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A multidão aclama Benito Mussolini / Piazza Venezia, Roma.

©Hi-Story/Alamy/IPA
Copyright © 2018 by Antonio Scurati
Publicado mediante acordo com The Italian Literary Agency.
TÍTULO ORIGINAL
M: Il figlio del secolo
PREPARAÇÃO
Ilana Goldfeld
Milena Vargas
REVISÃO
João Sette Camara
Juliana Pitanga

ADAPTAÇÃO DE CAPA
Túlio Cerquize
REVISÃO DE E-BOOK
Carolina Rodrigues
Carolina Vaz
GERAÇÃO DE E-BOOK
Joana De Conti
E-ISBN
978-85-510-0608-5
Edição digital: 2019
1ª edição
Todos os direitos desta edição reservados à
Editora Intrínseca Ltda.
Rua Marquês de São Vicente, 99, 3o andar
22451-041 – Gávea
Rio de Janeiro – RJ
Tel./Fax: (21) 3206-7400
www.intrinseca.com.br
SUMÁRIO

[Avançar para o início do texto]

Folha de rosto
Créditos
Mídias sociais

1919
Fundação dos Fasci di Combattimento 1: Milão, Piazza San
Sepolcro, 23 de março de 1919
Benito Mussolini: Milão, início da primavera de 1919
Amerigo Dùmini: Florença, final de março de 1919
Filippo Tommaso Marinetti, Benito Mussolini: Milão, 15 de abril
de 1919
Gabriele D’Annunzio: Roma, 6 de maio de 1919
Benito Mussolini: Milão, meados de maio de 1919
Benito Mussolini, Cesare Rossi: Fim de junho de 1919
Benito Mussolini: 19 de julho de 1919
Nicola Bombacci: Milão, 20 de julho de 1919
Benito Mussolini: Praia de Senigália, fim de agosto de 1919
Gabriele D’Annunzio: 11 de setembro de 1919
Benito Mussolini: Veneza, 20-22 de setembro de 1919
Benito Mussolini: Fiume, 7 de outubro de 1919
Amerigo Dùmini: Florença, 10 de outubro de 1919
Benito Mussolini: Florença, 10 de outubro de 1919
Benito Mussolini: Milão, fim de outubro de 1919
Gabriele D’Annunzio: Fiume, 24 de outubro de 1919
Benito Mussolini: Milão, 11 de novembro de 1919
Nicola Bombacci: Bolonha, início de novembro de 1919
Benito Mussolini: Milão, 17 de novembro de 1919
Albino Volpi: Milão, 17 de novembro de 1919, 20h
Milão, 18 de novembro de 1919
Nicola Bombacci: Roma, 1º de dezembro de 1919
Gabriele D’Annunzio: Fiume, 18 de dezembro de 1919
Leandro Arpinati: Lodi, 18 de dezembro de 1919
Benito Mussolini: Milão, dezembro de 1919
Benito Mussolini: Milão, 1º de janeiro de 1920

1920
Gabriele D’Annunzio: Fiume, 18 de março de 1920
Margherita Sarfatti: Milão, primavera de 1920
Benito Mussolini: Milão, primavera de 1920
Leandro Arpinati: Bolonha, abril de 1920
Nicola Bombacci: Milão, 19 de abril de 1920
Milão, 24 de maio de 1920
Fiume d’Italia, 15 de junho de 1920
Benito Mussolini: Verão de 1920
Leandro Arpinati: Vale do Pó, verão de 1920
Benito Mussolini: Milão, 28 de setembro de 1920
Amerigo Dùmini: Montespertoli, 11 de outubro de 1920
Giacomo Matteotti: Fratta Polesine, 12 de outubro de 1920
Benito Mussolini: Milão, fim de outubro de 1920
Ferrara, 3 de novembro de 1920
Leandro Arpinati: Bolonha, 4 de novembro de 1920
Benito Mussolini: Milão, 15 de novembro de 1920
Leandro Arpinati: Bolonha, 23 de novembro de 1920
Benito Mussolini: Trieste, início de dezembro de 1920
Benito Mussolini: Milão, 20 de dezembro de 1920
Italo Balbo: Ferrara, 22 de dezembro de 1920
Benito Mussolini: Milão, 24 de dezembro de 1920
Gabriele D’Annunzio: Fiume, Natal de 1920
Benito Mussolini: Milão, 31 de dezembro de 1920
1921
Nicola Bombacci: Livorno, 16-17 de janeiro de 1921
Italo Balbo: Ferrara, 23 de janeiro de 1921
Margherita Sarfatti: Milão, 30 de janeiro de 1921
Giacomo Matteotti: Roma, 31 de janeiro de 1921
Benito Mussolini: Milão, final de fevereiro de 1921
Campos do Polesine: Fim de fevereiro de 1921, noite
Amerigo Dùmini: Florença, 27 de fevereiro — 1º de março de 1921
Benito Mussolini: Milão, 5 de março de 1921
Giacomo Matteotti: 10-12 de março de 1921
Leandro Arpinati: Ferrara, 18 de março de 1921
Benito Mussolini: Milão, 23-27 de março de 1921
Benito Mussolini: Bolonha-Ferrara, 3-4 de abril de 1921
Benito Mussolini: 23 abril — maio de 1921
Italo Balbo: abril-maio de 1921
Benito Mussolini: Milão, 16 de maio de 1921
Benito Mussolini: Roma, 21 de junho de 1921
Amerigo Dùmini: Sarzana, 21 de julho de 1921
Italo Balbo: Gardone, 18 de agosto de 1921
Benito Mussolini: Módena, 28 de setembro de 1921
Benito Mussolini: Livorno, 27 de outubro de 1921
Roma, 7-9 de novembro de 1921: Teatro Augusteo, Congresso
Nacional dos Fasci di Combattimento
Giacomo Matteotti: Roma, 2 de dezembro de 1921
Benito Mussolini: 28 de dezembro de 1921

1922
Benito Mussolini, Pietro Nenni: Cannes, 8 de janeiro de 1922
Amerigo Dùmini: Prato, 17 de janeiro de 1922
Giacomo Matteotti: janeiro-fevereiro de 1922
Benito Mussolini: Milão, 25 de fevereiro de 1922
Italo Balbo: Ferrara, 12-14 de maio de 1922
Benito Mussolini: Milão, 13 de maio de 1922
Leandro Arpinati: Bolonha, 28 de maio — 2 de junho de 1922
Benito Mussolini: 26 de julho de 1922
Italo Balbo: Ravena, 27-30 de julho de 1922
Amerigo Dùmini: Milão, 3 de agosto de 1922
Benito Mussolini: Milão, 13 de agosto de 1922
Giacomo Matteotti: 10 de outubro de 1922
Benito Mussolini: Milão, 16 de outubro de 1922
Nicola Bombacci: Moscou, fim de outubro de 1922
Em marcha: 24-31 de outubro de 1922
Roma, 25 de outubro de 1922: Plataforma da Estação Termini,
19h30
Gardone, 25 de outubro de 1922: Villa di Cargnacco
Milão, Foro Bonaparte, 26 de outubro de 1922: Casa Mussolini,
manhã
Milão, Via Lovanio, 26 de outubro de 1922: Sede do Il Popolo
d’Italia, tarde/noite
Milão, Via Lovanio, 27 de outubro de 1922: Sede do Il Popolo
d’Italia, 2h40
Milão, Via Lovanio, 27 de outubro de 1922: Sede do Il Popolo
d’Italia, 3h
Milão, Via Lovanio, 27 de outubro de 1922: Sede do Il Popolo
d’Italia, tarde
Perúgia, 27 de outubro de 1922: Hotel Brufani, quartel-general do
quadrunvirato, noite
Cremona, 27 de outubro de 1922: Edifício da prefeitura, noite
Roma, 27 de outubro de 1922: Hotel Londra, 22h
Milão, 27 de outubro de 1922: Camarotes do Teatro Manzoni, logo
após as 22h
Roma, 28 de outubro de 1922: Ministérios da Guerra e do Interior,
noite
Santa Marinella, Monterotondo, Tivoli: 28 de outubro de 1922,
8h30
Milão, Via Lovanio, 26 de outubro de 1922: Sede do Il Popolo
d’Italia, por volta de 8h
Perúgia, 28 de outubro de 1922: Hotel Brufani, Comando supremo
da marcha sobre Roma, mesma hora (por volta das 8h)
Milão, Via Lovanio, 28 de outubro de 1922: Sede do Il Popolo
d’Italia
Perúgia, 28 de outubro de 1922: Hotel Brufani
Tivoli, Monterotondo, Santa Marinella: 28 de outubro de 1922
Benito Mussolini: Roma, 31 de outubro de 1922
Benito Mussolini: Roma, 16 de novembro de 1922
Giacomo Matteotti: Roma, 18 de novembro de 1922
Benito Mussolini: Roma, 31 de dezembro de 1922

1923
Benito Mussolini: Roma, janeiro de 1923
Margherita Sarfatti: Janeiro de 1923
Benito Mussolini: Roma, 12 de janeiro de 1923
Margherita Sarfatti: Milão, 26 de março de 1923
Benito Mussolini: Roma, 17-23 de abril de 1923
Italo Balbo, Amerigo Dùmini: Roma, 29 de maio de 1923
Giacomo Matteotti: Siena, 2 de julho de 1923
Roma, 15 de julho de 1923: Parlamento italiano, Câmara dos
Deputados
Italo Balbo: Ferrara, 24 de agosto de 1923
Benito Mussolini: Fim de agosto de 1923
Amerigo Dùmini: Trieste, 3 de setembro de 1923
Italo Balbo: Início de outubro de 1923
Benito Mussolini: Milão, 28 de outubro de 1923
Nicola Bombacci: 30 de novembro de 1923

1924
Benito Mussolini: Roma, 28 de janeiro de 1924
Cesare Rossi: Roma, fevereiro de 1924
Amerigo Dùmini: Milão, 12 de março de 1924
Giacomo Matteotti: Roma, 1º de abril de 1924
Benito Mussolini: Milão, início de abril de 1924
Margherita Sarfatti: Veneza, 1º de abril de 1924
Roma, 24 de maio de 1924: Parlamento do Reino, plenário de
Montecitório
Roma, 30 de maio de 1924: Montecitório, Câmara dos Deputados
Roma, 7 de junho de 1924: Montecitório, Câmara dos Deputados
Amerigo Dùmini: Roma, 10 de junho de 1924
Cem horas terríveis
A qualquer custo: 16-26 de junho de 1924
O país opaco: 27 de junho — 22 de julho de 1924
Clorofórmio: 22 de julho — 7 de agosto de 1924
O cadáver: Macchia della Quartarella, 16 de agosto de 1924
Precipício: 21 de agosto — 16 de dezembro de 1924
Pântano: Roma, 21 de dezembro de 1924
La Muta: Roma, 31 de dezembro de 1924
Roma, 3 de janeiro de 1925: Parlamento do Reino, Câmara dos
Deputados, 15h

Personagens principais
Lista de artigos citados
Notas
Sobre o autor
Leia também
Fatos e personagens deste romance documental não são fruto da imaginação
do autor. Cada acontecimento, personagem, diálogo ou discurso aqui narrado
é, ao contrário, historicamente documentado e/ou fidedignamente
testemunhado por mais de uma fonte. Dito isso, também é verdade que a
história é uma invenção à qual a realidade traz consigo seus próprios
materiais. Todavia, não é nada arbitrária.
“Eu sou uma força do passado.”
Pier Paolo Pasolini
1919
Fundação dos Fasci di Combattimento 1
Milão, Piazza San Sepolcro, 23 de março de 1919

Aproximamo-nos da Piazza San Sepolcro. Cerca de cem pessoas, todos


homens sem importância alguma. Somos poucos e estamos mortos.
Esperam que eu fale, mas nada tenho a dizer.
O cenário está vazio, inundado por 11 milhões de cadáveres, uma enchente
de corpos — reduzidos à gosma, liquefeitos — transbordada das trincheiras
do Carso, do Ortigara, do Isonzo. Nossos heróis já foram mortos, ou logo o
serão. Amamos todos eles, sem distinções. Estamos sentados sobre a pilha
sagrada dos mortos.
O realismo que se segue a cada enchente abriu meus olhos: a Europa se
tornou um palco sem personagens. Todos desapareceram: os homens
barbados, os pais grandiosos e melodramáticos, os magnânimos liberais
choramingões, os oradores grandiloquentes, cultos e floreados, os moderados
e seu bom senso, a quem desde sempre devemos nossa desgraça, os políticos
esgotados que vivem sob o pânico da destruição iminente, mendigando a
cada dia um adiamento do inevitável. Para todos eles, o sino tocou. Os
homens velhos serão atropelados por essa massa enorme, 5 milhões de
combatentes pressionam nas fronteiras territoriais, 5 milhões de homens que
retornam. É preciso acertar o passo, um passo apertado. A previsão não
muda, o tempo continuará ruim. A guerra ainda está na ordem do dia. O
mundo segue rumo a dois grandes partidos: os que lá estiveram e os que não
estiveram lá.
É o que vejo, tudo isso é o que vejo com clareza nessa plateia de delirantes
e desvalidos, porém nada tenho a dizer. Somos um povo de veteranos, uma
humanidade de sobreviventes, de restos. Nas noites de extermínio, agachados
nas crateras, uma sensação semelhante ao êxtase dos epiléticos nos agitou.
Falamos brevemente, lacônicos, assertivos, em um ímpeto violento.
Metralhamos as ideias que não temos e então voltamos a cair no mutismo.
Somos como fantasmas de insepultos que deixaram a palavra entre as pessoas
na retaguarda.
No entanto, esta, somente esta, é a minha gente. Eu bem sei. Sou o
desgarrado por excelência, o protetor dos desmobilizados, o desnorteado em
busca do caminho. Mas a questão existe e é imprescindível levá-la adiante.
Nesta sala semivazia, com as narinas dilatadas, farejo nossos tempos, estendo
o braço, procuro o pulso da multidão e tenho certeza de que meu público está
presente.
A primeira reunião dos Grupos de Combate, alardeada por semanas pelo Il
Popolo d’Italia como um compromisso fatídico, foi marcada no Teatro dal
Verme, com capacidade para 3 mil pessoas. Mas o vasto auditório foi
cancelado. Entre a grandiosidade do deserto e a pequena vergonha,
preferimos a segunda. Nós recuamos para esta sala de reuniões do Círculo da
Aliança Comercial e Industrial. É aqui que eu devo falar agora. Entre quatro
paredes forradas por um triste papel verde-musgo, de frente para a
insignificante pracinha cinzenta paroquial, entre as douraduras que tentam em
vão tirar do torpor as poltronas Biedermeier, em meio a umas poucas
cabeleiras desalinhadas, calvícies, cotocos, veteranos emaciados que respiram
a asma de menor importância dos comércios ordinários, de antigas prudências
e meticulosas avarezas de balancetes. No fundo da sala, vez por outra, surge
curioso algum sócio do círculo. Um atacadista de sabão, um importador de
cobre, pessoas desse tipo. Lança um olhar perplexo, volta a fumar charuto e a
beber seu Campari.
Mas por que eu devo falar?!
A presidência da assembleia foi assumida por Ferruccio Vecchi, fervoroso
intervencionista, capitão dos Arditi posto em licença por motivos de doença,
moreno, alto, pálido, magro, com os olhos encovados: os estigmas da
degeneração patológica. Um tuberculoso excitável e impulsivo que prega
com violência, sem substância nem medida, e nos momentos de destaque das
manifestações públicas exalta-se como um possesso, tomado por um delírio
demagógico e, então... é quando se torna perigoso de verdade. A secretaria do
movimento será quase certamente confiada a Attilio Longoni, um ex-
ferroviário ignorante, caxias e tolo como só os honestos sabem ser. A ele ou a
Umberto Pasella, nascido na prisão, filho de um carcereiro que se tornou
vendedor, sindicalista revolucionário, garibaldino na Grécia, ilusionista nos
circos itinerantes. Escolheremos os outros dirigentes a esmo entre os que
fizeram mais alvoroço nas primeiras fileiras.
Por que devo falar a esses homens?! Por causa deles, os fatos superaram
todas as teorias. É gente que toma a vida de assalto como um comando.
Tenho à minha frente apenas a trincheira, a borra dos dias, a área dos
combatentes, a arena dos loucos, o sulco dos campos arados com tiros de
canhão, os facínoras, os deslocados, os delinquentes, os genialoides, os
ociosos, os playboys pequeno-burgueses, os esquizofrênicos, os
negligenciados, os desaparecidos, os erráticos, os notívagos, os ex-
presidiários, os reincidentes, os anárquicos, os sindicalistas incendiários, os
gazeteiros desesperados, uma boemia política de veteranos, oficiais e
suboficiais, homens hábeis no manejo de armas de fogo ou cortantes, aqueles
que se redescobriram violentos em face da normalidade do retorno, os
fanáticos incapazes de ver com clareza as próprias ideias, os sobreviventes
que, acreditando serem heróis consagrados à morte, confundem uma sífilis
mal curada com um sinal do destino.
Eu sei, vejo-os aqui na minha frente, conheço-os de cor e salteado: são os
homens da guerra. Da guerra ou do seu mito. Eu os desejo como o macho
deseja a fêmea, e, ao mesmo tempo, desprezo-os. Sim, eu os desprezo, mas
não importa: uma época chegou ao fim e outra se iniciou. Os escombros se
acumulam, os destroços se conectam uns aos outros. Eu sou o homem do
“depois”. E faço questão de ser. É com esse material decadente — com essa
humanidade residual — que se faz a história.
De qualquer maneira, é o que está diante de mim. E, atrás, nada. Atrás,
tenho o dia 24 de novembro de 1917. Caporetto. A agonia da nossa época, a
maior derrota militar de todos os tempos. Um exército de 1 milhão de
soldados destruído em um fim de semana. Atrás, tenho o dia 24 de novembro
de 1914. O dia da minha expulsão do Partido Socialista, a sala da Sociedade
Humanitária onde amaldiçoaram meu nome, os operários para quem até o dia
anterior eu era o ídolo derrubando-se uns aos outros para ter a honra de me
esmurrar. Agora, recebo todos os dias seus votos de morte. É o que desejam a
mim, a D’Annunzio, a Marinetti, a De Ambris, e até a Corridoni, que morreu
há quatro anos na terceira batalha do Isonzo. Desejam a morte a quem já
morreu. A essa altura, nos odeiam porque os traímos.
As multidões “vermelhas” pressentem a iminência do seu triunfo. Em seis
meses, desmoronaram três impérios, três casas que governavam a Europa
havia seis séculos. A epidemia da gripe “espanhola” já contagiou dezenas de
milhões de vítimas. Os acontecimentos traduzem irrupções apocalípticas.
Semana passada, em Moscou, reuniu-se a Terceira Internacional Comunista.
O partido da guerra civil mundial. O partido daqueles que querem me ver
morto. De Moscou à Cidade do México, em todo o planeta. Começa a época
da política das massas e nós, aqui dentro, somos menos de cem.
Mas isso também não importa. Ninguém mais acredita na vitória. Já
chegou e tinha gosto de lama. Nosso entusiasmo — juventude, juventude! —
é uma forma suicida de desespero. Estamos com os mortos, são eles que
respondem ao nosso apelo nesta sala semivazia, aos milhões.
Lá embaixo, na rua, os gritos dos aprendizes invocam a revolução. Nós
rimos. Já a fizemos. Empurramos aos chutes este país para a guerra, em 10 de
maio de 1915. Agora todos nos dizem que esta terminou. Mas nós
continuamos a rir. A guerra somos nós. O futuro nos pertence. Não adianta,
não há nada a ser feito, eu sou como os animais: sinto o tempo por vir.
Benito Mussolini é de constituição física forte apesar da sífilis.
Essa sua robustez lhe permite trabalhar continuamente.
Descansa até altas horas da manhã, sai de casa ao meio-dia, mas não volta
antes das 3h da madrugada, e essas quinze horas, salvo uma breve pausa para
as refeições, são dedicadas à atividade jornalística e política.
É inclinado aos prazeres sensuais, o que é perceptível pelas muitas relações
estabelecidas com várias mulheres.
É emotivo e impulsivo. Essas suas características o tornam sugestivo e
persuasivo em seus discursos. Entretanto, apesar de falar bem, não se pode
defini-lo exatamente como um orador.
É, no fundo, sentimental, o que atrai muitas amizades e cativa as pessoas.
É desinteressado, generoso, e isso lhe rendeu uma reputação de altruísmo e
filantropia.
É muito inteligente, astuto, comedido, reflexivo, conhece bem os homens,
suas qualidades e defeitos.
Afeito a simpatias e antipatias imediatas, é capaz de sacrifícios pelos
amigos, e é tenaz nas inimizades e nos ódios.
É corajoso e audaz; é organizado, capaz de tomar decisões rápidas; mas
não é igualmente tenaz em suas convicções e seus propósitos.
É ambiciosíssimo. É movido pela convicção de que representa uma força
considerável no destino da Itália e está decidido a reforçá-la. É um homem
que não se conforma com posições secundárias. Quer ter a primazia e
dominar.
No socialismo oficial, ascendeu rapidamente de origens obscuras a uma
posição eminente. Antes da guerra, foi o diretor ideológico do Avanti!, o
jornal que guia todos os socialistas. Naquela competência, foi muito
apreciado e amado. Alguns de seus antigos companheiros e admiradores
confessam ainda hoje que ninguém soube compreender e interpretar como ele
a alma do proletariado, o qual viu com dor sua traição (apostasia) quando, em
poucas semanas, se transformou de apóstolo sincero e apaixonado pela
neutralidade absoluta em apóstolo sincero e apaixonado pela intervenção
bélica.
Não acredito que isso tenha sido determinado por cálculo de interesses ou
de lucro.
Também é impossível estabelecer quanto de suas convicções socialistas,
nunca renegadas publicamente, se perderam nas transações financeiras
indispensáveis à continuação da luta por meio do Il Popolo d’Italia, o novo
jornal que fundou, no contato com homens e correntes de outra fé, em
conflito com os antigos companheiros, sob a pressão constante do ódio
indomável, da animosidade ácida, das acusações, dos insultos, das calúnias
incessantes por parte de seus antigos seguidores. Mas, caso essas alterações
secretas tenham se verificado, engolidas na sombra das coisas mais próximas,
Mussolini nunca deixará isso transparecer, e sempre desejará parecer — e
talvez sempre se iluda em ser — socialista.
Esta, segundo a minha pesquisa, é a figura moral do homem, em
contradição com a opinião de seus antigos companheiros de fé e adeptos.
Dito isso, se uma pessoa de grande autoridade e inteligência souber
encontrar na sua mente o ponto de menor resistência, se souber, antes de mais
nada, ser-lhe simpático e insinuar-se em seu espírito, se souber demonstrar-
lhe qual é o verdadeiro interesse da Itália (porque eu acredito no patriotismo
dele), se com muito tato oferecer-lhe os fundos indispensáveis para a ação
política à qual se acordou, sem dar a impressão de uma vulgar domesticação,
Mussolini se deixará conquistar aos poucos.
Mas, com o seu temperamento, nunca será possível ter certeza de que, em
alguma curva do caminho, ele não vá desertar. Como já foi dito, trata-se de
um homem emotivo e impulsivo.
Certo é que, em campo adversário, Mussolini, homem de pensamento e de
ação, escritor eficaz e incisivo, orador persuasivo e vivaz, poderia se tornar
um comandante, um combatente temível.

