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Fernanda Cavacas - Mia Couto - Palavra Oral de Sabor Quotidiano
Fernanda Cavacas - Mia Couto - Palavra Oral de Sabor Quotidiano
as literaturas africanas
de língua portuguesa
Organizadoras:
Rita Chaves
Tania Macêdo
nem mezinhas, nem venenos são eficazes sem a acção da palavra. Tudo o que
acontece no mundo resulta do poder gerador da palavra de um muntu, seja um
homem, um defunto ou uma divindade. Também para os Semitas, a palavra (dabar)
tem o significado de criação e é nessa acepção que a Bíblia afirma: "Deus criou o
Mundo dizendo o 'nome' das coisas". E na sua medida, e a seu modo, o mesmo
faz o homem que conhece os "nomes verdadeiros".
A reflexão que lhes proponho pretende levar-nos então a concluir que: Mia
Couto antecipa a moçambicanidade através de uma escrita mágica numa língua
portuguesa oriunda de Índicas mestiçagens. Mais, pretende reconhecer na palavra
escrita coutista a aparente conflitualidade da sua pertença criativa ao universo da
oralidade do português moçambicano e da sua materialização poética em contex-
to moçambicano e ao nível da escrita literária em língua portuguesa.
Entretanto, para maior facilidade de exposição, organizei esta reflexão em
três andamentos.
De acordo com a análise efectuada por Borges Coelho (in Rosas e Rollo, 1998,
p.87-126), o nascimento da identidade moçambicana dá-se quando o poder "colo-
nial amalgamou habitantes de um espaço africano, diverso e fragmentado - as cir-
cunscrições, os regulados - para os "nivelar" numa nova condição, a de um novo
universo subalterno e unificado, compreendendo toda a colónia, ou província. Di-
ferentes nas suas culturas locais e tradições, todos eram iguais quando enfrentavam
o administrador ou o colono, todos eram inferiores". No crescimento e na afirma-
ção da moçambicanidade, assinalam-se ainda dois momentos cruciais:
• A guerra de libertação nacional que uniu vontades em torno do projecto
unitário da Frelimo .
• A participação no projecto de construção nacional logo após a Independên-
cia, "período áureo da nova identidade", "pontuado por conquistas importantes
no campo da alfabetização e educação de adultos, ou na massificação da saúde",
mas marcado pela intransigência face aos hábitos tradicionais, às cerimónias
2
iniciáticas e às autoridades antigas, cuja manutenção "secreta" torna as com uni-
2 "o anti-rribalismo e o anti-racismo da Frelimo riveram uma dupla dimensão: por um lado, serviu
para debelar a prárica da discriminação, e, por ourro, para jusrificar a negação da exisrência de
Mia Couto: palavra oral 59
Meus pais educaram seus filhos a serem outros, de outro continente, de outra
cultura. Essa a sua generosidade. Silenciosa, total. O sentimento de uma África
minha não constava em nossa casa. A ideia de posse sobre um continente tão vasto
parecia infundada, mesmo ridícula. Nós, sim, éramos cativos dessa grandiosidade.
A infância do escritor, "filho sanduíche", entre um irmão mais velho dois anos,
o Fernando Amado, e um mais novo sete, o Armando Jorge, foi povoada de episó-
dios banais que lhe foram formando o carácter e ditando normas que se podem
entrever na prática da vida adulta. A sua timidez e pouca propensão para actividades
físicas a par da grande liberdade de acção que uma cidade pequena e calma propor-
cionava vão-lhe permitindo contactos múltiplos com a rua e os seus habitantes que
sobre ele exerciam o fascínio do diferente. Assim, os amigos com quem vai permu-
tando vivências pertencem a mundos diversos: na escola e em casa, a um mundo
maioritariamente branco e com fortes marcas europeias; na rua, à periferia social
africana composta sobretudo por negros, indianos e chineses. Esta convivência,
nem sempre pacífi~, saldou-se positivamente numa consciencialização sociopolítica
que vai orientar o jovem Mia na participação activa da construção de uma socieda-
de livre e mais justa para Moçambique e na aceitação plena dos modos de ser e estar
de cada um dos grupos étnicos que compõem o mosaico cultural moçambicano.'
comunidades culturais diferentes, num contexto em que a prioridade era a de construir-se a Nação segundo
a percepção da elite dominante, do Partido-Estado, as forças então 'determinantes' do processo social"
(Cahen apud Magode, 1996, p.23).
