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Mestre em Psicobiologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicobiologia (UFRN). Educadora
Ambiental do IECAM - Instituto de Estudos Culturais e Ambientais.
Introdução:
Este artigo apresenta reflexões desenvolvidas a partir de uma experiência
etnográfica realizada na Tekoá Anhetenguá, aldeia Guarani localizada na Lomba do
Pinheiro - Porto Alegre / RS. A etnografia ocorreu desde março de 2011, durante um
processo de Educação Ambiental (EA), através do projeto "Ar Água e Terra: Vida e
Cultura Guarani", o qual vem sendo realizado pelo IECAM - Instituto de Estudos
Ambientais e Culturais, com o patrocínio do Programa Petrobras Ambiental. O projeto
contempla programas de Educação Ambiental em oito aldeias do Rio Grande do Sul,
envolvendo o reflorestamento destas áreas com espécies de uso indígena medicinal,
alimentício e artesanal, bem como o destino adequado dos resíduos, buscando
contribuir para a recuperação ambiental e o etnodesenvolvimento.
Esta etnografia é efetuada durante uma atuação específica do projeto, o
processo educativo ambiental efetuado na Tekoá Anhetenguá uma aldeia de 12 ha,
onde vivem 28 famílias Guarani. O projeto foi construído junto com a liderança
indígena local e o programa de Educação Ambiental também está ocorrendo em
contínua construção com os indígenas, envolvendo a busca mútua de soluções.
O trabalho tem possibilitado uma reflexão sobre algumas percepções indígenas
com relação a temas como ambiente, resíduos, saúde e educação ambiental, os quais
foram surgindo espontaneamente ao longo da atuação. Angrosino (2009:36) propõe o
uso do método etnográfico para situações nas quais seja interessante conhecer a
perspectiva de um público sobre questões específicas, de modo a contribuir para que
as visões do grupo pesquisado não sejam determinadas pelas opiniões do pesquisador.
No caso desta pesquisa, desde o início da concepção de um projeto de Educação
Ambiental para indígenas, surgiu a necessidade de se conhecer e compreender mais as
percepções ameríndias sobre os problemas ambientais e sobre como seria um processo
educativo ambiental indígena, para que o trabalho fosse desenvolvido com profundo
respeito a estas visões.
O artigo expõe inicialmente uma reflexão sobre o contexto vivido pela
pesquisadora, em um processo simultaneamente etnográfico e educacional; e
apresenta a proposta educativa ambiental que está sendo desenvolvida. Ambas
exposições visam proporcionar elementos para a compreensão de como são
vislumbradas as percepções indígenas e como são elaboradas as reflexões.
Posteriormente são colocadas algumas representações ameríndias observadas durante
o trabalho, com interpretações delineadas principalmente a partir do diálogo com o
pensamento de Tim Ingold. Com relação às percepções sobre os resíduos, a visão
etnográfica possibilitou ainda uma problematização no que diz respeito à naturalização
desta questão em aldeias indígenas. A parte final do artigo se propõe a uma discussão
sobre a relação entre Antropologia, Educação e Educação Ambiental.
O lugar da pesquisadora:
Silva (2009:179) aborda a influência mútua estabelecida na interação entre o
etnógrafo e o grupo estudado, a qual incide não só sobre a condição atual das pessoas,
mas sobre a sua identidade e desenvolvimento. No contexto desta investigação, a
circunstância que levou a etnógrafa à aldeia e proporcionou este convívio e observação
é a própria atuação em Educação Ambiental, sendo a relação com os indígenas e o
deslocamento em seu território, proporcionada pelas reflexões e construções coletivas
do trabalho educativo ambiental. Neste caso, o envolvimento e a influência não são
negados, mas há o cuidado de uma reflexão sobre o próprio envolvimento, em direção
a um envolvimento reflexivo, com sentido, observando como as perspectivas vão
mudando, através dos encontros e desencontros, entusiasmos e frustrações,
identificações e estranhamentos.
