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Queermuseu: Os perigos da censura e do avanço

conservador para a democracia


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September 13, 2017

Detalhe de ‘Cena de interior II’, de Adriana Varejão, 1994; obra estava em exposição na
mostra ‘Queermuseu’ (Divulgação)

Neste último domingo, dia 10 de setembro de 2017, um novo dissenso emergiu nas
redes sociais brasileiras após o cancelamento da exposição Queermuseu –
cartografias da diferença na arte da brasileira. A mostra, que reunia 270 trabalhos
de 85 artistas – dentre os quais constam Adriana Varejão, Alfredo Volpi, Alair
Gomes, Candido Portinari, Flávio de Carvalho e Ligia Clark, todos reconhecidos e
celebrados para além das fronteiras nacionais, em virtude da relevância de sua
produção artística –, deveria estar aberta ao público entre os dias 15 de agosto e 8
de outubro, mas foi encerrada pelos responsáveis do espaço Santander Cultural
após protestos promovidos pela sociedade civil e alguns grupos organizados,
entre eles associações religiosas e o MBL (Movimento Brasil Livre).

O Santander Cultural, que inicialmente havia apresentado o evento como “uma


exposição queer, que busca não ditar ou prescrever regras, discute questões
relativas à formação do cânone artístico e a constituição da diferença na arte”,
chegou a emitir, no mesmo dia em que encerrou as atividades da mostra, uma
nota de retratação pública, na qual pondera que “[Nós, o Santander Cultural]
ouvimos as manifestações e entendemos que algumas das obras da exposição
Queermuseu desrespeitavam símbolos, crenças e pessoas, o que não está em linha
com a nossa visão de mundo”.
Em meio a uma avalanche de postagens comemorativas em sua página oficial no
Facebook, o MBL afirma que “sob o pretexto de promover a igualdade e tolerância
em prol do movimento LGBT, [o Santander Cultural] expôs pedofilia, zoofilia e
ofensas à cultura e tradição cristã ocidental”. Em contrapartida, alguns setores da
classe artística e da academia, bem como diversas organizações vinculadas à
defesa dos direitos LGBTs estão reagindo e se posicionando nas redes sociais
contra a decisão de encerramento da exposição, chegando a criar um ato em
repúdio, em frente ao imóvel que abriga o espaço Santander Cultural, “em defesa
da liberdade de expressão artística, das liberdades democráticas e contra os
retrocessos políticos que limitam o exercício de cidadania da população LGBTT”.

Uma vez esclarecida a polêmica que se encerra, cabe destacar que a censura, para
além da estrita defesa da moralidade e dos bons costumes – a interdição sobre a
sexualidade atravessou todos esses âmbitos censórios, sendo defendida ou
institucionalizada durante a maior parte dos últimos cinco séculos de formação
da sociedade brasileira – incidiu também para a suposta preservação da ordem
política, da religiosidade e da organização social. No Brasil a censura existiu desde
os anos 1940 e a partir daquele período esteve sempre ativa, embora funcionando
de maneira diferenciada até o fim da ditadura civil-militar. Mesmo hoje, embora
abolida pela Constituição Federal de 1988, muitos entendem que ela permanece
assombrando a produção artística no país, ainda que de maneira menos
escancarada que nos períodos ditatoriais.

Embora a Censura, enquanto órgão institucional formalmente legitimado, tenha


sido extinta na segunda metade da década de 1980, a perseguição à sexualidade
por argumentos de ordem moral ainda vigora com bastante força no país.
Registre-se, que nos anos 1970, a censura foi paulatinamente se desviando das
questões políticas para incidir de maneira mais contundente sobre o conteúdo
supostamente sexual e claramente moralista das obras de arte no país, fossem
filmes, músicas, literatura ou instalações artísticas. Conquanto as Forças Armadas
e a Igreja Católica não possam mais ser apontadas como as organizações
diretamente catalizadoras dessas empreitadas tradicionalistas, visto que vêm
cedendo espaço hoje aos interditos promovidos por outros movimentos, a agenda
pautada por essas instituições, de ditames de uma moral sexual ainda bastante
conservadora, permanece sendo promovida pela ação de diferentes grupos,
incluindo alguns que se identificam como de posicionamento econômico liberal.