3 "A identidade do arco-íris reside na diversidade de suas cores. Alguns olham essa pluralidade como um
'problema' a tesolver. Retire-se, contudo, uma dessas fatias coloridas e todo o arco se desmanchará. Afinal, as
sete cores não estão no arco: elas são o arco-íris. Apenas no breve instante da chuva todo o arco se torna
visível. No restante tempo, nós estamos vendo a oitava cor do arco-íris, a única que realmente não existe"
(Couto, 1998, p. 13).
60 Marcas da diferença: as literaturas africanas de língua portuguesa
Até aos dezassete anos, Mia Couto vive na cidade da Beira: o que foi deter-
minante para a compreensão das difíceis relações entre homens de raças diferen-
tes, sobretudo em situações de desigualdade social, visto que a Beira era a cidade
de Moçambique onde a discriminação racial mais se fazia sentir.
Em 1971, acabado o liceu, Mia matricula-se em medicina na Universidade
de Lourenço Marques. O seu sonho era ser psiquiatra, mas a rebelião fermentava
nessa altura no meio universitário, e a militância do jovem Couto vai-se organi-
zando: de uma posição pró-chinesa, em oposição à Associação Académica que ele
apelidava de reformista e revisionista, para a consciencialização de que o que era
fundamental era assumir Moçambique em primeiro lugar; de um trabalho clan-
destino de reivindicação política com distribuição de panfletos pela cidade e
contactos com os quartéis par.a a participação numa célula da Liga dos Estudantes
Moçambicanos Anti-Imperialistas - Lema. E só em 1974, depois do 25 de Abril,
se dá a adesão do escritor à Frelimo, tanto mais que Mia já trabalhava no jornal
Tribuna (que tinha tradições de oposição e onde estavam José Craveirinha e Luís
Bernardo Honwana) e era importante que o trabalho de informação fosse feito a
favor do partido.
Assim, Mia Couto troca a universidade (estava no terceiro ano de medicina)
pelo jornalismo e ainda no período de transição participa activamente na viragem
que a imprensa sofreu em que abertamente passa a servir os interesses do novo
poder neste país a começar. O que lhe tinha sido pedido era que o fizesse por um
ano, mas a interrupção vai ser bem mais longa. Inicia-se aqui uma etapa da sua
vida pessoal e profissional que o marca de forma definitiva e que o torna elemen-
to activo da construção de Moçambique com todos os erros e com todas as virtu-
des. De facto, esta opção coloca o jovem universitário no centro nevrálgico do
s
nascimento do país.
4 ''A fundação de um porto novo e a construção do caminho de ferro no centro deram origem às cidades da
Beira e de Chimoio e contribuíram para que três pequenos centros comerciais mais antigos, a saber, Sofàla e
Chiloane, na cosra, e Sena, no vale do rio Zambeze, perdessem a importância que detinham anteriormente ... A
fundação da Beira e a ocupação dos outros pontos não é um caso isolado em Moçambique. Insere-se num
período de implanração de novas estrururas de comunicações, de produção e de exploração. Esse período de
implanração inicia-se no centro de Moçambique por volta de 1887, quer dizer, no mesmo ano em que foi
construído o caminho de ferro de Lourenço Marques e em que a actual capital do país foi elevada a cidade"
(Liesegang, 1989, p. 2I).
S "Quando me interrogo se essa passagem de catorze anos pelo jornalismo comporta consigo alguma
desilusão ou desencanto, concluo que não. Pelo contrário, foi uma possibilidade dificilmente atingível nou-
tras condições e noutros países de poder assumir esra diversidade que sinto em mim, tal como existe em cada
pessoa" (Couto in Loja Neves, 1988, p.2I).
Mia Couto: palavra oral 61
6 "Em Raiz de Orvalho, deparamo-nos frontalmente com uma verdadeira teatralização do 'eu', isto como
resultado do próprio exercício verbal, que é heterogéneo. Trata-se de um 'eu' poético que nos surge, amiú-
de. à medida que percorremos os textos, na primeira pessoa do singular (eu) e, por vezes, na do plural (nós),
numa voz repassada de pronunciada emoção. como que espelhando uma realidade interior; outras tantas
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Uma das razões invocadas por Mia Couto? quando deixa a direcção do Notí-
cias é o seu desejo de regressar à universidade, o que, de facto, acontece em 1985,
mas agora para se inscrever em biologia. E é uma nova aprendizagem a convivên-
cia com os jovens colegas e o retomar o gosto antigo da confabulação: ele sehte
que há tantas estórias para contar e tanta dificuldade em o fazer. Ao longo destes
anos de convivência com as realidades diversas deste país multifacetado e em
construção, o jornalista foi-se maravilhando com um imaginário que lhe lembra
a infância no seu contacto privilegiado com as gentes "do outro lado da rua" e na
toada criativa da oralidade da mãe.
