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SANTO AGOSTINHO

CONTRA OS ACADÉMICOS

DIÁLOGO EM TRÊS LIVROS

TRADUÇÃO E PREFACIO DE

VIEIRA DE ALMEIDA
P R O F . DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

C O I M B R A — MCMLVII
DO AUTOR

OPUSCULA PHILOSOPHICA — (dispersos).


OPUSCULA CRITICA—(dispersos).
LACRIMAE RERVM—(poemas) [publ, I Bucólica, II Nocturna].
GARRET — Sn /ftfff. Í/Í7 £íV. /-;>-,'. n&S SéC$r XIX 0 j K X
GABRIELA I / A K K U H J H O — in ÍCst, um. em Portugal, n,° i, PREFÁCIO
í AMPAN-ELLA— &&F, n.Q 2.
PIRANBELLO — tfjtíf.
A ATITUDE KEffTAL DE MONTAlGNIí - ín / & / , *>/ ^tf/írf. rftf$ Ciências, l) Itaquê avidissime arripiti vemrabihm síilum spin
v o l . V.
tus tui et prae caeteris apostolum Patdtim et perierunt
AHTFJRO D E QUENTAL - in BitlL des êiudes portugaUes, 1938.
DECADÊNCIA DO ÍMI\ PORT, NO OKUíNTE ín I/isL da expansão port.
illae quaestiones in quiòus mihi aliquando visus est adver-
no mu mio. sari sibi et non congruere tesiimoniis Legis et Propketarum
FARÀUOLA VIVA ( r o m a n c e ) — ( e d . Ocidente, 1941)* textus sermonis ejus. Et apparuxt mihi una fácies eto-
AMORES D O POETA—trad- do Dichteriiebe, de í l e i n e — Coimbra, qu ioru tn cas to rum et exsu Itare cu ? n ire m o rc didic i [co ÍT *. ,
edit, 1942.
VII, 2 7 ] .
FILOSOFIA DA A R T E — (Cot, Studinm, Coimbra, 1933),
T E A T R O C A H O K E A N Q — 1 Anfitriões, u KL-Rei Seleuco — ed. Oci-
Não é por acaso que o apóstolo Paulo aparece nas
dente (1942 e 1944), CONFISSÕES de Agostinho, como alavanca do seu movimento
INTRODUÇÃO A FILOSOFIA —(Col. Stndiumf Coimbra, 1943). para a doutrina que tão larga- e profundamente havia
LÓGICA ELEMENTAR — (Col. Studium, Coimbra, 1944), de ilustrar ( l ); entusiasmo semelhante parece animar 03
A MÁSCARA DE EÇA — (ed. Romcro, 1945).
À JANELA DE TORMES — ed. Rev. de Portuga/, 1945J.
(l) Santo Agostinho ( A u r é l i o Agostinho) n. 354, nos Idos d e
CQLUKATA ( r o m a n c e ) — ed. Ocidente, 1945).
N o v e m b r o (dia 13 — Cf. i)e beata vila, 6) m. 430, Mocidade aventu-
CONTRA o s ACADÉMICOS —trad.» pref. e notas — i n Arq* da Univ. de
rosa. Professor de retórica em Milão, deixa e s s e cargo (386) d e p o i s
Lisboa, 1945*
d e convertido — do m a n i q u e í s m o ao cristianismo — por influência
os Ú L T I M O S FINS DO HOMEM — preí. e notas (ed. RCZK de Portu-
de Mónica, sua m ã e (Santa Mónica) e do bispo milanês A m b r ó s i o ,
gal, 1946).
mais tarde canonizado, que o baptizou. Q u e r e n d o meditar livre-
EÇA Df, QUEIRÓS - in Pers. da HL portuguesa.
m e n t e , retira-se para Cassiciacum a o n d e o a c o m p a n h a m seu irmão
PARADOXOS SOCIOLÓGICOS — (Col. Studium, Coimbra, 1947).
Navígio, sua mãe, seu filho A d e o d a t o , Alípio, seu amigo, Licen-
ESBOÇO DE HIST. DA TEORIA DO REAL E DO IDEAL, d e S ç h o p e n h a n e r
cio e Trigccio, s e u s d i s c í p u l o s ; o p r i m e i r o , filho d e outro sen
— trad, e pref, — ed, Atlântida, 1948.
amigo e protector, Romanàano, a q n e m ê d e d i c a d o o CONTRA ACA-
A LÍNGUA PORT, E O CANTO — in Boi. do Conservatório JV>J> vol. I, n. n 2,
DÉMICOS.
HOMENS DA ÍNDIA DE QUINHENTOS — ed, E m p , N-«> de Publici-
dade, 1955. Pelo contexto o diálogo ê v e r d a d e i r a m e n t e preliminar na obra
agostiniana, p o r q u e nele se procura invalidar o cepticismo da «Nova
J UDlTH — ed. Ociden te, 1950,
ORAÇÃO DA COROA — trad., pref, e notas - ed. Sá da Costa, [956.
INICIAÇÃO LÓGICA — e d . Europa-América, 1956.
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dois homens na missão que têm por sua; vibração e folie, tege da voz ignorada [CONF., VIU, 29 J que o leva a
ardência análogas transparecem da obra e da atitude de buscar na Bíblia sentença orientadora. Volta para junto
um e de outro; em ambos se produz crise espiritual do seu grande amigo Alipío, que surpreso o vira afas-
profunda; ambos perguntam ansiosamente que lhes cum- tar-se, pede ao livro que ali deixara uma espécie de
pre fazer. E um ouve no caminho a voz que o manda oráculo, e lê em silencio o que lhe cai debaixo dos
esperar em Damasco a ordem divina [ACTOS, IX, 7]; outro, olhos:
informado da vida de Santo Antão (¹), e das conversões — Non in comessationibus et ebrietatibus, non in cuhi-
por ele operadas, ouve também na solidão do campo o libus et imptidicitiis, non in contentionc et aemulaiione;
sed indulte Dominum Jesum Christum et carnis providen-
tiam ne feceritis in concitpiscentiis (Não em glotonaria e
Academia», (Arcesilaa, IV e III séc. a. C., Carnéades, II séc. a. C.,
Filon de Larissa> 11 e 1 séc* a. C.) p a r a p o d e r assentar base dogmá-
embriaguez, não em desonestidade e impudicícia, não era
tica e s i m u l t a n e a m e n t e ligar d e novo em sentido cristão o conheci- disputa e emulação; mas revesti-vos do Senhor Jesus
mento com a ética e com a felicidade do h o m e m . Cristo e afastai a concupiscência [AD BOM., £111,13-14)),
Esta ligação r e a p a r e c e no r>£ BEATA V I T A e no D E ORDINÊ, com O apóstolo dos gentios e o bispo hiponense apren-
postos em um intervalo da realização do CONTRA ACADÉMICOS, C* àk deram assim lição igual, e salva a diferença do tempo
o núcleo da sistematização de que Santo Agostinho íoi o m a i s nota
vel r e p r e s e n t a n t e na patrística ocidental.
seguiram trajectória semelhante; e a tal ponto que apesar
Vários passos o confirmariam. Haste citar, íora d e esta obra, <* de essa diferença—ou talvez em função de ela —mais
das CONFISSÕES : Et ipsa est beato vi/a gaudere ad te, de. fe, propter te : impressionante se revela a semelhança. Convertidos
ipsa est et non est altera (X ; XXII, 3 2 ) ; e a i n d a : Beata quippe vita est ambos, Paulo sai da hostilidade feroz, Agostinho de uma
gaudium de mriíaíe (id., x x m , 33). E n o LÍBER DE VERA R E U G I O N E inquieta dúvida perturbadora. Um e outro deixam teste-
(112): Ecce unnm Dium colo unnm omnium principiam et sapieniian?
qua sapiens est úuaecumque anima sapiens est et ip.sum múnus qu&
munho veemente de sua crise violenta e crucial, Paulo
beata sunt qttaecumque beata strnL narra a conversão própria, evocando o seu ódio aos
O passo referido encontra-se t a m b é m confirmado em termos cristãos e decerto o suplício e morte de Estêvão, a que
s e m e l h a n t e s no CONTRA ACADÉMICOS (If, II, 5 ) : Itaqite íifubans, pro estivera presente e em que consentira [AD FILTP. III, 6 —
perans, haesitans, arripio apostolam Pautum*,. Perhgi iotum inten I AB T1M. 1, I 3 — 1 AU COR. XV, 9 AD GAL. I, 13] \ A g O S t i n h O
tissime atque cautissiwe*
relata longamente nas CONFISSÕES vicissitudes da sua
(i) Audicram enim de António quod §x evangélica tectione cm
forte supervencrat admonUus fmriU K o anacoreta da T e b a i d a trajectória espiritual.
(250-356) que se retirou ã vida contemplativa e solitária, i n s p i r a d o Tom ardente de entusiasmo doloroso e vibração de
pelas palavras do Evangelho d e Sâo M a t e u s : — «Se q u e r e s ser per- proselitismo infatigável encontram-se nas EPÍSTOLAS de
feito, v e n d e os tens b e n s e dá o p r o d u t o aos pobres» — ouvidas em Paulo como nas CONFISSÕES de Agostinho, e a agitação é
u m a igreja. T e v e g r a n d e fama e p o p u l a r i d a d e , não só pelos iiiila
visível em um e outro texto; no primeiro, por exemplo^
g r é s q u e lhe atribuíram como pela coragem com que afrontou o
perigo mais de uma vez para combater heresias ou defender e ani quando o apóstolo conta o que sofreu durante a prédica
m a r cristãos oprimidos, [AD COIÍ., 11, XJ, 24 e segs.]; no segundo, em vários passos,

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como no fim do Livro VIII, em que a expressão, simulta- influência platónica e neo-platónica (em certos pormt
neamente desolada e esperançada, ressoa com extraordi- nores corrigida nas RETRATAÇÕES ( l )); e se Aristóteles serve
nária pl&ngOncta:
— *Logo que uma reflexão profunda me revelou ao (*) O Livro primeiro das RETRATAÇÕES respeita aos livros quns
coração toda a minha miséria, uma furiosa tempestade . ripsit nondum episcopus, e o Capítulo 1 à obra que ele chama
desencadeou torrencial chuva de lágrimas». CONTRA ACADKM1COS Veí DE ACADEMICIS,
As restrições são poucas e quase puramente verbais. Refere-se
Ksta agitação de temperamento arrebatado serve em a primeira (Liv, I, 1, 1) à palavra fortuna, várias vezes empregada.
um e outro caso para compreender os dois aspectos receando que alguém a entendesse como nome de uma deusa, ao
característicos da obra de cada um de eles, ou antes» passo que ele apenas a usara no sentido de «evento fortuito»; e aceu
a intensidade notável que vieram a alcançar, e é fonte tua o passo em que no texto o deixou bem claro ; Etenim fortas>•
viva da sua repercussão. Colocados perante uma opo- quae vulgo fortuna nomlnatur oceulto quodam ordine regitur nthitqw
sição que para Paulo, apóstolo, é mais violenta e peri- atiud in rehus casam vocatnas nisi cujas ratio et causa secreta esL
A segunda (ibiá.) é a da desnecessidade da disjuntiva: sivepro
gosa e para Agostinho, bispo, já mais erudita e espe- meritis nostris sive pro :tecessitate naturae, pois essa dura necessidade
culativa, a obra naturalmente se desenvolve em dois resulta do pecado de Adão,
pianos correlatos e complementares: polémico e doutri- A terceira (i, I, 3) explicita que em vez de quidquid ullns sensus
nário. adtingitf deveria ter dito quidquid mortalis corporis ullus Sênsuè
adtirtgit, para evitar qualquer ambiguidade.
A polémica de Paulo é parte da sua mesma vida A quarta (1,11, 5) mantendo a verdade da afirmação de que a nuns
apostólica; às suas discussões de Atenas se referem os tt ratio constitui o melhor do homem, restringe que se tratada natu-
ACTOS dos Apóstolos (xvn, 18): reza humana, pois no sentido amplo, Deo meus nostra suhcttnda est*
— . .E alguns filósofos epicúrcos e estóicos disputavam A quinta (I, IV, a) repele a palavra omen (augúrio) que empre
com ele e diziam : gara não a serio mas jocosamente, por ser de carácter pagão.
No Livro segundo (III, 7» rejeita em primeiro lugar aquela como
— %Qu€ quer dizer este falador ?* — E outros: —
fábula da Philocalia et Philosophin, a que chama inepta e insulsa :
«Parece que prega novos deuses» — Porque lhes anunciava mas como é evidente, o diálogo uada perde e nada ganha com essa**
fesus e a ressurreição. Jxnhas colaterais.
A parte doutrinária é a colecção das EPÍSTOLAS, A segunda (11, LX, 22) refere-se à frase «secaras rediturus itt
:aetum-»t em que para evitar interpretações erradas teria sido prefr
2) A polémica de Agostinho dirige-se contra here- rível dizer i/urus, se bem que no seu pensamento in caelum seja
equivalente a ad Deum.
sias do cristianismo; a parte doutrinária está contida nos Finalmente quanto ao Livro terceiro:
OPÚSCULOS, obra vasta, de notável importância histórica; Na primeira observação diz que julgaria preferível dizer in Deo*.
cerca de nove séculos depois, no auge da Escolástica, a em vez de in mente arbitrar esse snmmum hominis honttm (XII, 27).
obra agostiniana é um dos pilares da sistematização. Na segunda declara desagradar-lhe a frase — liquet dejerare p*
A tradição aristotélica funde-se em São Tomás com a omne divinum (XVI, 35).
Na terceira corrige um pormenor de interpretação (XVIII, 40)
filosofia de Santo Agostinho, de nítida e confessada
Fendo dito que os Académicos conheciam a verdade, e chamado

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lie base ao Poeto? - Ingelicus, que o «interpreta» em sen- tihho, além da oposição doutrinária, tinha o ressentimento
tido cristão, Agostinho aparece como autoridade prima- do convertido, apaixonado pela refutação do erro em que
cial, e basta citar-lbe a opinião para haver motivo de ele mesmo caíra.
reconsiderar na tese que o autor parecia levado a apre- Havia ainda outra razão e essa não apenas psicológica
sentar como exacta, embora verdadeiramente já pensasse e fácil de supor, senão que documentada claramente na
em chegar a uma conclusão incompatível com ela. T a l obra. Ao passo que muitas heresias podiam dizer-se n o
é frequentemente a marcha do raciocínio nos capítulos aspecto geral como formas aberrativas internas ao sis-
da SUMMA de São T o m á s , tema, a dos maniqueus tinha por base uma noção tradi-
Na fase apostólica, Paulo tem de afirmar pontos capi- cional, dominante, sugestiva — o princípio dos contrá-
tais de dogmática, de encontro a uma religião tradicional r i o s — t r a n s e u n t e da ordem física à ordem moral, e que
definida, não menos exclusivista do que u m a religião se por um lado era incompatível com a ordem hierárquica
nascentej e por ela tornada mais zelosamente combativa. do sistema, por outro se mantinha e manteve por séculos
Importa portanto fixar doutrina, «pregar a Cristo cruci- até no domínio do conhecimento físico, Conservando-se
íicado que é escândalo para judeus e estultícia para apenas nesse domínio, a hierarquia aristotélica tinha no
gentios» (AD COK., 1, i, 23^; na época de Agostinho consu- termo um hiato lógico, aliás quase permanente na filo-
mara-se aquela pulverização de que há sintomas aludidos sofia anterior, e que o Estagirita não pensara sequer
nas EPÍSTOLAS de São Paulo, empenhado não só em pro- eliminar — a cansa prima — ; saindo de esse domínio, o
pagar a doutrina mas em manter-lhe unidade, evitando hiato adquire aspecto d u p l o : lógico e ontológico,
até o gérmen de divisão que seria supersticiosa [AO CQH., Huine, embora para concluir pela indiferença da fonte
I, 1, 10 e segs ]* original de todas as coisas quanto ao bem e ao mal, vê
A polémica de Santo Agostinho foi objecto de vários no maniqueísmo uma primeira e natural solução:
opúsculos sobre os pagãos, maniqueus, novacianos, aria- *Here the manichaean sysiem occurs as a proper hypo-
nos, donatistas e pelagianos; contra os maniqueus Agos- thêsis to solve the difficulty; and no douòt, in some respects,
it is very specious, and kas more probabihty íhan the
falso ao verosímil por eles aprovado, Santo Agostinho reconhece common hypothêsis by giving a piausible account of
duas causas de erro: primeiro, o verosímil ê verdadeiro também in
gentre suo; eles Dão o aprovaram porque o sábio nada devia apro-
the strange mixture of good and ill which appears in
var. O erro proveio, diz Santo Agostinho, da palavra «provável*^ lifê*.
por eles também usada. A dificuldade surgiu a Santo Agostinho e perturbou-o
Na quarta restringe o louvor exagerado a Platão e aos Platónicos demorada* e profundamente: Et quaerebam unde ma~
ou Académicos (XVII, 37)* lutn.. * Ubi ergo malum?*.. Unde est wialum? [CONF,.
Na quinta e última (XX, 45) contra o que dissera ao terminar o
diálogo considera ter refutado CfceTO certíssima rationc e só por
VII, Cap. v, 73*»* quaerebam aestuans unde sit maluwt.
ironia pudera dizer o contrário. O argumento permanecia; a con- Ouae illa tormenta parturientts corais mci, qui gemilus,
vicção é que se reforçara. Deus meus ? [iòid. Cap» vn-11].

IO 11
julgou, resolvê-la ao concluir que «o mal não é uma A exposição e análise da tese dos Académicos cons-
substância*, quia si substaníia cz^cí buuum vsset [tòtd. tituem ponto de partida para certa base de teoria do
Cap. xu-i8]. Era uma degradação metafísica, de base conhecimento — aquela mesma por onde deveria ficar
ética, isoladora do Sumo Bem na sua omnipotência, mas ligado e transponível o hiato aberto na hierarquia; e por
punha em perigo a oposição «substancial» do verdadeiro isso inevitavelmente imaginativa e ética. O esquema
e do falso, que também não são da natureza exterior» poderia assim enunciar-se:
oposição implícita no desenrolar de todo aquele racio- à) Ninguém pode ser feliz sem achar a verdade
cínio- Certo que «o Mal não é uma substância», admi- (condicionalismo ético do conhecimento)*
tido que a írase tem sentido rigoroso; mas sê-lo-á o Bem r b) Mas o homem é capaz de achar a verdade*
Cur et hoc? como diria Santo Agostinho. Só por valo- c) Podem refutar-se os que o negaram, em especial
rização arbitrária. O desequilíbrio era claro. Se a dua- os sectários da Nova Academia.
lidade do maniqueu abalava a hierarquia, a degradação Só por si o esquema já ê bem elucidativo; com efeito,
de um dos princípios aportava à incongruência. a análise dos argumentos dos Académicos, a que se refere
E é sempre análogo o resultado quando se pretende a alínea ct pode considerar-se questão técnica, A afirma-
o absurdo — neste caso uma demonstração metafísica, ção da alínea at como ponto de partida e determinante
Na discussão Bayle-Leibnitz, o inglês, com ar de boa fé do ponto de chegada, funde em modo racionalístico uma
quase ingénua, pergunta —Mas devo na verdade acre* realidade psíquica, um estado — a felicidade—(substan-
ditar que este inundo seja o melhor dos mundos possíveis? tivado metafisicamente e não apenas vocabularmente)
E Leibnitz com desnorteante segurança responde: com uma relação adjectiva —a verdade — substantivada
— Sem dúvida; porque se assim não fosse, Deus teria por igual.
escolhido outro, Quanto á alínea òt ê ponte insegura, dependente na
Esta petição de principio, praticada por um homem aparência da primeira; mas só pode ser aceita depois de
superior, de nome solidamente incrustado na história da demonstrar-se generalizável a conclusão da última; e
ciência, assombra pelo desvario a que pode levar qual- supondo ainda concedido que está certa a proposição da
quer atitude metafísica enraizada e perturbadora, primeira.
Recusar a substantivação da «verdade* não é só
3) O diálogo CONTRA ACADKMICOS não é apesar do título possível; é conclusão exacta. A este respeito o diálogo
obra essencialmente polémica. Nem o ambiente em que é naturalmente incompleto — bem o mostra a própria
se trava nem o problema de que trata provocam o entu- conclusão do autor —e tem carácter provisório, como se
siasmo ou convidam à exaltação. Além de isso, Agos- vê do último parágrafo, apesar de corresponder a uma
tinho não crê que a doutrina verdadeira dos Académicos convicção sólida; positivamente consiste na refutação
fosse tal qual eles deixaram crer aos profanos e a isso se do cepticismo e na conclusão de que o homem, necessi-
refere no fim do diálogo, tado de procurar ardentemente a verdade (outra a/ir-

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mação psicológica falível, tomada como ponto de partida ela era mais evidente do que as proposições da geo-
lógico) tem o caminho livre, pois são falsos os argu- metria.
mentos contra a possibilidade de encontrá-la. Acresce haver aqui um «circulo», pois a «aspiração*
Claro que Santo Agostinho vê na sua fé aquela ontológica só vinha revelar-se «depois», quando podia
verdade primacial a que as outras são aferentes; mas de vestir-se-ihe o aspecto de relação lógica. Esta atitude
isso não cura em especial este diálogo,* exteriormente mental é frequente e proteiforme na história do pensa-
mantido no piano da estrita discussão das condições do mento! e além do mais, os postulados, como das árvores
conhecer (salvo o intróito de cada livro e unia alusão no e dos homens diz a Bíblia, pelos frutos se conhecerão*
final do terceiro); assim é que iniciado o debate pela Postulado estéril, fantasia inútil,
pergunta radical:— «Duvidais de que precisamos de A afirmação simétrica e vulgar de que «Deus é a ver-
conhecer a verdade ?» — o diálogo sem transição ou fór- dade* tem desde logo aspecto metafórico e sugestivo; de
mula explicativa se desenvolve sob a influência dos pia- aí o seu êxito primeiro; mas reduzida a significado puro
cita dos Académicos, como se a pergunta inicial fora:— inteligível, ou vem dar a afirmação cartesiana — já de
«Duvidais, com os Académicos, de que possamos atingir modo nenhum evidente - o u corresponde em termos
verdades?* modernos à afirmação pitagórica de que o inteligível
O que é inteiramente diverso. No primeiro caso tra- humano laboriosamente obtido reflecte o inteligível
tar-se-ia da Verdade transcendente, modelo e origem de divino, o pensamento da causa absolutamente inteli-
verdades: no segundo, tudo se passa no domínio do gente,
conhecer, sem recurso algum à transcendência. Mais uma vez uma expressão parece resolver uma
dificuldade que apenas reexpõe em forma diferente,
4) De notar que Descartes procurou também, no Trata-se de mais um aspecto verbal da concepção que
Discurso do Método e nas Meditações metafísicas análoga levou ao «princípio» (fusão híbrida do lógico e do mate-
justificação transcendente da validade do conhecimento, rial) dos jónios, ao WJCF ordenador, de Anaxágoras, ao
única forma que julgou possível para quebrar a cadeia dualismo pitagórico, ao cogito-sum de Descartes, à ideia
da sua dúvida metódica; a sua transcendência justifi- da racionalidade intrínseca do real (fonte, ao longo da
cava-se moralmente; era o postulado ingénuo — com per- história, da repetida confusão do «absurdo» com o aimpos-
dão do génio de Descartes — de que Deus não podia ter sível») e à recíproca — a de que todo racional é reai —o
querido iludir o homem; mas ê muito mais simples que tem favorecido imponentes afirmações de existência
admitir a validade pelo menos pragmática do conheci- com o auxilio de pobres iogoinaquias. Tudo aspecto 3
mento objectivo (é o que faz o homem na generalidade) multímodos do hiato referido anteriormente (cf. 2).
do que pretender em vão alicerçá-lo sobre base muito Ora, como as verdades da ciência ou da filosofia não
menos evidente, embora o grande filósofo, preso a essa são reveladas e nelas o erro é sempre possível, a revela-
ideia—quem sabe por que laço! — insistisse em que ção da existência de Deus — que aliás não nos permite

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abranger-lhe a essência — não nos elucida sobre verda- De aqui no CONTRA ACADÉMICOS a independência do pri-
des da filosofia, onde só indirectamente e sem eficácia meiro livro relativamente aos outros, pois «as verdades
podemos limitar-nos a glosar com maior ou menor entu- impossíveis de alcançar», segundo a doutrina da Nova
siasmo essa afirmação fundamental; quer dizer, essa ver- Academia^ não podem ser «a verdade* de que depende
dade (neste caso «afirmação de existência*) funcionará a «vida feliz», só possível se a mens ou ratio achou a ver-
como origem mas não como metro de verdades ou como dade una, racional, exemplar, e condicionante. O s exem-
princípio de conhecimento; só o fervor de combater plos de verdades irrefutáveis a que Santo Agostinho dà
nome dialécticas ou obtidas directamente pela dialéctica,
doutrina oposta ou incompatível pode dar a ilusão de
não constituem de modo algum base ou elemento de feli-
que a posse de tais verdades se prenda com a da Ver-
cidade.
dade substantivada, cousificada.
Tanto mais quanto o jogo dialéctico para estabelecer Assim, excluída a verdade fundamental da sua fé que
por via puramente humana qualquer verdade revelada é ê revelada, e portanto, ainda quando se pretenda tratá-la
luxo estético que não a confirma, pois ela desnecessita- racionalmente, não se obtém por exercício racional puxo,
ria de confirmação; tudo que possa acrescentar-se—(o o que fica para a «vida feliz» entendida por este modo é
desenvolvimento é quase ad libitum) — não passa de escó- a afirmação de que é possível achar a verdade, e de ai a
lio sem interesse intelectual de maior, a não ser como convicção de que o esforço de procurá-la não è inútil
prova de argúcia, imaginação, ou talento do escoliaste. imas aqui já o conteúdo do termo é diferente e com-
plexo); e então a tese aproxima-se tangencialmente da
5) Estranhou Pascal que Descartes com o seu meca- de Licencio, que na busca e não no achado (à maneira
nismo se tivesse limitado a reconhecer o impulso inicial de Lessing mas catorze séculos antes) fazia consistir a
da divindade, ficando sem saber de aí por diante o papel felicidade. Demais, o próprio Santo Agostinho, pensando
que devia dar à acção divina: — «Je ne puis pardonner à na verdade por ele encontrada ao converter-se, afirma
Descartes; ii aurait kien vouíu dans touie sa philosophie no final estar ainda longe de alcançar a sapiência (III,
pouvoir se passer de Dieu; mais il na pu s*empêcher de xix, 43); está portanto, relativamente ao que importa
lui faire donner une chiquenaude pour meítre h monde en saber, na fase da investigação; e embora s e julgue
mouvement; après cela^ il na plus que faire de Dieu (PEN- imperfeito, segundo a terminologia ali empregada, não
SÉKS, Art. x, xu). se tem decerto por infeliz, pois encontrou o seu sen-
No entanto aqui era Descartes que tinha razão, inde- tido da vida. Quer dizer, o que verdadeiramente lhe
pendentemente do mecanismo ou de qualquer outra teoria importa é justificar a possibilidade do conhecimento por
de ordem física. Nenhuma forma de explicação pode deri- uma verdade originária em que se fundem por hipó-
var-se logicamente de aquela condição prévia, constante tese existência e validade, substância e relação lógica.
e por isso inaplicável como princípio de conhecimento em Êt salva a forma de exposição, o objectivo da solução (?)
domínios que o método individualiza e distingue. cartesiana.

