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um beijo dado mais tarde

Maria Gabriela Llansol


Biblioteca Prestígio
um beijo dado mais tarde Maria Gabriela Liansol
Maria Gabriela Llansol
2001 BIBLIOTEX, S. L.
para esta edição Licença editorial por cortesia de
Edições Rolim, Lda,
capa Ne, Color Book
Revisão: Ignacio VázqLje-Impressão e encadernação: Printer, Industria Gráfica, S. A.
Ctra. N-II, km 600
08620 Sant Vicenç deIs Horts (Barcelona)
Impresso em Espanha
Data de impressão:
Maio de 2001 ISBN: 84-8130-297-X Depósito legal: B. 19 706-2001 Tiragem: 30 000 ex
emplares
Todos os direitos reservados
De venda conjorita e insepanWel com este jornal
um beijo dado mais tarde
Maria Gabriela Llarísol
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Grande Prémío de Romance e Novela
-A 5 5_O@@I A@Ç Ã 0--PORTUGUESA
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A Morte de Assafora
CAPíTULO 1
Prólogo
prendeu a cabra a um castanheiro que se via da janela mas estava longe; a cabra
não deixava de se ouvir e, mesmo depois do pôr-do-sol, balia; disse que ia cortar-lh
e o som, e dirigiu-se para ela com a mão direita e uma faca; o pêlo agitou-se sem ba
lir, e ficou a sangrar; mais nenhum ruído atra-
vessou o nosso sossego, mas uma segunda língua, com parte no céu-da-boca, principiou
a nascer-lhe, e foi ela a voz.
0 lugar da intersecção da língua arrancada com a outra língua transparente é herança da rapa
riga que temia a impostura da língua. Por isso, eu tenho de encontrá-la, e trazê-la pa
ra fora da sua nostalgia infinita. E não só. Da intersecção das duas línguas - a que se ou
via balindo, e a que nasceu do sangue - voou o Falcão, ou Aossê feito ave.
Falo ao cordeiro-objecto, cantando estas circunstâncias nascentes que sobrevieram.
Na casa, não se administrava bem a Justiça da língua.
1 - subo, sobe o primeiro lanço de escada com um certo medo; toca à porta uma vez po
rque está lá dentro uma sombra doente sob o nome velho reflexo da posse dos bens mat
eriais que ela muito desejou em vida; sou a rapariga que temia a impostura da líng
ua e, ao subir estas escadas para tocar as chamas da entrada
em que arde, no presente, o passado, sinto-me Témia, temível e com temor.
Minha tia Assafora está com grilhões deitada na cama, e uma melodia cantada por Joha
nn desce no quarto porque ela comigo entra em toda a parte; ela tem um volume míni
mo, à mercê dos ventos. Seus olhos vêem ainda menos do que dantes, e traço intimamente,
sobre eles, o sinal da música; está acompanhada por três mulheres servas, compa
nheiras, ladras? Amigas reais? a desocultação da língua não mo diz, sinto que passo
por detrás de um outro de grande obscuridade, e espero que me recebam. Quem me rec
ebe primeiro, e me dirige palavras de fidelidade e de afecto é a minha serva; não é um
a velhinha - apesar da sua, muita idade -, é uma força combativa; de pé, uma mulher ai
nda jovem, amarelo-pálida na pequena luz que o candeeiro projecta. Chamo-a S. Subt
raio-me à impressão de afogamento que me provoca a entrada neste círculo de sofrimento
da língua.
- Há assim mais círculos infernais? E Johann, que me acompanha, responde-me com uma
só nota:
- Há. Os círculos do obscuro não são totalmente infernais, nem os ângulos do paraíso totalme
nte luminosos, num e noutro lugar há impostura; assim, os pés de Johann, também presen
tes no quarto, virão a ser confundidos com os pés do toucador, conforme a maior ou m
enor proximidade auditiva que eu tiver deles; a terceira mulher é, sobretudo, uma
voz, que nasce da extinÇão da voz de Johann; mente, e espolia a minha dona, Assafora
, já sem vontade, deitada, quase pedra no reino dos céus; mas eu talvez esteja a
julgar mal o que vejo, e esteja a ser enganada pelo sofrimento da língua que não
consigo conter.
De qualquer modo, a presença da proximidade da morte é um carvão aceso, e eu crio-me s
entada à beira da minha origem, situação que se repete em vários períodos do ano, quando e
u venho aqui; há um mistério relativo ao meu nascimento que me fecha - esta abertura
natural para o paraíso pertence-me? estes móveis e objectos de adorno, transfig
urados, consumidas as suas carnes, prata, madeiras, ou cristal, serão os meus bens
luminosos? Que querem afirmar-me estas mulheres acompanhando estes objectos, cu
jas asas não batem. Adejam. Gotas de água açucarada pingam de um frasco suspenso no pu
lso de Assafora, onde eu sei que Aossê gostaria de estudar, para a sua Poesia, a c
laridade morta dos olhos; fico sentada numa poltrona, a fazer companhia a toda e
sta luz ressentida onde entro lentamente e, pela segunda vez, pela mes-
ma porta.
2 - Bach canta pela voz de Anna Magdalena, é aquele que ocupa o centro do toucador
, junto do espelho.
Será uma profanação fazer diligência por encontrar a arte nos restos humanos? Será errado
encontrar-me com o sagrado neste quarto, a olhar a forma sentimental destas figu
ras acompanhantes, e destes móveis?; o que é meu não é meu, estou na parte do templo des
tinada aos que vivem envoltos em mistério. Assafora jacente é o fim de que nasce um
ser, e faço-lhe uma festa tímida na testa, ou à silhueta de navio do seu ir-se embora;
que toda a obscuridade seja móvel, e deslize para fora do quarto,
mesmo a minha, pois não sei como exprimir a ideia que me provoca aquele ser f-init
o, com substância infinita. Será realmente infinita, ou
engano-me nas palavras, manchando o canto com que entrei?
A música já não é minha, percorre o corredor do espaço até à sala de jantar onde, numa certa
ena, construí a minha infância. Que grande terror terem-me mandado até aqui, já não como f
ilha da casa, mas como neblina muito densa de onde se espera a luz; ao fixar uma
salva, tenho um sonho de prata desenhado a lápis no meu pulso; dos lagos, no seio
das águas do mar com um golpe de navalha; a partir do que nele leio, reconstituo
a minha visão, que gostaria que fosse ouvida pela minha tia doente: estou na grand
e sala em que habitualmente vivo, e somos, no máximo, três; de modo natural, é noite lá
fora, onde há um jardim com árvores soltas, cantadas por alguém que conhece o espaço; fi
tas douradas, lianas capazes de doçura, pendem dos ramos fixando nossos olhos; a n
oite ressai até dentro de nós, e reparo na cómoda onde essas mulheres guardam os nomes
que dão às coisas da sua conveniência; na primeira gaveta entreaberta, chove. Vou bus
cá-la, e vejo que algumas palavras estão negras enquanto que outras são azuis e dourad
as. - Também há tristeza no paraíso - diz-me Bach, que se liga a outra mão para
a segurar.
Respiro. Fazem permutar as palavras, Inebriada por esse
álcool, encontro-me na rua, também eu munida de desejo e
de poder. Vou a uma loja que tem a porta quase coberta por um monte de palavras.
Alguém, deitado no chão, procura pe-
netrar o monte - e eu baixo-me para impedir que as palavras se espalhem na rua;
surge então, em lugar inferior às sílabas/letras e acentos, um ninho de gatos brancos
que reco-
nheci serem aves do paraíso. - Também há alegria sobre a terra - diz-me Bach.
3- Sentei-me junto dela, a ler-lhe 0 Livro das Comunidades que princi
piava a encarnar num corpo humano naquela noite de vigília (recebe - por este movi
mento de ave - o voo do paraíso); a Nuvem Pairando, eterna tarde com noite própria,
inclinava-se à chuva torrencial e eu, a gritar do lado direito da floresta que cer
cava aquele local, subira a um pequeno monte, e tentava a elevação no ar; uma pequen
a ferida manchava-me a mão; queria atá-la com a
fita verde que Infausta guardava no tubo acústico da Nuvem Pairando; a confusão rein
ava no silêncio que a ferida projectava nos meus olhos e, respirando a entrada que
se tornara vazia, perdi a consciência de ser eu quem falava, e dirigí-me para o reg
aço de Infausta. «afiro todas as luzes por uma luz média, uma noite em que eu estava n
o regaço da minha serva, na pequenina casa única; tinha o meu quarto ao lado, sem
electricidade ainda; o prazer de ser criança, nua ao sabor das águas e dentro da luz
média, entre oliveiras que delimitavam o exterior, era o guia para um prazer supe
rior a todos os prazeres a que subi» - e continuo falando a Assafora: «havia um segr
edo»; era a trepadeira que envolvia o lugar
tudo tão simples: A é serva; quando engravida de B, o filho da casa, só pode cantar o
amor de boca fechada; alguns anos mais tarde, o filho da casa contrai matrimónio,
e dessa união tem uma filha ; o primeiro filho - o da serva - foi abortado; e
«Sobre esta casa pairou um mistério, um não-dito, que alisou, numa pequena pedra, uma
irreprimível vontade de dizer. Deste mistério, e no fim de um trabalho executado a s
om e a cinzel, fez-se a rapariga que temia a impostura da Ungua e que queria», atr
avés da palavra, fazer ressoar fortemente, o seu irmão morto. A sombra desse irmão não t
inha fim na casa, e enquanto os amantes se beijavam novamente, ou re-
petídas vezes, Témia não podia vê-los da posição em que se encontrava, mas saía do lodo que s
acumula no fundo do amor; tinha a obrigação de cumprir a penitência imposta pela impo
stura e, sobretudo, de morder a claridade; entrou, de novo, na via, ou no caminh
o, através de Infausta,
o nome da serva, na casa dos Bach, e que aqui, na casa da Domingos Sequeira, eu
chamei Mélito. Maria Adélia.
4 - Esta manhã, lavei a roupa suja de Assafora que sob a sua
forma de i.a não existe; a palavra que falta é a vossa palavra, e vossa e
stá também sob o traço vazio; e assim indo, sucessivamente, cheguei à planície da língua - q
ue Mar Morto, pensei; onde está a jovem mulher verde, desenhada a clorofila, que t
em forma de cabeça.
Pus a secar ao Sol - por um dia de Outono as
últimas roupas de Assafora, símbolo daquela casa - en-
quanto ela estiver voltada para si; ter-se-á dissolvido numa pedra, ou será uma cor
paralela a outra de que não pode tomar conhecimento?
- «Foi alimentar a lua» - disse Aossê.
5 - Compreendi que a Nuvem Pairando que me assiste
«era a única cúpula do inverno».
- Será que os objectos herdados podem ser os contornos das confidências incompletas?
Descubro entre os objectos esta pergunta - que me invade. Por agora antes de
passar para a boca deles, que é a fome, o brilho, e uma maneira silenciosa
de revelar-se a quem lhes tira o véu.
Talvez Anna Magdalena seja apenas um objecto no meu
pensamento. E Jade, o meu cão, que se aproximou dos meus
pés? E a minha imagem? Por que necessita da intrepidez da ra-
pariga que temia a impostura da língua? Compreende,se que Aossê, dentro da sua órbita,
tenha o terror das cores. não atravesso o corredor; Témia entra imediatamente na sa
la do jantar através da luz que se acende. Pousa na mesa, e olha as duas cadeiras,
uma ao lado da outra - uma para a escrita, outra para quem escreve.
]o
Abre a janela com o meu desejo de ar livre, e a sombra do sol indica-lhe sobre c
ada móvel, o lugar mais alegre e próximo do fim de uma época; essa época, é um enigma naqu
ele lugar. Animais auxiliares o cameiro e o cordeiro que ficaram esquecidos em d
ois objectos de louça com a sua forma. São meus, meus
animais herdados, que caminham para um prato de luz no aparador, através da palavr
a branca. Um está erguido sobre a arca, outro deitado sobre a mesa redonda da sala
. Ligo-me à vida ex-
terior da sua lã para impelir para fora a folha caduca da casa.
Dir-se-ia que estou hoje a dizer-lhes:
«não tive mais ocasião de falar convosco, desde que vos herdei. Tudo foi inesperado qu
anto ao modo mas não surpreendente; os vossos sentimentos encontrarão em mim acolhim
ento; por quê manifestá-los como quem não pede e
receia, no entanto, a rejeição; eles são bons, tal como os sin-
to; creio que vos estou a responder directamente, não fugindo; nada há que me faça fug
ir no que me dizíeis, excepto o
modo e a circuristância». Pcilbu que as beguinas sabiam que o amor (a amizade, a pai
xão, o segredo) têm lugar no corpo, mas muito pouco lugar; ele é uma manifestação do espírit
o que é tão corpóreo como
esta mão que escreve; por isso, quando se diz a alguém @<eu
amo-te», é para sempre que fica dito. Sei muito pouco so-
bre o que é ter.
Creio que os meus textos sabem muito mais; eles não estão atrás, no meu passado autobi
ográfico; eles estão diante de mim, no meu futuro autobiográfico; atraem-me tanto a mi
m quanto a outros que os tocam, para saber
e não mais. Mas o diálogo entre os objectos nunca se interrompeu, en-
trelaçamento de vontades que, no início, eram uma só; mais tarde, fica apenas a cena d
o ser, e é Infausta que fala, e ensina
a nomear
silêncio marginal sobre a alegria de viver; generosidade em torno da fechadura da
porta; e Témia sem saber o que a abundância é.
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6 - Eu,
eu
canto.
0 que eu achava maravilhoso em Maria Adélia é que ela, reinando sobre os objectos, p
arecia mastigar uma luz; dirigia-se sempre para algum lugar, e parecia voltar de
siludida, com os olhos fechados e tristes sobre a esperança que tivera; não era aind
a o momento de ir ao encontro do que devia encontrar, ou de receber a carta que
eu
lhe deveria ler; sentava-se então ao fim da cozinha, e um fio de murmúrio voltava-se
para mim, pedindo-me que eu cantasse.
Eu canto, dizia eu, já a cantar, como vira fazér Infausta, aos
pés de Aossê.
0 que eu acabei de me lembrar pode ser só um quase real, é que ninguém, senão eu, assist
iu à realidade tal qual ela era, e que tinha um poder inefável para abrir-nos.
Vê-Ia à espera era pôr-me a cantar com ela, na sua espera; os dias passavam sempre rap
idamente na estação do Outono, e Assafora descera às camadas primitivas da terra; um d
ia, em que ela mexia os lábios para além da hora habitual em que se tomava alguém igua
l a nós, perguntei-lhe, à seme,
lhança de Elcana a Ana, no livro de Samuel:
- infausta, bebeste alguma coisa?
- Alguém vai reaparecer - ouvi dela. Eu confiava, em silêncio, os meus sentimentos a
os pensamentos mais íntimos, mas não bebi vinho, nem outra bebida que embriague, exc
epto o teu pedido de Melodia.
- Eu sou um objecto - continua Maria Adélia. Eu nunca soube o que as coisas eram,
a não ser o que são para si, menina.
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Na Domingos Sequeira, coisa é o rosto do quieto, rosto de mesa, de salvas de prata
, de corredor, de salas com reserva. Vou por um caminho longe dali, e sinto-me r
etida pelo nó do ver-
bo onde os rostos, tão próximos uns dos outros, são o horizonte da palavra fechada; me
u olhar não se levanta para o con-
torno do inerte. Se o lençol de linho mais branco foi contaminado pelo ponto em qu
e caiu, que hei-de ler no que escrevi?
Concluo que o desprendimento é necessário à orbita da palavra, e que tais objectos estão
cobertos pelo desejo da poeira. 0 seu destino, enquanto lá não estive, era colarem-
se às mãos, agarrá,las no ritmo da posse quase hipnótica. Nem animal, nem planta verde s
onhou com eles (passou seu sonho por eles). «Esse anel é de ouro?» «Não», é uma jóia de possu
o mau silêncio, profundamente mudo, o mau silêncio que perseguiu a rapariga que temi
a a impostura da língua e a diminuiu na sua altura quando ela quis chegar pela via
única -, ao fulgor da palavra; o mau silêncio e o bom ladrão não coabitam juntos, e Témia
escolheu, dentro do mesmo espaço de linguagem, um para ti, outro para mim, e deix
a-me no meio do labirinto sabendo para que lado olhar.
- Eu sou um objecto - voltou a fazer-se entender o Anjo de porcelana, posto no o
ratório. - É claro que fala entre si, do meu eu para mais longe; reconhecido o Anjo
como objecto, o
quarto dos antepassados ficou sereno, e o verdadeiro Anjo da palavra, desconhece
ndo-se a si mesmo, guiou,me para a clareira, ou o pátio da floresta.
7 - Tudo começou com Témia a ler a súplica que a avó me fazia repetir. Deitada na cama a
zul, a claridade era azul mais escuro. Era azul mais o escuro. E desta confrontação
nascia o
quarto, no silêncio de duas idades tão desiguais, mas não antagónicas. Mulher de muitos
anos que lhe ensinava, me ensinava que o todo da terra tinha outro esplendor dif
erente do
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nosso e que a realidade da água era a respiração silábica em
cada Palavra; ouviam-se distintamente a correr os meus poucos anos, e o momento
estava a ser facetado para o lado da vida eterna; as duas deitadas, lado a lado
com ela, não estávamos mortas, estávamos vogando lado a lado sobre a morte, cada uma d
e nós com as suas armas, e a sua união íntima indestrutível. Seus olhos eram o ponto de
partida para a oliveira, primeira sombra rumorejante de Prunus Triloba que me
ensinava quantos relevos tem o espaço; a criança que ador-
mece a suplicar é o lugar da aprendizagem.
Havia, todavia, uma noite debaixo da língua da minha avó, um não-dito.
Dizer que é muito amado não equivale. Estava na base da forma segura que eu viria a
ser, noite fundadora da rapariga que temia a impostura da língua.
Levantou-se, de facto, da cama, eu vi, saiu para o esplendor do luar que invadia
a serra, chamou o seu cordeiro separado no estábulo, e disse-lhe que iam crescer
sobre a corrente. Mas que, para isso, ele deveria ser de barro. Enquanto objecto
, ninguém diria que aquele cordeiro, posto na cómoda, cor-
ria pelos fundos da encosta.
Para que a língua não fosse mais impostura, criou nos objectos uma máscara; faço deles q
uimeras que ninguém sonha que palavras são.
8 - Témia entra numa das salas para escolher mais um objecto para trazer para mim;
a sala esteve fechada, e foi escura tantos anos, que a nossa única ideia é expô-la a
um primeiro raio de sol; pega em Salomé, o nome do objecto, e volta-o para a janel
a fracamente iluminada por ser Outono; o Sol não está, a chuva cai, o silêncio dos esp
aços sem o pulsar da natu-
reza enche
* casa, * enche o meu objecto, chamado Salomé; é uma figura deitada de bailarina, do
s anos vinte, arte Deco, reclinada, e com o seio
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nu cintilante de aspectos por compreender; que vir a ser, se não há sol real que inc
ida na sala, e na sua margem imóvel?
Se eu temo a impostura da língua, e Témia é a rapariga que lhe pertence, à relação de não
ipocrisia com a palavra, o que deixar por escrito, ao lado de Salomé, ausente no s
eu objecto?
Há também o ar, o ar puro que circula entre os veios puros, não sabendo eu qual é a comp
osição verdadeira da pureza.
- Salomé - chamo, dando-lhe pancadas na matéria dos olhos, que aspira ao ar; abro a
janela então, quer chova ou
faça sol, porque em ambos pressinto o ar que passa. A túnica de Salomé não oscila porque
é de brocado ou de marfim, mas
eu sinto, na minha mão que a segura, a aragem que percorre as altas cenas fulgor d
as árvores - e seus pinheiros.
