Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
ESCURIDÃO
A noite mais uma vez se abatia por todo o céu manchado pelo
crepúsculo avermelhado, cobrindo toda sua cor com uma capa negra e
intransponível. Pouco a pouco a penumbra foi invadindo a floresta, os muros
e o jardim, até que tudo estivesse completamente mergulhado em escuridão.
A lua há muito não surgia ali; parecia se recusar a sair de trás das camadas de
nuvens que preenchiam o céu noturno e triste. Não havia movimento que não
fosse o do vento levando as folhas mortas do chão, e do estalar de galhos
partindo-se das árvores sem vida que ocupavam todo aquele largo espaço.
Logo após os portões surgia um caminho de tijolos, encoberto pela grama por
anos não cortada. Ele levava exatamente à grande porta de entrada de uma
imensa e lúgubre construção: uma mansão, majestosa e imponente, que se
estendia de canto a canto do espaçoso terreno. As inúmeras vidraças da
grande casa tremulavam à vontade do vento, e não fosse por uma minúscula
porção de luz que se derramava por uma delas, no andar de cima, poderia-se
dizer que aquele pequeno pedaço de mundo, um dia, houvera sido condenado
à eterna escuridão.
A luz surgia de uma vela pequenina, queimando os seus últimos
segundos de pavio sobre um pires, descansada sobre um pequeno móvel de
três pernas. Era uma sala não muito grande, repleta de quadros espalhados
por cada uma das paredes – essencialmente imagens de rostos pálidos,
exibindo-se à meia luz. Frente a uma destas paredes havia uma velha
poltrona, macia e confortável. Uma figura humana, magra e esguia
descansava sobre ela, os braços estendidos sobre os do assento encardido, as
costas rigidamente eretas acompanhando a direção do encosto. O pescoço
virado para trás induzia o rosto inexpressivo a fixar-se no teto que, para outro
que o visse, parecia prestes a despencar. Era um homem muito magro, de
pele muito branca e rosto descorado; seus cabelos lisos muito bem penteados
cobriam parcialmente as orelhas, quase misturando-se com a barba escura e
mal feita. Seus dedos indicadores, posicionados horizontalmente sobre o
comprimento dos braços macios da poltrona estavam inquietos,
movimentando-se para cima e para baixo numa mistura de impaciência e a
tentativa de imitar o ritmo de um pulsante coração.
Ao redor dele, criadas pelo dançar da minúscula chama que bruxuleava,
sombras deslizavam pelas paredes, passeando agourentamente através das
inertes pinturas com seus olhares fixados a lugar nenhum. Uniam-se em
formas de dedos compridos, macabros e ameaçadores, e pareciam cercá-lo na
intenção de jamais permitir que se libertasse. Uma das mãos sombrias, então,
desprendeu-se das demais; moveu-se lentamente para fora do aglomerado de
trevas, revelando um braço comprido seguido de um tronco escuro. Em
seguida, um rosto inumano surgiu sob o efeito da vela, com olhos vazios e
uma boca aberta que, mesmo sem dentes, sorria. O ser de trevas encarou,
assim, o homem à sua frente por alguns segundos, e então pareceu sorrir
ainda mais. De forma infernal e completamente intangível, os dedos
compridos arrastaram-se da parede até o chão, aproximando-se, ameaçando
em silêncio aquele que os observavam. Por fim alcançaram o pequeno móvel,
e logo depois o que restava da pequena e já enfraquecida vela de cera
amarelada. Sem nenhuma delonga e sem qualquer piedade, os dedos de
sombras rodopiaram ao redor da chama, fazendo-a desaparecer com um sopro
que surgira de lugar nenhum. Escuridão.
O homem, assim, viu-se completamente entregue ao próprio destino,
gastando cada uma das horas de sua vida apenas em silêncio. Nada além das
trevas devorando-lhe por completo era capaz de dar a ele um singelo
momento de calmaria, um simples momento em que não sentisse arder as
entranhas com aquelas lembranças; lembranças de uma vida que nem ele
mesmo sabia se vivera, ou se agora tudo era apenas um fruto de sua mente
atormentada. Tudo dentro dele eram apenas turbilhões de dúvidas e medo,
não da morte, mas de continuar vivendo - medo de ser eternamente
perseguido por aqueles fragmentos de vida, retalhos de alma, pelos destroços
de um amor que se deteriorava através do tempo, e que lentamente
desmoronava junto das paredes da escura mansão.
Não era o fim, ele sabia. Era apenas mais um terrível e indesejado
recomeço.
Capítulo I
DOIS CORAÇÕES
DESTINO
CHUVA
Cara Albertine,
Atenciosamente,
Noelle J. Grahamfield.
Estava agora totalmente instaurada a tristeza infinita no peito daqueles
dois jovens. No fundo ambos sabiam que cedo ou tarde os parentes de
Albertine entrariam em cena, mas nunca tocaram, nem mesmo se atreviam a
pensar muito no assunto. O que mais lhes perturbou, mais até do que a
própria notícia, foi o conhecimento de saber a distância que em breve iria se
impor entre os dois. Paris, a maravilhosa cidade dos sonhos, de onde ninguém
sentia ânsia de voltar.
Talvez aqueles fossem os últimos dias que teriam um ao outro; a partir
dali o medo da carruagem chegando para separá-los crescia de maneira cruel
no peito de Jeremy, enraizando-se como uma erva daninha que surgia de
forma involuntária em um saudável jardim. Pensava em fugir com ela, em
momentos de devaneio. Queria ao menos que algo pudesse impedir que ela
partisse, mas nada tangível lhe ocorria. Nem ao menos se recusar a ir ela
podia – era menor de idade e já tinha sua guarda em posse da tia, de acordo
com aquela maldita carta que fora atirada à lareira após ser lida.
Gastaram cada minuto de seus dias da melhor maneira possível, fosse
divertindo-se juntos ou apenas conversando ao pé da lareira. O tempo
encarregou-se de levar rapidamente duas semanas exatas quando, finalmente,
uma majestosa carruagem atraiu os olhares de todos ao despontar na entrada
da vila. Era deslumbrantemente espaçosa, suas rodas movimentavam-se com
delicadeza pela estradinha esburacada enquanto o cocheiro, que usava uma
longa cartola negra e uma capa espessa da mesma cor, guiava os cavalos com
destreza. Jeremy viu pela janela de sua sala quando o veículo alinhou-se
perfeitamente diante do escritório. O cocheiro ergueu-se e saltou, fazendo
estalar pequenas pedras abaixo do solado de suas grossas botas.
Havia então chegado a hora. Albertine, como se já soubesse, esperava
recostada ao sofá da sala de estar da casa dos Ridell, as bagagens feitas,
empilhadas de maneira organizada. Os olhares fixaram-se como se fosse a
última vez que o fariam, quando Jeremy caminhou em sua direção; o
cocheiro seguiu em seu encalço disposto a carregar os malões até a
carruagem. Deram-se as mãos, as dele suadas, as dela trêmulas. O perfume de
Albertine exalou-se ao ambiente, penetrando o juízo do rapaz, lentamente
produzindo minúsculas gotas molhadas no canto dos olhos. O abraço, o
último abraço, poderia ter sido eternizado e não mais sofreriam. O único som
ao redor era o tic-tac do indiscreto relógio de parede, exibindo o pêndulo que
parecia debochar da triste cena, apressando-os, avisando que não restava mais
tempo.
— Cuide-se, Jeremy. Cuide-se bem – ela sussurrou ao pé do ouvido
dele, as lágrimas em cascata descendo ao queixo.
— Me prometa que vou te ver de novo, só assim terei um propósito
para me cuidar – Jeremy respondeu com tristeza.
Mais uma vez calaram, até que longos suspiros quase ecoaram pela
sala. O cocheiro, agora já tendo terminado o transporte das bagagens,
esperava fixado na porta com crueldade.
— Prometo que nos veremos de novo. Pelos meus pais, por mim e por
nós – ela agora olhava para ele com ternura, lutando contra a vontade de
simplesmente fugir dali, para que todo o resto fosse ao inferno. – Prometo.
As mãos desvencilharam-se e Jeremy viu a figura de Albertine rumar à
porta, o som de seus passos estrondando em sua mente como trovões
furiosos. Sem olhar para trás ela embarcou na carruagem ajudada pelo
cocheiro, que em um só salto estava novamente posicionado a segurar as
rédeas. Com um grito sinalizando a partida e um estalar igual de um chicote,
os cavalos seguiram seu caminho e Jeremy viu, agora junto à porta, grossos
pingos de chuva despencarem do céu escuro, molhando seu rosto e lavando
suas lágrimas. Ora, se o céu também não chorava ou era pura imaginação dos
jovens de coração despedaçado. A carruagem fundiu-se ao borrão de chuva e
desapareceu de vista, e tudo estava novamente silencioso, exceto pelo vai e
vem do pêndulo às costas de Jeremy.
Capítulo IV
A M A N S Ã O D E J. R I D E L L
GALERIA DE FAMÍLIA
Querido Jeremy,
Quem lhe escreve é Albertine. Antes de qualquer outra coisa, quero que me
perdoe por ter levado tanto tempo para enviar esta carta, embora eu tenha
plena consciência de que não foi por falta de vontade que não o fiz antes. É
de certo que você pense que simplesmente o esqueci, que me acomodei à vida
moderna de Paris, mas de fato essa não é a verdade. Estou confinada em
uma escola de etiqueta para jovens moças. Minha tia Noelle,
coincidentemente, é uma das mais renomadas professoras de etiqueta da
França. Me sinto ridícula e completamente desapontada em ter que ser
ensinada até a segurar um talher, ou como me sentar corretamente, ou como
manter a respiração funcionando ao ser apertada por estes malditos
espartilhos com que me vestem. Divido um quarto com mais duas moças, elas
são tão comunicativas quanto dois troncos mortos. Por várias vezes quase
cheguei ao meu limite com tantas regras, tanta rigidez, tanta privação.
Saímos apenas três vezes na semana, sempre à tarde, uma fila de bonecas
sem vida própria controladas por minha tia. Ela nem sequer é agradável
comigo, em momento algum. Sempre ríspida, sempre dando ordens, sempre
censurando qualquer uma de nós pelo mínimo detalhe que lhe fuja à
perfeição.
Foi com tremendo esforço que consegui lhe mandar esta carta, e
agradeço mais do que ninguém à minha prima Cécile, que não mora mais
aqui, por ter coletado o envelope secretamente e despachado para que
chegasse até você. Cécile foi expulsa por tia Noelle quando descobriu que
sua filha mantinha um namoro secreto! Eu os vi de três a quatro vezes
escondidos num canto durante a madrugada, sob o nariz de tia Noelle, até o
dia em que ela os apanhou aos beijos, dentro do armário. Tenho certeza que
uma das moças a entregou, de fato. Se não fosse por Cécile, eu estaria ainda
mais solitária do que já me sinto... é ela quem traz novos livros para que eu
não morra na eternidade dos amores de Shakespeare que, mesmo
respeitando muito, não consigo mais suportar – devo ter lido e relido
‘Sonhos de uma noite de verão’ cerca de dez vezes. Foi ela quem me
incentivou a escrever, percebendo meu abatimento, querendo saber o motivo
de tanta tristeza. Você Jeremy, você é o motivo da minha tristeza. Não
consigo evitar em sofrer dia após dia, noite após noite, sentindo a
necessidade da sua presença.
Não sei se tenho mais forças para viver como uma prisioneira requintada
nesta escola. Tenho conversado com Cécile e estamos chegando a um ponto
comum. Não poderei sair até completar meus vinte e um anos, pois tia Noelle
é minha tutora e tem autoridade sobre mim. É por isso que estou esperando o
momento certo para que tudo saia como o planejado. Vou fugir Jeremy, vou
embora deste inferno. Quero voltar, quero estar aí, com você!
Em breve enviarei outra carta contando todos os detalhes. Ora,
imagine só, uma dama fugitiva.
Com Carinho, Albertine.
Foi difícil para Jeremy recuperar o fôlego. A carta tremia junto com
suas mãos molhadas, os pensamentos ainda atordoados perante aquelas
confissões. Albertine também sentia sua falta. Mais ainda do que isso, ela
estava decidida a largar sua vida em Paris e voltar para o lugar de onde nunca
deveria ter saído. Ainda duvidando que aquela carta era real, que não era uma
peça pregada por alguém que quisesse apenas zombar de suas saudades,
Jeremy dobrou o papel e o guardou em uma das gavetas. Deu um gole no
copo d’água de dois dias atrás, tentando reagrupar os pensamentos
fragmentados em várias direções. Seu maior anseio era ter Albertine de volta,
mas ele sabia que não era certo, nem perto disto, que uma moça de dezessete
anos encarnasse uma aventureira e se pusesse a fugir de um país a outro,
mesmo que próximos. Era ele agora quem se sentia ridículo e inútil; eram os
homens, os príncipes ou os plebeus que se aventuravam até suas amadas.
Estaria Albertine falando a verdade? Realmente estaria planejando cometer
tal loucura, ou talvez tivesse deixado-se levar pela euforia de escrever uma
carta, de ter em mãos um meio de liberdade mesmo que apenas atada a uma
folha de papel? Sendo como fosse, tudo aquilo, toda aquela ausência, toda a
saudade, a falta... tudo aquilo estava destruindo, lentamente, os nervos
daquele meio homem, meio menino.
FALÊNCIA
Mesmo chocado, Jeremy não estava surpreso. No fundo ele sabia que
era iminente a falência da imobiliária, causada pela imprudência e descaso do
pai. Era o fim, ele tinha certeza. Aquela carta viera apenas com a sentença
final que ele já esperava consciente. Sentou-se ao lado de Ellie, que enxugava
as lágrimas na barra do vestido, e juntos prestaram o silêncio que em breve se
apossaria por completo daquele prédio.
O cofre da empresa ainda guardava uma considerável quantia em
dinheiro; considerando que este não estava oficialmente registrado como
propriedade a ser incluída no pagamento da dívida, Jeremy retirou-o em
segredo, até mesmo para com Ellie, empacotou em vários envelopes e
guardou-os em uma mala, junto dos documentos da mansão perdida na
floresta. Apesar de toda esta situação que causaria tanto desconforto para os
inquilinos que alugavam os imóveis, Jeremy manteve-se tranquilo. Tinha
plena certeza de que não ficaria ao relento – a mansão era a prova disto. Já
tinha tudo esquematizado em sua mente. Iria transferir todos os criados para
lá, onde poderia viver por um bom tempo graças às economias que tinha
reservado desde que começara a trabalhar para o pai, somadas à generosa
quantia retirada do cofre. A imobiliária estava falida, nada mais poderia ser
feito – não poderia recomeçar do zero, não tinha paciência e nem vontade
para isso. Não queria viver à sombra de um erro que não lhe cabia corrigir.
Talvez a pior parte foi contar a Rosa sobre a carta judicial. Ela não
conseguiu conter a tristeza, expressando-a em lágrimas e lamentos sobre
como nunca havia imaginado que a imobiliária fosse um dia fechar as portas.
Havia sido sempre próspera por mais de quatro décadas, mas em menos de
dois anos teve as estruturas corroídas pelas mãos da mesma pessoa que
ajudou a erguê-las. A comoção foi compartilhada com os outros quatro
criados, que demonstraram tristeza em saber que iriam passar a trabalhar em
outra casa, mas também não tentaram esconder o brilho nos olhos ao saber
que Jeremy seria seu patrão de agora em diante. Reuniram-se e jantaram
todos juntos como numa cerimônia de despedida àquela casa que tinha sido
por tantos anos o abrigo de todos eles.
Dia após dia o escritório foi sendo desmontado, em meio aos soluços de
choro de Ellie – indecifrável entre a real tristeza ou pelo fato de
repentinamente estar desempregada. A última carta com a ordem de
fechamento já havia sido entregue; exigia a liberação do imóvel junto com
todos os documentos dele e de todos os outros reunidos em uma só caixa, em
menos de uma semana a contar da data do recebimento do aviso. Cada
envelope encaixotado era seguido de um lamento da ex-secretária, enquanto
Jeremy mostrava-se inabalável com o fim da Ridell.
Após acabarem-se os envelopes, ele foi até sua antiga sala para conferir
se nenhum havia sido esquecido. Os armários estavam devidamente vazios,
menos aquele que guardava os documentos de imóveis condenados. O
mesmo armário onde estava guardado o envelope que deveria ter
permanecido intacto na biblioteca de sua casa. Nada que ele pensasse sobre
aquele caso se encaixava com clareza – era impossível que o envelope tivesse
transportado-se sozinho. Só poderia estar no escritório após ser deixado lá
por alguém. Mas como, se a biblioteca estava devidamente trancada? E ainda,
mesmo que não estivesse, quem, e por qual razão, se daria a este trabalho?
Isto era algo que Jeremy ainda tentaria descobrir, não por agora, pois talvez
fosse melhor não querer saber das razões que alguém, quem quer que fosse,
teria para dar todas as pistas para que ele finalmente encontrasse o que era
seu desde que nascera.
Fechou as portas do armário, e o vidro estremeceu desfigurando o
reflexo de Jeremy por um segundo. Agora que estava certo de que não havia
mais nada para retirar, após uma última olhada naquela sala onde gastara
tantos dias e que talvez nunca mais voltasse a ver, preparou-se para ir
embora, mas lembrou-se que não tinha verificado as gavetas de seu birô. Deu
meia volta, sentou-se em frente às gavetas e abriu a primeira. Apenas alguns
papéis de rascunho estavam nela; a segunda estava repleta de canetas, lápis e
borrachas. Na terceira só havia uma folha de papel dobrada, exibindo aquele
tom amarelado de papel de carta da mais fina qualidade. Era a carta de
Albertine. Desdobrou-a e levou dois ou três minutos para relê-la. Antes que
pudesse terminar, prendeu-se a um trecho em especial... o trecho que mais o
fazia sentir saudade dela, que mais mexia com seu coração dando-lhe
esperança de que ela voltaria:“Não consigo evitar em sofrer dia após dia,
noite após noite, sentindo a necessidade da sua presença.”