16 I?
O ajustamento e resumo da altura da discussão, feitos pela «ciência» e pela renúncia é a atitude negativa corres-
por Agostinho no fim do Livro I (Cap. íx) e o seu apoio pondente: uni remendo hábil, não uma teoria.
a Trigécio elucidam bem sobre o seu pensamento, sobre O alto, embora variável, coeficiente de subjectividade
relações implícitas, que tomam a conhecida forma de defi- da chamada «vida feliz» é como desprezável para Santo
nições por postulados: Agostinho, colocado na linha da teorização racionalista.
i) Só o sábio é feliz (L m, 7). Assim, Romaniano seria infeliz (I, 1, 2) apesar de todas
2) O sábio deve ser perfeito (ibid.) as honras e do theatricus plausus, se ignorasse o que é
3) Quem ignora a verdade não é perfeito {(ibid., 9). verdadeiramente a vida feliz. É esse o tema do diálogo
4) Logo não é sábio e portanto não é feliz. DE BEATA VITA, escrito em um intervalo da execução dos
Este conceito de «felicidade-racional-defini vel» é socrá- três livros CONTRA ACADÉMICOS. A Í é Santa Mónica, mãe
tico e depois estóico, sem querer dizer neste caso que de Agostinho, que responde à pergunta do filho, feita
Santo Agostinho o receba de tal fonte, dada a sua repulsa sobre afirmação idêntica à do diálogo CONTRA ACADÉMICOS,
pela posição estóica. Na essência, a discussão de Sócrates de que o homem deseja ser feliz:
com Polus e Calliclès [GORGIAS] é o estabelecimento da — «E feliz quem tem o que deseja? — Si bona velit et
concepção racionalística (l) e normativa da felicidade; habeat beatus est; si autem mala velit quamvis habeat
e a simetria é completa com a discussão Licencio- miser est. «Se quer e possue o bem, é feliz; se quer o
-Trigécio ao longo de este diálogo, sobre a ciência e a mal, ainda que o possua é desgraçado» (ro).
vida feliz; com a de Sócrates e Eutífron [EUTÍFRON] Agostinho aplaude vivamente citando o HORTENSIO de
sobre o bem, necessariamente amado pelos deuses, ou Cícero, que também em outro passo escreveu: Nihil
— inversamente — constituído por aquilo que eles amam ; aliud est bene et beate vivere nisi rede et honeste vivere;
com a posição de Duns Scott e a de S. Tomás, con- mas a ideia é igualmente socrática e estóica. Parte da defi-
fiado o segundo na realidade do bem-em-si, afirmando nibilidade de «vida feliz». E o argumento de Santa Mónica
o primeiro ser o bem ex instituto da livre vontade divina. de que o homem que se contentasse com certos bens teria
Como se vê, a cadeia é longa e poderiam buscar-se mais a felicidade não pela posse do desejado mas pela mode-
elos. ração do desejo, aplica-se reflexamente ao sábio mode-
Procurar a felicidade com a ilimitação do desejo, con- lar que se julgasse feliz embora despojado de qualquer
duz à impotência pelo limite da capacidade humana, bem material; a sua felicidade estaria também na ati-
excepto se o esforço mesmo constituir a felicidade do tude racionalizada, níío na substancialidade do bem usu-
homem; o que é resolver o problema por uma atitude fruído.
psicológica. Atitude individual, não teoria. Procurá-la O desenvolvimento do raciocínio sobre esta base
exige ainda, como em um e outro diálogo expressa-
( l ) Não devem confundir-se «racionalístico» e «racional». O pri- mente se lê (c. A., I, íii, 9; DK «. v., passim) a dis-
meiro pode ser oposto ao segundo. junção classificadora — feliz ou infeliz — sem gradação

18 19
ou escala de intensidade e sem variação possível no tende uma definição intemporal do «justo», o *justo-em-
tempo. -si*. Definição impossível* O diálogo não conclui.
Licencio vacila como inexperiente sobre uma tendên- O que no diálogo platónico parece tirar força às
cia de visão relacional — e justa — da dificuldade, embora razões de Caíliclès, assentes na intuição viva de uma
depois seja esmagado pelo aparato bélico da erudição, e realidade psicológica, é em primeiro lugar o estar Platão
pelo realismo desorientador e âs vezes um pouco espesso do iado de Sócrates e deixar ver que o seu opositor nâo
de Trigécio, como se vê nos seus exemplos e comparações. Levaria talvez muito ionge o escrúpulo da injustiça se
A oposição Licêncio-Trigécio é uma de muitas formas íosse ele próprio o agente e qualquer outro o paciente.
conhecidas do conflito entre um pseudo-realismo concei- Isto que não deveria ter significação no caso torna-se
tuai e uma intuição que se debate, por se aperceber de uma espécie de argumento ad hominem contra as razões.
que o contraditor está em erro e não saber como demons- O que tira algum valor ao raciocínio de Licencio, ã sua
trá-lo, Se na mor parte dos casos não aproximamos tais visão rápida e justa da realidade, é em primeiro lugar a
formas da sua raiz comum é pela distância no tempo, sua insegurança de neófito, e a aceitação do ponto de
pela diferença de tema (o que lhes dá por vezes aspecto partida: possibilidade de definir «vida feliz»; em segundo
de questão particular) pelo mérito real ou suposto das lugar os exemplos concretos e de pura imaginação de
pessoas ou por alguns erros inclusos na argumentação que se serve, também nesse ponto de acordo com Trigécio
de um ou de ambos os lados e que subjectivamente com quem discute. Nessa discussão aparece (I, iv, 2)
valorizados positiva- ou negativamente bastam a realçar o duplo sentido da palavra «errar», correspondente a
ou prejudicar o conjunto de argumentação. «error» e a «erro*. A definição de Licencio é incompleta;
Assim, não seria difícil mostrar por exemplo que a basta notar que tanto erra quem toma o falso por verda-
justa objecção de Caíliclès a Sócrates: — «falas segundo deiro como quem toma o verdadeiro por falso; mas a de
a lei ao tratar-se da natureza e segundo a natureza ao Trigécio é de todo metafórica e inadequada, como no
tratar-se da lei& —revela que Sócrates passa sem tran- DE BEATA vfTA a analogia da alimentação da alma e do
sição do normativo ao real e reciprocamente, como se do corpo (8),
mesmo plano fossem, julgando o conceito ponte segura E tanto assim é que Santo Agostinho, encerrando o
em todos os casos. Certa classe de conceitos é com Livro I considera inútil prosseguir na discussão, desde
efeito ponte mas entre o empírico e o racional, não entre que um e outro — Licencio e Trigécio — davam o máximo
exemplos e norma, o que constitui pseudo-aplícaçãoj e valor à investigação da verdade.
a ponte como tal é sempre móvel e substituível por
insuficiência ou ruína, o que Sócrates não aceitaria. 6) A questão concentra-se pois em dilucidar os
Também quando Eutífron pretende que * justo» apenas motivos para afirmar que a verdade é atingível, visto
seja o que os deuses querem —no século xni Duns Scott haver acordo (que não é demonstrativo mas constitui
veio a retomar a tese em sentido cristão — Sócrates pre- um dos postulados iniciais) sobre a necessidade de pro-

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21
curá-la» Sendo os Académicos os impugnadores da tese, Pode dar-se outro sentido aos termos, decerto, contanto
e havendo no grupo quem não julgue desarrazoada a sua que explicitemos o uso que de eles vamos fazer; mas a
opinião — Licencio e Navígio — impunha-se a análise e distinção aqui estabelecida, a mais próxima do uso cor-
refutação da doutrina atribuída à Nova Academia. rente e a melhor talvez para o uso lógico dos dois termos,
No esboço de discussão com Licencio, depois conver- tem de fazer-se em qualquer caso porque é basilar; a
tido ao parecer contrário, Agostinho, convicto como .sinonímização feita pelos Académicos e por Cícero
revela mais tarde, de que os Académicos nunca tinham implica posição diferente da de Agostinho relativamente
negado sinceramente que «a verdade» íosse atingível, e ;i afirmativa de Zenão.
apenas procuravam ocultar o seu pensamento exacto a Situados no passado a confusão é fácil, pois deixa
profanos, insiste sobre o duplo absurdo de ialar de «vero- de haver espectativa possível e a forttori confirmação,
símil» desconhecendo o «verdadeiro» e de possibilidade pelo que «facto» e «afirmação» parecem assimptóticos.
de agir quando o espirito não tenha dado assentimento, Por exemplo, há quase convertibilidade entre a probabi-
Não parece haver forte razão histórica para supor tal lidade de que os portugueses tenham chegado à América
hermetismo nos sectários da Nova Academia, antes è antes de Colombo, e a aíirmação «verosímil» de que eles
crível que eles representassem a fase céptica relativa ao devem ter lá chegado* Mas no futuro, domínio privile-
dogmatismo anterior; mas os argumentos apresentados giado do «provável», ele não é nem deixa de ser «vero-
contra os dois «absurdos», assim como o aplauso à defi- símil», Já Aristóteles notara que a categoria dupla e
nição do «verdadeiro» dada por Zenão, merecem decerto suplementar do «falso» e do «verdadeiro» não se aplica
referência. ao futuro contingente:
Santo Agostinho que reconhece o talento dos Acadé- «Não é íalso nem verdadeiro que amanhã chova no
micos e de Cícero, seu grande comentador e admirador, Pireu.»
sinonimiza deliberadamente «verosímil» e «provável», E pode acrescentar-se, se o conhecimento empírico
alegando a competência de uns e outro em dar nome às do estado do tempo nos leva pelo aspecto do céu, hoje,
coisas e lembrando que eles assim tinham feito (II, xi, a esperar chuva amanhã no Pireu, a afirmação é verosí-
26). No entanto a dúvida de LicGncio chama justamente mil pois se funda em conhecimento empírico válido
a atenção. «Verosímil» e «provável» podem equivaler embora não rigoroso; e a vinda da chuva é provável,
em linguagem corrente, onde está longe de rigorosa a pois se trata de facto futuro.
distinção entre «verdade» e «realidade», como também Em que pode o provável vir a ser objecto de afirma-
ocorre em alguns passos do diálogo, ção verosímil, no sentido estrito, quer dizer, semelhante
Precisamente, «verosímil» aplica-se a uma relação, a ao verdadeiro? Em poder vir a ser verdadeira a afirma-
uma proposição, e «provável» diz-se do que pode ser, ter ção que ^e lhe refere, A afirmação do provável é uma
sido, ou vir a ser real. «Verosímil» é característica da função proposicional em que se conhece o domínio dos
afirmação; «provável», característica do facto afirmado. valores das variáveis mas em que a substituição não pode

22 23
fazer-se intemporalmente para validar ou invalidar a directa. No verosímil dos Académicos ou de quem quer
proposição. que seja, tal comparação não tem sentido. Até surpreende
Dir-se-á que a distinção embora exacta é ulterior e um pouco ver que Santo Agostinho neste passo não receie
nao fora estabelecida pelos Académicos? Ou que é uma a aparente facilidade da objecção formulada, tanto mais
espécie de distinção técnica, derivada da necessidade de quanto a sua consideração pelos Académicos deveria
fixar domínio diferente a dois termos anteriormente usa- levá-lo apesar da divergência a supor menor simplici-
dos em equivalência? dade no caso,
Em qualquer hipótese e sejam quais forem os termos Com efeito, em que é que uma verdade (ou uma
empregados, se eles se mantiverem no sentido original relação verdadeira, que é o mesmo, pois em teoria do
apenas com modificação do âmbito respectivo, claro que conhecimento não se reconhece verdade substantiva) se
podemos pôr de parte raciocínios em que eles apareçam parece com outra; ou em que é que uma afirmação se parece
confundidos, intencionalmente ou não. Entretanto a con- com uma verdade ? Em ser ou poder ser a verdade, agora
fusão dos dois termos não impede no diálogo um esboço adjectiva, seu predicado comum* Só pode passar-se de
de distinção, logo apagado na fusão voluntária entre o uma à outra por elo demonstrativo — inadmissível para
«verosímil» relativo ao conhecimento e o «provável», o céptico radicai — mas nunca por semelhança» expres-
relativo ao conhecido. •
são imaginativa, aqui destituída de sentido* Mesmo
quanto às «verdades irrefutáveis» de que fala Santo
7) Vagamente (II, vmt 20) e apesar de ver a sua posi- Agostinho — e a elas temos de referir-nos ainda — a
ção apoiada por Agostinho, Trigécio pressente a dife- semelhança não tem significado nem a verosimilhança
rença entre os Académicos e o homem do exemplo agos- ali se estabelece em função de qualquer verdade defi-
tiniano, que realiza em caricatura o argumento — de nida.
carácter filológico, poderia dizer-se — consistente em A ideia genérica e só por isso aparentemente sólida,
perguntar como pode conhecer o «semelhante ao verda- é esta: — Se não conhecêssemos alguma verdade como
deiro* quem o verdadeiro desconhece» conheceríamos e até como baptizaríamos o verosímil?
Este o absurdo endossado aos Académicos. Sê-lo-á? Ora o Académico precisamente contesta a posse de uma
Suponhamos — diz Agostinho a Licencio — (II, vn, 16) verdade por falta de critério exacto (l), JE neste ponto se
que um homem, vendo teu irmão e não tendo conhecido esclarece o motivo por que o Académico sinonimiza «pro-
teu pai, declare: —«Bem me tinham dito que são muito vável» e «verosímil»; pois que sempre, inevitavelmente,
parecidos» — Quem não riria de ele ? se verificam factos, isto é, alguma coisa se passa, o conhe-
Ora o caso, como Trigécio palpitou, não é o mesmo cimento empírico do que se repete dá-nos probabilidade
de modo algum. No exemplo de Agostinho há a seme-
lhança sensível de dois objectos de percepção, que por (i) Jnlgo ter feito a prova de esta indispensabilidade do critério,
isso apenas pode afirmar-se por comparação perceptiva seja qual for a noção da «verdade», na Revista Filosófica, D.* 3-1051.

3
24 5
mas não certeza de que se passem como prevemos; a ontológica; nisso convergem e não poderiam deixar de
afirmação de que tal se dê é portanto verosímil. Neste concordar Descartes e Agostinho; se fosse necessário
caso a verdade seria expressão de encadeamento rígo- verificar a impossibilidade de uma verdade transcen-
rosoi que também a experiência desmente, A verdade- dente servir de referência e base a verdades particulares
-tipo é conceito-íimite de essa maior ou menor probabili- ;L história do saber e mostraria com suas ilusões ridículas
dade; não é, nunca foi, não pode ser base sobre que e suas suficiCncias grotescas ; mas não vale a pena, porque
assente qualquer verdade em qualquer domínio. talta possibilidade de derivação lógica,
Quer dizer; o conceito do «verosímil» exige um conceito De modo que não podendo qualquer afirmação trans-
de verdade, mas não uma verdade achada (absoluta) nem cendente ser padrão ou modelo — o que justificaria, pelo
sequer a existência de ama verdade. Nfto esquecer que um menos, pragmaticamente, a sua incorporação sistemática,
conceito não pode deixar de ter sentido mas pode deixar — o problema não deve põr-se nem tem sentido relativa-
de ter conteúdo. Digo «uma verdade» e não «a verdade», mente aos Académicos, desconhecedores de aquela ver-
porque então entraríamos no domínio do transcendente dade que não lhes tinha sido revelada e portanto não
em que é legitimo recusarmo-nos a entrar neste caso. pode servir de ponto de partida contra eles. A discus-
«Afirmação verdadeira» e «verdade» são termos sinóni- são só é portanto admissível no plano das verdades cien-
mos, exclusão íeita do transcendente; apenas o primeiro tificas ou filosóficas. Tudo mais ê colateral,
linguisticamente mais analítico. Como se sabe, é equi- E aqui se desarticula o diálogo, porque a relação da
valente aíinnar a verdade de uma proposição ou afirmar primeira parte (onde se fala de vida feliz, da posse da
a proposição mesma. K o chamado em lógica princípio verdade, do conhecimento das coisas divinas e humanas,
de asserção. da definição absolutamente indefensável de ciência, dada
Ora esse conceito de verdade pode ser errado, como por Trigécio — I, vn—) com as outras duas, pode ser
o da verdade substantiva; e até qualquer suposta ver- teleológica e ética mas não é de forma alguma ligação
dade pode ser um erro sem deixar de servir de ponto de lógica.
referência, de origem do verosímil e do provável. Quando
os homens, e entre eles Aristóteles, suposeram impossí- II
vel a vida humana para aquém de certa latitude, pelo
carácter tórrido do clima —o que fez sorrir séculos depois 9) Pospondo o que nos Livros segundo e terceiro é
alguns missionários que sentiram frio nessa mesma zona penetração do primeiro, no último se concentra a análise
— partiam de uma ideia tida por verdadeira e tiravam da posição dos Académicos e Agostinho desenvolve a
uma consequência; que nada tem que ver com esse con- sua tese em discurso seguido,
ceito auto-contraditório — «a verdade*. Apesar do acordo em princípios comuns, como se vê
Se quisermos privilegiar qualquer verdade nenhuma na definição de «sábio» e «filósofo», desenha-se a oposi-
outra forma é possível senão a aventura da metafísica ção entre Agostinho e Alípio, como antes se produzira

26 27
entre aquele e Licencio, que salvos os exemplos analó- mas o trânsito da primeira para a segunda (que até os
gicos e impróprios com razão afirmara não poderem eles Académicos podiam aceitar como hipótese, conside-
mesmos, os interlocutores, considerar-se infelizes, apesar rando-a irrealizável por não aceitarem a primeira) não
de nada terem encontrado no termo da discussão anterior. pode eíectivar-se racionalmente; e Agostinho diz com
Como para mostrar que a articulação entre as duas razão: plus adhuc /ide concepi quam ratione comprehendi
partes do diálogo se fazia em plano diferente, e era por- lòid. 11, 4).
tanto ilusória, Agostinho volta a acentuar que o separa Partir de afirmações tidas por evidentes pode l e v a r á
dos Académicos julgar ele mesmo provável e eles impro- concepção (e à obtenção) de verdade abstracta e geral,
vável o achado da verdade. Não que ele a tenha encon- não ã de verdade substantiva.
trado, mas o sábio poderá descobri-la: illis probabile Poderia Licencio nesta altura, recordando o colóquio
visum esi vcriiatem non posse comprehendi mihi auiem anterior, alegar:
nondum quidem a me inventam inveniri tamen posse a — Logo és infeliz, porque não a encontraste e ainda
sapiente videatur (III, m, 5). a procuras.
Esta improbabilidade é pois para os Académicos E então provavelmente o argumento contrário em
resultado de uma indução, talvez aventurosa mas normal resposta seria o de que encontrara aquela verdade sobre
como processo, reforçada pela verificação resultante de todas importante, assunto principal do DE IÍKATA VITA;
aplicar concretamente o critério de Zenão; o nondum a licaria nesse caso bem esclarecido o que no diálogo é
me inventam transforma a afirmativa agostiniana em evidente como intuito e como conteúdo geral, embora
indução semelhante, a partir das «verdades dialécticas», velado na forma dialéctica da exposição: que tudo quanto
estéreis para conclusão afirmativa, como eles partiam da ali aparece como conclusão discursiva constituía ao invés
ilusão e do erro, para conclusão negativa; e se ele pró- ponto de partida plenamente aceito por via diferente; e
prio não a encontrou só pode julgar provável que o sábio que a «racionalização» de algumas proposições, indepen-
a encontre por um acto de fé, de que os Académicos não dentemente da argúcia e do talento com que se realize, e
podiam compartilhar. operação diferente da que leva por via lógica estrita a
Já antes, em outro passo característico do diálogo uma conclusão demonstrada.
íll, nrf 9) Santo Agostinho diz que só se sabe alguma Esta hipotética resposta de Licencio teria ainda outra
coisa quando a sabemos como que um mais dois mais importância: e é que no momento da declaração de Agos-
crês mais quatro são dez. E acrescenta: Mas não jul- tinho de que o sábio poderá encontrar a verdade já não
gueis. .. que a verdade em filosofia não possa conhecer-se se trata da verdade transcendente mas de uma verdade
de essa forma. geral e por assim dizer medianeira para atingir aquela
Esta duplicidade — a verdade, característica adjectiva que ele próprio, Agostinho já encontrara peia fé. Usando
da proposição verdadeira, e a verdade substantiva — uma frase sua neste diálogo, Agostinho poderia dizer ao
informa todo o diálogo e domina a marcha da refutação; seu sábio conjectural, ou dizermos nós por ele, parafra-

28 29
seando-o: — «Acha, se podes, uma verdade medianeira, neste a sapiência é alguma coisa, isto é, sabemos o signi-
capaz de ser ponte entre uma existência transcendente ficado do termo*
que não é verdadeira nem falsa mas só real ou irreal, Pode portanto aceitar-se a afirmação de Alípio se «o
pois só a afirmação de existência pode ser falsa, duvi- sábio como a razão no-lo apresenta* for apenas a desi-
dosa ou verdadeira] e as verdades que procuramos no gnação do sábio ideal em função dos sábios mais ou menos
nosso conhecimento»; profundos que a observação nos mostra, e «a sapiência»
Alípio estabelece distinção entre saber e julgar saber, o limite de essa qualidade característica do sábio* O que
identificando «sapiência* com «investigação» e dístin- tanto vale como dizer que o sábio como a razão no-lo
guindo-a portanto da verdade. Embora posta mais aguda- apresenta não difere àe o sábio como a imaginação nos
mente, a ideia é a mesma que Licencio não conseguiu sugere. E como no pensamento de Agostinho é sempre
defender; mas Agostinho insiste pela resposta categórica, a sua verdade fundamental que está no núcleo da «sapiên-
formulando assim a pergunta: cia» (v, g* III, vi) isso corresponde a afirmar que nunca no
— Parece-te, sim ou não, que o sábio conhece a mundo houve sábios antes de ela ser possível, nem depois,
sapiência? se ela não lhes for nuclear.
Alípio, apertado peia insistência mas sentindo obs- No entanto Alípio, ainda que fugidiamente, consegue
curamente, ao que parece, que o problema não comporta apreender o argumento que no caso tornaria inúteis todos
aquela solução dilemática, responde: os diálogos com soas circunvoluções acumuladas e ainda
— Se existe um sábio como a razão no-lo apresenta, quando sinceras, dilatórias e perturbadoras; é quando
ele conhece a sapiência. afirma (III, v, 12) quu ss Académicos podem comparar-se
Agora a conclusão agostiniana: com Proteio, só possível de apanhar com o auxílio de um
— Portanto, ou a sapiência nada ê ou a razão des- nume; e conclui:
conhece o sábio descrito pelos Académicos* — «Que ele venha mostrar-nos a verdade procurada
10) Com a liberdade filosófica reconhecida por Santo e confessarei que os Académicos foram vencidos, o que
Agostinho e por ele louvada em Trigécio, é possível não creio»*
reconhecer que Alípio, embora contra vontade, conce- Esta a resposta radical à tese da verdade substanti-
deu mais do que devia e Agostinho conclui muito rapida- vada* Não vale a pena discutir com esforço se ela é ou não
mente sobre tal concessão. Alípio poderia ter-se recusado possível, em que condições, sobre que plano ou em que
a considerar a sapiência uma «coisa» que o sábio conhece base. Tudo será retórica, e só uma prova neste caso é
ou possui, considerando antes a palavra — como é real- adequada: apresentá-ia; enquanto assim não for há direito
mente— nome abstracto da qualidade atribuída (e sus- de ser céptico, mesmo sem recurso às razões hoje claras
ceptível de grau) ao homem de certo tipo de mentalidade, em que se mostra o contrário,
quando atinja hipotético nível de intensidade ou vasti- Importa ainda notar que a redução interpretativa e
dão, não determinável exactamente* Neste sentido e só esquemática das afirmações dos Académicos à fórmula

30 31
de que «o sábio nada sabe» (III, iv, 10) lhe dá o aspecto Quando Descartes afirma que temos a ideia do per-
violento de afirmação auto-contraditória, e o senso comum leito, de aquisição impossível pela experiência, fala com
opõe-se-lhe irredutivelmente nessa forma; mas trata-se evidência plena, quase diz um truísmo no que se refere
de uma falsa passagem ao limite, pois se «sábio» ê por ;i uma experiência perfeita, isto é, de resultado absoluto;
definição «aquele que sabe», «saber» fora do uso cor- outrotanto não pode dizer-se quanto a termos «ideia do
rente não é palavra unívoca. Se quiséssemos empregar perfeito». A noção do perfeito é uma variável que tende
linguagem de tipo cousificante (a nosso ver sempre para o infinito e a que no aspecto imaginativo, contradi-
errada) poderíamos afirmar, de acordo com a história toriamente, quereríamos atribuir limite finito. A noção
da ciência, que a «sapiência» é aquela atitude por que do perfeito não pode em verdade «provir» da experiên-
o sábio começa a duvidar do que lhe parecera exacto, cia directamente pois o perfeito não é experienciável,
enquanto de acordo com o senso comum. mas também não é concebível estaticamente; no entanto,
Há decerto uma solução; mas essa consiste em modi- cia experiência se parte para a noção de variável de limite
ficar o conceito do saber — facto corrente por exigência igual ao infinito; demais nesta «ideia do perfeito» fun-
de precisão e necessidade de generalizar — e de modo diam-se para Descartes como para todos um aspecto
nenhum em contestar inutilmente o progresso da dúvida. valorativo e um aspecto de realidade.
Porque o conhecimento exacto parece fugir-nos é que o De modo que ao ver Descartes considerar a ideia do
rigor se nos torna cada vez mais precioso. O não poder perfeito produzida —- aliás misteriosamente — pela perfei-
haver medidas experimentais absolutamente exactas leva ção transcendente real, nem todo o seu génio pode já nã,o
à delicadeza extrema das medições; e se alguém viesse direi demonstrar mas sequer fazer aceitar como sólida a
dizer-nos que a existência de uma medida transcendente sua afirmação. É tão falso falar da perfeição-origem 5
exacta é que dava sentido às nossas, teoricamente sem- estática, transcendente e contraditória, como afirmar que
pre imperfeitas, não hesitaríamos em considerar a afir- na série dos números inteiros é o final da série que dá
mação destituída de sentido. origem e sentido às nossas séries reais, que foram objecto
de especulação muitos séculos antes de poder ser o infi-
n ) Se uma variável tende para um limite finito, nito base especulativa.
esse limite é um dos elementos da compreensão que de Simetricamente, tanto a ideia de «provável» não
ela temos, assim como o conjunto ordenado de seus depende da de «certo» que o cálculo das probabilidades,
valores possíveis nos dá a inteligibilidade do limite; incomparável no rigor com a vaga noção subjectiva do
mas ao passo que no domínio bem estruturado do tempo de Agostinho, assenta hoje preferentemente no
conhecer a relação não se altera, em metafísica é sem- conhecimento da frequência, onde não há lugar para a
pre possível e tem sido frequentemente praticado con- priori condicionante ou causalidade estrita; e assim o
siderar o limite origem da variável e sua interpretação «certo* (probabilidade igual a 1) é caso especial do prová-
causal. vel- Não que se trate apenas de concepção especulativa,

