Você está na página 1de 262

“Dedico este livro a um amigo

que partiu antes que pudesse


vê-lo pronto – o grande responsável
por ter plantado em minha cabeça
a semente que germinou e gerou
ALBERTINE”
“Tetos tão sombrios,
Morada tão branca e vazia,
Ecoando os nossos risos.
Era a Morte que lá existia”
Prólogo

ESCURIDÃO

A noite mais uma vez se abatia por todo o céu manchado pelo
crepúsculo avermelhado, cobrindo toda sua cor com uma capa negra e
intransponível. Pouco a pouco a penumbra foi invadindo a floresta, os muros
e o jardim, até que tudo estivesse completamente mergulhado em escuridão.
A lua há muito não surgia ali; parecia se recusar a sair de trás das camadas de
nuvens que preenchiam o céu noturno e triste. Não havia movimento que não
fosse o do vento levando as folhas mortas do chão, e do estalar de galhos
partindo-se das árvores sem vida que ocupavam todo aquele largo espaço.
Logo após os portões surgia um caminho de tijolos, encoberto pela grama por
anos não cortada. Ele levava exatamente à grande porta de entrada de uma
imensa e lúgubre construção: uma mansão, majestosa e imponente, que se
estendia de canto a canto do espaçoso terreno. As inúmeras vidraças da
grande casa tremulavam à vontade do vento, e não fosse por uma minúscula
porção de luz que se derramava por uma delas, no andar de cima, poderia-se
dizer que aquele pequeno pedaço de mundo, um dia, houvera sido condenado
à eterna escuridão.
A luz surgia de uma vela pequenina, queimando os seus últimos
segundos de pavio sobre um pires, descansada sobre um pequeno móvel de
três pernas. Era uma sala não muito grande, repleta de quadros espalhados
por cada uma das paredes – essencialmente imagens de rostos pálidos,
exibindo-se à meia luz. Frente a uma destas paredes havia uma velha
poltrona, macia e confortável. Uma figura humana, magra e esguia
descansava sobre ela, os braços estendidos sobre os do assento encardido, as
costas rigidamente eretas acompanhando a direção do encosto. O pescoço
virado para trás induzia o rosto inexpressivo a fixar-se no teto que, para outro
que o visse, parecia prestes a despencar. Era um homem muito magro, de
pele muito branca e rosto descorado; seus cabelos lisos muito bem penteados
cobriam parcialmente as orelhas, quase misturando-se com a barba escura e
mal feita. Seus dedos indicadores, posicionados horizontalmente sobre o
comprimento dos braços macios da poltrona estavam inquietos,
movimentando-se para cima e para baixo numa mistura de impaciência e a
tentativa de imitar o ritmo de um pulsante coração.
Ao redor dele, criadas pelo dançar da minúscula chama que bruxuleava,
sombras deslizavam pelas paredes, passeando agourentamente através das
inertes pinturas com seus olhares fixados a lugar nenhum. Uniam-se em
formas de dedos compridos, macabros e ameaçadores, e pareciam cercá-lo na
intenção de jamais permitir que se libertasse. Uma das mãos sombrias, então,
desprendeu-se das demais; moveu-se lentamente para fora do aglomerado de
trevas, revelando um braço comprido seguido de um tronco escuro. Em
seguida, um rosto inumano surgiu sob o efeito da vela, com olhos vazios e
uma boca aberta que, mesmo sem dentes, sorria. O ser de trevas encarou,
assim, o homem à sua frente por alguns segundos, e então pareceu sorrir
ainda mais. De forma infernal e completamente intangível, os dedos
compridos arrastaram-se da parede até o chão, aproximando-se, ameaçando
em silêncio aquele que os observavam. Por fim alcançaram o pequeno móvel,
e logo depois o que restava da pequena e já enfraquecida vela de cera
amarelada. Sem nenhuma delonga e sem qualquer piedade, os dedos de
sombras rodopiaram ao redor da chama, fazendo-a desaparecer com um sopro
que surgira de lugar nenhum. Escuridão.
O homem, assim, viu-se completamente entregue ao próprio destino,
gastando cada uma das horas de sua vida apenas em silêncio. Nada além das
trevas devorando-lhe por completo era capaz de dar a ele um singelo
momento de calmaria, um simples momento em que não sentisse arder as
entranhas com aquelas lembranças; lembranças de uma vida que nem ele
mesmo sabia se vivera, ou se agora tudo era apenas um fruto de sua mente
atormentada. Tudo dentro dele eram apenas turbilhões de dúvidas e medo,
não da morte, mas de continuar vivendo - medo de ser eternamente
perseguido por aqueles fragmentos de vida, retalhos de alma, pelos destroços
de um amor que se deteriorava através do tempo, e que lentamente
desmoronava junto das paredes da escura mansão.
Não era o fim, ele sabia. Era apenas mais um terrível e indesejado
recomeço.
Capítulo I

DOIS CORAÇÕES

Uma agridoce tarde de verão passeava pelo céu escurecido,


carregando tufos de nuvens cinzentas que denunciavam a aproximação de
mais uma pancada de chuva sobre o lugarejo onde a vila existia solitária. As
ruelas mostravam-se pouco movimentadas, e apenas alguns coches
transitavam tranquilamente pelo chão de terra batida. Era uma vila pacata,
localizada em uma região montanhosa e acompanhada de uma vasta floresta
que surgia logo depois dos limites da estrada do sul.
Em uma das amigáveis ruelas, frente a uma construção discreta de
paredes brancas e bem cuidadas, estavam duas crianças. Uma delas era um
menino de pele branca e cabelos negros, trajando roupas escuras e rígidas que
conferiam-lhe uma aparência triste e pouco infantil. A outra era uma menina
igualmente branca, porém de cabelos muito louros, elegantemente vestida
como uma pequena dama. Brincavam em um discreto canteiro de flores,
correndo em curvas, de um lado a outro, e de forma rítmica largavam-se na
grama ou na areia, libertando largos sorrisos de mais pura felicidade.
Aparentavam nove ou dez anos de idade cada um – a menina repleta de vida,
bochechas coradas como pêssegos recém-colhidos, e o menino, por sua vez,
exibindo aparência frágil e franzina através de um rosto pálido como a
cerâmica branca de uma estátua de jardim.
— Jeremy! – disse a menina correndo em sua direção com as mãos
juntas formando uma concha – Veja o que encontrei!
— Livre-se disto, Albertine, é nojento! – gritou o garoto, ranzinza, ao
visualizar um pequeno caracol de jardim nas mãos da companheira.
Albertine pareceu desconsertada, e mostrando-se insatisfeita, largou o
caracol junto a algumas flores amarelas próximas a seus pés.
— Albertine! – ouviu-se logo atrás deles uma voz feminina e suave. –
Vamos embora!
— Não, mamãe! Deixe-me ficar mais um pouco! – seus olhos verdes
cintilaram de esperança em permanecer ali com seu amigo, correndo e
sujando seu lindo vestido cor de creme de terra molhada.
O menino lançou o mesmo olhar à mulher que se prostrara diante deles
vestindo delicadas luvas de seda verde-musgo, que combinavam
perfeitamente com o vestido de mesma cor, mas ela instantaneamente negou
o pedido apontando ao céu, na direção de grandes nuvens escuras que
rapidamente engoliam o azul que imperava até alguns momentos atrás.
— Não quer ficar aqui e acabar encharcada como um animal selvagem,
quer? – caçoou de maneira divertida a mãe da menina, a senhora Georgia,
enquanto livrava os cabelos da filha de algumas pétalas amarelas que haviam
emaranhado-se em seus longos fios. – Amanhã você pode brincar novamente
com Jeremy.
Despediram-se sem ânimo, e sem nenhuma delonga o menino correu o
mais rápido que pôde já na tentativa inútil de desvencilhar-se dos grossos
pingos de chuva que despontaram do céu, agora quase completamente
fechado pelas camadas de nuvens de chumbo. Correu por incontáveis ruas até
chegar à frente de uma grande casa branca, abrindo com pressa o grande
portão que gemeu e estalou ao ser novamente fechado, e logo estava diante
da porta de entrada. As roupas já pingavam, e os cabelos escuros já
grudavam-se à testa do garoto. Entrou e esgueirou-se de um lado a outro,
aparentemente espreitando a presença de alguém no recinto, mas não havia
ninguém. Saiu em disparada escada acima antes que Rosa o encontrasse
molhado, sujo de lama, pisoteando o mármore impecavelmente limpo a
caminho de seu quarto. Tirou as roupas molhadas e num instante já se
encontrava no toalete, enchendo a banheira branca de água fria, algo que
intensamente detestava. Não podia, porém, entregar-se a Rosa indo pedir-lhe
para aquecer água, permitindo que visse o estado de imundície em que se
encontrava. Uma porção de arrepios pareciam-lhe sempre mais agradáveis do
que as longas broncas que sua cuidadora costumava proferir.
Rosa era a governanta da casa de Jeremy, embora gostasse muito de
fazer os serviços que cabiam às criadas, como preparar o jantar, passar as
roupas e organizar os quartos, essencialmente o dele. Uma mulher que
caminhava sobre seus quarenta e poucos anos, mas que possuía a disposição
de três com metade de sua idade. Não era de lá, ele sabia pelo charmoso
sotaque que tornava suas frases tão melodiosas quanto uma estrofe de uma
música qualquer. Jeremy ficava fascinado com as histórias que ela lhe
contava sobre sua terra natal, uma cidade grande repleta de charretes e
carruagens por todos os lados, com comerciantes gritando os anúncios de
seus produtos, muitas mães de mãos dadas a seus filhos, caminhando a
passeio ou a caminho da escola. Tais idas à escola, de fato, eram algo que
Jeremy nunca saberia descrever após ter sido condenado a receber aulas
particulares até que ficasse moço, em idade de assumir as rédeas da Ridell, a
companhia imobiliária de seu pai.
Falar neste último era uma coisa que Jeremy fazia muito pouco, talvez
ainda menos do que as raras vezes que costumava vê-lo presente em casa.
Rosa era, além de Albertine, a única pessoa a quem Jeremy costumava
entregar-se em conversa, mesmo quando ela estava ocupada a ponto de mal
respondê-lo; mesmo assim ele escutava as breves respostas e observava
atento tudo que ela fazia. Gostava particularmente de vê-la organizar a
biblioteca, talvez devido ao fato de que houvesse sido claramente proibido de
entrar lá sozinho. Necessariamente nunca sentira interesse em examinar os
livros ou qualquer outra coisa na biblioteca, nem mesmo aquele estranho e
antigo armário de mogno no recanto, um pouco afastado das prateleiras
repletas de livros. Dele, já havia visto tantas vezes Rosa retirar alguns papéis,
conferi-los e novamente depositá-los no armário, em seguida fechando-o com
uma chave grande e rústica, chave esta que sempre era guardada em um dos
fundos bolsos de seu uniforme de governanta.
Era a Rosa que Jeremy devia satisfações por suas peripécias de criança,
era ela quem o aprumava à mesa quando se recusava a almoçar, quem
preparava a cama para mantê-lo aquecido durante a noite. Rosa era
indiscutivelmente o mesmo que uma mãe ao garoto. Ao que ele sabia, da
forma que Rosa o contava, sua mãe definhara perante uma repentina e
incontrolável doença que a enfraqueceu até a morte, levando-a consigo ao
desbocar de uma noite chuvosa. O menino nascera a salvo embora
demonstrasse, igual sua mãe, que não conseguiria sobreviver. Seu corpo
frágil tremia e parecia não ter sangue pulsando nas veias aparentes por baixo
da fina camada de pele, muito branca e sem vida. Em uma reviravolta
inesperada, entretanto, Jeremy sobreviveu. Milagrosamente, contrariando as
palavras de um experiente médico que o condenara à morte, recuperou-se e
em poucos dias já se via rosado e vívido, como todo bebê saudável deveria
ser, embora ainda um pouco fraco a ponto de não chorar como também
faziam os outros bebês. O pai, como de costume, não se encontrava por perto
na noite do nascimento do único filho – algo que não causou comoção a
nenhuma das criadas que assistiram o doloroso parto. A verdadeira comoção
ocorreu quando Joseph voltou de uma de suas longas viagens de negócios,
com marcas no pescoço e olheiras profundas causadas por noites não
dormidas. A notícia da morte da esposa não pareceu surtir efeito algum nas
emoções daquele homem. Nem mesmo quis pousar os olhos sobre o filho, o
primeiro filho, aquele frágil e inocente bebê que emitia grunhidos quase
inaudíveis, tentando chorar, mas sem forças para fazê-lo.
Jeremy então crescera aos olhos da governanta, e embora tivesse um pai
sob o mesmo teto, jamais compartilhara com ele qualquer tipo de relação
além de monetária. Joseph contratava sempre os mais respeitáveis
professores para educar seu filho em casa, como era tradição na família
Ridell, uma família formada essencialmente por homens e mulheres bem-
sucedidos. Quanto a isso, Joseph podia ter total segurança: o menino era
brilhante. Absorvia todas as lições com maestria e não precisava estudar
realmente para alcançar excelentes notas nos exames. O que mais agradava
ao pai de Jeremy era o seu indiscutível talento com números: dissecava os
cálculos em segundos, até das mais complicadas equações. Afinal, seria um
perfeito substituto ao encarregado das tarefas administrativas do escritório. A
cada ano que se gastava Rosa sabia que se tornava cada vez mais iminente o
dia em que Jeremy seria um moço, pronto para assumir responsabilidades
acima das quais realmente deveria. Não era por falta de experiências próprias
que ela pressentia o que o menino sofreria quando chegasse o infeliz tempo
de trabalhar no escritório, e obviamente isto não demorou a acontecer.

Alguns verões se passaram, e lá estavam eles: Jeremy, Rosa, Albertine e


meia dúzia de criados mais chegados, ao redor de uma elegante mesa. No
centro dela, um bolo coberto de glacê branco e adornado por cerejas frescas
brilhava sob as chamas de dezessete finas velinhas. Cantavam um animado
‘parabéns a você’ em coro, enquanto Jeremy sorria envergonhado
transferindo o olhar rapidamente a cada um dos presentes, mesmo que
Albertine estivesse em vantagem se estes olhares fossem reunidos em
números. Ele não podia deixar de perceber o quanto estava bonita, e nem
como até um simples movimento de suas mãos se tornava gracioso e
encantador. Jeremy também se tornava, aos poucos, um belo homem alto, de
cabelos afrontosamente lisos caídos por cima das orelhas; exibia um maxilar
afilado e perfeitamente angulado às belas feições de seu rosto, dotado de
maçãs protuberantes.
Ao fim da discreta festa saborearam o bolo feito pelas mãos mágicas da
governanta, e logo após isto todos os serviçais retiraram-se levando consigo
os pratos e copos sujos, enquanto Jeremy e Albertine dirigiam-se à sala de
estar do belo casarão, vendo-se refletidos no mármore acinzentado do piso.
— Sei que não é muito, mas trouxe isto pra você – ela falou quase
sussurrando enquanto procurava algo na bolsinha de mão que carregava.
Jeremy olhava atento e a viu retirar com cuidado uma fina corrente
prateada, com um pequeno medalhão oval preso a ela. Albertine entregou-lhe
a corrente, que encaixou-se em espiral na palma de sua mão. O medalhão
prateado reluziu o brilho das luzes do lustre acima dos dois, e ele notou um
pequenino corvo projetado em relevo na superfície do delicado objeto.
— Um corvo? – perguntou ele, olhando-a de esguelha.
— Garras que abrindo vão a minha dor já crua... – Albertine respondeu,
misteriosa.
— E o corvo disse: nunca mais.
Sorriram, e sob a citação do poema gótico favorito de ambos, trocaram
um olhar de cumplicidade e que carregava muito mais do que uma simples e
inocente amizade juvenil.
— Vire-se, deixe-me colocá-lo em você – ela sibilou suavemente
enquanto recuperava a corrente. Jeremy num instante deu-lhe as costas e
sentiu os braços de Albertine cruzarem-se acima de sua cabeça, em seguida
fechando-se em arco ao redor de seu pescoço. Por um momento a
temperatura de seu corpo se elevou e suas bochechas coraram, enquanto um
coração incontrolável batia freneticamente dentro dele. – Pronto, terminei.
Jeremy virou-se e a viu sorrindo, os cabelos caídos sobre os ombros estreitos,
os olhos verdes tão claros como nunca antes. Poderia pedir que ficasse ali,
como estava, para que fosse pintada; aquela imagem angelical eternizada em
uma gigantesca pintura a óleo. Olhou ao seu próprio peito e viu o medalhão
pender da fina corrente, o corvo de asas abertas ainda brilhando. O silêncio
que se apoderou daquele instante era, ao mesmo tempo, apavorante e
maravilhoso. Os dois pares de olhos parados um no outro, os corações
pulsando no mesmo ritmo e os pensamentos rumando na mesma direção.
— Já está muito tarde, preciso ir antes que papai venha até aqui me
buscar – ela disse sem vontade.
— C-claro... seus pais já devem estar esperando.Nos vemos amanhã,
então.
Talvez mais por impulso que por cavalheirismo, ele estendeu o braço
direito e segurou as pontas dos dedos de Albertine, levando sua mão até bem
perto de seus lábios, encostando-os na delicada luva que usava, com um terno
beijo de boa noite.

O presente de aniversário do pai só foi recebido mais tarde naquela


noite, após Joseph chegar de mais uma viagem, daquela vez um pouco menos
embriagado. Jeremy não soube o que dizer, nem se deveria agradecer pelo
incomum presente: uma sala só para ele no escritório da Ridell. “Chegou a
hora de ser adulto”, disse o velho Joseph, orgulhoso, mesmo que o bafo de
uísque se destacasse mais do que qualquer outra coisa durante a entrega do
grande presente.
O prédio não ficava muito longe da casa onde moravam, e cerca de
cinco minutos de caminhada eram o suficiente. Ao entrar na sala pela
primeira vez, o jovem mostrou-se um tanto surpreso com a grande quantidade
de prateleiras repletas de livros – em sua grande maioria sobre administração
– e com todos aqueles armários de portas de vidro, completamente
preenchidos de envelopes e fichas. Embora já viesse sendo treinado em casa
por um dos professores de administração, que já havia trabalhado na Ridell
por dois ou três anos, Jeremy precisou da ajuda de Ellie, a secretária, para
aprender os sistemas de organização do setor que ficaria sob seu encargo a
partir de então. Ele seria responsável por tudo que envolvesse aluguel de
imóveis, desde o atendimento de clientes interessados até a quitação ou
renovação de contratos expirados. Não era realmente um trabalho
complicado, e por várias vezes ele se questionava se todos aqueles anos
fritando os neurônios para aprender cálculos e fórmulas serviriam de alguma
forma. Ellie foi bastante paciente e prestativa, e não se gastaram muitos dias
até que Jeremy já dominasse todas as técnicas e já tivesse em memória cada
padrão de organização nos armários com as fichas dos inquilinos. Só havia
um único armário que Ellie não se importara em explorar, o mais velho e
mais preenchido de todos; de acordo com ela, eram apenas documentos de
dezenas de imóveis abandonados ou condenados pelo tempo, e que não
serviam mais para absolutamente nada além de acumular mofo. De alguma
maneira Jeremy achou que fosse muito similar ao armário que já vira tantas
vezes ser revistado por Rosa, na biblioteca de sua casa.
A partir de então seus encontros com Albertine tornavam-se cada vez
mais escassos. Durante o dia Jeremy permanecia escravizado pelos montes de
papéis e documentos no escritório, e durante as noites de dias alternados da
semana Albertine frequentava uma escola de música muito conceituada que
ficava na cidade vizinha ao pequenino vilarejo. Nos dias livres, a moça
dedicava-se a aperfeiçoar seus outros talentos, o que causava em seu
companheiro ligeiras pontadas de inveja de alguns dos dons com que
Albertine fora abençoada; era uma exímia pianista, escrevia belíssimas
poesias, pintava magníficas imagens em tela e até arriscava-se a desenhar
alguns dos próprios vestidos. Além disso, algo que ele admirava tanto quanto
desejava ter era uma família como a dela. Era muito unida a seus pais, e estes
por sua vez nutriam profundo orgulho daquela moça tão boa em tudo que
tentasse fazer.
Os dois amigos passaram a ver-se apenas aos domingos durante a
missa, muito rapidamente, ou quando Albertine acompanhava o pai ao
escritório para fazer o pagamento do aluguel, duas vezes ao mês. Os meses
logo foram logo passando velozes, e mesmo já habituados à saudade das
longas conversas, a ausência jamais conseguiu separar os dois jovens, mesmo
que só pudessem ver um ao outro através dos pensamentos.
Em uma tarde sem sol – algo costumeiro naquela distante região –
Jeremy carimbava contratos em sua mesa quando avistou, pela janela,
Albertine atravessando a rua ao lado de sua mãe. Levantou-se rapidamente,
esgueirando-se para fora na intenção de ser visto, mas logo notou que ambas
andavam apressadas. Não conseguiu sequer acenar para ela e, frustrado,
retornou para dentro com um movimento de arco a abrir-se. Sentou-se
novamente diante da infinidade de envelopes, e depois de liberar um
profundo suspiro, agarrou com o dedo indicador e o polegar o medalhão em
seu pescoço. Levou-a diante dos olhos e observou o corvo afixado ao metal,
recordando-se com carinho do dia em que o recebera das mãos de sua querida
Albertine. Sorriu, mas sentiu algo dentro de si que contrastava com aquele
momento de saudade. Pareceu enegrecido, e rapidamente notou o sorriso
desaparecendo de seus lábios como se sob a notícia de uma tragédia.
“Se isso é ser adulto”, pensou, recordando-se das palavras de seu pai,
“gostaria eu de poder jamais crescer.”
Capítulo II

DESTINO

Foi em um dia comum do mês de maio que os funcionários da Ridell


notaram, ao chegar de manhã bem cedo, que o escritório havia sido invadido
na calada da noite. Após o burburinho inicial, entraram cautelosamente e
verificaram cada milímetro até perceberem que nada - absolutamente - fora
levado. Cada objeto, utensílio e documento estavam em seus devidos lugares.
Era a primeira vez em mais de trinta anos que não se ouvia qualquer notícia
sobre roubos ou arrombamentos no vilarejo, e era até mesmo improvável que
algum ladrão forasteiro nutrisse o ânimo de atravessar a vasta floresta que se
estendia ao redor da vila, de árvores muito altas e finas, para invadir um
escritório imobiliário. Entretanto, sem dúvida alguma, a parte mais estranha
de toda esta inquietação se devia ao curioso fato de não terem encontrado
sinal algum de arrombamento. A porta da frente estava aberta como que pela
chave principal. A possibilidade de ter sido esquecida aberta ao fim do
expediente do dia anterior estava completamente descartada – Jeremy sempre
a conferia duas ou três vezes antes de ir embora, e apenas ele possuía o
molho com todas as chaves do escritório. Foi difícil manter a calma dos
funcionários durante todo aquele dia, pois mesmo com a concreta constatação
de que nada fora levado, alguns alegavam sentir falta de algum objeto, outros
garantiam ter encontrado documentos fora do lugar e assim em diante.
No final da tarde, Jeremy caminhava para casa após certificar-se
duplamente que o escritório estava em segurança, enquanto lançava olhares
rápidos ao jornal do dia, sem encontrar qualquer manchete que chamasse sua
atenção. Ergueu a vista e mais uma vez notou uma grossa camada de nuvens
acinzentadas se aproximando ao sabor do vento, algo que estava tornando-se
costumeiro e que sempre traziam junto de si aquelas sessões de chuva de três
a quatro vezes por semana. Apressou-se a chegar em casa antes que de fato
iniciassem a cair os pingos frios, e ao longe viu Albertine pronta para sua
aula de música, prestes a acomodar-se na carruagem parada na frente de sua
casa. Acenou para ela, que correspondeu com um singelo chacoalhar de
mãos, prevenindo-se de derrubar ao chão o espesso livro que carregava junto
ao corpo como se fosse um bebê gorducho.
Era um comum hábito de Albertine carregar livros onde quer que fosse.
Apesar de não desfrutar realmente do tipo de leitura que agradava a ela,
Jeremy escutava com plena atenção os resumos dos capítulos que ela narrava
com tamanha excitação. Ela representava as vozes de cada personagem
quando passagens importantes eram necessárias, e até atuava em mil
expressões faciais as ações que os personagens tomavam. Ao pensar nisto ele
lembrou-se que tinha de devolver-lhe um exemplar de Decameron que havia
tomado emprestado algumas semanas atrás, mas não tivera paciência de
finalizar. Embora apreciasse a qualidade épica das longas novelas de
Boccaccio, os relatos sobre a peste negra tornavam, para ele, a leitura
chocante e absurdamente desagradável.
Ao entrar em casa sentiu o delicioso cheiro do jantar que vinha da
cozinha. Seguiu ao seu quarto para lavar-se, em seguida ceiou, recusou a
sobremesa e voltou ao seu recinto de descanso. Estendeu-se na cama
cuidadosamente arrumada por Rosa e fechou os olhos, enquanto segurava e
apertava com muita força o medalhão em seu pescoço. Sentia-se feliz em ter
algo que viera das delicadas mãos de Albertine tão perto do coração. Pensou
no rosto dela, no cheiro, na voz. De fato, pensava mais nela do que em
qualquer outra coisa durante todos os dias, e sonhava com ela quase todas as
noites. Tinha esperança de que pudesse voltar a vê-la com a mesma
frequência de antes, mas receava que por estarem ficando mais velhos não
pudessem mais andar tão juntos. Era época de mudanças, e um rapaz e uma
moça não deveriam ser amigos como crianças, não à vista do mundo. No
fundo, porém, ele realmente entendia o que sentia; ele não queria mais tê-la
como aquela amiga com quem antigamente brincava no jardim.
Em um certo momento, misturadas aos bons pensamentos, Jeremy
notou como estavam fortes as dores que vinha sentindo em seus ossos nas
últimas semanas. Um incômodo incessante que parecia remoer-lhe as
articulações. Estes sintomas eram comuns à aproximação do inverno, ele de
fato sabia. Tornava-se quase inútil ao longo de dias muito frios, fraquejando
pelas dores que mal o permitiam permanecer de pé. Tentou esquecer-se delas
por alguns instantes, fechando a mente e logo entregando-se ao sono e ao
cansaço do longo dia de trabalho.

Jeremy estava perdido em meio a um sonho que não conseguia entender


– estava em uma floresta escura e fria, a névoa subindo quase a seus joelhos.
Estava parado e via, um pouco à frente, dois ou três vultos de forma humana,
em silhuetas indefinidas, misturadas à escuridão. Ele segurava algo em uma
das mãos, que reluziu de forma vívida a um relâmpago prateado que acendeu
por poucos instantes toda aquela floresta sombria. Ele permanecia lá, parado,
observando o que quer que fosse ir embora, até que o sonho esvaía-se
repentinamente, certamente incompleto. Desta vez, o que o arrancou de seus
devaneios do sono foram batidas muito rápidas na porta de seu quarto, em
ritmo apressado e descontrolado, denunciando a pressa de quem quer que
estivesse do outro lado.

— Sim? – ele guinchou desinteressado.


— Senhor Jeremy, por favor, venha, venha rápido! – respondeu uma
voz feminina esganiçada.
Jeremy levantou-se em um só salto, calçou as sapatilhas marrons e
vestiu-se com um longo sobretudo cor de caramelo que estava dobrado e
descansado acima da penteadeira. Abriu a porta e viu uma das criadas, muito
pálida, de olhos arregalados, parada diante dele, enquanto outras duas saíam
em disparada no corredor.
— O que aconteceu? Qual o motivo deste alvoroço?
Ela hesitou por alguns poucos segundos, como se estivesse procurando
as palavras certas em sua mente.
— V-venha... lá fora... a casa dos Grahanfield!
— O que aconteceu lá? Diga! – Jeremy gritou, mas a pobre criada
desabou-se em choro e nada conseguiu responder.
Ele seguiu o último empregado que viu correndo pelo largo corredor e
desceu as escadas da sala principal tão rápido quanto nunca fizera antes. A
gigantesca porta estava escancarada, e por ela passaram duas empregadas
com muita pressa. Um terrível pressentimento apossou-se do rapaz, e antes
mesmo de entender o que acontecia, engoliu a seco e sentiu o coração
disparar. Jeremy correu, correu com quanto fôlego tinha, e ao dobrar a
esquina sentiu o estômago congelando junto com suas entranhas.
A casa dos Grahanfield estava tomada por colossais labaredas
vermelhas, ardendo dos degraus de entrada até a mais alta ripa do teto. As
chamas dançavam impiedosamente por dentro e para fora das janelas, o
telhado estalava e uma monstruosa camada de fumaça negra erguia-se no céu,
cobrindo as poucas estrelas que se exibiam timidamente ao escapar das
nuvens quase tão escuras quanto a fumaça. Um grande tumulto se formava ao
redor do incêndio, enquanto algumas pessoas em vãs tentativas de diminuir o
fogo derramavam água de baldes e bacias para dentro da casa. O clarão
avermelhado estendia-se até onde a vista pudesse alcançar, manchando a
noite de forma agourenta e quase infernal.

— MEU DEUS! NÃO! – guinchou Jeremy em desespero, já parado


junto aos outros à frente da terrível desgraça.
Por um segundo ele não ouviu nada além do silêncio ao imaginar que
Albertine estivesse ali, no meio daquelas chamas, carbonizando ou já
completamente carbonizada. Imaginou seu corpo ardendo, sua pele tornando-
se escura, seus longos cabelos transformando-se em cinzas em meio a toda
destruição. Sua mente girou como se afetada pela embriaguez de um
poderoso absinto, enquanto grossas lágrimas já escorriam pela face pálida e
apavorada.
O aglomerado de pessoas desesperadas, ou ao menos curiosas, crescia a
cada instante. Nem mesmo Jeremy sabia que viviam tantas pessoas naquela
vila.

— ELES SAÍRAM? ALGUM DELES SAIU DA CASA?


— Não sabemos! – respondeu um homem de pijama ao lado do rapaz.
– Quando chegamos aqui a casa já estava tomada pelas chamas, não vimos
ninguém sair.
Jeremy fraquejou ao som de tais afirmações. Não, não aceitaria.
Albertine não estava lá, não estava em casa. Era isso o que ele mais desejava.
Nem se lembrava dos pais dela, apenas queria a moça viva, já, bem do seu
lado. Levou as mãos suadas ao rosto e despencou em lágrimas, sentindo o
calor do fogo à sua frente. Perdeu a respiração por várias vezes, os olhos
marejados e embaçados pela fumaça. Ajoelhou-se no chão, e não percebeu
que a multidão atrás dele se abria, deixando livre um espaço por onde
atravessou um coche branco, de porte médio, puxado por dois cavalos muito
fortes que se demonstraram receosos em aproximar-se mais do fogo. Antes
mesmo que parasse por completo, de dentro saltou uma garota assustada, sem
cor, os olhos verdes refletindo o vermelho infernal.
— DEIXEM-ME PASSAR, DEIXEM-ME PASSAR! – ela gritava
enquanto abria caminho pelas camadas de curiosos.
Jeremy não tinha certeza, mas levantou-se bruscamente ao achar ter
ouvido a voz desesperada de Albertine. Virou-se e a viu lá, paralisada, as
lágrimas lavando seu rosto. Exibia a boca aberta, o queixo movimentando-se
em um tremor descontrolado, tentando dizer qualquer palavra. Todo o seu
pesar diminuiu abruptamente naquele momento. Ela estava ali, diante dela.
Viva.
— Jeremy! M-meu Deus, por favor me diga que estão bem, diga-me
que estão aqui fora – a voz de Albertine saiu quase inaudível em meio ao
zumbido de dezenas de outras vozes.
Jeremy não respondeu a pergunta e ela sentiu que tudo estava perdido.
Desabou em lágrimas, o choro misturando-se a intermináveis soluços.
Agarrou-se a Jeremy, e juntos viram o que restava da casa ser completamente
engolido pelas gigantescas e vorazes chamas.
Capítulo III

CHUVA

Os últimos resquícios de brasas nos destroços da casa foram


sutilmente apagados por uma fina chuva que tornou a cair antes do
amanhecer. Não havia mais ninguém observando a total destruição, como
também ninguém ousou falar a respeito durante todo o dia, pelo menos não
na casa de Jeremy, onde Albertine fora acolhida a passar a noite. Não
dormiram, não conversaram. Era terrível demais. Ela permaneceu sentada,
perfeitamente ereta, em uma das poltronas macias da sala de estar, Jeremy ao
seu lado apoiando-lhe em silêncio. Estava quieta e imóvel a ponto de quase
confundir-se a uma escultura de cerâmica, com olhos vidrados em um ponto
fixo onde nada existia. Atravessou o dia inteiro em tal estado, sem comer um
grão ou beber um gole d’água. As pontas de suas luvas, agora largadas sobre
um criado-mudo ao lado de um abajur vermelho-sangue, exibiam focos de
cinzas misturados às linhas desfiadas, assim como seu vestido e sapatos.
Jeremy tentava ler sua mente, queria saber o que pensava para tentar ajudá-la,
mas entendeu que nada além de silêncio seria capaz de trazer algum conforto.
Sol e lua revezaram-se alguns pares de vezes, e dia após dia Albertine
foi se acostumando à ideia de que, num estalar de dedos da morte, havia se
tornado órfã. Sem qualquer lugar para ficar, recebera a liberdade de instalar-
se na casa dos Ridell, obviamente a convite de Jeremy. Rosa dedicou a ela
um dos quartos de hóspedes nunca antes usado. Era aconchegante e
charmoso, com paredes forradas por um papel amarelo-pálido decorado com
pequenas margaridas, um grande lustre de vidro que pendia sob uma enorme
cama de madeira envernizada, o piso tomado de um lado a outro por um
macio carpete que luxuosamente combinava com as paredes. Em sua essência
era quase possível sentir aroma de baunilha, dada a aparência suave como um
creme de tal sabor.
Jeremy fazia o possível para manter sua rotina comum, mas por
incontáveis vezes saiu do escritório mais cedo para não deixar a hóspede
sozinha. Inicialmente, Albertine saía do recinto raras vezes, mas em duas ou
três semanas já andava por toda a casa, familiarizando-se com os criados e
especialmente com Rosa. O apoio daquela quase mãe agora se dividia entre
os dois jovens, ambos marcados pela sombra negra da perda de entes
queridos. Para Jeremy, porém, não era difícil viver sem sua verdadeira mãe,
afinal jamais chegara a conhecê-la e nem ao menos sabia como era seu rosto.
Rosa dizia que os poucos retratos existentes de Dianne Ridell perderam-se
dentro de antigos baús e urnas que foram anos após ano sendo removidos da
casa, junto com quaisquer outros restos de lembrança sobre ela. Ele se
perguntava ocasionalmente o que teriam feito aos pertences de sua mãe –
teriam sido queimados, doados, ou simplesmente atirados ao lixo como se
nada representassem? Sentia-se indignado ao pensar como a existência de
uma pessoa pudesse ser tão rapidamente apagada, toda uma vida esquecida
ao longo dos anos, e do fundo de sua alma desejava ter alguém que no fim de
sua vida se lembrasse de quem ele fora, que ao menos guardasse uma
imagem sua para que seus anos na terra não desaparecessem junto a seu
corpo ao ser devorado pelo tempo. Imaginava se seria fácil para Albertine
esquecê-los, ou ao menos aprender a controlar a saudade quando viesse bater
nas portas de sua mente para atormentá-la.
Era óbvio que também estava ainda muito abalado pela drástica decisão
do destino, os pais de Albertine sempre foram amigos da família e clientes da
Ridell, mas um pequenino pedaço da mente de Jeremy sentia uma cruel
felicidade pela dupla perda na vida da moça. Por qual outro motivo estariam
agora almoçando, jantando e passando as noites juntos, como antes? Ele
tentava convencer-se que não, mas sentia-se de certa forma agradecido. A
presença de Albertine dava mais vida a toda aquela casa. Nem mesmo as
bizarras cenas do pai chegando bêbado durante a madrugada, esbravejando
palavras incompreensíveis contra os criados ou o próprio filho, eram capazes
de aborrecê-lo. Chegava até a imaginar que suas dores ósseas milagrosamente
esvaíam-se de seu corpo na presença dela. Para o jovem Ridell tudo estava
bem.

Durante as semanas que se seguiram, o céu parecia cada vez mais


melancólico e desbotado. Há muitos dias não se via um raio quente de sol, e
uma atmosfera cinzenta apossava-se mais e mais dos arredores da vila a cada
amanhecer. Todos esperavam que uma longa temporada de chuvas
duradouras atingisse o lugar a qualquer momento, mas as nuvens pareciam
estar juntando-se em exército para derramarem-se de uma só vez. E foi
durante uma destas tardes escuras que o destino mais uma vez desferiu um
golpe feroz.
Uma carta trazida da longínqua Paris foi entregue a Albertine. Estava
protegida por um envelope de tamanho médio, de papel amarelado, lacrado
com cera vermelho-sangue; um brasão contendo a letra ‘G’ numa bela
tipografia podia ser visto penetrado na cera.

Cara Albertine,

Quem lhe escreve é Noelle J. Grahanfield, irmã de Albert B.


Grahanfield, de Paris. Antes de quaisquer outras palavras, quero expressar-
lhe minhas sinceras condolências e pêsames à sua indescritível perda. As
notícias chegaram a mim há poucas semanas, e desde então tenho passado
várias horas de meus dias imaginando o quão triste e sozinha minha
sobrinha deve estar, isso sem contar, é claro, a sufocante sensação de que
meu único irmão partira desta vida. Embora há muito afastado, Albert
sempre esteve presente em minha memória. Talvez você não tenha ouvido
falar muito de sua velha tia Noelle; algumas coisas são melhores quando não
ditas.
De fato não pretendo prolongar-me muito nesta carta, escrevi apenas
para dizer-lhe que vai ser uma completa honra receber e acolhê-la em minha
casa, agora que sou sua última e única linha sanguínea. É minha obrigação,
além de grande vontade, poder lhe oferecer todo o apoio necessário aqui, em
Paris, até que atinja sua maioridade. Já tenho em ordens o veículo que irá
buscá-la, espere-o muito em breve. Imagino o quanto deve estar sofrendo
sem ter um lar, nesse lugarejo onde vive.
Os documentos de guarda encontram-se em minhas mãos, devidamente
assinados e preenchidos. Eu e sua prima Cécile aguardamos ansiosamente
sua chegada para que possamos formar novamente uma família.

Atenciosamente,

Noelle J. Grahamfield.
Estava agora totalmente instaurada a tristeza infinita no peito daqueles
dois jovens. No fundo ambos sabiam que cedo ou tarde os parentes de
Albertine entrariam em cena, mas nunca tocaram, nem mesmo se atreviam a
pensar muito no assunto. O que mais lhes perturbou, mais até do que a
própria notícia, foi o conhecimento de saber a distância que em breve iria se
impor entre os dois. Paris, a maravilhosa cidade dos sonhos, de onde ninguém
sentia ânsia de voltar.
Talvez aqueles fossem os últimos dias que teriam um ao outro; a partir
dali o medo da carruagem chegando para separá-los crescia de maneira cruel
no peito de Jeremy, enraizando-se como uma erva daninha que surgia de
forma involuntária em um saudável jardim. Pensava em fugir com ela, em
momentos de devaneio. Queria ao menos que algo pudesse impedir que ela
partisse, mas nada tangível lhe ocorria. Nem ao menos se recusar a ir ela
podia – era menor de idade e já tinha sua guarda em posse da tia, de acordo
com aquela maldita carta que fora atirada à lareira após ser lida.
Gastaram cada minuto de seus dias da melhor maneira possível, fosse
divertindo-se juntos ou apenas conversando ao pé da lareira. O tempo
encarregou-se de levar rapidamente duas semanas exatas quando, finalmente,
uma majestosa carruagem atraiu os olhares de todos ao despontar na entrada
da vila. Era deslumbrantemente espaçosa, suas rodas movimentavam-se com
delicadeza pela estradinha esburacada enquanto o cocheiro, que usava uma
longa cartola negra e uma capa espessa da mesma cor, guiava os cavalos com
destreza. Jeremy viu pela janela de sua sala quando o veículo alinhou-se
perfeitamente diante do escritório. O cocheiro ergueu-se e saltou, fazendo
estalar pequenas pedras abaixo do solado de suas grossas botas.
Havia então chegado a hora. Albertine, como se já soubesse, esperava
recostada ao sofá da sala de estar da casa dos Ridell, as bagagens feitas,
empilhadas de maneira organizada. Os olhares fixaram-se como se fosse a
última vez que o fariam, quando Jeremy caminhou em sua direção; o
cocheiro seguiu em seu encalço disposto a carregar os malões até a
carruagem. Deram-se as mãos, as dele suadas, as dela trêmulas. O perfume de
Albertine exalou-se ao ambiente, penetrando o juízo do rapaz, lentamente
produzindo minúsculas gotas molhadas no canto dos olhos. O abraço, o
último abraço, poderia ter sido eternizado e não mais sofreriam. O único som
ao redor era o tic-tac do indiscreto relógio de parede, exibindo o pêndulo que
parecia debochar da triste cena, apressando-os, avisando que não restava mais
tempo.
— Cuide-se, Jeremy. Cuide-se bem – ela sussurrou ao pé do ouvido
dele, as lágrimas em cascata descendo ao queixo.
— Me prometa que vou te ver de novo, só assim terei um propósito
para me cuidar – Jeremy respondeu com tristeza.
Mais uma vez calaram, até que longos suspiros quase ecoaram pela
sala. O cocheiro, agora já tendo terminado o transporte das bagagens,
esperava fixado na porta com crueldade.
— Prometo que nos veremos de novo. Pelos meus pais, por mim e por
nós – ela agora olhava para ele com ternura, lutando contra a vontade de
simplesmente fugir dali, para que todo o resto fosse ao inferno. – Prometo.
As mãos desvencilharam-se e Jeremy viu a figura de Albertine rumar à
porta, o som de seus passos estrondando em sua mente como trovões
furiosos. Sem olhar para trás ela embarcou na carruagem ajudada pelo
cocheiro, que em um só salto estava novamente posicionado a segurar as
rédeas. Com um grito sinalizando a partida e um estalar igual de um chicote,
os cavalos seguiram seu caminho e Jeremy viu, agora junto à porta, grossos
pingos de chuva despencarem do céu escuro, molhando seu rosto e lavando
suas lágrimas. Ora, se o céu também não chorava ou era pura imaginação dos
jovens de coração despedaçado. A carruagem fundiu-se ao borrão de chuva e
desapareceu de vista, e tudo estava novamente silencioso, exceto pelo vai e
vem do pêndulo às costas de Jeremy.
Capítulo IV

A M A N S Ã O D E J. R I D E L L

A chuva continuava a despencar do céu completamente fechado por


agourentas nuvens. O vento soprava melancolicamente, levando consigo as
folhas das copas das árvores e destruindo tudo que de mais frágil ousasse se
impor a ele. Os trovões já se tornavam sons comuns a todos, como uma
segunda voz na melodia da torrente encontrando-se com a terra. Jeremy
estava em sua sala, os cotovelos apoiados à mesa, uma das mãos sustentando
o queixo largo e coberto pela barba escura. Seu olhar permanecia fixado à
janela, vendo os pingos chocando-se contra o vidro e em seguida escorrendo
ao parapeito de pedra. Estava mais uma vez completamente livre de
documentos ou termos ou qualquer outro tipo de tarefa no escritório. A
movimentação da Ridell, após o início das chuvas, tornava-se imensamente
fraca dia após dia. A grande maioria dos inquilinos vivia nas cidades
vizinhas, por isso era indiscutivelmente provável que nenhum deles se
atrevesse a tomar as estradas lamacentas ou se arriscasse a transpor aquela
vasta floresta que encobria mais da metade do caminho até a cidade mais
próxima. A localização do escritório central da Ridell não era agradável,
disso Jeremy tinha certeza, e tal fato mais uma vez fez com que ele
questionasse o modo de administração de seu pai. O que impedia o escritório
de não permanecer completamente parado eram os próprios moradores da
vila indo quitar seus débitos locatários, visto que pelo menos oitenta por
cento de todas as casas e estabelecimentos comerciais do local eram de
propriedade da Ridell. De fato era uma empresa com certo prestígio, até
mesmo nas cidades maiores. Jeremy sentia-se desconfortável, porém, com a
desgastante queda nos lucros e ocasionalmente a diminuição dos fundos da
empresa – algo que agora era de seu encargo administrar. O velho Joseph
agora, mais do que nunca, parecia abandonar à própria sorte aquilo que sua
família levara toda uma vida para construir. Nunca estava em casa, como
sempre, mas havia cultivado o hábito de, antes de cada viagem, retirar
despreocupadamente generosas quantias do cofre central. Obviamente
retornava sem uma mísera moeda, com aparência esgotada e roupas
cheirando a perfumes baratos. Pena era talvez o único sentimento que Jeremy
ainda nutria por ele, e de fato sentia um inquietante medo de descobrir que da
noite para o dia a Ridell pereceria diante das irresponsabilidades do velho. A
partir dali passou a reservar tudo que ganhava em salário, criando um
pequeno fundo de garantia para ao menos não passar fome caso o que ele
temia chegasse a acontecer.
Foi em mais um dia monótono e sem trabalho que Jeremy resolveu
ocupar-se. Colocou na cabeça a ideia de reorganizar sua sala e livrar-se de
tudo que não fosse útil dentro dos armários e prateleiras. Começou atirando
ao lixo centenas de contratos expirados e não renovados que se amontoavam
no armário maior, partindo para as prateleiras, de onde retirou mais de trinta
livros tomados pela poeira e mofo. Após uma longa tarde havia desocupado
generosa quantidade de espaço, e a sala agora exibia-se muito mais
organizada, algo que não se via durante muito tempo. Só havia um único
armário que Jeremy não abrira. Aquele no canto da sala, do qual Ellie jamais
havia lhe apresentado o conteúdo. Por algum motivo ele sentiu vontade de
não mexer no que descansava intocado por tantos anos, mas já que havia
iniciado o serviço era de bom grado que o terminasse. As pequenas portas do
armário não haviam sido abertas por tanto tempo que suas dobradiças
pareceram resistir a dobrar-se, emperrando e emitindo um estalo a cada
tentativa de movimento; cederam à quarta ou quinta tentativa, revelando uma
atordoante quantidade de envelopes, todos muito estufados de papéis em seu
interior, amarelados e afetados pelo tempo. Não demorou até que Jeremy
notasse que eram apenas documentos arquivados relativos a imóveis fora de
catálogo, seja por terem sido vendidos a outra imobiliária ou mesmo
condenados por serem muito velhos para ainda serem comercializados. Era
como um cemitério. Havia três pilhas específicas – uma para os vendidos,
uma para os condenados e uma sem identificação. Interessou-se por esta
última, retirando-a do compartimento após remover algumas teias de aranha
emaranhadas entre si. O cheiro de papel velho tomou conta da sala; alguns
envelopes continham focos de mofo, outros se encontravam roídos por traças.
Foram colocados com cuidado sobre a mesa quase vazia após a limpeza.
O primeiro envelope continha várias pautas assinadas por alguém
chamado G. Brawn. Não dando atenção a este, checou um por um e só
encontrou nomes desconhecidos assim como o primeiro. Desistiu de conferi-
los pouco antes da metade, reunindo a pilha da maneira original e levando-a
de volta ao armário. Com um movimento um tanto brusco quase arremessou-
os para dentro do móvel, mas antes que pudesse novamente abandoná-los por
mais um punhado de anos, percebeu que o último envelope era diferente dos
outros. Era muito branco, indiscutivelmente mais novo que todos aqueles
amarelados e mofados. Retirou este envelope singular, levou-o até sua mesa e
sentou-se para examiná-lo. Ao observar bem, logo notou que definitivamente
não datava da mesma época do restante; era um envelope muito novo e de
tamanho um pouco diferente dos demais. A face da frente estava
completamente branca, mas ao virá-lo apertou os olhos a ver se realmente
enxergava corretamente. J. Ridell estava escrito em uma bela caligrafia, bem
no canto inferior esquerdo do envelope. Era estranho que estivesse ali,
misturado aos abandonados, quando deveria estar reunido aos outros que
guardavam os documentos dos imóveis registrados em nome físico de Joseph
Ridell, ao invés do nome jurídico da empresa. Estava lacrado com cera, o
brasão de sua família marcado majestosamente nela.
Receou ao pensar em abri-lo. Não fazia parte de seu trabalho, e se
estava abandonado nos arquivos mortos de certo não servia para nada. Não
foi capaz, entretanto, de controlar o impulso da curiosidade. Com a ajuda do
abridor de cartas, desvencilhou as abas da cera e enterrou as pontas dos dedos
para dentro do envoltório, sentindo de imediato um maço fino de folhas de
papel. Porém, antes que pudesse retirá-los, foi interrompido por batidas na
porta e a voz de Ellie logo em seguida, pedindo que fosse até a recepção
verificar uma goteira bem no meio da sala. Fechando o envelope, Jeremy
guardou-o em sua pasta na intenção de levar o misterioso pacote para ser
examinado em casa.
Logo assim que deixou o escritório, Jeremy apressou-se em chegar em
casa e abrigar-se daquele temporal que nunca cessava. As ruas tornaram-se
verdadeiros labirintos de poças d’água, tornando o ato de se chegar limpo,
onde quer que fosse, uma incrível façanha. Para tornar a situação ainda mais
angustiante, o seu guarda-chuva fora levado por uma ventania quando ele
rumava ao escritório, agarrando-se involuntariamente aos galhos desfolhados
de uma árvore muito alta.
Ao finalmente entrar em casa, os cabelos empapados e as roupas
gotejando, viu o velho Joseph na sala de estar tragando um espesso e fétido
charuto cubano, segurando um copo de algo parecido com uísque na outra
mão. Ao deparar-se com tal cena, Jeremy não conseguiu deixar de pensar em
como a vida era muitas vezes injusta: ele como um moço, em pleno vigor de
juventude, jamais fumava ou bebia nem mesmo meio copo de bebidas
alcoólicas, mas caso o fizesse caía em rápida injúria, dias seguidos sendo
atormentado por dores de cabeça. Então pensava em seu pai, um homem com
seus cinquenta e poucos anos, sempre agarrado a um charuto ou debruçado
sobre uma mesa embebedando-se até mal conseguir sustentar-se de pé, sem
demonstrar posteriormente o mínimo sinal de abatimento.
Embora não gostasse nem um pouco de bebidas alcoólicas, Jeremy
admirava a magnitude do bar construído pelo pai. Havia dezenas de
prateleiras repletas de garrafas enfileiradas, preenchidas por líquidos das mais
variadas cores, sabores e origens. Possuíam vinhos da Itália, aguardentes do
Brasil, e até uísques escoceses de mais de cem anos de idade. Em uma
prateleira pequena separada das demais erguiam-se até mesmo três ou quatro
garrafas do abominável absinto. Ao passar pela sala de estar, pensou em
questionar Joseph sobre aqueles documentos abandonados, mas logo
imaginou que deveria estar completamente embriagado. Esforçou-se então
para passar em silêncio e não chamar-lhe atenção; não sabia em que tipo de
bêbado ele se mostraria naquele dia – este era um efeito aleatório que ora o
transformava em um velho rabugento e rude, ora em um sorridente contador
de histórias entediantes – e preferiu economizar-se de tal descoberta, subindo
direto ao quarto após pedir que Rosa lhe preparasse um banho bem quente
com ervas calmantes, como só ela conseguia preparar.
A tempestade prosseguia de maneira fúnebre. O vento açoitando as
vidraças e telhados era uma das poucas coisas que deixavam Jeremy
profundamente irritado. O frio abatia-lhe completamente. Permaneceu lá,
mergulhado na água quase fervente por mais de meia hora e nem assim
conseguia manter os ossos aquecidos. As dores voltaram a perturbá-lo; sentia
quase imóveis as articulações dos braços e das pernas. Suas extremidades
faziam mímica às de um cadáver – enrijecidas e frias. Com o pescoço
dobrado de maneira desconfortável para trás, encostado à borda da banheira
de louça, fechou os olhos e deixou-se penetrar num rápido cochilo.
Ao som de um trovão que atravessou as paredes como o rufar de mil
tambores, Jeremy despertou ligeiramente perdido. A água da banheira já
esfriava, e ele rapidamente deixou o banheiro, vestiu-se e desceu à sala de
jantar para apreciar a sempre deliciosa ceia que Rosa preparava. No caminho
cruzou com ela, saindo da biblioteca com ar preocupado e um pouco pálida,
trancando o recinto a chave. Imaginando que talvez também estivesse abatida
pela falta de sol, algo que sem dúvida atormentava a todos os moradores da
região, seguiu seu caminho sem querer atrasá-la. Levou cerca de vinte
minutos até sentir-se satisfeito, e rumou diretamente de volta ao quarto para,
finalmente, examinar o envelope que havia descoberto mais cedo.
Rapidamente tirou o pacote da pasta e largou-o sobre a escrivaninha ao
lado de sua cama. O envelope parecia ser ainda mais novo quando visto sob a
boa iluminação do quarto. Procurou seus óculos de leitura e descobriu que os
havia esquecido no escritório. ‘Inferno’, ele pensou. Sempre colocava seu
bem-estar a prova ao tentar ler sem os óculos; bastavam-lhe poucos minutos
neste exercício para sentir a cabeça latejar e os olhos quase serem engolidos
pelas órbitas do crânio. Resolvendo não deixar-se levar por este pequeno
contratempo, retirou o maço de folhas do envelope e deslizou a vista sobre a
primeira página. Eram apenas dados geográficos e arquitetônicos, algo que
fugia completamente de seus conhecimentos, não causando-lhe qualquer
interesse. A próxima página era apenas de algumas cláusulas assinadas por
seu pai em sua versão rubrica de J. Ridell. O terceiro documento foi o
primeiro que despertou sua atenção; era uma página contendo a descrição
básica de medidas de área e listagem dos cômodos e propriedades do imóvel
em questão. Duas salas de estar, duas salas de jantar, duas copas, um salão de
jogos, um salão de festas, uma biblioteca, uma galeria de arte, seis banheiros,
duas saunas e oito quartos. Os complementos externos incluíam uma fonte,
um estábulo, um casebre para criados, um jardim e uma capela. Era, afinal,
uma mansão.
Realmente impressionado com a magnitude daquele imóvel, Jeremy
mais uma vez pôs-se a se perguntar o motivo por que estaria fora do catálogo
da Ridell de imóveis disponíveis para compra e venda. Os próximos
documentos eram apenas cláusulas de contrato e outras informações inúteis a
ele, mas por fim, abaixo de todas as laudas, jazia outro envelope bem
pequeno, fechado apenas pela dobra da própria aba. Sem demora ele retirou o
que existia em seu interior: cinco pequenas fotografias amareladas – imagens
registradas da mansão. A primeira mostrava a parte frontal; haviam pilares
que se erguiam do chão e terminavam em uma abóbada em forma de arco na
entrada principal, dezenas de janelas e, pelo que se podia perceber, beirais em
estilo barroco. A próxima fotografia exibia uma das laterais do magnífico
imóvel, que estendia-se até não mais encaixar-se na foto. As paredes eram
completamente tomadas por grandes janelas de vidro, e logo abaixo delas
via-se um rodapé de pequenas árvores podadas de forma cúbica para
encaixarem-se perfeitamente umas às outras.
As últimas três fotos mostravam, respectivamente, a fonte, o jardim e a
capela, nenhum deles menos majestoso que todo o resto do conjunto. Outro
aguçante detalhe notado por ele naquelas fotografias eram estranhos rabiscos
nas costas de cada uma delas – eram algumas linhas que se emaranhavam de
maneira confusa, e algumas palavras escritas aparentemente de trás para a
frente. Chegando à conclusão de que isto poderia ser o mero efeito causado
por papéis sobrepostos a outros recém escritos de caneta, recolocou de volta
ao envelope grande tudo que retirara dele.
No fundo Jeremy não sabia do real motivo de ter trazido aqueles papéis
para casa, se o que mais ansiava era manter-se longe de recursos imobiliários
ao sair do escritório. Já bastava viver enterrado em documentos por lá.
Deitou-se de maneira confortável na cama macia e enrolou-se como uma
lagarta em um casulo, sentindo os ossos tremerem por dentro da carne. Era
insuportável lidar com aquilo; se ao menos o frio diminuísse ele poderia
andar sem sentir-se como um velho de oitenta anos. Tentou dar espaço ao
sono, mas ele parecia não querer se aproximar. Então, instintivamente,
levantou-se e mais uma vez apanhou o envelope, pondo-se a novamente
admirar as fotografias.
Não gostava de apreciar imagens ou pinturas e achava perda de tempo
gastar dinheiro com quadros e telas, mas havia algo, no mínimo, diferente
naquelas imagens. Algo o atraíra naquela específica construção. As
fotografias eram razoavelmente pequenas, mas pelos poucos detalhes que era
possível enxergar-se nelas, ficava claro o apreço aplicado àquele projeto.
Tudo parecia harmonioso e duro, e mesmo assim aconchegante. Sentiu
vontade de conhecer o interior da mansão, ainda mais após reler a página da
magnífica descrição dos ambientes que ela comportava. O que poderia haver
lá para que estivesse abandonada? Talvez infiltrações irreversíveis nas
paredes, ou simplesmente má localização, quem sabe? Após frisar esta última
opção foi que ele notou que em nenhum dos documentos, após conferi-los
novamente, havia mínima informação disponível sobre a localização da
grande casa. Em um lampejo pensou novamente em consultar o pai, mas
talvez ele não gostasse de saber que Jeremy andava fuçando o que não era de
sua conta, afinal, já que documentos abandonados não pertenciam ao seu
encargo nos assuntos da Ridell. Se ao menos soubesse onde a maldita mansão
ficava, poderia sanar todas essas dúvidas e ver, com seus próprios olhos, o
real motivo que condenava ao esquecimento aquela tão rica e magnífica
construção.
A mesa do café já estava posta quando Jeremy desceu. Era um dia de
domingo, por isso ele ainda usava sua roupa de dormir e não penteara os
cabelos. Enquanto ele tomava seu café, Rosa entrava e saía da sala repetidas
vezes, carregando bandejas, vasos e tantos outros objetos. Estava
aparentemente aflita. Chegou perto de Jeremy e pôs-se a retirar a mesa antes
mesmo que ele pudesse terminar; por pouco não arrancara a xícara de suas
mãos.
— O que há de errado com você, Rosa? – Jeremy disse enquanto
terminava de engolir o último pedaço de torrada melecada de geleia.
Ela parou e levou uma das mãos aos olhos, como um sinal de
preocupação. Tentou disfarçar sua aflição desamarrotando o avental, que
estava muito bem amarrado ao corpo jovial para uma mulher de quase
cinquenta anos.
— Não há nada errado comigo, Jeremy – respondeu a governanta,
direta e sem vontade de conversar.
— Parece preocupada. Conheço muito bem essas suas expressões de
aflição.
— Está tudo bem. Acho que este clima maluco está me afetando um
pouco, só isso.
— Certo... certo – ele retrucou um tanto desinteressado.
— Ah, seu desleixado, deixe-me arrumar esse seu cabelo!
Com esta brilhante descontinuidade de assunto, a governanta alinhou a
franja de Jeremy com as mãos, e logo em seguida deixou a sala com pressa,
carregando uma bandeja e produzindo com seus sapatos aquele toc-toc que
Jeremy estava tão acostumado a ouvir. Embora curioso, ele procurou não
pensar demais naquela estranha passagem, ingeriu os últimos goles de café e
subiu ao quarto para vestir-se. A chuva havia dado trégua naquela manhã, e o
sol despontou no alto, tímido, mas ainda assim trazendo um aquecido
acalento ao vilarejo.
Jeremy saiu em caminhada, ansiando sentir ar puro e apreciar aquele
momento em que seus ossos não fraquejavam diante do clima frio. Passou em
frente à igreja, sentou-se na pracinha onde tantas vezes gastou tardes inteiras
de brincadeiras com Albertine, tomou um sorvete de limão; cerca de meia
hora depois já estava voltando para casa quando, pela primeira vez desde a
tragédia, cruzou a rua onde jaziam os destroços da casa da família
Grahanfield. As paredes pareciam prestes a desmoronar a qualquer instante,
destruídas e manchadas pela negra marca do incêndio. O telhado
desaparecera por completo, e a claridade do sol exibia o caos através das
janelas estilhaçadas e das portas devoradas até o meio pelas chamas.
Imaginou se os corpos carbonizados dos pais de Albertine ainda estariam ali,
sob os escombros. Esforçou-se para abandonar estes pensamentos e seguiu
seu caminho de volta para casa, mas antes passou pela minúscula livraria da
cidade e comprou por alguns centavos um exemplar do jornal de três dias
atrás, novamente irritado pelo conhecimento de que os jornais não chegavam
à vila todos os dias.
A casa estava estranhamente silenciosa naquela manhã. Nenhum dos
criados estava por perto, nem mesmo os passos barulhentos de Rosa, que na
maior parte do tempo ecoavam pelos cômodos do andar de baixo, faziam-se
audíveis. Joseph estava em casa, Jeremy soube ao ver a charrete em que
costumava viajar estacionada perto do portão, mas não conseguiu avistá-lo
nos lugares onde normalmente o faria. Após refrescar-se com mais de meio
litro d’água na cozinha, subiu as escadas de maneira preguiçosa, já sentindo o
tédio a seu lado pronto para ficar por todo o resto do dia. Assim que encostou
a mão direita à maçaneta dourada e redonda percebeu que a porta estava
aberta, apenas recostada. Tinha certeza de tê-la deixado fechada; pensou que
talvez alguma das empregadas a tivesse esquecido aberta ao sair após arrumar
o quarto, mas tal hipótese foi descartada quando deslizou ao recinto e o
encontrou exatamente da maneira que tinha deixado antes de sair. Por algum
motivo sentiu ânsia de ficar mais seguro, assim trancando a porta a chave,
girando-a com um movimento apressado que findou-se num quase silencioso
clique. Tirou os sapatos, e seus dedos esticaram-se agradecidos por serem
tirados do calçado que não mais lhes cabia – Jeremy ainda usava os sapatos
que comprara a quase dois anos atrás. Em seguida despiu-se do casaco que
vestia, atirando-o sobre a cama embolada em lençóis e travesseiros. O jornal
que comprara há pouco escapou do bolso maior onde estava guardado, e
Jeremy apanhou-o a fim de apenas folheá-lo sem dedicar-se a ler matéria
alguma, como sempre fazia. Notícias sobre a construção de uma nova ponte,
um resumo das últimas informações sobre alguma revolução que explodira
nas partes mais importantes do país e o placar esportivo foi tudo que
conseguiu visualizar por entre as páginas do jornal mal cheiroso. Largou-o na
penteadeira, por cima de alguns livros que trouxera do escritório, e
direcionou o olhar à sua própria imagem refletida no espelho à sua frente.
Havia perdido peso, notou pelas maçãs do rosto mais retraídas ao
crânio. Não perdia noites de sono, mas por algum motivo exibia profundas
olheiras de um tom muito azulado misturado à pele branca. Desvencilhando-
se brevemente da própria imagem, Jeremy desviou o olhar para o que havia
atrás de si. Nunca havia reparado como seu quarto parecia maior se visto pelo
reflexo do grande espelho quadrado de moldura marrom, de forma a
combinar com todos os outros móveis. Olhou, ainda pelo espelho, a
penteadeira desorganizada, pausando a vista sobre o jornal aberto de forma
desleixada. Viu as palavras da manchete principal, em letras garrafais,
invertidas e incompreensíveis. Naquele momento alguma coisa então atinou
em sua mente, ao visualizar a notícia de trás para frente. Crispou os lábios,
pensativo, tentando reunir as ideias de forma correta. Num impulso
incontrolável procurou sua pasta dentro da gaveta da escrivaninha e
imediatamente retirou dela o envelope com os documentos da mansão
abandonada.
Despejou-os junto ao jornal, dirigindo-se diretamente ao outro pequeno
envelope que guardava as fotografias. Retirou com pressa as cinco imagens
em forma retangular; levou uma delas até a altura do nariz, a que mostrava a
frente da casa. Seus olhos negros brilharam à conclusão de que estava certo:
vistas refletidas em um espelho, as palavras invertidas que Jeremy havia
descoberto nas costas das fotos tornavam-se completamente legíveis. O curto
nome do vilarejo onde vivia foi a primeira que conseguiu identificar; no
canto superior direito haviam apenas três letras, aparentemente o início de
mais uma palavra que ele notou continuar em uma das outras fotos.
FLORESTA foi o que se formou quando ele uniu quatro das cinco fotos, as
que estavam riscadas; e não apenas isso. Foi com uma intensa sensação de
euforia que Jeremy vislumbrou que o emaranhado de linhas desenhadas se
unia, como um código aguardando por ser decifrado, formando um perfeito
mapa.
Lá estava o vilarejo, um ponto marcado com um círculo torto; dele
partiam apenas três linhas, duas desaparecendo nas bordas do papel, e uma
seguindo até as três primeiras letras de FLORESTA. Emendou-se à linha da
próxima foto e estendeu-se por dentro de mais um círculo, este representando
a floresta que Jeremy nunca sentiu vontade de explorar. A linha findou-se em
certo ponto, ramificando-se em mais três outras linhas um pouco mais finas,
talvez na intenção de demonstrar um caminho mais estreito que o anterior.
Ao fim da ramificação da esquerda, assim como na da direita, não havia coisa
alguma – elas simplesmente findavam ali mesmo. Entretanto, no ponto final
da linha do meio, via-se um grande ‘X’. Por um instante pareceu um daqueles
mapas do tesouro de piratas, como nas histórias fantásticas que lera quando
criança, mas tudo estava bem claro agora. Ali estava, nas mãos de Jeremy, a
localização da misteriosa mansão que ele tanto ansiava conhecer.
Capítulo V

