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Jeni Vaitsman 1
1 Departamento de Ciências Abstract The article discusses some data from a study on the opinions and perceptions of the
Sociais, Escola Nacional
labor situation and environment among health professionals and administrative workers at the
de Saúde Pública, Fundação
Oswaldo Cruz. Research Center of the Evandro Chagas Hospital (CPqHEC/FIOCRUZ) in Rio de Janeiro. Certain
Rua Leopoldo Bulhões 1480, patterns of conflict observed in the study express the distribution of power and prestige which is
Rio de Janeiro, RJ
typical of hospitals. Many of the meanings people ascribe to their experiences within the organi-
21041-210, Brasil.
farias@ensp.fiocruz.br zation are mediated by social representations originating in the broader social context to which
vaitsman@ensp.fiocruz.br the organization belongs.
Key words Health Manpower; Health Facilities; Organizations; Health Personnel
Resumo Com base em pesquisa realizada no Centro de Pesquisas Hospital Evandro Chagas
(CPqHEC/FIOCRUZ), que investigou as opiniões e percepções dos funcionários sobre o ambiente
e as condições de trabalho, são analisados os conflitos presentes na interação entre as diversas
categorias profissionais. Observou-se que alguns padrões de conflito expressam a distribuição de
poder e prestígio que é típica das organizações hospitalares. Nota-se ainda que a interpretação
que os funcionários fazem acerca das suas experiências no interior da organização é mediada
por representações sociais mais abrangentes, engendradas pelo contexto social mais amplo no
qual a organização se insere.
Palavras-chave Recursos Humanos em Saúde; Instituições de Saúde; Organizações; Pessoal de
Saúde
O universo da pesquisa foi constituído pelo parte dos funcionários. Deve-se ressaltar que,
total de servidores, bolsistas, terceirizados e dado o anonimato dos questionários, a classifi-
prestadores autônomos, das áreas-fim e meio, cação dos respondentes nas categorias profis-
com exceção dos funcionários terceirizados sionais e tipos de vínculo (Tabela 1) baseia-se
das áreas de limpeza e vigilância. Foram apli- estritamente no que foi declarado pelos mes-
cados 200 questionários, alcançando-se uma mos, contudo não foram detectadas distorções
adesão de 88% do universo considerado, o que observáveis em relação às informações admi-
constitui uma proporção bastante elevada, nistrativas oficiais.
considerando-se o caráter voluntário da parti-
cipação. Os respondentes foram classificados
em cinco categorias profissionais: (a) médicos Os resultados da pesquisa
e pesquisadores; (b) outros profissionais de saú-
de de nível superior; (c) outros profissionais de De uma forma geral os resultados da pesquisa
nível superior; (d) técnicos e auxiliares de saú- apontam para uma avaliação bastante positiva
de; (e) outros técnicos e auxiliares. Quanto ao da organização por parte de seus funcionários,
vínculo de trabalho, foram classificados em três como demonstram as respostas obtidas para as
tipos: (a) servidores públicos; (b) bolsistas; (c) três perguntas mencionadas na Figura 1. Obser-
outros (terceirizados e prestadores autônomos). va-se um alto grau de aprovação em relação à
Detectou-se menor grau de adesão por parte administração e ao funcionamento do CPqHEC
do grupo médicos e pesquisadores, mas, ainda e, igualmente, uma situação muito positiva
assim, 75% dos indivíduos desse grupo respon- quanto à satisfação dos funcionários em traba-
deram ao questionário. lhar na organização.
Com base nas características específicas do Entretanto, a despeito da ótima avaliação
CPqHEC anteriormente descritas, decidiu-se, para os quesitos mais genéricos e abrangentes,
para fins de análise, agregar os médicos e pes- é possível vislumbrar a existência de proble-
quisadores na mesma categoria profissional. Is- mas pontuais para questões mais específicas.
so porque os médicos, independente de esta- O intuito dessa análise é destacar estas últimas
rem enquadrados no cargo de pesquisador, questões – especialmente aquelas que, de algu-
exercem esta função, na medida em que se en- ma forma, ligam-se ao campo da gestão de RH
contram todos engajados em projetos de pes- (Recursos Humanos) – com o objetivo de apro-
quisa. A centralidade das atividades de pesqui- fundar a compreensão de determinados pro-
sa no interior da organização justifica também blemas que afetam o cotidiano organizacional.
a inclusão dos pesquisadores não-médicos (bió- Embora os dados se limitem à pesquisa reali-
logos, farmacêuticos etc.) nesse mesmo grupo. zada no CPqHEC, os resultados provavelmente
Estes últimos são quantitativamente minoritá- sinalizam algumas características que tendem
rios, correspondendo a aproximadamente um a se fazer presentes nas organizações hospita-
quinto dos indivíduos do grupo.
