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V ^ [•••] uma época em que por toda parte se ouvefalar de uma crise—eàsvezes
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J
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y //Na década de 1930 os p a r l a m e n t o s pareciam seguir o c a m i n h o dos reis. A
esquerda havia sido derrotada ou posta na defensiva praticamente e m todos os paí-
r
ses a oeste da União Soviética, e todos os grandes debates políticos ocorriam na ^
direita. Só nos extremos setentrionais do continente o parlamentarismo sobrevi- *^ £ r
— Ji ^J O
via. "Vivemos n u m a época e m q u e os mais corajosos passam p o r m o m e n t o s de
p r o f u n d o desânimo, e m que as esperanças de paz social e internacional, salvas d o
naufrágio da G u e r r a Mundial, parecem tristemente ilusórias", escreveu e m 1934
u m analista da "atual reação contra a democracia". Já e m 1925 o jurista a l e m ã o
Moritz Bonn falara da "crise da democracia européia"; e m 1931 Eustace Perry viu
a " d e m o c r a c i a e m j u l g a m e n t o " , ao passo q u e H. G. Wells aguardava ansioso a
"pós-democracia". "Isto é o fim da liberdade?", Salvador de Madariaga p e r g u n t o u
e m plena G u e r r a Civil Espanhola. E m G e n e b r a , o professor William R a p p a r d
escreveu que a "crise da democracia [...] s u r p r e e n d e u inteiramente a h u m a n i d a d e
civilizada, seguindo-se a seu triunfo n o m u n d o m o d e r n o " . 7
O antiliberal Bertrand d e j o u v e n e l estava e m Paris n o verão de 1940, q u a n d o
os alemães m a r c h a r a m sobre a cidade, e nessa ocasião r e p u d i o u o " e n x a m e de
juristas" que criaram " u m a m o n t o a d o de parlamentos" após o "triunfo da burgue-
sia" e m 1918; só p o u c o a pouco, prosseguiu, percebeu-se que "a grande onda de par-
lamentarismo burguês de 1919-20 havia refluído" e que "no lugar daquela corrente
a p a r e n t e m e n t e irresistível surgiu outra, autoritarista". Diante do que se apresen-
tava c o m o a falência definitiva da democracia parlamentar na Europa, instituições
c o m o a Presidência da República, o Senado e a C â m a r a reduziram-se a m e r a s "fan-
tasias da faculdade de direito". 8
H o j e é difícil ver c o m o novidade o experimento c o m a democracia n o perío-
d o de entreguerras: contudo, n ã o devemos supor que a democracia seja própria da
Europa. Gostaríamos de acreditar que sua vitória na G u e r r a Fria constitui a prova
de q u e suas raízes se e n t r a n h a m n o solo e u r o p e u , mas a história nos diz outra coisa.
/
/ V e n c e d o r a e m 1918, a democracia p r a t i c a m e n t e se extinguiu vinte anos depois. o
(X ^ Talvez estivesse fadada a fracassar n u m a época de crise política e turbulência eco- ^ ^
L nômica, pois seus defensores e r a m utopistas demais, ambiciosos demais, poucos
demais.-Por se concentrar nos direitos constitucionais e negligenciar as responsa- ^
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í bilidades sociais, ela muitas vezes parecia mais adequada ao século xix q u e ao xx.
Na década de 1930 t u d o indicava que a maioria dos europeus já n ã o queria lutar p o r
ela; havia alternativas não-democráticas para enfrentar os desafios da modernida-
de. A E u r o p a e n c o n t r o u outras formas, autoritárias, de o r d e m política que n ã o
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f s
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e r a m mais estranhas a suas tradições, n e m m e n o s eficientes c o m o organizadoras
da sociedade, da indústria e da tecnologia/
NOVAS CONSTITUIÇÕES
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^ ^ época, inspirados n o exemplo bolchevique, tiveram de aceitar a supremacia do par-
'/ lamentarismoJ
Àssim, e m m e i o ao caos do pós-guerra na Europa central, o n d e nacionalistas
^ paramilitares, bandidos, c a m p o n e s e s radicais e pró-bolcheviques p r o c u r a v a m
explorar o colapso do antigo regime, advogados e políticos da classe média tenta-
v a m estabelecer as bases de u m a nova o r d e m democrática e constitucional. /Em
Les constitutions de VEurope nouvelle (1929), o e s t u d i o s o russo-francês Mirkine-
Guetzevitch relacionou 22 casos a discutir, entre os quais as constituições da cida-
de livre de Danzig, do Vaticano, da Prússia e da Baviera. Naquela estonteante pri-
meira década do pós-guerra o jurista era rei. Os professores universitários exerciam
extraordinária influência, e especialistas c o m o H u g o Preuss, na Alemanha, e H a n s
Kelsen, na Áustria, p u s e r a m e m prática suas teorias na constituição de seu respec-
tivo país.
' F o r a m buscar inspiração e m constituições liberais c o m o a da França, dos
Estados Unidos, da Inglaterra e da Suíça, tomando-as muitas vezes ao pé da letra.
C o n t u d o , s u p e r a r a m - n a s e m seu zelo p a r a c o n s t r u i r d e m o c r a c i a s r e a l m e n t e
representativas e abrangentes. O trabalho que f i z e r a m refletiu as doutrinas mais
m o d e r n a s d o direito público e sua relação c o m a política e a sociedade. O objetivo
f u n d a m e n t a l de seu esforço foi, segundo u m i m p o r t a n t e comentarista, subordinar
a política à lei, "racionalizar" o p o d e r e eliminar as incongruências e os resíduos
irracionais da velha o r d e m feudal, considerando cada aspecto da vida social e polí-
JÍ- tica e m artigos constitucionais específicos.'"/j
^ t / M a i s tarde se atribuiria aos advogados a culpa pela falência das instituições
democráticas. Dir-se-ia q u e f o r a m ingênuos e irrealistas e que t e n d e r a m a procu-
r a r m a i s "perfeição jurídica" que "conveniência política". Substituir política por lei
l foi u m a aspiração m e i o quixotesca na acerba polarização vigente na Europa cen-
tral após \9l&IJOs críticos a r g u m e n t a r a m que projetos tão grandiosos e e m última
análise utopistas apenas p r o d u z i r a m estruturas políticas inviáveis n o m u n d o real. -
Tais ataques i g n o r a r a m os muitos outros fatores que contribuíram para a instabi-
lidade política n o período de entreguerras — crise econômica, inquietação social,
as iniqüidades do acordo de paz de Paris. N o entanto, r e c o n h e c e r a m ao m e n o s a
autêntica importância e a novidade dos dispositivos constitucionais do pós-guerra."
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A maioria das novas constituições começava enfatizando seu caráter demo-
crático, nacional e republicano. Assim, o artigo i da Constituição austríaca de 1920
afirmava q u e "a Áustria é u m a república democrática. A soberania cabe ao povo".
A Constituição lituana iniciava-se c o m a seguinte frase: "O Estado da Lituânia é
u m a república democrática independente". A soberania g e r a l m e n t e residia "no
povo", mas às vezes emanava da "nação" — assim rezavam, entre outras, as consti-
tuições da Polônia, do Estado Livre Irlandês (1922) e da Grécia. A Constituição do
Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos, promulgada e m 1921, declarava, esperan-
çosa, que "há apenas u m a nacionalidade para todos os súditos do reino"; a da Tche-
coslováquia dizia praticamente a m e s m a coisa. A Constituição de Weimar t a m b é m
professava sua fé na "consciência nacional de u m povo que se auto-organiza".
/ / C o m o n o século xix g r a n d e parte da vida política burguesa girara e m t o r n o
da luta c o m monarcas autocráticos e seus sistemas de governo personalizados, a s )
^ ^ C h o v a s constituições n a t u r a l m e n t e expressavam u m a p r o f u n d a d e s c o n f i a n ç a d a .
,. , autoridade executiva. O p o d e r se concentrava n o Legislativo. As novas constitui-
C f ' <A ções a u t o r i z a r a m a criação de comissões parlamentares para supervisionar a atua-
. ção d o Executivo e especificaram as circunstâncias q u e p o d e r i a m d e m a n d a r u m
v o t o de confiança n o governo. Algumas d e t e r m i n a r a m q u e os ministros d o gover-
n o f o s s e m n o m e a d o s pelo P a r l a m e n t o , e n ã o p e l o p r e m i ê ou p e l o p r e s i d e n t e /
C o m o veremos, essa preeminência do P a r l a m e n t o se tornaria u m dos principais
alvos dos que se o p u n h a m aos novos dispositivos democráticos. 1 2
O m e s m o desejo de u m a democracia aberta e m o d e r n a levou, c o m freqüên-
cia, à adoção de u m a representação proporcional p a r a f o r m a r u m Legislativo q u e
expressasse a vontade d o povo c o m a m á x i m a precisão; p o r esse motivo os referen-
, / dos t a m b é m e r a m populares/A f i m de "racionalizar" o e m a r a n h a d o de leis e con-
Y venções regionais e criar u m a legislação nacional, várias constituições t e n t a r a m
y V ' explicitamente definir e restringir o p o d e r das autoridades locais e a m p l i a r a m o
' p o d e r d o Estado central^Propostas de juristas poloneses e croatas q u e visavam sal-
vaguardar a a u t o n o m i a do governo local f o r a m rejeitadas. O legado de Wilson, afi-
nal, incluía n ã o só a democracia c o m o a a u t o d e t e r m i n a ç ã o nacional, e u m a auto-
ridade central forte agradava aos tchecos, que se defrontavam c o m u m a poderosa
minoria alemã, aos poloneses, c o m seus ucranianos, e aos sérvios na Iugoslávia.
