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A

OBSERVAÇÃO
CIENTÍFICA

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I NSTI TU TO D E BI O CI Ê NC I AS – USP
2019
SOBRE O QUE SE APOIA A CIÊNCIA?

OBSERVAÇÃO?

FATOS?

DADOS?
SUJEITO E OBJETO
• objeto: do latim ob + iacio,
“jogar adiante”

grego parabolé:
“jogar ao lado”  comparar

• sujeito: do latim subjectus,


“colocado abaixo”

Robert Fludd, (1619)


REFLEXIVIDADE

M. C. Escher,
1898-1972
FRANCIS BACON (1561 – 1626)
• “Ora, a ciência dos antigos,
puramente contemplativa, é estéril;
portanto, é necessária uma nova ciência,
orientada para a técnica”
(Bacon; citado por Rovighi 1999, p. 18)

• experimentus crucis
EXPERIMENTAÇÃO E OBSERVAÇÃO
NA CIÊNCIA MODERNA

Harvey, Exercitatio Anatomica de Motu


Cordis et Sanguinis in Animalibus (1628)
HÁ OBSERVAÇÃO NEUTRA?
BRUNER E POSTMAN (1949)
https://www.youtube.com/watch?v=yFYBY_YUH5I
OBSERVAÇÕES SÃO “CARREGADAS DE
TEORIA” ( THEORY-LADEN )
• Bruner e Postman (1949)

• Hanson (1958)

• Kuhn (1962)
HANSON (1958): “OBSERVAÇÃO E
INTERPRETAÇÃO”
• Norwood Russell Hanson (1924-1967)
• Patterns of Discovery: An Inquiry into the Conceptual Foundations of Science (1958)
• Perception and discovery: An Introduction to Scientific Inquiry (1969)

• Há observação sem interpretação?


• Hanson: observação e interpretação são
inseparáveis, assim como matéria e forma
A OBSERVAÇÃO DOS (NEO)POSITIVISTAS:
UM “AÇOUGUEIRO LÓGICO”
• Registro de dados sensórios independentes das elaborações
intelectuais. O. Neurath: “sentenças protocolares”

• “Uma sentença protocolar completa poderia, por exemplo, ser:


‘Protocolo de Otto às 15h17: [às 15h16 Otto disse para si mesmo:
(às 15h15 havia uma mesa no quarto percebido por Otto)]’”
(Neurath 1932/33, p. 202)
• Hanson: o erro da observação não está na falta de órgãos sensíveis, mas no
exagero de uma certa coisa, ou, poderíamos dizer, de uma deformação. O erro
observacional está em fazer um salto especulatório a partir de meras
observações.

• Concepção limitada de observação do fenomenalista: uma base estritamente


empírica seria somente sensória, sem teoria alguma

• Seria possível dois observadores dignos de confiança discordarem em suas


observações ao verem o mesmo fenômeno físico?
• E duas câmeras?
• Hanson: filosofia da ciência mais realista  dois observadores
igualmente equipados podem ver diferentemente

• OBSERVAR X É VER ALGO COMO ISTO OU COMO AQUILO

• Observar é fazer uma experiência.


• “São as pesoas que vêem e não seus olhos”
• Cubo de Necker: sempre se vê o cubo de alguma maneira, não há como
observá-lo sem estar nem “para cima” e nem “para baixo”

• Hanson: isto não é observar a mesma coisa e interpretá-la diferentemente

• “Mas a interpretação toma pouco tempo – é instantânea”  Hanson: esta é


uma ficção para preservar a epistemologia que se deseja

Hanson:
• Historiador (podemos distinguir objetividade de intepretação)
•X
• Experiência sensível (impossível distinguir)
E NO CASO DAS CIÊNCIAS HUMANAS? É
POSSÍVEL TRANSMITIR ALGO SEM
PASSAR PELA INTERPRETAÇÃO?

• Weber, “Ciência como vocação” & “Política como vocação”

• Positivismo

• Fatos X Valores ?
• Voltaremos a esta questão durante o curso
• Psicologia da Gestalt

• “Intepretar é pensar e fazer alguma coisa, à moda de Heródoto; observar é ter


uma experiência”

• Vemos a mesma coisa? Sim.


• Observamos a mesma coisa? Talvez não.

• “O que deve ser feito para levá-lo a ver o que eu vejo?”


O FÍSICO E A CRIANÇA
• “Imagine-se, agora, um instrumento de vidro e metal, cheio de fios, refletores,
parafusos, encaixes e botões. Imagine-se tal instrumento colocado diante de
um físico experimental – que, no momento, tenha, ao colo, seu filho de dois
meses”

• “O físico e a criança observam a mesma coisa quando olham para um tubo de


raios X? Sim e não. Sim – têm consciência visual do mesmo objeto. Não – o
modo como têm esta consciência é profundamente diverso.Ver não é apenas
ter uma experiência visual: é também o modo como se tem esta experiência”
(p. 133)
• Mas será que a diferença não está em que ambos vêem, o físico e o leigo,
mas apenas o primeiro interpreta?