Ponho o objecto no meu saco, para o trazer para casa, e peso-lhe a tranquilidade
infinita da passagem pelo ar. Fui eu que a senti no seu lugar, ou sentimo-la am
bas, em tomo dos esponsais de Myriam com a leitura?
Myriam contou que vieram para esta residência numa noite@ há cerca de sessenta anos.
Tiveram que fazer a.mudança ,em vinte e quatro horas pois o avô de Témia ameaçara que,
na tarde seguinte, viria com moços de fretes, levar toda a mo-
bília da casa. Chovia nessa noite, e a travessia constante da rua, com os braços car
regados de cestos, embrulhos e objectos, foi feita a correr, sob a pressão da angúst
ia; determinaram rapidamente os lugares nos quartos e nas salas para deixar, em
definitivo, os armários mais pesados. Mais tarde, como a casa
anterior fosse muito menor do que a presente, mandaram Maria Adélia, a jovem que o
s servia, deslocar-se à Casa Grande da província para trazer um carregamento com os
móveis que faltavam.
Na sala de jantar, sessenta anos depois, eu e Témia, com
Salomé nos joelhos, assistimos à ligação entre essa jovem, e o
filho de Maria das Dores, a Senhora da casa vi-os
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com a alegria da sua volúpia junto da mesa, que agora é minha, meio escondidos pela
vergonha da situação que criaram.
0 louceiro está aberto, e o chão coberto de caixotes cheios. Ele faz incidir sobre e
la o dobro do desejo que ela tem sobre ele, em termos de acção e de avidez.
Minha avó, já cansada, deitou-se tranquila porque ne-
nhum dos animais em porcelana que trouxe consigo se partiu.
É um momento de amor com o crepúsculo. Em face, há um muro coberto de rosas, e ele diz
-lhe: - És a rosa que há-de enfeitar a minha lapela. - Ela tem a cintura coberta por
um avental, e vai à varanda olhar o caramanchão coberto por uma cor única: o rosa.
- São flores que hão-de mudar de mão - responde-lhe com a lucidez que caracteriza esta
serva. - A minha promessa não é cheirar as flores com que há-de cobrir-me; a minha pr
omessa é guardar-lhe fidelidade.
Num caixote, havia um Anjo em porcelana embrulhado num papel, matéria inerte sem a
mínima prática do ser. Subitamente, a sala evadiu-se na grande mesa que ainda podia
au-
mentar de comprimento introduzindo-se-lhe duas tábuas. 0 Senhor meu pai apoiou-se
nos bordos, e recebeu essa afirmação como uma abertura poética de uma jovem inteligent
e.
- Infausta - disse ele -, dar-te-ei um peso de ouro humano, com forma feminina,
a guardar. E pôs-lhe a mão na cabeça, pois estas palavras tinham-lhe sido sopradas pel
o Anjo, no primeiro movimento dos lábios.
Nem um, nem outro, imaginam sequer quem é o Universo,
mas o Anjo insufla-lhes a estranheza das atitudes e das decisões a tomar
a decisão do amor é grave, e verte isolamento, temor, e sangue; principiava a arref
ecer sobre a vidraça da janela aberta, e uma criança do sexo masculino foi concebida
, a mesma que, mais tarde, foi deixada à porta
e não pôde entrar naquela casa porque a condição social do Senhor era distante da da ser
va. Concebido, afastado do pensamento, morto, enterrado por um simples olhar.
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9 - A rapariga que temia a impostura da língua ainda não tinha nascido, mas na sua a
lma em branco presenciou aquele negror, e achou-o quase igual à escrita habitual d
os homens. Aquele par semelhante por dissemelhante era original, e ela
quis constituir o seu corpo com aqueles traços. Pôs-se ao espelho, que era a massa c
repuscular cinzenta para além da porta da varanda, já semi-fechada. 0 primeiro traço f
isionómico que lhe nasceu naquela sala de festas a dar forma ao seu passado, foi o
dedo sobre os dentes, e em torno da boca; uma
atracção subtil ligou-a, desde logo, a Infausta, a quem a queriam oferecer por impos
tura, ou falsa direcção do amor. Rosas. A noite cobria o caramanchão e, depois do acto
e de seus frutos, principiam, finalmente, a arrumar as cadeiras e as poltronas
e ele ergue, contra a parede, o grande quadro a óleo do estio, de moldura negra, e
m que uma outra jovem e figura equívoca que eu nunca determinei, se tinha afastado
do povoado. 0 seu cavaleiro é o real transitório visível por nós. Enquanto que para mim
é ponto de honra lutar pelo esplendor da língua, fermento realizado no bronze, e de
volver a claridade da beleza à sala, tal como estava a ser feito pelas rosas do ca
ramanchão naquela noite. A voz de meu Pai tem que ser modificada: Pai nosso, que e
stais no céu, seja feita, seja feita, toda a verdade sobre a vossa figura, incluin
do o negro, o rosa, e a fidelidade da vossa serva.
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Entretanto, a Nuvem Pairando passava sobre a casa incluída na cidade sob um nevoei
ro que a tornava invisível; vo-
gava com a deslocação, e os seus pés de cor caminhavam no fumo; revestira primeiro a a
parência de um carneiro, depois de um cordeiro, e voltara a passar em face da jane
la, e de seu vidro que tinha, finalmente, reflectido um horizonte; Maria das Dor
es dormia, fingindo ignorar o que se passava sob as luzes acesas; luzes/flores a
travessam a cozinha, e fazem da sua própria expressão o dia, que os encontra abraçados
, já deitados no quarto que está próximo da sala de jantar, e onde estão os cestos da ro
upa suja, lavada, a tábua de engomar, a máquina de costura, as camas de ferro e a ma
la de viagem. Um Senhor dos Passos com a cruz às costas foi suspenso da parede, e
um can-
deeiro de vidrinhos e pingentes pendurado do tecto; ele levantou-se de madrugada
para o seu quarto e Maria Adélia ficou já de pé contemplando o mistério de s
er a serva e, ao
mesmo tempo, o colar/aberto/do desejo/do amor carnal/espiritual/possessivo/omnip
otente/e lúcido do Senhor, a quem de dia tocava os sapatos no seu espelho.
10 - Durante este hiato de tempo - entre o momento de desfazer-se do seu próprio f
ilho, e assumir o caminho da direcção de Témia, nascida mais tarde, da cópula do Senhor
com a
sua mulher legítima -
a Nuvem Pairando fracturou-se de luz, tomou o aspecto de uma fenda, e avançou para
o mar durante dias, em várias degradações de sol poente; viam-se enevoados traços paral
elos por detrás do fumo e a lua, centrada no seu lugar próprio, parou diante de Témia
que ainda não existia como local de vibração humana; os contornos geométricos da matéria aér
ea transparente tinham-se feito uma flecha aguda. E, aí, eu vi meu irmão pendurado,
. palavra indizível que eu não podia sequer Olhar, e muito menos pronunciar durante
o crepúsculo. Mas, à direita, a luz vi-
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nha de Infausta, que principiou por ser uma pequena caveira, depois uma bola de
som acumulando-se no meu próprio cres-
cimento no seu ventre e, por fim, a mesma luz cheia de si mesma, com alguns traços
vermelhos por lábios são estes os meus sonhos, intraduzíveis em termos de voz, no
ponto mais alto a que chega o Sol. No tacho da cozinha en-
contrei-me para copular com a substância infinita que descia à terra e que deixou ca
ir de si um falcão Peregrino
Aossê que já então procurava, nessa cidade, mas na rua do topo, Coelho da Rocha, a rap
ariga que temia a impostura da língua.
- Que terra é a nossa onde estaremos - faz soar Témia debaixo da voz, ao subir as es
cadas; interroga uma afirmação onde a resposta não dá luz; anda a tentar encontrar um lu
gar onde Aossê não possa descobri-Ia, ou talvez, principie a andar mais sozinha em A
lisubbo, nome que secretamente deu a Lisboa, para fazer com que ela própria veja n
o
que pode sempre tornar-se.
Numa impostora.
Tudo agora são contradições, cegueira onde se cruza o es-
curo.
«Caem as árvores», pensa; mas a metáfora é uma fuga ao sentido, uma pequena chama que só per
mite a compreensão passageira do que está a ler;
- «Ana é outro nome» diz. 0 nome da estátua policroma em madeira (estatuária de cores e
de altar), em que Sant'Ana ensina a ler a uma jovem nitidamente desproporcionada
nes,
se conjunto. Esta cena da aprendizagem da leitura está tam-
bém expressa noutro quadro a óleo - e eu nunca esquecerei
esta terna reciprocidade feminina de companhia que tinha origem - na origem de l
er.
Todos os objectos, na casa, devem estar à volta deste, obe-
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decer ao livro aberto nos joelhos, e à tranquilidade - ainda
sem escrita - da criança que os lê.
- «Vinde ler» - diz Ana aos objectos, e o primeiro que dela se aproxima é uma jovem vi
va que, à medida que lê nos seus joelhos, mais viçosa fica, e mais mulher se toma.
Os outros objectos também querem ler, e o segundo, após a jovem, é um grande carneiro
deitado, que eu julgava paralítico; mas move-se para ler, e rodeia a estátua polícroma
balindo, com o focinho ponteagudo, em desejo intenso; entre a doçura e a violência,
a jovem põe-lhe a cabeça próximo do livro, e o animal, que acordaram, ergue então os ol
hos para ela, já lendo nas páginas um texto desconhecido.
- «Venham todos ler» - diz Ana, a que ensina. - Um de cada vez, e durante longos ano
s, para que o prazer dure. A jovem volta ao seu lugar, na estátua, e quebra o que
lê em mil pedaços, sem quebrar o livro onde o ler circula. 0 testamento que leu foi-
lhes lido; todos os objectos são agora - imagina
- móveis por si mesmos herdados e estão presentes no acto perman
ente de ler.
11 - Foi assim que Térma, com seis anos, trouxe Ana e Myriam a lerem uma à outra o a
mor que reciprocamente se
dedicam, para a mesa do meu quarto, em Alpedrinha; está a
ouvi-Ias, sentada à beira da cama, e rasga-se então o véu que cobria um sentimento int
eligente e profundo; o que se esconde está escrito; levanta-se para dividi-lo em p
equenas folhas de caderno e anota que o que está a passar-se, de superfície perceptíve
l, ou invisível, é para todos lerem. «eu tinha medo que uma explosão se desse junto à port
a», explica-me, medo a que corresponde hoje em mim como legar a vida?; tenho assis
tido a algumas mortes e a pergunta cresce, Na de Assafora, o mais impressionante
foi, algumas horas antes da sua morte, a conselho do médico,
20
tirar-lhe os anéis dos dedos, e ouvir os ditos obscenos que proferia. Na de meu pa
i, Filipe, o seu gesto de levantar a mão e
querer encontrar um seio porque a modelou no meu; na de um outro, que Témia só pôde am
ar anónimo, ainda, o progressivo aliviar da pressão dos dedos que eu apertei até ficar
em frios.
Sereno agora a contar como tudo se passou no tempo invisível. 0 tempo é, visualmente
, descolorido, e passa de uma
maneira apagada e branca, mesmo quando cobre «cenas fulgor»; morreram todos, e eu, o
lhando o que se dilui, pergunto mais uma vez como legara minha vida
que é a última vida que eles todos terão.
Témia diz-me: - Depois de ti, sem filhos, eles não continuarão mais. - Como se passa d
e uma vida humana a um livro que se leia por entre nós?; quanto tempo de tempo imp
erfeitamente conhecido levaram a fiar-me?; e, porque tiveram confiança em mim, der
am-me o medo, um
quarto de palavra, e a descida a esta morada.
«Ela não deve estar aqui, Térnia», deve estar ali; deve atravessar o corredor da beleza,
e mostrar-te o nosso aspecto mais belo «que lá não se encontra».
«toda a minha vontade não é vossa», afianço-lhes; «e a
explosão que queimou Térnia junto da porta?»; pergunto-lhes pelo que não entendo,
e respondo a mim própria pondo, diante da pergunta, a minha vontade de atravessar
o tempo, ou de que ele volte aqui, mais tarde.
0 tempo há-de voltar aqui, no próximo verão; e há,de encontrar a nossa mão bárbara, e a noss
a mão amena, fazendo um anel com os dois polegares, e os dois indicadores: estou a
contemplar-me dizendo a mim mesma que não ter vontade própria é a maior frustração que po
de atingir a língua. É noite de verão na serra da Gardunha, e o fim do dia não po
de descer correctamente antes de eu pronunciar esta palavra noite.
21
«É a noite da vontade», disse a si mesma Témia, porque era a primeira noite que aqui fic
ava acordada, e eu não queria ter vindo para aqui; mas se não fosse impelida eu não vi
ria, e a noite era sublime, negra, com ar livre e miríades de luzes entre as
duas sílabas de noite; essas estrelas ao meio em breve desarticularam a palavra,
e a atraíram para a linha vertical; é a mesma
noite na noite diferente, é a ausência da vontade de estar aqui que floresce na libe
rdade aérea desta noite. Soo com palavras, e
os obstáculos da mudez cedem; vou ao mirante sobre a Estação, e creio que regressei co
m a inteligência que tinha na noite e usando, até à última gota, o livre arbítrio. A serra
reconheceu-me no escuro, e deu-me um anel de pedras pesadas, que tomo por aliança
da minha língua com ela; encosto,me à parede da casa térrea, e ouço no interior, junto
da porta, gemidos apaixonados que são a afirmação da qualidade única do Amante, que Nada
pode conter.
E Témia, de medo, encosta-se a mim. «Ela escreveu sobre quê, ao desenhar esses gemidos
que se acumulam nas páginas do teu bloco.» São hordas, errantes que se movem vinculad
os a uma força primitiva, Témia, chuva miudinha de pedra com projecção de sombras gigant
es. São homens inanimados, privados do mínimo livre arbítrio. São desenhos das figuras d
a natureza, seu traçado por escrita desenhada. A imagem de leitura para que se enc
aminham é a tua própria morte.
Respondo, sem saber em que princípio da realidade colocá-los, por desconhecimento do
verdadeiro significado dos seus ritos; erram, até lhes ser indicada a Terra de Pr
omissão onde se fixarão para sempre.
Faço sentir a Témia a serenidade da mancha obscura que se limpou, e reflecte. Dou-lh
e a verdade a beber.
0 conjunto de Sant'Ana e da aprendiza de leitura, é a
imagem do seu nascimento, a meu lado. Força protectora do Anjo sobre a presença dest
a relação recíproca entre a mulher
e a criança, uma e outra, humildes servas no seu universo.
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12 - Hoje, Témia chora porque, quando fala, fica longe de mim o que estou a dizer.
Ou, então, quem toma claro o peso do que me dizem? Dizem, de forma tão acerada, que
a balança da justiça da palavra se desequilibra. Trazem e levam a melodia dos sons
sem ouvir que, ontem, a Maria Adélia partiu, com os seus móveis familiares, para a c
asa dos sobrinhos. Partiu, e chorou. Amigos conduziram,me de automóvel aqui, e
jantaram comigo. Servi o jantar com pratas herdadas de meu Pai.
Somente, esta visão tão simples dos objectos está ainda num imenso nevoeiro.
23
Só e Maravilha
CAPíTULO 11
Prólogo
fechada a casa de Assafora, a minha torriou-se aberta; aberta à escolha dos móveis q
ue recebi das suas próprias mãos; principiei assim a ler e a escrever as observações que
tinha o
desígnio de fazer acerca dos objectos porque eles eram passagens claras e puras, a
o contrário do que tinham sido para Témia durante os primeiros anos da minha infância;
eram inúmeros, desde o jarro de faiança verde à tesoura para cortar os pavios das vel
as; tinha receio de me aproximar de uma exactidão inacessível quando, do meu espírito,
tivesse varrido as sombras; a
noite de Natal distante era também um objecto que estava sobre a mesa da sala de j
antar
com um poder de irradiação que me fechava os olhos; quando se fez a mudança daquilo qu
e eu escolhi da casa para acompanhar-me, o cristal de solidão maligna mudou para o
utro lugar; acompanharam-me então os talheres que passam da obscuridade de uma gav
eta à claridade de outra, tendo-os eu deixado durante muito tempo a repousarem e a
abrirem-se à cor sobre um pano branco; sou induzida por um caminho de penetração no r
iso da casa, e no desejo; eu os amo, ou tenho uma radical repulsa por eles - os
objectos humanos, ou seja,
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os objectos que os humanos usaram; ora em madeira, ora em vidro, ora em prata.
Penso agora no tronco de leitura que, ao abandono do corredor, se tornou vibrant
e; por exemplo, volto a olhar os talheres, que vejo próximos da alma humana, e não s
e consomem
ao meu olhar; não são fluidos, nem moles, são duros, e a imagem de alguém a comer conduz
-me ao medo da morte que também tem a ver com eles; e, todavia, Spinoza diz que, s
e
duas coisas não tiverem nada de comum entre si, não podem ser causa uma da outra; tr
ouxe para minha casa o louceiro que tem uma voz aguda e
uma tal existência, ou presença, que envolve todos os objectos que, à noite, coloquei
nas prateleiras. Escolho, na realidade, o que se aproxima de mim, porque há trinta
anos dali saí correndo, não só para fugir mas para encontrar quem sou em Témia que cres
cia debaixo da minha própria pele. Estava aterrorizada pela consciência fulminante d
e que existem objectos-pessoas, tal como pessoas que deixam que possuir o domina
r trace o seu destino; possuir o do, minar é o que está inscrito na porta enlaçado com
o nome gravado no metal; por exemplo, ontem deixei nitidamente na mesa uma imag
em em marfim do Padre Eterno, com a bola do mundo na mão, e uma pomba saindo do se
u
coração aberto; hesitei em trazê-la comigo porque a figura minúscula, em marfim, fazia-m
e pensar, tenazmente, no olho fechado do Amor. Esse Pai Eterno, de olho fechado,
que fingira não ver, não queria trazê-lo comigo. Mas ele era meu, por herança, legível em
palavra sobre a face do testamento.
Volto a repetir como separar de mim este fruto? Onde encontrar o fio de melod
ia minúscula que me conduza à clareira onde outro Pai que não este queira ficar comigo
?
É um enigma que a figura do Padre Eterno tenha desaparecido;
ninguém, a não ser eu, possui a chave, e quem entrou comigo, não rouba; mas o objecto
desapareceu do seu aspecto,
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e apagou-se, a sombra sobre o tampo de mármore está vazia, e hesita em dar-me um sin
al de luz, ou seja, de ar puro no ar livre.
Na sombra da melodia foi deixada uma ordem nítida.
1 - dias de dores terríveis sentei-me, com meu barro, junto de Johann; há
muito tempo que ele não é músico
e a música, quem me chama? Debaixo do seu peito pesado está a resposta a esta perg
unta; mas eu não vejo em
visão o seu corpo, não o determino; ele tomou-se agora um objecto, um grande ser móvel
, que se define pelo esplendor que eu dou à sua presença. há um poço na varanda, uma espéc
ie de jogo de sombra sob sol onde entram, pouco a pouco, como um fio ligado de pér
olas, os vários aspectos desse esplendor; Johann já não é músico, é mais do que músico desloc
ndo-se devagar face à janela e indo, contemplativo, de um a outro extremo da sua mão
. Principia a contemplar o princípio das coisas que sobrevém ao início.
Eu sei que agora é o momento de Johann, e já várias vezes
movi os lábios para tocar-lhe com a forma musical que herdei dele. 0 primeiro mome
nto em que vi nitidamente que ele balouçava sobre a sua única perna, foi quando a Ma
ria Adélia lhe abriu a porta, e me perguntou com a solicitude branca do seu aventa
l: - Onde é que a Menina arranjou isso?; queria dizer se magoou?
Aossê aproveitou para deixar o seu nome no bengaleiro; diz-me que o meu olhar já está
a lavrar o barro; eu olho intensamente com eles na mesma direcção dispersa, e faço um
objecto com vida própria sob a forma de mistério, falcão de porcelana azul, que deponh
o na beira da mesa.