A pesquisadora, ocupando simultaneamente o papel de etnógrafa e de
educadora ambiental, é ao mesmo tempo observadora de si mesma e do outro. É
consciente de sua bagagem em termos de formações, experiências e vivências
ambientais; observadora de suas expectativas com relação a possíveis transformações,
relacionadas com os resultados esperados na execução do projeto; sendo também
atenta a como os indígenas expressam suas idéias ou silenciam diante de questões
ambientais; como participam ou não da construção de uma proposta educativa; como
recebem a proposição de mudanças de hábitos e como percebem este processo. É um
exercício constante de auto-observação, não só das falas e acontecimentos indígenas,
mas de suas próprias percepções, reflexões, emoções e expectativas. A aprendizagem
ocorre em todos os momentos, desde as tentativas de aproximação até o alcance ou
não de resultados, em um processo de contínua auto-educação do olhar, do escutar,
do pensar e do escrever.
Como indica Silva (2009:181), ver implica em um constante rever, um olhar
que se organiza e se reorganiza, possibilitando que as situações adquiram sentido,
significados que possam ser decifrados a partir do diálogo entre observação e
introspecção. Ao desenvolver o trabalho de EA, a pesquisadora convive com os
indígenas em exercício contínuo de observação participante, exercitando o olhar e o
ouvir descritos por Rocha & Tosta (2009:73): ver as coisas como elas se apresentam
aos olhos, sem julgar ou desejar que fossem diferentes, buscando a compreensão
daquilo que se apresenta; e ouvir diferentes pontos de vista, conferindo legitimidade,
com uma escuta de abertura e acolhimento, não discriminadora. O caderno de campo
está se constituindo em um instrumento de grande relevância na clareza deste duplo
papel vivido pela pesquisadora, através do contínuo registro dos diálogos, emoções e
inquietações, buscando decifrar as representações do outro e de si mesma.
No entanto, a saúde também é vista na sua relação com a estrutura básica que
permite as necessidades físicas humanas, o que chamamos de qualidade de vida.
A conexão entre a saúde e um bom alimento é outro fator freqüente nas falas
do cacique, o qual, inclusive solicita à educadora para falar com os índios sobre os
malefícios da "comida dos brancos". A alimentação tem grande importância na cultura
e no modo de ser Guarani, estando fortemente relacionada com saúde, espiritualidade
e valores humanos. Tempass (2005:67) aponta, por exemplo, para a importância do
milho no modo de ser Guarani, pelo fato de ser um alimento espiritual, além de físico,
e sendo o seu cultivo relacionado com rituais religiosos. Esta relação entre alimentação
e espiritualidade foi também evidenciada neste trabalho, durante as conversas para a
escolha dos alimentos para evento a ser realizado na aldeia, em que o cacique se
manifestou contra a presença de refrigerantes e alimentos industrializados e se referiu
à importância do milho, das frutas e do peixe; expressando a relação entre as
dimensões física e espiritual:
"Não tem nada que se faz com uma pessoa só. Tudo
se faz junto, cada um faz um pouco". (Professor
Jerônimo, 21/12/2011).
Também foi constatada uma inquietação com relação ao lixo que pessoas de
fora trazem pra aldeia. Isto ficou claro quando o cacique indicou os dizeres para as
placas que eles queriam para a aldeia: "Não jogue lixo no chão", "Peity rive eme yty".
"Tem que ter troca pra falar, se não índio não aceita.
Antigamente levava fumo. Porque levou presente
tem liberdade pra falar. Só chegar falando índio não
aceita". (Cacique Cirilo, 11/05/2011).
Através deste trabalho estão sendo nutridas reflexões mais amplas e profundas
sobre a antropologia da educação e, mais especificamente, sobre uma antropologia da
Educação Ambiental. A etnografia está se constituindo como um elemento de grande
importância, como uma estratégia metodológica em Educação Ambiental, para um
maior conhecimento das percepções ambientais indígenas e para a internalização
destas como eixo básico da construção coletiva de uma proposta educacional. Do
mesmo modo, a Educação Ambiental tem sido um instrumento do estudo etnográfico,
norteando questões e oferecendo contextos de observação para determinados temas.
