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a na
Sem

«Não sou digno de Lhe


desatar as correias das
sandálias.»
Advento 2020 – Retiro online com «a Bela Acarie» (1566-1618)

1. Ação e contemplação cem uma espécie de teocracia; organizam-se


procissões num clima de exaltação que sustenta
a) Dom de si a moral dos parisienses. Surpreendido por esta
resistência tenaz, Henrique IV levanta o cerco
Em 1589, Henrique III reconhece
em meados no mês de agosto. A Senhora Acarie
Henrique de Navarra como seu
continua então a preocupar-se com os pobres e
sucessor mas a opinião pública, maioritariamente
os doentes; abre uma casa para permitir que al-
católica, recusa-se a ter um soberano protestante.
gumas mulheres saiam da prostituição; adota os
Este tem, pois, de se impor pelas armas. Bárbara
seis filhos que uma mãe abandona em sua casa
dirige-se todos os dias ao hospital Saint-Gervais
e cuida da sua educação até que eles tenham
para cuidar dos feridos que afluem a Paris: «Por
um ofício. Preocupa-se que haja justiça social
extrema que fosse a infeção das suas chagas
na conduta do seu pessoal e na dos operários.
era para ela um prazer limpá-las e confortá-los.»
Àqueles que se admiram por ela conseguir tra-
Prepara em sua casa caldos que lhes dá pessoal-
tar tão bem da casa e ter ao mesmo tempo tan-
mente. Permanece junto dos moribundos, mos-
tos compromissos externos, responde: «Quando
trando-lhes a Cruz e dizendo-lhes palavras tão
damos o nosso tempo a Deus, encontramo-lo
reconfortantes que os soldados reclamam a sua
para tudo o resto. O Espírito de Deus não é de
presença. Prepara-os para fazerem uma confissão
maneira nenhuma ocioso!»
geral, a fim de que morram em paz ou para que
desejem emendar as suas vidas. Guardou da sua
difícil infância uma grande sensibilidade ao sofri-
mento do outro. b) Vida mística
Henrique IV põe cerco a Paris no mês de maio
de 1590. A população é então submetida a uma Em 1590, no decorrer de uma Missa matinal na
terrível fome. A Senhora Acarie serve-se gene- igreja de Saint-Gervais, cai em êxtase durante
rosamente das reservas familiares para distribuir várias horas. O fenómeno começa a repetir-se
pelos famintos, a despeito dos protestos da sua frequentemente e ela teme que seja coisa do
sogra. Ao mesmo tempo que o povo chega en- demónio. Os médicos prescrevem-lhe sangrias
tão aos piores extremos para se alimentar, pro- que a deixam esgotada. No verão de 1592 en-
duz-se um fenómeno de efervescência religiosa: contra-se com Benoît de Canfeld. Este inglês
os partidários fanáticos da Liga, tal como o abade convertido ao catolicismo e que se tornou Ca-
Guincestre, pároco de Saint-Gervais, estabele- puchinho é um eminente conhecedor da mís-