Junto a esta sofrida declaração, o trecho em que ela prometia fugir e
voltar para perto dele tornavam aquela carta quase um contrato de vida para
Jeremy. Quase havia esquecido-se dela por lá. Talvez estivesse apenas
sonhando alto demais. Como havia imaginado, foi apenas uma forma de
desabafo – ao menos o detalhe da fuga –, era o que ele esperava. De fato
sabia que era completamente improvável que uma moça com menos de
dezoito anos viajasse sozinha para o exterior, sem qualquer tipo de
autorização de um responsável. Mesmo assim apegou-se a esta ideia, antes
pensar que ela voltaria a ter certeza de que nunca mais a veria de novo.
Desvencilhou-se destes pensamentos, guardou a carta no bolso e deixou a
sala sem olhar para trás.
Ellie o esperava de pé ao lado da caixa com todos os documentos
requeridos pela justiça. Sua cara inchada já não estava mais molhada pelas
lágrimas. Os dois olharam-se sem saber o que dizer. Havia chegado a hora do
adeus.
— Adeus Ellie – ele disse, indo em sua direção, fechando os braços ao
redor do corpo magro da moça.
— Não dê adeus, Jeremy! Prometa que vai vir nos visitar de vez em
quando. Sei que não quer me contar para que lugar vai se mudar, mas
acredito que não seja longe. Não abandone seus amigos!
— Prometo que visitarei – ele disse largando-se de Ellie. – Embora
você seja minha única amiga aqui, prometo que não deixarei de vir visitá-la.
Ellie abriu aquele belo sorriso de dentes muito brancos, e com um leve
cumprimento de cabeça, abriu a porta e saiu; era o fim de seu último
expediente. Jeremy olhou ao redor, e só agora sentiu uma pontada de tristeza
ao ver a recepção vazia, sem vida, sem o som antes irritante, mas agora
memorável da máquina datilográfica. Quase sentiu os olhos marejarem, mas
manteve-se forte. Abriu a porta e sorriu ao som da sineta, saiu e olhou para o
céu – estava claro e limpo, muito azul, e tinha o sol brilhando com vigor em
sua imensidão. Fechou a porta e trancou-a, enquanto lia o aviso afixado a ela
que ordenava que as chaves fossem jogadas por debaixo da porta, visto que
as trancas seriam trocadas quando o imóvel fosse vistoriado. Com dificuldade
causada pelas dores nas pernas, que ainda não tinham cessado mesmo após a
mudança de clima, agachou-se para cumprir a ordem, sem perceber que uma
carruagem muito velha, de rodas muito gastas, havia parado bem atrás dele.
A chave deslizou pela fresta e parou bem no meio da sala, próxima ao
balcão. Ele levantou-se sentindo um dos joelhos estalar, e quase assustou-se
ao ver aquela carruagem que parecia ter aparecido do além às suas costas.
Observou, tomando o cuidado de não parecer bisbilhoteiro, o cocheiro retirar
uma única mala de tamanho médio do interior da carruagem. Ouviu uma voz
estranhamente familiar vindo de dentro dela. Quem quer que fosse, agradecia
ao cocheiro após estender-lhe uma das mãos segurando o que pareciam várias
cédulas, amarradas por um fino cordão. Seu coração agora entrava em
processo de aceleração incontrolável – viu sair da carruagem uma moça
magra, muito branca, de longos cabelos louros caídos aos ombros, de olhos
verdes muito brilhantes.
— Albertine!
Ela pareceu ainda mais bela ao largar-se num sorriso alegre, iluminado
de maneira divina pela luz do sol que era refletida em seus cabelos.
Sim, era ela. Albertine cumprira sua promessa.
— Jeremy!
O mundo girou em torno dos dois jovens, enquanto suas mentes só
queriam obrigá-los a gritar de felicidade. Estavam finalmente juntos outra
vez. Os corpos chocaram-se com intensidade no longo e tão esperado abraço.
As mãos de Albertine apertavam as costas de Jeremy, enquanto as dele
deslizavam pelos fios sedosos das mechas louras da moça. Lágrimas
escorriam dos cantos dos olhos dos dois, desta vez de felicidade imensa por
aquele reencontro. Não conseguiam falar, mal conseguiam respirar. O abraço
poderia durar para sempre e ainda assim seria curto demais.
— Pensei que a tinha perdido para sempre – ele sussurrou ao ouvido de
Albertine.
— Você nunca me perdeu – ela respondeu no mesmo tom.
A carruagem partiu após dar meia-volta em frente ao jovem casal,
fazendo-os perceber que estavam abraçando-se descontroladamente à beira da
calçada. Separaram-se sem vontade, e Albertine, enxugando as lágrimas, não
pôde deixar de reparar no aviso fixado à porta do escritório.
— Jeremy, o que aconteceu com o escritório?
— Prometo que explico tudo mais tarde. Deixe-me carregar sua mala,
vamos para minha casa, então a deixarei a par de tudo o que tem acontecido
por aqui.
— E são tantas coisas assim? – ela respondeu sorrindo, como em um
deboche.
— Você nem faz ideia. Garanto que esta pequena vila reserva mais
surpresas do que a grande Paris que você abandonou.
Seguiram para a casa dos Ridell, sorridentes, e antes que pudessem
entrar, Albertine percebeu o amontoado de caixas em frente à casa. Sabia que
havia algo estranho no ar, mas preferiu esperar que Jeremy lhe contasse ao
invés de perguntar mais uma vez.
— Rosa! Onde você está? – a euforia tomava conta da voz do jovem
Ridell, fazendo-lhe parecer outra pessoa e não aquele rapaz quieto e calado
que costumava ser. – Tenho uma grande surpresa!
Segurou Albertine pelas mãos e arrastou-a até a cozinha. Rosa estava de
costas, perto da pia, encaixotando um vaso de cerâmica que era usado na
decoração da sala de jantar. Ela parecia absorta em pensamentos e não ouviu
quando adentraram no recinto.
— Rosa!
Ela virou-se imediatamente, e seus olhos arregalaram-se como se um
fantasma arrastando correntes houvesse saltado diante de seu rosto. A boca
abriu-se em formato de ‘o’ ao ver Albertine lá, parada ao lado de Jeremy.
— Santa Mãe de Deus! Como... como?
— Explico depois, Rosa – Albertine respondeu correndo na direção
dela e dando-lhe um forte abraço. – Explico depois que vocês me explicarem
o que está havendo aqui! – os olhos da moça agora percorriam o ambiente
quase vazio e sem decoração, com as paredes brancas exibindo-se despidas.
Foi preciso o resto da tarde para que tudo fosse contado a Albertine
dentro de todos os detalhes necessários. Ela demonstrou-se muito surpresa ao
saber que Joseph havia morrido, e mais ainda ao ouvir sobre a falência da
Ridell. Jeremy contou-lhe tudo, inclusive sobre a mansão, sobre como a
descobriu, sobre o dia em que atravessou a floresta para encontrá-la. Após
estar satisfeita com tudo que precisava saber, foi sua vez de detalhar a Jeremy
e Rosa como conseguira fugir de Paris. Obviamente, sua prima Cécile tivera
grande parte no sucesso da fuga: ela conseguiu as passagens de trem,
organizou o melhor momento para a escapada e ainda falsificou uma
autorização com a assinatura de Noelle para que Albertine embarcasse sem
problema algum. A cansativa viagem às escondidas, de fato, havia sido um
suave passeio no parque quando comparada ao tempo de aprisionamento na
escola de etiqueta da senhora Noelle Grahanfield.
O aviso de liberação do imóvel também já havia sido recebido na casa,
e tudo já estava pronto. Os móveis foram cobertos com lençóis brancos, e
todos os pertences encontravam-se encaixotados, prontos para serem
transferidos. Embora parecessem muitas, todas aquelas caixas acomodariam-
se tranquilamente em qualquer cômodo da gigantesca mansão para onde
seriam levadas.
Era uma manhã morna de sábado quando estavam todos lá, parados em
frente à casa desmembrada. As caixas haviam sido empilhadas na carroceria
da charrete, que seria guiada por um dos criados. Já os demais – Jeremy,
Albertine, Rosa e os outros três criados – partiriam de coche, o mesmo que
Joseph utilizava em suas viagens.
Jeremy trancou as portas e, da mesma maneira que fez com as chaves
do escritório, lançou o molho por debaixo da porta da frente. Albertine e os
criados já acomodavam-se no veículo, mas Jeremy e Rosa ainda não tinham
tido o momento final; talvez mais do que para todos os outros, era de certa
forma doloroso deixar toda aquela vida para trás, trocar um lugar habitado –
mesmo que tão pequeno e esquecido do resto do mundo – por uma mansão
isolada quilômetros adentro de uma vasta floresta.
— Chegou a hora, Rosa – disse Jeremy, nostálgico, com o olhar preso
na porta de entrada que jamais atravessaria outra vez.
— Sim, chegou – respondeu a governanta, compartilhando do mesmo
sentimento.
— Vamos recomeçar. Vamos reconstruir tudo.
Rosa sorriu com aquela expressão séria, formando uma pequena ruga
no canto dos lábios.
— Me orgulho de você mais do que possa imaginar – ela disse sem
olhar para Jeremy. – Você é o filho que nunca tive.
Ele retribuiu o sorriso e abraçou a governanta de forma desajeitada.
Mesmo depois de tantos anos ele sentia certa intimidação ao abraçá-la; para
ele, Rosa era como uma figura suprema e intocável. Após alguns segundos
permitindo-se sentir o acalento de sua protetora, largou-se do abraço e puxou-
a com carinho pela mão na direção do coche.
— Vamos, não temos mais o que fazer aqui.
Ela acomodou-se ao lado de Albertine, apertada entre algumas malas
que não encontraram mais espaço na carruagem junto às caixas. Jeremy
ergueu-se na guia, segurou as rédeas e iniciou o trotar dos cavalos. O coche
seguiu, mais pesado do que deveria, pela estradinha de pedra, tomando o
rumo da saída sul. Antes de perder a casa de vista, porém, Jeremy olhou para
trás e viu seu antigo lar tornando-se cada vez menor, e por um segundo teve a
impressão de ver a si mesmo atravessando o portão e indo até a porta como
fizera durante toda sua vida. Logo voltou a olhar para frente, atiçando os
cavalos a irem mais rápido, enquanto a charrete com a carga o seguia dois ou
três metros mais atrás.
Como o dia estava muito claro, a floresta não aparentou ser tão sombria
quanto na primeira viagem que Jeremy fez por ela. As árvores pareciam mais
vivas e nutridas, até mesmo pequenos animais corriam por entre elas, muitas
vezes atravessando como vultos na frente dos veículos. De fora da
carruagem, Jeremy conseguia ouvir as vozes dos passageiros divertindo-se
numa conversa que não podia ser entendida devido ao som do vento vindo na
direção contrária. Nesse momento, ele sentiu-se tão vivo como nunca antes.
Estava prestes a iniciar uma vida completamente nova, junto das pessoas que
mais amava. Tomado por estes pensamentos de completa felicidade, seguiu
pela trilha na floresta que, como ele já sabia, se tornava mais estreita e
fechada a cada metro percorrido. Lembrou-se do dia em que atravessara
aquele caminho pela primeira vez, do medo que sentiu em fazê-lo sozinho;
sua felicidade momentânea foi ligeiramente abalada pela lembrança e a quase
certeza de ter visto um vulto, talvez humano, espreitando por detrás de uma
árvore. Mais do que esta por esta lembrança, sentiu um calafrio arrepiar os
pelos de seu corpo quando reviu em sua mente a cena vivida na galeria da
mansão – a parede oferecendo espaço para um último quadro com o rosto de
um Ridell, a porta estranhamente emperrada, as cortinas desamarradas após
sua passagem por elas, minutos antes, completamente recolhidas. Havia ainda
a porta dos fundos, mantida escancarada por uma cadeira, completamente
fechada por alguém, ou alguma coisa, enquanto ele perambulava pelo andar
de cima.
Aqueles foram os únicos detalhes que ele absolutamente escondeu dos
outros. Não seria certo assustá-los. Preferiu esquecer aqueles fatos e encará-
los como ocorrências aleatórias, ergueu a cabeça para frente e continuou seu
caminho pela floresta. Embora os mistérios da mansão estivessem, ainda,
muito distantes de serem descobertos até por ele próprio, Jeremy sentiu-se
um completo Ridell, um homem experiente em imobiliária. Um típico
método quase infalível no ato de se convencer alguém a mudar-se para um
imóvel era, desde sempre, esconder totalmente os segredos que ele guarda
entre suas mudas paredes.
Capítulo VIII
A NOITE DE NÚMERO UM
Gastou-se pouco mais de uma hora até que o coche, seguido pela
charrete, alcançasse os portões da mansão. Jeremy saltou do assento e
desenrolou as correntes enferrujadas, abrindo os portões de canto a canto. Os
veículos atravessaram a entrada e seguiram por cima da grama alta, talvez
mais crescida do que Jeremy vira antes, e pararam bem em frente à porta
principal. Todos os passageiros desceram da carruagem, esticando-se em
seguida após mais de uma hora sem movimentar as pernas. Todos os olhares
fixaram-se à gigantesca casa, os pilares colossais tornando-os pequenos se
postos lado a lado. Talvez pela ação das chuvas, as vidraças exibiam-se mais
reluzentes, a grama parecia mais verde e até a fonte comportava razoável
quantia de água esverdeada.
— E então - Jeremy falou a Albertine. – o que diz sobre nossa nova
casa?
Albertine pareceu surpresa ao ouvir aquela pergunta; “nossa casa”
repetiu-se automaticamente nos ouvidos dela como o eco dos sinos de uma
igreja.
— É-é muito mais do que eu esperava, q-quero dizer... é magnífica! –
ela respondeu enquanto seus olhos vagueavam acima e abaixo, vislumbrando
cada vidraça, cada detalhe nos beirais. – Tem até uma capela!
— Sim, mas não parei para verificá-la quando vim aqui pela primeira
vez.
— E esta fonte, veja, que maravilha! – exclamou a moça esticando-se
para ver o que havia na parte mais alta, o que notou serem apenas muitas
lesmas gosmentas largadas umas sobre as outras. – Bem, só precisa de uma
limpeza.
Os dois riram enquanto caminharam na direção da lateral esquerda da
mansão. Jeremy já havia dito que não possuía nenhuma chave de qualquer
porta que fosse, mas que a entrada dos fundos estava aberta. Tinha esperança
de encontrar as chaves perdidas em algum lugar, ou teria de pagar um
profissional para substituir todas as trancas. Isto era algo que ele
definitivamente não gostaria de fazer: sentia que quanto menos soubessem da
localização da mansão, melhor.
Seguiram pelo largo que se estendia ao lado da casa, exclamando e
apontando, ainda incrédulos do tamanho da construção. Chegando aos
fundos, logo seguiram até a porta; ela estava apenas recostada, da mesma
maneira que Jeremy a tinha deixado. Os outros não perceberam, mas ele
expeliu um suspiro de alívio. Adentraram pela cozinha, seguiram pela sala de
jantar, sempre exprimindo palavras de ânimo a cada cômodo que passavam.
Já na sala, Jeremy apontou para cima e mostrou que lá estendia-se talvez a
parte mais interessante da casa, que eram, juntas, a biblioteca, a galeria, o
salão de jogos e alguns quartos. Já a parte de baixo ainda teria de ser
explorada, por isso cada um seguiu para um lado na intenção de conhecer
cada metro da mansão. Jeremy encontrou um salão de festas, Rosa e as
criadas encontraram uma magnífica adega repleta de barris e garrafas, os dois
criados chegaram até um alçapão, num recanto da cozinha, que levava a um
porão que se estendia por quase toda a extensão da parte de cima, e Albertine,
para sua extrema felicidade, descobriu uma sala de música muito ampla, com
um piano em um dos cantos e alguns instrumentos de banda marcial
guardados em um grande armário de portas de vidro. Após reunirem-se
novamente na sala, partiram para o andar de cima enquanto os dois
empregados descarregavam a charrete e as poucas malas que sobraram no
interior do coche.
Já no primeiro andar, vasculharam cada canto e descobriram os quartos,
a entrada para o sótão, e visitaram a biblioteca e a galeria, os dois recintos já
conhecidos por Jeremy. As quatro mulheres não entenderam, porém não
questionaram quando Jeremy recusou-se a entrar na galeria dos Ridell,
subindo ao sótão ao invés disso. Lá ele encontrou apenas muitas caixas, urnas
e objetos largados em pilhas. O sótão estava completamente tomado pela
poeira e por gigantescas teias de aranha que se estendiam de um canto a outro
do telhado, e era silencioso como um túmulo de um cemitério abandonado. A
luz do sol entrava de maneira discreta por uma pequena janela na parede
frontal, tornando possível andar-se sem tropeçar em toda aquela aglomeração
de itens espalhados pelo chão. Ao aproximar-se desta janela, Jeremy
percebeu que dava vista à área frontal de maneira completa, de ponta a ponta
do grandioso muro coberto de hera; a capela, a fonte e os portões exibiam-se
à vista. À frente do muro, a floresta impossibilitava avistar-se qualquer outra
coisa além das copas das árvores, como um mar tingido de verde que seguia
até onde a vista podia alcançar.
Após uma ligeira espiada Jeremy deixou o sótão, na intenção de voltar
quando tudo estivesse em ordem, para examinar cada um dos caixotes e urnas
empoeiradas. Desceu as escadas e encontrou Albertine esgueirando-se para
dentro de um dos quartos. Seguiu-a, adentrando em um belíssimo quarto de
casal. Era muito claro e bem iluminado, devido às grandes janelas na parede
lateral; a cama de tamanho suficiente para acomodar quatro pessoas estava
junto à parede às suas costas, bem no centro, e acima dela havia um quadro,
tão grande quanto a largura da cama – uma paisagem primaveril de cores
vibrantes e nostálgicas. A penteadeira estava ao lado da cama, na mesma
parede da porta, exibindo o grande espelho manchado e coberto de pó. Havia
ainda uma cômoda bastante larga, repleta de gavetas e livros largados sobre
ela. Albertine sentou-se à cama, com o olhar brilhante sobre aquele majestoso
recinto, e Jeremy sentou-se a seu lado. A claridade do quarto era reforçada
pelo espelho posicionado exatamente em frente às janelas, refletindo a luz de
maneira vívida, quase a ponto de ofuscar a vista.
— É perfeita! Simplesmente perfeita! – exclamou Albertine de forma
animada. – Olhe para este quarto! Quero dizer, olhe para tudo isto, é tudo
muito grande, bonito e...