É um objecto só, só na sua estrada própria, independente no caminho que circula. Sinto o
espaço e o tempo a passar por entre os objectos deitados, seja uma jarra, ou um c
ordeiro.
0 que é de ouro e esperança não é a matéria,
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é este ser só e maravilhoso; porque ao lembrar-me detalhadamente de cada momento, se
i que empobreço a minha memória. «Ao atentar na sua quali, dade, esquece-se a sua quan
tidade amorfa», diz Aossê, saindo. «Estar só é, por exemplo, o vidro deste copo», acrescen-
tou. «Querer ao corpo é, por exemplo -»
2 - Só e Maravilha.
Prepara os objectos para a minha mesa de Natal. Eles fazem parte da Comunidade i
nanimada; sopro as figuras na cera
que as molda no ar; e obtenho a noite que há-de vir, numa
operação rápida de sentimentos.
Eu, viva, quero transformar os seus actos, e dar-lhes o último sentido. Fiz interp
enetrar as duas casas, a que vive comigo, e a que jazia na Domingos Sequeira, co
m os seus restos, e cinzas de melancolia.
Esta é a história de uma família ambiciosa e fechada, vinda da Beira para um andar mític
o na cidade, onde se propôs subir a um alto ramo de árvore. Um divórcio. Uma noite de
chuva em que se fez, a correr, uma mudança de domicílio. Um filho que protegia do Pa
i a mãe, e que era a parte mais enigmática do vermelho adamascado que se usava na sa
la. Uma sala abrindo para um escritório, e uma criança abraçada aos livros debaixo da
sombra de uma criada; uma criada com um filho próprio, desaparecido nas masmorras
da casa - con-
trária à mulher que legitimamente lhe sucedera - e, para todo o sempre, fiel à última cr
iança que a casa teve, e que era fruto da parte verde, fonte da casa; todos morrem
, trocando o instinto da morte pela noite de Natal; mas há sempre um triângulo visível
junto à porta da sala de jantar - a criada, um homem novo, e a mulher legítima; a c
riada é a jovem, mais tarde possuidora da ciência de inu-
27
mar os objectos e de solicitar para eles, durante longo tempo, o banho lustral d
a água, e a sujidade protectora da lama. Paradoxalmente, os objectos são conservados
entre a linha da linguagem e, mais longe, a praia calma da destruição. Só e
Maravilha está então comigo, e foge de mim. É um objecto que, posto numa sala, a esvaz
ia completamente. Mas não é luz. Nem quadro, ou moldura, suspenso no silêncio. É talvez
o
fragmento de um livro numa primeira matéria dura e imóvel.
A casa tem um lugar, que é quarto da avó, e quarto de pensamento; há uma mesa com tamp
o de mármore onde eu vou, todos os dias, depositar a minha linguagem, e receber a
bilha de uma fonte que faz brotar sangue do lado do Cristo. A avó está deitada na ca
ma falando com quem me ensina a ler. Me ensina a ler estas cenas de linguagem móve
l que são, cada uma, uma gaveta da cómoda com espelhos próprios. 0 que dizemos habitua
lmente entre nós, bom-dia, boa-tarde, está frio, não serve. Bom-dia é a plenitude do ser
maior do que eu, boa-tarde é o crepúsculo da casa que há-de cair nos meus braços, e com
que hei-de lutar; e «está frio» é o espaço do tempo sem contagem.
Sem que Témia o sequer pressinta, dirijo-me à criança morta, e proponho-lhe uma aliança
fraterna, reconhecendo-a como estrela naquela noite. 0 primeiro andar em que tod
os vivemos ultrapassa o quarto, e é o primeiro na escala vertical da noite. Os doi
s falamos de estrelas quebrando-lhes as pontas, ou seja, a velha claridade da li
nguagem diurna. Entre nós, os objectos agitam-se, cobertos de recordações de sangue, e
de amores e sensualidades frustrantes e frustradas; o objecto da fidelidade arr
asta o seu percurso pelo corredor, e o ponto final que nos envolve transforma-se
num brilho fulgurante, numa
aliança inquebrável entre quem lê, e quem ensina a ler.
Chego à sala, em face do quadro de Artur Loureiro, a que chamei «uma jovem vestindo
o seu jardim»; falo com ele eu não sei falar sobre a língua, a língua faz-se; Salomé é o obj
ecto da mulher deitada sobre uma báscula de marfim, estátua de texto. Com os seus br
aços
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desiguais, e o seu sorriso sedutor ainda diferindo dos braços, é o meu Mestre.
Causo incómodo à Maria Adélia: - Por que lhe chamas Salomé. Por que soa tão bem o seu nome
? - Ela respondeme: - Cubra de cinzas a sua cabeça porque entrámos em
quarta-feira de cinzas. Ponha-se sobre a cadeira para ouvir cair a cabeça do homem
que ela mandou matar. Contemple a
sua sombra no tapete da sala, junto à trompa de caça; dê-me os seus ouvidos para que e
u neles introduza a gota da fidelidade. Pausa.
Voltamos à sala de jantar onde, pela primeira vez, ela foi amada. 0 quadro ocupa o
centro da parede da sala de festas, que acompanha a mesa de Natal, a todo o com
primento. É um dos jardins de Spinoza, e não de tela, por isso lhe chamo agora _ jov
em vestindo o seu jardim; a jovem avança para Prunus Triloba futura, com o pescoço e
rguido de uma
gola redonda; o rosa é então a primeira cor do texto, o aspecto floral da página em br
anco; vê-os a fazer a criança-estrela sobre a cama que cobre a mesa da sala de janta
r. Suspende o
seu fruto da árvore, chamando-lhe colorido e posição imóvel; quadro dos quadros é o object
o escondido da casa, embora es-
teja aberto na moldura e na parede. «Principal no seu silêncio», direi, mais tarde, ao
ouvido de trevas e de dor que me
aproximaram da boca. Cor e ausência lutam no som crepuscular do sol que morre, e q
ue os deixou sem luz acesa depois de fazerem amor; e o quadro erguido tem a esta
tura da fala, emoldurado por quatro peças pesadas de madeira, pregadas nos cantos.
Tanta dureza para o ar da tela é um absurdo, e desse obstáculo nasce um desejo fort
e ou de fazer ruir o rosa ou de recriá-lo indestrutivelmen
te.
«ó meu amor, espera um pouco, sou ainda só eu sem ouvido, e sem palavra de fidelidade.
»
Eu, e a criada os sobre-vivos - pusemo-nos a vestir-lhes as suas alma
s; era o que o sol que atravessava o jardim nos mandava fazer, tocando a vid
a eterna pelos cam-
pos; os objectos acorriam com patas de animais articuladas às
29
matérias de que eram feitos; olhavam-nos a fazer amor, sabendo que a morte seria d
ada ao fruto; mas tentavam falar, de seus ângulos secretos, reunindo a poeira de q
ue é feita a linguagem; eu pedia-lhes dizei eu, porque eles souberam, antes de m
im, que Filipe, o amante, ia morrer sentia-me com eles, a contemplar a
melancolia do crepúsculo que se dissipava no quadro.
3 - Esse amante morreu perto desta papeleira-cómoda que sempre esteve na sala de j
antar, fazendo ângulo com os corrinados e a janela. Não. Esta papeleira-cómoda sempre
esteve
no quarto de Assafora, e só veio para a sala de jantar depois da morte de Filipe,
meu pai, que escolheu viver rolando sobre si mesmo, e se calou definitivamente n
esta sala, com as mãos pousadas no meu seio, e o pensamento no jardim. 0 último pens
amento dos mortos é uma flor que se abre na sua cara, e
eu vi que ele vacilava, dos objectos que se iam apagando, ao seu fulgor. Quando
ele acabou de morrer, pareceu-me que a
casa tinha ficado deserta de todas as pessoas que a habitavam
- pelo menos, eu não vi ninguém. Nem minha avó Azul, nem Maria Adélia estavam visíveis, ou
estavam simplesmente cobertas pelo meu olhar que as não via. Um trovão cheio de ser
enidade devia ter-se feito ouvir, pois a fonte de todas as contradições expirava. Eu
deslizei pelo corredor para ir con-
tar, noutra Casa, a minha mãe, que ele morrera, e encontrei-
-me com o meu vulto a descer a rua, pois a sensação era estranha: Estou liberta, e só,
pois ele acabou. - Filipe fora o meu
grande professor de só, o Só que é sempre precedido de Só e Maravilha.
É na rua que eu penso, e que vou de um lado a outro, para procurar companheiros de
sconhecidos e, por vezes, olhar os
ramos mais altos de uma árvore; Filipe morto, uma certa tristeza acompanhava a ide
ia da minha fraqueza. Disse a minha mãe que ele tinha morrido, a não deitei sequer u
ma lágrima. Quando voltei para perto dele, tinha uma ideia geral da mor-
30
te e sentia que, no seio da família, eu era agora uma criança pobre. Em face da sua
cama, o louceiro fechado extinguira o seu poder, e Maria Adélia continuava invisível
embora exe, cutando os gestos indispensáveis de última enfermeira e de criada. Que
pudera a morte contra os seus sonhos? Pôs-me a mim diante dela, protegida pelo seu
corpo de linguagem, e eu
vi que ela (a morte) passava porque a sua tristeza não seria alimentada.
4 - Johann pega-se agora às minhas mãos de oleiro, e eu vis-
lumbro-o no naperon de renda, limpo de nuvens; pequena
torre nos ângulos da casa de Bach, será mais tarde um móvel onde se colocam estatuetas
, e que depois renascerão.
Maria Adélia, coberta por uma capa, prepara-se para sair'
- «É a terceira noite da noite magnífica» diz-me. - Eu dormia encostada à porta da casa, c
om receio de que alguém entrasse pelo meu sonho, e me abrisse; sou um objecto repo
usando no espaço transparente do licor, pensando que o objecto está primeiro do que
eu, e os pés no fim, voltados para o
seio de Johann. Havia uma suave continuidade na sala, e eu
esperava quem era tão alto e cheio que não podia dividir-se em nomes; Johann
estava por detrás de mim, neste sen-
timento, e o homem que proviera de Aossê, sendo ele próprio, entrava e saia silencio
samente na sala, ora para escrever um texto, ora para arrastar móveis, ou forrar d
e ouro volante as paredes da Nuvem Pairando. Estas nuvens verbais douradas, deix
aram-me definitivamente pela manhã; Infausta estava alegre; e disse-me que, no dia
anterior, perdera o sentido da solidão horrenda e que a trocara por um estado de
aurora difuso, a que chamava também Só e Maravilha. Eu olhava para eles, e
via entre nós o que
estava connosco.
Durante todo este grande tempo, Témia dorme no sonho. Está a dormir no sonho, está dup
la-
31
mente a dormir e em estado de vigília que a não esquece; nesse estado, os seres mais
próximos que encontrou acordada vão-se abrindo no repouso que os move; mudam de pos
ição, e
nas luzes do ar, ou janelas abertas com que estavam dormindo; sonha sem ver, não p
erdendo a mais exacta das noções das formas invisíveis; dormir é o sonho oculto que as r
ealiza; e, se
se amam, dormem.
Compreendi logo que Aossê - objecto da minha mesa
havia mudado de sexo; encontrara, finalmente, Témia, e
tinha-me escrito, durante o decurso da noite, e inclinando o seu tronco hirto de
afectos:
«rosa para ti» era aquele o tronco de leitura que eu pressentira, somente tinha cont
ornos doces, que me levavam a erguer de expectati, va e mansidão. Entrara homem pa
ra o guarda-vestidos-estante, e dele saíra mulher, coberta por um espelho que refl
ectia o
meu corpo inteiro, de pé; ao voltar-me para o pequeno objecto onde estava preso o
poeta, deparei, a meu lado, com uma
pessoa igual a mim - em sexo -, com a cabeleira fulva e penteada, em rolo, para
dentro da gola do casaco; espalhava um odor semelhante à primeira palavra que enco
ntrei - e de que Témia já não se lembra -, pois a memória, ao nível dos sonhos, é o mais ini
migo dos vasos. Era aquela a sala do nosso trabalho mútuo, de falar e de olhar; Jo
hann Sebastian Bach, que nos via do canto do espelho e nos transcrevia, com a pe
rspicácia das mãos, para a sua música, elevou uma nota ínfima, e pronunciou um nome que
eu achei rosado, exacta-
mente como ele dissera, por ter sido escrito,
«rosa para ti»,
Aossea, tudo muda de sexo.
5 - Convido-o, a ele, e a seu sexo novo, para a ceia de Natal de logo à noite. Tra
go presentes só para oferecer a Filipe; no
último momento, a Quimera que o rodeia, sentada em sua
32
dor profunda e suscitada pelo amor definitivo de Maria Adélia, volta-se para mim,
e diz-me que leve os corpos mortos que são os presentes. «Com o sol que traz, leve o
s presentes que ficam. Não vê que eles ocupariam todo o espaço de que ele precisa para
respirar?» Filipe põe a mão no coração que tanto pode ser a lâmpada acesa so-
bre a mesa, ou qualquer outro objecto, e eu concebo, antecipadamente, uma figura
caricata que chora. É misterioso o
sentido da frase, recebo-a nos braços, sentindo que a minha solidão se refere ao afa
stamento de corpos que deviam ocupar o mesmo espaço; sigo pelo corredor e lanço, um
após outro, os
presentes da língua no mar - um disco de Bach que não se
afunda e fica a rolar sobre as ondas, uma bombonnière que se
enche de seixos que se lamentam de que «o espaço e os corpos foram separados», e o pri
meiro livro de Aossê, ainda em homem.
Filipe ficou sentado à lareira, enroupado na Quimera. Os anéis do seu cabelo tomam u
m aspecto fluído. Em fases sucessivas, banhando-se sem substância material na palavr
a procurada, o meu eu passa de nós a eles - a Filipe e Quimera; e, nessas mutações de
caminho, Témia sofre; não sofro va-
gamente, mas por um fio de horizonte que penetra a saia, e
ilumina a posição inclinada da Quimera que chora. Quando esse choro atinge Infausta,
ela revolta-se, e retira-lhe os membros, e a muleta que lhe restam. É a desfolhação d
e Filipe, tiram-lhe os meios - flor a flor. Sem bordão que lhe sirva de apoio, ele
deambula, fechando os dedos sobre pequenas travessas invisíveis.
Infausta, que hoje mal distingue o dia da noite, está nos
seus dias crus, e deleita-se, singelamente, com a felicidade de ser cruel. Esbat
em-se as muitas sombras dentro da sala, ficando a última a cantar sobre a lareira.
0 sexo de Aossê sente a nostalgia de não ser mais antigo; ou apenas de não ser? «Uma Qui
mera não é um ser», disse-
33
-me ele. Eu perguntei-lhe se o Segundo Sexo, e o Terceiro,
eram seres. Respondeu-me que aí podíamos divergir, mas não sermos inimigos de rosto co
mo aquela fotografia, obtida com
imagens fornecidas pelo fogo, de Maria Adélia e Filipe.
Quero demonstrar a existência da Quimera, e por isso falo-lhe.
Sento-me a seus pés, à lareira, e dou-lhe finalmente, por presente, os meus modos de
pensar:
«Perdi um Pequeno Padre Eterno, em velho marfim, com
um ceptro e uma pomba em cada mão. Talvez também me tenham roubado um pequeno bordad
o, que era um quadrado de toalha para chá; fiquei presa a essa perda durante dias,
en-
quanto o objecto inquieto da lembrança não se desvaneceu; o
Padre Eterno tinha manchas no marfim, e estava no oratório da casa de viagem de Li
sboa; a toalha de chá estava na arca de tampo abaulado, e eu prendera-a a mim pela
maneira ténue e
colorida de ter sido bordada a ponto de cruz. Era a essência de uma coisa fechada.
Outros objectos presentes à existência da beleza poderão ainda deixar-me no seu lugar
vazio, e partir. Um momento de revolta e nostalgia é o espelho do sentimento que d
eixam; mas hoje houve ainda outra perda: a perda de um encontro
que teríamos, ficando o espaço ao fim da tarde suspenso».
Não me respondeu. Quando os nomes evoluem em formas meticulosas que deixam mesas v
azias, eu digo que é noite, pois tínhamos com-
binado encontrarmo-nos para uma ceia de Natal. Eu tinha três prendas - uma caixa d
e vidro, um livro, e um objecto gravado de música. Maria Adélia, que viera acompanha
r Fili, pe, disse-me que ele, desde a noite da criança abortada, se
sentira indisposto, e para sempre regressara à Quimera. Ora eu sei que ambos têm dis
cussões violentas sobre a forma de dizer nada em amor. 0 que a Maria Adélia dá a Filip
e é o que a Quimera lhe retira, pela violência, no momento seguinte, e
34
assim estão a recobrir e a gastar, na combustão das cinzas, o
horizonte que esperavam à lareira; Maria Adélia esteve para
ser a rapariga que temia a impostura da língua mas tornou-se impossível pela excitação q
ue produziram as suas paixões.
Não se realizou, pois, o encontro, e os presentes esperam; no último momento, tive v
ontade de quebrá-los, ou dá,los entre si - a música ao vidro, e o quê ao livro?; não vislu
mbro o que cada um é, nem o que possamos vir a ser; tanto mais que nossos sexos são
mutáveis, como a luz que se desvia, ou
desce. Eu tenho Filipe sob a minha respiração, e tento ver o que resta do animal, e
da Nuvem Pairando. Entretanto, digo a Johann que as nuvens passam pelas minhas i
magens, e fécham-se sobre o sol da sua música, embora tristes.
Depois, separamo-nos uns dos outros, e Infausta estava sem ninguém, à beira de Maria
Adélia.
«Convido-os para a Ceia de Natal», diz Só e Maravilha, submissa ao que as palavras sig
nificam. É uma linguagem só
presente, e que nunca se entristece como eu.
Quando o fulgor dos olhos for rotina, e a lança da escrita estiver quebrada
restar-me-á ver ao perto; o dia de hoje, de tanto sofrimento, terá uma importância
nula, e «deixar-se-á levar ao lado de dias de maior esplendor», diz-me ainda, ao fech
ar os olhos.
6 - Anna Magdalena, se ela contasse como eu, cantaria sempre; tem um canto de na
rrativa que é uma acumulação de pequenas histórias e todas elas correm umas sobre as out
ras, a rir e a voar; hoje, amanhece num quarto para criadores e crianças, e esses
somos nós, envelhecidamente marca-
dos pelo ar de tristeza real que também corre.
É nessa tristeza criadora do riso que Anna Magdalena interpretou esta manhã essa cança
o que faltava e que se afundou imediatamente, sem que eu ou-
35
visse mas imediatamente subiu à superfície da minha imaginação.
Será possível escutar um ser bicéfalo, que fala por duas bocas, dispondo eu apenas do
mesmo ouvido?; «há um corpo mais alto do que o meu», responde-me a canção, «onde o
maior dos prazeres te espera».
Salomé estava próximo do disco e eu, olhando a fímbria do seu percurso imóvel, disse: «ó sub
lime mensagem».
0 canto de Témia desejava, a partir desse momento, o
prazer de ser a amante de um Filipe encerrado na colina onde atracara a Nuvem Pa
irando, e eu desejava distanciar-me do local de encantamento para ver realçada a a
dmiração sobera, na que a colina me causava; assim, um isolado sofrimento «só e maravilh
a» subtil, principiou a desenrolar-se como paisagem, no lugar da paisagem. Era um
local aberto ao mar da língua, que é um mar, e impregnado por ele, para onde os obje
ctos que me rodeavam principiavam a dirigir-se em passos ínfimos, em instantes de
distância; eu olhava Filipe, a Quimera, vendo-a transformar-se constantemente numa
das faces da Nuvem, e arrastando-a consigo para uma passagem onde nunca caberia
m os dois, ou onde nunca caberíamos desde que fôssemos mais do que Um.