É precisamente nesse contexto que se insere a polêmica em torno da exposição


Queermuseu, o que nos leva a analisar questões culturais importantes, não apenas
no tocante à censura, como também ao próprio conceito de arte. Em nossa
“atualidade desconfiada de si própria”, não ignorar as encruzilhadas dos tempos e
dos espaços que se apresentam corresponde a um posicionamento político – o de
esclarecimento do sentido de quem quer agir, seja na cultura, na arte ou na
educação, aponta José Carlos de Paiva. Assim, propomos um debate sobre limites
que vêm sendo impostos ao direito e à arte, problematizando nossa atual
dinâmica social, posta como democrática, para visibilizar seu alcance e as formas
de exclusão resultantes dela.

‘MailArt – Gay-I-Vota’, de Rogério Nazari;


obra fazia parte da mostra ‘Queermuseu’
(Divulgação)

O que é arte? A arte representa, comunica ou celebra aquilo que retrata? Há


limites ao artista? O objeto artístico traduz a vontade do artista? As teorias da arte
nos apresentam várias correntes na busca por defini-la. De acordo com o
representacionalismo, a arte representa/imita a realidade (Platão e Aristóteles);
para o formalismo, a arte é uma forma significante que provoca emoções estéticas
no espectador (Clive Bell); já a Teoria Institucional de George Dickie defende que
arte é somente aquilo que os entendedores de arte assim o denominarem; e o
expressivismo (Collingwood) entende que a arte transmite a emoção do artista.

Mas, como todo conceito, o de arte também mudou ao longo da história. O que se
entende por arte hoje não é o mesmo que se entendia na Grécia ou na França
iluminista. Falar da produção artística hoje é falar da arte contemporânea, que
pretende se desvencilhar dos conceitos da história da arte, ou seja, daquilo que
nos foi transmitido como “modelo” de arte. Pensar assim seria legitimar apenas a
arte consagrada na história e deslegitimar todo tipo de arte atual.

A arte contemporânea, que vem se desenvolvendo desde a segunda metade do


século 20, tem uma cena própria, nem sempre de fácil compreensão, porque nos
mostra o desconhecido, o diferente. “É por isto que a arte contemporânea causa
constantemente estranheza. Ela nos faz ver, pensar, nos apresenta as coisas de
modo insuspeito, inusitado”, nos lembra Pedro Leal ao explicar a teoria do
filósofo Henri Bergson. Assim, a arte da contemporaneidade é uma arte que
rompe com o que está dado, possibilitando uma nova forma de sensibilidade e de
visibilidade que nos mostra algo novo, causando um tipo de incômodo ou
estranheza

É nesse sentido que podemos compreender a ruptura estética tratada por Jacques
Rancière. Para esse autor, a arte é política justamente porque provoca um
dissenso ao produzir novas formas do sensível e do visível, contra aquilo que é
consenso. A arte reconfigura a experiência comum. Ao criar, o artista expressa
sensibilidades para além da racionalidade e da lógica e nos coloca em contato
com uma expressão outra, sensível. A arte é potência. “A arte abre nossa
consciência até o novo, até a possibilidade de um mundo distinto em que todas e
todas possamos exercer nossa capacidade de transformação dos espaços de
relações e interações”, como afirma Joaquín Herrera Flores.

Nessa perspectiva, podemos afirmar que a arte não é a representação de uma


forma idealizada pelo artista, até porque o objeto artístico se desprende do seu
criador, tem autonomia. Para Deleuze e Guattari, a arte é “independente do
criador, pela autoposição do criado, que se conserva em si. O que se conserva, a
coisa ou a obra de arte, é um bloco de sensações, isto é, um composto de perceptos
e afectos”, que não são percepções e afeições do artista, mas produtos da arte que
têm vida própria, ou seja, existem para além do criador.

Em outras palavras, é próprio da arte o traço da autonomia, que, para além da


distinta capacidade de provocar debates sobre o status quo e, com isso, polêmicas,
é atravessada de uma necessária subjetividade que a constitui. Tal subjetividade
compreende não apenas a do artista, mas a dos observadores, críticos,
pesquisadores, enfim, de todos os agentes que, em contato com objeto artístico,
ressignificam a arte ao interpretá-la e dela se reapropriam a partir das mais
diversas referências simbólicas através do tempo e espaço.

