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INTRODUÇÃO

Salvador Allende Gossens nasceu no dia 26 de junho de 1908 em Santiago, no Chile.


Formou-se em Medicina em 1932 e foi eleito presidente do Chile em 1970 pelo partido
marxista da Unidade Popular. Entretanto, em 1973 o general Augusto José Ramón Pinochet
Ugarte, com a ajuda dos Estados Unidos, lidera um golpe de Estado que derruba o governo de
Allende, que é morto em combate no Palácio de la Moneda. O regime imposto por Pinochet
foi marcado por violências e repressões, sendo considerado um dos regimes de ditadura mais
violentos da América Latina, exterminando cerca de 3.196 vítimas, entre mortos e
desaparecidos.1
A proposta deste trabalho consiste em discutir o mito do Salvador Allende que
preserva uma imagem positiva na historiografia oficial do Chile. Para tanto o primeiro passo
será entender como uma nação constitui uma indivíduo como herói e os motivos que levaram
a conceder este título a Allende.

1
MARIANO, Nilson. As garras do condor: como a ditaduras militares da Argentina, do Chile, do Uruguai, do
Brasil, da Bolívia e do Paraguai se associaram para eliminar adversários políticos. Petrópolis, (RJ): Vozes, 2003.
324 p.

3
SALVADOR ALLENDE, UM MITO?

O processo para implantação da ditadura no Chile nos anos 70 marcou o imaginário


histórico político do Chile, destacando uma das pessoas mais importantes da história chilena,
o Salvador Allende. A indiscutível coragem deste chileno e seu último discurso transmitido
através de uma rádio enquanto o palácio onde ele estava era bombardeado pelas forças
golpistas do exército chileno, transformou-no em um mito histórico. Entretanto, a figura do
Salvador Allende como mito da história chilena, agregando a ele características de um ideal
político, trouxe críticas à historiografia chilena quanto à criação desta imagem, no qual
apresenta algumas incongruências. Para compreensão do uso da figura do Salvador Allende
como um herói da história chilena, pode-se basear na discussão do sociólogo Anthony D.
Smith sobre nacionalismo.
De acordo Smith, o nacionalismo pode ser entendido como uma cultura ou forma de
identidade, sobretudo como uma ideologia política ou até mesmo um movimento social. O
autor define o nacionalismo como uma forma de alcançar e sustentar sua identidade nacional,
constituindo formas e padrões pelos quais moldem a nação. Smith dirá ainda que o
nacionalismo tende a recuperar a história da nação fortalecendo o sentido de patriotismo. Para
Smith a autonomia é a principal tarefa que cabe ao nacionalismo, uma vez com que todos os
membros de uma nação possam pensar coletivamente, ou seja, de uma forma autêntica. Os
símbolos são uma forma de inserir nesta sociedade as formas de pensar libertando os
indivíduos de “idéias e modos estranhos”, tornando-os numa pessoa com espírito coletivo.

Neles estão incluídos os atributos óbvios das nações – bandeiras, heróis,


hinos, paradas, moedas, capitais, juramentos, costumes populares, museus de
folclore, memoriais de guerra, cerimônia de aos mortos nacionais,
passaportes, fronteiras – bem como aspectos mais ocultos, tais como
recriações nacionais, regiões rurais, heróis e heroínas populares, contos de
fadas, formas de etiqueta, procedimentos legais, práticas educacionais e
códigos militares – todos os costumes, hábitos, estilos e formas de agir e de
sentir distintos, partilhados pelos membros de uma comunidade de cultura
histórica. 2

Allende aparece na história chilena como um herói, protetor da democracia e da


igualdade social e econômica, fundamentados pela sua forma de agir e defender a democracia
e o país das mãos do terrorismo ameaçado pelos partidos da direita.
Percebe-se a figura de Allende como um mito da história chilena na biografia escrita
pelo poeta e crítico chileno Fernando Alegría. O chileno expõe Allende como um cavalheiro

2
SMITH, Anthony D. A identidade nacional. Lisboa: Gradiva, 1997. Pág. 101.

4
chileno imbuído de coragem que sacrificou sua vida em nome da pátria. Nesta biografia
Allende aparece como um defensor da pátria, sendo enfatizados os principais feitos de sua
trajetória política, comprometendo-se com a nacionalização da economia, lutando pela
permanência da democracia, denunciando a conspiração dos regimes repressivos que
ameaçavam se instalar pela América Latina, entre outros feitos.