A outra face era um quarto; o que nele mais atraia o meu
movimento era um espelho e um guarda-vestidos. 0 espelho do guarda,vestidos refl
ectia a mesa e os objectos, e eu reflectia sobre o espelho. Via neles a madrugad
a despontar, embora Témia soubesse que ela despontava para uma ausência que se
fazia sentir, e que era uma única e mesma falta dispersa pela luz do quarto;
mas era com o objecto da ausência que eu devia tornar-me presente à Quimera, no inst
ante em que eu a olhasse como simples quimera humana; trouxera comigo o quarto d
a luz
com uma janela contornando uma árvore exposta na parede. Nessa fotografia ideal, o
s objectos eram a luz dividida e talha-
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da adquirindo relevo, e os próprios candeeiros espalhados pela mesas dormiam, ness
a manhã, no silêncio. Até que a Quimera se concentrasse comigo, a ler, ou a descansar
o seu seio no carneiro de porcelana deitado. e a minha própria cabeça pensativa
se voltasse para ela e
lhe fizesse uma pergunta simbólica sobre o Anjo sereno da luzi ou uma pergunta exa
cta sobre se precisava que eu a ajudasse a vestir a língua de Témia e que com
um dedo me indicasse o livro onde minha avó Azul guardava a sua árvore do Tudo e do
Nada. «0 seu não-dito», clarifiquei.
37
A Chave de ler
CAPíTULO 1
Prólogo
- hoje, 24 de Janeiro de 1988, vi, em Lovaina, um filme inesquecível de Gabriel Ax
el, «le festin de Babette», so-
bre a última ceia.
Começava com duas beguinas a andar apressadas, numa
paisagem agreste, para ir socorrer os seus pobres. Reconheci-as pela beleza do r
osto, os capuzes, e a cor-terra das capas. Eram irmãs, vivendo sós, numa casa cujo i
nterior sóbrio e frugal mostrava a melhor estação da paisagem exterior da Jutlândia.
Cada uma tivera o seu Amante; o Amante que lhe ensina-
ra o Canto, e o Amante que a ensinou a separar-se dele. 0 jovem rosto e o rosto
envelhecido que teriam mais tarde estavam ligados por um idêntico princípio de fulgo
r. Tinham recebido, num fim de dia tempestuoso, uma francesa foragida que, em tr
oca de hospitalidade, as substituíra nas tarefas domésticas, e no apoio aos membros
dispersos da sua congregação.
Um dia, soube que ganhara, em França, um prêmio importante na Lotaria. Pediu às duas i
rmãs que lhe concedessem o
dom de oferecer, a elas e aos membros desavindos e mornos da congregação, um jantar
por ela própria preparado já que fora, antes, uma grande cozinheira.
Numa história, há (OU não há) um momento de desvendamento a que se chama sublime. Normal
mente breve. Como
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penso que um leitor treinado já conhece todos os enredos, quase só esse momento inte
ressa à escrita.
Esse momento, tomado longa sequência sustentadora da vibração explícita, é o nome de escri
ta. É a face escondida mas que me importa desvendar -, das técnicas narrativas já trad
icionais.
Isso aconteceu na segunda metade do filme. Foi um jantar rigoroso, em que o pala
dar trocava o amor
com os alimentos, em que os doze convivas, abrindo-se ao
prazer da boca e do olhar, rememoraram e tornaram presentes as pessoas, nos acon
tecimentos de ouro de suas vidas; cristal, ouro, pratas, iguarias, arte de prepa
rar os alimentos reuniram-se no momento único da ceia em que não houve traidor.
Clemência e verdade uniram-se, disse o orador. justiça e
alegria uniram-se, disse um pouco mais adiante, depois de ter
chamado a atenção dos outros convivas com o toque seco da sua unha no bordo do copo
de cristal.
Eu via, no desenrolar dessa ceia, a manifestação dos bens da terra. 0 conhecimento q
ue traz abundância, a ponto de tomar generosos os homens. 0 prazer do Amante e a a
legria de viver não podiam faltar a um tal festim.
E, na realidade, assim foi. Depois da ceia, os convivas, quase eles todos velhos
, vieram para o pátio ver essa noite, e receber o carisma da juventude na vida ete
rna; a um canto, a cozinheira repousava sobre o seu trabalho. Ao ver as suas ima
gens sucessivas, confundia-me com ela, e sentia que o
meu eu desfolhava, com atenção, os seus múltiplos reflexos. Porque eu estava com ela,
e com eles, para ser até ao limite do dizível, o vosso canto e a vossa evidência.
Não posso recordar-me dessa ceia sem cair absorta: é uma assimilação superior a mim, que
rouba até a visibilidade da minha presença; julgo-me oculta no lugar mais obscuro e
es-
condido desta cozinha, e gozo o esplendor da luz do fogão que é o espelho humano de
uma estrela: - que posso eu dizer-vos que não quebre a incomunicabilidade das pala
vras de amor?
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Não chove, mas se chovesse, eu abriria de par em par a transparência da minha contem
plação para receber Jacob Bohême, que foi sapateiro, e está à espera lá fora, em pé sobre a
visão deste lugar.
Como perder as páginas que ardem na lareira desta cozinha luminosa e oscilante?
0 gesto com que a serva desdobra a toalha alva sobre a mesa é o seu traço mais fulgu
rante: entregou a quem a ajudava uma ponta do rolo, e estendeu o tecido pela pre
ssão ligeira de ambas as mãos; depois, passou-o a ferro, e povoou a sala de jantar d
e velas, como vira fazer a Maria Adélia, de flores, frutos, uma pilha de pratos pa
ra cada conviva, preparando sem-
pre, no lume do fomo, a perenidade da última ceia.
Era isto que eu tinha para contar a Témia.
1 - Témia - o elo da escrita e da leitura -, está sobre a
mesa em forma de estátua.
Sustenho-te por uma corda para que não desapareças
ao fazermos a dor no fim do enfim dito. Filipe está longe de dar esta res
posta às objecções que nos fazem, e
tu de poderes atribuí-Ias claramente a quem quer que seja, pois eu ainda não nasci n
o seio deste quadro e, de entre todos vós, só eu virei a saber que tudo o que nós perc
ebemos com
clareza e distintamente é verdadeiro. Lembras-te do pequeno espaço da chávena de café am
arela, suspensa de uma das argolas do louceiro? Eu, ao contrário, reflicto sobre o
utros es-
paços, mas tenho a memória aí. Maria Adélia está quase a chorar. Se o filho que não teve par
te, o Senhor fica?
Sim, o Senhor ficará duplamente com ela. Por sensualidade, e por reconhecimento.
Queria mostrar-te que todo este conjunto, que eu defino por criação, está fechado na mão
de Ana,
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sob a primeira linha de leitura que ensinou a Myriam.
Está próximo de nós - o par apaixonado do Senhor e da serva - e será mais tarde o meu ma
deiro dilecto, martelado pela vibração das suas vozes. Quartos animais e quartos nti
pciais. Meu irmão nasceu no primeiro, e tu nasceste no segundo.
Era um quarto onde havia um elo muito forte entre a leitura e a escrita, pois a
presença da estátua de Ana e Myriam era uma constante língua de aço sobre a pequena mesa
coberta por uma toalha; tinha uma renda que fora a dobra do lençol da cama.
Hoje não há nada para ler, Myriam - disse Ana. Nem o futuro de uma criança morta? Nem
o futuro de uma criança morta. Mas eu quero ler o nosso olhar sobre a criança futura
.
0 nosso olhar sobre a criança que há-de viver?; o irmão desta?
- Sim, a irmã desta.
- Só se for a nossa filha de leitura. De que criança falavam? Olhaste para eles por
inteiro, com a caligrafia da época em
que eu ainda não escrevia.
Ler. Nascer. Morrer. Aprender a viver com a leitura que morre. Ser a língua na estát
ua de um outro, esperar que o
mesmo momento se repita. Não o deixar morrer. Estabelecer um elo entre a lei e a l
eitura, e querer a escrita. Voltar-se para Ana, e deitar-lhe um irmão morto dentro
de um livro para que ela o ressuscite.
Os animais representados nas porcelanas da casa não nos perturbavam quando ambas e
stávamos abraçadas na estátua.
Eram simples, não roubavam a atenção, nem fugiam do tempo em que os pusemos. Carneiro
inglês convertido em su-
perfície rugosa e pitoresca, cão de guarda deitado cavalo nialhado de preto e branco
41
são materiais vivos familiares que não enchem o quarto onde está Ana.
Viram os membros nus da nossa família a lutarem pela luz que a pedra deita: - Dorm
e, agora.
A vela tem um arco de violino perfeitamente definido, e acompanha a tarde dada a
ler, e o esforço de ler; a vela tem uma presença humana ainda por definir, e acompa
nha o prazer de dar a ler, e o esforço de ler; não é só a parte superior da imagem
é toda a imagem desde a raiz; que ela seja -
a vela , o que ela seja ou pensa para mim na auréola da sua memória que corresponde à
auréola deste lugar é a
minha emoção de hoje.
Conheço as velas pelos seus frutos. 0 que nasce da vela é uma criança, uma imagem feli
z que corre para fora do quarto onde meu Pai, a Maria Adélia e eu estávamos; ela ent
ra num
balão que há no corredor, e diz:
- As trevas não prevalecerão sobre a vossa felicidade.
2- depois fui à casa da rua Domingos Sequeira, de Ana ens
inando a ler a Myriam; à medida que se
esvazia, e os seus móveis se integram nos meus, deixa de ter uma luz em que tod
os os habitantes desaparecidos me apareciam maiores do que são; no que me foi deix
ado sem generosidade, mas que acabei finalmente por receber, construo uma cidade
fulgurante, e os quartos de cama ficam expostos nas ruas, e numa Praça. Por entre
os papéis de em-
brulho com que envolverei as últimas louças, e que acabei de pôr próximo da arca de pau
santo preto que estava no quarto de Assafora, vejo uma ponta de bordado no peque
níssimo pano verde de um lenço.
Se fosse o último vestido desse lugar, que se voltava do avesso na rua, eu dá-lo-ia
a Myriam recordando «quem recebe olhos, recebe lágrimas». É o sítio onde o caçador s
e oculta. E também a agitação da cortina quando a criada Maria Adélia, ao fim da
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tarde, ia à porta, e desejava, no pescoço, ou na nuca, ou no ar, o beijo do Senhor.
Eu aproximo-me deles, estou a subir por eles, e escrevo, no vazio deixado pel
o espaço que os separa «o vazio do beijo». Eu não existo ainda mas, de um olhar trocado
entre ambos, corro para o interior desse lenço, de que conheço a cambraia dos sentim
entos. Sou uma semente no homem amante, nada mais do que o receio de um mal e, a
inda que assim seja, sinto que a relação entre a casa e a rua é a de uma alegria n
ascente.
Um lenço de audácia, frustrada, na proximidade de um dia longínquo, é o meu primeiro berço
; verde claro dos afectos proibidos, ponto invisível?; momento em que se realiza a
troca entre mim e meu irmão -
ele é levado pelo movimento da rua, eu sou trazida por uma
cor, cor azul, em que o primeiro olhar que vê faz cair, de um
dos ramos da árvore da rua a audácia.
Na parte frontal da casa, está a sequência, escrita na língua deles; na parte das tras
eiras, está o texto, escrito na minha língua.
A correspondência dos sinais é obscura, mas ambas as partes falam da sua sombra. A M
aria Adélia chamo Sombra; a meu Pai, Sombrio; haverá um texto seguinte em que, a meu
Pai, chamarei Chapéu de pontas, e a Maria Adélia Futurível Mãe.
Este quebra-cabeças mostra a linguagem retorcida da minha origem.
- Hoje vieram trazer o leite tarde - diz-me Maria Adélia. - já é altura de se levantar
, menina.
3 - estou sentada em frente de Ana, ensinando a ler a alguém que, mais tarde, havi
a de ser o meu sonho; há um sinal de igualdade entre os nossos rostos, e eu aproxi
mo-me delas, pelo corredor comprido, e fico à espera de aprender a ler tam-
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bém. Há uma mulher que está para entrar aqui, e eu não sei se ela pode quebrar esta atmo
sfera, ou elevá-la até mais longe, a
um ponto irradiante da montanha onde nós nunca ainda soubemos ir; este dia começou p
elas suas últimas linhas pois, em qualquer janela, está frio, e eu sinto-me sozinha
na casa dos objectos, deixada vazia pela Morte Sucessiva dos Vivos.
Próximo, alguns livros, um galo, o retrato de um rosto feliz de expressão luminosa,
e a ária nostálgica de um objecto perdido. Estou pensando no que Ana definia por nos
talgia, e talvez daqui a um momento desça em mim a ciência intuitiva do que deve ser
feito, e pergunte à nova postulante se ela vem também para herdar, ou contar-nos hi
stórias sobre a natureza e origem da alma. Há quem esteja perto do nervo do mundo.
Mas o que pode a nova postulante levar? Certamente pode pegar na aparência da estátu
a de Ana ensinando a ler a Myriam. Pode fazê-la desaparecer, em parte ou no todo,
deixando Ana sozinha, ou Myriam sozinha ou, o que seria mais leve, o livro sem a
poio.
E se as mãos flutuarem longe do livro, único laço onde es-
tão próximas?; e se a postulante, por raptar sem querer, ou por ordem divina, se tor
nar corpo de conhecimento, e vier substituir o livro, e o seu itinerário?
- Por que te escondes, Témia? Eu sei que estás lá. Não falei da luz da vela acesa, que a
princípio estava à altura do rosto de Ana, e que agora só chega à altura do rosto de My
riam. Myriam de rosto rosado, e de corpo de luz, deve ter alguma correspondência c
om o corpo animal, pois se estende através dele a linha de conservação do ser.
4 - Há, nessa cidade da rua Domingos Sequeira, um jardim perto, e, perto ainda, um
café onde Témia costuma ir beber chá, e comer uma torrada. 0
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dono da casa já sabe que é assim, e serve-a sem nada perguntar, e eu sou servida sem
nada dizer; no último dia, quando talvez quisesse pedir algo de diferente, fiquei
calada, pois seguro é o sítio em que somos reconhecidos em silêncio, como acontece no
s dias de grande solidão; ali, sentada, en-
contrei-lhes ontem um novo desenvolvimento, uma diferente linha de fuga; Témia peg
ou em Ana e Myriam ao colo e, transpondo a porta do gabinete de estudo, deixou-a
s no centro do meu vórtice de trabalho. Foi o que ontem fiz e tive, desdobrando-se
sobre o dia de hoje, um dia magnificente de aragem. Ana, Myriam, o d
uo de vozes que desce por um caminho de vertigem. Vivo assim entre vozes pessoai
s, com traços, superfícies, volumes, frontespícios, ou estátuas em movimento.
Mas quando Myriam não lê, está concentrada no balouçar que lhe percorre o corpo: entre o
voo e o não voo, os olhos do falcão peregrino brilham; o que há de amor em cada parte
do
ar
é-lhe enviado com nome próprio e, de repente, aquele que observa Ana e Myriam pensan
do na arte de fazer estátuas, vê outra parte, a arte de reconstruir homens, sempre s
eguindo pelo caminho das pupilas.
Se posso ir ler para o escritório. - Para o escritório? -
pergunta a Maria Adélia. - E dá-me o «sim» que a ninguém mais daria.
A seus olhos, sou a figura minuciosa do dia, e não invejo a
transparente chave de ler que há na estante da sala fechada porque quero uma igual
sem o saber ainda; abro a porta retendo a respiração, e a minha chave nos dedos, po
rque aquele é o quarto do bem-amado. As persianas estão descidas como sempre; vê-se na
secretária, sob o vidro grosso do tam-
po o manuscrito.
Ali, arde a substância onde Ana está ensinando a ler a Myriam, Ana sentada numa cade
ira, com o livro aberto no
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colo, Myriam de pé, a olhar um dos primeiros textos, «que é um cavalo que vai saltar». E
stá sendo beijada na boca pelas letras, e inclina a cabeça para trás, pois a seta da c
lemência atravessou-lhe o vestido. «Quem for clemente, lê.» Se a linguagem, segundo diz
Ana, for aprendida na visão, ela, no fim, tirará da estante ardente a chave da leitu
ra, e metê-la-á no bolso de Myriam.
Ana diz-lhe:
- A minha morte passará nesse instante.
5 -... pergunto se posso ir ler para o escritório. - Para o escritório? - pergunta a
Maria Adélia. E dá-me o sim que a
ninguém mais daria.
Sou uma figura minúscula dentro deste dia, e não invejo a
transparente chave de ler que há na estante da sala fechada porque quero uma igual
sem o saber ainda; abro a porta retendo a minha chave nos dedos porque aquele é o
quarto do bem-amado. As persianas estão descidas como sempre; vê-se na escuridão, ou
na sua luz, um manuscrito em que Ana está ensinando a ler a Myriam, Ana sentada nu
ma cadeira, com o
livro aberto no colo, Myriam de pé, a olhar um dos primeiros textos, recebendo os
seus beijos na boca. Se a leitura, segundo Ana, for realizada na visão, ela tirará d
a estante ardente a
chave de leitura, e oferecê-la-á a Myriam. Que perturbação forte é a que invade a semi-pen
umbra até a trazer para dentro do livro, esteja ele aberto, fechado, ou de pé sobre
a lombada. Nada sei do Amante a não ser que ele tomou um rosto; do sexo para a mel
odia da palavra há um caminho. Olho os lábios da vulva aberta na página. Primeiro, ima
ginar as sílabas sem corpo; escondo-a no armário de torcidos e tremidos que está perto
de mim. Fim do livro, fim do prazer, fim da Escola onde as mãos são o que escondem
verdadeiramente. A alma da hora da minha morte passou naquele instante. Eu olho-
a, e sossego, achando-a «eu, e bela». Derramo o sexo de Témia em «mais belo».
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0 caminho passa pelo cabelo de Myriam, levantado na
nuca, e esvoaçando ao vento no quarto fechado. 0 seu cabelo é uma montanha de olhos;
escuto, de um lado, o ruído do mar, e imediatamente tenho vontade de ir a outro m
onstro; a visão que tenho, a rolar o copo nas mãos, é ler. Tudo/Todo conflui para o br
aço de Ana pousado sobre Myriam, e a pergunta que ela lhe faz sobre os lábios, mas q
ue existia já nesse
livro. Quanto maior for o abandono da pergunta entre as
mãos, maior será a atracção misteriosa que, para mim, indica
* caminho;
* espírito, contido nas mãos de quem lê, tem as suas regras; tem o seu domínio no círculo
do corpo, e tem a sua paixão própria.
- Não bebas toda a água - disse-lhe Ana. - 0 vazio toma quebrável o copo. No fim, o so
l, ou o sexo masculino que há-de vir, não terá nada que tu desconheças.
0 tu, «a segunda pessoa de Myriam» estava no espelho
a pessoa que as páginas espalhavam; guardar um copo de água nas mãos é aceitar ser o lug
ar de ler, do abandono, como também se diz; que esse homem, sempre presente por de
trás de Ana ensinando a ler a Myriam, me tome o copo.
- Não bebas toda a água - pediu-lhe Ana. - Ou pousa as mãos que abandonas sempre na me
sma página. No amor
de ler, há uma física que serve as direcções de mudança, e que é o segundo olhar por quem My
riam espera. - 0 homem-guia dá-lhe mais um golo, e o frio desce no copo, ou seja,
a ardência aumenta em direcção
- Ana - diz Myriam -, vamos à página seguinte, e deixemos esta aberta. Há, numa outra,
um i .ovem desconhecido
que nos espera.
Ana devia perguntar: - Como, como é possível? - Mas só procura o caminho da onda que s
e envolveu nela e lhe indica o caminho por explorar de Ana ensinando a ler a Myr
iam.
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6 - Quando, finalmente, se abriu a porta do vaso de luz, que é ligeiramente menor
do que a ideia que nós temos do sol, a segunda discípula entrou no labirinto de leit
ura, e en-
controu o seu centro no regaço de Ana, onde estava o livro aberto.