Do mesmo modo, um objeto de arte não é celebratório daquilo que apresenta.


Guernica (1937), de Pablo Picasso, não está aplaudindo a guerra, assim como sua
gravura Dora e o minotauro (1936) não está estimulando que as mulheres sejam
acariciadas ou devoradas pelos homens. Uma letra de música que diz “largo
mulher e filhos” não está incitando todos os homens a deixarem seus filhos e
mulheres, tampouco um filme com cenas de corpos empilhados retratando o
holocausto significa apologia à morte de judeus. De fato, o que os objetos artísticos
fazem é apresentar tais realidades, sejam históricas ou imaginárias.

Tudo isso nos faz refletir sobre a enxurrada de ataques às obras de arte expostas
no Queermuseu, partindo de um discurso que desqualifica a arte contemporânea
por seu conteúdo, ao exemplo do que fez Hitler ao taxar algumas obras de “arte
degenerada”. A tela Cena do interior II, de Adriana Varejão, ao retratar cenas do
interior do Brasil, não faz apologia à zoofilia, porque o objeto artístico não é um
aplauso ao que nele está retratado. A obra que traz a inscrição “criança viada”
não é uma defesa de que toda criança deva ser “viada” – apesar desse fato ser
uma realidade possível –, porque, ao contrário da propaganda e do marketing, a
arte não tem a pretensão da transmissão de uma mensagem a ser universalmente
introjetada.
‘Travesti da lambada e deusa das águas’, de
Bia Leite; obra fazia parte da mostra
‘Queermuseu’ (Divulgação)

Como vimos, com sua autonomia e subjetividade, a arte visibiliza as estruturas


hegemônicas – e, consequentemente, aquilo que é marginal a elas –, estimulando
o pensamento inovador. Ao romper com o que está posto instaura nova forma de
sensibilidade e de visibilidade, mas não tem uma finalidade específica, nem
intencionalidade celebratória ou de defesa do que está retratado. Pela mesma
razão, as obras que trazem referências religiosas não estão vilipendiando uma
determinada religião – e nesse ponto específico, vale lembrar que até a doutrina
penal clássica, ao discorrer sobre o art. 208 do Código Penal, traz como vilipêndio
o objetivo específico de desonrar determinada religião, “[…] ofender o sentimento
religioso” (BITENCOURT, 2009), e esse propósito doloso não está nas obras em
questão, porque não há intenção dolosa em nenhum objeto artístico. A arte é
expressão de uma sensibilidade nova que se desgarra do seu criador. Não há dolo
na arte.

Chantal Mouffe chama a atenção para o fato de que as práticas artísticas têm um
papel essencial na esfera pública, uma vez que elas são de extrema importância
na mobilização das paixões e das formas coletivas de identificação. Nesse sentido,
de acordo com a autora, não podemos resumir o debate sobre os mecanismos de
exclusão da esfera pública a uma conclusão racionalista do fracasso da máxima
liberal de igualdade e liberdade para todos. Ela aponta que deve haver um
compromisso com a existência de uma esfera pública, que deve ser o espaço da
legitimidade do debate sobre o legítimo e o ilegítimo. Ora, o papel formador do
artístico na esfera pública – tanto no âmbito estético quanto político – faz com que
a reflexão sobre a democracia e seu futuro seja indissociável das práticas
culturais.

Mas o pensamento moderno tem como base a razão purificada e


descorporificada. Descartes, reconhecido como fundador da forma moderna de
epistemologia, “orientava-se por uma análise do conhecimento genuíno como se
este fosse alcançado livre de influências e determinações externas”, como lembra
Helen Longino. Esse afastamento do sujeito do corpo e a crença numa razão pura
estão presentes em todas as formas de conhecer e todos os conhecimentos. Em
termos de cultura, “temos, portanto, um complexo repertório de relações e
significações estandardizadas que, como um rio que deságua em si mesmo,
legitima como cultura um patrimônio significativo altamente intolerante”,
segundo Luis Alberto Warat. Isto é, somente o que segue uma racionalidade
universal e hegemônica é aceito e recepcionado como cultura, o que explica
horror dos grupos organizados ao se depararem com a exposição Queermuseu.