GALERIA DE FAMÍLIA

Menos de cinco minutos gastaram-se até que Jeremy alcançou a


charrete e preparou-a com dois cavalos, sempre olhando por cima dos
ombros, esperando não ser visto. O mapa, cuidadosamente guardado em um
de seus bolsos, estava transcrito em uma folha branca de papel, exatamente
igual ao que fora rabiscado invertidamente no verso das velhas fotografias.
Depois de pronto, acomodou-se ao banco forrado a couro da charrete,
agarrou-se às rédeas e comandou partida aos cavalos que tentavam
despreocupados arrancar um pouco de grama do chão. Ao sair pelo portão,
ele desceu e o fechou para não parecer desleixado; seguiu pela estradinha e,
conforme indicado no mapa, tomou a saída ao sul da vila – a saída que
desbocava na floresta.
Assim que atravessou os limites da cidade Jeremy viu-se cercado por muitas
árvores altas. No início a floresta mostrava-se bastante aberta e iluminada, e
até quase um quilômetro adentro ainda existiam casas, distantes umas das
outras. Eram todas muito velhas, mas de aparência aconchegante, exalando
leves baforadas de fumaça por suas chaminés enquanto crianças brincavam e
suas mães lavavam roupas ou alimentavam galinhas. Pouco a pouco elas
foram ficando para trás, enquanto as árvores pareciam ganhar terreno;
estavam tornando-se maiores e mais largas, suas copas unindo-se quase a
ponto de esconder o céu por completo. A estradinha destacava-se com
palidez, dividida pelo estreito espaço por onde o chão se tornara morto e o
mato não crescia. A charrete levantava uma nuvem de poeira que impedia
Jeremy de enxergar o que ficava para trás.
Tudo o que restava de vida logo desapareceu, dando espaço ao silêncio
quebrado apenas pelo galopar dos cavalos. A estrada seguia cortando-se entre
arbustos muito volumosos, e estava cada vez mais se estreitando, mal
fornecendo espaço suficiente para a charrete trafegar sem arrastar a vegetação
nas laterais. Jeremy percebeu algumas placas que apareciam por trás dos
troncos, tão velhas que não se permitiam ler. A floresta, à medida que
avançada, transfigurou-se do tom verde vivo a um tom acinzentado, sem
vida. O caminho se estendia suntuoso, e Jeremy por um segundo pensou em
retornar, mas percebeu o quão difícil seria manobrar a charrete naquele tão
estreito corredor de troncos. As árvores agora pareciam mortas – as copas
completamente desfolhadas e os troncos de aparência seca reforçavam esta
ideia. Discretas pontadas de medo abateram-se sobre Jeremy, mas não foram
suficientes para fazê-lo desistir.
Ele açoitou os cavalos com quanta força tinha, e eles dispararam
relinchando descontentes. Tudo ao redor da charrete era quase
monocromático, até mesmo a luz do sol que arriscava cintilar por entre as
frestas abertas pelos galhos secos demonstrava-se descolorida. Mais uma
placa muito antiga, de madeira, coberta pela poeira de muitos e muitos anos,
fez-se cruzar o caminho de Jeremy; poucos metros à frente dela estava o fim
daquele caminho único, dando início a outros três. Puxou as rédeas fazendo
os cavalos porem-se de pé nas patas traseiras, checou o mapa e confirmou
que deveria tomar o caminho do meio, aquele que estava marcado com um
‘X’.
Este novo trecho pareceu ainda mais estreito, mesmo que isso não fosse
possível. Os galhos riscavam o ar bem próximos ao rosto de Jeremy, que
agora defendia-se com o antebraço estendido sobre a testa molhada de suor
frio. Fechou os olhos por alguns segundos, evitando assim receber partículas
de poeira que caíam das árvores, e quando tornou a abri-los viu que agora
adentrava uma clareira, muito ampla, onde as árvores pareciam mais
saudáveis. Já avistava a poucos metros o fim deste caminho, um espaço largo
entre os troncos que se prostravam como um muro natural. Talvez estivesse
apenas vendo coisas, mas em certo momento virou-se bruscamente para trás
achando ter visto alguém – ou algo – esgueirando-se por trás de um tronco
tomado por ervas parasitas. Nada viu, no entanto, além de troncos e arbustos
completamente silenciosos.
A estrada findou-se e os cavalos por fim pararam. Jeremy se viu em
frente a um portão absurdamente grande e oxidado, repleto de detalhes
arredondados entre uma barra e outra, por onde alguns ramos se enroscavam
de maneira selvagem. Um imenso muro coberto de hera se estendia à
esquerda e à direita, sumindo de vista por entre os troncos um pouco mais à
frente. Jeremy saltou da charrete e acariciou os cavalos cansados; teriam
gasto cerca de uma hora até chegarem ali.
Ele caminhou, cauteloso, até estar apenas dez ou quinze centímetros
distante do portão. Estava trancado por um cadeado tão ou ainda mais
enferrujado que ele próprio, preso a uma corrente enrolada em três ou quatro
voltas. Espremeu os olhos ao olhar para frente; saíra sem os óculos, por isso
tinha a vista um tanto embaçada, mas logo percebeu que não precisava deles.
Atrás daquele velho portão, ao fim de uma trilha de pedra escura, avistou o
que viera procurar. A mansão estava lá, imponente, bela e intocada pelo dedo
impiedoso do tempo.
O cadeado foi facilmente removido com um golpe desferido por uma
pedra que descansava largada ao lado do portão. O som metálico ecoou pela
clareira e Jeremy instintivamente espiou pelo ombro, mesmo sabendo que
não havia ninguém ali para impedi-lo de prosseguir o ato de arrombamento.
O portão rangeu de forma arrastada quando as dobradiças giraram; a
ferrugem em excesso friccionou-se em si mesma, criando um desagradável
ruído que arrepiou a nuca do rapaz. Ele olhou ao redor antes de prosseguir
pela trilha; a imensidão do terreno que circundava a casa jamais poderia ser
compreendida naquelas minúsculas fotos guardadas em um envelope.
Algumas poucas árvores balançavam ao sabor do vento muito fresco,
enquanto um tapete de folhas secas estalava sob os passos vagarosos de
Jeremy. Nada mais que óbvio era o fato de todo aquele espaço estar
desgostosamente mal cuidado, a grama poderia cobrir até os joelhos de um
adulto, e os galhos espalhados sobre ela formariam uma enorme fogueira se
fossem reunidos para este fim. A estradinha levou até a fonte, coberta de
musgo, com apenas alguns resquícios de água imunda onde quatro ou cinco
lesmas se moviam de maneira asquerosa. Exatamente em frente à fonte, a
mansão reinava silenciosa, e Jeremy só acreditou que era real após percorrer
seus próprios olhos por ela.
Não conseguia decidir-se sobre qual detalhe prendia mais sua atenção –
se eram as vidraças muito longas cobertas de poeira, ou os beirais esculpidos
em estilo barroco com adornos góticos, ou ainda os pilares muito grossos de
concreto perfeitamente polido em cilindro. Apenas quatro degraus separavam
a parte externa, de terra batida, da varanda de piso marmorizado. Jeremy
subiu até lá, e deu de cara com uma porta gigantesca, repleta de detalhes
entalhados por um experiente carpinteiro. Compridas teias de aranha
provavam que por muito tempo a maçaneta não havia sido usada. A mão
esquerda de Jeremy avançou até ela quase que automaticamente, mas seus
temores se concretizaram: estava trancada, e não parecia ser tão fácil de
arrombar como o portão deteriorado de alguns minutos atrás.
Sem muito que pudesse fazer, ele retornou à frente da mansão e
resolveu dar a volta por ela, tomando a direção esquerda. Ao virar a esquina
da casa deparou-se com a capela da qual havia esquecido por completo. Não
era muito grande, e parecia não ter sido construída junto com a mansão; as
pedras polidas que a formavam tinham aparência muito mais nova que
qualquer outra coisa por ali. Só havia uma pequenina janela de vidro na
lateral, mas por algum motivo Jeremy não sentiu vontade de espiar por ela.
Continuou andando, as folhas mortas no chão denunciando seu movimento.
Avistou um muro absurdamente alto ao fim do terreno, antes de dobrar à
direita ao fim da lateral da casa que parecia interminável. Estava agora em
uma espécie de área de serviço ao ar livre. Havia um poço, um lavatório de
roupas ao lado dele e algumas estacas fincadas ao solo com cordas bem finas
unidas de uma ponta à outra - de certo eram varais. Mais ao fundo, ainda, um
velho estábulo descansava em silêncio, e ao lado dele uma pequena cabana de
madeira espremia-se como uma provável antiga moradia de criados. Jeremy
perguntou-se, pensativo, há quantos anos ninguém trabalhara ali.
Bem no meio da traseira da casa erguia-se uma porta bem mais discreta
que a da frente, inclusive de aparência mais frágil; talvez aquela estivesse
mais apta a ser aberta à força. Esta porta ficava quase espremida por duas
vidraças empoeiradas que deveriam dar visão ao cômodo por trás delas, mas
tudo lá dentro estava tomado pela escuridão. Esperando encontrá-la aberta,
segurou a maçaneta e lentamente girou o punho. Ouviu um clique... e a porta
se abriu.
O cômodo foi banhado pela luz do dia. Jeremy curvou-se pela abertura,
e viu que estava em uma grande cozinha. Levou a porta a se abrir o máximo
que podia, mas ela, como se estivesse viva, tornou a fechar-se, obrigando
Jeremy a apoiar uma pequena cadeira isolada que encontrou perto da pia,
abaixo da maçaneta, impedindo a porta de fechar-se e tornar o cômodo
novamente mergulhado em escuridão. As paredes estavam tomadas por
armários empoeirados, e abaixo deles dezenas de utensílios – facas, colheres
e espátulas - pareciam ter sido abandonados às pressas sobre os balcões de
pedra. Havia um enorme fogão à lenha próximo da entrada, onde dois
cadeirões de mesmo tamanho descansavam inertes. Por um segundo Jeremy
pôde ver aquela espaçosa copa repleta de serviçais trabalhando rapidamente
como formigas.
Atravessou a cozinha e saiu pela porta ao fim dela; encontrava-se agora
numa comprida sala de jantar. Bem no centro desta, quase de uma parede a
outra, estendia-se uma imensa mesa retangular, decorada de maneira escassa
por alguns candelabros aparentemente de prata, estes por sua vez
acomodando velas de tamanho médio, algumas usadas e outras não. Grossas
cortinas de cor vinho impediam a entrada de luz no recinto, amarradas por
um comprido fio de cordão dourado quase ao rodapé da grande faixa de
tecido. Uma das paredes exibia vários quadros, desde pinturas paisagistas até
retratos de pessoas desconhecidas. A saída da sala de jantar deu espaço a um
corredor estreito, dividido por meia dúzia de outras portas laterais que
provavelmente levavam a quartos ou armários. Ele preferiu não abrir
nenhuma delas, e apenas seguiu até o fim do corredor de onde já avistava um
cômodo um tanto mais claro que o anterior.
Descobriu ser a sala principal ao reconhecer a porta que tentara abrir
ainda há pouco. Olhou ao redor, maravilhado com a magnitude daquela sala,
embora sentisse algo pesando em seu peito, dizendo-lhe para ir embora. Os
móveis estavam cobertos por lençóis brancos muito encardidos; um lustre
dourado adornado com inúmeras esferas de vidro bem pequenas pendia no
alto da sala. Bem no meio erguia-se uma escadaria com degraus de madeira
cobertos por uma tapeçaria vinho, da mesma cor das cortinas que também
obstruíam as janelas, aquelas vidraças compridas que podiam ser vistas do
lado de fora. Os degraus rangeram aos pés de Jeremy, que subia lentamente
agarrado ao corrimão, deixando as marcas de seus dedos finos desenhadas no
pó. Lá de cima viu uma passarela que trespassava de um canto a outro, cada
extremidade findando em mais um estreito corredor tomado de portas de
madeira escura. Seguiu em frente e se deparou com mais portas – quantos
cômodos existiam naquela casa era difícil de contar. Ao fim deste novo
corredor havia um vitral, tão imenso a ponto de quase sumir de vista pelo
telhado. De cada lado deste vitral havia uma porta branca, combinando com
as paredes. Estas, diferente de todas as outras que Jeremy já havia visto na
casa, estavam marcadas com plaquetas de aço inoxidável onde liam-se
‘Biblioteca’, na da direita, e ‘Galeria’, na do lado esquerdo.
A biblioteca foi aberta, liberando um odor de mofo pela fresta do portal.
Ele entrou, fechando a porta, e se encontrou circundado não por centenas,
mas milhares de livros perfeitamente enfileirados em estantes, uma acima da
outra acoplando-se em três andares. Pareciam estar separados por categoria.
Algumas escrivaninhas estavam espalhadas por entre a sala, assim como um
grande sofá vermelho e algumas almofadas jogadas ao chão. Não havia muito
o que se ver naquele cômodo, por isso tão logo foi abandonado por Jeremy
que, sem parar para decidir onde entraria agora, foi diretamente à galeria.
Quando a porta se abriu, a pouca luz largou-se sobre inúmeros quadros que
forravam as velhas paredes. Espalhadas de maneira organizada – em pares
separados por cerca de um metro de distância uma da outra – seis estátuas de
gesso adornavam o ambiente. Pareciam réplicas de estátuas romanas,
excepcionalmente fiéis à musculatura humana, porém com aquela aterradora
expressão vazia nos olhos sem íris. Jeremy deslizava por entre elas, pairando
os olhos por cada um dos quadros pendurados a seu redor. Eram rostos
pálidos, de homens e mulheres, trajando vestes de baile ao estilo do século
XVIII. Exprimiam sorrisos cansados, talvez forçados para o artista que
eternizaria sua imagem na tela. Por sinal, a assinatura do artista era a mesma
em vários dos quadros, mas era um garrancho complexo demais para se
identificar. Ao se aproximar de um deles, Jeremy percebeu que não eram
apenas simples pinturas de pessoas aleatórias de expressões vazias. Abaixo
de cada uma das telas emolduradas em dourado havia uma plaqueta fincada à
parede com parafusos. Ele olhou nos olhos de uma mulher muito branca, com
seus cabelos negros espalhados por cima dos ombros delicados, uma das
mãos pousada sobre uma pilha de livros e a outra encostada ao peito. Era
Elizabeth M. Ridell, como mostrava a plaqueta. O quadro vizinho a este, do
lado direito, exibia um velho de expressão rígida, aparentemente irritado em
posar para a pintura; usava uma cartola negra enterrada até metade da testa
enrugada, e tinha um dos braços suspenso por uma bengala acinzentada. Era
Anthony M. Ridell. E assim seguiram-se todos os outros quadros mostrando
algum Ridell que, não era difícil deduzir, já haviam falecido há muitos anos.
Estava, afinal, em uma galeria de família. Caminhando desconfiado, Jeremy
chegou até a última pintura, bem próxima do limite da parede. Reconhecera
de imediato aquele rosto comprido e aqueles cabelos negros bem lisos. Era
seu pai, Joseph Ridell, muito mais novo do que ele estava acostumado a ver.
Incomodava-lhe o fato de serem tão parecidos. Os olhos pareciam ter sido
moldados pela mesma mão, assim como os lábios finos e vermelhos. A única
coisa que impedia aquela tela de se passar completamente por uma pintura de
Jeremy era o fino bigode entre o nariz e a boca da figura representada nela.
Joseph J. Ridell, dizia a plaqueta. Ao lado esquerdo deste quadro,
estranhamente, não havia nenhum outro, embora houvesse o espaço exato
para isto. Era como se uma tela houvesse sido retirada de seu lugar de
descanso.
Pensamentos terríveis possuíram a mente de Jeremy neste momento.
Era quase óbvio, mas ele não queria aceitar que aquele espaço vazio, bem ao
lado da figura pálida de seu pai, estava reservado para o último Ridell que
ainda não fazia parte daquela galeria. Sentiu uma gota de suor escorrer em
seu rosto, e quase tomou um susto ao virar-se e encontrar a estátua de uma
mulher seminua observando-o, atenta e silenciosa. O mesmo faziam todos os
rostos a seu redor, fitando-lhe, lançando-lhe olhares de censura por ter
invadido seu santuário de descanso. Ele sentiu-se tonto, o estômago
congelado. Avançou até a porta. Girou a maçaneta com uma das mãos
suadas, mas ela recusou a se abrir. Era como se alguém, do outro lado da
porta, a forçasse ao lado contrário. Duas, três tentativas e a porta continuou
imóvel. A quarta tentativa somada a um forte empurrão com o ombro direito
a abriu; não havia ninguém atrás da porta. ‘Talvez estivesse apenas
emperrada’, pensou, mas não quis ficar para descobrir. Com os pés movendo-
se quase em ritmo de maratona, disparou pelo corredor e desceu os degraus
com quanta velocidade conseguia, sem querer olhar para trás. Passou pela
sala e atravessou o corredor a passos largos, e logo estava percorrendo o
comprimento da gigantesca mesa enquanto as cortinas, agora abertas e
completamente desamarradas, flutuavam a meia altura acima do chão.
Antes de chegar à cozinha Jeremy notou que estava mais escura do que
antes. Se antes estava apenas assustado, agora sentia o medo aflorando por
cada um de seus poros. A cadeira que ele havia usado para impedir a porta de
se fechar estava largada ao chão, e a porta completamente fechada da mesma
maneira que estava quando ele a viu pela primeira vez. O pomo de Adão em
sua garganta tremulou para cima e para baixo quando ele engoliu a seco,
ofegante, andando cauteloso. Tão rápido quanto pôde, largou a mão na
maçaneta, girou-a e saiu ao quintal.
Sentiu o medo esvair-se junto com a escuridão, e continuou correndo ao
longo da lateral da mansão. Cruzou mais uma vez a capela e, sem olhar para
trás, mas com a mente tomada por ideias que pululavam descontroladas,
alcançou a saída, recostou os portões enroscando neles as correntes
enferrujadas. Subiu à charrete e manobrou com dificuldade até que os cavalos
estivessem na posição adequada, e com um só golpe de rédeas pôs os animais
em disparada de volta à vila.
O caminho de volta foi percorrido na metade do tempo gasto na ida. Ao
chegar à entrada da vila os olhos de Jeremy ardiam por causa das rajadas de
vento que recebera em velocidade enquanto guiava a charrete. A vila pareceu
menos movimentada do que realmente era aos domingos, mesmo com aquele
milagroso sol brilhando sobre ela. Talvez os moradores já estivessem tão
acomodados à chuva que nem se davam mais ao trabalho de saírem de suas
casas quando o céu estava sorridente e límpido.
Enquanto rumava para casa, Jeremy já estava decidido a falar ao pai
sobre a mansão. Talvez agora estivesse mais claro o motivo por que ela não
estava no catálogo da Ridell. Era uma propriedade familiar, provavelmente
passada para dezenas de novos donos através das gerações. Ele não queria
acreditar nisto, mas não havia motivo mais tangível do que aquele que
martelava em sua cabeça: a intuição de Jeremy dizia que o velho Joseph não
pretendia deixá-la de herança ao único filho. Se o destino da mansão era ficar
para sempre oculta para que ele, sem dúvidas o próximo dono, nunca
soubesse de sua existência, agora já era tarde demais.
Capítulo VI

UMA CARTA DE PARIS

A mente de Jeremy agora estava dividida entre dois principais


pensamentos: a saudade que sentia de Albertine e a ânsia em descobrir a
verdade sobre a mansão. Se por um lado a dor da ausência da moça o deixava
impaciente e irritado, a ideia de um dia ser dono daquela majestosa casa o
confortava por completo. Talvez ele estivesse sendo precipitado ao nutrir tal
ambição, mas nada era concreto o bastante para arrancá-la de sua cabeça. Já
estava decidido: na primeira oportunidade mostraria os documentos ao velho
e faria que ele contasse a verdade. Esperava que Joseph não mostrasse
resistência, mas se não conhecesse o pai ou mesmo se não tivesse herdado o
mesmo tipo de personalidade – cabeça dura e inflexível – até pensaria que
uma conversa educada pudesse esclarecer tudo.
Já se contavam quase vinte dias que Joseph não aparecia em casa.
Viajara com a carruagem desta vez, o que denunciava ainda um longo
período fora da região. Sempre carregava de dois a três malões repletos de
roupas, sapatos e chapéus – algo que um homem viajando a negócios jamais
precisaria carregar. Parecia prever a conversa que Jeremy o dirigiria, por isso
estaria prolongando a viagem por tanto tempo, e a julgar pela absurda quantia
que retirara desta vez no cofre da Ridell, ainda teria muito tempo antes que
ficasse sem dinheiro para socar no decote das vadias ou para desperdiçar em
jogos de baralho em cassinos.
O barulho da máquina datilográfica na sala vizinha fazia as têmporas de
Jeremy pulsar no mesmo ritmo das teclas. Ellie não descansava nem mesmo
meio minuto entre uma folha preenchida e outra. Seus dedos pareciam
automáticos, programados a parar apenas quando o serviço fosse concluído.
Por vezes Jeremy sentia vontade de também padecer desse mal,
especialmente ao olhar de lado e encarar desgostoso mais uma pilha de
papéis a serem lidos, assinados e carimbados. Após um longo e quase
doloroso suspiro, apanhou uma porção de laudas e largou-as sobre a mesa.
Procurou a caneta e encostou a ponta no papel, mas antes que pudesse assiná-
lo ouviu a sineta da porta tilintar discretamente, e a porta principal se abrir e
fechar no mesmo ritmo. Era difícil distinguir as palavras abafadas que
vinham de lá, ainda mais com Ellie datilografando sem parar nem mesmo
para atender corretamente quem quer que houvesse entrado. Poucos segundos
depois a sineta foi novamente tocada, e o visitante foi embora tão rápido que
Jeremy nem conseguiu ver seu rastro ao sair de sua sala, na direção da
recepção.

— Quem era, Ellie?


— Oh, Jeremy, você me assustou! – ela guinchou levando uma das
mãos ao volumoso peito. – Era o carteiro, deixou algo para você aqui.
— Para mim? Nunca recebo cartas!
— Parece que veio de Paris, não consegui ouvir direito.
— Tento adivinhar por quê? – ele respondeu sorridente imitando os
movimentos velozes dos dedos da secretária. Ela pareceu não dar-lhe
ouvidos.
A carta estava largada ao lado da máquina de Ellie, quase saltitando
naquele desgastante movimento. Jeremy ergueu-a até perto dos olhos e viu
que realmente era de Paris. Naquele momento sentiu como se não houvesse
estômago dentro do corpo – aquele frio percorreu suas entranhas tão rápido
quanto os dedos da secretária. Seria mesmo uma carta de Albertine, quase um
ano após sua partida?
Talvez não. Cécile Marmont era o nome do remetente. Num curto
esforço em vão, Jeremy tentou lembrar-se daquele nome, mas não obteve
sucesso. Pensou que talvez pudesse ser algo relacionado à imobiliária, mas
desde que soubesse a Ridell não possuía nenhum imóvel fora do país. Foi
com a ajuda do abridor de envelopes que ele removeu o lacre; de dentro
retirou uma única folha de papel de tom amarelo-pálido. Teve a impressão de
sentir um cheiro... um perfume muito conhecido, mas talvez estivesse
delirando. Desdobrou o papel, vislumbrando uma caligrafia fina e
ligeiramente deitada, muito bem contornada. Era a letra de Albertine.

Querido Jeremy,

Quem lhe escreve é Albertine. Antes de qualquer outra coisa, quero que me
perdoe por ter levado tanto tempo para enviar esta carta, embora eu tenha
plena consciência de que não foi por falta de vontade que não o fiz antes. É
de certo que você pense que simplesmente o esqueci, que me acomodei à vida
moderna de Paris, mas de fato essa não é a verdade. Estou confinada em
uma escola de etiqueta para jovens moças. Minha tia Noelle,
coincidentemente, é uma das mais renomadas professoras de etiqueta da
França. Me sinto ridícula e completamente desapontada em ter que ser
ensinada até a segurar um talher, ou como me sentar corretamente, ou como
manter a respiração funcionando ao ser apertada por estes malditos
espartilhos com que me vestem. Divido um quarto com mais duas moças, elas
são tão comunicativas quanto dois troncos mortos. Por várias vezes quase
cheguei ao meu limite com tantas regras, tanta rigidez, tanta privação.
Saímos apenas três vezes na semana, sempre à tarde, uma fila de bonecas
sem vida própria controladas por minha tia. Ela nem sequer é agradável
comigo, em momento algum. Sempre ríspida, sempre dando ordens, sempre
censurando qualquer uma de nós pelo mínimo detalhe que lhe fuja à
perfeição.
Foi com tremendo esforço que consegui lhe mandar esta carta, e
agradeço mais do que ninguém à minha prima Cécile, que não mora mais
aqui, por ter coletado o envelope secretamente e despachado para que
chegasse até você. Cécile foi expulsa por tia Noelle quando descobriu que
sua filha mantinha um namoro secreto! Eu os vi de três a quatro vezes
escondidos num canto durante a madrugada, sob o nariz de tia Noelle, até o
dia em que ela os apanhou aos beijos, dentro do armário. Tenho certeza que
uma das moças a entregou, de fato. Se não fosse por Cécile, eu estaria ainda
mais solitária do que já me sinto... é ela quem traz novos livros para que eu
não morra na eternidade dos amores de Shakespeare que, mesmo
respeitando muito, não consigo mais suportar – devo ter lido e relido
‘Sonhos de uma noite de verão’ cerca de dez vezes. Foi ela quem me
incentivou a escrever, percebendo meu abatimento, querendo saber o motivo
de tanta tristeza. Você Jeremy, você é o motivo da minha tristeza. Não
consigo evitar em sofrer dia após dia, noite após noite, sentindo a
necessidade da sua presença.
Não sei se tenho mais forças para viver como uma prisioneira requintada
nesta escola. Tenho conversado com Cécile e estamos chegando a um ponto
comum. Não poderei sair até completar meus vinte e um anos, pois tia Noelle
é minha tutora e tem autoridade sobre mim. É por isso que estou esperando o
momento certo para que tudo saia como o planejado. Vou fugir Jeremy, vou
embora deste inferno. Quero voltar, quero estar aí, com você!
Em breve enviarei outra carta contando todos os detalhes. Ora,
imagine só, uma dama fugitiva.
Com Carinho, Albertine.

Foi difícil para Jeremy recuperar o fôlego. A carta tremia junto com
suas mãos molhadas, os pensamentos ainda atordoados perante aquelas
confissões. Albertine também sentia sua falta. Mais ainda do que isso, ela
estava decidida a largar sua vida em Paris e voltar para o lugar de onde nunca
deveria ter saído. Ainda duvidando que aquela carta era real, que não era uma
peça pregada por alguém que quisesse apenas zombar de suas saudades,
Jeremy dobrou o papel e o guardou em uma das gavetas. Deu um gole no
copo d’água de dois dias atrás, tentando reagrupar os pensamentos
fragmentados em várias direções. Seu maior anseio era ter Albertine de volta,
mas ele sabia que não era certo, nem perto disto, que uma moça de dezessete
anos encarnasse uma aventureira e se pusesse a fugir de um país a outro,
mesmo que próximos. Era ele agora quem se sentia ridículo e inútil; eram os
homens, os príncipes ou os plebeus que se aventuravam até suas amadas.
Estaria Albertine falando a verdade? Realmente estaria planejando cometer
tal loucura, ou talvez tivesse deixado-se levar pela euforia de escrever uma
carta, de ter em mãos um meio de liberdade mesmo que apenas atada a uma
folha de papel? Sendo como fosse, tudo aquilo, toda aquela ausência, toda a
saudade, a falta... tudo aquilo estava destruindo, lentamente, os nervos
daquele meio homem, meio menino.

Já era quase noite quando Jeremy chegou em casa, escapando por um


triz da chuva que mais uma vez tornou a cair impiedosa e ainda mais intensa
após a trégua de pouco menos de um mês. Antes de entrar, assim que
atravessou o portão, viu a carruagem de seu pai estacionada ao lado da
charrete, na área coberta construída para abrigar os veículos. Joseph estava
em casa, após quase dois meses de viagem.
Logo assim que se pôs na sala ele percebeu que o cheiro do ensopado
vindo da cozinha consumia toda a casa, fazendo seu estômago roncar em
protesto às quase cinco horas sem receber sequer uma migalha. Subiu
diretamente ao quarto, tomou um banho rápido e se vestiu. Antes que se
dirigisse à sala de jantar, após quase meio minuto para tomar esta decisão,
apanhou uma enciclopédia geográfica que estava posicionada entre alguns
outros livros na escrivaninha, e dela retirou o envelope. Guardou-o no bolso
interno do casaco e deixou o quarto desejando ter coragem suficiente para
fazer o que pretendia. Seus pés pareciam estar sendo atraídos por um
magnetismo que o impedia de mover-se; o caminho até a sala de jantar
poderia ser eterno e ainda assim não seria tempo suficiente.
A sala estava ligeiramente mal iluminada. A mesa já estava posta
daquela rara maneira – um prato, talheres e uma taça em cada ponta. Em uma
delas estava Joseph, com sua aparência atarracada e quase sempre
ameaçadora. Ele picava um pão, lançando os pedaços ao caldo alaranjado que
esfumaçava num prato fundo. A entrada de seu filho no recinto foi
completamente ignorada.

— Papai – Jeremy cumprimentou-o enquanto dobrava a esquina da


mesa, sentando-se bem à frente de Joseph.
— Olá, Jeremy – o velho respondeu com pouco interesse, em seguida
levando uma colher muito brilhante cheia de pedaços de pão encharcados à
boca.
— Como foi a viagem?

Joseph não parecia interessado em conversar. Seu olhar continuava


fisgado pelo suculento prato, enquanto mastigava lentamente como se
intencionasse prolongar o silêncio da sala de jantar.
— O de sempre... reuniões, contratos, nada que valha a pena falar sobre.
— Esta foi sua viagem mais longa desde que me lembre. Achei que
algo houvesse acontecido, fiquei... – ‘preocupado’ pareceu desnecessário –
curioso por estar demorando tanto a retornar.
O velho não quis, ou talvez não precisasse mesmo responder. Se sua
intenção era parecer interessado sobre a vida do pai, Jeremy não estava indo
muito bem. O único som que continuava a ser ouvido era o tilintar das
colheres tocando os pratos de louça fina. Movendo o braço discretamente
para dentro do casaco, ele sentiu o envelope lá, pronto para ser revelado.
— Jeremy, preciso lhe perguntar algo – disse Joseph ao mesmo tempo
em que umedecia os lábios na água que preenchia metade da taça em uma de
suas mãos.
— Vá em frente.
Joseph pousou a taça de cristal sobre a mesa, secou a boca com um
guardanapo e afastou o prato mais para o centro da mesa. Enfiou a mão
esquerda em um dos bolsos do casaco, em seguida retirando-a, aparentemente
segurando alguma coisa. Levou o braço até a mesa e pousou a mão fechada
sobre ela; os nós de seus dedos grossos produziram um som seco quando
encostados à madeira. O punho lentamente se abriu, e ele deixou aparecer
uma pequena chave prateada.
— Esta chave abre um cômodo desta casa: a biblioteca. Eu como único
dono desta casa sei que esta chave só tem uma única cópia – e esta cópia está
sob a proteção de uma pessoa de minha extrema confiança, e Rosa é esta
pessoa, a única que goza de minha aprovação para este fim.
“Suponho que tenha, naturalmente, tentado entrar na biblioteca, mas
percebido que estava trancada. Se estava trancada, era por ordem minha.
Coisas muito importantes estão guardadas naquela biblioteca, nada mais
natural do que manter estas coisas seguras. Porém, hoje, mais cedo, quando
cheguei de minha longa viagem, Rosa procurou-me muito aflita e perturbada.
Perguntei o que se passava, e ela, depois de muito atrapalhar-se, revelou que
uma das, ou talvez a mais importante de todas as coisas guardadas na
biblioteca havia sumido, sem explicação. Simplesmente desapareceu.”
Após esta última frase, dita com aquele tom de perfeita arrogância que
somente ele conseguia alcançar, Joseph se levantou e passou a andar
lentamente ao redor da mesa. Seus braços fortes estavam postos para trás, e
seus passos se repetiam em preciso intervalo de tempo.
— O que tenho a perguntar é se você, de alguma forma, conseguiu
entrar na biblioteca e, talvez por engano, tenha retirado algo de lá.
A resposta mais rápida seria a negativa, Jeremy sabia muito bem.
Porém sabia também que seu pai não terminaria a conversa diante de tal
resposta. ‘Era por isto então que Rosa trancava a biblioteca’, ele quase
chegou a sussurrar para si mesmo. Lembrou-se ainda da manhã em que a
governanta andava de um lado para o outro, aflita – ela já sabia do
desaparecimento do tal bem que estava sendo guardado no recinto a qual só
ela tinha acesso.
— Bem, creio que já fazem dois ou três anos que não tenho acesso à
biblioteca, Papai. De fato sempre quis saber por que estava trancada, mas
nunca achei que fosse de meu interesse, por isso nunca questionei Rosa sobre
isso.
Joseph estava prostrado agora de costas para o filho, observando um
quadro pendurado â altura dos olhos em uma das paredes da cozinha.
— Se é assim, então, não me restam dúvidas de que não deveria ter
confiado tal responsabilidade a uma mera criada.
— Não fale assim de Rosa, Papai! Você e eu sabemos que ninguém é
tão fiel a nós quanto ela.
— Não gosto de sentimentalismos, Jeremy, Rosa é apenas uma das
empregadas, a diferença é que recebe alguns trocados a mais. E pelo que
vejo, parece não ser de total boa índole. Se não foi você quem retirou o que
procuro da biblioteca, então Rosa é a única opção.
— Você está acusando Rosa de ter roubado nossa casa?
— Se é assim que prefere...
— Como você pode dizer isso? Rosa nunca roubaria nada, nem mesmo
um lixo qualquer que você escondia na biblioteca, papai.
Joseph deixou escapar uma risada, mesclada entre diversão e sarcasmo.
— Como pode afirmar com tanta certeza, Jeremy? Exponha-se aos
fatos!
— Confiaria minha vida a Rosa se fosse preciso.
— Confiar a própria vida a outra pessoa foi o que matou sua mãe – ele
sibilou em resposta ao filho. – Estaria viva hoje se não tivesse cometido
tantas tolices.
Jeremy percebeu que a conversa estava tomando outro rumo, e que a
agressividade já se aproximava do tom de voz do pai.
— Talvez se o homem responsável por ela estivesse do seu lado no
nascimento de seu filho, ao invés de estar deitando-se com prostitutas sujas,
ela tivesse conseguido reunir forças para continuar viva. – A voz de Jeremy
soou ríspida, enquanto o sangue fluía como brasa em suas veias.
As bochechas de Joseph receberam rajadas de ódio, tornando-se
instantaneamente vermelhas, e seus olhos pequenos reluziam o vermelho das
lamparinas como espelhos do próprio inferno.
— Como você ousa se dirigir a mim dessa forma? Quem você pensa
que é?
— Eu sou seu filho! O menino que nunca teve mãe nem pai! O menino
que desde criança jamais soube o que é amor vindo de você!
— Pouco me importa o que sente! Você pra mim não passa de uma
escória, um peso que tive de carregar por tanto tempo! Desde que sua mãe
morreu tive de ser muito forte para aguentar mantê-lo sob o mesmo teto que
eu. Foi só por isso que deixei que Rosa ficasse por tantos anos, ela poderia
cuidar do maldito bebê!
Os passos calmos de Joseph o guiaram na direção da porta que levava
até a cozinha. Jeremy não insistiu em continuar aquela conversa, estava
destruído demais para poder atingir o pai à altura, se é que era possível atingir
com palavras um homem tão cruel.
— Rosa! Venha até aqui – exclamou Joseph, deixando aflorar a sua
irritação.
Rosa apareceu na sala de jantar tão rápida quanto um raio. Estava a
ouvir toda a conversa na cozinha, assim como todos os outros empregados.
— Esta é a última noite que lhe dou para encontrar o envelope antes
que eu a mande para a cadeia!
Envelope. Nada poderia ter soado mais claramente. Os documentos da
mansão abandonada era o que Joseph tanto procurava, embora Jeremy ainda
não entendesse como foram parar em suas mãos. Rosa já derramava-se em
lágrimas enquanto ouvia o patrão esbravejar contra ela todos os tipos de
insultos e ameaças. Tudo que a pobre mulher poderia fazer era chorar. Foi ao
ver o velho levantar o braço na intenção de agredi-la que Jeremy lançou-se
sobre o pai, agarrando-se com fúria ao colarinho de sua camisa, o suor
descendo de sua testa.
— NÃO-OUSE-TOCÁ-LA – ele disse, aplicando um segundo de
intervalo entre cada palavra para torná-la completamente clara. – Encoste
sequer uma de suas patas em Rosa e vai se arrepender de tê-lo feito!
Joseph o encarava com um olhar de quase possessão, respirava como
um animal furioso ao ser ameaçado por um predador. Seus lábios pouco a
pouco formaram um sorriso maléfico em seu rosto. Abriu uma fresta entre
eles, parecia pronto a falar, mas o que saiu de sua boca foi uma rajada de
saliva que espalhou-se sobre o rosto do filho a poucos centímetros de
distância do seu.
— MALDITO, INFELIZ! – Jeremy gritou, arremessando o pai com
quanta força tinha. O velho tombou para trás, mas mesmo cambaleante
conseguiu manter-se de pé. – É isso que procura? – o envelope pousara sobre
a mesa, as fotos escapando de dentro dele e espalhando-se ao lado de um
castiçal. – Estava procurando os documentos da casa que é minha por direito,
para continuar a escondê-los de mim?
Pela primeira vez naquela noite Jeremy viu o velho demonstrar uma
expressão que não fosse de repúdio. Pareceu nocauteado ao som das últimas
palavras que ecoaram pela sala. Seu segredo fora descoberto.
— Agora já é tarde, papai. Eu já descobri tudo! A casa é minha, e este
‘J’ nas escrituras é de Jeremy, e não de Joseph.
— C-como? N-não posso... – o velho grunhia em alta voz, enquanto seu
rosto se tornava mais pálido a cada segundo.
— Eu sei que aquela mansão me pertence! Você não passa de um velho
imundo, querendo deixar o próprio filho sem herança qualquer!
Até mesmo Rosa pareceu surpresa com esta revelação. Se o velho já
parecia aturdido, agora parecia alguém que acabara de ver a morte em pessoa
diante de seus olhos.
— Não vou permitir isso. Tudo que é seu está sob meu governo! Não
passará de amanhã até que eu venda tudo, tudo que possa vir a ser seu. Você
não terá nada, Jeremy. Nada! Continuará sendo um nada como sempre foi!
Ninguém se importa com você, até mesmo aquela órfã vagabunda o
abandonou!
— Cala a boca! Cala essa maldita boca! Você vai morrer e arder no
inferno, seu maldito!
Os olhos de Joseph, assim, reviraram-se por dentro das órbitas.
Repentinamente levou uma das mãos ao pescoço, em agonia. O outro braço
tremia, assim como todo o seu corpo; grossas gotas de suor se formaram em
sua testa enrugada, a boca completamente aberta emitia um grunhido
indefinido. Jeremy e Rosa observavam aquela cena – o velho fingindo um
acesso fulminante. Talvez estivesse atuando com tanta realidade que deixara-
se tombar ao chão, a cabeça virada, o rosto completamente sem cor. A
respiração animalesca havia cessado. Foi só após uma asquerosa porção de
espuma formar-se na abertura da boca de Joseph que Jeremy e a governanta
perceberam que não era uma simples atuação. O velho já era um cadáver,
estendido ao chão da sala de jantar.
Capítulo VII

FALÊNCIA

O enterro de Joseph Ridell aconteceu de forma discreta, no minúsculo


cemitério da cidadela. Apenas Jeremy, Rosa e Ellie presenciaram a terra
encharcada de chuva cobrir o caixão. Ninguém quis falar a respeito daquela
repentina morte; provavelmente era algo que iria ser esquecido em
pouquíssimo tempo, junto com as lembranças sobre o falecido que, sem
dúvidas, não era uma pessoa muito popular entre todos que o conheciam.
Algumas coroas de flores brancas foram recebidas por Rosa, vindas de três
ou quatro vizinhos que sentiam-se no dever em desejar os pêsames que
ninguém naquela casa estava realmente precisando receber.
Não por respeito ao pai, mas por pura falta de vontade, Jeremy só
tornou a abrir o escritório quase uma semana após o enterro. Antes tivesse
permanecido em casa – durante a semana seguinte inteira não receberam a
visita de uma alma viva a respeito de serviços imobiliários. Ellie gastava os
dias mergulhada em livros ou qualquer outra distração que surgisse, enquanto
Jeremy apenas permanecia em sua sala, inútil, ora entretido com uma cartela
de palavras cruzadas, ora lamentando-se pelas dores nos ossos que
reapareceram junto com o clima frio e a chuva.
Foi durante uma manhã tão monótona quanto as outras que, de sua sala,
Jeremy ouviu a sineta da porta avisar que alguém havia entrado. Apesar de
não entender o que dizia, ele reconheceu a voz do carteiro. Sentiu-se
repentinamente alegre, acreditando que mais uma carta de Albertine estivesse
sendo entregue a Ellie. Preferiu não afobar-se, e esperou que ela identificasse
cada destinatário para entregar-lhe a carta vinda de Paris. Sustentou a
paciência por quase dez minutos e, percebendo que Ellie não viria entregar-
lhe carta alguma, levantou-se sem vontade e foi em passos leves até a
recepção. Ellie estava sentada em uma das cadeiras de espera ao invés de
estar atrás do balcão; segurava uma folha de papel marcada por uma dobra
dupla. Achou que tivesse visto errado ou apenas imaginado, mas ele logo
percebeu que lágrimas escorriam pelas maçãs do rosto da secretária.
— Ellie? O que aconteceu, por que está chorando?
Ela não respondeu. Apenas dobrou o papel e entregou a Jeremy, com os
olhos fixos ao chão. Ele pegou de sua mão a folha manchada por alguns
pingos, desdobrou-a e pôs-se a ler em silêncio. Era uma carta judicial,
direcionada ao nome jurídico da Ridell.

Caro Sr. Jeremy Ridell,

É através desta que temos lamentavelmente a obrigação de informar-lhe que,


após o óbito de Joseph M. Ridell, proprietário da Ridell Imobiliária, todas as
dívidas cabidas a ele passam a ser de responsabilidade do herdeiro direto de
seus bens. De acordo com o testamento registrado e verificado em cartório,
Jeremy M. Ridell, único filho e único parente vivo de Joseph J. Ridell, tem o
direito a todos os seus bens materiais, tais como todos os imóveis registrados
em nome jurídico da Ridell Imobiliária e em nome físico do mesmo, incluindo
todos os fundos guardados em conta bancária.
Entretanto, como citado acima, Joseph J. Ridell associou todas as
dívidas lançadas a partir de débitos assinados em NOTA PROMISSÓRIA, em
estabelecimentos noturnos como cassinos, bingos e clubes, todos
devidamente registrados e dentro das leis. Estas dívidas estão acumuladas
em um valor colossal, somadas aos juros por atraso na quitação das
mesmas. Após avaliação de todos os bens, assim como a conferência
autorizada por lei dos fundos reservados em conta bancária, foi decretado
que 37 (trinta e sete) dos 38 (trinta e oito) imóveis registrados e que
consideram-se rentáveis ( exclui-se desta lista o imóvel localizado no
povoado de Eastwood recentemente destruído por um incêndio ), assim como
o valor somado na reserva bancária, serão utilizados para quitação destas
dívidas, proporcionando a retirada do nome da Ridell Imobiliária do
cadastro de empresas em débito com as leis. Em breve serão enviadas as
ordens de esvaziamento dos imóveis para deixá-los prontos para serem
penhorados.

Agradecemos desde já sua compreensão.

Mesmo chocado, Jeremy não estava surpreso. No fundo ele sabia que
era iminente a falência da imobiliária, causada pela imprudência e descaso do
pai. Era o fim, ele tinha certeza. Aquela carta viera apenas com a sentença
final que ele já esperava consciente. Sentou-se ao lado de Ellie, que enxugava
as lágrimas na barra do vestido, e juntos prestaram o silêncio que em breve se
apossaria por completo daquele prédio.
O cofre da empresa ainda guardava uma considerável quantia em
dinheiro; considerando que este não estava oficialmente registrado como
propriedade a ser incluída no pagamento da dívida, Jeremy retirou-o em
segredo, até mesmo para com Ellie, empacotou em vários envelopes e
guardou-os em uma mala, junto dos documentos da mansão perdida na
floresta. Apesar de toda esta situação que causaria tanto desconforto para os
inquilinos que alugavam os imóveis, Jeremy manteve-se tranquilo. Tinha
plena certeza de que não ficaria ao relento – a mansão era a prova disto. Já
tinha tudo esquematizado em sua mente. Iria transferir todos os criados para
lá, onde poderia viver por um bom tempo graças às economias que tinha
reservado desde que começara a trabalhar para o pai, somadas à generosa
quantia retirada do cofre. A imobiliária estava falida, nada mais poderia ser
feito – não poderia recomeçar do zero, não tinha paciência e nem vontade
para isso. Não queria viver à sombra de um erro que não lhe cabia corrigir.
Talvez a pior parte foi contar a Rosa sobre a carta judicial. Ela não
conseguiu conter a tristeza, expressando-a em lágrimas e lamentos sobre
como nunca havia imaginado que a imobiliária fosse um dia fechar as portas.
Havia sido sempre próspera por mais de quatro décadas, mas em menos de
dois anos teve as estruturas corroídas pelas mãos da mesma pessoa que
ajudou a erguê-las. A comoção foi compartilhada com os outros quatro
criados, que demonstraram tristeza em saber que iriam passar a trabalhar em
outra casa, mas também não tentaram esconder o brilho nos olhos ao saber
que Jeremy seria seu patrão de agora em diante. Reuniram-se e jantaram
todos juntos como numa cerimônia de despedida àquela casa que tinha sido
por tantos anos o abrigo de todos eles.
Dia após dia o escritório foi sendo desmontado, em meio aos soluços de
choro de Ellie – indecifrável entre a real tristeza ou pelo fato de
repentinamente estar desempregada. A última carta com a ordem de
fechamento já havia sido entregue; exigia a liberação do imóvel junto com
todos os documentos dele e de todos os outros reunidos em uma só caixa, em
menos de uma semana a contar da data do recebimento do aviso. Cada
envelope encaixotado era seguido de um lamento da ex-secretária, enquanto
Jeremy mostrava-se inabalável com o fim da Ridell.
Após acabarem-se os envelopes, ele foi até sua antiga sala para conferir
se nenhum havia sido esquecido. Os armários estavam devidamente vazios,
menos aquele que guardava os documentos de imóveis condenados. O
mesmo armário onde estava guardado o envelope que deveria ter
permanecido intacto na biblioteca de sua casa. Nada que ele pensasse sobre
aquele caso se encaixava com clareza – era impossível que o envelope tivesse
transportado-se sozinho. Só poderia estar no escritório após ser deixado lá
por alguém. Mas como, se a biblioteca estava devidamente trancada? E ainda,
mesmo que não estivesse, quem, e por qual razão, se daria a este trabalho?
Isto era algo que Jeremy ainda tentaria descobrir, não por agora, pois talvez
fosse melhor não querer saber das razões que alguém, quem quer que fosse,
teria para dar todas as pistas para que ele finalmente encontrasse o que era
seu desde que nascera.
Fechou as portas do armário, e o vidro estremeceu desfigurando o
reflexo de Jeremy por um segundo. Agora que estava certo de que não havia
mais nada para retirar, após uma última olhada naquela sala onde gastara
tantos dias e que talvez nunca mais voltasse a ver, preparou-se para ir
embora, mas lembrou-se que não tinha verificado as gavetas de seu birô. Deu
meia volta, sentou-se em frente às gavetas e abriu a primeira. Apenas alguns
papéis de rascunho estavam nela; a segunda estava repleta de canetas, lápis e
borrachas. Na terceira só havia uma folha de papel dobrada, exibindo aquele
tom amarelado de papel de carta da mais fina qualidade. Era a carta de
Albertine. Desdobrou-a e levou dois ou três minutos para relê-la. Antes que
pudesse terminar, prendeu-se a um trecho em especial... o trecho que mais o
fazia sentir saudade dela, que mais mexia com seu coração dando-lhe
esperança de que ela voltaria:“Não consigo evitar em sofrer dia após dia,
noite após noite, sentindo a necessidade da sua presença.”
Junto a esta sofrida declaração, o trecho em que ela prometia fugir e
voltar para perto dele tornavam aquela carta quase um contrato de vida para
Jeremy. Quase havia esquecido-se dela por lá. Talvez estivesse apenas
sonhando alto demais. Como havia imaginado, foi apenas uma forma de
desabafo – ao menos o detalhe da fuga –, era o que ele esperava. De fato
sabia que era completamente improvável que uma moça com menos de
dezoito anos viajasse sozinha para o exterior, sem qualquer tipo de
autorização de um responsável. Mesmo assim apegou-se a esta ideia, antes
pensar que ela voltaria a ter certeza de que nunca mais a veria de novo.
Desvencilhou-se destes pensamentos, guardou a carta no bolso e deixou a
sala sem olhar para trás.
Ellie o esperava de pé ao lado da caixa com todos os documentos
requeridos pela justiça. Sua cara inchada já não estava mais molhada pelas
lágrimas. Os dois olharam-se sem saber o que dizer. Havia chegado a hora do
adeus.
— Adeus Ellie – ele disse, indo em sua direção, fechando os braços ao
redor do corpo magro da moça.
— Não dê adeus, Jeremy! Prometa que vai vir nos visitar de vez em
quando. Sei que não quer me contar para que lugar vai se mudar, mas
acredito que não seja longe. Não abandone seus amigos!
— Prometo que visitarei – ele disse largando-se de Ellie. – Embora
você seja minha única amiga aqui, prometo que não deixarei de vir visitá-la.
Ellie abriu aquele belo sorriso de dentes muito brancos, e com um leve
cumprimento de cabeça, abriu a porta e saiu; era o fim de seu último
expediente. Jeremy olhou ao redor, e só agora sentiu uma pontada de tristeza
ao ver a recepção vazia, sem vida, sem o som antes irritante, mas agora
memorável da máquina datilográfica. Quase sentiu os olhos marejarem, mas
manteve-se forte. Abriu a porta e sorriu ao som da sineta, saiu e olhou para o
céu – estava claro e limpo, muito azul, e tinha o sol brilhando com vigor em
sua imensidão. Fechou a porta e trancou-a, enquanto lia o aviso afixado a ela
que ordenava que as chaves fossem jogadas por debaixo da porta, visto que
as trancas seriam trocadas quando o imóvel fosse vistoriado. Com dificuldade
causada pelas dores nas pernas, que ainda não tinham cessado mesmo após a
mudança de clima, agachou-se para cumprir a ordem, sem perceber que uma
carruagem muito velha, de rodas muito gastas, havia parado bem atrás dele.
A chave deslizou pela fresta e parou bem no meio da sala, próxima ao
balcão. Ele levantou-se sentindo um dos joelhos estalar, e quase assustou-se
ao ver aquela carruagem que parecia ter aparecido do além às suas costas.
Observou, tomando o cuidado de não parecer bisbilhoteiro, o cocheiro retirar
uma única mala de tamanho médio do interior da carruagem. Ouviu uma voz
estranhamente familiar vindo de dentro dela. Quem quer que fosse, agradecia
ao cocheiro após estender-lhe uma das mãos segurando o que pareciam várias
cédulas, amarradas por um fino cordão. Seu coração agora entrava em
processo de aceleração incontrolável – viu sair da carruagem uma moça
magra, muito branca, de longos cabelos louros caídos aos ombros, de olhos
verdes muito brilhantes.
— Albertine!
Ela pareceu ainda mais bela ao largar-se num sorriso alegre, iluminado
de maneira divina pela luz do sol que era refletida em seus cabelos.
Sim, era ela. Albertine cumprira sua promessa.
— Jeremy!
O mundo girou em torno dos dois jovens, enquanto suas mentes só
queriam obrigá-los a gritar de felicidade. Estavam finalmente juntos outra
vez. Os corpos chocaram-se com intensidade no longo e tão esperado abraço.
As mãos de Albertine apertavam as costas de Jeremy, enquanto as dele
deslizavam pelos fios sedosos das mechas louras da moça. Lágrimas
escorriam dos cantos dos olhos dos dois, desta vez de felicidade imensa por
aquele reencontro. Não conseguiam falar, mal conseguiam respirar. O abraço
poderia durar para sempre e ainda assim seria curto demais.
— Pensei que a tinha perdido para sempre – ele sussurrou ao ouvido de
Albertine.
— Você nunca me perdeu – ela respondeu no mesmo tom.
A carruagem partiu após dar meia-volta em frente ao jovem casal,
fazendo-os perceber que estavam abraçando-se descontroladamente à beira da
calçada. Separaram-se sem vontade, e Albertine, enxugando as lágrimas, não
pôde deixar de reparar no aviso fixado à porta do escritório.
— Jeremy, o que aconteceu com o escritório?
— Prometo que explico tudo mais tarde. Deixe-me carregar sua mala,
vamos para minha casa, então a deixarei a par de tudo o que tem acontecido
por aqui.
— E são tantas coisas assim? – ela respondeu sorrindo, como em um
deboche.
— Você nem faz ideia. Garanto que esta pequena vila reserva mais
surpresas do que a grande Paris que você abandonou.
Seguiram para a casa dos Ridell, sorridentes, e antes que pudessem
entrar, Albertine percebeu o amontoado de caixas em frente à casa. Sabia que
havia algo estranho no ar, mas preferiu esperar que Jeremy lhe contasse ao
invés de perguntar mais uma vez.
— Rosa! Onde você está? – a euforia tomava conta da voz do jovem
Ridell, fazendo-lhe parecer outra pessoa e não aquele rapaz quieto e calado
que costumava ser. – Tenho uma grande surpresa!
Segurou Albertine pelas mãos e arrastou-a até a cozinha. Rosa estava de
costas, perto da pia, encaixotando um vaso de cerâmica que era usado na
decoração da sala de jantar. Ela parecia absorta em pensamentos e não ouviu
quando adentraram no recinto.
— Rosa!
Ela virou-se imediatamente, e seus olhos arregalaram-se como se um
fantasma arrastando correntes houvesse saltado diante de seu rosto. A boca
abriu-se em formato de ‘o’ ao ver Albertine lá, parada ao lado de Jeremy.
— Santa Mãe de Deus! Como... como?
— Explico depois, Rosa – Albertine respondeu correndo na direção
dela e dando-lhe um forte abraço. – Explico depois que vocês me explicarem
o que está havendo aqui! – os olhos da moça agora percorriam o ambiente
quase vazio e sem decoração, com as paredes brancas exibindo-se despidas.
Foi preciso o resto da tarde para que tudo fosse contado a Albertine
dentro de todos os detalhes necessários. Ela demonstrou-se muito surpresa ao
saber que Joseph havia morrido, e mais ainda ao ouvir sobre a falência da
Ridell. Jeremy contou-lhe tudo, inclusive sobre a mansão, sobre como a
descobriu, sobre o dia em que atravessou a floresta para encontrá-la. Após
estar satisfeita com tudo que precisava saber, foi sua vez de detalhar a Jeremy
e Rosa como conseguira fugir de Paris. Obviamente, sua prima Cécile tivera
grande parte no sucesso da fuga: ela conseguiu as passagens de trem,
organizou o melhor momento para a escapada e ainda falsificou uma
autorização com a assinatura de Noelle para que Albertine embarcasse sem
problema algum. A cansativa viagem às escondidas, de fato, havia sido um
suave passeio no parque quando comparada ao tempo de aprisionamento na
escola de etiqueta da senhora Noelle Grahanfield.
O aviso de liberação do imóvel também já havia sido recebido na casa,
e tudo já estava pronto. Os móveis foram cobertos com lençóis brancos, e
todos os pertences encontravam-se encaixotados, prontos para serem
transferidos. Embora parecessem muitas, todas aquelas caixas acomodariam-
se tranquilamente em qualquer cômodo da gigantesca mansão para onde
seriam levadas.

Era uma manhã morna de sábado quando estavam todos lá, parados em
frente à casa desmembrada. As caixas haviam sido empilhadas na carroceria
da charrete, que seria guiada por um dos criados. Já os demais – Jeremy,
Albertine, Rosa e os outros três criados – partiriam de coche, o mesmo que
Joseph utilizava em suas viagens.
Jeremy trancou as portas e, da mesma maneira que fez com as chaves
do escritório, lançou o molho por debaixo da porta da frente. Albertine e os
criados já acomodavam-se no veículo, mas Jeremy e Rosa ainda não tinham
tido o momento final; talvez mais do que para todos os outros, era de certa
forma doloroso deixar toda aquela vida para trás, trocar um lugar habitado –
mesmo que tão pequeno e esquecido do resto do mundo – por uma mansão
isolada quilômetros adentro de uma vasta floresta.
— Chegou a hora, Rosa – disse Jeremy, nostálgico, com o olhar preso
na porta de entrada que jamais atravessaria outra vez.
— Sim, chegou – respondeu a governanta, compartilhando do mesmo
sentimento.
— Vamos recomeçar. Vamos reconstruir tudo.
Rosa sorriu com aquela expressão séria, formando uma pequena ruga
no canto dos lábios.
— Me orgulho de você mais do que possa imaginar – ela disse sem
olhar para Jeremy. – Você é o filho que nunca tive.
Ele retribuiu o sorriso e abraçou a governanta de forma desajeitada.
Mesmo depois de tantos anos ele sentia certa intimidação ao abraçá-la; para
ele, Rosa era como uma figura suprema e intocável. Após alguns segundos
permitindo-se sentir o acalento de sua protetora, largou-se do abraço e puxou-
a com carinho pela mão na direção do coche.
— Vamos, não temos mais o que fazer aqui.
Ela acomodou-se ao lado de Albertine, apertada entre algumas malas
que não encontraram mais espaço na carruagem junto às caixas. Jeremy
ergueu-se na guia, segurou as rédeas e iniciou o trotar dos cavalos. O coche
seguiu, mais pesado do que deveria, pela estradinha de pedra, tomando o
rumo da saída sul. Antes de perder a casa de vista, porém, Jeremy olhou para
trás e viu seu antigo lar tornando-se cada vez menor, e por um segundo teve a
impressão de ver a si mesmo atravessando o portão e indo até a porta como
fizera durante toda sua vida. Logo voltou a olhar para frente, atiçando os
cavalos a irem mais rápido, enquanto a charrete com a carga o seguia dois ou
três metros mais atrás.
Como o dia estava muito claro, a floresta não aparentou ser tão sombria
quanto na primeira viagem que Jeremy fez por ela. As árvores pareciam mais
vivas e nutridas, até mesmo pequenos animais corriam por entre elas, muitas
vezes atravessando como vultos na frente dos veículos. De fora da
carruagem, Jeremy conseguia ouvir as vozes dos passageiros divertindo-se
numa conversa que não podia ser entendida devido ao som do vento vindo na
direção contrária. Nesse momento, ele sentiu-se tão vivo como nunca antes.
Estava prestes a iniciar uma vida completamente nova, junto das pessoas que
mais amava. Tomado por estes pensamentos de completa felicidade, seguiu
pela trilha na floresta que, como ele já sabia, se tornava mais estreita e
fechada a cada metro percorrido. Lembrou-se do dia em que atravessara
aquele caminho pela primeira vez, do medo que sentiu em fazê-lo sozinho;
sua felicidade momentânea foi ligeiramente abalada pela lembrança e a quase
certeza de ter visto um vulto, talvez humano, espreitando por detrás de uma
árvore. Mais do que esta por esta lembrança, sentiu um calafrio arrepiar os
pelos de seu corpo quando reviu em sua mente a cena vivida na galeria da
mansão – a parede oferecendo espaço para um último quadro com o rosto de
um Ridell, a porta estranhamente emperrada, as cortinas desamarradas após
sua passagem por elas, minutos antes, completamente recolhidas. Havia ainda
a porta dos fundos, mantida escancarada por uma cadeira, completamente
fechada por alguém, ou alguma coisa, enquanto ele perambulava pelo andar
de cima.
Aqueles foram os únicos detalhes que ele absolutamente escondeu dos
outros. Não seria certo assustá-los. Preferiu esquecer aqueles fatos e encará-
los como ocorrências aleatórias, ergueu a cabeça para frente e continuou seu
caminho pela floresta. Embora os mistérios da mansão estivessem, ainda,
muito distantes de serem descobertos até por ele próprio, Jeremy sentiu-se
um completo Ridell, um homem experiente em imobiliária. Um típico
método quase infalível no ato de se convencer alguém a mudar-se para um
imóvel era, desde sempre, esconder totalmente os segredos que ele guarda
entre suas mudas paredes.
Capítulo VIII

A NOITE DE NÚMERO UM

Gastou-se pouco mais de uma hora até que o coche, seguido pela
charrete, alcançasse os portões da mansão. Jeremy saltou do assento e
desenrolou as correntes enferrujadas, abrindo os portões de canto a canto. Os
veículos atravessaram a entrada e seguiram por cima da grama alta, talvez
mais crescida do que Jeremy vira antes, e pararam bem em frente à porta
principal. Todos os passageiros desceram da carruagem, esticando-se em
seguida após mais de uma hora sem movimentar as pernas. Todos os olhares
fixaram-se à gigantesca casa, os pilares colossais tornando-os pequenos se
postos lado a lado. Talvez pela ação das chuvas, as vidraças exibiam-se mais
reluzentes, a grama parecia mais verde e até a fonte comportava razoável
quantia de água esverdeada.
— E então - Jeremy falou a Albertine. – o que diz sobre nossa nova
casa?
Albertine pareceu surpresa ao ouvir aquela pergunta; “nossa casa”
repetiu-se automaticamente nos ouvidos dela como o eco dos sinos de uma
igreja.
— É-é muito mais do que eu esperava, q-quero dizer... é magnífica! –
ela respondeu enquanto seus olhos vagueavam acima e abaixo, vislumbrando
cada vidraça, cada detalhe nos beirais. – Tem até uma capela!
— Sim, mas não parei para verificá-la quando vim aqui pela primeira
vez.
— E esta fonte, veja, que maravilha! – exclamou a moça esticando-se
para ver o que havia na parte mais alta, o que notou serem apenas muitas
lesmas gosmentas largadas umas sobre as outras. – Bem, só precisa de uma
limpeza.
Os dois riram enquanto caminharam na direção da lateral esquerda da
mansão. Jeremy já havia dito que não possuía nenhuma chave de qualquer
porta que fosse, mas que a entrada dos fundos estava aberta. Tinha esperança
de encontrar as chaves perdidas em algum lugar, ou teria de pagar um
profissional para substituir todas as trancas. Isto era algo que ele
definitivamente não gostaria de fazer: sentia que quanto menos soubessem da
localização da mansão, melhor.
Seguiram pelo largo que se estendia ao lado da casa, exclamando e
apontando, ainda incrédulos do tamanho da construção. Chegando aos
fundos, logo seguiram até a porta; ela estava apenas recostada, da mesma
maneira que Jeremy a tinha deixado. Os outros não perceberam, mas ele
expeliu um suspiro de alívio. Adentraram pela cozinha, seguiram pela sala de
jantar, sempre exprimindo palavras de ânimo a cada cômodo que passavam.
Já na sala, Jeremy apontou para cima e mostrou que lá estendia-se talvez a
parte mais interessante da casa, que eram, juntas, a biblioteca, a galeria, o
salão de jogos e alguns quartos. Já a parte de baixo ainda teria de ser
explorada, por isso cada um seguiu para um lado na intenção de conhecer
cada metro da mansão. Jeremy encontrou um salão de festas, Rosa e as
criadas encontraram uma magnífica adega repleta de barris e garrafas, os dois
criados chegaram até um alçapão, num recanto da cozinha, que levava a um
porão que se estendia por quase toda a extensão da parte de cima, e Albertine,
para sua extrema felicidade, descobriu uma sala de música muito ampla, com
um piano em um dos cantos e alguns instrumentos de banda marcial
guardados em um grande armário de portas de vidro. Após reunirem-se
novamente na sala, partiram para o andar de cima enquanto os dois
empregados descarregavam a charrete e as poucas malas que sobraram no
interior do coche.
Já no primeiro andar, vasculharam cada canto e descobriram os quartos,
a entrada para o sótão, e visitaram a biblioteca e a galeria, os dois recintos já
conhecidos por Jeremy. As quatro mulheres não entenderam, porém não
questionaram quando Jeremy recusou-se a entrar na galeria dos Ridell,
subindo ao sótão ao invés disso. Lá ele encontrou apenas muitas caixas, urnas
e objetos largados em pilhas. O sótão estava completamente tomado pela
poeira e por gigantescas teias de aranha que se estendiam de um canto a outro
do telhado, e era silencioso como um túmulo de um cemitério abandonado. A
luz do sol entrava de maneira discreta por uma pequena janela na parede
frontal, tornando possível andar-se sem tropeçar em toda aquela aglomeração
de itens espalhados pelo chão. Ao aproximar-se desta janela, Jeremy
percebeu que dava vista à área frontal de maneira completa, de ponta a ponta
do grandioso muro coberto de hera; a capela, a fonte e os portões exibiam-se
à vista. À frente do muro, a floresta impossibilitava avistar-se qualquer outra
coisa além das copas das árvores, como um mar tingido de verde que seguia
até onde a vista podia alcançar.
Após uma ligeira espiada Jeremy deixou o sótão, na intenção de voltar
quando tudo estivesse em ordem, para examinar cada um dos caixotes e urnas
empoeiradas. Desceu as escadas e encontrou Albertine esgueirando-se para
dentro de um dos quartos. Seguiu-a, adentrando em um belíssimo quarto de
casal. Era muito claro e bem iluminado, devido às grandes janelas na parede
lateral; a cama de tamanho suficiente para acomodar quatro pessoas estava
junto à parede às suas costas, bem no centro, e acima dela havia um quadro,
tão grande quanto a largura da cama – uma paisagem primaveril de cores
vibrantes e nostálgicas. A penteadeira estava ao lado da cama, na mesma
parede da porta, exibindo o grande espelho manchado e coberto de pó. Havia
ainda uma cômoda bastante larga, repleta de gavetas e livros largados sobre
ela. Albertine sentou-se à cama, com o olhar brilhante sobre aquele majestoso
recinto, e Jeremy sentou-se a seu lado. A claridade do quarto era reforçada
pelo espelho posicionado exatamente em frente às janelas, refletindo a luz de
maneira vívida, quase a ponto de ofuscar a vista.
— É perfeita! Simplesmente perfeita! – exclamou Albertine de forma
animada. – Olhe para este quarto! Quero dizer, olhe para tudo isto, é tudo
muito grande, bonito e...
— Seu – Jeremy não hesitou em sibilar. Albertine sentiu o rosto
aquecer e corar. – Tudo aqui é seu, desde os portões até esta cama.
— Oh, Jeremy. Sinto-me honrada, mas... esta mansão é sua, é sua
herança, como posso simplesmente entrar desta forma? Não é certo.
— Minha herança, sim. Mas a partir de agora, o que é meu, é seu
também.
Jeremy não se importava em parecer afobado, mas Albertine sentia que
não devia aceitar o que ele dizia. Dentro de sua cabeça não era daquela forma
que as coisas funcionavam.
— Jeremy... eu...
— Espere, fique aí – ele a interrompeu enquanto levantava-se da cama
com um salto.
Seguiu até a penteadeira, abriu uma das duas gavetas, vasculhou-a e
fechou-a poucos segundos depois. Partiu para a segunda, mexendo as mãos
entre os objetos que variavam entre colares, tiaras e brincos. Bem no fundo
da gaveta encontrou o que procurava; apertou-o com os dedos juntos à palma
da mão, fechou a gaveta e novamente virou-se a Albertine, que observava
curiosa. Sem saber exatamente o que fazer ou como agir, após inspirar e
expirar com vigor, largou-se de joelhos aos pés de Albertine. Segurou uma de
suas mãos com delicadeza, enquanto procurava as palavras no emaranhado de
pensamentos.
— Albertine...você... – a voz de Jeremy tremia, falava quase em
sussurro. Antes de terminar a frase, da palma de sua mão suada que se abria
pouco a pouco, ela viu surgir um anel dourado, adornado por uma pequena
pedra brilhante que reluziu à luz do sol. – Você aceita... se casar comigo?
Ela levou uma das mãos aos lábios num movimento instantâneo e
inevitável de surpresa. O silêncio apoderou-se do quarto enquanto o jovem
casal se entreolhava – Jeremy de maneira ansiosa e Albertine de forma
assustada. Tirando os olhos dos dele, ela direcionou-os ao belo anel;
conseguiu vê-lo perfeitamente encaixado em seu dedo, e por um instante
imaginou a quem teria pertencido antes de ser abandonado no fundo de uma
velha gaveta. A mão de Jeremy suava a ponto de umedecer as luvas de
Albertine, que continuava inerte e sem saber o que dizer.
— Minha nossa, Jeremy! Estou muito... surpresa e... lisonjeada – Ela
finalmente disse. Os olhos de Jeremy faiscavam, suplicando uma resposta
positiva. – Eu... eu aceito!
Os dentes muito brancos do rapaz apareceram entre seus lábios, através
de um grande sorriso de felicidade. Meio desajeitado, ele colocou
vagarosamente o anel brilhante no penúltimo dedo de Albertine. Parecia ter
sido feito sob medida – encaixou-se de forma perfeita como ela havia
imaginado. Após o ritual de noivado, levantou-se e puxou-a para perto de si,
os rostos quase colados. Os dedos de Jeremy deslizavam por entre os longos
fios louros, os olhos escuros fixos aos verdes, compartilhando a atração
magnética e poderosa que tornava o espaço entre os lábios menor a cada
segundo. As pálpebras fecharam-se, e o beijo, o tão esperado beijo,
aconteceu.

A tarde correu ligeira, enquanto o grupo em mudança tentava se


acomodar; cada um procurava algo que pudesse fazer para começar a pôr em
ordem toda a bagunça criada pelos anos de abandono da mansão. Por fim
decidiram todos juntos que a cozinha seria o primeiro ambiente a ser limpo e
devidamente arranjado. Já jantariam lá aquela noite, embora os mantimentos
que haviam sido trazidos da antiga casa fossem apenas produtos de armário
como arroz, cereais, ingredientes para bolos – exceto leite – e outras coisas
deste tipo. Rosa dedicou-se ao preparo da ceia, e Jeremy e Albertine
iniciaram a limpeza da sala de jantar. No decorrer do dia, quilos de poeira
foram retirados, num vai e vem interminável, apenas destes dois cômodos.
A tarde sumia no horizonte dando lugar à noite quando terminaram a
faxina. As lamparinas foram acesas por toda a casa; a mesa de jantar estava
posta, e da cozinha Rosa trouxe uma tigela de arroz branco com ervilhas, um
prato de carne seca frita em azeite e alguns milhos cozidos mergulhados em
água quente num pequeno caldeirão.
O jantar foi alegre e bastante longo; o grupo perdia-se em conversas
sobre a mansão, e já combinavam como seria a faxina do dia seguinte.
Resolveram ainda que dois dos criados teriam como responsabilidade ir à
feira duas vezes na semana. Certamente, o ponto mais alto da conversa foi o
anúncio do noivado de Jeremy e Albertine. Rosa, como a quase mãe coruja,
não poupou as lágrimas. Foi de imediato que prostrou-se a organizar tudo –
desde a decoração até o preparo do bolo, mas retraiu-se ao ouvir Jeremy dizer
que não fariam uma festa muito grande. Pensavam em uma pequena
comemoração na própria mansão, sem convidados – exceto Ellie, que nunca
o perdoaria se não fosse convidada. Albertine mostrava-se igualmente
animada, porém parecia não compartilhar de tanto entusiasmo sobre já
decidir a cor das flores do buquê tão rapidamente, assim como fora sua
resposta ao pedido de casamento. Ao menos nem sabia onde a cerimônia se
realizaria – ou se ao menos haveria uma cerimônia tradicional, algo que
Jeremy não havia citado em nenhum momento da conversa. Por fim, outros
assuntos foram tomando forma enquanto a noite cobria como um véu tudo ao
redor da mansão.
Estavam tão mergulhados em prosa que não notaram a escuridão do
lado de fora. A sala de jantar estava bem iluminada por cinco ou seis
lamparinas, reforçadas por três castiçais com velas compridas acesas em meio
aos pratos e taças na mesa. Judith e Marta, as duas criadas, puseram-se a
recolher a louça e levá-la à cozinha. Os outros dois empregados, Robert e
Thomas, carregaram as bagagens contendo as roupas, toalhas, lençóis e
travesseiros ao andar de cima. Cobriram todas as janelas, do andar de cima e
de baixo, com as grossas cortinas emparelhadas a elas. A esta altura, cada um
deles já se acomodara em um quarto de sua preferência – inclusive Jeremy e
Albertine. Embora tomados pela vontade de já dividir o mesmo quarto, a
ideia pareceu repentinamente estranha aos dois.
Com a ajuda de Rosa, os lençóis empoeirados foram substituídos pelos
que estavam nas bagagens. Os toaletes foram abastecidos com bacias de água
limpa que Judith retirara do poço no quintal. Estavam enfim prontos para a
primeira noite na nova moradia, porém era notável a insegurança em cada um
dos rostos. Nenhum deles estava habituado a passar a noite em uma floresta
isolada, mesmo que seguros no interior da mansão. Tomaram cada um seu
rumo, Jeremy e Albertine após desejarem-se boa noite de mãos dadas no
corredor.
O quarto que Jeremy escolheu era, de certa forma, bastante rústico e
masculino, completamente diferente dos outros. Algo que era bastante
peculiar na mansão, além de seu incrível tamanho, eram os quartos; cada um
deles parecia ter sido projetado para um tipo de personalidade, o que era
visível através da decoração. O de Jeremy tinha a parede forrada por um
papel que imitava uma textura amadeirada, de um marrom escuro e selvagem.
O lustre era simples, sem adornos, e os móveis pareciam vindos direto de um
antiquário. As cortinas, porém, eram iguais em todos os quartos: de cor vinho
e rodapés decorados com tiras de viés dourado.
Jeremy então largou-se na cama, sentindo o cansaço pesar sobre seu
corpo. Despiu-se, vestiu o pijama e, após lavar o rosto e a boca, deitou-se
para dormir. Caiu em sono rapidamente, entre um bocejo e outro, ouvindo o
som do silêncio não apenas a seu redor, mas ao redor de toda uma vasta
região além de sua nova casa.

O dia amanheceu claro, o céu limpo e o sol radiante. Não havia o


barulho de carruagens ou pessoas trafegando em frente à casa para acordá-
los, mas Albertine despertou antes de todos ao sentir o sol arder em seu rosto
por uma fresta da cortina. Não demorou muito para se lavar e se vestir,
escolhendo um vestido leve e já bastante surrado, para poder sentir-se mais à
vontade no longo dia de faxina que viria pela frente. Saiu de seu quarto e
seguiu despreocupadamente pelo corredor. Não ouvia nenhum som vindo de
baixo; pensou em voltar, achando que ninguém ainda havia acordado, mas
continuou seu caminho. Desceu as escadas da sala de estar, atravessou o
recinto e passou pela sala de jantar. Não pôde deixar de reparar que todas as
cortinas estavam novamente amarradas, embora não houvesse ninguém já
acordado além dela mesma. A cozinha estava igualmente silenciosa e vazia.
Albertine deu meia volta e caminhou de volta ao quarto, mas encontrou-se
com Rosa na entrada da sala de jantar, com os cabelos presos em um coque e
os lábios já pintados com o batom vermelho de sempre.
— Oh, Albertine. Bom dia!
— Bom dia Rosa, como foi sua noite?
— Muito boa, de certo! Apesar de velhos, estes colchões são
simplesmente maravilhosos!
— Tenho que concordar com você, também dormi muito bem!
— Ótimo, ótimo! Vejo que já se deu ao trabalho de abrir as cortinas.
— Não, não abri nenhuma delas!
— Oh, bem, deve ter sido Judith, ela sempre levanta mais cedo que
todos nós, mexe em algumas coisas e volta ao quarto, aquela maluca.
— Fico mais tranquila em saber que não abriram-se sozinhas.
As duas riram e Albertine seguiu rosa de volta à cozinha para ajudá-la a
preparar a refeição matinal. A governanta demorou a lembrar-se em qual dos
armários guardara o pó do café, mas tão logo o encontrou já passou a
procurar pelo bule.
— E então, mocinha, - ela disse enquanto transferia água de uma panela
de aço para o bule. – Como se sente sobre o noivado?
Albertine talvez ainda não estivesse pronta para responder aquela
pergunta, mas sabia que Rosa tinha as melhores das intenções e não seria
perda de tempo abrir-se com ela.
— Eu... eu ainda não sei, Rosa. Foi tudo tão rápido! Quero dizer... a
morte dos meus pais, minha ida a Paris, estar agora morando com vocês. É
uma mudança e tanto, de uma só vez.
— Passei por situação parecida em minha juventude – Rosa respondeu.
-Morava com minha mãe na Alemanha, mas me mudei aos vinte e cinco anos
para a Inglaterra após a morte dela. Fiquei sozinha no mundo, sem ninguém,
por isso me dediquei a cuidar das casas de outras pessoas, era somente o que
eu sabia fazer.
— Então entende como me sinto...
— Sim, perfeitamente. Mas cá entre nós, eu não tive um rapaz belo e
educado pedindo minha mão em casamento.
— Por Deus, Rosa. Não pense que estou reclamando. Não estou! –
Albertine exclamou esganiçada, um tanto envergonhada.
— Eu sei que não, estou apenas caçoando de você! – a governanta
respondeu sorridente enquanto acendia o fogão a lenha para aquecer a água
do café.
— Jeremy é tão... maravilhoso. Um verdadeiro cavalheiro, inteligente e
muito dedicado.
— E a ama. E como ama! Quase não pude suportar tamanha tristeza
quando você partiu. Ele permanecia trancado no quarto, sozinho, mal
conversava. Só saía para ir ao escritório e nas horas das refeições, que muitas
vezes levava para o quarto.
— Eu também o amo, Rosa. Mais do que ele consiga imaginar.
— Vocês serão muito felizes. Tenho certeza.
— Todos nós seremos Rosa. Todos nós.
As duas mulheres suspiraram, esperançosas. Poucos minutos depois, o
cheiro delicioso do café já se espalhava pela cozinha; passos apressados
percorreram a sala de jantar e logo Judith e Martha apareceram, ainda
descabeladas, desculpando-se por terem dormido além da conta. Deram
seguimento ao café da manhã, uma arrumando a mesa e a outra cortando
fatias do pão de forma, arranjando-os em cascata sobre uma bandeja de prata.
Sentaram-se à mesa após tudo estar preparado, as quatro mulheres da casa,
esperando que os homens acordassem. O dia seria longo, a mansão aguardava
pela faxina que traria nova vida à aparência de abandono instaurada nela após
tanto tempo esquecida - ou talvez propositalmente abandonada - pelos Ridell,
seus donos e senhores durante muitas e muitas gerações.
Capítulo IX

O CASAMENTO

Jeremy observava a mansão, de cima a baixo, caminhando de um lado


a outro, admirado. Após quase uma semana de trabalho a faxina foi
finalizada, e o que antes era uma casa velha e empoeirada agora reluzia como
um palacete do mais alto padrão. A área externa também fora completamente
renovada: a grama fora cortada e agora era regada como deveria ser, as
árvores foram podadas, as folhas secas removidas e a fonte devidamente
limpa. Tudo estava em perfeita ordem, de fora a dentro, do piso ao teto.
Além de todo o charme da decoração externa, Jeremy procurava um
bom lugar para construir um coreto; pensava em fazê-lo ao lado do jardim, na
lateral direita, mas achou que ficaria fora de foco. As maiores chance seriam
de posicionar o coreto ao lado da capela, onde ficaria à vista desde o portão
até a entrada da mansão.
Vagarosamente, com os braços atados para trás, caminhou pensativo na
direção da capela – o único local que não fora verificado e arrumado. A porta
de madeira adornada com detalhes em ferro estava intransponível, protegida
por um enorme cadeado do qual ninguém fazia ideia onde encontrar a chave.
Apenas duas vidraças estranhamente estreitas se espalhavam nas duas
paredes laterais. Estavam completamente cobertas de poeira, por dentro e por
fora. Jeremy esticou-se com dificuldade o mais alto que pôde, e conseguiu
ver por entre as teias de aranha, através do vidro, um pequeno altar forrado de
vermelho. Acima do altar erguia-se uma cruz branca, emaranhada em teias.
Jeremy, naquele instante, arrepiou-se por completo. Tentou forçar a vista,
mas nada se fazia enxergar dentro da capela parcialmente tomada pela
escuridão.
— Jeremy! – a voz de Albertine soou pela janela do quarto, no andar de
cima. Ela apareceu logo em seguida, e ainda conseguiu ver Jeremy
espreitando pela vidraça comprida e estreita. – O que está fazendo aí?
— Nada! – ele respondeu com pressa, retornando à frente da casa. –
Estava apenas vendo se vale a pena arrombar o cadeado.
— É só uma velha capela, deixe-a em paz.
— Sim. Uma velha capela. É melhor deixá-la mesmo em paz.
— Venha até aqui, vamos escolher o sabor do nosso bolo!
O casamento, o grande acontecimento, já estava sendo cuidadosamente
arranjado. Rosa havia sugerido um bolo de massa branca coberto de glacê cor
de creme, com pétalas de flores amarelas arranjadas ao redor. Albertine
preocupava-se com o vestido que usaria; não possuía nenhum vestido que já
não houvesse usado, e não achou que devesse gastar muito adquirindo um
novo. Ela era muito boa costureira, por isso estava quase certa de que
reconstruiria um de seus antigos vestidos em um completamente novo e
formidável vestido de casamento.
Ficou resolvido que não haveria cerimônia religiosa, mesmo com o
desacordo de Rosa que dizia que um casamento sem a aprovação de Deus não
era essencialmente correto. Estavam preparando apenas uma pequena festa
para eles mesmos, na própria área externa da mansão, que seria decorada com
buquês e fitas de seda. Para o bufê seriam preparados petiscos, salgadinhos
fritos, doces caseiros e um peru assado acompanhado de arroz. De fato,
estariam comemorando não apenas uma ocasião especial, mas sim três. O
aniversário de Jeremy estava se aproximando, assim como o de Albertine,
que nascera pouco mais de um mês depois do rapaz, por isso optaram por
reunir todos os festejos em um só evento. Estavam bem cientes de que este
casamento seria apenas figurativo, dado o fato de que um enlace matrimonial
deveria ser processado em cartório e em seguida celebrado em cerimônia
religiosa. Nenhum dos dois, de fato, levava estas regras muito a sério. Teriam
um ao outro e nada mais importava.