Relatório do inspetor-geral de segurança pública Giovanni


Gasti, primavera de 1919

Fasci de ação entre intervencionistas

No salão do Círculo da Aliança Comercial e Industrial,


aconteceu ontem uma reunião para a fundação dos Fasci di
Combattimento regionais entre associações de
intervencionistas. Na reunião, discursaram o industrial Enzo
Ferrari, o capitão da tropa de elite dos Arditi, Vecchi, e muitos
outros. O prof. Mussolini ilustrou os fundamentos sobre os
quais a ação dos Grupos deveria ser realizada, ou seja:
valorização da guerra e de quem nela combateu; demonstração
de que o imperialismo, pelo qual os italianos são
culpabilizados, é desejado por todos os povos, sem exclusão
da Bélgica e de Portugal, e por isso se opõe aos imperialismos
estrangeiros que prejudicam nosso país e se opõe a um
imperialismo italiano contra as outras nações; por fim,
aceitação da batalha eleitoral sobre o “fato” da guerra e
oposição a todos os partidos e candidatos que a contestaram.
As propostas de Mussolini, após os discursos de numerosos
oradores, foram aprovadas. Na reunião, diversas cidades da
Itália estavam representadas.

Corriere della Sera, 24 de março de 1919, coluna “Le


conferenze dominicali”

Furto de três toneladas de sabão

Alguns ladrões invadiram o armazém de Giuseppe Blen, no


número 4 da Via Pomponazzi, e conseguiram levar 64 caixas
de sabão com 50 quilos cada.
É evidente que os operadores deviam estar em número
elevado para suportar carga tão pesada e volumosa e que, para
mais de três toneladas de mercadoria roubada, deviam ter à
disposição carroças e cavalos ou caminhões.
O fato é que tal operação, demorada, barulhenta e a olhos
vistos, foi realizada sem que tenha sido possível colher
informações úteis sobre os audaciosos ladrões. O valor da
mercadoria roubada chega a cerca de 15 mil liras.

Corriere della Sera, 24 de março de 1919, coluna “Le


conferenze dominicali”
Benito Mussolini
Milão, início da primavera de 1919

Poucas ruas separam a Via Paolo da Cannobio, onde fica a sede da redação
do Il Popolo d’Italia, o chamado “covil número 2”, da seção milanesa da
Associação dos Arditi, na Via Cerva número 23, o covil número 1. Quando,
na primavera de 1919, Benito Mussolini sai do seu escritório para jantar em
uma trattoria, aquelas são ruas fedorentas, miseráveis e perigosas.
O Bottonuto é um resquício da Milão medieval encravado na cidade do
século XX. Uma rede de becos e lojas, igrejas paleocristãs e prostíbulos,
estalagens e tabernas, repleta de ambulantes, putas e vagabundos. A origem
do nome é incerta. Talvez provenha do postigo que antigamente se abria do
lado meridional, pelo qual passavam os exércitos. Alguns dizem que a
palavra, que evoca glândulas inchadas, seja a corruptela do patronímico de
um mercenário alemão que morreu na comitiva de Frederico Barba Ruiva. De
qualquer modo, o Bottonuto é uma poça pútrida bem atrás da Piazza del
Duomo, o centro geométrico e monumental de Milão.
Para atravessá-lo, é preciso tapar o nariz. A sujeira exala das muralhas, o
Vicolo delle Quaglie está reduzido a um mictório, as pessoas estão
encharcadas com o mofo das alfurjas, se vende de tudo, os roubos e as surras
acontecem à luz do sol, os soldados fazem algazarra na entrada dos bordéis.
Todos, direta ou indiretamente, exploram a prostituição.
Mussolini janta tarde. Sai depois das 22h da toca de diretor — um cubículo
que dá para um pequeno pátio, espécie de tripa vertical ligada à sala da
redação por um mezanino gradeado — e, após acender um cigarro, dirige-se
a passos rápidos, de bom grado, para as ruas pestilentas. Os bandos de órfãos
descalços apontam para ele empolgados — “el matt”, o louco, gritam uns aos
outros —, os mendigos esticam a mão, sentados na imundície da sarjeta, os
cafetões encostados nos umbrais das portas o cumprimentam com um aceno
de cabeça respeitoso, mas sigiloso. Ele retribui a atenção de todos. Com
alguns, para e troca duas palavras, faz arranjos, marca encontros, chega a
pequenos acordos. Concede audiência à sua corte dos milagres. Passa em
revista aqueles homens fechados em uma jaula como um general em busca de
um exército.
Não foi assim, por acaso, que sempre se fizeram as revoluções: armando
todo o submundo social com revólveres e granadas? Qual é, afinal, a
diferença entre o veterano desajustado, o desmobilizado crônico que por uns
trocados vigia o jornal e o “racheté”, o marginal habitual que vive
explorando a prostituição? Todos são mão de obra especializada. É o que ele
sempre repete para Cesare Rossi — seu colaborador mais próximo, talvez o
único conselheiro de verdade —, que se escandaliza com a promiscuidade
daquela gente. “Ainda somos fracos demais para abrir mão deles”, costuma
lhe dizer para aplacar seu desdém. Fracos demais, sem dúvida: o Corriere
della Sera, jornal da arrogante burguesia liberal, dedicou à fundação dos
Fasci di Combattimento um breve relato de apenas dez linhas, o mesmo
espaço reservado à notícia do furto de 64 caixas de sabão.
Seja como for, Benito Mussolini, nessa noite do início de abril, contempla
ainda por alguns instantes sua corte dos milagres, estica o pescoço para o alto
e para a frente, cerra os maxilares, levanta o rosto em direção ao céu em
busca de ar respirável, a cabeça já quase calva. Ergue a lapela do paletó,
esmaga o cigarro sob o sapato, aperta o passo. A cidade está envolta em
trevas, e os becos da depravação arrastam-se atrás dele como um enorme
organismo minado, um gigantesco predador ferido que manca rumo ao fim.

***

Via Cerva, por sua vez, é uma antiga rua aristocrática calma e silenciosa.
As casas elegantes de dois andares, arejadas por amplos pátios arquitetônicos,
lhe dão um tom romântico. Cada passo sobre o asfalto lustroso ressoa na
noite, deslocando em pequenas ondas concêntricas a atmosfera de claustro.
Os Arditi ocuparam uma loja com fundos que pertence ao sr. Putato, pai de
um deles, bem em frente ao palácio dos Visconti di Modrone. Não foi fácil
conseguir uma casa para aqueles veteranos exaltados que incomodam os
burgueses circulando no inverno com a lapela da farda regulamentar aberta
sobre o peito nu e o punhal na cintura. Soldados formidáveis quando se
tratava de atacar as posições inimigas, preciosos em tempos de guerra, mas
detestáveis nos de paz. Agora os Arditi, quando não estão refestelados em um
bordel ou acampados em um café, aquartelam-se sem cerimônia naqueles
dois cômodos despojados, embriagando-se em plena luz do dia, fantasiando
sobre as próximas batalhas e dormindo no chão. É assim que passam o tempo
do interminável pós-guerra: mitificam o passado recente, reagem de maneira
histérica a um futuro iminente e consomem o presente fumando um cigarro
atrás do outro.
Os Arditi venceram sua guerra ou, pelo menos, é o que dizem a si mesmos.
Mitificam-se a ponto de Gianni Brambillaschi, um rapaz de 20 anos entre os
mais exaltados, chegar a escrever em L’Ardito, o órgão oficial da nova
associação: “Quem não combateu nos batalhões de assalto, mesmo que tenha
morrido na guerra, não participou da guerra.” Certamente, porém, sem eles a
linha do Piave não teria sido rompida com a contraofensiva que, em
novembro de 1918, permitiu a vitória sobre os exércitos austro-húngaros.
A feroz epopeia do arditismo iniciara-se com as chamadas “Companhias
da Morte”, divisões especiais de engenheiros responsáveis pela preparação do
terreno para o ataque da infantaria de trincheira. À noite, cortavam as grades
e deflagravam minas não detonadas. De dia, avançavam arrastando-se,
protegidos por couraças absolutamente inúteis, desmembrados pelos disparos
de bombarda. Em seguida, cada armada — infantaria, bersaglieri, alpina —
começou a formar as próprias esquadras de atacantes, escolhendo entre os
soldados mais experientes e corajosos das companhias os que seriam
capacitados em lançamento de granadas, manuseio de lança-chamas e
metralhadora. Mas foi o treinamento com punhal, arma latina por excelência,
que fez a diferença. Ali começou a lenda.
Em uma guerra que aniquilara a concepção tradicional do soldado como
agressor, na qual eram os gases abrasivos e as toneladas de aço disparadas de
locais remotos que os faziam explodir imóveis nas trincheiras, em um
massacre tecnológico decorrente da superioridade do fogo defensivo em
relação à mobilidade do soldado lançado no ataque, os Arditi trouxeram de
volta a intimidade do combate corpo a corpo, o choque causado pelo contato
físico, a convulsão do morto transmitida pela vibração da lâmina ao punho do
matador. A guerra nas trincheiras, em vez de produzir agressores, havia
formado milhões de combatentes com uma personalidade defensiva,
inspirada na identificação com as vítimas de uma inevitável catástrofe
cósmica. Naquela guerra de ovelhas prontas para o abate, eles trouxeram de
volta a confiança em si mesmos que só é obtida através da mestria em
esquartejar um homem com uma arma de corte de lâmina curta. Sob o céu
das tempestades de aço, entre a morte anônima em massa e o massacre como
produto industrial em larga escala, eles trouxeram de volta a individualidade
levada a limites extremos, o culto heroico dos guerreiros antigos e aquele
terror especial que só pode ser transmitido pelo esfaqueador que vai
pessoalmente até a toca em que a pessoa está escondida para matá-la com as
próprias mãos.
Além disso, os Arditi cultivaram todas as vantagens da esquizofrenia. As
unidades especiais não eram submetidas à disciplina do soldado de tropa, não
marchavam, não cumpriam os massacrantes turnos nas trincheiras, não
estropiavam as costas cavando túneis subterrâneos nem entalhando galerias
na rocha, mas viviam de maneira justa na retaguarda, onde, nos dias de
batalha, eram recolhidos pelos caminhões do departamento administrativo e
jogados aos pés das posições a serem conquistadas. Aqueles homens podiam,
no mesmo dia, degolar um oficial austríaco no café da manhã e jantar
bacalhau na manteiga em uma trattoria da região de Vicenza. Normalidade e
homicídio, de manhã à noite.
Benito Mussolini, após ser expulso do Partido Socialista, ao perder as
armadas do proletariado, recrutou-os logo, instintivamente. Em 10 de
novembro de 1918, no dia da comemoração da vitória, após o discurso do
deputado Agnelli no Monumento aos Cinco Dias de Milão, o diretor do Il
Popolo d’Italia instalou-se em meio aos Arditi no caminhão que desfraldava
a bandeira preta com o crânio. No Caffè Borsa, erguendo os cálices de
espumante, brindou a eles dentre os milhões de combatentes.
“Companheiros de armas! Eu os defendi quando o covarde os difamava.
Sinto algo de mim nos senhores e talvez os senhores se reconheçam em
mim.”
E aqueles combatentes destemidos, que em seus dias de glória vinham
sendo humilhados pelo Alto Comando com longas marchas sem objetivos
militares na planície vêneta entre o Piave e o Adige que tinham como
propósito utilizar guerreiros que, da noite para o dia, tinham se tornado
incômodos e inúteis, se identificaram com ele. Mussolini, odiado e odiador
profissional, sabia que o rancor deles se acumulava, que logo seriam
veteranos descontentes com tudo. Sabia que, à noite, sob as tendas, xingavam
os políticos, os Altos Comandos, os socialistas, os burgueses. No ar, havia a
“gripe espanhola” e, nas baixadas, na direção do mar, a malária. Ao serem
marginalizados, enquanto definhavam por causa das febres e a morte
despudorada se afastava na lembrança, os Arditi compartilhavam cantis de
conhaque e liam em voz alta as palavras daquele homem que, do seu
escritório em Milão, neles exaltava “a vida sem abatimentos, a morte sem
pudores”. Durante três anos, tinham sido uma aristocracia de guerreiros, uma
falange enaltecida nas capas das revistas infantis: lapela ao vento, granadas
nas mãos e faca entre os dentes. Em poucas semanas, após voltarem à vida
civil, seriam uma multidão de desajustados. Seriam 10 mil minas errantes.

***

A trattoria Grande Italia é um estabelecimento modesto, engordurado e


enfumaçado. O ambiente é humilde, o preço, módico, a clientela, fiel, mas
apressada. A essa hora da noite, é composta em sua maioria por jornalistas e
gente do teatro, autores, comediantes, nenhuma bailarina. Na escuridão,
destacam-se apenas as toalhas quadriculadas brancas e vermelhas sob as
garrafas do Gutturnio das Colli Piacentini. Os clientes são todos homens, e
quase todos já estão bêbados.
Mussolini aproxima-se de uma mesa de canto em que três homens o
esperam. É uma mesa afastada, distante das vitrines, de onde é fácil vigiar a
entrada. À direita, vê-se a saleta reservada de onde provém a algazarra de
uma mesa de tipógrafos socialistas. Quando Benito Mussolini tira o paletó e o
chapéu antes de se sentar, aquela parte do estabelecimento silencia por um
instante. Em seguida, a agitação aumenta. Ele foi reconhecido. De repente, é
o centro da conversa.
Seus comensais também são indivíduos notórios. À sua direita, está
sentado Ferruccio Vecchi, estudante de engenharia, romanholo como
Mussolini, fundador do movimento futurista, intervencionista e muito
condecorado capitão dos Arditi. Em janeiro, fundou a Caixa de Ajuda Mútua
do Ardito e a Federação Nacional Arditi d’Italia. Cavanhaque preto de
mosqueteiro, emaciado, olhos encovados, tuberculoso, sedutor impiedoso. A
seu respeito, circulam relatos inverossímeis e extraordinários: ferido mais de
vinte vezes, diz-se que tomou de assalto sozinho, lançando granadas, uma
trincheira austríaca, e trepou com a mulher do coronel enquanto ela dormia
ao lado do marido à noite.
A parte sanguinária da mesa, contudo, está à frente de Mussolini. Ali está
sentado um indivíduo baixo, atarracado, o pescoço taurino dá a impressão de
que a cabeça se encaixa diretamente ao tronco. No rosto roliço, um sorriso
apalermado nos lábios úmidos evoca as crueldades absolutas da infância. De
vez em quando, o menino-touro levanta a cabeça, prende a respiração e olha
para o nada como se estivesse diante da objetiva de um fotógrafo. Além da
pose, sua roupa também é teatral: embaixo do paletó militar verde-
acinzentado, veste um suéter preto de gola alta com um bordado no centro,
um crânio branco com um punhal entre os dentes. Do cinturão que segura as
calças, pende outro punhal, verdadeiro, com empunhadura de madrepérola.
Chama-se Albino Volpi, 30 anos, marceneiro, várias vezes acusado de
delitos comuns, alistado nos Arditi, condenado pelos tribunais ordinários por
desacato a funcionário público, furto, arrombamento, lesões com agravantes,
e pelo tribunal militar por deserção. A seu respeito, não há relatos de feitos
extraordinários, apenas fofocas sussurradas. Há duas lendas sobre ele, uma
heroica e outra criminosa. Diz-se que, durante a guerra, possuído pela
violência, saía à noite por conta própria, engatinhando desde a última
trincheira até o fosso dos inimigos, no mais absoluto silêncio. Armado apenas
com um punhal e, pelo simples prazer de ouvir o murmúrio sibilante do
sangue arterial em contato com o ar, degolava a sentinela adormecida. Há
boatos de que tinha um jeito único de empunhar a faca... Certamente foi um
dos “jacarés do Piave”, os invasores especializados em atravessar o rio à
noite para assassinar as sentinelas na margem sob o domínio dos austríacos.
Nus, com o corpo lambuzado de argila cinza para se camuflar com a
vegetação ribeirinha, atravessavam a nado a corrente das gélidas cheias de
outubro, levando uma pequena morte feroz ao campo inimigo. Não ajudavam
em quase nada, nem no plano tático nem no estratégico, porém os jacarés do
Piave foram indispensáveis para vencer a guerra. Criaturas lendárias —
talvez até inexistentes, criadas pela propaganda — guardavam um segredo
transmitido desde o início dos tempos: a noite é escura e cheia de terrores.
“Não existe mais combate corpo a corpo”, dizia-se, com pesar, sobre a
Primeira Guerra Mundial. “Nenhum criminoso jamais foi herói de guerra”,
repetiam desde sempre os oficiais íntegros, os honestos. O homem sentado
diante de Mussolini, debruçado sobre uma caçarola de repolhos temperados
com pele, patas e cabeça de porco, como um animal que mergulha o focinho
ensanguentado nas vísceras da presa, poderia desmentir as duas afirmações.
Na mesa de Mussolini, fala-se pouco. A ração é consumida em silêncio, o
fundo do copo é visto com melancolia. Já se sabe tudo. Mas um sujeito
grande e barulhento se aproxima daquela mesa, gravata preta ao vento,
chapéu de aba larga inclinado, e começa a vociferar sobre incidentes vagos e
gravíssimos, explosões, brigas sanguinolentas. Não está claro se trata-se de
um relato ou de uma ameaça. Mussolini sinaliza para que ele se cale. O
indivíduo ameaçador e delirante fica esperando, boquiaberto, exibindo uma
cratera onde ficavam antes os dois incisivos superiores, partidos por uma
pedrada recebida durante um comício de rua. Chama-se Domenico Ghetti, e é
também romanholo. Anarquista, exilado na Suíça com Mussolini durante a
juventude, assassinou padres, é desonesto, violento, conspirador, desvalido.
Depois, porém, Mussolini lhe indica uma cadeira e pede para ele uma
terrina de lasanha ao sugo. Se o diretor do Il Popolo d’Italia pode voltar a pé
para casa sozinho à noite, é também graças à simpatia que, apesar de tudo,
suscita nos ambientes da violentíssima anarquia milanesa. Ghetti põe-se a
comer e, na mesa dos Arditi, o silêncio retorna.
A balbúrdia, em contrapartida, aumenta na saleta reservada bem ao lado. O
vinho desce e a cantoria sobe. Os trabalhadores do Avanti!, jornal socialista
com sede na Via San Damiano, bem atrás da Via Cerva, entoam a plenos
pulmões “Bandiera rossa trionferà!”. Brindam ao 17 de fevereiro, o dia em
que Milão e a Itália, após a breve ressaca pela vitória da nação sobre os
históricos inimigos austríacos, descobriram com perplexidade que havia um
novo inimigo no futuro: a revolução bolchevique.
Naquele dia memorável, 40 mil operários em greve desfilaram até a Arena
ao som de trinta bandas, desfraldando milhares de bandeiras vermelhas e
erguendo cartazes que amaldiçoavam a guerra vitoriosa recém-concluída.
Uma agitação sádica na qual os mutilados eram exibidos como horríveis
provas vivas do combate desejado pelos patrões. Os socialistas cuspiam na
cara dos oficiais fardados que, até o dia anterior, eram seus comandantes de
ataque, pediam a redistribuição das terras e a anistia para os desertores.
Para a outra Milão, nacionalista, patriótica, pequeno-burguesa, que em
1915 dera 10 mil voluntários à guerra a favor da Itália de Benito Mussolini,
parecia que, naquele cortejo, “os monstros da decadência estavam voltando à
vida”, o mundo recém-pacificado “estava cedendo a uma doença”.
Mussolini e os que pensavam como ele ficaram impressionados, em
especial, com o fato de os socialistas colocarem para desfilar à frente do
cortejo mulheres e crianças. O ódio político berrado pelas bocas sensuais das
mulheres e dos imberbes era assustador, consternava e deixava perplexo o
tipo de homem adulto que desejara a guerra. O motivo era muito simples. O
grito antimilitarista e antipatriótico de mulheres e crianças permitia àquele
homem mesquinho, autoritário, patriarcal e misógino pressagiar algo
aterrorizante e inédito: um futuro sem ele. Enquanto o cortejo desfilava pelas
ruas, os burgueses, os comerciantes, os hoteleiros logo fecharam as janelas,
baixaram as grades e trancaram as portas. Diante daquele futuro, muravam-se
na prisão do presente.
No dia seguinte, Mussolini assinou um editorial agressivo, intitulado
“Contra a fera que está voltando”. O paladino da intervenção bélica prometeu
solenemente defender os mortos insultados pelos manifestantes, segundo as
suas palavras, defendê-los até as últimas consequências “mesmo à custa de
cavar trincheiras nas ruas e nas praças da nossa cidade”.
Na mesa dos socialistas, já estão tomando licores e grapa. O escarcéu se
propaga. Alimentado pelo álcool, o ódio deles vai ganhando contornos mais
nítidos. O nome de Mussolini, o “traidor”, pode ser ouvido com nitidez,
gritado por uma voz enrouquecida.
Na mesa de canto, Albino Volpi, dedicando-se a esmiuçar a pele de porco,
muda, de modo instintivo, a maneira de empunhar a faca. Mussolini, pálido,
ofendido pelos insultos dos velhos companheiros, mas prudente, o detém com
um imperceptível sinal negativo da cabeça. Estreita ligeiramente os olhos,
abre um pouco os lábios, inspirando ar entre os dentes, como que invadido
pela gangrena lenta de um sofrimento antigo, um desgosto amoroso da
juventude, um irmão que morreu de varíola.
O “traidor”, então, se recupera. Vira a cabeça em busca de quem o acusa.
Seu olhar encontra o de um jovem — deve ter, quando muito, 20 anos —
pequeno, ruivo, com sardas sobre a pele clara. O rapaz o encara com o
orgulho de quem está contribuindo para a redenção de uma humanidade
oprimida.
Mussolini pega o chapéu. Rejeita de maneira enérgica a escolta dos Arditi.
Enquanto ruma para a saída, tem a impressão de ver de rabo de olho Albino
Volpi voltar a mudar o modo de segurar a faca.
Mussolini vira a cabeça e vai para a rua. “Arditi contra pacifistas,
socialistas contra fascistas, burgueses contra operários, homens de ontem
contra homens de amanhã.” A noite de Milão o acolhe como o campo de duas
forças mescladas que vivem a mesma vida, dividem o espaço das suas
artérias, com a sensação clara, constante, de que uma delas deve matar a
outra.
Em casa, em Foro Bonaparte, Rachele, sua mulher, e dois filhos o esperam.
Mas ainda é cedo. Ele decide passar mais uma vez no Bottonuto, parar no
Vicolo delle Quaglie, livrar-se das toxinas do dia em uma prostituta, uma
daquelas mulheres públicas, desejadas e desprezadas, que ele e os outros
veteranos gostam de chamar de “urinóis de carne”.
Enquanto Benito Mussolini volta a pé pela Via Cerva, tem a impressão de
ouvir um grito dilacerado de dentro do restaurante. Mas não tem certeza.
Talvez seja apenas a cidade que grita no sono.
A você, Mussolini, nossos cumprimentos pela sua obra;
mas, por Deus, continue a lutar com força porque ainda existe
muita “velharia” que atrapalha nosso passo. Estamos próximos
em espírito, mas logo estaremos ao seu lado.