— Seu – Jeremy não hesitou em sibilar. Albertine sentiu o rosto
aquecer e corar. – Tudo aqui é seu, desde os portões até esta cama.
— Oh, Jeremy. Sinto-me honrada, mas... esta mansão é sua, é sua
herança, como posso simplesmente entrar desta forma? Não é certo.
— Minha herança, sim. Mas a partir de agora, o que é meu, é seu
também.
Jeremy não se importava em parecer afobado, mas Albertine sentia que
não devia aceitar o que ele dizia. Dentro de sua cabeça não era daquela forma
que as coisas funcionavam.
— Jeremy... eu...
— Espere, fique aí – ele a interrompeu enquanto levantava-se da cama
com um salto.
Seguiu até a penteadeira, abriu uma das duas gavetas, vasculhou-a e
fechou-a poucos segundos depois. Partiu para a segunda, mexendo as mãos
entre os objetos que variavam entre colares, tiaras e brincos. Bem no fundo
da gaveta encontrou o que procurava; apertou-o com os dedos juntos à palma
da mão, fechou a gaveta e novamente virou-se a Albertine, que observava
curiosa. Sem saber exatamente o que fazer ou como agir, após inspirar e
expirar com vigor, largou-se de joelhos aos pés de Albertine. Segurou uma de
suas mãos com delicadeza, enquanto procurava as palavras no emaranhado de
pensamentos.
— Albertine...você... – a voz de Jeremy tremia, falava quase em
sussurro. Antes de terminar a frase, da palma de sua mão suada que se abria
pouco a pouco, ela viu surgir um anel dourado, adornado por uma pequena
pedra brilhante que reluziu à luz do sol. – Você aceita... se casar comigo?
Ela levou uma das mãos aos lábios num movimento instantâneo e
inevitável de surpresa. O silêncio apoderou-se do quarto enquanto o jovem
casal se entreolhava – Jeremy de maneira ansiosa e Albertine de forma
assustada. Tirando os olhos dos dele, ela direcionou-os ao belo anel;
conseguiu vê-lo perfeitamente encaixado em seu dedo, e por um instante
imaginou a quem teria pertencido antes de ser abandonado no fundo de uma
velha gaveta. A mão de Jeremy suava a ponto de umedecer as luvas de
Albertine, que continuava inerte e sem saber o que dizer.
— Minha nossa, Jeremy! Estou muito... surpresa e... lisonjeada – Ela
finalmente disse. Os olhos de Jeremy faiscavam, suplicando uma resposta
positiva. – Eu... eu aceito!
Os dentes muito brancos do rapaz apareceram entre seus lábios, através
de um grande sorriso de felicidade. Meio desajeitado, ele colocou
vagarosamente o anel brilhante no penúltimo dedo de Albertine. Parecia ter
sido feito sob medida – encaixou-se de forma perfeita como ela havia
imaginado. Após o ritual de noivado, levantou-se e puxou-a para perto de si,
os rostos quase colados. Os dedos de Jeremy deslizavam por entre os longos
fios louros, os olhos escuros fixos aos verdes, compartilhando a atração
magnética e poderosa que tornava o espaço entre os lábios menor a cada
segundo. As pálpebras fecharam-se, e o beijo, o tão esperado beijo,
aconteceu.
O CASAMENTO
EPITÁFIO
O VISITANTE NOTURNO
UM NOVO AMIGO
Jeremy acordou muito mais cedo do que o normal naquele dia. A forte
chuva da noite anterior agora transformara-se em um suave sereno, enquanto
o sol permanecia mais uma vez oculto pelas nuvens. Lavou-se em água muito
fria, quase esquecendo as dores que o consumiam. Deixou que Albertine
dormisse, procurando manter o quarto no mais absoluto silêncio. Fechou a
porta e seguiu decidido pelo corredor; parou em frente à porta do quarto de
Rosa. Aplicou três suaves batidas e esperou. De dentro do cômodo ele podia
ouvir leves movimentos, o que já esperava, pois Rosa costumava levantar-se
ao primeiro raio de sol que surgisse no horizonte. Poucos instantes levaram-
se até que a porta foi destrancada e a maçaneta girou; Rosa apareceu pela
fresta, com os cabelos já presos no tradicional coque, e usando seu batom de
tom bege.
— Jeremy? – disse ela, espantada. – Achei que fosse Judith ou Martha.
O que faz acordado tão cedo?
— Preciso que reúna todos agora mesmo, estarei esperando na cozinha
– Jeremy respondeu extremamente seco.
— O que aconteceu?
— Espero todos vocês lá embaixo – ele finalizou a conversa iniciando
seu caminho ao andar de baixo.
Em pouco mais que dois pares de minutos todos os empregados
desceram juntos, Rosa à frente do bando como uma responsável
representante. Chegaram, desconfiados, até a cozinha; Jeremy esperava
sentado em frente à porta, com os olhos fixos ao chão. Imediatamente, assim
que puseram os pés no recinto, todos eles notaram com espanto a
considerável quantidade de pegadas espalhadas pela cozinha, agora formadas
de barro seco.
— O que houve aqui, Jeremy? – perguntou a governanta, parada à
entrada da cozinha.
— O que houve aqui, Rosa, foi algo que poderia ter causado algo muito
sério a todos nós, ontem à noite – ele iniciou-se, levantando da cadeira,
impaciente. – Algum de vocês, ontem, não cumpriu a responsabilidade de
conferir se todas as portas estavam realmente trancadas.
— E estavam! – Rosa retrucou. –Eu mesma vi Judith girar a chave, não
só uma, mas duas vezes!
Jeremy olhou para Judith, que assim como todos os outros, expressava
palidez e até mesmo um leve medo em sua face. Virou-se para a porta,
estendeu sua mão, que ainda tinha um curativo em seu dedo mindinho, e
girou a maçaneta. A porta estava trancada, e por isso permaneceu imóvel,
como deveria ser.
— Uma porta trancada não se destranca sozinha, não é?
— O que está querendo dizer, Jeremy?
— Estou querendo dizer que ontem, enquanto todos vocês dormiam,
alguém invadiu a casa, e foi por esta porta, que estava escancarada!
Nenhum dos cinco empregados conseguiu responder. Judith estava
muito certa de si mesma, de que havia deixado a porta devidamente trancada;
aos outros, só cabia ouvir o sermão em silêncio. Era a primeira vez, desde
que se lembravam, que Jeremy se mostrara tão autoritário. Sabiam que ele
tinha toda e completa razão em estar bravo, porém, sabiam também que nada
de errado foi cometido por eles para receberem tal tratamento.
— Eu e Albertine quase nos deparamos com quem quer que fosse, aqui
nesta cozinha. Ouvimos os passos, e logo assim que nos viu, o intruso fugiu
pelo mesmo lugar por onde havia entrado, que foi esta porta. Poderíamos
estar mortos ou feridos agora, por toda esta irresponsabilidade!
— Me desculpe senhor, eu devo ter cometido um engano. Não foi
intencional, e prometo que não vai mais acontecer – disse a pobre Judith, em
meio a leves soluços.
— Acalme-se Judith, está tudo bem, não aconteceu nada além de um
grande susto – Rosa tentou consolá-la.
Jeremy inspirou profundamente. Caminhou pela cozinha, passando por
cima das pegadas na madeira, e saiu pela sala de jantar.
— Robert e Thomas, quero que me acompanhem até a cidade.
Preparem a carruagem e a charrete, teremos muito que carregar – ele disse,
em um tom que Rosa jamais reconheceria.
— Jeremy, vocês precisam do café antes de ir!
— Poderemos sobreviver a isso. E por favor, limpem esta sujeira, não
quero que Albertine veja isto ainda aí quando acordar.
Com estas últimas palavras misturaram-se os passos do rapaz subindo
novamente os degraus ao andar de cima, de forma atrasada e quase manca.
Adentrou silenciosamente em seu quarto, e vendo que sua esposa ainda
dormia, envolvida nos lençóis brancos, apenas sentou-se à frente da
penteadeira, tentando recuperar o fôlego. Já se sentia arrependido por
tamanha grosseria com seus criados - que além disso eram seus únicos
amigos - mas sentia como se tudo aquilo que dissera fora necessário para
amedrontá-los, para que aquele terrível incidente não voltasse a se repetir. Ele
não havia ainda parado para pensar em que tipo de pessoa havia estado dentro
da casa. Nem mesmo conseguia entender como alguém conseguira atravessar
os portões, e não havia alternativa além desta. Os muros eram
suficientemente altos para imporem-se intransponíveis, e mesmo que um
invasor conseguisse escalá-lo por fora, utilizando as heras como apoio, não as
encontraria por dentro, causando-lhe uma queda que sem dúvidas afetaria
seus membros inferiores. Os portões, por sua vez, além de trancados por um
generoso cadeado rodeado por grossas correntes, eram altos o bastante para
evitar intrusos. Ainda, de onde poderia ter aparecido tal intruso? A cidade
mais próxima ficava a uma hora a cavalo, e a mansão, além disso,
encontrava-se muito bem escondida pelas camadas da floresta. A invasão na
calada da noite seria um mistério que Jeremy tardaria a resolver, mesmo que
pretendesse não mais permitir que acontecesse novamente.
Antes que Rosa e as empregadas conseguissem terminar o café que
preparavam apressadas, os veículos já estavam prontos e partiam rumo à
cidade. Albertine, naquele momento, levantara-se ao ouvir o som das
correntes sendo desenroladas; curiosa, foi até a janela e viu seu marido e os
empregados deixando o jardim da mansão.
— JEREMY! – ela gritou, na falsa esperança de ser ouvida.
Com muita pressa, envolveu-se em seu roupão cor de creme, deixou o
quarto e saltitou pelos degraus até a sala principal. Abriu a porta de entrada,
mas percebeu que os portões já estavam fechados. Deu meia volta,
estranhando aquela saída repentina de Jeremy, e seguiu até a cozinha.
Deparou-se com Judith sentada à pequena mesa, perdida em lágrimas, sendo
consolada por Rosa, enquanto Martha esfregava o chão, removendo aquela
desordem que fora feita enquanto ela e seu marido entretiam-se na sala de
música.
— Judith? O que aconteceu? – indagou Albertine, surpresa.
— Não foi nada – a governanta apressou-se. –Já passou, não há
necessidade em falar disso.
— Rosa, insisto em saber o que aconteceu. E por que Jeremy saiu tão
apressado, tão cedo da manhã?
— Me desculpe senhora, não fiz por mal, foi apenas um descuido! –
Judith disse, em aparente auto-humilhação.
— Mas o que houve? O que você fez?
— Venha, Albertine, deixe-me falar-lhe. Vamos até a sala.
Rosa tomou a fala da amiga, levantando-se e arrastando Albertine pelos
braços. Na sala, explicou-lhe com muita sutileza tudo que se passara na
cozinha, e pediu desculpas por ter deixado tudo aquilo acontecer ao
descuidar-se, e não checar se as portas estavam realmente trancadas.
Albertine reagiu a isso como uma ofensa de Jeremy a todos, inclusive a ela
própria.
— Ele não tinha nenhum direito em agir desta forma, Rosa! Nenhum!
— Não se preocupe com isso querida, ele só estava impaciente. Se bem
o conheço, ele chegará e pedirá desculpas, antes de qualquer coisa.
— Terei uma séria conversa com ele. Muito séria!
Rosa sorria ao ver Albertine enfurecida, impressionada como se tornava
ainda mais bela em meio a todas aquelas expressões de raiva.
— Vá tomar um banho e se vestir, enquanto irei preparar nosso café.
— Não precisa de ajuda?
— Não, não. Vá, suba. Eu me viro.
— Tudo bem, então.
Vagarosamente, a bela mulher iniciou sua subida de volta. Rosa
esperou, ao lado da escada, até que percebeu uma pausa na ação de Albertine.
Ela havia parado, e por algum motivo, curvou-se e passou a friccionar as
mãos contra um dos tornozelos.
— Algum problema, Albertine?
— Não, Rosa. Apenas uma estranha dor nas pernas, nunca havia sentido
isto antes. Talvez seja uma sequela do terrível susto de ontem.
Rosa respondeu com um aceno sutil, retornando à cozinha logo em
seguida. A água do café já fervia, e Judith já se pusera de pé, embora ainda
soluçasse. Pouco a pouco o humor de todas elas foi assumindo sua forma
comum, embora não sentissem vontade em conversar aquela manhã.
Foi somente no vigor do sol da tarde que os homens retornaram. Na
carroceria da charrete trouxeram inúmeras barras de ferro, correntes e
cadeados. De dentro da carruagem, Jeremy saiu carregando nos braços uma
caixa de madeira, de tamanho médio; dentro dela, algo parecia se mover,
talvez tentando sair, ou apenas cambaleando de um lado a outro. Em passos
decididos, deu a volta pela mansão, chegando até o quintal. Judith
encontrava-se lá, lavando dois ou três lençóis no grande tanque de pedra.
Jeremy passou por ela, e com um pouco de esforço, curvou-se e depositou a
caixa no chão, ao lado da porta que levava até a cozinha. O que quer que
estivesse dentro dela, ainda se mexia de forma eufórica, e demonstrou ainda
mais agitação ao perceber que não estava mais a ser carregado. Jeremy
atravessou a cozinha e a sala de jantar, e do pé da escada da sala principal,
chamou por Albertine. Ele sabia que ela não responderia; algo que poucas
vezes chegara a presenciar foi um raro momento em que, por alguma
necessária razão, Albertine elevasse sua voz. Esperou poucos segundos, e
logo ouviu a porta do quarto abrir-se e fechar-se logo em seguida. Albertine
surgiu no topo da escada, trajando um vestido azul que Jeremy nunca havia
visto antes. Parecia aborrecida.
— Onde esteve, Jeremy?
-Fui até a cidade. Desculpe não tê-la avisado.
— E o que foi fazer lá, tão cedo?
— Algo que precisava ser feito.
O rosto angelical de Albertine expressava uma sutil agressividade, algo
que fazia Jeremy, quase sempre, desistir de começar uma discussão, por mais
sociável que ela pudesse parecer.
— Se você soubesse o quanto fica bonita assim, quase brava comigo,
faria isso mais vezes – disse Jeremy, ainda parado ao início dos degraus.
Albertine cruzou os braços e o encarou, crispando os lábios.
— Por que você nunca me leva a sério?
— Vamos querida. Pare com isso. Eu saí muito cedo, não queria
acordá-la, ainda mais após aquele susto que tomamos ontem. Achei que
precisava descansar.
— Foi apenas um susto. E precisamos conversar sobre isso!
— Quer dizer que está brava comigo porque saí de casa sem avisá-la? É
isso?
— Não, Jeremy. Mesmo achando que você poderia, ao menos, ter
avisado que deixaria a mansão, não é por isso que estou ‘quase brava’ –
Albertine respondeu com mais seriedade do que antes, dando uma quase
divertida ênfase às duas últimas palavras.
— Olhe... falaremos sobre isso mais tarde, certo? Trouxe algo da
cidade, e quero muito que você veja. Tudo bem?
Albertine rendeu-se, sabia que não conseguiria manter aquela dura
posição por muito tempo, frente a toda doçura que Jeremy sempre lhe
apresentava. Após um longo suspiro, iniciou a descida; suas pernas
causavam-lhe fortes dores, que atrasavam seus movimentos e assimilavam a
jovem a uma idosa doente, que insistia em subir e descer escadas.
— O que houve com suas pernas? – Jeremy perguntou, já indo ao
encontro de sua esposa, disposto a ajudá-la em seu trajeto.
— Não sei dizer. Hoje cedo, quando acordei, já sentia algumas dores.
— Pedirei a Rosa para preparar algumas compressas. Talvez esteja
precisando aquecer os ossos.
— Certo, doutor.
— Esqueceu que se casou com um pobre enfermo? Sou mais experiente
nisso do que imagina. Este tempo frio, a umidade, tudo isto não faz muito
bem ao esqueleto de ninguém.
— Nunca tive nenhum destes sintomas. Espero que não comecem a
aparecer agora.
— Muito bem, aqui estamos – ele disse ao alcançarem o último ponto
da descida. –Consegue andar?
Albertine, sentindo-se ligeiramente desconfortável em estar sendo quase
carregada, respondeu com um positivo aceno de cabeça. Seguiram até o
quintal, Jeremy à frente, exalando um estranho entusiasmo que deixou a
moça intrigada. Ao cruzar a porta, ela deparou-se com o esposo ajoelhado,
tendo as duas mãos apoiadas sobre a tampa da caixa de madeira que havia
deixado lá, antes de entrar. Os estranhos movimentos vindos de dentro da
caixa ainda não haviam cessado.
— O que é isto, Jeremy? Foi isto que trouxe da cidade?
— Sim!
— E vai me deixar ver, ou não?
— Acalme-se. É um acontecimento especial, um presente que quero lhe
oferecer.
— Ainda estou esperando.
A trava da caixa foi aberta em um clique, e a tampa cuidadosamente
levantada. Do interior da caixa, eufórico e animado por estar finalmente livre,
saltou um pequeno filhote de cachorro.
— Jeremy! Mas... minha nossa! – Os lábios de Albertine abriram-se em
espanto, os olhos claros brilharam de repentina felicidade, absurdamente
contrastando com a falsa personalidade que demonstrara há pouco, apenas
para repreender o esposo.
O pequeno animal, de pelo claro e brilhante e da mais pura raça de
labrador, não recuou ao ser capturado pelos braços de Albertine. Suas
pequenas patas moviam-se freneticamente, sua fina cauda sacudia como uma
varinha descontrolada. Jeremy apenas observava, enquanto Albertine
acariciava e conversava com o animal, tão feliz quanto uma criança ao
receber presentes de Natal. A empatia entre o até então sem nome cachorro e
sua nova dona foi instantânea. Jeremy sentiu-se feliz; sempre sentia aquela
dose de felicidade ao fazer Albertine sorrir.
— Jeremy, isso é maravilhoso! – ela exclamava, repetidamente.
— Fico contente por ter gostado.
— E como poderia não gostar? Olhe só para ele!
— Ele precisa de um nome, não acha?
— Vai me deixar escolher o nome?!
— Mas é claro. Ele é seu!
— Não quer mesmo me ajudar a escolher?
— Não sou muito bom com nomes. Sinta-se à vontade!