Na manhã do grande dia, muito cedo, o vai e vem da cozinha à sala e da


sala aos quartos já estava iniciado. Albertine permanecia trancada no quarto
aplicando os últimos reparos e detalhes a seu vestido, enquanto Rosa, Judith e
Martha cozinhavam o bufê, decidindo entre si quanto tempero aplicar ou não
a cada receita. A decoração estava sendo arrumada por Jeremy, Robert e
Thomas, e embora soubessem que não eram as mais jeitosas pessoas neste
quesito, ficaram orgulhosos ao fim do trabalho. Haviam fincado oito estacas
compridas no solo, em pares, unindo-as com faixas de tecido branco,
formando um corredor onde a mesa seria posta. No topo de cada estaca um
buquê amarelo foi posicionado de maneira espaçosa, formando a ideia final
de que fossem pequeninas árvores de copa florida. Já passava do meio-dia
quando a decoração foi finalizada, mas tanto as empregadas quanto Albertine
pareciam estar ainda bem longe de darem como prontas suas tarefas.
— Albertine? – disse Jeremy após bater três vezes na porta do quarto.
— Sim?
— Ainda não acabou?
— Não! E ainda não permitirei que entre! Você sabe que dá azar
quando o noivo vê o vestido antes da hora.
— Sim, sim, sei. Só queria saber se já estava pronta.
— Quase. Não levarei mais que meia hora, prometo!
Impaciente, ele voltou a descer as escadas para esperar do lado de fora.
Estava exageradamente cauteloso a não sujar suas roupas, andando sem
encostar-se em coisa alguma. Vestia um terno cinza-chumbo, com uma
alvíssima gravata borboleta em volta do colarinho. Os cabelos pretos e lisos
haviam sido penteados para o lado, algo que ele não costumava fazer.
No momento em que sentiu o solado de seu sapato tocar o solo da área
externa, viu a carruagem chegando de volta da vila; um dos criados fora
enviado para trazer Ellie, que havia sido avisada alguns dias antes sobre a
comemoração. Ela desceu do veículo, desajeitada, caminhou um tanto
cambaleante sobre a grama até a entrada da casa, cumprimentou o amigo e,
como era esperado, derramou-se em elogios sobre a mansão e sobre como a
decoração estava agradável. Ao menos foi uma distração para Jeremy,
enquanto Albertine continuava trancafiada em seu quarto.
— Com licença, meus jovens! – era Rosa atrás deles, abrindo caminho,
sustentando com dificuldade uma bandeja contendo um gordo peru assado e
apetitosamente dourado.
O cheiro atiçou o estômago dos dois. Logo em seguida passaram
Martha e Judith carregando pratos, talheres e taças, e em quatro ou cinco
voltas a mesa estava posta e impecavelmente atraente.
— Temos tudo pronto, agora só falta a noiva!
Todos largaram-se em risos ao comentário de Jeremy. Estavam apenas
esperando que ela se juntasse a eles para que se iniciasse o banquete.
Ocasionalmente, um ou outro erguia os olhos ao céu, preocupados com
algumas nuvens escuras que se aproximavam, desejando que apenas
passassem sem derramar chuva por lá. Tudo seria posto a perder caso ao
menos uma leve chuva começasse a cair; talvez se Albertine não demorasse
tanto poderiam comer rapidamente, reunindo-se em seguida na sala principal
ou na sala de música para degustar alguma bebida e cortar o bolo, que não
havia sido trazido para fora.
A conversa com Ellie fluiu naturalmente durante a espera. Falavam
sobre como estava a vila, sobre a loja de souvenirs – para visitante nenhum –
que instalara-se no prédio do antigo escritório, e vez ou outra Ellie perdia-se
em suas falas enquanto observava um detalhe da mansão que lhe chamava o
interesse. Em uma destas mudanças de olhar ela avistou aquilo que todos
ansiosamente esperavam.
Lá estava Albertine, de forma angelical, prostrada diante dos degraus da
varandinha. Todos os rostos instantaneamente focaram-se nela, que trajava
um vestido justo, muito branco, de ombreiras macias e sem mangas. Seus
braços de aparência frágil ficaram à mostra até os cotovelos, de onde partiam
delicadas luvas brancas. Ela sorria de maneira cintilante, e seus olhos verdes
reluziam toda sua felicidade.
Em passos curtos e acanhados, Jeremy foi até ela e estendeu-lhe a mão
direita. Ela respondeu com o mesmo ato; os dedos tocaram-se e entrelaçaram-
se. Os convidados quase puderam sentir o amor fluindo por entre os dois.
— Achei que tivesse desistido – ele disse de forma rouca.
— Jamais desistiria.
Seguiram juntos até a mesa, exalando alegria e pureza. Albertine
cumprimentou Ellie e todos os outros como se nunca os houvesse visto antes,
mesmo os empregados com quem conversara a menos de uma hora. O aroma
de todo aquele banquete açoitava os estômagos de todos os ali presentes, e
sem muito refinamento puseram-se a servir seus próprios pratos. Sempre
preocupados com as nuvens escuras sob suas cabeças, os olhares ora
viravam-se aos pratos, ora ao céu ameaçador.
Sem demora a tarde foi se gastando, a mesa do banquete já desocupada
e a comemoração transferida à sala de música. Algum tempo depois, o bolo já
se mostrava parcialmente inexistente. Estavam todos sentados em roda
divertindo-se ao som das maravilhosas notas de Chopin, que Albertine
talentosamente tocava no grande piano em um canto da sala. A
comemoração, regada ao mais fino vinho que Jeremy conseguira encontrar na
adega, parecia não estar próxima do fim, mesmo diante do incessante
escurecimento do céu, trazido pela inevitável chuva iminente e pela chegada
da noite. Ellie, porém, assustou-se num salto ao conferir as horas em seu
relógio de bolso; já passava das cinco, era hora de partir.
Sem demora Jeremy ordenou que Robert levasse a amiga de volta à vila
antes que escurecesse, mesmo em meio às dezenas de pedidos recusados dele
e de Albertine para que Ellie ficasse, que se hospedasse lá naquela noite.
Segundo ela, a primeira noite do casal deveria ser respeitada e privada só a
eles, e prometeu que em breve passaria um fim de semana em companhia aos
dois. As despedidas exigiram rapidez, e em dois minutos a carruagem já
atravessava os portões da mansão rumo à floresta. Ellie acenava pela janela,
desajeitada como sempre fora, recebendo o aceno delicado de Albertine em
troca. Thomas fechou os portões e pôs-se a ajudar as criadas enquanto
recolhiam os pratos e talheres espalhados à mesa. Albertine insistiu para
ajudar em todo o serviço, mas Rosa, com aquela autoridade rígida e ao
mesmo tempo maternal que Jeremy conhecia tão bem, disse-lhe que não se
preocupasse com mais nada naquele dia.
— Vá, vá já para dentro, não quero vê-la com sequer um talher sujo nas
mãos – ela dizia enquanto empurrava o casal para dentro.
— Está certo, Rosa. Ao menos irei à cozinha preparar um pouco de chá.
— Muito bem, então. Ajude-a, Jeremy!
— Claro que sim! – ele respondeu com ar cínico.
O chá de canela foi preparado por Albertine em meio ao vai-e-vem das
criadas trazendo os utensílios de volta para dentro. O resto da tarde já havia
dado espaço à noite e nos arredores da casa tudo já estava tomado pela
escuridão. A chuva, que desde cedo ameaçava destruir a festa de casamento,
só veio a acontecer após todos já estarem protegidos dentro da casa, quando
as xícaras tilintavam nos pires após cada gole no chá de cor avermelhada.
— Albertine, não é nada contra seus dotes culinários, mas este chá está
péssimo! – Jeremy disse sorrindo.
— Não está tão ruim assim, está, Rosa? – ela retrucou entregando a
xícara para que a governanta desse o seu veredicto.
— Hmmm... – Rosa bebericou o líquido, apertando os olhos em sinal de
desaprovação. -Na verdade está um pouco forte, você colocou canela demais,
basta apenas colocar mais um pouco de água e tudo estará sob controle.
— Eu disse! – Jeremy retrucou enquanto afastava a xícara para o centro
da mesa da cozinha, à qual estavam sentados para evitar mais sujeira na sala
de jantar.
Judith e Marta entraram no recinto, as roupas levemente molhadas pelas
grossas gotas de chuva.
— Tudo já foi trazido para dentro, Rosa. Já podemos fechar as portas?
— Não podem fechar as portas, Robert ainda não retornou! – Rosa
respondeu de forma preocupada enquanto despejava uma pequena quantidade
de água fervente no bule de chá.
Martha espiou através de uma das janelas de vidro; a chuva parecia
intransponível quando aliada ao manto negro daquela noite.
— Não retornou, e se bem o conheço não retornará mais hoje. Robert
tem familiares na vila, pode se virar por lá – disse a empregada, ao mesmo
tempo em que se preparava para lavar os pratos e panelas empilhados na pia.
— Muito bem, então. Judith, feche as portas, por favor. – Judith
assentiu com um movimento de cabeça e deixou a cozinha com seu andar
apressado. – Testei os aquecedores e infelizmente descobri que estão
quebrados. Vou preparar um caldeirão de água quente para que tomem
banho, Jeremy e Albertine. Subam ao quarto se quiserem, eu e Martha
deixaremos tudo em ordem por aqui. Preparei o quarto maior para vocês, as
roupas de cama estão do lado direito do guarda-roupa, os lençóis e
travesseiros do lado esquerdo e...
— Rosa, não se preocupe conosco, está tudo bem! – Jeremy a
interrompeu.
A governanta retomou o fôlego e caminhou na direção do casal; girou-
os pelos ombros e pôs-se a guiá-los à sala.
— Vão, subam. Em poucos minutos levarei a água de seus banhos.
Jeremy sentiu algo diferente no tom da voz de sua quase mãe. Algo a
perturbava, ou ao menos a incomodava a ponto de se deixar demonstrar.
— Albertine, vá antes de mim. Não demorarei a subir.
A moça não questionou, facilmente notando que seu agora marido
gostaria de falar a sós com a governanta; apenas sorriu, acenou em despedida
para Rosa, e iniciou sua subida com seu jeito delicado de não fazer som
algum ao pisar em cada degrau. Jeremy certificou-se de ouvi-la fechando a
porta do quarto.
— Rosa, o que está havendo? – disse o rapaz, segurando as mãos dela,
quentes e macias, entre as suas.
— Não está havendo nada, Jeremy – Ela respondeu secamente.
— Vamos, Rosa, eu a conheço muito bem e sei quando algo está errado.
Ela moveu os olhos claros por toda a face de Jeremy, e duas pequenas
lágrimas escorreram pelas maçãs coradas.
— Nada está errado – disse em meio a um choramingo de felicidade. –
Só estou um pouco perdida com tudo isto. Quero dizer, toda esta mudança, a
nova casa, a nova vida... sua nova vida inclusive. É tão... surreal.
— Tudo vai ficar em perfeita ordem em breve, você verá!
— Mas tudo já está muito bem, Jeremy. Temos esta maravilhosa casa,
temos Martha, Judith, Thomas e Robert, e agora Albertine. Você e Albertine
juntos!
— É assustador às vezes lembrar que ela está aqui, que está me
esperando no quarto. Jamais imaginei que fosse acontecer, jamais ao menos
imaginei algo assim – retrucou Jeremy lançando um olhar rápido ao andar de
cima.
— Ela é uma moça maravilhosa. Linda e maravilhosa. Vocês serão
muito felizes.
— Já somos, Rosa.
— Venha aqui, deixe-me dar-lhe um abraço.
Jeremy sentiu aqueles braços frágeis apertarem-lhe os ombros; era
como o abraço da mãe que ele nunca conhecera, era o acalento que seu pai
nunca pudera oferecer, e além de tudo, era como a bênção de casamento que
ainda lhe faltava para deixar aquele dia ainda mais completo.
— Vamos preparar a água de banho – disse ele.
— Não se incomode com isso, eu posso levar até o quarto.
— Deixe-me ajudá-la, não vai levar mais que dez minutos.
A água ferveu em um caldeirão grande, de bordas grossas, sob o fogo
vindo da lenha que ardia abaixo dele. Jeremy segurou-o pela alça que não
parecia tão resistente, despediu-se de Rosa e subiu as escadas, de forma
rítmica, com dificuldade causada pelo peso da água. Andou pelo corredor até
chegar em frente ao quarto que, a partir daquela noite, seria seu e de sua
amada Albertine.
Os nós de seus dedos magros bateram levemente na porta antes que
entrasse; Albertine estava sentada à penteadeira, esperando-o com as mãos
repousadas no colo.
— Desculpe-me pela demora, a água demorou a ferver. É uma pena que
os antigos aquecedores estejam todos quebrados
— Não se preocupe. Eu estava aqui admirando este quarto. Não lembro
de tê-lo visto antes tão bem arranjado e decorado.
— Eu pedi a Rosa que decorasse para você. Quero que tudo seja
perfeito.
— Oh, Jeremy. Você sempre me deixa encabulada!
— Já disse que não há motivo pra isso. Tudo aqui é seu - ele respondeu
enquanto caminhava até o banheiro do quarto, carregando em passos pesados
o caldeirão de água quente. – Deixe-me preparar a banheira. Prefere ir
primeiro?
— Não, pode ir antes de mim. Ainda preciso trocar este vestido e
escolher a roupa de cama...
— Tudo bem. Os seus roupões estão no guarda-roupas.
Metade da água do caldeirão foi despejada na banheira de cerâmica cor
de creme, para ser misturada com água fria. Logo que sentiu a temperatura
adequada, Jeremy mergulhou o corpo despido; sentiu os músculos relaxando
de forma progressiva e agradável. Os ossos doíam, como era de costume em
dias frios, mas naquele momento tudo estava em tão bom ritmo que ele nem
deixou-se queixar das malditas dores.
Em curtos minutos já estava envolto em seu roupão azul-marinho e de
pantufas felpudas, deixando o banheiro. Albertine também usava um grande
roupão amarelo-pálido. Estava esperando em frente à janela do quarto,
observando as gotas de chuva escorrerem pelo vidro. Seus olhos, fixos em
um ponto específico, pareciam atraídos por algo do lado de fora.
— Pode ir agora – Jeremy disse, fazendo com que Albertine tomasse
um pequeno susto. - Vá antes que a água esfrie!
— Tudo bem, já estou indo – ela disse instantaneamente, fechando as
cortinas.
Por algum motivo, Jeremy sentiu-se curioso em saber o que havia do
outro lado da janela. Parou em frente a ela e reabriu as grossas cortinas; não
havia absolutamente nada lá fora além de trevas. Os grossos pingos
chocavam-se contra o vidro, formando figuras indefinidas conforme
escorriam. As gigantescas nuvens negras cobriam o céu como um carpete,
impedindo-o de se mostrar por completo naquela noite. Vez ou outra ouvia-se
um trovão distante, anunciado por um relâmpago que iluminava por completo
o quarto, que agora encontrava-se à meia luz. O vento soprava com tamanha
força que fazia os vidros tremularem ao sabor de sua dança noturna.
Jeremy agora estava exatamente como Albertine, alguns minutos atrás.
Seus olhos fixaram-se em um ponto inexistente do outro lado da janela;
parecia hipnotizado pelas gotas desfazendo-se em frente ao seu rosto. Por um
momento passou a ouvir apenas o silêncio. Não havia mais o som da chuva
caindo ao telhado, nem o som dos trovões distantes. Tudo estava quieto.
A visão de Jeremy passou a se desfocar segundo após segundo. Ele
agora via apenas um borrão à sua frente; os olhos arderam e foram trazidos
de volta à realidade quando um raio prateado rasgou as nuvens negras e
reluziu por toda a imensidão da floresta. As pernas do rapaz cambalearam e
seu estômago paralisou congelado quando um rosto, uma face feminina,
pálida e fantasmagórica, apareceu refletida no vidro, desaparecendo na
escuridão tão rápido quanto aparecera. O corpo de Jeremy permaneceu
imóvel, incapaz de reagir. Suas entranhas ainda gelavam quando sentiu, para
completar a sensação de horror, as pontas de cinco dedos tocando-lhe os
ombros.
— Jeremy?
O susto desfez-se com um soluço e Jeremy virou-se; era Albertine quem
estava às suas costas.
— O que está fazendo? Parece assustado!
— N-não foi nada... eu só...
— O quê?
— Eu... ah, não é nada.
— Tudo bem, então.
— Você já se banhou? – Jeremy questionou espantado
— Sim! Ainda estou suja? – ela respondeu sorrindo.
— Não, de jeito nenhum. Você entrou há menos de dois minutos!
— Não, Jeremy! Acho que gastei quase meia hora lá dentro!
— Mas... você entrou e... eu...
— Você está bem?
— Claro, estou sim. Devo ter comido muito bolo.
— Então venha, vamos para a cama.
Jeremy apagou a lamparina e acompanhou sua esposa até a confortável
cama forrada de branco. Deitaram-se abraçados, frente a frente, aquecendo-se
contra o frio que tomava conta de tudo. O silêncio imperou no quarto e nos
dois corpos quentes. O perfume dos cabelos de Albertine estonteava os
sentidos de Jeremy: era impossível resistir a alguém tão próximo da
perfeição. Suas mãos entrelaçaram-se, os olhos encontraram uns aos outros
na pouca luz que vinha da janela. Os lábios tentavam falar, mas não
conseguiam evitar a ânsia de juntarem-se, de aquecerem-se da mesma forma
que as mãos se aqueciam.
— Albertine? – Jeremy sussurrou, delicadamente, ao ouvido dela.
— Sim? – ela respondeu repleta de ternura.
— Eu te amo.
A resposta foi um longo beijo de amor, de amor verdadeiro, de carinho
e desejo. As respirações tornaram-se, pouco a pouco, ofegantes; os lençóis
ardiam, o calor queimava em forma de paixão guardada por tantos anos.
A chuva continuou sua trajetória enquanto o amor se consumia naquele
quarto. Sussurros – e não apenas os dos dois jovens amantes - ecoavam pelas
paredes da casa, enquanto a noite imperava absoluta ao seu redor.
Capítulo X

EPITÁFIO

Jeremy acordou com a garganta mais seca que o comum, e naquele


momento lembrou-se que não ingerira nem sequer um copo d’água no dia
anterior. Sentou-se de maneira preguiçosa na cama macia, ainda esperando
que sua visão se acostumasse à claridade do quarto, que àquela hora da
manhã já estava sendo banhado pela luz de um sol muito vivo. Albertine não
estava mais na cama, nem mesmo em parte alguma do recinto. Os joelhos
fraquejaram quando o rapaz pôs-se de pé; foi até o banheiro, lavou-se, vestiu
uma roupa qualquer e desceu.
Ao chegar à sala de jantar ele deparou-se com um farto café da manhã,
porém não havia ninguém à mesa. Chegando na cozinha, lá estavam
Albertine, Rosa, Martha e Judith, sentadas à pequena mesa de madeira.
— Bom dia, mulheres!
— Bom dia, Jeremy! – responderam as quatro, quase em um coro.
— O que fazem de pé tão cedo?
— Na verdade, Jeremy, você é que demorou demais para acordar –
Rosa retrucou sem dar-lhe muita atenção.
— E se demorasse um pouco mais, não iríamos esperá-lo para o café –
Albertine complementou de forma simpática.
— O que estamos esperando, então?
A refeição matinal foi consumida sem pressa, entre conversas e
saborosos risos. Jeremy falou sobre seus planos em construir um belo coreto
ao lado da capela, ideia que foi aprovada com entusiasmo por todas elas. Já
Albertine, por sua vez, disse que iria acompanhar Rosa e as outras até a vila,
onde iriam comprar os mantimentos da semana, logo após o café. Robert
ainda não havia retornado, assim, Thomas seria o guia desta vez.
Cerca de meia hora após o café, todas elas já se preparavam para a
saída.
— Não demorem muito! – gritou o rapaz, parado à porta, enquanto as
mulheres entravam uma a uma na carruagem.
— Chegaremos antes das duas da tarde – Rosa respondeu.
— Cuide de Albertine!
— Ela não é um bebê, Jeremy! – ela voltou a falar, em deboche.
— Tenham cuidado!
Este último pedido não chegou a ser ouvido por elas, pois a carruagem
já ultrapassara os limites da propriedade. Thomas desceu e fechou os portões,
enquanto Jeremy já fechava a porta da frente às suas costas. Estava agora na
sala principal. Não havia se dado conta, antes que todos saíssem, que estaria
sozinho na mansão, como da primeira vez que atravessara aqueles portões.
Manteve-se inerte como uma estátua de cera ao lado das escadas. Por um
momento sentiu-se tranquilo e seguro, já que aquela sala agora estava clara e
viva, e não escura e triste como antes. Logo deixou esvaírem-se estes
pensamentos e dirigiu-se de volta ao quarto; talvez pudesse descansar um
pouco mais até que todos retornassem.
A porta do quarto rangeu de forma estranha. Ele entrou, largou-se na
cama e tentou relaxar, em vão. O ambiente estava claro demais, e seus olhos
não se permitiam permanecer fechados em um dia tão agradável. Jeremy
levantou-se, então, com um só salto. Resolvera procurar algo para se distrair.
De fato, ele sabia que aquele tempo sozinho seria como o tempo livre de uma
criança em um parque de diversões: as opções eram inúmeras, os brinquedos
incontáveis. Aquela imensa casa ainda estava sumariamente inexplorada.
De forma aleatória, Jeremy passou a escolher a qual ambiente iria
primeiro. Pensou na biblioteca, mas logo sentiu que não estava interessado
em ler. Pensou na adega, no porão, na galeria... mas nada parecia atraente o
suficiente. Ainda sem decisão tomada, caminhou vagarosamente pelo
corredor, seus passos produzindo sons rítmicos, até que alcançou a escada
que levava ao sótão. Era isso que estava procurando – o sótão que visitara
apenas uma vez.
O cômodo era mal iluminado e assustadoramente empoeirado. Além
disso, parecia ainda mais silencioso do que todo o resto da mansão. A
pequena vidraça no limite da sala permitia a entrada de uma pouca
intensidade de luz, formando sombras nas paredes que, por um momento,
quase conseguiram fazer Jeremy não querer permanecer ali. Como ele havia
visto antes, dezenas de caixas e urnas amontoavam-se em todos os cantos,
tomados por teias de aranhas em véus emaranhados. Decidiu checar primeiro
as caixas, já que estavam em maior quantidade e não pareciam guardar nada
de muito importante. A primeira continha apenas velhos itens de prataria –
castiçais, lamparinas, talheres e outros objetos. Na segunda não havia nada
além de dezenas de lençóis brancos, inteiramente tomados pelo bolor que,
instantaneamente, provocou espirros a Jeremy. A terceira caixa comportava
várias roupas. Eram vestidos e camisolas, em grande maioria de cor branca e
creme. Por um instante Jeremy se questionou sobre quem teria sido a última
dona daquelas peças de vestuário feminino. Com cuidado para não espalhar o
mofo pelo ar, ele retirou um vestido muito bem dobrado em meio aos outros;
era branco, razoavelmente decotado, com mangas de renda que desciam até
os cotovelos. A cintura era justa, e a saia, de duas camadas, parecia cobrir
metade dos tornozelos. Era um belo vestido. Jeremy dobrou-o, desajeitado,
recolocando-o junto aos outros. Do lado desta, jazia uma outra caixa menor.
Jeremy ergueu uma das abas, e deparou-se com aproximadamente uma dúzia
de minúsculas roupas de bebê.
De maneira aleatória, fixou sua atenção a um dos baús que jaziam no
meio do sótão; tinha uma aparência gótica e muito antiga, a madeira
desbotava a cor preta pintada sobre ela, e os adornos de aço enferrujados
pareciam prestes a tornarem-se pó a qualquer momento. Estava destrancado.
Ao tentar abri-lo, as dobradiças resistiram. O som produzido por elas arrepiou
todo o corpo do rapaz, mas não conseguiram fazer com que desistisse.
Forçando a abertura, levantou a tampa vagarosamente; no interior havia uma
coleção de armas brancas curtas: adagas, facas e punhais. Jeremy sempre
cultivara um interesse oculto por este tipo de coleção, porém nunca sentira
motivação para iniciar uma, e naquele momento entendeu o quanto o
parentesco podia unir pessoas, mesmo que de diferentes gerações.
Pegou uma das adagas, cuidadosamente segurando-a entre as duas
mãos. Tinha três pontas, de aparência ameaçadora e cortante. Na haste do
objeto, que reluzia em prata da mais pura procedência, podiam ser vistos
detalhes em forma de ramos e flores cravados em baixo relevo. Após alguns
segundos, Jeremy encaixou o objeto exatamente na posição em que o havia
encontrado, porém, antes que pudesse retirar suas mãos do interior da urna,
sentiu a ponta cortante de um dos muitos punhais deslizar suavemente por
toda a extensão do dedo mindinho de sua mão esquerda.
— Ah, maldição! – exclamou.
O líquido, vermelho e denso, escorreu pelo dorso da mão pálida do
rapaz, formando um interessante contraste com sua pele branca. Do bolso de
sua calça ele retirou um lenço branco, e de maneira desajeitada cobriu o
ferimento de forma a estancar o sangue. Uma última gota escapou da ponta
do dedo ferido, caindo sobre um objeto dentro da urna que imediatamente
atraiu a atenção de Jeremy. Fazendo-se cauteloso para não receber outro
ferimento, ele mergulhou a mão direita por entre as armas e agarrou o item
que lhe despertara curiosidade.
Uma chave. Uma grande e antiga chave, de aparência gótica, levemente
oxidada e sem brilho. Preenchia toda a extensão da mão do rapaz.
Antes que se pusesse a bisbilhotar o sótão, Jeremy havia notado, ao lado
da porta, uma grande placa de madeira fixada à parede. Nela havia vários
pequenos ganchos, perfeitamente alinhados em três fileiras. Nos ganchos, por
sua vez, pendiam várias chaves, de todos os tamanhos e cores, marcadas por
plaquetas de metal acima delas, indicando cada local a que cada chave
pertencia. Galeria, Sala de música, Porão; estes eram alguns dos ambientes
descritos. De fato, aquelas chaves eram apenas cópias de todas as que já
existiam no molho principal, que se mantinha às mãos de Rosa. Todo e cada
ambiente da casa possuía sua própria chave, exposta na placa. Todos, exceto
um.
— Seria possível? – ele disse a si mesmo.
Antes que pudesse concluir seus pensamentos, Jeremy já descia as
escadas do sótão em passos apressados. Não tinha certeza, não entendia a
excitação que sentia ao segurar aquela chave, mas dentro de si, realmente
esperava que estivesse certo, que o motivo que a manteve isolada, quase
secreta, fosse de fato forte o bastante. Atravessou o corredor, deslizou pelos
degraus da escada principal, abriu e cruzou a porta da sala. Sentiu a grama
macia abaixo de seus sapatos recentemente engraxados. O vento assanhou os
cabelos negros, e a luz do sol fez lacrimejar os olhos de mesma cor. Ele
apertava a grande chave com uma das mãos. Direcionava-se à única unidade
não explorada daquela imensa propriedade.
Agora estava lá, imóvel, de queixo erguido, a grande e aparentemente
espessa porta da capela à sua frente. Hesitou antes que pudesse tocar o
enorme cadeado que a mantinha intransponível. Segurou-o com uma das
mãos, e o metal frio causou a Jeremy uma ligeira sensação de aflição, de
quase medo. Sentiu que deveria parar, dar meia volta e devolver a chave ao
seu lugar de descanso; mesmo que tudo ali o pertencesse, desde os portões
até os limites do muro traseiro, algo lhe dizia que não deveria atravessar a
entrada daquela construção que, desde que vira pela primeira vez, percebera
que não fazia parte do projeto original da mansão. De fato, nem mesmo tinha
a certeza de que a chave funcionaria, ou se era apenas mais um objeto de
coleção, abandonado junto às facas e adagas no sótão. Esforçou-se para
vencer a voz em sua cabeça, tentando convencer a si mesmo que não estava
fazendo nada de errado. Aquilo lhe pertencia, estava livre para ir e voltar de
onde quisesse, para entrar e sair de onde sentisse vontade, e também para
abrir e fechar qualquer porta que escondesse algo que lhe capturasse a
atenção.
A chave, então, preencheu o orifício do pesado cadeado de maneira
perfeita. O leve movimento giratório, ainda indeciso, causou um leve estalido
na tranca. Estava aberto.
O cadeado foi jogado ao chão, causando o rompimento de um pequeno
fragmento da rocha que compunha o batente. Os dedos magros tocaram a
porta e aplicaram força contra ela. O leve movimento fez a poeira, acumulada
por incontáveis anos, cair por entre a fresta já aberta. A luz do sol banhou o
interior do lugar, e os olhos de Jeremy apertaram-se mecanicamente à
inesperada descoberta que apareceu diante deles. Não era uma capela o que
adornava o jardim da mansão. Não era um altar o que Jeremy vira pela
vidraça, algum tempo atrás.
Um túmulo. Um grande e magnífico túmulo era o que aquela porta
guardava. O que antes era uma bela capela, agora se tornara um sombrio e
macabro mausoléu.
As pegadas de Jeremy projetaram-se no piso do recinto quando ele
avançou. Era razoavelmente espaçoso, porém quase vazio, exceto pelo
túmulo que se estendia quase ao espaço total entre as duas paredes laterais.
Era de mármore branco, muito bem polido, porém parcialmente encoberto de
poeira fina. Uma comprida faixa de tecido vermelho o adornava, de canto a
canto, e acima desta, uma cruz, também de mármore, complementava a
aparência fúnebre e triste que aquele recinto transmitia. Um discreto pedestal,
posicionado um pouco à frente do túmulo, sustentava uma placa de metal
dourado, contendo a imagem emoldurada de uma mulher muito branca, de
cabelos negros à altura dos ombros, seguida pelo epitáfio ao corpo que ali se
encontrava.

“Aqui descansa Dianne V. Ridell, querida amiga, esposa e mãe”.

A reação de Jeremy foi nenhuma. Estava chocado demais para sentir


qualquer outra coisa. Diante dele jaziam os restos mortais da mãe que ele
nunca chegara a conhecer. A razão que mantivera aquela porta selada e sua
chave oculta por tão longo tempo era, afinal, forte o bastante para fazê-lo se
arrepiar por completo.
Jeremy não sabia o que pensar; estava diante da resposta a uma dúvida
que, até um minuto atrás, estava destinada a perturbá-lo para sempre. Naquela
mansão, afinal, sua mãe morrera. Naquela velha casa ele passara os primeiros
dias de sua vida, e nada mais do que Rosa ou Deus ou o Diabo lhe dissessem
poderia convencê-lo do contrário. A isto encaixavam-se as roupas de bebê e
os vestidos e camisolas guardados no sótão. Tudo sobre seu crescimento e
criação agora parecia falso e duvidoso. Pensou em Joseph, em suas mentiras,
e naquele momento, pela primeira vez, sentiu a morte de seu pai, mas não por
tê-lo perdido. Desejou que o velho estivesse vivo para saber que todo o seu
legado de farsas havia sido descoberto. Sentiu que deveria novamente fechar
o que não deveria ter aberto, mas ao mesmo tempo queria ficar, permanecer
mais um pouco na presença de sua mãe, ou ao menos do que restava dela.
Estava perfeitamente explicado por que o velho Joseph jamais revelara
o local de sepulcro de sua ex esposa, mesmo com a insistência do filho, ano
após ano, para que pudesse ao menos deixar flores em sua sepultura. O
espanto agora tornava-se angústia, e o rancor que guardava pelo pai parecia
prestes a explodir dentro do peito. Ele sentou-se em um velho banco de
madeira que estava largado ao lado do túmulo, deixando a razão desaparecer
por entre os inúmeros sentimentos que o torturavam.
O barulho de correntes, então, despertou Jeremy de sua transe de
pensamentos. Levantando-se abruptamente, espiou por uma fresta em uma
das vidraças, a mesma que havia usado antes pelo lado de fora, e viu Thomas
abrindo os portões. Ligeiramente saiu do mausoléu, apanhou o cadeado
largado ao chão, selou a porta e apressou-se em se afastar dali. Decidiu que
não contaria a ninguém sobre sua descoberta, ao menos não tão cedo. Mesmo
amedrontado com tudo aquilo, sentiu-se orgulhoso por ter sido o primeiro a
descobrir um dos inúmeros segredos que a mansão, em toda sua magnitude,
ainda guardava.
Aproveitando-se do momento em que Thomas retornou à carruagem
para guiá-la para dentro, Jeremy voltou ao interior da casa e subiu em direção
a seu quarto; procurou um lugar discreto, e entre várias opções plausíveis,
depositou a grande chave do mausoléu em sua maleta, a que costumava usar
no escritório. Voltou, em seguida, ao andar de baixo, fingindo até para si
mesmo que iria à área externa pela primeira vez naquele dia.
— Posso saber por que voltaram tão rápido? Nem passou-se meia hora
desde que saíram!
— Encontramos Robert no caminho, – respondeu Albertine, saindo com
dificuldade da carruagem – e descobrimos que ele já havia ido à feira por
nós!
— Eu não acreditava que ainda existiam homens assim! – exclamou
Rosa, ainda dentro do veículo.
Robert trazia vários sacos de pano, alguns grandes, repletos de vegetais,
outros menores contendo grãos, e um último com um grande e maciço pedaço
de carne seca.
— Ajudar a levar os sacos para a cozinha faria de mim um homem
assim? – Jeremy perguntou.
— Na verdade, não estaria fazendo mais do que sua obrigação – Rosa
retrucou, ríspida.
— Vocês são tão mal agradecidas...
Nesse momento, Albertine desviou o olhar para o jovem esposo e notou
seu dedo enfaixado, um pequeno pedaço de tecido exibindo uma indiscreta
mancha escarlate.
— Jeremy, o que houve com seu dedo? – ela perguntou, aproximando-
se dele.
Por um instante o rapaz hesitou. Não queria contá-la o que andou
fazendo no sótão, talvez para não atrair a atenção dela para lá.
— Oh, isto? Foi apenas um acidente com a lâmina de barbear. Não foi
nada.
— Nada? Olhe só para isto, está encharcado de sangue! – Albertine
retrucou, precipitando-se em tentar segurar-lhe a mão ferida. Este ato foi,
entretanto, recusado com um brusco e bruto movimento de braço de Jeremy,
retraindo o membro ferido para junto do tronco.
— Já disse que não foi nada!
Albertine demonstrou seu espanto àquela atitude com um simples olhar.
Constrangida, recolheu-se para longe de Jeremy, que agora já atravessava a
propriedade pela lateral da mansão, ajudando os criados a transportar os
alimentos à cozinha. Ainda ao lado da carruagem, Rosa observava o rápido
momento de desconforto, mas fingiu que nada havia acontecido. A moça,
envergonhada demais para encarar a governanta, dirigiu-se para dentro em
passos largos, subiu ao quarto e por lá ficou até ser chamada para o almoço.
Capítulo XI

O VISITANTE NOTURNO

Albertine acordou-se, na penumbra da noite, sentindo o rosto quente e


úmido. Os olhos levaram alguns segundos para acostumar-se ao escuro.
Costumava dormir com a cabeça apoiada sobre sua mão direita, e de fato esta
era a única posição que a permitia dormir bem; era exatamente como estava
naquele momento, e era exatamente o lado direito, recostado em sua delicada
mão, que lhe passava a estranha sensação que a despertara de seu sono. Ela
então ergueu-se sem muita disposição. Olhou para o lado e viu que Jeremy
dormia de forma impenetrável e serena. Sentiu que seus dedos estavam
molhados, cheirou-os, mas não era suor. Com um salto, levantou-se da cama
e foi até a janela, abriu a cortina e estendeu o braço ao discreto facho de luz
que surgira através da vidraça. Emitiu um grunhido quase inaudível ao
perceber que sua mão direita estava banhada em sangue.
— Mas o que é isso? – sussurrou para si mesma, enquanto acendia com
dificuldade a lamparina do banheiro. Esperou até que a chama ficasse forte o
suficiente e olhou-se no espelho. Um rosto manchado de vermelho foi
refletido nele. –M-meu Deus!
A mão ensanguentada mergulhou no recipiente metálico ao lado da pia,
completamente cheio de água limpa, que inevitavelmente passou a tingir-se
de vermelho. Albertine lavava-se de forma desesperada, quase fazendo sumir
o fôlego, mas a cada movimento a maçã esquerda de sua face parecia mais
encharcada de sangue. Ela então cessou este movimento, e pôs-se a examinar
sua mão; foi só assim que percebeu um ferimento, um fino corte em seu dedo
mindinho, de onde todo o sangue estava sendo expelido.
Os grunhidos de espanto da moça despertaram Jeremy, e ao não
encontrá-la na cama, levantou-se. Saltou rapidamente para o banheiro, abriu a
porta e entrou.
— Albertine? O que está havendo?
Antes que ela pudesse responder, Jeremy assustou-se ao ver a pia
branca salpicada de vermelho vivo – uma espécie de açougue de pequena
proporção.
— Minha nossa, o que houve aqui, querida?
— Eu não sei! – Ela respondeu assustada, em voz trêmula. – Acordei e
senti meu rosto úmido e quente, então corri ao banheiro e percebi que estava
sangrando. Foi o meu dedo, veja!
— Um corte? Você se cortou enquanto dormia? – ele respondeu com
espanto, enquanto envolvia o dedo ferido em papel toalha.
— Não estava assim antes de deitar.
— Talvez haja algum objeto cortante envolvido nos lençóis!
— Não, não há nada nos lençóis, eu teria sentido antes que pudesse me
machucar. Talvez tenha sido algum dos grampos que uso para prender o
cabelo, mas esta seria a primeira vez em toda minha vida.
— Grampos? Você dorme com grampos metálicos na cabeça?
— Não só eu, como quase todas as outras mulheres, Jeremy.
— Tire-os, querida. É óbvio que foi um deles que cortou seu dedo.
— Tudo bem... vou tirá-los. Só quero que esteja ciente de que sua
esposa acordará, todos os dias, com os cabelos tão armados quanto ficariam
em uma ventania.
— Nada que uma boa escova não resolva – ele respondeu sorrindo. –
Agora venha aqui, deixe-me envolver este dedo com um pedaço de gaze. Já
estanquei o sangramento com o papel, procure não mexer muito para que não
volte a sangrar.
Permaneceram em silêncio enquanto Jeremy aplicava suas poucas
habilidades em primeiros socorros ao ferimento, ainda sentindo o peso da
cena passada na tarde anterior. Jeremy sentia que devia desculpas a Albertine,
mas tinha sido orgulhoso demais durante todo o dia para admitir isso. Ela
falou pouco nos momentos em que estiveram juntos, esforçando-se em vão
para disfarçar seu desconforto.
— Albertine... – ele sibilou hesitante. – Me desculpe pelo que houve
mais cedo... eu... eu não sei onde estava com a cabeça.
— Tudo bem, Jeremy. Não se preocupe com isso.
— Me perdoa, de verdade? – ele continuou, levando uma das mãos ao
queixo delicado da moça, erguendo o rosto dela até que seus olhos se
encontrassem.
— Claro que sim, seu bobo.
A resposta veio seguida de um doce abraço. O alívio tomou conta de
Jeremy naquele momento; ele sabia que agira da maneira errada, talvez nem
tanto pela agressividade dirigida a ela, mas sim por não ter contado sobre a
razão real do corte em seu dedo, e ainda por esconder sua incrível descoberta.
— Venha, vamos dormir. Precisamos descansar, tenho que ir à cidade
pela manhã.
— À cidade? Algo importante?
— Preciso registrar alguns documentos da casa, e também comprar
algum remédio para aplicar a este corte.
— Já que estará indo, posso acompanhá-lo?
— Claro que sim, mas acho que ficaria entediada. Imobiliária é um
assunto muito, muito chato.
— Estou pretendendo ir à igreja. Posso ficar lá enquanto você faz tudo
que precisa fazer.
— Tudo bem, então. Acordaremos bem cedo, a viagem até a cidade
dura quase três horas.
— Talvez você possa ir à igreja comigo. Gostaria de pedir a bênção ao
sacerdote, para o nosso casamento.
— Albertine... você sabe melhor do que ninguém o quanto eu desgosto
do ato de ir à igreja. Eu costumava ir apenas para acompanhá-la. Entenda
como um ato de conquista
— E agora que me tem, não pode mais fazer isso?
— Escute. Amanhã não será um bom dia para isso, certo? Estarei com a
cabeça cheia após passar horas lendo e preenchendo documentos.
— Mas, Jeremy...
— Você não vai conseguir me fazer mudar de ideia. – Ele finalizou a
conversa, dando-lhe um leve beijo na bochecha.
A noite passou ligeira, e após um reforçado e delicioso café da manhã,
o jovem casal deixou a mansão. Robert iria levá-los até a cidade, que como
Jeremy explicara a Albertine, ficava a quase exatas três horas de distância,
com os cavalos em velocidade média. Para amenizar o desconforto da
carruagem, Rosa ofereceu-lhes algumas almofadas, que no fim das contas
não foram usadas. Jeremy permaneceu disperso, e Albertine resolveu não
atrapalhar suas reflexões. Olhava fixamente pela estreita janela, os sopros do
vento quebrando-se em seu rosto. Era a primeira vez que ele deixava a
mansão, que atravessava mais uma vez aquela singular floresta de altíssimas
árvores, desde o casamento. De alguma forma a ele desconhecida, a floresta
trazia-lhe sensações que ele não conseguia explicar. Sentia como se não
estivesse sozinho, como se centenas de pessoas estivessem ali, ao seu redor.
Porém, ao mesmo tempo, uma razoável dose de medo corria em suas veias ao
passar por lá. Era algo que fugia de sua compreensão, e no fundo ele sabia
que não queria realmente entender.
— Está tudo bem, Jeremy? – perguntou Albertine.
— Sim, tudo bem. Não deveria estar?
— Parece preocupado.
— Oh, não. Não estou preocupado com nada. Eu só não gosto de
florestas, só isso.
— Mas moramos bem no meio de uma!
— Eu sei disso, mas procuro não pensar a respeito. A pior parte é ter de
atravessá-la para ir a qualquer outro lugar.
— Logo nos acostumaremos, você vai ver.
— Nos acostumaremos? – ele questionou, aplicando um leve tom de
destaque à primeira palavra.
Albertine sorriu pelo canto dos lábios e fez da pergunta uma retórica.
Recostou-se próxima à sua janela e, da mesma maneira que fazia Jeremy,
pôs-se a observar as árvores ficando para trás.

A viagem seguiu tranquila, e acabou antes do tempo previsto. As


estradas mantiveram-se milagrosamente inteiras depois das chuvas, assim os
cavalos não encontraram empecilhos para galopar em todo seu vigor. Jeremy
retirou seu relógio de bolso dourado, verificou as horas e tornou a guardá-lo.
Ainda não eram dez da manhã, o que deixou Albertine contente por terem
chegado a tempo da missa das dez horas.
As ruas estavam repletas de pessoas indo e vindo, algumas devagar,
outras com pressa, cumprindo sua rotina comum. As casas, depois da época
de chuvas, pareciam pintadas a giz; de algumas delas saíam e entravam
crianças, adultos e velhos. Era tudo estranhamente mecânico. O barulho do
vozerio era algo que ninguém naquela carruagem estava acostumado a ouvir.
A cidade não era muito grande e nem mesmo economicamente importante
àquela região, mas parecia gigantesca se comparada ao vilarejo onde
viveram. Próximo da quietude das propriedades da mansão, era como um
grande inferno formado de tijolos e veículos. Talvez fosse apenas impressão,
ou apenas uma tentativa de escapar de sua realidade isolada, mas Jeremy, ao
olhar para os rostos que passavam pela janela, sentia certo tom de tristeza em
cada um deles.
Albertine já avistava a indiscreta torre da igreja, perfurando o céu como
uma gigantesca ponta de flecha. O sol brilhava mais timidamente naquele
momento, e este era o primeiro sinal de que o clima estaria prestes a mudar.
Robert parou com habilidade a carruagem em frente à grande igreja, que se
destacava entre tudo que existia naquele largo espaço, onde uma pequena
praça se disfarçava por entre poucas árvores de copa baixa. Jeremy desceu
elegantemente, circundou a carruagem em poucos passos, e abriu a portinhola
para que Albertine saísse. Estendeu-lhe a mão, ainda exibindo o curativo no
dedo mindinho, e sua esposa segurou-a com sua também ferida mão. O
sapato de salto baixo chocou-se contra o chão, marcado por centenas de anos
de chegadas e saídas.
— Aqui estamos – ele disse, indicando a porta da catedral.
— Tem certeza de que realmente não pode entrar lá comigo?
— Albertine, já conversamos sobre isso – Jeremy respondeu com
doçura na voz.
Ele havia falado realmente sério ao dizer que não gostava de igrejas. Nunca
havia sentido real interesse em estar em uma, mesmo em sua época de
criança. Desde a morte de seu pai, por algum motivo, não sentia apenas falta
de vontade, mas também uma discreta repulsa por qualquer assunto ligado a
religião.
— Tudo bem, não custou nada tentar mais uma vez.
Jeremy sorriu e em seguida beijou a mão de Albertine, que
estranhamente não vestia luvas como sempre fazia ao sair de casa.
— Eu acho, e realmente espero, que não levarei mais que duas horas
para resolver tudo. Estarei esperando-lhe aqui nesta praça, caso você ainda
não tenha deixado a igreja.
— Muito bem. A missa não dura todo esse tempo, então, possivelmente
já estarei aqui quando voltar.
— Até logo, querida. Tome cuidado.
Albertine esperou até que Jeremy retornasse ao interior da carruagem e
Robert continuasse o trajeto até a imobiliária. Após observar a figura magra
do cocheiro, sentado à guia, sumir numa esquina adiante, Albertine virou-se
e, por um instante, sentiu-se minúscula em frente àquela imponente catedral.
Estava diante dos degraus que levavam até a entrada. Eram de mármore
branco, assim como os pilares cilíndricos no topo da escada. A porta do
templo exibia, escancarada, seu mais puro carvalho; por ela entravam fiéis
das mais variadas etnias e idades. Albertine pôs-se então a subir
vagarosamente, seguindo o ritmo de todos os outros. Da entrada ela já pôde
ouvir os murmúrios, misturados aos passos ecoados. Havia duas compridas
fileiras de bancos, ocupados de forma escassa, essencialmente por senhoras
cobertas por xales bordados, algumas de pé, algumas ajoelhadas, dispersas do
mundo e concentradas em suas orações. Não havia ainda nenhum sacerdote
ou qualquer outro membro da igreja por perto, e por isso Albertine se aliviou
da preocupação de parecer atrasada ou apressada. Com um rápido olhar,
examinou e escolheu o melhor lugar para sentar; desde pequena ela preferira
os bancos do meio ao invés dos frontais ou traseiros, reservando-se ao direito
de ficar longe das beatas que ocupavam os bancos próximos ao altar, e
também das fofoqueiras que sentavam-se ao fundo, para que suas conversas
não fossem ouvidas. Já acomodada, Albertine deixou que seus olhos
apreciassem toda a beleza que a circundava. Os vitrais, espalhados por toda a
extensão das paredes, mesmo em contato com a suave luz do sol, pareciam
acesos em suas infinitas cores e figuras, derramando formas coloridas ao
chão.
Nem passaram-se cinco minutos até que uma fileira de três pessoas,
vestindo batinas de um lilás muito forte, surgisse de um dos cantos da igreja.
Caminhavam sem pressa, os pés em sandálias de couro surgindo, passo após
passo, pela barra de suas vestimentas. O do meio era, sem dúvidas, o padre
que celebraria aquela missa; era o único que carregava nos ombros uma faixa
verde-escuro, assim como um cálice dourado em suas mãos enrugadas.
Posicionaram-se lado a lado, por trás do altar forrado do mesmo lilás de suas
vestes. O cálice fora depositado sobre o altar, deixando livres as mãos do
sacerdote que, lentamente, juntou-as em sinal de oração.
— In nomine patris, et filii, et spiritus sancti. Amen.
A voz grave ecoou através do silêncio. Aquelas palavras, no latim que
Albertine sempre sonhara em aprender, deram início à missa e soaram a ela
em um timbre estranhamente familiar. Quebrando o silêncio que mais uma
vez surgiu, os outros dois eclesiásticos entoaram palavras desconhecidas, em
canto gregoriano, dando continuidade à cerimônia que, a partir daquele
momento, estendeu-se por pouco menos de uma hora.

Exatamente após o último fiel deixar a catedral, Albertine levantou-se


de seu banco. Fizera-se demorar de propósito, a fim de se confessar, algo que
não fazia desde a morte de seus pais. Os ajudantes já haviam recolhido-se, e
somente o padre ainda permanecera parado ao altar, como se já esperasse a
moça. Ela chegou até ele e, tímida, desejou-lhe um bom dia. O padre
respondeu-a num tom que, a ela, soou como nostalgia. Sem o uso de muito
esforço, centenas de imagens piscaram em sua mente, e uma generosa fatia de
sua vida, há muito esquecida, tomou conta dos pensamentos de Albertine. Em
certo momento, a luz de um dos vitrais iluminou metade do rosto do Padre,
revelando uma funda cicatriz que surgia do fino queixo e estendia-se até
pouco abaixo do olho esquerdo.
— Padre Jullian! – ela exclamou, um pouco mais alto do que deveria. O
senhor, em seus sessenta e poucos anos, sorriu em dentes amarelados.
— Albertine... que grande surpresa reencontrá-la aqui, após tantos anos!
— Estou muito feliz em revê-lo também! Nunca teria imaginado que
ainda fizesse parte desta comunidade!
— Depois de velho, perdi toda a energia necessária para aquelas longas
viagens que costumava fazer – ele respondeu, levando uma das mãos às
costas, em sinal de cansaço. – Venha, sente-se aqui um pouco.
Sentaram-se no primeiro banco, bem em frente ao altar. Os vitrais agora
pareciam mais apagados que antes, e nada mais ouvia-se além do barulho do
movimento externo, abafado pelas grossas paredes do templo.
— E então, o que a traz aqui após, o quê, meia década? – continuou o
velho padre, com sua voz um tanto rouca, os olhos negros refletindo o brilho
das velas do altar.
— Estava sentindo falta de um pouco de paz. Há muito que não venho à
igreja.
— Então, posso ter a ousadia de perguntar a quanto tempo está casada?
– ele apontou para o anel de casamento que brilhava na mão esquerda de
Albertine. Ela sorriu, e com a outra mão, passou a girar o anel sobre o próprio
eixo.
— Não faz muito tempo. Sinto-me um tanto envergonhada em dizer,
mas não nos casamos na igreja. De fato, nem mesmo somos casados perante a
lei – ela respondeu em tom recolhido, esperando receber um sermão sobre as
leis de Deus e sobre as leis dos homens.
— E você está feliz? Quero dizer, ele a faz feliz?
Albertine observou o anel e lembrou-se do dia em que o recebera de
Jeremy; sentiu o coração bater mais rápido, mais forte.
— Nunca fui tão feliz em minha vida.
— Então, é isto o que importa. Não só porque não concretizaram uma
cerimônia religiosa, não quer dizer que Deus não os tenha abençoado. Vê isto
aqui? – ele agora sacudia os braços ao alto – Nada mais é do que cimento,
madeira e pedra.
— Eu havia esquecido completamente de como gosto de sua maneira de
pensar.
— E eu sempre me lembro de como era bom tê-la aqui, junto com sua
família, todas as semanas. Fiquei sabendo sobre seus pais, há algum tempo
atrás. Pobres Albert e Georgia. Que Deus tenha suas almas.
— Ainda é muito difícil para mim. Foi tudo muito repentino.

-Sei muito bem como se sente, também perdi meus pais em um


incêndio, durante um saqueamento à vila em que nasci. Consegui escapar por
uma janela, mas eles ficaram presos dentro de nossa casa. Eu era apenas um
menino, não entendi no começo o que realmente acontecera.

— Então ficou sozinho?


— Fui levado para uma comunidade religiosa, e em seguida adotado
por padres de um mosteiro. De certa forma, agradeço por tudo, pois estou
certo que não estaríamos aqui hoje, caso nada tivesse sido como foi. Deus
sempre escreve nas entrelinhas. Sempre há uma razão para tudo.
Albertine pareceu dispersa antes de responder a este último trecho da
conversa.
— Eu também penso assim, às vezes. Não estaria vivendo com Jeremy
hoje, se tudo não tivesse sido como foi.
— Jeremy... você está casada com aquele menininho que a
acompanhava às missas, mas que passava todo o tempo mudando de lugar?
— Oh, meu Deus. Sim!
— Ele incomodava a todos, indo e vindo a cada dois minutos por entre
os bancos.
— Eu não lembrava mais de nada disso!
A conversa seguiu no tom de divertimento, repleta de memórias
perdidas e citações da infância de Albertine. Aquele senhor, de corpo idoso e
mente jovial, fora o grande responsável por quase toda a educação artística
daquela jovem mulher, através das oficinas oferecidas pela igreja. Com
grande empenho, o Padre Jullian orientava um pequeno grupo de canto, um
de piano, e ainda um de pintura – dos quais Albertine, desde o início,
mostrara-se intensamente em destaque em meio às outras crianças. Ela
alcançava as mais difíceis notas vocais, executava com perfeição as mais
complexas peças de piano, e pintava as mais exuberantes telas.
Ocasionalmente, nas épocas em que Jullian era convocado a uma
missão eclesiástica, era sem nenhum receio que depositava sua total
confiança em Albertine, para administrar as aulas enquanto estava fora.
— Meu Deus! – exclamou a moça, num salto. -Estou demorando-me
mais do que deveria, Jeremy já deve estar me esperando. Pretendia confessar-
me, mas agora não resta mais tempo.
— Oh, mas que pena – Jullian respondeu levemente desapontado. –
Venha, a acompanharei até a porta.
Em passos lentos chegaram até a entrada da catedral, e do topo da
escadaria, Albertine avistou Jeremy sentado a um banco de pedra, bem no
meio da praça. Parecia estar aguardando impacientemente, e levantou-se
imediatamente assim que a figura de Albertine surgiu alguns metros adiante.
— Padre Jullian, foi uma imensa felicidade reencontrá-lo após tantos
anos.
— Igualmente para mim, minha cara. Espero que retorne sempre que
possível!
— Farei isso, sim. E da próxima vez trarei Jeremy comigo.
O marido de Albertine, agora usando o sobretudo preto que havia
trazido na carruagem, para caso o tempo mudasse, já aguardava por ela no pé
da escadaria.
— Jeremy, venha até aqui um minuto! – ela quase gritou, embora sem
necessidade.
Jeremy hesitou. Girou o corpo e olhou para Robert, na guia da
carruagem. Não se esforçou em disfarçar o desespero em arranjar alguma
desculpa para não ir até lá. Como a única opção plausível, retirou o relógio
do bolso e guardou-o quase no mesmo segundo.
— Vamos demorar a chegar em casa, querida! Olhe para o céu, um
temporal vai cair a qualquer momento!
— Só um minuto, querido, por favor!
Contrariado e sem uma nova ideia, Jeremy subiu os degraus, com pouca
vontade.
— Jeremy, lembra-se do Padre Jullian?
Por um breve momento, os dois homens encararam-se. Jeremy
lembrava-se claramente do velho Padre, e também de sua cicatriz. Lembrava-
se que sempre sentira um pouco de medo daquele homem, mesmo sem
entender o porquê. Sentia-se inquieto e desconfortável na presença dele.
— Claro, lembro muito bem! – ele respondeu, aplicando uma pausa
entre as duas etapas de sua frase.
— É muito bom revê-lo!
Jullian estendeu o braço direito, coberto pela longa manga de suas
vestes, e direcionou sua mão para que Jeremy o cumprimentasse.
Instintivamente, o rapaz não correspondeu a este ato; com sua mão direita,
segurou o pulso de Albertine, e de leve puxou-a para perto de si. O Padre
recolheu-se à sua posição anterior, mas não pareceu insatisfeito ou
embaraçado, ao contrário de Albertine, que corou imediatamente.
— É bom vê-lo também, Jullian, mas realmente temos que ir, não é,
querida? – seus olhos negros encontraram os de Albertine, e nenhuma palavra
mais foi necessária para que ele se fizesse entender.
— Sim, temos mesmo que ir agora. Várias tarefas nos esperam em casa.
Por um momento, acharam que o Padre se divertia em meio a todo
aquele estranho momento. Seus lábios permaneciam moldados em um meio
sorriso, enquanto seus olhos pequenos mudavam de direção a cada segundo.
— Muito bem, então – respondeu ele, em tom sereno. –Aguardarei-s
novamente aqui.
O casal desceu os degraus com pressa, Jeremy ainda segurando o pulso
de Albertine, a ponto de prender-lhe a circulação. Seguiram pela calçada de
largas pedras e entraram na carruagem. Robert então iniciou a viagem de
volta, deixando a cidade pelo mesmo caminho por onde entraram.
— Mas o que deu em você? – perguntou Albertine, em tom irritado,
algo que raramente fazia. –Pobre Jullian, você o tratou como um leproso!
— Pare com isso, Albertine. Não o tratei mal de forma alguma.
— Às vezes você é tão estranho!
— E você às vezes é tão insistente! Eu deixei claro que não gostaria de
subir até lá.
— Jeremy, não nos custou nem dois minutos, e você poderia ter sido
um pouco mais agradável!
Jeremy respirou fundo; queria revelar a Albertine o que sentia na
presença do Padre Jullian, mas sabia que seria em vão. Preferiu não falar
mais, para não prolongar aquela irritante conversa. Ela entendeu que não
deveria mais tocar no assunto, então após alguns segundos usados com
sabedoria para recobrar a calma, mudou o rumo da conversa, perguntando
sem muito interesse sobre os assuntos que Jeremy resolvera enquanto ela
assistia à missa.
Como haviam previsto mais cedo, o sol desaparecera por completo por trás
de gigantescas nuvens escuras, e uma chuva de grossos pingos despencou
sobre toda a região. Robert, prevenido como sempre fora, já vestira sua capa
de chuva antes de deixarem a cidade. A estradinha de terra no meio da
floresta perdia-se em lama e poças d’água, tornando a viagem desgastante e
desconfortável. Albertine titubeava involuntariamente, criando um segmento
de cenas que divertiram Jeremy durante todo o restante do trajeto.
Ao chegarem de volta à mansão, um maravilhoso banho quente
esperava por eles. Já passava da hora do almoço, mas todos os empregados
esperaram até que retornassem, por ordem de Rosa, embora Jeremy ficasse
desconfortável por isso. Algo que ele desde sempre se empenhara em evitar
era parecer um patrão do tipo asqueroso, e não gostava quando Rosa criava
algum tipo de situação que o aproximasse disso, mesmo que apenas em sua
cabeça.
A chuva e o frio tornaram o resto daquele dia quase melancólico. As
empregadas prepararam um revigorante ensopado, para ser servido ao jantar
junto com os deliciosos pãezinhos caseiros de Rosa. A noite havia chegado
mais cedo, por isso o jantar foi servido também com antecedência. Não
conversaram muito, todos pareciam exaustos graças ao clima gélido que
deixava tudo mais triste e pesado. Logo assim que todo o serviço doméstico
foi concluído, Rosa, Martha, e Judith subiram aos seus quartos. Jeremy e
Albertine, por sua vez, permaneceram no andar de baixo. Haviam
conversado, alguns dias atrás, sobre Albertine ministrar algumas lições de
piano para Jeremy, que mostrara interesse nesta arte mais para impressioná-la
do que por qualquer outro motivo.
— Está indo muito rápido! – disse Albertine, enquanto retirava as mãos
de Jeremy das teclas do gigantesco piano, posicionando as suas de um ângulo
desajeitado. Com acurada destreza, seus dedos produziram o início da nona
parte de uma das peças do Noturno, de Chopin. –Está vendo? Você precisa
ser mais suave, e não acelerar tanto.
— Eu jamais conseguiria fazer isso tão bem. É magnífico!
— Vamos, tente mais uma vez.
Foi apenas por volta das onze da noite que Jeremy conseguiu
aproximar-se da maneira correta de explorar as notas. Ainda chovia, e
ninguém realmente esperava que o temporal passasse tão cedo; felizmente,
não trouxera consigo as incômodas ventanias que açoitavam as janelas noite
adentro, importunando o sono de qualquer um que tentasse dormir naquela
casa. Além disso, como já era esperado por Jeremy, naquela mesma época,
todos os anos, seus ossos já reagiam ao clima, dando-lhe a eterna ânsia de
não se mover, da maneira mais simples que fosse. Albertine percebia, desde
sempre, as drásticas mudanças no comportamento dele após a chegada da
temporada de chuvas, frio e vento, porém, tornara-se quase uma regra para os
dois não conversarem sobre aquilo.
O motivo disto, que sempre enfurecia a moça, foi uma discussão que os
colocou em uma leve situação de intriga, quando tinham seus treze ou
quatorze anos; era a mesma época de tormenta na vila, e Albertine, amorosa
como sempre fora, permanecia todo o tempo ao lado de seu então amigo, para
não deixá-lo sozinho enquanto era proibido por Rosa de sair de casa. A
governanta passava boa parte de seu tempo preparando compressas,
aplicando pomadas ditas milagrosas e fervendo água para os mais diversos
tipos de chás, sempre na esperança de fazer aquela inconveniente
enfermidade abandonar o pobre menino.
Foi num destes dias que Jeremy, num impulso, tentou levantar-se de sua
cama, mas foi atingido por uma instantânea pancada de dor em suas pernas.
Ele não resistiu, tombou para frente e caiu de joelhos. Albertine, por um
breve segundo, como toda e qualquer criança faria, sorriu. Isto foi o
suficiente para levantar a ira de Jeremy, que esbravejou com todas as suas
forças contra a pobre menina, acusando-a de rir de um inválido, reservando-
lhe um lugar no inferno por isso. Precisaram de vários dias para que a sombra
deste evento se afastasse deles, e desde então, Albertine jamais se
aprofundara em qualquer tópico que envolvesse as dores corporais de seu
amado.
— Excelente! – ela disse entre leves palmas de alegria, ao ouvirem
exata precisão todas as notas da melodia que Jeremy estava a tocar. –Nunca
imaginei que você fosse conseguir tocar um Noturno em tão pouco tempo!
— Tenho plena certeza de que foi apenas sorte de principiante – ele
retrucou, enquanto friccionava as mãos, a fim de aquecê-las. Não estava mais
conseguindo esconder o desconforto. Os ossos pulsavam, as articulações
pareciam emperradas.
— Querido, posso deixar-lhe sozinho por alguns minutos? Vou até a
cozinha preparar um chá para nós – ela sibilou próxima aos ouvidos do
marido. Um chá sempre o fazia sentir-se melhor, ambos sabiam disso.
— Não vou deixá-la ir sozinha. Já tive aulas demais por hoje,
continuaremos outro dia – Jeremy respondeu apressado, levantando-se do
banco forrado de espuma macia. Fechou a tampa, ocultando as teclas
amareladas, e segurou a mão de Albertine.
— Tudo bem, então. Espero que não desista após a primeira aula, como
fez com as aulas de violino, e as de pintura, e...
— Certo, certo, vamos indo.
Apagaram as duas lamparinas que iluminavam a sala de música, e
partiram em namoricos à cozinha. Além de seus passos, só se ouvia a chuva
caindo sobre o telhado. Deixaram a sala principal, adentrando em seguida a
comprida sala de jantar. Rosa havia alterado a decoração da mesa; no lugar
dos castiçais, havia buquês de flores brancas, com suas hastes mergulhadas
em vasos de vidro, que Jeremy lembrou terem sido trazidas de sua antiga
casa. As janelas estavam muito bem cobertas pelas cortinas. Não havia
nenhuma lamparina acesa naquela sala, Rosa havia apagado-as antes de
recolher-se, e as chamas da lamparina que Jeremy carregava, retirada da sala
principal, produziam uma singela aura de luz ao redor do casal. Suas sombras
eram projetadas nas paredes, quase agourentas, por isso preferiam não olhar
na direção delas.
— Jeremy, está sentindo esta corrente de ar? – disse Albertine,
reduzindo a velocidade de seus passos, e consequentemente os de Jeremy,
que tinha um dos braços entrelaçados ao dela.
— Sim, estou sentindo. Rosa deve ter esquecido uma das janelas da
cozinha aberta – ele respondeu sem muita certeza.
— Espere – Albertine sussurrou.
Permaneceram inertes ali quase à entrada da cozinha. Ao redor, apenas
escuridão, e aquele estranho movimento de ar vindo da cozinha, passando por
eles e seguindo até a sala principal.
— O que foi? Está ouvindo alguma coisa? – Jeremy perguntou.
Foi nesse instante que um som assustador foi ouvido pelo casal. Um
brusco movimento de passos pesados, ocorridos bem à frente dos dois jovens.
Havia alguém na cozinha.
— Jeremy! – exclamou a moça entre os dentes. Jeremy sentiu os dedos
de Albertine pressionarem-lhe o braço, completamente enregelados.
Os passos se repetiram, desta vez mais acelerados, e por um rápido
segundo o casal rezou para que, quem quer que fosse, não se dirigisse a eles.
Os ruídos estenderam-se por segundos que pareceram infinitos, e logo o som
dos pés movendo-se na escuridão se misturou a um trovão que percorreu os
céus. Seguido dele, um relâmpago prateado clareou o ambiente por uma
ligeira fração de segundos. Não conseguiram visualizar ninguém, nem sequer
um mero vulto na cozinha. No chão ao redor deles, porém, pegadas molhadas
surgiram diante dos olhos do casal. A mansão Ridell havia sido invadida.
Um novo trovão percorreu o céu, e no mesmo instante a grama molhada
sendo pisada no quintal denunciou que o visitante noturno havia deixado a
casa. Jeremy desvencilhou-se de Albertine, avançando com quanta destreza
podia, fechando a porta que estava escancarada, trancando-a quase no mesmo
movimento. Olhou para cada canto da cozinha, certificando-se de não haver
mais ninguém por lá. Estavam agora sozinhos.
— Tudo bem, não tenha medo querida, venha aqui! – ele disse
ofegante, abraçando-a, envolvendo-a em seus braços. Albertine chorava,
assustada e sem voz. –Fique calma, estamos seguros agora!
— Jeremy, se houver mais alguém lá em cima? – ela disse, juntando-se
ainda mais ao corpo dele.
— Não há ninguém lá em cima, nós teríamos visto se alguém tivesse
passado pela sala principal.
— Certo. Certo – mais uma vez, ela soltou palavras quase inaudíveis,
enquanto observava, paralisada pelo medo, as pegadas no chão da cozinha.
Eram de pés descalços, aparentemente cobertos de lama.
— Venha, vamos dormir, a porta está bem trancada. Não há mais o que
temer.
Capítulo XII

