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Hiromi Kawakami

Quinquilharias Nakano

Tradução do japonês
Jefferson José Teixeira
AS MAÇÃS

—  Ele afirma que o isqueiro vale quinhentos mil ienes —


dirigiu-se o senhor Nakano a Takeo, rindo de modo sarcástico.
—  Ahn? — respondeu Takeo com o rosto sem expressão.
Como Takeo se calou, o patrão também permaneceu em
silêncio. O senhor Nakano me olhou como se quisesse me
perguntar se teria dito algo errado. Takeo permanecia de pé,
de rosto inexpressivo, sem notar a compleição do patrão.
“Detesto Takeo”, pensei. Ele é sempre assim. Quase não
se preocupa com os outros, mas parece forçar as pessoas
a se afligirem por ele.
—  Quem sou eu para ter quinhentos mil ienes — res-
pondeu Takeo depois de algum tempo. Suas faces estavam
um pouco avermelhadas.
O senhor Nakano se apressou em fazer um gesto de
negação.
—  Na realidade, vamos leiloá-lo e você poderia dar um
lance, o que acha?
Takeo olhou para o patrão com um ar vago.
—  Você não usa a internet? — perguntou o senhor
Nakano, mostrando a palma da mão.
—  Uso — respondeu Takeo de modo breve.
—  Então vou lhe ensinar os macetes dos leilões. Expe-
rimente dar um lance. Se sair vencedor, não há despesas de
envio — explicou o senhor Nakano mexendo irrequieto em
seu boné. Manuseava-o exatamente como eu fizera pouco
antes com meu vestido.
“De fato odeio Takeo”, pensei de novo. Sinto isso ainda
mais do que há pouco. Por que me atormento por alguém de
quem nada devo esperar? Enfureço-me comigo mesma. Pre-
ciso chegar ao ponto em que possa afirmar tê-lo esquecido

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QUINQUILHARIAS NAKANO

em definitivo, me apaixonar com loucura por um novo ho-


mem, deixar meu relacionamento com Takeo como uma
doce lembrança e, comendo bastante legumes, algas e
feijões, viver meus dias radiante de saúde e energia.
Enquanto pensava voltei a sentir completa tristeza. Não
me entristecera por ter pensado nele. Definitivamente não.
A propósito, como estaria Masayo? Havia três dias que
não a via. Depois que o cliente do isqueiro partiu, por mais
que esperássemos, Masayo não voltava do almoço.
—  Não é de hoje que minha irmã age assim. Apenas
desaparece e um tempo depois surge como se nada tivesse
acontecido — balbuciava para si mesmo o senhor Nakano
enquanto fechava a loja.
O “minha irmã” do patrão nesse dia diferia da forma
como de costume o pronunciava. Foi do tipo que possivel-
mente não diria aquele senhor Nakano insolente de meia
idade, mas sim o lado adolescente e imaturo que ainda
conservava.
—  Que acha de eu ir até a casa de Masayo? — propus
dirigindo-me ao patrão, que não cessara de manusear o
boné. Eu procurava não olhar para Takeo.
—  De fato. Pode ser melhor — respondeu o senhor Nakano,
apreensivo. Takeo se moveu. Não entendo em absoluto o que
ele pensava. Antes eu imaginava que o entendia um pouco.
—  No caminho de volta darei uma passada lá — prometi.
O senhor Nakano juntou as mãos num gesto de súplica
e tirou da caixa registradora uma nota de cinco mil ienes.
—  Você poderia comprar uns pedaços de torta ou algo
assim. — Ao dizer isso colocou a nota em minha mão.
A nota estava amarrotada. Takeo continuava de pé, imóvel.

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AS MAÇÃS

* * *

Ao contrário do que eu esperava, Masayo se mostrava


animada.
—  Ah, que bom que você veio — disse e me convidou
a entrar. Ao entregar-lhe as tortas do café Poésie, Masayo de
imediato abriu o pacote.
—  É verdade, Hitomi, são todos folhados — riu.
—  Folhados? — Retruquei e Masayo ergueu as sobran-
celhas.
—  Lembra, quando você veio da última vez investigar
minha situação com Maruyama a mando de Haruo — expli-
cou ela colocando no prato à sua frente a torta de limão. —
Vamos, pegue a que você gosta.
Falando nisso, eu já a visitara antes trazendo os mes-
mos doces do Poésie. Cerca de um ano se passara desde
então.
—  Como o tempo voa — declarou Masayo como se adi-
vinhasse meus pensamentos.
—  Como? — minha voz denotava admiração.
—  Sem dúvida, torta de cerejas.
—  Como? — repeti.
—  Você escolheu também torta de cerejas da última vez.
—  Foi mesmo? — exclamei atrapalhada e Masayo assen-
tiu de modo enfático.
Durante algum tempo nos concentramos nas tortas.
Quanto foi mesmo que o senhor Nakano me dera daquela
vez? Cinco mil ienes? Três mil? Pensava nisso enquanto
enfiava o garfo na torta. Era incapaz de me lembrar com
exatidão.

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QUINQUILHARIAS NAKANO

—  Diga, Hitomi, você considera o desejo sexual algo


importante? — perguntou Masayo bruscamente.
—  Como?
—  Tudo se torna desinteressante quando não há desejo,
não concorda?
Sem saber o que responder, mordi e engoli em silêncio
a massa da torta.
—  Você, Hitomi, ainda deve ter um desejo sexual intenso.
Como a invejo! — declarou Masayo cheia de admiração en-
quanto debicava com o garfo o merengue fofo e leve da torta
de limão. — A propósito, não acha que nos últimos tempos o
sabor dos doces do Poésie vem decaindo um pouco? — pros-
seguiu ela num tom indiferente.
—  Em geral não como muito, não saberia dizer — res-
pondi num tom educado.
—  Entendi — replicou Masayo, colocando na boca
um grande pedaço de torta. — Mas hoje está deliciosa.
Seria em razão de minha condição física? De fato é duro
envelhecer.
Masayo o disse de modo jovial. “Desejo sexual”, procurei
repetir para mim mesma. Pareceu-me ter uma ressonância
curiosamente alegre, semelhante ao tom usado por Masayo.
“E eu não aprecio tanto assim as tortas de cereja”, pensei.
Mesmo assim, eu as acabo escolhendo, totalmente enfeiti-
çada pelo vermelho parecendo molhado.
O aroma da manteiga da massa da torta espalhou-se pelo
interior de minha boca. O queixo de Masayo se agitava ao
devorar a torta de limão.

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