O líder das assembléias e das batalhas eleitorais, o tribuno eloqüente, protetor dos
marginalizados do Chile, assumia agora o posto de um genuíno combatente numa
revolução libertadora: podia dizer, no final que morria como um Pai da Pátria. 3

Essa mesma imagem positiva do Salvador Allende pode ser observada também nos
relatos de Darcy Ribeiro, antropólogo e escritor político, em seu livro “Gentidades”, onde em
um de seus ensaios emblemáticos, ele escreve sobre Allende, em 1973 logo após sua morte.
Ribeiro faz um breve relato sobre a trajetória política de Allende em um escrito repleto de
sentimentos e perplexidade.

Escrevo sobre um bravo homem. Um herói-mártir a mais que a história nos brinda, quando o
que quiséramos era tê-lo conosco nas lutas para conquistar a condição de povos autônomos que
existam para si mesmo e vivam segundo seu próprio projeto.
Escrevo sobre um estadista. O mais lúcido com quem convivi e o mais combativo. Um
estadista que deixa como legado para nossa reflexão a experiência revolucionária mais
generosa e avançada do nosso tempo, edificar o socialismo em democracia, pluralismo e
liberdade. 4

De acordo com Ribeiro, Allende lutou o quanto pôde para manter o Estado seguro das
repressões da direita, clamando ao povo pela defesa da democracia, dirigindo um processo
complexo de elevação do Chile “a alturas incomparáveis de criatividade teórica e a
impensáveis ousadias de repensar tudo o que as esquerdas tinham como dogma” 5.
Entretanto, o filósofo chileno Víctor Farías, discorda da historiografia oficial chilena
referente a Allende, e faz uma extraordinária discussão da história política chilena onde
revelou uma outra visão sobre a personalidade do ex-presidente chileno, contrária a todas as
fontes historiográficas já divulgadas.
Farías acredita que a derrota de Allende deveu-se tão somente a sua incapacidade
política, revolucionária e intelectual, e, considera o partido da Unidade Popular como
irresponsável, pois não soube transcender o governo chileno ao socialismo, visto que o Chile
era um país conservador.

3
ALEGRIA, Fernando. Salvador Allende. São Paulo: Brasiliense, 1983. Pág. 91
4
RIBEIRO, Darcy, 1922. Gentidades. Porto Alegre: L&PM, 1999. Págs. 119-120.
5
Idem. Pág. 123.

5
Mas sua crítica em relação ao ex-presidente chileno se deve também ao fato de que,
durante seu governo, Allende teria protegido um dos maiores criminosos nazistas que
assassinou milhares de judeus, Walther Rauff, também responsável pelo sistema de
implementação dos caminhões de gás, também responsável pela exterminação de milhares de
pessoas. Essas evidências colocam a imagem do Salvador Allende como um representante do
perigo que o Chile corria em cair nas mãos do mundo nazi-fascista.
De acordo com Farías, durante o governo de Allende, o nazi-fascismo obteve um certo
crescimento no Chile e tais criminosos não eram obrigados a responder por seus atos e, desta
forma, a imagem de Allende passa de um “salvador da pátria” a delinqüente.

... socialista e revolucionário, figura paradigmática para o intento de implementar um


socialismo de rosto humano ‘ em pluralismo, democracia e liberdade’, aparecia como
encobridor solícito de um dos maiores criminosos que a humanidade conheceu.6

