Disponível em: <https://www.uol/noticias/especiais/apartheid-da-violencia.htm#apartheid-da-violencia>. Acesso em: 09 de março de 2019.
Maceió, noite de 24 de maio de 2018. Enquanto na badalada região de Ponta Verde
moradores brancos fazem caminhadas ao lado de turistas pelo calçadão sob a segurança de policiais, dois jovens negros são mortos nos bairros mais violentos da periferia. E.S.S., 22, foi assassinado a tiros no Vergel do Lago, a 7 km da orla. A 16 km dali, no bairro do Benedito Bentes, a vítima foi J.S., 22, morto durante uma operação policial. Apesar de ser um berço da resistência negra no país, com a luta de Zumbi no Quilombo dos Palmares, no século 17, Alagoas ainda vive um "apartheid" que separa a realidade entre os homicídios de negros e brancos no estado. Pior ainda: em mais de dez anos, somente cresceu a diferença entre as raças com relação ao risco de ser morto. Segundo o Atlas da Violência (levantamento feito a partir de dados do DataSUS, do Ministério da Saúde) divulgado neste ano, em 2016 (dado mais recente disponível), Alagoas tem a menor taxa de assassinatos de brancos do país. O estado registrou a menor taxa de homicídios em 11 anos para um determinado grupo racial: 4,1 homicídios por 100 mil habitantes não negros (que inclui brancos, amarelos e indígenas). Essa taxa equivale à dos Estados Unidos, um país considerado de baixa letalidade. Já entre os negros (dado que inclui pardos e pretos, conforme designação do IBGE), essa taxa foi de 69,7 por 100 mil, a terceira maior naquele ano --atrás apenas de Sergipe e Rio Grande do Norte. O índice é maior do que o de El Salvador, um dos países mais violentos do mundo e que registrou taxa de 60,9 assassinatos por 100 mil habitantes no ano passado. Em Alagoas, segundo o Censo, 66,8% da população é preta ou parda. Pelo menos nos 11 anos de análises feitas pelo Atlas, nunca um estado teve tamanha diferença entre as taxas de assassinatos entre pessoas brancas e negras. Em 2016, proporcionalmente, para cada branco morto violentamente, 17 negros foram assassinados em Alagoas. O extermínio de negros, especialmente os jovens, não é uma novidade no estado e tem crescido ao longo dos anos. Entre 2006 e 2016, o número de homicídios de brancos em Alagoas caiu 33,7%, enquanto o de negros subiu 29,4%. Nesse mesmo período, somando todas as mortes violentas, Alagoas teve alta de 2% no total de homicídios. Já considerando apenas os anos entre 2011 e 2016, houve redução das mortes em 24%. "O Estado diz que a violência diminuiu, não contesto isso. Mas os 'poucos' que morrem somos nós, os negros. A política de segurança que está salvando a vida dos brancos em Alagoas não nos ajuda, porque nos estigmatiza e naturaliza nossas mortes", afirma Arísia Barros, coordenadora do Instituto Raízes de Áfricas. "É preciso um tratamento de choque, que o governo perceba que toda uma geração está sendo morta.". HISTÓRIA DE DOR E TEMOR
RACISMO SE REFLETE EM MAIS VIOLÊNCIA
Para o pesquisador Daniel Cerqueira do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), que coordenou a edição de 2016 do Atlas da Violência, o racismo no Brasil se apresenta de diversas formas, entre elas a violência. Para ele, cada estado apresentou um comportamento variado para as crescentes taxas de homicídios. "Um outro ponto é a diferença da posição social do negro na sociedade: eles foram largados à própria sorte na abolição. Eles são super-representados nas camadas mais pobres e sub-representados nas mais ricas. Como é mais pobre, fica mais vulnerável", explica. Outro problema é a discriminação pela cor da pele. Para Cerqueira, ela está caracterizado, por exemplo, na questão da atuação do Estado na área de segurança. "Existe um ditado bem conhecido nas polícias de que preto parado é suspeito e preto correndo é bandido. Isso quer dizer que o uso da força contra o negro vai ser sempre maior. Um branco morrendo numa rua nobre da cidade vai virar manchete dos jornais, a polícia vai achar o criminoso e prender. Se for um negro morto na periferia de uma grande cidade, não é mais nem notícia; se virar notícia, a sociedade vai dizer que ele estava envolvido com drogas e há uma naturalização com esse veredito da sociedade. É a cultura arcaica de país de dois andares", afirma. Ainda segundo Cerqueira, o Estado também atua de forma voluntária para manter esses grupos sociais afastados. "Os maiores policiamentos estão em torno das áreas nobres da cidade, que também é onde estão os melhores hospitais, as melhores escolas", explica. Para o pesquisador, por motivos históricos, o Nordeste ainda apresenta traços mais marcantes de racismo --que se refletem hoje no número de homicídios. "Se for olhar para esses estados, eles têm uma história de dinâmica da economia dos Impérios que vários negros migraram para lá. Portanto, pela cultura histórica racista, isso é uma coisa mais presente no Nordeste", avalia. SOFRIMENTO NEGRO Os homicídios não são a única violência contra os negros em Alagoas. Eles também estudam e vivem menos, têm maiores taxas de analfabetismo e menor renda per capita, em relação aos brancos. Segundo o Atlas do Desenvolvimento do Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), os brancos têm uma renda per capita 86% maior do que um negro no estado, enquanto a mortalidade infantil é 25% maior. Já o analfabetismo entre os brancos é 2/3 do que aparece entre os negros. "O racismo em Alagoas invade todos os territórios. O estado não despertou para essa luta, o que é uma contradição, porque fomos a primeira República livre das Américas. Mas esse racismo institucional faz com que a ideia da marginalidade persista", afirma Arísia Barros, coordenadora do Instituto Raízes de Áfricas. Ela ainda afirma que as mortes são o mais duro golpe na autoestima negra no estado. "Quando uma família negra perde um único filho jovem, ela perde a sua descendência. Quem perde isso acaba perdendo a sua história.".
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