Tendo participado assim nos momentos cruciais da vida do seu país, Mia
Couto jornalista à boleia da história - como ele próprio diz - depressa se dá conta
de que a referência sólida para as comunidades moçambicanas perceberem o mundo
e o seu destino é a tradição,' tradição que irrompe apesar de calada pelo projecto
socialista (tal como havia sido pelo colonialismo). E enquanto o jornalismo o
desencanta, VÍJzesanoitecidas encantam-no ...
Em Junho de 1986, os oito contos de VÍJzesanoitecidas são verdadeiramente o
acontecer do escritor: O seu "desejo de contar e de inventar" rompeu o silêncio
da palavra e corrompeu a escrita com tonalidades de vozes desconhecidas num
cenário de autêntico encontro com os homens e as mulheres que contam ao fim
10
do dia estórias de antigamente e de sempre. Karingana ua karingana de José
Craveirinha é a fórmula mágica que parece ouvir-se e nos transporta para a infân-
cia do conto maravilhoso e para a idade adulta da convivência e da solidariedade
vezes, é um manancial de lirismo confidencial, numa espécie de conversa amena com um ente próximo (tu)
... Na odisseia da procura de identidade com os 'outros', a relação 'eu/nós' parece-nos ser a mais curiosa,
talvez a mais fugaz e sub til de todas, sobretudo quando procuramos transpor o universo textual para o plano
extratextual ... O discurso lírico de Mia Couto é pleno mercê de um curioso exerclcio verbal, que se mani-
festa de diferentes formas: ambiguidade, paradoxo, trocadilho, cuja combinação, muitas vezes, desemboca
no absurdo" (Chiziane,1987, p. 43-7).
? "Uma das coisas que me fez sair da informação foi o fàeto de não querer ser mais director de coisa nenhuma.
Queria revisirar o meu país para reaprender ... reconquistar uma certa ligação que eu tinha tido na in&ncia,
naqueles anos ... na Beira" (Couto in Chabal, 1994, p.285).
8 "Nós fizemos a guerra, e Deus como castigo mandou-nos uma grande seca, que provoca toda essa fome.
Com as eleições virão as chuvas que com as suas águas lavarão do chão o sangue dos nossos irmãos que ainda
suja o nosso chão, aí poderemos plantar as nossas machambas e não teremos mais fome". (Mazula et ai.,
1995, p.162).
9 "l-0zes Anoitecidas são doze histórias de amor à nação moçambicana e à Língua Portuguesa. [Na edição
portuguesa já são doze e não oito histórias.] Doze histórias que compõem um dos livros mais fascinantes que
me foi dado ler nos últimos anos" (Agualusa, 1988).
10 Era uma vez - fórmula inicial usada pelos rongas contadores de histórias.
Mia Couto: palavra oral 63
1\ "A criação poética nasce do erro, da desobediência ... Não aceito muito bem a fronteira de géneros. Eu
sou da poesia", afirma Mia Couto (Gomes, 1999).
12 "Escrever está tão embrenhado na minha vida inteira que não sei exactamente onde é que começou. Se
falarmos dos livros, aí há um percurso datado, com fases. Mas a relação entre mim e a escrita não tem tempo.
Chego à escrita por vias das quais não tenho realmente consciência. Estou na escrita como uma coisa a que,
ao mesmo tempo, pertenço e visito e da qual posso sair - ou ela de mim - sem que me aperceba muito dis-
so ... A escrita é algo que me 'acontece'" (Couto in Loja Neves, 2001, p. 48).
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Entretanto, embora esta tarefa lhe venha ocupando parte significativa da vida,
o escritor é biólogo e é nessa condição que se sente profissionalmente. Aliás, é co-
mo biólogo que ele contacta populações e (re)aprende a genuinidade de comuni-
dades não urbanas que ainda vivem segundo as tradições dos antepassados e delas
lhe vão dando conta. É um movimento circular este: o escritor "alimenta-se" das
vivências do biólogo e o biólogo prepara-se para novas vivências através da imagi-
nação do escritor. Esta aprendizagem das realidades existentes no país autêntico é
tanto mais enriquecedora quanto diversificada é a composição étnica das nações
moçambicanas. E talvez só um "estrangeiro" estivesse em condições de manter a
postura de as tratar de igual modo e de igual modo as incorporar na sua escrita.
