes acerca do tema.

O encontro com as adolescentes na mídia e no DEGASE


Demos início às nossas atividades no DEGASE em agosto
de 2015, época em que se discutia a proposta de redução da
maioridade penal. Assim, procurou-se observar o quanto
as notícias circulantes desse momento alimentaram ou não
representações historicamente conferidas aos adolescentes
em atos infracionais, discutidas em estudos anteriores, como
“’pequenos predadores’, ‘pivetes’, ‘futuros bandidos’” (VOLPI,
1999 apud NJAINE & MINAYO, 2002, p.287). Buscou-se
refletir sobre quais elementos estavam sendo agenciados para
territorializar a figura do adolescente, e quais posturas seriam
daí decorrentes. Deleuze e Parnet (1998, p.43) propõem que o
“enunciado é o produto de um agenciamento, sempre coletivo,
simbólico, real, sempre adiado para amanhã. Que põe em jogo,
em nós e fora de nós, populações, multiplicidades, territórios,
devires, afetos, acontecimentos”.

Levantamento na mídia
Para iniciarmos a discussão referida, nos direcionamos
à pesquisa de matérias e notícias através dos mecanismos de
buscas de três diferentes portais de notícias web: G1, UOL e BBC.
Utilizamos as seguintes palavras-chave: “adolescente”, “menor”,
“crime”, “roubo”, “furto”, “maioridade penal”, “RJ”, que foram
consultadas separadamente, ou em conjunto de duas ou três
palavras, tendo como recorte temporal o mês de maio dos anos
de 2015 e 20165 .
5 A pesquisa encontra-se em andamento. Outros portais e recortes temporais estão

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 278


Foram analisadas, no total, 105 matérias. As palavras
“adolescente”, “menor” e “RJ”, combinadas, apresentaram no
portal G1, notícias acerca de superlotação no DEGASE, estatísticas
de apreensões, notícias sobre tráfico, mortes no tráfico, porte e
arma e roubo. Já no BBC, essas mesmas palavras-chave retornaram
notícias acerca o debate sobre a redução da idade penal, cobertura
da votação e a consequente aprovação da PEC 171. No portal UOL,
com a mesma pesquisa, verificamos notícias de violências tanto
cometidas como sofridas por adolescentes. Foi verificada também
certa distinção entre esses enunciados, em que “menores” são
(em sua maioria) aqueles que comentem atos infracionais (cujos
portais de notícias atribuem erroneamente o status de crime) e
“adolescentes” são aqueles que sofrem as violências.
Destaca-se que no início das pesquisas foi observado grande
destaque conferido à morte do médico na Lagoa Rodrigo de
Freitas, zona sul do Rio de Janeiro. Em discussão sobre esse tipo
de acontecimento, Ramos e Paiva (2007, p. 99) dizem que “a maior
expressão da hierarquização, que culmina na definição de valores
diferenciados para a vida, é o destaque concedido pela mídia à
morte de pessoas dos setores médios ou dominantes, ao lado da
naturalização do massacre cotidiano de moradores da periferia”,
fazendo com que ocorra certa “holofotização” do acontecimento.
No tocante a outros termos, buscas realizadas com as
palavras “adolescente” e “menor” retornaram no G1, resultados
como morte de adolescente em instituição socioeducativa, fuga de
centros de internação, roubos, homicídios e estupros cometidos
por “menores”. A busca no BBC, além de propostas e debates
acerca da redução, forneceu notícias como uma entrevista com
Coronel Telhada (deputado estadual-SP, que se posiciona a
favor da redução da idade penal), aprovação pela Câmara dos
Deputados da PEC 171, denúncias de pedofilia, ameaças a
deputado que votou contra a aprovação da PEC e relatos de ex-
sendo levantados. Os materiais aqui destacados são trazidos em função de uma maior
problematização em relação aos demais, mesmo também se encontrando em momento
embrionário de análise.