Telegrama dos oficiais do 27o batalhão de assalto


publicado no Il Popolo d’Italia, 7 de janeiro de 1919

Todo o submundo social se armou com revólveres e punhais, mosquetes e


granadas [...]. Às pessoas do submundo, uniram-se os jovens das escolas,
impregnados de romantismo bélico, com a cabeça cheia de sonhos
patrióticos, que veem “alemães” em nós, socialistas.

Giacinto Menotti Serrati, líder da ala maximalista do


Partido Socialista Italiano
Amerigo Dùmini
Florença, final de março de 1919

Tudo vai mal. Não temos um tostão sequer. Às vezes, passamos fome. Pelo
que combatemos?
O homem que sai do hospital militar da Via dei Mille manca um pouco.
Seu andar capenga parece desequilibrado por causa do braço esquerdo
enfaixado, pendurado ao pescoço grosso. Veste um paletó aberto dos Arditi,
com fendas laterais concebidas para extrair mais rapidamente as bombas e
divisas pretas no colarinho. No braço esquerdo, escondido pelas ataduras, há
um escudo em que se destaca um gládio romano cuja empunhadura tem o
formato de uma cabeça de esfinge. Já o punhal real, que pende da sua cintura,
está bem à vista. Seu corpo atarracado e pesado, fora de eixo por causa das
enfermidades, ocupa toda a calçada do lado da ferrovia. Os transeuntes que
cruzam com ele na Via dei Mille desviam. Alguns chegam a atravessar a rua
para mudar de calçada.
No hospital militar, todos os veteranos dos batalhões de assalto repetem a
mesma ladainha furibunda: é uma vergonha, receberam baixa de qualquer
jeito, como uma empregada que é demitida. Primeiro os generais os
humilharam fazendo-os marchar por meses a fio com a guerra já terminada,
debaixo de chuva e no meio da lama, para impor um pouco daquela disciplina
à qual ninguém jamais ousara submetê-los quando serviam para tomar de
assalto as trincheiras inimigas; depois, os políticos os humilharam ao dar-lhes
baixa à noite, em silêncio. “Para não provocar”, foi a explicação. E quem não
devia ser provocado? Os refratários, os derrotistas, os socialistas que
desmoralizaram as tropas causando a derrota de Caporetto, aqueles como
Treves, que gritara no parlamento “sem outro inverno nas trincheiras”, os
carolas do papa que havia definido o massacre dos seus companheiros como
uma “matança inútil”. E, para contentar essa ralé, eles foram liberados assim,
na sombra, sem um cântico, sem uma flor, sem a estrada cheia de bandeiras.
Os heróis voltaram à vida civil furtivos como ladrões na casa do Senhor.
O homem se arrasta pela Via degli Artisti, em Borgo dei Pinti, rumo ao
centro de Florença. Disseram-lhe que na Confraria da Misericórdia talvez
pudessem ajudá-lo. Ali existe um serviço municipal de transporte para
inválidos. Talvez também haja algo para ele. Sim, pois, enquanto eles
arriscavam a vida pela pátria, os desertores roubavam seu trabalho, e agora o
refratário está arranjado e o combatente passa fome. Na França, os veteranos
triunfantes desfilaram sob o Arco do Triunfo de Napoleão e em todos os
países foram recebidos por uma apoteose; já eles, que destruíram um dos
maiores impérios da história, extenuando-se em uma gigantesca epopeia,
foram mandados de volta para casa às escuras e na ponta dos pés. Nenhuma
marcha em Viena, nenhuma parada, nenhuma colônia, nada de Fiume,2
nenhuma indenização, nada de nada. Tudo vai mal. Levam um dia após o
outro. Pelo que combateram?
A fachada do Duomo, com seus mármores multicoloridos, resplandece ao
sol primaveril. A imensa cúpula de Brunelleschi, a maior jamais construída
em alvenaria, parece celebrar a glória de um povo que, depois de Caporetto,
encontrou força para triunfar sobre si mesmo. Mas agora a Itália cai de novo
no abismo, nas greves, nas sabotagens dos “vermelhos” que querem submetê-
la a Moscou, como se eles também não fossem italianos, como se devessem
ter vergonha da glória. Expiar. Expiar o espírito da guerra. Foi o que gritou
no Parlamento o deputado Treves. E agora querem que a vitória seja paga por
quem já pagou com o próprio suor e com o próprio sangue, os
intervencionistas, os veteranos, os mutilados, os irmãos que aguentaram
firme durante as noites nos planaltos. O governo de Nitti dá aval à fraude.
Humilha os rapazes do Piave anistiando os desertores, quer liquidar a guerra
vitoriosa como uma empresa em falência. Chegou até a pedir aos veteranos
que deixassem a farda em casa, sempre para “não provocar”. O Avanti! faz
eco ao proclamar que os italianos são “vencidos entre os vencedores”. E tem
razão. Tudo sai dos trilhos nessa retirada sem fim. Tudo vai mal.
“Abaixo o capitalismo!” O grito provém de um grupo de pedreiros que está
calçando a praça diante da entrada lateral da igreja de Santa Maria del Fiore.
Estão com raiva dele, insultam o despudorado soldado de farda que, com um
braço na tipoia, segue mancando rumo à Confraria da Misericórdia. Acusam-
no de ter apoiado a guerra imperialista dos patrões. Gritam-lhe “assassino”,
“infame”.
A entrada da associação de caridade fica a poucos passos, os calceteiros
devem ser uma meia dúzia, o soldado está sozinho, em estado deplorável.
Mas também está lívido de raiva. Ele se alistou voluntariamente na
“Companhia da Morte” de Baseggio não para fugir do trabalho, mas porque a
aventura lhe aprazia, como na sua infância na América, o continente que deu
origem ao seu nome; participou da batalha do monte Sant’Osvaldo, em
Valsugana, na qual, em um ataque frontal das posições inimigas, todo o
batalhão foi devastado; nos dias de Vittorio Veneto, no monte Pertica — um
inexpugnável cume do Grappa, com 1.500 metros de altitude, disputado
palmo a palmo com os austríacos —, foi ferido por uma rajada de
metralhadora disparada por um avião inimigo, mas recusou a internação e
voltou à linha de frente onde, três dias mais tarde, foi ferido uma segunda vez
por estilhaços de uma cápsula de projétil que explodiu na bateria; pela
conquista de um baluarte em Valsugana, foi elogiado publicamente por
Baseggio diante do general Grazioli: deram-lhe uma medalha de prata e uma
cruz de guerra. Ele carrega a guerra nos ossos com anquilose da mão
esquerda, usou sua licença extraordinária para uma difícil viagem à Albânia,
junto ao companheiro de armas Banchelli, em uma busca inútil pelo túmulo
de seu irmão Albert, tenente do 35o batalhão do regimento dos bersaglieri,
morto em combate no ano anterior. Logo ele, esse homem que tem o nome de
um continente aventuroso, é que os covardes chamam de infame.
É insuportável. Teria sido melhor, então, ter ficado lá em cima, adubando a
terra, entre as dolinas do Grappa.
O soldado se posta no meio da praça. “Refratários!”, grita. E põe a mão no
punhal.
Logo o alcançam. Um rapaz sem camisa, baixo e atarracado, pula na sua
frente e lhe dá dois murros nos dentes. O soldado vitorioso já está no chão,
coberto de cusparadas e de chutes. Fica em silêncio, não grita, não implora,
mas seu corpo potente de homem adulto, que regrediu 25 anos em poucos
segundos até a posição fetal, proclama à basílica de Santa Maria del Fiore a
própria inequívoca, patética súplica. Ninguém a acolhe. O primeiro dos
calceteiros que o agrediu arranca as divisas de Ardito do seu paletó e as enfia
na sua boca.
Os padioleiros da Misericórdia o encontram assim, ainda encolhido, como
um feto adulto. Colocam-no sobre a maca naquela posição. Não está
gravemente ferido — apenas contusões, escoriações, alguns dentes quebrados
—, mas parece que, no mundo daquele homem, não há mais uma só razão
para recobrar a posição ereta. Volta a falar somente mais tarde, para indicar
qual era a sílaba tônica ao policial que colhe seus dados para redigir o boletim
de ocorrência.
“Dùmini”, destaca, “Amerigo Dùmini. A primeira sílaba é a tônica. À
moda toscana.”
Filippo Tommaso Marinetti, Benito Mussolini
Milão, 15 de abril de 1919

Hoje tudo está em silêncio. Milão prende a respiração.


Desde a meia-noite, os motorneiros e as equipes noturnas dos gasistas não
voltaram ao trabalho. Nenhuma das linhas ao norte da área mais povoada
funciona. Os serviços públicos estão suspensos. Todas as centenas de fábricas
que acolhem a imensa população da cidade mais industrializada da Itália
estão fechadas. Sem exceções. Nenhum operário se apresentou para trabalhar.
A massa proletária está toda na periferia, mas, dessa vez, a greve
repercutiu no centro também. Todas as lojas, os pontos de encontro do Corso
Vittorio Emanuele, da Piazza del Duomo, da Galleria, estão fechados. Assim
como tudo está fechado em cada bairro da cidade. Os bancos estão sob a
guarda da força pública ou do Exército, mas estão fechados. As repartições
municipais estão fechadas. Os escritórios comerciais estão fechados.
Dois dias atrás, na manhã de 13 de abril, um comício socialista na Via
Garigliano, após um confronto armado com a polícia, terminou com vários
feridos e um morto. Filippo Turati deveria ter falado, mas, não se sabe por
quê, o velho líder do socialismo reformista e humanista não compareceu. No
seu lugar, então, tomou a palavra Ezio Schiaroli. O anarquista revolucionário
atacou violentamente Mussolini e incitou os operários a tomar o poder à
força. A polícia montada investiu de maneira brutal contra os manifestantes
ao longo da Via Borsieri. Pela primeira vez, a multidão reagiu.
Apedrejamentos, atos de vandalismo, golpes com porretes. Os policiais e
carabineiros ficaram atônitos. E tiveram de recuar, empurrados pela massa de
manifestantes que não cedia. Em seguida, recorreram à arma de artilharia: os
agentes abriram fogo sobre o povo, como sempre faziam havia quase um
século. O povo reagiu convocando a greve geral em 15 de setembro. A partir
de então, tudo leva a supor que mais sangue será derramado. A espiral de
violência cresce, como sempre, a cada matança de integrantes do
proletariado.
Há 48 horas Milão vive uma vigília de armas. Ninguém respira. A tensão
nervosa tornou-se insuportável. Difundiu-se, anota Mussolini em seu diário,
um “pânico imbecil”, semelhante ao que acontece após o anúncio de uma
ofensiva inimiga. Mas já faz meses que a espera angustiante se tornou o
estado de espírito que reina, quase constante. O Avanti!, dirigido por Giacinto
Menotti Serrati — lenista, ex-descarregador de carvão, que, em 1914,
substituiu o próprio Mussolini na direção do jornal socialista —, mantém os
proletários em estado de alarme diariamente para a iminente onda
revolucionária. Enquanto isso, a onda já está engolfando a Europa.
Em novembro, em Munique, Kurt Eisner declarou a Baviera uma república
socialista. Em fevereiro, Anton Graf von Arco auf Valley, um aristocrata de
Munique rejeitado pelas lojas secretas de extrema direita por ser filho de uma
judia, atirou em Eisner. Em 6 de abril, os socialistas, em luta com os
comunistas pelo poder, proclamaram a “República Soviética Bávara”,
governada por Ernst Toller, um dramaturgo totalmente incompetente. Seu
encarregado pelas relações exteriores, que havia sido internado várias vezes
em um hospital psiquiátrico, declarou guerra à Suíça pela recusa do país em
emprestar sessenta locomotivas à Baviera soviética. O governo de Toller caiu
após seis dias, substituído pelos comunistas liderados por Eugen Levine,
aclamado pelos operários como o “Lênin alemão”. Poucos dias antes, em 21
de março, em Budapeste, Sàndor Garbai e Béla Kun também tinham
proclamado a República Soviética da Hungria, aliando-se à Rússia de Lênin
e, para recuperar os territórios perdidos após a derrota na guerra, invadiram a
Eslováquia e atacaram a Romênia.
Em suma, há meses cada dia é uma vigília. As dezenas de milhares de
proletários que, na manhã deste 15 de abril de 1919, lotam o comício na
Arena de Milão enquanto escutam as palavras inflamadas dos seus tribunos,
farejando o indício de cheiro de sangue que impregna o ar, sentem que se
aproxima a revolução, o seu terror. Todos, absolutamente todos, têm a
expectativa de um cataclismo.
No início da tarde, sem nenhum plano predefinido, como que atraída pelo
magnetismo do desastre, uma vanguarda composta de alguns milhares de
manifestantes se desprende do enorme cortejo e invade a Via Orefici,
dirigindo-se ao Duomo. O protesto transborda do estádio para a praça, rumo à
revolução. O pós-guerra tem pressa. Não é possível viver todos os dias com
um apocalipse no horizonte.

***

O homem que, na Piazza del Duomo, do outro lado do cordão militar


contra o qual lançava-se o cortejo socialista, exorta a pequena multidão de
burgueses, oficiais, estudantes universitários, Arditi e fascistas, agarrado ao
leão de mármore esculpido no pedestal do monumento equestre a Vítor
Emanuel II, primeiro rei da Itália, é um poeta. Chama-se Filippo Tommaso
Marinetti e, em 1909, fundou a primeira vanguarda histórica do Novecento
Italiano. Seu manifesto por um movimento poético futurista teve ressonância
pela Europa, de Paris a Moscou. Nele, propõe destruir os museus, as
bibliotecas, as academias de qualquer espécie, assassinar o luar e louvar as
grandes multidões agitadas pelo trabalho, pelo prazer ou pela revolta,
glorificar a guerra — “a única higiene do mundo” —, o militarismo, o
patriotismo, o gesto destruidor dos libertadores, as belas ideias pelas quais
morremos e o desprezo pelas mulheres.
Após tê-la celebrado com palavras em liberdade, em 1915 o poeta
conheceu pessoalmente a guerra tanto louvada. Deixados para trás os luxos
do seu edifício no Corso Venezia, em estilo neoegípcio, alistou-se como
voluntário nos alpinos, combateu, foi ferido, voltou ao front, regozijou-se
com a derrota em Caporetto e, mais tarde, com o triunfo em Vittorio Veneto,
por trás do volante de um blindado Lancia modelo 1Z.
Agora, tendo descido do leão aos pés do monumento do rei a cavalo,
Filippo Tommaso Marinetti, com um tom de comando, intima os presentes,
que o olham perplexos de suas sobrecasacas cinza e por baixo de seus
chapéus-coco, a entrar na coluna de oposição aos manifestantes. A luta não
admite uma terceira opção, nenhuma neutralidade. “Nada de espectadores!”,
grita o fundador do futurismo para os burgueses neutros que passeiam na
Galleria. “Nada de espectadores!”
Enquanto isso, sob o monumento, todos se sentem prestes a serem atacados
pelos socialistas. “Lá vem eles! Lá vem eles!”, grita alguém. Alarme falso. O
industrial químico Ettore Candiani, assumindo o lugar de Marinetti, retoma a
fala. Ninguém ouve. “Lá vem eles! Lá vem eles!” Os Arditi sacam os
revólveres.
Por um instante, as duas facções se defrontam de cada lado do cordão de
carabineiros que bloqueou a saída da Via dei Mercanti. À frente da coluna
socialista seguem mais uma vez as mulheres, levando no alto o retrato de
Lênin e a bandeira vermelha. Entoam desenfreadas, alegres, suas canções de
libertação. Pedem uma vida melhor para os próprios filhos. Ainda acreditam
estar ali para suas paradas, seus minuetos de revolução. À frente do outro
cortejo, muito menos numeroso, estão homens que, nos últimos quatro anos,
conviveram todos os dias com a matança. A desproporção é grotesca. É a
relação diferente que os dois grupos têm com a morte o que cava um abismo
entre eles.
O cordão dos carabineiros se abre. Do lado da Piazza del Duomo, os
oficiais fardados e os Arditi avançam em desordem, revólveres em punho,
como se não fosse nada. A verdadeira batalha dura cerca de um minuto.
Do lado dos socialistas, aos milhares, voam pedras, alguns porretes. Do
lado dos oficiais, Arditi e futuristas, centenas deles, disparos de revólver.
Tiros para cima e contra a coluna socialista. Esta resiste por alguns instantes,
atordoada, muda. Naquele brevíssimo intervalo, ninguém canta mais.
Mulheres e homens contemplam perplexos aqueles monstros uniformizados
diante deles. Os Arditi irrompem como atores inesperados em um palco que
não cogitava sua presença.
A coluna socialista demora mais um pouco para se dispersar. A rota de
fuga é afobada, guiada por um pânico enlouquecido. São dois mil homens e
mulheres, que um minuto antes exaltavam a revolução, estão no chão. De lá,
olham com terror os inimigos que, em pé, avançam a passos lentos,
espalhados, recarregando tranquilamente os revólveres. Muitos se agarram ao
chão, encolhendo-se entre um degrau e outro da Loggia dei Mercanti.
Todavia, os oficiais em pé guardam a arma regulamentar de sua patente
militar e empunham a que julgam mais apropriada para o castigo servil. Saem
correndo. Os operários amontoados e aterrorizados começam a levar
pauladas. O sangue escorre pelos degraus. Enquanto os espancam, oficiais e
Arditi os ridicularizam: “Quero ver gritar ‘Viva Lênin!’ agora. Grite ‘Viva
Lênin!’.” Um rapaz, perturbado, estende do chão umas poucas liras, como se
pudesse comprar o perdão.
Marinetti, engalfinhando-se com um operário parrudo, vai parar na vidraça
de uma portaria. Dois Arditi puxam o operário. O poeta precisa interceder
para que não o matem.
Agora todos, com revólveres em punho, descem pela Via Dante atirando
para cima ao longo dos muros à esquerda e à direita. Cassetete. A rua se
esvazia. O irmão de Filippo Corridoni, mártir do intervencionismo morto no
primeiro ano de guerra, volta de Foro Bonaparte com o braço direito
ensanguentado. Lá embaixo, a 200 metros, os manifestantes socialistas
aglomeram-se ainda mais sobre os mármores do monumento a Garibaldi. Um
orador continua o comício de cima de seu pedestal. Ainda grita, como se
hipnotizado por um mantra, o seu ritualístico “Viva Lênin!”.
Um Ardito saca o punhal e, sozinho, corre como um projétil a toda
velocidade pela rua deserta. Escala o monumento, apunhala o comunista. De
repente, o monumento empalidece. O comício acabou.
Triunfantes e de volta à Piazza del Duomo, os agressores se reúnem de
novo em volta do monumento de onde haviam partido, aquele com o rei a
cavalo. Marinetti está cansado, esgotado, ferido no peito. Insistem para que o
poeta fale mais. Nenhuma das suas palavras será lembrada.