Esta visão de reciprocidade, em que ambas as áreas trazem contribuições mútuas é
apresentada por Rocha & Tosta (2009:17), autoras que consideram a antropologia
como uma forma de educação, e destacam a importância da prática antropológica para
um bom processo pedagógico.
No entanto, existem também diversas problematizações sobre a relação entre
estes saberes. Valente (1996:54) desenvolve um resgate histórico do processo de
construção dos métodos de pesquisa antropológica, manifestando a preocupação sobre
a popularidade do uso destes instrumentos em outras áreas de conhecimento,
principalmente a educacional. Dauster (2003:21) se refere às distâncias existentes
entre estas duas áreas de conhecimento, com relação a referenciais, métodos e
objetivos; mas também valoriza as proximidades, como o objeto de estudo em
comum, no que diz respeito à existência humana, com seus valores, modos de vida,
interações e socializações. A autora aposta na construção de pontes como um modo de
enriquecer ambas as disciplinas.
Para Dauster (2003:24), os contatos com referenciais antropológicos
possibilitam ao educador a apreensão de outra linguagem, com um modo diverso de
olhar, se posicionar e se relacionar, proporcionando ainda o levantamento de outros
tipos de questões e de interpretações a cerca dos fenômenos educacionais formais e
não formais. Fonseca (1999:59) também considera o uso de elementos do método
etnográfico como instrumentos que podem ser enriquecedores para a atuação
pedagógica, principalmente no que se refere à área de comunicação, ao processo
dialógico; além de propiciar a desconstrução de estereótipos e a abertura de novas
maneiras de conhecer e de interagir com as pessoas.
Nesta pesquisa foram evidenciadas estas contribuições do método etnográfico
para um processo educativo, ao oferecer um tipo de atitude pedagógica que tem
propiciado elementos importantes, como o conhecimento mais profundo das pessoas, o
estabelecimento de diálogos apropriados, a abertura para outras visões da realidade e
a quebra de visões cristalizadas, como no caso do lixo. Mas também surgiram questões
problemáticas entre estes campos de conhecimento que precisam ser consideradas, as
quais terminam enriquecendo esta integração. Um dos aspectos que mereceu grande
cuidado foi uma necessidade de conciliação entre o respeito pela especificidade da
cultura com a qual se estava trabalhando e a necessidade de se estar levando
"novidades", quando constituíam elementos importantes para o processo educativo
ambiental, mas que não estavam surgindo espontaneamente.
A este respeito, Gusmão (2008:73) e Dauster (2003:21) refletem sobre o modo
de integrar, na área educacional, os valores que são considerados universais e as
singularidades culturais; e de adequar projetos antropológicos de conhecimento de
diferentes modalidades culturais com propostas pedagógicas de intervenção e
transformação da realidade. Estas questões introduzem a importância da flexibilidade
do educador, de abertura para outras lógicas cognitivas, e de prontidão para
questionar suas próprias crenças e valores e para incorporar outras idéias, visões e
conhecimentos. Para Wernck (2008:417), este é um desafio importante do educador:
a conciliação entre o acolhimento das especificidades culturais e o papel da área
educacional, relativo ao comprometido com a transformação da sociedade em direção
a melhorias na condição humana, abrangendo as suas diversas dimensões, como a
física, mental, emocional, social e econômica, incluindo aspectos como qualidade de
vida, saúde e justiça social. O respeito às diversidades culturais não precisa implicar
em um relativismo e uma demagogia que possam se contrapor a estas metas
educacionais.
Com este pensamento se delineia também a relação entre a antropologia e a
educação ambiental. Neste sentido, Foladori & Taks (2004: 323) discutem a questão
do relativismo cultural, como um possível obstáculo às ações ambientais e sociais,
podendo ser paralisante à proposição de metas para um melhor desenvolvimento
humano. Esta corrente teórica/método de abordagem antropológica transformou-se
em argumentação através da qual não há critérios para avaliar questões como
sustentabilidade, limpeza e ordem, pois dependem de sistemas de valores definidos
por cada cultura e que não se podem ser impostos.
