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07/12/2020 "Tiradentes esquartejado", de Pedro Américo: uma leitura crítica

“Tiradentes esquartejado”, de
Pedro Américo: uma leitura
crítica
21 de abril de 2015

O pintor Pedro Américo (1843-1905) já era um artista renomado quando pintou “Tiradentes esquartejado”, em 1893. A
tela foi feita por iniciativa do próprio pintor que pretendia criar um conjunto de obras sobre a Conjuração Mineira. O
conjunto nunca foi feito, mas “Tiradentes esquartejado” reforçou a imagem do herói-mártir dos republicanos.

 O artista e o contexto histórico


O paraibano Pedro Américo (1843-1905) foi um pintor da chamada escola romântica, um estilo artístico que vigorou na
Europa em meados do século XIX e que teve, entre suas características, a exaltação dos sentimentos nacionalistas.
Pintou temas históricos como A Batalha de Campo Grande (1871), Fala do Trono (1873), Batalha do Avaí (1874) e O grito
do Ipiranga (1888). Essas telas exaltavam feitos da monarquia a quem Pedro Américo era grato, a nal seus estudos de
artes plásticas em Paris, dos 16 aos 21 anos, foram patrocinados pelo imperador D. Pedro II.

Os ventos políticos, contudo, eram outros. A República fora proclamada, em 1889, e o novo governo ainda não se
consolidara. A renúncia de Deodoro em 1891, revoluções na capital e no sul (Revolta da Armada e Revolução
Federalista) e a crise econômica e nanceira do Encilhamento fragilizavam o novo regime que sequer apoio popular
possuía. O desa o de substituir um governo e construir uma nação exigia uma população unida em torno do novo
projeto político. Uma das estratégias para tal, era eleger um herói “integrador e portador da imagem do povo inteiro”.

Heróis são símbolos poderosos, encarnações de ideias e aspirações, pontos de referência, fulcros de identi cação
coletiva. São, por isso, instrumentos e cazes para atingir a cabeça e o coração dos cidadãos a serviço da legitimação
de regimes políticos. Não há regime que não promova o culto de seus heróis e não possua seu panteão cívico. (…) A
falta de envolvimento real do povo na implantação do regime leva à tentativa de compensação, por meio da
mobilização simbólica. (José Murilo de Carvalho)

Inicialmente, tentou-se alçar à posição de herói republicano os principais participantes do 15 de novembro, entre eles,
marechal Deodoro, Benjamin Constant e Joaquim Floriano. Não deu certo.

Tiradentes, o único executado na Conjuração Mineira, atendia às exigências da miti cação. O sonho de implantar uma
Republica o contrapunha aos monarquistas. Seu nome estava nos clubes republicanos e ele era o herói exaltado pelos
setores republicanos mais radicais por sua origem humilde e popular em contraste com a elite econômica e política.

Em um contexto de tensões políticas e crise econômico- nanceira, Tiradentes inaugura o panteão republicano como
elemento integrador, o mártir que deu sua vida à causa republicana e, portanto, o herói cívico, por excelência.

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07/12/2020 "Tiradentes esquartejado", de Pedro Américo: uma leitura crítica

Na gura de Tiradentes todos podiam identi car-se, ele operava a unidade mística dos cidadãos, o sentimento de
participação, de união em torno de um ideal, fosse ele a liberdade, a independência ou a república. Era o totem cívico.
Não antagonizava ninguém, não dividia as pessoas e as classes sociais, não dividia o país, não separava o presente do
passado nem do futuro. Pelo contrário, ligava a república à independência e a projetava para o ideal de crescente
liberdade futura. A liberdade ainda que tardia. (José Murilo de Carvalho)

Tiradentes tornou-se assim símbolo da República e, em 1890, a data de sua morte, 21 de abril foi declarada feriado
nacional.

