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O nosso casamento teve lugar num prado na margem do rio Russo, duas horas
de carro a norte de São Francisco. Meses antes, tínhamos ido lá para o
ver. Passámos por ele um par de vezes, porque não havia sinalização na
estrada. Quando abrimos o portão e descemos pelo caminho em direção ao
rio, a Alice abraçou-me e disse:
– Adoro.
Ao início, julguei que estivesse a brincar. Havia sítios onde a erva chegava
ao metro e meio de altura.
A propriedade era uma quinta enorme e espraiada, com vacas a vaguear
pelo prado. Pertencia à guitarrista rítmica da primeira banda da Alice. Sim,
ela fez parte de uma banda e até é possível que já tenha ouvido a música deles,
mas podemos falar disso mais tarde.
Na véspera do casamento, voltei a passar pelo lugar sem dar por ele. Dessa
vez, porém, foi porque estava completamente diferente. A guitarrista, a Jane,
tinha passado semanas a cortar, moldar e arrelvar o prado. Estava incrível.
Parecia um pedaço do campo de golfe mais perfeito do mundo. A relva subia
pela colina e descia em direção ao rio. A Jane disse que ela e a mulher tinham
andado à procura de um projeto.
Havia uma tenda grande, um pátio, uma piscina e uma moderna casa de
piscina. Um palanque erguia-se sobre a margem do rio e havia um miradouro
num monte com vista para tudo aquilo. As vacas, pachorrentas e meditativas,
continuavam a deambular.
Arranjaram-se cadeiras, mesas, equipamento, colunas e chapéus de chuva.
Apesar de não ser exatamente adepta de casamentos, a Alice adorava festas.
Nunca tínhamos organizado uma desde que estávamos juntos, mas eu já tinha
ouvido histórias. Grandes bailaricos em salões, em praias, nos apartamentos
em que morara; ao que parecia, era um talento que ela possuía. Por isso,
quando chegou a altura de tratar dos preparativos, afastei-me e deixei-a à
vontade. Meses de planeamento, tudo perfeito, tudo na altura certa.
Duzentos convidados. Deviam ser cem meus, cem dela, mas no final a coisa
acabou um pouco desequilibrada. Era uma lista curiosa, como a de qualquer
casamento. Os meus pais e a minha avó, sócios do escritório da minha mulher,
colegas da clínica em que tinha trabalhado, antigos clientes, amigos da
faculdade e do pós-doutoramento, velhos amigos músicos da Alice, uma
combinação estranha de outras pessoas.
E Liam Finnegan e a mulher dele.
Foram os últimos a ser convidados, os números 201 e 202 da lista. A Alice
conhecera-o três dias antes do casamento, no escritório de advogados onde
tinha passado o ano anterior a trabalhar dia e noite. Eu sei, é estranhíssimo, a
minha mulher é advogada. Se a conhecesse, isso também o surpreenderia. E
também podemos falar disso, mas depois. Agora, o que importa é o Finnegan –
o Finnegan e a mulher, Liam e Fiona, convidados números 201 e 202.
No escritório de advogados, a minha mulher tinha sido a associada júnior a
trabalhar no caso do Finnegan. Era uma questão de propriedade intelectual. O
Finnegan tornara-se homem de negócios. Anos antes, porém, fora o vocalista
bastante conhecido de um grupo irlandês de folk rock. Provavelmente nunca
terá ouvido a sua música, mas talvez tenha visto o nome dele. Tem aparecido
em todas as revistas britânicas de música – Q, Uncut, Mojo. Dúzias de
músicos apontam-no como uma influência fundamental.
Durante dias depois de o caso ter sido atribuído à Alice, tivemos os discos
do Finnegan a passar lá em casa. O caso era tão simples como pode ser um
processo de propriedade intelectual. Uma banda nova tinha roubado parte de
uma das canções do grupo, transformando-a num sucesso tremendo. Alguém
como eu, que não compreenda música a um nível técnico, não verá as
semelhanças; mas, para um músico, segundo dizia a minha mulher, o roubo era
óbvio.
O processo resultou de um comentário que Finnegan fizera anos antes. Tinha
dito a um entrevistador que o sucesso da tal banda tinha suspeitas parecenças
com uma música do seu segundo álbum. Não tencionava levar a coisa mais
além, mas depois o manager da banda nova tinha-lhe enviado uma carta a
exigir uma retratação do comentário e uma declaração pública em como a
canção não fora plagiada. As coisas tinham evoluído a partir daí, acabando
com a minha mulher a trabalhar um milhão de horas no seu primeiro grande
caso.
Como referi, ela era a associada júnior, pelo que, quando o julgamento
terminou a favor de Finnegan, os sócios chamaram a si os louros. Um mês
depois, na semana antes do nosso casamento, o Finnegan fez uma visita à
firma. Tinha-lhe sido concedida uma quantidade absurda de dinheiro, bem
mais do que pedira e certamente mais do que precisava, pelo que desejava
agradecer a toda a gente pelo trabalho feito. Quando chegou, os sócios
levaram-no para uma sala de reuniões, onde o regalaram com histórias da
incrível estratégia que tinham adotado. No final, ele agradeceu-lhes, mas
depois perguntou se podia conhecer toda a gente que tinha realmente
trabalhado no processo. Citou alguns dos autos e moções, surpreendendo os
sócios com a atenção que tinha prestado aos pormenores mais específicos.
Um dos autos de que ele tinha gostado particularmente tinha sido escrito
pela Alice. Era uma coisa divertida e criativa – na medida em que um auto
legal pode ser divertido ou criativo. Por isso, os sócios chamaram-na à sala
de reuniões. A dada altura, alguém referiu que ela ia casar-se naquele fim de
semana. O Finnegan comentou que adorava casamentos. A Alice, a brincar,
perguntou-lhe:
– Quer vir ao meu?
Ele surpreendeu toda a gente ao responder:
– Seria uma honra.
Depois, antes de ir embora, passou pelo cubículo da Alice e ela entregou-
lhe um convite.
Passados dois dias, chegou-nos a casa um estafeta com uma caixa. Nessa
semana, tinham sido entregues vários presentes de casamento, pelo que não foi
uma grande surpresa. No espaço do remetente dizia: Os Finnegan. Abri o
envelope: lá dentro vinha um cartão branco dobrado com a imagem de um bolo
à frente. De bom gosto.
Os presentes que tínhamos recebido até então haviam sido muito pouco
surpreendentes. Havia uma espécie de equação que me permitia prever o
conteúdo de cada prenda antes de ser aberta. O custo total do presente
costumava ser uma combinação do rendimento líquido de quem o oferecia,
multiplicado pelos anos desde que conhecíamos a pessoa, a dividir pelo pi.
Ou qualquer coisa assim. A minha avó comprou-nos um serviço de porcelana
para seis pessoas. O meu primo comprou-nos uma torradeira.
Com o Finnegan, porém, eu não tinha forma de calcular. Era um homem de
negócios bem-sucedido, acabara de vencer um julgamento substancial e tinha
um catálogo de músicas antigas que provavelmente não lhe valiam muito
dinheiro. O que se passava era que não o conhecíamos havia muito tempo.
Pronto, na verdade não o conhecíamos de todo.
Por curiosidade, rasguei logo o embrulho. Dentro estava uma caixa grande e
pesada, feita de madeira reciclada, com um rótulo gravado em cima. Ao
início, pensei que fosse uma caixa de um whiskey qualquer de uma produção
minúscula para servir uma elite excêntrica, o que faria sentido. Era exatamente
o que a equação dos presentes teria previsto.
Isso deixou-me um pouco nervoso, pois nós não tínhamos bebidas destiladas
em casa. Talvez seja melhor explicar. Eu e a Alice conhecemo-nos num centro
de reabilitação a norte de Sonoma. Por essa altura, eu exercia psicoterapia já
há uns anos e aproveitava qualquer oportunidade para aprender mais. Estava a
substituir um amigo, a ganhar experiência profissional. No segundo dia,
orientei um grupo de psicoterapia que incluía a Alice. Ela disse que bebia
demasiado e que precisava de parar. Não para sempre, frisou, apenas o tempo
necessário para completar as mudanças necessárias para estabilizar a sua
vida. Disse que até então nunca fora grande bebedora, mas que uma série de
tragédias familiares a tinha levado a comportar-se irrefletidamente e que
queria recuperar o controlo. Fiquei impressionado com o empenho e a clareza
dela.
Semanas mais tarde, de volta à cidade, decidi telefonar-lhe. Eu orientava um
grupo de miúdos com problemas similares e esperava que ela estivesse
disposta a ir falar com eles. Ela falava das suas próprias dificuldades de uma
forma que ia ao cerne da questão, direta mas apelativa. Eu queria estabelecer
uma ligação com os miúdos e sabia que eles lhe prestariam atenção. Ajudava
que a Alice fosse música. Com o blusão de cabedal coçado, cabelo preto e
curto e histórias da vida na estrada, ela parecia mesmo fixe.
Em resumo, a Alice concordou falar com o meu grupo, a coisa correu bem,
eu levei-a a almoçar fora, tornámo-nos amigos, passaram-se meses,
começámos a namorar, comprámos uma casa e depois, como já sabe, pedi-a
em casamento.
Portanto, voltando ao assunto, quando o embrulho do Finnegan chegou,
retesei-me ao pensar que talvez fosse uma garrafa de alguma bebida alcoólica
incrivelmente rara. Durante os primeiros meses em que conheci a Alice, ela
nunca bebia. Mas, passado algum tempo, começou a desfrutar de uma
ocasional garrafa de cerveja ou de um copo de vinho ao jantar. Não se trata do
caminho tradicional para pessoas com problemas relacionados com o álcool.
Ainda assim, para a Alice parecia resultar. Mas só cerveja e vinho. Os
destilados, costumava ela dizer à laia de brincadeira, «acabam com uma
pessoa na cadeia». Era difícil imaginar isso, já que eu não conhecia ninguém
com tanto autocontrolo como a Alice.
Pousei o presente na mesa. Uma caixa de madeira substancial e elegante.
O rótulo à frente, contudo, parecia estranho.
O PACTO.
Que tipo de whiskey irlandês se chama Pacto?
Abri a caixa e encontrei outra caixa de madeira lá dentro, envolvida em
veludo azul. De cada lado, mergulhada no tecido, encontrava-se uma caneta
com um ar extremamente dispendioso – de prata, ouro branco, talvez até
platina. Peguei numa e o peso e a construção surpreenderam-me. Era o tipo de
presente requintado que se compraria a alguém que tivesse tudo, motivo pelo
qual era um presente estranho para nós. Ambos trabalhávamos muito, e
saíamo-nos bem, mas não tínhamos tudo, nem nada que se parecesse. Como
prenda de fim do curso de Direito, eu tinha, de facto, oferecido uma caneta à
Alice. Era um objeto lindíssimo que adquiri a um negociante privado na Suíça,
depois de meses de pesquisa no inesperadamente complexo campo dos
instrumentos de caligrafia. Era como se tivesse aberto uma porta à espera de
um pequeno armário e se me houvesse deparado, ao invés, todo um universo.
Esforcei-me bastante por a pagar, de uma forma rebuscada que ocultasse o seu
custo exorbitante. No caso de alguma vez a perder, não queria que a Alice se
sentisse sobrecarregada pela verdadeira profundidade da perda.
Peguei então na caneta do Finnegan. Na parte de cima do papel de embrulho,
rabisquei uns quantos círculos e, depois, a expressão Obrigado, Liam
Finnegan!. A tinta fluía facilmente, a caneta deslizava pelo papel lustroso.
Havia qualquer coisa gravada na caneta.
As letras eram tão pequenas que eu não conseguia lê-las. Lembrei-me de
uma lupa que tinha vindo com um jogo de tabuleiro que a Alice me oferecera
no Natal. Dei a volta ao armário da entrada. Atrás do Risco, do Monopólio e
do Boggle, lá encontrei o jogo, com a lupa ainda no invólucro de celofane.
Levei a caneta para um sítio à luz e examinei-a através da lupa.
ALICE & JAKE, a que se seguia a data do casamento e depois apenas DUNCANS
MILLS, CALIFÓRNIA. Admito que fiquei um pouco desapontado. Esperava mais
de um dos maiores cantores folk ainda vivos. Se a gravação contivesse o
sentido da vida, isso não me teria surpreendido.
Tirei a outra caneta e pousei-a em cima da mesa. Depois, peguei na caixa
mais pequena. Era da mesma madeira recuperada, com a mesma constituição
robusta e com o mesmo logótipo gravado à frente: O PACTO. Era
espantosamente pesada.
Tentei abri-la, descobrindo que estava trancada. Pousei-a de novo na mesa e
revistei a embalagem, em busca de uma chave. No fundo, não encontrei chave
alguma, apenas uma nota manuscrita:
L ogo nos primeiros cinco minutos, dá para perceber como uma festa de
casamento vai correr. Se as pessoas chegarem um pouco tarde, movendo-
se devagar, sabe-se que é capaz de ser uma seca. No nosso casamento, porém,
toda a gente chegou invulgarmente cedo. O meu padrinho de casamento,
Angelo Foti, e a mulher, Tami, fizeram o trajeto desde a cidade mais depressa
do que esperavam. Pararam num café em Guerneville para fazer tempo. No
café, repararam noutros quatro casais vestidos como se fossem para um
casamento. Apresentaram-se e, ao que parece, a festa começou logo ali.
Com a correnteza de amigos e familiares, os meus nervos e tudo o mais, só
depois de a cerimónia ter começado é que me dei conta de que o Finnegan
tinha comparecido. Eu estava a olhar para a Alice, no seu vestido fabuloso, a
avançar sozinha pelo corredor central a caminho de mim – de mim, quem diria
– quando, por cima do ombro dela, vislumbrei o Finnegan, na última fila.
Envergava um fato impecável, com uma gravata cor-de-rosa. A mulher que o
acompanhava, talvez uns cinco anos mais nova, usava um vestido verde.
Fiquei surpreendido ao vê-los sorrir, obviamente satisfeitos por estarem
presentes. Suponho que esperava que o Finnegan e a mulher fossem muito
despachados, que chegassem tarde e se fossem embora cedo, comparecendo
no casamento da advogada – uma obrigação social, cumprir um compromisso,
nada mais. Mas não foi de todo assim.
Eu na altura não sabia isto, mas agora sei. Numa festa de casamento, se se
prestar atenção, dá para distinguir os casais felizes. Poderá ser uma
confirmação da escolha que fizeram, ou talvez seja apenas uma crença na
convenção do casamento. Há um ar, fácil de distinguir, difícil de definir, e os
Finnegan tinham-no. Antes de eu voltar de novo a atenção para a Alice – linda
no seu vestido branco sem mangas e um chapéu sem abas, à anos 1940 –, o
Finnegan fitou-me, sorriu e ergueu um copo imaginário.
Trocámos votos tão depressa... As alianças, o beijo. Minutos depois de a
Alice ter avançado pelo corredor, éramos marido e mulher, e depois, de forma
igualmente repentina, o copo-d’água tinha começado. Dei por mim em
conversas com amigos, parentes, colegas, alguns antigos colegas da escola
secundária, todos a recontarem avidamente as suas versões da minha vida,
muitas vezes por ordem errada, mas sempre sob uma luz positiva. Só quando
começou a escurecer é que tornei a ver o Finnegan. Estava perto do palanque
da banda, a ver os amigos músicos da Alice, que avançavam por uma seleção
eclética de músicas. Ele estava por trás da mulher, com os braços à volta da
cintura dela. Ela tinha vestido o casaco do fato dele, para se proteger do ar
fresco da noite, e ambos continuavam com aquele ar satisfeito.
Eu tinha perdido o rasto à Alice, pelo que perscrutei os convidados em
busca dela. Depois apercebi-me de que se encontrava no palanque. Desde que
eu a conhecia, ela nunca tinha voltado aos palcos; era como se tivesse deixado
essa parte da sua vida completamente para trás. As luzes estavam desligadas,
mas, na penumbra, vi-a apontar para os amigos, a Jane, o antigo baterista, um
amigo do escritório de advogados com o seu baixo, e outros, um grupo de
pessoas que eu não conhecia bem, algumas que nunca tinha visto, cuja
presença revelava toda uma vida que ela tinha tido antes de mim, uma parte
importante da sua essência que de alguma forma me estava vedada. Senti-me
tanto triste como entusiasmado por a ver a essa luz: triste porque não podia
deixar de me sentir excluído e dispensável, mas contente porque... bem,
porque ela continuava a ser um mistério para mim, no melhor sentido possível.
A Alice estendeu a mão para o Finnegan. O espaço começou a brilhar com
uma luz azulada e dei-me conta de que, à medida que o Finnegan se
aproximava do palco, as pessoas tinham discretamente agarrado nos
telemóveis para o gravar.
A minha mulher ficou ali imenso tempo. As vozes silenciaram-se, como que
de expectativa. Por fim, a Alice aproximou-se do microfone.
– Amigos – disse ela. – Muito obrigada por terem vindo.
Depois, apontou para mim e uma nota do órgão ergueu-se atrás dela. O
Finnegan estava no seu elemento, ao teclado. Com o seu som belo e elusivo, o
órgão dirigia lentamente os outros instrumentos para o ritmo. A Alice ali ficou,
a olhar para mim, a oscilar suavemente ao som da música. Quando as luzes se
acenderam, o Finnegan passou para uma melodia que reconheci de imediato.
Era uma velha canção, Led Zeppelin no seu melhor, subtil e contagiosa, uma
linda música para um casamento, «All My Love». O canto da Alice começou
baixo e inseguro, mas foi ganhando confiança. Não sei como, mas ela e o
Finnegan pareciam estar no mesmo comprimento de onda.
À medida que a música avançava, ela deu um passo para um círculo de luz,
fechou os olhos e repetiu o refrão lindo, uma declaração tão simples, mas,
pela primeira vez, tive noção de que sim, ela me amava. Lancei um olhar pela
tenda e, à meia-luz, vi os nossos amigos e familiares, todos a balançar ao som
da melodia.
Depois, a canção mudou ligeiramente e a Alice cantou o verso crítico que eu
esquecera havia muito, uma pergunta simples, mas que cobriu o resto da letra
com uma camada fina de ambiguidade e dúvida. Por um momento, senti-me
instável. Pousei uma mão no espaldar de uma cadeira para me amparar e olhei
em redor, tudo iluminado pelo luar: as pessoas, o prado, vacas a dormitar no
campo, o rio. Ao lado do palco, vi a mulher do Finnegan a dançar no seu
vestido verde, de olhos fechados, imersa na música.
A festa continuou durante horas. Quando a aurora rompeu, éramos um
pequeno grupo sentado à volta da piscina, a ver o Sol nascer sobre o rio. Eu e
a Alice partilhávamos uma espreguiçadeira, os Finnegan partilhavam a do
lado.
Por fim, eles foram buscar os casacos e sapatos e prepararam-se para ir
embora.
– Nós acompanhamos-vos – disse a Alice.
A caminhar com eles até à entrada da quinta, tive a sensação de os conhecer
havia anos. Enquanto entravam no Lamborghini – emprestado por um amigo,
disse o Finnegan, com uma piscadela de olho –, lembrei-me do presente.
– Oh – exclamei –, esqueci-me de vos agradecer! Devíamos falar acerca do
intrigante presente que nos deram.
– Com certeza – disse o Finnegan. – Tudo a seu tempo. – A mulher dele
sorriu. – Amanhã voltamos para a Irlanda, mas mando-vos um email depois de
vocês regressarem da lua de mel.
E pronto. Duas semanas num hotel no Adriático, basicamente abandonado
mas que outrora fora grandioso, um voo longo de regresso, e de repente
estávamos de volta ao local da partida – iguais, só que casados. Seria aquilo o
fim ou apenas o começo?1
1 Referência ao verso da música «All My Love» dos Led Zeppelin: «Is this to end or just begin?» (N. da
T.)
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P ara todos nós, claro, há uma disparidade entre quem somos e quem
pensamos ser. Embora queira pensar que no meu caso a disparidade é
pequena, reconheço que existe. Um sinal disso? Vejo-me como uma pessoa
razoavelmente popular e agradável, com um número de amigos superior à
média. E, no entanto, não fui convidado para muitos casamentos. Não sei bem
porquê. Algumas pessoas, como a Alice, passam a vida a ser convidadas para
casamentos.
A vantagem é que consigo lembrar-me de todos os casamentos para que fui
convidado, incluindo o primeiro.
Eu tinha treze anos e uma das minhas tias preferidas ia casar-se em São
Francisco. A relação desenvolvera-se rapidamente e, de repente, já havia data
marcada para o casamento. Foi num sábado de julho, e o copo-d’água teve
lugar no cavernoso Centro Cultural dos Irlandeses Unidos. O piso estava
peganhento e o cheiro a cerveja barata de bodas havia muito esquecidas
parecia escapar-se por todas as fissuras. Uma banda de mariachis estava a
ensaiar no palco, e da cozinha saíam enchiladas e tortillas. Um bar completo
apanhava toda a parede do fundo, com empregados irlandeses a moverem-se
por entre as garrafas. O espaço estava apinhado. Um tipo passou-me uma
cerveja e ninguém pareceu importar-se. Na verdade, eu soube instintivamente
que uma recusa da minha parte teria sido considerada um insulto.
A minha tia era presidente de um sindicato, coisa séria. O noivo era um líder
sindical de estatuto equiparado, mas de outra região. O sítio estava tão cheio,
tão festivo. Mesmo com a idade que tinha, percebi que algo importante se
passava. As pessoas iam entrando, ruidosas e alegres, deixando os casacos, as
malas e as chaves dos carros no bengaleiro, evidentemente com tenções de se
demorarem. Dizer que houve bebida, dança, discursos e música e mais bebida
e dança não faria justiça ao acontecimento. Foi a festa mais louca e longa a
que eu alguma vez tinha ido. Não me lembro de quando acabou nem de ter ido
para casa. Até hoje, a memória turva acompanha-me, como um sonho estranho
e barulhento empoleirado numa espécie de precipício entre a infância e a
idade adulta.
Não tenho ideia de alguma vez ter ouvido dizer que o casamento da minha
tia terminara. Pelo contrário, ele parecia ter-se simplesmente desvanecido. Um
dia, o meu tio estava presente, no seguinte não estava. Passaram-se anos.
Ambos prosseguiram o caminho para o sucesso e a notoriedade nas respetivas
carreiras. E depois, certa manhã, ao ler o Los Angeles Times, vi que o meu
antigo tio tinha morrido.
Não há muito tempo, sonhei com o casamento – a música, a comida, a
bebida, a felicidade desvairada naquela sala apinhada e malcheirosa – e
perguntei-me se teria realmente acontecido. Foi o meu primeiro casamento a
sério, ou pelo menos o primeiro que me ensinou que o matrimónio devia ser
algo feliz e alegre.
11
T rês dias depois da visita da Vivian, somos convidados para a festa anual
do escritório de advogados da Alice. Talvez convidados não seja a
palavra certa: a presença é obrigatória para os associados juniores. A festa é
no Hotel Mark Hopkins, no alto de Nob Hill. É o primeiro ano em que faço
parte da lista de convidados. Trata-se de uma empresa solene, conservadora,
tradicional. Namorados e namoradas nunca são convidados; já os cônjuges têm
de participar.
Saco do armário o meu melhor fato da Ted Baker, o que tinha usado no
casamento. Tento puxar um pouco à época festiva com uma camisa de xadrez
verde e uma gravata vermelha. A Alice lança-me um só olhar e franze o
sobrolho. Pousa uma caixa da Nordstrom em cima da cama.
– Esta. Comprei-a ontem. – A camisa é azul, bem confecionada. – E esta. –
Há uma caixa de gravata, também da Nordstrom. É de seda, num azul mais
escuro que o da camisa, com riscas roxas subtis. O colarinho irrita-me o
pescoço e atrapalho-me com a gravata. Só aprendi a fazer o nó da gravata
como deve ser aos trinta e um anos. Não sei ao certo se devo sentir-me
orgulhoso ou envergonhado por esse facto.
Quero que a Alice se aproxime e me ajude a pô-la, como as esposas da
televisão fazem, mas é claro que ela não é esse género de esposa. Não é do
género que passe a ferro e saiba fazer o nó da gravata de um homem, olhando-
nos sedutoramente pelo espelho atrás de nós, com os braços à volta do nosso
pescoço. É sensual, mas não com uma sensualidade do género doméstico, o
que está muito bem. Muito bem mesmo.
A Alice está toda arranjada, com vestido preto feito à medida e um par de
sapatos de salto alto de pele de cobra. Brincos de pérolas, uma pulseira de
ouro, sem colar nem anéis. Já vi fotografias dela a usar pulseiras em cima de
pulseiras, montes de brincos, colares pendurados a torto e a direito. Mas, hoje
em dia, a sua regra básica no que diz respeito a joias inspira-se diretamente na
Jackie O: duas peças é o ideal, três já é um exagero, qualquer coisa mais está
mesmo a pedir para ser editado. Quando terá o guarda-roupa dela passado de
rock steampunk dos anos noventa para a Associada Júnior Elegante? Seja
como for, está espetacular.
Deixamos o carro na rotunda em frente ao Top of the Mark. Chegamos uns
minutos mais cedo – a Alice detesta adiantar-se –, pelo que damos uma
caminhada rápida à volta do quarteirão. Ela não é muito dada a maquilhagem
mas gosta do efeito de passar um batom vermelho nos lábios combinado com o
rubor saudável do exercício e, quando chegamos à festa, ela tem as faces
coradas e está encantadora.
– Sentes-te preparado? – pergunta-me, dando-me a mão e ciente do quanto
odeio este tipo de coisa.
– Só não me arrastes para nenhuma conversa acerca de responsabilidade
civil.
– Não prometo nada. Lembra-te de que isto é trabalho.
Entramos na festa e um empregado recebe-nos com champanhe.
– Suponho que não seja boa altura para pedir um Bailey’s com gelo –
sussurro à Alice.
Ela aperta-me a mão.
– Nunca é boa altura para um homem da tua idade pedir um Bailey’s com
gelo.
A Alice vai fazendo apresentações e eu sorrio, aceno com a cabeça e dou
passou-bens, cingindo-me ao mais seguro «Que bom vê-lo» em vez de «Prazer
em conhecê-lo». Algumas pessoas fazem as piadas que os psicoterapeutas
estão habituados a ouvir: «O que diria Freud desta festa?» e «Basta-lhe olhar
para mim para saber os meus segredos sombrios mais profundos?»
– Na verdade, basta – respondo gravemente a um tipo chamado Jason, tão
estrondoso quanto arrogante, que consegue proferir as palavras Faculdade de
Direito de Harvard três vezes no nosso primeiro minuto de conversa.
Ao fim de cerca de uma dúzia de encontros similares, afasto-me da Alice –
o vaivém a separar-se da nave-mãe – e avanço até à mesa das sobremesas.
São substanciais, contendo centenas de petit fours e parfaits em miniaturas,
montanhas de trufas. Adoro sobremesas, mas a verdadeira atração deste canto
da sala é a falta de pessoas. Odeio tagarelar, fazer conversa de circunstância,
conhecer pessoas dessa maneira falsa que garante que se sabe menos acerca
delas no final da conversa do que no início.
Os clientes importantes chegam e, de longe, eu observo os advogados em
ação. A este nível, as festas têm menos que ver com a diversão do que com o
trabalho. A Alice vai passando de um grupo para outro e dá para ver que é
boa. Claramente, é apreciada tanto pelos sócios como pelos colegas, e também
cativa os clientes. Trata-se de uma fórmula, sem dúvida; o escritório quer
apresentar uma equipa uniforme de sócios mais velhos, experientes e
imparciais, combinados com associados enérgicos e ambiciosos. A Alice
desempenha o seu papel com destreza, deixando os clientes sorridentes e
felizes enquanto desliza pelas conversas.
Não obstante, enquanto a observo, com o mesmo meio copo de champanhe
na mão, algo me parece mal. Ela está «no auge da forma», como o chefe dela
gosta de dizer, mas há ali qualquer coisa que me deixa – enfim – triste. Certo,
o dinheiro é bom e, sem isso, não teríamos conseguido comprar a casa. Ainda
assim, penso no Michael Jordan naqueles anos a meio da carreira, quando
desistiu do basquetebol para enveredar pelo beisebol profissional. Penso no
David Bowie e no tempo que passou a representar – bons filmes, embora com
o passar do tempo se tenham transformado em nada mais do que um vazio no
seu catálogo musical.
Um tipo mais jovem, Vadim, vem ter comigo junto à mesa das sobremesas.