Albertine, ainda sem conter a excitação, estendeu o filhote ao alto como
um bebê. Ele olhava para ela, para Jeremy, para sua nova casa. De longe,
Judith observava contente, enquanto concluía a lavagem dos lençóis.
— E então, pequenino, que nome lhe daremos? Deixe-me pensar... que
tal Rufus? – ela questionou-se, dirigindo um olhar a Jeremy, pedindo ajuda.
Ele respondeu com uma careta engraçada, desaprovando a sugestão. –Não?
Então... Ringo. É isso. Ringo!
— É um bom nome!
— Muito bem, Ringo, venha conhecer seu novo lar!
Enquanto Albertine distraía-se na tarefa de levar seu novo amigo a
todos os cômodos da mansão, Jeremy caminhou até os portões de entrada,
ansiando auxiliar Robert e Thomas na tarefa a que foram incumbidos, embora
soubesse que nunca fora realmente hábil em realizar trabalhos manuais que
não envolvessem cálculos. As barras de ferro já haviam sido descarregadas,
assim como todos os outros objetos. Os veículos já haviam sido guardados
em seus devidos locais, e os dois empregados já trabalhavam juntos para,
conforme solicitado pelo patrão, reforçarem a segurança da entrada da
propriedade. As compridas barras de ferro estavam prontas para serem
acopladas aos portões, dando-lhes um considerável aumento de tamanho. As
correntes reforçariam a segurança das barras, trançadas de maneira a fixá-las
nas grades.
— E então, como estão indo?
— Não levaremos muito tempo para terminar – respondeu Thomas com
sua voz grave, virando-se para Jeremy, levando uma das mãos sujas à frente
do rosto, protegendo-se da luz do sol.
— Precisam de ajuda? Não sou muito bom com isso, mas posso ajudar
no que for preciso.
— Não senhor, pode deixar tudo conosco. Somos peões experientes, e
apesar de um pouco velhos, ainda aguentamos muito bem – respondeu
Robert, levantando uma das barras espalhadas pela grama.
Os dois homens já haviam reforçado o primeiro portão quase por
completo. As barras estendiam-se por mais de um metro acima dele, tornando
aparentemente impossível qualquer nova tentativa de invasão. Jeremy
agarrou duas delas, já fortemente afixadas, e tentou sacudi-las, em prova se
eram realmente confiáveis. As barras mostraram-se imóveis e Jeremy,
completamente satisfeito, exceto sobre o detalhe de suas mãos terem
encontrado as áreas do objeto onde existiam concentrações de sujeira, poeira
e fuligem. As digitais do rapaz desenharam-se às barras, excluindo-se as
daquele dedo ainda protegido por uma gaze.
— Acho melhor ir lavar as mãos, essa fuligem misturada ao pó de ferro
pode causar-lhe problemas – Thomas aconselhou o patrão, estendendo-lhe
uma das mãos. – Vê estas marcas? As mulheres não gostam muito.
Em grandes risos, os dois empregados prosseguiram em seu serviço,
enquanto Jeremy, um tanto constrangido, retornava ao interior da casa. Na
sala, Albertine, agora junto a Rosa, paparicava Ringo ao mesmo tempo em
que tentavam decidir onde o animal dormiria. Rosa sugeriu-lhe um dos
quartos vazios, já Albertine rebatera esta indicação alegando que o pobre
animal iria sentir-se solitário. Optara pela sala de música, visto que tinha
acesso livre à sala principal. Enquanto Jeremy subia as escadas, divertiu-se
com toda aquela euforia das duas mulheres, que naquele novo momento
escolhiam três ou quatro almofadas para presentear Ringo.
Já em seu quarto, Jeremy desvencilhou-se do colete que vestira antes da
viagem. Afrouxou o colarinho que o incomodava, desamarrou os sapatos
ligeiramente sujos de lama e dirigiu-se ao banheiro. Precisava de um bom
banho, e faria isto mesmo com água não aquecida, o que não seria tão
desagradável naquele momento devido ao calor que vinha sentindo desde
bem cedo. Pensava nisso com estranheza, de fato, pois na tarde anterior mal
conseguia manter-se de pé sem que seu corpo parecesse inútil, devido às
dores, que naquele momento o consumiam em bem mais baixa intensidade.
Após despir-se por completo, observou sua própria figura diante do espelho;
notou-se ligeiramente mais corado do que sempre fora, e até mesmo mais
encorpado. Era óbvio, ele pensava, que aquela nova vida estava lhe causando
tais mudanças, que mesmo imperceptíveis aos olhos dos outros, até mesmo
dos de Albertine, faziam-lhe muito bem. Observou cada detalhe: seus
cabelos, seus ombros, seus braços, e tudo parecia levemente mais agradável.
Por último, fitou as magras mãos, e notou que ainda não havia removido as
partículas de sujeira delas. Visando substituir o curativo em seu dedo menor,
Jeremy pôs-se a remover a gaze, vagarosamente, temendo ainda ver o
ferimento não cuidado infeccionado ou qualquer outra injúria do gênero. Mas
não foi realmente o que viu. De fato, ela nada viu. O corte, recebido há
menos de uma semana, desaparecera por completo. Não havia cicatriz, nem
mesmo uma fina marca; por dentro do curativo havia apenas um dedo sadio,
exibindo uma fina veia pulsando sob a quase fantasmagórica pele branca de
Jeremy.
Capítulo XIII
A FALSA ROSA
O sol continuava tão atraente quanto antes, mas o vento agora soprava
com mais vigor, fazendo os cabelos da moça esvoaçarem acima dos ombros.
Ela sentou-se novamente à sombra da mesma árvore, de onde podia ver a
frente da mansão, de um canto a outro. As janelas de seu quarto estavam
abertas, porém bloqueadas pela cortina. Jeremy recusava-se a dormir em um
quarto muito claro, sempre preferia a penumbra total a qualquer tipo de
iluminação durante o sono, e esta era uma das poucas coisas que o
diferenciavam de Albertine.
Antes que ela pudesse iniciar sua desejada leitura, viu o busto de seu
amado surgindo por entre as cortinas. Jeremy inclinou o pescoço para fora,
apoiando-se ao parapeito; seus cabelos estavam desarrumados, e seus olhos
apertados pelo sono e pela claridade que ardeu em suas retinas. Da janela, ao
olhar-se para fora, era impossível avistar Albertine devido à posição em que
ela se acomodara; o espesso tronco da árvore escondia quase todo seu corpo,
e do campo de visão do quarto, era impossível distinguir qualquer coisa que
estivesse frente ao muro e aos arbustos. Jeremy expressava faces engraçadas
enquanto bocejava e alongava os braços. Não demorou até que tornasse a
fechar as cortinas, percebendo que ainda era dia. Albertine voltou sua atenção
ao primeiro capítulo da obra de Boccaccio, e não se permitiu mais distrair por
qualquer outra coisa.
Foi só quando o crepúsculo apontou no horizonte que o livro foi
fechado, após ser marcado com uma fitinha vermelha que o acompanhava. A
fome que Albertine sentia agora incomodava bem mais que antes,
impossibilitando uma nova recusa em visitar a cozinha. Antes que entrasse
em casa, ela sentiu que o vento, subitamente, mudara de direção, e uma nova
noite de chuva era a melhor resposta a esta mudança. Na sala, Ringo ainda
dormia tranquilamente. Da cozinha, de forma indefinida, vinham alguns
ruídos carregados pela corrente de ar que circulavam pela comprida casa. Isto
tranquilizou Albertine – provavelmente Rosa estaria preparando o chá da
tarde, como costumava fazer, e ela não precisaria estar lá sozinha. Assustou-
se com um som metálico, algum objeto caíra ao chão, na cozinha. “Talvez
Rosa precise de ajuda”, pensou, porém, antes que ela pudesse ir até lá e
certificar-se disto, ouviu Jeremy chamá-la do quarto. Desta vez resolveu
atendê-lo; saltitou pelos degraus e, chegando mais uma vez ao corredor onde
já estivera tantas vezes naquela tarde, decidiu recolocar o livro na biblioteca.
Não pretendia deixá-lo em seu quarto, pois Jeremy mostrava sinais de mal-
estar ao permanecer num ambiente onde, por menor que fosse, existisse
qualquer tipo de item prejudicado por fungos. Antes que pudesse entrar,
notou que a porta estava agora entreaberta, tendo a certeza de tê-la deixado
bem fechada da última vez. Vagarosa e cautelosamente, empurrou a porta
com a ponta de dois dedos; ela rangeu enquanto se movimentava em arco.
Pela abertura, Albertine pôde ver Rosa bem à sua frente, estranhamente
ajoelhada, as mãos apoiadas ao piso de madeira, os olhos fixos nelas. A
entrada da esposa de seu patrão não causou-lhe efeito algum; de fato, parecia
ainda nem tê-la visto.
— Rosa?! – disse Albertine, surpresa.– Ouvi ruídos vindos da cozinha,
achei que estivesse lá preparando nosso chá.
A governanta permaneceu exatamente como estava. Inerte, imóvel
como uma estátua de gesso. Suas mãos, agora, pareciam aplicar pressão sobre
o piso. Albertine observava assustada, enquanto as mãos de Rosa tornavam-
se vermelhas, em resposta à força que aplicava. A madeira abaixo das mãos
rangeu e estalou. Os olhos de Rosa, então, encontraram os de Albertine. Eles
não tinham nada por dentro das órbitas. Eram ocos.
— Rosa! O que está fazendo?
— Albertine?! – disse uma voz conhecida às costas da moça, em
resposta.
Aqueles olhos, ou talvez a ausência deles, não era mais suportável.
Albertine ofegava, sentindo-se arrepiada e aterrorizada, entretanto, nenhuma
força havia para fazê-la virar-se e desviar-se daquela macabra visão. Estava
como em um pesadelo: podia ver tudo a seu redor, de olhos bem abertos, mas
não conseguia se fazer acordar.
— Albertine, está me ouvindo? – a voz tornou a dizer.
Novamente, nenhuma resposta. Albertine então ouviu passos, cada vez
mais próximos, às suas costas; sentiu a presença de algo muito frio, sentiu
esta aura gelada atravessá-la. Despertou, então, de seu pesadelo, quando uma
mão tocou-lhe um dos ombros, girando-a sobre o próprio eixo.
— Albertine, com quem estava falando?
Era Rosa. A mesma Rosa que, há um par de segundos, estava prostrada
bem à frente da moça, sem olhos, sem qualquer traço de humanidade.
— R-Rosa?
— Albertine! Fale comigo, querida! – respondeu a governanta em
agonia, ao perceber que toda a cor fugira do rosto da moça. –Está pálida e
gelada!
— E-eu... – sibilou, ainda mais aterrorizada após olhar para o interior da
biblioteca e enxergar nada mais do que prateleiras recheadas de livros.
Albertine tentou falar, mas a voz não saiu de sua garganta. Pareceu
perdida, dispersa em algum tipo de transe. Rosa guiou-a até o interior da
biblioteca, e ajudou-a a sentar-se no grande e espaçoso sofá. O olhar
assustado focou-se no local onde a falsa Rosa não mais se encontrava –
apenas um encontro de paredes vazio.
— Há quanto... quanto tempo está em seu quarto? – questionou
Albertine, realmente temendo o que ouviria como resposta.
— Passei toda a tarde lá, querida. Não estava me sentindo bem, então
me deitei para descansar até que os outros retornassem.
O vulto entrando na galeria, os ruídos na cozinha, o objeto caindo ao
chão e, acima de tudo isto, a mulher sem olhos, ajoelhada na biblioteca. Nada
daquilo havia sido real, não ao menos aos ouvidos de qualquer pessoa a quem
Albertine contasse o que vira. Sua mente estava em pânico, mas sua razão
ainda falava em tom maior. Não queria passar-se por louca. Aquela rápida
visão nascera e morrera ali mesmo, naquela biblioteca.
— Venha, vamos até a cozinha, farei um chá para nós – sugeriu a
governanta, oferecendo ajuda para que Albertine conseguisse levantar-se do
sofá.
— Tudo bem, Rosa, eu posso andar sozinha. Só tive uma rápida tontura,
mas já estou melhor.
— Tem certeza? Não quero vê-la rolando escada abaixo!
Albertine fingiu um sorriso e acompanhou Rosa até a saída da
biblioteca, mas antes que saíssem de lá, voltou a checar aquele local no canto
da sala. A figura da Rosa sem olhos, por algum motivo pressionando a
madeira do piso, ficaria para sempre naquele lugar, cada vez que os olhos da
única pessoa que a vira pousassem sobre ele.
Capítulo XIV
U M B R I N D E, U M S E G R E D O, U M A P R O M E S S A
NECRONOMICON
Albertine acordou sentindo frio. Já era dia, um dia sem sol, e por um
segundo, ela não entendeu por que não estava em seu quarto. Porém, logo
tudo se endireitou em sua mente e ela lembrou-se, em rápidas passagens, de
tudo que acontecera horas atrás. Jeremy não estava lá, somente o casaco que
usara na noite anterior jazia na poltrona. Albertine ergueu lentamente o corpo
a fim de sentar-se, moveu as pernas para fora do colchão, e logo estava de pé.
Sentiu os lábios secos como nunca antes, e uma indescritível sensação de
ardor nos olhos, ainda resultante do incidente com o fogo. Esgueirou-se pela
porta entreaberta, e logo percebeu que não havia ninguém no corredor.
Caminhou em passos silenciosos, e enquanto descia as escadas à sala, ouviu o
som abafado das vozes de Jeremy, Rosa e Robert em uma conversa,
provavelmente na cozinha. O atraente aroma do café fez o estômago de
Albertine incomodar-se pela fome, mas aliviou a consciência da moça sobre a
possibilidade de ter excedido seu tempo na cama.
As vozes foram tornando-se audíveis à medida que ela se aproximava
da cozinha, e por algum motivo, curiosidade talvez, passou a andar nas
pontas dos pés para evitar ser ouvida. Interessou-se em saber o que
conversavam sem que notassem.
— Mas como isso é possível? Não havia nada lá? – a voz de Jeremy
soou de maneira curiosa e parcialmente confusa.
— Não – respondeu Robert. –Checamos três, quatro vezes. O único
motivo que conseguimos imaginar seria uma das lamparinas indo ao chão,
derramando o óleo sobre o carpete.
— A lamparina estava muito bem apoiada à escrivaninha. Eu mesmo
certifiquei-me disto.
— Até quando ficarão tentando decifrar o indecifrável? – disse Rosa,
em meio ao som de alguns objetos encontrando-se. –Pelo menos de uma
coisa eu tenho certeza.
— E o que é?- disse Jeremy.
— Você e Albertine precisarão de um novo carpete!
Os três então compartilharam um riso, fazendo a conversa
instantaneamente perder o foco. Retornando ao ritmo normal, Albertine
esforçou-se para tornar seus passos audíveis e não demonstrar que espionava
a conversa.
— Bom dia! – ela disse da entrada da cozinha.
— Bom dia! – responderam todos simultaneamente, parecendo
surpresos ao vê-la já acordada.
— Jeremy, por que não me acordou? Não gosto de parecer preguiçosa!
— Achei que precisasse descansar um pouco mais – ele retrucou,
levantando-se da cadeira, indo até sua esposa e abraçando-a. - Você está
bem? Não se sente mal?
— Só estou um pouco tonta, minha garganta está seca também...
— Você inalou muita fumaça ontem, querida – Rosa inseriu-se à
conversa, enquanto enchia um copo com água. –Não é de se estranhar que
esteja se sentindo assim.
Albertine pegou o copo de vidro fino e levou-o aos lábios ressecados. A
água fresca escorreu por sua garganta, proporcionando um prazer que ela não
saberia descrever. Jeremy ainda a abraçava, com os braços entrelaçados na
cintura da esposa, o queixo apoiado em seu ombro. Antes que a água do copo
fosse completamente bebida, ele levou uma das mãos aos cabelos de
Albertine. Entre dois dedos separou uma fina mecha de fios louros e levou-a
à frente do rosto; sentiu o cheiro de fumaça impregnado em sua amada.
— Err... querida?
— Sim?
— Eu acho que você precisa de um banho.
— Jeremy!
Rosa sorriu discretamente enquanto Albertine cheirava cada parte
alcançável do corpo. Algo que deixava Albertine realmente irritada, de forma
irreversível por várias horas, era alguém indicar-lhe que não cheirava bem.
— Venha, vou preparar um banho para você – ofereceu-se a
governanta, indo até a moça e segurando-lhe um dos braços.
— Terei de fazer uma visita à vila, afinal, precisamos trocar a tapeçaria
do quarto. Trarei algum tapete grande para cobrir aquele estrago.
— Tudo bem, querido, tenha cuidado. Esperarei para almoçarmos
juntos.
E assim aquela manhã foi decidida. Jeremy seguiu sozinho à vila,
usando uma das charretes. Albertine, por sua vez, sentia fortes dores de
cabeça, ao mesmo tempo em que sentia algo pressionar suas entranhas, mas
evitava demonstrar qualquer tipo de injúria que viesse a deixar os outros
preocupados. Nem mesmo permitia-se falar sobre o estranho acontecimento
da noite passada, mas algo acontecera no quarto enquanto Rosa e Jeremy
conversavam na sala de música. O que para os outros ocupantes da mansão
parecia um incêndio inexplicável, também era para Albertine, porém de uma
maneira imensamente mais aterrorizante. Em sua mente estava afixada a
imagem daquela mulher, a mesma mulher sem olhos que vira na biblioteca,
caminhando ao redor da cama; sustentava uma lamparina acesa em uma das
mãos, e com a outra carregava uma folha de papel, uma espécie de página
retirada de algum livro antigo. Não exibia, como antes, a aparência de Rosa.
Surgira desta vez como uma mulher magra, de média estatura, de cabelos
lisos, à altura dos ombros, e tão negros quanto a noite que se consumia no
céu. Vestia uma espécie de mortalha – uma veste branca, com detalhes florais
espalhados por todo seu comprimento. Ela se movia como um incessante
pêndulo, da esquerda à direita, observando sem olhos, através das fendas
escuras no rosto descorado. Albertine sentira a voz perder-se em meio à falta
de ar causada pelo medo. Não conseguiria gritar ou sibilar qualquer palavra
enquanto aquela presença estivesse rondando seu leito. Até mesmo sua visão
parecia distorcida, cortando-se em flashes cada vez que os olhos piscavam.