O feminismo, ao questionar como o conhecimento adquiriu gênero e como pode


ser desprovido de gênero, e como os conceitos de verdade, racionalidade,
objetividade, certeza, entre outros, devem ser repensados livres de sexismo,
demonstra que aquele “sujeito purificado que emerge da negação do corpo é um
sujeito europeu, masculino e branco”, afirma Helen Longino. É essa ideologia
masculina inconsciente que legitima epistemologicamente o conhecimento que
disfarça a subjetividade de objetividade, e leva a crer que a neutralidade seja
possível.

Em oposição a tais noções essencialistas da identidade e da subjetividade,


utilizadas por toda política comprometida com os fundamentos do projeto
iluminista, Mouffe defende que a política democrática consiste em transformar o
antagonismo social em agonismo, quer dizer, transformar a luta entre inimigos
em uma luta entre adversários. Esta mudança de perspectiva significa o respeito
ao direito do outro (adversário na luta para alcançar o poder através da
hegemonia) a ter e exprimir suas opiniões.

Em tal cenário, a arte, assim como a educação, ainda que não deixe de participar
da formação utilitarista e reprodutora dos saberes e valores hegemônicos,
possibilita a desconstrução das narrativas dominantes a partir da experienciação
das inquietudes e da formação do discernimento. Por isso, Mouffe defende as
práticas artísticas de intervenção política como exemplos de intervenções
agonistas no espaço público que contribuem para revelar o dissenso na
hegemonia dominante.

É nesse sentido que a exposição em pauta se apresenta como um processo


cultural de reação ao pensamento hegemônico do que é arte e do que é cultura.
Para Herrera Flores, os processos culturais são produções e produtos culturais
que reagem frente a uma realidade que nos determina. Ou seja, são maneiras
diferentes de ver e representar o mundo que buscam fissurar os processos
ideológicos. No caso específico da Queermuseu, é um processo cultural que busca
usar a liberdade de padrões de gênero e de sexualidade para questionar esses
mesmos padrões.
‘A’, Not ‘I’, de Cibelle Cavalli Bastos; obra fazia
parte da exposição ‘Queermuseu’
(Divulgação)

Lembremos que o final do século 20 e o início do século 21 é marcado pela
ascensão de um movimento que se afirma enquanto nova modalidade de fazer e
de pensar as artes. Como enfatiza Érica Sarmet, se antes os debates sobre
pornografia e obscenidade pertenciam à esfera da moral e dos bons costumes,
nesta era, que a autora define como pós-pornográfica, estamos diante da alocação
desse discurso na esfera política. Esse momento é a última fase do debate sobre a
pornografia, posto que consiste no reconhecimento de que os debates travados
são sobre poder, acesso ao mundo circundante e controle sobre os corpos e as
mentes.

A pesquisadora afirma que estas produções/intervenções se aproximam do


feminismo na crítica à arte tradicional, sexista, produzida por e para um olhar
exclusivamente heterossexual e masculino. No entanto, a arte queer se alinha aos
pressupostos teóricos dos estudos queer e feministas contemporâneos,
rechaçando a ideia de que há uma sensibilidade feminina inerente ao gênero.

Nesse passo, a arte queer tende a confrontar, desconstruir e até mesmo redefinir
os imaginários sexopolíticos vigentes, a partir da representação de corpos,
gêneros e identidades sexuais historicamente marginalizadas, além do
desmantelamento de estéticas e linguagens criadas na e pela arte tradicional,
branca, capitalista e heterossexualmente orientada.

Nesta arte queer, “os discursos sobre a ressignificação dos códigos de gênero vão
ao encontro de reflexões acerca dos limites entre corpo e máquina, tecnologia e
cotidiano, privado e público, indivíduo e sociedade, pertencimento e território”,
afirma Érica Sarmet. Dessa forma, o que parecia uma atuação estratégica na seara
da política de gênero dos anos 1990, com o desafio às demarcações de uma
visibilidade que confunde o feminino e o masculino em contextos nodais, pode (e
deve) progressivamente dar espaço a uma arte queer contemporânea, cujo desafio
“é expressar a pluralidade de feminilidades e masculinidades para perturbar os
corpos dos espectadores através dos corpos visíveis na tela”, segundo Sarmet.
Mariana Baltar, ao discorrer sobre os “feminismos em tensão, da pedagogia
sociocultural a uma pedagogia dos desejos”, ensina que “um olhar mais político
para as narrativas associadas ao, por exemplo, cinema queer (o ‘novo’ e o
‘contemporâneo’) percebe o investimento que tais obras fazem em preencher as
telas de corpos dissonantes que perturbam inclusive (e sobretudo) o que já se
assimilou como presenças gays e lésbicas aceitáveis”.