Parece menos interessado em conhecer-me do que em afastar-se do jogo que
está a ter lugar do outro lado da sala. Está a usar uma camisa verde e uma
gravata vermelha, ao que tudo indica sem uma mulher que o instigue na
direção do bom gosto. Nervosamente, recita-me o seu currículo. É o
investigador da firma. Quando menciona o doutoramento em Informática e os
quatro anos que trabalhou na Google Ventures, percebo por que foi contratado;
ainda assim, também compreendo por que nunca se adaptará por completo a
um sítio como este. A conversa forçada leva-nos a umas quantas áreas
esquisitas, incluindo um relato prolongado da sua fobia de aranhas e outro de
uma relação imprudente com uma cidadã chinesa que mais tarde foi condenada
por espionagem empresarial.
Diz-se que Vadim é o futuro de Silicon Valley, que os Vadims do Valley
andam a procriar com as programadoras, produzindo uma nova geração de
crianças incrivelmente espertas cujas capacidades sociais afetadas não serão
consideradas uma desvantagem no futuro, mas apenas um ramo diferente da
evolução, necessário para garantir a sobrevivência da raça humana num
admirável mundo novo. Embora eu acredite na teoria, sendo um tipo básico
das artes e das ciências por vezes custa-me ter empatia por tipos como o
Vadim.
Mas então, depois do currículo, das aranhas e da história longa e intrincada
de espionagem, lá encontramos algo em comum. Porque aquilo de que Vadim
realmente quer falar é da Alice. Aparentemente sem saber que sou o marido
dela (ainda que eu não tenha a certeza de que isso fizesse alguma diferença),
diz:
– Acho a Alice muito atraente. Tanto no sentido físico como no sentido
mental. – E depois passa a analisar a competição – ... o marido, claro, mas
também o Derek Snow.
Aponta para um homem alto e bem-parecido com cabelo encaracolado e
uma pulseira amarela do Lance Armstrong que se encontrava talvez demasiado
próximo da Alice, tocando-lhe no ombro. Quando observo o Derek, percebo
que o Vadim tem razão: ele não é o único do escritório de advogados que
cobiça a minha mulher. Com a sua antiga fama e o seu talento musical, ela é
uma anomalia numa firma cheia da colheita habitual de licenciados das
melhores faculdades do país.
– Houve quem apostasse se ela iria em frente com o casamento com o
psicoterapeuta – diz o Vadim.
– Ah sim?
– Eu não participei, claro. Pôr dinheiro na relação de outra pessoa é
irracional. Há demasiados fatores incalculáveis.
– Quantas pessoas fizeram apostas?
– Sete. O Derek perdeu mil dólares.
Pego numa sobremesa que está identificada como BOLACHA ORGÂNICA SEM
FARINHA RECHEADA COM DOCE DE FIGO E RASPA DE LARANJA e como-a de uma só
vez.
– Para que nada fique por revelar – confesso –, o psicoterapeuta sou eu.
– Ludibriou-me! – exclama o Vadim. Depois, aparentemente sem se ofender
com a minha mentira por omissão, vira-se e avalia-me com franqueza. – Sim, é
uma correspondência física suficientemente próxima – conclui –, se tivermos
em conta que as mulheres muitas vezes se juntam a homens ligeiramente menos
atraentes, sendo a atratividade uma amálgama de altura, forma física e
simetria. Você é mais alto do que a média, parece um corredor e tem feições
bem-alinhadas, ainda que não perfeitas. A cova no queixo compensa a testa.
Levo a mão à testa. Que tem a minha testa de mal, caramba?
– A Alice não parece importar-se com a minha testa – digo.
– Em termos estatísticos, a cova no queixo de um homem redime várias
falhas menores. Um facto verídico: as mulheres com covinhas nas faces obtêm
pontos extra no que concerne à atratividade, mas perdem pontos se tiverem
uma cova no queixo, que é uma característica associada a masculinidade. Seja
como for, se a atratividade fosse uma escala tonal, vocês os dois estariam
suficientemente próximos para produzirem um som harmonioso.
– Obrigado. Acho eu.
– É claro que não tenho como saber se constituem uma correspondência
apropriada em termos intelectuais.
– Quer acredite, quer não, sou um génio. De qualquer forma, obrigado por
não ter participado na aposta.
– Não tem de quê.
Faz-me perguntas acerca da cerimónia, da lua de mel, do hotel, dos voos –
sempre a querer mais pormenores. Tenho a sensação de que está a recolher
dados para inserir num programa que vaticinará as nossas probabilidades de
sucesso marital e, por conseguinte, as suas de me usurpar. Não sei bem
porquê, mas a dada altura faço uma referência ao Pacto.
– Eu e a Alice somos um casal sólido – digo. – Afinal, temos o Pacto.
– Nunca ouvi falar.
– É um clube – explico. – Que ajuda pessoas casadas a permanecerem
casadas.
Ele já está a sacar do telemóvel e a começar a digitar.
– E posso encontrar esse clube online?
Por sorte, antes que eu partilhe quaisquer detalhes concretos acerca do
Pacto, a Alice chega para me salvar.
– Olá, Alice – diz-lhe o Vadim num tom nervoso. – Estás bonita esta noite.
– Obrigada, Vadim – responde ela com um sorriso doce. E depois diz-me: –
Eu tenho de ficar, mas tu já cumpriste o teu dever. Já pedi que trouxessem o
carro.
Adoro-a por isso, e pelo beijo demorado que me dá nos lábios à frente do
Derek Snow, do Vadim, o Ávido, do chefe e de toda a gente, o beijo que diz
sem qualquer ambiguidade: «Fui conquistada.»
14
A Alice tem vindo a ficar cada vez mais obcecada com o trabalho.
Ultimamente, por volta das cinco da manhã, estendo a mão para o outro
lado da cama e apercebo-me de que ela não está. Minutos depois, ouço a água
do duche a correr, mas costumo voltar a adormecer. Quando avanço pelo
corredor pelas sete, ela já saiu. Na cozinha, encontro copos sujos e recipientes
vazios, folhas amarelas pautadas espalhadas. É como se um guaxinim com um
curso de Direito e um fraquinho por iogurte islandês demasiado caro nos
invadisse a casa todas as noites, esgueirando-se de manhã cedo. Em ocasiões
raras, também encontro outras coisas – como a guitarra dela no sofá, o
MacBook com a aplicação Pro Tools aberta, letras de músicas rabiscadas num
bloco de notas.
Certa manhã, encontro o seu exemplar do Manual em cima do apoio para o
braço do cadeirão azul. Eu também tenho andado a lê-lo – ordens da Vivian –,
embora por norma o faça durante pausas no trabalho. Ok, talvez tenha andado
a treslê-lo. A cada secção, a escrita vai-se tornando mais específica e técnica,
culminando na última, em que as leis e os regulamentos são expostos em
parágrafos numerados e redigidos com uma atenção aflitiva ao pormenor.
A minha reação ao Manual é composta, em partes iguais, de fascínio e
repulsa. De certa maneira, traz-me à memória as minhas aulas de Biologia da
licenciatura. Como a dissecção do coração de uma ovelha no primeiro dia do
semestre, o Manual agarrou em algo vivo – o casamento, neste caso – e desfê-
lo até à mais ínfima célula, para ver como funciona.
Sendo uma pessoa mais dada ao plano geral, o pior classificado da minha
turma de Estatística, as secções mais abrangentes são as que me atraem. A
Primeira Parte é a mais curta: A Nossa Missão.
Parafraseando, o Pacto foi criado por três motivos: em primeiro lugar, para
estabelecer um conjunto claro de definições que possam ser usadas para
compreender e discutir o contrato do casamento; em segundo, para estabelecer
regras e regulamentos a que os participantes do casamento se aterão e que
foram feitas para fortalecer o contrato matrimonial e assegurar o seu sucesso
(«conhecer as regras e os regulamentos proporciona um mapa claro e
definido e ilumina o caminho para a felicidade»); e, em terceiro lugar, para
instituir uma comunidade de indivíduos que partilham um objetivo comum e
desejam ajudar-se mutuamente a atingir o objetivo de cada um – um casamento
bem-sucedido –, o que, por sua vez, fortalece o grupo. A partir destes
princípios, espera-se que tudo o resto flua logicamente.
Segundo o Manual, o Pacto não tem qualquer outra intenção para além da
que se encontra exposta na declaração de missão. Nem tem mensagem política.
Não descrimina por motivos étnicos, de nacionalidade, de género ou de
orientação sexual.
A Primeira Parte também delineia como são localizados, selecionados e
aprovados os novos membros. Os novos casais são escolhidos de acordo com
a sua capacidade de oferecer algo «único, individual e solidário para a
comunidade como um todo». Cada membro do Pacto que pertença à
comunidade há um mínimo de cinco anos tem a possibilidade de nomear um
casal novo para o processo de aprovação a cada dois anos. Um Investigador
Imparcial é então incumbido do caso e apresenta um ficheiro completo acerca
dos nomeados. O Comité de Admissões baseia a sua decisão de rejeitar ou
aprovar a nomeação avaliando o ficheiro. Os nomeados não podem ser
informados acerca da nomeação a menos e quando sejam aprovados. Os casais
rejeitados nunca chegam a saber do Pacto ou da nomeação fracassada.
Sem surpresas, o aspeto do exemplar da Alice revela que lhe interessam
mais as secções relacionadas com regras e regulamentos. Deixou o livro
aberto na Regra 3.5, Presentes.
Nessa tarde, depois do trabalho, a Alice livra-se dos sapatos, das meias e
da saia pela ordem habitual, deixando um rasto de roupas pelo corredor, e
veste umas calças de ginástica antes de pegar no livro e de se recolher no
quarto, a ler. É costume ler quando chega a casa do trabalho. É o seu ritual, o
seu tempo de pausa. Meia hora depois, certa como um relógio, vem para a
cozinha, pronta para cozinhar o jantar comigo. Espero que ela refira o seu
material de leitura, mas ela nunca o faz. Acho que ambos nos sentimos
hesitantes quanto a falar do Pacto, da experiência bizarra com Vivian, de tudo
aquilo, simplesmente porque estamos a tentar assimilá-lo. Ao início teria sido
simples descartar toda a coisa como estranha, fazer pouco dela, mas acho que
nos apercebemos de que isso não seria completamente justo. O objetivo do
Pacto – criar um casamento bom e forte com o apoio de outros indivíduos com
valores semelhantes – é tanto admirável quanto desejável.
Na manhã seguinte, entro na cozinha onde a Alice já não está e onde, mais
uma vez, se espalha o caos de papel, uma chávena de café vazia e uma tigela
de Rice Chex a meio, com a sua colherada habitual de Ovaltine ainda a flutuar
em cima. No meio da mesa, porém, encontra-se um pequeno pacote,
embrulhado em papel estampado com pinguins dançantes. Ela escreveu o meu
nome a tinta dourada num cartão branco preso com fita-cola ao embrulho. Lá
dentro, encontro a espátula mais impecável do mundo. A parte superior é
laranja, que é a minha cor preferida, e a inferior é amarela. A etiqueta diz
FABRICO FINLANDÊS, em inglês e também em finlandês. Não terá
necessariamente sido dispendiosa, mas é perfeita e deve ter sido bastante
difícil de encontrar. Viro o cartão. Fazes as melhores bolachas com pepitas
de chocolate do mundo, escreveu a minha mulher. E eu amo-te.
Depois de desembrulhar a espátula, tiro de imediato uma foto minha, quase
todo vestido, a erguê-la e a sorrir. Envio a fotografia à Alice por email com
apenas três palavras: Também te amo. Quando nessa noite preparo uma
fornada de bolachas usando a espátula, nenhum de nós faz referência ao Pacto
ou aos seus regulamentos.
Embora ainda não saiba bem ao certo em que foi que nos metemos, alegra-
me que a Alice se entregue ao Pacto. Compreendo que a sua aceitação do
Pacto é prova de que também se entrega ao nosso casamento.
Nos dias que se seguem, quero mostrar-lhe que também estou disposto a
aceitar o Pacto e, mais importante, que estou igualmente empenhado em fazer o
nosso casamento resultar. Por isso, mergulho mais a fundo no Manual. A
Secção 3.8 intitula-se Viajar.
3.8a: Cada membro deve planear uma viagem conjunta por trimestre.
Uma viagem será definida como uma saída de casa por um período não
inferior a trinta e seis horas. Os membros não deverão fazer-se
acompanhar por outros indivíduos, sejam amigos, familiares ou outros
conhecidos. Embora a maioria das viagens deva incluir apenas os
cônjuges, viajar com outros membros do Pacto é aceitável e até
encorajado. A viagem não precisa de ser dispendiosa, distante ou
prolongada.
H illsborough foi fundado na década de 1890 por barões das linhas férreas
e da banca que queriam escapar à ralé que invadia São Francisco. A
cidade consiste num labirinto de estradas estreitas e retorcidas, que avançam
por entre os desfiladeiros como origami. Hillsborough tem poucos passeios e
nenhum comércio, apenas grandes casarões ocultos por muros cobertos de
hera. Não fosse pela força policial atenta e com espírito de vizinhança, que
tem fama de estar sempre disposta a mostrar a intrusos como se sai da cidade,
seria possível perdermo-nos no seu labirinto durante dias, até ficarmos sem
gasolina e nos vermos obrigados a sobreviver com uma dieta de restos de
caviar e costeletas de borrego orgânico com trufas dos caixotes de
compostagem empoleirados no exterior dos muros imponentes.
Chegamos à saída da via rápida às sete e um quarto. Depois de ter chegado
tarde do trabalho, a Alice experimentou apressadamente sete roupas diferentes
antes de podermos sair. Estou nervoso e ansioso quando seguimos pela saída,
carregando à bruta no GPS, que diz SEM SINAL DISPONÍVEL.
– Descontrai – diz a Alice. – Que tipo de festa começa exatamente a horas?
Um Jaguar XKE de 1971 passa por nós a toda a velocidade. O carro é
belíssimo, verde como um automóvel inglês de corridas, de tejadilho duro,
arredondado atrás. O Ian, o meu sócio, disse-me que é o seu carro de sonho.
Acelero, tentando acompanhá-lo.
– Tira uma foto para o Ian – peço à Alice. Mas, antes que ela encontre o
ícone da câmara no seu telemóvel, o Jaguar envereda por um acesso longo e
desaparece.
– Green Hill Court, n.º 4. – A Alice aponta para a caixa de correio que está
onde o Jaguar acaba de virar.
Abrando o carro e faço uma pausa para olhar para ela.
– De certeza que queremos fazer isto?
A casa no número 4 de Green Hill Court tem um nome: Villa Carina. O título
está gravado numa placa de pedra no portão de ferro forjado. Originalmente,
Hillsborough era constituído por nove propriedades – a que não faltavam
casas de hóspedes, estábulos e aposentos para a criadagem – dispostas entre
hectares de jardins e árvores. A julgar pela aparência, esta costumava ser a
entrada principal de uma dessas propriedades.
O longo acesso com piso de tijolo é ladeado por árvores cuidadas. Por fim,
chegamos a uma área larga pavimentada com pedra, onde uma fileira de carros
se apequena diante de uma mansão imensa de quatro andares. A Alice conta
catorze automóveis, na maioria Teslas. Também há um velho Maserati, um
Dois Cavalos restaurado, um Bentley azul, um Aventi cor de laranja e o tal
Jaguar.
– Olha – diz a Alice, apontando com ar tranquilizador para um Audi preto
(talvez da Vivian) e para um sedã cinzento-escuro, um Lexus –, carros do
povo, quase. E nós a pensar que nos íamos sentir desajustados.
– Se calhar ainda podemos voltar para trás – digo, e não estou totalmente a
brincar.
– Esquece. Este sítio deve estar carregadinho de câmaras. Tenho a certeza
de que já fomos filmados.
Estaciono ao fundo, deixando o meu Jeep Cherokee ao lado de um Mini
Countryman.
A Alice abre o espelho do lugar do passageiro para verificar o batom e pôr
um pouco de pó de arroz, enquanto eu vejo como tenho a gravata servindo-me
do espelho retrovisor.
Saio do carro e vou até ao lado da Alice para lhe abrir a porta. Ela sai,
endireita-se e dá-me o braço. Mais à frente, há luzes a iluminar o caminho
vindas dos pisos superiores. Enquanto caminhamos em direção à porta,
passando pelos carros, vislumbro o nosso reflexo na janela do Jaguar. Eu no
meu fato Ted Baker e com a minha gravata nova, a Alice no vestido vermelho-
escuro que comprou para a nossa lua de mel. «Sexy e Madura», chama-lhe.
Tem o cabelo apanhado de uma forma séria mas bonita.
– Quando foi que crescemos? – sussurro.
– Devíamos ter tirado uma fotografia – diz ela –, para o caso de ser sempre
a piorar a partir daqui.
Sempre que me sinto velho – o que parece acontecer cada vez com mais
frequência, ultimamente –, a Alice diz-me para imaginar que tiro uma
fotografia e para em seguida me imaginar daqui a vinte anos a olhar para essa
fotografia e a pensar como parecia jovem, esperando ter aproveitado ou pelo
menos reconhecido a minha juventude. Costuma resultar.
À medida que nos aproximamos da casa, ouço vozes. Quando contornamos a
sebe, a Vivian está ao fundo das escadas, à espera.
Ela não me disse o que usar ou o que trazer, e só agora me ocorre que isso
provavelmente foi mais um teste. De súbito, sinto-me satisfeito por me ter
esforçado, durante a tarde, por conseguir uma boa garrafa de vinho para o
anfitrião. A Vivian está a usar outro vestido garrido, desta feita fúcsia. Tem
uma bebida numa mão, algo incolor com gelo, e um ramo de túlipas amarelas
na outra mão.
– Amigos – diz, abraçando-nos sem entornar nem uma gota. Entrega as
túlipas à Alice e dá um passo atrás para olhar para ela. – As túlipas amarelas
são uma tradição, embora não saiba dizer quando ou por que começou.
Venham. Mal posso esperar por vos apresentar ao grupo.
Ao subirmos os degraus de pedra, a Alice lança-me um olhar como se
dissesse: É demasiado tarde para voltarmos para trás.
As portas imponentes abrem-se para um átrio gigantesco. Mas não é como
esperava – não há mármores, não há móveis franceses amaneirados, não há um
quadro de um senhor das linhas férreas há muito falecido a encimar uma
lareira. Em vez disso, o átrio tem um soalho de madeira natural, uma mesa de
aço escovado em cima do qual se encontra uma taça de betão com suculentas,
e imenso espaço. Para lá do átrio há uma sala enorme com janelas do teto ao
chão. As janelas emolduram um grupo de pessoas no pátio.
– Todos estão ansiosos por vos conhecer – diz a Vivian, levando-nos pela
sala de estar. No espelho por cima da lareira, entrevejo o rosto da Alice. É
difícil decifrar-lhe a expressão. Gosto de a ver a segurar as túlipas amarelas,
que lhe dão um ar doce. Desde que aceitou o emprego no escritório de
advogados que tem desenvolvido arestas aguçadas; as noites longas e a
intensidade do trabalho têm-na tornado um pouco impaciente, o que é
compreensível.
Uma mulher atraente na casa dos cinquenta anos apressa-se em direção a
uma porta à nossa esquerda, com uma bandeja vazia. Parece exausta, apesar de
ter o porte de uma mulher com dinheiro e influência, sob aquela energia
nervosa.
– Ah – comenta a Vivian –, mesmo a tempo. Permitam-me que vos apresente
a nossa anfitriã, a Kate. Kate, estes são a Alice e o Jake.
– É claro que são – diz a Kate, empurrando a porta aberta com o ombro, ao
que revela uma cozinha enorme. Pousa a bandeja na bancada e depois volta-se
de novo para nós. Eu estendo a mão para apertar a dela, mas ela puxa-me para
um abraço demorado. – Amigo – diz-me –, bem-vindo. – De perto, tem um
cheiro ténue a pasta de amêndoas. Reparo numa cicatriz no lado esquerdo do
queixo. Embora esteja coberta com maquilhagem, dá para ver que foi um corte
significativo. Pergunto-me como o terá feito. – Minha querida amiga –
exclama, enquanto abraça a Alice –, é tal e qual como a Vivian a descreveu. –
Vira-se então para a Vivian. – E se os levasse para o pátio e os apresentasse
ao grupo? Eu tenho de trabalhar. Há muito tempo que não dava uma festa para
trinta e seis pessoas sem ajuda.
– As regras requerem que só os membros estejam presentes durante a festa
trimestral – explica a Vivian quando a porta da cozinha se fecha atrás da Kate.
– Ninguém dos serviços de catering, nenhum empregado, nenhum cozinheiro,
nenhum pessoal de limpezas. Por motivos de segurança, claro. Prestem
atenção; há de chegar a vossa vez.
A Alice fita-me de sobrancelhas arqueadas, entusiasmada. Percebo que já
está a planear a festa.
O pátio das traseiras é imenso. Uma piscina retangular de um azul vivo, uma
braseira, um relvado luxuriante contornado por olmos – parece uma fotografia
para uma revista de luxo de casa e jardim. Tochas tiki de bom gosto imbuem a
área de um brilho quente, uma luz ténue que me permite ver os convidados
dispersos em pequenos grupos.
A Vivian entrega-nos duas taças de champanhe e leva-nos até ao centro do
pátio.
– Amigos! – chama, batendo palmas duas vezes. Todos param de falar,
virando-se para olhar. Embora eu não seja propriamente tímido, não gosto de
ser o centro das atenções e sinto o rosto a corar. – Amigos, tenho a honra de
vos apresentar a Alice e o Jake.
Um homem de blazer azul e calças de ganga escura dá um passo em frente.
Reparando de repente que a maioria dos homens traja de maneira similar –
mais à empreendedor de Silicon Valley do que à financeiro de Wall Street –,
arrependo-me de ter vestido o fato. Ele ergue o seu copo.
– A novos amigos – diz.
– A novos amigos – ecoa o grupo em coro, e todos bebemos.
Depois de acenos de cabeça e sorrisos dirigidos a mim e à Alice, os outros
regressam às suas conversas e o homem avança para se apresentar.
– Roger – diz. – Tenho muito gosto em que a vossa apresentação tenha lugar
na minha casa.
– Obrigada por nos receber – responde a Alice.
A Vivian dá-me o braço.
– Deixemo-los a conversar. Há outras pessoas que precisa de conhecer.
É um grupo melhor do que eu esperava – descontraído, feliz, sem qualquer
arrogância ou pretensão óbvia. Dois investidores de risco, um neurologista e a
sua mulher dentista, um ex-tenista profissional, várias pessoas da área da
tecnologia, um pivô da televisão local, uma estilista, um casal de publicitários
e o marido da Vivian, Jeremy, editor de uma revista.
Aproximamo-nos do último grupo. Enquanto a Vivian começa a fazer as
apresentações, apercebo-me de que em tempos conheci uma das mulheres.
JoAnne Webb – agora JoAnne Charles, segundo diz a Vivian. Andámos na
mesma faculdade. Mais, estávamos na mesma turma, vivemos em quartos
adjacentes no nosso segundo ano e éramos ambos conselheiros residentes do
nosso piso. Todas as terças-feiras, durante o ano inteiro, via-a na nossa
reunião semanal de conselheiros residentes, na Sala da Lareira.
Apesar de não a ver há anos, na verdade tenho pensado nela muitas vezes.
Foi a JoAnne quem me influenciou e me levou a ser psicoterapeuta. A meio do
nosso segundo ano, numa noite amena da semana, eu estava a jantar no
refeitório quando um miúdo do meu piso veio a correr, com ar pálido e
assustado.
– Há um suicida no Sproul – sussurrou. – Precisam de ti.
Corri para fora do refeitório, atravessei a rua e subi até ao telhado do
dormitório vizinho. Empoleirado na beira, vi um miúdo que reconheci, apenas
vagamente. Tinha as pernas a baloiçar do lado de fora, a sete andares de
altura. A JoAnne era a única outra pessoa que ali estava. Ouvi a voz suave
dela, a falar lentamente à medida que se ia aproximando. O miúdo parecia
irritado, pronto para saltar a qualquer momento. Usando a cabine telefónica da
escadaria, contactei a polícia do campus.
Aproximei-me do lugar onde a JoAnne se sentara ao lado do miúdo, também
com as pernas a abanar do lado de fora do telhado. Ela fez um gesto subtil com
a mão, pedindo tempo e privacidade. À medida que a voz do miúdo se agitava
mais, a da JoAnne tornava-se mais suave e baixa. O rapaz tinha uma longa
lista de coisas que o incomodavam – notas, dinheiro, os pais, o habitual –, se
bem que parecia que tinha sido sobretudo um relacionamento curto e
fracassado o que o levara àquele momento ali. Dois outros alunos tinham
saltado do mesmo telhado naquele semestre; a julgar pelo tom da voz do
miúdo, pressenti que ele não tardaria a ser o terceiro.
Durante quase duas horas, a JoAnne ficou ali com ele enquanto uma
multidão de estudantes, polícias universitários e um camião dos bombeiros se
juntava lá em baixo. De cada vez que alguém subia ao telhado e se
aproximava, a JoAnne erguia a mão, como que a dizer: «Deem-me tempo.» A
dada altura, fez-me sinal para que me acercasse.
– Jake – disse-me –, tenho a garganta seca, será que podes trazer-me uma Dr
Pepper da máquina? – E depois virou-se para o miúdo: – John – perguntou-lhe
–, uma Dr Pepper para ti também?
O miúdo pareceu apanhado desprevenido. Hesitou, fitou-a e, por fim,
respondeu:
– Sim, sabia-me mesmo bem.
Não consigo explicar porquê, mas percebi instintivamente que, naqueles dez
segundos, com aquela simples oferta de um refrigerante, a JoAnne tinha de
alguma maneira persuadido o miúdo a não se matar. Eu era bastante
competente no meu trabalho, a lidar com pessoas, mas, naquele momento,
percebi que estava a anos de as compreender como a JoAnne compreendia
aquele miúdo. Uns meses depois, pedi a transferência para o curso de
Psicologia Comportamental. Desde então, sempre que vejo uma lata de Dr
Pepper numa máquina de venda automática, ouço sempre a JoAnne a dizer:
«Uma Dr Pepper para ti também?»
Na faculdade, a JoAnne tinha uma aparência desinteressante e usava o
cabelo comprido com madeixas douradas e castanhas. Agora, diante de mim,
iluminada pelas tochas, parece diferente. Cada cabelo na cabeça dela parece
seguir as ordens precisas de um cabeleireiro austero e ditador de um elegante
salão de beleza de Union Square. Não é que lhe fique mal. É apenas
surpreendente. Quando terá aprendido a maquilhar-se?
– Que bom ver-te, Jake – diz ela.
– Então vocês conhecem-se. – Há uma alegria falsa na voz da Vivian. – Que
inesperado. Fico surpreendida por não ter sido informada.
– Trabalhámos juntos na faculdade – explica a JoAnne. – Há uns cem anos.
– Ah! – exclama a Vivian. – O que cai fora da nossa política atual de
verificação de antecedentes.
Depois, a JoAnne dá-me um longo abraço e sussurra-me ao ouvido:
– Olá, velho amigo.
Um homem aproxima-se – bronzeado, rijo, de altura média, a usar um fato
muito dispendioso.
– Sou o Neil – apresenta-se, apertando-me a mão com demasiada força. – O
marido da JoAnne.
– Espero que ela não se importe que eu conte isto – digo –, mas houve uma
noite em que a vi salvar a vida de um rapaz.
O Neil balança para trás, apoiando-se nos calcanhares. O seu olhar desvia-
se de mim para a JoAnne. Conheço aquele olhar. Está a avaliar-me, a avaliar a
reação que a mulher tem ao ver-me, a determinar se sou uma ameaça.
– Ela é uma mulher de muitos talentos – afirma.
– Oh – protesta a JoAnne em voz baixa –, não foi nada disso.
Antes que tenhamos tempo para conversar, a Vivian afasta-me.
– Temos de conhecer outras pessoas – insiste, guiando-me para o local onde
a nossa anfitriã, a Kate, se encontra. Ao seu lado, no relvado, uma lona de
plástico foi fixada com estacas. A Kate está a levantar a lona com a biqueira
do sapato, parecendo incomodada com aquilo.
– Precisa de ajuda? – pergunto.
– Não, não – responde ela –, cogumelos estúpidos. Logo agora que tinha o
jardim com um ar perfeito, decidiram despontar. Mas que mácula.
– Disparate – diz a Vivian. – Tem tudo um ar maravilhoso.
A Kate continua de sobrolho franzido.
– Hoje à tarde já estava a preparar-me para os arrancar e atirar para a
compostagem quando o Roger saiu a correr de casa para me impedir. Parece
que são de uma espécie rara e venenosa. Podiam ter-me matado. O Roger lá
sabe; era botânico antes de se dedicar à banca. Seja como for, limitámo-nos a
tapá-los com uma lona. O jardineiro vem na quinta-feira.
– Na nossa quinta do Wisconsin, quando eu era pequena – diz a Vivian –,
tínhamos um cogumelo de quatrocentos quilos. Cresceu subterraneamente e
atingiu o tamanho de um camião antes de nos sequer apercebermos de que
estava ali.