Como foi possível um africano de raça branca, filho de emigrantes portu-
gueses, chamar a si semelhante papel? Antes de mais nada, não negando a sua
dupla pertença cultural, mas também não tendo dúvidas sobre o lado da fron-
teira a que naturalmente pertence. E isto, sem que a opção de ser moçambicano
sequer se pusesse um dia. Tão naturalmente como ser, é-se da terra onde senti-
mos as raízes do coração - que são sem sombra de dúvida as mais verdadeiras.
O que não significa que não tenhamos de contrabandear permanentemente
entre as fronteiras dos nossos mundos. Aceitá-lo e transformá-lo em mais valia
possibilitou a Mia Couto o privilégio da compreensão de um mundo a mestiçar-
se. Por um lado, deu-lhe um sentimento de si individual; por outro, impeliu-o
a construir-se colectivamente.
13 "as línguas maternas irão enriquecer a língua portuguesa falada em Moçambique e, lado a lado, irão
afeiçoar mais ampla e abrangenremenre a expressão multiforme da nossa personalidade moçambicana"
(Ne1imo, 1989).
" Não será por acaso que o livro de Mia Couto Vozes anoitecidas (1986) chegou mesmo a ser considerado
por Rui Nogar, em enrrevista concedida a Luís Carlos Patraquim (1987), como veículo de "uma visão quase
derrotista do processo histórico que se vive em Moçambique" (Venâncio, 1992, p.49-50).
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linguagem por vezes o mostrou), ele injecta o sangue rítmico do português oral
do quotidiano de Moçambique, estruturas lógicas do xi-sena da sua infância e a
força cadenciada do xi-changana também das suas vivências aetuais. Sem os co-
nhecer, ele reconcebeu os caminhos de Amos Turuola com o seu ioruba (Taiwo,
1986, p.19). Talvez, subconscientemente, esses caminhos escondam uma contes-
tação da herança literária."
A partir dessa perspectiva, através das inúmeras leituras que realizámos - e
cujos resultados apresentámos em vários trabalhos editados - detectamos funda-
'6
mentalmente a existência de uma escrita literária contaminada pela oralidade e
plena de elementos significativos da paremiologia, da simbologia e da imagética
das culturas em presença no contexto moçambicano. Muitos destes elementos -
que correspondem a uma procura de raízes culturais e de sentimentos de pertença
- resultam de contactos intertextuais com a Oratura, implícitos e explícitos, e
estão presentes a vários níveis de análise literária.
Em nenhum momento, o escritor deixa de o ser e perde a capacidade
efabulativa - essa é uma característica fundamental da capacidade narrativa coutista.
De facto, o reconhecimento que somos capazes de fazer das marcas de
moçambicanidade está sempre para lá do texto literário. Isto é, pode moldar o
texto pela apropriação das estruturas oralizantes, pode caracterizar personagens e
ditar tramas narrativas, pode reflectir-se nos espaços reais ou imaginários, pode
cruzar-se em múltiplas vozes narradoras, mas não diminui a ficcionalidade da
prosa literária, nem fere a magia do universo diegético.
Entretanto, a criatividade e a sensibilidade poética de Mia Couto revelam-se
pelo recurso a cambiantes múltiplos da língua que proporcionam a fruição da
17
Palavra (re)construída. Exemplificamos abundantemente nos trabalhos referi-
dos a apropriação coutista da língua e a tessirura com que magistralmente o escri-
tor a torna veículo aglutinador de culturas moçambicanas, sem, por uma única
vez, ceder à gratuitidade invencionista ou perder o tom poético.
15 Na perspectiva de Ngal (1994, p.71): "eontestation qui s'explique, par exemple, par te refus de s'imérer dans
un ehamp linguistique et littéraire ou tes regles d'art définies par d'autres, ou ailleurs, ne eadrent pas avee eelles de
son ehamp linguistique maternel et culturel".
16 Como Laura Padilha (1995, p.14), declaramo-nos intérpretes enamorados destes textos que reafirmam
"o seu entrelugar que fica num ponto de confluência sígnica onde se dá o encontro da magia da voz com a
artesania da letra.
17 "utilizar cada palavra como se ela tivesse acabado de nascer, limpá-la das impurezas da linguagem quoti-
diana e reduzi-la a seu sentido original" (Guimarães Rosa in Coutinho, 1991, p.81).
Mia Couto: palavra oral 67
\8 ''A propósito da utilização de provérbios na literatura, é de salientar que existem dois processos possíveis:
a citação e a subversão, ou seja, o provérbio pode ser citado na íntegra ou parcialmente (caso lhe seja feita
apenas uma alusão), ou pode ser subvertido com vista à obtenção de jogos de sentido. É este último, curio-
samente, um processo em voga nos nossos dias" (Chacoto, 1996, p. 98).
