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Detalhe de ‘Cena de interior II’, de Adriana Varejão, 1994; obra estava em exposição na
mostra ‘Queermuseu’ (Divulgação)
Neste último domingo, dia 10 de setembro de 2017, um novo dissenso emergiu nas
redes sociais brasileiras após o cancelamento da exposição Queermuseu –
cartografias da diferença na arte da brasileira. A mostra, que reunia 270 trabalhos
de 85 artistas – dentre os quais constam Adriana Varejão, Alfredo Volpi, Alair
Gomes, Candido Portinari, Flávio de Carvalho e Ligia Clark, todos reconhecidos e
celebrados para além das fronteiras nacionais, em virtude da relevância de sua
produção artística –, deveria estar aberta ao público entre os dias 15 de agosto e 8
de outubro, mas foi encerrada pelos responsáveis do espaço Santander Cultural
após protestos promovidos pela sociedade civil e alguns grupos organizados,
entre eles associações religiosas e o MBL (Movimento Brasil Livre).
Uma vez esclarecida a polêmica que se encerra, cabe destacar que a censura, para
além da estrita defesa da moralidade e dos bons costumes – a interdição sobre a
sexualidade atravessou todos esses âmbitos censórios, sendo defendida ou
institucionalizada durante a maior parte dos últimos cinco séculos de formação
da sociedade brasileira – incidiu também para a suposta preservação da ordem
política, da religiosidade e da organização social. No Brasil a censura existiu desde
os anos 1940 e a partir daquele período esteve sempre ativa, embora funcionando
de maneira diferenciada até o fim da ditadura civil-militar. Mesmo hoje, embora
abolida pela Constituição Federal de 1988, muitos entendem que ela permanece
assombrando a produção artística no país, ainda que de maneira menos
escancarada que nos períodos ditatoriais.
Mas, como todo conceito, o de arte também mudou ao longo da história. O que se
entende por arte hoje não é o mesmo que se entendia na Grécia ou na França
iluminista. Falar da produção artística hoje é falar da arte contemporânea, que
pretende se desvencilhar dos conceitos da história da arte, ou seja, daquilo que
nos foi transmitido como “modelo” de arte. Pensar assim seria legitimar apenas a
arte consagrada na história e deslegitimar todo tipo de arte atual.
É nesse sentido que podemos compreender a ruptura estética tratada por Jacques
Rancière. Para esse autor, a arte é política justamente porque provoca um
dissenso ao produzir novas formas do sensível e do visível, contra aquilo que é
consenso. A arte reconfigura a experiência comum. Ao criar, o artista expressa
sensibilidades para além da racionalidade e da lógica e nos coloca em contato
com uma expressão outra, sensível. A arte é potência. “A arte abre nossa
consciência até o novo, até a possibilidade de um mundo distinto em que todas e
todas possamos exercer nossa capacidade de transformação dos espaços de
relações e interações”, como afirma Joaquín Herrera Flores.
Tudo isso nos faz refletir sobre a enxurrada de ataques às obras de arte expostas
no Queermuseu, partindo de um discurso que desqualifica a arte contemporânea
por seu conteúdo, ao exemplo do que fez Hitler ao taxar algumas obras de “arte
degenerada”. A tela Cena do interior II, de Adriana Varejão, ao retratar cenas do
interior do Brasil, não faz apologia à zoofilia, porque o objeto artístico não é um
aplauso ao que nele está retratado. A obra que traz a inscrição “criança viada”
não é uma defesa de que toda criança deva ser “viada” – apesar desse fato ser
uma realidade possível –, porque, ao contrário da propaganda e do marketing, a
arte não tem a pretensão da transmissão de uma mensagem a ser universalmente
introjetada.
‘Travesti da lambada e deusa das águas’, de
Bia Leite; obra fazia parte da mostra
‘Queermuseu’ (Divulgação)
Chantal Mouffe chama a atenção para o fato de que as práticas artísticas têm um
papel essencial na esfera pública, uma vez que elas são de extrema importância
na mobilização das paixões e das formas coletivas de identificação. Nesse sentido,
de acordo com a autora, não podemos resumir o debate sobre os mecanismos de
exclusão da esfera pública a uma conclusão racionalista do fracasso da máxima
liberal de igualdade e liberdade para todos. Ela aponta que deve haver um
compromisso com a existência de uma esfera pública, que deve ser o espaço da
legitimidade do debate sobre o legítimo e o ilegítimo. Ora, o papel formador do
artístico na esfera pública – tanto no âmbito estético quanto político – faz com que
a reflexão sobre a democracia e seu futuro seja indissociável das práticas
culturais.