1 Retiro Advento 2020 com a Bem-aventurada Maria da Encarnação (1566-1618)


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tica renana: «Tirou-lhe todas as suas dúvidas miséria extrema. Irrompendo em sua casa, os
e fê-la ver que tudo o que se passava com ela oficiais de justiça tiram-lhe até a louça em que
era obra de Deus e eram efeitos da graça». Até tomava as refeições. Tem de suplicar de joelhos
à sua morte, será sujeita a êxtases durante os a uma pessoa conhecida que lhe empreste com
quais julga que vai «morrer de doçura». A par- que alimentar os seus seis filhos, dos quais o
tir de 1593, todas as semanas padece a Paixão mais velho tem dez anos: responde-lhe aquela
de Cristo embora não tenha nenhuma chaga que eles podem ganhar a vida na oficina de
visível. O padre Coton escreve a este respeito: um sapateiro! Então sente uma grande alegria
«Tinha os estigmas no corpo de tal maneira por ter de se entregar somente à Providência
que a determinadas horas, e especialmente às de Deus. A Senhora Bérulle dá-lhe alojamento,
sextas-feiras e sábados e durante a quaresma, com Andreia Levoix, num barracão. Põe os seus
sentia dores extremas nos pés, nas mãos, no dois rapazes num colégio público, as duas fil-
lado e na cabeça, como se estivesse pregada has mais velhas numa casa de religiosas e os
e suspensa». Bárbara está desde então conti- mais pequeninos em casa de familiares. Depois
nuamente unida a Cristo, vivendo na oração enfrenta os homens das leis suportando as hu-
uma verdadeira paixão pela salvação dos peca- milhações que lhe trazem o descrédito social.
dores. Além disso, cultiva uma inteira confiança A juntar a isto vêm problemas de saúde. Em
na Providência de Deus que a guia em tudo o junho de 1596, no regresso de uma viagem
que faz. O seu completo abandono a Deus dá- de visita ao marido exilado, cai do cavalo. Fica
lhe a coragem para enfrentar dificuldades que com o pé preso no estribo e é arrastada pelo
poderiam parecer intransponíveis. Entra, com animal. Uns camponeses levam-na de carroça,
efeito, no período mais provado da sua exis- no meio de terríveis sofrimentos. Sem que ela
tência: «Uma alma nunca poderá fazer bem manifeste a mínima queixa, um cirurgião trabal-
nenhum se não se atira cegamente para os ha na sua coxa durante duas horas para reduzir
braços da Providência divina porque, quan- os efeitos da tripla fratura do fémur. Nos meses
do o faz, Deus parece ver-Se obrigado, pela seguintes duas quedas tornam a aleijar as fratu-
sua promessa, a assisti-la.» ras mal recuperadas, de maneira que ela nunca
mais voltará a andar sem muletas. A sua defor-
midade não a impede de retomar os procedi-
c) A Fé na Providência mentos judiciários. Àqueles que se admiram da
sua coragem, declara: «Que é preciso lançar o
A partir de 1588, a Liga derrubou Henrique III e olhar para Deus mostrar-Lhe a nossa fraqueza e
tomou o poder em Paris. Pierre Acarie faz parte pedir-Lhe força.» O seu lema era: «Deixar tudo
do Concelho dos Dezasseis que governam a aberto à Providência divina como se não
cidade. Enquanto Bárbara se desvela junto dos houvesse meios humanos, e trabalhar como
feridos e dos famintos, o seu marido financia o se não houvesse Providência divina».
governo da insurreição, a ponto de comprome- Após quatro anos de luta a senhora Aca-
ter a sua fortuna. Quando se dá a ascensão de rie conseguiu pagar aos credores e restabele-
Henrique IV ao trono, em 1594, é condenado ao cer, em parte, o património familiar. O retorno é
exílio. Dá plenos poderes à sua esposa para ge- tão espetacular que a sua reputação chega até
rir os seus bens ou, mais precisamente, as suas à Corte. O próprio Henrique IV pede para a ver!
dívidas! Como pediu muito dinheiro empresta- Tendo sido assinado o Édito de Nantes e resta-
do, os seus credores solicitam a confiscação de belecida a paz religiosa, obtém do rei licença
todos os bens do casal. Os pais de Bárbara exi- para o seu marido regressar a Paris, ao palacete
gem-lhe que ela rompa com o seu marido para na Rua dos Judeus, cuja posse ela conseguira
preservar o dote, mas ela recusa-se a traí-lo; en- recuperar.
tão abandonam-na e ela vê-se reduzida a uma

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2. Existir para Deus (Jo 1,6-8.19-28)

«Apareceu um homem enviado por Deus, chamado João. Veio como testemunha, para dar tes-
temunho da luz, a fim de que todos acreditassem por meio dele. Ele não era a luz, mas veio para
dar testemunho da luz. (…)
Foi este o testemunho de João, quando os judeus lhe enviaram, de Jerusalém, sacerdotes
e levitas, para lhe perguntarem: «Quem és tu?» Ele confessou a verdade e não negou; ele confes-
sou: «Eu não sou o Messias». Eles perguntaram-lhe: «Então, quem és tu? És Elias?» «Não sou»,
respondeu ele. «És o Profeta?». Ele respondeu: «Não». Disseram-lhe então: «Quem és tu? Para
podermos dar uma resposta àqueles que nos enviaram,
que dizes de ti mesmo?» Ele declarou: «Eu sou a voz do que clama no deserto: ‘Endireitai o
caminho do Senhor’, como disse o profeta Isaías». Entre os enviados havia fariseus que lhe per-
guntaram: «Então, porque batizas, se não és o Messias, nem Elias, nem o Profeta?» João respon-
deu-lhes: «Eu batizo em água, mas no meio de vós está Alguém que não conheceis: Aquele que
vem depois de mim, a quem eu não sou digno de desatar a correia das sandálias». Tudo isto se
passou em Betânia, além Jordão, onde João estava a batizar.»