***

Derrotado o inimigo, deve-se incendiar sua casa. E a dos socialistas é o


jornal que publicam. A sede milanesa do Avanti!, bandeira do socialismo
italiano, fica na Via San Damiano, ainda atravessada por um canal. Quando,
ao cair da noite, os agressores chegam, encontram-na defendida por um
cordão de militares fardados. A oposição deles é branda: muitos dos
manifestantes foram seus comandantes na guerra. A defesa logo se
transforma em cerco.
De súbito, um tiro que, com certeza quase absoluta, foi disparado pelos
socialistas no edifício, de um fuzil plausivelmente armado pelo terror, abate
um dos militares em guarda. Chama-se Michele Speroni, tem 22 anos e é
atingido pelas costas. O sangue jorra aos borbotões de sua nuca. Um dos
oficiais sai da multidão de Arditi e fascistas, curva-se e ergue o capacete do
soldado morto pelos socialistas. O oficial fala, grita, mas ali também ninguém
escuta. Um pequeno corredor se abre no ponto em que passa a maca com a
vítima. Os homens prontos para o ataque passam por ali.
Há ainda alguns disparos de fuzil do interior do edifício, mas, em seguida,
as janelas são escaladas pelos Arditi, que usam as grades baixas do térreo
como degraus. Uma vez lá dentro, não encontram ninguém defendendo o
lugar. Todos os socialistas fugiram pela porta dos fundos. Começa a
pilhagem. Metódica, competente, sem resistência.
Quebram tudo. Borrifam líquidos inflamáveis em cada aposento, esvaziam
as latas sobre os volumes encadernados, viram as escrivaninhas de cabeça
para baixo, destroem as máquinas de escrever e os arquivos. O material
histórico acumulado é destroçado a pauladas. Tudo desaba no chão, os tetos
descascam por causa do calor incandescente, milhares de imagens
litografadas de Lênin, prontas para serem enviadas para toda a Itália, voam
pela janela. Tudo estourado. Com calma, precisão, como peritos de
destruição. No ataque, não há nenhum corpo a corpo, nenhum conflito. Não
há ideias, nem mesmo as brutais e vingativas. Pura devastação.
O único obstáculo que se apresenta são as rotativas. O maquinário pesado
da tipografia não sofre um arranhão sequer dos cassetetes, tampouco dos
punhais dos Arditi que o rodeiam enfeitiçados como grandes macacos em
volta de um meteorito caído do céu na Terra.
Após alguns minutos de incerteza, um jovem gigantesco avança, afasta os
soldados e agita uma barra de ferro à vista de todos. O instrumento traz
consigo uma lição. O jovem se chama Edmondo Mazzucato, veste o uniforme
dos Arditi, com as chamas pretas nas lapelas do paletó, e diversas medalhas
sob as divisas. Órfão, indigente, interno desde a infância em um colégio
salesiano, Mazzucato perdeu seu primeiro emprego aos 15 anos por ter
aderido à greve geral de 1904. Intolerante, rebelde, violento, após ter se
mudado para Milão e abraçado as ideias da anarquia, foi preso várias vezes,
tanto pela autoridade civil quanto pela militar. Em 1909, surrou brutalmente
um cabo que, por puro despeito, negou-lhe uma licença. O pária antissocial
trabalhou desde garoto como almoxarife, vendedor, escrivão, caixeiro-
viajante, e encontrou o próprio caminho aprendendo o ofício de compositor
tipógrafo, sempre a serviço de periódicos anarquistas, libertários,
revolucionários. Com a eclosão da guerra, encontrou também sua vocação:
alistado como voluntário, foi promovido e condecorado diversas vezes em
campo por méritos de guerra.
Mazzucato, que também passou do lado socialista ao lado adversário como
muitos outros fascistas, evidentemente tem agora um último ensinamento
exemplar para os companheiros de armas: ergue e mostra bem a barra de
ferro a todos, aí a enfia entre as engrenagens dos equipamentos tipográficos
com perícia científica e liga as rotativas. A força obtusa da máquina se destrói
sozinha. O jovem ex-tipógrafo da imprensa revolucionária destrói o próprio
passado.
Meia hora mais tarde, todo o edifício está em chamas. Na Via San
Damiano, a polícia assiste ao espetáculo do incêndio ao lado dos homens que
o atearam. Os bombeiros são impedidos de intervir para que o fogo tenha
tempo de consumir o local.

***

Já é noite quando, no Il Popolo d’Italia, Marinetti narra os acontecimentos


daquele dia memorável ao diretor, que não estava presente. Houve, de fato,
um conselho com os manifestantes na noite do dia 14, mas, durante todo o
dia de batalha, Mussolini não arredou pé de seu minúsculo escritório. Nem
sequer saiu para almoçar. Ao meio-dia, a refeição foi encomendada a uma
trattoria próxima. O diretor almoçou sentado diante de uma mesinha no
patamar da escadaria, insistindo, entre uma bocada e outra, em verificar o
funcionamento do seu revólver de cano curto com tambor carregado com
balas de reserva. Mas nunca pôs os pés fora do jornal.
Agora está sentado atrás da escrivaninha do seu miserável escritório. Atrás
dele, na parede coberta por um papel com estampa de flores amareladas,
destaca-se a bandeira dos Arditi. Sobre a escrivaninha, entre os papéis em
desordem, os jornais velhos e o telefone a manivela, três granadas modelo
SIPE e um revólver. À esquerda, uma estante com cinco prateleiras abriga um
aparelho de chá; ao lado ficam uma lixeira e um banco, ambos cambaleantes
devido às irregularidades de um pavimento imundo em granilito com
hexágonos brancos e magenta.
Enquanto Marinetti faz seu relato, Mussolini assente com a cabeça. Seu
olhar, porém, está fixo na pequena tábua de madeira que Ferruccio Vecchi
carrega desde que entrou no aposento. É a placa arrancada da entrada do
Avanti!, e está claro que, dali a poucos minutos, quando o poeta tiver
terminado sua canção de gesta, o troféu de guerra será entregue ao diretor em
um ritual de homenagem. Benito Mussolini terá de pegar com as próprias
mãos o escalpo do inimigo morto e exibi-lo da sacada para os Arditi que
berram no pátio. O escritório minúsculo do diretor é, de fato, preenchido
pelos cantos goliardescos provenientes da rua: “Ai, ai... o Avanti! não existe
mais! Ai, ai... o Avanti! não existe mais! Ai, ai...” Mussolini escuta e acaricia
a cabeça calva na qual os fios ralos que despontam sombreiam uma calota
cinza-azulada. Cinco anos antes, ele era o diretor do Avanti!. Muito amado
pelos leitores, elevara a tiragem do jornal a números nunca antes atingidos.
Agora está prestes a pisar no cadáver.
Marinetti terminou. Vecchi lhe estende a placa. Por um instante, Mussolini
recua, em um movimento de repulsa. As vísceras vêm para fora, os intestinos
se espalham, metro após metro, no chão de granilito. Há dois homens e dois
diretores sentados naquela única cadeira sob a bandeira grotesca pregada
sobre as flores amareladas do papel de parede. Eles são pais e filhos.
“Esta é uma jornada da nossa revolução”, anuncia, passados alguns
minutos, o diretor de Il Popolo d’Italia aos Arditi apinhados no pequeno
pátio asqueroso. “O primeiro episódio da guerra civil aconteceu.”
A sentença foi pronunciada. A partir daquele momento, uma pequena
patrulha de veteranos armados acampará nos subterrâneos para vigiar o
jornal. Uma velha metralhadora Fiat será mantida no telhado para cobrir a
rua, cavalos de frisa em arame farpado ficarão posicionados na entrada do
beco para defender um jornal com tiragem nacional como se estivessem
diante de um comando em zona de guerra.
Esta noite, no entanto, Mussolini insiste em voltar para casa sozinho.
Terminada a paginação, às 3h da madrugada, sinaliza para um veículo
público puxado por um pangaré. Seguem para Foro Bonaparte, esquina com a
Via Legnano.
Enquanto o animal esgotado cambaleia sobre o calçamento de pedras, a
solidão do passageiro é completa. Uma distância intransponível o separa do
gênero humano.
No dia 15 de abril, havíamos decidido taxativamente, com Mussolini, não
fazer nenhuma manifestação contrária, pois prevíamos o conflito e temos
horror de derramar sangue italiano. Nossa oposição formou-se de modo
espontâneo, graças à invencível vontade popular. Fomos obrigados a reagir
contra a provocação premeditada dos refratários [...]. Com a nossa
intervenção, temos a intenção de afirmar o direito absoluto de 4 milhões de
combatentes vitoriosos que devem, e vão, dirigir sozinhos, custe o que custar,
a nova Itália. Não provocaremos, mas, se formos provocados,
acrescentaremos alguns meses aos nossos quatro anos de guerra.

Proclamação afixada nos muros de Milão em 18 de abril de


1919, assinada por Ferruccio Vecchi e Filippo Tommaso
Marinetti

Lamentamos sinceramente que sangue tenha sido


derramado nas ruas de Milão, sofremos mais por aquele
sangue do que por uma batalha perdida; mas quem não tem
direito de se queixar, quem não tem direito de protestar é
justamente o Avanti!, incitador do “terror vermelho”, incitador
da guerra civil. Talvez acreditassem que na Via San Damiano
seria possível disseminar o ódio contra os intervencionistas e
os patriotas, que seria possível fazer as listas de proscrição,
que seria possível exaltar a ditadura do proletariado como
redde rationem para quem havia amado o próprio país sem
que a reação fosse imediata e imperiosa [...]

Pietro Nenni, fundador do Fascio di Combattimento de


Bolonha, Il giornale del mattino, 17 de abril de 1919

À longa lista dos nossos mortos, outros foram acrescentados. Ao nosso


jornal — Avanti! —, foi tirada a palavra por um só dia, pois amanhã, graças
aos nossos e aos seus esforços, ele ressurgirá mais ardente e rebelde na defesa
dos nossos direitos. Orgulhosos da solidariedade de todo o proletariado da
Itália, daquela disciplina que é necessária em certos momentos históricos,
aconselhamos que todos voltem ao trabalho amanhã, sexta-feira.

Manifesto da seção milanesa do Partido Socialista Italiano,


17 de abril de 1919

É, portanto, nosso dever não acolher as provocações premeditadas [...],


mas reforçar as iniciativas do proletariado com tenacidade e ardor [...] para a
preparação daquela greve geral que, seguindo o já fatal movimento proletário
internacional, deve ter como objetivo supremo a ditadura do proletariado para
a expropriação econômica e política da classe dominante.

Moção da direção do Partido Socialista reunida em Milão


em 20 de abril de 1919

Estamos aqui para dizer com uma serenidade que


certamente não está no espírito dos seus inimigos: os senhores
vão fracassar. Vão fracassar com a violência nas ruas, assim
como vão fracassar com a violência togada e legal.
Avanti!, edição romana, 22 de abril de 1919

No dia 15 de abril, os socialistas maximalistas milaneses


revelaram em plena luz do dia sua alma filisteia e pusilânime.
Nem um gesto sequer de revanche foi delineado ou tentado
[...]

Benito Mussolini, Il Popolo d’Italia,


16 de abril de 1920
Gabriele D’Annunzio
Roma, 6 de maio de 1919

A enorme multidão reunida na Piazza del Campidoglio está imóvel, imóvel


como a estátua equestre do imperador Marco Aurélio, ao redor da qual ela se
aglomera. Todos esperam, com a cabeça inclinada para trás e o olhar voltado
para o alto, que Gabriele D’Annunzio apareça na sacada da prefeitura de
Roma. São dezenas de milhares de homens, em sua maioria jovens, robustos,
fisicamente íntegros. No entanto, aquele homem consegue fazer com que se
sintam mutilados. Graças à metáfora da “vitória mutilada”, cunhada pelo
poeta, 20 mil rapazes íntegros e robustos sentem agora a falta de um membro
ou de um órgão. E é por isso que o adoram.
São em boa parte veteranos da Primeira Guerra Mundial, a maior guerra da
história, que combateram e venceram o inimigo ancestral do povo italiano há
menos de um ano às margens do rio Piave, porém D’Annunzio consegue
fazer com que se sintam derrotados. E isso os faz venerá-lo. Adoram e
veneram o mago capaz do milagre de alquimia psicopata que está
transformando a maior vitória jamais obtida pela Itália nos campos de batalha
em uma derrota humilhante.
Quando, na manhã de 6 de maio de 1919, a grande multidão espera,
imóvel, aos pés do monumento equestre em homenagem a Marco Aurélio,
que o alquimista da derrota fale da sacada do Campidoglio, em toda a Itália o
sentimento de humilhação, de derrota e de injustiça já é, de fato, unânime.
Demoraram apenas duas semanas para tal transformação.
Em 24 de abril, Orlando, o presidente do Conselho de Ministros, e
Sonnino, seu ministro das Relações Exteriores, abandonaram a Conferência
de Paz de Paris. O Tratado de Londres, que em 1915 determinou as condições
de entrada na guerra ao lado da Rússia, da França e da Grã-Bretanha, havia
prometido à Itália, em caso de vitória, a Dalmácia, que durante séculos foi
domínio da República de Veneza. Segundo os nacionalistas, a nova doutrina
da autodeterminação dos povos, propagandeada por Wilson, daria agora à
Itália também Fiume, pequena cidade de fronteira com ampla maioria de
população italiana, excluída dos acordos de Londres. O slogan é: Tratado de
Londres mais Fiume. Mas o presidente dos Estados Unidos da América,
senhor do jogo diplomático, não quer, ao que parece, dar em recompensa ao
aliado italiano nem um nem outro.
Em 23 de abril, Wilson, passando por cima de seus representantes e
humilhando-os, chegou a dirigir diretamente ao povo italiano uma longa carta
publicada em um grande jornal francês na qual explicava de maneira afetuosa
ao aliado menor os motivos de sua dupla recusa: nem Dalmácia nem Fiume.
Os motivos até podiam ser bons, mas o que prevaleceu acima de tudo foi o
desprezo. Aquele desprezo que transpirava do tom paternalista com que, na
carta aos italianos, o novo dono bonachão do mundo instruía aqueles que
Mussolini chamava de “alunos da sua vitória”. Diz-se até que, em privado, o
presidente francês Clémenceau, mancomunado com Wilson, definia Orlando
como “um tigre vegetariano”.
Após o abandono das negociações em Versalhes, a desilusão logo assumiu
a aparência de drama na Itália. Os companheiros da véspera negavam o que
haviam prometido ao preço de 600 mil mortos. A conferência de paz, observa
Ivanoe Bonomi, “se revela à luz de uma emboscada”.
A partida dos delegados italianos de Paris foi um gesto clamoroso e
orgulhoso. Ao diplomata que ameaçava com graves consequências
econômicas a ruptura italiana, parece que Sonnino respondeu: “Somos um
povo sóbrio e conhecemos bem a arte de morrer de fome.” Aquele povo
recebeu seus porta-vozes com um tripúdio de orgulhosa autocomiseração. Na
última semana de abril, as praças de toda a Itália se inflamaram com
reivindicações por Fiume e pela Dalmácia italiana. Como jamais havia
acontecido, os cidadãos se uniram a seus governantes no sentimento comum
de privação. Apostou-se tudo no fascínio universal da derrota, na volúpia do
desastre. Uma aposta decididamente perigosa.
No parlamento, Filippo Turati, chefe indiscutível da ala reformista do
Partido Socialista, advertiu sobre os riscos daquela aposta arriscada ao atacar
com violência Orlando e Sonnino: “Ou os senhores sabem com certeza
matemática que uma composição é possível [...] ou, em prol do que esta
enorme instigação da opinião do país? [...] Ou então senhores não têm certeza
do resultado e a instigação, que os senhores provocaram, os aprisiona,
eliminando qualquer via de retorno que não seja uma profunda humilhação.”
Profecia previsível.
De fato, na conferência de paz, Wilson e os outros líderes da vitória
continuaram a negociar e a decidir tranquilamente as novas fronteiras do
mundo sem os italianos. Durante quinze dias de frenesi patriótico, enquanto
os liberais, os nacionalistas e os fascistas italianos estavam hipnotizados por
alguns rochedos no Adriático; em Paris, os aliados partilhavam as colônias
alemãs na África e o Império Turco no Oriente Próximo. Apenas duas
semanas após o abandono desdenhoso, Orlando e Sonnino foram, então,
obrigados a voltar a Paris com o rabo entre as pernas. O dano moral foi
enorme. Um povo que acalentou a ilusão de ser capaz de resistir sozinho a
todos cai no abandono. A milhões de camponeses pacíficos, ignorantes da
realidade do mundo, que por quatro anos lutaram nas trincheiras de uma
guerra mundial sem nem saber direito em que terra elas foram cavadas, é dito
que o sacrifício foi em vão, que a ferida sangra por nada. A desilusão estoura
dentro deles como uma dor quase desesperada.
O trem em que Orlando e Sonnino viajaram durante toda a noite, aflitos,
arrependidos, ansiosos para não perder o encontro com as delegações alemãs,
entra em Paris no momento em que Gabriele D’Annunzio enfim aparece na
sacada do Campidoglio. Fica imediatamente claro que o mago pretende
manter aberta a ferida. Seus assistentes estendem sobre a balaustrada do
Capitólio uma grande bandeira tricolor.
A mão delicada e ornada de joias de D’Annunzio está acariciando a
bandeira tricolor em que foi envolto o cadáver de Giovanni Randaccio,
capitão de infantaria, seu amigo próximo, morto na décima batalha do Isonzo
durante um ataque suicida a uma pequena colina na foz do rio Timavo,
instigado pelo poeta. A ferida deve continuar a sangrar. Sobre o símbolo da
“vitória mutilada”, o sangue pisado do soldado de infantaria mancha com um
vermelho fosco o vermelho intenso da bandeira que brilha, iluminada pelo sol
de Roma. A multidão aos pés da sacada, ainda imóvel, contempla a bandeira
e apalpa secretamente o corpo à procura do membro perdido.
Gabriele D’Annunzio, em um alvo uniforme completo de oficial de
cavalaria, agarra-se com ambas as mãos à balaustrada da qual pende a
bandeira-sudário. O homem é um mito vivo.
Nascido em 1863, Gabriele D’Annunzio passou os primeiros cinquenta
anos de vida tentando se tornar o maior poeta da Itália. Conseguiu. Seus
versos e suas prosas — em especial o romance Il piacere — influenciaram os
gostos de uma geração e tiveram ressonância internacional. Ele afirma com
arrogância que “levou a literatura italiana de volta para a Europa” e tem
razão. Os maiores intelectuais do continente o leem, admiram-no e o elogiam
publicamente. Sua vida, enquanto isso, é vivida como uma obra de arte: dândi
inigualável, hedonista militante, sedutor triunfal, histriônico, sensual,
imaginativo, põe a própria erudição infinita a serviço da busca obsessiva
pelos prazeres sensuais e pela saciação dos apetites carnais desenfreados. Em
seguida, em plena Belle Époque, quase de repente, o culto estético transmuta-
se nele em culto à violência, a inquietação de uma época assume tons
sanguinolentos. Seu insaciável desejo de conquistas femininas se torna desejo
de expansões territoriais. O cantor da languidez infinita se torna o cantor do
massacre: louva primeiro as aventuras coloniais em Canzoni d’Oltremare,
depois empurra a Itália para a guerra com o discurso de Quarto; o esteta
decadente se transforma em Vate, um poeta sacro, profeta da glória nacional.
Não contente, ao eclodir da Primeira Guerra Mundial, na marca dos 50
anos, idade em que os homens do seu tempo entram na velhice, D’Annunzio,
o colecionador de lacas e esmaltes, decide se tornar o maior soldado da Itália.
E consegue. Após obter a autorização para se alistar como oficial de ligação
nos lanceiros de Novara e conseguir um brevê de voo, participa de incursões
aéreas sobre Trieste, Trento e Parenzo, e do ataque ao monte San Michele, no
front do Planalto Cársico. Ferido durante uma aterrissagem de emergência,
perde o olho direito. Usa a convalescência na composição de Notturno, uma
de suas obras mais misteriosas e inspiradas. De volta ao front, contra todas as
recomendações médicas, na décima batalha do Isonzo concebe o ataque
arriscado ao Ponto 28, para além do curso do rio Timavo. É ali que morre
Giovanni Randaccio. Como se quisesse vingar o amigo, o poeta prepara uma
série de sensacionais aventuras bélicas: ataca o porto de Cátaro, sobrevoa
Viena com sua esquadrilha e faz com que do céu chovam manifestos de
propaganda que convidam a capital do inimigo à rendição, e fura o bloqueio
naval austríaco na baía de Bakar, a bordo de pequenas embarcações de
assalto, com uma incursão zombeteira que levanta novamente o moral das
tropas italianas após a derrota de Caporetto. Seu nome conquista o direito de
estar inscrito na lista dos campeões e dos heróis.
A essa altura, porém, no auge da glória, o poeta-guerreiro é arrebatado
novamente por sua melancolia. Movido por um incurável desespero
romântico — observa Mussolini — após a contraofensiva triunfal do Exército
italiano em Vittorio Veneto, D’Annunzio tem a sensação da própria
inutilidade repentina. Em 14 de outubro de 1918, no último mês da guerra,
escreve a Costanzo Ciano, seu companheiro na beffa di Buccari: “Para mim e
para o senhor, para os nossos pares, a paz é hoje uma desgraça. Espero ao
menos ter tempo de morrer como mereço [...]. Sim, Costanzo, vamos tentar
alguma outra grande empreitada antes de sermos pacificados à força.”
Passados dez dias, quando a guerra já está vencida, mas o armistício ainda
não foi assinado, pelas colunas do Corriere della Sera o Vate já soa o alarme
sobre os perigos de fraude contra a Itália. “Vitória nossa”, escreve, “nunca
serás mutilada.” A expressão já começa a circular nas bocas dos soldados
ainda não desmobilizados e, como em uma inquietante profecia que se
autorrealiza, em poucos meses ela se concretiza.
Esse homem que recebeu tudo da vida e que tudo foi, que, ao tornar-se
soldado, marinheiro, aviador, foi o único literato italiano em séculos a fundir
poeta e guerreiro, literatura e vida, salões e praças, indivíduo e massas,
abandona-se a uma desilusão prematura, cósmica. E ali está ele, então,
agarrado à balaustrada do Campidoglio, prestes a realizar a última fusão,
aquela entre o povo e o seu demagogo.
“Romanos, foi ontem o quarto aniversário da Consagração dos Mil. Ontem
foi 5 de maio: uma data duplamente solene, a data de duas partidas fatais.”
São as primeiras palavras que D’Annunzio pronuncia daquele balcão.
Fazem alusão a Garibaldi e a Napoleão. A multidão que o ouve arrebatada
ainda está imóvel. O discurso prossegue, como sempre, com linguagem
hierática, mediante ondas sucessivas de motes latinos, referências eruditas e
arcanas, menções indecifráveis, proclamações solenes, metáforas rebuscadas,
êxtases sublimes, preciosismos, arcaísmos, estetismos. A gente comum não o
entende, mas segue seu ritmo oratório marcando o tempo por meio de um
movimento afirmativo da cabeça, como costumamos cantarolar absortos a
melodia banal de uma canção popular.
Entretanto, após alguns minutos, o orador parece enfim perceber a
bandeira. O poeta a toca de leve, acaricia-a, roça-a com as pontas dos dedos
como se, por meio da sua consistência tátil, quisesse se certificar da própria
existência.
“Eu a tenho aqui comigo. Aqui está. No Ponto 12, na Pedreira, dobrada,
serviu como travesseiro ao herói moribundo. Esta, romanos, esta, italianos,
esta, companheiros, é a bandeira desta hora.”
D’Annunzio percorre a bandeira com o olhar como se quisesse avistar nela
o rosto do amigo perdido. Afirma que a imagem sublime do soldado de
infantaria que, cadáver, apoiou nela a cabeça ficou ali impressa como o Santo
Sudário de um Cristo menor. Não devemos nos surpreender com o milagre:
todos os mortos na religião da pátria se assemelham.
O orador pede silêncio. Agora ouçam-me. A alma da nação está mais uma
vez suspensa sobre o desconhecido. Todos aguardam em silêncio, mas em pé.
A bandeira de Randaccio receberá tarjas de luto até que Fiume e a Dalmácia
voltem a ser da Itália. Que todos os bons italianos, em silêncio, estendam o
luto sobre as suas bandeiras até esse dia.
De súbito, o orador também se silencia. Não há mais qualquer voz humana
na praça do Campidoglio de Roma. D’Annunzio vira o pescoço para a
esquerda e levanta a cabeça. Fica de ouvidos a postos para escutar algum eco
distante.
“Estão ouvindo?!” grita para a multidão.
Nenhuma resposta.
“Estão ouvindo?”, repete. “Lá embaixo, nas ruas de Ístria, nas ruas da
Dalmácia, que são todas romanas, os senhores não ouvem a cadência de um
exército em marcha?”
Sim, agora a multidão ouve aqueles passos de marcha de antigas legiões
vitoriosas desaparecidas no tempo, de ancestrais míticos que partiram para
conquistar o mundo. A multidão apinhada na praça do Campidoglio ouve
aqueles passos e, instintiva e inconscientemente, afinando-se com seu ritmo
arcaico, sob o monumento equestre em homenagem ao imperador Marco
Aurélio, oscilando o corpo para a direita e para a esquerda como os
carregadores sob o peso de um caixão, começa a marchar sem sair do lugar.
Os mortos andam mais rápido do que os vivos. As multidões, D’Annunzio
sabe, é preciso fazê-las tremular.
Esta, romanos, esta, italianos, esta, companheiros, é a bandeira desta hora.
A imagem sublime do soldado de infantaria que apoiou nela a cabeça e
deixou sua efígie. E é a imagem de todos os mortos; para todos os que
morreram pela pátria e na pátria se assemelham [...]. Agora, ouçam. Façam o
mais absoluto silêncio [...]. Mais uma vez, está suspensa no desconhecido a
alma da nação, que, na dureza da solidão, havia reencontrado toda a sua
disciplina e toda a sua força. Esperamos em silêncio, mas em pé [...]. Eu, para
que a expectativa seja fundamentada e o recolhimento seja vigilante e o
juramento seja fiel, fixo na arca de Aquileia, quero tarjar de luto minha
bandeira até que Fiume seja nossa, até que a Dalmácia seja nossa.
Todo bom cidadão, em silêncio, tarje de luto a própria bandeira, até que
Fiume seja nossa, até que a Dalmácia seja nossa.