Na maior parte do questionário, utilizaram-
se escalas ordinais com quatro opções de res-
posta, duas das quais remetem a uma avalia- Tabela 1
ção positiva e as outras duas, a uma avaliação
negativa, evitando-se assim a tendência a que Distribuição de funcionários do Centro de Pesquisas do Hospital Evandro Chagas,
o respondente optasse por respostas “neutras”. segundo a categoria profissional e o tipo de vínculo.
Na codificação do banco de dados, foram atri-
buídos valores numéricos a essas escalas, sem Categoria profissional Tipo de vínculo
o que seria impossível realizar os testes de cor- Servidor Bolsista Outros Total
público
relação. Às escalas, que constituem as opções
de resposta nas tabelas apresentadas, foram Médicos e pesquisadores 31 6 – 37
atribuídos os valores 4, 3, 2, e 1, seguindo a or- Outros profissionais 17 10 4 31
dem das colunas da esquerda para a direita. de saúde de nível superior
Os formulários eram anônimos, como for- Outros profissionais 11 5 5 21
ma de garantir a livre expressão de opiniões de nível superior
Figura 1
É bem administrado? Funciona bem? É um lugar onde você se sente satisfeito em trabalhar?
lares de um modo geral e, particularmente, nas procurou-se apreender a percepção dos fun-
de natureza estatal. cionários do CPqHEC sobre as oportunidades
de treinamento que lhes são oferecidas. A ta-
Desenvolvimento de recursos humanos bela a seguir apresenta as respostas a uma per-
gunta referente à freqüência com que são ofere-
A discussão sobre o aumento da eficiência e cidos cursos de capacitação aos funcionários.
qualidade dos serviços públicos de saúde apon- Observa-se que 51,3% dos funcionários
ta para uma variedade de ações técnicas e polí- afirmam que a oferta de cursos de capacitação
ticas orientadas à instauração de um modelo e treinamento é algo que ocorre raramente ou
de gestão pós-burocrática, tanto no âmbito dos nunca. Quando as respostas são analisadas le-
sistemas, quanto nas organizações. Foge aos vando-se em consideração o tipo de vínculo
objetivos deste artigo elencar o conjunto de dos funcionários, nota-se que, entre aqueles
propostas formuladas nessa direção. Todavia, vinculados ao CPqHEC como prestadores au-
deve-se destacar que, de forma direta ou tan- tônomos ou trabalhadores terceirizados (tipo
gencial, a preocupação com os problemas rela- de vínculo “outros”), esse percentual chega a
tivos à gestão de RH está presente, se não em 69%, ao passo que, entre os servidores públi-
todas, na maior parte dessas propostas. cos, o percentual é significativamente menor,
Sob a ótica das propostas que vêm se aglu- 47,1%. Embora esses números reflitam a per-
tinando em torno da idéia de gestão de quali- cepção dos funcionários e não a mensuração
dade, o aprimoramento dos processos de pro- objetiva das oportunidades oferecidas, eles
dução exige um esforço permanente de qualifi- apontam para um problema concreto vivido
cação da força de trabalho. Segundo essas pro- pelas organizações.
postas, o constante aprimoramento da compe- As formas “flexíveis” de contratação da for-
tência técnica e o desenvolvimento de habili- ça de trabalho têm como conseqüência o esta-
dades individuais voltadas para o trabalho em belecimento de vínculos mais fluidos entre o
grupo e a satisfação do cliente interno e exter- trabalhador e a organização. Acentua-se o ca-
no colocam-se como requisitos fundamentais ráter transitório da relação de trabalho, o que,
para o perfil de RH (Nogueira, 1994). Nesse especialmente nas organizações públicas, con-
sentido, tornou-se comum hoje a concepção trasta com o caráter estável que distingue o
de que as organizações devem preparar-se pa- vínculo de servidor que continua a vigorar pa-
ra integrar seus trabalhadores a essa nova rea- ra a outra parte dos trabalhadores. O convívio
lidade, alçando conseqüentemente as ativida- dessas diferentes formas de contrato gera ten-
des de desenvolvimento de RH ao escopo das sões, latentes ou manifestas, produzindo, não
suas necessidades funcionais. raro, uma hierarquia entre os “estáveis” e os
Levando-se ainda em consideração que tais “contratados”.