Apenas na A l e m a n h a e na Áustria o novo Estado foi construído sobre u m a base
federal, e não unitária; surgiu depois de u m a longa luta e n ã o duraria muitos anos.
P o u c o antes de Hitler e Dollfuss centralizarem o p o d e r de m o d o inequívoco, os
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governos centrais da Alemanha e da Áustria haviam começado a utilizar seus pode-
res especiais na legislação referente ao fisco e ao bem-estar social.
/As novas constituições se afastaram nítida e polemicamente dos valores libe-
rais do século xix ao estender os direitos das liberdades políticas e civis às áreas da
saúde, do bem-estar, da família e da previdência social. Os objetivos da política
social — novos na a m b i ç ã o e nas p r o m e s s a s — estavam p r e s e n t e s n ã o só na
Constituição de países c o m o a Alemanha e a Áustria, onde os social-democratas
d e t i n h a m o poder n o final da guerra, mas t a m b é m na da Romênia, que falava dos
"direitos sociais do h o m e m " , e na do Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos, q u e
mencionava a reforma agrária e a necessidade de u m a legislação social e econômi-
ca. A Constituição espanhola declarou o país " u m a república democrática de tra-
b a l h a d o r e s de t o d a s as classes" e estabeleceu a possibilidade de expropriações
"para usos sociais"."/
Nesses e e m o u t r o s aspectos, as novas constituições refletiram as diversas
preocupações políticas de seus autores. Por u m lado, expressaram o liberalismo
clássico do século xix; por outro, t e n t a r a m atender às reivindicações populares de
u m a "autêntica democracia social", reforçadas pelo impacto da Primeira G u e r r a
Mundial. Essa agenda social e democrática foi claramente u m a resposta aos acon-
tecimentos russos e refletiram u m desejo de afastar as massas do bolchevismo e
conquistá-las para o p a r l a m e n t a r i s m o . " O u Wilson, ou Lenin", escreveu H u g o
t Preuss, que elaborou a Constituição de W e i m a r e a viu c o m o u m baluarte contra
a bolchevização da Alemanha. Assim, as novas constituições t e n t a r a m conciliar o
parlamentarismo antiquado c o m as pressões c o n t e m p o r â n e a s de u m a sociedade
de massas m o d e r n a q u e emergia da devastação da guerra. Misto de o t i m i s m o e
ansiedade, espelharam a ambígua situação dos defensores da democracia — a bur-
guesia européia — n o pós-guerra.' 4 /
G U E R R A C I V I L DA E U R O P A
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D u r a n t e boa parte d o ano de 1917 parecia q u e a Rússia seria o palco do pri-
meiro triunfo da revolução democrática na Europa. Todas as partes envolvidas na
derrocada da velha autocracia estavam dispostas a proteger suas conquistas contra
o r e t o r n o da m o n a r q u i a : a democracia liberal gozava de imenso prestígio n o início
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y /r ^ de 1917, e, se havia u m inimigo aparente, e r a m os legalistas, fiéis aos Romanov, n ã o
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os bolcheviques. A esquerda, Lenin inclusive, queria u m a Assembléia Constituinte
/ ? para dar início à fase d o "governo burguês", que, de acordo c o m a teoria marxista,
agora se fazia necessário. E m o u t u b r o , q u a n d o os bolcheviques t o m a r a m o poder,
vi
ainda n ã o sabiam se a revolução que estavam f a z e n d o era "burguesa democrática"
ou "proletária socialista".
, / C o m o império czarista desintegrando-se, a luta, e m 1917-8, contra as assem-
bléias u c r a n i a n a e finlandesa, q u e se t o r n a v a m independentes, contribuiu para
fazê-los optar pela segunda alternativa. Ainda mais i m p o r t a n t e s f o r a m os resulta-
dos das eleições para a Assembléia Constituinte, u m a vitória para a esquerda, mas
' u m a considerável d e r r o t a p a r a os bolcheviques, q u e r e c e b e r a m m e n o s de u m
q u a r t o dos votos e acabaram t e n d o u m n ú m e r o de deputados que correspondia a
m e n o s da m e t a d e dos r e p r e s e n t a n t e s eleitos pelos socialistas revolucionários.
Diante dessa rejeição p o r parte do eleitorado, Lenin t r a t o u de rever sua posição:
s e g u n d o suas Teses sobre a Assembléia Constituinte, " n u m a república b u r g u e s a a
^ ^ / assembléia constituinte [é] a for m a s u p r e m a d o princípio democrático"; n o entan-
to agora se evidenciava que, de acordo c o m a "social-democracia revolucionária
• [...] u m a república de sovietes [é] u m a f o r m a superior d o princípio democrático".
\ A Assembléia se converteu n u m símbolo anacrônico de "contra-revolução burgue-
sa"; seus m e m b r o s f o r a m repudiados c o m o " h o m e n s de o u t r o m u n d o " . Lenin não
i m p e d i u q u e se r e u n i s s e m e m j a n e i r o de 1918, m a s u m dia depois dissolveu a
Assembléia pela força. Esse era u m m a u marxismo, na opinião dos social-democra-
tas, mais m o d e r a d o s , p o r é m Lenin p o u c o se importava.";/
Seu triunfo, c o m o depois o de Mussolini na direita, foi realmente conseqüên-
cia d o fracasso d o liberalismo^'Os liberais russos f o r a m os primeiros, m a s n ã o os
ú l t i m o s , a acreditar, e r r o n e a m e n t e , q u e se podia resolver u m a p r o f u n d a crise
social oferecendo ao "povo" liberdades constitucionais. Tais liberdades n ã o e r a m
V ^ _
o q u e "o povo" — sobretudo os 15 milhões de camponeses conscritos — queria.
Paz e terra interessavam-lhe mais, e os liberais n ã o lhe ofereciam n e m u m a n e m
outra, assim c o m o p o u c o t i n h a m a oferecer aos trabalhadores urbanos. A o r d e m
social estava r u i n d o nas fábricas, nos campos, nas Forças Armadas, e entre os polí-
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ticos russos não havia meio-termo.yO governo provisório de Kerensky se esvazia-
ra m u i t o antes de a Guarda Vermelha de Trotsky t o m a r o poder e m Petrogrado.
Apesar de tudo, os constitucionalistas russos não p e r d e r a m a esperança e e m
j u n h o de 1918 criaram e m Samara u m e f ê m e r o C o m i t ê de M e m b r o s da Assem-
bléia C o n s t i t u c i o n a l . Após o t é r m i n o da g u e r r a civil, "contra-revolucionários
burgueses" o r g a n i z a r a m e m Paris u m a Assembléia de M e m b r o s da Assembléia
Constituinte — o que, todavia, tinha pouca relação c o m o equilíbrio de forças n o
interior do que agora se t o r n a r a a União Soviética, o n d e se ansiava n ã o p o r liberda-
des constitucionais, e sim p o r t r a n s f o r m a ç ã o socioeconômica, por consolidação
nacional e pelo f i m da ilegalidade e da anarquia, p o r m e i o da decisiva ação estatal.
Assim, o liberalismo teve na Rússia seu primeiro triunfo n o pós-guerra e t a m b é m
sua primeira e mais assustadora derrota.
Nas m ã o s dos bolcheviques, até o constitucionalismo podia ser usado contra
a burguesia: p o r q u e se deveria ver c o m o ú l t i m a palavra a f o r m a b u r g u e s a de
Constituição? Ela n ã o seria antiquada e classista? N ã o caberia substituí-la p o r algo
mais m o d e r n o ? "Diremos ao povo q u e seus interesses s u p e r a m os interesses das
instituições democráticas", Lenin a f i r m o u e m d e z e m b r o de 1917/Pouco depois da
dissolução da Assembléia Constituinte, ele cotejou o " m o r t o p a r l a m e n t a r i s m o
burguês" da assembléia c o m o "apparat soviético proletário, simples, sob muitos
y V a s p e c t o s d e s o r d e n a d o e i n c o m p l e t o , m a s vivo e vital". E foi b a s e a d o e m sua
vsr D e c l a r a ç ã o dos Direitos d o Povo T r a b a l h a d o r e E x p l o r a d o q u e o Q u i n t o
C o n g r e s s o de Sovietes a p r o v o u a C o n s t i t u i ç ã o q u e e l a b o r o u p a r a a República
Federada Russa. Por m e i o desse d o c u m e n t o pretendia criar o socialismo acabando
c o m a exploração, "aniquilando p o r completo" a burguesia e investindo de p o d e r
a população trabalhadora representada pelos sovietes. 1 |'
A cidadania nesse novo Estado era irrestrita — ao m e n o s teoricamente — n o
tocante a sexo e local de nascimento, de m o d o q u e os direitos civis se estendiam às
mulheres e a alguns estrangeiros. Era restrita, p o r é m , n o tocante à condição social,
favorecendo "o proletariado u r b a n o e rural" e "os c a m p o n e s e s mais pobres": o
voto foi n e g a d o a pelo m e n o s sete categorias de pessoas — entre elas as que viviam
de rendas, os m o n g e s e os comerciantes. Ademais, todos os direitos e r a m condicio-
nais: o governo podia suspendê-los, se considerasse seu exercício prejudicial à revo-
lução socialista. Q u a n d o o menchevique Martov criticou as repetidas violações da
Constituição p o r parte da Revolução, e m d e z e m b r o de 1919, Lenin replicou q u e o
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que Martov reivindicava significava "voltar à democracia burguesa, e nada mais",
acrescentando q u e "o terror e a Cheka são [...] indispensáveis". U m ano depois foi
ainda mais claro. "O t e r m o científico 'ditadura' eqüivale p u r a e simplesmente a
autoridade livre de qualquer lei, isenta de quaisquer n o r m a s e baseada na força",
escreveu. Assim, o r e g i m e c o m u n i s t a m a n i f e s t o u seu caráter absolutista m u i t o
antes de Stalin; c o m o n o t e m p o dos czares,preservou u m a concepção administra-
tiva da lei, e m vez de adotar u m a visão coerente c o m a separação "burguesa" de
poderes. N a t u r a l m e n t e diferia d o r e g i m e czarista e, mais importante, das inova-
ções constitucionais que ocorriam na Europa p o r priorizar os benefícios socioeco-
n ô m i c o s das massas — moradia, assistência médica, educação, liberalização das
leis d o casamento e do divórcio — e m d e t r i m e n t o das clássicas liberdades indivi-
duais. Mas diferia t a m b é m p o r ver a política revolucionária c o m o g u e r r a civil, e m
que o t e r r o r por parte do Estado desempenhava u m papel especial c o m o instru-
m e n t o da luta de classes. 18
/ T o d a v i a , o d e s e n v o l v i m e n t o d o sistema soviético teve sobre o restante da
E u r o p a u m impacto m e n o s imediato do q u e parecia e m 1918. A intervenção do
Ocidente na G u e r r a Civil Russa n ã o conseguiu d e r r u b a r o regime comunista. E m
contrapartida, n o resto d o continente a temida revolução ou não se materializou,
ou foi facilmente reprimida. Apesar da o n d a de sovietes, greves, motins e insurrei-
ções q u e i n u n d o u a Europa e m 1918-9, da Escócia ao Adriático, c o m arruaças na
Alemanha e u m a violenta g u e r r a civil na Finlândia, o regime bolchevique só che-
g o u ao p o d e r e o deteve d u r a n t e algum t e m p o na Hungria. C o m o na Rússia, a con-
seqüência foi a g u e r r a civil, p o r é m o desfecho foi m u i t o diferente./
N o início de 1919 Béla Kun, u m simpatizante do bolchevismo, d e r r u b o u o
regime liberal d o conde Mihály Károlyi e i m e d i a t a m e n t e p r o c l a m o u a instituição
de u m a república soviética, m a s c o n t r o l o u Budapeste apenas p o r alguns meses.