Ana disse-lhe:
- Vai preparar o teu quarto, pois antes do crepúsculo faremos ainda uma hora de músi
ca.
Myriam voltou.
- já estou muito cansada, e já cai a tarde. - Mas queria antes dizer: «vejo a sombra d
e uma outra, a teu lado, debruçada no livro».
- Ela é filha do nosso amor - disse-lhe Ana. - Vejam juntas a claridade monstruosa
na beleza desta leitura.
- Tive desejos de vir murmurar para a cadeira de leitura.
- Com uma voz mais baixa do que ler.
- Com a voz de escrever - disse talvez a segunda discípula.
«Com um fio de voz, e um dia de crepúsculo, no ódio e no amor que sobe essa escarpada
montanha, eu vos uno para sempre.»
Myriam disse:
- Mesmo contra minha vontade, preparei para Témia um quarto cheio de atenção contempla
tiva, aureolado pela intenção de reencontrar uma cena fulgor numa pessoa.
Ao reencontrar os outros olhos, que percorriam a mesma página, e que deixavam nela
a sombra dos cílios, disse-lhe:
-Amor e irmã: ando fascinada com objectos, pequenas e
grandes coisas azuis, situações, cenas, que caem do fundo da minha voz, banham-se ne
la, e saem vestidos, suplicando esplendor.
- São semelhantes à cor do vosso sangue - diz Ana.
0 meu fez um texto para vós duas:
«Sobre a mesa, de um metro e meio de diâmetro, e um
metro de altura, coberta com uma dupla toalha que trouxe da sala onde me sentava
, sozinha, no chão, está em flor uma fruteira de bronze.
À sua volta, presos aos bordos, giram dois mensageiros. Faço rodar a maçã, e a laranja;
encostados um ao outro no centro.
- Qual delas dorme, se dirige à vela, e é o sumo da linha obliqua que os prende ao p
avio? - pergunto».
Longe, sobre a vela, está acesa uma lâmpada eléctrica. Onde me sentei é maior a obscurid
ade, sendo a tinta da minha pena, vermelha, e tendo eu as pernas estendidas sobr
e o tamborete da india com embutidos de madre-pérola-
- «É um momento crucial» - pensei. «É um doce momento entre mim, a laranja e a maçã. 0 traço
união é perfeito entre os diferentes Mestres de Leitu-
ra. »
Myriam e Témia vêem, em pequenas nuvens, os seus poucos anos flutuarem em relação à idade
infinita de Ana. Myriam vê a sua companheira caminhando para mim sobre o
espaço abissal em que todos estamos a ler. É o azul «a cor é o lugar onde o espírito e o u
niverso se encontram».
Estou fulgurando aqui; está fora desta relação o cansaço das cinzas. Nem o primeiro frio
, vindo depois do fulgor, me
fará abrir a porta - e cair. Incerteza dos dias futuros
onde estiver um Mestre de Leitura estará o caminho que desconhecemos.
É esta a insondável herança que Assafora me deixou.
7 - Na madeira polícroma da página seguinte, estava escrito: «a Domingos Sequeira é um l
ugar de diferente mistério»,
num próximo encontro.
Rodeio com os braços de ler os ombros da rapariga que lia Myriam, a que nasceu da
floresta dos símbolos. Apanhei uma pedra na vereda e arranhei-lhe a testa para aí fa
zer penetrar o que pensávamos e sentíamos (o nosso
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amor). As imagens do silêncio estavam em risco de precipitar-
-se a meu lado, com o esplendor da cabeça loura de Myriam.
Por entre a ansiedade que se dirigia connosco para a mesma fonte, vi-a, então, no
cortejo veloz dos seus olhos. Senti uma curiosidade, lenta a desenvolver-se, por
aquele olhar próximo do meu.
0 que dizia na sua vibração azul de pupilas que nascia na
quantidade de um, dois, três seres?
«um e um são depois; depois e um são sempre; juntando sempre ao momento que passa tem-
se a eternidade.»
Assim, Myriam, Ana, Témia e o jovem desconhecido reu-
niram os seus corpos e
eu os deitei, unidos, naquela fonte
Há, nesta história, um momento de desvendamento. Chama-se Sublime.
No momento do sublime desta história, que consiste em
um homem estar com uma mulher como se a amasse, amando o sublime que é o encontro
dos dois com outro ser, um jovem rapaz feminino, ela, tem-se a certeza que a mor
te está presente.
Témia pergunta-lhes: - «Não haverá'outro modo de ler?». E, continuando, diz-se que o jovem
rapaz feminino é a gota, ou o último degrau que, depois de bebido, ou subido, ating
irá o rosto de Myriam, no momento da elevação do pensamento e da beleza de expressão. An
a lê: «aos pés de Myriam, entre dois dedos, há uma luzinha descalça». Myriam pergunta:
50
« Por quê essas imagens? Por que errarão sempre sobre a ca-
beça de alguém?».
Ana responde: «acendo a luz, e a imagem de Gabriel Anunciando esvai-
-se; apago a luz, e a imagem concentra-se na leitura, sai do seu volume, e apres
enta-me a Quimera sentada no corpo em que sempre a vi um lugar rubro n
a atmosfera, à volta, estende-se o horizonte, que é uma claridade que entra
dentro do corpo; a lareira arde, e o sentimento que arde é também corpo; como
a noite desce e ninguém acende o candeeiro
ou qualquer outra luz além da lareira acesa a sensualidade propaga-se na
linguagem, que se
torna lenta e única presença do corpo; é um dia único; eu escolho, e não aceito, através da
noite, o corpo tumular de viagem; Myriam, que nos observa, levanta-se da sua cad
eira para percorrer, pela última vez, a leitura; e cala-se definitivamente, como a
noite quer;
Eu ardo no vazio, criando na imagem da clareira o obstáculo raro que impediria a s
ua partida; convertemos em meia palavra o que estamos a sentir
e o resto
somos nós inertes.
Myriam toma-se comprida e lenta para atingir a porta; ou é a jovem Myriam; ou
a Quimera que envelheceu, excepto eu; dá-me os olhos com o olhar bem definido, e d
iz-me:
«tu eras a minha única esperança: única, última, leal».
Respondo-lhe que não sou o criador do meu criador. Ela responde-me que, por isso,
se quer tomar simplesmente uma imagem. 0 seu criador já a abandonou, mas eu não deix
o de fixar-lhe as formas negativas do dorso que lutam
51
contra a corrente de ar da porta; se eu tivesse poder para en-
contrar-lhe forma humana e gloriosa de desvirgem, ligaria, indissoluvelmente, es
tas duas chaves uma à outra; procuro em mim, e fora de mim; na sala espalham-se to
dos os meus re-
cursos e perfumes:
Ofereço-os ao Outro:
- Quem é esta mulher? - pergunta-me ele noutra língua.
- Quem será esta mulher? - responde Témia. Myriam, dorme. Ou passeamos sós
em face da porta que não se reconhece como tal o resto da Noite; é a
paixão que a porta sente por nós que nos integra
- um a um , na chama do lugar em que estamos; hoje, este hoje espalha-se pelo es
paço da porta, e pelo espaço que sentimos, é a sala do Mestre de Leitura.
Térma diz a Myriam:
- Fomos leais uma para a outra, hoje, Gabriel Anunciando está apaixonado por ti; M
as amo-te no lugar em que ficaste, como amarei esta pessoa de leitura
no seu lugar e, lealmente, lerei contigo.
- Mas a paixão não é aquele que introduz no espaço do Mal? - perguntou-lhe Myriam. E pri
ncipiou a ler: « é a cegonha que transporta a jarra no seu corpo; porque há u
ma jarra com uma cegonha em relevo; a cegonha anuncia que há telhados, e chuva, so
bre a cidade. Pára sobre o telhado do nosso prédio e, como alguém vai nascer agora, de
sprende a jarra do seu peito ficando, no entanto, gravada nela; a jarra toma-se
preta, e explode no momento em que o meu pequeno irmão desaparece da vida. Reencon
tro-a mais tarde sobre o contador da água e amo-a, por causa da cegonha
52
imersa do seu voo de luto; desde o primeiro instante, esta jarra atraía o meu olha
r e, no escuro do corredor, mal se distinguia.»
Concluindo a narrativa de Myriam, Ana cantou a ler:
- Térma, essa criança não está morta, foi, simplesmente, raptada do mundo, e posta a son
har num ermo ainda mais solitário. Myriam e o jovem Ler fizeram a aliança da sua ida
de. Passeiam juntos através de longas distâncias físicas e reais, por entre os pinheir
os, até descobrirem que a cegonha voltou do mar.
53
Um Companheiro Filosófico
CAPíTULO IV
Prólogo
dentro de meses, talvez um mês, terei liquidado a
casa da avó, e transposto alguns dos seus móveis, e objectos, para a minha casa no P
inhal. Operação terminada. Operação da memória, terminada. Coincidindo com a minha ruptura
de Fevereiro com a mãe de Témia, há o medo que se evapora destes lados extintos.
Estes lugares, fontes de inebriamento, eram também lugares centrais do seu medo. A
essa casa, e à imagem captativa da mãe, unindo-as, eu sempre chamei castelo nodal d
o medo. No entanto, quando o medo abria as suas falhas, elas eram
fontes pujantes de cenas fulgor. E, quando as cenas fulgor se
tornavam invisíveis, e não recebiam ninguém, uma experiência de profunda nostalgia.
Assim é que estabeleci duas colunas: a coluna do que se destina a ser vendido na r
ua de São Bento; a coluna do que se destina a ser vendido na rua Dom Pedro V
Em São Bento, o bengaleiro, a secretária de escriturário, as
molduras sem leveza, de que retirei as telas. Na rua Dom Pedro V, o crucifixo, a
s armas, o lustre ainda com tubos para a
circulação do gás, o pergaminho, os dois quadros sacros.
Não são palhas, nem obstáculos pesados. São valores da minha memória de Témia. São as últimas
ssoas que lhe darão contra-luz, e luz. Potência fulminante, em que a obscuri-
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dade ambígua da casa se tornou uma lança; voam em tropel, dividindo o caminho entre
as patas e as asas.
São o cão, o carneiro, o cordeiro, a ave simples, a galinha, o leão, e a pedra de mão hu
mana que trazem no pescoço. É
como se mergulhassem no horizonte os últimos reflexos de uma casa solitária.
1 - eu sei que, no istmo da linguagem este mundo não tem companheiros;
mas o corvo marinho que encontrei hoje na maçaneta da porta fez-me lembrar que o u
niverso se estende sobre o mundo.
Eu ainda não nasci, e é essa a parte mais comovente e íntima desta linguagem. Estou a
ouvir o que dizem, compondo com as mãos meus ouvidos e minha cabeça, próximo da con-
cha improvisada onde dormem os amantes deste quarto. Não há um, nem há outro, há um clarão
que excede o brilho, e que une esta noite a um vestido. Estava no guarda-vestid
os, era azul, e, ao vê-lo para ser vestido, eu chamei-lhe o vestido filosófico.
Sobre um corpo que atingisse um degrau azul de amor, o que Témia não imaginava s
equer o que era, daria à luz uma túnica inconsútil que o seu companheiro de conh
ecimento não poderia rasgar.
2 - Quando eu era criança deste-me o nome de Témia; estou sentada rio caminho de Alp
edrinha, num dos degraus em que o caminho se levantava; estou a ver a
casa longa e baixa, e a velha oliveira que a casa possuía; não estou só, estou a pensa
r na complementariedade dos contrários por outra via mais simples e, certamente, c
om mais verdade prática. Vimos o sexo de um rapazinho, e pergunto: «De onde lhe vem
que ele tem aquela coisa mais do que nada?».
Subimos para o degrau seguinte, e volto a sentar-me. 0
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que esplende, à volta da árvore, é o nada da forma: «Será por isso que duas mulheres não pod
em ter uma criança entre elas?».
A pulsação entre o teu coração e o meu corpo era um novo movimento de relógio. Subimos ain
da para o degrau seguinte e fico quase à saída, junto do portão; há outra oliveira que s
e abre sobre a estrada, e para sempre eu deixo correr os
dias um a um.
Nessa tarde, foi já outro dia. A dormir a sesta, sonhaste. Era o meu lamento de cr
iança filha de duas mulheres - filha da mesma forma. Chamavas uma, ora outra, mas
não as distinguias na claridade excessiva do sonho. Um pênis suspenso no ar era o fi
el da balança. À porta, o sol, invasora estrela da tarde, descobriu a fala de uma da
s mulheres, que dizia:
- 0 desejo de fugir nos guie. A segunda respondeu: - Se ele fugir para nós, nós fugi
remos dele.
Ambas mentiam. Minha mãe e Maria Adélia. A hesitação que eu sentia entre duas formas, não
voltei a
senti-Ia à noite, mas no dia seguinte: mudar, ou desaparecer
era o pó do meu próprio crescimento. Eu sabia que tinha de haver um homem, mas não for
a ele a origem da criança que vagia; descobriste-me deitada numa
tábua coberta com um pano de lã e, no instante em que te sentaste muito próximo, as du
as mulheres viram o mesmo nome pairando sobre mim, o nome de um A/Nómada; o que er
a nómada?, perguntei-te; a forma do sexo por definir,, disse - te.
E nada fiz para compreender até que altura, no tronco da árvore de oliveira, as f
ormas vitais se misturavam. Eu sentia que não havia nada, mas til sabias que, no m
eu corpo, Nada haveria.
Uma sobe, outra desce, pelo mesmo caminho que conduz à porta da pequena casa; que
conduz à imagem; que conduz à única nova pequena rua que circula por detrás da casa.
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É de noite, e os olhos não se habituaram ainda a ver o recorte da árvore que, sem verd
e, dá sombra.
- Um, é quem? -Dois, é quem? - «Um murmúrio subtil. Pego num dos ramos, e a porta para o
interior da casa volta a abrir-se, fazendo um desenho com a vida da criança que r
esta no limiar», escreveste, no teu papel de narradora.
3 - ontem, reunindo o espaço com o tempo, resultou uma
criança. Acabara de chegar à rua Domingos Sequeira quando alguém me pegou no cotovelo,
e me levou a uma casa mais acima, quase na esquina da rua; acabara de chegar a
esta casa quando alguém, segurando-me pela mão, desceu comigo até à casa de onde eu vier
a, muito próxima do jardim público; quase arrastada, não dou a mínima importância às minhas
emoções / as lágrimas que me caem pelas faces / são água fria; sou já um geógrafo, apenas a d
screver os cometas, sou já da natureza do adulto que se integrou em mim; deu-me fo
rça marchar entre dois obstáculos.
Quando chego à noite, reparo que a cama em que me deito é a da colcha azul, ao lado
da minha irmã; sobre a mesa de cabeceira há uma baitarina-candeeiro, de onde provém a
luz que, pela primeira vez, iluminou a minha página onde eu
lia um livro. nesta incerteza, desta falta de liberdade de ter de ir e vir de um
a casa a outra nasce, recua para mim um sonho de nomadismo e de contemplação do movi
mento nas coisas leves e simples.
se eu pensar que nunca mais serei sedentária imediatamente todo o caos (em que eu
não estou) se ordena; o extremo conflui agora num enorme espaço debruado pelo tempo,
e o que estou vendo, com som de prazer, e descendo por muitas gargantas, habita
na fluidez e instante da casa morta à Nuvem Pairando; lugar que é uma face do tempo
, e onde é impossível dar forma
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compacta enfim subindo à matéria narrativa de um livro; balouço sobre vários telhados, e
desço por um eixo que me causa vertigens; pois nada se vê ainda do tempo circunciso
que eu esperava; o que é o tempo circunciso?
É a nova fase da minha vida, uma espécie de apelo retido no meu nome, que entra clar
amente pelos restos da minha vida de hoje. Às duas da manhã, Témia quer um
companheiro filosófico para brincar tal uma noite, ou qualquer parte do dia que co
m ela se desvanecesse.
Noite de bem-estar; meu corpo, esse conteúdo com desenho físico, está de acordo; talve
z brinque filosoficamente com Témia, se ela romper o antigo cordão metálico que nos li
gava como família; rua ladeada de árvores, lugar com muitas ruas arborizadas, é no que
eu estou a pensar; talvez lhe mostre a
minha concha com que tiro a sopa, apesar de não gostar dela; à tarde, trouxe-lhe da
casa que atinge o fim dos seus dias, Juta, uma boneca da infância da minha tia Ass
afora, de há quase cem anos; mudei,lhe o nome para Miosótis e, ao querer lavá-Ia com a
lgodão embebido em álcool, tirei-lhe o verniz do peito; é nesta sequência de, lentamente
, mudar objectos de lugar, desejando que o espaço que os cerca seja, em extremo, a
legre aqui, que hei-de ir mostrar a Témia, na Domingos Sequeira, como era a nossa
colher de tirar a sopa.
Não será nostalgia o que sinto pela formação perdida da casa?, a procura do ar que se re
spira em família? Família terrível enquanto existia; família fortemente odorífera só por ter
desaparecido? eram, em verdade, substâncias de tempo absolutamente diferentes; pe
rto de mim encamavam flores, o que dava testemunho do espaço; não só do espaço,
também da cor; e só na cor azul liquefeita, eu aceitaria ser o companheiro filosófico
que iria brincar com ela.
Entretanto, como eu ainda dormia, levantou-se e foi para
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a sala ter o primeiro pensamento condutor do jogo da manhã; acordei, e ela não estav
a imediatamente a meu lado; estava a meu lado, mais além; ou estava a meu lado, e
mais além; a ruptura da manhã tinha entrado pelas portadas da janela cerrada, e prod
uzira esta hesitação linear em que a frescura do tempo paira sobre as águas; sobre o m
eu coração, a tenaz de um desdobramento sublime que não condiz, nesta luta, com o meu
pensamento; dissociaram-se um do outro e um diz outro faz
sofrer; porque ninguém educou Témia, a não ser esse filósofo que lhe abre e fecha os ol
hos e brinca ainda hoje comigo, desenhando, nos restos de prazer que
traz a contemplação do luar, a solidão como beleza de sons.
Depois escondeu-se e vi desenhada no pavio da lua, na
orla do luar, a solidão como o instante presente; seu perfil humano surgiu-me em o
utro perfil de monstro, em
tudo oposto ao meu, que lutava comigo, e pretendia inspirar-me quanto à maneira co
mo eu devia encontrar o meio justo para viver na minha casa todos os dias.
Atravesso, logo a seguir, a grande sala, e encontro-me numa zona onde me recolho
, por falta de luz, à entrada de cada um dos três quartos. Estou a relembrar, olhand
o Myriam, o fragmento de Hieráclito: «o sol não é mais largo que o pé de um homem». a imagem
daquele homem avança sobre as águas e, subindo com as marés, coloca um ídolo nessa mont
anha; a imagem incrusta-se na pedra e constrói a montanha um
a rosa picava o azul das almas exalando melancolia sobre o amor; de
um fio desses sentimentos, eu desci para a terra do caminho que se dirigia à cida
de; uma
poeira lúcida fazia de lâmpada sobre a mesa, e ele pensava nas
duas mulheres de que Témia, como pessoa, nasceria. Um duplo parto? Mas no sentido
de um ser posto no mundo por dois seres - duas mães? Ele perguntava-se a quem iria
entregar a
criança que já estava dividida, fragmentada no seu espírito,
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no seu espírito de linguagem. Será uma criança figural que acompanhará os elementos pres
entes na atmosfera das estrelas? A montanha, a linguagem, as constelações vão ter um p
apel decisivo, pensei. «Não irão ter pena dela», pensei ainda.
Filipe tinha já começado a desabotoar as polainas brancas que lhe resguardavam as pe
rnas e a parte superior do Calçado; os sapatos estavam impecavelmente engraxados;
na casa da sua própria mãe, a Maria Adélia polira-os com um pano. Lustrar os sapatos,
o diamante do dedo, meter uma rosa na água.