32 33
mas por ser na realidade a zona do provável incompa-J \ construção ptolemaica, o eclectismo regressivo de
ràvelmente mais vasta, como a da opinião é muito mate Tycho-Brahe, o erro da força viva, de Descartes, a mis-
ampla do que a da ciência* Por isso a verdade-origem à tura de verdade e erro nas ideias fecundas de Carnot, e
uma ilusão, correspondente ao conhecido processo dei tantos outros exemplos, sem contar — o que também é
transformar em princípio {muita vez sem aplicação útil) bom exemplo—o renascimento em forma nova de teo-
o que não pode atingir-se como conclusão. «Que seria) rias anteriormente postas de parte? E se aquele «nada
da navegação sem a fixidez da estrela polar*? — pergun- comum» não respeita ao domínio da lógica pura nem ao
tava um dia argumentando, um poeta enamorado da vern -lo saber concreto, onde se verifica essa negação radical?
dade substantiva como tipo e justilicação da verdade Mas diz Santo Agostinho (III, ixf 21) que nada have-
relativa e particular. Infelizmente para o argumento a ria a opor se alguém pedisse a demonstração de que 3
estrela polar nao é fixa, o que não impediu que poil própria definição pode ser falsa. Porque se tal fosse pos-
séculos eía fosse orientadora da navegação. sível cessaria o obstáculo à percepção justa; se não fosse
Poderá dizer-se quanto às teorias da probabilidade possível teríamos nesse caso uma proposição certa.
que se elas são verdadeiras, algo sabe quem as sabe* O que não parece exacto, A demonstração da falsi-
E o argumento essencial de Santo Agostinho, especial- dade da definição provaria apenas que teria de modifi-
mente desenvolvido ao examinar a definição dada por car-se a concepção do verdadeiro, suposta a necessidade
Zenão, o estóico. —Importa por isso examinar este ponto, -que não existe — de tal delinição prévia, que nessa
— Se a definição é verdadeira, diz ele (111, ix) quem a íorma só pode constituir uma espécie de molde ou ideal
conhece algo verdadeiro conhece, ainda quando mais epistemológico, inaplicável, prejudicial e hoje prejudi-
nada conheça; se é falsa não deve ter abalado ânimos cado. Com ele seria incompatível, por exemplo, o método
fortes (Sin falsa non debuit constantíssimos commovere). itxiomãtico.
Ponha-se de parte a força ou fraqueza dos ânimos Por outro lado, a impossibilidade de demonstrar que
que não está em causa e nada interessa à validade da 1 proposição é falsa também não teria como consequên-
definição, Aceitando-a, como expressamente declara, cia a sua verdade mas a possibilidade de ser verdadeira;
Agostinho concorda com o critério dos Académicos; a sua probabilidade aumentaria com o emprego útil como
«O verdadeiro nada deve ter comum como falso.* Sabe-se postulado da teoria do conhecimento. Assim a pro-
hoje da Lógica elementar que o falso implica o verda- posição é por hipótese «critério* ideal de conhecimento
deiro e que a recíproca é falsa* Não serã aspecto sufi- válido sem ser ela mesma conhecimento no mesmo sen-
ciente de comunidade possível? Não o seriam também tido, O parecer justa a homens de opinião contrária, o
teorias cientificas de astronomia ou de física em que ver- poder concluir-se de ela contra a possibilidade do conhe-
dades e erros eram elementos da construção ? Não podem cimento verdadeiro (Académicos) ou a favor de essa
s M o os devaneios pítagóricos (justamente quando eles possibilidade (Agostinho) prova a suaambiguidade quanto
pretendiam partir das suas concepções para a realidade) 10 conhecimento e portanto a sua insuficiência e inade-

34 35
imento, limitar a afirmação a essa mesma aparência é
quação. Só a aplicação poderia mostrá-la fecunda ou
eliminar arbitrariamente a questão.
inútil e coníerir-ihe verdadeiro significado.
Claro que, por exemplo ao saborear um fruto, um
Enquanto o Académico diz: «ela é verdadeira, e acei-
homem pode afirmar com razão que ele tem paladar
tando-a como critério concluo pela impossibilidade do
suave; e «nenhuma argumentação grega pode desviá-lo
conhecimento exacto, isso mostra que ele a utiliza como
de esse conhecimento» (III, x, 26); mas também é certo
base metodológica e faz depender da verificação saber
|ue o conhecimento das impressões recebidas, variáveis
se ela se aplica positivamente a algum conhecimento.
com o sujeito, e até variáveis no mesmo sujeito, como
Santo Agostinho também a considera verdadeira porque
Santo Agostinho recorda (id. iôidj não têm o carácter
há conhecimentos que nada têm comum com o falso.
objectivo, exigido pelo critério em que ambas as partes
E cita exemplos.
concordavam. A afirmação é verdadeira mas não é
comum e obrigatória e a essas se referiam os Académicos.
12} Exemplificar pode parecer nesta altura objec-
E se o bode é guloso das folhas do zambujeiro, tão amar-
tivar. É, mas não satisfatoriamente. Supondo irrefutá-
gas para o homem — (outro exemplo citado) — isso prova
veis os exemplos aduzidos, ó claro que eles não podem
que para o bode, se ele pudesse exprímir-se, seria falsa
ser base, como vamos ver, para indução segura; e assim,
:Í afirmação de que elas são intragáveis. Na verdade o
ainda quando o parecer dos Académicos ficasse refutado
axemplo dos sentidos não parece adequado; é arma de
quanto à interpretação, à consequência total que da defi-
^ume duplo, pelo menos; a indiscutibilidade de tais
nição tiravam, nem por isso a posição de Agostinho, que
afirmações está na sua relatividade, ou melhor, na sua
ele reconhece não ser definitiva, fica alterada em qual-
subjectividade.
quer sentido; pode continuar a achar «provável» a «des-
coberta» da verdade.
13) Tamen quod Zeno definivit quantum stulti possu-
Não parece muito a propósito citar argumentos tira-
mus, discuiiamtts (III, ix, 21).
dos de ilusões dos sentidos, do sonho, da alucinação, já
por tratar-se de problema secundário, já porque as ale- O tamen do início de este parágrafo resulta da ironia
gações dos Académicos embora dignas de atenção, medi- em que no anterior Santo Agostinho acentuava a «con-
tação, e resposta, não tinham interesse igual ao do seu tradição» já aludida: — ser sábio e ignorar a sapiência —.
critério genérico de estabelecimento da verdade. Apenas Ora, em primeiro lugar, ali não há definição. «Só
importa lembrar que «não ultrapassar a convicção de que- pode aceitar-se como verdadeiro o que não tenha qual-
as coisas nos parecem de certa forma» (111, x, 26) para quer aparência comum com o falso» (Id visam ait posse
não errar, não é ponto de partida para refutar os Acadé- comprcheudi quod sic appareret ut falsum apparere non
micos ; é antes forma particular de concordar com eles, posset). Não se define aqui o falso, o que implicitamente
por singular que pareça. Pois se sobre a falsidade da seria definir o verdadeiro e reciprocamente. Admitem-se
aparência em parte assentava a sua recusa de dar assen- como noções primitivas e irredutíveis as de «verdadeiro»

37
36
e «falso»; e supondo-as absolutamente adequadas à rea- -referencial subsistente e portanto irrefutável, mas afirma
lidade, estabelece-se um critério genérico de distinção que se fosse falsa servir-lhe-ia de igual modo, porque não
para em domínio determinado poder distingui-los. Faz-se poderia nesse caso contestar-se a possibilidade de um
implícita afirmação existencial; concebe-se distinção dile- conhecimento (absolutamente) verdadeiro : si autem refel-
mática relativa à realidade; e nega-se depois a eficácia do íeris unde a percipiendo impediaris non habes.
processo, a possibilidade de distinguir racionalmente as É uma variedade do argumento multiplamente usado
duas pontas do dilema, a verificação no concreto de essa contra cépticos e probabilistas.
impossibilidade teórica. Em resumo: afirma-se um cri- A proposição é uma forma derivada — por ser um
tério ideal; contesta-se-lhe aplicabilidade. A prova de critério —da afirmação de carácter céptico (ou pseudo-
que assim é dá-no-la a aceitação integral por ambas as -céptico) de que «nada é verdadeiro em absoluto». Se
partes, do critério de Zenão; a contraprova temo-la na esta proposição é verdadeira — diz-se — ela mesma não
dupla conclusão oposta. c verdadeira em absoluto; é portanto auto-contraditória.
Chegados a este ponto o processo de análise e dis- Sendo assim teríamos a conclusão de ser a sua falsidade
cussão parece deveria ser o exame das noções de «falso» compatível com a sita veracidade. Este resultado mostra
e «verdadeiro», intuitivas, incompatíveis, suplementares, que se construiu um paradoxo por confusão verbal.
no pensamento de todos; e em consequência pedir cre- Em primeiro lugar a sintaxe, com o sujeito ilusório e
denciais a um critério afirmado como idealmente válido,, vago — «nada» — pôde atraiçoar a Lógica; se dermos à
e revelado como ambíguo na aplicação; mas tal caminho proposição outra forma de perfeita equivalência lógica,
não ocorreu, assim como durante séculos foi impossível por exemplo: — «verdade absoluta» é uma contradição nos
pôr em discussão ou sujeitar à análise as de «causa» e termos —, o paradoxo desvanece-se, a proposição é verda-
«efeito». Como o critério de Zenão assenta na validade deira; em segundo lugar o termo «em absoluto», tomado
integral da bivalência lógica (e real) — nem podia ser de literalmente, falseia a expressão, levando a considerá-la
outro modo — e como a Santo Agostinho sucedeu outro- elemento contraditório de um conjunto quando pode
tanto, o recurso agostiniano só podia ser o da verdade tomar-se como expressão (certa ou inexacta) de indução
transcendente, a fusão de «verdade» e «realidade» no completa relativa a um conjunto. Caso análogo ocorre
acumen da série hierárquica de verdades; por isso alega em certas expressões algébricas ou lógicas onde o cálculo
contra os Académicos a «verdade de aquela proposição directo para certo valor da variável dá em resultado uma
de Zenão, que seria simultaneamente definição e exemplo indeterminação; mas a investigação do «verdadeiro valor»
do que pode compreender-se: Itaque comprehensibilibus dá-lhes valor determinado.
rebus et deftnitio est et exemplum (id., ibid.). Se é certo que em Matemática e em Lógica surgiram
Exemplo para os Académicos não pode ser, porque é paradoxos (alguns no entanto já resolvidos) fora das ciên-
única. Definição, vimos que não é. Santo Agostinho cias exactas pode surgir muito mais facilmente o para-
examina-a como se se tratasse de uma proposição auto- doxo ou a ilusão do paradoxo. Na frase aludida exprime-se

38 39
uma consequência de certa concepção da verdade, e a O sábio sabe a dialéctica? Ou «não devemos ter por
incompatibilidade da concepção relacional e funcional sábio quem não seja dialecta?»
com a aceitação de um «conhecimento» absoluto. Nada «Ninguém pode saber o falso», isto é, o falso não pode
mais simples, certo, e claro do que o «antes» e o «depois», ser objecto de conhecimento exacto; mas se todos podem
quando referenciáveis a coordenadas conhecidas. Tão errar — mesmo sem licença de Trigécio — todos podem
simples e tão claro que se julgou absoluto, até o momento julgar saber e portanto em sua opinião saber o que jul-
em que a amplitude do domínio considerado mostrou a gam verdadeiro e é falso. Voltaríamos à tese dos Aca-
impossibilidade da generalização ilimitada. démicos da indiscernibilidade entre o falso e o verda-
Portanto o que poderia contrapor-se àquela afirmação deiro. A afirmação apenas consiste em dizer-nos o que
não era o facto de ser contraditória, por abrangida na deve ser o saber mas não é critério discriminador. E deve
relação que enuncia; mas a apresentação de um conhe- ser porquê? Pela transformação apriorística da «incom-
cimento absolutamente verdadeiro (e não apenas totais patibilidade relativa e escalar» que é racional, em «incom-
mente, em domínio definido) e isso é que é contraditório, patibilidade absoluta» ou contrariedade irredutível, e
A tese dos Académicos (e a fórmula de Zenão também" estática, existente nas coisas. Sobre esta base decorre a
correspondiam, embora com realização imperfeita e sem argumentação de Sócrates no Protágoras, que apertado
conhecimento claro, à tentativa de separar do que cha- pela insistência de Sócrates aceita contra vontade a uni-
maríamos hoje a axiomática de uma teoria, o conheci- cidade do contrário e se vê depois ilaqueado pela conces-
mento exacto em domínio definido. Da matemática pôde são ; mas a prova de que o argumento não parece decisivo
dizer-se que é exacta quando puro especulativa, inexacta :t Platão consiste em que o diálogo verdadeiramente não
quando aplicada ao real; o que não impede que fosse conclui e a tese de Sócrates fica suspensa.
desejável em muitos domínios a aproximação por esse Entretanto em que consistem fundamentalmente aque-
meio obtida. E os argumentos contra a validade da afir- las «verdades dialécticas» sem qualquer incidência lógica
mação anterior, por vício quase circular poderiam fazei com o falso? Em disjuntivas irrefutáveis que o próprio
lembrar a conclusão de Gonseth: — O que é vicioso é a Agostinho, sem receio da abundância, declara poderem
ideia de uma demonstração completamente recorrente, repetir-se quase ilimitadamente: — «Se há um sol não há
dois»; «aqui não é simultaneamente noite e dia»; neste
14) «Resta a dialéctica»—diz Santo Agostinho—J momento ou estamos acordados ou a dormir» —, etc.
«O sábio decerto a sabe bem e ninguém pode saber d fui, XIII, 29].
falso». Diz que pela dialéctica ficou sabendo, nos exemplos
Será certo que o sábio — embora o sábio segundo umd como o primeiro, que assumido o antecedente, de neces-
concepção determinada e muito discutível —sabe bem a sidade se segue o condicionado; nos do tipo do terceiro,
dialéctica? Não estará aqui (III, xni, 29) a dialéctica, assid que uma (ou mais) parte da disjunção uma vez negada,
como antes a sabedoria, arbitrariamente cousificadal a outra será verdadeira.

40 41
Poderia examinar-se talvez se um conhecimento dado De este modo, constituídas por termos lógicos suplemen-
é ou não de modalidade dialéctica e o sentido possível de tares, poderíamos efectivamente construir um número
esta afirmação; o que certamente é metafórico é a afir- incalculável de disjunções, pois que fundadas na Lógica
mação de que a dialéctica ensine seja o que for. Mas vol- bívalente elas correspondem a outras tantas afirmações
temos aos exemplos: da disjunção geral — ou verdadeiro ou falso — disjunção
O primeiro exemplo — e quaisquer outros de igual (jue só o é em domínio determinado.
estrutura — não é proposição condicional; é disjuntiva, Portanto a exigência da opção era perfeitamente justa
posta em ilusória forma condicional, a que se atribui no para transformar em conhecimento a alternativa duvi-
condicionado falsa precisão pois qualquer número ser- dosa e tanto mais duvidosa quanto não se demonstrara
viria; reduz-se a «o sol é um ou são mais», afirmação a suplementaridade dos seus termos ou seja a exclusivi-
tautológica e no plano existencial em que aparece, de dade mútua. A impossibilidade de optar sugere um ter-
completa esterilidade. Por esse carácter existencial subs- ceiro valor —o provável — e mostra que os Académicos
tituí na tradução a falsa aparência de predicação pela parece terem tido — como Protágoras — a intuição de
afirmação de existência; o «não serem dois» não é uma que a mútua exclusividade podia procurar-se mas não
conclusão. Não há pois antecedente e consequente ou é caso geral. Tipo de essa forma é o terceiro exemplo
hipótese e tese. A existência de um sol não é uma em que a gradação é visível. E a alternativa ali é imper-
hipótese; o ser ou não ser único pode ser hipotético em feita por os termos significarem estados psicológicos reais
dado momento do saber; nesse caso o serem muitos e não suplementares. Rigorosa, aquela soma lógica seriai
é outra hipótese, suplementar da primeira e que por — ...«estamos acordados ou não-acordados.»
isso esgota com ela o domínio respectivo da possibi- Decerto não vale a pena referir especialmente as
lidade. supostas consequências imorais do probabilismo; esse
Acrescente-se que «o sol» dá no exemplo falso aspecto é o fruto conhecido do entusiasmo, ainda quando nobre
de conhecimento, porque a frase poderia ser a mesma e generoso, dos adversários veementes. É de supor que
para qualquer objecto real; reduzida ao esquema sim- o descrédito nesse aspecto lançado sobre os Sofistas já.
ples, a afirmação seria: tenha tido origem em grande parte no desejo de derru-
Seja qual for x, x é singular ou é plural; bar definitivamente adversários incómodos; o diálogo
e substituída a variável pelo termo «o sol» teremos a de Platão (Eutídemo) ou é uma caricatura ou representa
disjuntiva, onde afinal um só conhecimento se encontra de facto dois írritos pedantes que só de nome e abusiva-
e esse é existencial perceptivo: «há um sol.» mente podem incluir-se na classe de Protágoras.
O conhecimento seria neste caso a eliminação de um
dos ramos da alternativa; e até se a alternativa ê verda- 15) Alguma coisa importa ainda referir.
deira ê justamente por abranger o falso, abrangendo Santo Agostinho considera ridículo um ponto de vista
também a nossa ignorância no problema de que se trata. em que na prática se segue o «provável» e monstruosa a

42 43
afirmação de que alguém procure a verdade convicto de culto do século xix superior ao vulgar; e independente-
náo poder encontrá-la, mente de qualquer parecer abstracto, dado em função
A este ponto fazem alguns exemplos. do resultado a que se pretende chegart o homem constan-
Descartes, bem longe de ser sectário da nova Acade- temente luta e se esforça por aquilo que tem escassa
mia, e a dezoito séculos de distância, vendo a impossibi- probabilidade de encontrar. E também está longe de
lidade de bem articular no seu sistema a solução do pro- ser certo que nada faça quem nada aprova. Pelo con-
blema ético (tentativa malograda tanto na Antiguidade trário: é característica ou índice de superioridade (con-
como na Idade Moderna) aceitou o oportunismo — o pro- quanto só por si não baste para demonstrá-la) proceder
vável—da moral vigente no tempo e no espaço contra apesar da dúvida. Não da dúvida do êxito, porque enlãc
a aspiração do seu racionalismo mas de acordo com a nem valeria a pena exemplificar, tanto é vulgar o facto;
exigência do seu rigor. mas da dúvida até do valor ou da legitimidade do acto,
P a s c a l escreveu nos Pensamentos que se apenas Compreende-se perfeitamente a atitude de um homem
devêssemos lutar pelo certo não poderíamos faztVlo pela contrário ao duelo, convencido de que é errado bater-se,
religião que não é certa — car elle nest pas certame. e ao mesmo tempo capaz, se o provocam, de proceder
Dada a fé ardente de Pascal vê-se que o «provável» e o como se fosse partidário do combate singular. É questão
«verosímil* se insinuam até em espíritos de convicção de atitude, de reacção da sensibilidade e não de inte-
profunda. ligência,
Quanto a procurar com grande dúvida de alcançar Nada de isto diminui o significado do diálogo, como
o fim, não é preciso ir em busca de grandes exem- definidor de uma posição. O próprio Santo Agostinho,
plos como Descartes ou Pascal; o homem médio cons- embora mais tarde tivesse retirado essas frases, reco-
tantemente procura o que sabe ser pouco provável nheceu no termo do diálogo a «probabilidade» da solução
encontrar; joga na lotaria, arrisca a vida em aventu- adoptada; mas a posição ê necessidade pragmática^ não
ras, forma projectos audaciosos e despropositados* Já realidade cientifica. O problema assim posto resolve-se
a propósito de vãos esforços de metafísicos escreveu por uma atitude, resolve-se psicológica- não logica-
há muitos anos Ribot que «procurar sem esperança mente, como recomendou Pascal em caso diferente:
não é insensato nem vulgar» {La psyck. angl. contem- «devem segurar-se firmemente os dois extremos da cadeia
porainet lntrod.). Poderia ter acrescentado ser essa pre- e não largar um nem outro»* Assim é, porque o corte
cisamente a justificação dos metafísicos e da metaíísica existe*
ontológica.
Claro que também de modo nenhum o que fica dito
Pouco importa agora concordar ou discordar de esta
pode significar validade da argumentação académica em
afirmaçíío; basta que tenha sido possível enunciá-la como
pormenor, Sígniííca apenas como única conclusão possí-
evidente para se verificar a mudança radical. O que a
vel neste caso que a verdade substantiva e exemplar,
Santo Agostinho parecia absurdo parece a um homem
conceito em que estavam de acordo tanto a tradição dos

44
45
homens da Nova Academia que a supunham provável* relações em distância aos eixos respectivos, a igualdade
mente inatingível, quanto o seu notável opositor, que a é a equação da circunferência. Tudo verdades relativas
tinha como certamente acessível ao homem, levava a e «em função de» *.»
pôr o problema em plano onde a solução é impossível. Sabemos que os menores inteiros capazes de tor-
nar verdadeira a igualdade são 5, 4, 3, como já sabiam
16) Unia verdade —ou uma afirmação verdadeira — :>s agrimensores egípcios* Neste, como em inúmeros
nâo se descobre, constroe-se. Não 6 como uma ilha que templos, a condicionalidade da afirmação que pode tor-
o navegador encontra mas como um edifício que o arqui- nar-se verdadeira ou ialsa, è comunidade entre grupos
tecto planeia e traça, uma estrutura que o inventor eleva de valores que verificam ou falsificam.
sob condições materiais e mentais a que não pode exi- Poderia insistir-se em que determinado um grupo de
mir-se (por isso as afirmações são relativas) mas em que valores capaz de verificar a expressão temos um conhe-
as segundas dão ao mesmo tempo possibilidade de estru- cimento exacto. Temos, embora condicionado; mas há
turar, Jã na percepção a estrutura é essencial como se outros casos, como o do problema da decisão; e sem ir
sabe há muito tempo. Tanto vale dizer que a verdade tão longe, basta a equação de Fermat
é funcional.
Dada a expressão tf3 -f Ó3 = £$

a2 = f/à _|_ C2
para vermos que o resultado «determinado» a que che-
teremos uma P condicional indeterminada, que a subs- guemos substituindo as variáveis por números nada tem
tituição das variáveis por valores definidos tornará falsa :-]ue ver com a sua exactidão t1)*
ou verdadeira, pois na sua generalidade, e apesar de cons- Em resumo: A verdade, entidade metafísica, é inatin-
tituída por uma relação simétrica, ela não é uma nem gível, não por deficiência da capacidade humana, mas
outra coisa. No espaço intuitivo bidimensional se supu- por ser mítica e contraditória. Mítica, por ser uma
sermos ò = £, e perpendiculares entre si (duas condições) substantivação simultaneamente vulgar e transcendente,
a expressão, tornada verdadeira por quaisquer valores como a dos raios de Júpiter, ou Vulcano e a sua forja;
definidos que a verifiquem traduzirá a solução do pro- contraditória por transitar insensivelmente do racional
blema particular da duplicação do quadrado, tratado no ibstracto (conteúdo do conhecimento não-empírico) a
Mênonf de Platão, para justificar a maiêutica socrática; uma concreção (neste caso de nível muito elevado) que
para ô^=c ê a relação mais geral do teorema de Pitá- caracteriza os elementos da relação J só eles são o con-
goras, que engloba a anterior como caso limite da desi-
gualdade decrescente de b e c\ e se estabelecermos ura (*) Não sei com precisão onde vi este exemplo que me parece
sistema de coordenadas rectangulares, exprimindo as concludente,

46 47
creto, de maior ou menor grau, conforme o domínio da rosa (?!) do que é inapreensível pela forma discursiva da
ciência.
relação. «Verdade» é um «termo» morfologicamente
substantivo, símbolo de uma característica possível de Como se vê, o mesmo problema, a progressiva «huma-
qualquer relação determinada. nização» da solução adoptada, e a mesma impossibilidade
O processo único de justificá-la seria a sua for- de resolvê-lo, assentando o raciocínio sobre a fictícia base
mulação ; e depois de isso, demonstrar algumas ver- de uma verdade-em-si.
dades particulares de ela derivadas, isto é, que adop-
tando-a como hipótese pudessem corresponder-lhe como
tese.
A insuficiente, pouco nítida relatividade dos Acadé-
micos podia levá-los a conclusões erradas e ao cepticismo,
por desvio da directriz. E assim sucedeu.
Vimos que a dificuldade é velha (cf. 4) e a tentativa
de solução também. A partir de Santo Agostinho uma
curiosa gradação pode reconhecer-se. Para o bispo hipo-
nense a existência da verdade exemplar não sofre dúvida,
e embora sem estabelecer qualquer inferência — que seria
impossível — estabelece uma como analogia com verda-
des dialécticas, tidas por irrefutáveis e absolutas. Séculos
depois Descartes aceita a verdade transcendente e con-
sidera-a fonte e justificação das verdades científicas;
mas, impossibilitado de estabelecer o como, serve-se
de essa ideia apenas como justificação ideal da ver-
dade das proposições científicas. O transcendente con-
tinua assim a evocar-se mas à maneira de justifica-
ção ética. Finalmente, já na contemporaneidade nossa,
Husserl renova a tentativa com a sua hipótese — ele
considera-a conclusão exacta — de uma «intuição das
essências» que tornaria possível a descrição rigorosa e
fenomenológica dos «seres ideais». Quer dizer, desapa-
receu a transcendência do tipo agostiniano, desapare-
ceu a justificação ética e transcendente cartesiana, e
colocou-se no plano puramente humano a intuição rigo-

48 49
LIVRO PRIMEIRO
Exorta-se Romaniano à filosofia, no proêmio de este
livro, em que se lêem as três discussões de seu filho Licen-
cio com Trigécio. Aquele, com os Académicos, sustenta
que a vida feliz consiste na investigação, este, na posse da
verdade. Discute-se a definição do erro, e a da sapiência,
que claramente se explica.