Nunca teria imaginado a Vivian como uma menina de uma quinta do
Wisconsin. Silicon Valley faz isso. Qualquer pessoa que passe um par de
décadas aqui perde qualquer rudeza e características distintivas do seu lugar
nativo a troco de um brilho denunciador do Norte da Califórnia. «Saudável
com umas opções sobre ações», chama a Alice a esse ar.
A Kate pede licença para terminar de preparar a comida e a Vivian leva-me
para outro grupo. O Roger aproxima-se com uma garrafa de vinho e um copo
novo.
– Com sede?
– Sim, por favor – respondo, acenando com a cabeça. Ele enche-me o copo
até meio, chegando ao fim da garrafa.
– Espere – pede, enquanto agarra numa idêntica do bar improvisado em
cima da mesa do pátio. Do bolso de trás tira um objeto oval em aço inoxidável
e, com um gesto do pulso, transforma-o de estranho objeto de arte moderna
num saca-rolhas simples. – Já o tenho há quase vinte anos – diz-me. – Eu e a
Kate trouxemo-lo da nossa lua de mel, na Hungria.
– Que aventureiros – comenta a Vivian. – Eu e o Jeremy limitámo-nos a ir ao
Havai.
– Éramos os únicos turistas num raio de quilómetros – diz o Roger. – Tirei
um mês de férias e alugámos um carro para percorrer o país. Na altura
vivíamos em Nova Iorque e a Hungria foi a coisa menos nova-iorquina que
nos ocorreu. Seja como for, íamos no nosso Lancia, nos arredores de Eger,
quando um pistão se desfez e o carro simplesmente empanou. Empurrámo-lo
para a berma da estrada e começámos a caminhar. Havia luz numa pequena
casa. Batemos à porta. O proprietário convidou-nos a entrar. Resumindo,
passámos os dias seguintes na casa de hóspedes dele. Ele tinha uma atividade
secundária, a de fazer saca-rolhas, e ofereceu-nos este como presente de
despedida.
«É apenas um objeto simples – conclui o Roger –, mas eu adoro-o. Lembra-
me da melhor altura da minha vida.
Nunca tinha ouvido um homem a falar tão melancolicamente da sua lua de
mel. Leva-me a pensar que talvez esta coisa do Pacto seja mesmo especial.
A noite passa num instante. A comida é espetacular, principalmente a
sobremesa, uma pilha impressionantemente grande de profiteroles; não sei ao
certo como a Kate terá conseguido fazer tudo sozinha. Infelizmente, estou
demasiado nervoso para apreciar tudo convenientemente. Passo a noite a
sentir que estou no meio de uma daquelas entrevistas de emprego heterodoxas
de Silicon Valley – perguntas bizarras intermináveis apresentadas como
conversa de circunstância, embora saibamos que na verdade aquilo é uma
conversa bem planeada com o objetivo de nos extrair a própria alma.
A caminho de casa, eu e a Alice trocamos impressões. Eu receio ter falado
muito pouco e, provavelmente, entediado toda a gente. A Alice receia ter
falado em demasia. Faz isso quando fica nervosa. É um hábito perigoso que a
tem deixado ficar mal em eventos sociais. Enquanto avançamos pelo acesso,
pelas estradas sinuosas e de novo pela via rápida, vibramos de energia
nervosa. A Alice está otimista, até estonteada.
– Mal posso esperar pela próxima – diz.
E, nesse momento, decido não lhe falar do meu segundo encontro com a
JoAnne. Aconteceu mais tarde, quando toda a gente estava reunida em torno da
braseira. Parecia ser um tempo de partilha organizado, em que os casais
contavam que presentes tinham dado ao respetivo cônjuge e que viagem tinham
feito desde a festa do trimestre anterior. Incomodado e um pouco entediado,
esgueirei-me para a casa de banho. Depois de lavar as mãos e de demorar uns
minutos a recompor-me, apreciando o silêncio após uma noite de conversa de
circunstância, abri a porta e deparei com a JoAnne. Ao início, pensei que ela
também tinha apenas subido para ir à casa de banho, mas depois apercebi-me
de que me tinha seguido.
– Olá – disse-lhe.
Ela lançou um olhar nervoso para ambas as direções do corredor antes de
sussurrar:
– Desculpa.
– O quê? – perguntei, surpreendido.
– Não devias estar aqui. Não vi o teu nome na lista. O email deve ter sido
enviado quando estávamos de férias. Eu tê-lo-ia impedido, Jake. Podia ter-te
salvado. Agora é demasiado tarde. Lamento. – Olhou para mim com aqueles
olhos castanhos terrosos que eu recordava tão bem. – A sério, lamento imenso.
– É um grupo agradável – disse eu, confuso. – Não tens qualquer motivo
para pedir desculpa.
Ela pousou uma mão no meu ombro e parecia prestes a dizer algo mais, mas
depois limitou-se a suspirar.
– É melhor voltares para junto dos outros.
No dia a seguir à festa, chego a casa do trabalho e deparo com uma grande
caixa pesada no nosso alpendre da frente. Lá dentro há outra caixa, de garrafas
de vinho húngaro, e um cartão branco. Bem-vindos, Amigos, diz a dourado em
letras cursivas. Ficamos desejosos de voltar a ver-vos.
18
P ela Estrada 101, ao longo da 380 e para norte pela 280, fui até casa a
tentar lembrar-me das palavras específicas da JoAnne. Quando parei o
carro no acesso da casa, olhei para baixo e vi que o pacote inteiro de bolachas
Stella Doro que tinha acabado de comprar se fora, com migalhas espalhadas
por todo o lado, apesar de não ter qualquer memória de as comer.
A Alice ainda não tinha chegado, pelo que me dispus a fazer o jantar. Frango
numa cama de alface-romana, com molho de compra. Não tinha concentração
para fazer nada mais complexo.
Alice apareceu depois das sete, com ar cansado, no seu fato Chanel.
Abracei-a e beijei-a, apertando-a com força contra mim. Sentia sempre a
bracelete suave e quente quando ela unia as mãos atrás do meu pescoço. Mas,
agora, depois da conversa com a JoAnne, provocava-me calafrios na espinha.
– Ainda bem que chegaste cedo – disse eu, talvez mais para a bracelete do
que para qualquer um de nós.
Ela massajou-me a nuca com os dedos.
– Estou contente por ter vindo cedo.
Puxei-lhe o pulso para junto da minha boca e falei para a bracelete:
– Obrigado por teres trazido o meu gelado favorito, foi mesmo atencioso da
tua parte!
Claro que tinha sido eu a comprar o gelado, mas não era possível que eles
soubessem isso, pois não?
Ela sorriu.
– Bem – respondeu ela, a falar para a bracelete –, se o fiz foi porque te amo.
E porque estou feliz por ter casado contigo.
Queria falar-lhe do encontro com a JoAnne. Ainda pensei pegar no bloco de
papel em cima da mesa da cozinha e escrever tudo aquilo, entregando-o à
Alice para que pudéssemos discutir silenciosamente aquela coisa em conjunto,
pensar no que fazer. Mas o aviso da JoAnne corria-me pela mente: não dizer
palavra a ninguém, nem mesmo à Alice. A parte mais razoável do meu cérebro
dizia-me que a JoAnne estaria a passar por qualquer coisa, a perder o juízo. Já
o tinha visto acontecer – pessoas perfeitamente normais, mentalmente estáveis,
casos tardios de esquizofrenia e paranoia. Reações inesperadas a certos
medicamentos. Estímulos que ativavam algum trauma de infância e que
pareciam mudar a personalidade da pessoa da noite para o dia. Profissionais
de meia-idade que tinham abusado dos ácidos na faculdade e que de repente
descobriam que um portal singular e soterrado para a insanidade se abrira no
interior dos seus cérebros. Quis acreditar que o pânico da JoAnne, a sua
história bizarra acerca de castigos, se devia a algum demónio pessoal de cuja
influência ela não conseguia libertar-se. Desejei ter passado mais tempo a
falar com o marido dela durante a festa, para poder ter noção do tipo de
pessoa que seria. Mas a ameaça de uma ação contra a Alice, a ideia de que o
Neil e outras pessoas estivessem a discutir os alegados crimes que ela
cometera e as sanções adequadas, causava-me arrepios. Como poderia eu
saber o que era real e o que era um produto da imaginação febril da JoAnne?
Enquanto púnhamos a mesa, a Alice disse-me que ia almoçar com a Vivian
no dia seguinte.
– Já se passaram catorze dias – recordou-me. – Amanhã ela tira-me a
bracelete.
Nessa noite, a Alice não fez a sua meia hora de leitura. Um jantar demorado,
nada de televisão, um passeio pelo bairro, conversa amorosa, um encontro
lento e incaracteristicamente ruidoso na cama. A nossa representação de um
casal feliz foi tão completa que faria outros casais felizes, como Mike e Carol
Brady ou Samantha e Darrin Stephens2, parecer estarem à beira de um
divórcio horrível. A parte mais estranha foi que nunca reconhecemos que a
nossa atuação era para a bracelete, ou sequer que fosse uma atuação, pelo que
para mim se tornou outra coisa, algo mais genuíno, à medida que a noite
avançava. No entanto, quando acordei na manhã seguinte, a minha mulher
perfeita da noite anterior tinha desaparecido. Lá estavam os seus sapatos de
salto alto largados pelo meio do corredor, de tal forma que quase tropecei
neles, a sua desarrumação de loções e rímel e batom espalhada na bancada na
casa de banho, a sua embalagem de iogurte vazia e a caneca onde tinha bebido
café suja de batom, em cima da mesa. Quase esperava uma nota – Obrigada
pela noite fantástica, amo-te mais do que é possível dizer por palavras –,
mas não havia nada. Quando o relógio bateu as cinco da manhã, a minha
dedicada esposa Alice tinha voltado a ser a advogada concentradíssima que
era. Para ela, receava eu, a atuação da noite anterior tinha sido realmente para
a bracelete.
Enquanto me preparava para ir trabalhar, fui acometido por uma memória da
primeira vez que passámos a noite juntos. Foi no apartamento dela, no Haight.
Tínhamos ficado acordados até tarde na noite anterior, a fazer o jantar e a
assistir a um filme, e caído na cama no final da noite, mas sem fazer amor. A
Alice queria levar as coisas com calma e isso, para mim, não constituía
problema. Adorava deitar-me ao lado dela, abraçá-la, ouvir os sons da rua lá
em baixo. Na manhã seguinte, sentámo-nos na cama, a ler o jornal. Estava
música a tocar – uma bela obra para piano, interpretada por Lesley Spencer. O
sol entrava pelas janelas e o apartamento tinha uma linda luz amarela. Por
algum motivo, o momento pareceu certo. E eu soube que aquele quadro
permaneceria comigo durante muito tempo.
Sempre me surpreendeu o facto de as nossas memórias mais indeléveis
serem muitas vezes de coisas aparentemente mundanas. Não sou capaz de
dizer a idade da minha mãe, ou durante quantos anos continuou a trabalhar
como enfermeira depois de nos ter, ou o que terá feito para a festa do meu
décimo aniversário. Mas sei dizer que, certa vez, numa tarde quente de sexta-
feira de verão durante a década de 1970, me levou ao supermercado Lucky,
em Millbrae, e que, assim que entrámos, me disse que podia comprar qualquer
comida que quisesse.
Não sou capaz de me lembrar dos pormenores de muitos dos marcadores
significativos da minha vida, dos acontecimentos carregados de sentido:
Primeira Comunhão, Crisma, cerimónia de fim de curso, o primeiro dia do
meu primeiro trabalho. Nem sequer me lembro da primeira vez que saí com
uma rapariga. Mas consigo, com uma clareza incrível, descrever a minha mãe
nessa noite de verão em Millbrae: o vestido amarelo que ela estava a usar, as
sandálias de sola de cunha de cortiça e tiras às flores, o cheiro da loção
Jergens nas suas mãos a misturar-se com o odor limpo e metálico do
congelador, o grande carrinho de compras prateado, as luzes brilhantes do
supermercado, os Flaky Flix e Chocodiles empilhados no assento na parte da
frente do carrinho, o empregado adolescente que me disse que eu era um
miúdo com sorte e a sensação calorosa e feliz que tive, o intenso amor que
senti pela minha mãe nesse momento. As memórias, como a alegria, parecem
sempre apanhar-me desprevenido quando não ando à procura delas.
2 Personagens de séries cómicas norte-americanas clássicas, The Brady Bunch e Casei com Uma
Feiticeira. (N. da T.)
25
N essa tarde, cheguei a casa às cinco. Queria ter o jantar pronto quando a
Alice voltasse. Estava nervoso e estranhamente ansioso por saber os
pormenores do seu almoço com a Vivian. Não sabia bem se o jantar devia ser
algo comemorativo ou uma coisa comedida, pelo que preparei uma paella
simples, abri uma garrafa de vinho e pus a mesa com velas.
Às seis e um quarto, ouvi a porta da garagem abrir-se e o carro da Alice
entrar. Demorou tanto a subir que me deixou nervoso. Não queria demonstrar a
minha ansiedade, não fosse dar-se o caso de as coisas com a Vivian terem
corrido mal. Acabei por ouvir os passos dela nas escadas das traseiras e,
depois, a porta abriu-se. A Alice trazia a pasta do computador, o casaco, uma
caixa com ficheiros – vinha carregada, como de costume. O meu olhar
procurou de imediato o pulso dela, mas este estava tapado pela manga da
gabardina.
– Mnham – fez ela, reparando na panela em cima do fogão. – Paella!
– Sim – respondi. – Nouvelle cuisine digna de uma estrela Michelin.
Tirei-lhe a caixa e levei-a para a sala de estar. Quando voltei, os sapatos, as
meias e a saia dela estavam no chão e ela tinha soltado o cabelo. Estava ali de
blusa, gabardina e roupa interior, parecendo que finalmente podia respirar.
Tinha desenvolvido uma pequena imperfeição na parte interna da coxa
esquerda, uma veia que escassos meses antes tinha sobressaído um pouco.
Mostrara-me a veia no próprio dia em que aparecera, mais incomodada do que
seria razoável, pareceu-me. «Que raio é isto?», exigira saber. «Entrei em
declínio. Daqui a nada nem vou poder usar saia.»
«É amorosa», garantira-lhe eu, pondo-me de joelhos para lhe beijar a veia
antes de começar a subir. Tornara-se uma espécie de código: sempre que ela
queria esse favor em particular, apontava para a veia e dizia: «Querido, estou
a sentir-me mesmo muito mal por causa disto.» O efeito era que, desde então,
sempre que eu via aquela pequena imperfeição, sentia uma pequena comoção
erótica.
– Como correu com a Vivian? – perguntei, empurrando os sapatos dela para
debaixo da mesa da cozinha, para não tropeçar neles. Já me ocorreu muitas
vezes que qualquer ladrão que se atrevesse a forçar-nos a porta teria um
acidente fatal com os sapatos de Alice antes de poder roubar o que quer que
fosse.
E então ela dançou lenta e sensualmente, despindo a gabardina,
desabotoando a blusa de seda, expondo os ombros até tirar a última manga
para revelar que a bracelete já não estava ali.
Peguei-lhe na mão e beijei-lhe o pulso com suavidade. Parecia sensível.
– Tive saudades tuas – disse-lhe. Sentia-me tão aliviado, como se um peso
físico me tivesse sido tirado de cima dos ombros.
– E eu tuas – disse ela, e depois dançou pela cozinha só de cuecas e sutiã,
de mãos no ar.
– Isto quer dizer que passámos no teste?
– Não propriamente. A Vivian diz que nem sempre se pode interpretar a
ordem de retirar a pulseira como uma indicação de que se foi ilibado de atos
subversivos contra o casamento.
– Atos subversivos? Estás a brincar?
– Por vezes – disse a Alice –, continuam a análise depois de a bracelete ter
sido retirada.
Na sala de jantar, afastei uma cadeira e ela sentou-se, de pernas pálidas
esticadas diante de si.
– Começa pelo princípio – pedi.
– Bem, cheguei ao Fog City primeiro, para poder arranjar mesa.
– Bem jogado.
– A Vivian voltou a pedir a salada de atum e eu pedi o hambúrguer. Só se
referiu à bracelete quando acabámos as entradas. Depois disse-me: «Tenho
uma boa notícia, recebi a chave para a sua bracelete.» Pediu-me que lhe desse
o pulso, eu pousei o braço na mesa e ela sacou de uma caixa metálica que
trazia na mala. Tinha uma data de luzinhas azuis em cima. Ela abriu-a e havia
uma chave ligada por um fio à parte de dentro da caixa. A Vivian pegou-me no
pulso e enfiou a chave na bracelete. Depois, carregou num botão dentro da
caixa e a bracelete abriu-se de repente. E depois ela disse: «Está livre.»
– Estranho.
Trouxe a paella da cozinha e sentei-me à mesa com a Alice.
– Depois, a Vivian guardou a bracelete e a chave na caixa, que fechou e
guardou na mala. Fiquei contente por ver aquela coisa desaparecer. Mas nem
tudo foi bom. Houve condições para a minha libertação.
– Não! – exclamei, a pensar na minha conversa no Draeger’s. Castigos. Tive
a sensação incómoda de que aquilo que a JoAnne me dissera tinha um fundo de
verdade.
A Alice provou a paella e declarou que estava deliciosa.
– Lembras-te de que, quando ela explicou aquela coisa toda acerca da Orla
e de o Pacto se basear no sistema de justiça penal britânico, nós pensámos que
ela estava a falar figurativamente, não literalmente? Segundo parece,
enganámo-nos.
A Alice explicou as condições da sua libertação. Era mesmo como o mundo
dos tribunais penais. Teve de assinar uns documentos, pagar uma coima de
cinquenta dólares e aceitar encontrar-se com um conselheiro uma vez por
semana durante as quatro semanas seguintes.
– Pena suspensa – disse ela.
– Tenho de te contar uma coisa.
Descrevi-lhe o meu encontro com a JoAnne no Draeger’s e que isso tinha
andado a pesar-me nos últimos dias.
– Por que não me disseste isso antes? – perguntou a Alice, parecendo
magoada.
– Não sei. O Pacto está a deixar-me paranoico. Não quis dizer nada
enquanto estivesses a usar a bracelete. Depois de tudo o que a JoAnne disse,
não queria criar-te problemas. E também não queria criar-lhe problemas.
Pareceu-me tão nervosa.
Uma nuvem toldou o rosto da Alice. Reconheci-a e soube o que ia dizer
antes que as palavras lhe saíssem:
– Disseste que trabalharam juntos na faculdade. Mas não me disseste se
alguma vez foste para a cama com ela. Foste para a cama com ela, Jake?
– Não – respondi com ênfase. – E, seja como for, temos mesmo de ir por aí?
Estou a tentar dizer-te uma coisa importante.
– Continua – disse ela, mas eu percebia que a suspeita se mantinha.
– O que estou a dizer é que, depois do teu encontro de hoje com a Vivian,
tenho de reavaliar o aviso da JoAnne. Temos de considerar tudo o que ela
disse a uma nova luz.
A Alice afastou o seu prato.
– Agora, eu é que estou a ficar paranoica.
Só depois de termos levantado a mesa e estarmos a lavar a loiça é que a
Alice me contou a outra notícia do dia: o escritório tinha anunciado os bónus
anuais. A maquia que a Alice receberia era suficientemente generosa para lhe
reduzir quase a metade o empréstimo que fizera para pagar as propinas do
curso de Direito.
– Isso pede champanhe! – disse eu.
Tirámos os copos do armário e brindámos ao bónus, bem como à nossa
vitória contra o Pacto (ou talvez dentro dele). Brindámos à nossa vida feliz. A
seguir, fomos para a cama e fizemos amor da nossa maneira privada e
silenciosa.
Depois, antes de adormecermos, a Alice passou os braços à minha volta e
sussurrou:
– Achas que a bracelete me tornou uma mulher melhor?
– És a mulher perfeita, aconteça o que acontecer. E o Pacto faz de mim um
marido melhor?
– Acho que vamos descobrir.
Revendo aquela noite, salta-me à vista que estávamos ambos um pouco
assustados, mas nem por sombras tão cautelosos como deveríamos. O Pacto
tinha aquele apelo misterioso das coisas que tanto nos repulsam como nos
atraem. Como um ruído na garagem a meio da noite, um gesto romântico de
alguém que sabemos que devemos evitar, ou uma luz estranha e brilhante que
seguimos até às profundezas de um bosque, sem saber onde nos levará, ou que
género de perigo nos esperará lá. Ambos sentíamos o seu apelo, apesar do que
a razão nos dizia. Tinha um magnetismo forte e inexplicável a que não
conseguíamos, ou não queríamos, resistir.
26
Cara Amiga, Por esta via é-lhe comunicado que apareça na sexta-feira às
nove da manhã no Aeroporto de Half Moon Bay. O nosso representante
irá recebê-la e fornecer-lhe mais instruções nessa altura. Não é
necessário que traga roupas ou outros artigos. Por favor, não traga
quaisquer objetos de valor, pertences pessoais ou equipamentos
eletrónicos. Isto é uma diretiva, não um pedido. O incumprimento de uma
diretiva, como estará ciente, é descrito com pormenor na Secção 8.9.12-
14. Aguardamos a sua presença. Atenciosamente, um Amigo.
Dentro de mim, tudo se abate, com o pavor a crescer.
– Tinha finalmente começado a pensar que me enganara em relação ao Dave.
Quase cheguei à conclusão de que tudo aquilo não tinha sido nada, que tinha
pegado numa conversa que na realidade tinha sido bastante normal e, de tanto
pensar nela, a tinha transformado numa coisa sinistra.
– Nada, não – digo. E conto-lhe do encontro com a Vivian.
Os olhos dela enchem-se de lágrimas.
– Desculpa, querida. – Puxo-a para os meus braços. – Nunca devia ter
permitido que nos metêssemos nisto.
– Não, eu é que peço desculpa. Eu é que convidei o Finnegan para o nosso
maldito casamento.
– Não podes ir a Half Moon Bay. O que é que eles podem fazer?
– Muito. Se me expulsam da firma, se... – Vejo a mente dela acelerar, o
pânico a instalar-se. – Temos os empréstimos todos, não vou ter boas
recomendações, não vou conseguir outro emprego, a hipoteca... A Vivian tem
razão. A influência do Finnegan é bem abrangente. E não é só o Finnegan, são
todos os outros membros do Pacto que não conhecemos.
Tenho uma ideia.
– Quanto é que isso importa realmente? Parecias tão feliz agora mesmo, a
tocar a tua música. O que aconteceria se simplesmente pegasses no bónus e te
despedisses?
– Ainda não distribuíram os bónus. Não tenho o cheque. Precisamos mesmo
daquele dinheiro.
– Podemos passar sem isso – insisto, embora a verdade seja que estamos
com a corda completamente esticada, depois dos novos investimentos na
minha clínica, a hipoteca do edifício vitoriano, a hipoteca desta casa e as
meras despesas de vida numa das cidades mais caras do mundo.
– Não quero voltar a ser pobre; isso não é forma de viver.
– Estás a dizer que deves ir a Half Moon Bay?
– Acho que tenho de ir. Mas há um problema. Esta sexta-feira tenho uma
audiência marcada no tribunal. Vamos argumentar a minha moção para um
julgamento sumário. Passei meses a trabalhar nisto. É nela que podemos
ganhar o processo. Se perdermos na sexta, vai tudo por água abaixo: milhares
de horas de trabalho, esforço em vão, nenhuma possibilidade de vencermos.
Não acredito... Redigi a maldita moção, não pode ser outra pessoa a fazer isto
por mim.
– O telegrama refere consequências. Quais são?
Alice levanta-se e tira o seu exemplar do Manual da prateleira. Vai até à
Secção 8.9.12-14.
– As punições são atribuídas de acordo com a gravidade do crime e
calculadas, de forma similar ao Código Civil da Lei Comum, segundo um
sistema de pontos abaixo apresentado – lê ela. – À reincidência, conforme
aqui escrito, é atribuído o dobro dos pontos. A cooperação e as confissões
voluntárias são merecedoras de concessões apropriadas.
– Ora, mas que útil – comento.
– Podíamos fugir – sugere a Alice. – Podíamos mudar-nos para Budapeste,
mudar de nome. Arranjar emprego naquele grande mercado junto à ponte,
comer goulash, engordar.
– Eu realmente adoro goulash. – Estamos a tentar manter a normalidade,
mas não há qualquer ligeireza no ar. Parece que estamos verdadeira e
tremendamente fodidos. – Podemos sempre ir à Polícia.
– E o que é que lhes dizemos ao certo? Que uma mulher com uma mala
mesmo bonita me deu uma pulseira? Que estou com medo de perder o
emprego? Haviam de nos expulsar da esquadra à gargalhada.
– O Dave ameaçou-te – recordo-a.
– Imagina lá contar esta história a um polícia. Nunca nos levaria a sério.
«Ninguém deixa o Pacto»? Por favor... E, se falassem com o Dave, coisa que,
obviamente, não fariam, ele havia de lhes dizer que tinha sido tudo uma
brincadeira. E depois oferecia-lhes uma visita guiada a Pin Sur Mer.
Ficamos calados durante algum tempo, a tentar arranjar uma solução. Sinto
que somos dois ratinhos presos numa gaiola, ambos ainda convencidos de que
tem de haver uma maneira de sair.
– Maldito Finnegan, porra – diz ela por fim. Pega no seu teclado e toca outra
música, uma melodia triste do último álbum da sua banda, o que ela e o
namorado escreveram juntos quando estavam a separar-se.
– Budapeste não é má ideia – digo, quando a música chega ao fim.
A Alice parece considerar a proposta. Era suposto ser uma piada, mas
talvez não tenha de ser. Ocorre-me que ficarei satisfeito com o que quer que
ela decida. Amo-a. Quero que seja feliz. Não quero que tenha medo.
O meu coração abate-se quando ela sussurra:
– Eles haviam de nos encontrar, não era?
31
U m homem e uma mulher saem do jipe. Ambos usam fato. O homem tem
trinta e tantos anos, um aspeto cuidado, sardas, e é mais baixo do que a
mulher. O fato está-lhe justo no peito e nos ombros, como se ele tivesse
começado a fazer pesos pouco depois de ter ido ao alfaiate. A mulher fica ao
lado da porta do lado do condutor do Lexus, com as mãos atrás das costas.
– Bom dia, chamo-me Declan – diz o homem, aproximando-se de nós, ao
início das escadas. À semelhança do Kieran, tem sotaque irlandês. Estende-me
a mão e eu aperto-a.
– Jake – digo.
– E você deve ser a Alice.
– Sim – confirma ela, endireitando os ombros.
– Apresento-vos a minha amiga Diane – diz ele. Ela acena com a cabeça. –
Importam-se que entremos?
Vejo a centelha de desafio no sorriso da Alice.
– Temos alternativa?
A Diane tira um grande saco de viagem do assento traseiro do Lexus. O
Declan segue-nos para a sala de estar, enquanto a Diane aguarda no átrio, de
saco preto aos pés.
– Quer tomar alguma coisa? – ofereço.
– Não, obrigado – responde ele. – Talvez possamos sentar-nos por um
instante?
A Alice, ainda com o seu blusão de penas, senta-se no cadeirão azul. Eu fico
de pé ao lado dela, com o braço à volta dos seus ombros.
O Declan tira um ficheiro da sua mala a tiracolo e pousa uns papéis na mesa
de centro à frente da Alice.
– Segundo me consta, recebeu uma diretiva para se apresentar no Aeroporto
de Half Moon Bay. Esta informação está correta?
– Sim.
– Ela tinha de estar presente no Tribunal Federal nessa manhã – acrescento.
– Expressámos a nossa vontade de deixar o Pacto e, quando o nosso pedido
foi recusado, a Alice explicou que não poderia...
– Tenho a certeza de que teve as suas razões – interrompe-me o Declan –,
mas isso realmente não me cabe a mim determinar, nem à Diane.
Desliza uma folha para a Alice.
– Preciso que assine isto e indique a data em baixo. Demore o tempo
necessário para o ler, se o desejar. Declara que estava ciente da diretiva para
aparecer na hora e no local indicados.
– Eu sei ler – replica a Alice num tom seco. Passa os olhos pelos poucos
parágrafos e, quando está prestes a assinar, detenho-lhe a mão. Ela olha para
mim. – Não faz mal, Jake. Deixa-me tratar disto. A sério, é tudo o que diz. – E
assina.
O Declan desliza uma segunda folha para a frente dela.
– Se posso pedir-lhe que assine também este formulário...
– O que é isto?
– O formulário indica o seu reconhecimento da minha identidade e da
responsabilidade que eu e a Diane temos quanto ao cumprimento dos
requisitos do contrato que assinou na data indicada em baixo, testemunhado e
notariado por Vivian Crandall.
– E que requisitos são esses? – pergunto.
