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Marcas da diferença:

as literaturas africanas
de língua portuguesa

Organizadoras:
Rita Chaves
Tania Macêdo

São Paulo, 2006 ~Iameda


Mia Couto: palavra oral
de sabor quotidiano/palavra
escrita de saber literário
Fernanda Cavacas'

A literatura é o território sagrado


onde se inventa um chão e nos sentamos com os
deuses. O lugar onde, também nós, somos deuses.
No momento dessa relação, estamos fundando um
tempo fora do tempo. E nos religamos com o
universo. É isso que torna num momento divino esse
pequeno delírio que é o acto de inventar.
(Couto, 200la, p.13)

Este texto abordará a obra literária do escritor moçambicano Mia Couto e o


seu enquadramento no contexto sociopolítico e literário-cultural de Moçambique.
A escolha deste autor resulta, por um lado, da compreensão da importância
da sua obra como resultado e como factor de construção da identidade nacional
moçambicana, veiculada pela língua portuguesa. Por outro, resulta do
enamoramento pela soberba materialização da língua portuguesa em Mia Couto
como língua moçambicanizada, imbuída de culturas várias, força de coesão e de
construção de uma matriz cultural moçambicana.
De facto, como o próprio Mia Couto afirmou sobre José Craveirinha: "O
poeta escreve Moçambique através da língua portuguesà'. E não é de mais salien-
tar a importância da palavra em todas as áreas da vida do africano: nem talismãs,

1 Ministério da Educação - PT.


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nem mezinhas, nem venenos são eficazes sem a acção da palavra. Tudo o que
acontece no mundo resulta do poder gerador da palavra de um muntu, seja um
homem, um defunto ou uma divindade. Também para os Semitas, a palavra (dabar)
tem o significado de criação e é nessa acepção que a Bíblia afirma: "Deus criou o
Mundo dizendo o 'nome' das coisas". E na sua medida, e a seu modo, o mesmo
faz o homem que conhece os "nomes verdadeiros".
A reflexão que lhes proponho pretende levar-nos então a concluir que: Mia
Couto antecipa a moçambicanidade através de uma escrita mágica numa língua
portuguesa oriunda de Índicas mestiçagens. Mais, pretende reconhecer na palavra
escrita coutista a aparente conflitualidade da sua pertença criativa ao universo da
oralidade do português moçambicano e da sua materialização poética em contex-
to moçambicano e ao nível da escrita literária em língua portuguesa.
Entretanto, para maior facilidade de exposição, organizei esta reflexão em
três andamentos.

Mia Couto vai à boleia da história! apanha carona da história

De acordo com a análise efectuada por Borges Coelho (in Rosas e Rollo, 1998,
p.87-126), o nascimento da identidade moçambicana dá-se quando o poder "colo-
nial amalgamou habitantes de um espaço africano, diverso e fragmentado - as cir-
cunscrições, os regulados - para os "nivelar" numa nova condição, a de um novo
universo subalterno e unificado, compreendendo toda a colónia, ou província. Di-
ferentes nas suas culturas locais e tradições, todos eram iguais quando enfrentavam
o administrador ou o colono, todos eram inferiores". No crescimento e na afirma-
ção da moçambicanidade, assinalam-se ainda dois momentos cruciais:
• A guerra de libertação nacional que uniu vontades em torno do projecto
unitário da Frelimo .
• A participação no projecto de construção nacional logo após a Independên-
cia, "período áureo da nova identidade", "pontuado por conquistas importantes
no campo da alfabetização e educação de adultos, ou na massificação da saúde",
mas marcado pela intransigência face aos hábitos tradicionais, às cerimónias
2
iniciáticas e às autoridades antigas, cuja manutenção "secreta" torna as com uni-

2 "o anti-rribalismo e o anti-racismo da Frelimo riveram uma dupla dimensão: por um lado, serviu
para debelar a prárica da discriminação, e, por ourro, para jusrificar a negação da exisrência de
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dades esquizofrénicas e ajuda a explicar vertentes da guerra fratricida que se aba-


teu sobre o país novo.
Ora, a família Couto, à semelhança de tantas outras famílias de colonos por-
tugueses que se instalaram em Moçambique na década de 1950, era um misto de
vontade de "fazer pela vida", ultrapassando corajosamente a pequenez da terra
natal metropolitana, e "fazer a vida" naquela terra promissora, aí construindo o
futuro dos seus (Couto in Saraiva, 2001, p.154). Sobre isso, afirma Mia Couto:

Meus pais educaram seus filhos a serem outros, de outro continente, de outra
cultura. Essa a sua generosidade. Silenciosa, total. O sentimento de uma África
minha não constava em nossa casa. A ideia de posse sobre um continente tão vasto
parecia infundada, mesmo ridícula. Nós, sim, éramos cativos dessa grandiosidade.