CAPÍTULO I

i) Pudesse a virtude, Romaniano, assim como não


tolera que a fortuna lhe roube alguém, arrancar por força
à fortuna o homem que lhe é próprio! Decerto já te
teria proclamado seu de direito, e dando-te posse dos
verdadeiros bens, libertar-te-ia até da submissão ao
acaso feliz. Mas acontece, por culpa nossa, ou por natu-
ral necessidade, que a alma divina dos mortais não
arriba ao porto da sapiência, onde não há que temer
vento próspero ou adverso da fortuna, sem que a mesma
fortuna, adversa ou próspera, lá conduza; nada em teu
favor nos resta senão pedir a Deus, de quem tais cuida-
dos dependem, que te restitua a ti próprio e assim te
restituirá a nós; e permita à tua mente, que há tanto o

5i
deseja, vogar na aura da verdadeira liberdade» O que
vulgarmente se chama fortuna é talvez governado por translucidez dos banhos, nos jogos honestos, na caça,
ordem oculta, e diz-se acaso aquilo de que não pene- nos banquetes, e fosses — como eras de facto — na boca
tramos a razão e a causa; e nada agradável ou desagra- dos clientes, dos concidadãos e das multidões, o mais
dável para nós deixa de ser côngruo no universo. Sen- humano, o mais puro, liberal e venturoso; quem ousaria,
tença das mais íecundas doutrinas, incompreensível à ííomaniano, íalar-te de outra vida feliz, da única feliz?
inteligência dos profanos, a filosofia a que te convido Quem te persuadiria de que não só não eras feliz, mas
promete demonstrá-la a seus verdadeiros amadores. Por tanto mais infeliz quanto o ignoravas? Mas agora muitos
isso, não te desprezes a ti mesmo se te ferirem muitos e grandes avisos te deu a adversidade; não foram exem-
males. Pois se a divina providencia, como deve crer-se, plos alheios que te persuadiram de que tudo quanto os
se estende até nós, acredita-me, tudo se passa contigo homens julgam bens é transitório, frágil, cheio de cala-
como deve passar-se. Porque tu, com a índole que sem- midades; e o exemplo do que experimentaste permí-
pre admiro, desde a adolescência entraste na vida cheia tir-nos-á convencer a outros.
de erros, quando a razão é fraca e hesitante; cercou-te a
influência das riquezas, que começaram a mergulhar no 3) Pois a tua inclinação para o digno e o honesto; a
mar dos prazeres aquela idade e ânimo sequiosos de tua preferência peia liberdade sobre a riqueza, pela jus-
quanto parece belo e honesto; mas o sopro da fortuna, fciça mais do que pelo poderio; a intransigência perante
tido por contrário, salvou-te à beira da queda, a adversidade e a improbidade; este nfto sei quê divino
— repito—que em ti existia em sono letárgico, quis
2) Mas se dando, generoso, aos nossos concidadãos,] excitá-lo a divina providência com aqueles avisos rudes,
espectáculos de ursos e outros nunca vistos, sempre Desperta, Ouve-me; desperta. Crê que hás de congra-
tivesses tido o maior aplauso; se fosses elevado às altu- t u l a s t e por quase não conhecer o afago das prosperida-
ras pelo grito unânime dos estultos, que são turba des do mundo, tão amadas dos incautos, e que a mim
imensa; se ninguém se atrevesse a ser-te inimigo; se as próprio tentavam prender-me, apesar do que todos os
inscrições municipais te designassem no bronze, patrono dias dizia, se uma dor de peito não me tivesse obrigado
de concidadãos e até de vizinhos; se te erguessem está- a deixar a profissão retórica e refugiar-me na filosofia,
tuas e cobrissem de honras, e de poder superior ao da Ela agora me nutre e acalenta neste ambicionado ócio;
função municipal; se nos banquetes diários, em ricas ela me libertou daquela superstição em que te precipi-
mesas, todos pudessem pedir e obter certamente o que tara comigo; ela me ensina — e bem — que nada é vene-
desejavam por necessidade ou sede de prazer, e até achai rável e tudo importa desprezar de quanto olhos mortais
o que não procuravam; se o teu haver, bem e fielmente vêem ou qualquer sentido alcança. Ela promete demons-
trar-nos claramente o Deus verdadeiro e secretíssimo^ e
administrado pelos teus, permitisse tão grande luxo; í
pouco a pouco no-lo entre-mostra, como por entre nuvens
tu entretanto vivesses em habitações sumptuosas, ns
lúcidas,

52
53
4) Nela vive comigo, aplicadíssimo, o nosso Licen- Alípio — Nesta questão julgo preferível ser juiz. Tenho
cio; de tal modo nela converteu o ardor dos prazeres de ir à cidade, devo ser dispensado de defender qualquer
juvenis, que eu não receio propô-lo como exemplo ao opinião; além de isso é mais íácil delegar o papel de juiz
pai. Esta é uma filosofia de que nenhuma idade pode do que o de defensor. Por isso não espereis que me
queixar-se de ser excluída; para te incitar a hauri-la declare por qualquer das partes.
mais avidamente, embora saiba a sede que de ela tensr Todos concordaram; e repetida a minha pergunta,
quis enviar-te, e espero que não seja em vão, um ante- respondeu
gosto suave ou, por assim dizer, ura aperitivo, Mando-te Trigécio ~ De certo, queremos ser felizes; se pode-
a discussão travada entre Trigécio e Licencio* O ser- mos consegui-lo sem alcançar a verdade, não temos de
viço militar, que nos levara algum tempo Trigécio ado- procurã-la.
lescente, como para lhe tirar o fastio do estudo, restí- — Como assim? — disse eu. Pensais que podemos
tuíu-no-lo cheio de ardor pelos grandes estudos. Poucos ser felizes sem ter achado a verdade ? Então disse
dias depois de termos começado a viver no campo, ten- Licencio — Podemos, se a procurarmos*
do-os visto mais dispostos e até ansiosos pelos estudos Vendo-se que eu pedia a opinião dos outros, disse
a que eu os exortava e animava, quis averiguar o que Navígio — Concordo com Licencio. Talvez seja o
poderiam na sua idade; em especial porque o Horèen- mesmo viver feliz e viver na busca da verdade.
sius de Cícero parecia tê-los conquistado em grande Trigécio — Define então «vida íeliz*, para eu saber
parte para a filosofia. Chamei um taquígrafo para que que resposta convém.
o vento não levasse o nosso trabalho. Neste livro lerás — Que outra coisa, disse eu, julgas seja viver feliz,
o que disseram e também as minhas palavras e as de senão viver segundo o que no homem é superior?
Alípio. Trigécio — Não quero falar imprudentemente. Penso
que deves definir-me esse superior,
CAPÍTULO II — Quem duvidará, tornei eu, que é a parte da alma
a que todas as faculdades do homem devem obedecer?
PRIMEIRA DISCUSSÃO E para que não peças outra definição, pode chamar-se-
-lhe «mente» ou «razão». Se discordas, dize tu próprio
5) Reunidos todqs, portanto, a meu pedido, dísse-ihes, como defines quer a vida íeliz quer o que é superior no
logo que pareceu oportuno: homem.
— Duvidais de que precisemos de conhecer a verdade? — Concordo, disse ele.
— De modo algum, disse Trigécio; e os outros deram
mostras de aprovação, 6) Tornando ao nosso propósito — disse eu —pare-
— Então, disse eu, se pudermos ser felizes sem a posse ce-te que a simples busca da verdade baste para viver
da verdade, ainda a julgareis indispensável? feliz ?

54 55
Trigêcio — Repito: não me parece. Licencio — Carnéades não é de esses?
— E vós, qual o vosso parecer? Trigêcio — Não sou grego. Desconheço esse Carnéades*
Licencio— A mim parece-me claro» pois os nossos Licencio — Que te parece o nosso Cícero?
maiores que temos por sábios e leiizes viveram bem e Depois de longo silêncio, respondeu
felizmente, só porque proctiravam a verdade. Trigêcio — Foi sábio.
— Agradeço, disse eu, terdes-me feito juiz com Alípio, Licencio— Julgas de acatar a sua opinião neste caso?
a quem, confesso, já começava a invejar. Ora como para Trigêcio — Julgo.
um de vós a simples investigação e para o outro só a Licencio — Fica então sabendo — pois que parece ler-te
posse da verdade conduz à vida feliz, e Navígio há pouco esquecida — que ele tem por íeliz quem investiga, ainda
mostrou inclínar-se para a opinião de Licencio, espero quando não chegue â verdade.
com todo o interesse a defesa das vossas opiniões* Trtgêcio — Onde diz ele isso ?
O assunto é grande e bem merece discussão aturada, Licencio —Ninguém ignora que ele insistiu na impos-
Licencio — Se o assunto é grande exige grandes sibilidade do conhecimento e em que ao sábio só restava
homens. a investigação aturada; pois se tivesse assentido em
— Não procures, dísse eu, em especial aqui, o que coisas incertas, ainda quando verdadeiras, não poderia
por toda a parte é difícil encontrar; explica antes o que libertar-se do erro; o que é a máxima culpa do sábio.
disseste, penso que com alguma base, e a razão de esse Portanto, se o sábio deve necessariamente ser tido por
parecer, pois os grandes assuntos magnificam geralmente íeliz e se a busca da verdade é única e perfeita íunção
os humildes que de eles se ocupam. da sapiência, por que duvidar de que a vida feliz se
alcance pela investigação mesma?

CAPÍTULO III 8) Trigêcio — Pode retírar-se o que tiver sido con-


cedido irreflectidamente?
7) Licencio — Vejo que insistes na nossa discussão, — Só o recusa,. respondi, quem discute por vaidade
e creio que a julgas útíí. Pergunto por que não pode ser pueril e não por amor da verdade. Perante mim, em
feliz quem procura a verdade, embora não a encontre, especial duraute a vossa formação, não só é concedida
Trigêcio — Porque íeliz, a nosso ver, só é o sábio per- mas dada como regra a faculdade de voltar a discutir o
feito. Mas quem procura não é perfeito; portanto não que inadvertidamente tiverdes aceitado.
sei como podes considerá-lo feliz. Licencio — Não julgo pequeno proveito em íilosofia
Licencio — Aceitas a autoridade dos antepassados? um contendor desprezar a vitória, preferindo achar o
Trigêcio — Não de todos. verdadeiro e o justo. Com prazer aceito a regra e o teu
Licencio—Então de quais? parecer, e, como é de meu direito, concedo que Trigêcio
Trigêcio —Dos que foram sábios. retire o que julgar ter concedido imprudentemente»

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Alipio— Bem vedes que ainda não tive ocasião de atinge o próprio fim* Mas a verdade creio que só Deus
intervir. Mas como a partida já marcada me força a a conhece, e talvez a nossa alma, depois de liberta do
interromper, que o meu com participante no juízo não tenebroso cárcere corpóreo. Mas o fira do homem é
recuse o seu duplo poder até que eu volte; porque vejo procurar perfeitamente a verdade, Procuramos o per-
que a vossa discussão há-de ser longa. feito, não esqueçamos que é homem.
Depois de ele se afastar, disse Trigêcio — Não pode então o homem ser íeliz, pois
Licencio — Dize o que concedeste irreflectidamente. não alcança o que tão ardentemente deseja. Mas o
Trigicio—Concedi, sem reflectir, que Cícero foi sábio, homem pode viver feliz, se pode viver segundo a parte
Licencio—Então Cícero, o iniciador e aperfeiçoador da alma que nele deve ser dominante. Pode portanto
da filosofia em língua latina, não foi sábio? alcançar a verdade. Ou então reílita e não a ambicione,
Trigêcio — Ainda quando o conceda, não o aprovo em para não ser infeliz por não poder alcançá-la.
tudo. Licencio — Mas a felicidade do homem é procurar
Licencio — Na verdade, muitas outras coisas suas terás perfeitamente a verdade; porque é atingir o seu objec-
de rejeitar, para que não pareça que imprudentemente tivo inultrapassável. Portanto, quem procura a verdade
contestas aquilo de que se trata. com menor estorço do que deve não chega ao fim pró-
Trigêcio — Se estou resolvido a afirmar que só nisso prio do homem; quem pelo contrário, põe nessa tarefa
ele se enganou, parece-me que nada mais vos importa quanto deve e pode, é feliz, embora não a alcance, por-
senão o peso das razões que aduzo. Continua. que realiza integralmente o fim para que nasceu. Se não
Licencio — Como atrever-me contra quem se declara o consegue, è por lhe ter faltado o que a natureza recu-
adversário de Cícero? sou, Finalmente, se o homem necessariamente há-de ser
feliz ou infeliz, não è loucura chamar infeliz a quem
9) Trigêcio—Repara tu, nosso juiz, na definição de procura noite e dia a verdade com todo o empenho?
«vida feliz*, há pouco dada; disseste que era feliz quem Logo será feliz. Além de que a definição parece-me vir
vive segundo aquela faculdade de alma que deve gover- antes em meu apoio; pois se é feliz — e é — quem vive
nar as outras. Tu, Licencio, conceder-me-ás (pois com segundo aquela faculdade da alma que deve dirigir as
a liberdade que a filosofia nos permite, já sacudi o jugo outras e se chama * razão»! pergunto se não vive segundo
da autoridade) que não é perfeito quem procura a a razão quem procura perfeitamente a verdade. Se pen-
verdade. sá-lo é absurdo, porque duvidaremos de que o homem
Então, depois de silencio demorado: seja feliz só pela investigação da verdade?
Licencio — Não concedo,
Trigêcio — Porquê? Explica, Bem desejo ouvir como
pode alguém ser perfeito e procurar ainda a verdade.
Licencio — Concordo em que não é perfeito quem não

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5EGUKDA DISCUSSÃO
CAPITULO IV
n ) No dia seguinte, quando nos reunimos, disse eu:
10) Trigccio — N&o me parece que viva racional- — Continuai o que ontem tínheis começado.
mente ou seja feliz quem erra. Mas erra quem sempre pro- Licencio — Se não me engano, fui eu que pedi o adia-
cura e não acha. Deves pois mostrar — ou que quem erra mento, por me ser dificílimo definir o erro.
pode ser feliz, ou que quem procura e não encontra não erra* — Nisso não te enganas, disse eu, e oxalá te seja bom
Licencio — Quem é feliz não pode estar em erro — augúrio para o resto.
(E depois de longo silêncio): — mas quem procura não Licencio — Ouve então o que ontem eu teria dito, se
erra; pois para não errar procura perfeitamente, não fosse a tua intervenção, O erro parece-me ser a
Trigècio — Para não errar, procura; mas erra quando aprovação do falso pelo verdadeiro; e nele não pode
não encontra. Julgaste aproveitar dizendo que ele não cair quem julga que a verdade deve sempre busc:ir-se>
quer errar, como se ninguém errasse contra vontade ou pois não aprova o falso quem nada aprova; logo não
alguém errasse a não ser contra vontade. pode errar mas pode facilimamente ser feliz* Para não ir
Então eu, vendo que ele se demorava a procurar res- mais longe, se nós próprios pudéssemos sempre viver
posta, disse: — Deveis definir o erro, pois mais facil- como ontem, não vejo razão para não nos julgarmos feli-
mente podeis ver o fim de aquele em que caístes» zes. Na verdade, vivemos de alma tranquila, livre de
Licencio — Não sei dar definições; embora, quanto ao toda mácula do corpo, afastados do fogo do desejo, reflec-
erro, seja mais fácil defini-lo que dar-lhe fim. tindo quanto ao homem é dado; i. é, vivendo segundo
Trigècio — Definirei eu, e é facílimo, não por talento aquela divina faculdade, que, segundo a nossa definição
meu, mas por ser óptimo o tema. Errar é na verdade de ontem, constitui a vida feliz; e creio que nada achá-
procurar sempre e nunca encontrar, mos e só procurámos a verdade» Pode o homem por-
Licencio —St refutar esta definição já serei útil á tanto viver vida feliz, só pela investigação da verdade,
minha causa. Mas porque o problema é, ou se me afi- ainda quando não chegue a encontrá-la. Vê com que
gura, árduo, peço-vos que a discussão se adie para ama- facilidade a tua definição é refutada por uma noção vul-
nhã, se hoje não achar resposta, depois de pensar nisso gar» Disseste que errar é procurar sempre e nunca achar,
cuidadosamente. Ora se a alguém que nada procure, perguntarem por
Julguei que devíamos conceder-lho, e como todos exemplo se é dia, e te mera ria mente supuser e íogo res-
tivessem concordado, levantámo-nos e falámos de vários ponder que é noite, não te parece que erra? Esta espé-
assuntos, enquanto ele reflectia profundamente. Vendo cie de erro títo grande, não o abrange a tua definição.
que nada conseguia, preferiu distrair-se e vir conversar E se abrange também os que não erram, pode haver
connosco. Depois, quando já ia anoitecendo, voltaram à definição mais viciosa? Se alguém se dirigir a Alexan-
mesma discussão; mas pus-lhe termo e convenci-os a dria pelo verdadeiro caminho, não podes dizer que erra;
deixá-la para outro dia; e fomos aos banhos,
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6o
mas se, impedido por vários motivos, se demorar muito e a Trigècio — Parece-te insuficiente a pergunta mesma?
morte o surpreender no caminho, não é verdade que sempre Concedeste o que eu queria; pois, se não erro, pode jus-
procurou e, sem contudo errar, não achou o que buscava? umentedizer-se que a sapiência 6 o recto caminho da vida.
Trigècio — Não procurou sempre. Licencio — A definição parece-me bem ridícula.
Trigècio — Talvez; mas bom será que a razão pre-
12) Licencio —Dizes bem. E de aí se vê que a tua vina o teu riso; nada mais fastidioso que o riso digno
definição é inadequada; nem eu disse que era feliz quem de irrisão.
procura sempre a verdade, o que aliás é impossível; pri- Licencio — Então não dirás que a morte v contrária
meiro, porque o homem não existe sempre; segundo, por- á vida?
que nem desde que existe, por defeito da idade, pode logo Trigècio — Sem dúvida.
o homem procurar a verdade. Ou se julgas que «sem- Licencio — Para mim o caminho da vida nada mais c
pre*, significa não dever perder tempo algum em que do que o que seguimos para não morrer»
possa investigar, voltemos ao exemplo de Alexandria. — Trigècio concordou —
Supõe alguém que, logo que lho permitam a idade e o Portanto, se um viajante que evite um atalho por
trabalho, começa a seguir aquele caminho e, como acima saber que o infestam ladrões, escapar assim â morte,
digo, sem nunca se desviar; e que morra antes de ter chamará alguém sapiência ao recto caminho da vida que
chegado* Decerto muito errarias se julgasses que esse cie seguiu? Como é então sapiência todo o recto caminho
errara, embora durante o tempo em que pôde não tenha da vida? Concedo que seja, mas não só ela. A defini-
deixado de procurar nem achado o que procurava» Se é ção nada estranho deve conter. Por isso, faze favor de
exacta a minha descrição e, segundo ela, não erra quem definir outra vez o que julgas ser sapiência,
bem procura, embora não ache a verdade, e é feliz por-
que vive conforme a razão, a tua definição está prejudi- 14) Trigècio — (depois de longo silêncio) — Torno a
cada; e quando não estivesse, não teria eu de ocupar-me definir, visto teres decidido não acabar. Sapiência ê o
de ela, porque só a minha esclarece definitivamente o caminho directo para a verdade.
problema. Nesse caso, porque não demos ainda esta Licencio — Também contesto. Quando, em Vergílio,
questão por esclarecida? a mãe de Eneias lhe diz:

*Por esta via os passos encaminha», {*).


CAPÍTULO V

13) Trigècio — Concedes que a sapiência é o recto seguindo este caminho chega aonde se dissera, i, é, à
caminho da vida? verdade. Vê se .pode chamar-se «sapiência» o lugar onde
Licencio — Certamente ; mas quero que a definas para
saber se lhe damos sentido igual. (i) *Perge modo et qua te ducit ma dirige gressutn* Aen,, 1, 401.

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CAPITULO VI
ele põe os pés; demais é estulto querer eu combater TERCEIRA DISCUSSÃO
esta tua definição, porque nada é mais útil do que ela
ao meu propósito. Disseste que a sapiência não é a ver- 16) Logo que amanheceu, — tudo se preparara de
dade, mas o caminho que a ela conduz. Quem segue véspera para ter mais tempo livre — retomámos imedia-
esse caminho segue a sapiência, e quem segue a sapiên- tamente a discussão. E disse e u ;
cia necessariamente é sábio Sê-lo há portanto aquele — Ontem pediste-me, Trigêcio, que passasse de juiz
que procurar perfeitamente a verdade, ainda quando não a defensor da sapiência, como se algum de vós a tivesse
a encontre; parece-me que nada pode melhor entender-se combatido, ou por falta de defensor ela se visse obrigada
por caminho da verdade que a sua aturada investigação. a pedir auxílio.
Logo, quem a seguir será sábio; mas nenhum sábio é Ora a vossa única oposição consiste em saber o que
infeliz; e como todo homem é feliz ou infeliz, a felici- é «sapiência», e nenhum de vós a combate porque ambos
dade não está só no achado mas também na procura da a quereis. Se julgas ter errado na definição, nem por
verdade. isso deves desertar da defesa do teu parecer. Por isso
me limitarei a dar-vos a definição de «sapiência», que não
15) Trigêcio (rindo-se) — E bem feito que isto me é nova nem minha mas antiga; e até me surpreende não
aconteça para não conceder ao adversário coisas não vos ter ocorrido. Não ouvis pela primeira vez que
necessárias; como se eu fosse grande definidor ou jul- «sapiência» é a ciência das coisas divinas e humanas.
gasse alguma coisa mais supérflua na discussão. Que
sucederia se eu te pedisse definição de tudo, até de cada 17) Licencio — (que depois de esta definição eu jul-
uma das palavras da definição e das consequências, fin- gava que procuraria muito tempo que responder) disse
gindo nada entender? Que definição poderia eu deixar imediatamente:
de exigir com razão, se com razão se me pede a de — Então por que não chamar sábio aquele nosso bem
«sapiência»? Que outra noção poderá haver mais clara conhecido Albicério, homem impudico e cheio de vícios,
no nosso espírito? Mas não sei porquê, parece que à^ que em Cartago maravilhou por muitos anos os consu-
noção, ao deixar o porto da nossa inteligência e ao sol- lentes com respostas certas? Poucas bastam, das inú-
tar as velas da palavra, logo ocorrem mil naufrágios de meras que poderia recordar, se não falasse com quem as
má interpretação. Pelo que, ou não deve pedir-se a defi- conhece. — (E dirigindo-se a mim): — Não é verdade que
nição de «sapiência», ou venha o nosso juiz em sua defesa. tendo-se perdido uma colher, ele, interrogado por tua
Então eu, vendo que a noite já não deixava escrever, ordem, não só disse de que se tratava, mas respondeu
e surgia novo problema, transferi para outro dia. Tínha- segura e imediatamente de quem era e onde estava?
mos começado já com o sol para o ocaso, e gastáramos E na minha presença, sem falar de que nunca respon-
quase todo o dia a tratar dos trabalhos do campo, e a deu errado às perguntas, quando um rapaz, que levava
rever o primeiro livro de Vergílio.

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dinheiro, roubou uma parte no caminho, obrigou-o à
CAPITULO VII
nossa vista a declarar o que levava e a entregar o que
roubara, antes de ter visto o dinheiro e sem que tivés-
semos dito quanto levávamos. 19) Trigécio — Primeiro, não chamo ciência aquela
em que erra às vezes o que a professa. A ciência con-
18) Tu mesmo nos contaste que Flaciano, homem siste não só em compreender mas cm lazê-lo de tal modo
ilustre e doutíssimo, ficara surpreendido, porque tendo que nela ninguém deve errar, nem hesitar sob :i pressão
falado com o adivinho para pedir-lhe o parecer sobre a de objecções. De onde justamente disseram alguns filó-
compra de uma herdade, ele imediatamente não só falou sofos que ela só pode achar-se no sábio que não NÓ deve
compreender o que mantém, mas mantô-lo firmemente.
do género de negócio mas até disse o nome da herdade.
Mas esse de que falas errou muitas vezes, o que sei por
O que ainda mais espantou Flaciano, que mal se lem-
ouvir dizer e por eu mesmo ter visto Hei-de ter por
brava dele. E não posso lembrar sem pasmo aquele
sábio, apesar de muitos erros, aquele a quem o não cha-
nosso amigo e teu discípulo, que, para confundi-lo, lhe
maria ainda quando tivesse acertado sem hesitação?
perguntou petulantemente em que estava a pensar nesse
Notai que assim falo dos arúspices e augures e de todos
momento. E o adivinho respondeu que em um verso de
quantos consultam astros e interpretam sonhos. Ou
Vergilio. Estupefacto, não podendo negar, perguntou
então mostrai-me algum de este género que nunca duvi-
que verso era. E Albicério que só alguma vez de pas- dasse das suas respostas e nunca tivesse errado. Dos
sagem teria visto a escola de um gramático, não hesi- adivinhos não vale a pena tratar, porque falam fora
tou, seguro e gárrulo, em recitá-lo. Portanto, ou o de si.
objecto de tais consultas não eram coisas humanas ou
sem a ciência das coisas divinas não podia responder
com tanta certeza às consultas. Uma e outra hipótese 20) Finalmente, dado que «coisas humanas* são
é absurda. Porque as coisas humanas nada mais são do coisas dos homens, como julgas nosso o que o acaso
que as coisas dos homens, como prata, dinheiro, terras pode dar-nos ou tirar-nos?
e finalmente o próprio pensamento; e quem negará que Como pode chamar-se ciência das coisas humanas à
as divinas são as por que o homem adivinha? Logo de saber quantas ou quais herdades temos; quanto ouro
Albicério foi sábio, se, como definimos, sapiência é a ou prata, ou os versos em que pensamos? Só o é a que
ciência das coisas divinas e humanas. ensina a luz da prudência, o decoro da temperança, a
firmeza inquebrantável, a santidade da justiça. Estas
sim, que são nossas, independentemente da fortuna; se
Albicério as tivesse aprendido, crê-me, nunca teria vivido
tão torpemente. Quanto a saber o verso em que pen-
sava o consulente, creio que não faz parte de coisas
nossas; não que eu negue pertencerem ao nosso espí-
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rito disciplinas honestas, mas porque até os ignorantes Não julgas, talvez, que os astros, que diariamente
podem recitar um verso alheio. Por isso, quando nos contemplamos, sejam alguma coisa grande, comparados
ocorrem, não é estranho se os ouvirem certos animais com o verdadeiro e santo Deus a quem raro a inteligên-
tenuíssimos, chamados «Espíritos*, que concedo nos levem cia e nunca os sentidos alcançara. Mas eles estão à nossa
vantagem na subtileza dos sentidos, não na razão. Ignoro vista; não são pois as coisas divinas, só conhecidas pela
de que modo secretíssimo e afastadíssimo dos nossos sen- sapiência; mas as outras, de que os adivinhos abusam
tidos isto se passa. Se admiramos uma abelha, prepa- por vaidade ou lucro, decerto são muito inferiores aos
rando o mel, com sagacidade superior à do homem, astros. Portanto Albicério nada soube das coisas divi-
voando de aqui para ali, nem por isso a antepomos ou nas e humanas e em vão por esse meio atacaste :i minha
sequer a comparamos connosco. definição. Finalmente, devendo nós desprezar e ter por vil
ai) Preferiria eu que esse Albicério, interrogado por o qué está fora das coisas divinas e humanas, pergunto
quem desejasse aprender, ensinasse versos próprios ou onde é que o teu sábio há-de ir procurar a verdade.
os dissesse coagido por um consulente, a respeito do que Licencio — Nas divinas; porque a própria virtude no
lhe íora proposto. Costumas lembrar o que o mesmo homem é de certo divina.
Flaciano dizia frequentemente, zombando com grande Trigêcio — Então Albicério já sabia o que o teu sábio
elevação de aquele género de adivinhação; e não sei a procurará sempre?
que abjectíssima anímula ele atribuía como por inspira- Licencio — Conhecera as divinas mas não as que o
ção, as respostas do adivinho. Perguntava aquele dou- sábio deve procurar. Quem não torça o sentido das pala-
tíssimo varão aos que tais coisas admiravam se Albicérip vras, se lhe concede o dom divinatório, como lhe nega
seria capaz de ensinar gramática, música ou geometria, as coisas divinas que à adivinhação dão nome?
Mas quem ignorava que de tudo isto ele nada sabia? Pelo que a vossa definição, se não erro, não sei que
Por isso exortava calorosamente os que tal tivessem incluiu estranho à sapiência.
aprendido a antepor o seu espírito sem hesitar àquela 23) Trigêcio — A definição, defenda-a quem a deu, se
adivinhação, e a esforçar-se por instruir e servir a inte- quiser. Voltemos ao nosso tema ; peço que me respondas.
ligência própria nas disciplinas com que pudessem domii Licencio — Seja.
nar e superar a natureza subtil dos espíritos invisíveis Trigêcio —Concedes que Albicério soube a verdade?
Licencio — Concedo.
Trigêcio — Melhor que o teu sábio?
CAPÍTULO VIII
Licencio — De modo nenhum ; porque o género de
verdade que o sábio procura não só aquele adivinho
22) Sendo as coisas divinas, na opinião de todos delirante mas nem o próprio sábio alcança na vida; e é
muito superiores às humanas, como poderia atingi-la^ de tal valor que antes procurar este sempre do que achar
aquele que a si próprio se desconhecia? alguma vez aquele,