oportunidades cumprem também um papel A diversificação das regras e dos mecanis-
motivacional, na medida em que constituem mos de pressão e controle vis-a-vis aos diferen-
incentivos não econômicos aos trabalhadores, tes trabalhadores e a conseqüente percepção
das desigualdades que se produzem são fato- nais – detentores de um saber especializado –
res inibidores à produção de um ambiente or- na execução dos objetivos da organização. Por
ganizacional que enfatize a cooperação, inte- essa razão, ocupam o ápice da pirâmide de es-
gração e participação, elementos valorizados tratificação interna, constituindo uma fonte
pelas mais atuais concepções de gestão. A “pre- de autoridade que se sobrepõe à autoridade
carização” ou “flexibilização” dos vínculos de administrativa. No CPqHEC, vale lembrar, esse
trabalho colocam, ainda, problemas derivados grupo corresponde não apenas aos médicos,
do cálculo custo/benefício envolvido no inves- mas engloba também os pesquisadores não
timento em capacitação dos profissionais cuja médicos.
permanência na organização é incerta ou ma- Além do grupo de especialistas, podem-se
nifestamente transitória. identificar outros grupos e subgrupos da orga-
Em outra pergunta, pediu-se que o respon- nização segundo seu pertencimento ou não à
dente avaliasse as oportunidades de treina- área de saúde, o que, por sua vez, determina
mento e desenvolvimento oferecidas por seu sua inserção nas atividades fim ou meio. Outro
setor que tivessem como objetivo a melhoria fator de segmentação a ser tomado em consi-
de seu desempenho profissional. No entanto, deração é o nível de escolaridade, o que levou
no enunciado da pergunta não foi mencionada a considerarem-se os profissionais de nível su-
a palavra “curso”, para que, assim, pudesse ser perior separadamente dos demais profissio-
considerada toda e qualquer estratégia de trei- nais, tanto na área-fim, quanto na área-meio.
namento e qualificação da mão-de-obra posta Diferentemente da segmentação produzida
em prática pela organização. pelos diferentes tipos de vínculo, a que é deri-
Quando se deixou vaga a forma de concre- vada das categorias profissionais ou grupos
tização das oportunidades de treinamento e funcionais tende a ser similar no conjunto das
desenvolvimento, observou-se uma considerá- organizações hospitalares, onde se observa uma
vel melhoria na percepção dos funcionários, estrutura de grupos semelhante àquela encon-
caindo para 32,7% a proporção daqueles que trada no CPqHEC.
consideraram insuficientes ou inexistentes tais O pertencimento a uma categoria profissio-
oportunidades. Contudo, manteve-se uma di- nal constitui fator relevante na compreensão
ferença significativa entre as opiniões manifes- das respostas dos funcionários. Quanto à ava-
tadas pelos três grupos definidos pelo tipo de liação das oportunidades de treinamento e de-
vínculo. Isoladamente, esses grupos apresenta- senvolvimento em seu setor de trabalho, a he-
ram os seguintes percentuais de respostas ne- terogeneidade das respostas de diferentes ca-
gativas (oportunidades insuficientes/inexis- tegorias profissionais pode ser explicada con-
tentes) à pergunta: (a) servidor público, 25,6%; jugando-se dois fatores principais: (a) a posi-
(b) bolsistas, 40,9%; c) outros vínculos, 48,4%. ção do grupo no interior da organização; (b) as
Vale lembrar que, juntos, os dois últimos gru- características associadas às profissões e ocu-
pos reúnem aproximadamente dois quintos da pações.
força de trabalho no CPqHEC, e que o grande A pergunta relativa às oportunidades de
volume de trabalhadores com vínculo precário treinamento (Tabela 4) obtém as melhores ava-
nesse hospital reflete o quadro geral dos víncu- liações no grupo dos Médicos e Pesquisadores,
los trabalhistas vigentes na FIOCRUZ. Segundo alcançando entre estes 75,7% de respostas “-
um relatório de avaliação da instituição, em ideal” ou “suficiente”, ao passo que nos grupos
1999 apenas 44% dos trabalhadores da FIOCRUZ Outros Profissionais de Saúde de Nível Superior
eram servidores sob o regime jurídico único e Outros Profissionais de Nível Superior alcan-
(RJU) (Hamilton & Brito, 1999). çam respectivamente 51,6% e 30%. Os médicos
Além de lidar com os problemas derivados e pesquisadores constituem, como já foi men-
da diversificação dos tipos de vínculo traba- cionado, o grupo central, o núcleo em torno do
lhista – fato cada vez mais comum nas organi- qual orbitam as demais categorias e, em última
zações públicas –, a gestão dos recursos huma- instância, aquele que por excelência institui a
nos precisa paralelamente equacionar questões identidade dessas organizações de especialis-
relativas às demandas, necessidades e expecta- tas. Do ponto de vista dos objetivos organiza-
tivas das diversas categorias profissionais e/ou cionais, é evidente que a alocação dos recur-
grupos funcionais que integram a organização. sos, entendidos em sentido amplo, tenda a
As organizações hospitalares enquadram- priorizar o investimento nessa categoria. Toda-
se entre aquelas classificadas como organiza- via, isso produz um certo grau de conflito com
ções de profissionais (Dussault, 1992) ou de outras categorias profissionais que não têm
especialistas (Etzione, 1976). Sua característi- seus interesses e expectativas contemplados na
ca central é o papel exercido pelos profissio- mesma medida.