Por essa época, Pedro Américo perdera sua posição de pintor o cial e, pouco depois, fora aposentado do cargo de
professor da Academia de Belas Artes (1890). Suas ligações com o regime deposto di cultavam as encomendas de
trabalhos. Motivado pelo centenário da morte de Tiradentes (1892), Pedro Américo, por iniciativa própria, produz a tela
procurando recuperar o apoio do governo, em especial do Estado de Minas Gerais para o qual ela é oferecida. A pintura
faria parte de um conjunto de cinco telas que retratariam a tragédia da conjuração.

 Qual a cara do herói?


Quase nada se sabe sobre a aparência física de Tiradentes. Não há retratos do século XVIII e as poucas descrições são
imprecisas. Não se sabe se era branco ou mulato, rico ou pobre e mesmo seu verdadeiro papel na conjuração não é
plenamente conhecido e ainda gera muito debate entre os historiadores. Transformou-se em um mito sem ter sido
plenamente conhecido como personagem histórico.

Como lembra Murilo de Carvalho, a construção do mito transcende ao debate historiográ co:

 O domínio do mito é o imaginário que se manifesta na tradição escrita e oral, na produção artística, nos rituais. A
formação do mito pode dar-se contra a evidência documental; o imaginário pode interpretar evidências segundo
mecanismos simbólicos que lhe são próprios e que não se enquadram necessariamente na retórica da narrativa
histórica.

Mesmo de aparência física desconhecida, sabe-se que Tiradentes, sendo militar, usava barba raspada e bigodes fartos
como todos os militares da época. Quando foi enforcado, vestia um camisolão branco e estava com o cabelo e a barba
totalmente raspados, como era costume para os condenados. Contudo, essa não foi a imagem dada ao herói.

A representação de Tiradentes ganhou contornos religiosos: o mártir foi associado a Cristo e recebeu a aparência
consagrada pela iconogra a cristã. A barba crescida, o rosto sereno e o olhar elevado aos céus reforçavam a
associação de Tiradentes com a imagem de Cristo.

Mas é bom lembrar que a representação de Tiradentes como Cristo não foi invenção dos republicanos e nem de Pedro
Américo. Poetas e escritores já tinham feito essa associação ainda na época do Império. Há, inclusive, registros de
festas comemorativas da Conjuração Mineira e da morte de Tiradentes nas últimas décadas do século XIX.

Na década de 1890 e, sobretudo, no tempo dos presidentes Campos Sales (1898/1902) e Rodrigues Alves (1902/1906),
a imagem de Tiradentes como herói cívico-religioso xou-se. Nesses anos, houve, em todo país, uma febre de
construção e reformas de prédios para abrigar as novas funções políticas e administrativas trazidas pela República. É
dessa época, por exemplo, a reforma do Palácio do Catete, antiga residência aristocrática, para adaptar-se ao novo uso
administrativo e de residência o cial do presidente da República.

Para decorar os novos salões, foram encomendadas pinturas que exaltavam a nação e o culto patriótico. Entre os
temas encomendados aos pintores estavam aqueles referentes a Tiradentes, o herói republicano. Nessa pintura de
exaltação da República, destacaram-se: Décio Villares (1851-1931), Eduardo Sá (1866-1940) e Aurélio de Figueiredo
(1856-1916) cujas telas sobre Tiradentes foram reproduzidas incansavelmente em jornais, revistas e livros escolares
consagrando, no imaginário popular,  a imagem do herói cívico como Cristo.

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“Tiradentes”, Décio Villares, 60,5 x 49,7cm, 1880, Igreja Positivista do Brasil, RJ.

“O martírio de Tiradentes”, Aurélio de Figueiredo, 57 x 45 cm, 1893, Museu


Histórico Nacional, RJ.

“A leitura da sentença”, Eduardo de Sá, início do séc.XX, Museu Histórico Nacional,


RJ.
“Resposta de Tiradentes à comutação da pena de morte dos incon dentes”, nal
do XIX, de Leopoldino de Farias, Museu Histórico Nacional, RJ.