Apoiado pelas forças da Entente, o exército r o m e n o invadiu a Hungria, e os comu-
nistas f u g i r a m . N o o u t o n o de 1919, a aristocracia r e t o r n o u ao poder, sob a regên-
cia d o almirante Horthy, instalou u m r e g i m e de terror contra t o d o suspeito de radi-
calismo e logo obteve o r e c o n h e c i m e n t o dos aliados.
A princípio, o regime direitista de H o r t h y — anticomunista, antidemocrático
— parecia u m a anomalia n u m a era de democratização crescente, u m último suspi-
ro do feudalismo e u r o p e u . N o entanto, o t e m p o mostraria que foi mais que u m a
relíquia do passado; foi t a m b é m u m a visão do f u t u r o : as democracias teriam de
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espremer-se cada vez mais entre os dois extremos, c o m u n i s m o e fascismo. Esses
novos modelos autoritários não tardariam a ameaçar a preeminência do liberalismo
de Versalhes.
DUVIDAS BURGUESAS
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"segunda onda", de 1925-6. Só então se aprovaram novas leis, estendendo os pode-
res do prefeito nas províncias, privando da cidadania os críticos do regime, supri-
m i n d o os partidos de oposição e atacando as liberdades de imprensa e as civis. N o
instável clima político do início da década de 1920, o fascismo, não m e n o s que a
democracia, hesitava. 19
1,
-J /"Nos q u a t r o anos seguintes os c o n t o r n o s do Estado fascista tornaram-se mais
nítidos. Algumas características do passado persistiram: o rei se m a n t e v e c o m o
chefe de Estado ( e m b o r a c o m poderes g r a d a t i v a m e n t e restritos), o P a r l a m e n t o
o i• f
prosseguiu c o m seus debates estéreis e o e m p r e g o generalizado da força policial
nas províncias c o n t i n u o u sendo tão indispensável q u a n t o na época dos liberais.
Assim, sob alguns aspectos o fascismo sucedeu t r a n q ü i l a m e n t e ao liberalismo, e a
d e m o c r a c i a de massa d o p ó s - g u e r r a foi c o m o u m brevíssimo interlúdio n u m a
longa história de elites governantes.
Í/A g r a n d e diferença entre o fascismo e o liberalismo estava na franca defesa do
Estado autoritário. 'A disciplina t e m de ser aceita", a f i r m o u Mussolini, que, afinal,
J
v/ t escolhera c o m o símbolo de seu m o v i m e n t o ofasces, representação da autoridade
na R o m a antiga. " Q u a n d o não é aceita, t e m de ser imposta." Os direitos individuais
^ r>
yv"'<5 e coletivos n a t u r a l m e n t e se reduziram. As virtudes da violência f o r a m exaltadas e
o P a r l a m e n t o foi acusado de ineficiência e retórica vazia, t o m o o próprio Duce
explicou e m sua prosa inimitável:
w
^ V M o atacar o individualismo liberal, o fascismo propôs u m p r o j e t o social revo-
4
ç- lucionário e m suas implicações: a divisão burguesa da vida e m esferas pública e pri-
vada devia ceder lugar a u m a concepção "totalitária" da política c o m o u m a expe-
29
riência de vida completa: "Não se p o d e ser fascista na política [...] e não-fascista na
escola, não-fascista n o círculo familiar, não-fascista n o trabalho". C o m todas as
reviravoltas do longo governo d o Duce, ao m e n o s esses elementos do fascismo se
m a n t i v e r a m constantes. 2 ^
A reação n o exterior foi e m geral positiva. A experiência parlamentarista dos
italianos não impressionou os observadores estrangeiros, cuja aprovação das reali-
zações de Mussolini muitas vezes sugeriu u m a inquietação mais generalizada c o m
a eficácia da democracia p a r l a m e n t a r n o m u n d o m o d e r n o . Arrogantes políticos
ingleses, c o m o Churchill ou Austen Chamberlain, que t i n h a m dúvidas sobre a pos-
sibilidade de exportar a tradição parlamentarista, c o n g r a t u l a r a m os italianos p o r
t e r e m se libertado de u m a f o r m a de governo q u e claramente n ã o lhes convinha.
/ / M u i t o s d u v i d a v a m da universalidade d o m o d e l o democrático. Alguns per-
g u n t a v a m se "os povos latinos", c o m sua tradição de absolutismo, p o d i a m fazer da
c
. .^democracia algo mais que u m a "comédia". E m Portugal, p o r exemplo, houve oito
cr"" presidentes, dezenas de governos e inumeráveis tentativas de golpe nos q u i n z e
anos seguintes à criação da república. O m u n d o anglo-saxão talvez tivesse tradi-
ções históricas específicas que explicariam a tenacidade das instituições democrá-
ticas — u m a longa história de luta vitoriosa c o n t r a a m o n a r q u i a , u m p r o f u n d o
apego às liberdades que f o r a m lenta e d o l o r o s a m e n t e conquistadas d u r a n t e essa
luta. A experiência anterior à g u e r r a na Grécia, na Romênia, na Sérvia e na própria
Itália m o s t r o u q u e os p a r l a m e n t o s e r a m m u i t o compatíveis c o m a corrupção, o
clientelismo e o atraso crônico.
Paralelamente, m u d a n ç a s na natureza do governo e n o papel do Estado, após
a guerra, t o r n a r a m o P a r l a m e n t o m e n o s i m p o r t a n t e c o m o sede de decisões d o q u e
seus defensores liberais estavam dispostos a admitir. Agora ele tinha de dividir o
p o d e r c o m c e n t r o s empresariais, sindicatos e o u t r o s g r u p o s de interesse. U m a
observação mais atenta de sua atuação na década de 1920 inevitavelmente levava à
conclusão de q u e não havia p o r q u e se p r e o c u p a r c o m os p a r l a m e n t o s . ^
A CRÍTICA DO PARLAMENTARISMO
30
j
cia da democracia". Atribuiu-se essa decadência, obviamente, à atuação do Parla-
m e n t o . Para muitos europeus o "florescimento da ditadura" n o pós-guerra arrai-
gava-se "na crise do parlamentarismo tal c o m o é praticado hoje". 22
A representação proporcional resultou e m legislaturas fragmentadas, c o m <,/
v
s- ^yf u m a multiplicidade de partidos, tal c o m o alguns críticos alertaram desde o início.
Ó próprio sistema concebido para refletir a vontade popular revelou sua ausência /
V\'_ e m m e i o a u m a b a r a f u n d a de diferenças de classe, etnia ou religião. E m 1930 dezes- Y
1
seis partidos obtiveram cadeiras n o Reichstag, p o r exemplo; nas eleições tchecas ^ c
de 1929 houve dezenove legendas vitoriosas; na Letônia, na Estônia e na Polônia
, . ™ -. ir
h o u v e , p o r vezes, até mais. D e a c o r d o c o m C a m b o , "a m a i o r ineficiência d o
P a r l a m e n t o italiano coincidiu c o m a aplicação da [...] representação proporcio-
nal", que ele definiu c o m o " u m dos motivos mais óbvios do sucesso da revolução
fascista". 23
'Novas leis eleitorais f o r a m capazes de inibir essa fragmentação. Na França,
y&
e m 1924, e na Grécia, e m 1928, a votação majoritária substituiu a representação
V"/
V proporcional. Os críticos a p o n t a v a m o exemplo da Inglaterra para embasar seu
a r g u m e n t o de que a votação majoritária reforçaria a e s t g l i d a d e da democracia.