Foi em um destes lampejos que a mulher desapareceu – tão sutilmente quanto
surgira – e o quarto já ardia em chamas impiedosas e instantâneas. E uma
dúvida surgia, naquele momento, nos pensamentos de Albertine. Tentava
examinar cada setor de seu cérebro a descobrir se, afinal, estaria
enlouquecendo.
— Querida? – disse Rosa, tocando o ombro da moça, despertando-a de
sua compenetrada autoindagação.
— Sim, Rosa?
— Seu banho já está pronto!
— Oh, sim. Já estou indo.
Enquanto Albertine seguia ao banheiro para lavar o corpo esbelto na
água morna da banheira, Rosa tentava decifrar os pensamentos dela através
de suas expressões. Aqueles grandes olhos verdes eram, mais do que para
qualquer outra pessoa que Rosa já chegara a conhecer, espelhos que refletiam
a alma e os sentimentos de sua dona. Era notável que algo a perturbava
naquele momento, dada a falta de contato visual que a moça esforçava-se em
manter. Mas a governanta, com toda a discrição que sempre cultivara,
procurava não questionar ninguém sobre seus assuntos únicos e pessoais.
Após dobrar um par de toalhas e guardá-las no armário do banheiro, ela
deixou o quarto e retornou a seus afazeres no andar de baixo. Albertine levou
poucos minutos para concluir seu banho, e agora, sentindo-se limpa e livre
dos resíduos de fumaça, tinha uma ideia pululando em sua mente. Precisava
ir a um certo local.
A porta da biblioteca rangeu e atritou-se ao piso quando foi aberta. As
cortinas encontravam-se desamarradas, movendo-se lentamente ao vento que
vinha de trás delas, pelas janelas abertas. Estava bem iluminada pela luz
quente do sol, e até poderia ser um local agradável para gastar-se um pouco
de tempo em um bom livro, mas não era de fato o que Albertine pretendia
fazer ali. Antes que prosseguisse, checou o corredor para certificar-se de que
nenhum dos criados rondava o andar de cima, então atravessou a entrada,
deixando a porta entreaberta para que ouvisse, com antecedência, caso
alguém resolvesse aparecer.
Não sabia exatamente o que estava fazendo, por isso caminhou de um
canto a outro, ouvindo apenas o som de seus passos ecoando pela biblioteca.
O som era seco e maciço, e manteve-se como tal por toda a extensão do piso.
Por um momento Albertine sentiu-se boba por nem mesmo saber o que
queria encontrar – ou mesmo se havia algo a ser encontrado – mas continuou
explorando cada centímetro do aposento. Por intuição, estava reservando
certo trecho do piso para o final - aquele encontro de paredes, onde tivera a
terrível visão da Rosa fantasma pressionando as mãos contra a madeira.
Sentiu o coração acelerar ao chegar até lá, quando o salto de seu sapato cor de
carmim produziu um som completamente distinto ao chocar-se contra o piso
naquele local específico. A madeira parecia menos espessa, e o piso, oco. A
curiosidade aflorou em suas veias naquele momento, após ter quase a certeza
de que a aparição estava, de alguma maneira, tentando mostrar alguma coisa
escondida naquela biblioteca.
Albertine sustentou a barra de seu vestido com as mãos e lentamente
ajoelhou-se, no exato local, na exata posição onde a mulher inexistente se
mostrara pela primeira vez. Era óbvio o que tinha de ser feito agora. As mãos
moveram-se, trêmulas e indecisas, até o assoalho; as palmas apoiaram-se à
tábua que se estendia até o fim da parede, enquanto as pontas dos dedos
aplicavam uma ligeira pressão para baixo. A madeira rangeu, e para o grande
espanto de Albertine, a extremidade da tábua elevou-se em resposta ao
movimento de suas mãos. Por um segundo a esposa de Jeremy hesitou. O que
estava fazendo, afinal, era bisbilhotar um possível segredo que a ela não cabia
descobrir. Porém, ela e apenas ela recebera o sinal, a aparição indicando-lhe o
que fazer, e isto fez com que continuasse. Removeu a tábua empoeirada e
descansou-a bem a seu lado, recostada à parede. Estava, pois, diante de uma
fenda no piso. Um compartimento secreto, oculto pela tábua solta, há quantos
anos era impossível saber.
O espaço era relativamente raso, e dentro dele escondia-se algo
retangular, envolvido por um retalho de tecido de um tom marrom
envelhecido. Nada havia, além disto, no compartimento. Albertine ergueu o
corpo até obter uma melhor visão sobre o que quer que estivesse escondido,
então afundou o antebraço pela fenda. Segurou o objeto e imediatamente
percebeu que estava a apalpar um livro. Retirou-o com cuidado, surpreendeu-
se com o peso excessivo do volume, e largou-o sobre o piso. Além do tecido
muito velho e encardido que o envolvia, um fino laço feito com uma fita
vermelha se estendia ao redor do embrulho. Albertine desatou facilmente o
laço, e uma a uma, passou a desdobrar as abas macias, que passavam a ligeira
impressão de imitar um envelope. Albertine engoliu a seco e sentiu um leve
sopro frio em suas entranhas naquele momento, ao fixar seus olhos na capa
do livro.
Necronomicon, era este o título do livro. As letras que o formavam
exibiam-se prensadas no que parecia ser um tipo de couro muito espesso, em
uma única camada que compunha toda a capa. Não havia qualquer outro tipo
de texto, nem mesmo o nome do autor daquele estranho livro, além do título
aparentemente estrangeiro do mesmo. “Necronomicon”, Albertine pensava.
Nada percorria-lhe a mente ao sussurrar tal palavra. Tomada de curiosidade,
virou a capa, exibindo uma página de papel amarelado, muito envelhecido,
roído em suas extremidades por traças, assim como todas as outras páginas.
Nada havia escrito nesta primeira lauda. Virou-a, e na segunda página viu
uma frase curta, formada por seis palavras a ela desconhecidas. A tinta usada
para escrevê-las tinha, estranhamente, um aspecto conhecido por qualquer um
que colocasse os olhos sobre ela. Era terrivelmente parecida com sangue,
desde a cor escuro-avermelhada até a consistência com que se inclinava para
fora do papel. “Ad eundum quo nemo ante iit”, era o que dizia a frase.
Albertine não sabia o que aquilo significava, mas podia deduzir que era,
claramente, uma frase que representaria o conteúdo daquele estranho livro.
Antes que pudesse prosseguir até a próxima página, o som de passos
denunciou que alguém subia as escadas rumo ao corredor. Imediatamente
Albertine fechou o volume, levantou-se, e repôs a tábua de volta a seu lugar
original. Encaixou o Necronomicon em um espaço vazio em uma das
prateleiras; ele destacou-se em meio aos outros livros, com sua estranha
aparência medieval, proporcionada pelo grosso couro que o envolvia.
— Albertine? – a voz de Rosa soou do início do comprido corredor.
— Estou aqui, na biblioteca! – a moça respondeu imediatamente,
certificando-se em não ter deixado à vista nada que denunciasse sua
descoberta.
— Não vai descer para o café? Estamos esperando!
— Oh, eu esqueci completamente! Já estou indo, Rosa.
Albertine olhou para trás antes de deixar a biblioteca. Toda a fome, todo
o ardor em seus olhos, tudo havia sido substituído pela inexplicável ânsia de
folhear aquele livro, encontrado sob circunstâncias tão incomuns. No
corredor, Ringo esperava abanando sua pequenina cauda, ao lado da
governanta, prostrada ao início dos degraus.
Desceram juntas e apreciaram a refeição, porém, Albertine apenas
fingia prestar atenção ao que lhe conversavam. Necronomicon era tudo o que
agora rebatia nas paredes de sua consciência.
PERFUME DE VIOLETAS
ODEMÔNIO NA GAIOLA
REENCONTRO
O CONTRATO
O SEGREDO DE DIANNE
Albertine fechou o volume assim que alcançou o fim da página que lia,
e o silêncio imperou absoluto por instantes que pareceram eternos às duas
mulheres. Não conseguiram levar os olhos uma à outra. De repente tudo
havia se tornado pesado demais para que pudessem sustentar sem fraquejar,
sem perder as esperanças, sem imaginar que qualquer atitude tomada a partir
das últimas revelações seria em vão. Rosa levantou-se da poltrona, movendo-
se até a janela aberta até a metade. Sentiu que precisava de ar, ou talvez
precisasse desviar seus pensamentos das palavras proferidas por Albertine.
Uma revoada de pássaros atravessou os ares no momento em que a
governanta ergueu seus olhos ao céu muito azul, manchado aleatoriamente
por nuvens de aparência majestosa. Albertine nada disse, apenas esperou até
que Rosa se mostrasse pronta a continuar a conversa.
— Tudo se encaixa de forma perfeita – disse Rosa, ainda observando o
exterior da mansão. –Após duas décadas, todos os fatos me caem perfeitos
como luvas. Era para isto, então, que Dianne utilizava o livro. Foi assim
que...
— Que Jeremy sobreviveu – Albertine antecipou-se. –Foi por um ser
invocado através deste livro que Jeremy conseguiu manter-se vivo.
Toda a história de Dianne Ridell naquela casa tomou, então, um novo
rumo. Tudo em que Rosa acreditava, tudo o que pensava sobre a mãe de
Jeremy foi levado pelo sopro inesperado da aterrorizante revelação que
repousara sobre todas as vidas dos que ocupavam aquela mansão. As
lembranças de duas décadas atrás moldaram-se em novos formatos e nuances,
e as lacunas deixadas pelos fatos inexplicáveis foram sendo preenchidas uma
a uma. Entretanto, talvez ainda mais assustadoras do que as memórias eram
as certezas segundos atrás adquiridas. Os mistérios e segredos, os momentos
mais obscuros daquelas paredes antigas, agora faziam sentido. Era uma casa
amaldiçoada, assim como seu único dono e herdeiro, por um espírito maligno
– um demônio.
— E este ferimento em sua cabeça, assim como os outros, assim como
suas dores. Tudo isto quer mesmo dizer o que estou me esforçando e
desejando em não acreditar? – disse Rosa virando-se e encarando a pálida
jovem deitada à cama.
Albertine engoliu a seco antes de pensar em qualquer palavra a dizer,
mas só havia uma óbvia resposta à questão disparada por Rosa.
— Tudo isto está sendo transferido a mim, a pessoa mais próxima a
Jeremy. O Agathodaemon suga de mim toda a saúde e vitalidade, entregando-
a a seu mestre.
— Obviamente, eu já havia notado as coincidências entre alguns
acontecimentos, mas agora percebo de uma vez por todas que tudo está
acontecendo novamente. Dianne ofereceu sua vida ao filho. Toda sua
vitalidade, suas energias; só assim ele conseguiu escapar do destino que lhe
teria levado embora em não mais que uma semana.
— E agora, como pagamento ao contrato assinado, a alma de Dianne
perambula pela mansão, atormentando os vivos – explicou Albertine,
gesticulando de maneira discreta. –Mas o que a prende a mim, Rosa? Quais
motivos Dianne teria para tentar me matar, como já fez várias vezes, mas
também para me guiar até locais importantes a fim de me revelar coisas que
jamais descobriria sozinha?
— Como eu já disse, Dianne sempre foi uma mulher muito misteriosa, e
parece ter mantido esta parte de sua personalidade mesmo após sua morte.
Albertine tornou a embalar os livros, e tão logo finalizou este processo,
largou o pacote ao lado da cama e, decidida, disse:
— Temos de ir até a cidade.
— Já esperava ouvir isso a qualquer momento, mas Albertine, não está
em condições de sair desta cama, muito menos de ir até a cidade.
— Preciso ver o Padre Jullian. Somente ele poderá me ajudar agora.
— Mesmo que não estivesse ferida, sabe que Jeremy não permitiria que
falasse com Jullian, não é?
— Sou muito mais esperta que ele – disse Albertine com ar divertido. –
Poderia distraí-lo facilmente.
— Jamais duvide da inteligência e astúcia de Jeremy. Ele pode
surpreendê-la.
— Sei que sim. Ele sempre o faz.
Após o consentimento silencioso de Albertine, Rosa apanhou o
embrulho largado sobre os lençóis amarrotados e procurou com disparos de
olhar por algum local seguro para escondê-lo.
— Vou levar estes livros e guardá-los onde somente eu os encontre.
Não precisamos de mais problemas. Você, Albertine, seja uma boa moça e
não tente se levantar desta cama. Está muito fraca. Eu falarei com Jullian, o
mais rápido possível.
— Vou escrever-lhe uma carta, mas precisa se certificar que Jeremy
não saiba disto.
— Tenho tanta vontade de acabar com isto quanto você. Se Jullian é
capaz de nos ajudar, então que assim seja. Jeremy não saberá de nada.
— Realmente espero que não.
Calaram por alguns instantes, ainda afetadas pelo breve texto que
Albertine lera em voz alta instantes atrás. Embora conseguissem enganar uma
à outra, demonstrando falsas esperanças de que aquele capítulo em suas vidas
pudesse ter um fim, jamais poderiam enganar a si mesmas. Rosa já conhecia
o desfecho de uma história que sucedera-se nas exatas circunstâncias, e tinha
plena certeza de qual era o lado mais fraco, o que sucumbiria em um tempo
que não tardaria a chegar. Albertine, por sua vez, caminhava às pontas dos
pés sob um piso de vidro, prestes a estilhaçar. Nunca fora o tipo de mulher
frágil, não costumava entregar-se aos medos, mas nem mesmo toda sua
coragem, naquele momento, era o suficiente para retirar de sua mente a
horrenda sensação que a envolvia. Estava à mercê de um demônio, um
demônio que sugava-lhe a vida, e já sabia que a partir daquele dia, jamais
conseguiria fechar os olhos e dormir em paz.
— Mas o que Martha está fazendo lá embaixo? Está levando tempo
demais. Precisamos substituir suas ataduras – Rosa resmungou, andando
decididamente até a porta do quarto. –Não saia daí, entendeu?
Carregando o pacote onde se escondia o Necronomicon, Rosa girou a
maçaneta; puxou a porta num só movimento, e levou um susto que a fez
largar o pacote ao chão. Jeremy estava do outro lado, com uma das mãos
repousada sobre a maçaneta.
— J-Jeremy! Me assustou! – exclamou, procurando não parecer
surpresa ao invés de assustada.
— Acho que colocamos as mãos ao mesmo tempo na maçaneta, mas
você teve mais destreza em abri-la – ele respondeu com um ar misterioso,
porém divertido. –Deixe-me ajudá-la com este pacote.
— Não, não se preocupe, são só livros velhos, vou levá-los de volta à
biblioteca. Faça companhia a sua esposa enquanto vou buscar novas ataduras.
O jovem disparou um olhar inexpressivo à governanta, e por um
instante ela imaginou se ele percebera sua má atuação. Rosa e Albertine,
como num pensamento transmitido, lançaram-se a questionar se ele havia
ouvido, por trás da porta, cada palavra da comprometedora conversa.
Sem mais delongas, Jeremy desviou sua atenção de Rosa, entrou em seu
quarto e dirigiu-se até onde Albertine descansava. A porta foi fechada no
exato momento em que Jeremy sentou-se à ponta da poltrona, ao lado da
cama. Albertine não lançou-lhe nem mesmo um rápido olhar, ainda não
sentia-se pronta a esquecer tudo que ocorrera na noite passada. O silêncio
entre eles permaneceu intacto por vários minutos, minutos estes que
Albertine percebera estarem sendo prolongados pela astúcia de Rosa,
indiretamente levando-os a terem uma conversa, mesmo que muito breve.
— E então, como se sente? – ele perguntou em tom agradável, talvez
arrependido.
—Tenho uma fenda em minha cabeça, e ela dói incessantemente.
Poderia estar melhor.
— Desde quando passou a ser tão...
— Rude? – Albertine o interrompeu.
— Impaciente...
— Jeremy, se veio aqui para isso, peço que me deixe sozinha.
— Vim porque precisava conversar, e para ver se você estava bem.
— Não precisa se preocupar, logo tudo estará em perfeita ordem. Rosa
e Martha estão cuidando de mim.
Albertine respondia-lhe sentindo o desgosto pesar sobre cada uma de
suas palavras. Estava ferida em corpo e alma, e mesmo assim não conseguia
ser verdadeiramente fria com o homem que tanto amava sem ser atingida por
sua própria consciência. Embora completamente preenchida pelo desejo de
tê-lo deitado ao seu lado, acariciar-lhe a nuca e entrelaçar seus finos dedos
aos dele, seu orgulho de mulher, de humana e de esposa fincaram-se entre
estes sentimentos como uma espessa parede de vidro – podiam ver-se entre
ela, mas jamais conseguiriam se tocar.
— Espero que se recupere logo. Já que não precisa de mim aqui, vou
procurar algo que me ocupe – disse o jovem em rendição, já levantando-se
decidido.
Albertine permanecera tão calada e quieta quanto estava, mas seus
olhos acompanharam o movimento do esposo, hipnotizados pela beleza e
virilidade que ele exibia. Parecia mais saudável do que nunca, e isto
transparecia em exatamente cada detalhe observado por Albertine, desde a
pele corada até um considerável ganho de massa corporal que preenchia as
elegantes camisas que Jeremy vestia. Foi assim que por um ligeiro momento
os olhares se cruzaram, indecisos em fixar-se um ao outro em meio a toda
aquela vida turbulenta que se desenvolvia na mansão. Por segundos que
pareceram mais curtos do que realmente foram, o jovem casal de amantes
permaneceu ali, confusos e perdidos, indagando-se o que havia dado errado
entre eles.
Tais questões ficariam sem respostas, pelo menos naquele momento. A
porta abriu-se rapidamente, e em meio tempo Rosa já ocupava o quarto,
acompanhada da criada, trazendo água quente e várias faixas de tecido
branco. Após uma inexpressiva troca de olhares com sua governanta, Jeremy
deixou o quarto sem despedir-se de nenhuma das três mulheres.
— Problemas? – perguntou de forma direta a Albertine.
— Nada que seja diferente do comum – a moça rapidamente respondeu,
já inclinando-se para que Martha retirasse o curativo suavemente embebido
em líquido vermelho de sua nuca.
— Tudo estará bem. Você verá.