A infância do escritor, "filho sanduíche", entre um irmão mais velho dois anos,
o Fernando Amado, e um mais novo sete, o Armando Jorge, foi povoada de episó-
dios banais que lhe foram formando o carácter e ditando normas que se podem
entrever na prática da vida adulta. A sua timidez e pouca propensão para actividades
físicas a par da grande liberdade de acção que uma cidade pequena e calma propor-
cionava vão-lhe permitindo contactos múltiplos com a rua e os seus habitantes que
sobre ele exerciam o fascínio do diferente. Assim, os amigos com quem vai permu-
tando vivências pertencem a mundos diversos: na escola e em casa, a um mundo
maioritariamente branco e com fortes marcas europeias; na rua, à periferia social
africana composta sobretudo por negros, indianos e chineses. Esta convivência,
nem sempre pacífi~, saldou-se positivamente numa consciencialização sociopolítica
que vai orientar o jovem Mia na participação activa da construção de uma socieda-
de livre e mais justa para Moçambique e na aceitação plena dos modos de ser e estar
de cada um dos grupos étnicos que compõem o mosaico cultural moçambicano.'

comunidades culturais diferentes, num contexto em que a prioridade era a de construir-se a Nação segundo
a percepção da elite dominante, do Partido-Estado, as forças então 'determinantes' do processo social"
(Cahen apud Magode, 1996, p.23).
3 "A identidade do arco-íris reside na diversidade de suas cores. Alguns olham essa pluralidade como um
'problema' a tesolver. Retire-se, contudo, uma dessas fatias coloridas e todo o arco se desmanchará. Afinal, as
sete cores não estão no arco: elas são o arco-íris. Apenas no breve instante da chuva todo o arco se torna
visível. No restante tempo, nós estamos vendo a oitava cor do arco-íris, a única que realmente não existe"
(Couto, 1998, p. 13).
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Até aos dezassete anos, Mia Couto vive na cidade da Beira: o que foi deter-
minante para a compreensão das difíceis relações entre homens de raças diferen-
tes, sobretudo em situações de desigualdade social, visto que a Beira era a cidade
de Moçambique onde a discriminação racial mais se fazia sentir.
Em 1971, acabado o liceu, Mia matricula-se em medicina na Universidade
de Lourenço Marques. O seu sonho era ser psiquiatra, mas a rebelião fermentava
nessa altura no meio universitário, e a militância do jovem Couto vai-se organi-
zando: de uma posição pró-chinesa, em oposição à Associação Académica que ele
apelidava de reformista e revisionista, para a consciencialização de que o que era
fundamental era assumir Moçambique em primeiro lugar; de um trabalho clan-
destino de reivindicação política com distribuição de panfletos pela cidade e
contactos com os quartéis par.a a participação numa célula da Liga dos Estudantes
Moçambicanos Anti-Imperialistas - Lema. E só em 1974, depois do 25 de Abril,
se dá a adesão do escritor à Frelimo, tanto mais que Mia já trabalhava no jornal
Tribuna (que tinha tradições de oposição e onde estavam José Craveirinha e Luís
Bernardo Honwana) e era importante que o trabalho de informação fosse feito a
favor do partido.
Assim, Mia Couto troca a universidade (estava no terceiro ano de medicina)
pelo jornalismo e ainda no período de transição participa activamente na viragem
que a imprensa sofreu em que abertamente passa a servir os interesses do novo
poder neste país a começar. O que lhe tinha sido pedido era que o fizesse por um
ano, mas a interrupção vai ser bem mais longa. Inicia-se aqui uma etapa da sua
vida pessoal e profissional que o marca de forma definitiva e que o torna elemen-
to activo da construção de Moçambique com todos os erros e com todas as virtu-
des. De facto, esta opção coloca o jovem universitário no centro nevrálgico do
s
nascimento do país.

4 ''A fundação de um porto novo e a construção do caminho de ferro no centro deram origem às cidades da
Beira e de Chimoio e contribuíram para que três pequenos centros comerciais mais antigos, a saber, Sofàla e
Chiloane, na cosra, e Sena, no vale do rio Zambeze, perdessem a importância que detinham anteriormente ... A
fundação da Beira e a ocupação dos outros pontos não é um caso isolado em Moçambique. Insere-se num
período de implanração de novas estrururas de comunicações, de produção e de exploração. Esse período de
implanração inicia-se no centro de Moçambique por volta de 1887, quer dizer, no mesmo ano em que foi
construído o caminho de ferro de Lourenço Marques e em que a actual capital do país foi elevada a cidade"
(Liesegang, 1989, p. 2I).
S "Quando me interrogo se essa passagem de catorze anos pelo jornalismo comporta consigo alguma
desilusão ou desencanto, concluo que não. Pelo contrário, foi uma possibilidade dificilmente atingível nou-
tras condições e noutros países de poder assumir esra diversidade que sinto em mim, tal como existe em cada
pessoa" (Couto in Loja Neves, 1988, p.2I).
Mia Couto: palavra oral 61