– Que a sua mulher precisa de nos acompanhar imediatamente.
– Eu também vou.
– Não. Só a Alice.
– Tenho tempo para mudar de roupa? – pergunta a Alice.
– Não estás a pensar ir mesmo?! – protesto.
Ela pousa-me uma mão no braço.
– Jake, está tudo bem. Quero levar isto até ao fim. É a minha escolha. –
Depois, olha para o Declan. – Mas não vou assinar isso.
– Tem de assinar – diz o Declan.
A Alice abana a cabeça.
– Se precisam que eu assine isso para ir convosco, então vão ter de ir
embora sem mim.
O Declan lança um olhar à Diane, que está intensamente atenta mas ainda
não falou.
– É o procedimento – diz a Diane.
– Bem, telefonem a alguém, se precisam. – A Alice encolhe os ombros. – Há
limites para o que assinarei. Sou advogada, estão recordados?
Penso nos documentos originais que assinámos e, apesar do que ela disse de
manhã na praia, desejo do fundo do coração que ela tivesse sido tão cautelosa
nessa altura como está a ser agora.
– Muito bem. – O rosto da Diane é imperscrutável. – Há uma lista de
procedimentos que temos de seguir. Falaremos deles depois de mudar de
roupa.
– Sugiro – acrescenta o Declan –, que use algo confortável e largo.
A Alice levanta-se e vai ao quarto despir as roupas húmidas da praia. Quero
segui-la, mas não quero deixar estes dois sozinhos na minha sala de estar.
Sabe-se lá o que poderiam esconder e onde.
– Quanto tempo é que ela vai passar fora?
O Declan encolhe os ombros.
– Não sei dizer ao certo.
– Para onde a levam? Posso visitá-la?
– Lamento, mas isso não será possível – responde a Diane.
– Ela ao menos pode ligar-me?
– Sim, com certeza. – O Declan sorri, como que para provar que é a pessoa
mais razoável do mundo. – Terá direito a dois telefonemas por dia.
– A sério – insisto. – Quanto tempo é que ela estará fora? E o que tencionam
fazer com ela?
O Declan puxa os ombros do seu casaco justo. Fico com a impressão de que
estou a fazer perguntas a que ele não deve responder.
– Ouça, realmente não sei.
A Diane tira um telemóvel do bolso.
– Vou lá para fora. – E sai pela porta da rua, que fecha atrás de si.
– Aqui entre nós – diz-me o Declan –, se tivesse de adivinhar, sendo a
primeira vez, recém-casados e inseridos há pouco no programa, diria no
máximo setenta e duas horas. Provavelmente, menos. Quanto ao quê, é
reeducação.
– Uma espécie de curso, quer dizer?
– Provavelmente mais uma situação individual.
Imagino outro conselheiro como o Dave, ainda que mais intenso.
– Mas não sei – acrescenta o Declan –, e não posso dizer e não tivemos esta
conversa.
Ouço a Alice percorrer as gavetas no nosso quarto em grande frenesi.
– E se ela se recusar a ir?
– Ouça – responde o Declan em voz baixa –, nem vá por aí. A coisa vai
funcionar assim: a sua mulher vai vestir-se, eu vou explicar-lhe os
procedimentos, vamos prepará-la para a viagem e depois eu, a Alice e a Diane
entramos no jipe e vamos embora. Como isso acontece depende da sua mulher.
Tem um longo caminho pela frente e não há mesmo necessidade de o tornar
mais desagradável do que tem de ser. Compreende?
– Não. Não compreendo. – Ouço a raiva que me permeia as palavras.
O Declan franze o sobrolho.
– Vocês os dois parecem pessoas amistosas e práticas. Tenho poderes muito
limitados, por isso deixe-me usá-los para tornar as coisas tão confortáveis
quanto possível.
A Diane, como se esta fosse a sua deixa, volta a entrar, e a Alice aparece
vinda do quarto. Usa um camisolão por cima de umas leggings, e ténis pretos.
Tem na mão a sua mala de viagem de fim de semana, um saco simples de pano
com o seu monograma à frente. Vejo umas meias e umas calças de ganga a
saírem, juntamente com o estojo de maquilhagem. Parece estranhamente
resoluta, apenas um pouco nervosa.
– Posso levar o telemóvel e a carteira?
O Declan acena com a cabeça. A Diane aproxima-se com um saco de
plástico com fecho, uma etiqueta e um marcador. Mantém o saco aberto diante
da Alice, que ali coloca o telemóvel e a carteira. A Diane sela o saco, afixa-
lhe a etiqueta e faz-lhe uma rubrica. Entrega o saco ao Declan, que também faz
a sua rubrica.
– Joias não – diz a Diane.
A Alice tira o fio que lhe dei no Natal, o do pendente de uma pérola preta.
Tem-no usado todos os dias desde que lho ofereci. Eu seguro-lhe a mão, sem
querer deixá-la ir. Tenho a certeza de que estou mais nervoso do que ela. Ela
aproxima-se para me beijar e sussurra:
– Vai correr tudo bem. Por favor, não te preocupes. – Depois, volta-se para
o Declan, com um desafio no olhar. – Vamos?
Ele lança-lhe um olhar ligeiramente sofrido.
– Quem me dera que fosse assim tão fácil.
A Diane pousa o saco de viagem na mesa.
– Só preciso de efetuar uma pequena revista, para garantir que não traz nada
no corpo.
– A sério? – pergunto.
– Minha senhora, será que pode chegar aqui e encostar as mãos à parede?
A Alice lança-me um sorriso irónico, como se isto fosse tudo uma espécie
de jogo, nada de preocupante.
– Sim, minha senhora – responde com ligeireza à Diane.
– Isto é necessário? – exijo saber.
– É apenas parte do procedimento. – O Declan recusa-se a corresponder-me
ao olhar. – Não queremos que ninguém se magoe enquanto se encontra à nossa
guarda.
Enquanto a Diane revista a Alice, o Declan vira-se para mim.
– Para ser sincero, nem sempre é assim tão calmo. Quando as pessoas
ignoram uma diretiva, por vezes isso significa que não estão preparadas para
nos acompanhar. Compreensivelmente, os procedimentos foram criados tendo
isso em mente.
A Alice está de costas para mim, com as mãos contra a parede. Isto parece
incrivelmente surreal. A Diane leva a mão ao seu saco e tira de lá umas
algemas com correntes. Fecha cada lado à volta dos tornozelos da Alice. Ela
não se mexe.
– A sério. – Dou um passo na direção da minha mulher. – Isto já foi longe de
mais.
O Declan empurra-me para trás.
– É por isso que as pessoas nunca ignoram as diretivas. Trata-se de um
dissuasor eficaz.
– Minha senhora – instrui a Diane –, pode virar-se e esticar os braços à sua
frente? – A Alice obedece. A Diane tira do saco algo feito de pano, fivelas e
correntes. A Alice parece perceber do que se trata antes de mim. O seu rosto
empalidece.
A Diane enfia-lhe a camisa de forças pelos braços esticados.
– Não vou permitir que façam isto! – exclamo, lançando-me contra o
Declan. O antebraço dele atinge-me a garganta, a perna dele gira e eu estou no
chão, enquanto o Declan se mantém de pé por cima de mim. Custa-me
recuperar o fôlego, estou estonteado; aconteceu tudo tão depressa.
– Deixem-no em paz! – grita a Alice, impotente.
– Vamos fazer isto da maneira fácil, certo? – diz-me o Declan.
Tento falar, mas não consigo, pelo que opto por acenar com a cabeça. O
Declan puxa-me para me pôr de pé novamente. Só então me apercebo de que
terá pelo menos mais vinte quilos do que eu.
A Diane olha para o Declan.
– Equipamento para a cabeça?
– Para a cabeça? – exclama a Alice. O terror na voz dela é de partir o
coração.
– Promete-me que não vai haver gritos? – pergunta-lhe o Declan. – Quero
uma viagem tranquila.
– Sim, sim, claro.
Ele pensa por um momento e depois acena com a cabeça.
Enquanto a Diane passa uma tira por entre as pernas da Alice e começa a
apertá-la atrás, a Alice pergunta:
– Temos de sair pela porta da frente? Não quero que os vizinhos me vejam
assim. Podemos ir antes pela garagem?
O Declan troca um olhar com a Diane.
– Não vejo por que não – diz.
Encaminho os três pela cozinha e pelas escadas das traseiras. Carrego no
botão e a porta da garagem sobe. O Declan destranca o jipe e abre a porta de
trás. Eu continuo a tentar convencer-me de que isto é um pesadelo. De que não
está mesmo a acontecer.
A Diane empurra a Alice para que passe por mim. Ela hesita e depois vira-
se para mim. Por um segundo, receio que vá tentar fugir.
– Amo-te – diz, beijando-me. Fita-me os olhos. – Não ligues à Polícia, Jake.
Promete-me.
Puxo-a para um abraço apertado, em pânico.
– Vamos – ordena o Declan.
Como não me movo, ele agarra-me o antebraço com as suas mãos enormes.
Num instante, estou novamente de joelhos, com uma dor lancinante a
trespassar-me o ombro.
A Diane ajuda a Alice a subir desajeitadamente para o assento traseiro.
Quando ela se instala, a Diane puxa o cinto de segurança para baixo e prende-
a. A custo, levanto-me. Tenho o coração a latejar. O Declan entrega-me um
cartão. Tem um número telefónico, nada mais.
– Em caso de emergência, contacte este número. – Fita-me os olhos. – Só em
caso de emergência. Compreende? Mantenha o telemóvel à mão, ela vai
telefonar-lhe. Isto não é tão mau quanto parece.
O Declan e a Diane entram no jipe e saem do acesso. Aceno à janela de
vidro fumado das traseiras, embora não saiba ao certo se a Alice consegue
ver-me.
38
S into a casa silenciosa e vazia. Não sei o que hei de fazer. Vejo televisão,
ando de um lado para o outro, leio o jornal e sirvo-me de uma tigela de
cereais que estou demasiado perturbado para comer, sempre a olhar para o
telemóvel, a desejar que toque. Quero telefonar para a Polícia. Por que me
terá ela obrigado a prometer que não o faria? Tento imaginar o que terá
pensado, e julgo que compreendo: a grande cobertura mediática de um rapto,
câmaras de televisão, toda a especulação sórdida acerca das nossas vidas
privadas. Isso ia arrasá-la.
Fico acordado até tarde. O telemóvel não toca. Pergunto-me onde estará ela,
quão longe terão ido. Enquanto o jipe subia a rua, apercebi-me de que tinha
uma matrícula de outro estado. Não consegui distinguir o nome do estado, só
vi as cores e o esquema. Online, procuro imagens das matrículas dos
cinquenta estados. Concluo que o carro era do Nevada.
À meia-noite, continuo a não ter recebido telefonema algum. Levo o
telemóvel comigo para o quarto e pouso-o ao lado da almofada. Passo o tempo
a confirmar que tem o som ligado. Tento dormir, mas não sou capaz. Por fim,
agarro no portátil, ligo-o à corrente e começo a fazer pesquisas na Internet.
Digito «O Pacto», mas tudo o que encontro são referências a um filme e à sua
sequela. Já fiz esta pesquisa antes, com resultados similares. Mais abaixo,
aparece um romance com o mesmo título. Procuro «culto de casamento», mas
não encontro nada. Faço uma data de pesquisas diferentes, combinando
palavras com Nevada, e nada. Procuro Vivian Crandall e encontro-a no
LinkedIn, mas o perfil dela está configurado como privado. Se eu entrasse com
o meu nome de utilizador, ela saberia que eu o tinha consultado. Há umas
quantas referências à Vivian noutros websites, indícios de uma carreira
mediana que não lhe valeu grande atenção – nada que sequer deixe entrever
que faz parte do Pacto. Procuro a JoAnne e é ainda mais estranho. Há uma
fotografia do anuário do segundo ano na UCLA, em Classmates.com, mas nada
mais. Como é que isso acontece? Como pode uma pessoa ser praticamente
invisível na Internet? Procuro a morada da casa em Hillsborough onde teve
lugar a última festa, bem como a morada de Woodside, onde haverá a próxima.
Segundo a base de dados imobiliários Zillow, tanto uma propriedade como a
outra valem milhões. Que surpresa.
Em seguida, leio acerca de Orla, regressando a várias páginas que guardei
depois do nosso primeiro encontro com a Vivian. Há centenas de artigos
relacionados com o seu trabalho, umas dezenas de fotografias. Ao que parece,
era uma advogada muito respeitada. Há artigos do The Guardian, artigos de
opinião a favor e contra a sua candidatura a um cargo político. Depois, nada.
Abro o Google Maps e aumento Rathlin, a ilha irlandesa que a Vivian
mencionou. O mapa é granuloso, em baixa resolução, que é a forma de a
Google nos dizer que a ilha não tem verdadeira importância. Perscruto a costa,
em busca de casas ou aldeias; nevoeiro e nuvens cobrem a maior parte da ilha.
A Wikipédia diz que na ilha chove mais de trezentos dias por ano.
Vou verificando o correio eletrónico, para ver se a Alice terá tentado
contactar-me. Nada. Quanto tempo espero por ter notícias dela? E, depois, o
que faço? Marcar o número que o Declan me deu «estritamente para
emergências» parece má ideia. Estou sempre a lembrar-me do que a Alice
disse: «Quero levar isto até ao fim. É a minha escolha.»
Deixo-lhe mensagens no telemóvel, mas a minha aplicação das mensagens
indica-me que permanecem por ler. Imagino o telemóvel dela no saco de
plástico, numa pequena caixa, num grande armazém cheio de centenas de
outras pequenas caixas, todas elas com telemóveis, todos eles a tocar e a
apitar até ficarem sem bateria.
Ao quarto para as seis da manhã seguinte, o meu telemóvel desata a soar e
eu acordo em pânico. Mas era engano.
Levanto-me e tomo um duche. Enquanto me visto, o telemóvel toca de novo.
É um número desconhecido. De mãos trémulas, carrego em «Atender».
– Alice? – pergunto.
Uma voz gravada entoa:
– Estcrecluso de uma unidade prisional do estado do Nevada. Para
aceitar o custo, por favor diga «Aceito» depois do sinal sonoro.
Recluso? O sinal toca.
– Aceito.
Há um apito e depois outra gravação.
– A seguinte chamada telefónica poderá ser monitorizada. Todas as
chamadas têm a duração máxima de três minutos.
Outro apito. A chamada é estabelecida.
– Jake?
– Alice? Meu Deus, é tão bom ouvir a tua voz! Estás bem?
– Está tudo bem.
– Onde estás?
– No Nevada.
– Sim, mas onde, ao certo?
– No meio de nenhures. Seguimos pela 80 e depois saímos no deserto e
continuámos por uma estrada de terra batida até chegarmos a este sítio. Tentei
prestar atenção aos marcos miliários, mas perdi a conta. É mesmo na merda de
porra nenhuma... não há civilização, exceto uma gasolineira a não sei quantos
quilómetros daqui. É tudo de betão e arame farpado. Duas vedações enormes.
O Declan disse que é uma prisão que o Pacto comprou ao estado.
– Merda. Quem são estas pessoas?
– A sério – diz ela. – Estou bem. Não te preocupes.
Se ela estivesse em pânico, eu detetaria isso na sua voz, tenho a certeza.
Mas não há pânico. Parece cansada, impossivelmente distante. Não se arroga a
confiança suprema do costume, talvez, mas também não está assustada. Ou, se
está, consegue escondê-lo soberbamente bem.
– Não te passes, Jake, mas puseram-me numa cela. Isto é um espaço enorme,
mas não está aqui muita gente, pelo menos que eu tenha visto. Há quarenta
celas na minha secção, contei-as quando entrei, mas acho que sou a única
pessoa aqui. É tão silencioso. A cama é minúscula mas o colchão é decente.
Devo ter dormido umas dez horas. Hoje de manhã acordei quando alguém
deslizou um tabuleiro de metal pela minha porta – chouriço e omelete.
Delicioso. E café muito bom também, com natas.
Há um apito agudo e a gravação acerca de a chamada ser monitorizada
repete-se.
– Conheceste outros... – Procuro a palavra certa e espanto-me com a que me
surge. – Outros prisioneiros?
– Mais ou menos. Apanharam outra pessoa em Reno. O tipo encontrava-se
em mau estado. Ainda bem que fomos mais conformados; o equipamento para
a cabeça pareceu-me horroroso. Ele veio o caminho todo a suar horrores, mas
não podia dizer nada porque o tinham amordaçado.
– Oh, isso parece sádico!
– Mas, por outro lado, ele aceitou vir, certo? Não o arrastaram para fora da
casa nem nada. Vi-o caminhar pelo seu próprio pé até ao carro.
Outra gravação avisa-nos de que já só nos resta um minuto.
– Quando podes sair daí? – pergunto, desesperado.
– Espero que em breve. Tenho uma reunião com o meu advogado daqui a
uma hora. Atribuem um advogado a toda a gente. É de loucos. Estou-te a dizer,
se puseres de parte a comida excelente e a falta de pessoas, parece uma prisão
a sério. Até estou a usar roupa de prisão. Toda vermelha, com a palavra
prisioneiro em letras garrafais à frente e atrás. Mas o tecido é bom, mesmo
macio.
Tento imaginar a Alice com uma farda prisional. A imagem não se fixa na
minha mente.
– Jake... fazes-me um favor?
– Qualquer coisa.
Quero que este telefonema dure para sempre. Quero tê-la de novo nos meus
braços.
– Podes mandar um email ao Eric, do meu trabalho? Esqueci-me de que lhe
tinha dito que amanhã à noite ia ficar a trabalhar até tarde para tratar de uns
documentos. Inventa qualquer coisa. O endereço dele está no meu iPad.
– Claro. Podes telefonar-me mais tarde?
– Vou tentar.
Outro apito.
– Amo-te.
– E eu... – começa a Alice, mas a chamada cai.
39
S igo para sul por Daly City e depois pela desolação de Pacifica Highway,
subindo a colina e passando pelo belíssimo novo túnel. Quando saio do
outro lado, para o terreno de desfiladeiros, curvas sinuosas e praias a brilhar
ao luar, parece que estou noutro mundo. E penso o que penso sempre que saio
do túnel: por que não vivemos aqui? A tranquilidade é inegável, as vistas são
impressionantes, as propriedades são menos caras do que em São Francisco.
Os odores das quintas de alcachofras e abóboras misturam-se suavemente com
o ar salgado do Pacífico.
Minutos depois, entro no parque do Aeroporto de Half Moon Bay, a contar
passar algum tempo no café enquanto espero pela chegada do voo da Alice.
Fico desiludido ao deparar com tudo às escuras, o café fechado, nenhuma luz
acesa.
Estaciono junto à vedação, perto do fundo da pista. Cheguei meia hora mais
cedo. Não queria que a Alice aterrasse em Half Moon Bay e ficasse aqui
sozinha, às escuras, à minha espera. Desligo os faróis, ligo o rádio e reclino o
assento. Abro a janela para deixar entrar a brisa e para ouvir o avião da Alice.
Aqui não há nenhuma torre de controlo, nenhuma luz na pista, e pergunto-me
como será que os pilotos encontram esta tira estreita de asfalto junto ao mar.
Os aviões pequenos assustam-me, a mera precariedade aleatória de tudo
aquilo, a despenhar-se subitamente dos céus. Todas as semanas, segundo
parece, há uma nova notícia de uma estrela desportiva, um músico, um político
ou o CEO de alguma empresa tecnológica, um tipo qualquer que decidiu levar
a família de férias no seu avião privado. Parece-me uma loucura, confiar a
vida a uma aerodinâmica frágil.
O rádio está sintonizado na KMOO. Está a passar aquele programa ótimo,
chamado Anything is Possible. O apresentador, Tom, está precisamente a
terminar uma entrevista com o criador de Sloganeering. O produtor fala da
direção que a nova temporada tomará. Desconsidera a perda em tribunal frente
ao cliente da Alice, como um pequeno mal-entendido, sem referir a ignomínia
judicial. «Belo livro», diz ele. «Estamos a colaborar com o escritor e, no
final, julgo que isto até vai tornar a série melhor.» O programa chega ao fim,
começa outro e eu desligo o rádio. Parece-me que ouço o oceano ao longe,
embora possa ser só o vento a soprar nos campos de alcachofras.
Leio durante algum tempo, uma das revistas de música da Alice. A história
principal é um artigo longo acerca de Noel e Liam Gallagher. Depois pouso a
revista e fico à espera, às escuras. Verifico obsessivamente o relógio do
tabliê: 20h43. 20h48. 20h56. Começo a pensar que não vão chegar. Não há
luzes no aeroporto, à exceção de uma luminosidade ténue numa sala nas
traseiras do café. Será que percebi mal? Será que mudaram de ideias e
decidiram não libertar a Alice? Será que aconteceu alguma coisa?
São 20h58. Se calhar o avião nunca levantou voo. Se calhar ela não vem já
para casa. Ou, pior, se calhar havia mau tempo nas montanhas.
E então o relógio marca as 21h00 e o mundo ganha vida. Brilhantes luzes
amarelas acendem-se de ambos os lados da pista. Ouço o zumbir distante de
um motor. Olho para cima, mas nada vejo. Depois, ao longe, a sobrevoar as
árvores, distingo o contorno de um pequeno avião. A aeronave voa devagar e a
baixa altitude, aterrando suavemente. Desliza até parar ao fundo da pista, nem
a cinquenta metros de onde tenho o carro estacionado. O motor silencia-se,
deixando a noite novamente estática. Faço sinais de luzes para indicar que
estou aqui. O avião continua imóvel.
Onde estará a Alice? Torno a fazer sinais de luzes e saio do carro. E então
uma porta do avião abre-se e a escada desce, abrindo-se para um retângulo de
luz. Reconheço o tornozelo da Alice quando emerge do avião e pisa o
primeiro degrau. O meu coração acelera. Aparecem as pernas e a cintura dela,
o peito e o rosto, e depois já se encontra na pista. Está a usar as mesmas
roupas que tinha vestidas quando o Declan a meteu no jipe há uns dias. Anda
com cuidado, estranhamente direita. Passa-se alguma coisa, penso. Estará com
dores? O que lhe terão feito? Atrás dela, a escada recolhe-se. Quando ela
passa pela vedação, debaixo do candeeiro, em direção ao carro, vejo o motivo
da sua postura estranha. Tem qualquer coisa à volta do pescoço.
Ela vira o corpo e acena ao piloto, que acende as luzes de pista e liga o
motor. Quando nos aproximamos, passa os braços à minha volta, a tremer.
Puxo-a contra mim enquanto o avião levanta voo. As minhas mãos tocam-lhe
no cabelo suave e, por baixo, em algo rígido. O piloto pisca as luzes uma
última vez ao sobrevoar as árvores rumo ao oceano.
A Alice continua a abraçar-me e eu sinto o stress e a tensão a saírem-lhe do
corpo, mas ela está tão direita, tão hirta. Quando me chego para trás para olhar
para ela, vejo-lhe lágrimas nas faces, embora ela esteja a sorrir.
– Então – diz, dando um passo atrás para mostrar o grande colar que tem à
volta do pescoço. – Ei-lo, o Mecanismo de Concentração.
O colar envolve-lhe o pescoço, chegando-lhe até ao maxilar, onde lhe
segura o queixo, mantendo-o firmemente no lugar. Como a bracelete que usou
no pulso, tem uma superfície suave, cinzenta e sólida. Uma reentrância estreita
de espuma preta contorna a parte de cima do colar, onde este lhe toca no
queixo e no maxilar. O colar desaparece debaixo da camisa dela, chegando-
lhe abaixo dos ombros e, atrás, a meio da nuca. Ela está a fitar-me, com os
olhos cheios de ternura.
– Estás bem? – pergunto.
– Sim. E, aqui entre nós, desde que me puseram esta monstruosidade à volta
do pescoço, só tenho pensado numa coisa, só numa coisa. Em ti. – Depois, dá
um passo atrás e volta a exibir o seu novo look. Pergunta-me num tom
animado: – Como estou?
– Mais linda do que nunca – respondo, e estou a falar a sério.
– Por favor, leva-me para casa.
41
C edo na manhã seguinte, cheira-me a café, pelo que avanço pelo corredor.
Espero encontrar a minha mulher no seu local habitual, a escrever no
portátil, a tentar freneticamente recuperar o tempo perdido no trabalho. Mas
não a vejo aí. Sirvo-me de café e volto para trás, rumo à casa de banho. Da
Alice, nem sinal.
Depois, vejo uma faixa de luz dourada a emanar do quarto de hóspedes.
Empurro a porta e vejo a Alice diante do espelho de corpo inteiro, nua. Tem o
queixo firmemente erguido, o olhar fixo no reflexo. O pescoço permanece
imóvel, tolhido, mas os seus olhos encontram os meus no espelho. O seu olhar
é tão direto que me sinto perturbado. Há algo inegavelmente puro – escultural,
até – no colar que lhe envolve a garganta. Molda-se perfeitamente às curvas e
aos arcos do corpo da Alice, perfeitamente integrado a pairar escassos
centímetros acima dos ombros e do peito dela. Em vez de a ocultar ou
restringir, parece emoldurar-lhe a beleza. Aqui, à ténue luz dourada, julgo
compreender o propósito não apenas do colar, mas do próprio Pacto: a minha
mulher encontra-se diante de mim, mais presente no momento do que alguma
vez a vi, completamente livre de distrações, impressionantemente resoluta na
sua concentração e direção.
Não sei o que dizer. Coloco-me entre ela e o espelho. Por instinto, levo as
mãos ao colar, passando as pontas dos dedos pela superfície e depois pela
espuma macia que lhe envolve o queixo. O olhar dela permanece fixo em mim.
As lágrimas da noite passada desapareceram, substituídas por outra coisa. Um
olhar de fascínio? Na minha mente ecoam as palavras da Vivian: «Têm de se
reconciliar com o Pacto.»
– De alguma maneira – digo –, isso torna-te mais misteriosa.
Ela dá um passo em frente para me beijar mas, como não consegue levantar
o pescoço, tenho de fletir os joelhos para que a sua boca se una à minha.
Vou até ao canto e sento-me na cadeira junto à janela. Ela não se afasta do
espelho, nem tenta esconder de mim a sua nudez. Não sei se a Alice se
reconciliou, mas parece estar noutro patamar. Quando voltámos para casa
ontem à noite, ela parecia energizada, embora talvez estivesse apenas feliz por
estarmos juntos de novo. Quando lhe pedi que me contasse todos os
pormenores da viagem, que não deixasse nada de fora, ela limitou-se a dizer:
– Sobrevivi.
Mais tarde, disse-me que estava orgulhosa de si mesma por ter conseguido
ultrapassar aquilo.
– A única coisa que realmente me assusta – disse –, a única coisa que me
afeta é o desconhecido. O desconhecido aterroriza-me. Quando me meti nisto,
tudo era completamente desconhecido. Tenho uma sensação estranha de missão
cumprida. Entrei numa coisa absolutamente imprevisível e saí do outro lado.
– Eu também estou orgulhoso de ti – disse-lhe. – Sinto que fizeste isto por
nós. Isso significa imenso para mim.
– Fi-lo mesmo por nós.
Depois do jantar, ela quis apenas assistir a um episódio de Sloganeering,
comer gelado e ir para o quarto. Pus-lhe três almofadas debaixo da cabeça
para que ficasse mais confortável. Pensava que ela adormeceria numa questão
de segundos, mas isso não aconteceu. Puxou-me para si, agarrando-me com a
força de um náufrago. Quando lhe perguntei o que estava a pensar, respondeu:
– Nada.
Que é o que diz sempre quando lhe pergunto em que está a pensar. Por
vezes, acredito nela. Noutras ocasiões, porém, sei que tem as engrenagens da
mente às voltas e foi a sensação que tive nesse momento: eu do lado de fora, a
espreitar.
Por fim, fizemos sexo. Não sei se quero descrevê-lo aqui, se bem que possa
dizer que foi inesperado, algo invulgar. A Alice parecia determinada e, mais
do que isso... possessa. Eu queria tanto saber o que lhe tinha acontecido no
deserto. Em vez disso, cedi à sua paixão, à sua persistência, àquela iteração
extraordinária da Alice. A minha Alice, só que diferente.
42
AAlice tira o dia do trabalho. Apesar de ser Dia de São Valentim, fico mais
do que um pouco surpreendido. Suponho que faça sentido. As prioridades
dela alteraram-se. O Pacto está a funcionar.
É claro que há preocupações práticas: não encontra um fato ou sequer uma
blusa que lhe sirva com o colar e, para além disso, ainda não arranjou uma
explicação para o justificar. Escreve um email à assistente, diz que a
intoxicação alimentar piorou e que deve ter de passar um, dois ou três dias
sem ir ao escritório. Quando eu telefono para cancelar as minhas marcações
pelo segundo dia consecutivo, o Huang passa a chamada à Evelyn.