279 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


internos de instituições destinadas ao acolhimento de adolescentes
em privação de liberdade. Já no UOL, foram constatadas matérias
sobre atos infracionais, notícias acerca do ECA e seus 25 anos,
debate da redução da maioridade penal com pais de ”jovens
mortos por adolescentes”, e casos de adolescentes vítimas de
estupros coletivos.
Demais buscas efetuadas no portal UOL, com utilização das
palavras “crime” e “adolescente”, retornam notícias que situam o
adolescente como aquele que sofre o crime (não mais como o agente
do “crime”), além de matérias sobre puberdade, educação sexual,
cognição do adolescente, ou seja, uma abordagem que agencia
elementos médico-pedagógicos e não somente os jurídicos.

Discussão no campo: a mídia e as percepções sobre si e sobre


o mundo
Pensando sobre a afirmativa de que “não há subjetividade sem
uma cartografia cultural que lhe sirva de guia; e, reciprocamente,
não há cultura sem certo modo de subjetivação que funcione
segundo um perfil” (ROLNIK, 1989), podemos, por meio do método
da cartografia psicossocial, nos debruçar sobre a questão posta
anteriormente: de que forma as lógicas apontadas são vivenciados
pelas jovens?
Nesse intuito, propusemos atividades no DEGASE nas quais
procurou-se problematizar a mídia junto às adolescentes, mostrando
a elas imagens resultantes das buscas das mesmas palavras que
usamos para procura das notícias. Tal discussão produziu falas tais
como a de C., de 17 anos, em atividade no PACGC, em 20/05/16:
“para a mídia nós somos marginais... se a lei diz que nós somos
adolescentes, somos adolescentes!”. Questionando: “Vai mandar
pra Bangu por quê?”, fazendo uma alusão ao interesse de redução
da idade penal.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 280


Nos encontros foi comentada distorção que programas
televisivos realizam ao discorrerem sobre como seria a vida no
sistema socioeducativo. Nas palavras de G., 15 anos:

Dizem que estamos num spa. Não é isso! Será que iam querer passar
as férias aqui?!... olha, aqui não tão é ruim? Pode não ser como uma
cadeia tipo Bangu, mas ninguém quer vir pra cá!Eu não quero voltar.
Ninguém quer... O que eles querem (TV) é que a gente suma, seja
exterminado. Mas quanto mais eles falarem isso, pior vai ser, pois isso
revolta! (Entrevistada adolescente G., PACGC, 27/05/2016)

Considerações finais
O presente trabalho procura abordar a temática da mídia,
da produção de subjetividade e de como esses processos
agenciam elementos ligados aos adolescentes, em especial aos
que se encontram em conflito com a lei. Cabe ressaltar que se
trata de uma pesquisa em andamento. Muitos dos pontos
abordados ainda se encontram em fase inicial de análise, como
a sistematização dos dados levantados nos portais eletrônicos
de notícias, bem como as falas e dinâmicas ocorridas nos
encontros no DEGASE. O que se procura apresentar aqui são
indícios de alguns substratos estéticos, políticos e econômicos
que transversalizam as vivências do grupo em questão. No
primeiro contato com as matérias, destacam-se a relação entre
a abordagem criminológica, que agencia os termos “menores”,
“futuros bandidos”, “perdidos”, com um tipo de alteridade
em que o outro, no caso o(a) adolescente, se mostra distante do
contexto daquele que noticia e daquele que lê. Nesse tipo de
agenciamento, o território que ganha consistência, é aquele que
promove a individualização da análise, projetando a culpa do
acontecido sobre o jovem. Já nas matérias em que há uma maior
problematização do tema e que o personagem não ocupa apenas
o lugar do infrator, mas também o de vítima ou de cidadão (que
também “enfrenta os problemas da cidade” e não simplesmente
“é um dos problemas da cidade”) a alteridade apresenta-se mais
aberta, enriquecendo o debate.

281 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas


Por fim, no tocante aos encontros no DEGASE, percebeu-
se a importância da participação no debate daquelas que são as
principais interessadas, as adolescentes em conflito com a lei, como
também da reflexão sobre como os elementos estigmatizantes que
por vezes circulam na mídia dão formas e corroboram atitudes
de descaso e desrespeito a esse grupo, incluindo profissionais
de segurança e da comunicação que acabam por dificultar a
obtenção da garantia dos Direitos Humanos.

Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 282


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285 Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas

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