Essa visibilização do dissenso provocada pela narrativa queer acarreta o


reconhecimento da impossibilidade da imposição de um consenso sem exclusão,
sendo necessário manter viva a controvérsia inerente à democracia. E é
exatamente este embate de posições políticas que caracteriza uma democracia
salutar – “a tarefa primordial da política democrática não é eliminar as paixões da
esfera do público, de modo a tornar possível um consenso racional, mas mobilizar
tais paixões em prol de desígnios democráticos”, afirma Mouffe. Sem, é claro,
perder de vista o horizonte do respeito aos direitos do adversário, caminho
imprescindível para uma democracia pluralista. Nesta lógica, consagra nossa
Constituição Federal de 1988 em seu art. 5º, IX: “é livre a expressão da atividade
intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura
ou licença”.

De maneira oposta, e em afronta à Constituição, a atuação das pessoas e grupos


organizados contra a mostra Queermuseu, da maneira truculenta como se deu, e
resultando no cancelamento da exposição, configura um processo ideológico
patriarcal, pois buscou reafirmar o privilégio do discurso patriarcal moralista e
de uma cultura branca e de classe média, em detrimento de vozes invisibilizadas,
que passam a ser consideradas como “inadequadas” e são criminalizadas. E “o
processo ideológico bloqueia o circuito de reação cultural para impedir formas
distintas de reação cultural, impedindo o processo de humanização da natureza
humana”, afirma Herrera Flores. Em razão de a exposição explicitar a liberdade
sexual e questionar padrões de comportamentos, a racionalidade hegemônica se
escandalizou, pois, como afirma Warat, “a sexualidade é o domínio privilegiado
das regras, do controle social e da repressão”, sendo a atuação dos manifestantes
uma nítida tentativa de contenção de corpos pelos bons costumes e valores
cristãos.

Mas esse caso da exposição Queermuseu não está desacompanhado. Na esteira de


tal dinâmica de dominação e invisibilização dos grupos contra-hegemônicos,
também podem ser entendidas como processos ideológicos as recentes atuações
da Prefeitura do Rio de Janeiro, por exemplo. Não estamos tão distantes de
episódios que censurem manifestações culturais ou, com mais desfaçatez,
desassistam essas manifestações, havendo como pano de fundo argumentos
burocráticos, mas que se teme – não sem razão – que sejam, na realidade,
teocráticos.
‘Cruzando Jesus Cristo com Deusa Schiva’, de
Fernando Baril; obra estava em exposição na
mostra ‘Queermuseu’ (Divulgação)

Já no início da gestão do atual prefeito do Rio, Marcelo Crivella, bispo licenciado


da Igreja Universal, tivemos o episódio da (não) entrega das Chaves da Cidade
pelo Prefeito ao Rei Momo, ação tradicional que dá início à abertura oficial do
Carnaval no Rio de Janeiro. Por meio de informações desencontradas, a cidade
permaneceu à espera de representantes da Prefeitura por mais de duas horas.
Com justificativas não muito consistentes, o secretário de Turismo e a secretária
de Cultura (Marcelo Alves e Nilcemar Nogueira), com mais de duas horas de
atraso, cumpriram a formalidade e entregaram as chaves ao Rei Momo.

A entrega poderia ser analisada como um acontecimento isolado, afinal, havia a


gripe da esposa do prefeito, devidamente justificada, a socorrê-lo pela ausência.
Mas o Rio de Janeiro, cidade que tem a ocupação das ruas e praças por eventos
culturais como uma atração permanente, menos de três meses após o Carnaval,
obteve a regulamentação de um novo Decreto (Decreto nº 43.219/2017), que
dispõe sobre a concessão de autorização para a realização de eventos e produções
audiovisuais, seja em espaços públicos ou particulares, através de um sistema
digital, apenas pela internet.