a) Escutar a voz que clama


Em tudo isto, a Senhora Acarie não se atribui própria mas para a palavra de que é portadora!
nenhum mérito. Tal como João Batista ela está A identidade de João Batista apoia-se inteira-
inteiramente entregue à obra de Deus: «Ah ! mente na sua referencialidade a esta Palavra,
Quanto temos de amar a Deus que é tão bom, que Deus vem dirigindo ao seu povo desde as
que tanto nos amou! Se achamos alguma coisa profundezas dos tempos. Ele desaparece por
difícil é porque amamos muito pouco a Deus. detrás da mensagem, porque só importa o
… Quando é que finalmente Lhe daremos tudo acolhimento da Palavra que é urgente escutar,
e não reservaremos nada para nós? Nada se a fim de nos convertermos. Quanto a Bárbara,
nos deve e tudo se deve a Deus! Sirvamo-l’O escutou o apelo de Deus nos clamores dos ho-
então por aquilo que Ele é. … Oh, como somos mens feridos ou famintos. Escutar este apelo é
felizes por poder fazer alguma coisa no serviço reconhecê-l’O nos acontecimentos; é discernir
a Deus!» João Batista apagou-se a si mesmo a resposta que o Espírito suscita em nós; é obe-
diante d’Aquele de quem anunciava a vinda. decer à exigência interior que então se impõe
No entanto, a sua atividade profética atrai as na oração.
multidões que ele exorta à conversão: crê que
b) Apagar-se diante de Cristo
o Reino de Deus está iminente. As autoridades
religiosas querem identificar este homem que Mas a pergunta ressurge. Se não és um profeta,
age sem mandato da sua parte. João diz-lhes porque fazes um ato tipicamente profético, ba-
claramente quem não é, mas permanece eva- tizando? João nega aqui novamente a impor-
sivo quanto à sua identidade real. Não é o Mes- tância do que faz, declarando que batiza ape-
sias, a Quem nem sequer é digno de desatar nas com água. Por este gesto de purificação
as correias das sandálias. Também não é Elias, cada um é convidado a reconhecer-se pecador
cujo regresso deveria preceder a vinda do Mes- com vista a acolher a salvação. O seu batismo
sias. Tão-pouco se identifica com o profeta não salva ninguém mas faz tomar consciência
anunciado por Isaías! Define-se simplesmente da necessidade de acolher o Salvador, porque
como uma VOZ que permite que a PALAVRA só Deus pode libertar o homem do seu peca-
proclamada nos tempos antigos possa res- do (cf. Mc 10,27). A identidade de João Batista
soar hoje no deserto. A voz não existe para si volta a desaparecer nesta nova negação, pela

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qual ele remete a uma personagem misteriosa: abrir um caminho de vida ao seu matrimónio
«No meio de vós está Alguém que não conhe- estéril. O nascimento de João Batista é assim
ceis». Além de se apagar diante d’Aquele que marcado pelo cumprimento desta promessa e
anuncia, João não se permite definir a sua pela recuperação pelo seu pai de uma palavra
identidade: como Deus, Ele é mistério inefável; agora pronunciada sob o sinal do louvor (cf. Lc
igualmente como Deus, também Se encontra 1,20.64). Deste modo, a sua vida foi marcada
no meio do seu povo, não no Templo de Jeru- desde o início pelo selo da Palavra. Ele é-lhe
salém mas no deserto do mundo. Agindo as- totalmente consagrado, a ponto de já não ser
sim, João Batista não procura dissimular quem senão uma voz ao seu serviço. Convidando a
é, visto que ele próprio não se reconhece senão endireitar os caminhos do Senhor, João igno-
através da sua missão. Em primeiro lugar, tem ra não apenas esses caminhos, como também
consciência de que a nossa real identidade quem é Aquele que os percorre. João Batista
advém unicamente do encontro com Cristo, chama-nos a crer nesta salvação, impossível ao
onde tem pleno cumprimento. Com efeito, só homem, e que ninguém pode prever como se
Deus sabe quem somos, pois apenas Ele nos realizará. A Senhora Acarie experimentou, atra-
ama com um amor infinito. Só Ele no-lo pode vés das suas tribulações, quanto a fé na Provi-
revelar à luz da nossa vocação em Cristo. É por dência de Deus abre um caminho até nas situa-
isso que o verdadeiro conhecimento de si pas- ções desesperadas a quem quer que acredite
sa pelo esquecimento próprio, a fim de receber que nada é impossível a Deus. Esta Providência
esse conhecimento d’Aquele que é o único a nunca se concretiza da forma que imaginamos,
conhecer-nos. A Senhora Acarie viveu na ora- mas a graça dá, a quem não desespera, a ca-
ção tão profundamente este esquecimento de pacidade de reconhecer como o Senhor vem
si, que foi identificada com Cristo até mesmo até nós. Este tempo do Advento convida-nos
nos sofrimentos da sua Paixão. a renovar a nossa fé na vinda do “Desconhe-
cido” que está no meio de nós, a consentir na
c) Tem fé em Deus nossa pobreza porque é nela que Se une a nós
Escutar o apelo a endireitar os caminhos do Aquele que, por nós, se despojou da sua glória:
Senhor e não os nossos, é renunciar a salvar- «Como é bom, como é suave ter dito adeus às
se a si mesmo para acolher a Palavra que só vaidades do século e aderido a Deus só, Àquele
Deus pode cumprir; por conseguinte, escu- que nunca Se ausenta, que nunca nos falta se
tar é também pôr a confiança em Deus, sejam não Lhe faltarmos nós primeiro.»
quais forem as dificuldades humanas. João
Batista nasceu de um pai atingido pelo mutis- Fr. Olivier Rousseau OCD (Convento de Avon)
mo por não ter acreditado que Deus poderia