UM NOVO AMIGO

Jeremy acordou muito mais cedo do que o normal naquele dia. A forte
chuva da noite anterior agora transformara-se em um suave sereno, enquanto
o sol permanecia mais uma vez oculto pelas nuvens. Lavou-se em água muito
fria, quase esquecendo as dores que o consumiam. Deixou que Albertine
dormisse, procurando manter o quarto no mais absoluto silêncio. Fechou a
porta e seguiu decidido pelo corredor; parou em frente à porta do quarto de
Rosa. Aplicou três suaves batidas e esperou. De dentro do cômodo ele podia
ouvir leves movimentos, o que já esperava, pois Rosa costumava levantar-se
ao primeiro raio de sol que surgisse no horizonte. Poucos instantes levaram-
se até que a porta foi destrancada e a maçaneta girou; Rosa apareceu pela
fresta, com os cabelos já presos no tradicional coque, e usando seu batom de
tom bege.
— Jeremy? – disse ela, espantada. – Achei que fosse Judith ou Martha.
O que faz acordado tão cedo?
— Preciso que reúna todos agora mesmo, estarei esperando na cozinha
– Jeremy respondeu extremamente seco.
— O que aconteceu?
— Espero todos vocês lá embaixo – ele finalizou a conversa iniciando
seu caminho ao andar de baixo.
Em pouco mais que dois pares de minutos todos os empregados
desceram juntos, Rosa à frente do bando como uma responsável
representante. Chegaram, desconfiados, até a cozinha; Jeremy esperava
sentado em frente à porta, com os olhos fixos ao chão. Imediatamente, assim
que puseram os pés no recinto, todos eles notaram com espanto a
considerável quantidade de pegadas espalhadas pela cozinha, agora formadas
de barro seco.
— O que houve aqui, Jeremy? – perguntou a governanta, parada à
entrada da cozinha.
— O que houve aqui, Rosa, foi algo que poderia ter causado algo muito
sério a todos nós, ontem à noite – ele iniciou-se, levantando da cadeira,
impaciente. – Algum de vocês, ontem, não cumpriu a responsabilidade de
conferir se todas as portas estavam realmente trancadas.
— E estavam! – Rosa retrucou. –Eu mesma vi Judith girar a chave, não
só uma, mas duas vezes!
Jeremy olhou para Judith, que assim como todos os outros, expressava
palidez e até mesmo um leve medo em sua face. Virou-se para a porta,
estendeu sua mão, que ainda tinha um curativo em seu dedo mindinho, e
girou a maçaneta. A porta estava trancada, e por isso permaneceu imóvel,
como deveria ser.
— Uma porta trancada não se destranca sozinha, não é?
— O que está querendo dizer, Jeremy?
— Estou querendo dizer que ontem, enquanto todos vocês dormiam,
alguém invadiu a casa, e foi por esta porta, que estava escancarada!
Nenhum dos cinco empregados conseguiu responder. Judith estava
muito certa de si mesma, de que havia deixado a porta devidamente trancada;
aos outros, só cabia ouvir o sermão em silêncio. Era a primeira vez, desde
que se lembravam, que Jeremy se mostrara tão autoritário. Sabiam que ele
tinha toda e completa razão em estar bravo, porém, sabiam também que nada
de errado foi cometido por eles para receberem tal tratamento.
— Eu e Albertine quase nos deparamos com quem quer que fosse, aqui
nesta cozinha. Ouvimos os passos, e logo assim que nos viu, o intruso fugiu
pelo mesmo lugar por onde havia entrado, que foi esta porta. Poderíamos
estar mortos ou feridos agora, por toda esta irresponsabilidade!
— Me desculpe senhor, eu devo ter cometido um engano. Não foi
intencional, e prometo que não vai mais acontecer – disse a pobre Judith, em
meio a leves soluços.
— Acalme-se Judith, está tudo bem, não aconteceu nada além de um
grande susto – Rosa tentou consolá-la.
Jeremy inspirou profundamente. Caminhou pela cozinha, passando por
cima das pegadas na madeira, e saiu pela sala de jantar.
— Robert e Thomas, quero que me acompanhem até a cidade.
Preparem a carruagem e a charrete, teremos muito que carregar – ele disse,
em um tom que Rosa jamais reconheceria.
— Jeremy, vocês precisam do café antes de ir!
— Poderemos sobreviver a isso. E por favor, limpem esta sujeira, não
quero que Albertine veja isto ainda aí quando acordar.
Com estas últimas palavras misturaram-se os passos do rapaz subindo
novamente os degraus ao andar de cima, de forma atrasada e quase manca.
Adentrou silenciosamente em seu quarto, e vendo que sua esposa ainda
dormia, envolvida nos lençóis brancos, apenas sentou-se à frente da
penteadeira, tentando recuperar o fôlego. Já se sentia arrependido por
tamanha grosseria com seus criados - que além disso eram seus únicos
amigos - mas sentia como se tudo aquilo que dissera fora necessário para
amedrontá-los, para que aquele terrível incidente não voltasse a se repetir. Ele
não havia ainda parado para pensar em que tipo de pessoa havia estado dentro
da casa. Nem mesmo conseguia entender como alguém conseguira atravessar
os portões, e não havia alternativa além desta. Os muros eram
suficientemente altos para imporem-se intransponíveis, e mesmo que um
invasor conseguisse escalá-lo por fora, utilizando as heras como apoio, não as
encontraria por dentro, causando-lhe uma queda que sem dúvidas afetaria
seus membros inferiores. Os portões, por sua vez, além de trancados por um
generoso cadeado rodeado por grossas correntes, eram altos o bastante para
evitar intrusos. Ainda, de onde poderia ter aparecido tal intruso? A cidade
mais próxima ficava a uma hora a cavalo, e a mansão, além disso,
encontrava-se muito bem escondida pelas camadas da floresta. A invasão na
calada da noite seria um mistério que Jeremy tardaria a resolver, mesmo que
pretendesse não mais permitir que acontecesse novamente.
Antes que Rosa e as empregadas conseguissem terminar o café que
preparavam apressadas, os veículos já estavam prontos e partiam rumo à
cidade. Albertine, naquele momento, levantara-se ao ouvir o som das
correntes sendo desenroladas; curiosa, foi até a janela e viu seu marido e os
empregados deixando o jardim da mansão.
— JEREMY! – ela gritou, na falsa esperança de ser ouvida.
Com muita pressa, envolveu-se em seu roupão cor de creme, deixou o
quarto e saltitou pelos degraus até a sala principal. Abriu a porta de entrada,
mas percebeu que os portões já estavam fechados. Deu meia volta,
estranhando aquela saída repentina de Jeremy, e seguiu até a cozinha.
Deparou-se com Judith sentada à pequena mesa, perdida em lágrimas, sendo
consolada por Rosa, enquanto Martha esfregava o chão, removendo aquela
desordem que fora feita enquanto ela e seu marido entretiam-se na sala de
música.
— Judith? O que aconteceu? – indagou Albertine, surpresa.
— Não foi nada – a governanta apressou-se. –Já passou, não há
necessidade em falar disso.
— Rosa, insisto em saber o que aconteceu. E por que Jeremy saiu tão
apressado, tão cedo da manhã?
— Me desculpe senhora, não fiz por mal, foi apenas um descuido! –
Judith disse, em aparente auto-humilhação.
— Mas o que houve? O que você fez?
— Venha, Albertine, deixe-me falar-lhe. Vamos até a sala.
Rosa tomou a fala da amiga, levantando-se e arrastando Albertine pelos
braços. Na sala, explicou-lhe com muita sutileza tudo que se passara na
cozinha, e pediu desculpas por ter deixado tudo aquilo acontecer ao
descuidar-se, e não checar se as portas estavam realmente trancadas.
Albertine reagiu a isso como uma ofensa de Jeremy a todos, inclusive a ela
própria.
— Ele não tinha nenhum direito em agir desta forma, Rosa! Nenhum!
— Não se preocupe com isso querida, ele só estava impaciente. Se bem
o conheço, ele chegará e pedirá desculpas, antes de qualquer coisa.
— Terei uma séria conversa com ele. Muito séria!
Rosa sorria ao ver Albertine enfurecida, impressionada como se tornava
ainda mais bela em meio a todas aquelas expressões de raiva.
— Vá tomar um banho e se vestir, enquanto irei preparar nosso café.
— Não precisa de ajuda?
— Não, não. Vá, suba. Eu me viro.
— Tudo bem, então.
Vagarosamente, a bela mulher iniciou sua subida de volta. Rosa
esperou, ao lado da escada, até que percebeu uma pausa na ação de Albertine.
Ela havia parado, e por algum motivo, curvou-se e passou a friccionar as
mãos contra um dos tornozelos.
— Algum problema, Albertine?
— Não, Rosa. Apenas uma estranha dor nas pernas, nunca havia sentido
isto antes. Talvez seja uma sequela do terrível susto de ontem.
Rosa respondeu com um aceno sutil, retornando à cozinha logo em
seguida. A água do café já fervia, e Judith já se pusera de pé, embora ainda
soluçasse. Pouco a pouco o humor de todas elas foi assumindo sua forma
comum, embora não sentissem vontade em conversar aquela manhã.
Foi somente no vigor do sol da tarde que os homens retornaram. Na
carroceria da charrete trouxeram inúmeras barras de ferro, correntes e
cadeados. De dentro da carruagem, Jeremy saiu carregando nos braços uma
caixa de madeira, de tamanho médio; dentro dela, algo parecia se mover,
talvez tentando sair, ou apenas cambaleando de um lado a outro. Em passos
decididos, deu a volta pela mansão, chegando até o quintal. Judith
encontrava-se lá, lavando dois ou três lençóis no grande tanque de pedra.
Jeremy passou por ela, e com um pouco de esforço, curvou-se e depositou a
caixa no chão, ao lado da porta que levava até a cozinha. O que quer que
estivesse dentro dela, ainda se mexia de forma eufórica, e demonstrou ainda
mais agitação ao perceber que não estava mais a ser carregado. Jeremy
atravessou a cozinha e a sala de jantar, e do pé da escada da sala principal,
chamou por Albertine. Ele sabia que ela não responderia; algo que poucas
vezes chegara a presenciar foi um raro momento em que, por alguma
necessária razão, Albertine elevasse sua voz. Esperou poucos segundos, e
logo ouviu a porta do quarto abrir-se e fechar-se logo em seguida. Albertine
surgiu no topo da escada, trajando um vestido azul que Jeremy nunca havia
visto antes. Parecia aborrecida.
— Onde esteve, Jeremy?
-Fui até a cidade. Desculpe não tê-la avisado.
— E o que foi fazer lá, tão cedo?
— Algo que precisava ser feito.
O rosto angelical de Albertine expressava uma sutil agressividade, algo
que fazia Jeremy, quase sempre, desistir de começar uma discussão, por mais
sociável que ela pudesse parecer.
— Se você soubesse o quanto fica bonita assim, quase brava comigo,
faria isso mais vezes – disse Jeremy, ainda parado ao início dos degraus.
Albertine cruzou os braços e o encarou, crispando os lábios.
— Por que você nunca me leva a sério?
— Vamos querida. Pare com isso. Eu saí muito cedo, não queria
acordá-la, ainda mais após aquele susto que tomamos ontem. Achei que
precisava descansar.
— Foi apenas um susto. E precisamos conversar sobre isso!
— Quer dizer que está brava comigo porque saí de casa sem avisá-la? É
isso?
— Não, Jeremy. Mesmo achando que você poderia, ao menos, ter
avisado que deixaria a mansão, não é por isso que estou ‘quase brava’ –
Albertine respondeu com mais seriedade do que antes, dando uma quase
divertida ênfase às duas últimas palavras.
— Olhe... falaremos sobre isso mais tarde, certo? Trouxe algo da
cidade, e quero muito que você veja. Tudo bem?
Albertine rendeu-se, sabia que não conseguiria manter aquela dura
posição por muito tempo, frente a toda doçura que Jeremy sempre lhe
apresentava. Após um longo suspiro, iniciou a descida; suas pernas
causavam-lhe fortes dores, que atrasavam seus movimentos e assimilavam a
jovem a uma idosa doente, que insistia em subir e descer escadas.
— O que houve com suas pernas? – Jeremy perguntou, já indo ao
encontro de sua esposa, disposto a ajudá-la em seu trajeto.
— Não sei dizer. Hoje cedo, quando acordei, já sentia algumas dores.
— Pedirei a Rosa para preparar algumas compressas. Talvez esteja
precisando aquecer os ossos.
— Certo, doutor.
— Esqueceu que se casou com um pobre enfermo? Sou mais experiente
nisso do que imagina. Este tempo frio, a umidade, tudo isto não faz muito
bem ao esqueleto de ninguém.
— Nunca tive nenhum destes sintomas. Espero que não comecem a
aparecer agora.
— Muito bem, aqui estamos – ele disse ao alcançarem o último ponto
da descida. –Consegue andar?
Albertine, sentindo-se ligeiramente desconfortável em estar sendo quase
carregada, respondeu com um positivo aceno de cabeça. Seguiram até o
quintal, Jeremy à frente, exalando um estranho entusiasmo que deixou a
moça intrigada. Ao cruzar a porta, ela deparou-se com o esposo ajoelhado,
tendo as duas mãos apoiadas sobre a tampa da caixa de madeira que havia
deixado lá, antes de entrar. Os estranhos movimentos vindos de dentro da
caixa ainda não haviam cessado.
— O que é isto, Jeremy? Foi isto que trouxe da cidade?
— Sim!
— E vai me deixar ver, ou não?
— Acalme-se. É um acontecimento especial, um presente que quero lhe
oferecer.
— Ainda estou esperando.
A trava da caixa foi aberta em um clique, e a tampa cuidadosamente
levantada. Do interior da caixa, eufórico e animado por estar finalmente livre,
saltou um pequeno filhote de cachorro.
— Jeremy! Mas... minha nossa! – Os lábios de Albertine abriram-se em
espanto, os olhos claros brilharam de repentina felicidade, absurdamente
contrastando com a falsa personalidade que demonstrara há pouco, apenas
para repreender o esposo.
O pequeno animal, de pelo claro e brilhante e da mais pura raça de
labrador, não recuou ao ser capturado pelos braços de Albertine. Suas
pequenas patas moviam-se freneticamente, sua fina cauda sacudia como uma
varinha descontrolada. Jeremy apenas observava, enquanto Albertine
acariciava e conversava com o animal, tão feliz quanto uma criança ao
receber presentes de Natal. A empatia entre o até então sem nome cachorro e
sua nova dona foi instantânea. Jeremy sentiu-se feliz; sempre sentia aquela
dose de felicidade ao fazer Albertine sorrir.
— Jeremy, isso é maravilhoso! – ela exclamava, repetidamente.
— Fico contente por ter gostado.
— E como poderia não gostar? Olhe só para ele!
— Ele precisa de um nome, não acha?
— Vai me deixar escolher o nome?!
— Mas é claro. Ele é seu!
— Não quer mesmo me ajudar a escolher?
— Não sou muito bom com nomes. Sinta-se à vontade!
Albertine, ainda sem conter a excitação, estendeu o filhote ao alto como
um bebê. Ele olhava para ela, para Jeremy, para sua nova casa. De longe,
Judith observava contente, enquanto concluía a lavagem dos lençóis.
— E então, pequenino, que nome lhe daremos? Deixe-me pensar... que
tal Rufus? – ela questionou-se, dirigindo um olhar a Jeremy, pedindo ajuda.
Ele respondeu com uma careta engraçada, desaprovando a sugestão. –Não?
Então... Ringo. É isso. Ringo!
— É um bom nome!
— Muito bem, Ringo, venha conhecer seu novo lar!
Enquanto Albertine distraía-se na tarefa de levar seu novo amigo a
todos os cômodos da mansão, Jeremy caminhou até os portões de entrada,
ansiando auxiliar Robert e Thomas na tarefa a que foram incumbidos, embora
soubesse que nunca fora realmente hábil em realizar trabalhos manuais que
não envolvessem cálculos. As barras de ferro já haviam sido descarregadas,
assim como todos os outros objetos. Os veículos já haviam sido guardados
em seus devidos locais, e os dois empregados já trabalhavam juntos para,
conforme solicitado pelo patrão, reforçarem a segurança da entrada da
propriedade. As compridas barras de ferro estavam prontas para serem
acopladas aos portões, dando-lhes um considerável aumento de tamanho. As
correntes reforçariam a segurança das barras, trançadas de maneira a fixá-las
nas grades.
— E então, como estão indo?
— Não levaremos muito tempo para terminar – respondeu Thomas com
sua voz grave, virando-se para Jeremy, levando uma das mãos sujas à frente
do rosto, protegendo-se da luz do sol.
— Precisam de ajuda? Não sou muito bom com isso, mas posso ajudar
no que for preciso.
— Não senhor, pode deixar tudo conosco. Somos peões experientes, e
apesar de um pouco velhos, ainda aguentamos muito bem – respondeu
Robert, levantando uma das barras espalhadas pela grama.
Os dois homens já haviam reforçado o primeiro portão quase por
completo. As barras estendiam-se por mais de um metro acima dele, tornando
aparentemente impossível qualquer nova tentativa de invasão. Jeremy
agarrou duas delas, já fortemente afixadas, e tentou sacudi-las, em prova se
eram realmente confiáveis. As barras mostraram-se imóveis e Jeremy,
completamente satisfeito, exceto sobre o detalhe de suas mãos terem
encontrado as áreas do objeto onde existiam concentrações de sujeira, poeira
e fuligem. As digitais do rapaz desenharam-se às barras, excluindo-se as
daquele dedo ainda protegido por uma gaze.
— Acho melhor ir lavar as mãos, essa fuligem misturada ao pó de ferro
pode causar-lhe problemas – Thomas aconselhou o patrão, estendendo-lhe
uma das mãos. – Vê estas marcas? As mulheres não gostam muito.
Em grandes risos, os dois empregados prosseguiram em seu serviço,
enquanto Jeremy, um tanto constrangido, retornava ao interior da casa. Na
sala, Albertine, agora junto a Rosa, paparicava Ringo ao mesmo tempo em
que tentavam decidir onde o animal dormiria. Rosa sugeriu-lhe um dos
quartos vazios, já Albertine rebatera esta indicação alegando que o pobre
animal iria sentir-se solitário. Optara pela sala de música, visto que tinha
acesso livre à sala principal. Enquanto Jeremy subia as escadas, divertiu-se
com toda aquela euforia das duas mulheres, que naquele novo momento
escolhiam três ou quatro almofadas para presentear Ringo.
Já em seu quarto, Jeremy desvencilhou-se do colete que vestira antes da
viagem. Afrouxou o colarinho que o incomodava, desamarrou os sapatos
ligeiramente sujos de lama e dirigiu-se ao banheiro. Precisava de um bom
banho, e faria isto mesmo com água não aquecida, o que não seria tão
desagradável naquele momento devido ao calor que vinha sentindo desde
bem cedo. Pensava nisso com estranheza, de fato, pois na tarde anterior mal
conseguia manter-se de pé sem que seu corpo parecesse inútil, devido às
dores, que naquele momento o consumiam em bem mais baixa intensidade.
Após despir-se por completo, observou sua própria figura diante do espelho;
notou-se ligeiramente mais corado do que sempre fora, e até mesmo mais
encorpado. Era óbvio, ele pensava, que aquela nova vida estava lhe causando
tais mudanças, que mesmo imperceptíveis aos olhos dos outros, até mesmo
dos de Albertine, faziam-lhe muito bem. Observou cada detalhe: seus
cabelos, seus ombros, seus braços, e tudo parecia levemente mais agradável.
Por último, fitou as magras mãos, e notou que ainda não havia removido as
partículas de sujeira delas. Visando substituir o curativo em seu dedo menor,
Jeremy pôs-se a remover a gaze, vagarosamente, temendo ainda ver o
ferimento não cuidado infeccionado ou qualquer outra injúria do gênero. Mas
não foi realmente o que viu. De fato, ela nada viu. O corte, recebido há
menos de uma semana, desaparecera por completo. Não havia cicatriz, nem
mesmo uma fina marca; por dentro do curativo havia apenas um dedo sadio,
exibindo uma fina veia pulsando sob a quase fantasmagórica pele branca de
Jeremy.
Capítulo XIII

A FALSA ROSA

Mais da metade da tarde de Albertine gastara-se na leitura de um


livro, abaixo de uma das árvores do jardim. A sombra e a brisa fresca, muito
mais do que o conteúdo monótono do livro, faziam a moça não querer voltar
para a mansão, de onde já ouvira Jeremy chamá-la um par de vezes; sabia que
não se tratava de algo de suma importância, frente à calma em que ele tornou
a dizer seu nome. Ringo, agora já usando uma fina coleira vermelha, saltitava
de canto a canto, ora caçando borboletas, ora importunando a vida de pobres
caracóis que se arrastavam pela grama.
A casa estava muito calma naquela tarde. Apenas Albertine, Jeremy e
Rosa encontravam-se por lá. Os empregados haviam ido à vila a fim de
buscar suprimentos; o estoque de óleo para as lamparinas estava a findar-se,
assim como o carvão e os itens de limpeza da casa. Albertine não saberia
dizer a hora exata, mas pela posição do sol, algo que ela aprendera quando
criança, arriscaria afirmar sobre as três horas da tarde se aproximando. O céu
brilhava num tom muito claro de azul, mais uma vez, em total contraste a seu
estado na tarde anterior. Entre um bocejo e outro, causados pela
inexpressividade do livro que ainda se esforçara em não abandonar, ela sentiu
o estômago avisar-lhe sobre uma leve fome. Levantou-se, sacudiu a saia do
vestido, fazendo pequenas folhas desgrudarem-se dela, e seguiu pelo caminho
de pedra, o grosso livro entre seus braços. Ringo seguiu em seu encalço,
sempre feliz e saltitante.
Já na sala, tudo estava mergulhado em absoluto silêncio. Jeremy estaria
provavelmente perdido em um cochilo, e de Rosa não ouvia-se qualquer sinal
em parte alguma. Silêncio era algo que não deixava a moça feliz, e esta
sensação fortalecia-se como uma doença não cuidada dia após dia, desde que
aquela antiga mansão passara a ser seu novo lar.
Seguindo à cozinha, Albertine decidia sobre onde esperaria os
empregados retornarem, pois só após isso poderia ajudar a preparar o jantar.
Passou pela entrada da sala de música, mas não atraiu-se por ela. Alguns
metros à sua frente, a porta da cozinha estava aberta, como costumava ficar
durante o dia, e só isso foi o suficiente para fazê-la perder a fome; ainda não
havia esquecido o terrível incidente de algumas noites atrás, e não acolheu a
ideia de estar sozinha naquele cômodo. Retornou pelo mesmo caminho, subiu
as escadas e parou no corredor. No fim dele, a luz do sol espalhava-se em
inúmeras cores e formas ao atravessar o vitral colorido. Albertine nunca havia
parado para observá-lo, nunca percebera como era atraente.
O corredor era repleto de portas – do lado esquerdo levavam aos
quartos, e do direito levavam a ambientes variados. A primeira porta era a da
biblioteca, e foi até ela que a moça, decididamente, se dirigiu. Uma fina
camada de poeira que descansava sobre a maçaneta foi removida ao ser
apalpada pela visitante. Quando a porta se abriu, um forte odor de papéis
velhos e embolorados escapou, fazendo Albertine recuar. Após recuperar o
fôlego, girou o corpo e adentrou; Ringo permaneceu no corredor, sentado.
Nenhum dos inúmeros chamados foi suficiente para fazê-lo mudar de ideia.
— Ringo? Não quer vir? Vai ficar aí, sozinho? – ela perguntou,
realmente esperando que respondesse, mas ele apenas se deitou frente à
entrada da biblioteca, apoiando a cabeça às patas da frente. Um suave
choramingo fez sua dona desistir de fazê-lo entrar.
Suavemente, Albertine fechou a porta. Como ela já sabia, as prateleiras
de livros estavam dispostas e separadas por gêneros, dos mais variados
estilos, mas como sempre, ela somente dirigia-se à prateleira de romances.
Nunca tivera paciência para livros acadêmicos, embora gostasse de vez ou
outra folhear alguma enciclopédia de assuntos mistos. Na estante dos
romances, o espaço vago foi novamente preenchido quando Albertine
recolocou, cuidadosa como sempre fora, o entediante livro que carregava.
Seus olhos moviam-se com rapidez, à procura de algum volume que lhe
prendesse a atenção, e foi em Decameron que isto aconteceu. O livro estava
imundo, coberto de poeira acinzentada, suas bordas corroídas por traças.
Após leves tapinhas com as costas da mão ferida da moça, o pó esvaiu-se,
tornando a aparência do objeto um pouco menos afetada pelo tempo de
abandono. Após apoiar o livro sobre o peito com um dos braços, Albertine
olhou ao redor, e pensou em ficar ali mesmo, no confortável sofá vermelho
num dos cantos da biblioteca, mas lembrara-se de como o sol estava
agradável naquela tarde, o que era raro nos últimos dias. Preferiu voltar para
o jardim onde, além de tudo, poderia inspirar ar puro, e não aquele odor
pestilento de bolor e papéis velhos que logo lhe causaria alergias.
Ao abrir a porta da biblioteca, antes mesmo de atravessar todo o corpo
pela fresta, viu a silhueta de Rosa adentrando, quase invisível por sua rapidez,
na galeria, situada exatamente ao lado da biblioteca. A porta fechou-se, sem
que Rosa lhe falasse, provavelmente por não tê-la avistado saindo da sala
vizinha. Era incomum alguém visitar a galeria, mas como todos já haviam
ouvido a governanta dizer inúmeras vezes, era só uma questão de tempo até
que lhe chegasse a ideia, seguida da vontade, de aplicar uma pesada faxina a
estes dois cômodos vizinhos. Por um instante, Albertine cogitou entrar lá para
ajudá-la, mas sabia que não conseguiria dormir por muitas noites seguidas
caso inalasse toda aquela poeira acumulada por anos; assim, continuou seu
caminho. Ringo já não mais estava no corredor, Albertine pôde vê-lo ao pé da
escada, dormindo em uma de suas almofadas, uma das muitas espalhadas
pela casa.

O sol continuava tão atraente quanto antes, mas o vento agora soprava
com mais vigor, fazendo os cabelos da moça esvoaçarem acima dos ombros.
Ela sentou-se novamente à sombra da mesma árvore, de onde podia ver a
frente da mansão, de um canto a outro. As janelas de seu quarto estavam
abertas, porém bloqueadas pela cortina. Jeremy recusava-se a dormir em um
quarto muito claro, sempre preferia a penumbra total a qualquer tipo de
iluminação durante o sono, e esta era uma das poucas coisas que o
diferenciavam de Albertine.
Antes que ela pudesse iniciar sua desejada leitura, viu o busto de seu
amado surgindo por entre as cortinas. Jeremy inclinou o pescoço para fora,
apoiando-se ao parapeito; seus cabelos estavam desarrumados, e seus olhos
apertados pelo sono e pela claridade que ardeu em suas retinas. Da janela, ao
olhar-se para fora, era impossível avistar Albertine devido à posição em que
ela se acomodara; o espesso tronco da árvore escondia quase todo seu corpo,
e do campo de visão do quarto, era impossível distinguir qualquer coisa que
estivesse frente ao muro e aos arbustos. Jeremy expressava faces engraçadas
enquanto bocejava e alongava os braços. Não demorou até que tornasse a
fechar as cortinas, percebendo que ainda era dia. Albertine voltou sua atenção
ao primeiro capítulo da obra de Boccaccio, e não se permitiu mais distrair por
qualquer outra coisa.
Foi só quando o crepúsculo apontou no horizonte que o livro foi
fechado, após ser marcado com uma fitinha vermelha que o acompanhava. A
fome que Albertine sentia agora incomodava bem mais que antes,
impossibilitando uma nova recusa em visitar a cozinha. Antes que entrasse
em casa, ela sentiu que o vento, subitamente, mudara de direção, e uma nova
noite de chuva era a melhor resposta a esta mudança. Na sala, Ringo ainda
dormia tranquilamente. Da cozinha, de forma indefinida, vinham alguns
ruídos carregados pela corrente de ar que circulavam pela comprida casa. Isto
tranquilizou Albertine – provavelmente Rosa estaria preparando o chá da
tarde, como costumava fazer, e ela não precisaria estar lá sozinha. Assustou-
se com um som metálico, algum objeto caíra ao chão, na cozinha. “Talvez
Rosa precise de ajuda”, pensou, porém, antes que ela pudesse ir até lá e
certificar-se disto, ouviu Jeremy chamá-la do quarto. Desta vez resolveu
atendê-lo; saltitou pelos degraus e, chegando mais uma vez ao corredor onde
já estivera tantas vezes naquela tarde, decidiu recolocar o livro na biblioteca.
Não pretendia deixá-lo em seu quarto, pois Jeremy mostrava sinais de mal-
estar ao permanecer num ambiente onde, por menor que fosse, existisse
qualquer tipo de item prejudicado por fungos. Antes que pudesse entrar,
notou que a porta estava agora entreaberta, tendo a certeza de tê-la deixado
bem fechada da última vez. Vagarosa e cautelosamente, empurrou a porta
com a ponta de dois dedos; ela rangeu enquanto se movimentava em arco.
Pela abertura, Albertine pôde ver Rosa bem à sua frente, estranhamente
ajoelhada, as mãos apoiadas ao piso de madeira, os olhos fixos nelas. A
entrada da esposa de seu patrão não causou-lhe efeito algum; de fato, parecia
ainda nem tê-la visto.
— Rosa?! – disse Albertine, surpresa.– Ouvi ruídos vindos da cozinha,
achei que estivesse lá preparando nosso chá.
A governanta permaneceu exatamente como estava. Inerte, imóvel
como uma estátua de gesso. Suas mãos, agora, pareciam aplicar pressão sobre
o piso. Albertine observava assustada, enquanto as mãos de Rosa tornavam-
se vermelhas, em resposta à força que aplicava. A madeira abaixo das mãos
rangeu e estalou. Os olhos de Rosa, então, encontraram os de Albertine. Eles
não tinham nada por dentro das órbitas. Eram ocos.
— Rosa! O que está fazendo?
— Albertine?! – disse uma voz conhecida às costas da moça, em
resposta.
Aqueles olhos, ou talvez a ausência deles, não era mais suportável.
Albertine ofegava, sentindo-se arrepiada e aterrorizada, entretanto, nenhuma
força havia para fazê-la virar-se e desviar-se daquela macabra visão. Estava
como em um pesadelo: podia ver tudo a seu redor, de olhos bem abertos, mas
não conseguia se fazer acordar.
— Albertine, está me ouvindo? – a voz tornou a dizer.
Novamente, nenhuma resposta. Albertine então ouviu passos, cada vez
mais próximos, às suas costas; sentiu a presença de algo muito frio, sentiu
esta aura gelada atravessá-la. Despertou, então, de seu pesadelo, quando uma
mão tocou-lhe um dos ombros, girando-a sobre o próprio eixo.
— Albertine, com quem estava falando?
Era Rosa. A mesma Rosa que, há um par de segundos, estava prostrada
bem à frente da moça, sem olhos, sem qualquer traço de humanidade.
— R-Rosa?
— Albertine! Fale comigo, querida! – respondeu a governanta em
agonia, ao perceber que toda a cor fugira do rosto da moça. –Está pálida e
gelada!
— E-eu... – sibilou, ainda mais aterrorizada após olhar para o interior da
biblioteca e enxergar nada mais do que prateleiras recheadas de livros.
Albertine tentou falar, mas a voz não saiu de sua garganta. Pareceu
perdida, dispersa em algum tipo de transe. Rosa guiou-a até o interior da
biblioteca, e ajudou-a a sentar-se no grande e espaçoso sofá. O olhar
assustado focou-se no local onde a falsa Rosa não mais se encontrava –
apenas um encontro de paredes vazio.
— Há quanto... quanto tempo está em seu quarto? – questionou
Albertine, realmente temendo o que ouviria como resposta.
— Passei toda a tarde lá, querida. Não estava me sentindo bem, então
me deitei para descansar até que os outros retornassem.
O vulto entrando na galeria, os ruídos na cozinha, o objeto caindo ao
chão e, acima de tudo isto, a mulher sem olhos, ajoelhada na biblioteca. Nada
daquilo havia sido real, não ao menos aos ouvidos de qualquer pessoa a quem
Albertine contasse o que vira. Sua mente estava em pânico, mas sua razão
ainda falava em tom maior. Não queria passar-se por louca. Aquela rápida
visão nascera e morrera ali mesmo, naquela biblioteca.
— Venha, vamos até a cozinha, farei um chá para nós – sugeriu a
governanta, oferecendo ajuda para que Albertine conseguisse levantar-se do
sofá.
— Tudo bem, Rosa, eu posso andar sozinha. Só tive uma rápida tontura,
mas já estou melhor.
— Tem certeza? Não quero vê-la rolando escada abaixo!
Albertine fingiu um sorriso e acompanhou Rosa até a saída da
biblioteca, mas antes que saíssem de lá, voltou a checar aquele local no canto
da sala. A figura da Rosa sem olhos, por algum motivo pressionando a
madeira do piso, ficaria para sempre naquele lugar, cada vez que os olhos da
única pessoa que a vira pousassem sobre ele.
Capítulo XIV

U M B R I N D E, U M S E G R E D O, U M A P R O M E S S A

Ao redor da ponta da mesa, forrada por uma bela toalha branca


bordada, estavam todos eles. Sobre a mesa, um pequeno bolo recheado,
coberto de glacê branco, com uma fina vela amarela perfurada em seu centro.
Era o aniversário de Rosa, e as outras mulheres da casa uniram-se na tarefa
de preparar o bolo secretamente, enquanto Jeremy mantinha a governanta
ocupada no andar de cima. Estava a adentrar em seus quarenta e seis anos,
dos quais dezenove se passaram ao lado dos Ridell, ou pelo menos de um
deles. Rosa sempre dizia que não gostava das festas surpresa que faziam para
ela, que só causava incômodos, mas todas as vezes em que aquilo se repetia,
ela sorria como uma criança feliz, lisonjeada por lembrarem-se de seu
aniversário.
Já era noite, e as lamparinas acesas posicionadas em locais estratégicos
iluminavam toda a casa. Após as ligeiras festividades e a degustação do bolo,
reuniram-se na sala de música; Jeremy estava disposto a exibir sua curta
experiência no piano, adquirida após as sessões aplicadas por Albertine.
Todos ouviam com atenção, entre elogios e risos, entre conversas e brindes.
As taças tilintavam ocasionalmente, enquanto bebiam o delicioso vinho
branco retirado da adega da mansão. Em um canto da sala, Ringo prestava
atenção a cada detalhe.
Atingida certa hora daquela agradável noite, Rosa iniciou a abertura de
seus presentes. O primeiro deles era o de Judith: um xale azul-celeste, de
pontas desfiadas e o nome de sua nova dona bordado em uma das laterais. O
presente de Martha veio em seguida, um broche em forma de flor, com
pétalas de um suave cor-de-rosa detalhadas em relevo. O último veio em
seguida, entregue por Jeremy e Albertine. Estava muito bem embrulhado por
um grande pedaço de papel sedoso, amarrado por uma fita vermelha. Do
pacote surgiu um vestido, um longo e belo vestido azul, assim como quase
todas as roupas de Rosa. A governanta, radiante, levantou-se e colocou o
vestido na frente do corpo, desenhando firulas com a barra florida da peça.
Dado o fim desta sessão, esvaziaram mais uma garrafa de vinho, até que os
empregados puseram-se, como de costume, a recolher a pouca bagunça que
fizeram.
Um a um foram subindo a seus quartos, alguns já quase tontos ao efeito
dos inúmeros brindes, até que restaram apenas Rosa, Jeremy e Albertine.
Prosseguiram com a conversa por outros vários minutos após a saída dos
outros empregados; o casal sempre apreciava ouvir as histórias daquela
senhora, que já viajara por terras longínquas, mas que pelas mãos do destino
acabara naquele pequeno pedaço de mundo.
— Muito bem. Acho que não consigo mais – disse Albertine,
levantando-se da cadeira com a ajuda de Jeremy. – Eu e o vinho não nos
damos muito bem. Preciso me deitar, ou acabarei adormecendo aqui mesmo.
Você vem, querido?
— Subirei em alguns minutos. Quero terminar esta última garrafa com
Rosa – ele respondeu, levando ao alto uma garrafa verde preenchida pouco
abaixo da metade pela requintada bebida, envelhecida por mais de meio
século.
— Tudo bem. Só não se embebede! – a moça respondeu de forma
arrastada.
— Acho que não fui eu quem bebeu demais, não é querida? – Jeremy
finalizou a conversa, sorrindo.
Albertine seguiu lentamente pela sala, chamou por Ringo, mas ele não
se mostrou disposto a abandonar sua confortável almofada. Com um gesto de
desaprovação, ela subiu as escadas, sentindo as pernas bambas e ainda
doloridas. Jeremy permaneceu em silêncio até que ouviu a porta do quarto
fechando-se, no andar de cima. Poderia, agora, conversar sem ser ouvido por
mais ninguém, além da única pessoa por quem desejava ser ouvido.
— Rosa...
— Sim, querido?
— Tem algo muito importante que venho querendo lhe perguntar, há
algum tempo.
— Muito bem, pode perguntar, agora – ela respondeu interessada, da
forma doce como sempre costumava falar.
Ela observou curiosa enquanto o patrão levou uma das mãos ao bolso
interno do colete cinza que usava. De dentro da veste, ele retirou uma chave –
aquela mesma chave enferrujada que encontrara em um velho baú,
abandonado no sótão. Vagarosamente, sem saber exatamente o motivo,
entregou-a Rosa, sentada bem à sua frente. Ela pareceu, então, surpresa, mas
ao mesmo tempo pronta a dizer tudo que Jeremy quisesse saber. Observou o
antigo objeto repousado na palma de sua mão direita, e por um instante
pareceu perdida, submersa em pensamentos.
— Você reconhece esta chave, não é? – perguntou o rapaz, inclinando-
se para frente.
Rosa hesitou. Por mais alguns segundos fitou a chave; apertou-a entre
as mãos, devolvendo-a ao rapaz logo em seguida. Endireitou-se na cadeira,
desamarrotou o vestido, mexeu nos cabelos. Procurava algo que pudesse, de
qualquer maneira, atrasar sua resposta.
— Sim, Jeremy. Reconheço.
Ele não pareceu surpreso. Era esta a resposta que esperava ouvir. As
circunstâncias já o tinham levado àquela conclusão. Se tudo realmente
houvesse sido como sempre lhe contaram, era impossível que, após a
descoberta do mausoléu de sua mãe, Rosa também não tivesse feito parte da
história daquela mansão, antes dela ser abandonada.
— Achou mesmo que eu nunca fosse descobrir?
— Não, não achei. Sempre soube que cedo ou tarde a verdade viria à
tona.
— E por que nunca me contou, Rosa? Escondeu isto de mim toda
minha vida, nas incontáveis vezes que lhe perguntava sobre minha mãe, sobre
onde ela estava enterrada.
— Fui forçada a isso, Jeremy. Como você sempre soube, seu pai nunca
foi um patrão muito agradável. Sempre recebi olhares de censura em todos os
momentos em que, de alguma forma, você me perguntava sobre Dianne. O
que eu deveria manter em sua cabeça, para sempre, era que o corpo de sua
mãe jazia no cemitério da cidade onde vivíamos, antes de nos mudarmos para
a vila.
— Mas não viviam em cidade alguma, não é? Foi para esta mansão que
meu pai os trouxe após casar-se com ela.
— Sim, você está certo. A verdade é que viemos para cá antes mesmo
de seus pais se casarem. E foi aqui também, Jeremy, que você nasceu. Nesta
mansão, na mesma cama onde Albertine está dormindo neste momento.
— Esta era mais uma das minhas suspeitas, afinal, uma caixa repleta de
roupas de bebê abandonada no sótão quer dizer alguma coisa, não?
A senhora sorriu. Sentiu-se aliviada ao perceber que aquela inevitável
conversa estava sendo, afinal, muito mais fácil do que ela sempre achou que
seria. Jeremy mantinha-se extremamente calmo e receptivo a todas as
revelações que já deveria ter ouvido há muito tempo.
— Algo que me deixa realmente perturbada é o fato de você ter
encontrado esta chave, já que nem eu mesma sabia onde encontrá-la, e
deduzir que ela abria justamente o mausoléu de sua mãe. Seu pai encarregou-
se de escondê-la, e nunca me disse onde a havia deixado, antes de irmos
embora.
— Ele poderia ter se esforçado mais, então. Encontrei-a por acaso, em
um dos velhos baús. Porém, não é isso que mais me intriga.
— E o que lhe intriga, querido?
— O que havia de tão errado aqui, para que abandonassem esta mansão
como fizeram? Quero dizer, estamos tendo uma vida muito agradável aqui.
— Quanto a isto, Jeremy, eu jamais saberia responder. Assim que você
nasceu, como você já sabe, nenhum de nós achava que fosse sobreviver. O
médico da vila nos preparou para o pior, e afirmou que somente um milagre o
salvaria. Então, este milagre chegou em poucos dias. Numa manhã chuvosa,
há quase vinte anos atrás, entrei no quarto e vi, em seu leito, aquele bebê
cheio de vida, em completo contraste ao bebê quase inerte que eu mesma
colocara a dormir, na noite anterior. Festejamos, comemoramos e
agradecemos por esta inesperada mudança. Porém, outra mudança também
estava a acontecer. Dianne, dia após dia, enfraquecia como uma planta não
regada; sua vitalidade parecia esvair-se à medida que você se recuperava. Era
como... uma troca.
— Troca?
— Oh, já estou aqui, dizendo bobagens. Nunca deixe uma senhora
beber mais que três taças de vinho!
— Então, ela enfraqueceu até morrer – Jeremy continuou, ao perceber
que Rosa já não se mostrava mais tão disposta a prosseguir com a conversa. –
Enterraram seu corpo no jardim, em um velho mausoléu, e simplesmente a
condenaram ao esquecimento.
— Preciso que entenda, querido, que isto fugia de minhas
responsabilidades. Eu era apenas uma criada, paga para cuidar da casa. Após
a partida de sua mãe, Joseph simplesmente resolveu abandonar esta mansão.
Nunca falou sobre o exato motivo, porém, seu pai não era um homem de todo
mau.
— Certo, vamos elogiar o falecido...
— Não seja tão irônico, Jeremy. Seu pai fez tudo o que pôde fazer para
dar-lhe uma boa vida. Nunca deixara que lhe faltasse nada, por menor que
fosse.
— Uma criança precisa de muito mais do que brinquedos, roupas ou
bons professores particulares. Um pai, um exemplo a seguir, um herói. Isto,
Rosa, eu nunca tive.
— Será mesmo, Jeremy? Olhe para você, veja o quão inteligente você
é, veja o quanto é bom no que faz. A Ridell pode não mais existir, mas veja o
quanto seu pai lhe deixou, todo o aprendizado que você recebeu ao longo dos
anos. Joseph pode ter sido um homem frio, e muitas vezes arrogante e
incompreensivo, mas ele também fora o grande responsável por, hoje, você
ser quem é.
— Você acredita mesmo em tudo isso? Você não lembra que, até pouco
tempo antes de morrer, o velho escondia de mim tudo isto? Eu poderia jamais
ter descoberto que era o dono desta casa, poderia estar agora vivendo em um
abrigo, se aqueles papéis não chegassem às minhas mãos.
— Ele tinha, acredite, seus motivos para não querer que voltássemos
para esta mansão. De fato, estes motivos nunca ficaram realmente claros para
mim, mas eu sabia que algo realmente importante o fizera chegar a esta
decisão.
— É difícil procurar e encontrar algo realmente plausível. Nada justifica
um pai que esconde o único legado, a única herança, do único filho.
— Aqui entre nós, Jeremy. Você acredita, realmente, que aqueles
papéis foram parar no seu escritório sozinhos?
— Foi você, não foi? Eu sempre soube disto, também, mas nunca tive a
real coragem de falar-lhe sobre isso.
— E não precisamos falar mais disso, agora. Só quero que saiba que eu
me preocupo mais com você, querido, do que comigo mesma. Jamais
deixaria algo de ruim acontecer-lhe. Tudo está como deveria estar. Depois de
tantos anos, uma voz dentro de mim me dizia o que fazer. O herdeiro deveria
voltar, e eu sempre soube que voltaria.
Jeremy segurou as mãos daquela que, além de mãe, era uma grande
amiga e cúmplice. Trocaram olhares de ternura, e nada mais precisou ser dito.
Após guardar a chave no bolso, levantou-se. Sentiu o sono chegando devagar,
junto com uma leve e rápida tontura causada pelo vinho. No canto da sala,
Ringo continuava deitado em sua almofada, porém, agora de cabeça erguida,
orelhas levantadas, como se prestasse atenção em algo que as duas pessoas
naquela sala não conseguiam ver ou ouvir. Sem aviso, soltou um choramingo
e ergueu a cabeça, mirando na direção da sala principal.
— O que houve, Ringo? – perguntou Rosa, como se esperasse uma
resposta do animal.
— Rosa – disse Jeremy, atraindo de volta a atenção da governanta. -
não conte nada disto a Albertine. A chave, o mausoléu. Não quero que ela
saiba ainda.
— Não vejo motivos para esconder de sua esposa este importante fato,
mas já que esta é sua decisão, por mim ela nunca saberá.
— Agradeço muito.
— Você sabe que sempre pode contar comigo.
— Sim. Sempre – Jeremy disse enquanto lançava mais um olhar
fraterno a Rosa.
— Está ficando tarde...
Um latido agudo de Ringo interrompeu o rapaz. O animal pusera-se de
pé, rosnando, enquanto mantinha os olhos na escada principal.
— Ringo?! Cale-se, vai acordar a todos!
O filhote novamente emitiu um latido muito alto, em seguida disparando pela
sala, subindo os degraus em velocidade quase sobrenatural. Jeremy e Rosa
entreolharam-se.
— O que houve com ele? – ela questionou.
Antes que Jeremy pudesse ao menos pensar em algo a dizer, ouviram
um grito vindo do andar de cima: um grito de pavor que ecoou por toda a
mansão. Seguiram na direção de onde viera o som, esbarrando-se. Subiram as
escadas, chegaram no corredor, e foram arrebatados por uma inesperada
situação: estava tomado por fumaça branca.
— Meu Deus! Jeremy, veja! – exclamou Rosa, agitada, apontando para
a porta do quarto do casal.
A fumaça vinha do quarto, expelindo-se em camadas por baixo da
porta. Jeremy imediatamente atirou-se à fechadura, de braços esticados, mas
recuou imediatamente ao tocá-la. Estava quente, e causaria graves
queimaduras a qualquer pessoa que tentasse segurá-la. A maçaneta de metal
ardia, como que se retirada da fôrma de fundição utilizando apenas as mãos
desprotegidas.
— Mas o que... – ele exclamou, retirando em uma ação elétrica a mão
da maçaneta, sacudindo-a ao ar, sentindo-a arder. –Albertine! Abra a porta!
— Jeremy, socorro! – Albertine então gritou em resposta.
— Rosa, acorde os homens, precisamos arrombar essa porta!
Antes mesmo de Rosa chegar à porta do quarto que os dois criados
dividiam, eles saíram apressados, atraídos pela gritaria e inconscientes do que
se passava. Judith e Martha também juntaram-se a eles, tossindo e abanando
os braços, na tentativa de dispersar a fumaça que ardia em seus olhos. Ringo
latia e acentuava a tensão no corredor. Estava instaurado o caos.
— JEREMY! – Albertine tornou a gritar, mal fazendo-se entender em
meio ao barulho excessivo. O som fluiu abafado pela cortina de fumaça que
se formava ao redor de todos eles.
— Thomas, Robert, me ajudem! Vamos levar essa porta abaixo!
Os dois homens aproximaram-se do patrão, esbarrando violentamente
nas mulheres paradas no meio do caminho, observando aflitas. Rosa
murmurava orações, como sempre fazia em situações de perigo. Com os
ombros, pressionaram a porta, que se mostrou resistente. Afastaram-se ao
mesmo tempo, e de forma rítmica novamente a atingiram, desta vez com mais
vigor; mais uma vez, nada aconteceu. O desespero tomou conta de Jeremy.
Pôs-se a chutar a tranca, enquanto sua esposa tossia e clamava por ajuda.
— Rosa, a chave mestra. Você a tem em seu molho de chaves!
Rosa saiu em disparada até seu quarto. Por um instante sentiu-se
estúpida por não ter se lembrado disto antes. O molho de chaves estava
guardado na primeira gaveta de sua cômoda; agarrou-o por entre os dedos e
retornou ao corredor. Não se ouvia mais a voz de Albertine a pedir socorro.
Jeremy ainda forçava a entrada, os olhos marejados, não sabia se por
lágrimas ou pelo efeito da fumaça. Rosa então lhe entregou as chaves, e ele
procurou pela maior delas, sentindo-as tremular entre seus dedos suados.
Encontrando a chave correta, errou uma, duas, três vezes, até que conseguiu
inseri-la na fenda. Antes de girá-la, porém, a porta se abriu sem que ninguém
além de Jeremy notasse. Ele, por sua vez, arregalou os olhos e assistiu a porta
movendo-se por vontade própria, como se mãos invisíveis a empurrassem.
— ALBERTINE! – gritou, deixando de lado o estranho acontecimento.
O quarto não estava tomado em chamas, como era o esperado por todos.
Havia apenas um foco, e estava concentrado no carpete, em forma de um
perfeito círculo, bem à frente da cama. A fumaça impedia-os de ver nem
mesmo um palmo à frente de seus rostos. Apenas as chamas, atingindo a
altura de uma pessoa adulta, permitiam-se enxergar, graças ao seu laranja
vívido que iluminava o quarto. Jeremy correu até a janela e abriu-a com um
só movimento. Sacudiu os braços, mas ainda não conseguia enxergar a cama;
Albertine nada dizia, e isto era o que causava mais medo ao rapaz.
— Albertine, meu amor, diga alguma coisa!
— Ela está desacordada, Jeremy – a voz de Rosa soou por entre a
fumaça. – Tire-a do quarto!
A circulação de ar, naquele momento, já expelira parte da fumaça,
possibilitando uma visão parcial por entre a cortina branca. Jeremy tossia
descontroladamente, ainda abanando os braços. As chamas espalhavam-se
por boa parte do carpete, e um movimento estratégico foi preciso para que ele
chegasse até a cama sem receber nenhuma queimadura. Viu Albertine lá,
imóvel, de olhos fechados, e sentiu o coração em mil pedaços. Ergueu-a em
seus braços como uma marionete sem vida, saltou pela cama e novamente
aventurou-se, num movimento brusco, por entre as chamas. Chegou a salvo
ao corredor, e no mesmo instante os empregados ocuparam o quarto,
carregando baldes d’água, na tentativa de extinguir o incêndio. Jeremy
carregava sua amada com todas as forças que conseguia reunir, mas
fraquejava a cada segundo, ainda tossindo e sentindo as pupilas consumidas
pelo ardor.
— Venha, Jeremy, coloque-a aqui! – disse Rosa enquanto guiava o
salvador de Albertine até seu quarto.
— O que devo fazer? Rosa, o que devo fazer? Ela não respira. Por
favor, me ajude!
— Jeremy, acalme-se!
— Meu Deus, ela não está respirando! – ele exclamava em aparente
desespero, enquanto encostava seu ouvido aos lábios de Albertine. Ela não
reagia a movimento algum, e de sua garganta não corria nenhum fluxo de ar.
Um imediato processo de primeiros socorros estava sendo necessário, e
Jeremy não sabia exatamente como fazê-lo. Entre lágrimas e tentativas de
recuperar o fôlego, ele posicionou-se ao lado da cama de Rosa, onde
Albertine estava estendida; ergueu-lhe o busto, levando um dos travesseiros
abaixo do pescoço, para que ficasse de rosto erguido. Respirou fundo e rezou
por dentro, mesmo sem saber exatamente como fazer isto, e levou os lábios
até os dela. Soprou-lhe ao interior da boca com suavidade, mas não obteve
qualquer sinal de recuperação. Repetiu o ato, desta vez com menos
prudência.
— Tenha cuidado, assim vai acabar sufocando-a de uma vez!
— Eu não sei como fazer isto. Não sei!
— Continue, repita!
Os lábios novamente se tocaram. Inspirou quanto ar seus pulmões
suportavam, mas antes que pudesse transferir este ar para Albertine,
mergulhou nas profundezas de sua mente, de seus sentimentos. Desejou do
fundo de sua alma que ela não partisse. Soprou mais uma vez, e Albertine,
como se ouvisse as preces, no mesmo instante libertou-se de sua
inconsciência com uma forte tosse.
— Deu certo, Rosa. Deu certo!
— Eu sabia que conseguiria!
Albertine moveu-se em um susto. Abriu os olhos, ainda muito pálida, e
observou cada um dos rostos aflitos a seu redor. Prendeu-se a Jeremy,
lançando-lhe um olhar confuso. Lembrava-se do fogo, da fumaça e de seus
pedidos de socorro, mas não sabia como viera parar em outro quarto.
— Meu amor, você está bem? – indagou-lhe Jeremy, segurando suas
mãos molhadas de suor frio.
Ela tentou falar, mas apenas conseguiu responder a pergunta de Jeremy
com um leve aceno de cabeça. Os braços do rapaz envolveram-na em um
caloroso abraço que, ele já sabia, não poderia ser recíproco. Albertine
esforçava-se para abrir os olhos, mas era impossível resistir ao ardor causado
pelo incêndio. Antes de desvencilhar-se dela, os empregados chegaram ao
quarto e comunicaram que o fogo, causado por um motivo aparentemente
inexplicável, fora finalmente extinto.
— Fique aqui com ela esta noite – disse Rosa. – Esta não é uma cama
para casal, mas é suficientemente espaçosa. Arranjarei algum espaço no
quarto das outras mulheres.
— Agradeço muito, Rosa – respondeu o rapaz, num misto de carinho e
emotividade. –Não sei o que seria de nós sem você.
A senhora, seguida pelos outros quatro criados, deixou o quarto e tudo
se fez silencioso. Jeremy olhou a seu redor, e percebeu que pela primeira vez
estava no recinto onde Rosa passava todas as noites. Nem mesmo em sua
antiga moradia, em seus vinte anos, havia dado este passo a algo tão íntimo
de sua mãe de criação.
O ambiente era minuciosamente decorado em tons de salmão e rosa,
suaves, como em um quarto de bebê. Havia poucos móveis, entre eles uma
penteadeira, uma cômoda e um criado-mudo ao lado da cama. Acima deste,
um pequeno relógio de bolso quebrado descansava, separado em duas partes,
ao lado de um vaso contendo flores amarelas. Em um dos cantos do cômodo
existia uma grande poltrona, de estofamento macio e atraente. Na intenção de
não interromper ou atrapalhar o repouso de sua esposa, Jeremy arrastou
silenciosamente a poltrona, posicionando-a ao lado da cama. Sentou-se nela,
percebendo assim o quanto era confortável e aconchegante.
Na cama, por sua vez, Albertine movia-se de forma inquieta. Jeremy
levou sua mão esquerda ao rosto suado da jovem mulher, enxugando-o com o
lenço que sempre carregava em um dos bolsos.
— Jeremy... – a voz de Albertine soou quase inaudível. Seus olhos
permaneciam fechados, e seus lábios agora demonstravam um repentino
ressecamento.
— Estou aqui, meu amor – ele respondeu, unindo suas mãos às dela
— Me desculpe... por isto.
— Shhhh, por favor, pare, não há motivos para pedir desculpas.
— Me desculpe... por trazer... problemas.
— Albertine! Não quero que diga mais nada. Você está sendo infantil!
— Me perdoe por isto também – ela respondeu com um leve sorriso.
Jeremy passou a fitá-la com ternura; como era possível uma mulher,
uma quase ainda menina, conter tanta beleza e graciosidade, mesmo em um
mau momento, ela não sabia dizer. Nada poderia, de qualquer maneira
tangível, deixar aquele jovem mais agradecido. Naquela noite, por uma
trapaça do destino, quase perdera tudo o que mais lhe significava.
— Albertine?
— Sim, querido?
— Prometa que nunca vai me deixar?
Albertine hesitou. Suspirou, apertou a mão de seu amado, sorriu.
— Nunca vou deixá-lo, Jeremy.
— Nunca.
Ao som desta promessa, o casal silenciou. Albertine entregou-se
rapidamente ao sono e ao cansaço. Jeremy, no entanto, iria manter-se ali, à
frente de seu grande amor, noite adentro zelando por seu sono.
Capítulo XV

NECRONOMICON

Albertine acordou sentindo frio. Já era dia, um dia sem sol, e por um
segundo, ela não entendeu por que não estava em seu quarto. Porém, logo
tudo se endireitou em sua mente e ela lembrou-se, em rápidas passagens, de
tudo que acontecera horas atrás. Jeremy não estava lá, somente o casaco que
usara na noite anterior jazia na poltrona. Albertine ergueu lentamente o corpo
a fim de sentar-se, moveu as pernas para fora do colchão, e logo estava de pé.
Sentiu os lábios secos como nunca antes, e uma indescritível sensação de
ardor nos olhos, ainda resultante do incidente com o fogo. Esgueirou-se pela
porta entreaberta, e logo percebeu que não havia ninguém no corredor.
Caminhou em passos silenciosos, e enquanto descia as escadas à sala, ouviu o
som abafado das vozes de Jeremy, Rosa e Robert em uma conversa,
provavelmente na cozinha. O atraente aroma do café fez o estômago de
Albertine incomodar-se pela fome, mas aliviou a consciência da moça sobre a
possibilidade de ter excedido seu tempo na cama.
As vozes foram tornando-se audíveis à medida que ela se aproximava
da cozinha, e por algum motivo, curiosidade talvez, passou a andar nas
pontas dos pés para evitar ser ouvida. Interessou-se em saber o que
conversavam sem que notassem.
— Mas como isso é possível? Não havia nada lá? – a voz de Jeremy
soou de maneira curiosa e parcialmente confusa.
— Não – respondeu Robert. –Checamos três, quatro vezes. O único
motivo que conseguimos imaginar seria uma das lamparinas indo ao chão,
derramando o óleo sobre o carpete.
— A lamparina estava muito bem apoiada à escrivaninha. Eu mesmo
certifiquei-me disto.
— Até quando ficarão tentando decifrar o indecifrável? – disse Rosa,
em meio ao som de alguns objetos encontrando-se. –Pelo menos de uma
coisa eu tenho certeza.
— E o que é?- disse Jeremy.
— Você e Albertine precisarão de um novo carpete!
Os três então compartilharam um riso, fazendo a conversa
instantaneamente perder o foco. Retornando ao ritmo normal, Albertine
esforçou-se para tornar seus passos audíveis e não demonstrar que espionava
a conversa.
— Bom dia! – ela disse da entrada da cozinha.
— Bom dia! – responderam todos simultaneamente, parecendo
surpresos ao vê-la já acordada.
— Jeremy, por que não me acordou? Não gosto de parecer preguiçosa!
— Achei que precisasse descansar um pouco mais – ele retrucou,
levantando-se da cadeira, indo até sua esposa e abraçando-a. - Você está
bem? Não se sente mal?
— Só estou um pouco tonta, minha garganta está seca também...
— Você inalou muita fumaça ontem, querida – Rosa inseriu-se à
conversa, enquanto enchia um copo com água. –Não é de se estranhar que
esteja se sentindo assim.
Albertine pegou o copo de vidro fino e levou-o aos lábios ressecados. A
água fresca escorreu por sua garganta, proporcionando um prazer que ela não
saberia descrever. Jeremy ainda a abraçava, com os braços entrelaçados na
cintura da esposa, o queixo apoiado em seu ombro. Antes que a água do copo
fosse completamente bebida, ele levou uma das mãos aos cabelos de
Albertine. Entre dois dedos separou uma fina mecha de fios louros e levou-a
à frente do rosto; sentiu o cheiro de fumaça impregnado em sua amada.
— Err... querida?
— Sim?
— Eu acho que você precisa de um banho.
— Jeremy!
Rosa sorriu discretamente enquanto Albertine cheirava cada parte
alcançável do corpo. Algo que deixava Albertine realmente irritada, de forma
irreversível por várias horas, era alguém indicar-lhe que não cheirava bem.
— Venha, vou preparar um banho para você – ofereceu-se a
governanta, indo até a moça e segurando-lhe um dos braços.
— Terei de fazer uma visita à vila, afinal, precisamos trocar a tapeçaria
do quarto. Trarei algum tapete grande para cobrir aquele estrago.
— Tudo bem, querido, tenha cuidado. Esperarei para almoçarmos
juntos.
E assim aquela manhã foi decidida. Jeremy seguiu sozinho à vila,
usando uma das charretes. Albertine, por sua vez, sentia fortes dores de
cabeça, ao mesmo tempo em que sentia algo pressionar suas entranhas, mas
evitava demonstrar qualquer tipo de injúria que viesse a deixar os outros
preocupados. Nem mesmo permitia-se falar sobre o estranho acontecimento
da noite passada, mas algo acontecera no quarto enquanto Rosa e Jeremy
conversavam na sala de música. O que para os outros ocupantes da mansão
parecia um incêndio inexplicável, também era para Albertine, porém de uma
maneira imensamente mais aterrorizante. Em sua mente estava afixada a
imagem daquela mulher, a mesma mulher sem olhos que vira na biblioteca,
caminhando ao redor da cama; sustentava uma lamparina acesa em uma das
mãos, e com a outra carregava uma folha de papel, uma espécie de página
retirada de algum livro antigo. Não exibia, como antes, a aparência de Rosa.
Surgira desta vez como uma mulher magra, de média estatura, de cabelos
lisos, à altura dos ombros, e tão negros quanto a noite que se consumia no
céu. Vestia uma espécie de mortalha – uma veste branca, com detalhes florais
espalhados por todo seu comprimento. Ela se movia como um incessante
pêndulo, da esquerda à direita, observando sem olhos, através das fendas
escuras no rosto descorado. Albertine sentira a voz perder-se em meio à falta
de ar causada pelo medo. Não conseguiria gritar ou sibilar qualquer palavra
enquanto aquela presença estivesse rondando seu leito. Até mesmo sua visão
parecia distorcida, cortando-se em flashes cada vez que os olhos piscavam.
Foi em um destes lampejos que a mulher desapareceu – tão sutilmente quanto
surgira – e o quarto já ardia em chamas impiedosas e instantâneas. E uma
dúvida surgia, naquele momento, nos pensamentos de Albertine. Tentava
examinar cada setor de seu cérebro a descobrir se, afinal, estaria
enlouquecendo.
— Querida? – disse Rosa, tocando o ombro da moça, despertando-a de
sua compenetrada autoindagação.
— Sim, Rosa?
— Seu banho já está pronto!
— Oh, sim. Já estou indo.
Enquanto Albertine seguia ao banheiro para lavar o corpo esbelto na
água morna da banheira, Rosa tentava decifrar os pensamentos dela através
de suas expressões. Aqueles grandes olhos verdes eram, mais do que para
qualquer outra pessoa que Rosa já chegara a conhecer, espelhos que refletiam
a alma e os sentimentos de sua dona. Era notável que algo a perturbava
naquele momento, dada a falta de contato visual que a moça esforçava-se em
manter. Mas a governanta, com toda a discrição que sempre cultivara,
procurava não questionar ninguém sobre seus assuntos únicos e pessoais.
Após dobrar um par de toalhas e guardá-las no armário do banheiro, ela
deixou o quarto e retornou a seus afazeres no andar de baixo. Albertine levou
poucos minutos para concluir seu banho, e agora, sentindo-se limpa e livre
dos resíduos de fumaça, tinha uma ideia pululando em sua mente. Precisava
ir a um certo local.
A porta da biblioteca rangeu e atritou-se ao piso quando foi aberta. As
cortinas encontravam-se desamarradas, movendo-se lentamente ao vento que
vinha de trás delas, pelas janelas abertas. Estava bem iluminada pela luz
quente do sol, e até poderia ser um local agradável para gastar-se um pouco
de tempo em um bom livro, mas não era de fato o que Albertine pretendia
fazer ali. Antes que prosseguisse, checou o corredor para certificar-se de que
nenhum dos criados rondava o andar de cima, então atravessou a entrada,
deixando a porta entreaberta para que ouvisse, com antecedência, caso
alguém resolvesse aparecer.
Não sabia exatamente o que estava fazendo, por isso caminhou de um
canto a outro, ouvindo apenas o som de seus passos ecoando pela biblioteca.
O som era seco e maciço, e manteve-se como tal por toda a extensão do piso.
Por um momento Albertine sentiu-se boba por nem mesmo saber o que
queria encontrar – ou mesmo se havia algo a ser encontrado – mas continuou
explorando cada centímetro do aposento. Por intuição, estava reservando
certo trecho do piso para o final - aquele encontro de paredes, onde tivera a
terrível visão da Rosa fantasma pressionando as mãos contra a madeira.
Sentiu o coração acelerar ao chegar até lá, quando o salto de seu sapato cor de
carmim produziu um som completamente distinto ao chocar-se contra o piso
naquele local específico. A madeira parecia menos espessa, e o piso, oco. A
curiosidade aflorou em suas veias naquele momento, após ter quase a certeza
de que a aparição estava, de alguma maneira, tentando mostrar alguma coisa
escondida naquela biblioteca.
Albertine sustentou a barra de seu vestido com as mãos e lentamente
ajoelhou-se, no exato local, na exata posição onde a mulher inexistente se
mostrara pela primeira vez. Era óbvio o que tinha de ser feito agora. As mãos
moveram-se, trêmulas e indecisas, até o assoalho; as palmas apoiaram-se à
tábua que se estendia até o fim da parede, enquanto as pontas dos dedos
aplicavam uma ligeira pressão para baixo. A madeira rangeu, e para o grande
espanto de Albertine, a extremidade da tábua elevou-se em resposta ao
movimento de suas mãos. Por um segundo a esposa de Jeremy hesitou. O que
estava fazendo, afinal, era bisbilhotar um possível segredo que a ela não cabia
descobrir. Porém, ela e apenas ela recebera o sinal, a aparição indicando-lhe o
que fazer, e isto fez com que continuasse. Removeu a tábua empoeirada e
descansou-a bem a seu lado, recostada à parede. Estava, pois, diante de uma
fenda no piso. Um compartimento secreto, oculto pela tábua solta, há quantos
anos era impossível saber.
O espaço era relativamente raso, e dentro dele escondia-se algo
retangular, envolvido por um retalho de tecido de um tom marrom
envelhecido. Nada havia, além disto, no compartimento. Albertine ergueu o
corpo até obter uma melhor visão sobre o que quer que estivesse escondido,
então afundou o antebraço pela fenda. Segurou o objeto e imediatamente
percebeu que estava a apalpar um livro. Retirou-o com cuidado, surpreendeu-
se com o peso excessivo do volume, e largou-o sobre o piso. Além do tecido
muito velho e encardido que o envolvia, um fino laço feito com uma fita
vermelha se estendia ao redor do embrulho. Albertine desatou facilmente o
laço, e uma a uma, passou a desdobrar as abas macias, que passavam a ligeira
impressão de imitar um envelope. Albertine engoliu a seco e sentiu um leve
sopro frio em suas entranhas naquele momento, ao fixar seus olhos na capa
do livro.
Necronomicon, era este o título do livro. As letras que o formavam
exibiam-se prensadas no que parecia ser um tipo de couro muito espesso, em
uma única camada que compunha toda a capa. Não havia qualquer outro tipo
de texto, nem mesmo o nome do autor daquele estranho livro, além do título
aparentemente estrangeiro do mesmo. “Necronomicon”, Albertine pensava.
Nada percorria-lhe a mente ao sussurrar tal palavra. Tomada de curiosidade,
virou a capa, exibindo uma página de papel amarelado, muito envelhecido,
roído em suas extremidades por traças, assim como todas as outras páginas.
Nada havia escrito nesta primeira lauda. Virou-a, e na segunda página viu
uma frase curta, formada por seis palavras a ela desconhecidas. A tinta usada
para escrevê-las tinha, estranhamente, um aspecto conhecido por qualquer um
que colocasse os olhos sobre ela. Era terrivelmente parecida com sangue,
desde a cor escuro-avermelhada até a consistência com que se inclinava para
fora do papel. “Ad eundum quo nemo ante iit”, era o que dizia a frase.
Albertine não sabia o que aquilo significava, mas podia deduzir que era,
claramente, uma frase que representaria o conteúdo daquele estranho livro.
Antes que pudesse prosseguir até a próxima página, o som de passos
denunciou que alguém subia as escadas rumo ao corredor. Imediatamente
Albertine fechou o volume, levantou-se, e repôs a tábua de volta a seu lugar
original. Encaixou o Necronomicon em um espaço vazio em uma das
prateleiras; ele destacou-se em meio aos outros livros, com sua estranha
aparência medieval, proporcionada pelo grosso couro que o envolvia.
— Albertine? – a voz de Rosa soou do início do comprido corredor.
— Estou aqui, na biblioteca! – a moça respondeu imediatamente,
certificando-se em não ter deixado à vista nada que denunciasse sua
descoberta.
— Não vai descer para o café? Estamos esperando!
— Oh, eu esqueci completamente! Já estou indo, Rosa.
Albertine olhou para trás antes de deixar a biblioteca. Toda a fome, todo
o ardor em seus olhos, tudo havia sido substituído pela inexplicável ânsia de
folhear aquele livro, encontrado sob circunstâncias tão incomuns. No
corredor, Ringo esperava abanando sua pequenina cauda, ao lado da
governanta, prostrada ao início dos degraus.
Desceram juntas e apreciaram a refeição, porém, Albertine apenas
fingia prestar atenção ao que lhe conversavam. Necronomicon era tudo o que
agora rebatia nas paredes de sua consciência.

No decorrer da tarde, Albertine ajudou as mulheres a trazerem de volta


ao normal o quarto afetado pelo incêndio. O carpete foi substituído por um
novo, um pouco diferente do anterior, composto por um material mais
espesso e mais escuro. O teto, que em parte recebera a fúria das chamas,
exigiu ser esfregado por vassouras de palha grossa, e em seguida receber uma
camada de tinta branca para que retornasse a seu estado anterior. Durante o
jantar, que seguiu-se logo após o término destes reparos, Albertine
continuava distraída e dispersa do que acontecia à mesa.
— O que está acontecendo, querida? – questionou-lhe Jeremy, enquanto
mergulhava um grande pedaço de pão à tigela de ensopado.
— Nada. Só estou um pouco cansada, não dormi muito bem esta noite,
e também não sinto muita vontade de jantar.
— Não pode ficar sem se alimentar, mocinha – Rosa atreveu-se a dizer,
em tom de reprovação. –Não comeu praticamente nada hoje durante todo o
dia. Apenas disfarçou entre um aperitivo e outro.
— Está me monitorando, Rosa? – ela retrucou de maneira divertida.
— Rosa tem razão, Albertine. Tem se alimentado mal, não só ela
percebeu. Está um pouco mais magra, inclusive.
— Este é um elogio que qualquer mulher gosta de ouvir.
Jeremy sorriu pelo canto dos lábios. Repôs a outra metade de seu pão de
volta à cesta, entrelaçou os dedos das duas mãos e passou a observar o rosto
de Albertine.
— Não foi um elogio – ele disse num misto de maldade e divertimento.