Gabriele D’Annunzio, Roma, 6 de maio de 1919

Os acontecimentos são de tamanha enormidade que [...] eu daria socos na


parede. Fuzilá-los, fuzilar todos eles: não encontro outra palavra que
transmita o pensamento.
Carta de Filippo Turati a Anna Kuliscioff a respeito das
manifestações dannunzianas em Roma, maio de 1919
Benito Mussolini
Milão, meados de maio de 1919

O chapéu. É apenas um banal chapéu-coco comprado na Borsalino da


Galleria por 40 liras. Contudo, aquela calota de feltro preto atrai seu olhar
como um ímã magnetiza a limalha de ferro.
As badaladas do campanário de São Gotardo preenchem todo o miserável
quartinho, já saturado pelos odores acres do sexo. A mulher se encontra
deitada de costas, as coxas ainda afastadas, prostrada, porém soberana na
própria nudez despudorada. O sino bate as horas e os quartos. Ele volta a
olhar para o chapéu.
Já tem 40 anos, mas ainda é bonita. Os olhos cinza-esverdeados, os cabelos
louro-acobreados, os seios abundantes e pendentes de uma mãe que
amamentou. Vestida é certamente a coisa mais elegante e refinada que o
porteiro daquela espelunca já viu entrar no hotel de alta rotatividade onde ele
ganha seu sustento. Agora, porém, ela está nua, são 6h45 — nove badaladas
do campanário de São Gotardo — e ela revisa em voz alta o discurso que o
amante fará em 22 de maio em Fiume, no Teatro Verdi.
A Itália tem uma missão no Mediterrâneo e no Oriente. Basta olhar o mapa
geográfico para entender a verdade axiomática dessa declaração. Equidistante
do Equador e do polo, a Itália ocupa o centro do Mediterrâneo, a bacia mais
importante da Terra. A configuração, a estrutura litorânea, a perfeição das
linhas colocam-na em condição privilegiada, motivo pelo qual a Itália está
destinada a ser a dominadora do Mediterrâneo; e é claro que, reconquistado
após 2 mil anos o grande baluarte da muralha alpina, ela voltará a se debruçar
sobre o mar, de onde, em todas as épocas, recebeu prosperidade e grandeza.
A África é sua segunda margem. Pode-se dizer que essa necessidade pelo
Mediterrâneo representa o direito de 40 milhões de italianos de ter o campo
livre para sua expansão natural. Mas é preciso ser forte. A hora da Itália ainda
não soou, mas deve fatalmente chegar. Na ordem interna, a Itália precisa
conquistar primeiro a si mesma. Esse é o dever do fascismo. Um destino
imperial maior. Uma tradição milenar chama a Itália para as praias do
continente negro.
Ela aprova com a cabeça, gosta da palavra “dominadora”. Elimina algumas
expressões com um risco de caneta resoluto e conclui que ele deve encontrar
Gabriele D’Annunzio. O ar no quarto se torna irrespirável. Ainda o chapéu.
Margherita Sarfatti e Benito Mussolini conheceram-se pessoalmente em
fevereiro de 1913, quando ele, tendo recém-completado 30 anos, fora
nomeado diretor do Avanti!. Ela, que era responsável pela crítica de arte para
o jornal socialista, apresentou a demissão ao novo diretor como era de
costume a cada mudança de linha política. Daquele primeiro encontro, ela
recordaria os olhos fanáticos dele, amarelos, a energia animalesca, a magreza.
Causou-lhe a impressão de ser um homem que luta para manter fechada uma
porta que quer se abrir a todo custo. No entanto, já ouvira falar dele antes
daquela ocasião. O primeiro a mencionar o nome de Mussolini para ela havia
sido seu marido, Cesare Sarfatti, advogado eminente, expoente da corrente
reformista do socialismo milanês. Em 13 de julho de 1912, Cesare escreveu à
mulher, que ficara em casa, uma nota entusiasta de Reggio Emilia, onde tinha
acabado de terminar o congresso do Partido Socialista: “Benito Mussolini.
Recorde esse nome. É ele o próximo homem.” E Margherita recordou.
Em Reggio Emilia, o jovem, obscuro delegado da seção de Forlì,
aproximou-se da tribuna taciturno como um algoz, paletó e gravata pretos, o
rosto pálido, as roupas gastas, o corpo ossudo, os olhos agitados, a barba de
três dias, e falou uma língua nunca antes ouvida. Frases cortadas,
peremptórias, fortes, quase sempre precedidas por um eu hipertrófico,
cadenciadas por silêncios ameaçadores, significados inequívocos e militantes,
asserções histéricas e memoráveis. Benito Mussolini, obscuro delegado da
seção provincial de Forlì, eliminava em poucos minutos séculos de
eloquência rica e culta, gesticulava como um chinês, maltratava o chapéu de
aba larga típico dos mazzinianos, praguejava contra Deus na tribuna do povo.
O público ficou dividido: os cegos e arrogantes riram dele como de uma
caricatura, todos os outros ficaram fascinados e atordoados.
O alvo de sua fúria eram os velhos, senhoris e bonachões potentados da ala
reformista. Eis o que havia acontecido: um pedreiro romano disparara o
revólver contra o rei, e eles, guiados por Leonida Bissolati, velha figura do
socialismo moderado, imbuíram-se de culpa ao visitar o soberano, subindo ao
palácio de chapéu mole e luvas cor de palha. Mussolini, então, pôs-se em
mangas de camisa e acuou todos contra a parede. Golpeou-os bem em cheio:
“Não posso aprovar seu gesto de cortesão. Diga, Bissolati, quantas vezes o
senhor foi prestar homenagem a um pedreiro que caiu do andaime? Quantas
vezes a um cocheiro atropelado pela própria carroça? E então? O que é um
atentado ao rei senão um acidente de trabalho?” Aplausos. “Para um
socialista, um atentado é um fato jornalístico ou histórico, dependendo do
caso. As virtudes pessoais do rei estão fora de questão. Para nós, o rei é um
homem, sujeito como todos às extravagâncias cômicas ou trágicas do destino.
Por que se comover e chorar pelo rei, e só pelo rei? Entre o acidente que
acomete um rei e o acidente que abate um operário, o primeiro pode nos
deixar indiferentes. O rei é um cidadão inútil por definição.”
Aplausos. Vivas. Triunfo.
No fim do dia, Bissolati, Bonomi, Cabrini e Podrecca — os principais
nomes da ala moderada — serão expulsos do partido; Benito Mussolini, o
revolucionário selvagem que veio da província, será elevado ao papel de
novo ídolo; mais alguns meses e Margherita, a fascinante filha da grande
burguesia judaica veneziana, que cresceu no Palazzo Bembo no Canal
Grande, esposa do advogado Sarfatti, intelectual cultíssima, defensora do
socialismo, com renda de 40 mil liras por ano, refinada crítica de arte,
protetora de Boccioni, mecenas das vanguardas artísticas futuristas, se tornará
sua amante.
Agora, porém, não é mais 1912. Sete anos e uma guerra mundial se
passaram. Os socialistas já até expulsaram do partido aquele Benito
Mussolini que antes da guerra era seu astro nascente, tacharam de infame o
traidor que passou de uma hora para outra da frente pacifista para a
intervencionista, cobriram de vergonha seu jovem ídolo revolucionário como
ele havia feito com os velhos patriarcas reformistas. Depois de quatro anos de
guerra constantemente hostilizada pelos socialistas ortodoxos, em 1o de maio,
a classe operária que odeia veteranos e intervencionistas celebrou com
manifestações grandiosas o Dia do Trabalho. As massas, inebriadas pela
própria potência, afluem engrandecidas sob as bandeiras vermelhas. O
incêndio do Avanti!, ateado pelos primeiros fascistas, parece não tê-las sequer
arranhado. Em menos de um mês, angariaram mais de 1 milhão para a
reconstrução. Para Mussolini, em contrapartida, aquele incêndio queimou
todas as pontes postas na direção dos antigos companheiros. Todas as
tentativas de criar uma constituinte das facções intervencionistas de esquerda
fracassaram. E os Fasci di Combattimento também foram um fiasco. Poucas
centenas de adeptos espalhados por toda a Itália.
Em certas noites de neblina fria, ele precisa caminhar para a frente e para
trás na Via Monte di Pietà à espera da chegada de Marinelli ou de Pasella
para abrir a porta do escritório. Trótski, na Rússia, em poucos meses montou
um Exército Vermelho de operários socialistas, e, enquanto isso, Mussolini
está há semanas sem conseguir nem mesmo montar uma equipe para defender
o jornal. E a publicação continua a perder leitores. Morgagni, o
administrador, apesar dos esforços, às vezes não consegue sequer pagar o
papel. Sem mencionar o presidente dos Estados Unidos da América, que, na
Conferência de Paz de Paris, insiste em humilhar a Itália. E tem ainda aquela
mulher louca e vingativa, Ida Dalser, que o denigre publicamente. Deu seu
nome ao filho nascido da relação secreta entre eles — Benito Albino — e
acabou de receber 700 liras de Frassati, o diretor do La Stampa, de Turim,
para acusar Mussolini de ter fundado em 1915 o Il Popolo d’Italia graças ao
ouro dos franceses. E há ainda Bianca Ceccato, a “pequenina”, que quer
bancar a namoradinha. Pediu demissão do emprego de secretária no jornal e
chora porque a chamam de sustentada. Antes ele a levava para quartos
mobiliados na Via Eustachi, mas agora ela o obriga a fazer passeios
românticos. Estiveram no lago de Como, em abril foram a Veneza. Tiraram
uma foto de recordação na Piazza San Marco, com os pombos em cima da
cabeça. Os porteiros dos hotéis acham que ela é sua filha. Tem 19 anos. Um
rostinho de boneca sob a touquinha de renda. Faz orações antes de ir para a
cama.
“Você precisa encontrar D’Annunzio.”
Margherita Sarfati diz que o Vate é um amigo querido, que pode apresentá-
los. O domínio daquela mulher preenche o quarto: os dinamismos do século,
a boemia de Paris, La città che sale, os trabalhadores sazonais dos arrozais da
região de Novara, que após dezessete dias de greve conquistam a jornada de
trabalho de oito horas, Umberto Boccioni, o maior pintor da sua geração,
voluntário no Batalhão Nacional dos Ciclistas, que morre no front com
apenas 33 anos em um acidente banal. Aquele corpo obsceno de mulher dona
de si resume tudo isso, o século vibra em seus seios, em seu ventre, em suas
coxas nuas, despudoradas. Ele, Benito Mussolini, de Predappio, filho de
Alessandro, se choca contra aquelas coxas femininas como uma mosca
enlouquecida bate contra o vidro do copo virado de cabeça para baixo. Ele a
penetraria com um cavalo. E isso é tudo. Não sabe mais nada.
O cheiro do quarto se tornou terrível. São Gotardo soa 7h. São 7 badaladas
perfeitas.
Ele se levanta, aperta o nó da gravata, deixa-se fluir na corrente magnética
que o atrai em direção ao chapéu-coco. Não, nenhuma mulher poderá se
gabar de ter saído satisfeita da sua intimidade. Assim que termina de possuí-
las — coisa em si rapidíssima —, ele sente a necessidade opressora de pôr
mais uma vez o chapéu na cabeça.
Prof. Benito Mussolini, filho de Alessandro, já falecido, natural de
Predappio, nascido em 29/07/1883, residente em Milão, em Foro Bonaparte,
número 38, socialista, revolucionário, fichado, professor do ensino primário
habilitado ao ensino em escolas secundárias, primeiro foi secretário da
Câmara do Trabalho em Cesena, Forlì e Ravena e, a partir de 1912, diretor do
jornal Avanti!, ao qual deu formas violentas, incitativas e intransigentes. Em
outubro de 1914, discordando da direção do Partido Socialista Italiano por
defender a neutralidade ativa da Itália na Batalha das Nações contra a
tendência da neutralidade absoluta, afastou-se no dia 20 daquele mês da
direção do Avanti!.
Iniciou, então, em 15 de novembro daquele ano, a publicação do jornal Il
Popolo d’Italia, com o qual apoiou, em oposição ao Avanti! e com dura
polêmica contra aquele jornal e seus principais inspiradores, a tese da
intervenção da Itália na guerra contra o militarismo dos Impérios Centrais.
Por tal motivo, foi acusado pelos companheiros socialistas de indignidade
moral e política, sendo deliberada a sua expulsão [...]
Também teve como amante a tridentina Ida Dalser [...] com a qual teve um
filho em novembro de 1915 reconhecido por Mussolini com ato em 11 de
janeiro de 1916 [...]. Abandonada por Mussolini, falava mal dele a todos,
dizendo inclusive que o ajudara financeiramente, embora nunca se referisse
aos seus precedentes políticos [...]. Enquanto estava internada em Caserta, ela
apresentou, para um funcionário desta Serventia (fevereiro de 1918), a
acusação de que Mussolini havia se vendido para a França, traindo os
interesses do próprio país, e declarou ter tido conhecimento de que, em 17 de
janeiro de 1914, aconteceu em Genebra um encontro entre Mussolini e o ex-
presidente do Conselho francês, Caillaux, que, em seguida, teria depositado
para Mussolini o valor de 1 milhão de liras [...]
Ida Dalser, entretanto, é neurastênica e histérica, exaltada pelo desejo de
vingança contra Mussolini, e suas declarações não merecem crédito.
Todavia, as investigações realizadas indicaram que, de fato, embora não na
data indicada por Dalser, mas em 13 de novembro de 1914 (N.B.: dois dias
antes da aparição do primeiro número do Il Popolo d’Italia), Benito
Mussolini estava em Genebra, exatamente no Hôtel d’Angleterre.