Deram-se as mãos, e Albertine sentiu-se repentinamente segura. O calor
de alguém que só queria seu bem guiou seus pensamentos e fez com que
sentisse aquela brilhante vontade de viver, de curar-se, de ver todo aquele mal
esvair-se com o vento fresco que soprava acima das árvores do jardim. Era
algo que, com tristeza ela percebeu, Jeremy já não era capaz de fazê-la sentir.
Em poucos minutos as faixas já haviam sido trocadas, o ferimento
cuidadosamente limpo e um novo curativo aplicado ao local. Albertine fora
deixada para descansar sem que ninguém a incomodasse; estava sonolenta e
notavelmente fraca, embora mascarasse estes sintomas para não preocupar os
outros, especialmente Rosa, sua tão dedicada amiga.
A governanta então descera para retomar suas atividades diárias
comuns, mesmo sem conseguir focalizar-se realmente em algo que não fosse
à preocupação com Albertine. Enquanto seguia em mente distraída pela sala
de jantar, simultaneamente procurava um motivo convincente que a
permitisse ir até a cidade o quanto antes, sem levantar suspeitas. Os armários
transbordavam em fartura, as estivas não seriam consumidas em menos de
um mês, e mesmo as rações dos cavalos estavam estocadas em abundância,
tornando inviável a ida visando adquirir suprimentos. Teria de planejar algo o
quanto antes – cada minuto era crucial para manter a vida de Albertine
fluindo em suas veias, e só Jullian poderia fazer acender-se um facho de luz
no negro caminho que percorriam.
CARTAS
“Caro Jullian,
Mais uma vez procuro sua ajuda, porém desta vez de forma mais
intensa e urgente. O volume traduzido que me permitiu trazer de sua coleção
pessoal foi de todo útil, e só através dele foi possível encontrar o retalho que
ainda faltava. Não posso prolongar-me nesta carta, já foi deveras difícil
escrevê-la sem ser descoberta, mas Rosa irá contar-lhe tudo nos detalhes
necessários. Peço que a receba e a escute, e é exatamente por isso, por
conhecer sua discrição para com estranhos, que pedi que esta breve carta –
embora ache que não passe de mero bilhete – lhe fosse entregue para
comprovar minha ligação com Rosa, além da necessidade irremediável de
receber qualquer palavra sua sobre o que ela irá contar. Sinto como se
puxada, arrastada por uma força que não consigo combater, e ninguém além
de você, grande amigo Jullian, será capaz de entender o que estou a
presenciar dia após dia nesta casa. Sei que posso contar com sua grande
sabedoria.
Albertine”
“Cara Albertine
Acabo de receber seu bilhete, assim como o resumo de tudo o que pediu
que sua senhora governanta (poderia ter a audácia de chamá-la por Rosa?)
me relatasse. Confesso um certo nível de surpresa por tão repentinas
notícias, porém confesso também que, já desde a última vez que esteve aqui,
pude perceber que algo de muito negro ofuscava sua aura, e isto ficou ainda
mais claro após você entregar um exemplar do tão terrível Necronomicon em
minhas mãos. Nada de bom pode sair daquele livro. Rosa contou-me o que
descobriu sobre o espírito que a perturba, e mesmo não sendo experiente
nesta área, como já lhe disse antes, procurei um velho amigo e tomei alguns
livros emprestados, e eles me ajudaram a compreender um pouco sobre
fantasmas e todo este cunho sobrenatural. Não foi difícil deduzir alguns
fatos, baseando-me no que Rosa fielmente reproduziu em palavras,
especialmente sobre a identidade do espírito e os motivos que a estão
levando a perturbá-la e, muitas vezes, parecer disposta a tirar sua vida.
Focado na minha especialidade, os demônios, posso afirmar-lhe com plena
certeza que Dianne, a grande responsável pelo início de todo este agouro,
não se sente orgulhosa pelo que fez. Incomparável arrependimento é o
sentimento mais próximo que posso pensar no momento, e mesmo depois da
morte isto parece não ter mudado. É isto que o Necronomicon causa,
Albertine. Ilude e engana quem o lê, convencendo de que aquelas criaturas
podem oferecer algo que o beneficie. Então assim ele se apodera da alma,
sugando a sanidade daquele que assinou seu nome em suas páginas, e não
poderia ser diferente com a mãe de Jeremy. A consciência de Dianne foi
completamente ofuscada pelo instinto animal, o desespero materno em
manter seu maior amor em vida, mesmo que isto significasse abrir mão da
própria. Ela sacrificou-se pelo filho, deu a ele um demônio que suga a vida
daqueles que estão dispostos a oferecê-la e transferi-la a seu mestre. Neste
trecho tenho que lembrar-lhe que nada, nem mesmo o mais simples dos
contratos, é dado pelo Necronomicon sem que ele peça algo em troca. E o
pagamento pelo serviço contratado pela mãe em desespero foi sua alma –
condenada a penar, vagar eternamente em um mundo que não lhe pertence.
Dianne atravessou duas décadas percorrendo os corredores da mansão onde
vivem, atormentada, perdida e sozinha. Estudando a relação entre os
incidentes provocados por ela e tudo o que descobriu, posso supor que o que
Dianne tenta fazer, de fato, é expulsá-los deste lugar. E dado a este fato
posso também dizer que o Agathodaemon não foi o primeiro demônio na vida
da mãe de Jeremy. Isto posso afirmar pelo fato dela querer que saiam da
casa, o que demonstra que ela entendia algumas das regras mais básicas do
Necronomicon, especificamente do demônio em questão. O Agathodaemon é
um demônio que, se invocado entre as paredes de uma casa, templo ou
qualquer tipo de construção, jamais poderá deixá-la. Imagino que esta seja
uma notícia de salvação, mas não é tão fácil livrar-se de um Agathodaemon
depois que ele escolhe um fornecedor – você, em nosso caso. Afastar-se dele
vai enfraquecer os efeitos, não eliminá-los. Jeremy continuará sendo
presenteado com sua vitalidade, porém, em uma frequência imensamente
mais sutil. Não quero incentivá-la a tomar qualquer tipo de atitude, mas
deixo bem claro que, caso queira sobreviver, ao menos por mais tempo, você
deve deixar a mansão. Estarei disposto a ajudá-la da forma que a mim for
possível, por isso deixarei os detalhes de meu plano apenas por palavras
faladas a Rosa, escrevê-las nesta carta seria perigoso e imprudente. Como
último aviso, peço que não subestime o Agathodaemon; apesar deles
raramente possuírem o corpo de seus mestres, os mesmos tem todo o poder
para fazer isto quando seus mestres são ameaçados. Não tentem machucar
Jeremy, por motivos óbvios. Lembre-se, Albertine, sua fé pode protegê-la e
mantê-la firme e segura dentro de si mesma. Estarei aguardando sua
decisão.
TRÊS DIAS
Já passava das duas da tarde, uma tarde branca como todas as outras
naquela semana, quando um aroma adocicado e atraente propagou-se pelo ar,
chegando às narinas de Albertine. Estava ainda na cama, incapaz de levantar-
se – embora nem mesmo sentisse vontade de deixar o confortável leito. Pôs-
se a imaginar o que exalava aquele tão bom cheiro, algo entre calda de açúcar
e mel, e não demorou até que sentisse o estômago produzir o conhecido som
da fome. A bandeja do café trazida por Rosa encontrava-se ainda intacta,
exceto por alguns cristais de açúcar sendo carregados por uma comprida
fileira de formigas.
As pernas magras, estendidas por baixo do cobertor, pareciam ainda
adormecidas. Albertine mal conseguia mover a coluna sem receber os golpes
de dor por toda a extensão do corpo. Algo que ainda não havia assumido era
que aquilo, há muito, tornara-se decididamente insuportável.
Antes que pudesse concluir a difícil tarefa de pôr-se confortável entre
os travesseiros e tentar voltar a dormir, alguns ruídos vindos do jardim
atraíram a atenção de Albertine. Ouvindo com mais cuidado, percebeu que se
tratavam dos portões sendo abertos, logo em seguida sendo atravessados
pelas duas carruagens, e novamente fechados após alguns pares de segundos.
Achou curioso não ter ouvido os veículos saindo – provavelmente estava
penetrada em seu sono quando deixaram a mansão – e imaginou o que criara
a necessidade de duas grandes carruagens como aquelas irem juntas onde
quer que fosse. Não poderia levantar-se e ir até a janela, o vento trazendo um
sopro de baixa temperatura poderia fazê-la desmaiar em segundos; só lhe
restava esperar alguém surgir no quarto para pôr-lhe a par do que acontecia
no andar de baixo. Em certo momento Albertine sorriu por dentro,
relembrando fatos passados que antes não compreendia. Lembrou-se de
Jeremy gritando com ela após divertir-se inocentemente com uma cena para
ele humilhante, durante uma de suas crises de dores por todos os ossos. Não
só lembrou-se disto, mas também sentiu, de certa forma, que se encontrava
em posição incrivelmente similar.
Pouco mais de uma hora já havia passado desde que as carruagens
retornaram, e desde muito pouco após aquele instante, uma sequência de
outros ruídos fazia-se ouvir de forma incessante: batidas em madeira, tábuas
chocando-se ou sendo serradas – sons comuns a uma carpintaria. A
curiosidade de Albertine vagou entre um reparo no estábulo, algum novo
bloqueio para os portões, ou até mesmo uma casa de madeira para Ringo.
Foi apenas após mais uma porção de minutos que a porta do quarto
novamente se abriu, mas não foi Rosa quem surgiu desta vez. Era Martha,
trazendo mais uma bandeja.
— Rosa pediu que eu trouxesse até você. Ela preparou um ensopado
leve de carne e legumes. Disse que deve tomá-lo para recuperar um pouco de
energia. Também fez um bolo coberto com caramelo. Ah, não comeu nada da
outra bandeja?
— Não estava com fome. Vou experimentar este ensopado, o cheiro
está muito bom.
— Rosa estará aqui em alguns minutos trazendo água quente para seu
banho.
— Obrigada, Martha.
A criada recolheu a bandeja trazida mais cedo, assoprando sobre os
talheres a fim de livrá-los das formigas que ainda caminhavam alinhadas, e
antes que pudesse sair foi chamada por Albertine.
— Martha... o que está havendo lá fora?
— Não sei dizer exatamente. Jeremy saiu com Robert e Thomas, e
voltou com muitos pedaços de madeira nas carruagens, assim como muitos
pregos, martelos e serrotes. Acho que está montando algo no jardim, mas não
quis ainda falar a respeito.
— Hum, está bem. Muito obrigada.
Albertine esperou até que Martha saísse para apanhar a tigela
preenchida quase até a borda. O aroma do ensopado revigorou por alguns
instantes os sentidos da moça enferma, trazendo um apetite que ela há muito
não sentia. O som incessante do trabalho tornou-se inaudível até que a
saborosa refeição fosse concluída, apenas retomando o espaço sonoro do
quarto após a última porção do caldo amarelo ser ingerida. Desta vez, porém,
ninguém apareceu para buscar a bandeja.
Pela tarde e noite adentro o trabalhou não cessou. Por incontáveis vezes
Albertine despertou de ligeiros momentos de sono. Nenhum deles se estendia
por mais de cinco ou dez minutos. E a cada novo despertar ela sentia-se mais
exausta.
Em uma das transes entre o sono e o despertar, a voz de Rosa soou e fez
com que a moça tomasse um susto inesperado. A governanta sustentava uma
toalha branca acima do ombro esquerdo, e em uma das mãos um frasco de
vidro que continha alguma espécie de líquido esverdeado.
— Albertine! Venha, trouxe a água do seu banho. E veja, tenho um
pouco de óleo de ervas aromáticas revigorantes!
— Onde conseguiu? – perguntou Albertine, ainda recuperando a visão
desfocada pelo sono.
— Jullian me deu alguns frascos contendo algumas variedades de
poções e óleos de ervas. Ele também é um grande estudioso de botânica
medicinal, creio que já saiba. Não sentiu nenhuma melhora depois do
ensopado? Utilizei uma destas poções nele. Jullian recomendou o uso de
algumas poções para melhorar seu estado de saúde.
— Poções... tenho vagas lembranças de tê-lo visto preparando algumas
delas. Certa vez, durante uma das aulas de música, uma criança qualquer
feriu-se em um dos instrumentos... Jullian então aplicou alguma espécie de
poção vermelha, e o ferimento desapareceu em minutos.
— Espero que funcionem desta vez. Venha, deixe-me ajudá-la. A água
já está na banheira.
O banho revigorante pareceu trazer um pouco da cor perdida à pele de
Albertine. Já sentada frente à penteadeira, Rosa escovava os cabelos
dourados e pautava assuntos aleatórios. Por fim, então, Albertine decidiu
perguntar sobre todo o barulho ocorrido durante todo o dia, mas que agora
parecia resumido apenas a alguns estalos minuto após minuto.
— Não falarei sobre isso, Jeremy pediu que não falasse. Ele está
preparando algo para você. Disse que já posso levá-la para descobrir o que é.
— Mas a esta hora da noite?
— Vou lhe deixar bem agasalhada. Poderá aguentar o frio por alguns
minutos. Ele parece empolgado. Dê a ele este breve momento, creio que está
tentando se desculpar pela forma que vem agindo.
Mesmo sentindo-se um pouco irritada após aquela última declaração,
como se o peso da culpa lhe fosse entregue injustamente, Albertine não
recusou, nem ao menos mostrou-se contrária a deixar o quarto aquecido para
receber correntes de vento gelado do lado de fora. A curiosidade em
descobrir o que fora preparado para ela também teve considerável papel nesta
escolha.
— Muito bem, terminamos aqui. Está muito bem agasalhada. Não
deixarei que demore e arrisque ainda mais sua saúde, não se preocupe.
Foi só quando descia as escadas, amparada aos ombros de sua amiga,
que Albertine notou o total silêncio que percorria a mansão. Estava tudo
quieto demais. A casa pareceu, pela primeira vez, completamente sem vida
aos olhos dela.
— Jeremy? Aqui está ela.
Jeremy surgiu instantaneamente por trás de uma das poltronas da sala.
Os olhos negros, vidrados em sua bela esposa, cintilaram e refletiram a luz
avermelhada do fogo da lareira. Albertine mais uma vez percebeu quão belo
era ele.
— Albertine! Que bom que veio!
— Achou que eu não viria?
— Apenas esperei que viesse...
— Já estamos aqui, Jeremy – disse Rosa com rispidez. -Leve-a e a traga
de volta em poucos minutos.
— Tudo bem, prometo não demorar.
Como um verdadeiro cavalheiro, Jeremy estendeu um dos braços à
esposa, mas logo percebeu que ela não seria capaz de caminhar apoiada
somente em um galanteio. Entrelaçou então os braços ao redor do busto
delicado e estreito. Foi o mais próximo que chegara de Albertine em algum
tempo. Os passos do casal seguiram perfeitamente alinhados até a porta, que
quando aberta permitiu que a tão temida corrente penetrasse o ambiente e o
tomasse por completo em poucos segundos.
Deixaram a sala iluminada e agora caminhavam sobre a neve macia que
mais uma vez cobria toda a extensão do terreno, mesmo que não estivesse
nevando já por várias horas. Jeremy havia anteriormente deixado quatro
lamparinas acesas e enfileiradas alguns metros distantes umas das outras,
tornando o exterior da mansão estranhamente aconchegante. Nem ao menos
remetia ao negro pedaço de terra que se avistava pelas janelas após o
escurecer.
— Estamos chegando – ele disse em um sussurro.
Seguiram até o limite da mansão, e um pouco mais à frente, junto a uma
grande árvore, lá estava o tão misterioso presente.
Era um coreto, perfeitamente montado em madeira de cor viva. Estava
posicionado exatamente abaixo da árvore desfolhada pelo inverno, exibindo
quatro pequenos degraus que levavam a um banco visivelmente construído
para duas pessoas.
— Aí está. Espero que goste.
— Jeremy! Você construiu tudo isto sozinho?
— Robert e Thomas merecem boa parte dos créditos também...
— É maravilhoso!
Mesmo aparentemente não finalizado, o coreto exibia-se como uma
bela peça de carpintaria decorativa. Não havia ainda sido pintado – exibia a
madeira crua e de pouca idade – mas seus detalhes eram tão bem trabalhados
que a pintura não parecia realmente necessária. O teto era um grande cone
composto de seis partes idênticas, e acima dele um galo-bússola estava
posicionado, embora que na posição incorreta. Ao redor dele, misturado à
neve, o pó da serragem aparecia em pequenos montes. Os instrumentos
utilizados também ainda não haviam sido guardados.
— Venha, vamos inaugurá-lo! – disse Jeremy com animação, já
guiando Albertine até os degraus do coreto. –Vamos, sente-se.
Com todo cuidado que se aplica a um frágil recém-nascido, Jeremy
levou sua esposa ao banco no centro do coreto, e ajudou para que ela se
posicionasse da forma mais confortável. Albertine pareceu, por um momento,
feliz e satisfeita.
— E então? – ele questionou exalando ansiedade.
— Não poderia estar mais perfeito.
— Ah, veja, ao redor dele poderemos plantar flores.
— Isto seria realmente incrível.
E por alguns minutos Jeremy caminhou ao redor do coreto,
gesticulando, explicando tudo que planejava construir no terreno da mansão.
Até mesmo uma piscina passou por seus planos. Albertine ouvia atenta,
imaginando em detalhes cada uma das magníficas, porém exageradas ideias.
— Venha, sente-se aqui comigo.
Jeremy pareceu surpreso, mas atendeu ao pedido de Albertine sem
hesitar. Sentou-se ao lado dela, corpo a corpo. Seus dedos entrelaçaram-se de
maneira quase involuntária, e por um minuto pareceram o mesmo casal
completamente feliz que pouco a pouco deixava de existir.
— Albertine... você me perdoa?
— Do que está falando?
— De tudo que tem acontecido... de como tenho agido com você.
Tenho que lhe dizer que muitas vezes não sei o que acontece comigo.
Simplesmente perco o controle, como se... algo...
— Sim?
— Você me perdoa?
Guiando a mão de Jeremy até seus lábios, sentindo a pele ligeiramente
resfriada pelo vento que circulava entre eles, beijou-a por cima dos nós dos
dedos magros. O pedido de Jeremy soou tão sincero quanto poderia ser, e
Albertine sentiu o terrível peso de sua escolha mais uma vez esmagar seus
pensamentos. Jeremy pedia perdão por algo que nem mesmo conseguia
entender. Albertine então sentiu-se cruel e injusta, e sua escolha, afinal,
estava novamente à prova.