Albertine encarou-o um tanto espantada, sem compreender o motivo


daquele desfecho triunfante de seu esposo. Este tipo de comportamento
aleatório era algo que realmente a deixava frustrada. Entre uma conversa e
outra, Jeremy exibia aqueles sinais de agressividade, ou mesmo atitudes de
repreensão sobre um comentário ou ação tomada por ela. O que mais deixava
Albertine confusa era o fato de saber que antes do casamento, antes de tudo
mudar, ele sempre se mostrara um perfeito e doce cavalheiro. Não que não
mais o fosse, e ela entendia isso; porém, estes momentos de estranheza
jamais existiram enquanto não eram realmente casados, enquanto não havia
aquele novo nível de intimidade entre eles.
Recolheram-se bem cedo a seus aposentos, pouco tempo após o jantar.
Estavam todos exaustos e ainda afetados por uma noite de sono parcialmente
perdida. Durante a madrugada, o clima frio que geralmente percorria aquela
região intensificou-se como nunca antes. Jeremy e Albertine passaram a noite
carinhosamente abraçados, aquecendo um ao outro, corpo a corpo, entre
beijos e doces carinhos. Jeremy sempre demonstrava um pedido de perdão
em mimos e sussurros ao ouvido de sua amada e amante. Entre lençóis,
mantiveram-se distraídos todo o tempo antes que se entregassem ao sono, e
por isso não perceberam algo que se passava enquanto perdiam-se em meio
ao amor que lhes escapava pelos poros. Se por ao menos um segundo suas
pupilas enxergassem algo além dos corpos apaixonados, veriam, na janela do
quarto, um ligeiro sopro gelado embaçando o vidro. Um sopro tão similar e
tão rítmico quanto o da respiração de alguém, um alguém invisível, com seu
rosto inexistente recostado à vidraça. Não estavam, afinal, sozinhos naquele
quarto.
Capítulo XVI

PERFUME DE VIOLETAS

Jeremy levantou-se da cama depressa, com um só movimento, e em


uma fração de segundo já estava parado em frente à janela. A manhã estava
muito fria, e seus olhos perceberam, maravilhados, um majestoso tapete
branco que cobria todo o jardim da mansão, enquanto pequenos e formosos
flocos brancos caíam do céu.
— Albertine, acorde!
— Hmm... que houve?
— Venha até aqui!
— Qual o motivo de tanta animação tão cedo da manhã?
Albertine levantou-se, cheia de preguiça, e sentiu nos braços o frio que
tomava conta do quarto. Envolveu-se a um dos lençóis e moveu-se
cambaleante até onde estava seu esposo. Apertou os olhos ao olhar para fora,
e imediatamente exprimiu uma agradável surpresa ao perceber que a primeira
neve do ano estava a cair.
— Que maravilha! – ela exclamou, esgueirando-se para fora e
permitindo que flocos de neve enfeitassem seus cabelos louros.
— É lindo, não? Venha, vamos lá fora!
— Jeremy, espere! Preciso pôr um vestido e...
— Vista um roupão e luvas, vamos!
— Tudo bem, tudo bem.
Um minuto depois o casal deixou o quarto e dirigiu-se à sala em meio a
floreios e sorrisos animados, porém, antes de descer as escadas, Jeremy pediu
um minuto a sua esposa. Retornou ao quarto, gastou alguns segundos por lá,
e logo saiu, endireitando o sobretudo. Ringo já os esperava ao pé da escada,
como se também almejasse o encontro com a tão bela e adorada neve – a
primeira de toda sua jovem vida. A porta principal foi aberta, e o trio ganhou
o jardim coberto de branco. Ringo disparou por entre os arbustos, Jeremy
mexia na neve com as mãos cobertas por grossas luvas de lã, e Albertine
apenas observava, maravilhada, como tudo aquilo era belo e agradável. O
efeito branco era incrivelmente mais agradável naquele local do que sempre
fora todos os anos que viveram na vila; para Albertine, talvez o único ano em
que presenciara uma chegada de inverno tão esplêndida fora o que passara
em Paris.
— Querida, venha até aqui!
— Não! Estou usando um roupão, Jeremy!
— É a última que vez que vou pedir com carinho – ele respondeu
enquanto formava uma bola de neve entre as mãos.
— Não se atreva, Jeremy!
— É sua última chance!
— Já disse, não se atreva!
Mal se findou o último aviso de Albertine, e uma bola de neve foi
arremessada contra ela, chocando-se e se desfazendo em mil pedaços às
pernas da moça, cobertas pelo roupão de linho que descia até o início de seus
tornozelos.
— Eu avisei para não fazer isso! – ela exclamou em um estranho misto
de raiva e alegria, pondo-se em disparada atrás de Jeremy, que já carregava
mais duas bolas de neve prontas a serem lançadas.
Tudo que havia ao redor da mansão, e até ela mesma, parecia moldado
à mão para a construção de uma delicada maquete. O cenário emoldurado de
branco revigorava o cansaço causado pela monotonia de, dia após dia, apenas
receberem dos céus chuva e algumas poucas horas de sol. O carpete de neve
pouco a pouco se tornava repleto de pegadas – algumas grandes, feitas pela
botina de Jeremy, outras um pouco menores, porém mais largas, pelas
galochas de Albertine, e as últimas, bem pequenas e precisas, pelas patas
saltitantes de Ringo. Talvez por pura imaginação, ou mesmo por simples
alucinação, Albertine atentara a um quase imperceptível detalhe em meio a
toda aquela excitação. Enquanto prosseguia-se a perseguição entre Ringo e
Jeremy, de um canto a outro do jardim, a moça permanecera afixada ao
centro das centenas de pegadas, girando-se sobre o próprio eixo, observando
atentamente o chão sob seus pés.
— Albertine? O que está fazendo? – Jeremy gritou ao longe, ajoelhado
e ofegante.
— Já estou indo!
A atenção de Albertine focava-se ao terrível conhecimento de, bem ali,
no jardim da mansão, ela e seu amado estarem acompanhados de uma
presença invisível. As pegadas na neve estendiam-se a mais um ser que
caminhava entre os outros três: desenhos de pequenos pés descalços
misturavam-se às marcas criadas por eles. Um terrível calafrio percorreu por
completo o corpo de Albertine ao pensar que exatamente ali, naquele
instante, um ser não-palpável, fantasmagórico, estaria movendo-se a seu
redor.
Não quis mais prolongar sua presença, e assim desatou-se a correr com
quanto vigor lhe cabia, deixando Jeremy e Ringo sozinhos no jardim sem ao
menos uma explicação. Com todas as forças que conseguia reunir, mantinha-
se forte e aparentemente intacta a todos aqueles acontecimentos, que um a um
somavam-se em uma lista assustadora e inexplicável. Nada de realmente mal
havia acontecido-lhe até agora, mas por quanto tempo iriam ainda durar os
avisos, os sinais? Albertine estava absolutamente convencida de que havia
algo na mansão, algo que esperara por vinte anos, pacientemente, até que
aqueles quartos e salas fossem novamente preenchidos de vida. Por pura
sorte, aliada à destreza de Jeremy, sua vida não fora levada por este ser
desconhecido. Mas qual seria o motivo, qual seria a real intenção dele? A
indecisão parecia fazê-lo pender entre o desejo de levar Albertine consigo,
mas também em avisá-la sobre algo escondido entre as paredes daquela
misteriosa casa, e foi a partir deste fato que a moça seguiu decididamente seu
caminho até onde encontraria, por mais sutil que parecesse, uma resposta
para estas dúvidas, ou ao menos uma parte delas.
As cortinas da biblioteca foram abertas com rapidez e destreza,
permitindo a entrada de fachos de luz que exterminaram por completo as
trevas que caíam sobre as prateleiras. Tão decidida como nunca antes,
Albertine dirigiu-se à ultima delas, a prateleira no recanto da sala, onde ela
havia guardado o que agora fora novamente buscar. O Necronomicon estava
lá, exatamente como ela o deixara, exibindo todo seu aspecto rústico em meio
aos simples livros de capas lisas e discretas. Livros eram e sempre foram uma
das grandes paixões de Albertine, especialmente os de romances e novelas,
embora viesse aprendendo a aproveitar tipos diferentes de leitura; o foco
sempre fora a busca por conhecimento. Porém, nenhum outro volume, desde
sua infância, havia capturado-lhe os pensamentos de maneira tão irrevogável.
O Necronomicon atraíra Albertine como uma chama atrai uma mariposa
desde que estivera em suas mãos pela primeira vez.
Após retirá-lo da fileira, fazendo com que os remanescentes tombassem
uns sobre os outros, ela sentou-se ao sofá vermelho, juntando as pernas e
descansando o livro sobre elas. Abriu-o, e novamente deparou-se com aquela
frase em latim que não conseguia decifrar, e por um rápido momento hesitou
antes de prosseguir à próxima página. Desejou com todas as suas forças que a
linguagem do Necronomicon não seguisse a linguagem de sua frase de
abertura. Virou a página e deparou-se com um sumário em latim. Um longo
suspiro denunciou sua decepção, mas isso não foi o suficiente para fazê-la
desanimar.
O índice se espalhava por mais duas páginas seguintes, totalizando mais
de duzentos capítulos. As páginas não eram, no entanto, enumeradas.
Automaticamente, através de sua experiência com romances, Albertine
percebeu que não estava diante de um – os capítulos eram curtos demais. O
primeiro deles parecia conter nada mais que uma descrição, algum tipo de
introdução ao conteúdo que seria apresentado a partir dali. As letras eram
largas e espaçosas, de aparência manuscrita; pareciam compor páginas feitas
à mão, únicas, e não reproduzidas a partir de uma original. Seria o
Necronomicon alguma espécie de diário ou livro de anotações? Era difícil
dizer, essencialmente pela linguagem que impossibilitava a leitura. Já a idade
do grande livro não era de difícil intuição: as folhas eram totalmente
amareladas, de aparência quebradiça, roídas por traças em suas extremidades,
e até mesmo o cheiro muito forte que exalava por elas denunciava que aquele
objeto não existia por menos de um século.
O segundo capítulo era nomeado Mammom. Palavra simples e não
muito expressiva, porém, inexistente no vocabulário de sua atual leitora.
Seguindo-se logo abaixo deste título, escrito em letras altas, havia uma
peculiar ilustração de contornos grossos. Era um tipo de criatura humanoide,
com corpo de homem e cabeça de cão, exibindo uma coroa de pontas afiadas,
detalhada com o que pareciam ser pedras preciosas. De suas orelhas pontudas
pendiam grandes argolas. Tinha os braços erguidos, com gigantescas mãos
abertas, derramando por entre os dedos várias moedas e joias. O corpo
másculo encontrava-se enterrado em uma pilha de riquezas – coroas, taças,
castiçais, diamantes, e principalmente centenas de outras moedas, tais como
as que exibia em suas mãos. Em seus olhos nada havia além da cavidade
ocular, ilustrada como uma simples forma preenchida de negro.
Imediatamente abaixo à ilustração seguia-se um longo texto de letras
pequenas, que preenchia o resto da página e mais uma seguinte. A folha
seguinte, para o espanto de Albertine, não exibia a continuação do texto, mas
sim assinaturas, dezenas delas, preenchidas em posições aleatórias, algumas
sobrepondo-se a outras pela ausência de espaço. Após esta página surgiu
mais um capítulo de nome excêntrico: Vanth. Como o anterior, este capítulo
continha uma macabra ilustração – uma mulher coberta por um manto, com
grandes asas abrindo-se às costas. Em um de seus braços estava envolvida
uma serpente; em sua mão esquerda sustentava uma grande chave, e com a
direita erguia uma tocha, acima de sua cabeça. Assimilando-se à figura
anterior, não mostrava olhos, apenas os pontos onde deveriam estar,
preenchidos de negro. Mais uma vez, prosseguia-se um longo texto em latim,
e após ele, mais uma folha tomada por assinaturas.
E assim seguiram-se todos os capítulos, com nominações misteriosas
que variavam-se entre Succubus, Alastor, Bartzabel, Valac; títulos quase
místicos, acompanhados de ilustrações situadas em um estilo de arte misto
entre arcaico e rupestre, muitas vezes perturbadoras e inexplicáveis. Albertine
viu homens de dez cabeças equipados de espadas e escudos, mulheres com
serpentes escapando por seus orifícios faciais, criaturas com chifres, presas e
línguas pontiagudas. Não sabia, não lhe surgia pensamento algum sobre o que
aquele volume em língua desconhecida significava, e sentiu-se frustrada ao
perceber que, agora, estava mais confusa do que antes. Sobre o que falavam
aqueles textos em latim? E quais razões levariam alguém a eternizar seu
nome em uma assinatura naquele tenebroso livro?
Ainda que repleta de mais indagações, Albertine prosseguiu folheando
o Necronomicon; não iria desistir, buscaria até o último detalhe se fosse
preciso. Alcançava naquele momento a metade do conteúdo do livro,
esforçando-se em não focar sua imaginação no conteúdo da figura do capítulo
cento e nove, Belphegor, na qual um homem magro, despido, figurava
sentado a um trono, com chifres encaracolados e sua grande boca aberta.
Apressara-se em passar ao capítulo cento e dez; este, no entanto, para
surpresa da moça, não existia. Não estava presente a página de título e
descrição, mas sim apenas a folha amarelada referente às costumeiras
assinaturas que vinham ao fim de cada seção. A primeira e automática
intuição de Albertine foi voltar-se ao sumário – e lá estava listado
Agathodaemon como capítulo cento e dez. As sobrancelhas da moça
curvaram-se em expressão de suma curiosidade. Retornando ao ponto onde
havia parado, também agindo através da brilhante intuição que desenvolvera
desde criança, descobriu os resquícios daquela página inexistente,
discretamente encaixados entre as duas folhas visíveis, e descobriu que havia
sido arrancada. Por um segundo disparou a imaginar se a página fora
arrancada por acidente, ou se por alguém que não quisesse que o conteúdo
fosse visto caso aquele livro chegasse, como no exato momento, às mãos de
um novo leitor.
Em poucos minutos Albertine havia alcançado o fim do livro, já ciente
de que muitas daquelas ilustrações levariam horas para desprenderem-se de
seus pensamentos. Fechou o Necronomicon e, sem outra opção a apontar,
levou-o de volta à estante, tendo agora a cautela em escondê-lo por detrás de
alguns outros volumes. Ao deixar a biblioteca deu-se conta de que era cedo
demais – nenhum dos empregados estava ainda de pé, e isto era algo que
cumpriam pontualmente às sete horas da manhã de cada dia. Do lado de fora,
Jeremy continuava divertindo-se como uma criança, e ela sabia que não
dispunha de tanta energia, especialmente àquela hora da manhã, para
acompanhá-lo. Assim, retornou à cama para esperar o início da
movimentação natural da mansão. Os lençóis recém-lavados exalavam um
forte cheiro de violetas, que se apoderava do quarto e deixava Albertine
ligeiramente enjoada. Deitou-se, aninhada nas cobertas para proteger-se do
frio, e não demorou até caísse em leve sono.

Sem poder dizer exatamente quanto tempo dormira, Albertine despertou


parcialmente ao som de uma batida metálica, vinda do jardim, audível pela
janela completamente aberta. Assimilava-se ao choque de uma grossa placa
de ferro contra qualquer outra coisa igualmente sólida. Este barulho não foi,
no entanto, suficiente para realmente acordá-la, e logo seus olhos cerraram-se
vencidos pelo sono. Os latidos de Ringo entravam em seus ouvidos, cada vez
mais distantes, até que cessaram por completo. Ainda pendendo entre o
adormecer ou despertar, Albertine sentiu frio, um súbito frio que arrepiou sua
nuca, percorrendo seu corpo, findando-se em seu estômago, quase
congelando-o. Tentou mover-se, estender os braços e agasalhar-se com um
dos lençóis, mas não obteve resposta de seus membros – estava paralisada.
Seus olhos, semiabertos, enxergavam claramente as cortinas do quarto
movimentando-se ao sabor do vento que entrava pela janela; sentia ainda o
forte aroma floral, cada vez mais forte, penetrando em suas narinas, quase
exterminando sua noção de consciência de que estava tendo um daqueles
pesadelos dos quais era impossível despertar por vontade própria.
Mantinha-se desesperadamente na tentativa de mover os braços, mas
somente as pontas de seus dedos reagiam. Naquele exato momento, a porta
do quarto vagarosamente se abriu, e passos leves seguiram-se após o
fechamento dela. O sons do lado de fora haviam extinguido-se por completo,
fazendo Albertine deduzir – e realmente desejar – que a porta sendo aberta
devia-se a Jeremy retornando ao quarto. Encontrava-se deitada de lado, com
as costas voltadas para a entrada do quarto, portanto não poderia ter certeza
de que era ele, seu marido, quem estava agora provavelmente parado aos pés
da cama. Tentou chamar por ele, mas sua voz também não se deixou
comandar.
O frio continuava a incomodá-la de maneira quase dolorosa. A cama
movimentou-se e rangeu levemente, denunciando que Jeremy deitara-se ao
lado de sua esposa; os lençóis se moveram e cobriram os braços gelados de
Albertine, mas ainda assim ela não conseguiu ver as mãos que realizaram este
ato. Sentiu um corpo encostando-se ao seu, enquanto era envolvida por
braços talvez ainda mais gélidos que os dela própria; em sua nuca era
inspirada e expirada uma respiração lenta, terrivelmente sonora. Por seu peito
deslizou uma mão de dedos fechados em punho, e foi assim que, após
enxergá-la, Albertine sentiu tanto medo, tanto pavor, quanto nunca antes.
Não era a mão de Jeremy. Não fora seu esposo que deitara-se ao seu
lado. Era uma mão delicada, de dedos finos e pele indescritivelmente branca.
Entre os dedos dobrados segurava uma folha de papel, dobrada como um
pergaminho. E mais uma vez ela percebeu que aquela mulher, aquela
aparição macabra, mostrava-se presente, porém, desta vez de forma mais
audaciosa e apavorante. Albertine tentava gritar, descarregava dezenas de
comandos para que seu cérebro lhe ajudasse a se libertar daquele indescritível
momento de pânico, mas apenas seus dedos continuavam a obedecê-la. Não
conseguia mais resistir, sentia-se sufocada pelo frio, ou talvez mais ainda
pelo perfume que se alastrava pelo quarto como um gás de efeito moral. Seus
olhos fecharam-se e sua boca se abriu. Emitia grunhidos de socorro, o ar
sumindo-lhe dos pulmões, o frio congelando seus pensamentos. Tudo
escureceu, e ao longe ouviu vozes, gritos, pessoas chamando seu nome.
Despertou em seguida, como se a respiração retornasse em um só golpe,
quando Jeremy gritou seu nome enquanto sacudia-lhe a cabeça entre as mãos.
— Albertine! – ele exclamou, com os olhos fixos aos dela.
— Je-Jeremy... o que... o que houve?
— Você estava tendo um pesadelo! Parecia estar sendo sufocada!
Albertine friccionou as mãos em seus braços e sentiu o frio esvair-se
junto com o cheiro que a sufocava. Sabia que não fora um simples pesadelo,
mas não diria isto a Jeremy. A cada nova aparição, aquele fantasma
mostrava-se mais disposto a afetá-la de alguma forma, e parecia empenhado
em perturbá-la, em perturbar sua mente, ou talvez fazê-la tomar uma atitude
que ainda não estava clara. Algo que também não estava claro era quanto
tempo ainda levaria até que, de alguma maneira terrível, a vida de Albertine
fosse retirada em uma das inúmeras atividades sobrenaturais que se repetiam,
cada vez mais frequentes e perigosas.
— Está tudo bem? – Jeremy voltou a falar-lhe.
— Sim, foi apenas um pesadelo. Obrigada por me acordar!
— Você estava tremendo e...
— Não se preocupe comigo, está tudo bem!
— Não gosto de pesadelos. Eles acontecem quando algo nos perturba –
ele explicou-lhe de maneira doce e preocupada. –Algo a está perturbando,
querida?
Aquela pergunta afetou Albertine mais do que ela esperava, pois afinal,
a teoria de Jeremy não era de todo exagerada. Gritava por dentro, querendo
contar tudo ao seu amado – as aparições, os sinais, e principalmente sobre o
medo que se apossava dela a cada minuto, mas preferiu não fazê-lo.
— Não, amor. Nada me perturba. Estou perfeitamente bem.
— Espero que não esteja mentindo – ele finalizou a conversa, beijando
as mãos da moça suavemente.
Albertine levantou-se e sentiu as pernas fraquejarem ao tocar o chão.
Seguiu até o banheiro, mas pôde perceber que Jeremy, de forma disfarçada,
guardava algo em sua antiga maleta, levando-a à cômoda logo após. Não era,
entretanto, a primeira vez que Albertine presenciava uma cena de seu esposo
retirando, ou ao menos checando, algo dentro de sua pasta de couro, sempre
preocupado em fazer isto sem despertar a atenção dela. De fato, Albertine
jamais se interessara em saber o que havia dentro da maleta; conhecia seu
esposo muito bem, a ponto de saber se estivesse a esconder algo de suma
importância, e além disso, ela nunca fora do tipo bisbilhoteira. Qualquer
pessoa gostaria de um mínimo de privacidade, e Albertine prezava por
respeitá-la, embora não tivesse problemas em abrir mão da sua. Segredos
eram algo que nunca lhe agradara.
Já à mesa do café, posta às pressas após um pequeno atraso dos
empregados, causado pelo tempo que levaram apreciando a neve no jardim,
todos pareciam radiantes e animados. Jeremy e Albertine, porém, não
entendiam o porquê de tamanha excitação. Enquanto o casal acabava
lentamente com as fatias de pão, Rosa e as outras mulheres reparavam
vestidos, enquanto Robert e Thomas engraxavam seus mais belos sapatos.
— O que está acontecendo aqui? – indagou Jeremy ao finalizar sua
refeição. –Por que toda esta pressa em reparar vestidos?
— Oh, então não se lembra? – respondeu-lhe Rosa, sem desviar os
olhos do que fazia. –Hoje é o início do inverno, e assim, o dia do festival de
inverno da cidade!
— Oh, sim! Isto nem sequer passou pela minha cabeça, havia esquecido
por completo.
— Também havia me dispersado desta data... – explicou Albertine. –
Costumo ir ao festival todos os anos, como pude esquecer-me dele?
— Estava em Paris, nesta época do ano passado. É um bom motivo, não
acha? – caçoou Jeremy.
— Não gosto quando usa minha temporada em Paris em suas piadas.
Faz parecer que estive lá a passeio.
— Mas eu não...
— Não briguem, crianças – Rosa intrometeu-se e encerrou a discussão.
–Venha querida, vamos escolher um belo vestido em seu guarda-roupas. Se
precisar de algum reparo, rapidamente o farei.
Rosa guiava Albertine pelo braço, mas Jeremy interrompeu-as antes que
adentrassem na sala de jantar.
— Nós também teremos de ir, Albertine? – ele perguntou em voz
rápida, fazendo as duas mulheres entreolharem-se confusas.
— Costumamos ir todos os anos. Não quer ir ao festival desta vez?
— Não se trata disso... eu só estava pensando em passarmos nossa
primeira noite de inverno juntos aqui, em nossa casa. Poderíamos beber um
pouco de vinho ao pé da lareira, ou o que você preferir.
— O inverno não dura só uma noite, querido. Gostaria muito de ir ao
festival, sempre fomos, todos os anos. Por favor, por favor!
Jeremy não gostava nem um pouco dos festivais, ou de qualquer outro
tipo de evento que se realizasse na cidade. O festival de inverno dava-se à
primeira noite de neve, reunindo toda a população em festejos, danças,
concursos culturais e até um brechó beneficente, todos os anos organizado
pelo Padre Jullian, o grande e antigo amigo de Albertine. Era comum Jeremy
acompanhá-la em cada ano de festival, sempre disposto a agradá-la, mas
ambos sabiam que aqueles tempos não mais existiam. A ânsia em
impressioná-la, a boa vontade, o sincero cavalheirismo, isso aos poucos
desaparecia do ser que Jeremy aos poucos se transformava. No fundo, ele
tentava evitar esta mudança que, já dizia seu pai, era inevitável ao dar-se o
passo do casamento, porém não entendia se resistia a este fato para manter
sua boa vida com a mulher que amava, ou apenas para desvencilhar-se de
qualquer semelhança que o aproximasse de seu falecido pai. Além do mais,
ele sabia muito bem que o festival ocorria, sem mudança, sempre ao cair da
noite, e jamais reuniria coragem suficiente para fazê-lo permanecer na
mansão, sozinho, rodeado pelo silêncio.
— Tudo bem, você venceu – disse Jeremy, forçando a atuação a parecer
uma decisão natural.
— Eu sempre venço – retrucou Albertine animada, retomando seu
caminho junto a Rosa, que lançou um olhar simpático ao rapaz, sendo
retribuída com uma piscadela de olhos.
— Como estão indo com os sapatos? – ele perguntou a Thomas, que
agora lustrava seu calçado com um pequeno e grosso pincel encharcado com
algum tipo de óleo próprio para embelezar objetos de couro.
— Tudo em ordem. Se precisar, posso engraxar os seus também –
ofereceu-se Thomas, bondoso e prestativo como sempre fora.
— Não, tudo bem. Não se preocupe com isso.
No andar de cima, de volta ao quarto, Albertine selecionava entre seus
inúmeros vestidos o que usaria no festival. Suas peças de vestuário eram em
sua grande maioria brancas, cor que não ganhava realce algum em dias de
inverno e de neve. Entre os poucos vestidos de cores fortes, acabou por
selecionar um de cor verde-musgo, adquirido em Paris em uma das raras
ocasiões em que sua tia Noelle permitiu que saísse sozinha. Aquele tom
realçava a brancura de sua pele, resultando em uma beleza ainda mais notável
e radiante.
— Veja este, Rosa. O que acha?
— Esplêndido! – respondeu a governanta, enquanto dobrava os lençóis
da cama do casal, a fim de guardá-los na cômoda.
— Creio que não precise de nenhum reparo, posso contar com os dedos
de uma só mão as vezes em que foi usado.
— Prefiro me certificar – Rosa continuou, indo até o móvel que
guardava o restante dos lençóis, abrindo-o com dificuldade enquanto
carregava os itens de cama em um dos braços. De forma desajeitada,
depositou-os dentro da cômoda, fazendo com que a pasta de Jeremy
despencasse ao chão, abrindo-se e espalhando algumas folhas de papel pelo
assoalho. –Não entendo por que Jeremy insiste em guardar esta pasta aqui,
junto dos lençóis. Sempre a deixo cair!
— Deixe-me apanhar estes papéis. Vou guardá-la em outro local.
A pasta de couro estava largada aos pés de Rosa. Albertine ajoelhou-se
e reuniu as pautas que se espalharam ao redor do objeto, puxou a maleta pelas
alças e sentou-se na cama para reorganizá-la. Estava repleta de dezenas de
outras folhas, algumas reunidas em maços – eram os documentos que Jeremy
tanto lera e relera quando ainda era funcionário da Ridell. Era mais pesada do
que aparentava ser, e parecia, ainda, ser pequena demais para comportar
tantos papéis. Após reunir as folhas caídas, Albertine cuidadosamente
alinhou-as e as reposicionou na pasta, inserindo vagarosamente uma das
mãos, ansiando não danificar nenhuma delas. Foi assim que as pontas de seus
dedos encontraram um objeto metálico, frio, e bem mais sólido que folhas de
papel. Às suas costas, Rosa explicava algo, ainda organizando os lençóis,
sobre uma feira beneficente de livros usados, da qual fora informada durante
a última visita que fez à cidade; Albertine fingia prestar-lhe atenção, mas
estava ainda indecisa sobre retirar ou não o objeto que descobrira, e pelo qual
deslizava as unhas bem feitas. Não sabia se deveria mexer no que não lhe
pertencia, mas algo em sua consciência a tentava a fazê-lo.
Seus dedos, então, fecharam-se ao redor do objeto. Antes mesmo de
trazê-lo à vista, ela já o identificara pelo tato – uma chave grande,
provavelmente de uma fechadura de igual magnitude. Espiando pelos
ombros, evitando permitir que Rosa visse o que fazia, ergueu a chave até
onde conseguiu vê-la sem estar perdida entre papéis e canetas. Embora o
estilo gótico do objeto a agradasse, estranhou o fato de ter encontrado tal
artefato na pasta de Jeremy. Todas as chaves, de cada cômodo da mansão,
encontravam-se no molho de chaves principal, sempre pendurado no gancho
afixado ao painel de bronze, ao lado da porta de entrada. Contudo, preferiu
não preocupar-se com isto, seria apenas mais um motivo para ocupar seus
pensamentos já tomados por tantas outras aflições; levou a chave de volta à
maleta, levantou-se e guardou-a em uma das gavetas da cômoda.
Capítulo XVII

ODEMÔNIO NA GAIOLA

Os portões já estavam abertos, os cavalos prontos, e todos os


passageiros, exceto Albertine, já acomodados, divididos nas duas carruagens.
Jeremy andava em círculos, arremessando porções de neve com os sapatos
recém-engraxados. Estava já impaciente pelo atraso de Albertine, que na hora
final percebera a intensidade do frio que se abatia fora das paredes da
mansão, retornando assim ao quarto a fim de apanhar algum item para
agasalhar-se e evitar um possível resfriado.
— Por que ela demora tanto? – ele questionou-se, mirando o olhar de
Rosa, que parecia divertir-se com sua irritação.
Antes que ele concluísse mais uma volta ao redor das carruagens,
Albertine surgiu à porta usando um delicado xale de cor vinho, que caiu
perfeitamente sobre o vestido verde-musgo. Trazia ainda um pacote entre os
braços, algo que não carregava antes de retornar à mansão.
— Aonde vai com isto? – Jeremy perguntou antes mesmo que ela
pudesse terminar de trancar a porta.
— Ao festival, Jeremy. Esqueceu-se da feira de livros? Selecionei
alguns volumes velhos e estou levando-os para colaborar com a igreja.
— Oh, claro. O Padre Jullian realmente precisa de quatro livros cheios
de mofo.
— E você precisa aprender a não ser tão constantemente desagradável.
— Dê-me o pacote, me deixe carregar até a carruagem. Isto me tornaria
uma pessoa melhor?
— Não se preocupe, posso carregá-los sozinha – ela retrucou,
acelerando seus passos ate distanciar-se de Jeremy.
Em carruagens separadas o casal iniciou a viagem até a cidade. A trilha
da floresta não se permitia ver por baixo da neve, e os veículos moviam-se
com certa dificuldade, deixando fundas marcas ao longo de toda a trajetória.
A floresta nunca esteve tão clara como naquela noite; mesmo sem a luz do
sol, o branco da neve absorvia o brilho da lua e convertia-se quase em uma
superfície espelhada, refletindo sua luz prateada e vívida.
No interior da carruagem, as criadas conversavam animadas sobre o
festival, mas Albertine apenas ouvia de maneira dispersa. Sustentava os
livros junto ao peito, desejando chegar o quanto antes à cidade. Jeremy e
Rosa encontravam-se na mesma carruagem, mas também não conversavam
além do necessário. Algo que Rosa sempre evitava fazer era iniciar uma
conversa com Jeremy após algum momento em que, da mais simples
maneira, ele houvesse sido contrariado, e se ela não o conhecesse tão bem,
não notaria que o rapaz não estava indo ao festival por livre e espontânea
vontade. Dias frios eram os que mais o incomodavam, desde sempre, sem
dúvidas devido às suas dores ósseas que se manifestavam naquele tipo de
ocasião.
Ainda ligados a este problema, entretanto, Rosa percebera que, naquele
início de inverno, Jeremy parecia mais saudável do que fora durante toda sua
vida. As bochechas sempre pálidas exibiam um leve tom rosado, o corpo
magro parecia ligeiramente mais preenchido, e até mesmo as olheiras que o
acompanharam durante toda a vida pareciam sumir, dia após dia. Jeremy
estava mudando – impossível dizer se com mais intensidade por dentro ou
por fora.

Já na entrada da cidade, os ornamentos do festival alegravam cada uma


das ruas, largas ou estreitas. À medida que avançavam rumo ao foco dos
festejos – a praça principal –, o movimento de pessoas, divertidamente
vestidas por casacos coloridos, aumentava e dificultava o trajeto das duas
carruagens. Pouco antes que avistassem a torre da igreja, enfeitada por
dezenas de lâmpadas amarelas, uma girândola explodiu no céu, derramando
flocos multicoloridos sobre os telhados cobertos de neve. A música já se fazia
ouvir ao longe, misturada entre tamborins e clarinetas, soando no típico estilo
medieval, comumente tocado nos festivais que se iniciavam junto com o
solstício de inverno.
Os cocheiros adentraram o largo central da cidade, e lá estavam diante
de centenas de pessoas, das mais variadas idades, dançando e cantando,
repletas de sorrisos. Posicionadas lado a lado, as carruagens agora
encontravam-se imóveis, pouco antes da escadaria da grande igreja, a igreja
ministrada pelo Padre Jullian. Jeremy desceu, em seguida ajudando Rosa a
deixar o veículo; Robert fez o mesmo por todas as outras mulheres. Albertine
por sua vez movia-se com dificuldade, com um dos braços sustentando o
pacote de livros embrulhado em papel, e envolvido por um velho barbante
para que não despencassem. Num pequeno salto, deixou a carruagem e
cambaleou ao sentir a força em suas pernas esvair-se momentaneamente.
Teria estendido-se ao chão caso Robert não a sustentasse em tempo. Rosa
correu a seu encontro, e Jeremy permaneceu onde estava, observando sem
real interesse.
— Você se machucou? – questionou Rosa, com uma das mãos
sustentando o cotovelo de Albertine.
— Não, apenas tropecei – ela mentiu em resposta. Sentia agora fortes
dores em seus membros inferiores, mas algo lhe dizia que não poderia
assumi-las na frente de Jeremy.
— Tome cuidado com a neve, às vezes ela nos prega peças – Rosa
consolou-a. –Venha, dê-me aqui seu braço, vamos caminhar juntas.
E assim seguiram até a praça, um grupo de sete pessoas do qual Jeremy
parecia ser algum tipo de líder, caminhando alguns passos à frente. Chegando
lá, o primeiro evento que presenciaram foi uma competição de bonecos de
neve; os concorrentes eram em sua quase totalidade crianças acompanhadas
dos pais, afixando pedras, galhos, cachecóis e, sem dúvidas, cenouras como
narizes em suas esculturas. Pouco mais à frente, um grupo praticava um
típico estilo de dança, variante da clássica mazurca, ao redor de uma grande
fogueira, ao embalo do saboroso som de um acordeom tocado por um senhor
de meia idade, usando um chapéu decorado com plumas brancas. Por um
segundo Albertine pensara em esquecer as barreiras e convidar seu esposo a
juntarem-se aos dançarinos, mas não reuniu forças o suficiente para este
pedido, temendo a recusa de uma forma não muito sutil. Naquele momento,
causando uma agradável surpresa, Jeremy virou-se, dirigiu-se a sua esposa e
tomou-lhe uma das mãos.
— Posso pedir uma dança?
Os olhos verdes de Albertine cintilaram de alegria após o inesperado
convite. Era a primeira vez em toda sua vida que era convidada para dançar.
— Na verdade, achei que não fosse pedir.
Antes que lhe fosse solicitado, Rosa apanhou o pacote de livros que
Albertine carregava, e o jovem casal uniu-se à trupe de dançarinos. Com uma
das mãos na cintura de Albertine, Jeremy tentava de forma atrapalhada
adequar-se ao ritmo da música; Albertine, por sua vez, era dona de um nato
talento, além de excelente desenvoltura para aquele tipo de manifestação, mas
procurou manter-se em um nível não muito avançado para não deixá-lo
constrangido. Segurou as mãos de Jeremy, guiando seus passos, fazendo-o
acertar o complicado passo da típica dança folclórica. Olhavam-se nos olhos
e compartilhavam um sorriso.
— Opa, me desculpe! – exclamou o rapaz ao pisar um dos pés de sua
parceira.
— Tudo bem, é normal para principiantes.
Os olhos da moça prenderam-se ao rosto perfeito de Jeremy, e todos
aqueles maus momentos que estavam vivendo nos últimos dias pareceram
não mais existir. Todo o amor, todo o sentimento percorria seu corpo por
completo a cada batimento do coração apaixonado. Aqueles olhos negros, os
cabelos desgrenhados, a barba por fazer: tudo parecia perfeitamente moldado
como um presente a ela. Jeremy significava seu amor incontestável, seu
sorriso matinal e seu beijo de boa noite. Apenas seu nome, a junção de
algumas letras, traduzia-se para Albertine em toda uma enciclopédia de
sensações e sentimentos, ou em uma bela canção da qual somente ela
conhecia a melodia.
— Jeremy? – ela disse, examinando cada centímetro da face do jovem.
— Sim?
Albertine estremeceu ao som da voz grave, mas suave, do homem à sua
frente, e pareceu perdida em seus próprios pensamentos. Queria derramar-se
em declarações, em rimas e versos a ele, mas sentia por dentro que talvez
parecesse exageradamente emotiva, ou que estaria agindo como uma boba
por sentir que, naquele momento, ele era a razão de seus olhos claros
agradecerem, todos os dias, por acordarem-se para uma nova manhã.
— Nada... não foi nada.
— Certo, então – ele disse quase desconfiado. –Ah, Albertine?
— O quê?
— Agora é você quem está me pisando.
Dividiram mais um riso e continuaram girando em torno da grande
fogueira. Rosa e os outros observavam, acompanhando em palmas a música
que aos poucos se tornava mais acelerada. A neve tornou a cair sobre eles, e
pouco a pouco os flocos brancos emaranhavam-se nos cabelos louros de
Albertine, assim como nos negros de Jeremy, desfazendo-se poucos segundos
depois.
Já sentindo um leve cansaço, o casal deixou a roda e retornou para junto
dos seus. O humor de ambos havia mudado completamente se comparado ao
momento em que chegaram ao festival; estavam agora radiantes e felizes.
— Nunca achei que fosse vê-lo dançando! – Rosa dirigiu-se ao rapaz
com animação.
— Nem eu mesmo, Rosa. Nem eu mesmo!
— E se saiu muito bem, para a primeira vez – completou Albertine. –
Ah, Rosa, pode me devolver o pacote agora. Vou até a igreja entregá-los ao
Padre Jullian.
— Mal chegamos e já vai passar metade do tempo conversando com
ele?
— Apenas entregarei os livros, Jeremy. Por favor, não implique com o
Padre!
— Tudo bem, mas não demore, certo? Vou comprar algumas cervejas
para nós.
— Não se preocupe comigo, não gosto nem um pouco destas cervejas.
Voltarei antes mesmo que perceba – ela respondeu, e com esta última frase,
rumou seus passos à igreja, sentindo seus pés afundarem na trilha de neve.
Uma nova girândola explodiu no momento em que Albertine alcançou a
calçadinha de pedra que levava até a escadaria do templo. A neve nos degraus
parecia intocada por outros fiéis ou passantes, denunciando que não havia
ninguém lá, sem dúvidas devido ao festival. Ao chegar no topo, ainda
sentindo o terrível incômodo que agora se concentrava nos tornozelos,
Albertine logo seguiu até a grande e espessa porta. Temeu encontrá-la
fechada, mas ela moveu-se ao não tão leve movimento aplicado para abri-la.
Pela fresta, as suspeitas da moça se concretizaram: nem sequer uma viva
alma ocupava qualquer espaço nas dezenas de assentos de madeira. O corpo
magro de Albertine então atravessou-se com facilidade pelo estreito espaço já
aberto, mas atrapalhou-se levemente pelo pacote de livros. Já em solo
sagrado, fechou novamente a gigantesca porta.
O som do vozerio misturado à música cessou por completo, e tudo
mergulhou em profundo silêncio. Os passos da visitante ecoavam de parede a
parede da gigantesca construção. Alcançando e parando bem em frente ao
altar, ela girou-se de um lado a outro, procurando algum sinal do Padre ou de
qualquer outro eclesiástico que pudesse dizer onde encontrá-lo, mas logo
percebeu que aquele absoluto silêncio não existiria se houvesse mais alguém
por lá. Sentiu-se decepcionada, e agora apenas tinha duas opções a apontar:
dar meia volta e deixar a igreja, ou dirigir-se à sala particular do Padre
Jullian. Esta segunda opção era, no entanto, ousada e assustadora. Memórias
de uma inesquecível tarde de verão, ocorrida há quase uma década,
retornaram à mente da moça diante daquela possibilidade.

As horas corriam entre a despedida da tarde e o surgir do crepúsculo, e


Albertine, uma menina de nove ou dez anos, despedia-se das últimas crianças
que vinham animadas, todas as quartas-feiras, assistir às aulas de violino no
salão paroquial. A porta foi fechada assim que o mesmo menino, Anthony se
não lhe falhasse a memória, saíra mais uma vez atrasado. Estava sozinha
naquela gigantesca igreja. O Padre Jullian, alguns anos mais novo do que no
atual momento, havia saído em mais uma de suas expedições misteriosas,
algo que fazia em frequência de duas a três vezes a cada semestre. Ele sempre
levava uma grande bagagem, aparentemente muito pesada, repleta de itens
que chacoalhavam e tilintavam uns contra os outros no interior da mala.
As aulas, assim como a responsabilidade de guardar a chave da igreja,
ficavam nas mãos daquela jovem, porém imensamente responsável menina.
Foi em uma destas tardes que algo aconteceu, mudando de alguma forma a
visão que Albertine tinha do bondoso Padre. Sua sala particular, que sempre
era mantida trancada durante as longas viagens, por algum motivo – talvez
simples esquecimento – fora deixada aberta. A porta de metal, semicerrada,
exibia por entre sua fresta um facho de luz alaranjada que iluminava o
estreito corredor, que se estendia por trás de uma parede suspensa construída
diante do altar, no qual existiam as salas onde todo o material das aulas era
depositado. O violino foi apoiado cuidadosamente ao chão, e as pequenas
mãos empurraram a porta até que fosse possível passar-se por ela.
Albertine sentiu um forte cheiro de madeira envelhecida, e estava então
em uma sala relativamente pequena, porém repleta de itens excêntricos,
diferentes de tudo que ela já havia visto em sua curta vida. Do teto pendia um
tipo de planetário, uma representação do sistema solar feito com bolas ocas
de metal. Vários armários expositores exibiam em suas prateleiras dezenas de
objetos que a menina jamais poderia identificar – alguns pareciam
instrumentos hospitalares, outros assimilavam-se a relógios de mesa nos mais
variados formatos. Pelas duas mesas, assim como na escrivaninha, inúmeras
folhas de papel, pergaminhos e livros amontoavam-se em quase desordem.
Estes itens de leitura, no entanto, eram em sua grande maioria escritos em
latim. Em um dos recantos da sala, bem ao lado da velha cama em que Jullian
dormia, havia um último armário, mas este não era de portas de vidro. Era de
madeira, e parecia ter idade bem mais avançada que todos os outros à sua
volta. Sobre ele, descansada e coberta por um pedaço de pano vermelho,
havia uma gaiola grande, idêntica à que Albertine recebera de presente do
Padre em seu aniversário, contendo um casal de canários que por um tempo
alegraram as manhãs da casa do Grahanfield, mas que foram libertados pela
menina que era totalmente contra o cativeiro de animais.
Tomada pela inevitável curiosidade de criança, Albertine caminhou até
este armário e lentamente o abriu. Os olhinhos vaguearam por vários tubos e
potes de vidro enfileirados. O estômago de Albertine embrulhou-se diante de
tal visão. Dentro deles havia fetos, aparentemente não humanos;
apresentavam, cada um, um tipo diferente de deformação genética – um deles
possuía duas cabeças, outro não possuía cabeça alguma, alguns exibiam
braços desprovidos de mãos, e outros, por fim, assemelhavam-se a raízes
retorcidas feitas de carne e pele. Flutuavam no asqueroso líquido amarelado
no qual estavam mergulhados, e alguns até pareciam, estranhamente,
demonstrar algum sinal vital, como pequenas veias pulsando por baixo da
pele semitransparente. Não mais conseguindo suportar o estômago
embrulhando-se diante daquela horrenda visão, a menina fechou o armário,
utilizando-se de um pouco mais de força do que deveria, fazendo a gaiola
coberta, acima dele, vibrar de um lado a outro. Foi assim que o que quer que
estivesse dentro dela despertou.
Ouviu-se um bater de asas, seguido de uma espécie de grunhido, um
gemido de fora para dentro. Era um som que pássaro algum seria capaz de
produzir. Terrivelmente dividida entre o medo e a ânsia em saber o que
estava sendo escondido por baixo do pano vermelho, Albertine elevara os
braços até onde pudessem alcançar a gaiola. Sentiu os dedos tocarem o
delicado tecido aveludado, e passou a puxá-lo lentamente. Antes que pudesse
concluir este ato, no entanto, ouviu sons à suas costas, vindos do salão
principal da igreja. Sem nem mesmo um segundo de atraso, deixou a sala e
recostou a porta da maneira como havia encontrado, recuperou o violino e
levou-o até o depósito, que ficava alguns passos adiante. Retornando ao
salão, descobriu que não havia ninguém lá – provavelmente algum fiel
adentrara a igreja à procura do Padre Jullian, indo embora ao não encontrá-lo.
Um forte desejo a convencia a voltar e concluir o que estava prestes a
descobrir, mas ela sabia que em poucos minutos, como era de costume após
as aulas, seu pai chegaria para buscá-la. Assim, deixou a igreja e sentou-se no
último degrau da escadaria, e esperou até que a carruagem de sua família
surgisse no largo da praça.

Libertando-se de suas memórias, novamente focada em encontrar o


Padre Jullian, a Albertine adulta caminhou lentamente por trás do altar,
seguindo diretamente até o corredor, o corredor que guardava aquelas
lembranças sobre a misteriosa vida de Jullian. Chegando lá, parou, com o
pacote de livros entre os braços, e viu que tudo ainda era exatamente igual a
como se lembrava. O corredor estava mal iluminado apenas por uma pequena
lâmpada incandescente que pendia do teto, e por mais um estreito facho de
luz que vinha da sala que Albertine planejava mais uma vez adentrar. A porta
estava, mais uma vez, entreaberta, e com a mesma dúvida intocada pelos dez
anos que se passaram, a moça entrou outra vez naquele misterioso lugar.
A luz alaranjada banhou o corredor e incomodou os olhos de Albertine.
Observou a seu redor, percebendo que quase tudo ainda era exatamente igual,
até mesmo aquele cheiro de madeira envelhecida. A sala havia recebido uma
nova mesa, bem pequena, posicionada aos pés da cama, onde alguns lençóis
descansavam muito bem dobrados. Tudo ainda estava lá: o planetário, os
armários expositores, os pergaminhos e livros. A gaiola, também, ainda
existia. No mesmo local, da mesma maneira, coberta provavelmente pelo
mesmo manto de tecido vermelho.
Os livros que carregava foram então colocados com cuidado sobre uma
das mesas já forradas de papéis; estava mais uma vez invadindo o recinto do
Padre Jullian, porém desta vez não estava certa de que ele não fosse encontrá-
la por lá; sabia que ele se dedicava fielmente, todos os anos, ao festival de
inverno, e jamais entraria em viagem neste período. Mesmo que por pouco
tempo, a sala estava novamente ao dispor de Albertine, pronta para revelar-
lhe seus segredos, aqueles mesmos segredos que jamais seriam
compreendidos pela mente da criança de dez anos atrás. A gaiola, a criatura
que nela estava aprisionada, as deformações em potes de vidro, os
instrumentos científicos. Tudo aquilo jamais se encaixaria como parte do
trabalho de um padre, um eclesiástico, ou mesmo um missionário como
Jullian.
Apenas dois pares de passos foram necessários, dado o tamanho da sala,
até que ela estivesse parada diante da gaiola. Seu coração palpitava ansioso;
um de seus braços ergueu-se a meia altura, e os dedos sentiram outra vez a
maciez do tecido. O ser que possivelmente ainda habitava a minúscula prisão,
desta vez, permaneceu em silêncio, e silêncio era de fato tudo o que existia ao
redor de Albertine. As pontas dos dedos uniram-se, e o pequeno manto
vermelho passou a deslizar lentamente, revelando as finas extensões de metal
que se entrelaçavam. Cada centímetro que surgia à vista trazia consigo o
medo do que estava para ser revelado. Albertine lembrou-se do grunhido que
perturbara seu sono por muitas e muitas noites até que pudesse esquecê-lo,
um timbre semi-humano, carregado de melancolia.
— Ele não gosta de ser incomodado – soou uma voz conhecida, grave,
às costas de Albertine.
A mão que revelaria um dos segredos do Padre, ainda mais trêmula e
vacilante do que antes, afastou-se da gaiola e se recolheu junto ao corpo de
sua dona. Albertine fora descoberta.
Os poucos segundos que seguiram até que a moça conseguisse
recompor-se daquele susto poderiam ter perdurado pela eternidade, e ainda
assim não seriam suficientes para que o rubor no rosto dela se esvaísse por
completo. Gotas de suor frio formaram-se em sua testa e escorreram até as
têmporas, e Albertine virou-se para encarar o inevitável.
Lá estava Jullian, prostrado à porta de sua sala, vestindo sua batina
roxa; a luz alaranjada que caía do teto percorria toda a face do velho Padre,
destacando – quase de propósito – a cicatriz que preenchia boa parte do lado
esquerdo de seu rosto. Sustentava um olhar indecifrável, misto entre espanto
e dúvida; não era, entretanto, um olhar de agressividade.
— Olá, Albertine – ele disse em tom rouco, livre de qualquer sinal de
receio.
— Olá, Padre – Albertine respondeu, tropeçando na própria respiração.
Jullian atravessou a divisão entre o corredor e sua sala, virou-se à porta
e a fechou. Por algum tempo não tornou a olhar e nem a dirigir-se à visitante
inesperada; andou até uma de suas mesas, retirando do pescoço uma fina
corrente prateada, da qual pendia um estranho crucifixo de mesmo tom que
mais lembrava uma chave, e descansou-a no interior de uma pequena caixa
de madeira, aparentemente feita para este fim. Movimentou o tronco cansado,
olhando de um lado a outro, e logo em seguida dirigiu-se à cama desforrada,
bem próxima de onde Albertine se encontrava. Sentou-se vagarosamente no
limite do velho colchão, produzindo um leve gemido causado por uma dor
nas costas.
— Sente-se – disse ele, apontando para um pequeno banco, recostado a
um dos armários.
Albertine imediatamente obedeceu. Arrastou o banco de madeira até
onde pudesse encarar Jullian, certa de que levaria um massacrante sermão do
velho religioso à sua frente.
— Confesso que estou muito surpreso por vê-la aqui, Albertine.
— Padre, me deixe explicar...
— Não, não se preocupe. Se está aqui, hoje, é porque tem um grande e
nobre motivo, disso não duvido.
— Deixe-me ao menos pedir-lhe desculpas por ter invadido seu recinto.
Eu não tinha o mínimo direito!
— Então deveria desculpar-se duas vezes, não acha? – Jullian retrucou,
sorrindo de forma bondosa, endireitando-se até encontrar uma posição mais
favorável.
Se ao ser descoberta as maçãs do rosto de Albertine enrubesceram,
agora pareciam arder em brasas. Jullian sabia, afinal, que aquela não era a
primeira vez em que aquela bela moça adentrava em seu quarto sem
permissão.
— Estas paredes têm ouvidos, Albertine. Até mesmo olhos, posso dizer.
Muitas vezes, até eu mesmo me surpreendo com o que me contam.
— Jullian e seus segredos...
— Todos nós temos segredos. Não concorda?
Albertine assentiu com a cabeça, e naquele instante percebeu que a
conversa que se seguiria seria, talvez, a mais estranha e inesquecível de toda
sua vida, mas ainda assim temia que não fornecesse os resultados que ela
mais desejava.
— Então, conte-me. O que é tão importante para retirá-la do festival e
procurar um velho Padre?
— Precisava vê-lo, fazer-lhe algumas perguntas, esclarecer algumas
dúvidas que talvez somente o senhor seja capaz de entender. Quero dizer,
utilizei-me de algumas lembranças de infância, de alguns...
— Rumores? – Jullian a interrompeu, como se previsse tudo que estava
a ser dito por ela.
— Rumores, posso dizer assim. Lembro tão bem do que diziam, das
histórias que se espalhavam cada vez que o senhor retornava de suas viagens.
— Não conheço sequer metade de todas estas histórias, tenho que
confessar. Poderia refrescar a memória deste velho homem que lhe fala?
Albertine afixou seu olhar a um dos cantos da sala, procurando auxílio.
Teria agora de relatar uma das inúmeras conversas que ocupavam as bocas de
todos os moradores das redondezas, conversas que poderiam ser ou não reais.
Dentro de si, pela primeira vez na vida, ansiava que de fato fossem reais.
— Não sei se sou a pessoa certa para isso – ela iniciou-se, retornando
seu rosto à altura do de Jullian. –Foi há muito tempo, posso cometer erros de
interpretação, ou mesmo não lembrar alguns detalhes.
— Se o que me contar for real, não hesitarei em complementar tudo o
que for esquecido.
— Certo – continuou ela, depois de uma breve pausa. - Muito bem,
lembro que era uma tarde chuvosa, como a maioria das tardes de nossa
região. Estávamos na praça, eu e Jeremy, esperando o retorno de meu pai,
para nos levar de volta à vila, e vimos quando uma grande carruagem
reforçada em aço adentrou em alta velocidade no largo, bem em frente a esta
igreja, parando em frente a ela. Logo em seguida o vi saindo da carruagem,
carregando aquela grande mala, como sempre. Mas algo estava diferente –
havia um corte em seu rosto, ainda em carne viva, e o senhor parecia
escondê-lo, dirigindo-se com muita rapidez para dentro do templo. Tenho a
ousadia de dizer que estaria fugindo porque sempre, sem qualquer exceção,
costumava cumprimentar a todos na praça, ou ao menos nas proximidades da
igreja, quando retornava. Vez ou outra até trazia-me algum souvenir.
— Sim, isto posso confirmar. Além de estar em extrema urgência para
cuidar de um ferimento, também precisava visitar o toalete.
— Como eu sempre suspeitei – ela respondeu sorrindo. –Mas esta não é
a parte mais... importante da história.
— Prossiga.
— O que todos diziam, mesmo que eu não saiba explicar de onde
surgiam estas ideias, era que o senhor é um...
Albertine calou-se, não sabia como prosseguir. Sentia um leve medo de
acabar parecendo infantil, achava que Jullian gargalharia ao ouvir a palavra
que estava presa em sua garganta.
— Sim?
— Um exorcista.
Os traços do rosto calmo de Jullian formaram uma expressão mais uma
vez indecifrável. Era impossível dizer se estava surpreso ou se já sabia da
existência de tais rumores. Pareceu hesitante em respondê-la, mas ambos
sabiam que o simples ato de silenciar diante de uma pergunta poderia,
definitivamente, significar uma confissão.
— Coisas parecidas chegaram aos meus ouvidos há algum tempo.
— São mesmo apenas rumores?
— Alguns deles, sim. Muitos, de fato, são reais.
— Então, o senhor é mesmo um exorcista.
— Sim, Albertine. Esta é uma das minhas funções como missionário.
— Isto quer dizer que viajava pelo mundo à procura de...
— Pessoas possuídas? Sim. Mas não só isso. Tudo vai muito além do
que as pessoas conseguem entender, ou ao menos aceitar.
— E todas estas... coisas? – questionou Albertine, gesticulando,
apontando seus dedos finos aos armários, às prateleiras e aos livros.
— Ah, tudo isto é mais um hobby, algo que faço para gastar o tempo.
Quem disse que não é possível abraçar a Deus e à ciência, de uma só vez?
— Fico realmente impressionada – Albertine continuou, depois de uma
nova pausa, visivelmente necessária para que algumas ideias se
reencaixassem. –Temos aqui um Padre, um exorcista, e um cientista
colecionador de deformações.
O tom no qual esta última frase foi pronunciada afetou ligeiramente o
humor de Jullian. Pareceu ofendido, aparentemente incomodado. Albertine
sabia que Jullian não devia-lhe qualquer explicação, mas não pretendia parar
até que conseguisse o que fora buscar. A doação de livros havia sido mera
fachada; mentira para Jeremy, para Rosa, mas não podia mais mentir para si
mesma.
— Então foi mesmo um homem possuído que criou esta cicatriz em seu
rosto? – ela questionou, aplicando um certo nível de autoridade em sua voz.
— Perdoe-me, Albertine, mas veio até aqui para interrogar-me sobre
minha vida pessoal?
— Não necessariamente, Padre. Preciso de ajuda, e somente o senhor
poderá me entender, agora não tenho mais nenhuma dúvida quanto a isto.
O velho Padre levantou-se, apoiando uma das mãos às costas, e andou
lentamente até um de seus armários. Abriu-o, e pôs-se a procurar por algo
aparentemente perdido entre tantas dezenas de objetos. Alguns segundos se
passaram até que de lá ele retirasse um pequeno recipiente metálico, uma lata,
colocando-a em seguida sobre a mesa mais próxima. Albertine observava
atenta, e viu quando Jullian retirou um pequeno cachimbo do recipiente. Era
vermelho e desgastado pelo tempo e pelo provável uso constante. Usando as
pontas dos dedos enrugados, Jullian preencheu o orifício do objeto com uma
espécie de palha esverdeada – que definitivamente não era tabaco comum -,
também presente no fundo da lata de metal. Procurou por um fósforo, e tão
logo o encontrou, inflamou o conteúdo do cachimbo, tragou-o e fechou os
olhos em aparente sensação de prazer. A fumaça foi expelida vagarosamente,
e assim, carregando o cachimbo, ele retornou à cama e novamente sentou-se,
imediatamente encarando a ansiosa Albertine.
— Não sabia que gostava de fumar.
— Existem muitas e muitas coisas, minha cara, que nem eu mesmo sei
sobre mim. Mas isto fica para uma nova conversa, não é mesmo? Diga-me o
que a perturba, e não hesitarei em ajudá-la no que for possível.
— Eu gostaria muito de saber exatamente por onde começar. Além
disso, não posso me prolongar, Jeremy e os outros estão me esperando, no
festival. Vim até aqui sob o motivo da feira de livros usados, mesmo sabendo
que só acontece dois meses após o festival.
— Segredos, Albertine?
Pela primeira vez, em toda aquela situação, Albertine sentiu que fazia
algo errado. Aquela pergunta a fez perceber que mentira para seu esposo e
para sua nova grande amiga Rosa; sentiu como se tudo que acontecia dia após
dia, todo aquele medo, toda a dúvida, não fizessem jus ao que fazia às
escondidas das pessoas em quem confiava, e que também confiavam nela.
— Todos nós temos segredos, Padre. Alguns não tão obscuros, é claro.
— Ainda assim, segredos.
— Tudo bem. Permita-me encontrar o melhor ponto para usar como
início.
Jullian mais uma vez endireitou-se, enquanto expelia uma baforada de
fumada esbranquiçada. O cheiro era desagradável, algo próximo de almíscar
queimado, e Albertine demonstrou certo desconforto ao abanar uma das mãos
em frente ao rosto preocupado. Jullian parecia contente, isso era
extremamente notável. Seus olhos brilhavam, atentos e agradecidos.
— Padre, o senhor já viu um... fantasma?
— Fantasma? – ele repetiu, mudando imediatamente de expressão. Não
era esta a pergunta que esperava.
— Sim. Uma aparição, uma alma...
— Sei o que é um fantasma, é claro. Só fiquei um pouco atordoado.
— Um exorcista atordoado por uma conversa sobre fantasmas?
— Fantasmas e demônios são algo bem diferente. Estão em patamares
realmente distintos, se quer saber.
— Sempre achei que faziam parte de um só conjunto. Quero dizer...
temos o palpável e o não palpável.
— É uma forma positiva de ver estas coisas, mas realmente não é tão
simples, ou ao menos tão fácil. Existem muitas coisas neste mundo, minha
cara, que não podemos ver, mas que estão lá. A maioria delas apenas observa,
invisível e inofensiva, mas algumas outras não são tão passíveis a ponto de
manterem-se para sempre em silêncio.
— E este segundo tipo, eles podem... machucar?
— É uma boa pergunta, Albertine, mas infelizmente não tenho
conhecimentos o suficiente para falar-lhe com clareza sobre fenômenos
paranormais, ou tudo que se derive disso. Eu apenas estudo e reconheço
demônios, e isto é parte do ofício que aceitei perante a igreja.
Pela primeira vez, durante aquela excêntrica conversa, Albertine sentiu
que talvez estivesse apenas perdendo tempo, procurando respostas
impossíveis para perguntas ainda mais incomuns. Nem sabia, de fato, se
Jullian estaria disposto a ajudá-la – a isso dava-se o tom um tanto
despreocupado em que se expressava. Pensando em apenas findar a visita, ela
levantou-se após pedir licença ao senhor, e num movimento rápido agarrou o
pacote de livros que largara em uma das mesas. Sentou-se, então, de volta ao
pequeno banco, apoiando os livros embrulhados nos joelhos.
— Estes são os livros que trouxe como motivo de sua visita a mim?
— O que quer dizer, Padre?
— Nada, não quis dizer mais do que disse. Somente não entendo o que
há de tão errado em uma moça querer visitar a igreja, e ainda carecer de
artifícios para poder fazer isto.
Albertine pareceu desconcertada. Suas expressões tornaram-se rígidas e
frias, e foi ao ouvir aquela infeliz verdade que ela percebeu que, sem
qualquer dúvida, sentia medo de Jeremy. Sentia medo do que ele pudesse
dizer, do que pudesse expressar em um de seus momentos de ira. Queria a
duros custos manter-se em paz com seu marido, mesmo que isso significasse
ocultar seus desejos – ou até mesmo suas necessidades.
— Sobre isto realmente não quero falar. Nem mesmo teria tempo para
isto. Quero que veja algo muito importante que encontrei em nossa casa,
minha e de Jeremy, quero dizer – disse Albertine em ritmo descontinuado, ao
mesmo tempo em que desamarrava o barbante que sustentava o embrulho.
— Tudo bem. Mostre-me.
— Talvez não seja algo realmente importante. É apenas um livro velho
que encontrei, e gostaria muito de saber do que ele fala. Mas para mim isto é
impossível, já que o volume é completamente escrito em latim – ela
continuou, agora já desdobrando o retalho de pano desbotado, posicionado
em abas.
— Muito interessante. Tentei ensiná-la latim quando pequena, você se
lembra?
— Sim, como se fosse hoje. Infelizmente tive que recusar sua proposta,
já tinha ocupações demais para uma menina de dez anos.
— Conhecimento nunca é demais, Albertine.
— Sei disso, sei disso.
O pacote, agora aberto, revelou um espesso livro sobre as cruzadas, de
capa dura, envelhecida e deteriorada. Albertine moveu-o ao fundo da pilha de
quatro livros, fazendo surgir, desta vez, um livro de gramática que já havia
sido desconsiderado há muitos anos. Jullian fitava com muita atenção,
apertando os olhos, aparentemente forçando sua visão cansada. Albertine
repetiu o movimento, levando o segundo livro à ultima posição na pilha.
Exibiu-se, então, com grande destaque em relação aos anteriores, o real
motivo de Albertine estar ali, naquela sala, quase secretamente.
O Necronomicon pareceu mais antigo do que realmente era sob a luz da
sala de Jullian. O Padre tentava, sem sucesso, identificar a capa do livro do
local em que estava, mas precisou retirar seus pequenos óculos de um bolso
interno de suas vestes. As lentes foram posicionadas bem rentes aos pequenos
olhos, a ponte metálica apoiada ao nariz ligeiramente curvado. Albertine
olhou-o, e percebeu algo que jamais vira antes na face daquele seu velho
conhecido. Jullian havia descorado por completo – parecia não ter nem
mesmo uma única gota de sangue em sua face. Os olhos pareciam estáticos,
perplexos. Até a respiração parecia ter cessado.
— Padre? O que aconteceu? Sente-se mal? – ela questionou com
preocupação.
Jullian, então, estendeu um de seus braços, os dedos trêmulos esticados,
a mão aberta em sinal de pedido. Queria o livro, queria tocá-lo, mas não tinha
forças para converter este desejo em um pedido sonoro.
— Onde... onde conseguiu... isto?
— Disse-lhe há pouco, Padre. Encontrei-o na mansão, na biblioteca.
Estava escondido em um compartimento secreto. Agora, por sua expressão,
percebo que deve realmente ser algo muito especial.
— Deixe-me pegá-lo, por favor.
O grande livro foi entregue com cuidado a Jullian. Ele sustentou o
objeto com as duas mãos, frente ao rosto ainda pálido, e pareceu mergulhado
em centenas de sensações. As lentes redondas de seus óculos refletiam a capa
enrugada do Necronomicon, e Albertine observava atônita, esperando a
qualquer momento o Padre tombar desacordado em espasmo causado por
tamanha excitação.
— E então? O que há de tão incrível neste livro? – ela disse, ansiando
retomar a conversa.
— Albertine, – continuou Jullian segundos depois – este livro, o
Necronomicon, é um dos objetos mais poderosos no mundo do ocultismo.
Você está diante de um dos mais procurados e perigosos instrumentos de
magia negra.
— Magia negra? Quer dizer bruxaria, e coisas do gênero? – respondeu a
moça ao receber uma instantânea dose de interesse.
— Não necessariamente bruxaria, pois bruxas utilizam-se
essencialmente de forças da natureza, e também de coisas palpáveis, como
você prefere descrever. Este livro, em sua resumida essência, ensina a
praticar satanismo.
— Minha...nossa! – exclamou Albertine, aplicando aquela pausa
característica de quando recebia uma notícia que fugia de suas expectativas.
— É uma enciclopédia de demônios, uma espécie de catálogo. E pelo
que vejo, Albertine, este volume que tenho em minhas mãos é ainda mais
perigoso do que muitos outros de mesmo título.
— O que o difere dos outros?
— Além de nomear e descrever todos os demônios importantes,
também detalha toda e cada uma de suas funções, e...
Jullian pareceu travado naquele momento. A frase que se formaria
tornou-se um mistério para sua ouvinte. Albertine conhecia muito bem aquela
figura magra e idosa, e aquela era uma de suas características mais
intrigantes: frases exageradamente intensas eram controladas com rigidez.
— E?
— Ele ensina como... invocá-los. Veja, olhe estas assinaturas. É através
destas páginas reservadas às assinaturas que se invocam estes demônios.
Assine seu nome no espaço em branco, e estará feito.
— Assim entendo, afinal, o motivo de estar tão bem escondido.
— Sim, e entendeu muito bem. Assinando o livro, estará assinando um
contrato. E um contrato não tem volta, não pode ser finalizado ao desejo de
quem o assinou.
— Quer dizer então que não há maneira de revogar sua assinatura
depois de feita? A entidade invocada não irá embora?
— Existem variadas maneiras de desfazer o contrato. Porém, todas elas
são inúteis em quase todos os casos. Os contratos são finalizados através da
morte, ou quando o demônio invocado finaliza a tarefa a que foi destinado.
— Demônios como assistentes pessoais. Jamais conseguiria imaginar
tal coisa.
— Como encontrou este livro, Albertine?
— É um tanto difícil responder sua pergunta, Padre. Foi por isto que
perguntei-lhe sobre fantasmas, se acreditava neles.
— Eu acredito neles, minha cara. Porém, não me dedico a estudá-los.
Tenho livros e já estive em palestras da igreja sobre o assunto. Existem
milhares de Padres que conversam com almas, espíritos, ou fantasmas, como
é o caso.
— Eu não estaria ficando louca, então, se dissesse que estou sendo
perseguida por um fantasma?
— Não, de nenhuma maneira. Algumas pessoas têm um alto nível de
percepção sensorial, especialmente aquelas que já passaram por experiências
de quase morte, ou que perderam entes queridos, partes de sua alma, de
forma trágica. O segundo caso parece-me cabível a você.
— Foi este fantasma, uma mulher muito branca, vestindo uma
mortalha, que me levou até este livro. Induziu-me a encontrá-lo no lugar onde
jamais seria descoberto.
— Explique-me com mais clareza.
— Fui levada por esta mulher até uma tábua solta no assoalho da
biblioteca da mansão. Era um trecho de piso falso, e abaixo dele estava
escondido o livro. Ela me mostrou, vi com meus próprios olhos.
— Isto é absolutamente único! – exclamou Jullian, eufórico. –Em meus
longos anos de vida, em todas as minhas experiências, jamais deparei-me
com algo parecido.
— O que levaria, então, esta mulher a querer que eu encontrasse o
Necronomicon?
Jullian caminhava pela sala, pensativo, virando rapidamente as páginas
do livro apoiado na palma de sua mão esquerda. Por vezes frisava a testa e
comprimia os olhos, pronunciando palavras inaudíveis para si mesmo.
Procurava respostas para as dúvidas de Albertine, mas dentro de si sentia não
estar pronto para isso.
— Não sei exatamente como responder esta questão, terei que procurar
amigos que possam clarear minhas ideias. Tenho vagas cogitações, mas não
estou confortável em declará-las sem que tenha alguma certeza.
— Preciso muito de sua ajuda, Padre. Não o teria incomodado com tudo
isto se realmente não fosse necessário.
— O que mais lhe perturba em relação a estes acontecimentos? – ele
perguntou de forma mais branda, após perceber a ligeira mudança na aura de
Albertine. –Este espírito que lhe persegue, o que ele causa, de fato?
Estava claro a partir daquele momento que aquela busca por respostas, e
principalmente por ajuda, era mais grave do que inicialmente parecia.
Albertine levou as duas mãos ao rosto, libertando-se em um profundo suspiro
seguido de um choro contido por muito tempo. As lágrimas surgiram e
escorreram rapidamente por entre seus dedos, desaparecendo em pingos ao
chão empoeirado. Jullian, com toda sua sabedoria, permitiu que
chorasse por algum tempo. Lágrimas eram, em sua opinião, como água pura
lavando os olhos, os espelhos da alma, libertando suas superfícies do que de
errado houvesse preso a elas.
— Ela me assusta, Padre – continuou Albertine, entre leves soluços. –
Ela me observa enquanto durmo, deita-se do meu lado. Até agora, até este
momento, não me permitiria afirmar tudo isto, mas preenche-me o mais
profundo terror quando a vejo. Perco minha voz, meus sentidos. Aqueles
olhos... as fendas onde deveriam estar...
— Ela já atentou contra sua segurança? Já foi além de apenas assombrá-
la?
— Eu estaria morta se Jeremy não me salvasse por algumas vezes. Ela
ateou fogo em nosso quarto, e de alguma maneira conseguiu me sufocar com
um perfume muito forte.
— É um pouco mais sério do que realmente imaginei. Preciso, no
entanto, encontrar a ligação entre estes fenômenos que vem presenciando e o
Necronomicon. Diga-me, Albertine, chegou a ler este livro, ao menos algum
trecho dele?
— Não, absolutamente. Já disse que está em latim, e que não
compreendo absolutamente nada desta linguagem.
— Oh, sim, perdão. Minha memória insiste em me contradizer. E é
melhor que não o tenha lido, se quer saber. O conteúdo destas páginas pode
causar pesadelos ao mais forte dos homens.
— Tenho que confessar que apenas estas terríveis gravuras levaram
algum tempo para sumir de minha mente. Porém, tenho que pedir-lhe, não
sairei daqui satisfeita se não obtiver ao menos esta ajuda.
— Desde que eu possa ajudá-la, não recusarei coisa alguma.
— Poderia ler algum dos capítulos para mim?
Jullian, de alguma maneira, previa que esta seria a solicitação de
Albertine. Além de procurar-lhe e falar sobre o fantasma, ela não daria um
ponto em vão ao não induzi-lo a uma ligeira tradução daquela língua que
dominava tão bem.
— Isto foge muito dos meus princípios como religioso. É totalmente
contra as regras da igreja envolver pessoas inocentes em nosso mundo
misterioso, para alguns quase místico, permita-me dizer. Dentro desta igreja,
Albertine, jamais poderei proferir as palavras escritas neste livro.
— Então, poderia ao menos acompanhar-me até a praça.
— Não, não – ele retrucou sorrindo. –Não posso deixar a igreja hoje,
tenho muito que fazer. Porém, não vou deixar-lhe frustrada, e mesmo
sabendo que não devo permitir certos documentos de deixar estas paredes
sagradas, onde não teriam real efeito, vou confiar-lhe uma cópia traduzida do
Necronomicon, que guardo há muitos anos. Constantemente a utilizo para
conhecer os meus inimigos.
— Quer dizer, então, que o senhor não tem um Necronomicon real?
— Não, não tenho. São extremamente raros e proibidos. Se chegasse
aos ouvidos da alta cúpula que temos um exemplar em nossas mãos neste
momento, em um ou dois pares de horas receberíamos a visita de
missionários não muito amigáveis.
— Entendo agora sua excitação ao vê-lo.
— Confesso que, quando mais novo, pagaria um alto preço por um
exemplar real para embelezar minha coleção. Hoje, não sinto esta
necessidade, embora tenha de confessar que fiquei realmente impressionado
ao vê-la com um destes. É sabido que praticamente todos os exemplares
existentes nesta região do continente foram queimados pela Igreja.
— Ele teria ficado escondido para sempre se o espírito que me persegue
não o tivesse indicado.
— Este espírito deve ter, sem dúvidas, algum motivo muito importante
para querer levá-la até este livro. Sei que já está muito assustada, mas
Albertine, por favor, tenha muito cuidado. Este objeto, por si só, já é muito
perigoso, muitas e muitas pessoas perderam sua fé, seus propósitos, muitos
perderam até suas almas ao fazer uso dos ensinamentos deste livro. Use-o
com cuidado, e jamais esqueça do que realmente é importante para você.
— Se é tão perigoso, por que está me deixando levar de tão bom grado
uma tradução dele, Padre?
— Confio em você, Albertine. Confio muito em você, e sei que apenas
irá utilizá-lo para tentar descobrir a verdade sobre estes acontecimentos que
lhe afligem.
— Fico lisonjeada. Jamais trairei sua confiança.
— Estou certo disto.
Fez-se um ligeiro silêncio ao redor dos velhos amigos. Albertine
pusera-se de pé, e Jullian, mantendo o corpo estranhamente curvado, dirigiu-
se até uma de suas escrivaninhas. Removeu alguns livros empilhados,
revelando um pequeno puxador cravado no tampo de madeira escura.
Apalpou com a ponta dos dedos e levantou-o, fazendo assim surgir um
compartimento quase secreto por baixo da superfície desgastada. Dentro
deste compartimento havia muitos papéis, entre folhas preenchidas por
longos textos e folhas de rascunho, provavelmente muito antigos, e do meio
deles Jullian selecionou um maço um tanto quanto espesso. Imediatamente
virou-se e entregou-o a Albertine. Era a tradução do Necronomicon, assinada
por uma rubrica incompreensível.
— Aqui está. Espero que isto venha ajudá-la de alguma forma. Dou-lhe
minha palavra que irei a fundo neste caso, não vou deixar que nada lhe
aconteça.
— Fico muito grata, Padre. Sabia que poderia contar com o senhor,
sempre.
— Não demore a voltar aqui. Este é meu único pedido.
— Voltarei o mais rápido que puder.
— Ótimo, ótimo. Agora, terei de retornar ao salão, preciso começar os
preparativos para a missa da meia-noite.
— Claro, vamos juntos. Poderia me acompanhar até a porta? –
perguntou Albertine, reembrulhando os livros exatamente como os trouxera,
adicionando ao pacote o maço apostilado do Necronomicon traduzido.
— Claro que sim, mas... espere, deixe-me mostrar algo. Por favor, abra
o Necronomicon original. Página trezentos e doze.
Albertine obedeceu sem hesitar. Em um segundo já tinha o livro aberto,
procurando a exata página solicitada por Jullian. Ao encontrá-la, exibiu-se o
capítulo cento e quarenta e seis. Imp era o nome da criatura descrita neste
capítulo. A ilustração figurava uma criatura humanoide, com braços e pernas
muito finos; de suas costas saíam pequenas asas, e em uma de suas mãos
segurava um tridente de tamanho médio. Suas orelhas pontudas eram
separadas por dois discretos chifres em sua testa.
— O que é esta criatura? Não me parece muito perigoso.
— Não são realmente perigosos se dominados com prudência. Venha
até aqui – o Padre continuou, caminhando e parando ao lado da gaiola que
Albertine quase chegou a descobrir por completo. A moça o seguiu
desconfiada e intensamente interessada. Iria Jullian, finalmente, revelar o que
escondia por trás das finas barras de ferro?
— Não me diga que...
— Veja com seus próprios olhos.
O recorte de tecido escarlate foi removido sem qualquer delicadeza, e
por baixo dele surgiu algo que Albertine jamais esperaria ver em toda sua
vida. No interior da gaiola, apoiado a um poleiro, estava uma criatura idêntica
àquela que a moça acabara de ver ilustrada no Necronomicon. Um Imp,
exibindo as exatas características presentes na gravura. Tinha seus grandes
olhos amarelos bem abertos, fitando Albertine, mantendo suas pupilas
estreitas presas às dela.
— Não olhe muito para ele. É uma de suas características. Pode deixar-
lhe cega por várias horas. Os demônios desta espécie são conhecidos como
diabretes, e são um dos poucos tipos que podem ser encontrados sem que
sejam invocados através do livro. São muito travessos e escapam do inferno
com facilidade, dado seu reduzido tamanho.
— Meu Deus, é quase inacreditável! Olhe só para ele, tão quieto e
tranquilo. Um demônio. Um demônio aprisionado em uma igreja!
— É irônico, não acha?
— Prefiro acreditar que é assustador.
— Não tenha medo dele. Não seria capaz de fazer mal algum, a menos
que eu o induza a isto. Eu o capturei, sou seu mestre e só a mim ele ouve e
obedece.
— Eu sempre penso que nada mais sobre o senhor pode me
surpreender, Padre, mas a cada conversa que temos, vejo que estou
continuamente enganada.
— Estamos, então, igualmente surpresos. Há anos que não tenho uma
noite tão interessante como esta.
Com os livros devidamente reempacotados, Albertine seguiu o Padre
através do corredor à meia luz, chegando em poucos instantes até o salão
principal da igreja. Por entre as frestas das janelas e vitrais, ouvia-se o som
abafado do festival, misturado aos passos em mesmo ritmo dos dois que
seguiam entre as fileiras de bancos, em direção à grande porta de saída. O
vento frio imediatamente arrepiou o corpo de Albertine quando a porta foi
aberta.
— Aqui estamos, mais uma vez – disse Jullian, olhando ao longe o
movimento da praça.
— Não será a última, esteja certo disto.
— Esperarei notícias o quanto antes. Estamos lidando com algo muito
poderoso, minha cara. Mais cedo ou mais tarde, algo de muito ruim pode
acontecer a você ou sua família caso este espírito que a persegue não
encontre o que procura.
— Estarei aqui novamente, com sorte, trazendo notícias.
— Aguardarei ansioso e preocupado.
— Tenho de ir agora. Jeremy já deve estar procurando por mim.
— Dê lembranças a todos.
— Claro, Padre. Até breve!
Com esta última frase soando pela garganta repentinamente resfriada,
Albertine tornou a descer os degraus cobertos de neve, levando junto ao
corpo o tão precioso pacote. Seguiu até a praça, levando alguns segundos
para avistar seu grupo em meio às centenas de pessoas que caminhavam,
dançavam e se divertiam de um lado a outro do largo.
— Não estava tão frio antes que eu entrasse na igreja - disse a moça a
Rosa, ao aproximar-se dela com um sorriso quase atuado.
— É comum a temperatura baixar ainda mais a cada hora – respondeu a
governanta, cobrindo os ombros com o xale que havia escorregado pelos
braços.
— Onde está Jeremy? – Albertine tornou a dizer ao perceber que seu
esposo não se encontrava junto dos outros.
— Ah, foi comprar mais destas cervejas horríveis.
— Jeremy nunca gostou de cerveja, muito menos destas cervejas
amanteigadas vendidas aqui no festival.
— Ele já bebeu uma dúzia delas. Nem o gosto gorduroso da manteiga o
fez parar. Está descontrolado, não consigo fazê-lo parar de beber.
Tão logo Rosa finalizara sua declaração, Jeremy surgiu abrindo
caminho com os braços em meio à multidão, carregando uma caneca
derramando-se em espuma em cada uma das mãos. Suas pernas quase
entrelaçavam-se em um movimento descontrolado e cambaleante. Seu rosto
endireitou-se, e os olhos fixaram-se em Albertine assim que a viram.
— Albertine! – ele exclamou em tom mais elevado do que deveria.
-Jeremy, você está bêbado?
-Não! Estou completamente sóbrio, não consegue ver? Até consigo
ficar de pé!
-O que está havendo com você? Nunca o vi assim!
-Mas o que é agora? Não posso mais me divertir? – disse Jeremy fora
de ritmo, interrompendo sua frase ao meio com um longo gole em uma das
canecas de cerveja. Metade do líquido foi ingerido, a espuma escorreu por
entre os lados da boca, de lábios de cor viva.
-Está realmente se divertindo?
-Sim! E você, se divertiu com seu amigo perturbado?
-Não fale assim do Padre Jullian. Não fale!
-Não posso chamá-lo de perturbado? Que tal bizarro, então? Aquela
cicatriz horrível não lhe causa medo?
-Já está passando dos limites, Jeremy.
-Ele não quis os seus livros? Vejo que ainda estão com você.
-Não lhe devo explicações sobre isto. Talvez se estivesse sóbrio, mas
como não está, não perderei minha noite me explicando.
Rosa e os criados ouviam em estado de alerta. Felizmente eram os
únicos expectadores de toda aquela desagradável cena. Foi impossível não
notar a fúria escapando pelas pupilas de Jeremy naquele momento. Mais um
gole e findou-se a bebida de um dos recipientes, que foi jogado ao chão e
estilhaçou-se em centenas de pedaços minúsculos, instantaneamente tornados
invisíveis pela neve que cobria parcialmente as pedras da calçada.
— Não quero que fale mais com ele. Nunca mais.
— E acha que isto, você tentando me fazer abandonar um grande
amigo, é o suficiente?
— Não há o que discutir, Albertine.
A jovem de cabelos louros já não sabia o que dizer; olhou ao redor e
encontrou os olhares de cada um de seus amigos, repletos de vontade de
ajudá-la, de defendê-la, mas sem a bravura necessária para enfrentarem o
patrão. A última caneca de cerveja foi finalizada, e tão logo o item de vidro
espesso foi atirado a qualquer lugar do chão, Jeremy moveu-se em linha
indefinida até Albertine. Parou diante dela, recostou-se em seu corpo,
acariciou seus ombros. Deslocou-se um pouco à frente e aproximou seu rosto
do dela, procurando sua boca, naquele momento crispada, de lábios trêmulos.
O beijo foi evitado com um desvio instantâneo, e em resposta, Jeremy apenas
exibiu um sorriso maléfico pelo canto dos lábios.
— Vamos embora.
Sem mais nenhuma palavra a dizer, caminharam atônitos de volta às
carruagens. Mais uma vez, o jovem casal seguiu em veículos separados: um
novo conflito seria demais para uma só noite. Mais uma exaustiva viagem se
estenderia por quase três horas, e isto foi o suficiente para fazer com que
todos sentissem uma pontada de arrependimento por terem deixado a mansão
naquela noite. As carruagens, assim, partiram rumo à saída da cidade;
atravessaram a praça, e pela pequena janela Albertine avistou Jullian, ainda
parado exatamente onde o vira ao deixar a igreja. Seus olhares se cruzaram
num relance imprevisto, mas as casas de um lado e outro da rua logo
impuseram-se entre os dois amigos. A música e as luzes do festival foram
ficando para trás, dando lugar às trevas e ao agonizante silêncio, e em um par
de minutos os viajantes já adentravam a floresta, rumando de volta à velha
mansão dos Ridell.
Capítulo XVIII

