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RESENHA

KNIGHT, Michael Muhammad. Muhammad: Forty


Introductions. Nova Iorque: Soft Skull, 2019.

As Quarenta Introduções a Muhammad


de Muhammad Knight
FELIPE FREITAS DE SOUZA*

Michel Muhammad Knight é perspectiva


provavelmente um dos escritores, islâmica, sobre magia, uso de ayahuasca
artistas e acadêmicos muçulmanos mais e William Burroughs. Seu livro
polêmicos na contemporaneidade: o Muhammad: Forty Introductions,
jornal The Guardian o descreveu como publicado pela Soft Skull, é sua obra
o “Hunter Thompson da literatura mais recente e surpreende pelas
islâmica”1 devido a sua obra The referências abundantes e apreensões
Taqwacores2, onde descreve uma pouco ortodoxas do Islam.
hipotética cena musical islâmica punk. Para aqueles que interpretam o Islam
Seu envolvimento com a banda punk enquanto algo único, monolítico e
Kominas, com músicas como Sharia estático, a obra contribui proficuamente
Law in the USA (“Lei Sharia para os
para destruir tal estereótipo. Diversas
Estados Unidos”)3, também é digno de
leituras são mobilizadas por
nota, uma vez que Muhammad Knight
Muhammad Knight ao explorar as
auxiliou no desenvolvimento desse
narrativas islâmicas elencadas, o que
Islam Punk (expressão atribuída ao
proporciona uma perspectiva
autor) que havia imaginado. Todavia,
caleidoscópica da religião ao leitor sem
esses relatos não devem obscurecer o
maiores conhecimentos sobre o Islam.
fato de que o autor é Ph. D em Estudos
O livro se propõe a ser um arba’in
Islâmicos pela Universidade da Carolina
(‫)ﺃﺭﺑﻌﻴﻦ‬, um subgênero da literatura de
do Norte e atualmente é professor no hadith (‫ﺣﺪﻳﺚ‬, pl. ahadith, ‫)ﺃﺣﺎﺩﻳﺚ‬, e
Departamento de Filosofia da
compõe-se enquanto uma coletânea de
Universidade Central da Flórida, tendo
quarenta narrativas sobre a vida do
realizado pesquisas, em uma
Profeta Muhammad. Tal gênero literário
possui enquanto seu maior expoente Os
1
Extraído de WHITAKER, Brian. Punk Quarenta Ditos (‫ﺍﻻﺭﺑﻌﻮﻥ ﺍﻟﻨﻮﻭﻳﺔ‬, “Os
Muslims. Quarenta Nawawitas”) do Imam Abu
https://www.theguardian.com/commentisfree/20 Zakaria al-Nawawi (1233-1277 E.C.),
07/mar/19/sexdrugsandprayer. Acesso em 23 de
Julho de 2019.
obra extremamente difundida por sua
2
Junção das palavras taqwa (‫ﺗﻘﻮﻯ‬, “piedade” e síntese (sunita) de aspectos da religião
“consciência de Deus”, termo polissêmico que islâmica. Qualquer arba’in tem como
ocorre mais de 250 vezes somente no Alcorão) e mote um tema: seja a apresentação da
hardcore (gênero musical do punk rock). religião, sejam relatos divinos (hadith
3
Paródia de uma música da banda punk Sex
Pistols, Anarchy in the UK.
qudsi, ‫)ﺣﺪﻳﺚ ﻗﺪﺳﻲ‬, sejam narrativas sobre