Em tal cenário, a arte, assim como a educação, ainda que não deixe de participar
da formação utilitarista e reprodutora dos saberes e valores hegemônicos,
possibilita a desconstrução das narrativas dominantes a partir da experienciação
das inquietudes e da formação do discernimento. Por isso, Mouffe defende as
práticas artísticas de intervenção política como exemplos de intervenções
agonistas no espaço público que contribuem para revelar o dissenso na
hegemonia dominante.
Lembremos que o final do século 20 e o início do século 21 é marcado pela
ascensão de um movimento que se afirma enquanto nova modalidade de fazer e
de pensar as artes. Como enfatiza Érica Sarmet, se antes os debates sobre
pornografia e obscenidade pertenciam à esfera da moral e dos bons costumes,
nesta era, que a autora define como pós-pornográfica, estamos diante da alocação
desse discurso na esfera política. Esse momento é a última fase do debate sobre a
pornografia, posto que consiste no reconhecimento de que os debates travados
são sobre poder, acesso ao mundo circundante e controle sobre os corpos e as
mentes.
Nesse passo, a arte queer tende a confrontar, desconstruir e até mesmo redefinir
os imaginários sexopolíticos vigentes, a partir da representação de corpos,
gêneros e identidades sexuais historicamente marginalizadas, além do
desmantelamento de estéticas e linguagens criadas na e pela arte tradicional,
branca, capitalista e heterossexualmente orientada.
Nesta arte queer, “os discursos sobre a ressignificação dos códigos de gênero vão
ao encontro de reflexões acerca dos limites entre corpo e máquina, tecnologia e
cotidiano, privado e público, indivíduo e sociedade, pertencimento e território”,
afirma Érica Sarmet. Dessa forma, o que parecia uma atuação estratégica na seara
da política de gênero dos anos 1990, com o desafio às demarcações de uma
visibilidade que confunde o feminino e o masculino em contextos nodais, pode (e
deve) progressivamente dar espaço a uma arte queer contemporânea, cujo desafio
“é expressar a pluralidade de feminilidades e masculinidades para perturbar os
corpos dos espectadores através dos corpos visíveis na tela”, segundo Sarmet.
Mariana Baltar, ao discorrer sobre os “feminismos em tensão, da pedagogia
sociocultural a uma pedagogia dos desejos”, ensina que “um olhar mais político
para as narrativas associadas ao, por exemplo, cinema queer (o ‘novo’ e o
‘contemporâneo’) percebe o investimento que tais obras fazem em preencher as
telas de corpos dissonantes que perturbam inclusive (e sobretudo) o que já se
assimilou como presenças gays e lésbicas aceitáveis”.
Este Decreto tem sido alvo de questionamentos dos artistas que desenvolvem
eventos nas praças e ruas da Cidade, principalmente os vinculados ao samba,
assim como merece maior destaque a organização dos representantes das
religiões de matriz africana diante da ofensiva que se prevê com o citado decreto.
Aqui tratamos objetivamente de duas expressões culturais afro-brasileiras que
pressentem maior represália exatamente por trazerem em seu arcabouço um
conteúdo oposto à dogmática religiosa professada pelo Prefeito. Os eventos de
samba das praças da cidade tiveram a vacância de ao menos um mês, pois o
referido Decreto, conhecido como “Rio Ainda Mais Fácil”, entrava em vigor quinze
dias após a publicação, mas demais prazos, acerca do tempo de obtenção de um
alvará, simplificação do processo para a obtenção de autorização ou mesmo um
prazo para os eventos em curso se adequarem, disto ficou carente o sistema
proposto. Já no que tange às religiões de matriz africana não se teve notícias de
impedimentos de plano… Contudo, aqueles que sentem o peso diuturno dos
ataques ao seu divino, razão têm para não descansarem enquanto não houver
garantia de respeito.
A laicidade ainda é tema encabulado dentro do cenário político nacional,
infelizmente não sendo nada tímido o crescimento de bancadas nos parlamentos
e de falas nos parlatórios legislativos, de profissão de fé cristã e pentecostal.
Utiliza-se o universal na lógica teocrática: uma política sem dados, “em nome de
Deus”, plena de preconceitos e censuras aos que divergem da moral religiosa
hegemônica. Estão sendo submetidos neste processo: as mulheres; negros e
negras; a liberdade sexual e a identidade de gênero; os conteúdos críticos nas
escolas; as outras correntes religiosas, enfim, a cultura de forma geral.
Como pôde ser visto, mais do que configurarem casos isolados, eventos recentes
como os aqui analisados apontam para a escalada de um processo social
conservador, que, eivado de preconceitos e intolerância, promove não só a
permanência de valores classificáveis como anacrônicos, mas também dinâmicas
verdadeiramente censórias. Além de invisibilizar grande parte da população e
das manifestações culturais de nosso país, a atuação política de movimentos,
organizações civis e instituições que articulam a eliminação do debate amplo e
público acarreta a corrosão dos próprios alicerces democráticos da nossa
sociedade.