Conforme Foladori & Taks (2004: 336), para superar o paradoxo do relativismo
cultural, a antropologia precisou passar a analisar a cultura como um processo, em sua
trajetória histórica, em sua relação singularizada com os diferentes grupos e como
resultado de interesses contraditórios. Este reconhecimento traz importantes
conclusões para a discussão da problemática ambiental, como a importância de
considerar as diferenças entre os grupos sociais e no interior destes; e a relevância de
processos participativos de tomada de decisões e de avaliação, de modo a levantar as
diferentes percepções dos grupos envolvidos.
Esta visão antropológica da cultura como um processo contínuo de formação e
transformação, no qual há influências das diferenças individuais e grupais, também é
citada por Espíndola et allli (2008:07) e Guanaes (2009:8) como grande contribuição
da antropologia para a área ambiental, inclusive na formulação de políticas sócio-
ambientais. A relação entre cultura e meio ambiente pode ser valorizada, através de
investigações de determinadas culturas que incluam uma compreensão mais profunda
de suas formas de relação com o ambiente, seus simbolismos, seu imaginário sobre
natureza, como vivem e reagem frente às imposições do capitalismo, como
transformam o ambiente em que vivem e como isso os afeta. Guanaes (2009:60)
pensa esta relação como a busca de uma forma de sustentabilidade sócio-ambiental
que tenha como fundamento o reconhecimento e a valorização da autonomia dos
diversos grupos sociais, com seus conhecimentos tradicionais, o que significa aceitar
outros padrões de racionalidade, além do pensamento científico, outras formas de se
relacionar com a natureza, outros interesses e níveis de sustentabilidade.
Esta questão é colocada por Branquinho e Santos (2007:120), através do
enfoque da Antropologia da Ciência, ressaltando a sua contribuição para a
sustentabilidade, no sentido de uma critica à concepção hegemônica que dá maior
poder aos conhecimentos técnicos e científicos. Conforme a Antropologia da Ciência, os
objetos científicos são híbridos de natureza e cultura, da mesma forma que os saberes
e produções de sociedades que utilizam outras formas de leitura da realidade. As
autoras propõem a consideração de que existem diferentes maneiras de percepção,
compreensão e ação sobre a natureza, sendo indicada a socialização dessas diversas
visões, de modo a aproveitar elementos dos diferentes pontos de vista. Com base
neste pensamento, Branquinho (2004:08) manifesta uma proposta alternativa de
educação em ciência no sentido da elaboração de programas com base na valorização
e na integração entre os conhecimentos científicos e os produzidos por outras
sociedades, através da noção de redes.
A experiência etnográfica e educativa ambiental que está sendo vivenciada na
Tekoá Anhetenguá evidencia e ilustra estas reflexões, pois tem reunido representações
indígenas sobre aspectos como ambiente, saúde, resíduos e educação, de modo
integrado a elementos trazidos de conhecimentos técnicos e científicos, formando uma
rede de saberes, idéias e ações, a qual tem se manifestado em ações transformadoras
e em construções de grande riqueza e criatividade. Nesta dinâmica são acolhidas as
singularidades da cultura com a qual se está trabalhando, e também as diferenças
individuais, mas é respeitado o desejo e o potencial transformador de cada indivíduo e
do grupo, sendo oferecido um contexto de mudança da situação atual, incluído uma
estrutura propícia a esta renovação, mas com a devida consideração à vontade e ao
ritmo das pessoas envolvidas. Deste modo, a cultura é vista como um processo
dinâmico e não como um produto finalizado.
Considerações Finais
Referencias bibliográficas
FONSECA, Claudia. Quando cada caso não é um caso. Revista Brasileira de Educação,
Rio de Janeiro, Jan/Fev/Mar/Abr. 1999, n.10, pp 58-78.
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skill. London and New York: Routledge / Taylor & Francis Group. 2002.
MENEZES, Ana Luísa Teixeira & BERGAMASCHI, Maria Aparecida. Educação ameríndia:
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ROCHA, Gilmar & TOSTA, Sandra Pereira. Antropologia & Educação. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2009.
SILVA, Helio. A situação etnográfica: andar e ver. Horizontes Antropológicos, Porto
Alegre, jul/dez. 2009, v. 15, n. 32.