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Trigècio — Tenho de recorrer à definição, Se te pare-
ceu viciosa, por abranger quem não podemos chamar a questão da vida feliz, que sô è feliz o sábio, pois no
sábio, dize-me se aprovas que sapiência é a ciência das próprio juízo dos estultos a estultícia é desgraçada; que
coisas divinas e humanas necessárias à vida feliz. o sábio deve ser perfeito; mas não o õ quem ignora o
Licencio — É, mas não única; a definição anterior que seja a verdade, e portanto também não é feliz,
invadta o campo alheio; esta reduz o próprio; peca a Aqui tu opuseste argumento de autoridade e pcrtur-
primeira por excesso, esta por defeito, Para íalar claro baste-o com o nome de Cícero; no entanto, logo se refez
desde já, direi que a sapiência me parece consistir não e com nobre obstinação retomou plena liberdade, apode-
só no conhecimento das coisas divinas e humanas con- rando-se do que lhe íôra violentamente arrancado; e
cernentes à vida feliz mas também na sua busca diligente. uerguntou-te se te parecia perfeito quem ainda procurasse;
Se quiseres dividir esta definição, a primeira parte, a da para que se confessasses que não era perfeito, ele pudesse
ciência, é relativa a Deus; a segunda, a da investigação, voltar ao princípio e demonstrar por aquela definição,
respeita ao homem. Pela primeira, Deus é feliz; pela rjue perfeito era o homem que orienta a vida pela lei da
segunda, o homem, razão; e por isso não poderia ser feliz se não fosse per-
Trigècio — Surpreende-me o teu asserto de que o teu feito. Tu, tendo evitado o laço melhor do que eu supunha,
sábio trabalha em vão, disseste que perfeito era o investigador diligentíssimo
Licencio — Como em vão se é tão grande o proveito? fia verdade, e contra a própia deíiniçâo de vida íeliz, isto
Porque procura é sábio, e por sábio é feliz; liberta quanto é, racionalmente vivida, em que concordáramos, te
pode a alma das prisões do corpo, e concentrando-se em bateste abertamente* Ele respondente com clareza,
si próprio, nenhuma ambição o dilacera, mas tranquilo ocupando a posição de onde, repelido, terias perdido
em si e em Deus esíorça-se por gozar na terra a felici- tudo, se não te tivessem valido as tréguas. Pois qual a
dade tal qual a deíinimos; e no último dia, preparado cidadela dos Académicos a quem aprovas, senão a defi-
para alcançar o que desejou, por gozar merecidamente a nição do erro? E se ela, talvez durante o sono, não te
divina beatitude, como gozara anteriormente a humana, tivesse lembrado, faltar-te-ia que responder, embora
tivesses lembrado anteriormente a opinião de Cícero,
Viemos finalmente à definição de sapiência, e tão viva-
CAPÍTULO IX mente a impugnaste que nem o teu próprio auxiliar
Albicério compreenderia talvez os teus estratagemas,
Com quanta cautela e esforço ele te resistiu e quasi te
24) Como Trigècio tardasse em achar resposta,
disse eu; envolveu e derrubou! Finalmente, refugiaste-te na nova
definição: que a sapiência humana é aquela busca da
— Não creio, Licencio, que se o deixássemos pensar
verdade, pela qual, devido à tranquilidade da alma, se
tranquilamente, lhe faltassem argumentos. Que lhe fal-
:ttinge a vida feliz, A isto não responderá ele, principal-
tou alguma vez para responder? Êle viu logo, levantada
mente se pedir lhe seja concedido prorrogar a discussão.

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7i
25) Mas se vos parece, encerremos esta conversação
cujo prolongamento julgo inútil- O assunto está dis-
cutido e poderia ter-se concluído em poucas palavras,
se eu não tivesse grande empenho de exercitar-vos e pôr
à prova os vossos nervos e aplicação* Exortei-vos a pro-
curar a verdade com todo o ardor e comecei por pergun-
tar o valor que lhe dáveis; destes-lhe tanto que nada
mais desejo- Se queremos ser felizes, quer isso dependa LIVRO SEGUNDO
do achado quer simplesmente da busca da verdade, é
certo que temos de procurá-la. Terminemos pois esta [De novo, com ânimo grato, exorta o seu Mecenas,
discussão e transcrevâmo-la, para enviar a teu pai, Licen- Romaniano, a dedicar-se ã filosofia e descreve-lhe três
cio, que sei como é inclinado á filosofia. Procuro ocasião reuniões, na primeira das quais se explicam as opiniões
de o atrair; ora poderia entusiasmar-se por este estudo, dos Académicos; na segunda, traia-se da diferença entre
não só por ouvir mas lendo estas coisas em que te ocupas a Nova e a Velha Academiaf e refutam-se os filósofos
comigo. Mas se como julgo, estás de acordo com os Aca- que pretendem seguir o verosímil, negando a possibilidade
démicos, prepara as forças para defendê-los, porque quero do verdadeiro; na terceira, diz-se o que eles entendem por
citá-los como réus. verosímil ou provável]*
Neste momento vieram dizer que o jantar estava)
pronto e levantámo-nos.
CAPITULO I

1} Se fosse tfio necessário achar a sapiência quando


se procura, como para ser sábio, conhecê-la e possuí-la,
decerto a falsa argúcia, a obstinação, a teimosia dos
Académicos, ou ainda, como julgo, a razão válida naquele
tempo, teriam ficado sepultas com o mesmo tempo, e com
os corpos de Carnéades e de Cícero. Mas, ou pelas vicis-
situdes da vida que em ti experimentaste, Romaniano,
ou por certa apatia, indolência e lentidão dos espíritos;
ou pela desesperança de encontrar, porque a estrela da
sapiência mais dificilmente nasce do que esta luz; ou
ainda (e é o erro vulgar) porque os homens, crendo erra-
damente ter encontrado a verdade, deixam de procurá-la

72 73
ao céu, repelindo o peso corpóreo ? Agostinho terá falado
diligentemente — se é que a procuram — sucede que a
em vão de Romaniano? Não o permitirá aquele a quem
ciência é rara e para poucos* De aí o julgarem, não só os
me entreguei e agora começo a conhecer um pouco,
medíocres, mas os argutos e os cultos, que as armas dos
Académicos, se a luta se trava, são invencíveis e como
vulcânicas. Por isso, contra as ondas e tempestades da CAPÍTULO II
fortuna deve lutar-se com os remos das virtudes e prin-
cipalmente pedir devota e piedosamente o auxílio divino,
3) Dá-te pois comigo à filosofia; nela está o que
para manter firme a intenção dos bons estudos e para
admiravelmente te torna ansioso e hesitante. De ti não
que nenhum acaso nos tolha abordar o porto seguro e
receio apatia de costumes ou lentidão de engenho. Quando
jucundo da filosofia. Tal a tua primeira tarefa. Receio
te era dado respirar, quem mais atento às nossas con-
por t i ; desejo libertar-te; para isso, em preces cotídianas
versações? Quem mais penetrante? Nilo poderei recom-
(se acaso sou digno de pedir) não cesso de pedir para ti
pensar-te? Acaso te devo pouco? Quando adolescente
ventos prósperos» Rezo à virtude e sapiência de Deus.
e pobre, vindo a estudar em terra estranha, recebeste-me
Que outra coisa é senão o que os mistérios nos mostram
em casa, à tua custa, e o que é mais, no teu afecto.
como Filho de Deus?
Morto meu pai, consoiaste-me com amizade, animaste-me
com o conselho, ajudaste-me com o teu auxílio. No nosso
2) Muito me ajudaras nas preces por ti se não deses- município tornaste-me quase ilustre e notável como tu,
perares de que eu seja ouvido, e te esforçares comigo pelo favor, pela familiaridade, pela intimidade na tua
não só por preces mas pela vontade e pela natural eleva- casa. Quando a ti só e a nenhum dos meus, revelei a
ção do teu espírito, que em ti me atrai, que sempre intenção e a esperança de voltar a Cartago, para uma
admiro e estimo singularmente, mas que, por desgraça, situação mais elevada, embora concordasses, o amor da
os cuidados domésticos ocultam, como as nuvens ao pátria, onde eu ]á ensinava, pôs-te em dúvida\ mas não
raio, e por isso muitos, quase todos ignoram; de mim e podendo dissuadir o adolescente, ambicioso de situação
de uru ou outro dos teus íntimos é que não pode escon- que julgava melhor, com admirável benevolência passaste
der-se, porque ouvimos atentamente alguns murmúrios a dar-lhe auxílio* Tu me forneceste o necessário para o
e vimos alguns relâmpagos precursores do raio. Para caminho. Tu que auxiliaras o berço e como o ninho dos
não dizer mais e lembrar um só íacto, quem è que alguma meus estudos quando na tua ausência e sem teu conhe-
vez trovejou tanto e brilhou com tal fulgor de inteligência cimento embarquei, sem te exaltares por não ter comu-
que a um só írémito da razão, a um só brilho de tempe- nicado, como era costume, não me acusaste de orgulhoso,
rança aniquilou em um dia a sua paixão rude da véspera? mantiveste firme a tua amizade, e valeram menos a teus
Não brotará esta virtude, transformando em horror e olhos os filhos deixados pelo mestre do que a íntima
espanto o riso de muitos que não têm fé, e falando na rectidão do meu intuito,
terra como um preságio do futuro, não se elevará de novo

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aquela religião em que vivera desde criança, e me pene-
4) E agora que enfim me alegro no meu ócio, que-
trava até a medula; mas ela atraía-me sem eu saber,
brado o elo de desejos vãos, sacudido o peso de cuidados
E assim, titubeando, apressando-me, hesitando, procuro
mortos, respiro, reentro em mim; agora que procuro arden-
o apóstolo Paulo. Estes, disse eu, teriam podido tanto
temente a verdade que começo a encontrar, e espero che-
e teriam vivido como se sabe que eles viveram se as suas
gar ao máximo de essa medida, tu animaste, tu impeliste,
razões e letras íossem opostas a um bem tão grande?
tu realizaste. Aquele de quem foste ministro, mais o
Li-o todo, atentíssima e minuciosamente.
concebi pela fé do que o compreendi pela razão. Quando
te expus o íntimo impulso da minha alma e afirmei
6) Mas então, já banhado por fraca luz, de tal modo
veemente e repetidamente que só considerava fortuna
se me revelou a face da filosofia, que se pudesse mos-
próspera a que me permitisse entregar à filosofia, e
trá-la, não a ti que sempre ardeste na fome de esta incó-
vida feliz a vida assim vivida, mas que me retinha ou
gnita, mas ao teu adversário, de quem não sei se te è
um pudor vão ou receio da triste miséria dos meus, que
estímulo mais do que obstáculo, esse mesmo, rejeitando
dependiam do meu trabalho, tão grande foi a tua alegria,
e deixando os banhos, os pomares amenos, os banquetes
tão inflamado o teu santo ardor por esta vida, que pro-
delicados e brilhantes, os histriões domésticos, enfim
meteste quebrar todas as minhas cadeias, até com parti-
tudo quanto o impele fortemente para estes prazeres,
cipação minha no teu património, se te visses liberto
voaria, como puro amante, para esta beleza, admirado,
das tuas importunas demandas.
anelante e ardente* Deve confessar-se que ele tem certa
beleza espiritual ou antes certa semente de beleza, que
5) Por isso quando partiste, deixando-nos o estímulo,
se esforça por florir, e tortuosa e contorcidamente brota
não mais deixámos de aspirar à filosofia e àquela vida
entre a solidez dos vícios e a falácia das opiniões. No
que a ambos tinha atraído, E embora com menos ardor,
entanto continua a ter fronde, e a sobressair, quanto é
julgávamos esforçar-nos bastante. Como ainda não che-
possível, ao olhar agudo e diligente de poucos que ali a
gara aquela chama que devia arrebatar-nos, tínhamos
descobrem. De aqui a hospitalidade, o requinte dos ban-
por máxima aquela que lenta nos ia queimando. Mas eis
quetes, a elegância, brilho, e polidez de todas as coisas,
que certos livros bem repletos, como diz Celsino, exala-
a espalhar em tudo uma graça velada.
ram para nós perfumes da Arábia, e deixaram cair na
chamazinha pouquíssimas gotas de perfume precioso!
incrível, Romaniano, incrível, mais do que podes pensar.
CAPÍTULO III
Que posso acrescentar? Atearam em mim um incêndio
incrível até para mim próprio. Que me importavam então
a honraria, a pompa humana, o vão desejo de fama, e 7) Chama-se isto vulgarmente «filocalia». Não des-
finalmente as prisões de esta vida mortal? Rapidamente prezes o termo, pelo seu uso vulgar. Porque elas têm
voltava a mim. Confesso que olhei quase de relance para nome semelhante e querem ser e são aparentadas. Pois

76 77
se existe, pode talvez esta discussão tirar-to. Muita vez,
que é a filosofia? O amor da sapiência. Que é a filo- cora efeito, te exaltaste contra os Académicos tanto mais
calia ? O amor da beleza. Consulta os gregos. E que é duro quanto menos erudito mas tanto mais sincero quanto
a sapiência? Não é a verdadeira beleza? Portanto são mais atraído pela verdade. Sob o teu patrocínio vou
irmãs, geradas pelo mesmo pai. Mas a primeira, arran- discutir com Alípio, e é provável que te convença; mas
cada do céu pelo atractivo da volúpia e encerrada em a verdade só poderás vê-la se te deres à filosofia.
gaiola vulgar, conservou a semelhança de nome, para O segundo, que é o de supores ter achado alguma coisa,
lembrar ao caçador que não a desprezasse. A irmã, ainda que te separes de nós duvidando e procurando,
voando livremente, muita vez a reconhece, embora sem qualquer superstição do teu espírito será repelida, quer
penas, sórdida e miserável; mas a íilocalia ignora qual se te enviar alguma das nossas discussões sobre religião
a sua origem. Toda esta fábula (aqui estou feito Esopo) quer quando discutir muitas coisas contigo,
Licencio ta dirá mais suavemente em verso; é poeta
quase perfeito, Portanto se aquele que ama a íalsa beleza
9) Por ora nada mais faço do que libertar-me de vãs
pudesse contemplar um pouco a verdadeira com os olhos
e perniciosas opiniões. Não duvido de que te levo van-
sãos, com que encanto viria dedicar-se à filosofia 1 Não
tagem, Uma só coisa te invejo: a companhia do meu
te abraçaria como irmão, se ali te encontrasse? Admi-
Luciliano, lnvejar-me-ás tu por dizer «meu»? Mas não
ras-te e ris talvez. Que faria se eu me explicasse à von-
ê o mesmo que dizer «teu» e, de todos nós, que somos
tade! Ou se ouvisses a própria voz da filosofia, por não
um só? Que te pedirei para atenuar a minha saudade?
poder ainda contemplá-la! Ficarias admirado, mas não
Pergunta a ti próprio o que deves pedir por mim. Mas
ririas; não desesperarias* CrO que nfto deve desespe-
agora falo a ambos: Não julgueis saber alguma coisa, a
rar-se de alguém e nunca de homens como esse. Muitos
não ser como sabeis que a soma de um, dois, três e qua-
são os exemplos de evasão e regresso fácil de tais aves,
tro é dez. Mas não penseis também que é impossível
com grande surpresa de muitos enclausurados.
achar a verdade em filosofia, Acreditai-me, ou antes,
aquele que disse: «Procurai e achareis». Não deve
8) Mas voltemos a nós, Romaniano, e filosofemos. desesperar-se de um conhecimento mais evidente do que
Devo agradecer-te: teu filho já começou a filosofar; eu o de aqueles números. Voltemos ao propósito. Começo
reprimo-o, para que, se levante mais firme e forte, depois a recear tardiamente que o discurso ultrapasse a medida,
de cultivar as disciplinas necessárias, às quais, se bem o que é grave, porque ela é de certo divina, e conduz-nos
te conheço, para não temer ser alheio, só te desejo vento suave e insensivelmente; serei mais cauto, quando for
próspero. Que direi da tua capacidade? Oxalá não fora mais sábio,
rara entre os homens como em ti é certa! Restam dois
vícios e obstáculos ao achado da verdade, que em ti não
receio muito; mas receio que te menosprezes e deses-
peres de achar, ou suponhas ter encontrado. O primeiro,

78 79
CAPITULO IV
— Ouve antes, — disse eu — o que perguntaste sobre
os Académicos, não vá eu ter de suportar-te, de ocupado
PRIMEIRA DISCUSSÃO
em tais medidas, sem medida alguma quer na mesa quer
nos problemas. Se eu ocultar alguma coisa em meu
10) Depois da discussão narrada no primeiro livro, proveito, Alipio o dirá.
passámos quase sete dias sem discutir, revendo apenas
Alipio — Ê indispensável a tua boa fé. Ser-me-ia
o segundo, terceiro e quarto livros de Vergílio, conforme difícil descobri-lo se ocultasses alguma coisa. Ouem me
o tempo ia permitindo. De tal modo a poética inflamou conhece, sabe com quem aprendi estas coisas; c ao
Licencio que tive de reprimi-lo um pouco. Já lhe era mostrar-nos a verdade, não atenderás mais à vitoria do
difícil pôr de parte esse trabalho; mas como eu exaltava que ao teu pensamento.
quanto podia a luz da filosofia, concordou em retomar
a adiada questão dos Académicos. O dia estava tão
luminoso e sereno que nada poderia melhor serenar-nos CAPÍTULO V
o espírito. Levantámo-nos mais cedo que de costume, e
pouco falámos com os camponeses, porque o tempo urgia.
u ) Fá-lo-ei — disse eu-—de boa fé, como justamente
Alipio — Antes de ouvir-vos discutir sobre os Acadé-
queres. Dizem os Académicos que o homem não pode
micos, preciso de ouvir ler o que dissestes na minha
alcançar a ciência no domínio da filosofia (Carnéades
ausência, forma única de na discussão que vai seguir-se,
afirmava desinteressar-se de qualquer outro) e no entanto
evitar confundir-me ou fazer esforço vão,
pode ser sábio, para o que basta a busca da verdade,
Assim fizemos e tendo gasto quase toda a manhã, como tu, Licencio, também disseste; de aqui se segue
decidimos voltar a casa. que o sábio não deve assentir em coisa alguma, porque
Licencio — Se não te custa, peço-te que exponhas necessariamente erraria — o que para ele é culpa máxima
brevemente, antes de jantar, a doutrina dos Académicos, — se assentisse em coisas incertas. E não só diziam mas
para que não me falte coisa alguma útil ao meu intento. tentavam demonstrar copiosamente que tudo é incerto.
— Com tanto maior prazer — disse eu — quanto a pen- Parece que tiravam a ideia da inacessibilidade da ver-
sar nisso comerás pouco. dade da definição de Zenão, o estóico, para quem só
Licencio — Fia-te nisso. Sei de muitos e em especial pode ser verdadeira uma impressão do real no espírito,
de meu pai, que comia tanto mais quanto o cuidado era quando não pudesse existir se o objecto não fosse real.
maior. E bem sabes que o meu cuidado pela poesia não Ou mais rápido e mais claro: o verdadeiro só pode
punha a mesa em segurança. Já eu tenho perguntado a reconhecer-se por sinais que o falso não possa ter. Os
mim próprio por que teremos maior apetite quando o Académicos esforçaram-se por mostrar que não podem
espirito está preocupado, ou porque será o espírito mais encontrar-se tais sinais. Reforçavam-lhes a causa as
imperioso quando as mãos e os dentes trabalham. dissensões dos filósofos, os erros dos sentidos, o sono e

8o
81
os delírios, os sofismas e sorites. E tendo aprendido Academia, porque a tua observação é muito pertinente
com o mesmo Zenão que nada é mais vil do que a ao assunto.
opinião, concluíram que se nada pode apreender-se, nunca Alipio — Isso faria supor que também me queres
o sábio deve aprovar coisa alguma. impedir de jantar, se não te julgasse aterrado com o
pedido de Licencio, de resolvermos antes de jantar todas
12) De aqui grande malevolência contra eles; pois ostas complicações.
em rigor parece que nada deve fazer quem nada aprova. E já ia continuar quando minha mãe (porque tínha-
O sábio dos Académicos dir-se-ia um dormente, desertor mos chegado a casa) tão instantemente nos chamou para
de qualquer trabalho. Por conclusão provável, que jantar que não era ocasião de prosseguir.
também chamavam verosímil, afirmavam que o sábio
cumpria os seus deveres, desde que tinha norma orien-
CAPÍTULO VI
tadora. Mas a verdade está oculta ou confusa, quer por
obscuridade da natureza, quer por semelhança das coisas. SEGUNDA DISCUSSÃO
No entanto, diziam que a própria refrenação do assenti-
mento era grande actividade do sábio. 14) Tomado o alimento bastante para saciar a fome,
Creio que resumi e expus como querias, Alipio, isto voltamos ao prado.
éf de boa fé. Se alguma coisa omiti ou se fui menos Alipio — Não me atreveria a recusar o que pedes.
exacto, foi involuntariamente. A intenção era boa. Se acertar, agradecerei tanto à tua doutrina como à minha
Quem erra deve ser ensinado; quem engana, evitado. memória. Se errar, corrigir-me-ás, para que não torne a
O primeiro precisa de bom mestre, o segundo, de discí- recear o encargo.
pulo cauteloso. Parece-me que a separação da Nova Academia era
mais contra os Estóicos do que contra a doutrina antiga.
13) Alipio — Agradeço-te por teres acedido a Licen- Nem deve considerar-se separação, porque apenas era
cio e por teres-me libertado do encargo. Não tinhas necessário discutir e resolver um novo problema posto
tanto que recear qualquer omissão, para pôr-me á prova por Zenão. Com certo motivo se pensou que a doutrina
(e nem outro motivo era possível) como eu tinha que da dificuldade do conhecimento exacto, embora não dis-
temer, se tivesse de corrigir-te. Se não te aborrecesse, cutida, não foi estranha aos antigos Académicos. Prová-
pediria que expusesses a diferença entre a Nova e ai -lo-ia facilmente a autoridade de Sócrates, Platão e
Velha Academia, o que mais importa aqui ao questiona- outros, que só julgaram defender-se do erro se evitassem
dor do que á questão. issentir temeráriamente. Entretanto não discutiram o
— Confesso — disse eu — que me aborrece. Agrade- ponto nas suas escolas nem averiguaram se a verdade
cer-te-ia, se enquanto descanso ura pouco, quisesses dis- pode alguma vez aprender-se. Zenão é que renovou o
tinguir esses dois nomes e mostrar a origem da Nova problema, afirmando que nada podia ter-se por verda-

82 83
deiro senão o que se distinguisse do falso por caracterís-
ticas de dissemelhança, e que ao sábio não era dado perturba a questão que sou quási infeliz, e vós se tendes
opinar; Arcesilau em consequência negou que o homem iiumanidade, deveis lastimar-me. Mas porque afligir-me
pudesse alguma vez achar tal critério e que a vida do ou tremer se me firmo em causa boa? Só cederei à
sábio não deveria arriscar-se ao nauirágio da opinião. verdade.
De onde concluiu que não devia assentír-se em coisa — Agradam-te — disse eu — os novos Académicos ?
alguma, Licencio — Muito,
— Então pareceste que falam verdade/
15) Neste ponto quando a velha Academia parecia Licencio — (que ia concordar^ hesitou, prevenido pelo
mais reforçada que combatida, Antíoco, discípulo de Fílon, rriso de Alipio). Repete a pergunta.
mais cubiçoso — dizem — de glória que da verdade, pôs — Achas que os Académicos falam verdade?
em conflito a doutrina de uma e outra Academia, Afir- Licencio — (depois de silêncio longo). Não sei se é
mava ele que os novos Académicos introduziam doutrina xdade; mas é provável. Nem vejo que possa alir-
insólita e muito afastada da dos antigos. Alegava o ar-se mais.
parecer dos antigos físicos e de outros grandes filósofos, — Sabes que ao provável chamam também verosímil,
combatendo também os Académicos que afirmavam seguir Licencio — Creio que sim,
o provável, confessando desconhecer o verdadeiro Reu- — Logo a opinião dos Académicos é verosímil,
nira muitos argumentos que julgo inútil lembrar. Mas Licencio —É.
afirmava, acima de tudo, que o sábio pode apreender a — Ouve com atenção. Se alguém, que não conheça
verdade. Creio ter sido esta a controvérsia entre novos teu pai, afirmar que teu irmão se parece com ele, não te
e velhos Académicos* Se é de outra maneira, informa tu parecerá inepto ou insano?
Licencio com exactidão, peço-o por nós ambos. Se é como Licencio—(no fim de silêncio demorado). Não me
eu disse, continuai a discussão iniciada, carece absurdo.