— Não há nada para perdoar – ela então respondeu decidida.
Não foi possível contar-se o tempo – talvez segundos ou bem menos do
que isso – até que uma nova corrente fria trespassasse o espaço entre os dois
corpos. Desta vez, no entanto, algo mais veio com o vento: um aroma suave,
doce, estranhamente conhecido. Albertine arrepiou-se e gelou. Era perfume
de violetas. Era a presença de Dianne.
— Albertine?! O que... o que aconteceu? Está gelada! – Jeremy
exclamou ao sentir o sangue desaparecer das veias da mão que ainda
segurava.
Ela não respondeu. Não tinha forças para isso. “Albertine!”, Jeremy
gritava tentando trazê-la de volta a consciência, mas os olhos claros estavam
perdidos e sem brilho. A respiração lhe faltava, e os arrepios percorriam cada
centímetro de pele e ossos. Jeremy então resolveu chamar por Rosa, mas não
houve tempo suficiente. Um grito de horror soou nitidamente, vindo de
dentro da mansão. Segundos depois mais um grito, e outro, e mais outro.
Misturados a eles então surgiram ruídos e baques – objetos caindo ao chão,
vidros estilhaçando-se, metais chocando-se contra a parede.
— Albertine, fique bem aqui! Já voltarei para buscá-la!
Em largos passos Jeremy percorreu o caminho iluminado por poucas
lamparinas, entrando de volta na mansão assim que alcançou a porta. Os
ruídos ainda acompanhados de gritos de pavor tornavam-se mais nítidos a
cada passo, e do corredor principal Jeremy percebeu que algo assustador
ocorria na cozinha. Chegou ao fim da sala de jantar, e da porta já pôde ver,
para seu completo espanto, o que de fato lá ocorria. Algo sobrenatural,
inexplicável e definitivamente incompreensível.
Nos cantos da cozinha, pressionando seus corpos com quanta força
podiam contra a parede, estavam Rosa, Judith e Martha, defendendo-se com
os braços frágeis e desprotegidos. Defendiam-se de dezenas de objetos que,
como que por vida própria, lançavam-se ao redor da cozinha. Copos, pratos,
potes e talheres. Uma chuva de objetos sólidos – muitos deles perigosamente
cortantes e ameaçadores, deixando seus lugares de descanso nos armários e
prateleira como se atirados pelas mãos de alguém que não se podia ver.
— Jeremy! – Rosa gritou ao perceber a presença do rapaz à entrada.
— Rosa! O que é isso? O que está havendo?
— Saia daqui, agora! – ela respondeu imediatamente.
Facas afiadas cortavam o ar poucos centímetros diante de seu corpo,
assim como aos de Judith e Martha, que também procuravam
desesperadamente não ser atingidas por nada de tudo aquilo que despencava
sobre elas. Ringo latia com ferocidade parado à entrada, recuando a cada vez
que se sentia ameaçado. A cada segundo novos estilhaços de vidro e cerâmica
tornavam aquele momento sobrenatural ainda mais assustador e perigoso.
Jeremy apenas observava, incapaz de atitude alguma; não poderia proteger as
mulheres sem ferir-se de forma talvez fatal, e nem mesmo imaginava o que
fazer para que aquilo parasse. Era algo completamente inexplicável e
fisicamente impossível.
Já passava da hora do jantar, mas a mesa ainda não havia sido posta.
Tudo estava um pouco diferente na mansão naquela noite. O habitual silêncio
fora substituído por melodias emendadas, criadas por Albertine no grande
piano da sala de música. Nos dois dias que haviam passado desde o
‘incidente dos objetos voadores’, como todos nomearam o fato, a esposa de
Jeremy recuperara boa parte da saúde perdida. O corte em sua cabeça parecia
pronto a cicatrizar, e as gazes e faixas que o protegiam já não mostravam
focos de sangue quando removidas. Antes do escurecer, descera sozinha até a
sala de música, e por lá permanecera praticando composições conhecidas e
algumas próprias.
A mansão não parecia a mesma. Nem mesmo Albertine parecia ser mais
a mesma pessoa que era um par de dias atrás. Continuava fria e rígida desde
seu último encontro com Dianne, o encontro que a fizera decidir em
finalmente ceder ao que não poderia ser combatido. E lá estava ela, vivendo
as últimas horas daquele último dia. O último dia ao lado de Jeremy, de Rosa
e da mansão. Tudo já estava pronto. Os preparativos já haviam sido feitos no
decorrer da tarde, com a ajuda e discrição de Rosa. Os outros criados foram
sigilosamente postos a par dos acontecimentos – exatamente todos os
terríveis acontecimentos – e mesmo chocados e ligeiramente perdidos,
concordaram em ajudar na fuga, especialmente fazendo o possível para que
Jeremy nada percebesse. Nada poderia dar errado.
— Esta é sua? – a voz de Jeremy soou, e em seguida ele surgiu
repentinamente na sala de música. –Nunca ouvi esta antes.
— Sim, esta é minha – Albertine respondeu sem olhar-lhe nos olhos.
— Como se chama?
— Não costumo nomeá-las.
— Isso é incomum, não acha?
— Não me importo que seja.
Jeremy observou a rigidez da expressão de sua esposa antes de pensar
em qualquer palavra. Não conseguia mais reconhecê-la.
— Você vem jantar?
— Sim, já estou indo.
Jeremy dirigiu-se à cozinha, sentou-se à mesa e observou as mulheres
preparando o jantar. O aroma era delicioso como de costume, mas o apetite
não aflorara ainda nas entranhas do jovem Ridell. Rosa espiou por cima do
ombro, enquanto preparava uma salada leve, e notou quão estranho e
preocupado Jeremy parecia estar. Engoliu a seco ao imaginar que ele, da mais
sutil maneira, desconfiava de alguma coisa. Suas mãos tremeram naquele
instante.
— Preocupado, Jeremy?
— Talvez...
— Posso saber o motivo?
— Albertine. Está diferente. Estranha, eu diria.
— Ela ainda não está totalmente recuperada. Está doente e ferida. Acho
que sabe bem disso.
— Ela nunca me tratou desta forma.
Rosa então virou-se e olhou-o diretamente nos olhos escuros. Suas
pupilas se encontraram e a expressão da governanta tornou qualquer outra
palavra completamente dispensável. Jeremy percebeu no piscar daqueles
experientes olhos que não poderia exigir diferente comportamento de sua
esposa. Há algum tempo não fora um bom companheiro, e um coreto de
madeira não poderia tornar isto menos doloroso.
— Aonde vai? – perguntou Rosa ao vê-lo levantar-se, visivelmente
frustrado.
— Perdi a fome. Vou para o quarto.
— Tudo bem, se assim deseja. Já estou tendo trabalho suficiente para
fazer Albertine se alimentar. Não posso me preocupar com você também.
— Já sou bem crescido, não precisa se preocupar com nada.
— Levarei um chá e alguns biscoitos depois do jantar.
Mesmo irritado Jeremy manteve o bom senso e não recusou a oferta.
Seu orgulho não o alimentaria por toda a noite. Cruzou rapidamente a sala de
música e procurou não dirigir-se a Albertine, nem mesmo com um rápido
olhar. Ela ouviu os passos provocando o ranger dos degraus de madeira, e
agradeceu por não ter de encará-lo durante o jantar. Desejava não olhar para
ele nem mais uma vez. Seria mais fácil ir embora sem encarar pela última vez
aqueles olhos, aquele rosto que tanto amava.
Durante o jantar falaram pouco, apenas o necessário. As ações da fuga
estavam completamente planejadas, porém havia ainda um empecilho que
poderia significar o total fracasso da missão. Deveriam certificar-se que
Jeremy ingerisse a poção enviada por Jullian para que adormecesse de forma
impenetrável. Somente assim seria seguro atravessar os portões da mansão; à
meia-noite Jullian já estaria esperando por Albertine, alguns metros à frente
na estrada de terra, com uma carruagem. Nada parecia realmente complicado
além de fazer com que o imprevisível esposo de Albertine tomasse todo o chá
que Rosa prepararia, sem desconfiar do sabor amadeirado que a poção
aplicaria a ele.
— E se a poção não funcionar, o que faremos? – Albertine perguntou
apreensiva.
— Jullian garantiu que ele ficará adormecido como um cadáver por
horas caso beba todo o chá. Com apenas alguns goles, talvez permaneça
desacordado por uma hora, talvez uma hora e meia. Esta poção é uma das
mais fortes que podem ser preparadas. Mais do que algumas gotas podem
colocar um corpo em estado vegetativo por dias. Quando Jeremy acordar,
você já estará bem longe daqui.
— Por quanto tempo Jullian a manterá escondida na igreja? – perguntou
Judith.
— Menos de vinte e quatro horas – Rosa respondeu por Albertine, dado
o fato de que nem ela mesma poderia dar esta resposta. –A igreja é o primeiro
lugar onde Jeremy irá procurá-la. Ele sabe que temos Jullian como nosso
protetor.
— E para onde ele irá levá-la?
Esta foi notavelmente uma pergunta delicada. Ninguém, nem mesmo
Jullian, ainda sabia qual seria o destino de Albertine.
— Depositaremos toda nossa confiança em Jullian. Ele saberá o que
fazer.
— Vou sentir muito a falta de todos vocês. Gostaria de poder ficar –
Albertine disse aparentemente procurando mudar o rumo da conversa. Já era
triste demais sem que os outros tentassem traçar seu destino a partir daquela
noite.
Rosa levou uma de suas mãos até as de Albertine. Os dedos
entrelaçados tremiam e suavam, mas sentiram-se tranquilizados e seguros ao
contato daquela mão amiga, daquele toque maternal que Albertine jamais
receberia outra vez.
— Vou preparar o chá de Jeremy – disparou Rosa, quebrando de uma
vez o gelo daquele incomum jantar. –Já passa das nove, temos menos de três
horas até que Jullian esteja esperando.
Após o recolhimento da mesa, seguido pela limpeza da cozinha, os
quatro criados despediram-se de Albertine. Seria a última vez que a veriam
naquela casa. Logo assim subiram a seus aposentos, deixando apenas as
outras duas mulheres sozinhas com seus pensamentos. O chá fora finalizado
– era de carqueja, conforme recomendado por Jullian para adequar-se ao
sabor da poção – e o aroma forte e adocicado percorreu toda a cozinha.
— Tome – disse a governanta, entregando às mãos de Albertine uma
pequena bandeja redonda contendo uma xícara de chá e duas fatias de pão
amanteigado. –Leve até ele e faça-o beber. Não permita que recuse.
Ela apenas assentiu com a cabeça, imaginando o que fariam se Jeremy
se recusasse a beber o chá. Outra chance de ir até a cidade para organizar as
coisas com Jullian seria demasiado arriscada, e sua saúde já não poderia mais
sofrer alterações negativas sem fazê-la passar dias de cama. Adiar a fuga
poderia ser um erro fatal.
Ao entrar lenta e silenciosamente no quarto, Albertine encontrou seu
esposo parado diante à janela, observando a neve. Parou para observá-lo
antes que notasse sua presença; tinha a pele rosada e vívida, as costas
pareciam mais largas do que normalmente eram, e até seus cabelos negros
pareciam mais nutridos. Era um Jeremy tão saudável quanto nunca fora antes.
— Albertine?! – exclamou Jeremy em tom leve ao virar-se parcialmente
e encontrar sua esposa espiando-o em silêncio. –Há quanto tempo está aí?
— Não muito...
— Assim você vai acabar me assustando – argumentou Jeremy
procurando não parecer rude.
— Desculpe, não foi minha intenção – ela respondeu ainda parada à
entrada do quarto.
— Não vai entrar?
— Oh, sim.
Antes que fechasse a porta, ouviu passos às suas costas; olhou por cima
do ombro e viu Rosa em direção a seu aposento. Trocaram um rápido olhar
de cumplicidade que jamais seria compreendido por Jeremy caso o notasse.
— Rosa pediu que trouxesse este chá para mim?
— Sim, ela preparou para você. Não esteve conosco no jantar, esperava
que estivesse com fome.
— Tudo bem. Deixe a bandeja aí um pouco.
— Beba antes que esfrie – Albertine disse após repousar a bandeja
sobre a cômoda, quase em forma de pedido. Imaginou se não estaria sabendo
disfarçar a ansiedade. –Vou ao banheiro e já volto para irmos dormir.
Fechando a porta às suas costas, finalmente, conseguiu respirar
tranquilamente. Estar na presença de Jeremy tornara-se tão assustador quanto
se imaginar sem ele. Ao lado da pia estava a água limpa em um grande
recipiente de porcelana; Albertine uniu suas mãos em concha, apanhou um
pouco do líquido translúcido e levou-o ao rosto. Não tinha certeza, mas
imaginou ter lavado algumas lágrimas dos cantos dos olhos.
Poucos minutos depois Albertine retornou ao quarto. As lamparinas já
estavam apagadas. A janela já havia sido encoberta pelas grossas cortinas.
Jeremy já estava confortavelmente deitado na cama do casal. Após alcançar o
guarda-roupas e substituir o vestido por uma suave roupa de dormir,
Albertine caminhou em volta da cama pronta para deitar-se, e antes que
chegasse até lá passou pela cômoda onde a bandeja com o chá se encontrava.
Lançou um olhar apreensivo até a xícara, e produziu um profundo suspiro ao
notar que estava completamente vazia.
Capítulo XXIV
SILÊNCIO
Já era noite quando Jeremy subiu as escadas, levando mais uma bandeja
para Albertine. O jantar parecia apetitoso. No andar de cima tudo estava
ainda tomado pelas trevas – nenhuma lamparina, nem mesmo a do quarto do
casal, havia sido acesa. Ao início do corredor ele parou. Observou tudo a seu
redor, desde o que se podia ver do andar de baixo até a vidraça na
extremidade do ponto onde se encontrava, e estranhou. Estranhou a
escuridão, estranhou o vazio, e principalmente estranhou o silêncio.
Já no quarto, após acender as duas lamparinas principais, encontrou
Albertine adormecida. Estava ainda posicionada exatamente como antes. Ele
preferiu não acordá-la; despiu-se e foi direto ao banheiro. Em um ato quase
inumano, como se não conhecesse o frio que se abatia do lado de fora,
mergulhou o corpo esbelto na banheira, preenchida até a metade de água fria.
Os pelos do corpo se eriçaram, mas em nada ele pareceu se incomodar. Não
sentia frio, não sentia mais dor. Talvez não sentisse mais nada.
Pouco mais de meia hora havia passado, e Jeremy então levantou-se da
banheira. Havia adormecido, e como em quase todas as noites, sonhara com
algo que não conseguia lembrar. A toalha branca deslizou pelas costas largas
enquanto ele olhava-se no espelho. Notou que estava belo, repleto de vida e
cor. Não era mais o mesmo homem, nem no corpo e nem na alma. Sorriu.
Fechando a porta do banheiro às suas costas, já novamente vestido,
Jeremy repousou-se à poltrona no canto do quarto, e lá permaneceu imóvel
por alguns minutos. Tão imóvel quanto Albertine ainda estava, há quanto
tempo ele não sabia dizer. A pouca luz que clareava o quarto permitiu a
Jeremy ver o rosto sereno de sua esposa um tanto menos corado que o
normal.
— Você precisa se alimentar – disse na esperança de ser ouvido.
A resposta não veio.
— Vamos, sei que está me ouvindo. Não pode me ignorar para sempre.
Somos apenas você e eu agora. Isso não a faz feliz? Você e eu, sem mais
ninguém para interferir.
E mais uma vez, apenas o tão estranho silêncio. Jeremy mostrou-se
irritado; levantou de sua poltrona e foi até a cama, sentando-se à beira do
colchão parcialmente desforrado. Olhou para Albertine durante alguns
segundos, e notou que nunca a vira dormir assim tão profundamente. Seu
sono costumava ser leve, sendo muitas vezes o mínimo ruído suficiente para
despertá-la. Algo não estava bem.
— Albertine, acorde – tentou mais uma vez.
Jeremy tocou-lhe a testa com dos dedos unidos: estava fria como a água
em que se banhara há pouco. Ele engoliu a seco e pegou uma das mãos da
jovem. Estava tão fria quanto todo o resto de seu corpo. Apertou o pulso e
nada sentiu. Recostou-se ao tórax e não ouviu as batidas cardíacas, e por
último encostou o ouvido ao rosto angelical. Não havia respiração.
— Albertine!
O jovem Ridell largou a mão de sua esposa, deixando-a cair sobre o
peito imóvel. Uma única lágrima escorreu de cada lado do rosto de Jeremy
quando, enfim, descobriu que Albertine jamais responderia. Estava morta.
— Albertine...
O sussurro esvaiu-se na escuridão, enquanto algo acontecia naquele
quarto. As cortinas dançaram frente às janelas fechadas, atingidas por um
sopro de vento vindo de lugar nenhum. As lamparinas há pouco acesas
apagaram-se, restando ao quarto apenas a pouca luz que atravessava as
vidraças. Jeremy fechou os olhos e ouviu um som terrível – um gemido, um
murmúrio que começou em seu interior, mas logo tornou-se como um grito
que percorreu toda a mansão. Era um lamento.
Saber que havia perdido Albertine – desta vez de forma definitiva –
despertou algo dentro dele. Jeremy sentiu algo apertando seu peito, algo que
precisava sair mas não queria fazê-lo. Os dedos magros esticaram-se,
trêmulos, e por eles alguma energia era expelida em forma de fios de fumaça
negra. Os murmúrios uniram-se em dezenas, talvez centenas de vozes. A
boca de Jeremy escancarou-se, e por ela ele viu sair uma esfera negra, gasosa,
circundada por uma aura que liberava um terrível odor: o odor das
profundezas da terra. A esfera maligna girou ao redor de Jeremy, causando-
lhe medo e pânico como em um castigo irremediável. Sentiu-se agarrado por
mãos inexistentes aos olhos, agarrando-se em todo o seu corpo, puxando-o,
arrastando-o contra sua vontade. Em uma última explosão de trevas, a esfera
desfez-se em imensas camadas de fumaça escura e sufocante. As mãos
desapareceram, as cortinas retornaram ao descanso natural. Jeremy tentava
recuperar o fôlego enquanto o quarto mais uma vez tornava-se claro e livre da
névoa negra.