'/O p r o b l e m a , c o n t u d o , ultrapassava o sistema eleitoral. Os partidos políticos —
altamente organizados e dispondo, e m geral, de serviços educacionais, culturais,
"XY beneficentes e paramilitares p r ó p r i o s — m u i t a s vezes e r a m acusados de atuar c o m o
j-í ' i n t e r m e d i á r i o s de interesses seccionais, q u a n d o d e v e r i a m r e p r e s e n t a r o país
NX-
como u m
todo. U m teórico conservador alemão falou do egotismo" dos partidos
políticos e viu sua influência c o m o o "sintoma de u m a enfermidade" e " u m a dege-
neração". Os belgas referiam-se depreciativamente ao "regime de partidos" que
detinha o poder^Havia os partidos dos camponeses; havia o partido Social-Demo-
crata e o Comunista para o operariado; havia até u m "Partido das Classes Médias,
dos Artesãos e Comerciantes" (na Tchecoslováquia). Organizavam-se partidos p o r
etnias e p o r classes. U m e f ê m e r o Partido pela Renovação Espiritual surgiu e m
Weiman Ó Parlamento parecia u m a lente q u e a u m e n t a v a as tensões sociais, nacio-
nais e econômicas, e m vez de resolvê-las. N ã o era raro ver d e p u t a d o s t r o c a n d o
insultos e atirando cadeiras uns nos outros. U m caso extremo foi o do parlamentar
sérvio que e m 1928, n o Skupstina [Parlamento] de Belgrado, m a t o u o líder croata
do Partido dos Camponeses c o m u m disparo à queima-roupa; seu gesto levou o rei
Alexandre a dissolver o Parlamento, revogar a Constituição e, n u m a atitude de
extrema esperança, rebatizar a terra dos Sérvios, Croatas e Eslovenos c o m o n o m e
3i
de Reino da Iugoslávia. Mas isso de p o u c o adiantou, e e m 1934 o próprio Alexandre
foi assassinado p o r nacionalistas croatas radicais."//
E m sua análise d o sistema partidário de Weimar, Sigmund N e u m a n n obser-
6
' vou que os partidos políticos alemães estavam mais se c o n f r o n t a n d o que se comu-
nicando uns c o m os outros. Cada g r u p o de adeptos, mobilizados e m organizações
0
r, partidárias cada vez mais militaristas, m u n i d o s de estandartes e cartazes, olhava
' u
c o m hostilidade para outros setores da sociedade. O diálogo político e o governo
de coalizão tornavam-se inviáveis, pois "não faz sentido discutir c o m u m interlo-
cutor que já definiu sua posição antes m e s m o de iniciar-se a discussão [...] Por con-
seguinte, as bases intelectuais do liberalismo e do parlamentarismo f o r a m abala-
das". N e u m a n n predisse que "o colapso do P a r l a m e n t o inevitavelmente fará c o m
que outros fatores de p o d e r político, talvez o presidente do Reich [ou] o governo
d o Reich, a d q u i r a m maior i m p o r t â n c i a " / D e acordo c o m seu colega Moritz Bonn,
a paralisia do Legislativo "produziu o clamor p o r u m ditador q u e se disponha a
fazer as coisas que a nação quer que sejam feitas, p o r é m n ã o se s u b m e t a ao contro-
le de g r u p o s e c o n ô m i c o s ou m e s m o de u m a maioria" / H a n s Kelsen, u m dos juris-
tas mais e m i n e n t e s da Europa, falou da "crise d o sistema parlamentarista" e discu-
tiu o f o r t a l e c i m e n t o d o p o d e r d o g o v e r n o ante o Reichstag. N e u m a n n , Bonn e
Kelsen e r a m democratas, m a s t i n h a m plena consciência de que viviam e m socie-
dades partidas ao m e i o n u m a época de polarização econômica e política sem pre-
cedentes. E m vez de unificar a nação, a democracia parecia tê-la dividido. 25
u " ^ f A multiplicidade de interesses partidários concorrentes dificultava cada vez
aÍS a f o r m a
Y^xf ™ Ção g ° v e r n o | - Depois de 1918 praticamente não havia na Europa
y u m país e m q u e u m g a b i n e t e tivesse p e r m a n e c i d o mais de u m ano n o p o d e r ; a
média era de oito meses na Alemanha e na Áustria, cinco na Itália e m e n o s de qua-
tro na Espanha após 1931. Na Terceira República francesa — m o d e l o ineficaz de
tantas constituições da Europa oriental—, a duração média do gabinete
<L caiu de dez
meses, e m 1870-1914, para oito e m 1914-32 e quatro e m 1932-40^/Esse q u a d r o refle-
tia a falta quase universal de legislaturas bipartidárias estáveis ou de partidos capa-
zes de c o m a n d a r maiorias absolutas. "Restaurar a a u t o r i d a d e d o Estado n u m a
democracia [...] será [...] o primeiro e mais crucial item de nosso p r o g r a m a " , Paul-
Boncour anunciou e m d e z e m b r o de 1932; seu gabinete caiu u m mês depois. Tais
g o v e r n o s n a t u r a l m e n t e e n c o n t r a v a m dificuldades para fazer aprovar r e f o r m a s
socioeconômicas prometidas e m suas constituições e nos p r o g r a m a s dos partidos. 26
32
y
O impasse d o Legislativo provocou reivindicações p o r u m fortalecimento do
V ' '
Executivo. E m Bruxelas, o Centre d'Etudes p o u r la R é f o r m e de 1'Etat exigiu modi-
W ficações n o p r o c e d i m e n t o parlamentar;
• • " R é f o r m e de l'État"
V se t o r n o u u m slogan
popular na política belga. O primeiro-ministro tcheco Benes previu c o r r e t a m e n t e
que, u m a vez resolvida a crise européia, haveria " u m fortalecimento e u m a conso-
lidação do poder executivo comparáveis aos das últimas fases da democracia cons-
titucional liberal européia". Depois de 1945 n ã o se esqueceria esse debate n e m na
Tchecoslováquia, n e m e m qualquer o u t r o país. 2 f
//Revisões constitucionais c o m o propósito de reforçar o Executivo o c o r r e r a m
j / ^ na Polônia e na Lituânia (1926 e 1935), na Áustria (1929) e na Estônia (1933 e 1937).
"j / • c A Constituição espanhola de 1931 — a mais m o d e r n a na Europa do entreguerras —
/Vr ,• a u t o r i z o u a delegação de substancial p o d e r legislativo ao Executivo. Muitos
r\A (v y
" ^ t e m i a m , porém, que tais medidas, e m vez de salvaguardar a democracia, acabassem
•' preparando o caminho para a d i t a d u r a — c o m o aconteceu, p o r exemplo, na Polônia
/ ' de Pilsudski./''Precisamos defender a democracia", o liberal francês Victor Basch
advertiu a Liga dos Direitos do H o m e m e m maio de 1934. "Não aceitaremos a dis-
solução do Parlamento, n e m esses decretos-lei que p o d e m ser constitucionais, mas
contrariam os próprios princípios da democracia." 2 8
33
base n o artigo 48 da Constituição e r a m essenciais para impedir que o governo caís-
se nas mãos de partidos dedicados à completa derrocada da democracia. 29
O uso crescente do artigo 48 tornou difícil determinar e m que ponto a demo-
cracia resvalou e m ditadura. Entre 1925 e 1931 expediram-se apenas dezesseis
decretos de emergência; e m 1931 foram 42, contra 3 5 leis aprovadas pelo Reichstag;
e m 1932, 59 contra cinco. Em 20 de julho de 1932 o chanceler Von Papen recorreu
a u m decreto de emergência para impor a lei marcial na Prússia e depor o governo
social-democrata. Os juristas começaram a falar do "poder ditatorial do presidente
do Reich"; os antiparlamentaristas conservadores p r o p u s e r a m u m a "ditadura
democrática" c o m o alternativa ao parlamentarismo. Não surpreende que juristas
c o m o Schmitt fossem suspeitos de lançar as bases de u m Novo Estado autoritário
— talvez sob o general Schleicher, que apoiava tal solução para manter Hitler à dis-
tância//Em 1932 u m jornal liberal analisou as opiniões de Schmitt n u m artigo que
tinha c o m o subtítulo "Guia constitucional para estudantes de ditadura". 30
O debate constitucional alemão — semelhante a muitas discussões travadas
alhures — elucida o complexo relacionamento entre o autoritarismo e a democra-
cia na atmosfera de crise existente na Europa do entreguerras. Weimar nos anos
1920 era claramente u m a democracia; sob o chanceler Brüning, era menos demo-
crática; sob Von Papen e Schleicher — o predecessor imediato de Hitler — j á esta-
va prestes a se converter n u m Estado autoritário. A maioria das pessoas achava
necessário rever o m o d e l o liberal de democracia parlamentar, mas havia duas
questões importantes: primeiro, e m que medida transferir poderes do Legislativo
para o Executivo; segundo, que função o Parlamento devia ter quando o Executivo
predominasse. Afinal, era raro dissolver p o r completo os parlamentos ou suspen-
dê-los por t e m p o indeterminado; eles persistiram, c o m o sombras, na Alemanha
de Hitler, na Itália fascista e e m muitos Estados autoritários — sinal de que esses
regimes ainda desejavam o tipo de legitimidade popular que as assembléias repre-
sentativas podiam oferecer, qualquer que fosse sua constituição.
A C R I S E DA D E M O C R A C I A
34
ras? Juristas desiludidos diziam que o problema estava não n o excesso de democra-
tismo das constituições, mas n u m a ausência de valores democráticos entre o povo.
Moritz Bonn repetiu a opinião de muitos ao dizer que por trás da crise dos parla-
m e n t o s estava "a crise da vida européia"."/[
r^* Desde o último quartel do século xix, credos antiliberais e antidemocráticos
Y vinham ganhando terreno. Na esteira da Grande Guerra eles difundiram-se rapi-
, damente por meio de u m "evangelho da violência", mais visível n o m o v i m e n t o fas-
«*, cista, p o r é m c o m u m a muitos m e m b r o s do que u m historiador chamaria de "gera-
•
ção de 1914". Criados na guerra, ideólogos extremistas preferiam a violência à .