Relatório do inspetor-geral de segurança pública Giovanni


Gasti, junho de 1919
Benito Mussolini, Cesare Rossi
Fim de junho de 1919

Para o problema político, nós queremos: política externa não submissa,


reforma da legislação eleitoral, abolição do Senado.
Para o problema social, nós queremos: jornada de trabalho de oito horas,
salários mínimos, representações sindicais nos conselhos de administração,
gestão operária das indústrias, seguro por invalidez e aposentadoria,
distribuição aos camponeses das terras incultas, a reforma eficiente da
burocracia, escola laica financiada pelo Estado.
Para o problema financeiro, nós queremos: imposto extraordinário sobre o
capital com caráter progressivo, expropriação parcial de todas as riquezas,
confisco de 85% dos lucros da guerra, confisco de todos os bens das
congregações religiosas.
Para o problema militar, nós queremos: a nação armada.
O programa dos Fasci di Combattimento foi publicado no Il Popolo
d’Italia de 6 de junho, quase três meses depois da reunião na Piazza San
Sepolcro, após mil discussões e ajustes. Foi alardeado em página inteira, em
seis colunas, com manchetes em letras garrafais. Com exceção da revolução,
é quase o mesmo programa dos socialistas revolucionários, mais à esquerda
do que os reformistas. Um programa concebido por dissidentes do socialismo
para atrair ex-companheiros.
Cesare Rossi, contudo, acha que não tem serventia. Não diz isso
abertamente, mas dá a entender. Para ele, que conhece bem o proletariado, já
é impossível separar as massas operárias e camponesas dos diretores
burgueses — ainda que ineptos e improdutivos — do Partido Socialista,
como Mussolini ainda acredita poder fazer. E Cesarino Rossi é, talvez, o
único conselheiro político a que Mussolini dá ouvidos. Ele também tem a
mandíbula quadrada como Benito, os olhos redondos e entradas já profundas
nas têmporas. Ergue com frequência as bastas sobrancelhas pretas, que quase
unem a fronte às orelhas, e usa um bigode grosso sob um nariz em forma de
flecha.
Nascido na Pescia, na província de Pistoia, como D’Annunzio, Rossi ficou
órfão de pai e foi militante socialista, antimilitarista e operário tipógrafo
quando garoto, tendo se desligado do Partido Socialista porque seus líderes se
perdiam em polêmicas superficiais. Fundou, com Alceste De Ambris, a
União Sindical Italiana, o sindicato revolucionário da ação direta; após se
bandear para o lado do intervencionismo, como Mussolini, combateu na
guerra como soldado raso e escreveu ótimas crônicas do front; sabe fazer
política e sabe fazer um jornal. Ele é o único que Mussolini leva em
consideração.
Os outros homens ao redor do fundador dos Fasci di Combattimento no Il
Popolo d’Italia servem para pouca coisa, são brilhantes, mas desequilibrados,
ou então saudáveis e imbecis, perigosos ou totalmente inócuos. Michele
Bianchi, apesar de sua fé e inteligência política, é um fanático que não sabe
viver sem elaborar planos de vingança e sem apertar entre os dedos um
cigarro; Mario Giampaoli é um delinquente que ainda explora mulheres em
Porta Ticinese; Pasella não tem uma única ideia na cabeça e, por isso, é um
ótimo orador, bom para ser enviado à província para fazer comícios; Arnaldo,
seu irmão, é um apoio de valor inestimável, bom cristão, bom pai de família,
bom amigo, gordo, honesto, bonachão, manso, de olhar bovino. Já Rossi tem
a córnea preta de um lobo. E Rossi julga que não é possível voltar atrás.
Multidões de socialistas enfurecidos continuam a impedir os comícios
públicos fascistas e, em contrapartida, os Arditi continuam a apunhalar os
líderes operários sempre que se deparam com eles. Dali não se passa. Entre
eles e o passado, ergue-se um muro de ódio, desprezo e sangue.
Segundo Rossi, nem mesmo os tumultos populares por causa da carestia
que eclodiram no início do mês em toda a Itália setentrional levam a algum
lugar. A explosão de raiva popular é genuína, espontânea, mas desprovida de
conteúdo político. As pessoas têm fome, ponto final. A inflação está nas
alturas, os milhões de soldados que voltaram do front após quatro anos de
guerra não têm pão. Prometeram-lhes prosperidade, terra, e esses são
compromissos que não devem ser feitos em vão.
Nas reuniões vespertinas, Rossi insiste em minimizar a importância dos
levantes: aquelas donas de casa que atacam as bancas dos quitandeiros e
depredam rolos de anchovas são pessoas bondosas, alegres, contentes em
finalmente ter o prazer de tomar uma garrafa de vinho por poucos trocados,
gente que se encaminha de maneira pacífica para casa antecipando a gandaia
em família. Esses tumultos que tanto aterrorizam os burgueses com certeza
não são os prenúncios da revolução, tudo se reduz a uma devastação de
garrafas e de galinhas. A Itália, afinal, sempre foi o país em que os levantes
começavam diante das bancas dos padeiros.
Mussolini sabe muito bem disso. Nas colunas do jornal, ele também berra
“os ricos que paguem!”, age como um demagogo, evoca uma “santa vingança
popular”, solidariza-se com o povo “revoltado contra os exploradores”.
Porém, percebe que a greve e os tumultos estão se tornando uma doença
epidêmica, uma febre crônica e delirante. Sem uma verdadeira necessidade,
as fornalhas e os campos são abandonados, os enfermeiros deixam os doentes
e os coveiros se recusam a enterrar os mortos. O caos é total, crescente,
indistinto, mas é apenas caos. A revolução é algo bem diferente, e os líderes
socialistas são totalmente incapazes de conduzir aquela revolta espontânea
rumo à conquista do poder. Isso ficou claro com o incêndio do Avanti!. A
impressão suscitada pela devastação no país foi enorme. Os líderes
socialistas, porém, limitaram-se a lançar uma subscrição que em poucos dias
angariou a enorme cifra de 1 milhão de liras do imenso povo reunido em
torno da bandeira caída. Mas, em seguida, convidaram aquelas massas de
militantes fervorosos a voltar de modo pacífico ao trabalho. Tais incapazes
pregam paciência enquanto esperam o fatal acerto de contas revolucionário,
proclamado abertamente, mas sempre adiado. Aqueles socialistas
“evangélicos” nunca farão a revolução, insiste Rossi. E nisso Mussolini
concorda com ele.
Cesare Rossi, no entanto, está convencido de que devem olhar em outra
direção. Em Bolonha, os agricultores se reuniram em uma federação de
grandes proprietários de terras. É para aquele lado, para a direita, que devem
olhar. É o que Rossi não cansa de repetir para Mussolini. O programa de San
Sepolcro não está bom, é imperioso reescrevê-lo. Chega de nostalgia e das
escórias do passado na esquerda. É preciso mesmo perguntar-se, de uma vez
por todas: quem somos nós?
Nesse ponto, porém, Rossi se engana. É nessa curva do raciocínio que, em
geral, Mussolini para de escutar Rossi. Quem somos nós? Pergunta errada,
inútil, até mesmo nociva. Pergunta supérflua porque supervaloriza a
importância da consciência.
Quem são os fascistas? O que eles são? Benito Mussolini, seu idealizador,
julga a pergunta ociosa. Sim, é claro... são algo novo... algo inédito... um
antipartido. É isso... os fascistas são um antipartido! Fazem antipolítica.
Muito bem. Mas, depois, a busca da identidade deve parar por aí. O
importante é ser algo que permita evitar os empecilhos da coerência, o
estorvo dos princípios. Benito deixa de bom grado as teorias, e sua
consequente paralisia, para os socialistas.
Cesare Rossi tem razão no diagnóstico: os Fasci di Combattimento não têm
noção do futuro, não sabem onde desaguar. Mas Cesarino erra o prognóstico:
esse déficit será sua salvação, e não sua condenação. É preciso encarar a
realidade de um modo generalizante. No fundo, cada vida valia uma outra
vida, cada sangue, um outro sangue. Os fascistas não querem reescrever o
livro da realidade, querem apenas seu lugar no mundo. E o terão. Trata-se
apenas de fomentar os ódios de facção, exasperar os ressentimentos. Nada,
então, será impedido. Não há mais esquerda nem direita. Basta alimentar
certos estados de espírito que afloram neste crepúsculo da guerra. Nada mais.
Só isso.
O programa de San Sepolcro? É só um pedaço de papel, uma premissa
constrangedora. Enfiaram nele várias exigências perturbadoras, mas, no fim
das contas, eles são os Fasci di Combattimento, e seu verdadeiro programa
está inteiramente contido na palavra “combate”. Por isso, eles podem, e
devem, se dar o luxo de ser reacionários e revolucionários de acordo com as
circunstâncias. Eles não prometem nada, e cumprirão a promessa.
Rossi comete um equívoco ao desejar reescrever o programa teorizando a
guinada à direita. Quem tem razão é Gabriele D’Annunzio, que não dá a
mínima para os programas: a ênfase deve recair inteiramente sobre a ação. É
o que seduz os jovens que “seguem rumo à vida”, como no lema de
D’Annunzio: a ação. O problema teórico do programa político se resolve
erradicando-o como uma erva daninha: os fascistas devem apenas passar à
ação, qualquer tipo de ação. Dessa forma, tudo se torna mais simples. Nesses
instantes, quando o pensamento se libera na ação, a vida interior se
miniaturiza, se reduz aos reflexos mais simples, se desloca dos centros
nervosos para a periferia. Que alívio...
Sozinho em seu escritório, em um dia indeterminado de junho de 1919,
Benito Mussolini pega papel e caneta e escreve a Gabriele D’Annunzio:
“Caro D’Annunzio [...]. Quando virá a Milão? Ou sou eu que devo ir a
Veneza? Mande-me notícias. Estou às suas ordens.”
D’Annunzio e Mussolini se encontram pessoalmente pela primeira vez
poucos dias mais tarde, em 23 de junho. O poeta, que viajou de Veneza a
Roma, hospedou-se, como de costume, no Grand Hotel. Naquele mesmo dia,
encontrou-se com o rei. Antes de subir até o Quirinal, precisou desmentir
alguns boatos sobre uma conspiração para derrubar o governo que teria
tramado justamente com Mussolini, com Federzoni, o líder dos nacionalistas,
com Peppino Garibaldi, neto do herói, e com o duque de Aosta, primo do
soberano. O desmentido ficará entre as suas frases célebres: “Minha ação é
tão clara e tão pura que nada teme dos inimigos nem dos amigos, hoje e
sempre. Ouso, não tramo.”
Ao mesmo tempo, em uma entrevista à Idea Nazionale, o Vate se
apressava em lançar uma proclamação subversiva: “É necessário que a nova
fé popular prevaleça, com todos os meios, contra a casta política que de todas
as maneiras tenta prolongar formas de vida desabonadas ou desprezadas. Se
houver necessidade de dar o sinal de ataque, eu o darei. E todo o resto é
podridão.” Assim, com a mesma velocidade com que se criou a imagem de
uma “vitória mutilada”, em poucas horas, a imagem da classe política como
“casta” privilegiada e separada da sociedade começa a se arraigar sobre o
tronco do descontentamento popular.
Mussolini, por sua vez, ao longo desse mesmo dia, participou da primeira
assembleia do Fasci di Combattimento de Roma, que se constituíra em 15 de
maio por iniciativa dos futuristas Mario Carli e Enrico Rocca, e também de
Giuseppe Bottai, um jovem tenente dos Arditi, poeta amador. Eram os gatos-
pingados de sempre.
Em seguida, Mussolini assistiu ao primeiro congresso nacional dos
combatentes, inaugurado no Campidoglio, e telefonou ao jornal para
comentar a esse respeito. Os nomes de Francesco Saverio Nitti, novo
presidente do Conselho, que substituiu Vittorio Emanuele Orlando depois da
enésima crise, e de Giovanni Giolitti, velho estadista que manipula os jogos
parlamentares dos bastidores, foram, ao que parece, sonoramente vaiados.
Alguns dizem que também foi vaiado o nome de Mussolini, protetor dos
veteranos, mas traidor dos socialistas. Esse detalhe, porém, não consta do
artigo no Il Popolo d’Italia.
Seja como for, a conversa entre Mussolini e D’Annunzio aconteceu à
tarde, no Grand Hotel. Acompanhando Mussolini, estava o jornalista Nino
Daniele. O encontro, que dizem ter durado uma hora, não teve testemunhas.
A única pessoa a assistir foi, na verdade, o fantasma de uma mulher:
Margherita Sarfatti, que, apesar de admirá-lo imensamente e continuar a ser
sua amiga, rechaçava os galanteios do poeta desde 1908. Foi ela que
intercedeu para que o encontro acontecesse, e foi ela que enalteceu para
Mussolini o projeto de uma expedição aérea concebida pelo poeta na qual ele,
a bordo de um dos aviões que já pilotara durante a guerra, deveria voar de
Roma a Tóquio. Apaixonada por aviação, Margherita anda suplicando a
D’Annunzio para ser incluída na expedição desde que a notícia começou a
circular. Mussolini também, instigado pela amante, começou a fazer aulas de
voo, copiando D’Annunzio. Mas Mussolini é só um novato. Nem mesmo
naquele campo, a conquista dos céus, pode competir com o rival.
Além de compartilhar tais fantasmas, carnais e etéreos, diz-se que os dois
homens concordaram com a necessidade de dar à Itália um governo de
combatentes e opor-se frontalmente à grande greve que os socialistas de toda
a Europa convocaram para se solidarizar com o Exército Vermelho de Lênin,
que já fora apelidada de “grevíssima”.
“Um homem interessante, o Mussolini”, comentou D’Annunzio,
finalmente livre para poder se dedicar à sua festiva e adorada matilha de
galgos depois de ter se despedido do amante da sua velha amiga Margherita.
O problema é claro. A nação italiana é como uma grande família. O caixa
está vazio. E quem deve enchê-lo? Nós, por acaso? Nós, que não temos casas,
automóveis, bancos, minas, terras, fábricas, papéis-moedas? Quem pode
“deve” pagar. Quem pode deve desembolsar [...]. Das duas, uma: ou os
afortunados proprietários se autoexpropriam e não haverá crises violentas —
porque nós, em primeiro lugar, temos horror à violência entre pessoas da
mesma raça que vivem sob o mesmo céu —, ou serão cegos, surdos,
avarentos, cínicos, e então nós levaremos as massas de combatentes rumo a
esses obstáculos e os derrubaremos. É a hora dos sacrifícios para todos.
Quem não deu sangue, que dê dinheiro.

Benito Mussolini, Milão, 9 de junho de 1919.


Discurso nas escolas do Corso di Porta Romana sobre os
tumultos populares contra a carestia.
Primeiro comício público dos Fasci di Combattimento

Dada a total falta de estabilidade do programa deles, qualquer acordo com


os Fasci di Combattimento é impossível. E Benito Mussolini é um homem
que não pode dar garantia alguma.
Mario Gibelli, expoente dos republicanos, junho de 1919

Estou pronto. Estamos prontos. A maior batalha começa, e eu lhe digo que
teremos nossa décima quinta vitória.

Carta de D’Annunzio a Mussolini, 30 de maio de 1919


Benito Mussolini
19 de julho de 1919

Dez bombas de explosão retardada.


Cesare Rossi estava enfurecido com os ex-companheiros a ponto de ir
pegar pessoalmente os explosivos na Estação Central, em um dos armazéns
onde tinham ficado escondidos desde antes da guerra, quando deviam servir
para a realização de atos de sabotagem durante uma das greves dos
ferroviários. E Rossi conhecia bem o esconderijo porque, naquela época,
liderava a ala mais violenta do sindicato deles. Agora, poucos anos mais
tarde, com ódio da enésima greve dos socialistas anunciada para o dia
seguinte — batizada de “grevíssima” —, até um homem razoável como Rossi
assumiu o risco de se embrenhar de noite com um amigo de confiança na área
de içamento, onde um condutor fascista entregou-lhe dez bombas, uma de
cada vez, e ele levou cada uma delas para o cúmplice que o esperava com
uma mala na praça da estação. Se fosse parado, teria fingido ser um viajante
desprovido de meios para ir a um hotel e impossibilitado de prosseguir
viagem justamente por causa das agitações. Um pobre viajante com dez
bombas na mala. Seu plano absurdo era se aproveitar da confusão para
bombardear a sede do Avanti! e a Câmara do Trabalho.
Mussolini por pouco não conseguiu refrear a loucura de seu redator-chefe.
Quando contestou a ferocidade de um plano que não levava em conta as
vítimas inocentes, Rossi retrucou que todos os tipógrafos do Avanti! eram
militantes socialistas e que a Câmara do Trabalho era frequentada apenas por
inimigos do fascismo. As bombas permaneceram na casa do cúmplice na Via
Durini, a poucos passos da sede do jornal.
Se até alguém como Rossi prepara um atentado, não há mais nada a ser
feito. De qualquer forma, a situação se encaminha para uma tragédia. A
expectativa de cataclismos suscitada pela “grevíssima” de 20 de julho é tão
alta que torna plausível até mesmo dez bombas de explosão retardada serem
guardadas em um apartamento no Centro da cidade. Essa é a sensação de
viver no limiar de uma nova era. Nenhuma remissão entre as partes. Entre
socialistas e fascistas — sustenta Rossi —, podem existir períodos mais ou
menos longos de trégua, mas, no fim, os dois lados vão se trucidar de um
jeito ou de outro.
Mussolini tenta manter os eventos na linha de flutuação. Navega entre a
saudade dos velhos companheiros e a necessidade de encontrar novos. Em 17
de julho, a primeira reunião dos Fasci di Combattimento da Itália central e
setentrional, realizada em Milão, deliberou a mais firme oposição à
“grevíssima”. Estavam representadas uma dúzia de cidades, no máximo,
diante de poucas centenas de inscritos. Mesmo assim, pela primeira vez, os
fascistas decidiram pela linha dura contra os agitadores “vermelhos”, “a raça
bastarda que desonra a Itália”, tomando como modelo a Rússia de Lênin, e
não a própria pátria vitoriosa contra os austríacos.
Isso no que tange ao movimento, mas, para se manter na superfície,
Mussolini também não deixa de lado as instituições: Michele Bianchi, por
ordem sua, já entrou em um acordo com o governador da província de Milão
e pôs à sua disposição os Fasci di Combattimento para tarefas de manutenção
da ordem pública. O governador da província lhe comunicou uma novidade
explosiva: uma circular sigilosa do governo prevê e estimula pela primeira
vez a colaboração dos fascistas no trabalho de repressão, inclusive violenta,
das tentativas de revolução, desde que aceitem ser dirigidos pelas
autoridades. O Estado liberal, em suma, para frear o avanço dos “vermelhos”,
se coloca ao lado dos fascistas, e esses, pela primeira vez, vão se opor a uma
greve das massas populares.
Do outro lado, no entanto, a vigília da “grevíssima” voltou a lançar a
hipótese de um comitê de cooperação pré-eleitoral de todas as facções do
intervencionismo de esquerda que parecia ter definitivamente naufragado
dois meses antes. Os líderes da facção socialista que, contra a linha oficial do
partido, em 1915 lutaram para a entrada da Itália na guerra, reúnem-se na
véspera da “grevíssima” no auditório principal da escola secundária Beccaria
de Milão. Estão presentes todos os dissidentes do socialismo oficial e os
radicais da esquerda patriótica.
Mussolini é um dos primeiros a falar, e faz um discurso competente.
Imagina uma reorganização social e econômica centralizada no bem-estar dos
trabalhadores, mas livre de qualquer influência do bolchevismo. Por um
instante, todos parecem convencidos e de acordo. Dizem que, talvez,
superando velhas divisões e personalismos, exista até a possibilidade de se
apresentarem juntos nas eleições de novembro. O navio parece, enfim, zarpar.
É possível, quem sabe, esperar uma navegação tranquila pela costa, que
poderia até aportar em uma cadeira no Parlamento, apesar dos discursos
contra a “casta”.
Mas é difícil manter-se à superfície com a cabotagem quando a revolução
bate à porta. A “grevíssima”, oficialmente proclamada pelas organizações
operárias de toda a Europa em sinal de protesto contra as intervenções
estrangeiras na Rússia e apoio às forças contrarrevolucionárias, se apresenta
como uma simples manifestação demonstrativa. Todavia, a situação parece
destinada a descambar para o conflito direto. Até o deputado D’Aragona,
socialista moderado, declara: “Não devem surpreender as notícias de uma
tentativa de revolução e de derramamento de sangue. Os resultados podem
não ser extensos, mas a insurreição é quase inevitável.”
Do lado oposto, em Londres, o jovem ministro inglês da Guerra e da
Aviação lhe faz eco. Segundo Winston Churchill, os bolcheviques seriam
“inimigos da espécie humana” que, de Moscou, lideraram “uma conjura
mundial com o objetivo de derrubar a civilização”. A “peste asiática”, enfim,
está às portas. As dez bombas de explosão retardada continuam escondidas
em um aquecedor a carvão na Via Durini.
Voltando à redação no meio da noite após a assembleia na escola
secundária Beccaria, o diretor do Il Popolo d’Italia precisa contornar a grade
de arame farpado que protege a entrada. Ali perto, Albino Volpi mata o
tempo descarregando e recarregando, com meticulosidade, a pistola. Dá para
se sentir o cheiro de sangue por toda parte.
Estamos em um momento em que as autoridades não podem ficar isoladas
e contar unicamente com os funcionários e a força pública [...] Nas cidades
onde existem Fasci di Combattimento e associações de combatentes [...] se
eles têm intenção de cooperar com a manutenção da ordem pública e a
repressão da violência e das tentativas de revolução, farão uma obra
patriótica, pondo-se voluntariamente à disposição das próprias autoridades e
aceitando com espírito disciplinado sua direção, que só pode ser única.

Francesco Saverio Nitti, chefe do governo, em circular


sigilosa aos governadores de província, 14 de julho de 1919

Mattina comunica que se reuniu com autoridades, tendo recebido


anteriormente Bianchi, redator-chefe do Il Popolo d’Italia, quando Mussolini
se encontrava em Roma. Acordo entre Bianchi e governador completo,
também graças à intervenção de Mattina. Portanto, pode-se considerar que os
Fasci di Combattimento locais põem-se à disposição das autoridades para
qualquer eventualidade.

Telegrama enviado ao diretor-geral da segurança pública do


governo da província de Milão em 15 de julho de 1919

Esse proletariado precisa de um banho de sangue.