17) Quando eu ia responder, pediu-me que esperasse


CAPÍTULO VII
um pouco, e disse-me depois, sorrindo:
Licencio — Estás certo de vencer?
16) Então disse e u : —Há quanto tempo, Licêncioj -Suponhamos que sim. Nem por isso deves deixar
estás a descansar, nesta conversa mais longa do que eul ima discussão travada em especial para exercício e afina-
a julguei? Ouviste o que são os teus Académicos? rão do teu espírito,
Ele sorriu, um tanto perturbado por este apelo. Licencio—Mas eu não li os Académicos nem sou
Licencio - Pesa-me ter afirmado contra Trigécio qua orudito em tantas disciplinas com que me atacas,
a felicidade consiste em buscar a verdade. Tanto mes — Também os não tinham lido os primeiros defenso-
res da tua opinião. Se te falta erudição vasta, nem por
84
85
isso a tua inteligência deve sucumbir logo a quaisquer 19) Divertiu-nos a alegria dos rapazes. Então disse eu:
palavras e perguntas minhas. Já temo que mais cedo do — Repara na minha pergunta, e firma-te com maior
que quero te suceda Alípio, adversário com quem não valentia, se puderes.
estou tão seguro. Licencio — Pronto, Aquele que viu meu irmão e ouviu
Licencio — Tomara já ser vencido, porque nenhum dizer que ele se parece com meu pai, será inepto ou
espectáculo pode ser-me mais grato que o da vossa dis- insano se acreditar?
cussão. Embora possa ler-vos, pois que o estilo grava — Podemos ao menos considerá-lo estulto?
os vossos discursos, unia boa discussão, se não é mais Licencio — Não, se riíio julgar sabê-lo, e apenas seguir
útil é certamente mais agradável ao espírito. como provável o que ouviu repetir.
— Vejamos isso bem de perto. Suponhamos que o
18) Agradeço-te—disse eu —; mas a alegria súbita tal homem vê chegar teu irmão e pergunta: De quem
fez-te dizer que seria para ti o espectáculo mais feliz. è filho este rapaz? Respondem-lhe: De certo Roma-
Se aqui estivesse a discutir connosco teu pai, que ninguém mano. E ele: Bem me tinham dito que se parece muito
excederia no desejo de íilosofar depois de tão longa sede, com o pai. Então, tu ou outro: Conheceste Romaniano?
que dirias e sentirias tu, se eu próprio me julgaria feli- Não, mas vejo que se parecem. Quem deixaria de rir-se?
císsimo? Licencio — Decerto que ninguém.
Arrasaram-se-lhe os olhos, e quando pôde falar levan- — Então, já vês o que se segue,
tou a mão para o céu. Licencio — Vejo mas quero ouvir-t'o. Tens de come-
Licencio — Quando verei isso, meu Deus? Mas de ti çar a sustentar quem prendeste,
tudo pode esperar-se. — Que concluirei? Evidentemente são ridículos os
Tinham os os olhos rasos de água, mas eu reagi e teus Académicos, que pretendem seguir o verosímil,
disse: ignorando o verdadeiro.
— Reúne as forças, de que bem precisas, como te avi-
sei, para defender a Academia, Não quero que «antes
da tuba o medo te corra os membros», ou que pelo CAPITULO VIII
desejo de ver a pugna alheia queiras ser cativo*
Então, vendo-nos já serenos, disse 20) Trigécio — Muito diferente me parece da inépcia
Trigécio — Por que não há-de Deus ouvir um homem de esse homem a cautela dos Académicos. Eles seguem
tão virtuoso, antes de ele o pedir? Se tu, Licencio, não peia razão o que chamam verosímil: este seguiu a fama,
tens que responder e pretendes ser vencido, fraca fé a tua. que é a autoridade mais baixa de todas.
Rimo-nos. — E não seria mais inepto dizer; Não conheci o pai
Licencio — Fala tu que és feliz sem achar a verdade, nem tive informação alguma mas parecem-me seme-
e decerto, sem procurá-la, lhantes?

86 87
Trigêcio — Mais inepto de certo» E então? CAPÍTULO IX
— Tais são os que dizem; Não conhecemos o verda-
deiro; mas o que vemos é semelhante ao que desconhe- 22} Quereria que me dissesses, bom acusador dos
cemos. Académicos, quem defendes ao atacá-los. Receio que
Trigêcio — Provável, é que eles dizem. •. refutando-os queiras mostrar-te Académico,
— Quê! Negas que lhe chamem verosímil? — Bem sabes que há dois géneros de acusadores*
Trigêcio — Só quis excluir a semelhança, Parecia-me Cícero disse modestissimamente que só era acusador de
que a fama não viera a propósito, pois os Académicos Verres por ser defensor dos Sículos; mas não se segue
não crêem os olhos humanos, e menos os milhares da que quem acusa uma parte seja necessariamente defen-
Fama, fingidos pelos poetas. Mas eu não sou defensor sor da outra,
da Academia- Tendes inveja da minha tranquilidade Alipio — Tens ao menos alguma base para manter a
nesta questão! Aí tens Alípio; peço que a sua chegada tua opinião?
nos de descanso. Creio que justamente o receias. — É fácil responder-te, porque já pensei nisso demo-
radamente. Ouve pois, Alípio, o que julgo que sabes
21) Feito silêncio, ambos olharam para Alípio, muito bem* Não provoquei esta discussão pelo prazer
AUpio — Queria auxiliar-vos quanto pudesse, mas o de discutir. Basta o que já fizemos com estes rapazes,
vosso augúrio assusta-me. Espero no entanto vencer em que a íilosofia como que brincou connosco. Deixe-
esse temor. Consola-me ao mesmo tempo que o adver- mos as fábulas pueris* Trata-se da nossa vida, dos nossos
sário presente dos Académicos quase tomou o encargo costumes, da nossa alma que espera vencer todos os
de Trigêcio vencido, e agora julgais provável a sua vitó- enganos, conhecer a verdade, como se voltasse à sua ori-
ria. O que mais receio é ser tido por negligente era gem, triunfar dos desejos, desposar a temperança, domi-
um cargo, e impudente, aceitando outro. Creio que vos nar-se e tornar mais segura ao céu. Sabes o que te digo?
lembrais de me terdes feito juiz. «Façamos armas para um homem forte» (*); nada me agrada
Trigêcio —O caso é outro agora; pedimos-te que o menos do que ver surgir entre os que muito conviveram
deixes por algum tempo. e discutiram, alguma espécie de conflito. Mas como a
AHpio — Fá-lo-ei; para que, evitando a presunção e memória é frágil, quis escrever o que temos discutido,
a negligência t não caia no torpe vicio da soberba, retendo, para que estes rapazes aprendam ao mesmo tempo a dar
para além da vossa permissão, a honra que me destes. atenção a estas questões, e a atacar ou defender.

23) Não sabes que até agora nada sei certo e que os
argumentos e discussões dos Académicos me impedem

(*) Arma acri facienda viro* VERGÍLIO — Acu*, vm, 441,

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de procurá-lo? Não sei como imaginaram uma probabili- significar aos hábeis a sua opinião. Direi como e porque
dade (para voltar à sua palavra) de que o homem não assim me parece, depois de discutir o que se lhes atri-
pode achar a verdade. Isto me fizera preguiçoso e lento; bue e os faz tomar por inimigos do conhecimento humano.
nem ousava procurar o que homens inteligentes e dou- Por isso muito me agrada que tenhamos chegado a um
tíssimos não tinham encontrado. Se não me convencer ponto em que o nosso objectivo está tão claro. Parece-me
de que a verdade pode achar-se, tanto quanto eles se que eles foram inteiramente graves e prudentes. E tere-
convenceram do contrário, não ousarei investigar nem mos de discutir contra aqueles que pensaram serem os
tenho causa que defender. Deixemos isto e discutamos Académicos contrários a invenção da verdade. Não jul-
primeiro, com todo o cuidado se a verdade pode achar-se # gues que os temo; combatê-los-ia, se o que defenderam
Por mim creio ter muitas razões contra as dos Académi- nos seus livros fosse sincero e não para ocultar a sua
cos» Entretanto a diferença está em que eles julgam opinião e certas formas sagradas da verdade a espíritos
provável que não pode achar-se a verdade e eu julgo corruptos e como profanos. Fá-lo-ia hoje, se o fim do
provável que eía pode achar-se. Ou a ignorância da dia não nos obrigasse a recolher.
verdade é só minha, se eles fingiam, ou certamente nos E por esse dia terminou a discussão*
é comum,

CAPITULO X CAPÍTULO XI

24) Alipto — Já posso ir seguro; vejo que és mais TERCEIRA DISCUSSÃO


auxiliar do que acusador. Façamos desde já que esta
discussão, em que sucedo aqueles que te cederam, não 25) Embora o dia seguinte amanhecesse não menos
seja controvérsia de palavras, o que, de acordo contigo, sereno e tranquilo, gastámos a maior parte do tempo em
que citaste a autoridade de Túlio, reconhecemos muita trabalhos domésticos, principalmente a escrever cartas,
vez ser vergonhoso. Se não erro, tendo Licencio falado Restavam-nos quando muito duas horas, quando fomos
da «probabilidade» dos Académicos, perguntaste-lhe e ao prado. Atraía-nos a serenidade do ceu e não quisemos
ele concordou, se sabia que também lhe chamavam «vero- perder o tempo que tínhamos. Chegados á nossa árvore^
similhança*. Sei, porque tu mas deste a conhecer, que e acomodados, disse eu:
conheces as opiniões dos Académicos. Se as tens no — Como hoje não podemos ocupar-nos de assunto
espírito, não sei porque vais atrás de palavras. importante, quereria que vós, rapazes, me lembrásseis a
— Crê — disse eu —que não é de palavras mas de coi- resposta de Alípio ã pergunta que ontem vos perturbou.
sas a importante questão. Nem eles eram homens que Licencio—Foi tão breve que nada custa fazê-lo. Se é
não soubessem dar nome às coisas; parece-me que esco- leve, tu o dirás. Creio que te impediu, pois o assunto
lheram estas palavras para esconder aos medíocres e era claro, de fazer questão de palavras.

90 9i
Licencio — Espera um pouco. Acode-me vagamente
— E percebeis o que isso é e a força que tem? que não deviam arrancar-te tão facilmente argumento
Licencio— Creio que sim, mas peço-te que o exponhas de tal peso.
brevemente. Muitas vezes te ouvi que é vergonhoso con- E depois de reflectir em silencio:
tinuar na discussão em questões de palavras, quando já Nada me parece mais absurdo do que afirmar alguém
não há dúvida quanto às coisas. Mas isto é subtil de mais que segue o verosímil e ignora a verdade- Nem a tua
para que me peçam explicação. comparação me perturba. Se alguém me pergunta se o
estado do tempo não ameaça chuva para amanhã, res-
26) — Então, ouvi. Chamam os Académicos provável pondo que é verosímil, porque não nego conhecer alguma
ou verosímil o que pode levar-nos a acção sem assenti- coisa verdadeira. Sei que esta árvore não pode ser de
mento. Quero dizer, sem julgar verdadeiro o que faze- prata e sem receio afirmo saber muitas outras coisas
mos, e convictos de que ignoramos a verdade* Por exem- como esta, com as quais se parecem as que chamo vero-
plo : se na noite anterior, tão límpida e pura, alguém nos símeis. Mas tu, Carnéades, ou qualquer outra peste grega,
perguntasse se hoje brilharia um soí claro, creio que sem falar dos nossos (por que duvidarei de passar ao par-
diríamos ignorá-lo, mas que assim nos parecia. Tal me tido de aquele que me íez cativo por direito de vitória?)
parece, diz o Académico, tudo o que ]ulgo dever chamar tu, quando dizes ignorar a verdade, como sabes que segues
provável ou verosímil. Se preferes outro nome, níío me o verosímil? Nem posso dar-lhe outro nome* Como dis-
oponho. Basta que tenhas entendido o que digo, isto é, cutir com quem não pode sequer falar?
a que coisas dou esse nome. O sábio não deve ser obreiro
de palavras mas investigador de coisas. Compreendestes 28) Alipio — Não receio os trânsfugas; menos os teme
bem como me íoram tirados da mão aqueles brinquedos Carnéades, que tu, com leviandade não sei se juvenil ou
com que vos excitava? pueril, antes quiseste maldizer que atacar. Para corro-
Disseram ambos que sim, mas via-se4hes na cara que borar a sua opinião sempre fundada no provável bas-
me pediam uma resposta* tar-Ihe-ia alegar que tão longe estamos de conhecer a
— Julgais que Cícero, de quem são estas palavras, verdade que tu mesmo foste um grande argumento con-
fosse tão ignorante da língua latina, que desse nomes tra ti, pois que uma só perguntazinha te desorientou
impróprios ãs coisas que tinha em mente? completamente. Por enquanto deixemos isto e aquela
tua opinião quanto a árvore. Embora já tenhas tomado
outro partido, precisas de apreender cuidadosamente o
CAPITULO XII que eu disse* Parece-me que ainda não entrámos bem
na questão de saber se a verdade pode descobrír-se.
27) Trigécio —Não discutiremos palavras, agora que Tive por necessário começar a minha defesa só pelo
a essência é conhecida. Vê antes o que respondes àquele ponto em que te vira cansado e prostrado, isto é: se não
que nos libertou, visto voltares a atacar-nos.
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deve procurar-se o verosímil ou provável — chama-lhe do que eu os termos em que expuseram doutrina. Quanto
como quiseres — que os Académicos dizem bastar-lhes, a mim, se mo perguntas, creio que ainda não se encon-
Não me importa se já te julgas óptimo inventor da ver- trou a verdade. Para responder à tua pergunta relativa
dade, Se não fores depois ingrato a este meu patrocínio» aos Académicos, acrescento que ela não pode achar-se;
talvez venhas a ensinar-ma. éP como sabes, a minha antiga opinião, apoiada na auto-
ridade de notabilíssimos filósofos, perante quem nos obri-
gam a curvar a cabeça a fraqueza do nosso espirito ou a
CAPITULO XIII penetração inultrapassável do seu.
— Nada mais quero— disse eu.— Receava que o teu
29) Como Licencio, modestamente, receasse o ímpeto parecer fosse igual ao meu e nada nos obrigasse a dis-
de Alípio, disse eu: cutir para exame diligente da questão. E até me prepa-
—-Preferiste dizer tudo, Alípio, a discutir, á nossa rava para pedir-te que tomasses o partido dos Acadé-
maneira, com aqueles que não sabem falar micos, como se julgasses que eles não só diziam mas
Alípio — De há muito sabemos todos, e a tua profis- pensavam que a verdade não pode alcançar-se, Trata-se
são o mostra, que és perito em falar* Quereria que nos portanto de averiguar se pelos seus argumentos é pro-
explicasses previamente a utilidade da sua pergunta que vável que n:ida pode saber-se, e em nada é lícito assentir.
ou é supérflua, e portanto é supérfluo responder-lhe, ou Se o conseguires, inclinar-me-ei sem custo; mas se eu
é sensata e não sei explicá-la; peço-te que nesse caso puder demonstrar que é muito mais provável que o sábio
não te pese o cargo de professor. alcance a verdade, e que nem sempre o assentimento
— Lembras-te — disse e u - q u e prometi ontem adiar deve suspender-se, creio que nada te impedirá de vir
as questões de palavras. Agora o sol manda-nos reco- para o meu lado.
lher nos cestos os brinquedos dados às crianças, tanto Alípio concordou, bem como todos os presentes; e
mais quanto os expus mais para ornato que para venda. voltámos a casa, já envolvidos nas sombras da noite.
Mas antes que as trevas, habituais padroeiras dos Aca-
démicos, não nos deixem escrever, quero que assentemos
na questão que será nosso objecto de amanhã, Peço que
me digas se te parece que os Académicos tiveram opi-
nião segura sobre a verdade, e não quiseram apresen-
tá-la temerá ria mente a espíritos desconhecidos ou impu-
ros ou se julgaram realmente o que resulta das suas
discussões.
Alípio— Não afirmarei temeràriamente o que lhes
estava no ânimo. Quanto aos seus livros, sabes melhor

94 95
LIVRO TERCEIRO

Contêm duas discussões e de começo estabelece que para


o sábio a fortuna não ê auxilio nem obstáculo. Pt ova
Agostinho contra o patecer defendido por A li pio, que
alguma coisa o sábio conhece, pois conhece a sapiência.
Depois ãiscute a definição de Zenão e contesta as duas
opiniões dos Académicos: «Nada pode compreender-se»
e «Nada deve aprovar-se». Dtz finalmente parecer-lhe
que os Académicos não pensaram o que geralmente se
supõe.

CAPITULO I

i) No dia seguinte ao da discussílo contida no segundo


livro, tendo-nos reunido nos banhos, porque o tempo
obscuro não convidava a ir ao prado, principiei a s s i m :
— Creio que já vistes bem qual o problema que temos
de discutir. Mas antes de expor o meu parecer e de
explicar o que ao caso importa, peço que ouçais de bom
grado algumas coisas n^o alheias ao propósito sobre a
esperança, a vida, e a nossa doutrinação, Buscar a ver-
dade com todo o esforço, julgo que não é leve nem supér-
fluo mas importantíssimo e necessário. Nisto concorda-
mos, eu e Alípio, Todos os íilósofos julgaram que o
seu sábio a e n c o n t r a r a ; e os Académicos ensinaram que

97
o sábio devia procurá-la e a procurava com o maior temos de conceder que a fortuna domina a vida do sábio,
esforço; mas ou porque jazia escondida, ou por confusa pois ele não pode deixar de precisar das coisas necessá-
não se revelava, ele tinha, para conduzir-se, de recorrer rias ao corpo.
ao verosímil e provável. Assim estabeleceu também a
vossa discussão anterior. Um julga o homem feliz pela 3) — Afirmas então — disse eu — que a fortuna é neces-
posse da verdade, outro pela investigação aturada; mas sária ao que aspira a sabedoria mas negas qtic o .seja ao
todos concordamos que nenhum outro trabalho pode sábio.
comparar-se-lhe. Por isso, que vos parece o nosso dia Alipio — Não é despropositado repetir. Por isso vou
de ontem? Pudestes gastá-lo nos vossos estudos. Tu, perguntar-te se a fortuna pode auxiliar-nos a despre-
Trigécio, deleitaste-te com os versos de Vergílio; e sarmo-la, Se o pensares, digo que quem deseja a sabe-
Licencio passou-o a fazer versos, o que de tal modo o doria muito precisa da fortuna.
entusiasma, que principalmente por ele julguei dever — Penso, pois que por ela virá a ser capaz de des-
travar-se esta discussão, para que no seu espírito a filo- prezá-la. E não é absurdo. Também na infância pre-
sofia (e vai sendo tempo) adquira e mantenha lugar cisamos do seio materno, para depois, sem ele, podermos
maior não só do que a poesia mas do que qualquer viver e ter saúde.
outra disciplina. Alipio — Vejo que as nossas opiniões concordam, se
t que a nossa concepção é a mesma. Entretanto deve
CAPITULO U talvez distinguir-se que não é o seio ou a fortuna mas
alguma outra coisa que nos leva a desprezar a fortuna
2} Não tivestes pena de nós, quando ontem nos deitá- ou o seio materno.
mos no intento de voltar à questão adiada e a nada mais, — E fácil achar outro símile. Assim como ninguém
ao ver que tantos negócios domésticos inadiáveis nos atravessa o Egeu sem navio ou qualquer veículo, e até,
impediram a tal ponto que mal pudemos concentrar-nos [iara não temer o próprio Dédalo, sem aparelhagem ade-
nas duas últimas horas do dia? Sempre fui de parecer que quada ou algum poder oculto j e apenas chegado ao termo
o sábio de nada precisa; mas para chegar a sábio, a for- desejado está pronto a rejeitar e desprezar os meios de
tuna é muito necessária; Àlípio é talvez de outra opinião* fjue se servira; também quem quiser chegar ao porto da
Alipio— Ainda não sei bem que valor dás à fortuna. sabedoria, à terra firme e segura (pois, para não me alar-
Se julgas que para desprezá-la, ela própria é necessária, gar, não o conseguirá se íôr cego ou surdo, o que depende
estamos de acordo. Se apenas lhe concedes aquilo que da fortuna) a fortuna parece-me indispensável, para obter
sem sua licença não pode satisfazer o que é necessário o que deseja. Logo que o alcançou, ainda quando julgue
ao corpo, não te acompanho. Na verdade, ou aquele que precisar de certas coisas necessárias à saúde do corpo,
deseja mas ainda não possue a sabedoria pode, contra a sabe que não precisa de elas para ser sábio mas para
fortuna, obter o que temos por indispensável à vida; ou viver entre os homens*

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99
Alipio — Melhor: esse homem, se for cego e surdo, Alipio — Pus esta objecção prévia, para evitar que
desprezará, e a meu ver com razão, tanto a acquisição da írreíletída concessão minha desse nesta questão ao teu
sapiência quanto a mesma vida, pela qual se procura a discurso campo largo para cavalgar.
sapiência* — Pois nenhum espaço me deixaste para isso — disse
nu —. Se não erro, chegámos ao fim que eu tinha pen-
4) No entanto— disse eu — como a nossa própria sado. Se entre sábio e filósofo a diferença, como disseste
vida terrena está na mão da fortuna, e só quem vive com verdade e subtileza, está em que este deseja c aquele
pode vir a ser sábio, não devemos confessar que só com possue a sapiência — de onde o justo nome dtr hábito
o favor da fortuna podemos chegar à sabedoria? que lhe deste; se ninguém, sem ter aprendido, pode
Alipio - Mas como só aos vivos a sapiência é neces- possuir uma disciplina e nada aprendeu quem nada sabe,
sária, e perdida a vida a sapiência é inútil, não temo a e ninguém pode saber o falso, então o sábio, que tu mesmo
fortuna no avançar da vida- Desejo a sapiência porque confessaste que possuia a ciência, isto é, esse hábito,
vivo, não quero a viria por desejar a sapiência. Por isso, conhece a verdade.
para vir a ser sábio, não tenho que desejar o favor ou Alipio — Seria impudente negar que reconheci no sábio
temer a hostilidade da fortuna, o hábito da inquirição das coisas divinase humanas. Mas
— Então - disse eu — não te parece que a quem deseja ião sei porque lhe negas o do achado das probabilidades.
a sapiência possa a fortuna a impedi-lo de o conseguir, — Concedes que ninguém sabe o falso?
mesmo sem lhe tirar a vida? Alipio — Concedo.
Alipio — Não me parece. — Então afirma, se podes, que o sábio ignora a
sapiência.
CAPÍTULO 111 AUpio — Mas porque limitas assim tudo, de modo que
não possa parecer ao sábio que conhece a sapiência?
5 — Quereria saber — disse eu —que diferença fazes — Dá-me a tua mão. Foi isso que ontem eu disse
entre sábio e filósofo, que mostraria, e folgo que essa conclusão agora seja tua.
Alipio — Nenhuma; a não ser que as coisas que no Lembras-te que a diferença entre mim e os Académicos
sábio estão em hábito, no filósofo estão em desejo. estava em que eles julgavam improvável achar a ver-
— Mas quais são essas coisas? Porque para mim a dade, e eu, embora sem encontrá-la, julgo que o sábio
única diferença está em que um conhece e o outro pre- poderá descobri-la. Agora, obrigado a dizer se o sábio
tende conhecer a sapiência. conhece a sapiência, respondes: Julga conhecê-la.
Aiipto - Se desses uma pequena definição da ciência, Alipio- E então?
a coisa ficaria mais cíara. — Então, se julga conhecê-la, não julga que o sábio
— Fosse qual fosse a minha definição, todos concor j não pode conhecer coisa alguma. Ou é preciso que afir-
dam em que não há ciência de coisas falsas. mes que a sapiência nada é.