?y .e r
J
J \ razão, a ação à retórica: de Marinetti a E r n s t j ü n g e r , muitos jovens europeus dos • v
35
"fascistas liberais" e e m "nazistas esclarecidos", que e m entusiasmo e altruísmo
competiriam c o m os ardentes defensores da ditadura. Se a democracia não conse-
guisse mobilizar tais paladinos, alertou, teria pouco futuro. O liberalismo parecia
muito individualista para se adaptar às demandas de u m a era mais coletivista."
^ / / E m 1930, o então chanceler de Weimar, H e r m a n n Müller, afirmou que "uma
democracia sem democratas é u m perigo interno e externo"; mas os fundadores
tf
do constitucionalismo do pós-guerra n ã o d e r a m muita atenção a esse t e m a .
Kelsen, p o r exemplo, expôs o r g u l h o s a m e n t e sua "teoria do direito purgada de
todas as ideologias políticas", que n o entanto, por ser desvinculada da política, não
encontrou adeptos/fele criticou os social-cristãos e os social-democratas por segui-
rem tradições jurídicas diferentes, contaminadas pelo catolicismo político ou pelo
marxismo, p o r é m esses partidos ao m e n o s contavam com muitos membros. Do
p o n t o de vista intelectual, a posição de Kelsen podia ser inatacável; do p o n t o de
vista político, ele ainda vivia c o m as confortáveis ilusões da cultura burguesa do
século xix. A democracia na Europa tinha sido escorada, depois de 1918, por u m a
instável coalizão de forças nacionais e internacionais, que agora ruía e m grande
parte do continente. Simplesmente havia cada vez menos democratas convictos.
/ E m primeiro lugar, os paladinos internacionais da democracia tornaram-se
•a1" cT_ m e n o s fervorosos com o passar do tempo. O liberalismo
. messiânico
. legado p o r
36
lizadas n o e n t r e g u e r r a s . " O a r g u m e n t o positivo p a r a ser liberal" era " m u i t o fraco",
J o h n M a y n a r d Keynes a f i r m o u e m 1 9 2 5 . 0 declínio dos liberais ingleses teve p o u c o
i m p a c t o sobre a estabilidade d o sistema político, m a s n ã o se p o d e dizer o m e s m o
e m relação ao Partido D e m o c r á t i c o de W e i m a r , p o r exemplo, e a o u t r o s p a r t i d o s
liberais clássicos. O sufrágio de massa ameaçava reduzir ao m í n i m o seu papel polí-
tico diante dos g r a n d e s p a r t i d o s de esquerda, d o c o n s e r v a d o r i s m o , d o nacionalis-
m o e d o catolicismo. O m e d o d o c o m u n i s m o , p a r t i c u l a r m e n t e , levou m u i t o s libe-
rais a a d o t a r soluções autoritaristas. A eles se j u n t a r a m o u t r o s tipos de elitistas —
e n g e n h e i r o s , a d m i n i s t r a d o r e s de e m p r e s a s e tecnocratas, q u e d e s e j a v a m soluções
científicas e apolíticas p a r a os males sociais e exasperavam-se c o m a instabilidade e
a incompetência do parlamentarismo:"
A e s q u e r d a e u r o p é i a e n f r a q u e c e u m u i t o c o m a cisão e n t r e social-democratas
e c o m u n i s t a s e n u n c a mais v o l t o u a ser tão f o r t e c o m o e m 1918-9. O s c o m u n i s t a s
o p u n h a m - s e ao q u e r o t u l a v a m de " f o r m a l i s m o b u r g u ê s " — a d e m o c r a c i a parla-
m e n t a r — , m a s n ã o c o n s e g u i a m destruí-lo, e m b o r a se e s f o r ç a s s e m p a r a isso, ao
m e n o s até 1934. C o m a possível exceção da França na década de 1930, eles p e r m a -
n e c e r a m à m a r g e m da política e e m e r g i r a m " n o lado p e r d e d o r de todas as batalhas
eleitorais travadas n o p e r í o d o de e n t r e g u e r r a s " , c o n f o r m e assinala u m historiador
c o n t e m p o r â n e o . "Qualquer j u l g a m e n t o racional definirá c o m o u m fracasso o
d e s e m p e n h o d o c o m u n i s m o na E u r o p a d o p r é - g u e r r a " , conclui D o n a l d Sassoon.
^^ . O s social-democratas n ã o q u e r i a m destruir a d e m o c r a c i a , desde q u e fosse possível
o"' t r a n s f o r m á - l a e m socialismo. "República n ã o é g r a n d e coisa/ Socialismo é o obje-
7'
tivo": essa c a n ç o n e t a r e s u m i a as a t i t u d e s d o SPD [Partido S o c i a l - D e m o c r a t a ale-
m ã o ] c o m relação a Weimar. Tratava-se de u m tipo de a p o i o t e m p o r á r i o , b a s e a d o
nas premissas e ressalvas marxistas, s o b r e t u d o depois q u e se evidenciou q u e mui-
tos dos direitos sociais especificados na s e g u n d a p a r t e da C o n s t i t u i ç ã o de W e i m a r
n ã o sairiam d o papel. Pelo m e n o s u m crítico sagaz previu as c o n s e q ü ê n c i a s ; n o
a u g e da depressão, H e r m a n n Heller alertou: se n ã o c u m p r i s s e sua p r o m e s s a de
t o r n a r - s e u m sozialeRechtsstaat—um Estado c o m j u s t i ç a social e e c o n ô m i c a , con-
f o r m e previa a C o n s t i t u i ç ã o —, W e i m a r degeneraria e m ditadura. A d e m o c r a c i a
sobreviveu s o m e n t e n o s lugares e m q u e os social-democratas e s t a b e l e c e r a m u m a
sólida aliança c o m as p o p u l a ç õ e s r u r a i s — c o m o n a Escandinávia, o caso mais n o t á -
vel — o u c o m os c o n s e r v a d o r e s — c o m o na Bélgica e na I n g l a t e r r a . ' E m o u t r o s paí-
ses, a depressão e o d e s e m p r e g o e m massa s o l a p a r a m os c o m p r o m i s s o s constitu-
y cionais c o m os d i r e i t o s s o c i o e c o n ô m i c o s e os b e n e f í c i o s sociais. A s o l u ç ã o d e
37
eliminar a brecha na esquerda pelo e m p r e g o de u m a estratégia de frente popular
surgiu tarde demais na Alemanha e na Áustria, n ã o conseguiu salvar a república na
Espanha e acabou fracassando igualmente na França, o n d e surgira. 3 ^/
//Muitos conservadores t a m b é m estavam insatisfeitos c o m a democracia d o
entreguerras e ansiavam p o r u m a volta a m o d o s de governo mais elitistas, aristocrá-
ticos e e v e n t u a l m e n t e m o n á r q u i c o s . A c h a v a m q u e o p r o b l e m a da d e m o c r a c i a
estava n o p o d e r que conferia às massas, e m sua suposta incompatibilidade c o m a
autoridade. T a m b é m sob o aspecto ético a democracia os desgostava. Enfatizava
demais os direitos e p o u c o ressaltava os deveres. Gerava egoísmo e interesses locais
e, assim, contribuía para a própria ruína, n ã o conseguindo incentivar u m a consciên-
cia cívica ou u m senso de comunidade, c o m o diziam na década de 1920 muitos de
seus críticos católicos, ortodoxos e nacionalistas. O espanhol De Madariaga propôs
a substituição da democracia liberal p o r u m a "democracia orgânica unânime"; o
francês católico E m m a n u e l Mounier celebrou a queda da Terceira República, e m
1940, clamando por "luta contra o individualismo, senso de responsabilidade, res-
t a u r a ç ã o da autoridade, espírito c o m u n i t á r i o [...] [e] u m a percepção d o h o m e m
completo, c o r p o e alma"; ademais, l e m b r o u a seus leitores q u e d u r a n t e anos prega-
ra a rejeição ao individualismo pernicioso da "democracia liberal e popular". 37 //
Alguns críticos o b s e r v a r a m q u e a d e m o c r a c i a n ã o c o n s e g u i u e n c a r n a r e
expressar a nação c o m o u m todo, c o n f o r m e alardeava. Antes se m o s t r a r a m u i t o
segura: "Nós, a n a ç ã o tchecoslovaca, a f i m de criar u m a u n i ã o mais perfeita da
nação [...]", dizia o p r e â m b u l o da Constituição tcheca de 1920, e m b o r a n i n g u é m
soubesse se os eslovacos, os judeus, os h ú n g a r o s e os alemães d o país se considera-
v a m incluídos nessa frase. H u g o Preuss declarou na Constituição de W e i m a r q u e
"não existe n a ç ã o prussiana ou b á v a r a [...] existe apenas u m a nação alemã, q u e
deve m o l d a r sua organização política na f o r m a de república alemã". E c o n t u d o os
fatos p r o v a r a m o contrário: a Áustria n ã o p ô d e unir-se à nova Alemanha e a Baviera