ções sociais. Como mostram outros estudos so- Produzir tal ambiente e assegurar um certo
bre camadas médias urbanas, a noção de pro- grau de satisfação entre os trabalhadores é
jeto direciona as estratégias de realização pes- uma operação que se realiza mediante varia-
soal – que se torna também ascensão social – das ações, mais ou menos difusas, porém arti-
de muitos indivíduos desse segmento ( Vaits- culadas. A orientação de sentido e a coordena-
man, 1994; Velho, 1999). ção dessas ações situam-se, certamente, na di-
Por essa mesma abordagem pode-se com- mensão da gestão de RH, ainda que a operacio-
preender a relativa acomodação dos grupos in- nalização das mesmas extrapole os limites des-
feriores, comparativamente aos profissionais tes departamentos.
de nível superior que não são “médicos e pes- No setor público, a autonomia das organi-
quisadores”, alvo das prioridades organizacio- zações na gestão de RH é parcialmente limita-
nais. A restrição relativa de oportunidades para da, pois grande partes das normas de contrata-
estes, comparativamente ao grupo priorizado, ção e demissão originam-se externamente e
entra em conflito com suas aspirações e expec- impõem-se de forma rígida e indiferenciada. O
tativas. Para os profissionais de nível superior mesmo problema afeta a definição dos planos
que não pertencem à área de saúde, a situação de carreira e das políticas de benefícios e in-
é ainda mais crítica, pois, embora sejam igual- centivos. Dussault (1992) chama a atenção pa-
mente afetados pelas aspirações derivadas da ra o fato de que as organizações públicas têm
noção de carreira, ocupam uma posição ainda seu quadro de funcionamento regulado exter-
mais periférica na organização. Dado o caráter namente e que objetivos contrários aos seus
específico das organizações de saúde, é coeren- podem ser impostos pelas autoridades exter-
te que o investimento no treinamento e desen- nas. “Em outras palavras, as organizações de
volvimento desses profissionais seja, em cir- serviços públicos são mais vulneráveis à interfe-
cunstâncias normais, menos priorizado que o rência política, no sentido geral do termo” (Dus-
investimento nos profissionais de saúde. Isso sault, 1992:13).
significa que, mesmo que sejam tomadas me- No Brasil, o processo de reforma do Estado
didas que focalizem excepcionalmente esse iniciado na década de 90 tem tentado promo-
grupo, o conflito entre seus objetivos e os da ver maior flexibilidade na administração públi-
organização se manterá latente, pois suas pos- ca mediante a implementação de um modelo
sibilidades de desenvolvimento são estrutural- gerencial em substituição ao tradicional mode-
mente limitadas pela natureza das organiza- lo burocrático. O ideário da reforma abre a
ções de saúde. perspectiva de maior autonomia gerencial pa-
Por outro lado, do ponto de vista da pro- ra as organizações públicas, que passariam a
posta de uma administração pública gerencial ser controladas por seus resultados, em vez do
e de uma gestão voltada para a qualidade, os rígido controle sobre os processos. Costa et al.
trabalhadores das áreas-meio desempenham (2000), em um estudo sobre mudanças organi-
um papel igualmente crucial na organização, zacionais em hospitais públicos das regiões
já que são eles que operam a engrenagem do metropolitanas do Rio de Janeiro e São Paulo,
sistema, viabilizando o fluxo de vários tipos de afirmam que “no setor saúde assiste-se a uma
processos. Seu modo de trabalhar pode fazer reforma silenciosa e não explícita” (Costa et al.,
andar ou emperrar a máquina. Nesse sentido, 2000:439), por meio de um conjunto heterogê-
tem-se destacado a necessidade de maior aten- neo de ações e estratégias e um alto grau de ex-
ção para com esses grupos de trabalhadores. perimentalismo. Identificam a gestão de recur-
Entretanto, o maior investimento e o fortaleci- sos humanos como um dos campos que vêm
mento da área-meio induzem o acirramento da sendo alvo de inovações organizacionais orien-
tensão na sua relação com os especialistas, si- tadas para a busca de maior autonomia e res-
tuados na área-fim. saltam a flexibilização contratual e os incenti-
A gestão orientada para a qualidade enfati- vos ao desempenho como estratégias coloca-
za a necessidade de se produzir um ambiente das em prática pelos hospitais pesquisados. Is-
de cooperação e participação, no qual os tra- so, de certo modo, aponta para a construção de
balhadores envolvam-se na consecução dos um consenso acerca da necessidade de novas
objetivos organizacionais, desfrutem de maior formas de gestão dos recursos humanos como
autonomia no âmbito de suas funções e, enfim, um dos meios para se alcançar maior eficiên-
conjuguem realização pessoal e trabalho. Se- cia e qualidade nos serviços públicos de saúde.