A esta distância temporal, torna-se mais fácil explicar comportamentos, com-


preender atitudes, racionalizar perdas e ganhos. Viver as profundas transforma-
ções por que Moçambique vai passar entre 1975 e 1985, sobretudo quando nos
sentimos parte integrante da História que se vai fazendo, foi extremamente dolo-
roso mesmo que exaltante, enriquecedor, único. As expectativas podem ter sido
maiores do que as obras, os erros podem fazer parte da inexperiência e serem
consequência da precariedade das circunstâncias, a liberdade pode ser a bandeira
do valor mais alto que tudo justifica, mas nenhum destes dias se pôde fazer sem
sofrimento, sem entrega, sem luta.
Da Tribuna, onde trabalhou com Rui Knopfli, Mia Couto passa para a direcção
da Agência de Informação Nacional (construída a partir dos quadros do jornal
Tribuna então encerrado), onde ficou cerca de três anos. Aqui viaja pelo país para
cobrir celebrações nas províncias e para formar quadros e redes de corresponden-
tes. Entretanto, o director da revista Tempo, Alves Gomes, é demitido e ele é
escolhido para esse cargo onde permanece até 1981. Finalmente passa para o
jornal Notícias, de onde pede a demissão em 1985, por "não gostar daquele jorna-
lismo" a que faltava lógica: "Um dia as coisas eram assim, no outro dia já não
. ...."
eram assim
Analisando todos estes órgãos de informação, não reconheceremos marcas
particulares do escritor: trata-se de um trabalho comunitário com objectivos na-
cionalistas militantes bem definidos, onde não cabe a subjectividade ou outros
ideais que dêem corpo a manifestações artísticas de índole individual. Começam,
no entanto, a aparecer excepções a esta militância unificadora, e é no próprio
jornal que as crónicas de Mia Couto surgem como brechas criadoras de diferença
ao nível linguístico, temático e mesmo conceptual. E o público moçambicano
sente-se compelido a participar nas reflexões que lhe são propostas, de tal forma
que não raro esgota a tiragem do jornal.
Igualmente como reacção às características fundamentais do seu trabalho
jornalístico, Mia Couto publica em 1983 o seu primeiro livro, Raiz de orvalho:
como uma espécie de contestação contra o domínio absoluto da poesia militan-
te, panfletária.

6 "Em Raiz de Orvalho, deparamo-nos frontalmente com uma verdadeira teatralização do 'eu', isto como
resultado do próprio exercício verbal, que é heterogéneo. Trata-se de um 'eu' poético que nos surge, amiú-
de. à medida que percorremos os textos, na primeira pessoa do singular (eu) e, por vezes, na do plural (nós),
numa voz repassada de pronunciada emoção. como que espelhando uma realidade interior; outras tantas
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Uma das razões invocadas por Mia Couto? quando deixa a direcção do Notí-
cias é o seu desejo de regressar à universidade, o que, de facto, acontece em 1985,
mas agora para se inscrever em biologia. E é uma nova aprendizagem a convivên-
cia com os jovens colegas e o retomar o gosto antigo da confabulação: ele sehte
que há tantas estórias para contar e tanta dificuldade em o fazer. Ao longo destes
anos de convivência com as realidades diversas deste país multifacetado e em
construção, o jornalista foi-se maravilhando com um imaginário que lhe lembra
a infância no seu contacto privilegiado com as gentes "do outro lado da rua" e na
toada criativa da oralidade da mãe.
Tendo participado assim nos momentos cruciais da vida do seu país, Mia
Couto jornalista à boleia da história - como ele próprio diz - depressa se dá conta
de que a referência sólida para as comunidades moçambicanas perceberem o mundo
e o seu destino é a tradição,' tradição que irrompe apesar de calada pelo projecto
socialista (tal como havia sido pelo colonialismo). E enquanto o jornalismo o
desencanta, VÍJzesanoitecidas encantam-no ...
Em Junho de 1986, os oito contos de VÍJzesanoitecidas são verdadeiramente o
acontecer do escritor: O seu "desejo de contar e de inventar" rompeu o silêncio
da palavra e corrompeu a escrita com tonalidades de vozes desconhecidas num
cenário de autêntico encontro com os homens e as mulheres que contam ao fim
10
do dia estórias de antigamente e de sempre. Karingana ua karingana de José
Craveirinha é a fórmula mágica que parece ouvir-se e nos transporta para a infân-
cia do conto maravilhoso e para a idade adulta da convivência e da solidariedade