 Tiradentes esquartejado, de Pedro Américo


Segundo a historiadora de Arte, Maraliz Christo, a tela de Pedro Américo foi rejeitada pela crítica em sua primeira
aparição pública, no Rio de Janeiro, em 1893. O quadro, longe de mostrar um herói em ação, o retrata morto, aos
pedaços, fugindo dos cânones republicanos de sugerir uma visão de futuro, do herói vivo ou revivido nos ideais do novo
regime que se implantava.

A imagem assustadora de Tiradentes esquartejado foi adquirida pela prefeitura de Juiz de Fora por intermédio de um
vereador que coordenava o Museu Mariano Procópio. Lá permaneceu esquecida por cinquenta anos quando, em 1943,
foi reproduzida no livro biográ co de Pedro Américo, escrito por Cardoso de Oliveira.

A tela de Pedro Américo traz, contudo, alguns símbolos que reforçam a representação mítica de Tiradentes. Além da
aparência de Cristo, o cruci xo ao lado da cabeça reforça a semelhança do herói martirizado com Jesus supliciado.

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A cabeça decepada e o corpo esquartejado sobre o


cadafalso, como sobre um altar, destacam a violência
do sistema colonial e também evocam a traição de que
Tiradentes fora vítima. Traído por Joaquim Silvério dos
Reis, o novo Judas, e também pelos companheiros que
se acovardaram e deixaram cair sobre ele toda a culpa.
Culpa que ele assumiu de boa vontade – fatos que
calavam profundamente no sentimento popular,
marcado pela religiosidade cristã.

A pintura de Pedro Américo deu continuidade à


miti cação e heroicização de Tiradentes. Em 1949,
Portinari pintou “Os despojos de Tiradentes no caminho
novo das Minas” mantendo a aproximação com a
simbologia religiosa. O painel mostra os pedaços do
corpo pendendo de postes e mulheres ajoelhadas que
lembram a cena do Calvário.

A força do mito atravessou décadas e marcou outras


datas contemporâneas: a inauguração de Brasília, a
nova capital da República, em 1960 e o anúncio da
morte de Tancredo Neves, o primeiro presidente civil
eleito depois do regime militar. A notícia do óbito
presidencial, em 21 de abril de 1985, associou
Tiradentes ao presidente que prometia a instauração da
liberdade e a democracia. Três dias depois, comentava
“Tiradentes esquartejado”, Pedro Américo, 2,70 x 1,65 m, 1893, Museu Mariano Eliakim Araújo no programa Globo Repórter
Procópio, Juiz de Fora, MG.
(24/04/1985): “Esta noite, quando a histórica São João
del Rei enterrou o seu presidente, reuniu num só destino
dois lhos ilustres de seu chão: Tancredo de Almeida
Neves e Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Patrono cívico da nação brasileira”. O mito alimentava outro mito.
Mas isso já é outra história.

Painel Tiradentes, detalhe, Cândido Portinari, 1949, Salão do Memorial da América Latina, SP.

Análise grá ca de Tiradentes Esquartejado


O infográ co abaixo traz mais detalhes sobre o quadro Tiradentes Esquartejado, de Pedro Américo. Para imprimi-lo,
clique aqui.
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Fonte
CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia
das Letras, 1990.
CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira. Herói em pedaços. Revista da Biblioteca Nacional, no. 9. Abril de 2007.
SIMAN, Lana Mara de Castro & FONSECA, Thaís Nívia de Lima (orgs.). Inaugurando a História e construindo a
nação: discursos e imagens no ensino de História. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
SALGUEIRO, Valéria. A arte de construir a nação: pintura de história e a Primeira República. Disponível aqui.
PALHA, Cássia R. Louro. Televisão e política: o mito Tancredo Neves entre a morte, o legado e a redenção.
Disponível aqui.

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