gundo essa visão, a satisfação do trabalhador No entanto, como aponta a própria pesqui-
provoca efeitos positivos sobre a qualidade e sa mencionada, as ações praticadas nesse cam-
produtividade do trabalho, devendo, portanto, po têm se direcionado para a flexibilização dos
constituir interesse da própria organização. vínculos trabalhistas, de forma a imprimir
maior plasticidade à gestão de RH. Livrando-se por base a hierarquia e o controle, entre os Ou-
das normas do RJU, essas organizações bus- tros Profissionais de Saúde de Nível Superior e
cam diminuir e racionalizar os gastos e, tam- os Técnicos e Auxiliares de Saúde esse percen-
bém, viabilizar políticas de incremento salarial tual alcança, respectivamente, 65,3% e 81,9%.
seletivo. Essas duas categorias profissionais, mais que
Pensar a gestão de RH em um sentido que as da área-meio, encontram-se sob forte tutela
contemple a produção de um ambiente orga- dos médicos, os quais desfrutam da posição
nizacional orientado para a satisfação dos fun- dominante na hierarquia das profissões/ocu-
cionários vai além da implementação de uma pações em saúde.
política seletiva de incentivos monetários. As Como já amplamente discutido pela Socio-
condições e situações que geram nos funcioná- logia das Profissões (Freidson, 1998), a autono-
rios sensações de injustiça, opressão ou insa- mia dos médicos baseia-se no monopólio legí-
tisfação não se restringem aos aspectos de or- timo de um tipo de conhecimento específico
dem econômica/salarial. Embora a remunera- que caracteriza seu campo de trabalho. Em ra-
ção seja um fator importante, do ponto de vis- zão disso, nenhum outro grupo da organização
ta teórico, é insuficiente, e em muitas situações pode legitimamente exercer controle ou inge-
até mesmo inadequado, para se compreende- rência sobre sua atuação profissional. Mesmo
rem alguns dos problemas que afetam a moti- entre os pares, a possibilidade de controle ou
vação dos trabalhadores interferência é bastante limitada, uma vez que
a autonomia na condução dos casos é resguar-
Conflito entre categorias profissionais dada pelos preceitos éticos, corporativos e cul-
turais, próprios da profissão. É compreensível,
As organizações hospitalares constituem espa- então, que os médicos – e, igualmente, os pes-
ços sociais heterogêneos nos quais interagem quisadores – percebam menos que outros gru-
diferentes grupos e papéis. Possuem uma dinâ- pos da organização a ação das hierarquias e
mica interna que, no cotidiano, atualiza identi- controles no ambiente de trabalho.
dades, hierarquias, conflitos e alianças. Embo- Em relação aos Outros Profissionais de Saú-
ra o grupo formado pelos médicos materialize de de Nível Superior – enfermeiros, majoritaria-
a própria identidade da organização, do ponto mente, mas também nutricionistas, psicólo-
de vista quantitativo representa uma parcela gos, assistentes sociais etc –, nota-se a dificul-
relativamente pequena dos trabalhadores (no dade de afirmação de um campo de autonomia
CPqHEC, os médicos e pesquisadores somam no interior das organizações de saúde, o que
cerca de 20% dos funcionários). Esse grupo aponta para as tensões inerentes à prática do
principal interage com os outros grupos que atendimento multiprofissional como uma das
dão suporte à realização de suas atividades. A estratégias da atenção à saúde. A inexistência
relação dos médicos e pesquisadores com os de relações mais igualitárias entre esses profis-
outros grupos é suscetível às tensões de legiti- sionais e os médicos no que se refere à autono-
mação, na medida em que o exercício de seu mia e à distribuição do poder constitui a regra
poder e autoridade causa ingerência ou pres- para as organizações hospitalares.