– Está tudo bem? – quer saber ela.
– Tudo – digo. – É uma emergência familiar. – A Evelyn não insiste.
Ao início, a Alice parece um pouco nervosa, como se não soubesse o que
fazer de si mesma, mas por volta das dez mostra-se contente por estar liberta
do trabalho e por termos um dia todo só para nós.
Damos um passeio até à praia. A Alice usa o seu casaco largueirão e passa
um cachecol à volta do colar. Eu levo a câmara. Quando me preparo para lhe
tirar uma foto rápida, grita-me:
– Não quero uma fotografia minha com esta coisa!
– Vá lá.
– Nunca!
– Só uma?
A Alice tira o cachecol e o casaco, revelando o colar. Olha diretamente para
mim e põe a língua de fora.
A caminho de casa, já nem se dá ao trabalho de pôr o cachecol ou o casaco.
Acho que fica surpreendida quando as pessoas que passam por nós não
parecem reparar ou importar-se. Passamos pelo Safeway e a empregada da
caixa olha para nós quando acaba de guardar as nossas compras em sacos.
– Ui... – diz. – Acidente de carro?
– Sim – responde a Alice.
E pronto. Durante os trinta dias seguintes, sempre que alguém comenta o
colar, a Alice limita-se a dizer aquelas três palavras: «Acidente de carro.» É o
que diz no trabalho, é o que diz aos nossos amigos, é o que diz ao Ian, à
Evelyn e ao Huang quando passa pela clínica para me levar a almoçar – coisa
para que nunca arranjava tempo antes. Por vezes, acrescenta o som de
automóveis a embater e faz um gesto dramático com as mãos. Ninguém lhe
pede mais informações. Exceto o Huang. «Foi um Toyota Corolla ou uma
carrinha da Honda?», perguntou. «Eu aposto no Corolla – são os piores
condutores que existem.»
Vou ser honesto. De cada vez que entrevejo o colar, ou apenas a minha
mulher – sentada ou de pé, muito direita, de queixo virado para a frente –,
ganho noção de como está verdadeiramente empenhada nisto. Todas as noites,
ajudo-a a lavar por baixo do colar, passando um pano morno e ensaboado pela
sua pele, fazendo-o passar por entre os apoios da fibra de vidro. Enquanto a
observo, enquanto cozinho para ela, enquanto faço amor com ela, enquanto
damos as mãos em frente à televisão, o que nunca digo à minha mulher, o que
nunca confesso, é o seguinte: o nosso casamento foi uma minha ideia, a minha
forma de a manter e, no entanto, aqui estamos nós, apenas uns meses depois de
casarmos, e ela já sacrificou muito mais do que eu.
43
E stima-se que mais de dez por cento das pessoas casadas tenham começado
o noivado no Dia de São Valentim. Habituei-me a inquirir os meus
clientes sobre porquê e quando ficaram noivos; achei interessante ler que os
casais que começam o noivado no Dia de São Valentim tinham casamentos
com bastante menos resolução. A única conclusão a que consigo chegar é que
um começo impetuoso e demasiado romantizado tenha maior probabilidade de
terminar com menos resistência.
Se os noivados ocorrem em fevereiro, os divórcios, muito frequentemente,
ocorrem durante o mês de janeiro. Estudos demonstram que os divórcios em
janeiro são mais prevalecentes nos estados de clima frio, embora janeiro
também não seja um mês espetacular para casamentos em sítios como Los
Angeles ou Phoenix. Se me pusesse a adivinhar, diria que o efeito da época
natalícia tem algo que ver com isso – expectativas goradas, ou talvez a
pressão de se passar demasiado tempo juntos sob o escrutínio de familiares
reprovadores. Se houver parentes próximos divorciados, isso coloca ainda
maior pressão num casal. Um divórcio na família, na verdade, é um forte
indicador de outros divórcios entre os familiares mais próximos. Quando Al e
Tipper Gore se divorciaram após quarenta anos de casamento, um ano depois
do divórcio da filha de ambos, Kristin, as peças do dominó começaram a cair.
Ao fim de um ano, outra das suas três filhas também se tinha divorciado e, no
final do ano seguinte, a peça que faltava: a terceira filha acabou por divorciar-
se. Há indícios de que, quando as pessoas próximas de nós põem fim ao seu
casamento, o divórcio passa subitamente a ser uma opção viável.
Se divórcio puxa divórcio, será razoável considerar que pertencer a um
clube privado no qual o divórcio não só é visto com maus olhos, mas chega a
ser ativamente desencorajado com um conjunto rígido de regras e
regulamentos, pode tornar o divórcio bem menos provável. O que quero dizer
é o seguinte: não obstante todas as táticas questionáveis, o manual
estapafúrdio e o jargão jurídico, bem como o secretismo, o Pacto pode
realmente ter descoberto algo válido.
44
A10Pactode em
março, a Alice vem para casa cedo, para se preparar para a festa do
Woodside. O nosso anfitrião, um tipo chamado Gene, referiu que
adora pinot noir quando o conheci na última festa, pelo que passei por uma
loja de vinhos para comprar uma garrafa interessante de um viticultor da zona
do rio Russo. A produção foi pequena, era difícil arranjar aquelas garrafas e o
custo foi substancial. Eu e a Alice decidimos que o investimento era
apropriado e necessário.
Desde que ela regressou do deserto, não voltámos a falar das nossas
intenções anteriores de nos libertarmos do Pacto. O tempo que lá passou foi
tão intenso, e a nossa relação desde então tem parecido encontrar-se em
terreno tão sólido, que todas as coisas que odiávamos acerca do Pacto se
tornaram, de certa forma, menos onerosas. Até a memória do Declan e da
Diane a levarem-na foi submetida a uma nova luz. Era necessário, disse o
Declan enquanto a Diane fechava as grilhetas à volta dos tornozelos da Alice,
e, embora eu não acredite nisso, percebo de facto que a experiência a mudou,
nos mudou. Que nos tornou, se possível, mais casados. Não posso negar que
estamos mais próximos agora. Não posso negar que estamos ainda mais
apaixonados. Se não nos reconciliámos com o Pacto, pelo menos por ora
parámos de lhe resistir.
Quando finalmente chego a casa, a Alice já está vestida e pronta para sair.
Depois de quase trinta dias com o colar, depois de quase trinta dias a ver a
Alice usar camisolas de gola alta, lenços, blusas com laços no pescoço e
gabardinas largas, é um choque vê-la de minivestido cinzento de alças, saltos
altos brilhantes e meias de seda. O colar quase parece fazer parte do vestido.
Ela arranjou o cabelo de forma a salientá-lo, ripado e solto. O cabelo e as
unhas compridas pintadas de azul escuro são a Alice por volta de 2008, o
vestido é a Alice por volta de agora, e o colar é algo completamente diferente.
– Então? – pergunta ela, dando uma volta desajeitada.
– Linda.
– A sério?
– A sério.
Ainda assim, não consigo perceber que declaração estará a fazer. Estará a
empinar o nariz perante as pessoas do Pacto? Será a sua forma de lhes dizer
que não podem envergonhá-la, não podem aprisioná-la? Ou será que o oposto
é que é verdade? Estará a demonstrar-lhes que aceitou o castigo que lhe
atribuíram e que está mais forte por causa disso? Por outro lado, talvez eu
esteja a analisar demasiado as coisas. Talvez a Alice se sinta apenas aliviada
por ir a um sítio onde não tem de se esconder, não tem de responder a
perguntas.
Visto o meu casaco cinzento da Ted Baker, o que não usei na primeira festa.
Não ponho gravata e opto por umas calças de ganga escura e pelos sapatos
mais inconvencionais. Ao calçá-los, ocorre-me que eu e a Alice estamos a
ficar mais à vontade no nosso papel no Pacto. Os seres humanos, como todos
os animais, têm uma capacidade de adaptação incrível. A sobrevivência
obriga-nos a isso.
Há pouco trânsito, pelo que chegamos à saída para Woodside Road com
bastante tempo de sobra. Na localidade, pergunto à Alice se quer ir tomar um
copo no bar do Village Pub. Ela pensa por um instante e depois abana a
cabeça. Não quer atrasar-se.
– Mas bem que precisava de beber qualquer coisa – diz.
Por isso, paro no Roberts Market para comprar um pacote de seis Peroni.
Conduzo até ao parque Huddart, paro o carro à sombra de um olmo de copa
larga e abro uma cerveja para cada um. Também estou a precisar de uma.
Acabei por deixar de ir ao Draeger’s à procura da JoAnne. Receio que ela
esteja na festa esta noite, e receio que não esteja. A Alice encosta a garrafa à
minha para brindar:
– Bota abaixo!
Custa-lhe inclinar a cabeça para a deitar abaixo, mas é isso que faz, e
apenas algumas gotas lhe escorrem pelo pescoço e para a parte de cima do
colar.
Talvez estejamos um pouco nervosos. Conheço o olhar com que bebe o
último trago; está a ganhar forças. Espreito o espelho retrovisor, quase à
espera de que a Polícia apareça.
– Temos tempo para mais uma?
– Talvez.
Tiro mais duas do saco.
A Alice arranca-me a garrafa da mão e bebe-a de penálti.
– Sou um peso-pluma – diz. – Não me deixes tomar nem mais uma bebida
durante o resto da noite. Não posso dar-me ao luxo de dizer alguma coisa de
que me arrependa.
Por vezes, em festas, a Alice tem dificuldade em controlar-se. Os seus
nervos residuais de adolescente fazem com que lhe seja complicado iniciar
uma conversa e, quando realmente começa a falar, nem sempre sabe quando
parar.
Na festa de inauguração da minha clínica nova, pensou que o responsável
pelo catering era o companheiro do Ian. É claro que, em festas dessas, uma
cerveja a mais e algumas palavras mal escolhidas provocam apenas embaraço
e talvez um pedido de desculpas confrangido mais adiante. Esta noite, uma
frase errada pode levá-la às traseiras de um jipe, a acelerar rumo ao deserto.
– Preparada?
– Não – responde a Alice, inspirando profundamente.
Viramos para a Bear Gulch Road e paramos junto a um teclado, diante de um
portão grande e intimidante. Primimos 665544, tal como dizia no cartão. O
portão estremece, ganhando vida.
– Não é demasiado tarde – digo. – Podemos dar meia-volta e fugir, talvez
para a Grécia.
– Não – diz a Alice. – A Grécia tem tratado de extradição connosco. Teria
de ser para a Venezuela, ou para a Coreia do Norte.
Avançamos pela estrada de montanha acima, passando por propriedades e
pastos. A cada curva, olhando com atenção, vê-se um casarão imponente no
meio do bosque. Woodside é apenas outra Hillsborough, só que com cavalos.
A estrada parece interminável. A Alice não diz palavra, nem quando eu
identifico a morada e viro para o acesso longo. Embora este lugar não esteja
propriamente ao mesmo nível da mansão de Hillsborough, é impressionante. O
Gene, o nosso anfitrião, é arquiteto, e isso nota-se. Candeeiros em forma de
globo ladeiam o caminho até à estrutura principal, uma casa que é uma
escultura alta e larga. Devia ser isto que tinham em mente quando inventaram a
expressão pornografia imobiliária.
Estaciono num lugar ao fundo e desligo o motor. A Alice fica quieta por um
momento, de olhos fechados.
– Sou capaz de precisar de outra cerveja.
– Não – digo.
Ela franze o sobrolho.
– Depois vais agradecer-me.
– Sacana.
Saímos do carro e detemo-nos por um minuto, ambos pasmados pela beleza
da casa e pelo caminho labiríntico que conduz até ela. Ficamos à beira do
caminho durante um minuto, de mãos dadas, sem falar. É muito possível que
nos encontremos no caminho errado; infelizmente, voltar para trás não é uma
opção.
45
O dia seguinte é o último da Alice com o Ron – ver o sol nascer, fazer
agachamentos e flexões, correr pelas dunas de areia de Ocean Beach. Ela
levanta-se e sai de casa antes de eu me aperceber sequer de que deixou a
nossa cama quente. Surpreendentemente, passou a gostar do tempo passado
com o Ron. Gosta das histórias que ele conta dos seus antigos namorados,
gosta de seguir a telenovela da sua vida caótica, que parece ser composta em
partes iguais por desportos radicais e festas radicais. Sobretudo, porém, gosta
que ele não seja, ao que parece, parte do Pacto. Foi contratado pela Vivian
para treinar a Alice, e é a Alice quem lhe paga semanalmente – em pessoa, em
dinheiro.
A Alice perdeu três quilos e desenvolveu novos músculos a sério. Tem o
estômago rijo, os braços definidos, as pernas magras. As roupas já não lhe
servem como deviam, as saias descaem onde costumavam envolver-lhe as
curvas e, certa tarde, pede-me que a ajude a levar todos os fatos para o carro.
Vai levá-los ao alfaiate para serem ajustados. A mim, parece-me
desnecessariamente ossuda, e o seu rosto perdeu a suavidade, revertendo para
traços mais duros que eu não sabia que tinha, coisa pela qual culpo o Pacto.
Ainda assim, ela parece feliz.
Também parece ter superado a sua irritação com o Dave; dá a impressão de
gostar realmente dele. Ainda tem de se reunir com ele mais duas vezes, e
depois acaba-se a liberdade condicional, estará completamente reabilitada.
Penso nas histórias loucas da JoAnne – os casais que nunca se divorciaram
mas acabaram casados com um parceiro melhor. E se a Alice estiver a
transformar-se numa pessoa melhor, enquanto eu me mantenho apenas o
mesmo? E se tudo isto fizer parte de um plano para transformar a Alice e
deixar-me para trás? Tento livrar-me da ideia de que alguém lá em cima já
tenha decidido deixar a Alice viúva.
52
O mês passou depressa. Na data acordada, dou por mim de volta à estação
da Rua 4, à espera do comboio que me leve da Península ao centro
comercial de Hillsdale. Pesquisei – horas e horas de pesquisa –, mas não
encontrei qualquer referência ao Eli e à Elaine, o casal desaparecido que a
JoAnne mencionou da última vez que a vi. Um casal desaparece, deixando
apenas um carro vazio, e não há publicações em blogues, artigos noticiosos,
teorias da conspiração, nem uma página do Facebook dedicada a encontrá-lo.
Como é isso possível? Mas também é verdade que muitas vezes me
surpreendo com as notícias que se espalham e as que não perduram. Ainda
assim, começo a perguntar-me se não terá sido tudo imaginação da JoAnne.
Nunca contei à Alice que tinha estado com a JoAnne e também não lhe falei
deste encontro. Tive receio de que ela pudesse querer acompanhar-me, o que
talvez lhe trouxesse sarilhos se a JoAnne se descontrolasse e começasse a
descoser-se com o Neil.
Admito que parece esquisito – quase ilícito – encontrar-me de novo com
ela. Não obstante, quero obter mais pormenores acerca do Eli e da Elaine, e
quero ver se ela revelará mais alguma coisa acerca do Neil ou do Pacto. Da
última vez, tive a certeza de que houve coisas que não me contou. Fiquei com
a impressão de que só queria perceber-me melhor, renovar a nossa antiga
amizade antes de se lançar nos pormenores concretos.
Não deixo o meu telemóvel com o Huang. Apanho um Uber até um café
perto do estádio. Enquanto espero pelo meu chocolate quente, tiro a bateria ao
telemóvel. Depois sigo para a estação de Caltrain e apanho o primeiro
comboio para sul, para Hillsdale. No Trader Joe’s, compro batatas fritas e
chocolates para levar para a clínica e ter um saco com que andar pelo centro
comercial. Ando pelo Trader Joe’s e pela Barnes & Noble, atento ao que me
rodeia. Tanto quanto consigo perceber, estou sozinho. Vagueio por mais umas
lojas, só para ter a certeza.
Dez minutos antes da hora marcada, instalo-me no canto ao fundo da área de
restauração, a uns cem metros do sítio onde nos sentámos da última vez.
Observo as portas, à espera de que ela entre. Compro dois cachorros-quentes
e outra limonada verde.
Espero. Dez minutos. Dezanove minutos, trinta e três. Não paro de verificar
as horas, de olhar para todas as entradas, de ficar mais nervoso a cada minuto
que passa. A dada altura olho para baixo e dou-me conta de que comi os dois
cachorros-quentes, embora não me lembre sequer de os ter levado à boca. A
limonada também se foi.
A JoAnne não aparece. Merda. O que é que isto querer dizer?
Ao quarto para a uma, levanto-me, liberto a mesa e refaço o meu caminho,
pelas escadas rolantes acima, para o interior do centro. O que hei de fazer
agora? Não tinha contado com a possibilidade de ela não aparecer. Por algum
motivo, tinha-me convencido de que a JoAnne estava tão ávida por falar
comigo como eu por falar com ela.
Ando pela Nordstrom, pela Uniqlo, até que saio pelas traseiras do centro
comercial. Estou confuso. Ansioso. Preocupado com a JoAnne, preocupado
comigo e, confesso, talvez desapontado. Talvez este encontro envolvesse mais
do que querer informar-me acerca do Pacto. Apercebo-me, e sinto-me
culpado, que uma parte de mim queira apenas ver a JoAnne. Se a Alice foi
outra pessoa noutra vida, eu também. Não num grau tão extremo, e para mim
isso foi há imenso tempo. Quando conheci a Alice, já era por completo a
versão adulta de mim mesmo. Mas, antes disso, houve a minha versão da
faculdade – não exatamente confiante, mas cegamente esperançoso,
ingenuamente idealista – e a JoAnne fez parte desses anos. A JoAnne conheceu
essa versão de mim.
Tento não deixar que a paranoia se instale. Decido voltar, dar uma última
oportunidade à área de restauração. Fico no cimo da escada rolante que dá
para a área de restauração. Daqui consigo ver praticamente todas as mesas.
Nada. Quando estou prestes a entrar na escada rolante, reparo num tipo
grande, de camisola preta de gola alta, em frente ao sítio do tempura. Não está
acompanhado, nem está a comer o que quer que seja. Já estou a observá-lo há
uns minutos quando ele pega no telemóvel e faz uma chamada. Nunca o vi, mas
algo me parece mal. Não é o Declan, o tipo que levou a Alice para Fernley,
mas não há dúvida de que é um fac-símile razoável. Recolho-me rapidamente
para o centro comercial. Depois, escapo pela Gap e saio por uma porta
lateral. Está um Cadillac Escalade junto ao passeio, com o motor ligado. Ao
volante encontra-se uma mulher, mas não lhe distingo o rosto por trás dos
vidros fumados. Será a JoAnne? Cinco lugares adiante do todo-o-terreno, vejo
um Bentley vazio. Azul, muito bonito, tal e qual como o do Neil. Com a
ascensão de Silicon Valley, todas as ofertas públicas e as ações do Facebook e
do Google, hoje em dia há muito dinheiro na Península, pelo que um Bentley
não é assim tão surpreendente. Se bem que... o que quereria comprar num
centro comercial alguém com um carro que custa duzentos mil dólares?
Há um milhão de razões possíveis para a JoAnne ter faltado ao nosso
encontro de hoje e pondero cada uma delas durante o meu longo trajeto de
regresso à clínica.
53
D e cada vez que ouço uma bicicleta a descer a rua, dou por mim a retesar-
me, a pensar em todas as coisas que fiz mal. Normalmente, enquanto
sustenho a respiração, ouço as rodas, a corrente, as engrenagens, tudo a passar
pela casa e a descer em direção a Cabrillo Street. Mas hoje, contudo – quarta-
feira – a bicicleta detém-se na nossa casa. Ouço o baque denunciador de
sapatos de ciclismo a subir os degraus da frente.
É o mesmo estafeta da vez anterior.
– Meu – diz ele –, vocês estão a deixar-me com as pernas em forma.
– Desculpe. Quer beber alguma coisa?
– Claro.
E entra. Pousa o envelope virado para baixo na consola da entrada, pelo que
não consigo ver que nome está no verso.
Na cozinha, sirvo-lhe um copo de leite com chocolate. Tiro um pacote de
bolachas do armário e ele senta-se à mesa. Para ser cordial, também me sento,
mas tudo o que quero é verificar o nome no envelope.
Ele desata a contar uma longa história acerca da namorada, que acaba de se
mudar do Nevada para cá para estar com ele. Não tenho coragem de lhe dizer
que provavelmente isso não vai resultar. Há todo um conjunto de indícios e eu
tenho estado subconscientemente a confirmá-los à medida que ele fala. Por
causa dos preços absurdos dos arrendamentos, ela mudou-se para casa dele.
Ele admite que foi demasiado cedo, que não estava preparado para esse passo,
mas ela fez-lhe um ultimato. Se não se mudasse para São Francisco, disse-lhe,
a relação acabava. Já vejo que a coabitação prematura, combinada com o
facto de ele se sentir pressionado e de ela ser o tipo de pessoa que se sente à
vontade a fazer ultimatos, não pode levar a nada de bom.
Assim que ele sai, pego no envelope. Viro-o e sinto uma pontada no
estômago. É para mim. E depois fico envergonhado, porque devia ter ficado
contente por ser para mim. Lembro-me do que a JoAnne disse: distribuir a
culpa, não deixar que se concentrem demasiado na Alice. A única coisa que
me ocorre é que saibam que me esqueci do presente para a Alice. É claro,
penso com um calafrio, que podia ser pior. Podia ter que ver com a minha ida
ao centro comercial de Hillsdale.
Marco o número da Alice. Fico surpreendido quando ela atende ao segundo
toque, mas depois lembro-me do que diz o Manual: Sempre que o seu cônjuge
lhe ligar, atenda o telefone. Hoje vão tratar do depoimento de uma executiva
infame, de uma empresa tecnológica, que atacou uma estagiária no ano
passado. Ao que parece, numa sala cheia de gente, a executiva desatou aos
berros com a estagiária por não ser suficientemente despachada com o
PowerPoint. Acabou a empurrá-la para que lhe saísse da frente e a pobre
rapariga caiu e bateu com a cabeça na mesa. Sangue por todo o lado.
Ouço barulho em pano de fundo.
– Acabámos de fazer um intervalo de cinco minutos do espetáculo de merda
– diz-me. – Sê rápido.
– O estafeta da bicicleta passou por cá.
Uma pausa longa.
– Foda-se. Detesto as quartas-feiras.
– É para mim.
– Isso é esquisito. – Será impressão minha, ou não ficou tão surpreendida
quanto devia?
– Ainda não o li. Queria esperar por te ter ao telefone.
Rasgo o envelope. Lá dentro encontra-se uma única folha de papel. Em pano
de fundo, ouço a colega da Alice a dizer-lhe qualquer coisa.
– Lê lá. – Alice parece impaciente.
– Caro Jake – leio em voz alta –, periodicamente, os Amigos são
convidados a viajar para participarem em auscultações tanto latas como
específicas. Uma auscultação é uma oportunidade para a direção obter e
avaliar informação relacionada com um tema relevante para um ou mais
membros da organização. Ainda que a sua participação seja opcional (isto é
um convite, não uma diretiva), é firmemente recomendado que aceite e
assista o Comité de Reeducação nesta questão. Os objetivos de cada
membro individual do Pacto são os objetivos de todos os membros.
– É uma intimação – diz a Alice, numa voz tensa.
Leio as letras mais pequenas no fundo da página.
– Querem que esteja no Aeroporto de Half Moon Bay às nove da noite.
– Vais?
– Tenho alternativa?
Ouço mais agitação do outro lado da linha. Estou à espera de que a Alice me
dissuada, que me diga que é má ideia, mas, em vez disso, ela diz:
– Não, nem por isso.
Atiro a carta para cima da mesa e volto para a clínica. Quem me dera não
ter ido almoçar a casa.
Uma sessão à tarde com o meu grupo de prevenção de problemas de pré-
adolescentes mantém-me distraído da questão por uns minutos, pelo menos. Os
pré-adolescentes são sempre os mais difíceis de avaliar, pelo que tenho de me
concentrar intensamente em todos os comentários e pistas não-verbais. As
motivações dos adultos costumam ser mais fáceis de discernir; com os
miúdos, pode ser difícil identificar motivos que, muitas vezes, nem eles
reconhecem conscientemente.
Depois disso, sinto-me exausto, pelo que vou dar uma volta pelo bairro.
Compro o último scone de limão com pepitas de chocolate na Nibs. Quando
volto para a clínica, já sei que irei para o aeroporto logo à noite. Com o Pacto,
a melhor política é fazer sempre a coisa que menos atenção atraia. Não há
dúvida de que amo a Alice, mas, se o Pacto se pusesse a peneirar todas as
minhas ações ou faltas de ação como marido, tenho a certeza de que poderia
apresentar-me como a personificação de uma vaga de crimes. A Evelyn franze
o sobrolho quando lhe digo que não virei trabalhar amanhã. Sinto-me muito
mal por tornar a cancelar marcações, mas que alternativa tenho?
Em casa, preparo uma mala de viagem com artigos de higiene e uma muda
de roupa, algo bom mas não demasiado formal. Quando a Alice chega a casa,
às 19h03, estou sentado no cadeirão azul, com a mala pronta a meus pés.
– Vais – diz ela.
– Toda a lógica me diz que não devo estar ao serviço deles. Por outro lado,
não quero lidar com as consequências de não aparecer.
A Alice põe-se à minha frente, a roer uma unha. Quero algum
reconhecimento de que está orgulhosa de mim, ou pelo menos grata, pelo
sacrifício que estou prestes a fazer, mas, em vez disso, ela parece irritada.
Não com o Pacto, mas comigo.
– Deves ter feito alguma coisa – diz.
– O presente foi dado com atraso – digo. Depois atiro uma bomba para a
confusão: – Como é que achas que eles souberam?
– Jesus, Jake. Achas que me chibei? É óbvio que só pode ser outra coisa.
Mira-me com ar acusador, como se estivesse à espera de que eu confessasse
um enorme crime, mas eu limito-me a sorrir e a dizer:
– Estou inocente.
Ela nem sequer tirou o casaco ou os sapatos. Não me deu um abraço, nem
um beijo.
– Eu levo-te.
– Queres mudar de roupa primeiro?
– Não – responde ela, com um olhar de relance para o relógio. – É melhor
irmos.
Tenho a estranha sensação de que só quer livrar-se de mim.
O trânsito na Autoestrada 1 está fluido, pelo que temos tempo de parar para
um burrito em Moss Beach.
– Por favor, diz-me que tiveste um dia mau no trabalho – digo, pousando
guacamole e duas cervejas na mesa entre nós. – Não aguento se esta frieza
toda for por minha causa.
Ela apanha guacamole com uma tira de milho e mastiga lentamente antes de
responder.
– O maldito depoimento foi um inferno. A executiva chamou-me petulante.
Odeio aquela cabra. Deixa cá ver a carta.
Tiro-a da mala. Enquanto ela a lê, vou ao balcão buscar os nossos burritos.
Quando volto, a Alice está a limpar o último pedaço de guacamole. É um
gesto pequeno, mas incaracterístico. Ela sabe o quanto eu adoro guacamole.
Dobra a carta em três e desliza-a sobre a mesa na minha direção.
– Não há de ser assim tão mau, pois não? Não mandaram um matulão num
todo-o-terreno para te revistar e levar à força para o deserto.
– Jesus, Alice, quase pareces desapontada.
– Como tu disseste, não fizeste nada. Certo?
– Certo.
– Afinal, se tivesses feito alguma coisa, eu saberia. – Ela bebe um longo
trago da sua cerveja. Depois fita-me os olhos, sorri e diz a parte seguinte na
voz engraçada à James Earl Jones que temos usado sempre que citamos o
Manual: – As regras do Pacto resumem-se a uma regra essencial: nada de
segredos, conte tudo ao seu cônjuge. Contaste-me tudo, não foi? – pergunta
ela.
– Claro que sim.
– Então vais ficar bem, Jake. Vamos embora daqui.
No Aeroporto de Half Moon Bay, todas as luzes estão apagadas. Eu e a
Alice ficamos sentados no carro às escuras e a conversar enquanto esperamos.
A frieza e a acusação na voz dela desapareceram. É como se a minha Alice
tivesse regressado, e sinto-me grato por isso. Começo a perguntar-me se terei
interpretado mal tudo o que ela disse nas últimas horas. Às 20h45, uma luz no
edifício da receção acende-se e depois a pista de aterragem pisca e ilumina o
céu noturno. Abro uma nesga da janela e ouço o som de um avião a virar sobre
a água e a colocar-se no ângulo para descer para a pista. Do outro lado do
parque de estacionamento, a luz de um carro acende-se. É um Mazda de cinco
portas.
– Não é o carro do Chuck e da Eve? – pergunta a Alice.
– Merda. Qual deles achas que é mais provável que esteja em apuros?
– O Chuck, sem dúvida.
O avião aterra e avança pela pista até ao portão. Observamos o Chuck e a
Eve a saírem do carro. De pé, dão-se um abraço confrangido e depois a Eve
entra para o lugar do condutor. Saímos também do carro. Beijo a Alice e ela
agarra-me com força por um minuto antes de me soltar.