vezes, é um manancial de lirismo confidencial, numa espécie de conversa amena com um ente próximo (tu)
... Na odisseia da procura de identidade com os 'outros', a relação 'eu/nós' parece-nos ser a mais curiosa,
talvez a mais fugaz e sub til de todas, sobretudo quando procuramos transpor o universo textual para o plano
extratextual ... O discurso lírico de Mia Couto é pleno mercê de um curioso exerclcio verbal, que se mani-
festa de diferentes formas: ambiguidade, paradoxo, trocadilho, cuja combinação, muitas vezes, desemboca
no absurdo" (Chiziane,1987, p. 43-7).
? "Uma das coisas que me fez sair da informação foi o fàeto de não querer ser mais director de coisa nenhuma.
Queria revisirar o meu país para reaprender ... reconquistar uma certa ligação que eu tinha tido na in&ncia,
naqueles anos ... na Beira" (Couto in Chabal, 1994, p.285).
8 "Nós fizemos a guerra, e Deus como castigo mandou-nos uma grande seca, que provoca toda essa fome.
Com as eleições virão as chuvas que com as suas águas lavarão do chão o sangue dos nossos irmãos que ainda
suja o nosso chão, aí poderemos plantar as nossas machambas e não teremos mais fome". (Mazula et ai.,
1995, p.162).
9 "l-0zes Anoitecidas são doze histórias de amor à nação moçambicana e à Língua Portuguesa. [Na edição
portuguesa já são doze e não oito histórias.] Doze histórias que compõem um dos livros mais fascinantes que
me foi dado ler nos últimos anos" (Agualusa, 1988).
10 Era uma vez - fórmula inicial usada pelos rongas contadores de histórias.
Mia Couto: palavra oral 63

com povos sabedores de vida(s) e ignorantes de técnicas e ciências. Há algum


deslumbramento nesta descoberta e neste encontro de culturas, deslumbramento
que vai permanecer ao longo de toda a ficção coutista, e que é sempre o pano de
fundo, quando não a razão de ser, dos seus contos e que talvez ajude a explicar a
magia desta escrita oralizante.
Curiosamente, e apesar de o autor se identificar como poeta,l\ as obras de
poesia de Mia Couto - Raiz de orvalho (1983) e Raiz de orvalho e outros poemas
(1999) - correspondem, no nosso entender, a uma área menos significativa da
complexidade criativa do escritor. Trata-se de um conjunto de momentos poéti-
cos - alguns de maior lirismo que outros - que servem para exemplificar a neces-
sidade de manifestar ao mundo sentimentos íntimos e uma maneira de ser e estar,
por um lado, conflituante com a ausência de valores humanos de partilha afectiva
individualizada, e por outro, explosiva no seu potencial criativo então ainda não
canalizado para "outras dimensões da palavra".
Durante todo o seu percurso literário, Mia Couto afirmou sempre estar escri-
tor" e não ser escritor, e esta afirmação não nos parece ser apenas um jogo de
palavras. De facto, estamos perante alguém que escolheu para si o desempenho
da tarefa de contar aos outros as estórias das suas gentes - "as gentes que fazem
parte / farão parte de um país em construção" - e que para isso sente necessidade
de procurar formas adequadas de o fazer. A dificuldade desta adequação resulta
da tentativa de fazer corresponder à oralidade criadora e genuína de culturas dife-
rentes moçambicanas a escrita unificadora e normativa tradutora de uma cultura
em que os moçambicanos se reconheçam/venham a reconhecer. A esta escrita
corresponde uma língua em mutação que parte de uma matriz européia (a dos
colonizadores) e vai tomando formas e matizes africanos, sem que a corrupção
seja nem imitação propriamente dita, nem recriação caótica e descomprometida.

1\ "A criação poética nasce do erro, da desobediência ... Não aceito muito bem a fronteira de géneros. Eu
sou da poesia", afirma Mia Couto (Gomes, 1999).
12 "Escrever está tão embrenhado na minha vida inteira que não sei exactamente onde é que começou. Se
falarmos dos livros, aí há um percurso datado, com fases. Mas a relação entre mim e a escrita não tem tempo.
Chego à escrita por vias das quais não tenho realmente consciência. Estou na escrita como uma coisa a que,
ao mesmo tempo, pertenço e visito e da qual posso sair - ou ela de mim - sem que me aperceba muito dis-
so ... A escrita é algo que me 'acontece'" (Couto in Loja Neves, 2001, p. 48).
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Entretanto, embora esta tarefa lhe venha ocupando parte significativa da vida,
o escritor é biólogo e é nessa condição que se sente profissionalmente. Aliás, é co-
mo biólogo que ele contacta populações e (re)aprende a genuinidade de comuni-
dades não urbanas que ainda vivem segundo as tradições dos antepassados e delas
lhe vão dando conta. É um movimento circular este: o escritor "alimenta-se" das
vivências do biólogo e o biólogo prepara-se para novas vivências através da imagi-
nação do escritor. Esta aprendizagem das realidades existentes no país autêntico é
tanto mais enriquecedora quanto diversificada é a composição étnica das nações
moçambicanas. E talvez só um "estrangeiro" estivesse em condições de manter a
postura de as tratar de igual modo e de igual modo as incorporar na sua escrita.
Como foi possível um africano de raça branca, filho de emigrantes portu-
gueses, chamar a si semelhante papel? Antes de mais nada, não negando a sua
dupla pertença cultural, mas também não tendo dúvidas sobre o lado da fron-
teira a que naturalmente pertence. E isto, sem que a opção de ser moçambicano
sequer se pusesse um dia. Tão naturalmente como ser, é-se da terra onde senti-
mos as raízes do coração - que são sem sombra de dúvida as mais verdadeiras.
O que não significa que não tenhamos de contrabandear permanentemente
entre as fronteiras dos nossos mundos. Aceitá-lo e transformá-lo em mais valia
possibilitou a Mia Couto o privilégio da compreensão de um mundo a mestiçar-
se. Por um lado, deu-lhe um sentimento de si individual; por outro, impeliu-o
a construir-se colectivamente.