são sobre o trabalho das demais categorias, “in- Os Técnicos e Auxiliares de Saúde formam o
vadindo” áreas de competência que essas últi- grupo sobre o qual a sobreposição das diferen-
mas consideram de sua responsabilidade. Os tes fontes de poder e autoridade, e das hierar-
conflitos e as tensões são inerentes às organi- quias que elas estabelecem, fazem-se sentir
zações e, em última instância, alimentam-se com maior força. Correspondem às funções su-
das tentativas para conservar ou alterar a dis- bordinadas da estrutura organizacional e, não
tribuição do poder. possuindo a autonomia característica das pro-
Em uma das perguntas do questionário, foi fissões, encontram-se mais sujeitos à ação da
pedido que se opinasse sobre a freqüência com autoridade administrativa. Por outro lado, tra-
que as relações profissionais no CPqHEC têm tando-se de ocupações com menor grau de
por base a hierarquia e o controle. As respostas qualificação, mas diretamente vinculadas ao
a essa pergunta, apresentadas na Tabela 5, espaço no qual a relação entre saber e poder é
apontam para o grau de autonomia dos médi- explícita, é sobre esses funcionários que mais
cos e pesquisadores no interior da organização recai a permanente pressão e controle que
e, simultaneamente, dá indicações do poder emana da hierarquia fundada na legitimidade
que exercem sobre as demais categorias. En- do saber médico, ou seja, na autoridade profis-
quanto nesse grupo 41,9% dos respondentes sional destes últimos.
afirmaram que no CPqHEC as relações entre As assimetrias de poder nas relações que se
profissionais, “sempre” ou “muitas vezes”, têm estabelecem entre grupos e indivíduos no inte-
vilégio emerge no momento em que regras ou Técnico/auxiliar de saúde 31,1 50,8 14,8 3,3
práticas instituídas beneficiam grupos ou indi- Outros técnicos/auxiliares 21,7 39,1 26,1 13,0
víduos específicos, sem o consentimento e acei- Total 20,9 46,0 27,6 5,5
tação dos demais integrantes da organização. Fonte: Pesquisa Gestão de Qualidade e Cultura em Organizações Públicas
O que caracteriza o privilégio não é a existên- de Saúde. Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, 2000.
Notas: p-valor = 0,014.
cia de uma situação marcada pela desigualda- Para a execução do teste, as colunas “raramente” e “nunca” foram agregadas para
de de condições ou oportunidades, mas sim a que o número de células com freqüência esperada < 5 não ultrapassasse 20%.
ausência de atributos que confiram legitimida- Considerando o peso de cada categoria, a ausência de respostas foi
proporcionalmente maior nos grupos Técnicos e Auxiliares de Saúde (21
de a essa dada situação de desigualdade, ou se- missing) e Outros Técnicos e Auxiliares (6 missing).
ja, a percepção de privilégio está ligada à per-
cepção de poder ilegítimo e sentimento de in-
justiça.
Pelos dados levantados, há indicações de
que os controles e hierarquias que regulam as Tabela 6
relações entre profissionais no CPqHEC gozam
de legitimidade para a maior parte dos gru- Freqüência com que os privilégios de algumas categorias
pos/segmentos da organização. Embora 66,9% atrapalham o trabalho em equipe.
dos trabalhadores pesquisados tenham afirma-
do que, sempre ou muitas vezes, as relações en- (n = 169) Opções de resposta
tre profissionais têm por base a hierarquia e o Categoria profissional Sempre Muitas vezes Raramente Nunca
(%) (%) (%) (%)
controle, e 59,7% tenham declarado que os pri-
vilégios de algumas categorias sempre ou mui- Médicos e pesquisadores 18,8 18,8 53,1 9,4
tas vezes atrapalham o trabalho em equipe (Ta- Outros profissionais 25,0 42,9 21,4 10,7
bela 6), a correlação estatística (r) entre ambas de saúde nível superior
as questões é bastante fraca, apenas 0,201 (P- Outros profissionais 20,0 55,0 10,0 15,0
valor = 0,014), ainda que apresente significân- de nível superior
cia estatística. Quando a correlação entre am- Técnico/auxiliar de saúde 29,0 32,3 21,0 17,7
bas as questões é calculada tomando por base Outros técnicos/auxiliares 40,7 22,2 22,2 14,8
se que, de fato, ela só existe para o grupo Ou- Fonte: Pesquisa Gestão de Qualidade e Cultura em Organizações Públicas
tros Técnicos e Auxiliares, no qual alcança o va- de Saúde. Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, 2000.