n ã o conseguiu separar-se; a própria Constituição foi redigida n u m clima de guer-
ra civil. A confiante afirmação burguesa de q u e as constituições liberais reconhe-
ceriam e a l i m e n t a r i a m a nação foi d e s m e n t i d a p r a t i c a m e n t e e m toda p a r t e p o r
cisões étnicas e sociais. C o n s e q ü e n t e m e n t e , aqueles que t i n h a m c o m o prioridade
m á x i m a a u n i d a d e nacional sentiam-se cada vez mais t e n t a d o s p o r f o r m a s de
g o v e r n o mais integrais e autoritárias; a democracia liberal falhara c o m a nação, e
era p e r m i t i d o sacrificá-la p a r a q u e a n a ç ã o sobrevivesse. " Q u a n d o u m a Cons-
tituição se revela inútil", Hitler escreveu ao chanceler Brüning, e m 1931, "a nação
n ã o m o r r e — a Constituição é alterada." 38
38
N ã o surpreende, portanto, que nos anos 1930 muitos perguntassem p o r q u e
se esperara que a democracia florescesse na Europa. Esse tipo de atitude condizia
c o m a busca de pacificação empreendida pelos ingleses. "O parlamentarismo, que
c o n v é m à Grã-Bretanha, talvez convenha a poucos outros países", sentenciou The
Times, defendendo a não-intervenção na Espanha: "Os governos espanhóis recen-
tes t e n t a r a m adaptar-se ao tipo parlamentarista de democracia republicana, m a s
c o m p o u c o sucesso". Desse p o n t o de vista, a crise da democracia na Europa sim-
plesmente provava a superioridade da Inglaterra. 39
N o entanto, esse p o n t o de vista não era exclusivo dos ingleses. Karl Loewens-
tein, c o m o muitos outros, observou que poucos países e u r o p e u s t i n h a m u m a tra-
dição de d e m o c r a c i a própria. E m p o u c o s Estados, a f i r m o u , os h a b i t a n t e s pos-
suíam u m a longa tradição de lutas pelas liberdades populares. A história da Europa
oriental n ã o sugeria que a democracia havia sido u m presente — se n ã o u m a impo-
sição — dos vencedores reunidos e m Versalhes, e não o resultado de u m a mobili-
zação popular? As raízes superficiais da democracia na tradição política da Europa
ajudavam a explicar p o r que regimes antiliberais se estabeleceram c o m t a m a n h a
facilidade e tão poucos protestos. 40
F O R M A S DA D I R E I T A
39
Oakeshott insiste na necessidade de levar a sério as doutrinas — e práticas —
políticas da direita e da esquerda, pois "cada u m a delas pertence a u m a corrente de
tradição [...] e m nossa civilização". O liberalismo perdeu "contato c o m o m u n d o
c o n t e m p o r â n e o " , ao contrário d o fascismo, do c o m u n i s m o , do catolicismo políti-
co e d o nacional-socialismo, e poderia aprender c o m eles. "A democracia deveria
aprender c o m o exemplo extremo d o fascismo a reconciliar a liberdade individual
c o m a regulamentação e o controle das questões sociais, necessários ao bem-estar
geral", c o m e n t o u u m estudioso da Itália de Mussolini. " C o n h e c e n d o a experiência
fascista, ela p o d e p e r c e b e r a inutilidade de aplicar ao m u n d o c o n t e m p o r â n e o
padrões d o século xix." U m j o v e m diplomata americano c h a m a d o George Kennan
concluiu q u e "o despotismo benevolente tinha maiores possibilidades de fazer o
b e m " q u e a democracia e p r o p ô s que os Estados Unidos t a m b é m enveredassem
"pelo c a m i n h o que c o n d u z ao Estado autoritário pela m u d a n ç a constitucional". 4 2
C o n s i d e r a n d o o irracionalismo explícito da direita e sua preferência p o r ação
e intuição e m d e t r i m e n t o de razão e lógica, p o d e parecer e s t r a n h o levar a sério
quaisquer teorias de Estado autoritário. Intelectuais de direita, c o m o Carl Schmitt
o u M a r t i n Heidegger, invariavelmente se d e c e p c i o n a r a m c o m as realidades da
direita; h o m e n s c o m o Mussolini e Hitler a s s u m i r a m e expressaram suas idéias s e m
hesitação. Por o u t r o lado, pode-se facilmente exagerar o irracionalismo da direita.
Ela t a m b é m tinha sua teoria (ou teorias) política e sua jurisprudência própria, acei-
tas p o r milhões de pessoas, e suas tradições, n ã o m e n o s poderosas n e m m e n o s pro-
gressistas q u e as d o liberalismo. " N o g r a n d e laboratório do m u n d o atual", decla-
rou e m 1934 o ditador p o r t u g u ê s Salazar,
40
direita — entre autoritaristas, conservadores, tecnocratas e extremistas. Só na
França a guerra civil entre esquerda e direita prosseguiu nos anos 1930, até Vichy. Mas
já havia eclodido na Áustria (por u m breve período de 1934) e na Espanha (onde se
estendeu por mais t e m p o e t e r m i n o u c o m o triunfo da direita). Na Itália, na Europa
central e nos Bálcãs a direita detinha o poder. Os regimes variavam da ditadura
monárquica do rei Carol, na Romênia, ao Estado de partido único na Alemanha e na
Itália, passando pelo governo militar na Espanha, na Grécia e na Hungria. N e m todos
e r a m fascistas; na verdade, alguns consideravam os fascistas seus maiores inimigos.
Á diferença crucial era entre a velha direita, que queria atrasar o relógio para
voltar a u m a época elitista pré-democrática, e a nova direita, que t o m o u e m a n t e -
ve o p o d e r c o m os i n s t r u m e n t o s da política de massas. A primeira incluía o gene-
ral Franco e o ditador grego Metaxas, h o m e n s que t e m i a m a política de massas e se
^ aliaram a bastiões da o r d e m estabelecida, c o m o a m o n a r q u i a e a Igreja. Nos Bálcãs,
a direita regrediu ao século xix, q u a n d o u m m o n a r c a forte e autocrático escolhia
seus ministros, supervisionava os partidos políticos e organizava eleições rigida-
m e n t e controladas.
A nova direita radical, e m c o n t r a p a r t i d a , c h e g o u ao p o d e r na Itália e na
V Alemanha por m e i o de eleições e do processo parlamentar. Seu i n s t r u m e n t o foi o
> partido, q u e lhe conferiu legitimidade e p o d e r n u m a época de sufrágio universal,
V
vo- assim lhe p e r m i t i n d o suplantar e e n f r a q u e c e r conservadores obsoletos, m e n o s
habituados c o m o novo j o g o da política de massas. Q u a n d o explicou ao chanceler
B r ü n i n g q u e "a tese f u n d a m e n t a l da d e m o c r a c i a é: ' T o d o o p o d e r e m a n a d o
p o v o " ' , Hitler estava f a l a n d o c o m o o líder de u m p a r t i d o vitorioso nas u r n a s .
M o v i m e n t o s a b r a n g e n t e s , c o m o o NSDAP (O P a r t i d o Nacional-Socialista dos
Trabalhadores Alemães), e r a m os autênticos sucessores dos impulsos populistas
da década de 1920, pois reconheciam o t r e m e n d o p o d e r i n c o r p o r a d o na reivindi-
cação popular p o r u m governo representativo. A verdadeira tensão entre a velha e
a nova direita evidenciava-se mais e m países c o m o a Áustria, a Hungria e a Romênia,
onde, nos anos 1930, eclodiram conflitos políticos mortais entre conservadores e
nacionalistas radicais.
//Naturalmente, essa nova direita, apesar de usar o partido de massas c o m o veí-
culo para o poder, insistia e m que n ã o estava d a n d o continuidade ao j o g o parla-
m e n t a r e p r o p u n h a alternativas ao parlamentarismo a fim de satisfazer a reivindi-
X^J cação p o r f o r m a s unificadoras de política participativa q u e surgiu depois de 1918.
Pioneiro e enaltecido, o Estado c o r p o r a t i v o de Mussolini evoluiu na década de
9
V " 41
1920 e m meio a muita fanfarra e grande interesse internacional. Alardeou-se o cor-
porativismo italiano c o m o u m meio tipicamente fascista de organizar a represen-
tação da sociedade p o r m e i o de associações de p r o d u t o r e s e n ã o de classes. "O
Estado corporativo é para Mussolini o que o N e w Deal é para Roosevelt", declarou
e m 1934 a revista Fortune.1
/ N a verdade, o corporativismo era u m a farsa, encobrindo a sujeição dos tra-
balhadores p o r p a r t e do fascismo e sua colaboração c o m a elite empresarial.