Mia Couto tece um tecido africano com panos e linhas européias

A língua portuguesa foi sempre entendida, pela Frelimo, como instrumento


aglutinador da sociedade moçambicana ... Aquando do lançamento da I Campa-
nha Nacional de Alfabetização, em 1978, o Presidente Samora Machel ratificava-
a como língua de alfabetização porque é um meio importante de comunicação entre
todos os moçambicanos, veículo importante da troca de experiência a nível nacional,
facto r de consolidação da consciência nacional e da perspectiva do fUturo comum.
(Mazula, 1995, p.214-5)

Dez anos depois, no discurso de abertura do I Seminário sobre a Padroniza-


ção da Ortografia de Línguas Moçambicanas realizado em Maputo, Graça Machel,
Mia Couto: palavra oral 65

ministra da Educação, põe as línguas moçambicanas ao serviço da língua portu-


guesa, língua de unidade nacional. 13

Mia Couto publicara já o seu primeiro livro de contos (em Maputo, em


1986) e provocara uma reacção intensa sobretudo por causa da recriação linguística
que é característica fundamental do seu estilo. Alguns moçambicanos - curiosa-
mente alguns escritores - não foram capazes de compreender a desconstrução
linguística e acusam-no de parodiar o "português mal falado", o "pretuguês", para
além de reflectir a incursão de um homem urbano nas profundezas do mundo
rural, lá onde a vida se continua a pautar pela tradição, lá onde vivem os moçam-
bicanos cujas vozes, apesar da Independência, continuam a não ser ouvidas."
Com a serenidade de quem não tem telhados de vidro, o escritor moçambicano
insiste e o reconhecimento internacional apressa o nacional: Cada homem é uma
raça é editado em Portugal em 1990 (e conhece várias reedições).
Os dados estavam lançados. A partir daí, Mia Couto torna-se o escritor
moçambicano mais conhecido fora de Moçambique e vai ganhando terreno no
seu país natal. Fazendo o seu auto-retrato, define-se:

sou um escritor africano, branco e de língua portuguesa. Porque o idioma estabe-


lece o meu território preferencial de mestiçagem, o lugar de reinvenção de mim.
Necessito inscrever na língua do meu lado português a marca da minha individu-
alidade africana. Necessito tecer um tecido africano e só o sei fazer usando panos
e linhas européias. O gesto de bordar me ensina que estou inventando uma outra
ordem e nessa ordem esses valores iniciais de nacionalidade já pouco importam.
(Couto, 1997).

Necessita. E é o que faz, numa luta entre a nostalgia de um mundo distante e


a fé empenhada na cultura do seu mundo da infância, entre um passado a que
não renuncia e o presente que quer diferente e que ele próprio também vai mol-
dando. Afinal, no seu português, que denuncia claramente algumas marcas, na-
turalmente herdadas do português rural, ligeiramente arcaico (como a análise da

13 "as línguas maternas irão enriquecer a língua portuguesa falada em Moçambique e, lado a lado, irão
afeiçoar mais ampla e abrangenremenre a expressão multiforme da nossa personalidade moçambicana"
(Ne1imo, 1989).
" Não será por acaso que o livro de Mia Couto Vozes anoitecidas (1986) chegou mesmo a ser considerado
por Rui Nogar, em enrrevista concedida a Luís Carlos Patraquim (1987), como veículo de "uma visão quase
derrotista do processo histórico que se vive em Moçambique" (Venâncio, 1992, p.49-50).
66 Marcas da diferença: as literaturas africanas de língua portuguesa

linguagem por vezes o mostrou), ele injecta o sangue rítmico do português oral
do quotidiano de Moçambique, estruturas lógicas do xi-sena da sua infância e a
força cadenciada do xi-changana também das suas vivências aetuais. Sem os co-
nhecer, ele reconcebeu os caminhos de Amos Turuola com o seu ioruba (Taiwo,
1986, p.19). Talvez, subconscientemente, esses caminhos escondam uma contes-
tação da herança literária."
A partir dessa perspectiva, através das inúmeras leituras que realizámos - e
cujos resultados apresentámos em vários trabalhos editados - detectamos funda-
'6
mentalmente a existência de uma escrita literária contaminada pela oralidade e
plena de elementos significativos da paremiologia, da simbologia e da imagética
das culturas em presença no contexto moçambicano. Muitos destes elementos -
que correspondem a uma procura de raízes culturais e de sentimentos de pertença
- resultam de contactos intertextuais com a Oratura, implícitos e explícitos, e
estão presentes a vários níveis de análise literária.
Em nenhum momento, o escritor deixa de o ser e perde a capacidade
efabulativa - essa é uma característica fundamental da capacidade narrativa coutista.
De facto, o reconhecimento que somos capazes de fazer das marcas de
moçambicanidade está sempre para lá do texto literário. Isto é, pode moldar o
texto pela apropriação das estruturas oralizantes, pode caracterizar personagens e
ditar tramas narrativas, pode reflectir-se nos espaços reais ou imaginários, pode
cruzar-se em múltiplas vozes narradoras, mas não diminui a ficcionalidade da
prosa literária, nem fere a magia do universo diegético.
Entretanto, a criatividade e a sensibilidade poética de Mia Couto revelam-se
pelo recurso a cambiantes múltiplos da língua que proporcionam a fruição da
17
Palavra (re)construída. Exemplificamos abundantemente nos trabalhos referi-
dos a apropriação coutista da língua e a tessirura com que magistralmente o escri-
tor a torna veículo aglutinador de culturas moçambicanas, sem, por uma única
vez, ceder à gratuitidade invencionista ou perder o tom poético.