Este Decreto tem sido alvo de questionamentos dos artistas que desenvolvem
eventos nas praças e ruas da Cidade, principalmente os vinculados ao samba,
assim como merece maior destaque a organização dos representantes das
religiões de matriz africana diante da ofensiva que se prevê com o citado decreto.
Aqui tratamos objetivamente de duas expressões culturais afro-brasileiras que
pressentem maior represália exatamente por trazerem em seu arcabouço um
conteúdo oposto à dogmática religiosa professada pelo Prefeito. Os eventos de
samba das praças da cidade tiveram a vacância de ao menos um mês, pois o
referido Decreto, conhecido como “Rio Ainda Mais Fácil”, entrava em vigor quinze
dias após a publicação, mas demais prazos, acerca do tempo de obtenção de um
alvará, simplificação do processo para a obtenção de autorização ou mesmo um
prazo para os eventos em curso se adequarem, disto ficou carente o sistema
proposto. Já no que tange às religiões de matriz africana não se teve notícias de
impedimentos de plano… Contudo, aqueles que sentem o peso diuturno dos
ataques ao seu divino, razão têm para não descansarem enquanto não houver
garantia de respeito.
A laicidade ainda é tema encabulado dentro do cenário político nacional,
infelizmente não sendo nada tímido o crescimento de bancadas nos parlamentos
e de falas nos parlatórios legislativos, de profissão de fé cristã e pentecostal.
Utiliza-se o universal na lógica teocrática: uma política sem dados, “em nome de
Deus”, plena de preconceitos e censuras aos que divergem da moral religiosa
hegemônica. Estão sendo submetidos neste processo: as mulheres; negros e
negras; a liberdade sexual e a identidade de gênero; os conteúdos críticos nas
escolas; as outras correntes religiosas, enfim, a cultura de forma geral.

A semelhança entre a censura à exposição Queermuseu e a gestão dos eventos


culturais do Rio encontra-se na limitação da arte sob justificativas ora moralistas
(declaradamente) ora burocráticas, que tendem a afirmar o que é melhor pra
todos, mas sempre, curiosamente, deixam os mesmos grupos contra-hegemônicos
de fora deste “universo dominante”. É o todo representado pelo branco, burguês,
cristão, empresário, masculino, heterossexual e claro, despido de preconceitos.  É
o todo de sempre.

Como pôde ser visto, mais do que configurarem casos isolados, eventos recentes
como os aqui analisados apontam para a escalada de um processo social
conservador, que, eivado de preconceitos e intolerância, promove não só a
permanência de valores classificáveis como anacrônicos, mas também dinâmicas
verdadeiramente censórias. Além de invisibilizar grande parte da população e
das manifestações culturais de nosso país, a atuação política de movimentos,
organizações civis e instituições que articulam a eliminação do debate amplo e
público acarreta a corrosão dos próprios alicerces democráticos da nossa
sociedade.

Desta feita, é essencial manifestarmos nossa indignação contra o discurso


heteronormativo, patriarcal e moralista dominante; e contra os atos persecutórios
que nele se apoiam para garantir a hegemonia ideológica. Declaramos nosso
repúdio a toda forma de silenciamento das manifestações culturais legitimamente
democráticas.

Juliana Oliveira Cavalcanti Barros é mestre pelo Programa de Pós-Graduação


em Direito da UFRJ e pesquisadora do Laboratório de Direitos Humanos da UFRJ

Paula Dürks Cassol é mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da


UFRJ Pesquisadora do Laboratório de Direitos Humanos da UFRJ. Advogada

Roberta Cristina Eugênio dos Santos Silva é mestranda do Programa de Pós-


Graduação em Direito da UFRJ

Roberta Laena Costa Jucá é doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em


Direito da UFRJ e pesquisadora do Laboratório de Direitos Humanos da UFRJ

Simone Soares Quirino é mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da


UFRJ e pesquisadora do Laboratório de Direitos Humanos da UFRJ
Vanessa Oliveira Batista Berner é doutora em Direito pela UFMG, professora
titular da UFRJ e coordenadora do Laboratório de Direitos Humanos da mesma
universidade

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