Entretanto, era sedutor p o r q u e a p a r e n t e m e n t e apontava o c a m i n h o para u m a
v
V- forma de representação política menos divisória e mais orgânica. Até m e s m o seu
V3 ^
caráter hierárquico parecia comprovar sua m o d e r n i d a d e essencial. 'A Itália nos
mostra que essa autoridade central pode ser u m a emanação direta da estrutura sin-
I dical nacional existente — u m a elite escolhida livremente que, inspirada e m novos
ideais de direito social e justiça social, está disposta e capacitada a limitar, por meio
de suas organizações dependentes, a liberdade de u m n o interesse de muitos",
escreveu na década de 1930 u m estudioso da política fascista. K Jl
/ / E m outros lugares adotaram-se esquemas semelhantes. E m 1933 Antônio
Salazar p r o m u l g o u e m Portugal u m a nova Constituição, que declarava o país u m a
república corporativa e unitária. Os direitos individuais sucumbiram ante o poder
N conferido ao governo para limitá-los "pelo b e m c o m u m " . U m vestígio de Parla-
^ ( m e n t o sobreviveu — c o m o na A l e m a n h a nazista —, mas os partidos políticos
f o r a m banidos e o primeiro-ministro governava por decreto-lei. A Câmara Alta tor-
nou-se Câmara Corporativa, e as relações industriais foram remodeladas de acor-
d o c o m o p e n s a m e n t o orgânico católico p o r m e i o do Estatuto Nacional d o
Trabalho, que proscreveu greves de toda espécie, acabou c o m os sindicatos inde-
pendentes e levou à criação de guildas nacionais. Dessa forma, a luta de classes e o
conflito capitalista cederam lugar — ao m e n o s e m teoria — à harmonia e à coope-
ração. C o m o na Itália, porém, a teoria revelou-se unilateral — o m e d o do comu-
nismo geralmente atenuou a hostilidade dos católicos contra os capitalistas —, e
os empresários preservaram grande parte de sua autonomia.^:
^ N a Áustria dilacerada pela depressão, a Constituição democrática de H a n s
Kelsen fora vista com desconfiança pelos austro-marxistas, c o m hostilidade pelo
* ! ^ Grossdeutsch Volkspartei (liberais pró-alemães) e com indiferença pelos social-
cristãos, q u e estavam mais interessados n o próprio corporativismo católico. O
chanceler Dollfuss resolveu a tensão entre a marxista Viena e as províncias católi-
cas primeiro suspendendo o governo parlamentar (em 4 de março de 1933, oito
42
dias antes de Hitler imitá-lo na Alemanha) e depois, n o ano seguinte, ordenando
u m ataque militar aos grandes conjuntos habitacionais socialistas da capital. C o m
a destruição da Viena Vermelha — mais u m golpe terrível para a esquerda na
Europa —, Dollfuss instaurou u m regime autoritário católico que substituiu o libe-
ralismo e a democracia pela doutrina de u m "Estado corporativo alemão cristão".^;
'Assim, Áustria e Portugal foram os primeiros a adotar o tipo de nacionalismo
> cristão que mais tarde se introduziria na Eslováquia, na Espanha, na Grécia, na
Croácia e na França de Vichy, b e m c o m o na política direitista da Polônia, da
Hungria e da Romênia. O resultado foi o anti-semitismo violento. Q u a n d o u m
estudante insano assassinou o filósofo Moritz Schlick n o saguão da Universidade
de Viena, u m jornal católico nacionalista reagiu nos seguintes termos:
Gostaríamos de lembrar a todos que somos cristãos, vivemos num Estado alemão
cristão, e cabe a nós decidir qual filosofia é boa e adequada. Que a filosofia judaica se
limite ao instituto cultural judaico! As cátedras de filosofia da universidade vienense,
na Áustria alemã cristã, pertencem aos filósofos cristãos! Recentemente, tem-se
explicado repetidas vezes que uma solução pacífica para a questão judaica na Áustria
interessa também aos judeus, pois a alternativa inevitável é uma solução violenta.
Esperamos que o terrível assassinato na universidade vienense sirva para inspirar
uma solução realmente satisfatória para a questão judaica!48
43
constituía u m credo universal ou se fora concebida especificamente para os ale-
m ã e s católicos. Por sua vez, o nacional-socialismo era anti-religioso e explicita-
m e n t e nacionalista. " O nacional-socialismo c o n t r a p õ e o d o g m a da ciência interna-
cional e universalista d o liberalismo, segundo o qual todos os seres h u m a n o s são
iguais, ao c o n h e c i m e n t o da diferença racial", a f i r m o u e m 1940 o filósofo austríaco
Ferdinand Weinhandl. 4 9
D e todos os ataques da direita ao liberalismo parlamentar, o nacional-socia-
lismo foi, pois, o mais extremo, o mais inflexível: se os parlamentos deixaram de ser
a sede da legitimidade, t a m p o u c o o e r a m a Igreja e, m u i t o menos, a m o n a r q u i a .
Por isso a Áustria de Dollfuss, a Espanha de Franco e a Romênia de Antonescu, que
r e c o n h e c e r a m e conviveram c o m as bases tradicionais da autoridade, diferencia-
vam-se d o Terceiro Reich. U m tipo de direita defendeu a velha o r d e m contra as for-
ças da política de massas; o o u t r o u s o u essas forças n u m a tentativa revolucionária
de r e f o r m a r a própria sociedade. Até a Itália fascista permitiu que o rei e a Igreja
coexistissem c o m o regime. Na Alemanha nazista, p o r é m , a legitimidade residia
u n i c a m e n t e na vontade popular, manifestada nos decretos d o Führer. 50
A LEI E O E S T A D O N A C I O N A L - S O C I A L I S T A
44
nacionalistas revelaram-se e m sua tolerância c o m a e x t r e m a direita. Depois de
1933, elas se a d a p t a r a m às novas circunstâncias, consolando-se c o m a idéia de que
o nacional-socialismo era u m a c o n t i n u a ç ã o legal dos r e g i m e s anteriores. N o
entanto, logo se evidenciou que, por trás da fachada de legalidade, o r e g i m e acalen-
tava aspirações revolucionárias. 52
yv
•rO Para começar, os nazistas repudiaram explicitamente os valores da jurispru-
{
45
nara-se u m "Estado dual", u m a incessante enxurrada de decretos arbitrários expe-
didos pela liderança política erodindo o código ordinário. Aboliram-se as restrições
à polícia, e c o m u m e n t e a G e s t a p o p r e n d i a pessoas q u e h a v i a m sido absolvidas
pelos tribunais e as enviava para os c a m p o s de concentração. Chocados c o m essa
conduta, s o b r e t u d o p o r q u e ela feria a dignidade da corte, alguns juizes negociaram
u m a série de acordos c o m a Gestapo, c o m p r o m e t e n d o - s e a informá-la sobre as
absolvições prováveis. Por seu t u r n o , a Gestapo c o m p r o m e t e u - s e a ser mais discre-
ta ao efetuar prisões de réus absolvidos. 5 4 /
C o m freqüência os advogados antecipavam-se aos desejos da liderança políti-
ca. Mais de u m ano antes de promulgar-se e m N u r e m b e r g a "Lei pela Proteção do
Sangue Alemão e da H o n r a Alemã", que proibia os casamentos "racialmente mis-
tos", muitos juizes e outros funcionários d o governo já se recusavam a unir casais
c o m u m c o m p o n e n t e j u d e u . E m j a n e i r o d e 1934 o m i n i s t r o d o Interior, Frick,
teve de l e m b r a r aos funcionários as n o r m a s existentes, ordenando-lhes q u e reali-
z a s s e m as cerimônias nupciais de a c o r d o c o m as leis e m vigor, m e s m o q u a n d o
parecessem "não se h a r m o n i z a r i n t e i r a m e n t e c o m as idéias nacional-socialistas". 55
/ A idéia nazista era q u e o "saudável s e n t i m e n t o da raça" devia prevalecer sobre
os "critérios jurídicos formais". Segundo u m juiz d o Landgericht de Berlim,"e errô-
n e o pensar q u e cabe ao governo d e t e r m i n a r t o d o ato contra os judeus. Se assim
fosse, n ã o se admitiria u m a interpretação da lei desvantajosa para os j u d e u s e estes
gozariam da proteção da lei. E v i d e n t e m e n t e isso n ã o faz sentido"// 6
Eram cerca de nove horas da noite. Eu havia encerrado minhas consultas e descansa-
va no sofá, lendo um livro sobre Matthias Grünewald, quando subitamente as pare-
des de minha sala e, depois, as de meu apartamento sumiram. Olhei ao redor e, para
meu horror, descobri que nenhum apartamento ao alcance de minha vista tinha pare-
des. Então ouvi um alto-falante anunciar: "Em conformidade com o decreto do dia
17 deste mês, referente à abolição das paredes [...] ",58
Depois de registrar esse pesadelo, o médico sonhou que havia sido acusado
de registrar sonhos. Até dormir deixara de ser algo privado.
^ á que não se reconhecia a liberdade de consciência, u m a testemunha de Jeová
« ^ que dissesse apenas "Heil", e m vez de "Heil Hitler" (por acreditar que tal saudação
deveria dirigir-se unicamente a Deus), podia perder o emprego por justa causa. As
crianças educadas de acordo c o m valores tidos c o m o incompatíveis c o m os da
Juventude Hitlerista podiam ser transferidas para u m lar de adoção, já que seus pais
as "negligenciavam". E m 1938, por exemplo, u m a família desintegrou-se porque o
pai não permitiu que os filhos ingressassem na Juventude Hitlerista. Segundo o tri-
bunal local, ele "abusou de seu direito de custódia da prole". 59 /
Essa eliminação da distinção entre a esfera privada e a pública é importante na
avaliação das atitudes populares e m relação aos nazistas. N u m a democracia, os
-cidadãos livres escolhem q u e m vão apoiar e que grau de fervor darão a seu apoio.
Terceiro Reich, entretanto, qualquer sentimento inferior a entusiasmo podia
ser considerado potencialmente subversivo e, portanto, passível de punição. A opi-
nião pública não existia, pois não tinha meios de expressar-se; como, então, medir
òYsp-^' a popularidade do regime?/
47
//Discutindo, por exemplo, se u m cidadão tinha o dever de hastear a suástica
nas ocasiões festivas, u m comentarista argumentou que, embora não houvesse
)>y dever legal, abster-se de fazê-lo podia indicar falta de entusiasmo pelo nacional-
1 1
.^ socialismo: a solução, prosseguiu, talvez fosse uma temporada n u m campo de con-
centraçãc/Em outro caso, u m funcionário público foi processado por recusar-se a
doar dinheiro para o Fundo de Assistência aos Desabrigados. O réu alegou que
i/^ fizera generosas doações a várias outras causas e reclamou o direito de escolher a
obra de caridade que queria ajudar, até porque as doações para o Fundo de
Assistência aos Desabrigados eram "voluntárias". Não conseguiu, todavia, conven-
cer o tribunal, que concluiu: "Sua concepção de liberdade é de u m caráter extremo
[...] Para o acusado, liberdade corresponde ao direito de negligenciar todos os seus
deveres, exceto os que são explicitamente impostos pela lei". Isso o levara a "um
execrável abuso da liberdade que o Führer concedera na absoluta confiança de que
o povo alemão não a mal-usaria".''0^
y. HNesse contexto, em que se recusava ao indivíduo o exercício do livre julga-
mento, não era fácil para os observadores — fossem da polícia secreta, fossem da
1
"oposição clandestina — avaliar o sentimento popular em relação ao regime.