15 Na perspectiva de Ngal (1994, p.71): "eontestation qui s'explique, par exemple, par te refus de s'imérer dans

un ehamp linguistique et littéraire ou tes regles d'art définies par d'autres, ou ailleurs, ne eadrent pas avee eelles de
son ehamp linguistique maternel et culturel".
16 Como Laura Padilha (1995, p.14), declaramo-nos intérpretes enamorados destes textos que reafirmam
"o seu entrelugar que fica num ponto de confluência sígnica onde se dá o encontro da magia da voz com a
artesania da letra.
17 "utilizar cada palavra como se ela tivesse acabado de nascer, limpá-la das impurezas da linguagem quoti-
diana e reduzi-la a seu sentido original" (Guimarães Rosa in Coutinho, 1991, p.81).
Mia Couto: palavra oral 67

Trata-se de uma utilização criteriosa e imaginativa dos recursos linguÍsticos


que a norma põe à disposição do escritor; mas ultrapassa essa utilização porque,
por um lado, podemos reconhecer no discurso coutista marcas inequívocas do
português oral de Moçambique, por outro, há um rejuvenescimento da língua
portuguesa que se transforma, a partir da matriz, numa perspectiva de construção
de identidade nacional. E ainda, a alquimia da linguagem que se traduz num
estilo literário próprio.
Através da obra coutista, exemplifica-se a criação e a ruptura na literatura
moçambicana e reconstitui-se uma imagem precisa do sujeito de enunciação, sem,
no entanto, perder de vista o carácter polifónico dessa obra, cujo contexto põe o
problema das interferências discursivas, de que a ironia é o caso exemplar. Em
termos genéricos, o sujeito de enunciação produzido pelas narrativas coutistas é
analisável nos níveis semântico, sintáctico e pragmático, o que nos confronta com
um discurso novo, em que a novidade advém fundamentalmente da conjugação
de aspectos como:
• O léxico (re)criado sempre a partir da língua portuguesa de Moçambique e
de outras línguas que com ela coabitam o espaço moçambicano.
• Também, a aproximação ao português oral de Moçambique nos seus refle-
xos a nível da organização morfo-sintáctica que serve o texto e na forma oralizante
do discurso.
• Do mesmo modo, a expressão literária da escrita coutista onde se reconhe-
cem alguns aspectos formais que vão da organização e cadência das frases e do uso
dos dois pontos à opção pelo pretérito mais-que-perfeito simples e a um processo
próprio de adjectivação e de uso de diminutivos com valores diversos.
• Ainda, os variados recursos estilísticos que profusamente traduzem a imagética
coutista nos vectores perifrástico e metafórico, com um "culto da metáforà' que
transmite uma mensagem simbólica com uma eficácia acrescida.
• E finalmente, a ironia como discurso polifónieo e como sistema de comu-
nicação.

As inúmeras marcas da tradição oral moçambicana presentes na selecção e


organização dos temas da prosa coutista e a utilização constante de elementos des-
sa tradição, e nomeadamente de textos de oratura, pelas múltiplas vozes narrado-
ras criadas pelo autor entrecruzam-se num diálogo sempre subjacente com o lei-
tor. Para além disso, o estabelecimento de uma ponte entre a forma e o conteúdo,
68 Marcas da diferença: as literaturas africanas de língua portuguesa

através da (re)criação do provérbio coutista, assume-se como paradigma da voz dos


antepassados.
Naturalmente que, subjacentes aos diversos processos e recursos utilizados
por Mia Couto, se poderão pressentir objectivos varidveis:
• desde a original e incisiva intenção didáctica até ao recurso ao toque de
mistério que a linguagem simbólica confere a um truísmo;
• desde a auto-exigência de entroncar a expressão, ou de a sintonizar, com as
expressões de uma sabedoria multi tradicional, até ao enlevo de escalpelizar as
falas profundas do seu país, de as reconstruirlaproximarlactualizar, de com elas
brincriar; 18

• desde o suporte e reforço da narrativa pelo provérbio, inclusive como dis-


curso abstracto,19 à procura de uma verosimilhança ou uma generalização, ou de
uma memória perene.