Témia ia deitar-se, pela primeira vez, com uma das mães do olhar que havia de vir
de quem observava sempre o encanto do porte, e a pele macia.
0 assento e o encosto das cadeiras de braços tinham um
recorte de um tecido da época - verde -, e interceptavam a
claridade dominante no quarto principal. Ele sentou-se ao piano, e lançou-se sobre
o teclado, levantando uma revoada de música com que envolveu uma das futuras mães m
usicalmente água, e bacia macia; ergueu-se, firme, na imagem que sua amante
fizera dele, belo, jovial, todo-poderoso, amando o belo que despediam sempre
os seus olhos, a sua testa, a sua silhueta e, com um sorriso na boca, penetrou a
mulher legítima que conceberia metade da rapariga ligeira que não temia a impostura
da língua.
- a outra metade seria acrescentada mais tarde, unida intimamente à primeira e ass
umiria, no seu âmago, o fogo indestrutível da linguagem.
A seguir, voltou ao piano: - Acabarei aqui este acto disse.
De facto, ele era principalmente ouvido.
4 - «Eles não irão ter pena», voltei a dizer-lhe e pensei que a rua Domingos Sequeir
a, onde sofri e me criei, podia ser
o leito das «cenas fulgor»: o filósofo oculto na casa é um sinal da humanidade
quando uma ideia, na sua imagem,
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chega ve-se chegar; o monstro chegou nesse tempo. Logo, a humanidade c
hegou a mim, nesse tempo: com a mo-
rada de rosa velha, vem a morada de rosa branca. E Témia segredando-me: «Vamos jogar
na sombra com o monstro».
Entramos neste espaço sombrio do mundo com patas brilhantes, não sabendo ela que ia
entrar no leito das «cenas fulgor». A proximidade dos objectos eram estrelas que a g
uiavam com mão segura, e Salomé, península de beleza, não ces-
sava de pedir, reclinada na sua porcelana, que eu lhe levasse sons mas, a Témia, r
eclamava a cabeça decepada de João Baptista. Foi quando lhe disse: - «Vem comigo. Corr
e ao leito extrair da água as cenas fulgor».
Extraí-Ias da água é um trabalho que exige um vaso, e grande clareza.
Foi buscar a jarra que, na sala de jantar, está sobre o pano de renda, e deitei-lh
e água deste leito, com os olhos, com a
concha das mãos, sempre lhe dizendo que a cena fulgor mais luminosa nasceria da no
stalgia. Pronuncio estas palavras na água, vendo mal, e
passo subitamente a ver melhor no fundo, pois o meio aquoso amplia a ressonância d
os pontos ligados e brilhantes.
Témia entorna a água, e as cenas fulgor lançam-se, em
cascatas e paisagens, no tampo da mesa. «Não vejo nada», diz-me baixo e envergonhada.
Sem de nada suspeitar, o corpo de fulgor toma o dela e começa a dançar no ar, a meio
da sala; há uma fonte debaixo dos meus pés que a lança para o alto da montanha. Témia,
sem medo, ri e abre os braços, chapinha
não se apercebendo de que a luz a usa; deito-a no
colo receando que se perca por entre as referências e atalhos luminosos; deito-a n
o colo de Maria Adélia que não com-
preende por que Témia tem febre, e só diz que a ama, que nos ama, que está ao serviço de
quem, ali, vir primeiro Só e Ma, ravilha.
Há uma contradição entre a velocidade da luz e a do corpo que se move devagar, sopesan
do-se. 0 peso está nas lágrimas que não param de correr sobre a sua febre. E, nesta in
de-
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terminação do seu lugar no mundo, chora sobre o que lhe diz a voz. Sente que encontr
ou um companheiro que se pode perder, se esconde e, pela primeira vez, experimen
tou que há uma palavra-imagem que emudece numa cena fulgor.
Pressente, com clareza, que tem um corpo de criança disperso pelo quarto e, mesmo
reunidos os bocados cintilantes, acha-se ainda só, de outro corpo; pega na jarra d
e cristal da Boémia, e pergunta-lhe: «És tu
minha irmã?, o meu companheiro filosófico?». A jarra empalidece no seu obje
cto, e o tropel dos pensamentos em
motim abre a j anela, para ficar aqui connosco: - «Não tenhas medo, estou aqui. S
ou o teu companheiro de jogo. Não queres vir brincar ao pensamento?». Pausa.
Encontrar o seu rosto em frente do meu cria, à nossa volta, uma claridade simples,
de que o centro é a alegria do nos-
so corpo.
É preciso que nos encontremos ligeiramente vestidas, e a
janela esteja aberta à volta da minha boca. A coberta não deve ter peso, e o silêncio
atravessar o ar, e fluir com ele. Digo-lhe que devemos crer firmemente que, a do
rmir, uma de nós terá um sonho com a linguagem, e que a outra falará com ela.
Por que sorríamos uma para a outra, se nos tínhamos perdido de vista? Porquê? Porque o
olhar é a forma acolhedora de uma queda, e a sua melodia poderá abrir-se, deitando-
se, e ex, plodir sem mais som, no fim da frase.
Basta que uma de nós deixe de estar concentrada para que uma parte do sonho volte
ao sonho; dormir assim, deixa que a
mão, que mergulha no mar, encontre a sua gêmea sob a água.
É esta relação que, ao cair da noite e ao raiar da aurora, de um instante para o outro
, decorre entre quem brinca no pensamento, ou no amor encontra as formas a prior
i do nada.
Térnia leva o que eu lhe ensino,
e eu sou uma espécie de criadora de novos sonhos. 0 lugar para onde ela leva tudo
o que existe é o segredo onde o livro
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se desfaz. 0 mais le ve ruído que se faça, ou ouça, desfaz na
sombra o que estava tentando tornar-se claro e audível.
Sem meio transparente não há força exacta.
Témia pergunta: «Como segurá-la no meu sonho que tre-
«Como segurá-la no teu olhar que treme?», ecoa o com-
panheiro filosófico, ironizando. «Segura a pata do monstro
que repousa na tua mão minúscula, em resposta à tua; a tua está equilibrada na minha, re
pousando numa pena de escre-
ver que limpa o ar. »
0 meu olhar que frase estranha na boca de quem pensa. No cimo, a image
m imobiliza-se sob os nossos cílios, e
das bordas do papel em que lemos deslizam as lágrimas que não vemos. Eis tudo.
«Pus o ouvido na sua concha de lume, dou-te um rei para cada palavra,
e a primeira que eu coroar, serás tu própria.» É a tua própria vida.
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0 Globo de Contar
CAPíTULO V
Prólogo
dia seguinte, em que falámos do corpo como bâtiment, em francês, construção e navio; ca
da vez eu, eu maior do que eu, espaço, tempo e terra; constituo uma travess
ia, um acto perpendicular de alguém que marcha em nós; um de nós, no fundo da sala, to
ca violoncelo, e eu penso, com a nostalgia do espaço interior e exterior que me ca
racteriza, na energia dos braços que remam; lembro como ontem aquele que está a toca
r via o crescimento botânico do corpo humano; a cabeça era a sua peça antiquíssima, a su
a semente permanente; os braços, e as pernas, raios estelares que vieram de longe,
de um lugar certamente aéreo; o busto, seu lugar propriamente terreno; finalmente
, a sonoridade de toda esta construção de navio atravessando as águas, como se vê no amo
r, quando os amantes ;
enquanto ele toca não quero emocionar-me, e entro decididamente nas minhas próprias
palavras, e no porto de música que ouço atrás de mim; mas quem me vir, vê-me sentada à mes
a em face da janela, bloqueada de azul; a janela que tem atrás de si o pão servido s
obre o prato, ima-
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gem de uma folha caída de uma árvore; Se me dirigir para o meu amante, quero ser gui
ada pela res-
posta que deu lbn'Arábi e Averroes: «Entre sim e não». Eu penso, e este eu não pode perder
-se, nem destacar-se da toalha. Eu penso, e eu penso que o absorvo, ao seu arco
de violoncelo, à sua posição de pé e, sobretudo, aos seus enigmas; quando a música circula
, a mudez circula igual para todos; continuo a ouvir tocar violoncelo
e eu desconheço totalmente a organização interior da música; produzi, de ouvido, este t
exto, para não perecer a chorar; não consigo dominar a sensibilidade nostálgica das se
parações, e
esta é uma das separações da linguagem, e da música; e assim partimos do sítio onde devíamos
ficar para o sítio de onde devíamos regressar; as ondulações que ouço lá fora são a reconsti
uição do vento que sopra sobre a terra; onde quis que Témia estivesse, entre nós, presen
te: ter tido duas mães é um dom maior , mas bem maior é o mal; - Filipe morto - pergun
tou-lhe Témia, no escuro _, por que não vives com as minhas duas mães?
1 - 0 que é um globo de contar?
há, no entanto, noites que são de um duro trabalho
(de angústia). É assim que eu fui criança. Témia tenta crer que há uma vertigem pessoal, e
que pode deslizar, sem ser vista, para próximo de Ana. Levanta-se, muda de quarto
, vai à janela, e faço apelo aos coros que habitualWente me levam pelo ouvido e pela
mão. Regula, fechando ou abrindo as gelosias, a claridade que rodeia a cama, e fi
ca envolta pelo detalhe de uma voz: - «Eu nunca serei o adulto desta criança.» - A sua
vida afectiva pulveriza-se e com ela resplandece o lugar escuro para onde eu es
tava a olhar: ó Ana, eu queria ir ao interior da madeira para saber,
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finalmente, qual é a tua relação com a pequena estátua onde ensinas a ler.
0 fundo da madeira interioriza um nó, um ovo
que acabará por ser um povoado no meu horizonte.
0 rumor longínquo que há na casa é meu. Mas o labirinto que me atrai é vosso: mais que d
uas bocas, dez dedos, muitas folhas. Principiáveis o ciclo do vai e vem contínuos en
tre a casa e a floresta, sentando-vos para ler, levantando-vos para escrever.
Eu via-vos em movimento constante através da porta entreaberta, e tentei levar o pé
de uma das duas à boca. Mas encontrei-me numa grande clareira, de mãos unidas, sob a
árvore frondosa em que tinham sido talhados os vossos corpos de carvalho.
0 que indicas com o pé a Myriam, Myriam lê? Lê para além do que lhe ensinaste?, chegando
já ao povoado, à terra das percepções subtis? Porque na mesma fibra de madeira se escul
piu o globo de con-
tar, onde também Témia aprende a ler e em cada gomo há uma lição de coisas, uma redacção, um
itado e, se souberes pensar, há ainda um destino.
2 - 0 que é uma casa?
é um entardecer singular quando Myriam e Ana têm a luz, que as ilumina, apagada; por
que, ao crepúsculo, elas estão sempre num contexto de claridade, lendo; a sua mesa f
oi atravessada pelo eixo dos três quartos que se dispõem à volta da se-
gunda entrada da casa que dá acesso a uma relação interior.
Cada quarto tem um nome próprio: o quarto grande, onde, na cama se segue uma via o
bscura e perigosa do amor; o quarto da cama da jovem, que será também o quarto dos
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hóspedes e o quarto em que a cama foi substituída por uma
mesa, tendo sido o lugar da cama deixado vazio, e onde há um movimento impaciente
de espera; no banco de madeira atravessado em frente da estante carregada de bib
elots e livros, foram espalhados papéis e os livros próximos, que mantêm entre si uma
relação idêntica à de Ana e Myriam.
Completam-se mutuamente o papel criando o que o olhar aberto deixa sobre si.
3 - 0 que é uma paixão?
um dia, responde a Maria Adélia, foi e será sempre o mesmo
Senhor que me alimenta de leite, eu estava à espera que ele viesse, e já me inqu
ietava muito por ele não ter vindo, vejo, então, pela fresta rósea da janela, ch
egar um carro à Praça, e ele descer dirigindo-se, depois, certamente para a
porta, que era a que eu entreabria para o receber; espero ouvir-lhe os passos, m
as o tempo decorre, e ninguém entra; espero que bata à porta das traseiras mas o des
ejo de vê-lo deve ter-me afectado o corpo e o espírito. já cantava, e dançava, fico tris
te.
Volto à janela, olho a porta da rua, o espaço que vai de uma a outra, e verifico que
tinha sofrido um desvario, percebido a sua imagem sem que haja, efectivamente,
homem cor-
respondente; que deslumbramento tocar-lhe o rosto real;
Por que vi, sem o ver, nessa tarde, o primeiro dos primeiros objectos, meus amad
os?; por que chamas, a um ser humano «<0 meu mais ser humano») um objecto amado?
É para envolvê-lo em toda a liberdade da sua existência? É para separá-lo da impostura do
mundo circundante? E para protegê-lo do estado do dia, igual, em nada, ao es-
tado da noite?
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4 - Por que é que o amor é cego? Isabel sonha, com uma angústia crescente, que se diss
olve na sombra do eixo que atravessa a rua, e essa seta de dor au-
sente imobiliza-a a olhar.
Pega nos «Contos do Mal Errante» e, por exemplo, sonha com um facto real que se pass
ou na sala de banho do primeiro andar da casa:
H. está nua numa banheira, a lavar-se com a porta aberta para o primeiro patamar d
a escada. C. entra para não esperar, ou lavar a cabeça mais tarde. H. diz que ela próp
ria lhe ensa-
boará os cabelos e os passará por água limpa - a da torneira que corre para o seu banh
o; Isabel está longe, porque não vê a
cena e, no entanto, está no quarto próximo.
«Também se chama a este estado'A Mutação'porque, mu-
dando, não pode ser surpreendido sob nenhuma forma. Este ser mutável, troca de pele,
e toma-se Um.
Esse UM muda, e torna-se Sete. De Sete, transforma-se em
Nove. Com o Nove tem fim a evolução. Muda de novo, e re-
gressa ao Um. Um é o começo da transformação das formas.»
a profundidade a que o descobre está na balança com as trevas e a luz. nest
a nova situação humana há uma melancolia infinita de perda; do outro lado da cabeça, Isa
bel sonha que a figura de Copérnico a abraça, e que sobre eles paira a ameaça de uma n
uvem pesada; mas a figura de Hadewijch, estando eles cingidos como dois recém-nasc
idos por panos, ou ligaduras, ata-os um ao outro e levanta o único corpo nos braços
para fugir - para onde, para que novo Egipto?
Quem lha retirará da angústia do Seu rosto, indefinido hoje, definido amanhã?; desenca
rna-se do amor humano de Copérnico com uma tristeza que voga até outro mar
onde só também há tristeza; são factos concretos que são os olhos, o nariz de Hadewijch -
imagina um magma flutuando num país de sombra finamente triste.
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5 - (por que é que o amor se cala?) decide não falar de certas coisas, a não ser para
um poço que há-de encontrar numa coisa maior, ou na proximidade da boca; dirige-se a
uma gaveta que o atrai num móvel da sala de jantar, com alçado, e abre com dificuld
ade a janela de três portas que dá para a varanda coberta de flores; para dessensibi
lizar a voz, colhe folhas, e atapeta o fundo da gaveta, rindo da alegria que os
amantes vão encontrar; lança a linguagem dessensibilizada por entre as folhas, e rep
ara que elas ficam com a aparência de verdadeiras verdadeiras folhas do rosto de u
ma planta; o que há-de esconder para que o segredo dessa planta exista, e
os amantes possam vir procurá-lo mais tarde, à noite, quando a sala for um intervalo
e uma falta.
À noite, falta sempre um objecto Salomé, por exemplo, pequeno objecto
de mãos apoiadas num estrado de mármore, com um colar dourado atravessado na testa,
e cordões de várias voltas repousados na pele; e um outro ainda
um pequeno jarro de porcelana verde, que continha a
clorofila envenenada da planta; os amantes sobem a uma cadeira para alcançar um ob
jecto perdido ou espreitam, da porta, uma nova ideia; e, desde que anoiteça, andam
à procura de que utilidade podem ter esses
pequenos, ou grandes seres, que enchem o vazio da casa, ou lhe tiram a memória, o
u falam sem cessar, interminavelmente; «torrio-me uma luz sobre eles», pensa em silênc
io, e perguntam um ao outro se tudo o que tem corpo vai mudar de
novo.
6 - (por que pensas, Témia, nas entrelinhas?)
Por que me levantei de noite. Queria descobrir uma con-
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versa fora de mim mesma. Eu ouvia, no chão, textos teus que hesitavam em subir aos
joelhos de Ana. Então, uma pata negra de texto, que atravessara, soando, o oleado
do corredor, e
que coincidia com a frase «depois da queda da parte negativa do meu trabalho, cheg
ou a vez da parte positiva ... », ousou tocar-lhe o tornozelo, e sentiu-lhe a temp
eratura acolhedora do sangue. Mediu-lhe a distância até aos joelhos e, num rápido voo,
plantou a sua estrutura densa sobre a página «o
que eu escrevi foi arriscando o meu espírito».
«Agora ele apagou-se» disse a Ana. «Acende-lhe a vela da inteligência louca», respondeu-me
. Obedeci-lhe. E pus-me com a luz apagada a meio do texto que entrou na
claridade.
- «Quero lê-lo de fim para o princípio. Ajuda-me.» Sem nada ver, comecei a encontrar-me
comigo mesma, levada para os confins do quarto. Ana beijou-me a face, e convidou
-me a sorrir: «Senta-te ao Sol», e mandou-me adormecer.
7 - (por que é que somos tão parecidas?)
Sentamo-nos as duas ao sol entre as duas e três da tarde v
endo uma casa onde gostaríamos de ser
cunhadas, só para rir; «se eu estivesse deitada na cama do primeiro andar, segunda j
anela», diz Témia, «cinco metros de árvore teriam subido até mim, e depois, para além do reb
ordo do telhado caiado de branco, haveria muitos metros de troncos e ramos.»
Eu sei que o interior e o exterior da beleza das casas não é coincidente
e atribuo à beleza um grau elevado de pensamento.
Tem, pois, a fachada desta casa longitudinal, um elevado grau de pensamento que
imediatamente nos abre as suas portas e janelas.
Infausta veio até ao sul, e fala com um velho que estava no interior da casa, acen
dendo li-
vros e lâmpadas, e a lareira no sobrado da cozinha.
70
Vimos Infausta imóvel mas, de dentro da sua mão, sai um caldo de carne quente que fa
z beber ao velho; não há uma
única conversa entre eles, pois há palavras que nenhum pronuncia, em cada língua,
só o caldo que filtra o movimento dos lábios.
0 branco da cabeça do velho pousa na almofada que ela lhe estendeu, e o velho comp
reendeu que Infausta lhe queria dizer: «0 branco da tua cabeça é igual à cal destas pare
des».
Ao ouvir tal, no silêncio do interior do silêncio que lhe es-
conde o outro rosto, o velho ergue o busto para além do caldo, num sobressalto de
atenção. Pega na mão da mulher, e
abre com ela a portada que dá sobre a árvore. - A janela e a árvore - aponta subitamen
te enlevado no sol que nasce en-
tre eles. Sol do Sul, Infausta o trouxe na cabeça do velho -
Sol do Norte. Ela o levou quando acabámos de ter esta nítida visão.
Uma tal verdade cobre a madeira das saias de Ana e Myriam. É leitura para amanhã. «Da
estranheza de quem é amado, sem ser um amante distinto, a que se dispensa ternura
e cIaridade.>@ Se recorreres a uma letra chama-lhe 1 de imen-
so.
Infausta pede ao velho que lhe encontre uma nota de laranja escondida nesta sala
; o velho, que é Aossê,
se tivesse vivido até aos noventa anos, traz-lhe um gomo musical do seu texto - um
a faixa real de poesia.
Ela envolve nela a sua cintura e, pela noite cálida do Sul que os une, ouvimos a m
archa dos peregrinos à volta das paredes exteriores da casa.
8 - (por que é que o pensamento não conclui?)