Benito Mussolini, reunião na escola secundária Beccaria de


Milão, 19 de julho de 1919
Nicola Bombacci
Milão, 20 de julho de 1919

A BANDEIRA VERMELHA TRIUNFARÁ


Essa era a manchete do Avanti! na edição de Turim em 19 de julho de
1919. Em seis colunas e letras garrafais. Seu eco ressoa no La Difesa, órgão
dos socialistas florentinos, com três pontos de exclamação em uma só linha:
“Proletários! A ação é iminente, façam com que seja decisiva! Ergamo-nos!”
Na Rússia, em outubro de 1917, a bandeira vermelha já triunfou. Agora
tremula sobre pelo menos dezesseis fronts de guerra, de Vilnius a Samara a
Vladivostok, do Báltico ao Volga até o oceano Pacífico. E triunfará ali
também porque, em menos de um ano, Leon Trótski levantou do nada o
Exército Vermelho, que revolucionou, inclusive, o modo de conceber a
guerra. Ele é inspirado por uma nova relação entre o espaço e a disposição
das forças, para uma guerra fluida, de movimentos globais, de irmandades
universais, capaz de pensar conceitualmente em grande escala, em um
espetáculo de operações tão vasto quanto a Terra. Seu exemplo já foi
seguido. Na primavera de 1919, a bandeira vermelha triunfou também em
Budapeste, onde o operário comunista Béla Kun fundou a República
Soviética Húngara. E também em Milão, na manhã de 20 de julho de 1919, às
11h, diante da Câmara do Trabalho, na Via Manfredo Fanti, instalada nos
espaços disponibilizados pela Sociedade Humanitária, sobre a multidão,
tremula um mar de bandeiras vermelhas.
Já falaram Claudio Treves, culto e refinado líder da facção reformista, e
Giacinto Menotti Serrati, batalhador líder da facção maximalista. Todos,
porém, esperam que Nicola Bombacci fale. A União Geral do Trabalho
francesa retirou-se da “grevíssima” no último momento, as trade unions
inglesas fizeram o mesmo, e os trabalhadores italianos apoiam sozinhos os
irmãos russos. O clima é mais de festa do que de barricada, os operários
desfrutam do luxo de ficar de braços cruzados e fumar cachimbo no meio da
manhã; as patrulhas de soldados de cavalaria percorrem melancolicamente as
avenidas da periferia sem encontrar exércitos com os quais se confrontar.
Mas nada disso importa, porque Nicolino Bombacci está prestes a tomar a
palavra. Os operários gostam dele, o esperam.
Assim que ele surge no palco, a multidão silencia. É um silêncio cheio de
respeito, de amor paterno, o sossego que protege o sono das crianças.
Nicolino é magérrimo, pequeno, gentil — a ossatura delgada desaparece sob
um hábito escuro de linho cru. Seu corpo etéreo é contrabalançado por uma
cabeleira preta encorpada e brilhante, e por uma grande barba castanha que
parece lastrá-lo no céu. Barba e cabeleira parecem se expandir cada vez mais,
como se quisessem quase devorar o rosto magro, as maçãs do rosto salientes,
os olhos de um azul angelical.
As bandeiras vermelhas tremulam diante do filho de uma humilde família
de camponeses, nascido em Civitella di Romagna, em uma província isolada,
um ex-seminarista, padre frustrado, reformado no alistamento militar por
motivos de saúde, mais tarde professor primário, sindicalista e, por fim,
diretor da facção maximalista que conquistou a liderança do Partido
Socialista após a guerra. Bombacci avançou na hierarquia pregando um
socialismo evangélico, sempre do lado das pessoas pobres, tendo contribuído
para a criação das ligas dos assalariados agrícolas e dos operários, das
organizações femininas nas algodoarias, distante ao máximo dos intelectuais
dos salões — que define como “fabricantes de ideias para quem não as tem”
—, pregando com constância a firme crença na revolução. Foi apelidado de
“Lênin da Romanha”. Nos tempos da militância em comum, Mussolini o
definiu como o “Kaiser de Módena”, mas o apelido que acaba pegando é o de
“Cristo dos operários”. Um Cristo que acabou de ser retirado da cruz,
segurado no colo pelos braços da mãe.
Quando Nicolino começa a falar, com sua voz lenta, mas entusiasmada,
névoas hiperbóreas descem sobre o verão de Milão:
“A bandeira vermelha triunfou na Rússia.”
São essas as primeiras palavras que Bombacci pronuncia. Em sua
simplicidade, apresentam uma evidência irrefutável, uma simples
constatação. O orador prossegue com sua conclusão natural:
“Queremos que a Rússia também seja aqui.”
A multidão explode em um aplauso de alívio. Aquilo é algo que todos
podem entender.
O resto do comício é, ao mesmo tempo, apocalíptico e consolador. É como
se ele anunciasse uma catástrofe que já aconteceu mil vezes, que deixamos
para trás. Um cataclismo suave.
Ao sinal da guerra — explica Nicolino aos operários em greve com seu
tom paciente de professor primário no palco da Sociedade Humanitária —, a
sexta potência de Marx, a revolução, fez sua entrada na Velha Europa. É
possível, portanto, esperar que o Velho Mundo esteja finalmente prestes a
desmoronar. Os sintomas da decomposição estão por toda parte. Anuncia-se a
era do socialismo, doutrina de liberdade e democracia integral. Na Rússia ele
já chegou, e chegará também na Itália. Os diretores do partido são a
vanguarda da revolução, e a Confederação Geral do Trabalho é o seu
exército. Unidos, passarão ao ataque para abater a Bastilha da burguesia.
Só isso. Simples e muito claro. Não é preciso acrescentar mais nada. A
multidão de grevistas está extasiada. Animada pela ideia de reinventar o
mundo nos próximos quinze dias, mas também inquieta, assustada, como um
rapaz em sua primeira visita ao bordel. Será mesmo este o primeiro dia da
nova vida? A velha já acabou?
Em seguida, porém, após uma breve pausa para se recuperar com um gole
d’água, Bombacci acrescenta que a greve daquele 20 de julho de 1919 tem
caráter demonstrativo não revolucionário. Prepara, mas não realiza, de fato, a
greve expropriadora. A revolução, de resto, é iminente. Uma necessidade
histórica. Será trazida de maneira espontânea pela evolução das condições
econômicas e políticas. Basta ter mais um pouco de paciência.
A multidão relaxa, os nervos se distendem, como depois de dois copinhos
de grapa. A luta final não é para hoje, será para amanhã. As colunas
vertebrais daqueles operários desgastados pelo cansaço recebem um pouco de
alívio, as contraturas lombossacrais se afrouxam. A ira dos trabalhadores se
aplaca porque Bombacci lhes deu razão. A dor é sedada, os tempos ainda não
estão maduros.
Benito Mussolini
Praia de Senigália, fim de agosto de 1919

“Voar! Sempre mais alto: em uma tensão assombrosa de nervos, de


vontade, de inteligência, que somente o pequeno corpo mortal do homem
pode criar. Voar acima de todos os combates práticos dessa terrível e
contínua trincheira que é a vida atual.” Foi o que ele escreveu em 20 de
agosto para propagandear o sobrevoo de Mântua organizado pelo Il Popolo
d’Italia.
No fim das contas, porém, ele também gosta de ficar plantado na areia
quente da praia de Senigália, com as pernas separadas, as mãos nos quadris, o
corpo nu sob o sol ardente, o púbis protuberante ultrajando os banhistas. Ele
gosta de nadar e de sentir a água fresca que evapora da cabeça no calor
mediterrâneo. Tudo se dissipa naquele vapor, o mormaço é onívoro.
A “grevíssima” não deu em nada. Foram dois os motivos para o fracasso:
seus dirigentes eram medrosos e a Itália era um país pobre. Talvez o único de
toda a Europa que, em 2 mil anos de história, nunca teve uma revolução nem
uma autêntica guerra religiosa. Um país onde nunca acontece nada e onde
nada dura. E, apesar das proclamações levianas dos líderes socialistas, a
revolução não pode ser reduzida a uma algazarra ou a uma doença, a um
episódio de dança de São Guido ou a uma crise epiléptica. É preciso algo
bem diferente. Não se pode socializar a miséria.
Foi assim que, na ocasião da tão esperada “grevíssima”, a revolução foi
adiada sine die. Voltem para suas casas, companheiros, nos enganamos, não
era este o dia do destino deles. Os socialistas italianos adiaram mais uma vez
o ataque ao palácio do poder. Na Rússia, em 1917, trataram de conquistar um
palácio de inverno. Na residência invernal dos czares, circundada por montes
de 1 metro de neve congelada, os bolcheviques, sem um pingo de hesitação,
entraram correndo para abater a tirania. Mas, na Itália, reinava o verão.
Nessas paragens, portanto, tudo o que poderia ter acontecido era sempre
engolido por um adiamento cômico: “Da próxima vez, companheiros. Da
próxima vez.”
Bombacci, por exemplo. Nicolino devia sua sorte à sua barba, como a de
Cristo, e a um par de olhos da cor da cerâmica holandesa. Nada mais. Ele
conhecia bem aquele “Cristo dos operários”, desde sempre. Desde quando, no
início do século, Bombacci era professor na escola de Cadelbosco di Sopra,
na província de Reggio Emilia, e o jovem Benito Mussolini, em Gualtieri, ali
perto. A primeira vez que se encontraram, quase vinte anos antes, foi em uma
reunião para professores em Santa Vittoria. E, desde então, ele jamais mudara
de ideia sobre as fantasias revolucionárias do amigo: só um pobre cérebro de
seminarista frustrado como o de Bombacci podia se iludir sobre a
possibilidade de transplantar a Revolução Russa para as margens do
Mediterrâneo. Em vez de pregar e preparar uma “revolução italiana”,
adequada para o clima local, aquele maluco inconclusivo pretendia vestir a
Itália com a bata do camponês russo. No fundo, Mussolini sentia pena de
Nicolino Bombacci e gostava dele. O homem não faria mal a uma mosca.
A República Soviética da Hungria, que Bombacci e seus companheiros
haviam exaltado tanto, também ruíra em poucos meses. Na Ucrânia, enquanto
isso, Denikin, o líder dos exércitos contrarrevolucionários, aliara-se aos
alemães contra os bolcheviques e, com os seus cossacos, estava às portas de
Kiev. O general czarista já abolira o decreto com o qual os comunistas
poucos meses antes haviam distribuído as terras aos camponeses.
Tanto barulho, tantos mortos por nada. Uma contínua e terrível trincheira.
Uma carnificina inútil. Eis o que era aquele século insensato.
O calor está aumentando. As pessoas deixam a Rotonda a Mare, construída
sobre palafitas e orgulho da praia de Senigália. Dali a pouco, sua mulher
Rachele mandaria a pequena Edda chamá-lo para o almoço. Mussolini
também gostava dela. Nascera quando o jantar era pão e cebolas. Ele a
chamava de a filha da miséria.
A “grevíssima” também marcou um esforço inútil dos Fasci di
Combattimento. Nos dias das agitações, eles se apresentaram quase sozinhos
contra as massas socialistas. Mas eram sempre poucos, talvez cada vez
menos. Em Bolonha, a seção fundada em abril por Pietro Nenni já estava
extinta no início de agosto. Disputas internas, diatribes ideológicas,
emboscadas, e em seguida... todos para a praia. Por isso, aqueles gatos-
pingados se limitaram a encenar contra a “grevíssima” algumas pantomimas a
favor dos burgueses tão desprezados. Aqueles quatro fascistas patéticos só
conseguiram fazer alguns bondes circularem e varrer algumas calçadas com
as vassouras abandonadas pelos garis à espera da revolução. A Itália é assim:
uma comédia total, sempre uma comédia. Aquele era o destino deles: o final
cômico. Por esse motivo, não tinham destino algum. A comédia ou a
tragédia. Quase sempre juntas. A seriedade nunca.
Também a epopeia do voo ficava presa entre aqueles opostos. A primeira
incursão de propaganda aérea organizada pelo Il Popolo d’Italia em 2 de
agosto para aliviar o mormaço político terminou em tragédia. No voo de volta
de Veneza, o aparelho pilotado por Luigi Ridolfi, um ás da guerra, caiu em
Verona, perto de Porto Palio, a 500 metros do aeroporto. Dezessete mortos.
Ele insistiu em organizar outras incursões para levantar o moral. Uma em 8
de agosto e outra, no dia 22. Feitos certamente não tão grandiosos quanto o
voo de D’Annunzio de Roma até Tóquio. Destinos próximos, rotas regionais:
Mântua, os lagos dos Pré-Alpes. O diretor arrastara para bordo toda a
redação. Mas as condições atmosféricas desfavoráveis, as avarias e a falta de
combustível os ridicularizaram de novo. Durante três dias, foram obrigados a
ir e voltar entre a Bréscia e o campo de Ghedi. Também tiveram de pagar o
almoço para os suboficiais que os transportavam em uma carreta.
A tragédia, a comédia, a polêmica. A terceira não podia faltar nunca.
Tinham acabado de publicar os resultados do inquérito do governo sobre o
desastre militar de Caporetto e, apesar dos anos passados, mesmo após a
triunfal vitória final, aqueles documentos sobre as responsabilidades dos
Altos Comandos do Exército reanimaram os opositores à guerra. E assim
começou tudo mais uma vez, do zero, como se a guerra já não tivesse
começado e acabado havia algum tempo. Giacinto Menotti Serrati, o líder dos
socialistas maximalistas que, quando Mussolini era um jovem emigrante
pobretão, dera-lhe um teto e um trabalho, agora relançava a velha acusação
de que ele havia fundado o Il Popolo d’Italia graças a financiamentos
clandestinos da França. Ele, em resposta, desenterrara a antiga insinuação de
que Serrati havia sido um espião. Passaram aos insultos, trouxeram à tona
antigas disputas, baixaram o nível. Ingenuidade, rancores, má-fé. Sempre a
trincheira. Absurda, ininterrupta.
Agora seu corpo está completamente seco, e ele começa a suar. A praia
está deserta.
A coalizão eleitoral com a esquerda intervencionista para as eleições de
novembro também naufragara mais uma vez. O motivo, como sempre
naquela trincheira contínua, mostrava-se banal e cruel: os companheiros de
estrada da esquerda favorável à guerra aceitavam a aliança com os Fasci di
Combattimento, mas não o queriam na chapa. Foram inflexíveis nesse ponto.
Nada de Mussolini.
A temporada balneária chega ao fim na praia de Senigália. Começa
setembro. Mas o mormaço persiste.
No fim desse primeiro verão de paz, os Fasci di Combattimento estão
reduzidos a algo ínfimo. Poucas centenas de militantes, algumas dezenas de
seções, nenhuma perspectiva política.
Ainda bem que faz sol demais na Itália. Sol demais, a Revolução Russa
não pode vir.
Voar! Sempre mais alto: em uma tensão assombrosa de
nervos, de vontade, de inteligência, que somente o pequeno
corpo mortal do homem pode criar.
Voar acima de todos os combates práticos dessa terrível e
contínua trincheira que é a vida atual.
Voar! Pela beleza do voo, quase a arte pela arte [...]
Voar! Voar porque a primeira ousadia humana foi a de
Ícaro, que roubou, apesar da morte, um pouco de glória do
céu, e porque Prometeu ensinou que o coração do homem
pode ser mais forte do que qualquer destino adverso.

Benito Mussolini,
Il Popolo d’Italia, 20 de agosto de 1919
Gabriele D’Annunzio
11 de setembro de 1919

Levantou-se da cama, febril, e vestiu a farda branca com o colarinho


levantado dos lanceiros de Novara. Tenente-coronel. Nenhum civil jamais
chegou tão alto na hierarquia militar por méritos de guerra. Tem 56 anos e
mal se aguenta em pé.
No embarcadouro da “casinha vermelha”, na esquina do Canal Grande, um
barco a motor coberto o espera. É a casa na qual durante muito tempo ele
ficou cego após o acidente aéreo em que perdeu um olho durante a guerra. O
dia raia sobre Veneza.
A maré está baixa. Quando saem na laguna, respiram a podridão da lama
que aflora dos baixios descobertos. O dia entra pelas embocaduras do porto
do Lido, de Portogruaro e de Malamocco. Uma faixa de luz pálida se estende
na direção leste sob as nuvens baixas. A umidade das águas paradas nos
baixios provoca uma inflamação na anquilose dos seus joelhos, assim como
em sua órbita ocular vazia. Todo o seu corpo é um caco. Veneza, vista pelo
Mestre, por sua vez, é um peixe. Um peixe estripado e recomposto.
Esperando Gabriele D’Annunzio em terra firme está um conversível Fiat
Tipo vermelho. O veículo descoberto atiça a febre. Além do motorista, abriga
um tenente dos granadeiros da Sardenha que juraram secretamente tirar
Fiume da ocupação militar internacional para restituí-la à Itália, mesmo que,
para tal, seja necessário um levante, e Guido Keller, excêntrica estrela em
ascensão da aeronáutica italiana, herói de guerra condecorado várias vezes, ás
da lendária esquadrilha de Baracca, nudista, bissexual, vegetariano. Um filho
da burguesia que ama escandalizá-la passeando com uma águia no ombro.
O poeta e os granadeiros rebeldes chegam a Ronchi, um burgo próximo da
fronteira, onde são esperados pelos conspiradores, pouco após o pôr do sol. À
meia-noite, porém, os caminhões solicitados por fonograma à frota de
Palmanova e prometidos pelo comandante da praça ainda não chegaram.
Foram traídos.
D’Annunzio, exausto, dorme em uma cama improvisada usando algumas
tábuas pregadas. Guido Keller sai noite adentro com Tommaso Beltrami, um
aventureiro viciado em cocaína. Algumas horas mais tarde, como por
milagre, trinta caminhões 15 Ter, heranças da guerra, os esperam na praça.
Quando a coluna se põe em marcha, a leste, do outro lado da fronteira,
ainda não há luz. Só a grande noite estrelada e depois o calafrio da alvorada.
Os granadeiros mantêm os fuzis escondidos e as lapelas das capas
levantadas para ocultar as divisas. Fazem parte dos batalhões afastados de
Fiume no fim de agosto, após os confrontos com os soldados do contingente
francês que arrancaram as bandeiras italianas das roupas das mulheres. Ao
tentarem voltar à cidade por iniciativa própria, desobedecem as ordens do
Alto Comando italiano, contrário a qualquer “ataque surpresa”, alinhando-se
contra os exércitos do comando interaliado que controla Fiume por meio de
contingentes franceses, ingleses, americanos e croatas, e se rebelam contra a
vontade do presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson, que pretende
conceder a cidade aos iugoslavos, e contra a falta de vontade dos governantes
italianos, prontos para fazer o que o americano quer. Os granadeiros contam
com o apoio de apenas uma legião de voluntários da população civil de
Fiume, de maioria italiana, prontos para se rebelar. Contra eles, grosso modo,
todo o mundo moderno. Eles são 187. Um velho poeta mutilado os precede
em um automóvel esportivo vermelho-vivo. Naqueles mesmos dias, um outro
escritor, Franz Kafka, nascido em Praga e internado ali perto em um sanatório
alpino, anota em seu diário: “Na luta que contrapõe o indivíduo ao mundo,
aposte sempre no mundo.” Os 187 granadeiros rebeldes, porém, apostam no
indivíduo: ele se chama Gabriele D’Annunzio.
A coluna encontra o primeiro obstáculo em Castelnuovo. Quatro carros
blindados cercados por bersaglieri. D’Annunzio se aproxima, negocia com os
oficiais italianos. Seja lá o que o poeta tenha dito para convencê-los, em dois
minutos os carros blindados entram em formação para proteger a coluna que
deveriam ter detido. Os bersaglieri se unem aos rebeldes em meio a gritos de
entusiasmo.
Pouco depois, no cruzamento da estrada para Fiume, a primeira parada.
Todos os oficiais são convocados para uma reunião com o comandante.
D’Annunzio está em pé em uma pequena elevação do terreno.
“Oficiais de todos os corpos, discurso olhando em seus olhos.”
O poeta fala de juramentos à bandeira e armas curtas, de adagas “quebra-
espada” que o duelista brandia desesperadamente na mão esquerda, de
deficiências que acrescentam, de demônios e de ambições dos homens, de fé
e violência, de um gramado circundado por escombros. Vamos quebrar a
cancela.
A coluna se põe mais uma vez em marcha. A bordo dos caminhões, os
granadeiros cantam. A poucos quilômetros da barreira de Cantrida,
encontram os destacamentos de assalto. O tenente-coronel Raffaele Repetto,
comandante dos destacamentos, recebeu de seu superior, o general Pittaluga,
a ordem de deter D’Annunzio a qualquer custo. O general ameaçou mandar
fuzilá-lo sumariamente em caso de desobediência. Todavia, ao avistar
D’Annunzio, Repetto corre para abraçá-lo. Os Arditi saltam para o interior
dos caminhões. Não há mais lugar nos automóveis. O número de insurgentes
aumenta a cada quilômetro. Seguem a baixa velocidade para não
arrebentarem os eixos.
Na cancela da fronteira, o general Pittaluga em pessoa, comandante das
forças aliadas de Fiume, confronta D’Annunzio. Vendo a insubordinação das
tropas às suas ordens, percorre pessoalmente a coluna com dois coronéis de
sua comitiva, que avançam entre os Arditi com as baionetas encaixadas nos
fuzis. Ordena que D’Annunzio dê meia-volta. Adverte-o a não se colocar
acima da autoridade do Estado. Acusa-o de destruir a Itália. Recrimina-o por
acreditar-se onipotente.
O poeta, então, é arrebatado por uma lembrança. Por um longuíssimo
instante, o ancião encarquilhado e cego volta, como um estudante, para as
carteiras da escola: abre o capote que cobre seu corpo febril e repete o gesto
com o qual Napoleão, desembarcado na França após a fuga de Elba, nos
arredores do lago de Laffrey, ofereceu o peito ao general francês, seu ex-
ordenança, enviado para detê-lo. O mímico bate nervosamente no peito com
o gesto napoleônico que esperou toda a vida para usar.
“Vamos, dispare sobre estas medalhas”, intima ao general que viera detê-
lo.
Encantado pela fitinha azul da medalha de ouro sobre o peito de
D’Annunzio, seduzido ele também por aquele sentimento audacioso da vida e
do mundo no qual fogo guerreiro e rebelde se tornam uma só coisa, o homem
de armas e o homem em revolta, o general Pittaluga retruca citando o pai e o
avô, ambos garibaldinos. Naquele instante, na fronteira entre duas nações e
duas épocas, no cruzamento das ressonâncias, a história se reduz a uma figura
retórica, a metáfora remete a outra metáfora, o poder dos símbolos se
transfere através dos séculos, tudo se confunde, o carro blindado acelera, a
cancela da fronteira se estilhaça.
Fiume, com seus navios ancorados no porto, com os montes ao fundo,
surge para D’Annunzio como uma “noiva vestida de branco”. Na curva da
estrada, uma centelha de desejo faz brilhar a pupila do único olho que lhe
restou: o poeta tem aos seus pés uma cidade a ser conquistada. O literato
conhece, finalmente, a luxúria que assedia o condottiero prestes a liberar para
o saque suas tropas mercenárias. Na sua idade — dirá Nitti —, para o poeta-
soldado, a Itália é apenas mais uma das muitas mulheres com quem se deitou.
As tropas de D’Annunzio entram em Fiume pouco depois das 11h. A
população as recebe extasiada. As mulheres de Fiume, em suas melhores
roupas, se oferecem aos libertadores. Dos edifícios, chovem folhas de louro.
D’Annunzio, ao chegar no Hotel Europa, segue direto para a cama. Foi
guiado por uma estrela da sorte. É ele a própria estrela. Nunca teve outra. São
11h45. Nem mesmo um disparo foi feito.