Em síntese, dois grandes objectivos parecem sobrepujar-se a todos os referi-


dos ou englobá-los: 1. o empenhamento em concitar a boa expressão oral tradici-
onal para a mesa da escrita literária, revitalizando-at 2. a procura de uma expres-
são entrosadorae homogeneizadora de uma massa proverbial multiforme e
multilingue - que contribua para gerar em língua portuguesa a expressão de uma
grande cultura oral moçambicana - sempre no pressuposto de que "a pátria não é
a Iíngua,"2\ mas sim

a cu Itura.
Toda a obra de Mia Couto se elabora sobre o fundo e em função de estereó-
tipos da actualidade moçambicana e de grupos sociais urbanos e rurais que com-
põem o mosaico étnico-cultural daquele país. Podemos detectar os sociolectos da
modetnidade africana, a maior parte das vezes confrontados com dados tradicio-
nais autóctones que se revestem de simbolismo mágico e de poderes encantatórios.

\8 ''A propósito da utilização de provérbios na literatura, é de salientar que existem dois processos possíveis:
a citação e a subversão, ou seja, o provérbio pode ser citado na íntegra ou parcialmente (caso lhe seja feita
apenas uma alusão), ou pode ser subvertido com vista à obtenção de jogos de sentido. É este último, curio-
samente, um processo em voga nos nossos dias" (Chacoto, 1996, p. 98).
19 "O discurso abstracto funciona muitas vezes como instrumento eficaz numa estratégia de manipulação,

já que mascara o ego responsável pelo discurso, aparecendo este último como expressão neutra e inquestionável
de uma verdade por todos aceite" (Reis & Lopes, 1987, p. 345).
20 Assim, o escritor contribuiria para atenuar o risco, comum a países africanos, de o alargamento da
escolaridade causar a minimização da linguagem proverbial e a sua perda de vitalidade.
21 Exactamente o sentido que Pessoa confere à sua expressão antinômica.
Mia Couto: palavra oral 69

De facto, abordar a realidade moçambicana no momento aetual é afrontar a


complexidade gerada pela sobreposição de mundos diversos, de mentalidades di-
ferentes e de períodos que interferem uns nos outros e muitas vezes se chocam. E
esta abordagem, fundamental no caminho do reconhecimento da identidade cul-
tural, será obrigatoriamente repetitiva e demorada, uma vez que "nenhuma tenta-
tiva de penetrar a história e o espírito dos povos africanos terá validade, a menos
que se apoie nessa herança de conhecimentos de toda a espécie, pacientemente
transmitidos de boca a ouvido, de mestre a discípulo, ao longo dos séculos"
(Hampaté Bâ, 1982, p. 181), que é a tradição oral.
A tradição oral é em África um sistema de auto-interpretação concreta. Por
ela, a sociedade explica-se - e explica-se a si própria." A história dos africanos dir-
se-ia uma verdade ontológica. E vários são os veículos de que a tradição oral se
serve para transmitir aos vivos o significado ontológico do grupo.
Entretanto, a importância da oralidade africana faz-se sentir ainda mais no
caso da literatura, porque muitas vezes a(s) língua(s) natural(is) sobre que se cri-
am os sistemas modelizantes oral e escrito é(são) diferente(s). Acresce a razão
política - por vezes de aceitação difícil - de ser à (antiga) língua do colonizador
que é dada a função de traduzir emoções, conflitos e aspirações, numa lógica de
construção de um projecto de identidade nacional.
Assim, se "a palavra falada" tem um poder misterioso e um carácter sagrado e
traduz a recreação e a grande escola da vida, é imperioso estabelecer relações entre
23
oratura e literatura para podermos aceder ao sentido dos textos literários coutistas.
Mia Couto recorre sistematicamente à seiva fecundadora da(s) cultura(s) da
terra da infância, procurando transmitir a constância, a unidade e o reconheci-

" "La tradition orale est conditionnée par la société qui la véhicule. Elle est un ensemble de connaissances historiques
dirigé et limité. Elle est limitée par la strueture de la société dans laquelle elle se déploie. Sa limitation en fait est
Muble: la tradition conceptualise... le passé d'une société déterminée; elle est transmise - abstraction faite des
quelques observateurs étrangers qui la recueillent - par les membres du groupe exclusivement. Sa profimdeur dépend
également du groupe; les struetures profimdes, nuancées. complexes. génêrent une tradition orale, riche, ambigüé,
compliquée. àfacettes multiples" (Ziegler, 1979, p. 208).
23 "One of the most telling qualities of Aftican orature (and one which we believe it shares with other oratüres) is

its economy of means. This may be sem in the density of meaning compressed into a line of proverb, and in the
spare, uncluttered language of our epics, fllk tales and court chronicles: their control of their matter displays an
almost ruthless exclusion of convoluted, jargon-plated chaff. Orature. being auditory. piam high value on lucidity,
normal syntax and precise and apt imagery. Language or image that is not vivid, precise, or apt compels the listener
to puzzle it out, interrupts his attention, and makes him Iosepares of the telling. Wé see no reason why these virtues
of orature should be abanCÚJned in literature. These qualities which are mandatory in the auditory medium should
be insisted upon in the writtm" (Chinweizu et aI. 1983. p.246-7).
70 Marcas da diferença: as literaturas africanas de língua portuguesa

menta característicos da identidade" numa intenção didáctica, iniciática e sim-


bólica evidente. Trata-se - no nosso entender - de contribuir para a memória em
construção,25 memória comum que respeite o chão dos antepassados, o solo sagra-
26
do da pátria moçambicana.