• Hanson: o físico não faz nada além de ver. É possível ler sem interpretar
após sermos alfabetizados? É possível anotar a posição dos ponteiros do
relógio sem pensar em horas?

• Para ouvir uma palávra em árabe, é preciso falar árabe. “O leigo deve
aprender Física para estar em condições de observar o que o físico
observa” (p. 134)

• Astrônomo William Herschell: “Ver é (...) arte que precisa ser


aprendida”
• É preciso aprender para em seguida observar

• Só aprendendo Física é que se pode observar o que o físico


observa

• Interesses seletivos. Robinson Crusoé e as pegadas na praia

• “Há mais coisas no ato de enxergar que o que toca o globo ocular”
(Hanson, Patterns of Discovery, p. 7)
• Se ver está relacionado a conhecer, ver a mesma coisa implica partilhar
conhecimento, teorias e conjecturas acerca do que se vê

• Não se trata de dizer que a visão independe de fatores físicos – mas de que
eles não a esgotam

• “Qualquer observação científica, desde que significativa, é de algo que se revela


como sendo isto ou aquilo. E isto requer que os dados sejam apreciados para
além daquilo que registra uma câmera fotográfica ou o globo ocular: requer
um observador científico” (p. 137)

• Há uma variação de grau da importância da teorização sobre a observação,


mas sempre há “critérios de significância” sobre uma observação
M. POLANYI
(1891-1976)

“TACIT
KNOWLEDGE”
VER COMO NA CIÊNCIA

• Microscópios

• Telescópios

• Métodos de datação

• Etc.
DE ONDE VEM O CRITÉRIO PARA
CLASSIFICARMOS AS CORES?
KAY E KEMPTON (1984)
SOBRE INGLÊS E TARAHUMARU
HIPÓTESE DE SAPIR-WHORF (OU
“RELATIVISMO LINGUÍSTICO”
• Edward Sapir (1884-1936)
• Benjamin Lee Whorf (1897-1941)

• Versão Forte: A língua determina o pensamento

• Versão Fraca: A língua influencia o pensamento


A “IMPREGNAÇÃO TEÓRICA” DA
OBSERVAÇÃO
CHALMERS
• O indutivista ingênuo assume duas posições quanto à observação:
1) A ciência começa com a observação (critério empirista)
2) A observação produz uma base segura da qual o conhecimento pode
ser derivado

Críticas:
1) Se há teoria em qualquer observação, a observação não é o princípio da
ciência
2) As observações são sujeitas a falhas
CHALMERS
• Experiências perceptivas X Proposições de observação

• O que nos interessa não são as observações de Darwin no Beagle per se, mas o que podemos
concluir a partir delas  indução generalizadora

• Entre ambas, portanto, há uma teorização

• Há muitos pressupostos teóricos implícitos em afirmações, mas eles não deixam por
isso de existir. “O facho eletrônico foi repelido pelo polo norte do magneto”

• Proposições de observação são sempre feitas na linguagem da teoria, e podem ser tão precisas
quanto esta o é. “Teorias precisas, claramente formuladas, são um pré-requisito para
proposições de observação precisas. Neste sentido, as teorias precedem a observação” (p. 54)
1) A INDUÇÃO NÃO COMEÇA COM A
OBSERVAÇÃO :

TERMOS OBSERVACIONAIS
X
TERMOS TEÓRICOS
2) A OBSERVAÇÃO NÃO É UMA BASE
SEGURA: A IMPRECISÃO DA OBSERVAÇÃO
• Kepler, observando através de um telecópio galileano: “Marte é quadrado e
intensamente colorido” (in: Feyerabend, Against Method, 1975, p. 126)

• “Vênus, vista da Terra, não muda de tamanho ao longo ao ano”  depende: a


olho nu ou por telescópio?

• A ciência não começa com proposições de observação porque algum tipo de


teoria as precede; as proposições de observação não constituem uma base
firme na qual o conhecimento científico possa ser fundamentado porque são
sujeitas a falhas” (Chalmers, p. 58)
A IMPRECISÃO DA OBSERVAÇÃO:
QUAIS ASPECTOS SELECIONAR?
Hertz (1888) ao descobrir as ondas de rádio previstas pelo eletromagnetismo de Maxwell

Era preciso registrar a leitura de seus medidores, a presença ou ausência de faíscas nos lugares
críticos, etc. Mas não o tamanho da sala, se seus sapatos estavam sujos, etc...
A observação científica sempre envolve seleção de dados relevantes.