Notas: p-valor = 0,026.
lor r = 0,457 (P-valor = 0,029), sendo a correla- Considerando o peso de cada categoria, a ausência de respostas foi
ção observada para o conjunto apenas um re- proporcionalmente maior nos grupos Técnicos e Auxiliares de Saúde (20
flexo desse grupo particular. Vale destacar tam- missing) e Médicos e Pesquisadores (5 missing).
da organização (Tabela 9) deixam transparecer Técnicos/auxiliar de saúde 37,5 45,0 16,3 1,3
a oposição entre os especialistas (médicos e Outros técnicos/auxiliares 26,9 23,1 46,2 3,8
pesquisadores) e os demais grupos que orbi- Total 33,0 48,7 16,8 1,6
tam ao seu redor, viabilizando, direta ou indi- Fonte: Pesquisa Gestão de Qualidade e Cultura em Organizações Públicas
retamente, a execução das suas atividades, por de Saúde. Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, 2000.
Notas: p-valor = 0,001.
meio das quais se concretizam os objetivos or- Para a execução do teste as colunas “raramente” e “nunca” foram agregadas para
ganizacionais. Nos grupos subordinados, uma que o número de células com freqüência esperada < 5 não ultrapassasse 20%.
parcela expressiva dos trabalhadores considera
que sua dedicação não é devidamente reco-
nhecida pela organização. Enquanto 81,3% dos
Médicos e Pesquisadores declararam que quem
é comprometido com o trabalho é reconhecido Tabela 9
sempre ou muitas vezes, apenas 42,3% dos téc-
nicos e auxiliares da área-meio afirmaram o Com que freqüência aquele que é comprometido com o trabalho é reconhecido.
mesmo. Este último grupo novamente apresen-
tou as percepções mais negativas, embora ele (n = 180) Opções de resposta
aqui seja acompanhado pelos demais grupos Categoria profissional Sempre Muitas vezes Raramente Nunca
(%) (%) (%) (%)
na contraposição aos médicos e pesquisadores.
Observe-se também a correlação r 0,635 (p-va- Médicos e pesquisadores 18,8 62,5 15,6 3,1
lor = 0,000) entre a Tabela 9 (reconhecimento) Outros profissionais 13,3 46,7 40,0
e a Tabela 10 (avaliação). de saúde nível superior
Contudo, o sentimento de não reconheci- Outros profissionais 10,5 52,6 36,8
mento, compartilhado por boa parte dos mem- de nível superior
bros dos grupos periféricos, deve ser com- Técnico/auxiliar de saúde 27,4 34,2 27,4 11,0
preendido, também, a partir da análise de ele- Outros técnicos/auxiliares 19,2 23,1 50,0 7,7
desse mesmo sentimento em funcionários de Fonte: Pesquisa Gestão de Qualidade e Cultura em Organizações Públicas
outras organizações públicas, da área de saúde de Saúde. Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, 2000.
Notas: p-valor = 0,036.
ou não, tem levado a se buscar nos elementos Para a execução do teste, as colunas “raramente” e “nunca” foram agregadas para
constitutivos da sociedade brasileira a com- que o número de células com freqüência esperada < 5 não ultrapassasse 20%.
preensão da recorrência desse fato. Considerando o peso de cada grupo, as não-respostas (missing) distribuíram-se
de forma mais ou menos uniforme entre as diferentes categorias profissionais.
Como discutido por Barbosa (1999), valen-
do-se de pesquisa realizada com funcionários
públicos, e por Vaitsman (2001), com base em
dados de pesquisa com profissionais de saúde crença de que as regras do jogo sejam as mes-
de um hospital municipal do Rio de Janeiro, mas para todos, o que provavelmente tem im-
apesar de prevalecer a opinião de que o mérito plicações negativas do ponto de vista da for-
e o desempenho devam ser os principais parâ- mação de um ethos de envolvimento e com-
metros para avaliação dos servidores, os fun- prometimento com a coisa pública.
cionários de organizações públicas tendem a O paradoxo entre as características relacio-
acreditar que, na prática, os que possuem al- nais e hierárquicas (DaMatta, 2000) constituti-
gum tipo de “apadrinhamento”, ou bom rela- vas da cultura brasileira e a incorporação dos
cionamento com as chefias, acabam sendo valores de mérito e igualdade, fundadores dos
mais bem sucedidos. Ainda que aspirações e princípios gerenciais modernos, é uma fonte
atitudes universalistas sejam bem abrangentes geradora de contradições permanentes no fun-
entre os servidores, a isso não corresponde a cionamento das organizações públicas brasi-
Com que freqüência o desempenho dos funcionários é avaliado adequadamente. A despeito do esforço de generalização efetua-
do nesse artigo, deve-se lembrar que as organi-
(n = 158) Opções de resposta zações, ainda que sejam do mesmo tipo – nes-
Categoria profissional Sempre Muitas vezes Raramente Nunca se caso, hospitalares –, possuem especificidades
(%) (%) (%) (%)
que as diferem umas das outras. O CPqHEC,
Médicos e pesquisadores 3,3 43,3 36,7 16,7 por exemplo, é um hospital reconhecido por
Outros profissionais 8,3 25,0 58,3 8,3 sua excelência, o qual, em inúmeros aspectos,
de saúde nível superior não pode ser igualado a outros hospitais públi-
Outros profissionais 5,9 29,4 35,3 29,4 cos brasileiros. O artigo procurou explorar
de nível superior pontos que tendem a ser comuns às organiza-
Técnico/auxiliar de saúde 24,2 30,3 31,8 13,6 ções hospitalares, especialmente do setor pú-
Outros técnicos/auxiliares 14,3 14,3 52,4 19,0 blico, tendo clareza de que os problemas dis-
Total 14,6 29,7 39,9 15,8 cutidos possuem diferentes graus de intensi-
Fonte: Pesquisa Gestão de Qualidade e Cultura em Organizações Públicas dade em cada organização específica.