REENCONTRO

A maçaneta da porta principal enregelou levemente os dedos de


Albertine assim que ela levou uma das mãos desprotegidas até lá. Girou-a um
tanto desajeitada e logo a porta se abriu vagarosamente. Do outro lado, Ringo
saltitava e arranhava a madeira de maneira frenética, ao mesmo tempo em
que choramingava, feliz, por ter seus donos de volta. A lareira ainda
queimava as troncas de lenha, tornando o ambiente aquecido e aconchegante,
como num desafio ao clima frio e cinzento que se apossava de tudo que não
estivesse dentro daquela sala. Os pés da moça, levemente cobertos de neve,
bateram-se em ato de limpeza antes de adentrarem a casa, e o mesmo fizeram
todas as outras mulheres que vinham logo atrás; em seguida a elas, surgiram
Robert e Thomas sustentando Jeremy pelos ombros.
— Devemos levá-lo para cima? – questionou Robert, utilizando-se de
um tom quase cômico.
— Sim, por favor. Deitem-no em nossa cama – Albertine respondeu
sem vontade.
— Eu posso andar. Não preciso que ninguém me carregue! Não...
A voz de Jeremy, naquele instante, saiu misturada a um jorro de vômito
que despejou-se aos próprios pés e aos dos dois criados. Albertine suspirou,
encarou o esposo em um olhar tomado por estranheza. Sem muito a fazer a
respeito de toda aquela situação constrangedora, deu as costas a todos e
seguiu em passos pesados até a cozinha.
— Judith e Martha, por favor, limpem isto. Vou falar com Albertine,
tentar acalmá-la – disse Rosa, seguindo ao encalço da jovem.
Rosa alcançou a cozinha e viu Albertine já sentada à mesa, a cabeça
entre as mãos, inspirando e expirando agressivamente pelas frestas dos dedos
entrelaçados. Procurando pelas palavras certas antes de iniciar uma conversa,
a senhora governanta despejou um pouco de água em um copo pequeno,
procurou por alguns instantes algo no armário de mantimentos e retirou com
rapidez um pequeno recipiente preenchido de açúcar. Com uma colher de
chá, levou uma discreta porção do açúcar ao copo, provocando um tilintar
agradável enquanto misturava os elementos.
— Tome, beba isto. Vai acalmá-la – disse, entregando com carinho o
copo a Albertine.
— Obrigada, Rosa – ela respondeu antes de derramar o líquido adoçado
em um só gole em sua garganta.
Embora sentisse imensa necessidade em abrir-se para Rosa, a quem
sabia que poderia depositar toda sua confiança, Albertine optou por manter-se
em silêncio. Suas têmporas palpitavam em agonia, e o coração ainda batia
frenético no peito preocupado e aflito. Seu atual estado de mente nada menos
era do que puramente caótico.
— Quer conversar sobre alguma coisa? – Rosa questionou suavemente,
sentando-se bem à frente da esposa de Jeremy. Ela aparentava estar
completamente perdida, girando o copo de vidro com a ponta do dedo
indicador.
— O que está havendo com ele, Rosa? O que estou fazendo de errado?
— Albertine, nada disto é culpa sua. Não pense dessa forma.
— Então tente me convencer disso, não consigo mais lidar com essa
dupla personalidade que Jeremy tem demonstrado. Podemos estar
completamente bem e em questão de segundos ele se torna outra pessoa,
outro ser completamente irreconhecível!
— Confesso que tenho me surpreendido com isto. Jeremy esteve sob
minhas asas por toda sua vida, e só agora está demonstrando esta
personalidade. Não sei se sou a pessoa exata para tentar ajudar, afinal não
entendo o que se passa na cabeça dele, mas o que tenho a dizer é que
provavelmente estão passando apenas por uma má fase.
— Nem há um ano que estamos casados, e já demos o passo da má
fase? Sinceramente, Rosa, não acredito nisso. O problema não é sobre nós. É
sobre ele, sobre esse comportamento descontrolado.
— Jeremy sempre foi um pouco bipolar, e você sempre soube disso,
não é mesmo?
Por um segundo Albertine encarou a governanta, olhos nos olhos,
sentindo a ligeira impressão de que ela tentava, agora, defender as atitudes de
Jeremy. A sensação da conversa estar tomando outro rumo desagradou a
moça, e fez sua cabeça doer ainda mais.
— Você viu o que ele fez hoje? Viu como me tratou diante de todos?
— Sim, como acabou de citar, todos viram.
— E o que faço diante disso? Simplesmente me deito ao lado dele e
durmo como se nada houvesse acontecido?
— Posso ser realmente sincera? – Rosa questionou, levantando-se após
recolher o copo usado por Albertine. Seguiu até a pia, lavou o recipiente com
uma jarra de água limpa, e continuou: - Você deve agir como se não se
importasse, mostrar-se superior a tudo. Só assim ele vai perceber que vai
acabar a perdendo. E isto, minha cara, posso assegurar que ele não deseja. É
como se eu estivesse revivendo momentos passados. Coisas que...
A frase, apesar de aparentemente pronta, foi finalizada antes de seu
verdadeiro final. Rosa retornou à mesa, embaraçada, e não tornou a dizer
palavra alguma nos segundos que se estenderam entre ela e Albertine. E mais
uma vez, como em inúmeras outras conversas interrompidas, a esposa de
Jeremy entendeu, clara como o dia, a atitude de Rosa em não falar algo que
pudesse comprometê-la da mais singela maneira. Fato era que, sob aquele
teto, no interior daquela mansão, ou mesmo fora dela, ninguém conhecia
Jeremy tão bem quanto aquela senhora de mente afiada. Rosa sabia muito
mais do que Albertine era capaz de imaginar, e como grande habilidade,
nutria o hábito de fugir com maestria de conversas que não desejava
continuar.
— Estou indo para meu quarto agora. Se quiser, pode dividir a cama
comigo, caso não queira deitar-se ao lado dele no estado em que se encontra.
— Não, está tudo bem. A poltrona de nosso quarto é bem confortável,
posso descansar um pouco nela.
— Muito bem, então. Se precisar de qualquer coisa, sabe onde me
encontrar. Ah, e não esqueça seus livros!
Talvez apenas por uma impressão irreal, Albertine sentiu o frio
percorrer o estômago naquele instante. Era impossível dizer se Rosa nutria a
mínima ideia sobre tudo que acontecia, sobre o Necronomicon, sobre o
espírito inquieto, mas aquele aviso soou deveras sugestivo aos ouvidos dela.
Antes mesmo que pudesse recobrar-se do ligeiro susto, Rosa já seguia pela
sala de jantar rumo à sala principal, onde as outras duas empregadas
finalizavam a limpeza do piso. Albertine seguiu o mesmo caminho que Rosa,
após apagar as duas lamparinas que iluminavam a cozinha e a sala de jantar,
respectivamente; desejou boa noite a Martha e Judith, subiu as escadas e,
tomada de receio, vagarosamente abriu a porta e adentrou ao quarto.
Não havia iluminação alguma no recinto, e até mesmo as cortinas
bloqueavam a mínima entrada de luz pelas janelas. Albertine apalpou a
escrivaninha de Jeremy até que encontrou o maço de fósforos em um
emaranhado de objetos irreconhecíveis no escuro, acendeu a lamparina
afixada à parede do banheiro, e logo o calor e a luz suave da minúscula
chama deram vida ao quarto do casal. Na cama, Jeremy estava deitado de
bruços, com todas as roupas que usara para sair. Parecia profundamente
adormecido. Albertine procurou não criar qualquer barulho na esperança de
mantê-lo naquela condição – queria a todo custo evitar uma conversa com
ele. Decidiu, então, acomodar-se na poltrona para tentar descansar daquela
noite exaustiva, mas antes que pudesse sentir-se à vontade, notou uma brisa
fria percorrendo todo o quarto, e lembrou-se de fechar a janela - dormir uma
noite inteira em meio aos sopros suaves, mas congelantes, de certo não seria
uma boa ideia. Deslizou o corpo esbelto para trás das cortinas, esticando os
braços até alcançar a base de madeira que sustentava cada uma das partes de
vidro que formavam a janela. Tomada por um repentino receio, inclinou-se
para fora pelo espaço aberto, e observou o terreno que circundava a mansão,
coberto de branco, e algo estranhamente peculiar atraiu sua atenção.
Mesmo com toda a escuridão que se consumia Albertine viu
claramente, surgindo de trás de uma das árvores, pegadas humanas, criadas
por pés descalços, perfeitamente desenhadas na neve. Moveu vagarosamente
os olhos, seguindo o caminho por onde se estendiam, e viu que findavam,
exatamente, à porta da capela, perfeitamente visível da janela do quarto. O
verdadeiro susto veio, afinal, quando Albertine direcionou o ângulo de sua
visão a um campo mais alto, à altura da porta de ferro que selava a discreta
construção: estava completamente aberta, mas desta forma ficou apenas por
um singelo piscar de olhos. O ruído pesado da espessa porta de madeira e
ferro fechando-se fantasmagoricamente ecoou pelos ares ao redor da
construção. Um bando de aves negras revoou da copa de uma árvore alta,
quebrando todo o silêncio daquela área.
Sem hesitar nem mais um segundo, Albertine fechou a janela, cobriu-a
com a cortina e sentou-se à poltrona. Sua respiração ofegava, misturando-se
aos batimentos descontrolados do coração horrendamente assustado. Não
havia dúvidas: era ela, a mulher translúcida, o espírito que caminhava pelos
corredores da mansão, e que somente Albertine era capaz de enxergar. Ela
rezou, pediu com toda sua fé que por aquela noite estivessem encerradas as
atividades macabras de sua perseguidora, mas nem todas as suas preces
mostraram-se capazes de exumar o espírito da mansão.
O piso do corredor rangeu por baixo de pés que produziam ruídos
aterradores, prolongando seu contato à velha madeira, em um caminhar lento
e arrastado. Não era Martha, não era Judith, o som da porta de seu quarto
fechando-se alguns minutos atrás comprovava isto. Rosa já havia se recolhido
antes mesmo das duas criadas, assim como Robert e Thomas. A certeza de
que era a única pessoa viva, palpável, com sangue nas veias, ainda acordada
na mansão, despertou um indescritível sentimento de agonia em Albertine.
Os passos vieram a cessar bem diante da porta do quarto do casal: o
fantasma agora pairava a alguns corpos de distância. Às narinas de Albertine
chegou, então, o perfume de violetas que ela conhecera durante a última vez
que recebera aquela terrível visita. O cheiro forte, sufocante. Os olhos
lacrimejaram, os lábios enrijeceram, e então, um novo golpe de pavor: as
portas da cômoda abriram-se num só ato, e um único objeto caiu do
compartimento, puxado por alguma força invisível.
A maleta de Jeremy caiu aos pés de Albertine, aberta, libertando folhas
de papel por todo o carpete recém substituído. Um ligeiro som metálico fez-
se ouvir naquele instante: expelido do interior da pasta, algum objeto rolara
por entre as pautas brancas, vindo a cessar seu movimento bem diante do
bico do sapato que a moça usava. Não foi difícil definir a imagem, mesmo na
escuridão do quarto. Era a chave, o item que Jeremy escondia em sua pasta,
há quanto tempo era impossível dizer.
Albertine moveu-se, ainda trêmula, e agachou-se com as mãos apoiadas
ao assoalho; revirou as folhas e encontrou o rústico e imponente objeto
misturado a elas. Sentiu o arrepio surgir em seus dedos e percorrer toda sua
coluna curvada. Por um segundo imaginou que aquela chave estivesse agora
maior do que quando apalpou-a pela primeira vez, algumas horas atrás.
Levantou-se com a chave entre as duas mãos juntas, engrenando os
pensamentos, cogitando possibilidades. Mais uma vez fora levada a encontrar
um item que, não era difícil afirmar, jamais deveria ter em seu poder.
O cheiro de violetas havia cessado por completo, e mais uma vez tudo
entrou em total quietude. Ali, de pé, imóvel, Albertine finalmente percebeu
qual deveria ser seu próximo passo; as pegadas na neve, a porta de ferro
aberta, a chave em suas mãos. A alma perturbadora estava atraindo Albertine
até a capela da mansão.
O corpo esbelto e pálido pareceu sucumbir diante daquela nova
possibilidade, entregando-se a um frenesi de descontrolada aflição. De onde
reuniria força e coragem para sair da mansão, àquela hora da noite,
acompanhada apenas pela escuridão? O que intencionava fazer o fantasma da
mulher sem rosto, assim que Albertine fosse a seu encontro? Estas eram
apenas algumas das muitas perguntas que percorriam a mente da jovem. Os
minutos da noite fria atravessavam o quarto, e Albertine permanecia parada,
atônita, ainda indecisa. Sentia-se dominada pelo medo, porém sabia melhor
do que ninguém que aquela seria, talvez, sua única chance. Estavam todos já
mergulhados em sono profundo, e não havia nem mesmo a remota
possibilidade de Jeremy despertar de sua embriaguez durante as próximas
horas. Além disto, alguma força muito intensa a convencia de que, naquela
noite, algo de muito importante aconteceria – mesmo que na sombria
construção de paredes escuras que se estendia no jardim. Já tinha em mãos a
misteriosa chave, e todos os sinais de que ela estaria ligada à capela, com
sorte, da maneira mais direta possível.Seria aquela a chave que abriria o
caminho até o que quer que estivesse destinado a ser visto em seu interior?
Em um quarto de minuto, então, Albertine deixou o quarto. Na mão
esquerda sustentava a lamparina, a chama que a aquecia, a luz que lhe
preenchia de coragem, expulsando os medos, os anseios e os demônios que
espreitavam nas esquinas de sua mente – e talvez em cada canto escuro da
mansão. A chave fora guardada no bolso interno de seu vestido, adicionando
um considerável peso extra à já não tão leve peça de roupa. No corredor
escuro tudo estava quieto como deveria estar, talvez ainda mais quieto
naquela noite. Albertine aguçava os sentidos, procurando manter-se
imperceptível a todos que dormiam em cada um dos quartos do corredor.
Pôs-se então a descer lentamente as escadas, e logo assim que pisou ao
primeiro degrau, Ringo, que dormia em suas almofadas um pouco à frente da
escada, moveu suas orelhas em sinal de alerta. Os olhos negros do animal
ergueram-se e pousaram na jovem que alcançava naquele instante o último
dos degraus, prosseguindo seu caminho sem nem mesmo um segundo de
atraso.
Estava agora diante da porta principal – a última barreira que a
mantinha segura, ao menos tentava convencer-se disto. A chave, que havia
sido esquecida na fechadura, foi girada, e o clique esvaiu-se em poucos
milésimos de segundo. Ringo observava curioso, porém completamente
desprovido de mínima dose de ânimo a se levantar. A porta foi aberta
lentamente, tornando mais intenso o medo a cada milímetro do exterior que
se exibia pela abertura. Apenas o branco da neve podia ser visto com clareza
– além disto, havia apenas escuridão. Agora na pequena varanda, Albertine
clamava por algo, alguma força que pudesse manter seus pés firmes; por um
segundo ela agradeceu estes pedidos ao perceber que Ringo agora a
acompanhava. O fiel amigo pusera-se a seu lado, encarando-a como se aquela
fosse a primeira – ou última – vez.
— Venha Ringo, bom garoto – ela sibilou quase inaudível.
Seguiram juntos pelo caminho de pedra que seguia em três direções
diferentes a partir da fonte coberta de neve. Os sapatos de Albertine
afundavam a cada passo dado, deixando uma trilha que facilmente a
denunciaria. O círculo de luz amarela expandia-se apenas a poucos
centímetros do rosto da moça, permitindo-a enxergar não muito além de dois
ou três metros à frente, enquanto a barra do vestido esvoaçava por entre as
pernas magras. Finalmente alcançara a capela – estava parada, gélida, bem
em frente a ela. Olhou a cada canto a seu redor antes de iniciar qualquer
movimento. Tinha a terrível sensação de estar sendo observada, como se
algum ser espreitasse por trás de alguma das árvores de troncos largos,
esperando, vigiando seus passos. Um ligeiro olhar até a janela do quarto
mostrou que tudo ainda estava da maneira que deveria estar.
Retornando à sua tarefa, Albertine estranhamente notou que Ringo
passara a mover-se de forma inquieta, farejando, observando ao longe
detalhes que por ela não podiam ser vistos.
— O que está havendo, Ringo?
O pequeno animal andou ao redor de sua dona, em sinal de proteção,
marcando o território com suas pequeninas patas; as orelhas ainda
mantinham-se em sinal de alerta. Um leve rosnado foi ouvido por Albertine
tão logo assim que uma brisa congelante percorreu o vasto espaço ao redor da
mansão, uma corrente de ar que alcançou a jovem, fazendo-a arrepiar-se por
completo. Não era apenas o frio que acompanhava aquele rápido sopro: o
perfume de violetas mais uma vez alcançara as narinas de Albertine. Ringo
recuou, amedrontado, produzindo um som misto entre choro e fúria, mas pela
primeira vez naquela noite Albertine manteve-se firme. Tinha a certeza de
que estava mais uma vez na presença da mulher translúcida, mas agora estava
disposta a segui-la, a realizar o que fosse preciso para fazê-la ir embora. O
medo palpitava junto do sangue quente, mas o rosto permaneceu inexpressivo
e rígido. Tinha de mostrar força, dizer àquele espírito que ela não mais lhe
causava pavor.
— Está tudo bem, não precisa ter medo – disse Albertine a Ringo, ao
mesmo tempo em que retirava a grande chave do bolso de seu vestido.
O perfume floral desapareceu junto com a corrente fria, que seguira até
a extremidade da área externa da mansão, provavelmente encontrando-se com
o grande muro coberto de hera, e novamente imperou o profundo silêncio.
Agora, já com a chave em mãos, Albertine focou toda sua atenção ao
importante momento que sucederia seu fracasso ou sucesso. O objeto foi
direcionado ao orifício da fechadura com dificuldade dada à escassa
iluminação vinda da lamparina. Mesmo aflita e tomada de incertezas, não foi
uma verdadeira surpresa para ela o fato da velha chave ter se encaixado
perfeitamente à fechadura. Com um só giro sonorizado pelo contato dos
metais enferrujados, a porta estava destrancada.
Albertine orgulhou-se de si mesma; poucas foram as vezes em que sua
intuição falhara. Por segurança, precaução ou qualquer outro motivo
convincente, retirou a chave da fechadura, imaginando que este seria um
movimento prudente. Levou-a novamente ao bolso, e logo assim findou esta
etapa, guiou uma das mãos ao contato com a fria e espessa porta, levando-a à
frente em um leve movimento. Estendeu o braço que carregava a lamparina,
mas não pôde realmente enxergar o que quer que estivesse no interior da
capela. Estava então sendo automaticamente convidada a entrar.
— Você vem, Ringo? – ela questionou, realmente desejando que sua
única companhia naquela horripilante missão a acompanhasse, mas o animal
não mostrou-se interessado em sair de onde estava. –Tudo bem, tudo bem.
Fique aqui então, como um bom cão de guarda.
O som dos passos mudou: do solo macio coberto de neve, os sapatos
passaram a caminhar sobre um piso de pedra sólido e seco. Albertine estava
agora no interior da escura capela, e o que era silêncio no exterior, entre as
quatro paredes empoeiradas e vestidas por teias de aranhas tornou-se quase
um agouro de morte. O vento soprava e atiçava suavemente as vidraças,
enquanto Albertine movia a lamparina de um lado a outro, tentando conhecer
e verificar cada canto da construção. Tudo ali era sombrio e assustador, tão
negro quanto nada que Albertine já houvesse visto antes. Ao levar o objeto
em direção ao solo, notou com mais uma dose de autoafirmação que havia
marcas de passos na poeira do piso. Tinha agora a certeza de que Jeremy
visitava constantemente aquele local, e esperava descobrir, naquele momento,
a razão que o levara a esconder tais visitas.
Uma rápida espiada pelo ombro e Albertine viu Ringo sentado à porta,
como uma sentinela, observando cada um de seus movimentos. Moveu-se
alguns passos à frente, e banhou de luz amarela o que imaginou ser o altar da
capela, forrado de vermelho, mas algo prendeu sua atenção além da cruz que
causou-lhe um calafrio. Algum objeto metálico refletia discretamente a luz da
lamparina, à altura de seus joelhos, um pouco mais adiante do ponto em que
ela se encontrava. Caminhou até lá, posicionou o vestido entre as pernas de
forma a não atrapalhar seu movimento, e agachou-se diante do altar.
Posicionou então a fonte de luz rente aos ombros, à altura do rosto pálido, e
apertou os olhos procurando enxergar com mais clareza o objeto oval,
adornado por um aro dourado, que surgiu à sua frente.
Durante os curtos segundos que levou para ler a frase contida na
plaqueta, percebeu que nada era mais tão simples como ela se esforçava em
acreditar. Sentiu náuseas, o frio apossando-se de suas entranhas. Não
conseguia mais entender o que sentia naquele momento: ódio, espanto ou
medo. Ódio sentia por saber que Jeremy, seu amado esposo, a pessoa em
quem mais confiava e acreditava, escondera por tanto tempo aquele segredo
que se revelara. Espanto lhe causou a forma em que este segredo fora
finalmente trazido à tona. E o medo, a mais intensa e desgastante sensação
que a perturbava, cobriu-a com um manto ao descobrir, sob o silêncio e o frio
da primeira noite de inverno do ano, que o fantasma que atentava contra sua
sanidade era Dianne Ridell. A mesma Dianne Ridell que dera à luz seu
amado Jeremy. A mesma mulher que teve seu corpo sem vida colocado ao
descanso eterno naquela pequena construção. Reconhecera instintivamente os
traços, mesmo sem conhecer seu rosto até então, pela pequena imagem
presente junto da frase de despedida. Estava frente a frente aos restos mortais
da mulher sem rosto, o espírito inquieto que perambulava por toda a mansão.
— Meu Deus – sussurrou para si mesma, completamente aterrorizada.
Pela primeira vez naquela noite pensou em desistir, voltar ao quarto e
esquecer todos aqueles acontecimentos. Uma nova e preocupante proporção
fora aplicada a todo o trajeto percorrido até que chegasse ali, no que agora era
um mausoléu, um túmulo. Mais uma generosa porção de dúvidas caíra entre
suas mãos. O que, afinal, o espírito de Dianne Ridell tinha de tão importante
a dizer?
Albertine não quis ficar para descobrir. Ergueu-se decidida a deixar o
mausoléu, mas foi paralisada mais uma vez pelo aroma floral, o cheiro que
denunciava a presença da alma de Dianne. Junto com ele veio também o frio,
um sopro que resfriou a respiração daquela que irrompera o local de eterno
descanso de alguém. Albertine girou sobre o próprio eixo, aplicando
incomensurável esforço a este movimento; seu corpo parecia dominado por
alguma força magnética que a impedia de se mover. Estava claro que ela não
deveria ir embora, ainda. Dianne não permitiria que partisse até que a fizesse
entender tudo que precisava ser entendido. Albertine estava, então,
direcionada à saída, mas era impossível alcançá-la. Ringo, ainda sentado ao
batente de pedra, focava seus olhinhos escuros à sua dona, até que num só
movimento, rosnou em ameaça a algo invisível, algo que se encontrava junto
de Albertine. Uma terrível presença fez-se sentir naquele instante, e a jovem
sentiu-se tocada na pele por mãos desprovidas de calor, deslizando por seus
ombros, fechando-se ao redor de seu pescoço. Reviveu a aterrorizante
sensação de sufocamento – o ar que entrava em suas narinas continha o
aroma excessivo, misturado ao frio cortante. Mas não era aquela a real
intenção de Dianne, não pretendia eliminar Albertine, e isto tornou-se claro
em uma cena que foi aplicada em um quase imperceptível momento: uma
rajada de vento percorreu todo o mausoléu, assoviando em cada canto das
paredes, levantando a poeira que cobria tudo que lá existia. O sopro de vento
derrubou ao chão o crucifixo de madeira que adornava a cripta, atravessou o
corpo de Albertine e atingiu a saída. Ringo exibiu suas mandíbulas e seguiu a
nuvem de poeira, sumindo na escuridão pela lateral da mansão.
— Ringo! – disse Albertine em voz rouca, porém, tardia.
A porta movimentou-se de maneira paranormal – fechou-se em um só
golpe, encurralando a visitante. Estava ela, então, sozinha com o cadáver de
Dianne Ridell.

Na penumbra do quarto, contrariando as expectativas de Albertine,


Jeremy abriu os olhos. Sentia-se ainda tonto, afetado pelo álcool que ingerira
em excesso algumas horas atrás. Fora acordado por alguns ruídos, que
alcançaram seus ouvidos adormecidos, vindos do exterior da mansão. Pensou
estar apenas confuso ou ainda bêbado ao ouvir os latidos de Ringo
percorrendo o terreno ao redor da casa. Erguendo o corpo, apertando os olhos
a fim de melhor enxergar, deslizou o braço pela superfície da cama e sentiu
apenas os lençóis frios.
— Albertine? – disse em direção ao banheiro do quarto, mas logo
percebeu que ela também não estava lá.
Girou-se sobre o colchão, apoiando os pés no chão, e só assim lembrou-
se que fora jogado na cama pelos dois criados, vestido exatamente como
estava desde cedo. Levantou-se, e precisou alongar os membros antes de
conseguir se mover corretamente. Abriu a porta delicadamente, procurando
não fazer qualquer barulho, e espiou o corredor revestido de trevas. Mais uma
vez, então, ouviu os latidos de Ringo, soando pela vidraça do fim do
corredor, e teve a certeza de que não era uma ilusão ou algo parecido. O
animal estava mesmo solto, latindo ao redor da mansão. Somado a este, o
fato de Albertine não estar em lugar algum, àquela hora da noite, declarava
que algo estava errado.
— Albertine? – soou um sussurro que se desfez no comprimento do
corredor.
Não havia nenhuma lamparina extra ao alcance, mas isto não impediu o
rapaz de seguir em passos decididos pelos ambientes escuros, capazes de
provocar os mais terríveis calafrios em qualquer um que se atrevesse a
percorrê-los sem a companhia de uma fonte de luz. Tornou a chamar por sua
esposa, novamente sem resposta.
Descia agora os degraus, cauteloso a não tropeçar nos próprios pés; ao
fim da escadaria, olhou ao redor e nada que pudesse demonstrar
anormalidade foi visto. A porta parecia muito bem trancada, e nenhuma das
janelas fora esquecida aberta. Decidiu então ir até a cozinha, imaginando que
sua esposa pudesse ter levantado-se para uma xícara de chá. A ausência de
luz naquele cômodo, que podia ser notada já do início da sala de jantar,
porém, anulou esta possibilidade, mas não a necessidade que Jeremy sentia
de saber o que realmente estava acontecendo. Atravessou a comprida sala,
pausando a vista sobre cada uma das janelas. Nenhuma delas estava
encoberta pelas cortinas, o que aplicava uma aparência desleixada à
arrumação do ambiente. Jeremy estava agora na cozinha, e mais uma vez
nada pareceu fora de seu lugar, exceto Albertine, que não estava em lugar
algum.
Seu coração passou a acelerar-se progressivamente a cada uma das
possibilidades que nem ele mesmo conseguia imaginar. Sentiu calafrios, mas
não de medo. Sentiu o repentino frio apossar-se de seu corpo, e um suave
aroma de violetas espalhando-se por toda a extensão da cozinha. Seu sexto
sentido aguçou-se em meio a todos os outros, denunciando uma presença
muito próxima. Jeremy teve, então, a certeza de que não estava sozinho ali.

O crucifixo de madeira, agora partido em dois pedaços quase


desconexos, caíra exatamente ao centro do mausoléu, alguns pares de
centímetros de distância de Albertine. Ela sustentava a lamparina exatamente
diante do rosto empalidecido; sentia o braço trêmulo, quase sem forças para
manter o objeto erguido. Tentava desesperadamente anular o som da
respiração ofegante, procurando silêncio, na esperança de ouvir Ringo
retornando para ampará-la. Um, dois, três minutos, e o valente cachorro não
deixou-se ouvir em lugar algum. Albertine sentia-se imobilizada, como se
envolvida pelas garras de um terrível pesadelo. Não podia gritar, não podia
clamar por ajuda, apenas poderia permanecer ali, esperando algo que não
sabia quando ou de que forma aconteceria. Chegara àquele local pelo
intermédio de um espírito, mas as peças do quebra-cabeça ainda não estavam
realmente encaixadas. Tinha agora cada uma delas em suas mãos, porém não
sabia como usá-las. Foi assim que, então, algo sobrenatural acontecera diante
dos atônitos olhos verdes.
Um ruído seco chegou aos ouvidos de Albertine, algo como duas pedras
pesadas em atrito. Ela deixou-se guiar pela linha sonora, e logo foi levada à
frente da cripta, agora não mais forrada pelo manto vermelho, que fora
parcialmente arremessado pela ventania que sucedera-se minutos antes. Não
estava sonhando, não via coisas, ou muito menos estava a enlouquecer. O
ruído que a atraíra era o som arrastado da espessa camada de pedra, que
selava a tumba, sendo movida por nada que se pudesse ver. Era um
movimento lento, agonizante e perturbador. Apenas mais dois passos foram
necessários até que Albertine se pusesse apta a enxergar, tomada pelo pavor,
com a ajuda da luz alaranjada, o que estava prestes a surgir no interior do
túmulo de pedra.

Jeremy sentia frio, náuseas, e a terrível sensação de estar sendo


observado. Sentiu a proximidade de alguém caminhando a seu redor, e podia
até mesmo ouvir os passos no piso de madeira da cozinha. Seu fôlego parecia
afugentar-se, perdendo espaço para o cheiro que tomara todo o ambiente.
Jeremy movia-se em giros ligeiros, procurando enxergar por entre os
discretos fachos de luz que escapavam para dentro, pelas frestas das janelas,
porém não suficientes para clarear mais que alguns centímetros à frente das
vidraças. Em um destes movimentos ele avistou, acima da pia, uma
lamparina suspensa por um gancho, e atirou-se em direção a ela no exato
instante. Os fósforos, por sorte, estavam largados no balcão ao lado da pia.
Jeremy riscou um deles contra a lixa desgastada, e o pequeno palito acendeu-
se em uma pequena chama, que perdeu-se logo em seguida na abertura da
lamparina. A escuridão foi, assim, parcialmente expulsa da cozinha, mas isto
não foi o suficiente para que o jovem se sentisse em total segurança. Os
passos cessaram e fez-se novo minuto de silêncio, acompanhado do som do
vento que vez ou outra sacudia alguma das janelas.
Jeremy mantinha-se virado à parede da pia; o medo não permitia que
retornasse ao campo de visão onde seria possível encarar, agora que havia
luz, o ser que poderia estar parado às suas costas, observando e esperando.
Respirou fundo e pensou em Albertine, no que teria acontecido a ela.
Imaginou terríveis situações, e as mais horripilantes cenas passaram em sua
mente. O sentimento de mais uma vez estar prestes a perdê-la agora o
sufocava mais do que qualquer outra coisa. O coração ferido pela hipótese de
não mais rever quem amava bombeou o sangue agressivamente pelas veias de
Jeremy, e um completo vigor tomou seu corpo magro. Virou-se, pronto a
enfrentar seu inimigo, mas nada havia na cozinha além dos móveis e
utensílios descansados sobre eles.
Um profundo suspiro entrou e saiu dos pulmões de Jeremy, mas foi
interrompido por um susto que quase o derrubou ao chão. O ser invisível
voltou a caminhar pela cozinha, desta vez de maneira acelerada. O piso
rangia, e alguns objetos foram impulsionados para fora de seus locais de
repouso pela força sobrenatural que novamente se apossara da tranquilidade
de Jeremy. Copos quebraram-se ao chão, panelas chocaram-se umas às
outras, talheres espalharam-se por todas as partes, e os passos prosseguiam,
cada vez mais rápidos e fortes.
— Vá embora! Não queremos você aqui. Deixe-nos em paz!
O fantasma pareceu responder a este recado, e imediatamente
abandonou a cozinha. O assoalho continuava a ranger, tornando possível
localizar o caminho tomado pela entidade até que deixasse a cozinha. Jeremy
instintivamente o seguiu, cambaleante, sustentando com dificuldade a
lamparina que tremulava aos movimentos desengonçados de seu braço.
Chegou à sala de jantar, porém não mais ouviu som algum. Uma nova
quietude pairou em cada canto de parede, levando o jovem Ridell a acreditar
que, desta vez, o invasor do além havia ido-se de uma vez. Mas logo ele
descobrira que não. Seu coração veio a quase paralisar-se a um estrondoso
som vindo de uma das janelas da sala. Algo parecia ter se chocado contra a
grande vidraça, fazendo-a estremecer da base até o último centímetro em seu
topo. O som veio a repetir-se segundos depois, desta vez na janela seguinte à
primeira, tão alto e assustador quanto antes.
— O que quer de nós? Por Deus, vá embora!
As batidas repetiram-se em cada uma das janelas, de cada lado da sala.
Jeremy mergulhara totalmente em pavor, não conseguia mais conter o
desespero. O som das batidas penetrava em seus ouvidos como agulhas,
perfurando o cérebro, escorrendo em lágrimas, esvaindo-se em gritos de
horror. Agora, todas as janelas estavam a ser atingidas pelo espírito inquieto.
Um repentino caos tomava conta da mansão e também de seu dono. Os
sentidos de Jeremy mostraram-se debilitados, e ele percebeu que sua
consciência não se prolongaria por nem mais um minuto. As paredes de sua
mente fechavam-se a cada nova batida nos vidros das janelas, esmagando seu
cérebro sem qualquer piedade, sem nenhuma misericórdia.
Seus olhos tornaram-se marejados e sua visão desfocada. À sua frente
surgiu, então, uma figura esguia, translúcida, muito branca. Uma mulher de
cabelos negros, sem face, apenas com duas grandes fendas escuras no lugar
dos olhos.
Os gritos de Jeremy não mais encontravam fontes de força para
deixaram sua garganta. Dois longos braços estenderam-se até ele, cobertos
até os punhos por longas mangas da mortalha que a mulher trajava. Os
membros frios pousaram sobre os ombros de Jeremy; os rostos encararam-se
– o morto e o vivo – e o jovem sentiu um golpe causado por sua memória
naquele instante. Reconheceu a silhueta desbotada. Havia visto aquela mulher
em uma pequena imagem no mausoléu da mansão.
— M...mãe!
A alma inquieta, mesmo sem lábios, pareceu sorrir. Não foi um sorriso
alegre, muito menos bondoso. Dianne Ridell parecia estar tomada pela
maldade, pela pura vontade de assombrar e perturbar seu próprio filho, assim
como sua amada esposa. Suas mãos, ainda repousadas sobre Jeremy,
fecharam-se então ao redor de seus ombros. Após um rápido segundo, usado
para mais um olhar entre mãe e filho, Jeremy sentiu os pés abandonarem o
chão. Dianne o erguera com suas mãos quase invisíveis e, após sussurrar
algumas palavras inconsistentes, arremessou-o para frente com força e
velocidade descomunais. O corpo suspenso de Jeremy percorreu toda a
extensão do ambiente, encontrando-se então a uma das paredes do comprido
cômodo. A nuca chocou-se contra o sólido obstáculo, enquanto as palavras
ditas a ele rebatiam em seus ouvidos: “apenas o herdeiro deve ficar”.
Segundos depois, de forma instantânea Jeremy tornou-se um homem
desacordado, de crânio ferido, caído ao chão da sala de jantar.

O espesso bloco de pedra, perfeitamente polido em formato retangular,


cessou então o movimento involuntário. A tumba estava agora desprovida de
proteção, exibindo por uma larga fresta seu interior, por duas décadas selado
abaixo da barreira de rocha.
Albertine engoliu a seco. O sepulcro abrira-se diante de seus olhos, sem
que ela nem mesmo o tocasse. E mais uma vez tudo estava claro. Sua missão,
ao fim de tudo, era descobrir o que estava escondido junto ao corpo
decomposto de Dianne Ridell. Albertine seguiu em passos trêmulos,
prostrando-se diante do túmulo de cabeça erguida, os olhos fixos em um
ponto imaginário na parede à sua frente, olhos indecisos entre direcionarem-
se ou não ao que estavam destinados a ver.
A lamparina pairou acima da fresta, e após um longo suspiro
encorajador, decidiu não mais estender aquela horripilante noite. Inclinou-se
levemente e viu um corpo completamente decomposto, um esqueleto
parcialmente coberto por restos de pele apodrecida, seca quase a pó. Exibia o
maxilar escancarado, de onde dentes corroídos pareciam estar prestes a
despencar. Os cabelos eram negros, à altura dos ombros do que um dia fora
uma bela mulher. Seus trajes eram, como Albertine imaginara, a mortalha
branca que vestia a aparição de seu fantasma. Seguindo ao resto do corpo,
Albertine focou sua atenção às mãos do esqueleto: estavam juntas, em
posição de rigor mortis, porém havia algo abaixo delas, junto ao peito de
Dianne. Guiando a lamparina a uma maior proximidade, providenciando
iluminação completa daquela área, o que se escondia sob os dedos
entrelaçados mostrou-se com mais clareza. Parecia um pedaço amassado de
papel, amarelado pela ação ininterrupta do tempo. Albertine não hesitou, nem
mesmo pensou em fazê-lo. Levou a mão livre até o interior da tumba, e com a
ponta dos dedos, retirou lentamente o objeto do local onde estivera por tantos
e longos anos. Teria agora que examiná-lo; apoiou a lamparina sobre a tampa
de pedra, deixando livres as duas mãos pálidas e ansiosas. Desdobrou a folha
de papel, cuidando-se a não destruí-la devido à fragilidade de papel
envelhecido, e deparou-se com uma página preenchida por uma tipografia
conhecida. Cada uma das letras parecia escrita com sangue. Virou-a e foi
então surpreendida por um fato inesperado: presente na página estava uma
ilustração como aquelas que vira em cada um dos capítulos do
Necronomicon, o livro dos demônios. Era um homem de baixa estatura, de
pernas curtas e braços mais extensos do que o normal. Tinha a cabeça
redonda, com dois grandes olhos e um nariz pontudo e angulado entre eles.
Na testa exibia uma estrela de seis pontas, e não possuía fio de cabelo algum.
Agathodaemon, este era seu nome.
— Agatho...daemon – Albertine sussurrou para si mesma, levando uma
das mãos à boca aberta em espanto.
Compreendera, assim, mais um episódio do mistério que a cercava.
Tinha em mãos a página que faltava no Necronomicon. Seus olhos brilharam,
repletos de expressões misturadas; estava cada vez mais próxima da verdade
sobre Dianne Ridell, e aquela página iria revelar-lhe, talvez, muito mais do
que havia escrito nela própria. Sua tarefa no mausoléu estava então cumprida.
Dobrando o pedaço de papel em metade de seu tamanho normal,
guardou-o no bolso interno do vestido, apanhou a lamparina e virou-se,
pronta a deixar aquele tenebroso local. Sentia frio, sentia ainda medo, e só
queria sentir-se segura dentro da mansão. Iniciou sua partida, mas ao
primeiro passo dado, sentiu a cabeça girar em incontáveis e velozes graus.
— Mas... o que...
Sustentou-se a uma das paredes empoeiradas, completamente nauseada,
tendo a visão fora de foco. Subitamente foi atingida por uma cólera de dor em
seu crânio, mas o grito de dor foi abafado pela inexistência de força para
fazê-lo deslizar por sua garganta. Caiu sobre as pernas enfraquecidas,
largando-se ao chão, ao lado do túmulo de Dianne. Uma única lágrima
escorreu por cada um de seus olhos, enquanto um fio de sangue quente
escorria por seus cabelos, expelido por uma abertura em carne viva em sua
nuca. As pálpebras tremeram, depois uniram-se, e assim como Jeremy,
exatamente como ele, perdera a consciência para um ferimento surgido de
absoluto lugar nenhum.
Capítulo XIX

O CONTRATO

— Rosa, veja! Ela está acordando! – disse Martha em um tom


levemente animado demais.
— Minha nossa... graças ao bom Deus! – respondeu a governanta,
levantando-se da poltrona e indo ao alcance de Albertine.
Ela abriu os olhos até que metade de suas pupilas tornaram-se visíveis.
Tinha os lábios ressecados, sedentos, e uma quase insuportável dor
palpitando em sua cabeça. O desfoque em sua visão foi pouco a pouco
desfazendo-se, e então ela pôde ver que estava em seu quarto, acomodada
bem no centro de sua cama. Estavam em sua companhia Martha e Rosa,
exibindo faces preocupadas, mas também felizes por virem-na despertar do
que parecia ter sido um longo sono.
— O que aconteceu? Onde está Jeremy? – questionou Albertine
completamente rouca, após perceber que seu marido não se encontrava em
lugar algum do quarto.
— Jeremy está no quarto ao lado, descansando – Rosa respondeu,
repousando as costas de uma das mãos sobre a testa de Albertine. –Ainda está
com febre. Martha, cuide dela enquanto preparo mais algumas compressas.
— Claro, Rosa.
— Martha, por favor prepare as compressas, preciso falar com Rosa em
particular – disse Albertine imediatamente após a afirmação da criada.
A criada lançou um olhar rápido à patroa, e logo depois outro a Rosa. A
governanta percebeu que estava acuada, e que não tinha possibilidade de
escapar mais uma vez de uma conversa importante. Em resposta à solicitação
da jovem, assentiu com a cabeça, enfim fazendo-se entender. Martha deixou
o quarto em alguns segundos, e lá estavam as duas mulheres frente a frente
para um momento decisivo.
— Você sabia, não sabia? – Albertine iniciou. –Do mausoléu, do corpo
de Dianne. Você sabia de tudo!
Rosa não se mostrou surpreendida pela repentina pergunta – assim
como vindas de Jeremy, já esperava por aquelas palavras também vindas de
Albertine. Por um segundo pensou em como fazê-la desistir do assunto, mas
sabia que a mente da esposa de Jeremy era tão afiada quanto a sua, e que ela
já tinha toda a certeza de que escondia grandes detalhes da história daquela
mansão, de Jeremy e até de Dianne.
— Sim. Como você deduziu, sempre foi de meu conhecimento o
mausoléu no jardim.
— E o que a impediu, todo esse tempo, que me contasse?
— Apenas não quis tocar em assuntos passados, e além disto, Jeremy
pediu que não contasse nada.
— É quase inacreditável. Fui induzida a acreditar que uma capela
adornava o jardim de minha casa, quando de fato era um mausoléu. Um
túmulo! Jeremy não podia ter escondido isto de mim!
— Não o culpe, Albertine. Ele também não sabia disto. Descobriu por
acaso, algumas semanas atrás. Ficou tão surpreso quanto você, talvez até
ainda mais. É o corpo de sua mãe que está lá.
Ao ouvir palavras sobre o corpo de Dianne, Albertine subitamente
relembrou-se da noite passada, de todo o medo que sentira, do espanto em
deparar-se com o cadáver decomposto. Lembrou-se ainda da página
amarrotada que retirara das mãos em esqueleto, mas não conseguiu alcançar
memória alguma sobre como findara sua visita ao mausoléu de Dianne
Ridell. Levou uma das mãos ao bolso do vestido, buscando o item que
encontrara. O pedaço de papel não estava mais lá.
— A página do livro está guardada em sua gaveta. Não se preocupe –
Rosa revelou, para a surpresa de Albertine.
— Então sabe sobre o livro, também.
— Nada sei sobre o livro. Sei apenas que pertencia a Dianne. Ela
costumava lê-lo diariamente, mas eu nunca soube do que falava. Como já
deve ter tomado conhecimento, o texto está todo em latim.
— Então Dianne lia este livro? Ela falava latim?
— Dianne era uma mulher de muitos talentos, assim como você,
Albertine. E assim como você, também era incrivelmente misteriosa. Ela
sempre se esforçava a parecer que não havia nada de errado com o livro, mas
eu sempre soube que não era bem assim. Coisas estranhas aconteciam todos
os dias nesta casa. Todos os dias e todas as noites.
— Que tipo de coisas?
A senhora, naquele instante, deixou-se levar por um momento repleto
de lembranças. Um olhar perdido vagueou por cada canto do quarto, reunindo
imagens, buscando pedaços de histórias perdidas através dos anos. Albertine
apenas esperava, sentindo que toda a verdade viria nos minutos seguintes.
— Foi um período muito assustador – Rosa recomeçou. –Ameaças
constantes cercavam todos nós, aqui nesta mansão. Objetos pegavam fogo,
portas amanheciam abertas, pegadas eram encontradas com frequência por
toda a casa.
— E tudo isso era causado pelo livro?
— Sempre achei que havia algo de muito errado com aquele livro, mas
nunca havia associado, de fato, todos os acontecimentos a ele. Porém, após
um tempo, percebi que Dianne carregava-o a qualquer lugar que fosse, e
sempre o escondia quando não estava em uso. Não consegui acreditar que era
ela mesma quem causava todos os problemas; se ela sabia que o livro atraía
coisas ruins, não faria sentido continuar fazendo uso dele. Joseph viajava com
frequência e nunca esteve realmente presente em nenhum dos
acontecimentos, apenas eu e uma outra criada trabalhávamos aqui. Ela não
aguentou por muito tempo, e em uma manhã, resolveu ir embora com tudo
que lhe pertencia.
— E não demoraria muito até que todos os outros, também,
abandonassem a mansão.
— O abandono desta mansão ocorreu apenas vários meses depois do
início dos fenômenos. Durante uma das longas viagens de Joseph, Dianne
descobriu estar grávida, e coincidentemente, tudo entrou em um longo
período de calmaria. Não a vi carregando o livro sequer uma só vez durante a
gestação de Jeremy. Ela estava feliz, mudara completamente da pessoa calada
e misteriosa para uma mulher alegre e sorridente. O filho trouxera uma nova
perspectiva às nossas vidas.
“E assim seguiram-se os nove meses, dos quais apenas dois ou três
tivemos a presença de Joseph na casa. Uma nova criada foi contratada,
Martha, muito habilidosa em primeiros socorros e experiente parteira, e foi
graças a ela que o parto de Jeremy foi
bem sucedido. Várias complicações surgiram no decorrer das várias horas de
sofrimento de Dianne. Jeremy nascera em uma madrugada muito escura,
exatamente nesta cama onde você se encontra. Tudo parecia estar bem,
porém, a saúde do bebê não gozava de total plenitude. Jeremy enfraquecera
em questão de poucas horas após seu nascimento. Não chorava, respirava
com dificuldade, eram escassos seus movimentos. Não sabíamos mais como
cuidar dele, nem eu, nem Martha. Mas Dianne não parecia abalada, apenas
permanecia deitada, recuperando-se; não dizia palavra alguma, somente
encarava o berço do filho com um olhar perdido, mas ao mesmo tempo
focado em algo indecifrável. Foi assim que, para minha grande surpresa,
adentrei ao quarto em uma tarde chuvosa e encontrei a cama vazia, assim
como o berço. Dianne e Jeremy não estavam no quarto. Martha e eu
procuramos por toda a mansão, em cada quarto, na área externa, na sala de
música, mas só encontramos Dianne na biblioteca, vários minutos depois.
Estava sentada no sofá vermelho, balançando levemente o filho, sussurrando
alguma canção de ninar desconhecida. Ao seu lado, na escrivaninha, estava o
livro, o Necronomicon, aberto exatamente na página que estava no bolso de
seu vestido, Albertine. Junto a ele havia uma caneta e tinta. Nunca entendi o
real propósito disto, mas Dianne havia assinado em um espaço em branco da
página seguinte, adicionando mais um nome aos inúmeros que já existiam
nela.”
Albertine entendeu, ao som das últimas palavras de Rosa, o que de fato
havia acontecido vinte anos atrás naquela sombria mansão. A conversa com
Rosa encaixou-se com as explicações do Padre Jullian sobre o
Necronomicon, sobre suas utilidades e sobre como adquiri-las. O som da voz
de Rosa dizendo claramente que Dianne Ridell havia assinado seu nome ao
Necronomicon, subitamente, tornou as preocupações de Albertine ainda mais
assustadoras.
— Um contrato. Foi isso que Dianne fez ao assinar seu nome no livro.
— Um... contrato?
— Sim. Muitas coisas por mim desconhecidas foram explicadas pelo
Padre Jullian, durante a visita que fiz à igreja ontem. E posso assegurar-lhe,
Rosa, que suas suspeitas sobre o Necronomicon sempre foram reais. Aquele
livro é uma grande enciclopédia sobre demônios, criaturas do mal. Explica
desde seus nomes e habilidades até como invocá-los.
— Está me dizendo que Dianne assinou um...
— Pacto com um demônio.
— Santo Deus. Você está certa do que está dizendo?
— Absolutamente. Se existe uma pessoa a quem eu confiaria minha
vida, esta pessoa seria Jullian, e tenho certeza de que tudo que me contou é
real.
— Então todos aqueles rumores sobre o Padre eram também reais?
— Sim. Ele é mesmo um exorcista, e um estudioso que trabalha na área
de demonologia, não para pregá-la, obviamente.
— Estou um tanto confusa com tudo isto...
— Sei que está, mas preciso que me ajude mais um pouco, Rosa. Sei
que você não é nem um pouco boba, e sabe melhor que ninguém que estas
coisas que vem acontecendo conosco estão apenas se repetindo. O quarto em
chamas, as portas destrancadas, as pegadas. Está acontecendo outra vez!
— Desde o começo eu soube que cedo ou tarde tudo voltaria à tona.
Deixamos a mansão algumas semanas após a morte de Dianne, seguindo as
ordens de Joseph. Ele também sabia que algo estava errado na mansão,
mesmo não estando presente para presenciá-las. O livro já pertencia ao
acervo da biblioteca antes mesmo de virmos morar aqui, lembro-me como
hoje de quando Dianne o encontrou em um baú, enquanto organizávamos a
biblioteca.
Rosa demonstrava-se cada vez mais abalada, e a cada minuto que se
estendia entre ela e Albertine, desejava não ter mais de revelar os terríveis
segredos de Dianne, de Joseph, ou mesmo da própria mansão. Albertine
estava conseguindo retirar dela todas as informações que precisava para
chegar ao fim da história, e não poderia deixar que a governanta escapasse
sem que a última gota de verdade fosse derramada.
— O que aconteceu nos dias que se seguiram, após Dianne assinar o
contrato com o demônio daquela página?
— Assim que a encontramos na biblioteca – Rosa continuou,
procurando reunir corretamente as informações misturadas. -Eu e Martha a
levamos de volta ao quarto, ela e o bebê. Dianne então, a partir daquele dia,
não pronunciou sequer uma palavra. Passou a enfraquecer repentinamente,
dia após dia, empalidecendo, perdendo toda sua vitalidade. Em contradição,
no entanto, Jeremy passou a recuperar-se, a ganhar saúde. Em quatro dias
tínhamos um bebê, antes à beira da morte, saudável e vívido, e também uma
mulher quase imóvel, de olhos mortos e pele descorada. Era como se a vida
fluísse de um corpo para o outro.
— Seria isto o efeito do contrato assinado por Dianne?
— Não duvido disto. Eram muitas coincidências, em períodos curtos
demais. Porém, nunca pude me certificar, não havia ninguém que pudesse ler
o livro, já que apenas Dianne falava latim. E para tornar a situação ainda mais
difícil, Dianne ocultou o Necronomicon em algum lugar da mansão,
aproveitando-se de um breve momento em que a deixamos sozinha durante
sua enfermidade, e nunca conseguimos encontrá-lo.
Uma extrema vontade despontou em Albertine. Ela sabia que tinha em
mãos a ferramenta que encerraria, de uma vez por todas, as incertezas e
dúvidas dela, assim como as de Rosa. A governanta sabia muito mais do que
Albertine chegara a imaginar, e estava tão ligada à história da mansão quanto
ela própria. Rosa conhecera, conversara, dividira um lar com Dianne, e talvez
fosse capaz de revelar algo que explicasse as aparições fantasmagóricas
daquela que, há quase vinte anos, fora sua patroa.
— Depois de tudo isso, dos horrores que vivemos, do nascimento de
Jeremy, não tenho lembranças muito claras do que realmente aconteceu. Uma
nevasca muito forte atingiu essa região, a casa precisava ser mantida aquecida
por todas as lareiras, e durante uma noite muito fria sofri um pequeno
acidente nas escadas, fiquei inconsciente e acordei no hospital três dias
depois. E lá mesmo, ao despertar, descobri que Joseph decidira abandonar a
mansão no decorrer das semanas seguintes.
— Não se preocupe mais, Rosa. Já lembrou-se de mais coisas do que eu
realmente precisava saber. Mas agora... está pronta para descobrir, por fim, o
que Dianne solicitou em seu contrato?
— Espero por isto há duas décadas.
Sem mais nenhum rodeio ou atraso, Albertine resolveu erguer-se da
cama, mesmo sentindo-se tão fraca quanto nunca antes. Levou o corpo à
frente, mas foi forçada a retornar à posição inicial após sentir uma agonizante
dor que partira de seu crânio, espalhando-se por todos os seus membros. Um
gemido rouco denunciou esta breve, mas intensa sensação.
— Albertine! Não faça nenhum esforço, ou vai ficar ainda mais fraca.
Martha levou horas para limpar e dar pontos em sua cabeça.
— Pontos?! Meu Deus, do que está falando? – Albertine questionou
assustada, reluzindo em seus olhos a surpresa em saber que havia sido ferida.
— Então não se lembra de nada?
— Lembro-me apenas de estar no mausoléu, e quando pretendia voltar
à mansão, sentir-me atingida por alguma força invisível, e então... acordar
aqui.
— Minha nossa. Todos nós acordamos ao som dos latidos de Ringo,
misturado a fortes batidas nas janelas, no andar de baixo. Descemos e
encontramos Jeremy estendido na sala de jantar, desacordado, com um
ferimento na nuca. Procuramos por você, mas não estava em lugar algum da
casa. Ringo estava do lado de fora, então saímos para averiguar o que
realmente estava havendo. Ele estava latindo de forma esganiçada, bem à
frente do mausoléu. A porta estava aberta, então, a encontramos lá, também
desacordada, com um ferimento idêntico ao de Jeremy.
Mais uma vez, as suspeitas de Albertine concretizaram-se, e mais uma
convicção a tomou por completo. Apenas uma pequena confirmação separava
as especulações das certezas, e esta etapa seria concluída graças ao presente
que ela recebera de Jullian: a valiosa tradução do Necronomicon, entregue
durante a turbulenta noite anterior.
— Ajude-me, Rosa. Por favor entregue-me o pacote de livros que levei
ontem à cidade – Albertine solicitou à governanta, que imediatamente
localizou o pacote embrulhado, depositado ao lado da escrivaninha.
Apanhando-o com as duas mãos, largou-o em seguida às mãos de Albertine.
O laço foi desfeito em instantes, e o retalho de tecido que envolvia os
livros foi removido e largado a alguns centímetros do pacote. Estavam lá os
quatro livros, três deles escolhidos de forma aleatória por Albertine pelas
prateleiras da biblioteca. O quarto livro era o Necronomicon, posicionado
como o penúltimo volume da pilha. Abaixo dele, de forma discreta, estava a
versão traduzida do terrível livro. Rosa observava com cautela e Albertine já
procurava entre as muitas páginas aquela que iria, em alguns segundos,
modificar de maneira incomensurável todo o seu destino.
Capítulo XX

O SEGREDO DE DIANNE

“O Agathodaemon é um espírito residente nas partes mais altas dos


infernos. Faz parte do místico grupo dos demônios beneficentes, sendo, além
disto, um dos poucos demônios qualificados como não-agressivos ou
ameaçadores. A presença do Agathodaemon está fortemente ligada aos
benefícios que ela traz àquele que fora presenteado com ela; este espírito
torna-se um guardião a seu mestre, pessoa esta que deve ser presenteada antes
de receber o batismo sagrado. Após o batismo, qualquer tentativa de contato
com o Agathodaemon, exceto para presentear um pagão, não será bem
sucedida. Entre as características deste demônio estão a habilidade de cura
instantânea, rejuvenescimento e, quase sempre, aquisição de fortuna. Aquele
que possui um Agathodaemon é chamado de hospedeiro, dada à singular
maneira em que o espírito se aloja em seu corpo.
O espírito divide-se em duas partes, e apenas uma delas invade o corpo
de seu mestre. Para que seus trabalhos tenham efetivos resultados, no entanto,
o Agathodaemon necessita de uma outra alma para fornecer de bom grado a
vida que o hospedeiro receberá, e é no corpo desta pessoa específica que a
outra metade se alojará. Pessoas próximas, tais como filhos, pais ou esposas e
maridos são os mais apropriados a este papel, desde que haja entre eles - os
chamados ‘fornecedores’ - e o hospedeiro-receptor qualquer tipo de relação
amorosa ou afetiva. O Agathodaemon suga suas propriedades vitais
saudáveis, transferindo-as em seguida ao hospedeiro-receptor, substituindo-as
ao fornecedor por qualquer enfermidade existente ou presente no corpo físico
do hospedeiro. Enfermidades mentais, no entanto, não podem ser curadas. O
fornecimento vital ocorre até o último momento de vida do fornecedor, e esta
é de fato a única maneira conhecida para que ele abandone o corpo do
fornecedor; assim que o Agathodaemon percebe que já não há mais vida no
corpo do fornecedor escolhido, transfere-se a outro, buscando com cautela
aquele que seja o mais próximo do hospedeiro-receptor. Para alojar-se em
outro corpo, no entanto, é preciso que o Agathodaemon tenha contato direto
com ele.
Como pagamento pelos serviços, assim como todos os outros demônios,
o Agathodaemon leva a alma de seu mestre consigo no momento de sua
morte, entregando-a a um dos príncipes dos sete infernos como um presente,
assim como fora ele mesmo presenteado àquela alma. Aquele que o invocar,
através de algum dos muitos métodos existentes, terá sua alma condenada ao
eterno sofrimento no purgatório, sendo muitas vezes condenada a ocupar
eternamente o lugar onde deixara o corpo do invocador em questão.
Como maneiras de identificar um mestre de Agathodaemon, ou
hospedeiro-receptor, pode-se notar a rápida cura de ferimentos pequenos e
não muito graves, assim como doenças de cunho físico sendo curadas sem
tratamento, transferindo-se ao corpo da pessoa escolhida como fornecedor.
Ocorrem ainda, como um dos sintomas, mudanças momentâneas de humor e
personalidade do hospedeiro, causadas pelo conflito entre a mente do
Agathodaemon e a de seu mestre.”