Isto não é simples: Hertz previra que as ondas de rádio deveriam ter a mesma velocidade que a
luz

Após a morte de Hertz, descobriu-se que havia interferência de ondas refletidas, alterando a
medida de velocidade que ele emitia – afinal, a dimensão do laboratório era relevante.
GALILEU, SIDERIUS NUNCIUS (1610)

Descoberta do relevo da lua –


mas até onde poderia ir a sua
precisão?
PIERRE DUHEM (1861-1916)

“Um experimento na Física não é simplesmente a observação de um


fenômeno; ele é, além disso, a Interpretação teórica deste fenômeno”
(1904-1905)
HIPÓTESE DE DUHEM-QUINE
• Quando um experimento apresenta um resultado que vai
contra a teoria, não podemos concluir simplesmente que a
teoria é falsa

• A observação pode ser subdeterminada; pode ocorrer também


que a aparelhagem não esteja bem regulada, etc.

• Pierre Duhem (1861-1916)


• Willard Van Orman Quine (1908-2000)
SUBDETERMINAÇÃO EMPÍRICA
• “Um experimento na física não pode nunca condenar uma hipótese isolada,
mas apenas um grupo teórico completo” (Duhem 1904-5, p. 183)  holismo

• É sempre possível adicionar hipóteses ad hoc para salvar a teoria  quando se


torna razoável abandoná-la em razão das evidências?

• Um mesmo conjunto de fatos poderia ser explicado por diversas teorias

• Refutação da possibilidade de um “experimento crucial”, tal como queria


Bacon
BLAISE PASCAL E A EXISTÊNCIA DO
VAZIO
CONCLUSÃO:
HÁ UMA VISÃO
NÃO SITUADA?

O (MITO?) DA
OBSERVAÇÃO
NEUTRA
UM EXEMPLO SONORO

• https://www.youtube.com/watch?v=yDiXQl7grPQ
UM EXEMPLO DE OBSERVAÇÃO
“CONSTRUÍDA”: A PERSPECTIVA LINEAR
RENASCENTISTA
DÜRER (1471-1528)
DÜRER (1471-1528)
DÜRER (1471-1528)
O EXPERIMENTO DE BRUNELLESCHI,
1425
POLÍPTICO DE SANTO ANTÔNIO (1470),
PIERO DELLA FRANCESCA
LIMITAÇÕES DA REPRESENTAÇÃO DA
PERSPECTIVA LINEAR
• Visão a partir de um ponto, ao invés de nossa visão binocular

• Uma pirâmide visual, ao invés do cone visual

• Representação plana da imagem, ao invés da esfericidade de nosso olho – Como pode uma
superfície representar uma esfera?

• Representação estática, ao invés do olho em movimento


Andrei Rublev

Pavel Floriênski,
A perspectiva inversa
APÊNDICE: A FENOMENOLOGIA
FILOSÓFICA
• Ver é “ver como”

• Consciência de __

• Sujeito-e-objeto

• F. Brentano
• E. Husserl
• M. Heidegger
APÊNDICE: “DESTRUIÇÃO LÓGICA”
“Using phenomenal seeing as the typical, paradigm case of seeing is unjustified and misleading. Rather than our ordinary cases of seeing being
logical constructions out of the research scientists’ phenomenal variety of seeing, it is the latter which is a logical destruction of our
ordinary kinds of seeing” (Perception and Discovery, 2nd ed., p. 82)

“In short, material objects are not logical constructions from sense-data; sense-data are logical destructions of material
objects. When our theory-laden observations of things and events in the material world are drawn and quartered by the logician, it is
possible to distinguish several sorts of elements, some of which are present for everyone with normal sensory powers and others of which
are present for some and absent for others depending on their theoretical outlook. At dawn any normal eye can discern a spatial gap
opening between the horizon and the sun, whether it be in the thirteenth century or in the twentieth century. But a great deal more than
normal vision is required to see the sun as the earth’s satellite or, more recently, to see the sun as the center of our planetary system. And
yet, due to man’s insatiable search for intelligibility, it is always as the earth’s satellite or as the center of our planetary system or
as something-or-other that the sun is seen. Who could satisfy a child’s question about the nature of daylight merely by referring him to
the brilliant disc and the widening gap between it and the horizon that greet every normal eye at dawn? Mythology and magic, astrology
and alchemy were just the attempt to put the seeing as and seeing that into our everyday seeing. Without these elements our
daily experience would be a chaotic nightmare of flashes, bumps, and rumbles. In the letter if not exactly the spirit of Kantian philosophy,
“experience would be a meaningless rhapsody.” To extract from our ordinary observations the essence of sensation is a highly
sophisticated, strictly academic undertaking, not without some value perhaps. But whether undertaken for psychological or purely logical
reasons such a process of intellectual abstraction only makes sense when seen against the normal case, i.e., our observations of stars and
street-sweepings as stars and street-sweepings.

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