Eu e o Chuck chegamos ao portão ao mesmo tempo. Eu levo a minha mala;
ele nada traz.
– Amigo – cumprimenta-me, fazendo-me sinal para que passe pelo portão.
– Amigo – repito. A palavra cola-se-me na garganta.
Enquanto nos aproximamos do avião, uma escada desce.
– Companheiros – diz o piloto, com sotaque australiano. Subo os degraus e
ocupo o primeiro lugar atrás do cockpit. O Chuck senta-se na fila atrás da
minha. O avião é impressionantemente agradável, uma fileira de assentos de
cabedal de cada lado, um bar ao fundo, revistas e jornais nos bolsos do
assento.
– É capaz de ser atribulada – avisa o piloto, enquanto faz as escadas subir e
fecha a porta. – Querem uma Coca-Cola? Água?
Ambos declinamos, o Chuck com um gesto silencioso.
O Chuck agarra num New York Times e começa a ler, o que interpreto como
permissão para fechar os olhos e dormitar. Ainda bem que tomei aquela
cerveja. Caso contrário, não seria capaz de dormir. Acordo uma hora depois,
com a vibração do trem de aterragem. O avião aterra numa pista acidentada.
– Está repousado? – pergunta-me. A disposição dele parece ter melhorado.
– Isto é o que eu penso que é?
– Fernley, a única que existe. Ainda bem que dormiu. Vai precisar das suas
forças.
Merda.
57
P assa-se mais um dia inteiro sem que a Alice me telefone, mande um email
ou escreva uma SMS. Chegámos a essa temível fase matrimonial que só
costuma ocorrer anos após a boda. Vivemos como companheiros de casa, não
como amantes. Sim, partilhamos uma cama, mas nunca estamos acordados ao
mesmo tempo.
Já caiu a noite quando pego no telemóvel e envio: Jantar?
Vou chegar tarde.
Tens de comer.
Tenho tostas.
Posso levar-te alguma coisa?
Uma pausa demorada. Não responde. Apareço aí à porta às nove, escrevo.
Uma pausa mais demorada. Ok.
Guardo sanduíches, batatas fritas, bebidas e brownies num saco térmico.
Chego cedo, pelo que paro o carro na zona de cargas e descargas ao lado do
edifício do escritório da Alice e fico ali sentado às escuras, a ouvir rádio. Na
KMOO está na hora de passar um álbum inteiro, e o desta noite é o Blood on
the Tracks. Claro. É um dos melhores álbuns de todos os tempos, mas gostaria
que tivessem escolhido outro. Outro mais alegre. O casamento é difícil. O
Dylan compreendeu isso.
Ao mesmo tempo que os primeiros acordes de «Simple Twist of Fate»
surgem na rádio, a Alice abre a porta do lado do passageiro e senta-se no
banco da frente.
– Blood on the Tracks? – ri-se. – Que apropriado.
Passo-lhe uma sanduíche e um pacote de SunChips. Dou-lhe a escolher entre
uma Peroni e uma Coca-Cola Light e ela opta pela última. Atira-se à comida
como um pequeno animal selvagem. Não falamos, limitamo-nos a comer e a
ouvir a música.
– Eu teria preferido Planet Waves – digo.
– Claro que terias. – Depois canta uns versos de «Wedding Song». A sua
voz, mesmo quando está zangada comigo, é tão pura e agradável. Mas depois
ela passa da soalheira e feliz «Wedding Song» para acompanhar o Dylan, que
já canta «Idiot Wind».
Olha para mim. Tanto que cabe num olhar.
Acaba a sanduíche, faz uma bola amarrotada com o papel usado e enfia-a no
saco.
– O Vadim tem estado a trabalhar para mim sem parar nos últimos três dias.
– Não me surpreende. O Vadim tem um fraquinho por ti.
– Eu sei. Mas ouve, ele tem estado a trabalhar para mim, num projeto de
investigação pessoal.
– Merda, Alice. Não lhe contaste o que se passa com o Pacto, pois não?
Quase sinto a tensão arterial subir. O Dylan canta acerca da gravidade que
nos puxa para baixo.
– Claro que não. Só lhe pedi que procurasse informações sobre o Eli e a
Elaine. Então é assim, Jake: ele verificou todas as principais bases de dados,
registos públicos, a LexisNexis, a Google, notícias, tudo. Telefonou a amigos,
os melhores hackers, e sabes o que encontrou? Nada. Não desapareceu
nenhum casal chamado Eli e Elaine. Não houve casamentos entre pessoas com
esses nomes nos últimos cinco anos. Nem em São Francisco, nem em toda a
Califórnia. Também não há nenhum casal com esses nomes que tenha vivido na
Bay Area durante esse período. Não houve nenhum desaparecimento em
Stinson Beach. O Eli e a Elaine não existem.
– Isso não faz sentido.
Custa-me assimilar o que ela me está a dizer. Por que inventaria a JoAnne
aquelas coisas?
– E há mais. A primeira mulher do Dave morreu depois de uma dura batalha
contra o cancro. Em Stanford, com o Dave ao lado dela. Triste, mas não
misterioso. Disseste-me que a mulher atual dele, a Kerri, tinha ficado viúva
em circunstâncias suspeitas. Mas o primeiro marido dela, o Alex, morreu de
doença hepática. No Hospital Mills-Peninsula, em Burlingame. Também triste,
mas decerto nada suspeito. Acho que a tua ex-namorada pálida é uma grande
mentirosa.
Penso no que ela me está a dizer. O Dylan continua a cantar, as suas palavras
certeiras acerca de amor malogrado a encherem o carro, o que não ajuda nada.
– Raios. Por que haveria ela de mentir?
– Talvez só quisesse aproximar-se de ti. Talvez tenha sido alguma espécie
de teste chanfrado. Talvez esteja a trabalhar para o Pacto. Ou talvez... já tinhas
ponderado esta hipótese, Jake? Talvez ela esteja completamente passada dos
cornos.
Revejo mentalmente todos os meus encontros com a JoAnne, tentando
recordar algum sinal, alguma pista, de que ela estivesse a inventar aquilo.
– Talvez o Neil esteja por trás disto – argumento. – Talvez ele lhe tenha
mentido para a manter na linha ou algo assim.
A Alice encosta-se à porta. É quase como se quisesse ficar tão afastada de
mim quanto possível.
– Não consegues mesmo desistir, pois não, Jake? Estás convencido de que a
JoAnne é uma vítima trémula a precisar da tua ajuda.
– O Vadim pode estar enganado.
– O Vadim sabe o que faz. Trabalhou durante três dias seguidos. Se diz que o
Eli e a Elaine não existem, é porque não existem.
Ocorre-me uma ideia aterrorizante.
– E se o Vadim estiver metido nisto, Alice?
– A sério?
– Ok, tens razão. Merda. É só que não entendo.
– Talvez o Pacto não ande a matar gente. E o mais importante é que talvez
não seja isso que tanto te assusta.
– Que raio queres dizer com isso?
– Quero dizer exatamente o que disse, Jake. – A tensão crepita mesmo à flor
das palavras da Alice. Ela continua tão zangada. – É possível que tenhas
apenas medo de estar casado comigo?
– Alice, o nosso casamento foi ideia minha.
– Foi?
Por um segundo, fico estupefacto. De imediato, pergunto-me como soaria a
história do nosso casamento se fosse ela a contá-la.
– Podes ter sido tu a pedir-me em casamento, Jake, mas eu é que tenho
suportado a carga pesada. Sempre que resistes ao Pacto, a impressão que me
dá é que estás a tentar sair deste casamento. Tudo o que tens feito, todas as
conversitas clandestinas com a JoAnne... parece que andas com dúvidas, como
se quisesses recuperar a tua antiga vida, como se quisesses ser livre. E depois
contas-me esta história demente acerca de ela estar nua numa jaula a encolher.
– Estás a acusar-me de ter inventado isso?
– Não. Por louco que pareça, acredito que a tenhas encontrado numa jaula
de vidro. Acho que o Pacto é capaz de todo o género de pequenas
monstruosidades. Mas não tenho assim tanta certeza de que os participantes
não sejam voluntários. Estive em Fernley, lembras-te? E foi mau, concedo.
Terrível, na verdade. Mas aguentei, porque queria ser uma esposa melhor e
acreditei genuinamente que eles podiam ajudar-me a chegar lá.
– Eles ameaçaram a tua carreira! – grito. – E a minha!
– Talvez essas ameaças fossem a sério. Talvez não. Seja como for, eles não
andam a assassinar casais na praia. Não andam a esborrachar a mulher do
diretor regional entre paredes de vidro. Acho que o que estás a cometer é um
Crime de Interpretação.
– Que raio é que isso quer dizer?
E, de repente, estou em queda livre. Sinto-me como se não conhecesse a
minha mulher. As palavras que ela acaba de usar – um Crime de Interpretação
– não saíram do Manual?
– Tu é que és o psicoterapeuta. O que pensarias se alguém te contasse essa
história? Descreveste a coisa como se fosse horrível, mas, quando te imagino
nessa jaula com ela, não consigo deixar de pensar que gostaste. Que isso te
excitou.
– Não – protesto, mas a palavra não parece convincente.
– E também acho que era o que ela queria. Acho que te atraiu até lá, como
parte de um jogo doentio e estúpido, e tu agiste mesmo como ela queria.
Tenho a impressão de que vou vomitar.
– Alice, ela estava em sofrimento. Não era um jogo.
– Ela está a manipular-te e tu nem sequer consegues ver isso. Ou talvez não
queiras ver.
– Estás tão enganada, Alice. O que se passa contigo?
No quartel dos bombeiros ao fundo da rua, o alarme dispara. É tão
estridente que ambos tapamos as orelhas. Segundos depois, o carro dos
bombeiros acelera por nós, com sirenes a uivar. Passa tão perto que a
deslocação de ar abana o carro. Depois desaparece.
– Quando me pediste em casamento, o que esperavas? – A voz da Alice está
de uma quietude arrepiante. – Julgavas que ia ser só tempos felizes, flores e
arcos-íris? Julgavas que ia ser só Planet Waves e nada de Blood on the
Tracks? Era isso que achavas?
– Claro que não.
– Eu fui para Fernley, eu usei a merda daquele colar. Postei-me à frente
daquele juiz, ouvi o sermão dele e acatei a sentença. Sabes porquê? – Não sei
o que é mais devastador: se a zanga na voz dela, se a tristeza. – Sabes porquê,
Jake? Sabes por que fui ter com o Dave todas aquelas tardes? Sabes por que
usei a porra daquela bracelete? Sabes o que eu estava a pensar quando me
levaram para o deserto? Sabes em que estava a pensar quando me passaram as
correntes à volta dos tornozelos, ou quando me tiraram a roupa toda, ou
quando me deram um banho gelado, ou quando aquela maldita guarda me
despiu e disse que precisava de me revistar?
– Revistaram-te nua? Nunca me disseste que...
O lado A de Blood on the Tracks chega ao fim. Embora não o veja nem o
ouça, sei que a Alice está a chorar. Por fim, ela diz:
– Fi-lo por ti, Jake. Quero que este casamento resulte. Não tenho medo de
me empenhar. Não tenho medo de fazer a merda que seja preciso fazer para
que nos mantenhamos juntos. Fi-lo por nós.
O DJ intervém. Está a falar do álbum e da relação fogosa de Dylan com a
mulher, o começo mágico, «Sad-Eyed Lady of the Lowlands», os altos e
baixos, a paixão e, a seu tempo, os rumores do fim. Eram três da manhã, Dylan
estava no estúdio com a banda, não ia a casa havia dias, quando a mulher
apareceu do nada, inserindo-se na cabina escurecida e ficando ao fundo, sem
que nem sequer o produtor se apercebesse da sua presença. Ela ficou ali,
apenas a assistir. Por fim, Dylan viu-a e começou a tocar uma música que tinha
composto para ela naquele dia, dedilhando a guitarra, fitando intensamente, do
outro lado da sala, os olhos dela – cantando aquelas palavras, uma mescla
fenomenal de devoção intensa, veneno amargo e tudo o que há entre uma coisa
e a outra. Quando a canção terminou, ela esgueirou-se pela porta lateral e, sem
mais, foi embora.
– O que queres que faça? – pergunto-lhe.
A Alice limpa as lágrimas. É estranho vê-la chorar. Acho que as lágrimas a
envergonham.
– Quero que faças exatamente o que queiras fazer.
– Sim – digo. – Mas o que te faria mais feliz?
– Quero que te dediques a este casamento, Jake. A mim. Se isso significa
reconciliares-te com o Pacto, então é isso que tens de fazer. Se as tuas
intenções acerca de mim, acerca do nosso casamento, são sérias, então avança,
aceita o mau juntamente com o bom. Quero saber que me amas, Jake, quero
saber que estás comigo. Quero saber que estás preparado para fazer o que
quer que seja preciso.
Faz-se silêncio, à exceção do dedilhar de Dylan. A Alice pousa a mão na
minha coxa.
– É pedir demasiado? É uma cena mesmo séria, de adulto. Estás preparado
para isso? – Deixa escapar um pequeno riso triste.
Seguro-lhe a mão. Tem os dedos frios, o que é tão diferente do seu calor
habitual, que me faz pensar como serão as mãos dela quando for velha. E sei
que vou querer estar com ela nessa altura. Quero saber a que soará a voz dela
quando tiver oitenta anos. Quero saber como será o seu aspeto quando as
covinhas se transformarem em rugas, ou a que cheirará quando estiver doente,
ou o olhar que fará quando não conseguir recordar o nome de alguém que
sempre conheceu. Quero tudo isso. Não porque precise de a possuir, como em
tempos julguei, mas porque a amo. Amo-a tanto.
Ligo o telemóvel e procuro o número da Vivian. Esta atende ao primeiro
toque.
– Amigo – diz.
– Olá, Amiga. Desculpe incomodá-la a estas horas.
– Não tem de quê. Estou sempre disponível para si e para a Alice.
– Preciso de confessar uma coisa.
– Eu sei – diz a Vivian –, ainda bem que ligou.
Não me dou realmente conta, ao início, do que ela quer dizer.
– Na verdade, algumas coisas.
– Eu sei – torna ela a dizer. – Tire um dia. Reúna as suas coisas. Passe
algum tempo com a sua mulher. Pode estar em casa no sábado de manhã?
– Sábado? – pergunto, a olhar para a Alice. Ela está a fitar-me, satisfeita.
Acena com a cabeça. – E se nos encontrássemos no Aeroporto de Half Moon
Bay?
– Não será necessário – diz a Vivian. – Eles preferem encontrar-se consigo
em sua casa. Boa noite, Amigo.
Tenho a sensação – será real ou imaginada? – de que alguém me está a
observar. Olho para um dos andares de cima do edifício, onde a luz brilha no
escritório da Alice. Alguém está em frente à janela, de mãos nos bolsos, a
olhar para nós... é o Vadim.
63
Ainda que não fosse invulgar o casal partir em longas viagens oceânicas
de caiaque, nenhum deles mencionara a familiares ou amigos a intenção
de viajar da sua casa na Califórnia do Sul até à costa do Oregon.
S into o carro virar à direita para Balboa Street. Percebo pelo som dos
carros parados à nossa volta que a curva seguinte é num semáforo, pelo
que deve ser a Arguello. Quero convencer-me de que isto não passa de um
pesadelo, mas as correntes magoam-me os tornozelos e o sabor a borracha que
tenho na boca deixa-me maldisposto. Preciso de perceber a nossa rota, de a
decorar.
Seguimos durante algum tempo antes de pararmos e o barulho indica-me que
estamos no trânsito da Bay Bridge. Depois, sinto a ponte sob as rodas.
Pressinto uma mudança na luz à frente da minha cara. Então, sem aviso, o pano
preto é levantado. Vejo a nuca do Declan, que vai a conduzir, e o perfil da
Diane. Um painel ergue-se entre a traseira e os bancos da frente. Pela
escuridão do carro, torna-se evidente que as janelas têm vidros fumados.
Começamos a andar, mais depressa agora, e ouço o burburinho do túnel de
Yerba Buena Island. Dou por um discreto movimento a meu lado. Esforço-me
por virar a cabeça. Espanto-me ao descobrir na penumbra uma mulher
pequena, sentada a meu lado. Andará pelos cinquenta, parece-me. Como eu,
traz o cinto de segurança por cima de uma camisa de forças, embora não tenha
freios na cabeça. Há quanto tempo estará a fitar-me? Oferece-me um olhar
compassivo. A compaixão concentra-se sobretudo nos seus olhos, mas também
faz um sorriso rígido, como se tentasse transmitir que compreende o que sinto.
Tento corresponder-lhe ao sorriso, mas não consigo mexer os lábios. Tenho a
boca tão seca que me dói. Por uma questão de educação, talvez devesse
desviar o olhar, mas não o faço. A mulher parece abastada – as injeções nos
sítios certos, os brincos de diamante –, mas o cabelo lustroso, emaranhado
nalguns pontos, revela que houve alguma espécie de resistência.
Inclino desajeitadamente a cabeça para trás, constrangido pela camisa de
forças. Penso na Alice.
E depois penso nos miúdos. Não é que tenha a sensação avassaladora de
que os meus pacientes não possam viver sem mim. Mas, apesar do tanto que se
fala acerca da resiliência da juventude, os adolescentes também são frágeis.
Que efeito teria sobre eles se o psicoterapeuta desaparecesse de repente? A
diferença mais elementar entre os meus clientes adolescentes e os casais que
aconselho é a seguinte: os adultos chegam convencidos de que nada do que eu
possa dizer mudará o que quer que seja, enquanto os adolescentes acreditam
que, a qualquer momento, eu poderei proferir alguma espécie de frase mágica
que fará o nevoeiro clarear de imediato.
Por exemplo, o Marcus, do meu grupo das terças. Anda no décimo primeiro
ano de uma escola de ensino vocacional, em Marin. O Marcus é um instigador,
é combativo, está sempre a tentar fazer descarrilar as coisas. Na última
sessão, perguntou-me:
– Qual é o propósito da vida? Não o sentido... o propósito.
Colocou-me numa situação delicada; depois de me lançar o desafio, eu tinha
de responder. Se a minha resposta falhasse o alvo, eu seria exposto como
fraude. Se me recusasse a responder, pareceria um farsante que não tinha
qualquer utilidade para o grupo.
– Pergunta difícil – disse eu. – Se te responder, dizes-nos qual é que tu
achas que é o propósito da vida?
Ele abanou a perna direita. Não estava à espera daquilo.
– Sim – respondeu com relutância.
A experiência, o tempo e a educação ensinaram-me a interpretar pessoas e
situações. Por regra, tenho uma noção razoável do que alguém vai dizer ou
como reagirá, até da razão por que fazem as pessoas as coisas que fazem e
certas situações levam a certos resultados. Ainda assim, quando menos espero,
deparo com um hiato no meu conhecimento. O que não sei, talvez aquilo que
nem sequer considerei, é o seguinte: isto tudo somado em que é que dá? O que
significa?
Olhei em redor do círculo de adolescentes e dei o meu melhor:
– Esforçarmo-nos por sermos completamente bons, mas saber que não
somos – disse. – Tentar desfrutar de todos os dias, mas saber que não o
faremos. Tentar perdoar os outros e a nós mesmos. Esquecer as coisas más,
lembrar as boas. Comer bolachas, mas não demasiadas. Desafiarmo-nos a
fazer mais, a ver mais. Fazer planos, celebrar quando se concretizam,
perseverar quando isso não acontece. Rir quando as coisas são boas, rir
quando as coisas correm mal. Amar com entrega total, amar abnegadamente. A
vida é simples, a vida é complexa, a vida é curta. A única moeda verdadeira é
o tempo... é preciso usá-lo com sensatez.
Quando terminei, o Marcus e todos os outros fitavam-me, com um ar
estupefacto. Ninguém falou. Não tinham resposta. Quereria isso dizer que eu
tinha razão, ou que me enganava? Provavelmente, as duas coisas.
Aqui nas traseiras do todo-o-terreno escuro com a desconhecida, penso
nessas palavras que ofereci aos miúdos. Eis-me aqui, numa situação
aterradora cujo resultado não consigo sequer começar a prever. Amei com
entrega total, mas terei mesmo amado abnegadamente? Quanto me restará da
preciosa moeda do tempo? Terei sido sensato no seu uso?
67
O meu cabelo já se foi todo, mas a mulher continua a passar-me as mãos pelo
escalpe, em busca de algo que lhe possa ter escapado. Para de vez em
quando para pegar na lâmina, esfregar um pouco de loção e rapar um folículo,
real ou imaginário. Parece obcecada, aterrorizada com consequências
desconhecidas. O cabelo dela encontra-se arranjado da maneira elegante
comum entre as mulheres abastadas da sua idade – um corte dispendioso,
louro mas não demasiado, com madeixas que lhe realçam os malares atraentes.
Presumo que lhe dedique muito tempo todas as manhãs. Compreendo por que
tomou a escolha que tomou. Ainda assim, a meticulosidade com que me rapa a
cabeça quase tem requintes de malvadez.
Dando um passo atrás, diz:
– Parece perfeito.
Os culpados arranjam sempre forma de racionalizar o seu comportamento,
transformando a coisa de maneira a que pareça que nos fizeram um favor.
Pelo intercomunicador no teto, ouvimos uma voz de mulher.
– Muito bem. Agora, Jake, é a sua vez de escolher.
Já estava a contar com isso. Não obstante, o meu corpo retesa-se.
– Temos duas celas de detenção – diz a voz. – Uma é escura e fria, a outra é
luminosa e quente. Qual prefere?
Olho para a mulher. Pressinto que terá um marido que a deixa sempre
escolher – chocolate ou baunilha, janela ou corredor, frango ou peixe. Por
sorte, não sou o marido dela. Quando ela começa a abrir a boca para me dizer
qual prefere, respondo:
– Luminosa e quente.
– Boa escolha, Jake.
A porta abre-se e um caminho iluminado leva-nos por um corredor, até uma
área comum com oito celas. O intercomunicador volta a soar:
– Jake, por favor entre na cela número trinta e seis. Barbara, cela número
trinta e cinco.
Então é assim que ela se chama. Eu e a Barbara entreolhamo-nos, mas
nenhum de nós se mexe.
– Vamos – diz a voz.
A Barbara dá um passo na direção da sua cela, parando mesmo à porta. Lá
dentro está escuro. A Barbara agarra-me a mão como se eu pudesse salvá-la
de alguma maneira.
– Entre – diz a voz.
Com hesitação, ela solta-me a mão e avança lentamente. Quando a porta se
cerra, a Barbara deixa escapar um gritinho assustado. Caminho resolutamente
para a outra cela, mostrando-me mais corajoso do que me sinto. As luzes
fluorescentes são dolorosamente claras e a temperatura deve andar perto dos
trinta e oito graus. A porta fecha-se com estrondo atrás de mim.
Há uma cama estreita de metal presa à parede. Um lençol, sem almofada.
Uma sanita pendurada na parede. Um exemplar usado do Manual encontra-se
só, numa única prateleira. Ignoro o livro e deito-me na cama. As luzes são tão
fortes que tenho de me virar de barriga para baixo com a cara enterrada no
lençol.
Passam-se horas. Suo, remexo-me, não adormeço. Na cela ao lado, ouço a
Barbara gritar duas vezes, e depois nada. Torno a observar a minha cela, com
os olhos ainda a tentarem ajustar-se à luz ofuscante. Estou sedento, mas não me
trouxeram água. Digo a mim mesmo que, se tudo correr mal, posso beber a
água da sanita. Deve dar para uns cinco ou seis dias. E depois disso? Tento
não me preocupar com um futuro tão distante.
70
E spero pela pressão do vidro, mas esta não chega. Ouço uma broca e
apercebo-me de que estão a prender a peça mesmo acima de mim, nos
quatro cantos. A minha respiração frenética embacia tudo e rapidamente deixo
de conseguir ver.
O som da broca para e tudo fica silencioso. Uma das mulheres conta:
– Um, dois, três, quatro.
Sinto-me ser levantado. E depois fico na vertical, suspenso dentro do
acrílico, de braços junto ao corpo, as pernas ligeiramente afastadas, os pés
sobre os blocos de madeira, a cabeça voltada para diante. À minha frente, uma
parede branca sem nada. Pressinto os outros atrás de mim, mas não os vejo.
Sinto-me como um organismo preso entre lamelas, à espera de ser submetido
ao microscópio.
O chão debaixo de mim estremece e apercebo-me de que a estrutura de
acrílico está sobre rodas. Cerro os olhos e obrigo-me a respirar. Quando os
abro, vejo que estou a ser levado por um corredor estreito. Passam pessoas
por nós, espreitando-me o corpo nu. Algumas passam para a frente, outras
continuam para trás. Sou empurrado para um elevador de carga, as portas
pesadas fecham-se e subimos. Não sei ao certo se a mulher de branco continua
connosco. Ou a loura. Parece-me que os meus guardas se mantêm a meu lado.
– Maurie? – chamo. – Onde vamos? O que está a acontecer?
– O Maurie foi-se embora – responde uma voz. Uma voz masculina.
Penso no rosto da Alice mesmo antes de me terem posto as palas. Penso na
mão dela no meu peito quando me vestiram a camisa de forças, na forma como
a perda daquela pressão tranquilizadora foi um sobressalto tão grande. Penso
que, nas últimas horas, a minha vida foi virada do avesso. Tudo me foi tirado,
pedaço a pedaço.
Quero chorar, mas não tenho lágrimas. Quero gritar, mas sei que os meus
gritos nada mudarão.
Contenho a respiração apenas durante o tempo suficiente para desembaciar
o acrílico à frente dos meus olhos. Quando as portas do elevador se abrem,
apercebo-me de que estamos num salão cavernoso. Lembro-me de ter estado
neste espaço na minha primeira visita a Fernley: o refeitório.
Ouço passos a recuar e fico aqui sozinho, a olhar em diante por entre o
acrílico embaciado.
Ponho-me à escuta, mas nada ouço. Tento mexer-me, mas não consigo. Ao
fim de uns minutos, não sinto as pernas; depois, deixo de sentir os braços;
depois, fecho os olhos. Não sou mais do que os meus pensamentos isolados.
Perdi a vontade de lutar.
Ocorre-me agora, por fim, que era este o plano deles: desprover-me da
bravata, desprover-me de toda a esperança.
O tempo passa. Quanto tempo? Os meus pensamentos vogam até à Alice, até
Ocean Beach, até ao nosso casamento. Até à imagem dela na nossa garagem
com o Eric, a cantar.
Tento livrar-me dessa ideia. Mas não consigo. Que tolice a minha, estes
ciúmes neste momento. A verdade é que, quando eu desaparecer, se eu
desaparecer, ela não terá a liberdade de poder estar com o Eric, mesmo que
quisesse. Continuará à mercê do Pacto e das suas decisões aleatórias.
Provavelmente, para o resto da vida.
Anseio por vozes, ou mesmo só um som. Um pouco de música. O que não
daria por ver o Gordon agora. Ou o Declan. Ou até mesmo a Vivian. Bastava-
me que fosse outro ser humano. Qualquer um. Será isto a própria definição da
solidão? Deve ser.
A dada altura, ouço o elevador abrir-se. O alívio invade-me. Ouço vozes –
duas, talvez três – e o piso começa a vibrar. Algo pesado rola na minha
direção. Continuo à espera de ver o que seja, mas não aparece. Depois, as
vozes desvanecem-se ao fundo do corredor. O elevador torna a soar, há mais
vozes, e de novo algo a rolar pelo corredor.
Uma armação de acrílico, tal como aquela em que me encontro.
Lá dentro, está uma figura feminina. Morena, de estatura média; como eu,
nua. O acrílico à frente do seu rosto está embaciado, pelo que não lhe distingo
as feições. Fazem-na rolar até que fica na minha diagonal. Passos afastam-se
de nós, vozes dissipam-se. O elevador. Mais vozes. Outra estrutura de
acrílico. Não a vejo, mas ouço-a.
Agora somos três. Pressentindo que estamos sozinhos, que todos os nossos
guardas se foram embora, ganho coragem e falo:
– Vocês estão bem?
Ouço os soluços da mulher.
E depois, à minha direita, uma voz masculina:
– O que acha que vão fazer-nos?
– A culpa é tua! – chora a mulher. – Eu disse-te que seríamos apanhados!
– Chiu – avisa o homem, ao que percebo que ela está a falar com ele.
Conhecem-se.
– A culpa é sua do quê? – sussurro.
Uma voz soa no intercomunicador:
– Poderão os reclusos refrear-se de discutir os seus crimes?
Um homem mais velho, a usar uma farda de cozinheiro, passa entre nós.
– Bem, não há dúvida de vocês se meteram numa bela embrulhada –
comenta, a olhar diretamente para mim. Depois afasta-se.