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os companheiros do Profeta, sejam mundo em que estão. Os ahadith são
relatos de diferentes narradores ou de utilizados pelos intérpretes corânicos
um único narrador, suas possibilidades enquanto elementos-chave para
são virtualmente infindáveis. É por um compreender a Revelação, de maneira
desses motes que Muhammad Knight que tradicionalmente é impossível
compõe o seu próprio arba’in. estudar o Islam e o Alcorão sem estudar
o Profeta e o contexto social, histórico,
Proposto enquanto ferramenta didática político e religioso no qual se inseriu.
para contemplar sua docência em As quarenta introduções são, portanto,
Estudos Islâmicos, o livro reúne quarenta reflexões inter-relacionadas
diversos relatos da vida do Profeta sobre o Islam.
Muhammad com a intenção de
apresenta-lo para o leitor em suas Para além de focar na figura individual
diferentes imagens possíveis: cada um do Profeta, o contexto no qual ele
dos capítulos aborda um hadith, cada surgiu, viveu, modificou e ainda
um deles escolhido como uma modifica é explanado em cada uma das
introdução à vida do Profeta. Assim introduções, além de trazer questões
como ocorre com outras personalidades atuais. O contexto se coloca como de
nas Histórias das Religiões, Muhammad relevância central para compreendermos
também possui diversas imagens e o papel da família do Profeta no
representações, não sendo uma figura misticismo islâmico, ou a importância
estática, mas que apresenta uma miríade de ‘Ali ibn Abi Talib para sunitas e
de facetas que variam pelas tradições xiitas, ou mesmo a própria geração de
que se recorrem para caracterizá-lo. relatos sobre o Profeta por aqueles que
Uma vez que não existe no Islam uma se encarregaram de fazê-lo. É por meio
autoridade central com o domínio desses relatos que perspectivas
totalitário da religião, não existe um islâmicas são explicitadas.
monopólio pelas representações do
Profeta, mas sim diferentes Algo que o autor não evita são as
caracterizações que, no limite, pode ser questões polêmicas, abordando, dentre
uma para cada fiel. É no encontro outras: a idade de casamento de Aisha
complexo entre o “conjunto de bint Abu Bakr e a tendência orientalista
representações coletivas” e “escolhas de em ignorar absolutamente toda sua
leitura pessoais” que reside a presente história enquanto líder política e
obra. intelectual da comunidade islâmica em
seus primórdios; a questão da
Os ahadith compilados têm como homossexualidade no capítulo Queering
objetivo abordar quem é o Profeta Muhammad, onde discute
Muhammad em uma perspectiva homoafetividade e muçulmanos
islâmica. A crítica do autor é de que LGBTQ; as representações imagéticas
muitas vezes as pessoas procuram do Profeta, com destaque para a
compreender o Alcorão sem representação de Muhammad enquanto
compreender o Profeta Muhammad, um homem negro; o uso de narrativas
quando para praticamente todos os falsificadas e as disputas de poder
muçulmanos (com exceção do grupo envolvendo os registros canônicos; as
Quraniyah, ‫ﺍﻟﻘﺮﺁﻧﻴﺔ‬, que rejeitam os questões envolvendo a família do
ahadith) é necessário realizar esse Profeta e como sunitas e xiitas
movimento do Profeta para o Livro, do significam seus familiares, com
Livro para o Profeta, de ambos para o destaque para Fátima, filha do Profeta, e

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seu relativo apagamento dos relatos Muhammad foi compreendido por
sunitas; etc. Além da literatura islâmica diversos ângulos, uma vez que se coloca
clássica e da elaborada pelas minorias, enquanto exemplar e figura de
Deleuze e Guerra nas Estrelas estão orientação para os muçulmanos: seja
presentes, reflexões sobre feminismo enquanto guerreiro, comerciante,
islâmico e sobre o gênero de Deus marido, líder religioso, amigo, místico,
também. A obra dialoga com etc., cada conjunto de relatos que se faz
conhecimentos tradicionais, sobre ele pode ter como
contemporâneos, populares, obscuros: é intencionalidade apreendê-lo sob este
uma pletora de como muçulmanos ou aquele aspecto. Muhammad Knight
pensam, sonham e vivem o Profeta. então procura responder à questão de
Em todos os capítulos, Muhammad como devemos pensar sobre o Profeta,
Knight mobiliza fontes sunitas, xiitas, compartilhando de sua relação íntima
sufis, de grupos islâmicos com ele – o autor tornou-se muçulmano
marginalizados e minoritários, o que muito antes de escrever essa obra.
acaba sendo, por um lado, um possível Se o leitor objetiva aprender sobre o
problema ao elencar tais fontes como se Islam e sobre seu Profeta, este livro é
tivessem o mesmo peso na história do um ponto de partida possível.
pensamento islâmico ou para as Relacionando observações pessoais,
comunidades existentes atualmente. Por pesquisa acadêmica e religião,
outro, apresenta tais leituras e suas Muhammad Knight oferece um relato
pluralidades, recusando a fornecer um adensado e particular de um Profeta
ponto final sobre a vida do Profeta: que, mais do que um indivíduo, é um
interpretar Muhammad e conhecê-lo é evento a ser compreendido.
um exercício que cada estudioso do Muhammad, o Profeta, foi um humano;
Islam, muçulmano ou não, continua e não teve estatuto de divindade nem de
continuará realizando até o fim da vida. manifestação corporal de divindade, não
O volume de textos é intimidador, as é um elemento de uma trindade
possibilidades interpretativas são politeísta, não é uma criatura sobre-
imensas, a tradição teórica é riquíssima. humana. Quem o Profeta é ou pode ser
Mesmo um escritor experiente como no coração e na prática de cada fiel é
Muhammad Knight encontra uma série uma questão de absoluta relevância e
de limitações em um exercício que se estende desde o século VII da
interpretativo de tal magnitude quanto Era Comum até os dias de hoje.
apresentar o Profeta em sua
complexidade.
Recebido em 2019-07-24
A reunião de elementos pressupõe uma
Publicado em 2019-09-11
fragmentação prévia. O Profeta

*
FELIPE FREITAS DE SOUZA é Mestre em Educação Tecnológica (CEFET - MG),
membro do GRACIAS (Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes) e Divulgador do Islam
(Instituto Latino Americano de Estudos Islâmicos).

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