, Falava-se abertamente sobre questões específicas, como preço dos alimentos, tra-
tamento reservado aos judeus, política externa, Igreja; mas, por motivos óbvios,
era rara a emissão de opiniões abrangentes acerca do regime.
Podemos, contudo, identificar algumas tendências gerais. Na Alemanha
nazista, como na Itália e na Rússia, países de partido único, a população habitual-
mente estabelecia uma distinção entre o líder e a máquina do partido. Muitas vezes
expressava ao mesmo tempo desagrado com a conduta de, funcionários locais e
admiração, reverência, até adoração pela figura do c h e f e / O historiador italiano
„ Emilio Gentile falou a respeito da "sacralização da política" sob Mussolini. Os cul-
tos do líder — o Duce, Hitler ou Stalin — ajudavam a unificar e integrar popula-
ções e reconciliá-las com regimes de resto impopulares. 61 Essa "sacralização da
política" envolvia grandes gastos com edifícios e praças monumentais, eventos e
o! p
publicações de propaganda. Gigantescos comícios, desfiles e marchas compu-
nham o ritual e projetavam u m senso de poder que sublinhava a atomização e a
impotência do indivíduo. N u m m u n d o de inimigos, o líder proporcionava inspira-
ção e segurança. Mas os cultos do líder t a m b é m eram propagados pelas formas
comuns da vida moderna — a difusão do rádio, a expansão da alfabetização e a
escolaridade crescente, b e m como a militarização da vida comunitária em geral/
48
t*
\ V' 1^ ã o se trata
s i m p l e s m e n t e de u m p r o c e s s o e m q u e os r e g i m e s p o d e r o s o s ilu-
n r'
d i a m o p o v o m e d i a n t e c e n s u r a e m a n i p u l a ç ã o . Trata-se, antes, d e u m a história de
valores p a r t i l h a d o s e discutidos c o n j u n t a m e n t e pela liderança e pela p o p u l a ç ã o .
O s p r o j e t o s u t ó p i c o s f u n d a m e n t a i s — c o n s t r u ç ã o d o socialismo e m u m só país, de
\ s u m a Volksgemeinschaft a l e m ã o u d e u m a Itália imperial — a p r e s e n t a v a m i m a g e n s
fu-~ «f positivas de u m a n a ç ã o nova, indivisa, e estavam l o n g e de ser i m p o p u l a r e s . A g o r a
as q u e s t õ e s políticas e r a m debatidas n ã o e n t r e partidos, m a s d e n t r o d o ú n i c o par-
tido possível o u p o r i n t e r m é d i o d o s ministérios e o u t r a s instituições públicas e pri-
vadas. A o p o s i ç ã o a aspectos d o r e g i m e podia, assim, expressar-se de m u i t a s m a n e i -
ras, a l é m da t o t a l r e j e i ç ã o a o s i s t e m a : nas d i s p u t a s i n t e r n a s d o p a r t i d o havia a
possibilidade d e a l i n h a m e n t o s c o m as pessoas " n o r m a i s " , c o n t r a os fanáticos, o u
c o m os "idealistas", c o n t r a os c o n f o r m i s t a s . '
O alto g r a u de a p o i o ao Reich e m t e m p o de p a z revela-se t a m b é m de o u t r a s
f o r m a s . É ó b v i o q u e o r e g i m e nazista u s o u a lei e a polícia c o m o i n s t r u m e n t o s
repressivos p a r a o b t e r a obediência das massas. A n t e s de 1939, seus tribunais pro-
n u n c i a r a m m i l h a r e s de c o n d e n a ç õ e s à p e n a m á x i m a ; c o n s i d e r a n d o - s e q u e n o
m e s m o p e r í o d o f o r a m c o n d e n a d o s à m o r t e n a Itália fascista 29 prisioneiros políti-
cos e q u e n o J a p ã o esse n ú m e r o foi
m e n o r , a relativa severidade da lei nazista se des-
taca. P o r o u t r o lado, os p o d e r e s coercitivos d o Estado p r a t i c a m e n t e n u n c a se evi-
d e n c i a r a m t a n t o n a A l e m a n h a nazista e m t e m p o d e p a z c o m o na U n i ã o Soviética
de Stalin: os c a m p o s de c o n c e n t r a ç ã o nazistas a b r i g a r a m na década de 1930 e n t r e
25 mil e 50 mil prisioneiros, e n q u a n t o n o s gulags havia milhões. H o j e aquelas teo-
rias d e t o t a l i t a r i s m o e l a b o r a d a s n o s a n o s 1950, q u e p o s t u l a v a m u m e s t a d o d e coi-
sas n o qual u m a p e q u e n a elite controlava u m a vasta p o p u l a ç ã o p e l o terror, pare-
c e m cada vez mais u m a confortável ilusão, c u j o efeito é fechar-nos os olhos p a r a a
\, V estabilidade d o s r e g i m e s n ã o - d e m o c r á t i c o s da E u r o p a n o e n t r e g u e r r a s / ) Terceiro
Reich n ã o se f u n d a m e n t a v a a p e n a s na repressão, n e m era essa a única f u n ç ã o de
seu sistema jurídico. A maioria dos a l e m ã e s n ã o v o t o u e m Hitler, m a s t a m p o u c o
se o p ô s a ele. As pessoas a c e i t a r a m a nova situação, e o r e g i m e t o r n o u - s e p a r t e da
vida normal.";/
//As d i f e r e n ç a s e n t r e os m a i o r e s E s t a d o s e u r o p e u s d e p a r t i d o ú n i c o — a
A l e m a n h a nazista e a Rússia soviética — s u p e r a m as s e m e l h a n ç a s . O n a z i s m o che-
N; , g o u ao p o d e r c o m o a p o i o das u r n a s , e n q u a n t o o c o m u n i s m o r e c o r r e u ao g o l p e de
;
V Estado. O Terceiro Reich era g o v e r n a d o p o r u m g r a n d e partido, c u j o líder d e t i n h a
vV
^ y1 u m p o d e r i n c o n t e s t e t a n t o e m seu interior q u a n t o n o país c o m o u m t o d o . A U n i ã o
Soviética, c o m o d o b r o da população espalhada n u m imenso território, possuía u m
partido mais ou m e n o s d o m e s m o t a m a n h o , dividido p o r tensões internas e exter-
nas, c o n t u r b a d o pela aguda crise sucessória que se seguiu à m o r t e de Lenin e lide-
r a d o p o r u m indivíduo cioso d e sua posição c o m o primus inter pares. E n q u a n t o
Hitler valorizava seus "velhos guerreiros", que o reconheciam c o m o Führer, Stalin
expulsou d o partido seus antigos c o m p a n h e i r o s a f i m de fortalecer seu p o d e r pes-
soal. A Noite dos Longos Punhais, apesar de toda a sua brutalidade, n ã o afetou a
maioria do partido; entretanto, n o final da década de 1930 o Partido C o m u n i s t a
tinha p o u c o e m c o m u m c o m a força revolucionária criada p o r Lenin "jj
)}Esses contrastes refletem o diferente propósito ideológico do partido nos dois
casos. A Alemanha de Hitler era a m a i o r potência industrial da Europa, c o m u m a
força de trabalho a l t a m e n t e instruída; o objetivo d o NSDAP n o â m b i t o nacional con-
sistia na criação de u m estado d o bem-estar racial — a Volksgemeinschaft—que em
seus aspectos t a n t o construtivos c o m o coercitivos utilizou e expandiu tradições
assistenciais mais antigas. I n t e r n a m e n t e , suas principais vítimas constituíam u m a
p e q u e n a minoria, ao contrário dos milhões de camponeses alvejados pelos bolche-
viques, cujo objetivo era m u i t o mais radical: abolir a propriedade privada, desen-
volver u m a nova nacionalidade soviética q u e mantivesse a União coesa e transfor-
m a r a e c o n o m i a agrícola mais atrasada da E u r o p a , c o n d e n s a n d o n u m a única
década u m a revolução industrial que e m o u t r o s países se estendera p o r boa parte
d o final do século xix. Daí as extraordinárias pressões e tensões que os bolcheviques
e n f r e n t a r a m ao tentar i m p o r esse projeto. É a diferença entre esses dois empreen-
d i m e n t o s q u e explica os diversos níveis de violência interna praticada pelos dois
países n a década de 1930.;'
50
Os radicais nazistas viram o destino inglório do Partido Fascista na Itália, que,
após a conquista d o poder, fora absorvido pela m á q u i n a do Estado e tivera de aban-
d o n a r quaisquer idéias de u m a revolução fascista radical. Os líderes d o Terceiro
Reich t i n h a m aspirações distintas. ^Enquanto Mussolini deificou o Estado, Hitler
insistiu na necessidade de controlar sua inércia e passividade u s a n d o o d i n a m i s m o
s -s-^ d o partido. " N ã o é o Estado q u e nos c o m a n d a , s o m o s nós q u e c o m a n d a m o s o
< ^ Estado", declarou n o congresso d o partido, e m 1934. A m e n s a g e m política do par-
y" tido devia "penetrar n o coração das massas, pois é o veículo maior e mais forte de
nossa convicção". C o m que finalidade? O gigantesco p r o g r a m a de r e a r m a m e n t o
lançado na década de 1930 nos dá a pista. Para o Führer — c o m os olhos voltados
para os milhões de alemães que viviam fora das fronteiras d o Reich —, só podia
haver u m a resposta. S o m e n t e na guerra se poderia realizar o p r o j e t o nazista de sal-
vação racial da nação alemã.1'5,';
51