Albertine fechou o volume assim que alcançou o fim da página que lia,
e o silêncio imperou absoluto por instantes que pareceram eternos às duas
mulheres. Não conseguiram levar os olhos uma à outra. De repente tudo
havia se tornado pesado demais para que pudessem sustentar sem fraquejar,
sem perder as esperanças, sem imaginar que qualquer atitude tomada a partir
das últimas revelações seria em vão. Rosa levantou-se da poltrona, movendo-
se até a janela aberta até a metade. Sentiu que precisava de ar, ou talvez
precisasse desviar seus pensamentos das palavras proferidas por Albertine.
Uma revoada de pássaros atravessou os ares no momento em que a
governanta ergueu seus olhos ao céu muito azul, manchado aleatoriamente
por nuvens de aparência majestosa. Albertine nada disse, apenas esperou até
que Rosa se mostrasse pronta a continuar a conversa.
— Tudo se encaixa de forma perfeita – disse Rosa, ainda observando o
exterior da mansão. –Após duas décadas, todos os fatos me caem perfeitos
como luvas. Era para isto, então, que Dianne utilizava o livro. Foi assim
que...
— Que Jeremy sobreviveu – Albertine antecipou-se. –Foi por um ser
invocado através deste livro que Jeremy conseguiu manter-se vivo.
Toda a história de Dianne Ridell naquela casa tomou, então, um novo
rumo. Tudo em que Rosa acreditava, tudo o que pensava sobre a mãe de
Jeremy foi levado pelo sopro inesperado da aterrorizante revelação que
repousara sobre todas as vidas dos que ocupavam aquela mansão. As
lembranças de duas décadas atrás moldaram-se em novos formatos e nuances,
e as lacunas deixadas pelos fatos inexplicáveis foram sendo preenchidas uma
a uma. Entretanto, talvez ainda mais assustadoras do que as memórias eram
as certezas segundos atrás adquiridas. Os mistérios e segredos, os momentos
mais obscuros daquelas paredes antigas, agora faziam sentido. Era uma casa
amaldiçoada, assim como seu único dono e herdeiro, por um espírito maligno
– um demônio.
— E este ferimento em sua cabeça, assim como os outros, assim como
suas dores. Tudo isto quer mesmo dizer o que estou me esforçando e
desejando em não acreditar? – disse Rosa virando-se e encarando a pálida
jovem deitada à cama.
Albertine engoliu a seco antes de pensar em qualquer palavra a dizer,
mas só havia uma óbvia resposta à questão disparada por Rosa.
— Tudo isto está sendo transferido a mim, a pessoa mais próxima a
Jeremy. O Agathodaemon suga de mim toda a saúde e vitalidade, entregando-
a a seu mestre.
— Obviamente, eu já havia notado as coincidências entre alguns
acontecimentos, mas agora percebo de uma vez por todas que tudo está
acontecendo novamente. Dianne ofereceu sua vida ao filho. Toda sua
vitalidade, suas energias; só assim ele conseguiu escapar do destino que lhe
teria levado embora em não mais que uma semana.
— E agora, como pagamento ao contrato assinado, a alma de Dianne
perambula pela mansão, atormentando os vivos – explicou Albertine,
gesticulando de maneira discreta. –Mas o que a prende a mim, Rosa? Quais
motivos Dianne teria para tentar me matar, como já fez várias vezes, mas
também para me guiar até locais importantes a fim de me revelar coisas que
jamais descobriria sozinha?
— Como eu já disse, Dianne sempre foi uma mulher muito misteriosa, e
parece ter mantido esta parte de sua personalidade mesmo após sua morte.
Albertine tornou a embalar os livros, e tão logo finalizou este processo,
largou o pacote ao lado da cama e, decidida, disse:
— Temos de ir até a cidade.
— Já esperava ouvir isso a qualquer momento, mas Albertine, não está
em condições de sair desta cama, muito menos de ir até a cidade.
— Preciso ver o Padre Jullian. Somente ele poderá me ajudar agora.
— Mesmo que não estivesse ferida, sabe que Jeremy não permitiria que
falasse com Jullian, não é?
— Sou muito mais esperta que ele – disse Albertine com ar divertido. –
Poderia distraí-lo facilmente.
— Jamais duvide da inteligência e astúcia de Jeremy. Ele pode
surpreendê-la.
— Sei que sim. Ele sempre o faz.
Após o consentimento silencioso de Albertine, Rosa apanhou o
embrulho largado sobre os lençóis amarrotados e procurou com disparos de
olhar por algum local seguro para escondê-lo.
— Vou levar estes livros e guardá-los onde somente eu os encontre.
Não precisamos de mais problemas. Você, Albertine, seja uma boa moça e
não tente se levantar desta cama. Está muito fraca. Eu falarei com Jullian, o
mais rápido possível.
— Vou escrever-lhe uma carta, mas precisa se certificar que Jeremy
não saiba disto.
— Tenho tanta vontade de acabar com isto quanto você. Se Jullian é
capaz de nos ajudar, então que assim seja. Jeremy não saberá de nada.
— Realmente espero que não.
Calaram por alguns instantes, ainda afetadas pelo breve texto que
Albertine lera em voz alta instantes atrás. Embora conseguissem enganar uma
à outra, demonstrando falsas esperanças de que aquele capítulo em suas vidas
pudesse ter um fim, jamais poderiam enganar a si mesmas. Rosa já conhecia
o desfecho de uma história que sucedera-se nas exatas circunstâncias, e tinha
plena certeza de qual era o lado mais fraco, o que sucumbiria em um tempo
que não tardaria a chegar. Albertine, por sua vez, caminhava às pontas dos
pés sob um piso de vidro, prestes a estilhaçar. Nunca fora o tipo de mulher
frágil, não costumava entregar-se aos medos, mas nem mesmo toda sua
coragem, naquele momento, era o suficiente para retirar de sua mente a
horrenda sensação que a envolvia. Estava à mercê de um demônio, um
demônio que sugava-lhe a vida, e já sabia que a partir daquele dia, jamais
conseguiria fechar os olhos e dormir em paz.
— Mas o que Martha está fazendo lá embaixo? Está levando tempo
demais. Precisamos substituir suas ataduras – Rosa resmungou, andando
decididamente até a porta do quarto. –Não saia daí, entendeu?
Carregando o pacote onde se escondia o Necronomicon, Rosa girou a
maçaneta; puxou a porta num só movimento, e levou um susto que a fez
largar o pacote ao chão. Jeremy estava do outro lado, com uma das mãos
repousada sobre a maçaneta.
— J-Jeremy! Me assustou! – exclamou, procurando não parecer
surpresa ao invés de assustada.
— Acho que colocamos as mãos ao mesmo tempo na maçaneta, mas
você teve mais destreza em abri-la – ele respondeu com um ar misterioso,
porém divertido. –Deixe-me ajudá-la com este pacote.
— Não, não se preocupe, são só livros velhos, vou levá-los de volta à
biblioteca. Faça companhia a sua esposa enquanto vou buscar novas ataduras.
O jovem disparou um olhar inexpressivo à governanta, e por um
instante ela imaginou se ele percebera sua má atuação. Rosa e Albertine,
como num pensamento transmitido, lançaram-se a questionar se ele havia
ouvido, por trás da porta, cada palavra da comprometedora conversa.
Sem mais delongas, Jeremy desviou sua atenção de Rosa, entrou em seu
quarto e dirigiu-se até onde Albertine descansava. A porta foi fechada no
exato momento em que Jeremy sentou-se à ponta da poltrona, ao lado da
cama. Albertine não lançou-lhe nem mesmo um rápido olhar, ainda não
sentia-se pronta a esquecer tudo que ocorrera na noite passada. O silêncio
entre eles permaneceu intacto por vários minutos, minutos estes que
Albertine percebera estarem sendo prolongados pela astúcia de Rosa,
indiretamente levando-os a terem uma conversa, mesmo que muito breve.
— E então, como se sente? – ele perguntou em tom agradável, talvez
arrependido.
—Tenho uma fenda em minha cabeça, e ela dói incessantemente.
Poderia estar melhor.
— Desde quando passou a ser tão...
— Rude? – Albertine o interrompeu.
— Impaciente...
— Jeremy, se veio aqui para isso, peço que me deixe sozinha.
— Vim porque precisava conversar, e para ver se você estava bem.
— Não precisa se preocupar, logo tudo estará em perfeita ordem. Rosa
e Martha estão cuidando de mim.
Albertine respondia-lhe sentindo o desgosto pesar sobre cada uma de
suas palavras. Estava ferida em corpo e alma, e mesmo assim não conseguia
ser verdadeiramente fria com o homem que tanto amava sem ser atingida por
sua própria consciência. Embora completamente preenchida pelo desejo de
tê-lo deitado ao seu lado, acariciar-lhe a nuca e entrelaçar seus finos dedos
aos dele, seu orgulho de mulher, de humana e de esposa fincaram-se entre
estes sentimentos como uma espessa parede de vidro – podiam ver-se entre
ela, mas jamais conseguiriam se tocar.
— Espero que se recupere logo. Já que não precisa de mim aqui, vou
procurar algo que me ocupe – disse o jovem em rendição, já levantando-se
decidido.
Albertine permanecera tão calada e quieta quanto estava, mas seus
olhos acompanharam o movimento do esposo, hipnotizados pela beleza e
virilidade que ele exibia. Parecia mais saudável do que nunca, e isto
transparecia em exatamente cada detalhe observado por Albertine, desde a
pele corada até um considerável ganho de massa corporal que preenchia as
elegantes camisas que Jeremy vestia. Foi assim que por um ligeiro momento
os olhares se cruzaram, indecisos em fixar-se um ao outro em meio a toda
aquela vida turbulenta que se desenvolvia na mansão. Por segundos que
pareceram mais curtos do que realmente foram, o jovem casal de amantes
permaneceu ali, confusos e perdidos, indagando-se o que havia dado errado
entre eles.
Tais questões ficariam sem respostas, pelo menos naquele momento. A
porta abriu-se rapidamente, e em meio tempo Rosa já ocupava o quarto,
acompanhada da criada, trazendo água quente e várias faixas de tecido
branco. Após uma inexpressiva troca de olhares com sua governanta, Jeremy
deixou o quarto sem despedir-se de nenhuma das três mulheres.
— Problemas? – perguntou de forma direta a Albertine.
— Nada que seja diferente do comum – a moça rapidamente respondeu,
já inclinando-se para que Martha retirasse o curativo suavemente embebido
em líquido vermelho de sua nuca.
— Tudo estará bem. Você verá.
Deram-se as mãos, e Albertine sentiu-se repentinamente segura. O calor
de alguém que só queria seu bem guiou seus pensamentos e fez com que
sentisse aquela brilhante vontade de viver, de curar-se, de ver todo aquele mal
esvair-se com o vento fresco que soprava acima das árvores do jardim. Era
algo que, com tristeza ela percebeu, Jeremy já não era capaz de fazê-la sentir.
Em poucos minutos as faixas já haviam sido trocadas, o ferimento
cuidadosamente limpo e um novo curativo aplicado ao local. Albertine fora
deixada para descansar sem que ninguém a incomodasse; estava sonolenta e
notavelmente fraca, embora mascarasse estes sintomas para não preocupar os
outros, especialmente Rosa, sua tão dedicada amiga.
A governanta então descera para retomar suas atividades diárias
comuns, mesmo sem conseguir focalizar-se realmente em algo que não fosse
à preocupação com Albertine. Enquanto seguia em mente distraída pela sala
de jantar, simultaneamente procurava um motivo convincente que a
permitisse ir até a cidade o quanto antes, sem levantar suspeitas. Os armários
transbordavam em fartura, as estivas não seriam consumidas em menos de
um mês, e mesmo as rações dos cavalos estavam estocadas em abundância,
tornando inviável a ida visando adquirir suprimentos. Teria de planejar algo o
quanto antes – cada minuto era crucial para manter a vida de Albertine
fluindo em suas veias, e só Jullian poderia fazer acender-se um facho de luz
no negro caminho que percorriam.

— Jeremy! – exclamou a senhora ao encontrar o esposo de Albertine


sentado à pequena mesa da cozinha.
— O que há de errado, Rosa? Anda assustando-se demais com minha
presença.
— Posso considerar esta como uma retórica, não posso? – ela
respondeu com sarcasmo.
— Faça como quiser.
O tom seco em sua voz denunciou que estava profundamente irritado, e
isto Rosa conseguia perceber de forma tão clara quanto um céu de diamantes.
As mãos, apoiadas sobre o tampo de madeira, pareciam inquietas; os olhos
negros estavam fixos nelas. Rosa fitou-o sem que percebesse, e algo de muito
negro e pesado a envolveu. As palavras de Albertine ecoaram nos ouvidos de
quase meio século: as palavras escritas no livro dos demônios. Rosa sentiu
medo, mas também culpa e pena. Aquele homem à sua frente, aquele ainda
menino que estivera tantas vezes em seu colo, em suas histórias, em suas
canções de ninar, estava agora perdendo sua humanidade, entregando
inconscientemente tudo que um dia lhe fora importante a um espírito
maligno, a um demônio que o acompanhava desde que era um bebê. Era
surreal demais, como um pesadelo em que nada poderia ser realmente
verdadeiro.
— Como ela está? – Jeremy perguntou, quebrando de súbito o silêncio,
separando Rosa de seus ligeiros pensamentos.
— O ferimento está aberto, os pontos que Martha deu servem apenas
como auxílio. Temos que levá-la a um médico, Jeremy.
Jeremy levou alguns segundos até dar sua resposta, mantendo o olhar
exatamente onde estava. As mãos magras agora encontravam a mesa em
leves e rítmicas batidas, fazendo tremular a água que ocupava metade de um
copo de vidro no centro do móvel.
— Não. Ela não vai.
— Jeremy...
— Albertine não deixará está casa, Rosa. Traga o médico até aqui, se
preciso, mas ela não irá até a cidade em qualquer que seja a circunstância.
— Jeremy, você tem noção de que ela pode ficar ainda mais fraca? Não
consegue imaginar que ela pode vir a morrer em nossos braços?
— Apenas faça o que digo, Rosa. Eu sou o patrão, eu dou as ordens.
— Que assim seja, então – ela respondeu ligeiramente engasgada, por
um segundo se questionando se aquele novo Jeremy era realmente fruto do
contrato assinado por sua mãe, ou se era um mero reflexo de seu falecido pai,
de quem Rosa já recebera aquele tipo de tratamento incontáveis vezes. –E
você? Como está sua cabeça?
— Não há ferimento algum em minha cabeça. Tem certeza que você e
Martha viram direito?
— É provável que sim – disse ela sem encaixar corretamente as
palavras com as ideias. Tinha plena confiança e certeza de que seus olhos
enxergaram um profundo e arrepiante corte atravessando metade da nuca de
Jeremy, alguns pares de horas atrás.
— Bem, voltarei ao quarto para tentar descansar mais um pouco. Me
sinto um pouco tonto e enjoado.
— O que uma dúzia de canecas de cerveja não faz, não é mesmo?
Jeremy apenas lançou-lhe um sorriso pelo canto dos lábios, seguindo
seu caminho até a porta da cozinha. O brilho suave e amarelado dos fachos de
luz que penetravam pela janela tornou a aparência de Jeremy quase angelical,
porém ainda assim tomada por uma aura de maldade contida e subliminar. A
dor de Albertine parecia causar-lhe insano prazer, e isto estava implícito nos
olhos negros como o véu da morte que pouco a pouco cobria aquela casa.
Capítulo XXI

CARTAS

“Caro Jullian,

Mais uma vez procuro sua ajuda, porém desta vez de forma mais
intensa e urgente. O volume traduzido que me permitiu trazer de sua coleção
pessoal foi de todo útil, e só através dele foi possível encontrar o retalho que
ainda faltava. Não posso prolongar-me nesta carta, já foi deveras difícil
escrevê-la sem ser descoberta, mas Rosa irá contar-lhe tudo nos detalhes
necessários. Peço que a receba e a escute, e é exatamente por isso, por
conhecer sua discrição para com estranhos, que pedi que esta breve carta –
embora ache que não passe de mero bilhete – lhe fosse entregue para
comprovar minha ligação com Rosa, além da necessidade irremediável de
receber qualquer palavra sua sobre o que ela irá contar. Sinto como se
puxada, arrastada por uma força que não consigo combater, e ninguém além
de você, grande amigo Jullian, será capaz de entender o que estou a
presenciar dia após dia nesta casa. Sei que posso contar com sua grande
sabedoria.

Albertine”

A carta escrita em papel amarelado foi cuidadosamente dobrada,


tornando-se três vezes menor que seu tamanho original. Um breve momento
de distração de Jeremy – que nos últimos dias parecia vigiar cada passo das
mulheres - foi suficiente para que Rosa providenciasse papel e caneta, assim
como um livro para ocultar o bilhete assim que finalizado, eliminando a
possibilidade de terem seus planos descobertos. Era uma tarde congelante e
triste, adornada por uma nevasca que tingia ainda mais de branco tudo que a
vista podia alcançar.
— Então temos tudo resolvido. Eu e Robert sairemos amanhã antes do
amanhecer, e como Jeremy costuma dormir até muito tarde durante o
inverno, é provável que já estejamos de volta antes mesmo que se levante –
disse Rosa apoderando-se do livro que protegia o tão valioso bilhete.
— Tente fazê-lo beber um chá de ervas calmantes, isso prolongará seu
sono e lhe dará mais tempo. Estaremos perdidas caso ele descubra que foi até
a cidade sem que saiba.
— Vai dar tudo certo. Estaremos de volta antes mesmo que você
perceba – disse Rosa confortavelmente, procurando tranquilizar a tão
preocupada Albertine.
O resto do dia seguiu lento e monótono, entre livros e chás, emendando-
se à noite quase infinita, repleta de anseios e medos. Albertine não conseguira
fechar os olhos nem mesmo a um minuto de sono; de repente sua vida havia
se tornado tão confusa como nunca fora, e tudo parecia decididamente fora de
ordem: sua saúde, seus hábitos e, por fim, algo que ela jamais imaginara –
seu amor por Jeremy. Sabia que estava inimaginavelmente longe de deixar de
amá-lo, porém, naquele momento, não sabia exatamente o que sentia pelo
homem que desde sempre fora dono de seu coração.

O grande relógio da sala bateu as cinco badaladas da manhã, fazendo


vibrar as paredes como sempre fazia a cada hora percorrida. O sol ainda não
havia nem mesmo manchado o céu escuro com seus primeiros raios
avermelhados, e Albertine ainda não havia conseguido manter a mente
tranquila ou ao menos relaxada. Chegara a hora marcada da partida de Rosa,
e após alguns minutos de espera, durante os quais a euforia da jovem pareceu
prestes a enlouquecê-la, os passos suaves e inconfundíveis da governanta
percorreram o corredor. Ao lado esquerdo da cama Jeremy mantinha seu
sono intocado desde a hora em que largara-se ao macio colchão, visivelmente
afetado pelo chá que Rosa com maestria o fizera beber, o mesmo chá que
tantas vezes o prendeu ao leito por horas a fio.
Tudo estava perfeitamente em ordem, e assim deveria ficar até que a
carruagem retornasse da cidade trazendo notícias – se boas ou más era ainda
impossível dizer. Albertine acompanhava cada um dos movimentos do lado
de fora, e rezava para que Jeremy também não os ouvisse. A porta da frente
foi aberta e novamente fechada em uma fração de minuto; a neve denunciava
o movimento no jardim da mansão ao ser pisada pelas botinas de couro de
Robert. As correntes rolaram, os portões rangeram como nunca antes, e a
carruagem atravessou vagarosamente por eles. E para o sossego de Albertine,
seu esposo permanecera tão quieto como um bebê possuído pelo sono após a
mamadeira quente.
— Por favor, Rosa, não demore... – Albertine sussurrou por entre os
dentes para si mesma, respirando fundo e finalmente disposta a um breve
descanso antes que sua amiga mais uma vez atravessasse os portões.

Durante a viagem, Robert e Rosa falaram pouco, mesmo que ele


precisasse, assim como os outros empregados, saber de todo o motivo
daquela repentina e secreta ida à cidade. Àquela hora da manhã a neblina
noturna ainda não havia dissipado-se por completo, fazendo por muitas vezes
a carruagem desaparecer por entre camadas brancas, quase palpáveis. Como
dificuldade adicional, a neve que cobria a estrada tornara-se um grande
empecilho durante todo o percurso – os cavalos por inúmeras vezes
atrapalhavam-se ao terem seus cascos engolidos pelos infinitos e minúsculos
cristais de gelo. No interior do veículo, Rosa segurava entre as mãos aquilo
que fora incumbida a entregar; sentia o coração acelerar a cada minuto,
buscando qualquer simples ideia sobre o que traria de volta a Albertine – se a
solução para salvar sua vida, ou a notícia de que nada mais era possível fazer.
No tempo previsto a carruagem já atravessava os limites que davam
entrada à cidade; a tranquilidade, o silêncio e as ruas vazias denunciaram que
o dia ainda não havia realmente começado por lá, exceto para alguns
senhores idosos que já tão cedo punham suas conversas em dia, acariciando
suas longas barbas, gesticulando no vigor de suas avançadas idades. A
mudança de solo, que passou de terra e neve para pedra e poças d’água,
produziu um som que despertou Rosa de um breve e revigorante cochilo.
Após esfregar os olhos cansados, ela espiou pela janela, recebendo uma
desagradável rajada de frio, e avistou a torre da igreja, destacando-se em sua
magnitude no céu rajado de nuvens acinzentadas. Robert então ordenou a
parada dos cavalos, e tão logo o veículo tornou-se imóvel, Rosa saltou pela
porta sem esperar pela ajuda do cocheiro.
— Fique aqui mesmo, Robert, não levarei mais que dez minutos.
O homem de bigode, capa e chapéu assentiu com a cabeça. A senhora
então girou sobre o próprio eixo, encarou a porta da gigantesca igreja, e
iniciou sua subida pelos degraus de pedra escorregadia. Sua respiração
ofegava, suas mãos tremiam, e a sensação congelante no estômago quase a
paralisava. As esculturas de imagens santas que Rosa não sabia realmente
reconhecer, por um breve momento, sanaram todas aquelas preocupações;
aproveitando-se do momento de força e fé, ela levou uma das mãos à porta do
templo, que moveu-se para dentro em resposta ao estímulo. Rosa entrou pelo
espaço que se abriu, sem olhar para trás, e seguiu em largos passos até o local
onde Albertine, tomada de convicção, afirmara que Jullian seria encontrado.

Albertine despertou, com um leve susto, ao som da décima primeira


badalada daquela manhã. A cabeça latejava de maneira irritante, e o corpo
parecia ainda adormecido e indisposto a obedecer a comandos bruscos. O eco
das estrondosas batidas do relógio dissiparam-se pelo ar, e o quarto tornou-se
estranhamente silencioso aos ouvidos de Albertine; não sabia por quanto
tempo dormira, e precisou de alguns segundos até que toda a consciência
retomasse devidas formas após o despertar repentino.
Antes de pensar em qualquer outra coisa, viu-se tomada pela
preocupação em descobrir se Rosa já havia retornado. Com exagerada
suavidade procurando não produzir ruídos ou oscilações à cama, ela virou-se,
sentindo o corpo mais pesado do que normalmente sentia, e olhou ao outro
lado da cama. Com espanto, atingida por um choque de medo que percorreu
cada centímetro de sua pele, notou que Jeremy não estava mais ao seu lado.
Sentiu-se perdida, instantaneamente já convencida de que nada mais daria
certo a partir de agora. Jeremy de certo já notara a ausência de Rosa, e
desconfiado como sempre fora, passaria os próximos dias fazendo perguntas
e questionando cada movimento dela. Nada havia de explícito o suficiente
para denunciar o contato secreto com Jullian, mas Albertine sentia que no
fundo Jeremy não era tão inocente quanto demonstrava ser, e nada a
convenceria do contrário.
Ainda mantendo a mesma posição em que estivera a noite inteira,
pensava no que fazer agora que seu plano havia sido posto à prova. Sentia-se
fraca, tonta, nauseada, mas não poderia apenas ficar esperando que tudo se
resolvesse ou que de uma vez acabasse da pior maneira; não poderia permitir
que Rosa fosse culpada por tentar ajudá-la. Estava decidida a não deixar mais
ninguém ser humilhado por Jeremy. As têmporas latejavam em dores e as
pernas imploravam a continuar inertes na cama, e mesmo assim Albertine
ergueu-se, pondo-se de pé. Nem mesmo lembrou de calçar-se; vestiu seu
roupão de seda, deixando assim o quarto entre tonturas e passos
desorientados. O corredor surgiu diante de seus olhos imensamente mais
longo do que sempre fora, e ao fim dele, os degraus forrados pelo carpete
tornaram-se uma ligeira ameaça ao corpo frágil e debilitado que passaria por
eles naquele instante. Cada degrau foi percorrido com um par de passos,
pares estes separados por ligeiras pausas necessárias para a recuperação do
fôlego escasso.
Ao pé da escada Albertine encontrou Ringo em seu lugar de descanso; o
animal lançou-lhe um olhar carinhoso, mas logo em seguida tornou a
recostar-se em suas macias almofadas, como sempre fazia em movimentos
quase mecânicos. Agora na sala principal, ela procurou por Jeremy com leves
movimentos giratórios, mirando cada canto alcançado pela visão desprovida
de foco preciso, porém não o encontrou em lugar algum. Passou pela sala de
música, pela sala de festas, e ambas jaziam vazias e silenciosas. O clima
gélido já dificultava os movimentos do corpo coberto apenas por uma leve
roupa de cama, e enquanto caminhava pela comprida sala de jantar, rumo à
cozinha, Albertine se sentiu tão fraca quanto um bebê em seus primeiros
momentos de vida. Parecia prestes a cair, nem mesmo sabia como suas
pernas ainda permaneciam eretas. Alguns metros restavam até a cozinha, e
até mesmo um tilintar delicado já podia ser ouvido, trazido pela conhecida
corrente de ar que entrava pela porta dos fundos. Prestes a adentrar ao
cômodo a que se direcionava, e antes que atravessasse o portal retangular, a
voz de Jeremy provocou-lhe mais uma vez o medo que sentira por
incontáveis vezes – medo este que já se tornara parte do convívio do casal.
Ele conversava em tom discreto com alguém na cozinha, talvez Judith ou
Martha, o que seria imensamente anormal.
— Albertine! – soou uma voz conhecida.
E assim Albertine sentiu retornarem suas esperanças. Era Rosa que ali
estava, e mesmo sem ainda saber se tudo havia corrido como planejado, ver a
senhora de volta à mansão foi como sentar-se ao lado da lareira em uma noite
congelante.
— O que está fazendo aqui? – Rosa continuou. –Não pode sair da cama,
mal consegue andar!
— Poderia ter chamado caso precisasse de algo – disse Jeremy um
segundo após Rosa parar o que fazia para ir até onde estava sua esposa.
Não houve resposta alguma a esta já esperada e indelicada declaração.
A governanta, preocupada, descansou as mãos sobre os braços de Albertine, e
com espanto notou quão gelados estavam. Frios como um animal sem vida.
— Minha nossa. Precisa se aquecer, ou vai acabar pegando uma
pneumonia! Venha comigo, vamos voltar ao quarto.
Albertine nada disse, apenas deixou-se guiar pelas mãos amigas e
fraternas. Antes de deixar a cozinha, porém, encarou Jeremy tão intensamente
quanto nunca antes o fizera. A distância entre os olhares, mesmo que de
apenas alguns passos, pareceu longa e intransponível.
— O que deu em você para sair da cama na situação em que se
encontra? – Rosa perguntou com autoridade de mãe a Albertine, enquanto a
sustentava durante a subida de volta ao primeiro andar.
Fechando a porta após certificar-se de que Jeremy, acompanhado de seu
humor cortante, havia ficado na cozinha, Rosa levou Albertine com zelo até o
leito, certificando-se de deixá-la confortável e aquecida. Calçou-lhe meias,
vestiu-lhe um casaco fino e quase envolveu o pescoço frio com um xale, mas
este último foi recusado pela jovem enferma.
— E então, Rosa? – perguntou Albertine. –Tudo correu como o
planejado? Conseguiu encontrar-se com Jullian?
— Acalme-se, querida – disse Rosa, atordoada por tantas perguntas. –
Tudo correu perfeitamente bem. Saímos daqui bem cedo, e mesmo com a
neve, chegamos à cidade antes do tempo previsto. Entrei na igreja e procurei
pelo padre, e realmente só o encontrei na sala por trás do altar.
— Ele não pareceu assustado com a visita surpresa?
— Pelo que pude perceber, Jullian não se mostrou um homem que se
assusta com facilidade. Fui muito bem recebida, até mesmo experimentei de
seu café.
— Então a carta foi entregue...
— Não só entregue – Rosa explicou com entusiasmo – como também
respondida.
Do bolso esquerdo do vestido, a senhora retirou um pedaço de papel
dobrado, e sem hesitar entregou-o a quem ele fora destinado. Os olhos de
Albertine reluziram um sentimento inexplicável assim que seus dedos
tocaram a carta que trazia, em cada uma de suas palavras, a esperança de
poder reverter, de qualquer forma, todo o caos instaurado nas vidas do jovem
casal. Ao desdobrá-la, a caligrafia fina, masculina mas muito bem delineada,
surgiu em uma mensagem que ocupava quase por completo a lauda branca e
levemente amassada.
— Voltarei à cozinha, preciso manter Jeremy por lá para que você
possa ler e pensar sobre o que Jullian escreveu.
Albertine sentiu uma pontada de curiosidade sobre o tom misterioso
usado por Rosa durante esta última frase. Seria preciso, então, pensar sobre o
conteúdo da carta?
— Voltarei em algum tempo com café e alguns biscoitos para que não
fique sem se alimentar.
— Não demore. Não quero ficar muito tempo sozinha.
Rosa sentiu a clareza daquele pedido, e quase pôde sentir o mesmo
medo que Albertine sentia. Levantou-se, e incapaz de responder, deixou o
quarto. Segurando a carta entre as mãos, antes de lê-la, Albertine observou
cada canto de seu quarto, procurando por algo que nem mesmo saberia
definir. Talvez estivesse apenas preparando seu consciente para o que leria
naquelas linhas – esperava, no mínimo, surpreender-se tanto quanto da última
vez em que encontrara o remetente daquele tão esperado bilhete. Levou então
os olhos até o conteúdo escrito, por um segundo estranhando-se ao perceber
que já não enxergava tão bem quanto a alguns dias atrás. Até mesmo a
miopia de Jeremy parecia disposta a transferir-se para ela.

“Cara Albertine

Acabo de receber seu bilhete, assim como o resumo de tudo o que pediu
que sua senhora governanta (poderia ter a audácia de chamá-la por Rosa?)
me relatasse. Confesso um certo nível de surpresa por tão repentinas
notícias, porém confesso também que, já desde a última vez que esteve aqui,
pude perceber que algo de muito negro ofuscava sua aura, e isto ficou ainda
mais claro após você entregar um exemplar do tão terrível Necronomicon em
minhas mãos. Nada de bom pode sair daquele livro. Rosa contou-me o que
descobriu sobre o espírito que a perturba, e mesmo não sendo experiente
nesta área, como já lhe disse antes, procurei um velho amigo e tomei alguns
livros emprestados, e eles me ajudaram a compreender um pouco sobre
fantasmas e todo este cunho sobrenatural. Não foi difícil deduzir alguns
fatos, baseando-me no que Rosa fielmente reproduziu em palavras,
especialmente sobre a identidade do espírito e os motivos que a estão
levando a perturbá-la e, muitas vezes, parecer disposta a tirar sua vida.
Focado na minha especialidade, os demônios, posso afirmar-lhe com plena
certeza que Dianne, a grande responsável pelo início de todo este agouro,
não se sente orgulhosa pelo que fez. Incomparável arrependimento é o
sentimento mais próximo que posso pensar no momento, e mesmo depois da
morte isto parece não ter mudado. É isto que o Necronomicon causa,
Albertine. Ilude e engana quem o lê, convencendo de que aquelas criaturas
podem oferecer algo que o beneficie. Então assim ele se apodera da alma,
sugando a sanidade daquele que assinou seu nome em suas páginas, e não
poderia ser diferente com a mãe de Jeremy. A consciência de Dianne foi
completamente ofuscada pelo instinto animal, o desespero materno em
manter seu maior amor em vida, mesmo que isto significasse abrir mão da
própria. Ela sacrificou-se pelo filho, deu a ele um demônio que suga a vida
daqueles que estão dispostos a oferecê-la e transferi-la a seu mestre. Neste
trecho tenho que lembrar-lhe que nada, nem mesmo o mais simples dos
contratos, é dado pelo Necronomicon sem que ele peça algo em troca. E o
pagamento pelo serviço contratado pela mãe em desespero foi sua alma –
condenada a penar, vagar eternamente em um mundo que não lhe pertence.
Dianne atravessou duas décadas percorrendo os corredores da mansão onde
vivem, atormentada, perdida e sozinha. Estudando a relação entre os
incidentes provocados por ela e tudo o que descobriu, posso supor que o que
Dianne tenta fazer, de fato, é expulsá-los deste lugar. E dado a este fato
posso também dizer que o Agathodaemon não foi o primeiro demônio na vida
da mãe de Jeremy. Isto posso afirmar pelo fato dela querer que saiam da
casa, o que demonstra que ela entendia algumas das regras mais básicas do
Necronomicon, especificamente do demônio em questão. O Agathodaemon é
um demônio que, se invocado entre as paredes de uma casa, templo ou
qualquer tipo de construção, jamais poderá deixá-la. Imagino que esta seja
uma notícia de salvação, mas não é tão fácil livrar-se de um Agathodaemon
depois que ele escolhe um fornecedor – você, em nosso caso. Afastar-se dele
vai enfraquecer os efeitos, não eliminá-los. Jeremy continuará sendo
presenteado com sua vitalidade, porém, em uma frequência imensamente
mais sutil. Não quero incentivá-la a tomar qualquer tipo de atitude, mas
deixo bem claro que, caso queira sobreviver, ao menos por mais tempo, você
deve deixar a mansão. Estarei disposto a ajudá-la da forma que a mim for
possível, por isso deixarei os detalhes de meu plano apenas por palavras
faladas a Rosa, escrevê-las nesta carta seria perigoso e imprudente. Como
último aviso, peço que não subestime o Agathodaemon; apesar deles
raramente possuírem o corpo de seus mestres, os mesmos tem todo o poder
para fazer isto quando seus mestres são ameaçados. Não tentem machucar
Jeremy, por motivos óbvios. Lembre-se, Albertine, sua fé pode protegê-la e
mantê-la firme e segura dentro de si mesma. Estarei aguardando sua
decisão.

De seu sempre amigo,


Jullian”

Os dedos magros de Albertine fecharam-se ao redor da folha de papel,


tornando-a imperceptível por trás deles. Sentiu-se tonta, sufocada. Ainda não
conseguia interpretar ou compreender as palavras de Jullian – ao menos
enganava-se a não querer entendê-las. De todas as formas que pareciam-lhe
certas para livrar-se de todo mal, até mesmo aquelas que considerava
absurdamente ousadas, nenhuma delas se igualava àquela única alternativa
apontada pelo velho Padre. Deixar a mansão, abandonar seu lar, largar para
sempre tudo o que sempre sonhara em construir pareceu, naquele instante,
algo impossível e inimaginável para ela. Fechou os olhos e na escuridão viu o
rosto de Jeremy – vívido e claro nos primeiros segundos, mas indefinido e
borrado alguns instantes depois. Seria este, por fim, o fechamento da história
que levara tantos para ser escrita?
As indagações foram interrompidas sem resposta assim que a porta do
quarto se abriu. Uma bandeja, sustentando um bule, uma xícara, talheres e
dois pequenos pães surgiu pela abertura, e logo em seguida o corpo maciço
de Rosa também atravessou o portal retangular. Por um segundo, Albertine
achou ter visto as mãos da governanta tremerem sob a bandeja prateada.
Apoiando-se em um dos braços, Albertine levou o tronco à cabeceira da
velha cama, moldando a coluna à curva do travesseiro em que se recostava, e
Rosa levou a bandeja delicadamente até ela.
— Obrigada, Rosa – disse Albertine, procurando desesperadamente
quebrar o silêncio do ambiente.
Rosa respondeu apenas com um movimento quase imperceptível de
cabeça, já derramando o chá de aroma agradável na xícara de louça branca.
Recusando a colher de açúcar, Albertine apanhou a xícara pela fina asa,
experimentou o líquido amarelado e pôs-se a examinar o delicado artefato.
Todo o diâmetro da xícara era preenchido por ramos finos de flores silvestres,
algumas cor-de-rosa, outras em tom violeta, criando um contraste
incrivelmente harmônico com as folhas verdes que se estendiam pelos ramos.
— É uma linda louça, não acha? – Rosa perguntou em tom suave e
como sempre carinhoso.
— Sim, estava a examiná-la por este motivo. Ainda não havia visto este
conjunto. É novo?
— Este conjunto de louça – Rosa prosseguiu com uma pausa,
parecendo distraída ao olhar o pires descansado na bandeja. – Este foi meu
presente de casamento a Joseph e Dianne.
— Então, tenho em mãos uma xícara de duas décadas de idade...
— Algumas décadas a mais, eu diria. Minha mãe me deu este conjunto
pouco antes de morrer. Meu pai a presenteou com ele. Ela disse, lembro
claramente, que ficaria muito feliz, onde quer que estivesse, se eu o utilizasse
em minha casa, com meu marido e filhos. Imagino o que ela diria ao
descobrir que nunca me casei...
— Mas é sua família que o está usando, não é? Sua mãe ficaria feliz.
Somos sua família, Rosa. Todos nós.
Ela sorriu e pareceu repentinamente desligar-se daquele momento de
nostalgia. Não era a melhor hora para se deixar abater por lembranças
perdidas nos corredores de sua mente. Notou então que Albertine guardava
na palma da mão um pedaço de papel, o mesmo que recebera poucos pares de
minutos atrás.
— Creio que já tenha lido a carta de Jullian – disse com clareza,
também forçando a mulher à sua frente a retornar à consciência e abandonar
pensamentos distantes.
— De certo que sim...
— Então, algo a dizer?
— Nada realmente a dizer. Apenas tenho perguntas.
— Vá em frente.
— Já existe um plano?
— Uma ideia, eu diria. Não se pode criar um plano sem que todas as
partes envolvidas estejam cientes dele.
— E quais seriam estas ideias?
Rosa não conseguiu responder. Não imediatamente. Engoliu a seco,
apertou os punhos e umedeceu os lábios ressecados com um gole d’água que
trouxera em um copo de vidro.
— E então? – Albertine questionou notavelmente afetada pelo mistério
sobre aquela ideia desconhecida.
— Jullian sugeriu que fuja. Que abandone a mansão. Não irá acabar
com o trabalho do Agathodaemon, mas irá reduzi-lo significativamente.
— Não é muito distante do que eu já esperava, tenho que dizer. Mas
também digo que não acredito que esta seja a melhor opção.
— Albertine, esta não é sua melhor opção, mas sim a única. Se
continuar aqui, mais cedo ou mais tarde vai sofrer bem mais do que está
sofrendo agora.
— Então você também apoia essa loucura? Quer que eu simplesmente
abandone tudo, que deixe Jeremy sozinho? E o que sinto por ele? E o que
sinto por todos vocês?
— Então prefere entregar sua vida a nos abandonar? Está usando a
história de Dianne como modelo?
— Não foi isso que eu quis dizer.
— Foi o que eu entendi. E sei que você é uma mulher muito inteligente.
É difícil, é sim, somente você e Deus, e nós que não poderemos acompanhá-
la sabemos disto. Mas é sua vida, Albertine. O maior presente que já recebeu.
E além do mais, de que adianta continuar aqui e ter de nos deixar, da mesma
forma, porém aos poucos?
Pelas maçãs dos rostos das duas mulheres, de diferentes idades mas tão
semelhantes corações, escorriam as grossas lágrimas de tristeza, de dor, de
culpa por não lhes caber a decisão ou a simples opção de fazer com que tudo
aquilo acabasse.
— Não quero deixá-los. Não quero deixá-lo sozinho. Ele precisa de
mim!
— Eu cuidarei dele, cuidarei como sempre fiz!
— Oh, Rosa, me sinto tão mal! Atada a um tronco, deslizando rumo a
uma gigantesca queda d’água, sem poder gritar, sem poder sentir as mãos
livres!
— Não será fácil para nós também. Não será fácil para ele, mas teremos
que manter a cabeça erguida! Sua vida é o que mais importa agora. Não
posso deixá-la morrer por escolha própria!
-Mas também não pode me forçar a ir! – Albertine exclamou em uma
quase transe entre desespero e desgosto, forçando uma congelante pausa na
difícil conversa.
— Tem razão – disse Rosa alguns instantes depois. –Não posso forçá-la
a ir. Então tudo até agora foi em vão... as aparições de Dianne, as
descobertas, o medo, a ajuda de Jullian. Tudo vai ser deixado de lado, assim
como a vida que corre em suas veias.
Albertine apenas ouvia, encenando uma expressão esnobe que em nada
convencia Rosa ou qualquer outra pessoa que a visse. A bandeja foi
novamente rearranjada como estava anteriormente, e colocada por Rosa sob o
criado-mudo ao lado da cama. Um suspiro longo e doloroso foi ouvido por
Albertine.
— Estará aí caso ainda sinta fome. Preciso descer para ajudar as
criadas.
— Rosa... – disse Albertine antes que ela desaparecesse pela porta já
aberta.
— Sim? – respondeu a senhora, indiscretamente expondo a ânsia de
ouvir qualquer mudança na opinião da moça.
— Qual é o plano?
Rosa não respondeu imediatamente – pareceu precisar de alguns
segundos para organizar as palavras. Procurou a melhor maneira, a melhor
colocação para não causar ainda mais pânico em Albertine, embora soubesse
que nem com as mais sutis palavras seria possível fazer com que a jovem
mulher não se sentisse ainda mais confusa.
— Jullian...
— Sim?
— Jullian estará esperando por você, meio quilômetro adiante, na
estrada. Vai levá-la para a igreja, e em seguida arranjará um local mais
seguro onde Jeremy não a encontre.
— Isto é insano. Mas como você conseguirá falar com ele novamente,
vai arriscar mais uma ida à cidade?
— Não, Albertine. Esse detalhe já foi acertado. Jullian estará esperando
à meia noite, no local marcado, em exatamente três dias.
Albertine apenas enterrou o rosto entre as mãos. Nada pôde fazer além
de suspirar como nunca antes.
— Três dias... – ela balbuciou para si mesma.
— Deixarei que pense a respeito. Caso precise conversar, estarei na
cozinha.
A porta foi suavemente fechada e Albertine estava mais uma vez
sozinha e perdida em sua própria tortura. Além de todo o tormento tinha
agora somado a ele o tempo – ou a falta dele. Três dias. Era o tempo que
tinha para decidir entre deixar seu verdadeiro e único amor para trás. Setenta
e duas horas era o que lhe restava para decidir entre ficar ou não com Jeremy
– e a inevitável sentença seria decidida acima desta escolha. Em três dias
Albertine teria que decidir entre uma curta vida no lugar que lhe pertencia, ou
reescrever todo seu destino longe de tudo que já chegara a conhecer. Viver ou
morrer. Eram estas as únicas e reais opções que cabiam àquela bela mulher de
olhar profundo e perdido.
Capítulo XXII

TRÊS DIAS

Já passava das duas da tarde, uma tarde branca como todas as outras
naquela semana, quando um aroma adocicado e atraente propagou-se pelo ar,
chegando às narinas de Albertine. Estava ainda na cama, incapaz de levantar-
se – embora nem mesmo sentisse vontade de deixar o confortável leito. Pôs-
se a imaginar o que exalava aquele tão bom cheiro, algo entre calda de açúcar
e mel, e não demorou até que sentisse o estômago produzir o conhecido som
da fome. A bandeja do café trazida por Rosa encontrava-se ainda intacta,
exceto por alguns cristais de açúcar sendo carregados por uma comprida
fileira de formigas.
As pernas magras, estendidas por baixo do cobertor, pareciam ainda
adormecidas. Albertine mal conseguia mover a coluna sem receber os golpes
de dor por toda a extensão do corpo. Algo que ainda não havia assumido era
que aquilo, há muito, tornara-se decididamente insuportável.
Antes que pudesse concluir a difícil tarefa de pôr-se confortável entre
os travesseiros e tentar voltar a dormir, alguns ruídos vindos do jardim
atraíram a atenção de Albertine. Ouvindo com mais cuidado, percebeu que se
tratavam dos portões sendo abertos, logo em seguida sendo atravessados
pelas duas carruagens, e novamente fechados após alguns pares de segundos.
Achou curioso não ter ouvido os veículos saindo – provavelmente estava
penetrada em seu sono quando deixaram a mansão – e imaginou o que criara
a necessidade de duas grandes carruagens como aquelas irem juntas onde
quer que fosse. Não poderia levantar-se e ir até a janela, o vento trazendo um
sopro de baixa temperatura poderia fazê-la desmaiar em segundos; só lhe
restava esperar alguém surgir no quarto para pôr-lhe a par do que acontecia
no andar de baixo. Em certo momento Albertine sorriu por dentro,
relembrando fatos passados que antes não compreendia. Lembrou-se de
Jeremy gritando com ela após divertir-se inocentemente com uma cena para
ele humilhante, durante uma de suas crises de dores por todos os ossos. Não
só lembrou-se disto, mas também sentiu, de certa forma, que se encontrava
em posição incrivelmente similar.
Pouco mais de uma hora já havia passado desde que as carruagens
retornaram, e desde muito pouco após aquele instante, uma sequência de
outros ruídos fazia-se ouvir de forma incessante: batidas em madeira, tábuas
chocando-se ou sendo serradas – sons comuns a uma carpintaria. A
curiosidade de Albertine vagou entre um reparo no estábulo, algum novo
bloqueio para os portões, ou até mesmo uma casa de madeira para Ringo.
Foi apenas após mais uma porção de minutos que a porta do quarto
novamente se abriu, mas não foi Rosa quem surgiu desta vez. Era Martha,
trazendo mais uma bandeja.
— Rosa pediu que eu trouxesse até você. Ela preparou um ensopado
leve de carne e legumes. Disse que deve tomá-lo para recuperar um pouco de
energia. Também fez um bolo coberto com caramelo. Ah, não comeu nada da
outra bandeja?
— Não estava com fome. Vou experimentar este ensopado, o cheiro
está muito bom.
— Rosa estará aqui em alguns minutos trazendo água quente para seu
banho.
— Obrigada, Martha.
A criada recolheu a bandeja trazida mais cedo, assoprando sobre os
talheres a fim de livrá-los das formigas que ainda caminhavam alinhadas, e
antes que pudesse sair foi chamada por Albertine.
— Martha... o que está havendo lá fora?
— Não sei dizer exatamente. Jeremy saiu com Robert e Thomas, e
voltou com muitos pedaços de madeira nas carruagens, assim como muitos
pregos, martelos e serrotes. Acho que está montando algo no jardim, mas não
quis ainda falar a respeito.
— Hum, está bem. Muito obrigada.
Albertine esperou até que Martha saísse para apanhar a tigela
preenchida quase até a borda. O aroma do ensopado revigorou por alguns
instantes os sentidos da moça enferma, trazendo um apetite que ela há muito
não sentia. O som incessante do trabalho tornou-se inaudível até que a
saborosa refeição fosse concluída, apenas retomando o espaço sonoro do
quarto após a última porção do caldo amarelo ser ingerida. Desta vez, porém,
ninguém apareceu para buscar a bandeja.
Pela tarde e noite adentro o trabalhou não cessou. Por incontáveis vezes
Albertine despertou de ligeiros momentos de sono. Nenhum deles se estendia
por mais de cinco ou dez minutos. E a cada novo despertar ela sentia-se mais
exausta.
Em uma das transes entre o sono e o despertar, a voz de Rosa soou e fez
com que a moça tomasse um susto inesperado. A governanta sustentava uma
toalha branca acima do ombro esquerdo, e em uma das mãos um frasco de
vidro que continha alguma espécie de líquido esverdeado.
— Albertine! Venha, trouxe a água do seu banho. E veja, tenho um
pouco de óleo de ervas aromáticas revigorantes!
— Onde conseguiu? – perguntou Albertine, ainda recuperando a visão
desfocada pelo sono.
— Jullian me deu alguns frascos contendo algumas variedades de
poções e óleos de ervas. Ele também é um grande estudioso de botânica
medicinal, creio que já saiba. Não sentiu nenhuma melhora depois do
ensopado? Utilizei uma destas poções nele. Jullian recomendou o uso de
algumas poções para melhorar seu estado de saúde.
— Poções... tenho vagas lembranças de tê-lo visto preparando algumas
delas. Certa vez, durante uma das aulas de música, uma criança qualquer
feriu-se em um dos instrumentos... Jullian então aplicou alguma espécie de
poção vermelha, e o ferimento desapareceu em minutos.
— Espero que funcionem desta vez. Venha, deixe-me ajudá-la. A água
já está na banheira.
O banho revigorante pareceu trazer um pouco da cor perdida à pele de
Albertine. Já sentada frente à penteadeira, Rosa escovava os cabelos
dourados e pautava assuntos aleatórios. Por fim, então, Albertine decidiu
perguntar sobre todo o barulho ocorrido durante todo o dia, mas que agora
parecia resumido apenas a alguns estalos minuto após minuto.
— Não falarei sobre isso, Jeremy pediu que não falasse. Ele está
preparando algo para você. Disse que já posso levá-la para descobrir o que é.
— Mas a esta hora da noite?
— Vou lhe deixar bem agasalhada. Poderá aguentar o frio por alguns
minutos. Ele parece empolgado. Dê a ele este breve momento, creio que está
tentando se desculpar pela forma que vem agindo.
Mesmo sentindo-se um pouco irritada após aquela última declaração,
como se o peso da culpa lhe fosse entregue injustamente, Albertine não
recusou, nem ao menos mostrou-se contrária a deixar o quarto aquecido para
receber correntes de vento gelado do lado de fora. A curiosidade em
descobrir o que fora preparado para ela também teve considerável papel nesta
escolha.
— Muito bem, terminamos aqui. Está muito bem agasalhada. Não
deixarei que demore e arrisque ainda mais sua saúde, não se preocupe.
Foi só quando descia as escadas, amparada aos ombros de sua amiga,
que Albertine notou o total silêncio que percorria a mansão. Estava tudo
quieto demais. A casa pareceu, pela primeira vez, completamente sem vida
aos olhos dela.
— Jeremy? Aqui está ela.
Jeremy surgiu instantaneamente por trás de uma das poltronas da sala.
Os olhos negros, vidrados em sua bela esposa, cintilaram e refletiram a luz
avermelhada do fogo da lareira. Albertine mais uma vez percebeu quão belo
era ele.
— Albertine! Que bom que veio!
— Achou que eu não viria?
— Apenas esperei que viesse...
— Já estamos aqui, Jeremy – disse Rosa com rispidez. -Leve-a e a traga
de volta em poucos minutos.
— Tudo bem, prometo não demorar.
Como um verdadeiro cavalheiro, Jeremy estendeu um dos braços à
esposa, mas logo percebeu que ela não seria capaz de caminhar apoiada
somente em um galanteio. Entrelaçou então os braços ao redor do busto
delicado e estreito. Foi o mais próximo que chegara de Albertine em algum
tempo. Os passos do casal seguiram perfeitamente alinhados até a porta, que
quando aberta permitiu que a tão temida corrente penetrasse o ambiente e o
tomasse por completo em poucos segundos.
Deixaram a sala iluminada e agora caminhavam sobre a neve macia que
mais uma vez cobria toda a extensão do terreno, mesmo que não estivesse
nevando já por várias horas. Jeremy havia anteriormente deixado quatro
lamparinas acesas e enfileiradas alguns metros distantes umas das outras,
tornando o exterior da mansão estranhamente aconchegante. Nem ao menos
remetia ao negro pedaço de terra que se avistava pelas janelas após o
escurecer.
— Estamos chegando – ele disse em um sussurro.
Seguiram até o limite da mansão, e um pouco mais à frente, junto a uma
grande árvore, lá estava o tão misterioso presente.
Era um coreto, perfeitamente montado em madeira de cor viva. Estava
posicionado exatamente abaixo da árvore desfolhada pelo inverno, exibindo
quatro pequenos degraus que levavam a um banco visivelmente construído
para duas pessoas.
— Aí está. Espero que goste.
— Jeremy! Você construiu tudo isto sozinho?
— Robert e Thomas merecem boa parte dos créditos também...
— É maravilhoso!
Mesmo aparentemente não finalizado, o coreto exibia-se como uma
bela peça de carpintaria decorativa. Não havia ainda sido pintado – exibia a
madeira crua e de pouca idade – mas seus detalhes eram tão bem trabalhados
que a pintura não parecia realmente necessária. O teto era um grande cone
composto de seis partes idênticas, e acima dele um galo-bússola estava
posicionado, embora que na posição incorreta. Ao redor dele, misturado à
neve, o pó da serragem aparecia em pequenos montes. Os instrumentos
utilizados também ainda não haviam sido guardados.
— Venha, vamos inaugurá-lo! – disse Jeremy com animação, já
guiando Albertine até os degraus do coreto. –Vamos, sente-se.
Com todo cuidado que se aplica a um frágil recém-nascido, Jeremy
levou sua esposa ao banco no centro do coreto, e ajudou para que ela se
posicionasse da forma mais confortável. Albertine pareceu, por um momento,
feliz e satisfeita.
— E então? – ele questionou exalando ansiedade.
— Não poderia estar mais perfeito.
— Ah, veja, ao redor dele poderemos plantar flores.
— Isto seria realmente incrível.
E por alguns minutos Jeremy caminhou ao redor do coreto,
gesticulando, explicando tudo que planejava construir no terreno da mansão.
Até mesmo uma piscina passou por seus planos. Albertine ouvia atenta,
imaginando em detalhes cada uma das magníficas, porém exageradas ideias.
— Venha, sente-se aqui comigo.
Jeremy pareceu surpreso, mas atendeu ao pedido de Albertine sem
hesitar. Sentou-se ao lado dela, corpo a corpo. Seus dedos entrelaçaram-se de
maneira quase involuntária, e por um minuto pareceram o mesmo casal
completamente feliz que pouco a pouco deixava de existir.
— Albertine... você me perdoa?
— Do que está falando?
— De tudo que tem acontecido... de como tenho agido com você.
Tenho que lhe dizer que muitas vezes não sei o que acontece comigo.
Simplesmente perco o controle, como se... algo...
— Sim?
— Você me perdoa?
Guiando a mão de Jeremy até seus lábios, sentindo a pele ligeiramente
resfriada pelo vento que circulava entre eles, beijou-a por cima dos nós dos
dedos magros. O pedido de Jeremy soou tão sincero quanto poderia ser, e
Albertine sentiu o terrível peso de sua escolha mais uma vez esmagar seus
pensamentos. Jeremy pedia perdão por algo que nem mesmo conseguia
entender. Albertine então sentiu-se cruel e injusta, e sua escolha, afinal,
estava novamente à prova.
— Não há nada para perdoar – ela então respondeu decidida.
Não foi possível contar-se o tempo – talvez segundos ou bem menos do
que isso – até que uma nova corrente fria trespassasse o espaço entre os dois
corpos. Desta vez, no entanto, algo mais veio com o vento: um aroma suave,
doce, estranhamente conhecido. Albertine arrepiou-se e gelou. Era perfume
de violetas. Era a presença de Dianne.
— Albertine?! O que... o que aconteceu? Está gelada! – Jeremy
exclamou ao sentir o sangue desaparecer das veias da mão que ainda
segurava.
Ela não respondeu. Não tinha forças para isso. “Albertine!”, Jeremy
gritava tentando trazê-la de volta a consciência, mas os olhos claros estavam
perdidos e sem brilho. A respiração lhe faltava, e os arrepios percorriam cada
centímetro de pele e ossos. Jeremy então resolveu chamar por Rosa, mas não
houve tempo suficiente. Um grito de horror soou nitidamente, vindo de
dentro da mansão. Segundos depois mais um grito, e outro, e mais outro.
Misturados a eles então surgiram ruídos e baques – objetos caindo ao chão,
vidros estilhaçando-se, metais chocando-se contra a parede.
— Albertine, fique bem aqui! Já voltarei para buscá-la!
Em largos passos Jeremy percorreu o caminho iluminado por poucas
lamparinas, entrando de volta na mansão assim que alcançou a porta. Os
ruídos ainda acompanhados de gritos de pavor tornavam-se mais nítidos a
cada passo, e do corredor principal Jeremy percebeu que algo assustador
ocorria na cozinha. Chegou ao fim da sala de jantar, e da porta já pôde ver,
para seu completo espanto, o que de fato lá ocorria. Algo sobrenatural,
inexplicável e definitivamente incompreensível.
Nos cantos da cozinha, pressionando seus corpos com quanta força
podiam contra a parede, estavam Rosa, Judith e Martha, defendendo-se com
os braços frágeis e desprotegidos. Defendiam-se de dezenas de objetos que,
como que por vida própria, lançavam-se ao redor da cozinha. Copos, pratos,
potes e talheres. Uma chuva de objetos sólidos – muitos deles perigosamente
cortantes e ameaçadores, deixando seus lugares de descanso nos armários e
prateleira como se atirados pelas mãos de alguém que não se podia ver.
— Jeremy! – Rosa gritou ao perceber a presença do rapaz à entrada.
— Rosa! O que é isso? O que está havendo?
— Saia daqui, agora! – ela respondeu imediatamente.
Facas afiadas cortavam o ar poucos centímetros diante de seu corpo,
assim como aos de Judith e Martha, que também procuravam
desesperadamente não ser atingidas por nada de tudo aquilo que despencava
sobre elas. Ringo latia com ferocidade parado à entrada, recuando a cada vez
que se sentia ameaçado. A cada segundo novos estilhaços de vidro e cerâmica
tornavam aquele momento sobrenatural ainda mais assustador e perigoso.
Jeremy apenas observava, incapaz de atitude alguma; não poderia proteger as
mulheres sem ferir-se de forma talvez fatal, e nem mesmo imaginava o que
fazer para que aquilo parasse. Era algo completamente inexplicável e
fisicamente impossível.

O perfume havia desaparecido no ar. Albertine, recostada ao banco do


coreto, paralisada em corpo e mente, apenas ouvia os gritos e ruídos
incessantes. Não sabia exatamente o que se passava na mansão, tampouco
faria diferença se soubesse. A única certeza que tinha era de que o fantasma
de Dianne possuía mais poder do que ela poderia imaginar. Poder este capaz
até mesmo de escutar e condenar os mais íntimos pensamentos, mesmo que
nem ainda estivessem completamente formados. Sim, Dianne sabia que
Albertine por um instante pensara em desistir, que uma pontada de esperança
de tudo voltar a ser como era surgiu no exato momento em que Jeremy lhe
pedira o perdão. Todas as palavras ditas por Jullian então fizeram-se
concretas: Dianne queria Albertine longe daquela mansão.
— Dianne... – Albertine sussurrou por entre os dentes semiabertos. –
Dianne! Deixe-os em paz! É a mim que deve expulsar. Deixe-os viver em
paz!
As palavras soaram indefinidas, e foram levadas para longe pelo sopro
do onipresente vento que vinha do sul. A imagem de Dianne então desfez-se
como poeira ao vento, e Albertine estava novamente sozinha, perdida em sua
própria respiração.

O caos ainda imperava na cozinha quando um sopro de vento abriu com


violência as janelas de toda a casa, e um sussurro carregado de desespero foi
ouvido por Martha, Judith, Rosa e Jeremy. Uma voz conhecida que dizia:
“Deixe-os em paz”. A este som, como por um simples comando, tudo parou.
Os talheres, a louça e os objetos de metal: todos eles parados no ar, flutuando
como colibris. As quatro pessoas lá presentes apenas observavam e pediam
que aquilo acabasse, que o pesadelo chegasse ao fim. Os segundos que se
passaram entre eles pareceram infinitos; o sussurro ecoara e desaparecera tão
rápido quando um piscar de pálpebras, e assim, os objetos largaram-se ao
chão, tornando a obedecer a lei da gravidade. O som do choque foi quase
ensurdecedor, mas enfim todos puderam respirar aliviados.
— Todas estão bem? Ninguém se machucou? – perguntou Jeremy
atirando-se na direção de Rosa.
— Estou bem, creio que Martha e Judith também estão – ela disse com
rispidez, recuperando o fôlego, e as outras duas criadas confirmaram a
resposta de Rosa.
Os pés calçados das criadas pisaram sobre os incontáveis cacos de vidro
espalhados por toda a cozinha; ninguém sabia exatamente o que dizer, nem
mesmo o que pensar. O que presenciaram naquela cozinha permaneceria
eternamente sem explicação lógica, ou ao menos ligeiramente convincente.
— Jeremy, onde está Albertine?
— Minha nossa, a deixei sozinha quando ouvi o barulho vindo da
cozinha...
— Jeremy, vá buscá-la! Está doente e não pode ficar muito tempo fora
da cama!
— Estão mesmo todas bem? Vou levar Albertine de volta à cama e
voltarei para ajudá-las a arrumar esta bagunça.
E assim Jeremy seguiu mais uma vez ao jardim, percorrendo a mesma
trilha já marcada pelos passos da ida. O clima mudara repentinamente durante
os poucos minutos em que estivera na cozinha – ele percebeu isso ao notar
flocos de neve caindo vagarosamente do céu escuro sob sua cabeça, a cabeça
que ainda fervilhava em pensamentos sobre o que vira ocorrer dentro de sua
própria casa. Não conseguiu deixar de ligar estes fatos aos que também
presenciou dias antes: o espírito inquieto de sua mãe surgindo diante de seus
olhos, não para visitá-lo, mas sim apenas para fazer-lhe mal. Não procurou
respostas sobre isto, porém recusou-se a acreditar que sua vida, assim como
as de quem amava estivessem sendo frequentemente ameaçadas por sua
própria mãe.
Albertine estava lá, sentada em sua mais delicada forma, uma visão
majestosa e ligeiramente intrigante. De longe era como uma perfeita
escultura, branca como gesso, e em frente aos olhos de Jeremy era
simplesmente a mulher mais bela que aqueles mesmos olhos já chegaram a
ver. Ao aproximar-se dela percebeu que não parecia mais tão assustada
quanto antes. Estava diferente. Mantinha expressão rígida e fria, sem
qualquer emoção. Nem mesmo pareceu tê-lo visto chegando para levá-la de
volta à mansão.
— Albertine?
— Hmm? – ela respondeu alguns segundos depois, sem mover-se um
centímetro sequer.
— Está tudo bem? Parece preocupada.
— Não estou. Só um pouco cansada. Poderia me levar de volta ao
quarto?
O timbre da voz de Albertine tornara-se instantaneamente
irreconhecível. Jeremy nunca, em toda sua vida, ouvira aquela doce mulher
pronunciar palavras tão repletas de frieza. Talvez apenas estivesse cansada,
ele pensou. Preferiu não estender aquele rápido passeio, e por isso também
não disse mais palavra alguma até que novamente chegassem ao quarto.
Poderia contar o que ocorrera na cozinha no dia seguinte.
— Aqui estamos – disse o rapaz com carinho, após abrir a porta do
quarto e guiar Albertine até a cama.
— Muito obrigada.
— Precisa de mais alguma coisa? Quer algo da cozinha?
— Preciso apenas dormir – ela quase o interrompeu. –Você vem?
— Eu... preciso fazer algo lá embaixo. Volto em instantes.
— Tudo bem. Diga a Rosa que não traga meu chá hoje.
Jeremy afirmou com um movimento de cabeça, e procurou deixar o
quarto tão rápido quanto conseguisse. Aquela noite estava repleta de fatos
estranhos, ele apenas parecia evitar mais um. Ao descer as escadas deparou-
se com Rosa, que trazia o chá já rejeitado por Albertine.
— Rosa, ela pediu para dizer-lhe que não quer o chá hoje.
— Farei com que beba. E você, aonde vai?
— Quero ajudar a limpar a bagunça da cozinha – ele respondeu
rapidamente, esforçando-se a não demonstrar que apenas não gostaria de
estar no quarto até que sua esposa adormecesse.
-Martha e Judith e os homens já estão cuidando disso. Não precisa ir se
não quiser.
— Não se preocupe com isso. Subirei novamente em alguns minutos.
Mesmo percebendo estranheza nas palavras de seu protegido, Rosa não
questionou. Apenas deixou que seguisse seu caminho e retomou o seu
próprio. Bateu duas vezes à porta antes de entrar, mas Albertine não
respondeu. Entrou e viu que já estava preparada para dormir.
— Querida, está se sentindo bem? – e esta pergunta ficou novamente
sem resposta.
A governanta apenas permaneceu lá, estática, procurando algo em sua
mente. Se bem conhecia Albertine, sabia que algo acontecera naquela noite,
algo além do incidente na cozinha. Era óbvio para ela que Dianne causara
todo aquele caos, e ainda mais óbvio que era devido a ela o comportamento
gélido de Albertine.
— Não quer... falar sobre alguma coisa? – disse de forma paciente,
aguardando por alguns instantes. –Vamos, sei que está me ouvindo.
E Albertine realmente estava. Ouvia Rosa com tanta atenção que
esquecia até dos próprios pensamentos. Gostaria de respondê-la, mas não
sabia como fazer isto. Era demasiado estranho e perturbador.
— Tudo bem. Vou deixá-la em paz. Voltarei pela manhã.
— Rosa... espere.
— Achei que me deixaria mesmo falando sozinha.
— Já tomei minha decisão.
— Fala com certeza? – Rosa retrucou um tanto assustada e surpresa.
— Sim. Nunca falei com tanta certeza.
— E o que decidiu, afinal?
Diante desta pergunta as duas mulheres estremeceram. Rosa não sabia o
que iria ouvir como resposta, e Albertine reunia forças para pronunciar de
forma clara o que realmente decidiria fazer.
— Irei partir com Jullian daqui a dois dias.
Rosa apenas lançou-lhe um olhar quase materno, mas Albertine o
perdeu. A senhora então, incapaz de dizer qualquer coisa que pudesse
encaixar-se naquele tão delicado momento, apenas deixou o quarto levando
de volta a bandeja que segurava com as duas mãos, trêmulas e umedecidas
pelo suor frio que se formara após ouvir, em alto e bom som, as palavras que
selariam o destino de dois jovens corações apaixonados.
Capítulo XXIII

A ÚLTIMA XÍCARA DE CHÁ

Já passava da hora do jantar, mas a mesa ainda não havia sido posta.
Tudo estava um pouco diferente na mansão naquela noite. O habitual silêncio
fora substituído por melodias emendadas, criadas por Albertine no grande
piano da sala de música. Nos dois dias que haviam passado desde o
‘incidente dos objetos voadores’, como todos nomearam o fato, a esposa de
Jeremy recuperara boa parte da saúde perdida. O corte em sua cabeça parecia
pronto a cicatrizar, e as gazes e faixas que o protegiam já não mostravam
focos de sangue quando removidas. Antes do escurecer, descera sozinha até a
sala de música, e por lá permanecera praticando composições conhecidas e
algumas próprias.
A mansão não parecia a mesma. Nem mesmo Albertine parecia ser mais
a mesma pessoa que era um par de dias atrás. Continuava fria e rígida desde
seu último encontro com Dianne, o encontro que a fizera decidir em
finalmente ceder ao que não poderia ser combatido. E lá estava ela, vivendo
as últimas horas daquele último dia. O último dia ao lado de Jeremy, de Rosa
e da mansão. Tudo já estava pronto. Os preparativos já haviam sido feitos no
decorrer da tarde, com a ajuda e discrição de Rosa. Os outros criados foram
sigilosamente postos a par dos acontecimentos – exatamente todos os
terríveis acontecimentos – e mesmo chocados e ligeiramente perdidos,
concordaram em ajudar na fuga, especialmente fazendo o possível para que
Jeremy nada percebesse. Nada poderia dar errado.
— Esta é sua? – a voz de Jeremy soou, e em seguida ele surgiu
repentinamente na sala de música. –Nunca ouvi esta antes.
— Sim, esta é minha – Albertine respondeu sem olhar-lhe nos olhos.
— Como se chama?
— Não costumo nomeá-las.
— Isso é incomum, não acha?
— Não me importo que seja.
Jeremy observou a rigidez da expressão de sua esposa antes de pensar
em qualquer palavra. Não conseguia mais reconhecê-la.
— Você vem jantar?
— Sim, já estou indo.
Jeremy dirigiu-se à cozinha, sentou-se à mesa e observou as mulheres
preparando o jantar. O aroma era delicioso como de costume, mas o apetite
não aflorara ainda nas entranhas do jovem Ridell. Rosa espiou por cima do
ombro, enquanto preparava uma salada leve, e notou quão estranho e
preocupado Jeremy parecia estar. Engoliu a seco ao imaginar que ele, da mais
sutil maneira, desconfiava de alguma coisa. Suas mãos tremeram naquele
instante.
— Preocupado, Jeremy?
— Talvez...
— Posso saber o motivo?
— Albertine. Está diferente. Estranha, eu diria.
— Ela ainda não está totalmente recuperada. Está doente e ferida. Acho
que sabe bem disso.
— Ela nunca me tratou desta forma.
Rosa então virou-se e olhou-o diretamente nos olhos escuros. Suas
pupilas se encontraram e a expressão da governanta tornou qualquer outra
palavra completamente dispensável. Jeremy percebeu no piscar daqueles
experientes olhos que não poderia exigir diferente comportamento de sua
esposa. Há algum tempo não fora um bom companheiro, e um coreto de
madeira não poderia tornar isto menos doloroso.
— Aonde vai? – perguntou Rosa ao vê-lo levantar-se, visivelmente
frustrado.
— Perdi a fome. Vou para o quarto.
— Tudo bem, se assim deseja. Já estou tendo trabalho suficiente para
fazer Albertine se alimentar. Não posso me preocupar com você também.
— Já sou bem crescido, não precisa se preocupar com nada.
— Levarei um chá e alguns biscoitos depois do jantar.
Mesmo irritado Jeremy manteve o bom senso e não recusou a oferta.
Seu orgulho não o alimentaria por toda a noite. Cruzou rapidamente a sala de
música e procurou não dirigir-se a Albertine, nem mesmo com um rápido
olhar. Ela ouviu os passos provocando o ranger dos degraus de madeira, e
agradeceu por não ter de encará-lo durante o jantar. Desejava não olhar para
ele nem mais uma vez. Seria mais fácil ir embora sem encarar pela última vez
aqueles olhos, aquele rosto que tanto amava.
Durante o jantar falaram pouco, apenas o necessário. As ações da fuga
estavam completamente planejadas, porém havia ainda um empecilho que
poderia significar o total fracasso da missão. Deveriam certificar-se que
Jeremy ingerisse a poção enviada por Jullian para que adormecesse de forma
impenetrável. Somente assim seria seguro atravessar os portões da mansão; à
meia-noite Jullian já estaria esperando por Albertine, alguns metros à frente
na estrada de terra, com uma carruagem. Nada parecia realmente complicado
além de fazer com que o imprevisível esposo de Albertine tomasse todo o chá
que Rosa prepararia, sem desconfiar do sabor amadeirado que a poção
aplicaria a ele.
— E se a poção não funcionar, o que faremos? – Albertine perguntou
apreensiva.
— Jullian garantiu que ele ficará adormecido como um cadáver por
horas caso beba todo o chá. Com apenas alguns goles, talvez permaneça
desacordado por uma hora, talvez uma hora e meia. Esta poção é uma das
mais fortes que podem ser preparadas. Mais do que algumas gotas podem
colocar um corpo em estado vegetativo por dias. Quando Jeremy acordar,
você já estará bem longe daqui.
— Por quanto tempo Jullian a manterá escondida na igreja? – perguntou
Judith.
— Menos de vinte e quatro horas – Rosa respondeu por Albertine, dado
o fato de que nem ela mesma poderia dar esta resposta. –A igreja é o primeiro
lugar onde Jeremy irá procurá-la. Ele sabe que temos Jullian como nosso
protetor.
— E para onde ele irá levá-la?
Esta foi notavelmente uma pergunta delicada. Ninguém, nem mesmo
Jullian, ainda sabia qual seria o destino de Albertine.
— Depositaremos toda nossa confiança em Jullian. Ele saberá o que
fazer.
— Vou sentir muito a falta de todos vocês. Gostaria de poder ficar –
Albertine disse aparentemente procurando mudar o rumo da conversa. Já era
triste demais sem que os outros tentassem traçar seu destino a partir daquela
noite.
Rosa levou uma de suas mãos até as de Albertine. Os dedos
entrelaçados tremiam e suavam, mas sentiram-se tranquilizados e seguros ao
contato daquela mão amiga, daquele toque maternal que Albertine jamais
receberia outra vez.
— Vou preparar o chá de Jeremy – disparou Rosa, quebrando de uma
vez o gelo daquele incomum jantar. –Já passa das nove, temos menos de três
horas até que Jullian esteja esperando.
Após o recolhimento da mesa, seguido pela limpeza da cozinha, os
quatro criados despediram-se de Albertine. Seria a última vez que a veriam
naquela casa. Logo assim subiram a seus aposentos, deixando apenas as
outras duas mulheres sozinhas com seus pensamentos. O chá fora finalizado
– era de carqueja, conforme recomendado por Jullian para adequar-se ao
sabor da poção – e o aroma forte e adocicado percorreu toda a cozinha.
— Tome – disse a governanta, entregando às mãos de Albertine uma
pequena bandeja redonda contendo uma xícara de chá e duas fatias de pão
amanteigado. –Leve até ele e faça-o beber. Não permita que recuse.
Ela apenas assentiu com a cabeça, imaginando o que fariam se Jeremy
se recusasse a beber o chá. Outra chance de ir até a cidade para organizar as
coisas com Jullian seria demasiado arriscada, e sua saúde já não poderia mais
sofrer alterações negativas sem fazê-la passar dias de cama. Adiar a fuga
poderia ser um erro fatal.
Ao entrar lenta e silenciosamente no quarto, Albertine encontrou seu
esposo parado diante à janela, observando a neve. Parou para observá-lo
antes que notasse sua presença; tinha a pele rosada e vívida, as costas
pareciam mais largas do que normalmente eram, e até seus cabelos negros
pareciam mais nutridos. Era um Jeremy tão saudável quanto nunca fora antes.
— Albertine?! – exclamou Jeremy em tom leve ao virar-se parcialmente
e encontrar sua esposa espiando-o em silêncio. –Há quanto tempo está aí?
— Não muito...
— Assim você vai acabar me assustando – argumentou Jeremy
procurando não parecer rude.
— Desculpe, não foi minha intenção – ela respondeu ainda parada à
entrada do quarto.
— Não vai entrar?
— Oh, sim.
Antes que fechasse a porta, ouviu passos às suas costas; olhou por cima
do ombro e viu Rosa em direção a seu aposento. Trocaram um rápido olhar
de cumplicidade que jamais seria compreendido por Jeremy caso o notasse.
— Rosa pediu que trouxesse este chá para mim?
— Sim, ela preparou para você. Não esteve conosco no jantar, esperava
que estivesse com fome.
— Tudo bem. Deixe a bandeja aí um pouco.
— Beba antes que esfrie – Albertine disse após repousar a bandeja
sobre a cômoda, quase em forma de pedido. Imaginou se não estaria sabendo
disfarçar a ansiedade. –Vou ao banheiro e já volto para irmos dormir.
Fechando a porta às suas costas, finalmente, conseguiu respirar
tranquilamente. Estar na presença de Jeremy tornara-se tão assustador quanto
se imaginar sem ele. Ao lado da pia estava a água limpa em um grande
recipiente de porcelana; Albertine uniu suas mãos em concha, apanhou um
pouco do líquido translúcido e levou-o ao rosto. Não tinha certeza, mas
imaginou ter lavado algumas lágrimas dos cantos dos olhos.
Poucos minutos depois Albertine retornou ao quarto. As lamparinas já
estavam apagadas. A janela já havia sido encoberta pelas grossas cortinas.
Jeremy já estava confortavelmente deitado na cama do casal. Após alcançar o
guarda-roupas e substituir o vestido por uma suave roupa de dormir,
Albertine caminhou em volta da cama pronta para deitar-se, e antes que
chegasse até lá passou pela cômoda onde a bandeja com o chá se encontrava.
Lançou um olhar apreensivo até a xícara, e produziu um profundo suspiro ao
notar que estava completamente vazia.
Capítulo XXIV