3. As 3 pistas da semana

• Já descobri como Deus fala ao nosso coração através dos acontecimentos e das dificul-
dades do outro?
• Como descobrimos, mediante a oração e o serviço, a nossa verdadeira identidade em
Cristo?
• Como é que a nossa fé nos permite crer que Deus nos abre sempre um caminho?

4. Uma palavra para orar


«Eu sou a voz do que clama no deserto: ‘Endireitai o caminho do Senhor’, como disse o profeta Isaías».
(Jo 1,23)

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Orar em cada dia da semana
Segunda-feira, 14 de dezembro: Deus Criador

«Uma estrela surge de Jacob, levanta-se um cetro de Israel.» (Nm 24, 17)
Ó Deus dos Céus, Príncipe de todos os reis da terra, que sabeis tudo, Vós não
podeis fugir de nenhuma das Vossas criaturas.
Deus vê as nossas necessidades, Ele ama o que criou: através de atos de adoração
interiores repito-Lhe uma e outra vez o amor que Lhe tenho.

Terça-feira, 15 de dezembro: Um pobre coração


«Deixarei ficar no meio de ti um povo pobre e humilde;
eles procurarão refúgio no nome do Senhor.» (Sof 3, 1-2.9-13)

«Ó meu Senhor, meu Deus e meu Tudo, a minha vontade é que eu possa, de cada
criatura, fazer uma alma e em cada alma, em especial na minha, construir-Vos um
reino dos céus no qual possais ter alegria e paz, em vez de todas as dores e tristezas
que suportastes por mim.» (Oração da Sra. Acarie).

Preparo-me para a vinda do Senhor com um coração humilde e pobre: haverá coisas
das quais eu possa aliviar o meu dia, o emprego do meu tempo, as minhas conversas
(mesmo interiores…) para me recentrar em Deus?

Quarta-feira, 16 de dezembro: Cuidar da criação


«Sou Eu, o Senhor que faço tudo isto. Derramai, ó céus o orvalho lá do alto e as nuvens
chovam a justiça: abra-se a terra e germine a salvação… Sou Eu, o Senhor que o realizo.»
(Is 45, 6bs)

O mundo e as criaturas que nele habitam é o grande livro em que devemos aprender a
amar o Criador. (PA)

Como posso eu cuidar da Criação, «nossa casa comum»?

Quinta-feira, 17 de dezembro: Graça do Natal


«Vem, chave de David, que abres as portas do reino.» (cf. Antífona do Ó, dia 20 dez.)
Batei, meu Deus, batei à porta das consciências e fazei-Vos ouvir.
Ofereço o meu dia para que os corações se abram à graça do Natal.

Sexta-feira, 18 de dezembro: Vá para a fonte

Ele salvará o povo dos seus pecados. Mt 1, 21


Amor sem fim, dai-Vos e teremos tudo!

É o amor de Deus que nos purifica: de que tenho eu necessidade para viver numa
maior intimidade com Ele? Posso aproveitar este fim-de-semana, o último antes do
Natal, para, por exemplo, me confessar?

Sábado, 19 de dezembro: Exalte o Seu Nome


Não temas, Zacarias, porque a tua súplica foi atendida.» (Lc 1,13)

Ó bondade infinita que sois o meu mansíssimo Redentor, que descestes do Céu à terra
a fim de me reconciliar com o vosso Pai Celeste! (Verdadeiros Exercícios).
O meu coração canta louvores a Deus, exulta e alegra-se pela salvação que nos é dada.

5 Retiro Advento 2020 com a Bem-aventurada Maria da Encarnação (1566-1618)


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