O último Ridell sentiu-se então diferente – uma sensação de leveza que
já não se lembrava de ter sentido alguma vez em sua vida. O interior de seu
peito não era mais pesado como antes. Algo havia saído daquele corpo.
Jeremy então sentiu-se só – tão só como nunca antes. Poucos minutos
foram necessários até que ele compreendesse o que havia acontecido ali. E
logo ele sentiu dor, sentiu frio e fome. Sentiu-se homem humano. Precisou
deitar-se ao lado de sua esposa, abraçando-a como se nunca a tivesse tido em
seus braços. O corpo sem vida de Albertine foi encaixado ao dele, e a dor, o
arrependimento e o medo tomaram conta de seu ser. Um grito de tristeza
ecoou pela gigantesca casa, atravessando as janelas e paredes, seguindo pela
floresta e esvaindo-se por completo acima das escuras nuvens que, agora,
impediam a luz da lua de iluminar aquele pequeno pedaço de terra. A
mansão, assim como seu último ocupante, estava então condenada à eterna e
inescapável escuridão.
Capítulo XXVI
A D E U S, A L B E R T I N E
UM FRASCO VAZIO
Às cinco horas da tarde, de ombros cobertos pelo único xale que lhe
restara, Rosa caminhava por uma avenida agitada, repleta de pessoas
apressadas e exageradamente agasalhadas. Para a senhora ex governanta, o
inverno na cidade não era tão frio e triste quanto na mansão. Ela carregava
uma cesta transbordando de vegetais, carnes e pães; havia prometido a Jullian
um ensopado para aquecer seus estômagos na hora do jantar.
Chegando mais uma vez à igreja, tomando cuidado para não deslizar
sob a pedra congelada na calçada acima dos degraus, abriu um pequeno
espaço entre as duas portas e entrou no templo. Estava vazio, dado o fato de
não estarem em um dia de missa, e mesmo se não fosse este o caso, a
cerimônia não se realizaria. Desde o acontecimento na floresta, desde a
terrível noite em que o destino de Albertine tornou-se desconhecido para
aqueles que se importavam com ela, Jullian não agia de forma normal, assim
como a própria Rosa. Procuravam não falar sobre ela, mas seus pensamentos
mantinham-se em frequente linha de sinais que se transmitiam quase em
telepatia. O que teria acontecido após aquela noite era o que os dois, no fundo
de suas almas, mais desejavam descobrir.
Jullian havia dado abrigo e conforto a Rosa, assim como faria com
Albertine. Estava alojada em um dos muitos quartos vazios que se escondiam
nos corredores da imensa construção que complementava a igreja. Embora
fosse uma mulher de fácil adaptação a mudanças, sua vida não parecia mais a
mesma; tudo havia tomado uma direção indefinida, e Rosa tentava
bravamente se fazer convencer de que talvez fosse viver para sempre ali, sob
aquele teto sagrado. Não tinha outro lugar para ir, mesmo que quisesse.
Ao passar frente ao quarto de Jullian viu que a porta estava entreaberta,
e pela fresta pôde vê-lo mergulhado em mais uma de suas longas leituras.
Preferiu não incomodá-lo, seguindo direto à cozinha para dar início ao
preparo do jantar. Retirou os ingredientes da cesta, e um por um selecionou
os que utilizaria em seu famoso e apreciado ensopado. Enquanto cortava um
par de generosas batatas com uma faca afiada, percebeu o quanto era estranho
preparar um jantar sem Judith e Martha por perto. Rosa então chorou, chorou
o quanto conseguiu chorar. Chorou pelos amigos deixados para trás, chorou
por Jeremy, e principalmente por Albertine.
Poucos minutos depois os ingredientes já estavam mergulhados em
água, prontos para a fervura no fogo à lenha, e enquanto o saboroso prato não
ficava pronto, ela recostou-se a uma cadeira em um dos cantos da cozinha e
se deixou chorar um pouco mais.
Despertando de um ligeiro cochilo, Rosa levantou-se com um pulo,
indo rapidamente até o caldeirão que borbulhava ao fogo. O ensopado estava
cozido à medida certa, aliviando a preocupação da senhora de ter estragado o
jantar por ter-se entregado ao sono. Preparou a mesa apenas para dois, e logo
estava batendo à porta do Padre.
— Jullian?
— Sim?
— O jantar já está pronto. Venha antes que esfrie!
Ela esperou que ele concluísse a página que lia, parada ao lado da
entrada do quarto bem iluminado. Jullian marcou a página com uma fita
vermelha, fechou o livro e saiu, acompanhando Rosa, lado a lado até a
cozinha. Sentaram-se frente a frente assim que alcançaram a mesa, dando
início ao tilintar de talheres enquanto saboreavam o jantar.
Após o prato final – pães integrais e creme de queijo quente – Jullian
agradeceu e levantou-se. Perguntou a Rosa se precisava de alguma ajuda para
organizar a cozinha, mas a ajuda foi logo rejeitada, e tão rápido ele voltara a
seu quarto, Rosa já enxaguava o caldeirão e os pratos em água limpa, que
corria fortemente pela torneira enferrujada. Após guardar o último talher em
sua gaveta no velho armário no canto da cozinha, a senhora apagou as luzes
daquele cômodo e também partiu a seus aposentos para descansar.
O quarto de Rosa ficava em uma das laterais da igreja, e uma de suas
paredes era a mesma que se estendia do lado de fora. Nela havia duas grandes
janelas sem cortinas, tornando o ambiente um tanto mais claro do que sua
nova ocupante estava acostumada. Dormir naquele quarto após as seis da
manhã era algo quase impossível, não apenas pelo excesso de iluminação,
mas também pelo movimento externo que se iniciava logo ao nascer do sol.
Durante a noite ouviam-se passantes ocasionais ou carruagens vagando pela
madrugada, o que já era suficiente para atrapalhar o sono daquela mulher
habituada ao mais impenetrável silêncio. Mas naquela noite algo estava
diferente. Estava silenciosa demais.
Já se passara metade da madrugada quando Rosa despertou. Ouvira
ruídos longínquos, que graças à acústica do quarto, podiam ser ouvidos com
perfeição. Pareciam cascos de um cavalo em velocidade média chocando-se
às pedras da estrada. Um cavalo sem carruagem. O caminho que traçava
parecia incerto: ora o som se afastava, ora ressurgia bem próximo à igreja.
Em certo momento, cavalgava em círculos pela praça, que ficava bem à
frente das janelas do quarto de Rosa. Ia e voltava, indeciso, causando um
enorme barulho que provavelmente não acordaria apenas a senhora de sono
leve, mas também boa parte dos moradores daquela área.
— Mas o que é isso? – ela disse a si mesma, levantando-se até que
pudesse alcançar a altura da vidraça.
Esgueirando-se para observar pelo vidro empoeirado, olhou de um lado
a outro até onde a vista alcançava, mas o cavalo desordeiro não estava
naquele campo de visão. O cavalgar desordenado prosseguia cada vez mais
próximo, até que subitamente cessou. O animal de certo estava agora parado
frente à escadaria da igreja. Rosa esperou, mas ele não se moveu novamente.
“Talvez tenha escapado de algum estábulo próximo”, ela pensou, em seguida
tornando a deitar-se na cama macia. Devido ao cansaço não demorou a
novamente adormecer.
Um curto espaço de tempo passou-se até que Rosa fosse mais uma vez
acordada por ruídos, mas desta vez não de um animal perdido na cidade.
Acordou-se ao som de batidas na porta do quarto, seguido da voz de Jullian
pronunciando seu nome com pressa e ansiedade. Levantou-se quão rápido
conseguira, envolveu-se no xale e imediatamente abriu a porta. Jullian estava
parado exatamente lá, transbordando uma expressão de excitação que Rosa
nunca havia antes presenciado.
— O que aconteceu? – ela perguntou ligeiramente assustada.
— Venha, venha comigo! – ele respondeu em tom de êxtase.
Seguiu pelo corredor com Rosa em seu encalço, os passos em ritmo de
maratona, quase deixando a senhora para trás.
— Vamos, rápido!
Passaram pelo grande salão principal da igreja, triste e assustador
quando visto através da escuridão, e logo chegaram à gigantesca porta da
frente. Jullian destrancou-a usando uma bela e majestosa chave, empurrando-
a logo após o clique que denunciava o destrancamento da fechadura. Uma
forte corrente de vento penetrou no templo, fazendo Rosa sentir um
desagradável calafrio. Ele atravessou pela abertura, permitindo que Rosa
também o fizesse.
O olhar do Padre e da governanta então focaram-se a um mesmo ponto:
o início da escadaria que dava acesso à igreja. Estendida ao pé da escada
havia uma pessoa, parcialmente enterrada na neve.
— Santo Deus! – exclamaram simultaneamente, já descendo degrau por
degrau sem se preocuparem com mais nada.
Era uma mulher que estava lá embaixo. Uma mulher de cabelos louros
e pele muito branca.
— Albertine! – Rosa disse, indecisa entre a surpresa e o pânico.
— Rosa, ajude-me a levantá-la!
Albertine estava caída de bruços, o rosto enterrado na neve, os braços
torcidos – imóveis e gelados. Os dois senhores ergueram-na em um só
movimento, e Jullian sustentou-a entre os braços para que Rosa pudesse
remover o gelo do rosto da jovem. Olhando ao redor, não viram o cavalo que
os acordara, o mesmo cavalo que obviamente havia trazido Albertine até ali.
— Vamos levá-la para dentro, rápido! Está congelando!
Com dificuldade, carregaram a jovem escadaria acima, atravessando o
salão da igreja e levando-a até o quarto de Rosa. Deitaram-na à cama,
envolvendo-a com todos os lençóis que conseguiram encontrar.
— Ela não está respirando – disse Jullian.
— Ela está viva? Jullian, me diga que ela está viva!
— Estou sentindo uma pulsação muito fraca, quase imperceptível. Ela
está viva.
Rosa abraçou-se a Albertine como nunca fizera antes. Sua vida de
repente retomou um rumo que havia sido perdido alguns dias atrás, graças
àquele abraço que embora não retribuído, significava muito mais do que
Jullian, o único que o assistia, conseguisse imaginar. Albertine estava mais
uma vez em seus braços, aos seus cuidados. Rosa não havia ainda percebido,
mas a esposa de Jeremy tornara-se inevitavelmente mais importante para ela
do que ele próprio. De repente ele já não fazia mais parte das lembranças
daquela mulher que o criou desde seu nascimento.
— Fique aqui, vou buscar algo para dar a ela – o Padre disse, já saindo
do quarto.
Menos de um minuto se passou e ele já estava de volta, trazendo um
frasco contendo um líquido avermelhado em seu interior. A rolha que
protegia o líquido foi removida, e o frasco levado ao alcance dos lábios
enrijecidos de Albertine. Rosa sustentava seu maxilar enquanto a poção
descia pela garganta da jovem desacordada, escorrendo também em poucas
gotas pelo canto da boca entreaberta. Em poucos segundos o frasco estava
vazio, e os anfitriões já transbordando de esperanças. Juntos a posicionaram
confortavelmente, descansando sua cabeça no travesseiro. Ela, porém, não
demonstrava qualquer reação.
— Agora só nos resta esperar. Dei a ela uma poção revigorante,
geralmente age em cinco ou seis minutos.
— E se não funcionar?
— Se não funcionar, nada mais poderei fazer.
Os dois então sentaram-se e esperaram. Segundos que logo se
estenderam em minutos. Um, dois, três. Os minutos mais longos e dolorosos
que Rosa já vivera. Quatro, cinco, e o medo do imprevisível congelou o ar do
quarto. Ao início do sexto minuto Albertine ainda não reagira. As palavras de
Jullian retornaram à cabeça da ex governanta: mais nada poderia fazer. A
senhora levantou-se, tomada pela aflição, e caminhou ao redor do quarto com
as mãos unidas, e o Padre apenas observava com sua já conhecida
tranquilidade. Rosa se perguntou como ele conseguia ser tão frio e sem
emoções.
— Ela não está reagindo – disse sem olhar nos olhos dele.
— Vou verificar mais uma vez.
Novamente aproximando-se da jovem desfalecida, segurou seu pulso
pressionando-o entre o indicador e o polegar. Em seguida tentou ouvir seu
coração. Os sinais vitais ainda corriam quase imperceptíveis, como se prestes
a findar-se a qualquer instante. Jullian levantou-se, encarou Rosa, dando-lhe
um sinal de desesperança. Ela retribuiu em silêncio, continuando sua
caminhada em círculos pelo cômodo à meia luz. Jullian decidiu, por fim, sair
de lá e deixar as duas mulheres sozinhas; embora fosse um homem quase
impenetrável por emoções, sentia-se abatido e levemente perturbado por tão
triste cena. Parou próximo à porta, costas dadas a Rosa e Albertine, e
suspirou.
— Jullian, veja! – Rosa então exclamou, fazendo-o virar-se
imediatamente.
Deslizando os olhos ágeis, ele logo notou que os dedos de Albertine
moviam-se em ação mecânica. Lentos e fracos, porém vivos.
— Ela vai ficar bem! Ela vai ficar bem!
— Parece que sim... – ele respondeu imediatamente, não precisando
forçar entusiasmo.
Os dedos magros continuaram a mover-se, e logo a respiração veio
como a de um bebê que sai das entranhas da mãe. O peito ia e vinha
vagarosamente, e os olhos então começaram a se abrir.
— Não toque nela! – disse Jullian a fim de interromper Rosa, que já se
aproximava mais uma vez de Albertine. –Espere até que recobre a
consciência.
Minuto após minuto Albertine voltava a si; ainda esboçava movimentos
indecisos, como os de uma pessoa que estivera imóvel ou acamada por um
longo tempo. Suas pupilas observavam cada canto do quarto, estudando ou
talvez apenas tentando reconhecer o local onde acordara, e não levou muito
tempo até reconhecer as paredes daquela construção que tanto frequentara no
passado.
— R-Rosa...
A senhora, ao ouvir seu nome em um sussurro delicado, mais uma vez
avançou até onde estava a jovem, mas desta vez não foi interrompida. Jullian
também levantou-se e seguiu os passos de Rosa, parando ao lado dela, ambos
em frente à cama. Albertine fitou-os, com os olhos entreabertos, e sorriu. Um
sorriso sincero repleto de felicidade.
— Você está bem? O que aconteceu com você? – Rosa perguntou com
entusiasmo. – Como conseguiu deixar a mansão?
Eram muitas perguntas, que Albertine não conseguiria responder
enquanto não recuperasse toda a força. Além disto, não sabia exatamente as
respostas com exatidão – precisaria ainda pensar e entender o que realmente
havia acontecido. Uma de suas mãos se moveu lentamente, e os dois senhores
acompanharam seu movimento, que seguiu até um dos bolsos do vestido. De
dentro dele, envolvido entre os dedos, saiu um pequeno frasco de vidro,
completamente vazio.
— O que isso quer dizer? – Rosa questionou assim que Albertine
entregou o frasco em suas mãos.
— Algumas gotas e... – ela sussurrou com dificuldade.
— O corpo entrará em estado vegetativo por dias – Jullian disse,
completando a frase de Albertine.
Jullian sentiu algo aflorar dentro de seu peito, e pela primeira vez, em
toda sua vida, Albertine viu o velho Padre exprimir uma feição de extrema
alegria sem parecer contida. Ele sorrira de orgulho por ter preparado uma
pupila de tão afiada inteligência, que por muito pouco não poderia alinhar-se
à dele próprio.
— Então quer dizer que...
— Sim, Rosa. Albertine forjou sua morte e fugiu.
— E com isso, como escrito no Necronomicon, o contrato foi desfeito?
— Absolutamente. Apenas a morte, ou libertação por vontade própria,
poderiam findar o contrato com o Agathodaemon.
— Mas ela não morreu. Está aqui!
— Jeremy não sabe disso.
— Santo Deus! Mas como? Como conseguiu fugir?
— Jeremy... ele me sepultou ...no mausoléu...
— Mas como saiu de lá? Como conseguiu abrir aquela porta imensa? E
ainda, como chegou até aqui?
— Tive... ajuda...
— Ajuda? Os outros empregados a ajudaram? E como eles estão?
Rosa parecia descontrolada e mergulhada em perguntas, mas a esta
última Albertine não respondeu. Preferiu apenas fechar os olhos e descansar.
Poderia deixar as respostas para depois – especialmente aquela sobre os
amigos que jamais tornariam a ver.
— Venha, vamos deixá-la descansar até de manhã. Teremos muito
tempo para conversar – disse o Padre, puxando levemente Rosa pelo braço.
— Boa noite, querida – ela disse com ternura.
Deixaram-na sozinha com seus próprios pensamentos, esperando que
descansasse e recuperasse as energias, mas Albertine sabia que não
conseguiria dormir, não só naquela noite, mas também por muitas e muitas
outras. Dezenas, talvez centenas delas. Imagens passavam por sua mente a
cada piscar de olhos – imagens do passado e do que seria seu futuro a partir
de agora. Pensou em cada uma das perguntas de Rosa, e apegou-se à mais
difícil de todas elas. Quem afinal a ajudara a escapar, a mover a espessa
tampa de pedra que selava o túmulo? Quem abrira a porta do mausoléu, os
portões da mansão, e a colocara em um dos cavalos, ainda um pouco perdida
nos efeitos da poção que encontrara no compartimento abaixo do piso da
biblioteca?
Albertine já tinha todas estas respostas. Fechou novamente os olhos
cansados, e sorriu em agradecimento, lembrando-se perfeitamente do aroma
doce que sentira ao acordar no interior do túmulo escuro e frio. Sentira o
perfume de violetas, que a seguiu até os portões da mansão, dissipando-se no
ar poucos centímetros após de tê-los atravessado, rumo à sua nova e merecida
liberdade.
Epílogo
DESCOMEÇO
MINUETO DA MADRUGADA
No segundo volume da série ‘As Crônicas Ridell’ você será levado para vinte
anos antes de ‘Albertine’, e conhecerá uma jovem Rosa que, após mudar-se
da Alemanha para a Inglaterra, é contratada para trabalhar como governanta
na mansão Ridell. Lá ela conhece Dianne, e também os mistérios e horrores
que envolvem aquela obscura família.
ELEGIA