100 101
6) — AUpio — Julguei que chegáramos ao fim; e de CAPÍTULO IV
repente, ao apertarmos a mão, vejo-nos cada vez mais
afastados; ontem só se tratava de saber se pode o sábio •SEGUNDA DISCUSSÃO
atingir a verdade. Tu afirmáva-lo, eu contestava. Agora
só concedi que pode parecer ao sábio ter alcançado em 7) Ao voltar encontrámos Licencio, que nem o Heli-
coisas prováveis a sapiência, que entendo ser a investi- con dessedentaria, boquiaberto, a fazer versos. A meio
gação das coisas divinas e humanas — e nenhum de nós do jantar, aliás brevíssimo, saíra a furto e nada bebera.
o põe em dúvida. — Desejo-te — disse eu — o domínio da tSo ambicio-
— Nada explicarás complicando, Parece que discutes nada poética; não porque me deleite essa perfeição, mas
para exercício. E como sabes que estes rapazes dificil- porque é tal o teu ardor que só o fastio te curará, como
mente penetram por ora em discussão subtil, abusas um é costume. Demais, como tens boa voz, prefiro que nos
pouco da ignorância dos juizes, para falar à vontade, sem cantes versos teus, a que, à maneira das aves engaio-
protesto algum. Quando há pouco perguntei se o sábio ladas, nos digas os de aquelas tragédias gregas que não
conhece a sapiência, disseste que lhe parecia conhecê-la, entendes. Melhor c que vás beber e voltes à nossa escola (
Aquele a quem parece que o sábio conhece a sapiência se alguma coisa te merecem Hortensio e a filosofia, cuja
não pode, claro está, parecer que o sábio nada sabe, A doçura prelibaste naquela discussão e te inflamou bem
não ser que diga que a sapiência nada é, Somos pois do mais do que a poética no empenho das coisas grande»
mesmo parecer, porque eu creio que o sábio sabe alguma e verdadeiramente frutuosas. Mas no desejo de cha-
coisa e tu julgas que ao sábio parece que o sábio conhece mar-vos as disciplinas que cultivam o espirito, receio
a sapiência. meter-vos em um labirinto e quàsi me arrependo de
Alipio —Julgo não querer, mais do que tu, exercitar o reprimir te o ímpeto.
espírito; e admiro-me, porque tu já não precisas de isso. Corou e foi beber. Tinha muita sede e ao mesmo
Talvez por cegueira minha, parecem-me diferentes saber tempo evitava que eu lhe dissesse talvez outras coisas e
e julgar saber, assim como a sapiência, que é investiga- mais ásperas.
ção, e a verdade, Náo sei como pôr de acordo as nossas
opiniões, 8) Quando ele voltou, comecei, perante a atenção
Então, como nos tivessem chamado para jan tar, disse eu: de todos;
— Não me desagrada a tua teimosia. Ou nenhum de — Não é verdade, Alipio, que discordamos em coisa
nós sabe o que diz, e é preciso evitar esta vergonha; ou evidente, segundo julgo?
só um de nós, e não seria menos vergonhoso ficar indi- Alicio — Não admira que seja obscuro para mim o
ferente. Falaremos esta tarde. Julguei que tinha aca- que para ti é claro. Muitas coisas claras para uns podem
bado, quando começaste aos socos, sê-lo ainda mais para outros; e as que uns têm por obs-
Então riram-se e fomo-nos embora, curas, a outros parece-lo ainda mais. Se isto para ti é

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103
manifesto, outrem haverá para quem o seja mais, e para — E a ti, parece-te que não a conhece? Não te per-
alguém a minha obscuridade será mais obscura, Mas não gunto o que julgas que ele cr£, mas se te parece, a ti,
quero que me julgues obstinado e peço que esclareças que o sábio conhece a sapiência. Creio que podes afir-
essa clareza, mar ou negar.
— Pois ouve atento, pondo de parte o cuidado de Alipio — Oxalá isso me fosse fácil como a ti, ou a ti
responder. Se a ti e a mim conheço, pequeno esforço difícil como a mim! Serias menos molesto e estarias
mostrará o que digo e em breve um persuadirá o outro* menos esperançado. Respondi à tua pergunta que, na
Disseste, se não erro, que o sábio julgava conhecer a minha opinião, ele julgava conhecê-la. Pareceu-me leiue-
sapiência? ridade afirmar que eu ou ele o sabiamos.
Assentiu. — Seria grande favor responder à minha pergunta e
— Deixemos um pouco o sábio. Tu próprio és sábio não a que tu formulas a ti próprio. Além disso, deixe-
ou não ? mos as minhas esperanças, que te preocupam tanto como
Alipio — De modo nenhum. as tuas. Se me engano, passarei logo para o teu lado e a
— Quero que me respondas o que pensas do sábio discussão terminará. Finalmente, deixando a inquietação
Académico. Parece-te que ele conhece a sapiência? vaga que em ti noto, atende bem, para compreender que
Alipio —Julgas o mesmo ou diferente que ele julgue resposta desejo de ti. Disseste nao afirmar nem negar,
sabê-la ou que a saiba? Receio que esta confusão sirva npesar de serem indispensáveis um ou outro para res-
de defesa a um de nós. ponder à minha pergunta, para não dizer temeráriamente
que sabes o que ignoras; como se eu te perguntasse o
9) Isso é o que costuma chamar-se disputa tos- que sabes e não o que te parece. Pergunto agora mais
cana: opor a uma pergunta não a resposta mas uma claro (se é possível). Crês ou não que o sábio conhece
objecção diferente* Também o nosso poeta (deixa-me a sapiência?
falar para que Licencio ouça) julga isso próprio de Alipio —Se há um sábio, como a razão o apresenta,
aldeãos e de pastores; se um de eles pergunta onde é creio que conhece a sapiência.
que o céu tem apenas três côvados, o outro responde: — Portanto, segundo a razão, o sábio conhece a sapiên-
«Dize-me em que terra nascem flores que têm inscritos cia; muito bem. Não podias decentemente pensar de
os nomes dos reis.» Alipio, que isso não valha nesta outro modo,
casa de campo, onde estes pequenos banhos recordam
um pouco a grandeza dos ginásios. Peço-te que me res- 10) Pergunto agora se pode haver um sábio. Se pode,
pondas: Parece-te que o sábio dos Académicos conhece pode conhecer a sapiência e a questão morreu. Mas se
a sapiência? dizes que não há, não temos de investigar se ele sabe
Alzpio —Para não me alongar em palavras: parece-me alguma coisa mas se alguém pode ser sábio. Isto assente,
que ele crê conhece-la, deixemos os Académicos e discutamos diligente e cau-

104 105
tamente. Pensaram eles que o homem pode ser sábio, 12) — Está bem; nada mais quero. Ora vede quantas
mas que a ciência não é dada ao homem. Portanto afir- vantagens tenho. Primeiro diz-se que aos Académicos
maram que o sábio nada sabe. Tu crês que ele conhece só resta a deíesa de que ela é impossível. Quem acre-
a sapiência, o que é saber alguma coisa. E tanto nós, ditará que o vencido se glorie da vitória por ser ven-
como os antigos e os próprios Académicos, concordamos cido? Além de isso, a questão agora já não está em
em que ninguém pode saber o íaíso; só te resta portanto dizerem que nada se pode saber, mas em pretenderem
ou afirmar que a sapiência nada é ou que o sábio des- que em nada deve assentir-se. Estamos pois de acordo,
crito pelos Académicos, a razão o desconhece* Parece-lhes, a eles como a mim, que o sábio conhece a
sapiência. Mas aconselham que se evite o assentimento.
Só dizem que lhes parece e não que sabem; como se eu
CAPÍTULO V
afirmasse saber. Também a mim me parece; e sou
IT) Deixando isto, examinemos se ao homem é dada estulto, como eles, se desconhecem a sapiência. Mas
a sapiência, tal qual a razão mostra e é a única digna de creio que temos de aprovar alguma coisa, isto é, a
esse nome, verdade. Perguntar-lhes-ei se negam assentimento ã
Alipio — Ainda quando conceda o que tanto te esfor- verdade. Nunca tal dirão, mas sim que ela não pode
ças por obter, que o sábio sabe a sapiência, e que achá- achar-se. E aqui de algum modo concordaremos, pois
mos algo que ele pode saber, não julgo vencidos os a mim e a eles parece necessário consentir na verdade
Académicos. Vejo que conservam uma deíesa e podem
suspender o juízo e nfto desertar da sua causa, pela CAPITULO VI
razão mesma com que julgas vencê-los. Podem dizer
que tudo ê tão incerto e o assentimento tilo errado, que 13} Tu disseste, Alípio, com brevidade efe — e tudo
o seu próprio princípio, sempre julgado provável, o teu farei para concordar contigo — que só algum nume pode*
argumento lho destruiu ; então, como agora, por força do ria mostrar ao homem o que é a verdade. Nesta conver-
argumento ou por incompreensão minha, eles poderão sação nada ouvi mais grave, nada mais provável, e se,
manter-se e continuar ousadamente a afirmar que não como creio, o nume está presente, nada mais verda-
deve assentir-se em coisa alguma. Talvez algum dia deiro. Proteio, que lembraste com grande elevação e
possam, eles ou alguém, achar outro argumento subtil e com a mais pura intenção filosófica, aquele Proteio, para
provável. Como em um espelho, devemos ver-lhes a ima- que vós, adolescentes, não penseis que a filosofia deve
gem em Proteio, que os perseguidores só puderam apa- desprezar os poetas, é a imagem da verdade. Digo que
nhar, sem que lhes escapasse, com o auxílio de um nume. Proteio revela e mantém nos versos o papel da verdade,
Que ele nos assista e mostre a verdade procurada, e que ninguém alcançará, se, levado por falsas imagens,
então confessarei que eles foram vencidos, o que não afrouxar ou desfizer os nós da compreensão» Tais ima-
creio. gens, pelo nosso hábito de empregar os sentidos nas coi-

106 107
sas necessárias à vida, iludem-nos até quando se diria como somos poucos e não preciso de molestar-me falando
termos a verdade na mão. Nem sei como apreciar o ter- alto, e como o estilo, em favor da minha saúde, regula
ceiro bem que me sucedeu. O meu grande amigo con- e modera o meu discurso, para evitar o entusiasmo, que
corda comigo não só quanto à probabilidade da vida me prejudicaria, ouvi então o meu parecer, em discurso
humana, mas quanto à religião, o que é o mais certo seguido,
indício do amigo verdadeiro. A amizade foi justa e san- Mas primeiro vejamos aquilo de que se gloriam os
tamente definida «a concordância de coisas divinas e partidários dos Académicos* Nos livros em que Cícero
humanas, com benevolência e caridade». os deíende há um passo, a meu ver de grande primor, e
segundo outros de grande solidez. Difícil é realmente
CAPÍTULO VII que ele não nos impressione: Todos os sábios das outras
seitas dão o segundo lugar ao Académico, pois que o pri-
14) No entanto, para que os argumentos dos Acadé- meiro todos o reservam para si. Pode com probabilidade
micos não pareça perturbarem-nos ou para que não se concluir-se que tem razão de julgar-se primeiro quem no
julgue que resistimos por soberba â autoridade de juízo de todos os outros é segundo,
homens doutíssimos, entre os quais Túlio não pode dei-
xar de impressionar-nos, direi primeiro, se achais bem, 16) Suponhamos presente, por exemplo, o sábio
alguma coisa contra os que julgam estas discussões com- estóico, pois foi contra esses que mais se esforçaram os
bates à verdade. Direi depois por que motivo, a meu Académicos, Se perguntarmos a Zenão ou Crísipo quem
ver, os Académicos ocultaram a sua opinião. For isso, é o sábio, responderá que é o que ele próprio descreve.
Alípio, embora estejas do meu lado, defende-os e res- Epicuro ou qualquer outro adversário dirá que não, t
ponde-me, que o sábio é antes um eomo captador da ave da volup-
Alípio — Pois que o teu combate de hoje, como dizem, tuosidade. Surge conflito. Clama Zenão e tumultua o
íoi bem augurado, não impedirei a tua vitória plena, e, Pórtico, que o homem só nasceu para a virtude; que ela
visto que nTo impões, tomarei tranquilamente o seu par- atrai os espíritos pelo seu esplendor, sem qualquer lucro
tido; a não ser que prefiras e te seja cómodo mudar as extrínseco e sem mercê, que seria um como lenocínio;
questões em discurso seguido, para que eu, como adversá- e que não deve iançar-se o homem e o sábio na socie-
rio pertinaz, e (já cativo, não sofra as ílechazinhas que dade dos animais, a quem é própria a voluptuosidade
me atires, contra a tua humanidade, epicúrea. Mas Epicuro chama de seus jardins a turba
ébria, que furiosa procura quem despedace com unhas
15) Como todos o esperavam, comecei uma espécie grosseiras e áspera fauce; insiste, dando o povo como
de exórdio: Vou satisfazer-vos- Embora esperasse des- testemunha, exagerando o nome de voluptuosidade, sua-
cansar, com leve armadura, depois do trabalho da escola vidade, repouso, que só por eles o homem pode ser feliz,
de retórica, mais perguntando que discorrendo, no entanto, se entretanto aparecer um Académico, uns e outros ten-

108 109
tarâo atraí-lo; se ceder a algum, o outro di-lo-á insano, Liiico um tanto vaidoso se apresenta a todos como discí-
ignorante e temerário* Ouvidas ambas as partes e inter- pulo e ninguém o convence do que ele crê saber, todos
rogado, dirá que duvida. Pergunta agora ao Estóico se de acordo se riem de ele. Todos pensarão que se nenhum
prefere Epicuro, que o julga delirante ou o Académico, dos adversários aprendeu coisa alguma, ele nada pode
que julga indispensável reflectir» Claro que preferirá o aprender- Será repelido de todas as escolas, não com a
Académico, Pergunta agora a Epicuro quem prefere: íérula, mais humilhante que molesta, mas com as clavas
Zenão qne lhe chama animal ou Arcesilau, que lhe diz: £ bastões dos homens do manto. Nem será grande tra-
Talvez tenhas razão, mas importa inquirir mais diligen- balho pedir o auxilio quase hercúleo dos Cínicos contra
temente, Não é claro que Epicuro julgará doido todo o ;i peste comum, Mas se me agradar disputar-lhes esta
Pórtico e que, comparados com ele, os Académicos são vilissima glória, o que a um íilosofante como eu, ainda
homens modestos e cautelosos? Assim e justíssima- nao sábio, mais facilmente se desculpa, que poder5o eles
mente, apresenta aos leitores um como espectáculo jucun- impugnar? Suponhamos que eu e um Académico entramos
díssimo, mostrando que se nenhum de aqueles, como é naquelas discussões, estando todos presentes. Que expo-
fatal, deixa de atribuir a si próprio o primeiro lugar, nham rapidamente as suas opiniões* Pergunte-se a de
concede o segundo a quem vê que não combate mas Carnéades. Dirá que duvida. Cada um portanto o pre-
duvida. Nada tenho a opor nem lhes diminuirei a glória» íere aos outros. Logo todos a todos. Grande e altíssima
A alguns parecerá que Cícero aqui não quis divertir-se glória. Quem não quereria imitá-lo? Interrogado eu tam-
mas reunir palavras inanes e ocas, por detestar a frivo- bém, respondo o mesmo; o louvor será igual. Então a
lidade dos mesmos gregos, glória do sábio ê aquela em que o estulto o iguala? E se
este o superar facilmente? O pudor será inútil? Demo-
rarei o Académico ao sair do julgamento. A estultícia é
CAPÍTULO VIII ávida de tais vitórias, E retendo-o, direi aos juízes o
que eles ignoram, Dir-lhes-ei: Senhores, eu, como este,
17) Pois que me impedirá, se quiser resistir a esta duvido qual de vós está na verdade; mas cada um de
verdade, de mostrar facilmente que menor mal é ser nós tem também opiniões próprias e peço que as jul-
indouto que indócil? C1) E assim, quando esse Acadé- gueis. Embora vos tenha ouvido, ignoro onde está a
verdade, por isso que ignoro qual de vós é sábio. Mas
(*) Lê-se em um sermão do P, e António Vieira: --«Quem nlo
Ê dócil não pode ser donto; antes a mesma docilidade é um sinó-
este contesta que o sábio saiba alguma coisa; nem sequer
nimo de ciência.» A frase de Vieira parece acentuar primeiro o a sapiência, pela qual se chama sábio* Quem náo vê a
afastamento semântico resultante da generalidade do termo «dócil» quem caberá a palma? Se o meu adversário concorda,
e da maior restrição no termo «douto* regressando depois à comu- vencerei com glória» Se envergonhado confessar que o
nidade da raiz de um e outro. Santo Agostinho parece apoiar-se sábio conhece a sapiência, a minha opinião vencerá.
desde logo na origem comum dos dois termos, visto que ser cdocil»
«ensinável* 6 o caminho para vir a ser «rdouto*.

IIO III
CAPITULO IX
tuosidade corpórea, aquele a quem seguiram para tor-
mento da alma*
18) Mas saiamos de este tribunal litigioso para onde
nenhuma turba nos moleste e oxalá seja a escola de Pla-
20) Mas vejamos quem os afasta fia filosolia, Será
tão, que dizem ter recebido o nome de se segregar do
quem diz: «Ouve, amigo, a filosoJia nao é a sapiência,
povo. Tratemos quanto pudermos, não da glória, objecto
mas o desejo da sapiência; se te lhe dedicares, nao serás
leve e pueril, mas da vida mesma e da esperança da
sábio em vida (só em Deus ela existe e nao no homem)
alma feliz. Negam os Académicos que possa saber-se
mas quando bem exercitado em tal estudo e de alma
alguma coisa. De onde o concluis, homens diligentís-
limpa, facilmente gozarás de ela depois de esta vida,
simos e doutíssimos? «Convence-nos, dizem, a definição
quando deixares de ser homem.» Ou será quem disser;
de Zenão. «Porquê?* pergunto* Se è verdadeira, alguma
«Homens, vinde à filosofia: o fruto é grande; que há
coisa sabe quem a sabe; se falsa, não deve abalar espíri-
mais caro ao homem do que a sapiência? Vinde poisf
tos fortes. Mas vejamos o que diz Zenão : Só pode com-
para serdes sábios e ignorardes a sapiência». Não, dirá
preendesse e perceber-se o que não tenha sinais comuns
Cie, nunca tal direi». Mas é engano, porque é o que em
com o [also. Foi isto, platonizante, que com todas as
ti se encontra. Se assim falasses, todos fugiriam como
tuas forças te fez afastar os estudiosos da esperança de
de um doido; se de outro modo atraísses alguém, farias
aprender, a ponto de eles, com o auxílio de certa pre-
loucos. Mas suponhamos que ambas as opiniões afas-
guiça mental, deixarem de todo a filosofia?
tam os homens da íílosolia. Se a definirão de Zenão
obrigava a dizer alguma coisa perniciosa â filosofia,
19) Mas como nao convenceria, se nada pode ser tal deveria dizer-se o que é para o homem motivo de pena
e só o que tal for pode perceber-se? Se assim é, mais ou o que é para ti motivo de ridículo?
valia dizer que o homem nao pode ser sábio, do que
dizer que o sábio ignora por que vive, como vive e se St) Mas, embora estultos, discutamos o que Zenão
vive; finalmente, o que é de tudo o mais perverso, deli- definiu. Diz ele que pode perceber-se o qne parece tal
rante, e insano, que o sábio pode ignorar a sapiência. que nao possa parecer faiso, É certo que nada mais pode
Que é mais duro? que o homem nao possa ser sábio ou ser percebido, «Concordo, diz Arcesilau, por isso ensino
que o sábio ignore a sabedoria? Se a questão assim que nada pode perceher-se, pois que nada assim pode
posta não fica resolvida, não vale a pena discutir* Se encontrar-se». Talvez tu, e outros estultos; mas por que
assim se dissesse, os homens seriam talvez afastados da não poderá o sábio? E ao próprio estulto não poderias
íilosofia; mas agora devem ser atraídos pelo nome dul- responder, se te pedisse que com a tua penetração mos-
císsimo e santíssimo da sapiência, para que chegando a trasses que podia ser falsa a própria definição de Zenão;
uma idade avançada sem ter aprendido coisa alguma, se não pudesses, tinhas nela algo percebido; se a relu-
persigam com grandes maldições tendo deixado a volup- tasses, não poderias contestar o conhecimento. Por mim,

J12 Ir
3
julgo-a verdadeira e irrefutável. Conhecendo-a, por examinou a evidência das coisas. Suponho-o a falar con-
estulto que seja, sei alguma coisa. Vê-se a contestas sigo, como ás vezes sucede, dizendo: Então, Carnéades,
com a tua agudeza. Usarei um argumento seguríssimo, dirás que não sabes se és homem ou formiga? Ou Cri-
Ou ela é verdadeira oú falsa; se ê verdadeira, estou sipo triunfará de t i ? Digamos ignorar o que entre filó-
seguro; se falsa, algo pode perceber-se, embora tenha sofos se procura; o resto não nos diz respeito; e se eu
sinais comuns com o falso. «Como assim?» dirá ele. hesitar na luz quotidiana e vulgar, evocarei aquelas tre-
Pois Zenão definiu muito bem, e ninguém errou, concorT vas dos ignorantes onde só os olhares divinos podem
dando com ele nisto. Teremos em pouco uma definição ver; e se me virem ofegante e caído, não me entregarão
que contra os que iam argumentar contra a percepção, tos cegos e menos aos arrogantes que têm vergonha de
mostrava ser tal qual devia ser o que pode perceber-se? ser ensinados. Vens na verdade bem preparado, talento
Assim ela é definição e exemplo do que é compreensível i^rego; mas não vês que essa definição é invento de filó-
«Não sei, dirá ele, se é verdadeira; mas como é prová- sofo assente no vestíbulo da filosolia. Se tentares cortá-la,
vel, mostro, seguíndo-a, que nada existe tal qual ela diz o machado de dois gumes voltar-te-á ás pernas. Impug-
que pode perceber-se». Talvez o mostres, excepto para nada ela, não só pode saber-se alguma coisa, mas até o
ela; e creio que vês o que se segue. Se de ela mesma <|ue é muito semelhante ao falso, se não ousares des-
estamos incertos, a ciência não nos deixa, porque sabe- trui-la, E o teu esconderijo, de onde atacas os incautos
mos que é verdadeira ou falsa; logo sabemos alguma que desejam avançar; algum Hércules te sulocará na tua
coisa. Mas nunca serei ingrato, e considero esta defini- caverna, como fez ao semi-homem Caco, e te esmagará
ção exacta. Ou se pode perceber o falso» o que os Aca- sob as ruínas, ensinando-te que há em filosofia alguma
démicos tanto receiam e na verdade é absurdo; ou não coisa que não podes tornar incerto, por semelhante ao
pode conhecer-se o que se parece com o falso. Logo a falso, Passo a outras coisas. Quem nisto insiste, Car-
definição é verdadeira. Mas vejamos o restante. néades, afronta-te, julga-te como morto que posso vencer
como e onde quiser. Se tal não cuida, é cruel, obri-
gando-me a deixar o forte e a lutar contigo em campo
CAPITULO X raso; mal começava a descer, aterrado pelo teu nome,
recuei, e do alto atirei alguma coisa que só os nossos
22^1 Se não erro t isto basta à vitória, mas talvez não árbitros dirão se atingiu o alvo ou que resultado teve.
à plenitude da vitória. Os Académicos formulam duas Mas ê inepto recear. Se bem me lembra, estás morto,
sentenças que pretendo combater. Nada pode perceher-òe, nem Alípio já tem direito de combater pelo teu sepulcro.
e Em nada devemos assentir. Falarei do segundo; vou Deus me ajudará facilmente contra a tua sombra.
agora dizer alguma coisa da percepção.
Dizeis que nada pode perceber-se? Aqui despertou 23) Dizes que em filosoíia nada pode perceber-se.
Carnéades, pois nenhum dormiu menos do que ele, e E para difundir o teu parecer, pensas que te ministrara

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a r m a s contra os filósofos as suas querelas e dissensões, 24} Se os sentidos enganam — diz —como sabes q u e
Como j u l g a r e m o s a contenda e n t r e Demócrito e os físicos '> m u n d o e x i s t e ? Nunca os vossos raciocínios puderam
anteriores sobre o m u n d o único ou os m u n d o s i n ú m e r o s , lestruir a força dos sentidos a tal ponto que julgássemos
se e n t r e ele e o seu herdeiro Epicuro não pôde h a v e r -íada a p a r e c e r ; nem vós o t e n t a s t e s a l g u m a v e z ; t e n t a s -
a c o r d o ? Porque este voluptuoso, q u a n d o permitiu aos tes só persuadir-nos de que o parecer ê diferente do s e n
átomos, como seus servos, isto é, aos corpúsculos q u e Eu t a m b é m , a este todo, seja q u a l for, que nos contém e
lhe a p r o u v e a c h a r nas t r e v a s , q u e não seguissem o seu alimenta, que nos aparece como céu e terra, ou seme-
caminho mas declinassem em vários sentidos, dissipou lhante ao céu e terra, chamo-lhe mundo. Se dizes q u e
todo o seu património em constelações. Mas isto não nada me parece, n u n c a errarei. Só erra aquele que afirma
me respeita, Com efeito se à sapiência compete saber t e m e r ã r i a m e n t e o q u e lhe parece. Dizeis que o falso
a l g u m a destas coisas, o sábio não pode ignorá-lo. Mas pode parecer v e r d a d e i r o aos sentidos, não dizeis q u e
se a sapiência é o u t r a coisa, o sábio sabe-a, despreza o nada lhes parece. Mas toda discussão cessa em q u e vos
resto. Eu, q u e nem sequer me aproximo da vizinhança agrada ter êxito se não só nada sabemos mas até nada
do sábio, algo sei de estas coisas físicas. Sei q u e o m u n d o nos parece. Se negas que o q u e me parece seja o inundo,
é uno ou m ú l t i p l o ; se múltiplo, será em n ú m e r o finito a q u e s t ã o é só verbal pois disse já que chamo m u n d o o
ou infinito. Ensine C a r n é a d e s q u e esta opinião é falsa, que me parece,
Sei também q u e o nosso m u n d o foi disposto por n a t u -
reza dos corpos ou por a l g u m a p r o v i d ê n c i a ; ou que sem-
25} D i r á s : D u r a n t e o sono, m u n d o é o que v ê s ? Já
pre existiu e existirá, ou começou e não a c a b a r á ; ou não
:lísse que seja o q u e for q u e me aparece, lhe chamo
começou no tempo mas terá fim, ou teve começo e terá
mundo. Mas se te agrada dar esse nome só ao que vêem
iim, E muitas o u t r a s coisas físicas a n a l o g a m e n t e sei,
os despertos e os sãos, prova se podes q u e não è nesse
Estas disjuntivas são verdadeiras e inconfundíveis com
mundo que os doidos e os d o r m e n t e s desvairam e dor-
o falso, por semelhança com ele. Mas opta, diz o Aca-
mem. Digo por isso que esta mole de corpos, esta
démico. Não quero. O mesmo é d i z e r : «Deixa o q u e
máquina em q u e estamos, ou d o r m e n t e s ou loucos, ou
sabes, afirma o q u e não sabes». Mas a opinião fica s u s -
despertos ou sãos, é una ou múltipla. Mostra que esta
pensa A n t e s s u s p e n s a que derrubada", mas é c l a r a ; mas
opinião pode ser falsa. Pois se d u r m o , bem pode ser q u e
pode já dizer-se verdadeira ou falsa. P o r t a n t o digo q u e
nada tenha d i t o ; ou se ao dormir, algumas palavras pro-
a sei. T u q u e não negas que tais coisas respeitem à
feri, como sucede às vezes, pode ser q u e não a s t e n h a
filosofia e aíirmas que nada pode saber-se de elas, prova
dito aqui, assim s e n t a d o e a estes o u v i n t e s ; mas não é
que não as sei, Dize q u e estas disjuntivas ou são falsas
possível que isto seja falso. Nem digo que o percebi
ou tem algo comum com o falso, pelo q u e se confundem
por estar acordado. Poderias dizer que eu poderia assim
com ele.
julgar d u r a n t e o sono e portanto poderia a s s e m e l h a r - s e
LO falso. Mas se há um mundo e mais seis, há sete m u n d o s ,

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seja qual for o modo como me afectam, e isto afirmo sem Bem mais modesto é o bode. Não sei como lhe sabem a
receio que o sei. Esta conexão ou aquelas disjuntivas^ ele, mas para mim são amargas. Que mais queres? Mas
prova que possam ser falsas no sono, na loucura ou na talvez o não sejam para alguns homens. Outra vez!
ilusão dos sentidos, e se acordado me lembrar de elas, Acaso eu disse que o eram para todos? Falei de mim
declarar-me-ei vencido. Creio bem patente que as coi- e não o afirmo para sempre. Não é verdade que por
sas que o sono e a demência revelam falsas, pertencem qualquer razão certas coisas nos são ora amargas ora
aos sentidos; mas que três vezes três são nove e qua- doces? O que digo é que o homem, quando saboreia,
drado de números inteligíveis, é verdade ainda que o pode jurar de boa fé que o sabor é suave ou não; e
género humano ressone. Além de que muito poderia nenhuma argúcia grega pode tirar-lhe este conheci-
dizer-se a favor dos sentidos, que não vemos contestado mento. Quem teria a impudência de dizer-me quando
pelos Académicos. Não creio na verdade que devamos me delicio com alguma coisa: «Talvez isso não passe
acusar os sentidos do delírio dos doidos ou das falsida- de um sonho!» Pois eu disse o contrário? Mas até no
des do sono. Se eles informam bem os despertos e sãos, sonho o sabor me deleitaria. Pelo que, o que digo que
que têm com as ficções do espírito dormente ou insano? sei nenhuma semelhança tem com o falso. E Epicuro
ou os Cirenaicos muito mais diriam a favor dos senti-
26) Resta saber se quando falam, falam verdade. Se um dos e não sei que os Académicos os tivessem refutado.
epicurista disser: Não me queixo dos sentidos. E injusto Nem me importa. Até os ajudaria, se quisessem e pudes-
exigir-lhes mais do que podem; vejam os olhos o que sem refutar. O que alegam contra os sentidos não vale
virem, vêem justo E então exacto o que vêem de um contra todos os filósofos. Alguns há que das impressões
remo na água? Inteiramente exacto. Dada a causa por recebidas dos sentidos pelo espírito afirmam poder v i r a
que assim parece, se o remo na água me parecesse opinião, não a ciência. Esta julgam-na contida na inte-
direito, então deveria acusar de engano os olhos, pois ligência, fora dos sentidos. Talvez seja de estes o sábio
não veriam em tal caso o que deveriam ver. Que mais que procuramos. Passemos a outra coisa; pelo que dis-
acrescentar ? O mesmo se diria do movimento das semos, se não erro, em breves palavras o explicaremos.
torres, das aves, de factos inumeráveis. Alguém dirá
que me engano, se assentir. Pois não assintas para além
da convicção de que a coisa te parece assim, e não haverá. CAPÍTULO .XI
decepção. Nem vejo como possa o Académico refutar
quem diga: sei que isto me parece branco; sei que isto 27) Em que é que os sentidos ajudam ou se opõem
me deleita o ouvido; sei que me agrada este aroma; sei a quem trate de moral? Se nada impede os que vêem
que este sabor me é doce; sei que para mim isto é frio. na voluptuosidade o sumo bem do homem, seja o pes-
Dize-me se são amargas em si mesmas as folhas do zam- coço da pomba, ou uma voz incerta ou o peso grande
bujeiro, que o bode devora com gosto. Que impertinente! para o homem e pequeno para o camelo ou muitas outras