Estava o pensamento diante da vela fazendo uma observação crítica da luz; certos texto
s, ainda os não concebeu, mas é como se já os tivesse imaginado; é a realização de mais um p
asso; um crepúsculo de paz - sua
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hora preferida - entra por todas as aberturas - da sala de estudo, da sala de ba
nho, da grande sala onde liguei os meus
móveis aos que recentemente herdei;
foi buscar a cadeira de repouso, e sentou-se em face do mais precioso Ana ensina
ndo a ler a Myriam, a imagem polícroma do século xvii que está protegida pela pomba; a
pomba, quem a protege?, murmura, e quem a mandou aqui?, interroga. Continuando
a fazer a observação crítica da luz depreende que quem é um pronome demasiado pesado e f
ixo para este segredo, mas não lhe sirvo outro. Que pronome, nem interrogativo, de
veria haver?
dizia eu que o pensamento foi buscar uma cadeira de repouso e se deitou nela, po
deria dizer, curvado sobre a luz; Témia dorme, os animais sossegam, Infausta e Aos
sê com quem temos agora conversas filosóficas estão próximos, na
sua casa, o lugar onde se sentou não ficou confrontado nem à sua presença, nem ao peso
da cadeira que lá pôs. Um e outro desaparecem na contemplação do que estão a fazer. Torna
m-se um ponto no espaço ensinando-se mutuamente a ler, cen-
trados num grande afecto tal como Ana e Myriam, sem o qual não poderiam sequer seg
urar o livro nos joelhos.
Atenta-se Ana que é grande, soberana, e tem um lenho na
garganta, e por aí conhece o mistério e ensina o mistério; os joelhos sobress
aem na estátua, sedes sapientiae; en-
quanto que Myriam, tão resistente e frágil que já teve o rosto
separado da cabeça, é um fio de voz, uma stelia matutina; «que a sua vida seja durável», d
eseja-lhe o pensamento para quem desejar é pensar e que leia como se fecha o livro
com a luz na mão,
e sem chegar ao fim».
Neste lugar magnífico se compraz, deitado de pé em frente do seu encontro
estátua de um lugar. @@Que lugar?», pergunta. 0 lugar do seu fio, do fio do pen-
72
samento, que se prende ao murmúrio de Myriam, que tem a boca fechada, e se encosta
a Ana para ler o calor do seu saber
na obra impressa de madeira lugar privilegiado da estátua que herdei. exclama «magni
ficat anima mea», por ausencia total de palavras, ou de linguagem transmissível.
0 lenço de Ana é da mesma matéria, e está lançado para trás, podendo admitir-se que, do lado
, ela recebe uma brisa; a
parte inferior do livro aberto é marcada por manchas negras de tinta; e eu creio q
ue o pensamento não tem redil exacto, e que foi lançado ali como uma ovelha que pass
a, para dali partir;
repete as palavras já usadas e feridas:
magnificat anima
mea, e intuo que devo dizer com ele, perante o mistério, o que não tem, na linguagem
, sentido:
mea anima magnificat. Força-se a interromper a sua relação amorosa com este lugar susp
enso no tempo, para ir conceber este texto depois de tanto o ter imaginado.
Depois pergunto-me, «a uma tão profunda contemplação, que melancolia da manhã poderá r
esistir?» «Que medo da manhã?@>. Assim, o
crepúsculo, para nós, tem uma verdadeira dimensão de amanhecer; e o amanhecer, uma ext
ensão súbita de tarde, na direcção de «já é tarde».
9 - (por que é que o pensamento exclamativo, liberta?)
levanta-se, convive um pouco com os animais que, neste dia de entardecer, emanam
uma certa luz;
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esteve para ir à Praia Grande, mas foi retida pelo sossego que começa a tornar-se im
ponderável anunciando a proximidade virtual da Nuvem Pairando, a que chama o Trimúrt
i; principia a chover, pois distingue um ruído maciço, de vibração de água e de vento.
No momento em que o pensamento estava diante da vela fazendo observações críticas da l
uz, ela olhava o pensamento, sem prestar atenção à chama, até que olhou a chama da vela,
e soube que ela é o falcoeiro,
e eu o seu falcão; mas não era a primeira vez. quando teve a primeira recordação de luz
como subsistência, e existência em si mesma? foi em criança, na casa quadrada de uma d
ivisão/quarto, e
uma cave onde se guardavam os produtos da terra; a banheira de zinco pousada na
pequena divisória, onde se lavava, não tinha forma precisa era uma conc
ha de água. A luz da vela estava pousada no chão - tal como ela observava o quarto c
ontíguo do seu quarto de cama. A cor distribuía-se em toalhas, desde a primeira cor
de base que era o azul - e eu sussurrei para tranquilizar-me: «Aqui, a
morte não pode vir».
Entrei no banho e, voando na água, tive o primeiro en-
contro com o meu falcoeiro que tentava ensinar-me a decisão
e o desejo.
Pois havia um pequeno pássaro (não adulto) que oscilava empoleirado na chama, sem se
queimar. Pousara no punho também nascente: «o punho do falcoeiro».
«No punho do falcoeiro - meu pensamento - começou a inquietar-se o meu desejo», disse
literariamente.
10 - (por que é que um dia se diz adeus?)
Voltou ao quarto, para se secar. Myriam e Ana não liam, balouçavam ao ritmo do pensa
mento lendo; pôde surpreender, no doce afago que ouvia, o
nó do seu afecto, dele podendo fazer parte, se lhe aprouvesse,
74
numa melodia de dimensões extremamente pequenas que, não expressa em sons - voava ce
rtamente pelo ar.
Depois, essa cena perdeu-se, a voz voltou a ser estátua, continuou a senti-Ia pair
ando, por detrás de certos indícios, no espaço volátil das palavras - porque cada palavr
a está dividida entre o seu território, e o silêncio. «Ana e Myriam, Myriam e Ana, não vos
desligueis agora. Qual de vós é a mais pequena? Qual de vós é a maior? Há uma chama que v
os corta em duas partes idênticas. Mas cada uma dessas partes são as partes principa
is; quando sobe a luz do dia, e o amor fica deserto, que dizer-vos do amor
a não ser adeus.
Vereis que, pouco a pouco, as letras vão rolar do próprio
nome:
amor sem m.
amor sem o.
amor sem r.
amor sem a.
fica o silêncio em que vos dareis uma à outra, ponto final na chama.
- (por que é que retorna o eco desse adeus?) Témia começa por ouvir o som de uma tromp
a de caça: trompa que chama a paisagem, os cachorros da serra da Estrela presos no
refúgio, o edifício rectangular iluminado por uma pintura. É o relâmpago que passa. Reg
ressa depois cautelosamente sobre um caminho, aproximando-se da hora da lição que te
rá lugar no ângulo da casa
que coincide com a enorme Capela hexagonal e circular, ao longe. Poderia estar c
om os rapazes, no sonho da aula, na cova do
75
povoado. Mas terá, sozinha, um confronto com a leitura; a
casa que havia na cidade soltou-a, nessa noite, no campo
puro de toda a densidade que não seja o tempo. É sobre o tempo, hoje, que vai ler. «0
percurso, até chegar à lição de leitura, é meu.» Partes do livro terão um corpo que, ao fim d
hora concluída de leitura, lhe será entregue. Ao fim do sussurro de ler, operou-se
a metamorfose de Myriam em Témia muito mais tarde, quando for lido, e
o dia estiver eventualmente iluminado por uma vela.
Um sorriso será mais aconselhável. - É a repetição constante da palavra leitura - murmura
Ana, numa inflexão interrogativa que introduz a conclusão e
a espera.
- É - responde Témia - sem encontrar, por hoje, a linha do brinquedo filosófico
«e, amanhã, ouvirei de novo o eco, que é um sinal de espaço». Lê alto: «hoje há sobre a areia
pedaço de rocha erosiva, com dedadas vermelhas, que lembra um pão amarelo e crestad
o levemente. E se eu também trouxesse uma ilusão comigo? Ter visto um pão num seixo ab
ala a grande certeza que está próximo de mim. Será que eu me engano, de dia,
e
sou lúcida à noite? Mais perturbada mas, finalmente, ainda? Contudo, era mesmo um pão,
ou um estranho objecto de pedra?
Várias imagens se lhe apresentam, e ela afasta-as todas, uma a uma, até ao momento e
m que vê o seu sonho dessa noite: encontra-se num quarto hexagonal com seis janela
s, a en-
cher de pontapés um jovem animal que dá estalos facilmente
com a cauda, e lhe abocanha os calcanhares. - «É música de ouvido» - diz Infausta. «Como p
osso encher de pontapés um animal que me abocanha os calcanhares?», interroga-se Témia
.
Executam com precisão a divisão imposta pela luta, e
76
saem os dois para a rua. 0 jovem animal perdeu no combate uma pupila ocular, mas
reencontra-a porque Témia lhe ofere-
ceoe.
«e
sou lúcida à noite?»
12 - (por que é que o pensamento é tão parecido connosco?)
Então Infausta voltou à Praça do quarto onde estava a es-
tátua, e deu de face com a saída luminosa obstruída por uma
janela de palha. «Uma saída viva deve flutuar dentro da estátua», pensou. Curvou-se para
reunir os textos que voavam em todas as direcções, e formar um livro, ou destino. A
janela de palha abria-se para a grande sombra do campo, e o seu
crescimento passou a cabeça para alimentar-se, e atravessar as
paisagens que havia no interior da casa. Nessas transparências de sombra, dormindo
ou sonhando com animais, assim, finalmente, a criei.
«Não há nenhuma substância que permaneça a mesma, qualitativamente, ou no espaço», brinquei,
nquanto cres-
cia. «Ninguém pode ter conhecimento directo das percepções mutáveis do Universo.»
0 mundo, que era então a própria estrutura da casa, dividia-se então em dormitório, rua
e paisagem, e desaparecia.
0 que Témia fazia durante o dia, era passar por momentos que podiam ser invertidos
: a hora de leitura, nas grades da janela e abraçada à cabeça da sua própria maturação, prep
arando o acto de amar que era o acto de escrever, tanto podia ser à hora da Escola
como à hora em que a Maria Adélia trazia as luzes e as palavras para falar-lhe de m
eu pai, homem. Até compreender que as ideias, os olhos nocturnos da estátua, e a sua
presença, ou odores de madeira eram essências imateriais.
77
13 - (e tudo é furor?)
- é o cheiro do mar que me conduz ao mar. Fazia frio em casa; o meu espírito pegou e
m Témia e saímos os três para a luz que envolvia toda a orla marítima numa dupla ex-
tensão de mar aéreo; ouço o bramir das ondas nas faixas dessa luz, e compreendo perfei
tamente que a história dos homens acabou aqui. Incluindo todas as pequenas histórias
que eu estava
ainda a contar.
Dei comigo a murmurar para Témia: «Não queiras um pai melhor do que o meu; certos peca
dos são um privilégio sobre
esta terra».
78
As Cópias da Noite
CAPíTULO Vi
Prólogo
o homem só vulto esteve aqui hoje, com sua imagem infeliz. Com Témia pela mão, passeia
incansavelmente nestes pinhais e, à noite, pára onde uma vela brilha. Pára raramente,
pois o seu vulto fatiga-se quando espera, e as portas são pedras opacas que defen
dem as casas disseminadas por en-
tre as árvores e os jardins.
Quando o olho, no íntimo de mim mesma, e no seu lugar objectivo, não tenho pensament
o. Ele traz às costas um saco onde vai deitando todos os restos de misericórdia que
há por aqui, incluindo a misericórdia por nós que brota de uma fonte algures, ignore o
nde.
Refiro-me a ele, refiro-me à sombra, refiro-me à precisão geométrica de um vulto. A este
dia de sol sobrepôs-se um dia de paz e nevoeiro por onde ele caminha sem o poderm
os chamar de nenhum sítio. Com precisão, não sei onde ele está, quem é, e o que está para se
r. Mas sei que ele é alguém destituído do peso da sua forma, uma espécie de Coração do Urso
já humano. - Témia, vem cá - grita. E Témia volta à claridade solar do meu gabinete de tra
balho. Continuo a vê-lo, homogéneo no seu movimento cinzento delimitado; de mim para
ele estabelece-se uma ponta de nostalgia através da qual lhe entrego a parte maio
r da minha tristeza; vei.o-o parar com nitidez, abrir as costas e o saco, e apro
fundar o meu peso em si. já leva outros pesos que ele trata como pesos ligeiros, o
u
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pequenas medidas estuantes de vida. É, entre outras coisas, o passageiro de miseri
córdia do pinhal, figura que me é querida e que nunca deixa de invadir-me.
Há-de voltar esta noite, enquanto eu dormir, para entrar no meu sonho. Transporta
também o que for intimamente nosso, e que lhe tivermos entregue, por bem.
Quando falo, sei que o atraio, e ele vem. Principiei a falar-lhe hoje, muito ant
es de ele poder ouvir-me, e dizia-lhe: «alguns objectos que vendi, e outros que de
i, da Domingos Sequeira, mergulham numa certa água e surgem, de novo, à superfície do
sonho diurno; tornam-se visíveis e desaparecem; * partir do instante em que me sep
arei deles para sempre são * outro, independente e inacessível; antes de os vender m
al reparava na sua silhueta sobre os móveis, ou suspensas das paredes; mas, quando
sei que não voltarão à minha posse, fixam-se em aparições fosfóricas, visões que reúnem imag
, nas suas partes mais ténues e libertas. São sempre barcos que se desviam à deriva, p
eixes por morrer
que se afundam, quer seja o quadro da carruagem parada a
uma porta de cidade numa noite escura; as duas altas jarras de cristal da Boémia q
ue partilhavam a mesa; ou o relógio de an-
timonite revestido de ouro.
No dia da venda, ainda não sinto nenhuma nostalgia; mas, dois, três dias depois, num
silêncio inesperado, irrompem sob um ângulo intenso de claridade trémula que faz o se
u
percurso de um mínimo a um máximo de dor. Enfrento a beleza paradoxal da partida».
Sofrerão eles, esses adornos? Mas só os verdadeiramente belos (aqueles em que descub
ro uma beleza post-mortem, fora da minha posse) duram nessas vagas em que a nost
algia se desfaz, e me desfaz a mim.
Esses objectos, transpostos agora para o nada desconhecido, eram som, eram obediên
cia, eram certamente potencialidade de texto vivo, ultrapassada a língua morta em
que sonhavam.
De facto, só os vejo sobre móveis da minha residência ac-
80
tual, em Colares, quando já partiram. Digo então a mim mesma: «Ficavam bem ali, ficava
m bem aqui, seriam alguém nes-
te ambiente, contribuiriam para a minha felicidade».
Mas eles jazem, vendidos ou dados, no campo das sobras eternas. Vão numa oscilação bre
ve, sem vontade, dirigidos pelo dinheiro e pelo desejo. Atravessam então o meu espír
ito, em circunstâncias fulgurantes, e o espaço que deixam mergulha depois em lugares
vazios - pregas que fecharam a água.
As altas jarras da mesa dos sonhos, em cristal, onde se re-
cortavam folhas douradas, são símbolos. 0 antiquário deu-lhes uma pancada seca com o d
edo, e verificou que eram de cristal. 0 som cria o ouvido, o
ouvido faz o cérebro, o cérebro concebe a existência do homem só vulto que passou por aq
ui hoje. E levou Témia, dizendo-me: «téme-a».
Vão partir para outro lugar do meu entresser. Dei-lhes em troca os gomos da verdad
e e, agora, as imagens do seu suco vesperal: uma verdade móvel. Se vier mais tarde
visitar-me, terá de ser outra, porque os objectos que conheceu, eu os despi das s
uas artes de assédio fixo».
1 - Chega aqui. Lembras-te da sala onde era a sala de receber ninguém?, e onde hav
ia um conjunto grenat romântico?; está vazia, apenas com o negro armário Boule ao cant
o, móvel que sem-
pre detestei, mesmo quando continha peças musicais recrea-
tivas que Filipe tocava ao piano. Guardei agora nele, fechados à chave, que pus de
baixo do relógio da rapariga preta, que batia as pálpebras com os segundos, os últimos
objectos valiosos, tais como as pequenas travessas de Cantão, o Gungunhana, uma p
orcelana Mandarim, o carneiro inglês, na posição de deitado, e de focinho agudo. Amanhã,
às três da tarde,
81
vou vender o armário Boule, e o Gungunhana que, para mim, ao olhá-lo, é uma figura de
barro dolorosa. Não achas?, curva-
do, preso, espelhando os brancos que devem estar a apupá-lo, não posso crer que este
sofrimento enfeitou, de facto, as nossas
salas. Dizes que nunca reparaste. Acredita, enfeitou, de facto, que vá para longe
o seu barro verde vidrado, que me desfaço dele com alívio como ornamento de cruel me
ditação. Mas preferia quebrá-lo, evitar que o olhassem noutra sala e, provavelmente, já
não numa prateleira, mas numa vitrina. Gostaria que, ao mesmo tempo, o atirássemos j
untas ao chão. Não é necessário que a sua curvatura vencida permaneça, e nos lembre até que
ponto de humilhação se constrói um império. Mas, sem sonho, vou transmitir este pesadelo
pela quantia de vinte mil escudos.
Dar-te-ei metade.
2 - Lá, onde estás, não ouves.
Lá, onde estás, só podes ler sinais nos meus lábios. Presta atenção. Mesmo os mortos, contin
uam a viver. Nestes textos que te estou a ler, soletrando, deixo cair imagens. S
im, sim, podem ler-se. Não te vou dizer quais, ou talvez, lá longe, acabe por _
Eu também pensava vender a poderosa figura masculina (quadro) que estava sobre a e
státua de Ana e Myriam, no ora-
tório do quarto da avó. Mas elas recusaram que essa ovelha deixasse o nosso rebanho
e quiseram-na na parede, próximo de nós. Reparaste que tem sete anjos, todos empunha
ndo um objecto, e que representa o tempo e o espaço sobre as doze tribos de Israel
?
- Não o vendas - disse-me Ana. - Não te desfaças dele. É a estátua do mundo.
82
3 - os meus objectos estão agora entre as folhas, gozam plenamente o Sol; saíram do
seu túmulo, e ficam face à montanha recortada sabendo que, dentro de mais alguns ins
tantes de verde, vão receber um nome humano, ou de animal, além de um olhar idêntico,
ou fiel, ao Sol que recebem.
A confusão das árvores atrai, sobretudo, uma gazela em
porcelana que deseja correr pelos nossos montes. Principia a desejar, ou a ver s
ubir pelas patas frias, o milionésimo sentido veloz do universo que, nas manchas d
o seu pelo, estava irisado. Ao levantar, pela primeira vez, as patas, roçou a erva
. 0 Universo estava disperso, e as folhas serviam para comer depois de terem der
ramado um estranho sabor na língua, e de estimulá-la para o movimento.
Palonsa Gazela, Consolação, lembro-me. Ela era, finalmente, o corredor que, no meu q
uarto quieto, desorientava,
nas suas voltas, o meu coração e o meu texto. Fizera conhecer, na sombra afirmativa
dos objectos que já se erguem, Salomé, a
rapariga que temia a impostura da língua e que corria, no meio de outros animais q
ue andavam com rapidez, à frente da linguagem.
4 - Olha a pequena estátua de leitura. É à tarde; do fundo das águas do meu trabalho, eu
olho-a também, e penso nela, liberto-a inteiramente na minha contemplação.
soletro: onde a letra tornou inteiro o nome, o nome ficou salvo; silêncio é nada esc
rever quando há ainda texto; vim glorificar o laço que une Ana e Myriam na
sua estátua; a música que ouço, e que provoca tempestade ao
nível do texto, torna o silêncio incompleto; palavra puxa palavra e, dentro em breve
, brilhará uma multidão de raios;
83
e eu - nesta hora única - quero estar a sós contigo, e com o silêncio; sem texto; tiro
o lápis da mão para não escrever - apenas contemplar; o pensamento caminha para dentr
o de si, e es-
conde-se no ponto mais obscuro da palavra; não queres ser a voz que há-de existir en
tre um e
outro amante?