Farías deixa claro que, embora o regime de Pinochet seja marcado pela repressão, o
governo de Allende não escapa de seus delitos cometidos, quando permite e protege o nazi-
fascismo dentro do Chile.
Farías enfatiza ainda que vários historiadores esquerdistas se recusam a escrever
biografias sobre Allende, visto que, poderiam correr o risco de serem expulsos de seu partido
caso escrevessem rigorosamente a vida do chileno, contrariando, desta forma, os partidos da
esquerda. Coube a Farías este papel, desvendar a biografia completa do chileno, o que trás
incongruências com a imagem criada pela biografia oficial, criando-se uma ruptura com a
historiografia chilena.
Farías começa seu trabalho explorando o primeiro texto acadêmico escrito por
Allende, sua tese “Higiene mental e delinqüência”, e também o texto “Memória” encontrado
por ele a alguns meses antes de escrever seu livro. Farías faz um estudo destes dois textos e
percebe que há indícios de preconceito e aproximação do anti-semitismo pregado por Adolf
Hitler na Alemanha nazista. Com estes relatos Allende faz uma campanha a favor da limpeza
étnica, levando a exterminação de várias pessoas consideradas esquizofrênicas ou com
enfermidades que supunham ser incuráveis. Farías relata ainda que quando Allende foi
ministro da Salubridade do governo da Frente Popular, ele lutou para que suas idéias fossem
colocadas em prática. Em 1939 anunciou um projeto de Esterilização de Alienados Mentais
apoiando sua elaboração e implementação. Tal projeto era ligado a pessoas pertencentes ao
partido nazista e pretendia eliminar as pessoas que eram consideradas enfermas mentais
transmitidas por hereditariedade. Vejamos abaixo dois artigos composto neste projeto:

6
FARIAS, Victor. Salvador Allende: anti-semitismo e eutanásia. Osasco, SP: Novo Século, 2006. Pág. 18

6
Artigo 1º - Toda pessoa que sofra de uma enfermidade mental que, de acordo com os
conhecimentos médicos, possa transmitir à sua descendência, poderá ser esterilizada,
em conformidade às disposições desta lei.
(...)
Artigo 23º - Todas as resoluções ditadas pelos Tribunais de Esterilização serão
obrigatórias para toda pessoa ou autoridade, e se levarão a efeito, com caso de
resistência, com auxílio da força pública.7

Fica evidente a aproximação que há entre as propostas deste projeto, pregado por
Allende, com o nazismo alemão. Tais conclusões permitem a Farías desmistificar a imagem,
já enraizada na historiografia chilena, de um Allende dotado apenas de características
positivas que o consagrou como um herói nacional e conclui que

Por certo, a biografia de Salvador Allende, como a de qualquer ser humano, não será
uma cadeia ininterrupta de inconseqüências ou fatos lamentáveis. Mas o caráter dessas
fissuras na figuras oficial exige da historiografia uma acuraria extrema em razão da
relevância do personagem para a história do Chile e para o destino de muitos
chilenos.8

Farías acredita que a imagem de Allende dificilmente será vista de forma negativa e
que o nazismo jamais será associado a sua imagem, pois muitos preferem proteger essa
imagem ideológica de um mártir construída ao longo dos anos.

7
FARIAS, Victor. Salvador Allende: anti-semitismo e eutanásia. Osasco, SP: Novo Século, 2006. Pág. 110 e
114.
8
Idem, Pág. 28

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir dos estudos realizados pelo filósofo Víctor Farías, conclui-se que a imagem
transmitida do Salvador Allende sofre algumas incongruências, considerando se o fato de que
Allende tendia a aproximar-se do nazismo alemão.
Entretanto, apesar de Allende ser condenado pela sua aproximação com o nazismo em
seu passado, não podemos esquecer que, embora a historiografia oficial possa estar
comprometida com a comprovação e divulgação de tais fatos, os relevantes feitos do ex-
presidente chileno deixarão sua marca na história para sempre. Visto que, Allende ofereceu a
própria vida para salvar a nação das mãos da direita repressiva, a constituição de sua imagem
como mártir jamais poderá ser apagada. Embora os fatos tendem a quebrar esta imagem, a
forma como se deu o golpe ditatorial culminou nesta visão positiva que, se vista de outra
forma, o único caminho seria o de apoiar a violência e repressão imposto pela ditadura
instaurada após a morte de Allende.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEGRIA, Fernando. Salvador Allende. São Paulo: Brasiliense, 1983. 102 p.

FARIAS, Victor. Salvador Allende: anti-semitismo e eutanásia. Osasco, SP: Novo Século,
2006. 176 p.

MARIANO, Nilson. As garras do condor: como a ditaduras militares da Argentina, do Chile,


do Uruguai, do Brasil, da Bolívia e do Paraguai se associaram para eliminar adversários
políticos. Petrópolis, (RJ): Vozes, 2003. 324 p.

RIBEIRO, Darcy, 1922. Gentidades. Porto Alegre: L&PM, 1999. 141 p.

SMITH, Anthony D. A identidade nacional. Lisboa: Gradiva, 1997. Pág. 101

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