O DEMÔNIO DE OLHOS AMARELOS

Ao soar da décima primeira badalada do relógio, leves batidas na


porta do quarto retiraram Albertine de um cochilo que a havia capturado. Ela
levantou-se num salto e abriu a porta tão rápido quanto a alcançara; lá estava
Rosa, usando o vestido que ganhara de presente de aniversário, os ombros
cobertos por seu belo xale bordado. Encararam-se na escuridão até que
puderam se enxergar com mais clareza.
— Já está pronta? – perguntou a governanta.
— Sim. Já estou pronta há algum tempo.
— Não descansou?
— Não senti sono, preferi apenas sentar e esperar.
Rosa sabia que Albertine estava mentindo, sabia que ela não
conseguiria deitar-se ao lado de Jeremy como se nada houvesse de errado.
— Ele está dormindo?
— Acho que mais do que isso. Parece morto, a pulsação é quase
inexistente e a respiração é imperceptível.
— Jullian deixou claro que era uma poção muito especial. Derramei
apenas três gotas no chá conforme ele recomendou.
— Olhe para ele, parece uma estátua.
Ambas puseram-se a observar o homem desacordado, envolvido em
lençóis brancos, de cabeça apoiada confortavelmente no travesseiro. Exibia
uma expressão serena, porém completamente rígida. Não respirava, não
demonstrava qualquer sinal de que ainda tinha vida pulsando em suas veias.
— Não se preocupe, ele ficará bem – disse Rosa procurando parecer
convincente. –Está pronta, então? Poderemos esperar lá embaixo.
— Me dê só mais um minuto. Logo estarei lá.
Rosa assentiu com a cabeça e sem delongas deixou-a sozinha com o
esposo adormecido. Albertine esperou até que Rosa estivesse no andar de
baixo, caminhou até a cama e olhou Jeremy por mais alguns rápidos
segundos. Deitou-se então a seu lado. Suas mãos deslizaram pelo rosto frio,
descendo ao pescoço, alcançando os fios de cabelo negro e grosso de sua
nuca. Sentiu seu cheiro, tocou-lhe a pele. Levou os lábios aos dele – lábios
inanimados e quase rígidos – e assim percebeu que aquele beijo frio não era
assim tão diferente de como vinha sendo nas poucas e últimas vezes que se
permitira acontecer.
— Adeus, Jeremy.
O sussurro ecoou pela mente de Albertine como uma melodia
indesejada e inevitável. Ela levantou-se com delicadeza, e sem olhá-lo mais
uma vez, abriu a porta e saiu.
Na sala de estar, em frente à lareira, estavam Rosa e os outros criados
esperando a chegada de Albertine. Ringo também fazia parte do grupo;
parecia compartilhar da ansiedade de cada uma daquelas pessoas. Não
conversavam, não produziam qualquer som. Apenas esperavam. Albertine
seguiu até uma poltrona vazia no canto da sala e uniu-se a eles,
compartilhando do silêncio aterrador.
Exatamente às onze e quarenta da noite, Rosa levantou-se
repentinamente e anunciou que chegara a hora. Em poucos instantes Jullian já
estaria lá, esperando na floresta. Todos os outros repetiram esta ação, e por
alguns segundos aconteceu uma breve cerimônia de despedida, mista entre
abraços e promessas de visitas futuras, ainda que incertas. Ringo
compartilhava da despedida enroscando-se e arranhando o vestido de
Albertine, como se já ciente de que nunca mais a veria outra vez.
Equipadas com seus casacos e uma lamparina para iluminar o caminho
naquela noite manchada de negro, Rosa e Albertine seguiram pela trilha que
levava ao portão da mansão. Os criados cessaram seu caminho na porta, e de
lá assistiam a partida da jovem patroa.
Já diante das grossas grades, Rosa retirou de um dos bolsos o molho de
chaves, procurou pela maior delas e levou-a até a fechadura enferrujada. Um
estalo, e os portões abriram-se à frente das duas valentes mulheres, e sem
olhar para trás, seguiram pelo caminho parcialmente disfarçado pela neve de
dezembro.
Apenas os altos muros separavam a floresta da propriedade de Jeremy,
e do outro lado deles, exatamente ao fim do terreno habitado, já se estendiam
os incontáveis e quase infinitos troncos encobertos pela alva capa do inverno.
Albertine e Rosa caminhavam lado a lado, de braços dados, sentindo os pés
afundarem na neve. Ambas olharam o céu como em movimento combinado,
e por entre o emaranhado de galhos puderam ver poucas nuvens navegando
pela noite. O caminho seguiria plenamente reto por cerca de cem metros,
chegando a uma curva após este trajeto. Era lá que Jullian estaria, conforme o
combinado.
O som do vento partindo os galhos mais frágeis era o único que se
podia ouvir ao redor das duas mulheres. Não havia a presença dos pequenos
animais que saltitavam durante o dia, nem o cantar dos pássaros misturando-
se em dezenas de melodias. Elas sentiram-se então como os únicos seres
vivos naquele gigantesco raio florestal. Albertine relutou contra suas próprias
vontades, mas não conseguiu evitar em olhar para trás. Um estranho
sentimento ocorreu-lhe quando não conseguiu mais avistar as luzes
escapando pelas janelas da mansão.
A cada metro percorrido a curva da estrada se tornava mais próxima;
Albertine não percebeu, mas passou a andar com tamanha pressa que
arrastava Rosa pelo braço.
— Fique calma – disse a governanta. –Já estamos chegando.
Em mais alguns instantes, enfim, chegaram onde a estrada se curvava.
Uma névoa fina preenchia aquele trecho do corredor de árvores, e no meio da
cortina branca e intocável estava ele. Estava recostado a uma pequena
charrete, vestido por um longo capuz de cor escura. Albertine e Rosa
puderam ver a respiração do misterioso homem condensando-se em vapor.
Ele, por sua vez, observava algo por entre os troncos, mesmo sabendo que
não havia nada lá. Aparentemente não havia notado que não estava mais
sozinho.
— Estamos aqui – disse Rosa.
A voz soou suave e chegou aos ouvidos do Padre junto a uma corrente
fria que cruzava aqueles caminhos, e ele então virou-se para elas
vagarosamente. Levou as duas mãos à toca do capuz, e com um movimento
brusco revelou o rosto idoso e cansado. Sua cicatriz mostrou-se tão profunda
quanto se vista à luz do dia.
— Perdoe se nos atrasamos – disse Albertine em tom preocupado.
— Foram absolutamente pontuais – Jullian respondeu com sua voz
serena. –Tudo correu bem? Ele está adormecido?
— Como uma pedra – Rosa adiantou-se antes que Albertine pudesse
fazer qualquer alusão mórbida ao esposo inconsciente.
— Excelente, excelente. Mas então... vejo que não trouxe muitas
bagagens, Albertine.
— Oh, não se preocupe quanto a isto. Rosa poderá levar mais roupas
quando for possível.
Jullian pareceu confuso e ligeiramente perdido após tal declaração,
então disse:
— Sabe que não poderá ficar por muito tempo escondida na igreja, não
sabe? Ele poderá facilmente encontrá-la se ficar muito tempo lá.
— Irei onde for preciso para ajudar Albertine – Rosa exclamou,
determinada a findar os receios do Padre. –Estarei sempre a seu lado onde
quer que esteja.
— Se é assim, então, não precisarão de uma cena de adeus muito longa.
Estou certo?
As duas mulheres sorriram e com isto entenderam que Jullian deveria
estar com pressa, embora também estivessem tomadas pela vontade de deixar
aquela floresta sombria e silenciosa. Não seria possível afirmar, visto que as
expressões daquele homem eram praticamente ininteligíveis, mas elas
notaram que algo o preocupava intensamente naquela noite.
— Algo errado, Padre? – Albertine indagou, receosa do que poderia
ouvir. Algo que amedrontasse Jullian poderia, de fato, ser um terrível
pesadelo para qualquer outro ser humano.
— Temos que ir embora daqui. Esta floresta... não me parece segura –
continuou o velho Padre, ao mesmo tempo em que observava os arredores.
Exibia uma incontestável posição de defesa.
— Está vendo alguma coisa? – perguntou Rosa já contaminada pelo
repentino medo que se espalhava entre eles.
— Não... acho que não. Mas não me sinto em paz aqui.
— Então, é isso. Venha aqui, Albertine, deixe-me lhe dar um último
abraço.
Aproximaram-se e com tristeza trocaram um abraço longo e silencioso.
Seria difícil afirmar quando iriam ver-se novamente, ou mesmo se isto
realmente tornaria a acontecer. Com força descomunal que quase sufocou a
jovem, Rosa apertou-a entre os braços como uma mãe abraça um filho prestes
a partir. Para Rosa seria o fim; para Albertine, um novo começo.
Os corpos desprenderam-se e Albertine inspirou de forma brusca a fim
de recuperar o fôlego. A governanta, por sua vez, derramou algumas
pequenas lágrimas de tristeza. Sentiu-se embaraçada, e logo procurou secar as
gotas que escorreram por suas maçãs. Levou as duas mãos ao rosto, e logo
assim que tocou-as à pele das bochechas sentiu algo quente e levemente
pegajoso escorrer por entre seus dedos. Albertine encarou-a neste exato
momento, criando imediatamente sua conhecida expressão de espanto. Não
sabia de onde ele havia surgido nem como viera sujar as mãos de sua amiga,
mas teve a plena certeza de ver o rosto triste de Rosa manchado do mais
vermelho sangue.
— Rosa...o que...
A senhora governanta ergueu as mãos frente ao rosto e foi tomada pela
surpresa mesclada por indescritível medo; suas mãos não exibiam sequer um
centímetro de pele limpa: estavam completamente encobertas pelo líquido
vermelho.
— De onde saiu esse sangue? – Ela exclamou em alto som, chamando
assim a atenção de Jullian que já se preparava para tomar o posto de cocheiro.
— Sangue? Rosa, você disse sangue? – ele questionou surpreso.
— Sim! Albertine, o que está havendo? Albertine!
Mas a jovem já não respondia. Estava parada, inerte, olhos fixos ao
chão. Tinha os braços abertos em forma de cruz, cobertos até os cotovelos
pelo vestido verde-musgo que escolhera para a viagem. Da parte inferior
destes braços, Jullian e Rosa puderam ver com exatidão que fios de sangue –
vários deles – escorriam por entre o tecido, transformando-se em gotas que
caíam e se misturavam à neve do chão.
— Jullian, ajude. Por favor, ajude!
— Não sei o que está acontecendo – ele respondeu, sempre procurando
manter-se calmo.
— Ela vai sangrar até morrer!
— Não há nada que eu possa fazer, Rosa!
Contrariando sua própria afirmação e deixando seus métodos de exorcista
missionário de lado, Jullian avançou na direção de Albertine, mas antes que
pudesse alcançá-la, um sopro forte de vento arrepiou-o da cabeça aos pés.
Fez-se mais uma vez silêncio, que fora então progressivamente quebrado por
sons distintos e facilmente identificáveis. Eram passos. Passos de alguém que
se aproximava vagarosamente.
— Não toque nela – disse uma voz desconhecida, pausadamente. Eram
como mil vozes unidas pronunciando-se de uma só vez.
Os passos tornavam-se cada vez mais próximos, e a cada segundo mais
assustadores. O Padre e a governanta olharam ao redor, mas não viram nada,
nem ninguém. A lembrança daquela voz horrenda atordoou os sentidos de
Rosa, e ela soube naquele momento que nunca sentira tanto medo em toda
sua vida. Era um som infernal.
À medida que quem quer que fosse se aproximava, tudo ao redor
parecia se tornar mais escuro e triste, até mesmo o vento parecia fugir
daquela presença que em poucos segundos se mostraria por completo.
— Rosa – sussurrou Jullian -, venha até aqui. Fique perto de mim.
Ela obedeceu sem hesitar, indo na direção do Padre tão silenciosa
quanto conseguira ser. Obedeceram à ordem da voz desconhecida e não mais
tocaram Albertine. O sangue ainda escorria em grossas fileiras que se uniam,
formando gotas espessas nos cotovelos da jovem. Ela não responderia a
qualquer chamado, os outros sabiam bem. Não poderiam descrever a dor que
ela sentia, nem entendiam como aguentava em silêncio aquele tormento que
naquela noite alcançara seu ápice.
Os passos prosseguiram e subitamente cessaram. O ser que os causava
estava agora parado exatamente onde a curva da estrada surgia, ainda fora do
alcance da visão dos outros. Ouviram então sua respiração: era animalesca,
feroz e descontrolada. Não poderia ser um humano. Não um ser humano
comum.
Antes mesmo que surgisse diante dos olhos, sentiram uma aura negra
tomar-lhes a mente – uma aura de maldade em sua mais pura forma. Sua
sombra estava projetada à frente, mas era indecifrável enquanto unida às
sombras dos galhos que se estendiam acima da estrada.
— Quem está aí? – perguntou Jullian em alta voz.
A resposta não veio imediata. A respiração do ser misterioso tornou-se
ainda mais intensa. Parecia enfurecido. Mais alguns segundos e os passos
recomeçaram. Albertine, por sua vez, estava à beira do colapso: ofegava em
agonia, enquanto perdia parte de seu líquido vital através dos misteriosos
cortes que surgiram em seus braços. Tomada pelo medo, Rosa apenas
pensava em ir até ela e tirá-la dali, colocá-la em segurança. A sombra de
quem se aproximava tornava-se cada vez maior e mais próxima. E então, ele
surgiu.
— Jeremy?! – Rosa exclamou imensamente surpresa.
O esposo de Albertine apareceu totalmente à vista, caminhando em
pernas vacilantes em linha desajustada. Sua cabeça estava baixa, os olhos
visivelmente fechados. Em uma das mãos trazia um objeto prateado e
brilhante, de três pontas – a maior delas manchada por alguns pontos de
sangue.
— Não – ele disse, fazendo soar a voz infernal ouvida instantes atrás. –
Ele não está aqui.
Prosseguiu caminhando cambaleante, ainda com a cabeça pendendo sob
o pescoço torcido. Era uma figura inumana.
— Quem é você? – Rosa tornou a falar.
A esta pergunta, então, ele parou. Girou-se até ficar frente a frente aos
outros. Os ossos estalaram a cada um dos movimentos. Seu pescoço então
ergueu-se lentamente, até que o belo rosto de Jeremy ficasse completamente
visível; a boca estava entreaberta, e por ela escapava um grunhido que trouxe
mais um longo calafrio à governanta. Jullian, por sua vez, não expressava
qualquer emoção ou reação.
— Eu sou o contratado. Eu sou Agathodaemon.
As pálpebras tremularam e então se abriram, e por baixo delas surgiram
dois grandes olhos amarelos, com pupilas em formato de fenda. A pele do
jovem era agora acinzentada, com veias escuras que pareciam pulsar com
violência e ferocidade. Era inumano. Foi assim que Rosa, Jullian e Albertine,
com horror perceberam que não era mesmo Jeremy Ridell que ali estava
presente, pelo menos não da forma que o conheciam. O objeto que segurava
foi então finalmente decifrado: era uma adaga de três pontas – a mesma
adaga que o ferira algum tempo atrás no sótão da mansão. Não
compreenderam de imediato o motivo pelo qual a carregava, mas logo tudo
se tornou repentinamente claro. O homem levantou os braços, e tais como os
de Albertine, sangravam por debaixo das mangas da camisa branca. Ele – ou
o demônio que agora tomava conta de seu corpo – ferira-se como forma de
retaliação, sabendo exatamente no que tal ato acarretaria.
— O que fez? O que está fazendo a Jeremy? – Rosa gritou em
descontrole.
— Rosa, para trás – disse Jullian. –Não tente enfrentá-lo, você não sabe
com o que estamos lidando.
— E você, Padre, sabe com o que está lidando? – falou Agathodaemon,
ainda de braços erguidos.
— Sim – retrucou Jullian sem demonstrar receio. –Sei exatamente
quem você é, e sei também como está fugindo dos padrões estabelecidos a
você.
O corpo de Jeremy, controlado pelo demônio de olhos amarelos, pôs-se
novamente a caminhar em passos desordenados, tal qual um morto-vivo,
desta vez indo na direção do Padre. Rosa se perguntou se Jullian estaria
realmente desafiando tão perigosa criatura. Os dois estavam agora frente a
frente, os olhos negros encarando os amarelos.
— Padre Jullian... é um homem de atos conhecidos em todos os cantos
do mundo, não é mesmo? – o demônio perguntou sem qualquer delonga.
— Especialmente no inferno – foi o que o homem de idade respondeu.
— Para um Padre, sabe muito sobre o inferno.
— É o que parece.
— E o que sabe sobre mim, Jullian?
Rosa assistia à estranha conversa atônita, imóvel, sem saber como agir.
Era algo que jamais conseguiria imaginar, nem mesmo em seus mais
profundos devaneios.
— Sei o suficiente para saber que está quebrando regras – Jullian
prosseguiu. –Está ultrapassando os limites que seu mestre o concedeu.
O corpo possuído exprimiu divertimento após aquela resposta, e de sua
boca saiu uma gargalhada tão perturbadora quanto qualquer outro som vindo
das entranhas do mais profundo inferno.
— Mestre? Então acha mesmo que sirvo a um mestre?
— É o que diz em seu contrato. O contrato no livro do inferno.
— Algo que deve aprender é que nunca deve-se acreditar em tudo que
lê em livros. Nem nos do céu, nem nos do inferno.
— O que está querendo dizer?
— Jeremy não é meu mestre. Lúcifer, é assim que o chamam por aqui?
Ele não é meu mestre também. O mal não segue regras, Jullian. O mal apenas
existe. Fui contratado para proteger Jeremy e realizar suas vontades, todas
elas.
— Conheço suas regras tão bem quanto você. Não tem permissão para
possuir um corpo no mundo dos homens.
— Está certo. Exceto quando o corpo em questão pede por isto.
— Jeremy jamais pediria tal coisa – disse Rosa, negando-se a acreditar
na culpa de seu protegido.
— Estive trabalhando dentro ele todo este tempo. Uma única pessoa,
porém, duas consciências. Jeremy sabia de todo o poder que eu poderia
oferecer.
— Como? Como ele poderia saber de tudo?
— O Necronomicon não esteve bem guardado todo o tempo. Não foi
difícil para nós encontrá-lo, mesmo com o espírito da pessoa responsável
pelo meu contrato tentando interferir no que ela mesma havia criado.
— Então eu estava certo sobre Dianne – disse Jullian, um tanto
orgulhoso por suas suposições estarem como sempre exatas. –Ela de fato
pretendia acabar com o sofrimento de Albertine fazendo-a conhecer o chão
que pisava.
— E como vê, não foi o suficiente – o demônio retrucou, mostrando seu
próprio orgulho desta vez. –Ninguém além de Jeremy poderá desfazer o
contrato. Ninguém!
— Ainda podemos levá-la para longe de você. Dificultaria seu trabalho.
— Acha mesmo que pode fazer isto? Acha mesmo que pode me
desafiar?
— Já desafiei muitos demônios, muitas vezes mais poderosos do que
você.
Os olhos mudaram então do amarelo para o vermelho vivo, aceso e
intenso como as chamas de uma fogueira. O demônio que possuía Jeremy
fugira de seu próprio controle. No entanto, Jullian mantinha-se forte em sua
posição indiferente – talvez por real indiferença, ou talvez para provar àquele
espírito infernal que em nada ele poderia assustá-lo.
— Vocês...não...sabem... com o que... estão lidando!
A adaga prateada foi erguida em posição de ataque, e partindo de
Jullian até Albertine, o Agathodaemon moveu o corpo de Jeremy como o de
uma marionete sem vida. Estava enfurecido, os olhos em chamas quase
chegavam a iluminar seus arredores com o mais puro escarlate que se
derramava pelos globos oculares. Ao alcançar Albertine em estado de transe,
ergueu ainda mais a arma. A ponta do meio, a maior e mais afiada, estava
então posicionada acima do crânio da jovem mulher.
— Não toque nela, Jeremy! - gritou Rosa desesperadamente. –Jullian,
faça alguma coisa!
Ele apenas ignorou o pedido, permanecendo calado e exatamente onde
esteve durante toda a conversa. Não havia nada que pudesse fazer, sabia
muito bem. Mesmo como um exorcista e caçador de demônios profissional e
habilidoso, jamais poderia expulsar um demônio do corpo de alguém que o
abrigava por vontade própria. Aquele era um caso como nenhum outro em
toda sua trajetória como caçador.
— Jeremy! Não a machuque! Eu sei que você está aí, em algum lugar!
Não permita que o mal destrua a pessoa que você mais ama!
— Jeremy não está aqui, seu velho imbecil. Jamais irá ouvi-lo! – ele
exclamou, tornando sua voz cada vez mais perturbadora e demoníaca.
As duas mãos seguravam o cabo da adaga, prontas para fincá-la à
cabeça de Albertine. Rosa observava tomada pelo horror, perdendo-se nas
lágrimas rápidas e incessantes. O Padre, talvez por impressão errônea da
governanta, de alguma forma demonstrava prazer enquanto assistia a tragédia
iminente.
— Vamos, o que está esperando? – disse o velho servo da igreja,
repleto da serenidade que jamais se desprendia de sua forma de agir.
Rosa direcionou um olhar de repulsa a ele; não acreditava no que
acabara de ouvir. Sentiu, naquele exato instante, profundo arrependimento
por ter confiado em alguém que não conhecia, alguém que até então,
aparentemente, faria de tudo para salvar a vida da jovem Albertine.
— Não pode fazer isso, não é? Não pode desobedecer às vontades do
dono deste corpo que possui. Como todo demônio, como o próprio Lúcifer,
está se utilizando de artimanhas para iludir aquele que tem controle sobre
você.
A adaga tremulava descontroladamente, poucos centímetros acima da
indefesa Albertine. Um simples movimento vertical seria o suficiente para
pôr-lhe fim à vida. Porém, algo além do que se via estava a acontecer naquele
momento. Os braços erguidos, empunhando o objeto letal, moviam-se em
direções distintas, de forma rítmica. Iam e vinham, acima e abaixo, em
aparente indecisão. Os olhos vermelhos repentinamente perderam a cor,
apagando-se como velas ao vento. As pupilas negras de Jeremy surgiram nos
globos arregalados, mas em um par de segundos foram novamente tomadas
pelas chamas. Era uma luta entre um humano e um demônio em sua forma
mais intensa. As palavras de desafio proferidas pelo padre, afinal,
convertiam-se em um incomum e inesperado exorcismo.
— Jeremy, não esqueça de quem você é!
A cor em brasa passou a apagar-se e acender-se segundo após segundo.
O objeto pontiagudo ainda pendia indeciso, disposto a cortar com um só
golpe o fio da vida de Albertine. Ela, a esposa de Jeremy, a maior de todas as
vítimas do demônio que ocupava o corpo do esposo, após todo este tempo
demonstrou uma singela reação à dor física e espiritual que sentia. Levantou
a cabeça com dificuldade até que seus olhos encontrassem os dele, fitando o
rosto do homem que achava que jamais tornaria a ver.
— J-Jeremy...
A voz fraca de Albertine saiu em um sussurro, chegando aos ouvidos de
seu amado quase inaudível. E mesmo assim, em apenas uma doce palavra,
conseguiu fazer com que o fogo do inferno desaparecesse por completo do
corpo de Jeremy. Os dedos que seguravam a arma fraquejaram, e a adaga foi
largada ao chão, caindo com a ponta fincada à neve.
— Albertine...
O jovem Ridell havia recobrado a consciência, embora Rosa e Jullian
soubessem que deveria estar ainda adormecido pelo efeito da poderosa poção.
O casal entreolhava-se, e assim como eles, Rosa e Jullian trocavam um olhar
de indecisão. Nenhum dos dois saberia exatamente o que fazer. O olhar de
Jeremy então mudou de direção: passou por Jullian, fixou-se a ele por um
segundo, partindo em seguida para Rosa, e nela permaneceu por algum
tempo. Um olhar de total desprezo.
— Jeremy, eu...
As palavras de Rosa soaram como qualquer ruído, não recebendo
qualquer atenção do indivíduo a quem foram direcionadas. Ele apenas passou
a novamente encarar sua esposa, e logo em seguida aproximou-se ainda mais
dela. Envolveu seu corpo magro com um dos braços, logo erguendo suas
pernas com o outro. Albertine, agora completamente desacordada, estava a
ser carregada pelo jovem esposo. Sem disparar mais nenhuma atenção aos
outros dois, Jeremy deu-lhes as costas e iniciou a caminhada de volta à
mansão.
— Jeremy! – Rosa voltou a tentar, ensaiando lançar-se na direção do
casal, ato este impedido pelo padre.
— Não volte para casa, Rosa – ele respondeu, sem olhar para trás. –Não
será mais bem-vinda.
E assim seguiu pela estrada, segundos depois desaparecendo atrás da
curva que iniciava o trecho final da estrada. Rosa já não conseguia mais
chorar, não conseguia pensar com clareza. Finalmente deslocando-se de onde
esteve todo o tempo, Jullian foi até ela, levando uma das mãos ao ombro da
senhora terrivelmente perturbada.
— Venha, vamos embora. Pode ficar abrigada na igreja e assim
poderemos pensar no que fazer.
Levando-a até a pequena charrete e após ajudá-la a acomodar-se, o
Padre retomou seu papel de cocheiro, embora o passageiro não fosse aquele
que realmente viera buscar. A carruagem partiu, deixando na neve marcas
quase tão profundas quanto as que haviam se formado nos corações de todos
que fizeram parte daquela gélida e angustiante noite de inverno.
Capítulo XXV

SILÊNCIO

Os portões foram novamente fechados com dificuldade por Jeremy;


estavam mais uma vez nos terrenos da família Ridell. Albertine nada via,
nada sentia, apenas era carregada pelo esposo como uma criança adormecida.
Seus braços feridos, tingidos de sangue, pendiam abaixo de seu corpo,
deixando para trás uma indiscreta trilha de gotas vermelhas. A porta da frente
havia sido deixada escancarada, e por ela Jeremy atravessou cuidando para
não deixar Albertine esbarrar em nada pelo caminho.
A sala estava escura e silenciosa, apenas Ringo descansando em sua
almofada trazia alguma vida ao deprimente recinto. Não havia qualquer sinal
dos outros criados. Jeremy seguiu até as escadas e subiu lentamente cada um
dos degraus sem parecer cansado pelo peso que carregava. Abrindo a porta
do quarto, sem delongas adentrou no cômodo escuro, e com toda suavidade
que lhe fora possível, deitou Albertine na cama, por cima do emaranhado de
lençóis. Não pode deixar de notar que suas roupas, assim como as dela,
estavam banhadas em sangue. Quantos litros do líquido encorpado e escarlate
ela havia perdido era impossível dizer.
Depois de limpar parcialmente os ferimentos da moça e amarrá-los com
faixas de tecido, Jeremy não deitou-se ao lado de Albertine. Ao invés disso,
retornou ao andar de baixo; pretendia finalizar algo que havia começado.

Pouco após as seis da manhã Albertine acordou-se. Sentiu-se


paralisada, confusa e totalmente decepcionada por olhar ao redor e ver que
estava de volta naquele maldito quarto. Não sabia o que havia acontecido na
noite anterior – tudo fora apagado de sua mente como uma borracha apaga
rabiscos de uma folha de papel. Seus braços formigavam, mas mesmo assim
foi possível sentir que estavam terrivelmente feridos. O vestido que usava
fora trocado – usava agora um de mangas curtas, cor de creme. Ao lado da
cama, sob a cômoda, estava um pequeno café da manhã provavelmente
deixado para ela. Não sentia fome nem sede; apenas gostaria de entender tudo
que ocorrera enquanto estava fora de si.
Após levantar-se e descobrir que mais uma vez estava a fraquejar de
todo o corpo, espiou pelo corredor à procura de qualquer sinal de movimento.
Estava tudo completamente quieto. Deixando a porta do quarto entreaberta
para um rápido retorno, caso necessário, investigou cada um dos outros
aposentos do corredor. Não encontrou ninguém em nenhum deles. Decidiu
assim ir ao andar de baixo, talvez estivessem todos na cozinha, apenas
esperando que ela descesse. Estariam agindo normalmente, como se nenhum
plano de fuga houvesse sido posto em prática?
Do topo das escadas Albertine notou com espanto que nenhuma das
cortinas, de parte alguma da casa, havia sido aberta. Todos os ambientes do
andar de baixo encontravam-se em quase total penumbra. Deste exato
momento, seu coração disparou e o frio na barriga fez com que se sentisse
desnorteada. Algo de muito errado havia acontecido, ela sentiu no fundo de
sua alma.
Chegando ao piso da sala principal, caminhou lentamente para que seus
passos não denunciassem sua presença. A escuridão dificultava o trajeto,
fazendo com que Albertine esbarrasse em pequenos móveis segundo após
segundo. O silêncio ainda continuava imperando absoluto.
Chegando exatamente ao centro da sala de jantar, Albertine ouviu
alguns poucos ruídos que sem dúvidas vieram do lado de fora. Um som
inconfundível, que imediatamente levantou as mais terríveis possibilidades.
Prosseguiu cautelosa sustentando-se à mesa, seguindo o som que continuava
a se repetir. Chegou então a uma das gigantescas janelas encobertas pela
espessa cortina; suas mãos tremiam e suavam. Com a ponta dos dedos,
enquanto tentava controlar a respiração, abriu uma pequena brecha entre as
duas metades da cortina, e viu o exterior da mansão, e nada além disto.
Seguiu até a próxima janela, repetindo a investigação, e nada conseguiu
encontrar. Ao dirigir-se à próxima vidraça, antes de levar as mãos ao tecido
que a escondia, tomou um susto que a fez saltar para trás. Assustara-se ao
ouvir o som de algo sendo caindo ao chão. Algo como um corpo humano.
Retomou o ato, desta vez abrindo um espaço ainda menor entre as cortinas.
Seu rosto foi tomado pelo pavor naquele instante. Lá estava Jeremy, usando
roupas velhas, sujas de barro e umedecidas pela neve que se derretia. Em uma
de suas mãos havia uma pá, e a seu lado quatro buracos cavados no chão.
Eram covas. As covas de Robert, Thomas, Judith e Martha, cada uma
delas já ocupadas pelos respectivos corpos. Albertine então precisou levar
uma das mãos aos lábios para impedir que um grito de horror mostrasse a
Jeremy que ela o observava enterrar os bondosos criados. O que ele seria
capaz de fazer caso a descobrisse era impossível saber. De uma vez por todas,
aquele não era o homem que Albertine um dia conheceu.
Apavorada, divagando entre pensamentos de horror, Albertine
cambaleou para trás e esbarrou à comprida mesa de jantar. O contato
inesperado fez chacoalhar os castiçais, levando um deles a tombar contra o
tampo da móvel. O som deslizou pelo ar, e chegou abafado ao exterior onde
Jeremy se encontrava. Pela fresta Albertine viu seu esposo virando-se, atraído
pelo som repentino, o rosto exibindo focos de lama.
— Albertine? – perguntou ele, fazendo o coração da moça descer aos
pés. – Você está aí?
Sem perder tempo, então, Albertine apressou-se a sair dali. Correu com
as forças que lhe restavam até as escadas, e passou a subi-las o mais rápido
que conseguia, tentando fazer o mínimo de barulho. De volta ao andar de
cima, antes de retornar ao quarto, Albertine tomara uma decisão, e precisava
executá-la a todo e qualquer custo. Entrou, então, com quanta pressa podia no
recinto onde Rosa dormia. Ela não estava lá, como já havia imaginado, mas
não era exatamente a presença da governanta que Albertine procurava.
Atirando-se sob uma das cômodas, abriu cada uma das gavetas à procura de
algo. Revirou as roupas, verificou cada porta-joias, e em nenhum milímetro
do quarto encontrou o que buscava.
Rearranjou cada coisa antes de sair, não deveria deixar Jeremy notar
que esteve fora da cama. Saindo do quarto de Rosa, decepcionada, recebeu
um súbito piscar de lembranças, e antes de voltar à cama, mudou de direção e
foi até a biblioteca. Algo a dizia que deveria ir até lá. Assim que entrou,
notou que algo estava diferente – parecia mais vazia do que sempre esteve.
Desligando-se deste estranho fato, Albertine foi ao ponto exato onde
anteriormente descobrira algo precioso: o espaço entre as tábuas do chão, de
onde o Necronomicon fora retirado. Estava certa.
A tábua solta foi erguida, revelando o pequeno esconderijo. Na fenda,
mesmo com a pouca luz que caía sobre ela, Albertine viu uma pequena caixa
de madeira, algo do tamanho de um pequeno estojo de maquiagens. Retirou-a
cautelosamente, depositando-a no chão e levantando sua tampa, onde podia-
se ver as iniciais de Rosa marcadas a ferro quente. De dentro deste pequeno
estojo Albertine retirou um único objeto, escolhido cautelosamente por entre
os outros que jaziam junto a ele. Guardou-o em um dos bolsos internos de seu
vestido, em seguida levando a caixa de volta ao piso de fundo falso. Deixou a
biblioteca, e após um longo suspiro de alívio voltou ao quarto, deitou-se em
sua cama e esperou.
Poucos momentos depois, Jeremy entrou repentinamente no cômodo
mal iluminado, sem bater à porta como sempre fazia. Olhou ao redor, e viu
sua esposa ainda deitada exatamente da mesma forma em que esteve por toda
a noite – assim ele achava.
— Bom dia, querida – disse, em tom absurdamente natural.
Albertine nada respondeu.
— Não vai comer? – perguntou, ao notar a bandeja intocada.
— Não – disse ela por fim, visando encerrar a conversa.
— Não perguntarei outra vez.
As roupas de Jeremy não estavam mais sujas de barro como há poucos
minutos atrás. Ele havia trocado de calça, de camisa e de sapatos. O rosto
também estava limpo, mas suas mãos continham pequenas manchas de
sangue – o sangue dele mesmo, misturado ao de Albertine e ao dos quatro
criados que havia cruelmente assassinado.
— Voltarei com o jantar.
Eram ainda seis e quinze da manhã. Albertine virou-se para a porta
quando o viu sair, e tudo o que conseguiu fazer foi chorar. Sentia frio, sentia
fome e desespero. Queria sair dali, de qualquer forma possível – até mesmo
através de uma morte rápida causada pelas lâminas de barbear deslizando em
seus pulsos, mas pensar naquilo não era mais uma opção.
Albertine deslizou uma das mãos ao ventre, e momentaneamente
cessando o choro de tristeza, conseguiu sorrir ao sentir que, dentro de si, algo
delicadamente se movia.

Já era noite quando Jeremy subiu as escadas, levando mais uma bandeja
para Albertine. O jantar parecia apetitoso. No andar de cima tudo estava
ainda tomado pelas trevas – nenhuma lamparina, nem mesmo a do quarto do
casal, havia sido acesa. Ao início do corredor ele parou. Observou tudo a seu
redor, desde o que se podia ver do andar de baixo até a vidraça na
extremidade do ponto onde se encontrava, e estranhou. Estranhou a
escuridão, estranhou o vazio, e principalmente estranhou o silêncio.
Já no quarto, após acender as duas lamparinas principais, encontrou
Albertine adormecida. Estava ainda posicionada exatamente como antes. Ele
preferiu não acordá-la; despiu-se e foi direto ao banheiro. Em um ato quase
inumano, como se não conhecesse o frio que se abatia do lado de fora,
mergulhou o corpo esbelto na banheira, preenchida até a metade de água fria.
Os pelos do corpo se eriçaram, mas em nada ele pareceu se incomodar. Não
sentia frio, não sentia mais dor. Talvez não sentisse mais nada.
Pouco mais de meia hora havia passado, e Jeremy então levantou-se da
banheira. Havia adormecido, e como em quase todas as noites, sonhara com
algo que não conseguia lembrar. A toalha branca deslizou pelas costas largas
enquanto ele olhava-se no espelho. Notou que estava belo, repleto de vida e
cor. Não era mais o mesmo homem, nem no corpo e nem na alma. Sorriu.
Fechando a porta do banheiro às suas costas, já novamente vestido,
Jeremy repousou-se à poltrona no canto do quarto, e lá permaneceu imóvel
por alguns minutos. Tão imóvel quanto Albertine ainda estava, há quanto
tempo ele não sabia dizer. A pouca luz que clareava o quarto permitiu a
Jeremy ver o rosto sereno de sua esposa um tanto menos corado que o
normal.
— Você precisa se alimentar – disse na esperança de ser ouvido.
A resposta não veio.
— Vamos, sei que está me ouvindo. Não pode me ignorar para sempre.
Somos apenas você e eu agora. Isso não a faz feliz? Você e eu, sem mais
ninguém para interferir.
E mais uma vez, apenas o tão estranho silêncio. Jeremy mostrou-se
irritado; levantou de sua poltrona e foi até a cama, sentando-se à beira do
colchão parcialmente desforrado. Olhou para Albertine durante alguns
segundos, e notou que nunca a vira dormir assim tão profundamente. Seu
sono costumava ser leve, sendo muitas vezes o mínimo ruído suficiente para
despertá-la. Algo não estava bem.
— Albertine, acorde – tentou mais uma vez.
Jeremy tocou-lhe a testa com dos dedos unidos: estava fria como a água
em que se banhara há pouco. Ele engoliu a seco e pegou uma das mãos da
jovem. Estava tão fria quanto todo o resto de seu corpo. Apertou o pulso e
nada sentiu. Recostou-se ao tórax e não ouviu as batidas cardíacas, e por
último encostou o ouvido ao rosto angelical. Não havia respiração.
— Albertine!
O jovem Ridell largou a mão de sua esposa, deixando-a cair sobre o
peito imóvel. Uma única lágrima escorreu de cada lado do rosto de Jeremy
quando, enfim, descobriu que Albertine jamais responderia. Estava morta.
— Albertine...
O sussurro esvaiu-se na escuridão, enquanto algo acontecia naquele
quarto. As cortinas dançaram frente às janelas fechadas, atingidas por um
sopro de vento vindo de lugar nenhum. As lamparinas há pouco acesas
apagaram-se, restando ao quarto apenas a pouca luz que atravessava as
vidraças. Jeremy fechou os olhos e ouviu um som terrível – um gemido, um
murmúrio que começou em seu interior, mas logo tornou-se como um grito
que percorreu toda a mansão. Era um lamento.
Saber que havia perdido Albertine – desta vez de forma definitiva –
despertou algo dentro dele. Jeremy sentiu algo apertando seu peito, algo que
precisava sair mas não queria fazê-lo. Os dedos magros esticaram-se,
trêmulos, e por eles alguma energia era expelida em forma de fios de fumaça
negra. Os murmúrios uniram-se em dezenas, talvez centenas de vozes. A
boca de Jeremy escancarou-se, e por ela ele viu sair uma esfera negra, gasosa,
circundada por uma aura que liberava um terrível odor: o odor das
profundezas da terra. A esfera maligna girou ao redor de Jeremy, causando-
lhe medo e pânico como em um castigo irremediável. Sentiu-se agarrado por
mãos inexistentes aos olhos, agarrando-se em todo o seu corpo, puxando-o,
arrastando-o contra sua vontade. Em uma última explosão de trevas, a esfera
desfez-se em imensas camadas de fumaça escura e sufocante. As mãos
desapareceram, as cortinas retornaram ao descanso natural. Jeremy tentava
recuperar o fôlego enquanto o quarto mais uma vez tornava-se claro e livre da
névoa negra.
O último Ridell sentiu-se então diferente – uma sensação de leveza que
já não se lembrava de ter sentido alguma vez em sua vida. O interior de seu
peito não era mais pesado como antes. Algo havia saído daquele corpo.
Jeremy então sentiu-se só – tão só como nunca antes. Poucos minutos
foram necessários até que ele compreendesse o que havia acontecido ali. E
logo ele sentiu dor, sentiu frio e fome. Sentiu-se homem humano. Precisou
deitar-se ao lado de sua esposa, abraçando-a como se nunca a tivesse tido em
seus braços. O corpo sem vida de Albertine foi encaixado ao dele, e a dor, o
arrependimento e o medo tomaram conta de seu ser. Um grito de tristeza
ecoou pela gigantesca casa, atravessando as janelas e paredes, seguindo pela
floresta e esvaindo-se por completo acima das escuras nuvens que, agora,
impediam a luz da lua de iluminar aquele pequeno pedaço de terra. A
mansão, assim como seu último ocupante, estava então condenada à eterna e
inescapável escuridão.
Capítulo XXVI

A D E U S, A L B E R T I N E

O corpo de Albertine fora repousado sobre uma grande mesa forrada


por um longo lençol branco, que cobriu até as pernas do antigo móvel. Ao
seu redor Jeremy montou uma discreta corrente de flores amarelas, flores que
estranhamente brotaram naquela manhã como se já conhecedores de seu triste
destino. As mãos de Albertine estavam unidas, os dedos entrelaçados em
posição de morte. Imóvel, como em um sono profundo, parecia ainda mais
bela.
Jeremy velou a esposa com todo o pesar que um só homem seria capaz
de sentir. A seu lado, Ringo compartilhava do momento fúnebre em silêncio,
de orelhas baixas, os pequenos olhos negros sem o brilho costumeiro. A
manhã correu lentamente, assim como a tarde e a noite, e o jovem Ridell
permaneceu lá, observando pelos últimos momentos aquela tão rara beleza.
Albertine se fora, mas ele se recusava a aceitar. Não conseguiu entender o
que realmente arrancou sua vida, embora isto não importasse realmente. Ele
jamais ouviria novamente sua doce voz, jamais receberia mais uma vez seu
toque suave, seu beijo e seu abraço. E na escuridão da madrugada, Jeremy
não dormiu. Nem mesmo levantou-se de seu assento – nada mais importava,
nem o frio ou a fome. Queria apenas olhar para ela, para a face inerte e para
os lábios gelados depois de receberem o beijo da morte.
Foi apenas ao raiar do dia que o próximo passo da cerimônia fúnebre
começara a se realizar. Jeremy saiu pela porta da frente segurando uma
grande chave – a chave do mausoléu de sua mãe. Mais uma vez o abriu,
empurrando a tampa de pedra que selava o sepulcro. O esqueleto de Dianne
surgiu frente aos olhos dele, trazendo-lhe uma leve náusea. Não sentiu asco
pela visão horrenda, mas sim por saber que em algum tempo Albertine nada
mais seria do que um amontoado de ossos como aquele à sua frente. Havia
levado consigo uma urna de tamanho médio que arranjara no sótão, e nela
depositou o que restava do corpo de Dianne Ridell. A urna foi selada com um
cadeado e depositada ao lado do túmulo de pedra – túmulo este agora pronto
para receber sua nova ocupante para todo o sempre.
Minutos depois, após retornar à mansão, Jeremy trazia sua esposa nos
braços. A seu lado, Ringo acompanhava como em um cortejo final. O vestido
caía sobre o corpo morto, e em suas mãos unidas uma flor já murcha havia
sido descansada. O corpo então foi entregue ao cubículo de pedra fria,
forrado por dentro por longas faixas de tecido vermelho, provocando um belo
e mórbido contraste entre a pele branca de Albertine e o forro escarlate.
Jeremy tentou orar pela alma de Albertine, mas apenas conseguiu pedir
pela própria. Estava ajoelhado frente à tumba, sem saber exatamente o que
fazer. Pediu perdão e misericórdia, orou para uma força celestial que jamais
havia antes procurado, embora soubesse que não seria digno deste perdão. O
mal que causara a várias vidas jamais poderia ser esquecido pelo criador.
Logo tornou a pôr-se de pé, fitando a esposa falecida por mais alguns
instantes. Deu-lhe então um beijo na testa, e sem prolongar o terrível
sofrimento, empurrou a tampa do sepulcro até que nenhum milímetro de seu
interior ficasse visível. Virou-se na direção da porta, sem olhar para trás, e
saiu.
— Adeus, Albertine – sussurrou para si mesmo.
E assim seguiu de volta ao lar, ansiando chorar e aliviar o peso de sua
tristeza, mas as lágrimas não surgiram. A porta foi fechada, e de alguma
forma, Jeremy sabia que para ele jamais seria aberta outra vez.
Capítulo XXVII

UM FRASCO VAZIO

Às cinco horas da tarde, de ombros cobertos pelo único xale que lhe
restara, Rosa caminhava por uma avenida agitada, repleta de pessoas
apressadas e exageradamente agasalhadas. Para a senhora ex governanta, o
inverno na cidade não era tão frio e triste quanto na mansão. Ela carregava
uma cesta transbordando de vegetais, carnes e pães; havia prometido a Jullian
um ensopado para aquecer seus estômagos na hora do jantar.
Chegando mais uma vez à igreja, tomando cuidado para não deslizar
sob a pedra congelada na calçada acima dos degraus, abriu um pequeno
espaço entre as duas portas e entrou no templo. Estava vazio, dado o fato de
não estarem em um dia de missa, e mesmo se não fosse este o caso, a
cerimônia não se realizaria. Desde o acontecimento na floresta, desde a
terrível noite em que o destino de Albertine tornou-se desconhecido para
aqueles que se importavam com ela, Jullian não agia de forma normal, assim
como a própria Rosa. Procuravam não falar sobre ela, mas seus pensamentos
mantinham-se em frequente linha de sinais que se transmitiam quase em
telepatia. O que teria acontecido após aquela noite era o que os dois, no fundo
de suas almas, mais desejavam descobrir.
Jullian havia dado abrigo e conforto a Rosa, assim como faria com
Albertine. Estava alojada em um dos muitos quartos vazios que se escondiam
nos corredores da imensa construção que complementava a igreja. Embora
fosse uma mulher de fácil adaptação a mudanças, sua vida não parecia mais a
mesma; tudo havia tomado uma direção indefinida, e Rosa tentava
bravamente se fazer convencer de que talvez fosse viver para sempre ali, sob
aquele teto sagrado. Não tinha outro lugar para ir, mesmo que quisesse.
Ao passar frente ao quarto de Jullian viu que a porta estava entreaberta,
e pela fresta pôde vê-lo mergulhado em mais uma de suas longas leituras.
Preferiu não incomodá-lo, seguindo direto à cozinha para dar início ao
preparo do jantar. Retirou os ingredientes da cesta, e um por um selecionou
os que utilizaria em seu famoso e apreciado ensopado. Enquanto cortava um
par de generosas batatas com uma faca afiada, percebeu o quanto era estranho
preparar um jantar sem Judith e Martha por perto. Rosa então chorou, chorou
o quanto conseguiu chorar. Chorou pelos amigos deixados para trás, chorou
por Jeremy, e principalmente por Albertine.
Poucos minutos depois os ingredientes já estavam mergulhados em
água, prontos para a fervura no fogo à lenha, e enquanto o saboroso prato não
ficava pronto, ela recostou-se a uma cadeira em um dos cantos da cozinha e
se deixou chorar um pouco mais.
Despertando de um ligeiro cochilo, Rosa levantou-se com um pulo,
indo rapidamente até o caldeirão que borbulhava ao fogo. O ensopado estava
cozido à medida certa, aliviando a preocupação da senhora de ter estragado o
jantar por ter-se entregado ao sono. Preparou a mesa apenas para dois, e logo
estava batendo à porta do Padre.
— Jullian?
— Sim?
— O jantar já está pronto. Venha antes que esfrie!
Ela esperou que ele concluísse a página que lia, parada ao lado da
entrada do quarto bem iluminado. Jullian marcou a página com uma fita
vermelha, fechou o livro e saiu, acompanhando Rosa, lado a lado até a
cozinha. Sentaram-se frente a frente assim que alcançaram a mesa, dando
início ao tilintar de talheres enquanto saboreavam o jantar.
Após o prato final – pães integrais e creme de queijo quente – Jullian
agradeceu e levantou-se. Perguntou a Rosa se precisava de alguma ajuda para
organizar a cozinha, mas a ajuda foi logo rejeitada, e tão rápido ele voltara a
seu quarto, Rosa já enxaguava o caldeirão e os pratos em água limpa, que
corria fortemente pela torneira enferrujada. Após guardar o último talher em
sua gaveta no velho armário no canto da cozinha, a senhora apagou as luzes
daquele cômodo e também partiu a seus aposentos para descansar.
O quarto de Rosa ficava em uma das laterais da igreja, e uma de suas
paredes era a mesma que se estendia do lado de fora. Nela havia duas grandes
janelas sem cortinas, tornando o ambiente um tanto mais claro do que sua
nova ocupante estava acostumada. Dormir naquele quarto após as seis da
manhã era algo quase impossível, não apenas pelo excesso de iluminação,
mas também pelo movimento externo que se iniciava logo ao nascer do sol.
Durante a noite ouviam-se passantes ocasionais ou carruagens vagando pela
madrugada, o que já era suficiente para atrapalhar o sono daquela mulher
habituada ao mais impenetrável silêncio. Mas naquela noite algo estava
diferente. Estava silenciosa demais.
Já se passara metade da madrugada quando Rosa despertou. Ouvira
ruídos longínquos, que graças à acústica do quarto, podiam ser ouvidos com
perfeição. Pareciam cascos de um cavalo em velocidade média chocando-se
às pedras da estrada. Um cavalo sem carruagem. O caminho que traçava
parecia incerto: ora o som se afastava, ora ressurgia bem próximo à igreja.
Em certo momento, cavalgava em círculos pela praça, que ficava bem à
frente das janelas do quarto de Rosa. Ia e voltava, indeciso, causando um
enorme barulho que provavelmente não acordaria apenas a senhora de sono
leve, mas também boa parte dos moradores daquela área.
— Mas o que é isso? – ela disse a si mesma, levantando-se até que
pudesse alcançar a altura da vidraça.
Esgueirando-se para observar pelo vidro empoeirado, olhou de um lado
a outro até onde a vista alcançava, mas o cavalo desordeiro não estava
naquele campo de visão. O cavalgar desordenado prosseguia cada vez mais
próximo, até que subitamente cessou. O animal de certo estava agora parado
frente à escadaria da igreja. Rosa esperou, mas ele não se moveu novamente.
“Talvez tenha escapado de algum estábulo próximo”, ela pensou, em seguida
tornando a deitar-se na cama macia. Devido ao cansaço não demorou a
novamente adormecer.
Um curto espaço de tempo passou-se até que Rosa fosse mais uma vez
acordada por ruídos, mas desta vez não de um animal perdido na cidade.
Acordou-se ao som de batidas na porta do quarto, seguido da voz de Jullian
pronunciando seu nome com pressa e ansiedade. Levantou-se quão rápido
conseguira, envolveu-se no xale e imediatamente abriu a porta. Jullian estava
parado exatamente lá, transbordando uma expressão de excitação que Rosa
nunca havia antes presenciado.
— O que aconteceu? – ela perguntou ligeiramente assustada.
— Venha, venha comigo! – ele respondeu em tom de êxtase.
Seguiu pelo corredor com Rosa em seu encalço, os passos em ritmo de
maratona, quase deixando a senhora para trás.
— Vamos, rápido!
Passaram pelo grande salão principal da igreja, triste e assustador
quando visto através da escuridão, e logo chegaram à gigantesca porta da
frente. Jullian destrancou-a usando uma bela e majestosa chave, empurrando-
a logo após o clique que denunciava o destrancamento da fechadura. Uma
forte corrente de vento penetrou no templo, fazendo Rosa sentir um
desagradável calafrio. Ele atravessou pela abertura, permitindo que Rosa
também o fizesse.
O olhar do Padre e da governanta então focaram-se a um mesmo ponto:
o início da escadaria que dava acesso à igreja. Estendida ao pé da escada
havia uma pessoa, parcialmente enterrada na neve.
— Santo Deus! – exclamaram simultaneamente, já descendo degrau por
degrau sem se preocuparem com mais nada.
Era uma mulher que estava lá embaixo. Uma mulher de cabelos louros
e pele muito branca.
— Albertine! – Rosa disse, indecisa entre a surpresa e o pânico.
— Rosa, ajude-me a levantá-la!
Albertine estava caída de bruços, o rosto enterrado na neve, os braços
torcidos – imóveis e gelados. Os dois senhores ergueram-na em um só
movimento, e Jullian sustentou-a entre os braços para que Rosa pudesse
remover o gelo do rosto da jovem. Olhando ao redor, não viram o cavalo que
os acordara, o mesmo cavalo que obviamente havia trazido Albertine até ali.
— Vamos levá-la para dentro, rápido! Está congelando!
Com dificuldade, carregaram a jovem escadaria acima, atravessando o
salão da igreja e levando-a até o quarto de Rosa. Deitaram-na à cama,
envolvendo-a com todos os lençóis que conseguiram encontrar.
— Ela não está respirando – disse Jullian.
— Ela está viva? Jullian, me diga que ela está viva!
— Estou sentindo uma pulsação muito fraca, quase imperceptível. Ela
está viva.
Rosa abraçou-se a Albertine como nunca fizera antes. Sua vida de
repente retomou um rumo que havia sido perdido alguns dias atrás, graças
àquele abraço que embora não retribuído, significava muito mais do que
Jullian, o único que o assistia, conseguisse imaginar. Albertine estava mais
uma vez em seus braços, aos seus cuidados. Rosa não havia ainda percebido,
mas a esposa de Jeremy tornara-se inevitavelmente mais importante para ela
do que ele próprio. De repente ele já não fazia mais parte das lembranças
daquela mulher que o criou desde seu nascimento.
— Fique aqui, vou buscar algo para dar a ela – o Padre disse, já saindo
do quarto.
Menos de um minuto se passou e ele já estava de volta, trazendo um
frasco contendo um líquido avermelhado em seu interior. A rolha que
protegia o líquido foi removida, e o frasco levado ao alcance dos lábios
enrijecidos de Albertine. Rosa sustentava seu maxilar enquanto a poção
descia pela garganta da jovem desacordada, escorrendo também em poucas
gotas pelo canto da boca entreaberta. Em poucos segundos o frasco estava
vazio, e os anfitriões já transbordando de esperanças. Juntos a posicionaram
confortavelmente, descansando sua cabeça no travesseiro. Ela, porém, não
demonstrava qualquer reação.
— Agora só nos resta esperar. Dei a ela uma poção revigorante,
geralmente age em cinco ou seis minutos.
— E se não funcionar?
— Se não funcionar, nada mais poderei fazer.
Os dois então sentaram-se e esperaram. Segundos que logo se
estenderam em minutos. Um, dois, três. Os minutos mais longos e dolorosos
que Rosa já vivera. Quatro, cinco, e o medo do imprevisível congelou o ar do
quarto. Ao início do sexto minuto Albertine ainda não reagira. As palavras de
Jullian retornaram à cabeça da ex governanta: mais nada poderia fazer. A
senhora levantou-se, tomada pela aflição, e caminhou ao redor do quarto com
as mãos unidas, e o Padre apenas observava com sua já conhecida
tranquilidade. Rosa se perguntou como ele conseguia ser tão frio e sem
emoções.
— Ela não está reagindo – disse sem olhar nos olhos dele.
— Vou verificar mais uma vez.
Novamente aproximando-se da jovem desfalecida, segurou seu pulso
pressionando-o entre o indicador e o polegar. Em seguida tentou ouvir seu
coração. Os sinais vitais ainda corriam quase imperceptíveis, como se prestes
a findar-se a qualquer instante. Jullian levantou-se, encarou Rosa, dando-lhe
um sinal de desesperança. Ela retribuiu em silêncio, continuando sua
caminhada em círculos pelo cômodo à meia luz. Jullian decidiu, por fim, sair
de lá e deixar as duas mulheres sozinhas; embora fosse um homem quase
impenetrável por emoções, sentia-se abatido e levemente perturbado por tão
triste cena. Parou próximo à porta, costas dadas a Rosa e Albertine, e
suspirou.
— Jullian, veja! – Rosa então exclamou, fazendo-o virar-se
imediatamente.
Deslizando os olhos ágeis, ele logo notou que os dedos de Albertine
moviam-se em ação mecânica. Lentos e fracos, porém vivos.
— Ela vai ficar bem! Ela vai ficar bem!
— Parece que sim... – ele respondeu imediatamente, não precisando
forçar entusiasmo.
Os dedos magros continuaram a mover-se, e logo a respiração veio
como a de um bebê que sai das entranhas da mãe. O peito ia e vinha
vagarosamente, e os olhos então começaram a se abrir.
— Não toque nela! – disse Jullian a fim de interromper Rosa, que já se
aproximava mais uma vez de Albertine. –Espere até que recobre a
consciência.
Minuto após minuto Albertine voltava a si; ainda esboçava movimentos
indecisos, como os de uma pessoa que estivera imóvel ou acamada por um
longo tempo. Suas pupilas observavam cada canto do quarto, estudando ou
talvez apenas tentando reconhecer o local onde acordara, e não levou muito
tempo até reconhecer as paredes daquela construção que tanto frequentara no
passado.
— R-Rosa...
A senhora, ao ouvir seu nome em um sussurro delicado, mais uma vez
avançou até onde estava a jovem, mas desta vez não foi interrompida. Jullian
também levantou-se e seguiu os passos de Rosa, parando ao lado dela, ambos
em frente à cama. Albertine fitou-os, com os olhos entreabertos, e sorriu. Um
sorriso sincero repleto de felicidade.
— Você está bem? O que aconteceu com você? – Rosa perguntou com
entusiasmo. – Como conseguiu deixar a mansão?
Eram muitas perguntas, que Albertine não conseguiria responder
enquanto não recuperasse toda a força. Além disto, não sabia exatamente as
respostas com exatidão – precisaria ainda pensar e entender o que realmente
havia acontecido. Uma de suas mãos se moveu lentamente, e os dois senhores
acompanharam seu movimento, que seguiu até um dos bolsos do vestido. De
dentro dele, envolvido entre os dedos, saiu um pequeno frasco de vidro,
completamente vazio.
— O que isso quer dizer? – Rosa questionou assim que Albertine
entregou o frasco em suas mãos.
— Algumas gotas e... – ela sussurrou com dificuldade.
— O corpo entrará em estado vegetativo por dias – Jullian disse,
completando a frase de Albertine.
Jullian sentiu algo aflorar dentro de seu peito, e pela primeira vez, em
toda sua vida, Albertine viu o velho Padre exprimir uma feição de extrema
alegria sem parecer contida. Ele sorrira de orgulho por ter preparado uma
pupila de tão afiada inteligência, que por muito pouco não poderia alinhar-se
à dele próprio.
— Então quer dizer que...
— Sim, Rosa. Albertine forjou sua morte e fugiu.
— E com isso, como escrito no Necronomicon, o contrato foi desfeito?
— Absolutamente. Apenas a morte, ou libertação por vontade própria,
poderiam findar o contrato com o Agathodaemon.
— Mas ela não morreu. Está aqui!
— Jeremy não sabe disso.
— Santo Deus! Mas como? Como conseguiu fugir?
— Jeremy... ele me sepultou ...no mausoléu...
— Mas como saiu de lá? Como conseguiu abrir aquela porta imensa? E
ainda, como chegou até aqui?
— Tive... ajuda...
— Ajuda? Os outros empregados a ajudaram? E como eles estão?
Rosa parecia descontrolada e mergulhada em perguntas, mas a esta
última Albertine não respondeu. Preferiu apenas fechar os olhos e descansar.
Poderia deixar as respostas para depois – especialmente aquela sobre os
amigos que jamais tornariam a ver.
— Venha, vamos deixá-la descansar até de manhã. Teremos muito
tempo para conversar – disse o Padre, puxando levemente Rosa pelo braço.
— Boa noite, querida – ela disse com ternura.
Deixaram-na sozinha com seus próprios pensamentos, esperando que
descansasse e recuperasse as energias, mas Albertine sabia que não
conseguiria dormir, não só naquela noite, mas também por muitas e muitas
outras. Dezenas, talvez centenas delas. Imagens passavam por sua mente a
cada piscar de olhos – imagens do passado e do que seria seu futuro a partir
de agora. Pensou em cada uma das perguntas de Rosa, e apegou-se à mais
difícil de todas elas. Quem afinal a ajudara a escapar, a mover a espessa
tampa de pedra que selava o túmulo? Quem abrira a porta do mausoléu, os
portões da mansão, e a colocara em um dos cavalos, ainda um pouco perdida
nos efeitos da poção que encontrara no compartimento abaixo do piso da
biblioteca?
Albertine já tinha todas estas respostas. Fechou novamente os olhos
cansados, e sorriu em agradecimento, lembrando-se perfeitamente do aroma
doce que sentira ao acordar no interior do túmulo escuro e frio. Sentira o
perfume de violetas, que a seguiu até os portões da mansão, dissipando-se no
ar poucos centímetros após de tê-los atravessado, rumo à sua nova e merecida
liberdade.
Epílogo

DESCOMEÇO

Alguns invernos haviam se passado quando uma carruagem


atravessava a longa estrada que se estreitava por entre a floresta. O cocheiro
sabia que por anos ninguém passara ali – não haviam marcas de rodas ou de
cascos de cavalos durante todo o decorrer do trajeto. A estrada de terra se
mostrava parcialmente encoberta pelos arbustos primaveris que
transbordavam seus ramos sobre ela; os dois cavalos cavalgavam
confortavelmente, sem pressa. Dentro da carruagem, apenas duas mulheres
viajavam em silêncio, e assim permaneceram até que o veículo parou, e o
cocheiro, com sua voz grave e intensa, disse que já haviam chegado a seu
destino. Elas então desceram em frente a um gigantesco portão enferrujado,
coberto de heras e trepadeiras que cresceram ano após ano.
— Vamos? – perguntou Rosa.
— Sim. Vamos. – respondeu Albertine, em tom decidido, porém
assustado.
Nos portões não haviam correntes ou cadeados – estava apenas fechado
pela camada de plantas que foi facilmente removida a um leve empurrão.
Estavam então mais uma vez na área externa da mansão.
A grama chegava à altura dos tornozelos, e o caminho de pedra não
aparecia por baixo dela. Caminharam juntas, desviando dos inúmeros galhos
espalhados por toda a extensão do que um dia fora um jardim. Ao lado da
mansão viram, de longe, o coreto de madeira construído pouco antes de
deixaram aquele lugar; assim como os portões ele estava envolto por plantas
daninhas, que aplicavam a ele uma aparência de completo abandono. A fonte,
em frente à grande casa, estava vazia e suja por uma camada verde e
asquerosa, exatamente como da primeira vez em que Albertine a vira. De
fato, tudo estava como Albertine vira quando visitou pela primeira vez o que
seria seu novo lar: uma velha mansão abandonada e entregue ao tempo e o
que ele poderia lhe causar. Algo que desta vez tornava tudo diferente era, sem
dúvidas, o medo de encontrá-la realmente abandonada.
— Onde estão? – Rosa perguntou, procurando algo pela extensão do
terreno.
— Estão ali – respondeu Albertine, apontando para a lateral direta da
mansão.
Rosa dirigiu o olhar até lá e conseguiu ver, destacando-se por entre a
grama muito verde, cinco montes de terra, lado a lado. Quatro deles tinham o
comprimento do corpo de um ser humano adulto, enquanto o último
mostrava-se bem menor, como se cavado para o último lugar de descanso de
uma criança ou de um animal.
— Acredito que nosso amigo canino também esteja naquele local, agora
– Albertine concluiu, com tristeza.
Rosa suspirou, afagou o ombro esquerdo de Albertine e caminhou
lentamente até alcançar os túmulos dos antigos amigos e colegas de trabalho.
Iria, enfim, poder rezar diante deles.
— Tome o tempo que precisar. Estarei aqui.
Albertine assentiu com um movimento de cabeça e logo assim as duas
seguiram por diferentes caminhos. O trajeto da jovem pareceu estranhamente
mais longo, e ela agradeceu por isso em seu interior – quanto mais tempo
levasse para chegar até lá, mais tempo levaria para saber como sua história
naquele lugar realmente acabaria.
Estava então diante da porta principal da mansão. Estava empoeirada e
repleta de teias de aranha, o que por si só já demonstrava que aquela entrada,
há muito, não era mais usada. O selo natural fora violado quando Albertine
girou a maçaneta e abriu a porta de madeira. A luz penetrou na já conhecida
sala, e a jovem não hesitou em entrar; parou logo após a entrada e apenas
observou tudo que a circundava. Tudo no interior da mansão era caos.
Nenhum dos móveis da sala estava de pé – eram apenas destroços, pedaços
de madeira e vidro. As cortinas mostravam-se apenas em trapos, os sofás
rasgados e perfurados. As almofadas, que um dia serviram de cama ao
cachorro de estimação da casa, encontravam-se fora de seu lugar, perfuradas
e violentamente rasgadas. Até mesmo os quadros da parede preenchiam o
piso, muitos deles destruídos e fora de suas molduras. Não parecia, no
entanto, um ambiente destruído pelo tempo. Tudo ali fora causado por mãos
humanas e aparentemente furiosas.
Ela então seguiu até as escadas, decidida a agora visitar o andar de
cima. Os degraus rangeram exatamente como antes, e sobre eles ficaram as
marcas das pegadas de Albertine. No início do corredor encontrou todas as
portas fechadas. Seguiu por ele, até alcançar a vidraça na extremidade, e de lá
pôs-se a examinar cada um dos cômodos. Passou pelos quartos que um dia
foram dos empregados, assim como pelo de Rosa. Estavam tão destruídos
quanto os cômodos do andar de baixo. Em seguida chegou à biblioteca: não
havia sequer uma prateleira de pé, os livros envelheciam em montes
desordenados, muitos deles rasgados e partidos ao meio.
Deixando a biblioteca, decidiu ir ao recinto que mais gostaria de evitar.
Parou frente à porta, a mão parada à maçaneta, reunindo forças para abri-la.
Adentrou então no quarto que fora seu e de Jeremy, e algo a surpreendeu.
Fugindo do padrão de todos os outros cômodos, aquele encontrava-se intacto,
exatamente igual à ultima vez que ela estivera lá. A cama desforrada parecia
usada há poucas horas, os móveis, vidraças e lamparinas se exibiam livres de
qualquer poeira. A poltrona que Jeremy mais gostava, entretanto, não estava
no quarto. O canto onde costumava ficar estava vazio. Albertine sentou-se à
beira da cama, sentindo a maciez do colchão onde ela e Jeremy por muitas
vezes se amaram. O que teria acontecido a ele, afinal? Como pudera
simplesmente desaparecer sem deixar qualquer rastro?
De repente Albertine lembrou do rosto dele, mas não do som de sua
voz. Apesar de tantos momentos conhecidos, achou estranho tudo o houve
entre os dois. Da cama ela viu o próprio reflexo no espelho, e tudo que
conseguiu ver foram as marcas e lembranças de tê-lo deixado a sentir tão
forte quanto nem ela própria poderia sentir. Perdeu-se em um descomeço que
jamais iria se desfazer, em uma história que jamais seria realmente finalizada.
A porta do quarto foi fechada, e Albertine percebeu que não havia mais
nada a fazer naquela casa. Tomou o caminho de volta, mas assim que seus
pés tocaram o primeiro degrau da descida, ela se lembrou que havia
esquecido-se de visitar um dos cômodos do andar de cima. Imediatamente
retornou, indo desta vez até a galeria. Não criou delongas e logo entrou lá,
decidida a não se demorar. Ao entrar, percebeu que a poltrona do quarto
estava ali, na galeria, posicionada ao lado de uma das estátuas de mármore
que descansavam em silêncio. Assim como o quarto do casal, aquela parte da
casa estava intacta e organizada. A poltrona, virada para uma das paredes
tomada por quadros dos já falecidos Ridell, parecia estar lá por alguma razão.
Albertine aproximou-se do móvel e procurou por algo, pausando os olhos por
alguns segundos em cada uma das pinturas emolduradas. Viu homens velhos,
viu mulheres, crianças – todos exibindo alguma mínima similaridade com
Jeremy. Próxima ao fim da fileira de quadros havia duas molduras que se
destacavam das demais: tinham as bordas douradas e indiscretas, como se
feitas para sobrepor-se a todas as outras. Em uma delas havia a imagem de
uma mulher muito bela, de pele branca e cabelos negros. Os cabelos
passavam por trás das orelhas, permitindo que um pequeno brinco adornasse
ainda mais sua aparência. Em suas mãos havia um buquê. Um buquê de
violetas.
Ao lado do quadro desta mulher, Albertine viu o de um homem também
muito branco e pálido. Tinha cabelos também negros, assim como os olhos
que a fitavam através da tela.
Arrepiou-se, acometida por uma sensação de horror ao constatar que
estava diante das faces de Dianne e Jeremy Ridell, pintadas à mão por um
artista que ela jamais chegaria a conhecer.
Muito pouco Albertine levou para deixar o interior da mansão.
Atravessou o corredor e desceu as escadas com pressa – talvez tomada pelo
medo – e logo sentiu-se um pouco mais segura após alcançar o jardim. O
calor do sol fez com que se sentisse viva, tomada por luz, e não mais pela
aura obscura e vazia que exlavadas paredes da mansão.
— Rosa? – disse ela ao notar que sua amiga ainda rezava pelas almas
dos falecidos empregados que por tanto tempo a acompanharam.
— Já estou indo!
Meio minuto depois, mais uma vez estavam lado a lado, prontas para
partir.
— Encontrou algo? – Rosa perguntou, quebrando o silêncio do lugar.
— Não. Ele não estava lá – Albertine respondeu sem olhá-la nos olhos.
- Imagino onde possa estar agora.
— Jeremy provavelmente está pagando por tudo que fez.
— Acredita mesmo nisso?
Rosa pareceu receosa em responder imediatamente, distraindo-se por
alguns instantes enquanto procurava as respostas dentro de sua cabeça.
— Essa é uma pergunta que eu jamais serei capaz de responder.
Observaram a majestosa mansão sob a luz do sol, e quase puderam vê-
la como era alguns anos atrás, repleta de vida e cor. Reimaginaram o jardim
podado, a fonte reluzindo em água limpa, as janelas sendo limpas por uma
das criadas. Quase puderam ouvir o som dos utensílios tilintando na cozinha,
enquanto Ringo perseguia borboletas ao redor da grande construção. Aqueles
tempos, agora, só existiam na memória das duas fortes mulheres.
Enquanto atravessavam pela grama alta, Albertine olhou para trás ao
sentir-se atraída por uma estranha sensação. Sentiu uma presença, algum tipo
de chamado que fez com que mirasse na direção de uma das janelas do andar
de cima. Ela não tinha certeza, mas pensou ter visto, de relance, a imagem de
um belo homem surgindo e desaparecendo num piscar de olhos na pequena
vidraça redonda do sótão.
— Venha, vamos embora.
As duas mulheres, assim, mais uma vez cruzaram os limites da
propriedade dos Ridell, e juntas fecharam os gigantescos portões de ferro.
Elas mesmas condenaram, então, a mansão a um longo - porém não eterno -
descanso.
Conheça também os outros volumes da série:

MINUETO DA MADRUGADA

No segundo volume da série ‘As Crônicas Ridell’ você será levado para vinte
anos antes de ‘Albertine’, e conhecerá uma jovem Rosa que, após mudar-se
da Alemanha para a Inglaterra, é contratada para trabalhar como governanta
na mansão Ridell. Lá ela conhece Dianne, e também os mistérios e horrores
que envolvem aquela obscura família.

ELEGIA

Depois de conhecer o passado, chega a hora de conhecer o futuro. A junção


dos fatos ocorridos em ‘Albertine’ e em ‘Minueto da Madrugada’ criam
‘Elegia’, que se passa exatamente oito anos depois da fuga de Albertine da
mansão Ridell. Quais foram as consequências de uma fuga baseada em
enganar a morte – e também a um perigoso demônio?
Table of Contents
que partiu antes que pudesse
Morada tão branca e vazia,
Capítulo I
Capítulo II
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Capítulo VII
Capítulo VIII
Capítulo IX
Capítulo X
Capítulo XI
Capítulo XII
Capítulo XIII
Capítulo XIV
Capítulo XV
Capítulo XVI
O segundo capítulo era nomeado Mammom. Palavra simples e não muito
expressiva, porém, inexistente no vocabulário de sua atual leitora.
Seguindo-se logo abaixo deste título, escrito em letras altas, havia uma
peculiar ilustração de contornos grossos. Era um tipo de criatura
humanoide, com corpo de homem e cabeça de cão, exibindo uma coroa de
pontas afiadas, detalhada com o que pareciam ser pedras preciosas. De suas
orelhas pontudas pendiam grandes argolas. Tinha os braços erguidos, com
gigantescas mãos abertas, derramando por entre os dedos várias moedas e
joias. O corpo másculo encontrava-se enterrado em uma pilha de riquezas –
coroas, taças, castiçais, diamantes, e principalmente centenas de outras
moedas, tais como as que exibia em suas mãos. Em seus olhos nada havia
além da cavidade ocular, ilustrada como uma simples forma preenchida de
negro. Imediatamente abaixo à ilustração seguia-se um longo texto de
letras pequenas, que preenchia o resto da página e mais uma seguinte. A
folha seguinte, para o espanto de Albertine, não exibia a continuação do
texto, mas sim assinaturas, dezenas delas, preenchidas em posições
aleatórias, algumas sobrepondo-se a outras pela ausência de espaço. Após
esta página surgiu mais um capítulo de nome excêntrico: Vanth. Como o
anterior, este capítulo continha uma macabra ilustração – uma mulher
coberta por um manto, com grandes asas abrindo-se às costas. Em um de
seus braços estava envolvida uma serpente; em sua mão esquerda
sustentava uma grande chave, e com a direita erguia uma tocha, acima de
sua cabeça. Assimilando-se à figura anterior, não mostrava olhos, apenas
os pontos onde deveriam estar, preenchidos de negro. Mais uma vez,
prosseguia-se um longo texto em latim, e após ele, mais uma folha tomada
por assinaturas.
Capítulo XVII
Capítulo XVIII
Capítulo XIX
Capítulo XX
Capítulo XXI
Capítulo XXII
Capítulo XXIII
Capítulo XXIV
Capítulo XXV
Capítulo XXVI
Capítulo XXVII

Você também pode gostar