19 "O discurso abstracto funciona muitas vezes como instrumento eficaz numa estratégia de manipulação,
já que mascara o ego responsável pelo discurso, aparecendo este último como expressão neutra e inquestionável
de uma verdade por todos aceite" (Reis & Lopes, 1987, p. 345).
20 Assim, o escritor contribuiria para atenuar o risco, comum a países africanos, de o alargamento da
escolaridade causar a minimização da linguagem proverbial e a sua perda de vitalidade.
21 Exactamente o sentido que Pessoa confere à sua expressão antinômica.
Mia Couto: palavra oral 69
" "La tradition orale est conditionnée par la société qui la véhicule. Elle est un ensemble de connaissances historiques
dirigé et limité. Elle est limitée par la strueture de la société dans laquelle elle se déploie. Sa limitation en fait est
Muble: la tradition conceptualise... le passé d'une société déterminée; elle est transmise - abstraction faite des
quelques observateurs étrangers qui la recueillent - par les membres du groupe exclusivement. Sa profimdeur dépend
également du groupe; les struetures profimdes, nuancées. complexes. génêrent une tradition orale, riche, ambigüé,
compliquée. àfacettes multiples" (Ziegler, 1979, p. 208).
23 "One of the most telling qualities of Aftican orature (and one which we believe it shares with other oratüres) is
its economy of means. This may be sem in the density of meaning compressed into a line of proverb, and in the
spare, uncluttered language of our epics, fllk tales and court chronicles: their control of their matter displays an
almost ruthless exclusion of convoluted, jargon-plated chaff. Orature. being auditory. piam high value on lucidity,
normal syntax and precise and apt imagery. Language or image that is not vivid, precise, or apt compels the listener
to puzzle it out, interrupts his attention, and makes him Iosepares of the telling. Wé see no reason why these virtues
of orature should be abanCÚJned in literature. These qualities which are mandatory in the auditory medium should
be insisted upon in the writtm" (Chinweizu et aI. 1983. p.246-7).
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24 "L'identité est attachée à la notion de permanence, de maintien de reperes fixes, constants, échappant aux
changements pouvant affecter le sujet ou l'objet par le cours du temps. En deuxieme lieu, l'identité s'applique à la
délimitation qui assure de l'existence à l'état séparé, permettant de circonscnre /'unité, la cohésion totalisatrice
indispensable au pouvoir de distinction. Enfin, /'identité est un eles rapports possibles entre deux éléments par
lequel est établie la similitude absolue qui regne entre eux, permettant de les reconnattre comme identiques ... Etre,
être un, reconnattre /'un, constituent solidairement le sol de son activitê (Lévi-Strauss, 1974, p.81-2).
25 "Memória colecriva, trabalho sempre recomeçado sobre a linguagem e o imaginário, recriação simbólica
do quotidiano, a literatura tradicional de transmissão oral é um veículo de modelos culturais que, funcio-
nando paralelamente aos do universo 'culto', são todavia permeáveis a contaminações e caldeamentos, num
processo permanente de intertexrualidade" (Lopes, 1983, p.54).
26 "Ser pátria assim, multilinguística e multicultural, é ser-se mais rico para a criatividade contra o naciona-
lismo tacanho, chauvinista, baseado quase só na raça e na língua. Numa pátria assim, sempre o real se decifra
por ângulos cada vez mais diferentes e a própria comunicação é a multicriatividade, pelo que é essencial: o
homem" (Rui, 1981, p.33-4).
Mia Couto: palavra oral 71
Referências bibliográficas
27 "Meus familiares eram poucos, cabiam todos na nossa pequena casa. Não havia avós, tios, primos ...
Viviam nessas memórias que meus pais acendiam no ritual da noite. Aquele era como que o sagrado de um
momento, sobre um silêncio posto como toalha bordada por minha mãe. Ali, nesse recanto, meus pais me
devolviam o sentido da minha origem. Me ensinavam a ser dono de meus mortos. Me davam a minha ilusão
de eternidade. Nas tardes, eu me embrenhava nos bairros negros e ali escutava os contadores de histórias.
Aquela outra oralidade, mais alegre, mais dançável. Era essa a lição dos velhos contadores de estórias, sob as
palmeiras da Munhava ... Quem criara aqueles contos haviam sido os antepassados, e as estórias ficavam
como herança divina. Naquele mesmo chão estavam sepultados os mais velhos, conferindo história e religi-
osidade àquela relação. Nessa moradia, os antepassados se convertem em deuses ... A infância e os mortos
estavam em lugares diferentes" (Couto in Saraiva, 2001, p.154-5).
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