de Saúde. Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, 2000. As propostas de reforma das estruturas do
Notas: p-valor = 0,058.
Para a execução do teste, as colunas “sempre” e “muitas vezes” foram agregadas,
Estado, incorporadas à agenda política brasi-
mas ainda assim o número de células com freqüência esperada < 5 atingiu 26,7%. leira a partir do início da década de 90, têm ins-
Considerando o peso de cada categoria, a distribuição de não-respostas foi pirado diversas investigações sobre a adminis-
maior no grupo Outros Técnicos e Auxiliares (8 missing); os demais grupos tiveram
uma distribuição bastante similar entre si. tração pública brasileira e o funcionamento de
suas organizações. A necessidade de mudan-
ças orientadas para o alcance de maior eficiên-
cia e qualidade, assim como de maior accoun-
leiras. Estaríamos aqui lidando com represen- tability, implica a compreensão do ambiente
tações sociais próprias da cultura brasileira, o interno e externo no qual as organizações efe-
que poderia ser visto como uma “variável ex- tivamente operam, ou seja, das representações,
terna” à organização afetando as opiniões e valores e práticas instituídas na organização
percepções que seus membros manifestam específica e na sociedade em que se insere.
acerca de determinadas condições e situações As organizações de saúde são espaços so-
internas. Variável externa que, no entanto, não ciais por natureza conflituosos, nos quais a so-
deixa de informar as práticas no interior da or- lidariedade e a coesão apresentam as mesmas
ganização, ainda que de forma atualizada às fragilidades encontradas em outros ambientes
suas condições de funcionamento e padrões de de interação social. Diferentes grupos e indiví-
interação. Desse modo, tanto a tendência a duos possuem expectativas e objetivos distin-
opiniões negativas quanto a própria correlação tos, e as estratégias mobilizadas para alcançá-
r = 0,580 (p-valor = 0,000), observada para as los produzem, não raro, situações de conflito e
questões avaliação adequada ( Tabela 10) e contraditórias. Reconhecer a implausibilidade
igualdade das regras (Tabela 7), sofrem em al- da eliminação dos conflitos não significa que
guma medida o impacto da “variável” cultura. se deva abrir mão de administrá-los, principal-
Para além da especificidade de cada organiza- mente quando seus efeitos podem vir a se re-
ção, deve-se considerar que elas não consti- fletir na queda da eficiência e da qualidade dos
tuem universos sociais fechados; antes, são es- serviços oferecidos aos usuários.
paços onde se atualizam a cultura e as relações Nas organizações hospitalares, a heteroge-
sociais que compõem o contexto histórico-so- neidade das categorias profissionais, aliada à
cial mais amplo do qual fazem parte ( Vaits- distribuição de poder típica das organizações
man, 2000). A combinação de elementos exter- de especialistas, torna mais complexos os es-
nos e internos na conformação das percepções forços de coordenação. Observou-se que al-
organizacionais pode ser notada ainda através guns padrões de conflito são inerentes às orga-
da correlação entre as Tabelas 7 e 10, que apre- nizações hospitalares, uma vez que expressam
senta valores mais elevados para os grupos da a distribuição de poder e prestígio que lhes é tí-
área-meio: r = 0,720 (p-valor = 0,001) para Ou- pica. A dicotomia entre o grupo central – médi-
tros Profissionais de Nível Superior e r = 0,698 cos e pesquisadores –, no qual se funda a iden-
(p-valor = 0,001) para Outros Técnicos e Auxi- tidade da organização, e o conjunto de grupos
liares. periféricos, que dão suporte e viabilizam a rea-
lização das suas atividades, constitui a caracte-
rística fundamental por meio da qual se pode
compreender a estrutura que organiza os pa-
Agradecimentos
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(mimeo.)