Passado um minuto, o elevador soa. Quando outra jaula acrílica desliza por
mim, vejo uma mulher nua, de costas, com o cabelo emaranhado e oleoso.
Penso que só pode ser uma pessoa. Os guardas viram a estrutura e num instante
ela fica de frente para mim, a menos de dois metros de distância. É pálida e
magra. Parece que não vê o Sol há semanas. A área dos olhos está embaciada,
pelo que se passam momentos até que clareia e ela me vê. Não, não é a
JoAnne. O que lhe terão feito?
Ouço o barulho de muitos passos. Num instante, uma longa fila de
prisioneiros em macacões vermelhos e funcionários de farda cinzenta avança
pelo refeitório. Depois, de supetão, compreendo o propósito de todo este
exercício horrendo. Posicionaram-nos aos quatro de tal maneira que toda a
gente tem de passar entre nós para chegar à fila da comida. Tento estabelecer
contacto visual com a mulher à minha frente, mas ela tem os olhos cerrados,
com lágrimas a caírem-lhe pelas faces.
A fila detém-se. Ouço o ruído de tabuleiros e talheres, funcionários a darem
ordens. A fila cresce à medida que mais prisioneiros entram – quantos? Como
é possível que tantos Amigos tenham infringido as leis do Pacto?
Pouco depois, a fila está parada à nossa frente. A maioria das pessoas
limita-se a olhar para o chão, evitando o contacto visual, embora outras –
estarão cá pela primeira vez? – pareçam fascinadas, horripiladas. Um homem,
de vinte e poucos anos, cabelo preto e dentes perfeitos, até está a sorrir. Tem
um ar cruelmente entretido. Outros parecem apenas enfastiados, a passar o
tempo, a tomar mais um almoço em Fernley. Como se já tivessem visto tudo.
Ao início, evito os olhares de todos. Por vergonha, humilhação. Mas depois
ocorre-me que, se isto é o fim, quero obrigá-los a olhar para mim. Quero que
me vejam. Que saibam que, amanhã, poderão ser eles. Se eu posso acabar
aqui, qualquer Amigo pode acabar aqui.
A população é composta por homens e mulheres em partes mais ou menos
iguais. Os fatos-macacos vermelhos não ocultam que praticamente toda a gente
se arranja bem, sendo provavelmente abastada. Não se trata da população
habitual de uma prisão. Pergunto-me que crimes os terão trazido para cá. À
medida que o grupo vai aumentando, a fila duplica e chega a triplicar. O
refeitório fica tão apinhado que já há pessoas encostadas à minha prisão
acrílica, apenas com o painel transparente a separá-las do meu corpo nu. O
barulho intensifica-se e sou acometido por raiva e desilusão. Quero que façam
alguma coisa. Qualquer coisa. Quero que se insurjam contra o Pacto.
Como foi que todos permitimos que isto nos acontecesse?
Uma mulher de cabelo acobreado, com uma elegante madeixa grisalha na
têmpora, sorri-me. Olha em redor para se assegurar de que ninguém está a ver
e depois dá um beijo rápido no acrílico, à altura da minha boca. Diz qualquer
coisa, embora eu não a ouça com a barulheira. O quê?, boquejo. Ela repete-me
silenciosa e lentamente as palavras: Não ceda.
Ao menos é isso que me parece dizer: Não ceda.
72
Q uanto tempo terei passado aqui deitado? Uma hora? Um dia? A porta
abre-se.
– Chega – diz o Neil.
– Agora não – protesta o Gordon. – Estamos tão perto.
– Venha comigo – diz o Neil. Penso que está a falar comigo. Tento mexer-
me, mas não consigo. Mas depois o Gordon segue-o para fora da sala.
– Ajudem-me – torno a pedir.
– Vai ter de se ajudar a si mesmo – diz o Maurie.
Sai e fecha suavemente a porta. Compreendo agora, com uma certeza
instalada, que o Maurie nada fará por mim. Ninguém fará coisa alguma por
mim. Todos se limitarão a assistir e seguir ordens.
Durante imenso tempo, nada ouço.
Por fim, a porta torna a abrir-se. Elizabeth Watson parece alvoroçada.
Depois, vê-me no chão e exclama:
– Meu Deus, o que lhe fizeram?
Ajuda-me a levantar, com um esgar. Sinto-me vexado pelo fedor da sala,
pelas manchas nas minhas roupas. Leva a mão à mala e passa-me uma garrafa
de água. Tenho uma sede desgraçada, mas mal consigo pegar na garrafa.
Esforço-me por a abrir e Elizabeth acaba por ma tirar delicadamente das mãos
e desenroscar a tampa, segurando a garrafa junto aos meus lábios. Depois de
eu ter bebido tudo, com água a escorrer-me pelo queixo, ela entrega-me um
fato-macaco novo, com umas cuecas brancas cuidadosamente dobradas por
cima.
– Lamento imenso, Jake. Pode ir limpar-se agora. Siga-me.
Tropeço pelo corredor, sem dúvida deixando um rasto de imundície atrás de
mim. Ela para em frente a uma porta que diz DUCHES. Entro e ponho-me
debaixo da água quente. Assim fico durante muito tempo, até que a água
arrefece. Visto as roupas limpas.
Do lado de fora da casa de banho, a Elizabeth está à espera. Tira da mala
um pacote de M&M’s de manteiga de amendoim e deita-me alguns na palma da
mão. Estou faminto, mas, quando mordo os doces, dói-me a cara toda. Ela não
diz o que quer que seja até estarmos dentro do seu gabinete, com a porta
fechada.
– Descontraia – diz-me, apontando para a cadeira.
Deixo-me cair na cadeira e fecho os olhos. Ouço a Elizabeth fechar as
persianas, trancar a porta, pôr música a tocar. Os Tears for Fears estão a
cantar «Everybody Wants to Rule the World». Nunca mais ouvirei esta música
da mesma maneira.
Quando ela aumenta o volume e aproxima a cadeira da minha, apercebo-me
de que a música é para lhe abafar a voz, para fazer frente a quaisquer
microfones.
– Foi difícil encontrá-lo – sussurra. – Não me diziam para onde o tinham
levado. Comecei a procurar, a fazer telefonemas. Por fim, tive de apresentar
uma moção ao juiz a requerer uma injunção. Como continuavam a empatar,
percebi que só podia ser mau, o que quer que estivessem a fazer-lhe.
Lanço-lhe um olhar que quer dizer Não faz ideia.
– O juiz mostrou-me a moção que requeria técnicas avançadas. Li o que ele
lhes deu autorização para fazer. – Aperta-me a mão. – Lamento muito, mesmo
muito.
– Posso ir para casa, por favor? – A minha voz parece a de um
desconhecido.
– Lamento informá-lo que ainda não chegámos a isso. Pintaram-no a uma luz
muito negativa. Mas, devido a algumas irregularidades do pedido deles, talvez
tenhamos alguma abertura.
Ainda estou a tentar perceber Elizabeth Watson. Tem uma aparência
desleixada e uma magreza impossível. A sua confiança indica-me que é uma
advogada a sério há muito tempo.
– Trabalha aqui? – Dói-me o maxilar. Dói-me o corpo todo.
Ela mira-me com ar estranho.
– Não.
– Faz parte do Pacto?
– Sim. Há oito anos. Eu e o meu companheiro vivemos em San Diego. – Ela
aproxima-se mais, com a boca a escassos centímetros da minha orelha. – Não
devemos falar disto. Estou aqui por causa de uma Infração de Confiança...
porque não tive o nível adequado de confiança no meu companheiro.
– E esta foi a sua sentença? Defender-me na macacada do tribunal deles?
– Sim, primeira infração, dei-me como culpada e aceitei cumprir doze dias
de serviço. Normalmente, dedico-me à preparação de julgamentos para um
escritório de advogados de defesa em Century City. O Jake encontra-se em
muito boas mãos. Sou muito, muito cara – diz ela. Depois, a sorrir: – Mas,
para si, os meus serviços são de graça.
Elizabeth Watson cheira a champô de avelã. O aroma é reconfortante. Do
fundo do coração, quero deitar a cabeça no colo dela e dormir.
– A minha mulher também é advogada – digo.
Imagino a Alice na nossa casa, com o seu pijama de flanela. Está a beber
café, a ler, sentada à mesa, atenta à porta, à minha espera. Não me arrependo
de ter casado com ela. Mesmo agora, mesmo hoje, mesmo com o zumbido que
me vibra pelo corpo, a dor de cabeça. Para o melhor e para o pior. Para o
pior, definitivamente. Não me arrependo.
Fecho os olhos outra vez. Alice. Sonho com a Alice.
Sonho com a nossa lua de mel. Sonho com o casamento. Sonho com a
viagem para vender a casa do pai dela, com o anel com que andei no bolso.
Quando chegou, parecia apenas uma pedra glorificada num aro de metal, um
objeto simples – bonito, suponho, mas com um preço exorbitante. No voo,
porém, e durante os dias subsequentes, o anel pareceu assumir uma espécie de
magia. Eu ia pensando no poder que continha, no feitiço que poderia lançar-
lhe se lho pusesse no dedo.
Via o anel como o talismã que tornaria a Alice minha. Parecia tão simples.
Agora vejo como era de facto o meu plano: ingénuo e algo desonesto.
Quando abro os olhos, a Elizabeth está de volta à secretária, tomando notas
no seu bloco. Dá por mim a observá-la e sorri.
– Estes doze dias deviam ser fáceis. E os primeiros dez foram. Todos se
deram como culpados, tudo foi simples. Consegui-lhes o melhor acordo
possível e, na maioria, todos ficaram muito agradecidos. – Bate com a caneta
no bloco. – E agora isto.
– Desculpe. Posso ligar à minha mulher?
Ela rabisca qualquer coisa no bloco e ergue-o para que eu leia. Má ideia!
Amarfanha o papel e depois toca nas orelhas. Alguém está à escuta.
A música continua a tocar. Agora é Spandau Ballet.
Ela vem sentar-se junto de mim outra vez e debruça-se para falar baixo.
– Este juiz é um otário. É do tribunal do Segundo Circuito. Não imagino que
merda terá feito para acabar aqui. Li veredictos dele. Gosta de concessões,
gosta de pessoas que tentem resolver as coisas. Precisamos mesmo de alegar
alguma culpa.
– Qualquer coisa para sair daqui.
– No seu casamento, Jake – pergunta-me –, o que fez mal?
Penso por um minuto.
– Por onde devo começar?
75
D urante a viagem de carro até casa, a Alice não faz perguntas e eu não
voluntario a minha história. Não estou propriamente preparado para
partilhar aquilo por que passei e pressinto que ela não está propriamente
preparada para o ouvir. Ainda assim, depois de ela virar para o acesso e se
inclinar para me dar um beijo na face, sinto-me magoado quando me apercebo
de que não vai entrar. Preciso tanto de estar com ela agora.
– Lamento imenso – diz ela. – Amanhã vai ser um dia importante em
tribunal. Vou chegar tarde.
Depois de algum tempo de separação, um casal leva algum tempo para
restabelecer a ligação. Digo isto aos meus pacientes. No cinema e na
literatura, há um fascínio enorme por casais destinados a estar juntos, pela
ideia da Sra. ou do Sr. Certo. Mas, é claro, nada disso é verdade. Para
algumas pessoas, há muitos Srs. Certos. Para outras, não há nem um. À
semelhança dos átomos, o facto de duas pessoas formarem um casal tem mais
que ver com oportunidade e circunstância do que com magia.
É claro que também há magia. À semelhança dos átomos, um casal só pode
formar-se se houver atração, alguma espécie de ligação lógica, química a
produzir uma reação. Quando duas pessoas ficam afastadas, contudo, até os
laços mais fortes se dissipam inevitavelmente, pelo que se torna necessário
redescobrir a ligação, reconstruir os laços.
Há vários anos, fiz um estágio na Secretaria de Estado dos Antigos
Combatentes. Um dos meus primeiros pacientes foi Kevin Walsh. Este tinha-se
juntado à reserva como forma de pagar a faculdade, mas fora surpreendido ao
ser destacado para o Médio Oriente. Uma comissão levou a duas, duas
transformaram-se em três. O Kevin disse-me que, quando voltou para São
Francisco, para junto da mulher e dos dois filhos, sentiu que estava a entrar na
vida de outra pessoa. Os filhos eram bem-comportados e divertidos, a mulher
era agradável e atraente, mas ele não conseguia livrar-se da sensação de que
aquela vida não era sua, que era uma vida escolhida por um homem diferente e
que ele não passava de um impostor a tentar fazer aquilo funcionar.
Deambulo pela nossa casa, retomando a familiaridade com as nossas coisas,
com a nossa vida. A casa está uma balbúrdia. Obviamente, a Alice não
esperava que eu voltasse hoje. Na garagem, o estúdio dela foi reordenado –
duas cadeiras, dois amplificadores, dois suportes para guitarra, um de frente
para o outro. Uma pauta gasta encontra-se em cima de uma mesa. Pego-lhe e
perscruto futilmente a página, como se os compassos e as notas pudessem
conter algum código secreto para decifrar a Alice. Mas trata-se de uma
linguagem bizarra e impenetrável.
Fico preocupado. Menos por mim do que pela Alice.
De volta ao piso de cima, vejo a casa com novos olhos: dois pratos no lava-
loiças, dois garfos, dois copos de vinho vazios no chão ao lado do sofá. Fico
nauseado. Vou à janela e perscruto a rua, à espreita do todo-o-terreno preto,
mas não está lá. Espreito o candeeiro de rua. Sempre esteve ali, tornado
invisível pela sua presença mundana. Mas agora reparo em três pequenas
caixas em cima dele. Estariam ali antes?
O que terá acontecido dentro de casa enquanto estive fora? Mais importante
do que isso, será que o Pacto tem estado a assistir? É claro que sim. Como
pode a Alice ser tão imprudente? Se vierem e tornarem a levá-la, isso vai
mudá-la para sempre. Poderá ser mais fiel, poderá ser mais obediente, mas
não é isso que eu quero. Quero a Alice. Para além disso, quero que a Alice
seja a Alice, boa e má. Finalmente. Será isto o amor?
Telefono para a clínica para que saibam que estou de volta. O Huang
mostra-se surpreendido.
– Por onde tem andado, Sr. Jake?
– Por aqui e por ali. Tenho um novo corte de cabelo.
Está um caderno aberto em cima do sofá. Todas as guitarras e colunas estão
espalhadas pela casa. O gravador multicanal da Teac está montado em cima da
mesa de pequeno-almoço, com outro caderno ao lado, que tem títulos de
canções rabiscados. Na nossa cama, encontro um presente embrulhado com o
meu nome. Um CD.
Insiro-o no leitor na mesa de cabeceira, ligo-o, ponho os auscultadores,
sento-me na cama e carrego na tecla para tocar. É a Alice a cantar,
acompanhada por guitarras, teclados, bateria e, a dada altura, até um conjunto
de instrumentos infantis de percussão. Há várias vozes de apoio, mas também
são a Alice. As canções são lindas e melancólicas.
A pista cinco é um dueto. A Alice é acompanhada por uma voz masculina. É
mais uma canção sobre uma relação, uma relação que me parece familiar, até
que percebo que é acerca de mim e da Alice, embora com alguma estranheza.
É a nossa história, vista pelos olhos da Alice. A voz masculina canta os meus
versos, decerto melhor do que eu alguma vez seria capaz. A intimidade entre
as duas vozes torna a canção profundamente desconcertante. A inspiração
antes de cada verso, o tipo de coisa que desaparece na edição final, faz-me
sentir como se estivesse ali mesmo. Tento distanciar-me, ouvi-la como soaria
a um terceiro, a alguém que não estivesse apaixonado pela Alice, mas isso não
é possível.
Lembro-me do dia nas escadas, quando o Eric sabia da minha presença mas
a Alice não. Penso no olhar que ele me lançou. Continha um desafio, se bem
que é possível que eu tenha interpretado tudo mal. Talvez o que eu estivesse a
ver, em vez disso, fosse compaixão por mim, ou pena – por saber algo que eu
ignorava.
Ouço o disco até ao fim, e depois recomeço. Como na divisão oculta da
garagem, dá-me a sensação de estar a espreitar para uma parte da Alice que
imaginava, mas que nunca tinha realmente visto.
O retrato musical que ela pinta de mim é delicado, ocasionalmente benévolo
e brutalmente honesto.
Durante imenso tempo, agarrei-me à Alice com tanta firmeza, mantendo-a
diretamente na minha vista, olhando apenas para as partes que queria ver.
Encorajei essas qualidades que adorava nela, coagindo-as para primeiro
plano, esperando subconscientemente que, se ignorasse as outras partes, elas
recuariam e desapareceriam. É claro que, na minha ausência, estas têm
prosperado. Sim, a Alice tem estado a tornar-se a Alice de novo, o seu ser
completo e dementemente complexo. Fecho os olhos, escutando a sua voz.
A dada altura, ouço um barulho na cozinha. Tiro os auscultadores. A Alice
chegou. Avanço pelo corredor e encontro os seus saltos altos atirados para o
meio da sala de estar. Cheira-me a frango, alho, um toque de chocolate.
Assimilo o momento, que me parece perfeito e oportuno, até uma vaga noção
de pavor me acometer. Espreito pela janela, em busca de quaisquer carros
suspeitos estacionados no quarteirão.
A Alice encontra-se diante do fogão, de calças de pijama e uma t-shirt dos
Lemonheads, a saltear cogumelos em manteiga, com uma colher de pau numa
mão, uma cerveja na outra. A frigideira crepita e há uma ligeira fumaça pelo
ar. Passo os braços à volta da cintura dela.
– Ora, vejam só quem voltou do mundo dos mortos – diz ela.
Murmuro-lhe ao ouvido:
– Adorei as tuas músicas.
Ela vira-se para mim e eu tiro-lhe o copo e a colher das mãos, pousando-as
na bancada. Afasto-a do fogão para o centro da cozinha. Assim ficamos, numa
espécie de dança lenta. Ao início, ela está rígida, com as mãos empoleiradas
nos meus ombros, as costas ligeiramente arqueadas, como se não quisesse
entregar-se a este momento – e a mim. Depois, o seu corpo descontrai. Ela
encosta a cabeça ao meu ombro, desce as mãos pelas minhas costas e puxa-me
para si. Sinto-lhe a respiração através da camisa.
– Peço desculpa por algumas das letras. – Percebo que ela quer dizer mais
alguma coisa. Limito-me a abraçá-la e a esperar. – E pelo resto – continua ela,
com um suspiro. – Peço desculpa pelo resto.
O que parece uma confissão, que ao mesmo tempo me alarma e alivia. Se
isto acontecesse entre clientes, dar-lhes-ia os parabéns pelo progresso. Dir-
lhes-ia que a honestidade é boa, que a honestidade é o primeiro passo. É claro
que também os avisaria de que, estando a verdade revelada, as coisas
poderiam piorar antes de melhorarem.
– Tu és como és – digo, e estou a ser sincero, acho.
A Alice salta e põe as pernas à volta da minha cintura, e eu seguro-a por
completo. Não fazíamos isto há tanto tempo que me tinha esquecido de como
ela parece leve, enrolada no meu corpo.
79
S eguimos para leste pela Fulton, mantendo-nos perto das árvores, e depois
metemo-nos no parque Golden Gate, entrando pela Trigésima Sexta
Avenida. Avançamos por um nevoeiro denso, passando rapidamente pela
Chain of Lakes para nos embrenharmos nos caminhos cheios de arbustos. Ouço
o som de muitas vozes mais adiante e ocorre-me que hoje é a Bay to Breakers,
a corrida anual de São Francisco que atravessa a cidade desde o Embarcadero
até à praia e concentra uma mescla estranha de corredores etíopes capazes de
percorrer uma milha em quatro minutos, famílias, nudistas e bêbedos em fatos
de cheerleader a fechar o cortejo.
O evento deve estar pelo menos meio acabado, pois, quando cruzamos a
Kennedy Drive, os corredores estão todos mascarados, alguns a caminhar,
muitos com bebidas nas mãos. A Alice vira-se para mim, com um ar de choque
e alívio no rosto. Não há melhor sítio para nos perdermos do que na Bay to
Breakers. Assistimos aos corredores que passam – uma dúzia de fatos de
M&M’s, um noivo a ser perseguido por uma noiva, uma versão completamente
feminina da linha ofensiva dos San Francisco 49ers e um batalhão dos
habituais corredores mais lentos, todos a tentarem superar o último troço do
percurso de doze quilómetros. Um tipo vestido de Duffman, a empurrar um
carrinho com barris de cerveja, entrega-nos uma caneca cheia a cada um.
– À vossa – diz ele.
Sentamo-nos na relva e bebericamos as cervejas mornas. Permanecemos
calados, a tentar definir o próximo passo. A Alice aponta para vinte miúdos e
miúdas vestidos de Kim Jong-il. Quase sorri.
– Quando é que achas que podemos ir a casa? – pergunto.
– Nunca – diz ela.
Ela encosta-se a mim e eu passo o braço à volta dos seus ombros.
O sol aparece, a Alice abre a gabardina em cima da relva húmida e deita-se
em cima dela.
– Há anos que não estava tão ressacada – geme.
Fecha os olhos e, passado um ou dois minutos, já está a dormir. Quem me
dera poder fazer o mesmo. Mas a multidão começa a dispersar-se e não nos
resta muito mais tempo.
Saco do telemóvel e ponho-me à procura de ideias sobre aonde ir em
seguida. O P azul pisca no canto do ecrã. Faço uma busca rápida por empresas
de aluguer de carros e, depois, desligo o telemóvel. Dou a volta aos bolsos da
gabardina da Alice, à procura do telemóvel dela, mas deve tê-lo deixado ficar.
– Anda – digo, abanando-a para a acordar. – Temos de nos pôr a andar.
– Para onde?
– Há uma agência da Hertz não muito longe daqui.
Damos início à longa caminhada rumo a Haight Street, avançando no sentido
contrário da multidão dispersante.
– E se não tiverem um carro disponível?
– Têm de ter um carro disponível – respondo.
Com o casaco amarrotado da Alice, a minha camisa velha e suja e as minhas
calças de ganga rasgadas, não nos destacamos entre a malta bêbeda da manhã
da Bay to Breakers. Avançamos para leste, pelo parque, rumo à Panhandle,
chegando finalmente à interseção das ruas Stanyan e Haight. Paramos no Peet’s
e pedimos um chocolate quente e um café duplo. Ambos usamos os nossos
cartões num multibanco para levantar o limite máximo diário de dinheiro.
Diante da Hertz, a Alice senta-se no passeio, a beber o seu café, a tentar
acordar.
Quando apareço a seu lado num Camaro descapotável cor de laranja, o
único carro disponível na agência, ela sorri.
Seguimos pela cidade, atravessamos a Golden Gate Bridge e vamos para
norte, por Martin County. Paramos numa loja de produtos eletrónicos em San
Rafael e compramos um novo cartão SIM. De volta à estrada, a Alice tira o
velho cartão do meu telemóvel e atira-o pela janela. Quando chegamos a
Sonoma, reclina o assento, fecha os olhos e aproveita o sol. Adoro que não
tenha sequer perguntado para onde vamos.
Sintonizo a KNBR e ouço o jogo dos Giants enquanto temos sinal. Está 4 a
2, e Santiago Casilla está a tentar completar a nona quando deixamos
finalmente de captar a estação. Descemos pela Autoestrada 116, ao longo do
rio Russo, e rumo ao oceano. Em Jenner, quando o rio finalmente desagua no
Pacífico, paro o Camaro na estação de serviço.
Dentro da loja, a Alice vai à casa de banho enquanto eu me abasteço de
comida de loja de conveniência. No carro, ela abre uma garrafa de água
vitaminada. Bebe-a toda e depois espreita para dentro do saco.
– Chocodiles! – exclama.
A estrada para lá de Jenner é uma tira estreita à beira dos desfiladeiros
altos. É um percurso assustador, mas lindo. Não conduzia por este troço da
Autoestrada 1 desde a semana antes de ter conhecido a Alice. Aconteceu tanta
coisa desde então. Quem é este homem a fugir da sua vida num Camaro cor de
laranja, com uma mulher bela, desconcertante e que, sem ter tomado banho, vai
no lugar do passageiro a devorar Chocodiles?
Em Gualala, paro no parque de estacionamento de um supermercado.
Compramos leite e pão, algumas coisas para o jantar, umas camisolas com
capuz e calções para os dois. Um quilómetro e meio mais abaixo, estaciono
em frente à Sea Ranch Rentals.
– Sea Ranch! – exclama a Alice. – Sempre quis ficar aqui.
A mesma rapariga pálida que me arrendou o complexo da outra vez
encontra-se à secretária, a ler O Leilão do Lote 49, numa edição de capa
mole. Levanta o olhar quando entro.
– Você outra vez – diz ela, embora não me passasse pela cabeça que fosse
lembrar-se de mim. – Não adoro o novo corte de cabelo – comenta. – Tem
reserva?
– Não.
Ela pousa o livro e gira a cadeira para o computador.
– Quanto tempo?
– Não sei. Uma semana?
– Tenho o mesmo sítio onde ficou da última vez – diz. – Two Rock. –
Lembra-se mesmo de mim. – Nunca esqueço um rosto – declara, como se me
adivinhasse o pensamento.
Isto é insólito, penso. Ou será algo mais? Ignoro a ideia, embora olhe de
relance para o dedo anelar dela. Nem sequer é casada.
– Acho que não tenho dinheiro para tanto.
– Faço-lhe o desconto de família que regressa. Voltou com a família?
– A minha mulher conta?
Ouço alguém mexer-se na sala ao nosso lado.
A rapariga pega num lápis, escreve 225 dólares/noite e desliza o papel
sobre a secretária para ver se eu aprovo. Assinto com a cabeça e espeto um
polegar no ar. É várias centenas de dólares abaixo da pernoita mais baixa
anunciada. Ponho um cartão de crédito em cima do tampo.
– Será que pode ficar com isto e passá-lo quando sairmos? – pergunto em
voz baixa.
– Pode deixar o sítio impecável? – sussurra ela.
– Como se nunca tivéssemos estado lá.
Ela guarda o cartão de crédito num envelope, fecha-o e passa-me um saco
de plástico transparente com as chaves e indicações. Agradeço-lhe.
– Se alguém perguntar, nunca estive aqui.
– Idem – responde ela.
– Estou a falar a sério – sussurro.
– Eu também.
83
E stou dorido e com nódoas negras, mas não tenho nada partido. Pego no
telefone fixo e marco o número de emergência. Mas algo se passa. Uma
voz gravada entoa:
– A sua chamada está a ser reencaminhada.
Momentos depois, uma voz masculina surge do outro lado da linha.
– Trata-se de uma emergência?
– Preciso de comunicar um sequestro – disparo.
– Amigo – diz a voz. – Tem a certeza?
Desligo o telefone com violência. Merda.
Visto-me, atiro os nossos escassos pertences para o carro, deito os bolinhos
de canela queimados para um saco de plástico e limpo rapidamente as
bancadas da cozinha. Parece-me importante manter a promessa. Não deixo
quaisquer sinais de termos estado aqui, quaisquer sinais da nova vida que
ainda há uma hora parecia tão possível.
Quando devolvo as chaves, a rapariga não parece surpreendida por me ver.
Está a usar uma t-shirt do Sloganeering. O televisor atrás dela está ligado.
– Tenho de ir embora mais cedo – digo, pousando as chaves no balcão.
– Certo. – Ela tira o meu cartão do envelope e passa-o na máquina antes de
mo devolver. – Para a próxima, vou ter um sítio diferente para si. É um talento
que tenho. Junto pessoas a lugares. Quanto mais conheço a pessoa, mais fácil
se torna. Aquele lugar parecia certo, mas não era. Dê-me outra oportunidade.
– Está bem.
Mas tudo o que consigo pensar é que se me acabaram as oportunidades.
87
O artigo lista todos os seus grupos e álbuns. E, como o álbum dos Ladder foi
o de maior sucesso, menciona o nome da Alice. Há um comentário de um dos
seus alunos de Biologia, que não fazia ideia de que ele fosse músico, e um de
um antigo companheiro de banda, que não fazia ideia de que ele fosse
professor. Há um vídeo dos Ladder em concerto, de há doze anos, em que a
Alice se encontra ao lado dele. Não o vejo. Os pais e a irmã vieram de Boston
para colaborar nas buscas. Nervosamente, leio o artigo mais duas vezes, como
se pudessem aparecer mais pormenores por artes mágicas. Mas não há mais
nada.
Devia sentir-me triste por ele ter desaparecido? Devia sentir outra coisa
para além de alívio?
Penso no Eliot e na Aileen. O que tinha a JoAnne dito? «Limitam-se a
desaparecer sem deixar rasto.»
