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O Leblon está (sempre) de férias

Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram,


mas a areia é quente, e há um óleo suave
que eles passam nas costas, e esquecem.
Carlos Drummond de Andrade

Tenho falado que morar em um apartamento de 17m² durante dez anos me trouxe uma “ética do
conjugado” que significa um aprendizado de olhar sempre para pouco e aprender a viver com
pouco. E do pouco que vejo gosto de falar.

Um fenômeno (não incomum) que eu vi largamente acontecer na pandemia é uma espécie de êxodo
da elite. Desde as novelas do Manoel Carlos que a gente conhece isso: as famílias e grupos mais
abastados passam seus finais de semana nas serras. Itaipava, Araras são uma geografia comum em
bangalôs de madeira.

E o que o Leblon tem a ver com isso? O Leblon não é uma geografia, mas umaconceito. E ele está
em toda elite do Rio de Janeiro – incluindo a intelectual da qual faço parte – e, quiçá de toda cidade
grande. A lógica é bastante cruel e vive de uma deformação própria do capitalismo.

O capitalismo vive das desigualdades. Da promessa de que ela acabe, da esperança disso, mas
criando o tempo todo um grupo de desiguais. É o que alimenta ele. Então, produzir desigualdades é
a única forma de equilibrar a balança. Uma cidade deve concentrar toda a população e todo o
dinheiro e, por consequência, toda a miséria. Enquanto isso, outros espaços viram refúgios,
descansos, resorts, spas, chalés.

E os inocentes do Leblon, de todos os Leblons, precisam morar nessa cidade grande pra extrair dela
o máximo de dinheiro possível. Morar nessa cidade e consumir dela e de seu capitalismo todo
dinheiro que ele possa trazer. Viver “no caos da cidade grande”, mesmo com varanda e vista bonita
é o preço a se pagar pra fazer parte dessa elite, financeira, cultura, intelectual, mas fugir nos
primeiros raios de uma crise. Sumir mesmo, viver no mato e reclamar da internet ruim, se possível.

Porque ser um inocente do Leblon significa, antes de tudo, deixar a miséria aos miseráveis. A
violência aos violentos. A crise aos críticos. A doença aos doentes e a pandemia aos contaminados.
E com seu dinheiro extraído dessa violência, o inocente do Leblon vai pra um sítio, fica um fim de
semana, ou um mês ou até tira um ano sabático. Pega o dinheiro tirado da desigualdade e aplica em
outro lugar. Não sofre com quem sofre, apesar de se dizer empático. Não aguenta o tranco com
quem morre, mas twitta de longe. Tem cachoeiras e praias longínquas pra frequentar, mas crítica
quem foi num sábado em Ipanema ou no Leblon pegar um sol e não tem carro e precisa de ônibus e
usou metrô.

A palavra é fuga de capital. Ou, ainda, evasão de divisas. Ou, ainda paraísos fiscais. Pra isso
existem condomínios: pra encarcerar o dinheiro da elite entre ela própria pra ninguém mais
desfrutar das suas qualidades, de seus frutos.

Durante a pandemia, isso ficou claro: quem tinha dinheiro fugiu pro mato, pra um sítio, pra um
condomínio fechado, fez trilhas e nadou em praias cristalinas que ninguém pode chegar. E a cidade
ficou fudida como sempre sem o dinheiro dos inocentes do Leblon. Os inocentes do Leblon,
coitados, fugiram pra cuidar da saúde mental.

Mas mandaram boas energias de longe pra quem ficou.

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