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coisas, de dizer que se sabem deleitados pelo que os CAPÍTULO XII
deleita, magoados pelo que os magoa (e não vejo como
desmenti-los) abalarão aquele que encerra na mente o 29) Resta a dialéctica, que o sábio bem conhece e
fim do b e m ? Qual escolhes? Se me perguntares, penso ninguém pode conhecer o falso. Mas se a ignora, não
que está na mente o sumo bem do homem. Vejamos pertence à sapiência o conhecimento sem o qual ele
agora quanto à ciência. Interroga o sábio que não pode pôde ser sábio, e supérfluo é buscarmos se ela é verda-
ignorar a sapiência; mas a mim, ainda q u a n d o tardo e deira ou pode conhecer-se. Alguém me d i r á : — C o s t u -
estulto, é-me lícito e n t r e t a n t o saber que o fim do bem mas, e s t u l t a m e n t e , apresentar q u a n t o sabes. De dialéc-
h u m a n o , pelo qual a vida é feliz, ou não existe, ou existe tica nada a p r e n d e s t e ? Mais do que em qualquer o u t r a
na alma ou no corpo ou em ambos. Convence-me, se parte da filosofia. Primeiro, aprendi nela que são ver-
podes, de que o não s e i ; as vossas conhecidíssimas razões dadeiras as proposições de que me s e r v i ; e além disso
são impotentes. Se não podes, pois não lhe acharás a p r e n d i muitas outras verdades. Contai-as se puderdes.
semelhança alguma com o falso, porque não concluirei «Se há q u a t r o elementos no mundo, não são cinco; se o
que julgo com razão que o sábio sabe quanto há verda- sol é um, não são dois. A mesma alma não pode ser
deiro em filosofia, pois que eu próprio ali achei t a n t a s mortal e imortal. O homem não pode ser simultanea-
verdades ? mente feliz e infeliz. Aqui não pode ao mesmo tempo
luzir o sol e ser noite. Neste momento ou dormimos ou
28) Mas talvez receie escolher, dormindo, o sumo estamos acordados. O que julgo ver ou é ou não é corpo».
bem. Não importa; ao despertar, repudiá-lo-á, sç lhe Estas e muitas outras coisas de longuíssima e n u m e r a ç ã o
desagradar, conservá-lo-á, se lhe agradar. Quem o cen- por ela aprendi que são verdadeiras em si, independen-
s u r a r á por ter visto algo falso em s o n h o ? Ou receará temente dos sentidos. Ela me ensinou que, aceito o ante-
talvez perder no sono a sabedoria, aprovando o falso por cedente nas proposições anteriores, o consequente é
v e r d a d e i r o ? Nem um dormente ousa sonhar que haja necessário. Nos enunciados incompatíveis ou disjuntivos,
na vigília de chamar sábio, a quem o não chama no sono. negados algum ou alguns o restante é confirmado pela
O mesmo pode dizer-se da l o u c u r a ; mas devo passar a eliminação dos primeiros, T a m b é m me ensinou que,
outro assunto. No entanto, não esquecerei uma conclu- feito o acordo nas coisas, não devem discutir-se pala-
são seguríssima. Ou pela loucura se perde a sabedoria v r a s ; quem o fizer, se for imperito, e n s i n e - s e ; se malé-
e já não é sábio aquele que dizeis ignorar a verdade ou volo, deixe-se. Se não pode ensinar-se, avise-se de que
a ciência lhe fica na inteligência, ainda q u a n d o a restante não perca tempo e trabalho i n u t i l m e n t e ; se não obede-
parte da alma imagine como em sonho o que recebeu cer, despreze-se, Q u a n t o a razões capciosas e falazes, é
dos sentidos. simples a regrar se assentam em concessão má, deve
regressar-se ao ponto de partida. Se misturam verdade
e erro, aceite-se o inteligível, deixe-se o inexplicável,

120 121
Se era alguma coisa a verdade se oculta ao homem, não outra razão havia para parecer verosímil dever sus-
tentemos sabê-la. isto e muitas coisas que é inútil lem- pender o assentimento senão o ser verosímil que nada
brar, aprendi na dialéctica. Não devo ser ingrato. Mas pode saber-se* Se assim não ét pois se concede que o
ou o sábio despreza tudo isto ou, se a dialéctica é a pró- sábio conhece a sapiência, nada impede que ele dê
pria ciência da verdade r conhece-a bem para desprezar assentimento à sapiência mesma. Sem dúvida é mais
e deixar morrer de fome o falsíssimo raciocínio: — se é monstruoso o sábio não aprovar a sapiência do que
verdadeiro é falso; se falso, é verdadeiro. Julgo isto ignorá-la,
bastante quanto á percepção, pois quando me ocupar do
assentimento voltarei ao mesmo tema. 31) Ora vejamos esse capítulo de luta entre o sábio
e a sapiência. Que dirá ela, senão que é a sapiência ?
E o sábio, em resposta: Não creio. Mas quem diz à
CAPITULO XIIÍ sapiência não crer que ela o seja? Quem, senão aquele
a quem ela falou e onde habitou, isto é, o sábio ? Pedi-me
30) Passemos agora ás dúvidas de Alípio* E veja- agora que lute com os Académicos! Aqui tendes nova
mos primeiro o que te move com tanta agudeza e cau- luta: o sábio contra a sapiência. O sábio não quere
tela» Se a tua ideia que nos força a conlessar muito assentir na sapiência. Eu espero tranquilo convosco.
mais provável que o sábio conhece a sapiência, se opõe Pois quem não a julga invencível? Mas consideremos
à opinião dos Académicos apoiada em tantas e tão sóli- outro argumento* Ou o Académico vence a sapiência e
das razões (como disseste) de que o sábio nada sabe, é vencido por mim, porque não será sábio; ou será ven*
mais deve evitar-se o assentimento. Por isso prova que eido por ela e nós ensinaremos que o sábio aprova a
sejam quais íorern os argumentos copiosíssimos e subti- sapiência* Assim, ou o Académico nao é sábio ou o
líssimos, sempre é possível, com algum engenho, opor- sábio assentirá em alguma coisa; a não ser que quem
-lhes outros talvez mais fortes* E assim, vencido, o Aca- se envergonhou de dizer que o sábio ignora a sapiência,
démico vencerá. Oxalá seja vencido, pois que nenhuma não se envergonhe de dizer que o sábio não aprova a
outra arte pelasga fará que ele se aparte ao mesmo tempo sapiência. Mas se já é verosímil que a percepção da
vencido e vencedor. Nada pode alegar-se em contrário e sabedoria compete ao sábio, e nada impede de assentir
já me declaro vencido. Mas não se trata de lutar pela ao que pode perceber-se, vejo que é verosímil o que eu
glória, mas de achar a verdade. Basta-me ultrapassar pretendia, isto é, que o sábio deve assentir na sapiência.
de qualquer modo a mole que se opõe aos neófitos da Se perguntares onde encontra ele a sapiência, respondo:
filosofia, e ameaça torná-la em não sei que tenebrosos em si mesmo. Se disseres que ele ignora o que tem, vol-
recessos e não permite a esperança de nela achar a tas ao absurdo de o sábio ignorar a sapiência* Se negas
menor claridade* Se é provável que o sábio já sabe que ele possa encontrar-se, a discussão já não é com os
alguma coisa, nada mais desejo. Com efeito, nenhuma Académicos, mas contigo, e de isso falaremos. Pois que

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eles, quando isto discutem, é certamente do sábio que Pobre rústico! É o provável? E o verosímil? Era o
discutem. Clama Cícero que ele próprio opina mas que queríeis. Ouvis o som dos escudos gregos? O tiro
que se ocupa do sábio. Se vós, rapazes, ainda o igno- foi certeiro; mas com que mão o atirámos! Os meus
rais, decerto lestes em Horlènsio: Se nada é certo, e nada me sugeriram mais forte; nem fizemos, como vejo,
não é de sábio opinar, o sábio nunca aprovará coisa a menor ferida. Voltar-me-ei para o que ministram vila
alguma. De onde se vê que tratavam do sábio nas dis- e campo; coisas maiores mais me pesam do que auxi-
cussões contra as quais nos batemos. liam.

3 0 Julgo pois que a sapiência é certa para o sábio, 34) Pensando demoradamente, aqui no campo, de
isto é que ele a apreende. E portanto não opina quando que modo o provável ou verosímil poderia defender do
aprova a sapiência, pois só aprova aquilo sem cuja per- erro os nossos actos, pareceu-me primeiro, como quando
cepção não será sábio. Eles só afirmam que não deve vendia estas coisas, bem coberto e protegido. Depois,
aprovar-se senão o que pode conhecer-se. Mas a sapiên- circunv^igando-o cauteloso, julguei ver uma entrada por
cia é alguma coisa. Portanto, sabendo a sapiência e apro- onde o erro atacava os desprevenidos. Porque não creio
vando a sapiência, o sábio sabe e aprova alguma coisa. que só erra quem segue trilho errado, mas também quem
Que mais quereis ? Falaremos do erro que, segundo eles não segue o verdadeiro. Suponhamos dois viajantes, que
se evita não assentindo em coisa alguma. Erra — dizem vão para o mesmo sítio, um, crédulo em excesso, outro
— quem aprova não só o íalso mas o duvidoso, ainda resolvido a duvidar de tudo. Chegam a uma encruzi-
quando verdadeiro; mas nada acho que não seja duvi- lhada. O crédulo pergunta a um pastor ou qualquer
doso. Mas o sábio, como dissemos, achou a sapiência. aldeão: — Deus te salve, amigo. Dize-me por favor, por
onde se vai para tal lugar?—Responde-lhe: Por aqui
vais certo. — O crédulo diz ao companheiro: — Vamos
CAPÍTULO XIV por aqui. — O cauteloso ri-se, chaqueia do assentimento
fácil e fica ali enquanto o outro se afasta; e já começa
33) Quereis talvez que eu mude de assunto. Não a achar vergonhosa a situação, quando se aproxima, do
devem deixar-se facilmente razões seguríssimas ao lidar outro lado, um cavaleiro nobre e urbano. Alegra-se.
com homens muito astutos; mas vou fazêlo. Mas que Saúda e pergunta que caminho deve seguir. Diz-lhe o
direi ? O velho assunto de que eles próprios falam. motivo da paragem, para lisongeá-lo pela preferência
Que hei-de fazer, expulso por vós da minha fortaleza? sobre o pastor. Por acaso, ele era dos que o vulgo
Pedirei o auxílio dos mais doutos, para que se, com eles chama Samardacos. Esse homem péssimo procede como
não vencer, talvez me envergonhe menos de ser vencido? costuma, sem qualquer vantagem. — E de lá que eu
Atirei pois com toda a força o dardo gasto e enferrujado, venho. — Enganou-o e afastou-se. Quando é que ele foi
mas se não erro, certeiro. Quem nada aprova nada faz. enganado? Não diz que aprova a informação como ver-

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dadeira mas como provável; parar não é útil nem deco- alheio, não deverias governar o Estado pois que a Epicuro
roso; segui-la-ei. Entretanto aquele que errou, assen- não pareceu que devesse fazer-se. O rapaz seduzirá, por-
tindo rapidamente às palavras do pastor, já descansava no tanto a mulher alheia; se for apanhado, onde te achará
lugar do destino, ao passo que o outro, sem errar, pois para defendê-lo? E se te encontrar, que dirás? Claro
que seguiu o provável, perde-se em não sei que flores- que negarás. Mas se o caso for tão claro que a negação
tas, nem acha quem o oriente, A falar verdade, ri-me seja inútil ? Alegarás decerto, como no ginásio de d u n a s
ao pensar que, segundo os Académicos, erra quem por ou de Nápoles, que não houve erro nem pecado. Não
acaso segue o bom caminho e o que segue o provável, julgou verdadeiro que o adultério não devia ser come-
por montes ínvios e não aclia o lugar procurado, não tido. Seguiu o provável, executou-o; ou talvez não e
parece errar. Para condenar o assentimento temerário, só lhe pareceu que o executava» Mas o estúpido do
eu diria que ambos erram, nunca porém que não erre o marido perturba tudo, litiga pela castidade da mulher,
segundo, Comecei por isso a considerar cuidadosamente com a qual talvez agora dorme e não o sabe. Os juízes
as palavras, actos, e até os costumes de esses homens, então ou desprezam os Académicos e punem um crime
Acudiram-me então tais e tantas razões contra etes, que autêntico, ou seguein-nos e condenam o homem verosí-
já não ria, mas em parte me irritava em parte lamentava mil e provavelmente, de modo que o defensor não sabe
ver homens tão doutos e penetrantes, convictos de tão que fazer. Não poderá acusar alguém, todos dirão que
criminosas sentenças e erros indesculpáveis. erraram, fazendo o que lhes pareceu provável sem dar
o seu assentimento. Passará então de defensor a conso-
lador filósofo. Convencerá facilmente o adolescente, tão
CAPÍTULO XV instruído na Academia, a pensar que foi condenado em
sonho. Julgais que gracejo; juro por quanto há divino
35) Certo não pecam todos os que erram; mas quem que não sei como ele pecou se quem segue o que julga
peca sem dúvida erra ou pior ainda. Se um rapaz os provável não peca. A não ser que digam muito diferente
ouvir dizer: — E vergonhoso errar, por isso nunca deve- errar e pecar e que nos deram preceitos para não errar;
mos dar assentimento; mas quem segue o provável nem mas o pecar não o têm por muito importante,
peca nem erra; basta lembrar que não deve aprovar-se
por verdadeiro o que se apresenta ao espirito ou aos 36) Nada direi de homicídios, parricídios, sacrilé-
sentidos — ouvindo isto, o adolescente irá atentar contra gios, em suma, dos erros e crimes que podem praticar-se
o pudor da mulher alheia* A ti te consulto, M. Túlio. ou pensar-se, que em poucas palavras e o que é mais
Tratamos da vida moral dos adolescentes, que as tuas grave, junto de juizes sapientíssimos, se defendem. Nada
cartas procuram educar e formar* Que dirás, senão que aprovei e portanto nada errei. Como não fazer o que
não julgas provável que o adolescente assim proceda? parece provável? Quem julga que isto não pode per-
Mas para ele é provável. Se devemos seguir o provável suadir-se com probabilidade, leia a oração de Catilina

126 127
que aconselha o parricídio da pátria, que abrange todos juntando à finura e subtileza socráticas na moral, o saber
os crimes. Quem não rirá de isto? Eles próprios dizem das coisas naturais e divinas, que recebera dos que acabo
que na prática seguem o provável, e procuram a ver- de referir e acrescentando-lhes como organizadora e juiz
dade, embora julguem improvável achá-la. Admirável a dialéctica, que ou é a sabedoria ou sem a qual não
monstruosidade! Mas deixemos isto, que nos interessa existe a sabedoria, diz-se que compôs a filosofia perfeita,
menos a nós, ao rumo da nossa vida, ao perigo da nossa de que não temos de falar agora. Basta ao que pretendo
sorte. O que é capital, temeroso, assustador para as que Platão julgou haver dois mundos: um, inteligível,
almas justas, é que se aquela razão é provável, pode domínio da verdade, outro sensível, que conhecemos pela
cometer-se qualquer crime sem ser acusado de infâmia, vista e pelo tacto. Aquele é verdadeiro, este verosímil
nem sequer de erro, contanto que se julgue seguir o pro- e feito à imagem do primeiro. Do primeiro pode gerar-se
vável sem assentir em coisa alguma. E então? Não a verdade límpida e serena na alma que se conhece; do
viram isto? Certamente o viram com o maior cuidado segundo, na alma dos estultos, não a ciência mas a opi-
e prudência; nem eu pretendo de modo algum igualar a nião. Contudo, quanto se faz no mundo pelas virtudes
indústria, penetração, talento, doutrina de M. Túlio; no que chamava civis, semelhantes às verdadeiras, só de
entanto, quando ele diz que o homem nada pode saber, poucos sábios conhecidas, podia apenas chamar-se vero-
se alguém dissesse apenas — sei que assim me parece — símil.
nada teria que responder.
38) Estas e outras coisas análogas, julgo que os suces-
sores as conservaram como mistérios. Ou não são facil-
CAPITULO XVI mente percebidas senão pelos que se limpam de vícios
em vida mais que humana ou quem as conhece não
37) Como é que tão grandes homens pertinazmente peca gravemente querendo transmiti-las a todos. Assim
discutiram que ninguém parecia possuir o conhecimento quando Zenão, príncipe dos Estóicos, depois de muito
da verdade? Ouvi agora o que reservei para o fim, para ouvir e aceitar, veio à escola platónica, então dirigida
mostrar o que julgo ser o pensamento dos Académicos. por Polemon, suponho que foi suspeito e não o julgaram
Platão, o homem mais sábio e erudito do seu tempo, que digno de comunicar-lhe facilmente os decretos sacrosan-
falou de tal modo que tudo quanto disse íoi grande e tos de Platão, antes de esquecer o que aprendera em
não se apoucou, diz-se que depois da morte de Sócrates, outras escolas. Morre Polemon e sucede-lhe Arcesilau,
seu mestre amado, aprendera muitas coisas com os pita- condiscípulo de Zenão sob o magistério de Polemon.
góricos. Pitágoras, não contente com a filosofia grega, Pelo que, quando Zenão se deleitava com doutrina sua
então quási nula ou oculta, impressionado pelas discus- do mundo e principalmente da alma, objecto da verda-
sões de certo Sírio, Ferécidas, acreditou na imortalidade deira filosofia, dizendo que ela é mortal, que só existe o
da alma e nas suas viagens ouviu muitos sábios. Platão, mundo sensível, que nele só o corpo actua e o próprio

128 129
Deus é fogo, Arcesilau, prudentíssima e utilissimamente,
creio eu, vendo irradiar o mal, ocultou a opinião da Aca- tão) estuda sabiamente as acções aprovadas e vendo-as
demia, como oiro que os sucessores haviam de vir a semelhantes a não sei que acções verdadeiras, chamou
desenterrar. E como a turba aceita mais prontamente as verosímil ao que no mundo orienta a acção» Bem sabia
falsas opiniões, e facilmente mas com prejuízo o hábito ele e ocultava prudentemente com que se parecia esse
do corpóreo leva a supor que tudo o é, preferiu aquele verosímil ou provável. Sabe aprovar a imagem quem
homem, de grande saber e penetração deseducar os que conhece o original. Como pode o sábio aprovar ou
sentia indoutos a ensinar os que não supunha dóceis. seguir o verosímil se ignora o verdadeiro'/ Assim
De aqui o que se atribui à Nova Academia e de que as conheciam e aprovavam coisas falsas em que achavam
velhas não tinham precisado, Jóuvável semelhança das verdadeiras. Mas como não
era licito nem fácil mostrá-lo aos profanos, deixavam
aos pósteros e a alguns da sua época, um sitiai do seu
39) E se Zen^lo, alguma vez esclarecido, tivesse
parecer. E impediam, pelo insulto ou pelo escárneo os
visto que só era perceptível o que a sua própria defini-
bons díalectas de discutir as palavras. Por isso Carnéa-
ção abrangia e que nos corpos, a que ele atribuía tudo,
des é considerado chefe e autor da terceira Academia.
tal não podia encontrar-se, teriam lindado tais discus-
sões, ateadas por grande necessidade. Mas Zenão, enga-
nado por falsa ideia da constância, no parecer dos pró- 41) Durou a discussão até o nosso Túlio, já enfra-
prios Académicos, e no meu também, íoi pertinaz, e a quecida, e deu às letras latinas o último influxo intu-
sua perniciosa fé no corpóreo foi sobrevivendo até Cri- mecedor. O pior intu meei mento, a meu ver, é falar
sipo, que lhe dava (e bem podia) grandes forças de difu- sem convicção com tanta abundância e tantos ornatos-
são, se Carnéades mais penetante e meticuloso que os Parece-me, entretanto, que por esse vento íoi dissipado
seus predecessores não se lhe tivesse oposto de tal modo e disperso o célebre platónico Ántíoco. Os rebanhos de
que me surpreende o valor que aquela opinião ainda Epicuro colocaram os seus estábulos ao sol no espirito
pôde manter. Foi Carnéades o primeiro que desprezou dos povos sensuais. Por isso Anti oco, discípulo de
a impudência com que Arcesilau era atacado e infamado Fílon, homem que julgo circunspectíssimo, que já come-
seriamente; não atacou tudo para não parecer vaidoso çava como que a abrir as portas aos inimigos vencidos
mas propôs-se derrubar e vencer os Estóicos e Crísipo. e a trazer a Academia de novo à autoridade e leis de
Platão, como antes tentara Metrodoro, foi — diz-se — o
primeiro que confessou não ser opinião dos Académicos
CAPÍTULO XVII
que nada pode saber-se, mas que tinham tido de com-
bater com essas armas os Estóicos. Antíoco, portanto,
40) Atacado então por todos, pois que se o sábio
como ia dizendo, tendo ouvido o Académico Fílon e o
nada aprova nada fará (homem admirável, na verdade
estóico Mnesarco, entrara como adjutor ou sócio na Aca-
não admirável, pois que fluia das mesmas fontes de Pia-
demia, quase vazia de defensores e de inimigos, levando

130
*&
aão sei que mal das cinzas dos estóicos, que violava 05 CAPÍTULO XIX
segredos de Platão. Mas Filon arrancadas essas armas
resistiu até à morte, e o nosso Túlio destruiu o que res- 43) Tal o juízo provável que vim, conforme pude, a
tava, não consentindo q u e em sua vida se perdesse ou lormardos Académicos. Se é íalso, Dão importa; basta-me
contaminasse o que ele a m a v a ; pouco tempo depois, per- não crer que o homem não pode alcançar a verdade,
dida toda pertinácia e teimosia, o pensamento platónico, }uem aos Académicos dá esta opinião, oiça o próprio
o mais límpido e lúcido da filosofia, alugentou as nuvens Cícero. Pois ele diz que ocultavam a sua doutrina e só
do erro, principalmente em Plotino, lilósolo platónico a revelavam aos que com eles conviviam até a velhice.
tido por tão semelhante a Platão, que se diria terem • teus sabe qual e r a ; eu julgo iosse a de Platão. Mas,
vivido juntos, se o longo intervalo não levasse . crer ara falar-vos claro, seja o que lôr a sapiência h u m a n a ;
que nele reviveu, *ejo que ainda não a possuo* Mas apesar dos meus
rinta e três anos julgo que não devo desesperar de
CAPÍTULO XV 111 ilcançá-la, Desprezando tudo o que os homens cha-
mam bens, resolvi procurá-la. Como as razões dos
42) E assim, quase não vemos agora íilosóíos, senão Académicos me arrastavam, julgo ter-me armado con-
Cínicos, Peripatéticos ou Platónicos; e os Cínicos, é por- tra eles por esta discussão. Ninguém ignora que só
que os deleita a liberdade e licença da vida. Quanto ã aprendemos pelo peso da autoridade ou da razão. Para
erudição e à doutrina, e aos costumes, que governam a mim é certo que nunca me afastarei da autoridade de
lima, alguns homens penetrantíssimos e muito cuidado- Cristo, que tenho por superior a todas. Quanto ao que
sos ensinaram, em suas discussões, que só os imperitos exige raciocínio subtil, pois que desejo ardentemente não
e os desatentos podiam julgar discordes Aristóteles e só crer mas compreender a verdade, confio poder encon-
Platão; mas creio que só discussões multi-seculares trar entre os platónicos o que não repugne aos nossos
purificaram uma disciplina de verdadeira íilosofia. Não mistérios,
a íilosofia de este mundo, justamente abominada pelos
nossos mistérios mas a do inteligível a que esta razão 44^ Então, vendo terminado o discurso, os rapazes,
BUbtiiíssima nunca teria atraído as almas, cegas pela embora já íosse noite e se tivesse escrito alguma coisa
treva multiforme do erro e esquecidas na sordidez cor- á luz de uma candeia, esperavam atentos a resposta ou
pórea, se o sumo Deus clemente não tivesse declinado a promessa de resposta de Alipio.
e submetido ao próprio corpo humano a autoridade da Alipio — Nunca tive maior desejo do que o de ficar
inteligência divina, para que elas pudessem, excitadas vencido nesta discussão, e julgo que esta alegria não é
não só pelos preceitos mas pelos factos, concentrar-se e 30 minha. Partilhá-la-ei convosco, meus companheiros
contemplar a pátria, sem o conflito das discussões. 3U juízes nossos. Talvez de esta maneira desejaram os
Académicos ser vencidos pela posteridade. Que pode-

132 133
riam dar-nos mais jucundo pela graça, mais ponderado
pela gravidade das sentenças, mais pronto pela benevo-
lência e mais perito pela doutrina do que este discurso?
Nunca admirarei demais ver tratadas tão delicadamente
as asperezas, tão fortemente as diiiculdades, tão modera-
damente as convicções, tão lucidamente as obscuridades.
Companheiros, convertei a espectativa da minha resposta ÍNDICE
na segura esperança de vos instruirdes comigo. Temos Pág.
guia para os arcanos da verdade, que Deus já nos mostra. 5
Prefácio
45) Aqui eu, vendo no rosto de eles que se julgavam 5I
LIVRO i
defraudados pela falta de resposta de Alípio, disse-lhes
rindo: i. a discussão ^
— Invejais os meus louvores ? Mas como já não receio .. . . . 61
2.a discussão
Alípio, por estar seguro da sua constância, instruir-vos-ei ,- . . . 65
contra ele, para que me agradeçais, visto ele ter iludido 3«a discussão
a vossa esperança. Lede os «Académicos» e quando LIVRO n '
achardes (nada mais fácil) Cícero vencedor de estas baga- j. ~
r.a discussão . . . . 80

telas, obrigai-o a defender este meu discurso contra aque- a.a discussão
las razões invencíveis. Esta dura mercê te dou, Alípio, 3«a discussão
em paga do teu falso louvor.
Riram-se; e concluímos assim a longa discussão, não • . • 9 7
LIVRO m
sei se com firmeza, mas com moderação e rapidez maio-
3. 98
res do que eu esperava. i. a discussão 7

,. . . . . . 1-03
a.a discussão

135
*34

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