88
O rla é mais alta do que eu esperava, tem o cabelo branco com reflexos
prateados, cortado curto, usa roupa simples. A raiva que lhe dedico
quase me sufoca, e estou disposto a odiá-la, a odiar esta coisa que ela criou,
esta conspiração hedionda que tanto mal causou a mim e à Alice. Há tantas
coisas que anseio por lhe dizer – declarações de oposição, de crítica, um
monólogo longo e cáustico.
Todavia, sei que preciso de ter cuidado. Tenho noção de que, com a Orla,
como com muitos dos meus pacientes, a abordagem de confronto não
funcionará. Quero zangar-me com ela, gritar – mas isso não me levaria a lado
nenhum. Só provocaria mais problemas à Alice. Gritar implica ameaçar, e a
Orla não é uma mulher que reaja a ameaças. Para alcançar os meus objetivos,
preciso de estar tão calmo quanto ela e de ser mais calculista.
Caminhamos em silêncio. Ao início, mantenho-me atento a ela, à espera,
pronto para que o diálogo comece, à espera de que as palavras se tornem
venenosas. O silêncio dela é enlouquecedor e torna-se difícil resistir à
vontade de lhe dar poder, preenchendo-o com as minhas próprias palavras.
– Gosto de caminhar – diz ela, por fim. – Permite-me pensar com clareza. O
Jake julga que está a pensar com clareza?
– Há muitos meses que não pensava de forma tão clara.
Ela não responde.
Finalmente, chegamos ao alto de uma colina e eu vejo uma moradia larga
que se mescla com a paisagem verde lá em baixo. Reconheço a casa de
imediato. A combinação de madeira recuperada com paredes de vidro faz-me
voltar às fotografias que se perfilam no corredor do lado de fora do tribunal
de Fernley. Estará a Alice no tribunal? Terá olhado para aquelas fotos da
mesma maneira que eu, desesperada por estar noutro lugar? Estará segura?
Orla lança-me um olhar de relance e a sua expressão deixa-me sem saber se
terei dado voz aos pensamentos.
– Amigo – diz-me enquanto descemos a colina –, temos muito de que falar.
Fico surpreendido com o tamanho e a simplicidade do interior da casa. Sim,
está impecável, com os seus pisos de betão afagado e vistas magníficas, mas
mesmo assim consegue passar uma impressão de modéstia. A mobília é
escassa e branca. Esperava algo mais – uma sede mundial, um centro de
comando, monitores de vídeo, um edifício cheio de administradores,
bajuladores e acólitos.
Não há nada disso. Na verdade, tanto quanto me é dado ver, somos só nós os
dois.
– Fique à vontade, Amigo.
Ela descalça os sapatos de caminhada e desaparece. Eu ponho-me a andar
de um lado para o outro na sala, impaciente pelo seu regresso. Perscruto o
conteúdo das prateleiras, procurando alguma pista que me revele a
personalidade da Orla. Encontro as obras completas de Yeats; o romance
genial de Dean Howell acerca do casamento, A Modern Instance; coleções de
livros da Joan Didion, da Cynthia Ozick e do Don Carroll; primeiras edições
assinadas de 1984 e Catch-22. Na prateleira de cima, At the Disco, de
Romney Schell, encontra-se ao lado de Medicina e Ciúme, de Michal
Choromanski. O meu olhar recai sobre uma lombada espatifada e faz com que
me detenha: Obedience to Authority: An Experimental View, de Stanley
Milgram.
E há fotos. Um retrato de Orla com um homem que talvez seja o seu marido
e o Bono. Orla com Bruce Springsteen e Patti Scialfa. Orla, mais jovem, com
Tony Blair e a mulher, Cherie. Bill e Melinda Gates. Uma fotografia desfocada
de Orla com o falecido James Garner e a mulher, outra com os Clinton.
Jackson Pollock e Dolly Parton com os respetivos cônjuges. Espalhados entre
os livros e as fotografias há uns quantos bibelôs. Pego num relógio Breitling
com um 5 vermelho à frente e viro-o, encontrando uma insígnia que talvez não
seja popular entre todos os residentes de Rathlin.
Exploro com uma ousadia que me surpreende, mas até este tempo sozinho na
casa dela parece orquestrado. Se Orla não quisesse que eu visse as suas
coisas, por que haveria de me trazer até aqui?
Na cozinha, encontro um recipiente metálico com dez espátulas de distintos
tipos e cores. Estou a girar a de silicone roxo entre as mãos quando Orla
regressa.
– Estava a tentar ver onde foi feita – digo. – Acredite ou não, coleciono
espátulas.
– Eu sei.
Devolvo a espátula ao recipiente.
– Essa é de uma loja de design em Copenhaga. Eu e o Richard fomos lá há
quase uma década e a cor chamou-me a atenção. Eu não fiz qualquer
comentário, mas ele lá reparou. Uns meses depois, apareceu misteriosamente
na nossa cozinha.
Ela avança até à bancada e carrega num botão, o que faz um ecrã subir de
um compartimento oculto.
– Quando o arquiteto me deu as chaves desta casa, disse-me que tinha sido
projetada para ser desfrutada com música. Não tenho a certeza de
compreender porquê, mas cheguei à conclusão de que ele tinha razão.
A interpretação de Alfred Brendel de «Für Elise» emana de colunas ocultas
na casa.
Orla tira uma garrafa de vinho de um armário.
– É uma garrafa especial – diz ela –, presente de um membro. Tenho andado
com vontade de a abrir, mas suponho que ainda seja demasiado cedo.
– É noite nalgum lugar – digo.
Ela abre a garrafa e serve o vinho. É um pinot noir, musgoso e denso.
– Por favor, sente-se – diz ela, encaminhando-me para a sala de estar.
– Não sei se posso beber vinho tinto no seu sofá branco.
– Não seja tolo.
– A sério, um espirro e eu e a Alice vamos à falência.
Orla quase sorri e, por um instante, tenho um vislumbre, parece-me, da
verdadeira mulher por trás das respostas comedidas.
– Seria um favor que me fazia. Abomino esse sofá.
Ela gira o vinho no copo e leva-o aos lábios, fechando os olhos para o
saborear.
Pouso o meu copo na mesa de centro e sento-me. Orla desliza para o
cadeirão de pele ao meu lado. Move-se como uma mulher muito mais jovem,
pondo um pé debaixo do corpo enquanto segura o copo bem alto e direito.
– Vim falar-lhe da Alice.
– É claro que sim – diz ela com serenidade.
– Há uma semana, a minha mulher foi sequestrada. Arrastada, aterrorizada,
semivestida.
Orla fita-me diretamente.
– Lamento, Jake. Serei a primeira a reconhecer que foi utilizada força
excessiva.
A reação dela surpreende-me. Tinha partido do princípio de que não
admitiria coisa alguma, não pediria qualquer desculpa.
– Ela está em Fernley?
– Sim. Mas na ala do hotel.
Penso na cama confortável, na vista, no serviço de quartos. E, sim, concedo,
penso nas palavras do Declan – «Adultério Agravado» – e imagino-a sem
nada que fazer para além de contemplar o nosso casamento. E depois, com
culpa, imagino-a numa das celas de isolamento solitário, ou pior.
– Por que hei de acreditar em si? – exijo saber.
– A sua mulher tem no Finnegan um aliado poderoso – responde Orla,
imperturbada. – Conto-lhe os pormenores depois. Mas, primeiro, faça-me a
vontade. Há tanto tempo que espero por falar consigo.
Claramente, falará acerca da Alice quando estiver preparada para isso, e
nem um segundo antes. Quase ouço mentalmente o aviso da Alice: Alinha.
Orla inclina-se ligeiramente para mim e pressinto que está a avaliar-me.
– Permita-me que faça uma pergunta. Partindo do princípio de que, daqui a
quinhentos anos, o planeta persiste e que se mantém mais ou menos conforme o
conhecemos, acha que o casamento ainda existirá?
– Realmente não sei. – Este disparate está a deixar-me impaciente. – O que
acha a Orla?
– Não é assim que a coisa funciona. Eu perguntei-lhe primeiro.
Penso por um momento.
– No fundo, o nosso verdadeiro objetivo é a imortalidade – digo. – A única
forma de atingir a imortalidade é através da procriação. Quando um casal se
mantém unido, particularmente no seio da construção legal do casamento, os
filhos têm uma probabilidade maior de sobreviverem e, por conseguinte, o
indivíduo tem uma probabilidade maior de atingir a imortalidade. Pondo de
parte a questão dos filhos, sou da opinião de que a maioria das pessoas deseja
fortemente ter um companheiro para a vida.
– Imaginei que fosse responder exatamente isso.
Orla fita-me com intensidade. Não sei bem se acaba de me elogiar ou
insultar.
– Posso contar-lhe uma história? – pergunta-me.
Tenho a sensação de que está prestes a apresentar-me uma versão da
narrativa que ouvi naquele primeiro dia, quando a Vivian nos apareceu em
casa com os contratos que assinámos tão ingenuamente, os contratos que nos
atiraram para este pesadelo. Recordo a mim mesmo que, apesar da sua
hospitalidade calorosa e da empatia aparentemente imediata, esta mulher de
cabelo grisalho é um lobo com pele de cordeiro. Ou, para ser mais preciso,
um lobo com roupas de linho.
– Os meus pais eram pobres – diz Orla. – O meu pai trabalhava numa mina
de carvão em Newcastle; a minha mãe era costureira. Apesar de terem
proporcionado um lar carinhoso a mim e à minha irmã, nunca nos deram
conselhos. Tinham opiniões, mas eram desprovidas de convicção ou clareza.
No que dizia respeito às coisas importantes (religião, política, trabalho), tive
de encontrar o meu próprio rumo. Não os censuro. O nosso mundo
desenvolve-se a um ritmo tão rápido, como pode qualquer um de nós possuir
as ferramentas certas para passar à geração seguinte? O mundo de hoje não é o
mesmo em que os meus pais cresceram... nem sequer é o mesmo em que eu
cresci.
«Preocupa-me que o mundo moderno esteja a evoluir de uma forma que é
capaz de abandonar o casamento. Isto tem muito que ver com a globalização e
a economia partilhada.
– O que é que a globalização tem que ver com a morte do casamento? O que
é que alguma dessas coisas tem que ver com este sistema brutal que criou?
Ela recosta-se, de sobrancelhas arqueadas, aparentemente surpreendida pelo
meu tom zangado.
– O casamento é ineficiente! – proclama. – Toda a construção é um modelo
de recursos desperdiçados. A mulher muitas vezes fica em casa para cuidar
dos filhos, ou até de um só filho, abandonando a carreira para a qual tanto se
tinha esforçado, perdendo anos de contribuição criativa. Para além do
desperdício de talento, pense no desperdício físico. Em cada casa, há muitas
redundâncias. Quantas torradeiras pensa que haverá no mundo?
– Não faço ideia.
– A sério, tente só adivinhar.
– Dez milhões? – digo com impaciência.
– Mais de duzentos milhões! E com que frequência lhe parece que o lar
médio usa a torradeira? – Mais uma vez, ela não espera pela minha resposta. –
Apenas 2,6 horas por ano. Duzentos milhões de torradeiras ficam por usar, em
termos estatísticos, durante mais de 99,97 por cento das suas vidas ativas.
Ela bebe o resto do seu copo de vinho, levanta-se, vai à cozinha e volta com
a garrafa. Serve-me mais, sem me perguntar se quero, e depois serve-se a si.
– O mundo quer preservar recursos, Jake. As pessoas estão a acordar para o
facto de não precisarmos de todas estas torradeiras; não precisamos das
pequenas unidades familiares e das suas casas egoístas e isoladas. A evolução
recompensa sempre a eficiência. O casamento moderno e a unidade
unifamiliar pura e simplesmente não são eficientes.
Há algo ligeiramente louco na sua paixão pelo tema. Claro que há. Sem
loucura, como poderia o Pacto existir?
– Então está a dizer que devemos abandonar o casamento?
Estou estupefacto. Como posso argumentar com alguém que se contradiz de
forma tão patente?
– De todo! Eu não sou economista, Jake... graças a Deus! Acredito no
seguinte: a eficiência nem sempre é boa. O que é fácil, até o que é bom, já
agora, não é sempre bom. Por que acredito no casamento? – Ela levanta-se à
minha frente. – Porque não é fácil. Porque nos desafia. Desafia-me a ceder, a
considerar outros pontos de vista, a ir além dos meus próprios desejos
egoístas.
– Deixe-me lá ver se entendo. Acredita no casamento porque é difícil?
– Talvez seja difícil, mas não é isso que está em causa. O que importa é que
o casamento cria uma plataforma para o entendimento. Permite-nos que nos
coloquemos dentro dos pensamentos e das necessidades do nosso
companheiro, para podermos explorar verdadeiramente a essência de outra
pessoa.
Orla começou a andar pela sala.
– Este entendimento é um ponto de partida potenciador de criatividade e de
pensamento, que ultrapassa o que está disponível às pessoas solteiras e
voltadas para si mesmas. Com demasiada frequência, os seres humanos
tendem para a repetição, para fazerem aquilo que é seguro e fácil, vezes sem
conta. O casamento desafia essa tendência. O Pacto, como sabe, surgiu na
sequência do fracasso do meu primeiro casamento. Eu via o que o casamento
podia ser, mas sabia que a maioria dos casamentos, à semelhança do meu, era
incapaz de o alcançar. Quis regras rígidas que removessem o egoísmo da
equação.
– Isso soa tudo muito nobre, em teoria. Mas o que tenho testemunhado, Orla,
está longe de ser nobre.
Parece ficar agitada com a menção do seu nome. Vira-se.
– Veio cá para me pedir que lhe permita a si e à sua mulher saírem do Pacto.
Correto?
– Sim.
Ela fita-me, sem nada dizer.
– Deve saber que o mero facto de eu ter de o pedir é absurdo. – Levanto-me
para a encarar e reduzo a voz praticamente a um sussurro, obrigando-a a
aproximar-se para me ouvir. – Julga que a sua missão é nobre, que o Pacto é
puro... mas gere a organização como a espécie mais cruel dos cultos.
Ela inspira audivelmente.
– Não quer um casamento bem-sucedido, Amigo? Não quer uma vida em
conjunto com a Alice? Não quer desafiar-se?
– É claro que quero todas essas coisas! Por que raio acha que fiz esta
viagem até aqui? Quero a Alice de volta... como era antes de termos começado
a viver com medo. Quero a nossa vida de volta. Éramos tão felizes antes de
vocês se terem intrometido e transformado tudo numa merda.
– Eram?
Orla sorri. Parece estar a divertir-se. Tenho vontade de pôr as mãos à volta
do pescoço desta mulher e apertar.
– Sim, Orla. Éramos. Amo a Alice. Faria qualquer coisa por ela. Qualquer
coisa.
– Então por que está a desistir?
– Não estou a desistir do meu casamento! Estou a desistir do Pacto. É
evidente que a Orla é uma mulher muito inteligente. Recuso-me a acreditar que
não compreenda a diferença. Por favor, explique-me como é que vigilância,
ameaça e interrogatórios podem conduzir a qualquer um dos objetivos
grandiosos que descreveu. Fala como uma advogada, mas governa como uma
tirana!
Um telefone toca algures nas profundezas da casa. Orla olha de relance para
o relógio.
– Desculpe – diz. – É preciso manter tudo em funcionamento, sabe?
Afasta-se e desaparece para as traseiras da casa. Eu ando de um lado para o
outro durante dez minutos, quinze, à espera de que ela volte. Isso não acontece.
O que pensar da Orla? Tinha a certeza de que seria carismática, inflexível,
uma líder da laia de Jim Jones ou David Koresh. Mas ela não é assim de todo.
Na verdade, parece atenciosa e quase gentil. Parece recetiva a novas
informações, disponível para assimilar novas ideias e procurar ativamente
opiniões contrárias às suas. Se eu pudesse engarrafar esta sua essência, dá-la-
ia toda aos meus pacientes, mas primeiro guardaria um pouco para mim.
É claro que isto provavelmente não passa de uma representação. Será
coincidência que o seu telefone tenha tocado precisamente no momento em que
a confrontei com as táticas implacáveis do Pacto?
Dou por mim a fitar uma fotografia em cima do lintel da lareira. Orla e o
marido encontram-se entre dois casais – Meryl Streep e Pierce Brosnan, com
os respetivos cônjuges de longa data. Será que todas estas celebridades
realmente a consideram uma amiga? Ou terão também elas sido apanhadas
numa teia da qual não conseguem escapar? Quantos interrogatórios terão sido
gravados? Que segredos se escapariam se elas se atrevessem a libertar-se?
Um homem alto entra na sala, com um terrier escocês a segui-lo de perto. O
homem parece cansado, tem as mangas arregaçadas, as botas coçadas. Durante
todo este tempo, estive convencido de que me encontrava sozinho com a Orla.
De onde terá vindo?
– Olá, Jake – cumprimenta-me, estendendo a mão. – Sou o Richard. Este
aqui é o Shoki.
Richard é uns dez ou quinze anos mais velho do que Orla e tem um ar
desalinhado, bem-parecido num estilo informal e amarrotado. O cão mantém-
se alerta ao lado de Richard, a fitar-me.
– A Orla está desejosa de continuar a vossa conversa, mas isso vai ter de
esperar.
– Ouça, já esperei tempo que chegue. Só quero a minha mulher de volta...
– Infelizmente – interrompe-me Richard –, isso é algo que terá de discutir
com a nossa líder intrépida. – Pisca-me o olho, como se fôssemos cúmplices.
– Tenho a certeza de que ela voltará a estar consigo muito em breve.
Entretanto, Altshire é uma casa de hóspedes que temos na extremidade sul da
propriedade. Ficará bastante confortável lá. Siga o caminho para sul durante
seiscentos metros, vire à direita na árvore solitária e continue até a ver.
– Olhe, eu não sei que jogo é que estão a...
O terrier escocês rosna. Richard, que se encontra muito perto de mim, passa
a mão por cima do meu ombro para destrancar a porta e depois pousa-a com
firmeza nas minhas costas.
– Ela está doente, sabe?
Penso de imediato na minha mulher e entro em pânico.
– A Alice?
Ele dá um passo atrás.
– Não, não a Alice. A Orla.
O alívio estonteia-me.
– Eu... não sabia – gaguejo.
Ele lança-me um olhar rápido e triste, embora a mão pousada nas minhas
costas continue a empurrar-me para que saia.
– Ainda bem que tive a oportunidade de o conhecer, Jake. A Orla fala de si e
da Alice com grande admiração.
A porta fecha-se atrás de mim e uma rajada de vento atravessa-me o casaco.
Ouço o Shoki a ladrar dentro da casa quente.
O ar está molhado e o nevoeiro, denso. Não vejo casa alguma ao longe. Será
mais uma armadilha? Será algum nome de código do Pacto, que signifique
resolver um problema? «Não tenho visto o Jerry», poderia dizer um membro; e
outro responderia «Mandaram-no para Altshire»; ao que ambos saberiam que
o indivíduo fora atirado dos desfiladeiros de Rathlin, ficando o seu corpo
esmagado pelas rochas antes de ser arrastado para o mar, flutuando para lá das
ilhas Faroé, caído no esquecimento.
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A vanço pela porta aberta. Ela encontra-se mesmo ali, dentro do quarto,
completamente imóvel, a usar um vestido vermelho formal cujo decote
revela os seus ombros pálidos. Tem o cabelo repuxado para um lado, enrolado
num nó elaborado. Parece tão arranjada, com a maquilhagem mais pronunciada
do que aquilo a que estou habituado, a manicura perfeita num vermelho
carregado, as joias – uma única fiada de pérolas que nunca vi e uns brincos
pequenos e brilhantes – impecáveis. Quando me aproximo, ela não diz o que
quer que seja.
– Imagino que prefiram ficar a sós durante algum tempo – diz a minha
escolta.
Fita-me os olhos, com um ar nervoso, antes de sair do quarto. Apercebo-me
de que devemos estar na ala do hotel. O quarto contém uma grande cama de
casal, uma secretária elegante, uma janela com vista para o deserto.
Abro a boca para falar, mas não me saem quaisquer palavras. Com a Alice
diante de mim, linda, fico mudo de felicidade e alívio.
Quanto tempo terá passado neste quarto, à minha espera?
Avassalado, estendo a mão e puxo-a para mim. Ela passa os braços à minha
volta e aninha-se, muito próxima. Suspira profundamente e eu percebo que
também ela se sente aliviada. Abraço-a com força, sentindo o calor do seu
corpo, a cabeça no meu ombro. Sabe-me bem senti-la, mas passa-se o
seguinte: não se parece inteiramente com a Alice. Talvez seja o cabelo, a
maquilhagem, o vestido; não sei ao certo. Recuo por um segundo. Ela está
maravilhosa, mas diferente. É a mesma Alice, sim, mas vestida para um papel
diferente, um papel de uma peça de teatro que nunca vi.
– Fui à Irlanda – digo. – Fui à procura da Orla.
– E voltaste.
Ao ouvir a voz dela, apercebo-me de que isto não é um castigo. Não fui
trazido para o abate. A Orla estava de facto a dizer a verdade.
– Ainda podíamos tentar fugir – digo.
A Alice faz um sorriso triste.
– Com estes sapatos?
Dá-me um beijo, longo e suave, e por um momento quase me esqueço de
onde estamos.
Mas depois ouço vozes e afasto-me. Paranoico, olho para os cantos do teto,
em busca de uma luz denunciadora. Tento ouvir o zumbido de equipamento.
Fito a nesga de luz por baixo da porta, à procura de sinais de movimento. Vou
até à janela e olho para lá da vedação coberta por uma hera, vendo o imenso
deserto que se espraia. Nada para além de areia e vegetação rasteira ao longo
de quilómetros. Tudo parece tão irreal – por um momento, fico fascinado com
o Sol cor de laranja que paira sobre o deserto.
Quando me viro de novo para o quarto, a Alice está à minha frente, nua, com
o vestido vermelho caído no chão à volta dos seus pés. A luz do Sol entra pela
janela e eu fito a minha mulher, pasmado. Vejo como está pálida, como está
magra. Pergunto-me se a marca que lhe vejo nas costelas será uma nódoa negra
com alguns dias ou apenas uma ilusão provocada pelas sombras.
Aproximo-me dela. Ela estende a mão e desabotoa-me a camisa, desafivela-
me o cinto, passa as unhas pelo meu peito. Eu toco-lhe no rosto, nos seios. A
pele dela sob as minhas mãos está tão quente. Senti tanta falta dela.
Enquanto ela me puxa para si, não consigo evitar a dúvida: será este
momento belíssimo um sonho? Ou pior, uma representação?
Por uma fração de segundo, tenho uma visão de uma sala pequena, monitores
de vídeo, alguém numa farda cinzenta tristonha a observar-nos, a escutar-nos.
A Alice afasta-se de mim. Vejo-a ir para a cama. Deita-se nos lençóis brancos
e abre os braços.
– Vem cá – ordena, com uma expressão imperscrutável.
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Q ue estranho estarmos juntos neste sítio. Aqui, com a minha mulher, quase
consigo fingir que somos só nós. Quase consigo fingir que não estamos
rodeados por betão, arame farpado e um deserto interminável.
Começamos a avançar para os elevadores. Ouço vozes, mas não percebo de
onde vêm. Depois, uma porta abre-se quando passamos por ela e sai de lá um
homem. Alto, de fato escuro e gravata vermelha. E embora me sobressalte ver-
me frente a frente com ele, de certa forma faz todo o sentido.
– Olá, Amigos.
Assinto com a cabeça.
– Finnegan.
Ele olha primeiro para a Alice, depois para mim. O seu olhar é intenso, mas
eu não desvio o meu.
– A Orla quer que vejam uma coisa.
Em seguida, o Finnegan abre bem a porta para revelar uma divisão estreita e
sem janelas. A Alice faz-me entrar e sinto a mão do Finnegan nas minhas
costas a instar-me a avançar. Ao longo de uma das paredes está uma cortina
escura. Ele puxa a cortina para revelar uma janela longa que dá para uma
espécie de capela iluminada por um grande lustre.
O espaço está apinhado. Há um murmúrio de conversas, uma eletricidade
expectante que permeia o lugar. As pessoas têm flûtes cheias de champanhe,
mas ninguém bebe. É como se esperassem por alguma coisa. Estranhamente,
quando a cortina se abre, ninguém olha na nossa direção.
– Não nos veem – comenta a Alice.
Há rostos que reconheço, mas muitos mais que não. Procuro o Neil, a
JoAnne, o Gordon, toda a gente das fotografias a preto e branco que
decoravam a parede de mármore do tribunal. Lembro-me de fitar cada um dos
retratos enquanto esperava que o juiz decretasse a minha sentença. Por um
momento, pergunto-me onde estarão. Mas depois julgo que compreendo.
O Finnegan mantém-se em silêncio enquanto observamos a multidão. Ao fim
de um minuto, prime um botão e abre-se ainda outra porta, revelando apenas
escuridão. A Alice inspira tremulamente e leva-me para o desconhecido, com
os dedos entrelaçados nos meus.
Sinto uma mão em cada ombro e quando me viro vejo que é a mulher do
Finnegan, a Fiona. Está a usar o mesmo vestido verde que usou no dia do
nosso casamento. Ela e o Finnegan seguem-nos em silêncio.
Há velas ao longo das paredes do corredor estreito, tremeluzindo na
penumbra. Atrás de nós, apenas o som de pés que avançam sobre o piso. Um
gemido ecoa pelo corredor, vindo de mais adiante. Não estamos sós. O meu
coração começa a bater mais depressa, sinto suor a escorrer-me pelos braços,
pelas costas. A meu lado, porém, a Alice parece tranquila; ávida, até.
À medida que caminhamos, os sons intensificam-se – uma corrente a
chocalhar, algo a debater-se num espaço cerrado. A respiração torna-se mais
ruidosa, o eco de mais correntes, algo a puxar, ou talvez preso. Um sensor de
movimento acende-se, iluminando tenuemente o caminho à nossa frente. Olho
de relance para a direita e vejo uma estrutura alta e familiar. Estaco,
apercebendo-me então de que está a escassos centímetros de mim. E depois
surge uma figura – de pé, entre placas acrílicas, de braços e pernas esticados e
agrilhoados. Um Colar de Concentração obriga-o a olhar em frente. Quando
passamos, outro sensor de movimento desperta um holofote sobre a estrutura
por um segundo, talvez dois. Através do nevoeiro de condensação no acrílico,
o rosto torna-se nítido. Por um momento, o meu olhar cruza-se com o do juiz, o
homem que aprovou o meu interrogatório. Os olhos dele não revelam qualquer
emoção. E depois torna a ser lançado nas trevas.
Viro-me para a Alice, dando-me então conta de que está a olhar para o outro
lado, mais acrílico, outra instalação. Uma mulher. Lembro-me de a ter
conhecido numa das festas, lembro-me de a ver nos corredores de Fernley:
fazia parte dos estimados membros da direção. Tem o cabelo desgrenhado, o
rosto a brilhar de suor.
A Alice detém-se diante dela, fascinada.
Uma a uma, vamos passando pelas instalações vivas e imponentes. Um por
um, vão-se acendendo sensores de movimento, iluminando por breves
instantes os rostos dos prisioneiros. As expressões deles são imperscrutáveis.
Terão medo? Vergonha? Ou outra coisa – uma noção de que se alcançou a
justiça? De que ninguém se encontra acima das leis do Pacto? A sua missão
tem de ser servida. O equilíbrio tem de ser restaurado, aconteça o que
acontecer.
Enquanto o Finnegan e a Fiona nos seguem – cada um deles parando também
para observar antes de avançar –, o corredor vai-se enchendo de luzes
intermitentes. Membros da direção, sozinhos nas suas estruturas acrílicas,
agrilhoados, cada um a testemunhar a sua própria queda do estado de graça.
Espécimes para estudo, como eu fui em tempos. Sujeitos ao microscópio. Só o
terror nos seus olhos e o barulho persistente que um deles faz, debatendo-se
com os grilhões firmes, nos recordam de que isto é a vida, não arte.
Lembro-me do momento em que a Orla me perguntou que punições deveriam
ser atribuídas àqueles que tinham abusado do poder que detinham, àqueles que
subverteram os objetivos do Pacto para servirem os seus próprios desejos.
Não me arrependo da minha resposta.
O bem e o mal são complicados. Quem somos e o que pensamos que somos
raramente são uma e a mesma coisa.
Talvez eu e a Orla, eu e o Pacto, não sejamos tão diferentes como já cheguei
a pensar.
Mais adiante, há duas últimas instalações, separadas das restantes e
rodeadas por velas. Enquanto eu e a Alice passamos pelo meio delas, fixo o
olhar em frente. Não preciso de espreitar; sei quem está ali. À minha esquerda,
dou pela mão dela a esticar-se para a estrutura acrílica fina que a separa da
JoAnne. Quando o sensor de movimento se acende e a luz incide, ouço os
dedos da Alice a deslizar pela placa.
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