Mia Couto enterra os seus antepassados no chão sagrado


moçambicano

As múltiplas vozes narradoras criadas pelo autor materializam a voz de an-


tepassados moçambicanos alheios aos ditames do sangue, mas nem por isso
menos encantatória e transmissora de segurança e de felicidade na pertença à
terra da infância.
Por isso, a leitura da ficção coutista é, na nossa perspectiva, também um
exercício de reconhecimento de marcas de moçambicanidade do ponto de vista
cultural. Como o primeiro-ministro moçambicano, Dr. Pascoal Mocumbi, afir-
mou no lançamento do romance O último vôo do flamingo, de Mia Couto em
Maputo, estamos perante um escritor que é um "ensinador de moçambicanidade".
Moçambicanidade que é uma realidade em gestação, mas moçambicanidade trans-
mitida numa relação de amor com a Palavra em que se traduzem a multiplicidade
do Outro e a invenção do Eu.

24 "L'identité est attachée à la notion de permanence, de maintien de reperes fixes, constants, échappant aux
changements pouvant affecter le sujet ou l'objet par le cours du temps. En deuxieme lieu, l'identité s'applique à la
délimitation qui assure de l'existence à l'état séparé, permettant de circonscnre /'unité, la cohésion totalisatrice
indispensable au pouvoir de distinction. Enfin, /'identité est un eles rapports possibles entre deux éléments par
lequel est établie la similitude absolue qui regne entre eux, permettant de les reconnattre comme identiques ... Etre,
être un, reconnattre /'un, constituent solidairement le sol de son activitê (Lévi-Strauss, 1974, p.81-2).
25 "Memória colecriva, trabalho sempre recomeçado sobre a linguagem e o imaginário, recriação simbólica
do quotidiano, a literatura tradicional de transmissão oral é um veículo de modelos culturais que, funcio-
nando paralelamente aos do universo 'culto', são todavia permeáveis a contaminações e caldeamentos, num
processo permanente de intertexrualidade" (Lopes, 1983, p.54).
26 "Ser pátria assim, multilinguística e multicultural, é ser-se mais rico para a criatividade contra o naciona-

lismo tacanho, chauvinista, baseado quase só na raça e na língua. Numa pátria assim, sempre o real se decifra
por ângulos cada vez mais diferentes e a própria comunicação é a multicriatividade, pelo que é essencial: o
homem" (Rui, 1981, p.33-4).
Mia Couto: palavra oral 71

Este exercício de invenção do Eu - do nome próprio à identidade da criatura


humana - passa obrigatoriamente pela criação de antepassados" numa procura
mística de encontrar os deuses do nosso credo. Não esqueçamos o poder divino
dos antepassados nas religiões moçambicanas, eles próprios criadores das estórias
que são herança divina.
Perante o dilema real de a infância e os mortos estarem em lugares diferentes,
Mia Couto reinventa para si e para um país de múltiplas nações um mundo
maravilhoso que é único na diversidade e na multiplicidade, cumprindo o desíg-
nio maior do criador na sua relação amorosa com a Palavra.
Em síntese, Mia Couto diz Moçambique através da Palavra Oral de sabor
quotidiano reinventada na Palavra Escrita de saber literário. Diz Moçambique
através do Universo Simbólico de (con)vivências culturais projectado na Mátria
em construção no Chão Sagrado dos Antepassados inventados.

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27 "Meus familiares eram poucos, cabiam todos na nossa pequena casa. Não havia avós, tios, primos ...
Viviam nessas memórias que meus pais acendiam no ritual da noite. Aquele era como que o sagrado de um
momento, sobre um silêncio posto como toalha bordada por minha mãe. Ali, nesse recanto, meus pais me
devolviam o sentido da minha origem. Me ensinavam a ser dono de meus mortos. Me davam a minha ilusão
de eternidade. Nas tardes, eu me embrenhava nos bairros negros e ali escutava os contadores de histórias.
Aquela outra oralidade, mais alegre, mais dançável. Era essa a lição dos velhos contadores de estórias, sob as
palmeiras da Munhava ... Quem criara aqueles contos haviam sido os antepassados, e as estórias ficavam
como herança divina. Naquele mesmo chão estavam sepultados os mais velhos, conferindo história e religi-
osidade àquela relação. Nessa moradia, os antepassados se convertem em deuses ... A infância e os mortos
estavam em lugares diferentes" (Couto in Saraiva, 2001, p.154-5).
72 Marcas da diferença: as literaturas africanas de língua portuguesa

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