5 - 0 ruído que, ao deitarmo-nos, se ouvia no quarto, provinha da padaria próxima; a
companhava a longa noite que é, muitas vezes e sem que ninguém o saiba, o pensamento
de uma criança.
até que, de madrugada, o nosso eu angustiado se extinguisse no papel opaco que cob
ria a janela do saguão, as horas eram longas, e cresciam, como um fermento, no son
ho.
era o teu quarto, e o das criadas; à noite, seria o único quarto livre da casa. Perg
untas à Maria Adélia se a chama vacilante da lamparina não vai apagar-se, deixar-te se
m uma
única referência visual, nem um único fragmento dos móveis, ou objecto. ela nunca quer q
ue entres no calor da sua cama de ferro, ao
lado da minha; conta que uma lamparina de azeite nunca se apaga. É uma luz que rea
liza sempre a função da luz - extrair objectos iluminados dos objectos apagados. Faço,
com as duas mãos, o gesto de partir a luz aos bocados, e ela ri-se de tudo o que
eu digo, ou faço. Sem a luz, não se distingue o que se vê,
nem o biombo, nem o cesto da roupa suja, nem a mala, nem a cómoda, nem o copo da l
amparina. Por vezes, ela profere uma
frase obscura, que tememos não compreender.
0 lugar que ocupamos, a seu lado, é uma substituição, como sabes, mas não deves dizê-lo.
a família estava fechada, e funcionava como uma casa, pousada à beira de uma rua que
tinha o nome de um pintor que foi discípulo de Antonio Ca-
84
valucci e Domenico Corvi; não esqueças. as suas vielas interiorizadas - caminhos imp
erceptíveis entre
salas e quartos eram geralmente iluminadas, de dia, por quadros que penetravam a
s paredes de cor
e, à noite, pela visão crescente sobre a casa de uma criança que ali vivia (quem seria
?), umas vezes, à força, outras vezes, no uso da sua inteira liberdade despíamo-nos co
m atenção, nossa criada e eu, porque fazia noite; nossa criada também era a amante
pelo me-
lhor de si mesma que nos dedicava, alguém lhe roubara o íntimo.
íamos então fazer cópias da noite, abrindo a porta da sala de jantar onde se encontrav
am os quadros; enquanto ela contava, eu levantava os olhos para as telas que faz
iam descer uma
noite passiva das paredes; primeiramente não víamos nada, só véus de branco; depois, o q
ue ela dizia ia seguindo o percurso de uma imagem e, elevando-se da voz, ficava
representado em
espaços limitados da parede.
Tínhamos as nossas cópias pessoais que, a certa altura da noite, eram os quartos ond
e dormíamos e habitávamos. Dormi muitas vezes num quadro que era constituído por uma j
ovem evanescente de rosa, e vestindo o seu jardim. Jardim de lírios, com rosas bra
ncas no regaço neste contexto de afecto suave e transparente, tiveste algumas veze
s, e sem pensamento, o meu espasmo sexual.
0 prazer sexual era uma das cópias da noite, e tomava fácil o meu passeio nocturno q
ue era também o prazer estético dos quadros. Cada uma das partes laterais da minha c
ara, re-
flectia fábulas. Feitos heróicos e acções visuais.
Ana veio dizer-me que deixava a sua estátua. E eu perguntei-lhe:
- E Myriam? Os quadros representavam no escuro, tendo feito um palco da mesa da
sala de jantar. Tu rias com eles, em pé sobre a série de luzes à frente do armário, entr
e o pano de boca e a orquestra.
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o pior era a manhã da melancolia dos desaparecidos; penso na relação entre a Maria Adéli
a e o meu pai; um ramo forte, en-
trelaçado que, da parte dela, nunca abrandou a fidelidade ao abraço. Foram eles, e a
situação que criaram à sua sombra, que originaram, nestas manhãs, a minha tristeza. Força
da minha tristeza? Analfabeta, Maria Adélia era uma mulher de cabeça e educou-me, c
reio eu, por ter cabeça e ser analfabeta. Deu-
-nos a força, e a melancolia que vem sempre dela.
6 - até que, um dia, comecei a reflectir sobre Bela Face, e
como ela se assemelhava às tardes da minha vida;
era um dia verde, em que o tempo meteorológico e
as árvores, pinheiros, oliveiras, não querem senão um destino comum; mas o resto parec
ia invertido - era-o realmente -
e eu estava
a delinear com a ponta do lápis a nossa própria mãe (mais tua), ou criação, pois ouvira o
desígnio: «concebe um mundo humano que aqui viva - nestas paragens onde não há raí-
zes».
A estátua de Ana ensinando a ter a Myriam estava no seu
lugar, sobre a mesa, mas tomara-se um espelho visionário re-
flectido no espelho do guarda-fato. 0 livro, amplificado entre
ambas, atraiu Filipe e a Maria Adélia, por razões diferentes, para cada lado do que
estava inerte como texto; o homem pousou a cabeça entre as mãos, e viu oscilar diant
e de seus
olhos verdes, linhas sem sentido que o desesperavam, pois sa-
bia ler e não sabia ler aquele caminho; a amante fiel, analfabeta, tocou c
om a ponta de um pano a fonte que estava próxima, e inclinou-se para limpar, até rel
uzirem, as letras do título de ouro que ocultava o caminho. Eu senti uma dor aguda
, e todos fomos separados, incluindo Bela Face, ainda por criar. «0 vislumbre dos
corpos», leu Myriam, @4oi interceptado por múltiplas poeiras que mantêm, na aparência de
construída, a casa desfeita.»
Vendo que aquela jovem, de dezasseis anos, nunca seria a
86
minha mãe real, mas a forma definitiva e fulgurante do meu
pensamento, achei digno de nós três - ali conscientes -, criar minha mãe de sangue e c
hamar-lhe, pela beleza refrescante de toda a sua pele e rosto, Bela Face. «Ao sabo
r do ven-
to, e não do sangue», desejámos, quando a nossa união ficou presente.
Foi com essa frescura que revesti as letras de ouro do rosto do livro, assente a
berto no colo de Ana.
Pensei, mais tarde, que era facto verdadeiro, e não sonho de mulher adulta dividid
a por duas mães.
Um homem é, para mim, motivo de segurança e de in, quietação. Sempre identifiq@ei o das
duas casas com o pão, o
medo e o livro, além do verde, minha parte erótica da natureza. Sob o olhar masculin
o, girava uma casa dentro de outra um princípio de Universo onde estava em vias de
expandir-se o verde inicial. Ele só podia ser teu companheiro filosófico e
meu amante.
Nesta atmosfera verde, de possibilidades de outras cores infinitas, descubro o a
fecto do negro.
Portadas fechadas. Tenho na mão o coração assustado de Myriam que me diz: «flutuo no neg
ro, e nas precárias faixas de luz - mais negras do que o negro; acordo sempre assi
m, num total desacordo com o meio ambiente, que se assemelha a um rasto de luz s
em sangue». Ana envolve esse coração, e segreda-lhe: «Hoje querias situar-te num nome am
ado, acor-
dar através dele». Escreve na folha do livro «mone», engana-se, levanta-se da estátua na t
emperatura obscura do quarto que se estende pelo deserto.
«Como aquecer a sua desorientação com o meu coração», pergunta Myriam. «Dou-lhe a beber estas
imagens - mesmo negras - que são o primeiro indício da vida do dia. E, de dentro par
a fora, circula o traço que hei-de receber, tardiamente, de todas as nossas dores
principais.»
A estátua está vazia: cada uma das duas foi para seu lado
87
durante um único instante do meu caminho. Deito-me na cama, com os olhos fechados
sobre a imagem da ausência de- las, que pousa na cómoda. Ausência real. Vejo as suas não
-
-mãos agitarem-se em memória de um gesto de adeus. É um
pesadelo separar-me delas (de elas), de uma, ou de outra, é sempre a sua cena fulg
or total que me faz falta.
0 mau sonho escurece ainda mais no seu volume de cela,
e
sobre a profundidade de estrela da minha voz, vejo o rosto da primeira que se de
bruça, ou da última que se parte em dois dias.
Angústia sobre angústia, agarro-me a um ramo reflectido no vapor de água da estrela hi
potética, depois, à claridade imparcial dos seus olhos. 0 indizível é feito de mim mesma
agarrada ao silêncio que elas representam. Ouço passos, e Myriam escorrega para o e
spaço da mesa, desenrolada da palavra débil, «que é o contraponto do indizível», ouço também
surrar no quarto.
- Débil é o que tu és - diz Ana para Myriam, arregaçando a manga do vestido e mostrando,
a sorrir, a forte musculatura do braço. Convida-me a compor, com ela, o elemento
da estátua que falta, e que é Myriam quase ausente, 1 .ndizível.
- Nobre madeira, e sua cor - diz ela - recebe e, através dela, ensina-a a ler mais
alto.
- Sim; sou débil - murmura Myriam, e principia a dormir sobre a força que lhe resta
para acordar jovem amanhã.
7 - qualquer dia do mês de Abril Fico lá dentro, sozínha, e ouço uma voz qu
e cola a boca de encontro à porta:
«lembro-me do primeiro encontro que tivemos, quando Assafora morreu, e me pediste
que me ocupasse de ti, há cinquenta anos criança. Perguntaste-me, nessa altura, como
poderias pagar-me 'as lições', e respondi-te: 'a única coisa que desejo é a arnizade'.
Estava, nesse momento, muito sozinha e,
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creio, sem coragem. Tive, então, medo, Não sabia de que modo atingir-te: eras para m
im um ser muito secreto, muito fechado, cheio de regras para proteger o seu isol
amento, e eu
não sabia por que caminho ir buscar-te. E, nessas circunstâncias da tua noite, não te
dei nada».
E, no entanto, essa voz, como outras vozes, nada pode; tu
tinhas pedido, aos que te rodeiam, que te trouxessem um indício, ou um sinal, de q
ue haviam desejado, pelo menos, tirar um dos objectos das suas grades; mas eu en
ganara-me em dois pontos:
«ninguém nos rodeava»; «ninguém distinguia grades, ou traços grandes de ferro, aprisionando
os objectos»;
«ninguém me rodeava» também era a afirmação de um quadro a óleo com lírios azuis, feita atrav
sua pintura;
era uma figura alta, de objecto humano só, com
cada uma das duas partes do cabelo sobre a testa; o seu rosto entreabria o silênci
o, e voltava-se para uma claridade que distinguia entre duas folhas; para além das
duas folhas tive a cer-
teza íntima que a minha relação à cor ia cessar, e de que ninguém me rodeava. e que não havi
a língua, nem impostura, nem temor, nem pequenos objectos de ouro, também palavras q
ue articulassem essas palavras; cheira, na sala de jantar, a rosa ininterruptame
nte; eu procuro pequenas pedras por entre os tapetes e as almofadas da sala. Perío
dos de tempo fragmentado correspondem a épocas da minha vida, aniversários. Vou atirá-
las à tela do quadro que data de 1902, e que afirma peremptoriamente «também a mim nin
guém me rodeia».
Uma multidão de figurinhas, de alturas várias, prefigurando aniversários, tomaram, de
assalto, o que resta do tampo livre de um móvel. Pego num desses fragmentos, e dig
o, com uma depressão profunda:
Sou eu, neste momento. Soueu.
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Desliguei-me, por completo, da voz que vinha socorrer-me
e que ouvi do outro lado da parede. Soueu é o único apelo que existe no contexto da
sala e do quarto.
Estou a afogar-me em qualquer parte da sala de jantar soerguendo na mão um objecto
de cinza - um cigarro; decomponho-me, então, para renascer, perguntando à Maria Adéli
a se está a sentir a alegria que eu perco. Ela responde-me: - Tenha paciência, erga
nas trevas esta espécie de noite, e nomeie a rapariga inteligente de rosa no quadr
o
nossa padroeira.
8 - - uma criança feminina, de olhos verdes, anda no corredor. É a rua principal da
casa sob os quadros que eu olho, e me iluminam. Vê que eu me ba
ixei para apanhar um lenço próximo de um dos pés da mesa do telefone, e diz-me: «dá-me uma
esmola». Eu não levanto sequer a cabeça, à procura do que irradia o objecto de tecido p
erdido. Ela passa. E cruza-me, então, uma mulher que me surpreende:
«0 pelargónio da varanda do escritório deu por flor um lenço».
Ao fundo, atravesso o escritório, que é uma Praça pelicular deserta com dois quartos e
m que os rostos servem de luz. Abro a janela que dá para o interior da casa, e vej
o que uma
fonte de verde bordado corre do ramo mais alto do pelargónio, ligeiramente reflect
ido no espaço circundante dos meus olhos.
Apanho o lenço contemplando o sangue e as lágrimas que se esboçam nas dobras e secam s
ob o calor que a noite, que a noite exala. Sob o lenço da noite, sei que me orient
o para o círculo do beijo que a jovem deposita na testa de meu pai
um Rei qualquer de papel. e sofro, com receio de que o vento sopre, e leve o
lenço onde eu me destino a ser semente de um outro Eu que ninguém delimita ou guarda
.
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Sempre tive a inclinação de comprar flores, animais de faiança, e outros objectos que
reflectissem a sua vontade nascente. «Sempre teve o vício de possuir flores», diz-lhe
a jovem na luz insubstituível onde o narrador acabou por se conceber.
9 - Foi então que a árvore, partindo do arvoredo, veio à minha casa falar comigo, ou s
eja, pediu-me que eu a acolhesse ininterruptamente para aprender a ler; não lhe di
sse que era impossível estabelecer uma relação entre nós duas porque eu não sou árvore.
Ela diz que nos tem confundido com o arvoredo, a mim e às sombras ligeiras que eu
emito. Ela viu, no pinhal, uma dessas sombras a soprar vida sobre um animal des
ta casa que está doente. Ela afirma que um sopro de vida é leitura.
Eu sei que, pouco a pouco, passaremos a viver noutro fundo de livro e de linguag
em e teremos, então, uma inquietação mais simples.
A árvore sabe que eu não falo, com estes termos, nem do abandono da vida, nem do aba
ndono da razão. Falo de vir a parecer-me com outro, semelhante a mim. A árvore tem o
mesmo desejo nostálgico, e é essa mudança, que há-de fazer-se pela sensibilidade, a que
se chama leitura.
Não sabia que soletrar se podia também dizer «sombras ligeiras». 0 tempo passa; trata-se
de mim e do tempo, e da minha opção de vida que me obriga a medir-me inexoravelment
e com ele.
Trouxe «A Viagem Maravilhosa de Nfis Holgersori», que tu nunca leste, porque está em c
ima da mesa do café. Cada vez está mais vento, com mutações de Sol excessivas para os me
us olhos que agora, com o ar, o sol e a cor, se fatigam. Eu explico. Trabalho mu
ito com eles, fixando intensamente um ponto-paisagem antes de começar a escrever;
depois, o decurso do texto depende do que essa concentração, num lugar vazio, permit
e. 0 olhar atento vai voltando a si
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mesmo e, então, o que eu consigo ouvir são as ondulações vibratórias entre esses dois pont
os. Os meus olhos recebem, num ponto-voraz, as linhas que sustentam o espaço, feix
es incidentes paralelos, raios que se afastam progressivamente, termos geométricos
.
Lá onde estás, deve ser assim. Nunca olhes os bordos de um texto. Tens que começar num
a palavra. Numa palavra qualquer se conta. Mas, no ponto-voraz, surgem fugazes a
s imagens. Também lhes chamo figuras. Não ligues excessivamente ao sentido. A maior
parte das vezes, é impostura da língua. Vou, finalmente, soletrar-te as imagens dest
e texto, antes que meus olhos se fatiguem. 0 milionésimo sentido da voz, «tiro o lápis
da mão», o gesto de partir a luz, o pensamento de uma criança, cópias da noite, passeio
nocturno, «era um dia verde», o afecto do negro, sob o lenço da noite. 0 indizível é feit
o de mim mesma, Gabi, agarrada ao silêncio que elas representam.
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Epilogo
acabo de descobrir, à frente do banco do piano, um
tapete para um único pé; deve estar aqui porque alguém, de um único pé, se sentou ao piano
para tocar e, depois, com a
música no ouvido, adormeceu nas profundidades da casa; mas, atingindo o fim da cas
a, o que é mais profundo do que o
mais profundo?
- É um quarto do silêncio que ouvimos aqui - respondeu-me, sob a forma de enigma, qu
em tocava, e que estava a dormir, embora partilhando o seu sonho comigo.
- 0 único pé será uma única voz? Mas, se fosse uma única voz, para que precisaria de um ta
pete? Para proteger da poeira um objecto? Por exemplo, o cão ou o carneiro deitado
s?
Ele elucidou-me: - 0 tapete encarnado é para o lápis, o
pé do lápis. 0 pé do lápis não é, no entanto, quem eu sou, nem o que se diz, pronunciando-o.
É um animal, sem aviário, nem jaula, nem redil. Todas as noites, quando espera pela
erva - sua aurora -, se deita no pequeno tapete, e sonha contigo.
Ele faz, na porta do quarto em que nasceste, um traço, um desenho que envolve um l
ivro e, fora dele, a sua leitura; e, quando a atmosfera de extermínio, tão própria a e
sta casa, passa, dissolve-a em fitas de todas as cores, apagando, com a
última cor - a cor negra. 0 quarto ameaçado toma-se a ou-
vir, e eu vejo que o relâmpago de «escrevo, mas não sou escravo», se dirige, sozinho, pa
ra a secretária do escritório, e
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derruba todos os inúteis auxiliares da escrita - mata-borrão, tinteiro, bloco, jarra
convencional, borracha de tinta. 0 próprio escritório perde um móvel no instante - o
piano vendido desaparece, e as duas portas de vidro que se fecham sobre a sala a
brem-se para dar passagem à Maria Adélia jovem, e es-
crita pelo relâmpago que sempre acompanhou a noite aqui. Quem está à secretária pergunta
-lhe: - Onde ficou o que eu dei?
em que almofada, ou objecto da sala? E ela responde-lhe; com um novo sorriso, ou
esgar de choro: - Onde está, partido, o que recebi?
Eu vi, veloz, que alguém, ou alguma coisa, ou alguma hesitação sobre o absoluto, preci
sava de nascer - de nascer deles. Voltei para trás, à fonte de silêncio e
senti que ia ser profundamente amada, e mal.
Ele interrogou - Queres ser superficialmente bem amada ou
mal amada, mas profundamente? <@Amada profundamente mal, amada profundamente, e
sem saber», traçou o pé do lápis na ombreira da porta.
É dessa profundidade que Témia sofreu, e morre. Profundidade que era pão, sopa com pão e
palavras, e uma colher de azeite virgem onde brilhava já, mas por levar até ao fim,
a re-
denção penetrante da Casa.
«Ana ensinando a ler a Myriam, disse eu, acabará por encontrar o último fra
gmento do objectivo que nos falta.»
Ana ensinando a ler a Myriarn é uma ideia. A bela ideia de uma imagem perene. A te
soura no cesto da costura, dese, nhada no canto inferior esquerdo, opondo,se à pon
ta de tecido, aceitando, sem ver, a bela cor azul. Que força que emana
desse quadro, da pomba de cabeça inclinada, do dedo sobre o
meio do livro, da criança de pé, vestida de branco, três vezes
mais pequena do que a altura de Ana.
Que magnífico sentimento de cabeça envolta num véu, e murmurando «que exista em abundância».
Uma mão pousa-
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da, uma mão erguida deixando ver a palma, uma mão parada sobre o coração, outra mão fazend
o de estante.
Um decote de vestido, três pregas de saia, uma nuvem que protege, e o esforço ininte
rrupto de ler. Ler, lendo, antes de ler, a ler, depois de ler, lembrando que est
ava a ler, lembrando a leitura, lembrando o pequeno tapete, ou quadro, em que po
usamos os pés.
Leio, ela lê: «quando a tarde cai, reacendo as luzes que ficaram quase acesas da out
ra noíte».
Colares, Novembro de 1988
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