***

“Quem, eu?! Governador?”


D’Annunzio é acordado no fim da tarde pelos sinos repicantes que
convocam a população para a reunião na praça principal. Guido Keller
informa a D’Annunzio ter tomado pela segunda vez a iniciativa enquanto ele
dormia: propôs ao conselho dos cidadãos ceder ao poeta todos os poderes
civis e militares. Antonio Grossich, o presidente, gigante da medicina,
inventor da tintura de iodo, pioneiro da esterilização dos instrumentos
cirúrgicos, condecorado pela Ordem da Coroa da Itália, irredentista e patriota,
servindo-se do seu olho clínico, acolheu Keller com o respeito e a cautela que
se devem a um louco. No entanto, de modo inesperado, os integrantes do
conselho aceitaram confiar a administração de uma cidade disputada por três
nações, no centro de uma controvérsia diplomática de alcance mundial, a
Gabriele D’Annunzio, um homem famoso pela incapacidade de administrar
até suas finanças pessoais, um famoso e orgulhoso esbanjador, perseguido
pelos credores de toda a Europa por ter dilapidado uma enorme fortuna, a sua
e a de outros, com gastos insensatos com futilidades como pedras preciosas,
esmaltes, lacas e decorações suntuosas de mansões.
O poeta, contudo, recua diante daquela equação incalculável. Ele, um
administrador? Impossível.
Quando D’Annunzio, escoltado por um grupo de Arditi, chega ao palácio
do governo, como prometido, às seis em ponto, a praça está tomada por uma
multidão exultante. A cena que o espera é inesquecível. O automóvel do
Libertador mal consegue abrir caminho por entre a multidão. Todos querem
abraçá-lo, todos querem beijá-lo. Ele mal consegue se manter em pé. Está
visivelmente cansado, muito pálido, cambaleia. Grossich, que já completou
70 anos, precisa ampará-lo.
Na sacada do palácio, o amor desenfreado que se ergue da praça o reanima.
Quando o grande amante surge, as mulheres instintivamente ajeitam os
cabelos e, arrumando as saias, roçam as coxas. Com um gesto imperioso,
quase um movimento de irritação, o tribuno toma a palavra:
“Italianos de Fiume! No mundo louco e vil, Fiume hoje é o sinal da
liberdade; no mundo louco e vil, só há uma coisa pura: Fiume; só há uma
verdade, e essa é Fiume! Só há um amor, e esse é Fiume! Fiume é como um
farol luminoso que brilha em meio a um mar de abjeções.”
É um despropósito gigantesco, mas a multidão se exalta.
D’Annunzio continua evocando, mais uma vez, os momentos de ansiedade
da marcha daquela manhã e os acontecimentos em Roma em maio daquele
ano. Passaram-se apenas quatro meses desde as manifestações nacionalistas
da primavera, e, no entanto, elas já se projetam em um passado épico. O
poeta vivo, trapaceando com o tempo, celebra a si mesmo como um
progenitor mítico. A sua glória já é póstuma.
Após a tirar da mochila de infantaria onde fica guardada, Gabriele
D’Annunzio desenrola a bandeira tricolor de Giovanni Randaccio. Já é uma
relíquia. O grande conhecedor de tecidos preciosos retira do estandarte a
faixa de crepe preto com a qual o adornara em sinal de luto.
Até aqui, é tudo teatro. Fiume é o palco de uma maravilhosa aventura. O
herói, o literato e o comediante o percorrem simultaneamente. Depois, porém,
acontece algo inesperado. D’Annunzio, exaltado pela comoção que sobe da
praça, tremendo pelo esforço de sobrepor sua voz ao estrondo sem qualquer
aparelho de amplificação, com a jugular dilatada de sangue que pulsa ao
longo do pescoço contraído como em um espasmo, da sacada do palácio que
por séculos serviu para que os imperadores húngaros reinassem sobre um
povo mantido à distância absoluta, interpela a multidão:
“Os senhores confirmam diante da bandeira do Timavo seu voto de 30 de
outubro?”
Antonio Grossich, ao seu lado, muda o apoio de um pé para o outro.
Nenhum orador até aquele dia havia interpelado os próprios ouvintes. Em um
instante, o cenário mudou, a quarta parede caiu. O público foi chamado ao
palco, o povo, a participar do Reino.
Os cidadãos de Fiume irrompem em um grito enlouquecido. Gritam três
vezes: “sim!”, “sim!”, “sim!”. Gabriele D’Annunzio proclama a anexação de
Fiume à Itália. Levou apenas quatro meses para cumprir a promessa. O voto
do Campidoglio foi dissolvido. Todos os integrantes do Conselho da cidade
se aproximam para beijá-lo. Ele se deixa beijar.
Naquela mesma madrugada, contrariando todos os seus hábitos, desperto
às 5h, D’Annunzio escreveu ao general Pittaluga: “Senhor general, é
necessário que eu assuma de imediato o comando militar da Fiume italiana. É
uma medida de ordem.” Como não chegou de Roma resposta alguma ao
desafio lançado com a marcha, o poeta toma o poder. O esteta fica de lado.
Entra em cena o legislador. Daqui em diante, é ele quem seguirá em frente.
Sua primeira providência será o fechamento temporário dos bordéis para
impedir as brigas entre os legionários de Fiume e os soldados franceses. Para
D’Annunzio, que é um amante insaciável, é uma renúncia enorme. O
comandante, todavia, está disposto a dar o exemplo. Priva-se daqueles luxos
que por toda a vida julgou irrenunciáveis. Manda cobrir seu quarto de
bandeiras no lugar das inevitáveis tapeçarias. Permite a si mesmo apenas um
maço de flores em um vaso de cristal e um punhado de bombons em uma
copa de prata maciça.
Benito Mussolini
Veneza, 20-22 de setembro de 1919

A partir da noite de 20 de setembro, Mussolini passa alguns dias em


Veneza. Os arquivos da polícia registram sua presença em companhia de
Margherita Sarfatti. Teme-se que também o diretor do Il Popolo d’Italia,
como fazem milhares de voluntários de toda a Itália naqueles dias, possa ir
até D’Annunzio violando o frágil bloqueio que Nitti, presidente do Conselho,
impôs à cidade rebelde.
Os amantes são seguidos. Dois agentes à paisana ficam em seu encalço. A
cada curva, em uma calle, calleta, riva, ramo ou salizada, a cada entrada em
um campo, campiello ou fondamenta, os fugitivos os veem reaparecer às suas
costas. Sem trégua. Todavia, Margherita se diverte com aquela peripécia
romanesca. A perseguição parece romântica para a mulher apaixonada.
Os meios de fuga seriam muitos, no céu ou no mar — lanchas, aviões,
hidroaviões —, mas a cidade labiríntica se fecha como uma rede de pesca em
torno do casal. D’Annunzio zarpou na alvorada de 11 de setembro em uma
lancha veloz na laguna aberta. Apenas dez dias mais tarde, em 21 de
setembro, a Veneza de Mussolini é, por sua vez, um novelo, uma tripa
retorcida, uma cidade de intestinos. Margherita Sarfatti, veneziana, guia-o
pelas vísceras de pedra. Após percorrerem a Ponte delle Tette, onde no
passado as putas exibiam os seios das janelas dos bordéis, os amantes se
viram de súbito na minúscula Calle de la Madonetta. Os policiais em seu
encalço não os perdem de vista.
Desde que o poeta se lançou naquela aventura, a relação entre Mussolini e
D’Annunzio é pesada, atormentada, epistolar. Mussolini recebeu a primeira
carta bem na noite de 11 de setembro. Tinha ido ao teatro com Rachele, em
uma das raras ocasiões em que oferecia à mulher uma folga da labuta de dona
de casa. Na saída do teatro, entregaram-lhe uma mensagem:
“Meu caro companheiro, a sorte foi lançada. Parto agora. Amanhã de
manhã tomarei Fiume com as armas. Que o Deus da Itália nos assista.
Levanto-me da cama febril. Mas não é possível adiar. Mais uma vez, o
espírito domará a carne miserável. Resuma o artigo que será publicado pela
Gazzetta del Popolo e escreva seu fim. Apoie a causa vigorosamente durante
o conflito. Um abraço.” O Vate mandava um abraço para Benito Mussolini,
dirigia-se a ele afetuosamente, deixava-o a par da situação (embora com os
fatos já consumados), mas publicava sua proclamação ao mundo em um
outro jornal. Em suma, trata-se de um despacho no qual são dadas instruções
a um subalterno.
Nos dias seguintes, ele, como lugar-tenente disciplinado, saudou nas
colunas do Il Popolo d’Italia o herói luminoso, prometendo-lhe obediência;
insultou Nitti, que, em um discurso parlamentar, ameaçava reprimir os
rebeldes; apoiou a nobreza e também a racionalidade do gesto de
D’Annunzio; mas não lançou qualquer apelo à insurreição geral, como o Vate
queria, e, sobretudo, não se afastou da retaguarda de Milão. A reunião do
Comitê dos Fasci di Combattimento de 16 de setembro terminou sem
nenhuma resolução de infringir o bloqueio dos governistas em torno de
Fiume. Limitaram-se a propor, para dificultar a atividade dos assediadores, o
envio de mulheres e crianças para a fronteira.
Uma semana mais tarde, chegou a carta do Comandante de Fiume: “Meu
caro Mussolini, surpreendo-me com o senhor e com o povo italiano. Eu
arrisquei tudo, obtive tudo. Sou o chefe de Fiume [...]. E o senhor treme de
medo! Deixa que seu pescoço seja pisado pela pata de porco do mais abjeto
trapaceiro que jamais ilustrou a história da canalhada universal. Qualquer
outro país — até a Lapônia — teria derrubado aquele homem, aqueles
homens. E o senhor fica dizendo besteiras enquanto nós lutamos a cada
instante [...]. Onde estão os Arditi, os combatentes, os voluntários, os
futuristas? Nem sequer nos ajudam com as subscrições e coletas. Temos de
fazer tudo sozinhos, com a nossa pobreza. Acorde. E envergonhe-se também
[...]. Não há nada mesmo a se esperar? E as suas promessas? Fure pelo menos
a barriga que o oprime; e esvazie-a. Ou farei isso pessoalmente quando tiver
consolidado o meu poder aqui. E não vou olhar na sua cara.”
Uma verdadeira surra no servo infiel. Mussolini foi obrigado a censurar a
carta, como fazia o “guardinha” Nitti com todas as notícias provenientes de
Fiume, antes de publicá-la no Il Popolo d’Italia. O fundador dos Fasci di
Combattimento engoliu a afronta, lambeu as feridas de seu orgulho e
obedeceu. A subscrição em relação a Fiume foi feita em 19 de setembro. Mas
nem assim ele partiu. O motivo era simples: o governo de Nitti vacilara, mas
ainda não caíra. O “porco”, o “guardinha”, o “árido catedrático ambicioso”, o
“limpa-botas frígido das plutocracias anglo-americanas”, o servo de
banqueiros e industriais, o “mercador de farrapos” permutara mesquinhez
com heroísmo, mas não havia caído. Mussolini, então, correndo o risco de ser
esmagado pela razão de Estado para servir como subalterno às visões de
D’Annunzio, preferiu a amante, a gôndola, Veneza.
Agora, atrás da igreja de São Lourenço, sob um pórtico apertado, em uma
capela votiva escura, Margherita Sarfatti lhe revela uma pedra-mármore cor-
de-rosa, gasta e brilhante. Quatrocentos anos antes, a devoção popular
indicara naquele bloco de pedra de Ístria o ponto em que a misericordiosa
mãe de Deus teria extinguido a peste. Havia sido uma hecatombe. Um terço
da população exterminada. Os médicos circulavam protegidos por
monstruosas máscaras com um bico adunco. As piras de cadáveres ardiam
diante das igrejas barrocas.
Supersticioso, ele toca na pedra medicinal com a sola do sapato. O arrepio
do fim do mundo é transmitido ao seu corpo sifilítico irradiando-se através
das pontas dos dedos. Por que ele também não parte? Por que não se oferecer
por inteiro ao Comandante? Por que não a jovem geração? Por que ainda as
pestilências?
Porque o Exército não se movera; porque Nitti não caíra; porque os
plutocatras anglo-americanos, os banqueiros, os siderúrgicos cujos pés Nitti
lambia eram indispensáveis; porque, se tivesse enviado seus poucos Fasci di
Combattimento para Fiume, não restaria ninguém em Milão; porque ainda
tentava sofregamente se reconciliar com a esquerda intervencionista; porque
a Marinha militar estava com D’Annunzio, mas o Exército estava dividido;
porque suas categorias intermediárias simpatizavam, sem dúvida, com os
rebeldes, mas os Altos Comandos lhe eram hostis; porque ainda havia 400
mil operários metalúrgicos em greve que gritavam “abaixo D’Annunzio!”;
porque a “marcha para o interior” pela qual D’Annunzio se debatia teria
provavelmente aberto o caminho para a revolução comunista e porque,
mesmo que D’Annunzio os conduzisse até Roma, ele, Benito Mussolini,
estaria apenas no inaceitável papel de coadjuvante do glorioso Comandante.
Benito Mussolini não ia para Fiume por todos esses motivos, e por mais
outros cem, mas, sobretudo, porque D’Annunzio exaltava os jovens idealistas
entediados, filhos decadentes de uma burguesia farta e esgotada, talvez até
dispostos a arriscar a vida, mas não a arrumar a própria cama sozinhos; o
Vate, com a magia de suas sugestões histéricas ou encantadas, os elevava a
algo superior e inefável, unindo, como mágica, o orador e os ouvintes em
uma categoria de eleitos, velejadores em uma espécie de primeira classe da
espiritualidade turística acima das sórdidas fossas de combate na qual viviam
os homens comuns, degolando uns aos outros em uma vingança perene de
que não se sabe mais a origem, embrutecidos pelo cansaço, apalermados pela
lenta digestão de refeições de má qualidade, fanáticos por vinho, ansiosos
apenas por depredar, aturdir-se e foder. Ele não partia para o tão glorificado
golfo de Carnaro porque, com certeza, D’Annunzio era um poeta, e a
principal desilusão que a realidade nos reserva consiste em nunca se parecer
com um poema. Ele, porém, o filho do ferreiro de Predappio, gostava da
realidade. Aquela realidade baixa, ferrenha, brutal, irredutível. Ele não
conhecia outro prazer além dela.
Na extremidade esquerda do labirinto, no cais da Celestia, Veneza se abre
sobre a laguna interna. Margherita Sarfatti lhe indica os graciosos ciprestes
do cemitério de San Michele. Mais além, Murano já se esfuma nas primeiras
neblinas da estação enquanto Burano e Torcello são apenas uma ideia, um
boato. Mais distante ainda, o mar Adriático, Trieste, Fiume, a Dalmácia.
É, seria bom acordar ao raiar do dia, mandar tudo às favas, entrar em um
conversível vermelho e marchar sobre Roma à frente da jovem geração, no
comando de uma coluna de combatentes, de rapazes de 20 anos, de Arditi. O
delírio violento do poeta é bonito, é lindo — de provocar lágrimas nos olhos
—, mas não é política. A política exige a coragem tacanha e malvada das
brigas de rua, e não a coragem vaga das cargas de cavalaria. A política é a
arena dos vícios, não das virtudes. A única virtude que exige é a paciência.
Para chegar em Roma, será preciso fingir nesta paródia senil, conseguir ser
ouvido pelo conselho dos anciãos, aquela meia dúzia de velhos gagás, de
ingênuos e de canalhas que governam o mundo.
Benito Mussolini
Fiume, 7 de outubro de 1919

Subiram a 5.300 pés de altitude em um céu nublado. Decolaram de


surpresa do campo de Novi Ligure a bordo de um Sva em direção ao levante.
No nevoeiro, com gasolina pouco mais do que suficiente, voaram durante 190
minutos em linha reta sobre o Adriático até o campo de Grobnik. A sua
espera, um automóvel enviado pelo Comandante.
Benito Mussolini chega em Fiume em 7 de outubro de 1919, quase um mês
após a “santa marcha”. A cidade em que aterrissa está encoberta por lendas e
envolvida em uma névoa de sussurros. Diz-se que D’Annunzio pretende fazer
dela uma mera base para uma operação mais ampla de conquista dirigida ao
oriente, rumo a Zara, à Dalmácia, a Split. Diz-se também, com maior
insistência, que o Comandante na verdade está preparando uma “marcha para
o interior”, dirigida ao ocidente, sobre Pola, Trieste, Veneza e, em seguida,
até Roma para suspender o Estatuto Albertino, abater a monarquia e instaurar
uma ditadura militar com a cumplicidade do duque de Aosta. Parece que
concebeu esse plano com os seus colaboradores a partir de 19 de setembro e
que o expôs no fim daquele mês aos oficiais da primeira esquadrilha de
carros blindados que o acolhia no refeitório. Edmondo Mazzucato logo
informou Mussolini a esse respeito em Milão. Outros afirmam que seu único
objetivo seria derrubar o governo do odiado Nitti e favorecer a ascensão de
um novo Executivo formado por combatentes que proclame imediatamente a
anexação de Fiume à Itália.
Até aquele momento, o único fato certo é que o Comandante não se tinha
posto em movimento. Nem o Exército, salvo defecções isoladas de homens e
destacamentos. Nitti, tolo e calculista, também não abandonara o cargo.
Reagiu, isso sim, ao golpe repentino de D’Annunzio convocando o Conselho
da Coroa, composto de políticos eminentes, ex-presidentes e chefes das
Forças Armadas. A reunião desses velhos obsoletos preferiu protelar,
ninguém se pronunciou a favor da anexação. A Nitti, então, restou uma única
possibilidade: dissolveu o Parlamento e convocou novas eleições. Sua tática é
antiga: atingir o inimigo pela fome. O embargo permite que Fiume consiga
respirar, mas aperta seu pescoço com uma corda. O país, como de costume,
está parado, roda entediado sem sair do lugar, em vão. Os entusiasmos
poéticos dos dannunzianos, por sua vez, precisam de movimento contínuo, de
sangue quente que circule violentamente em torno do coração.
Em um circuito mais amplo, a aventura de Fiume ganhou a inimizade de
Wilson, o presidente dos Estados Unidos da América, a nova grande potência
planetária, os únicos autênticos vencedores da Primeira Guerra Mundial.
Wilson considera Fiume o capricho de um rapazola que põe em risco a
constituição da Liga das Nações, a grandiosa instituição jurídica, diplomática
e humanística que, a seu ver, deverá dar ao mundo um século de justiça e paz.
Despreza D’Annunzio com o desdém fervoroso do homem maduro e
responsável em relação ao capricho pueril que ameaça a laboriosa obra de
uma vida. Mais ainda, Wilson tem horror a D’Annunzio. Filho de um
reverendo, genro de um ministro do culto, reitor da Universidade de
Princeton, acadêmico, puritano, rígido, austero, prisioneiro de um
evangelismo integral, profeta da boa nova que triunfará sobre o mal
purificando a Terra, Wilson é o tipo de homem que provavelmente nunca
traiu a esposa. A seus olhos, D’Annunzio é o pecador inveterado, o destruidor
da moralidade burguesa, a disseminação do pecado é seu único destino. Diz-
se que Wilson considera expressão da total demência do povo italiano o
entusiasmo pelas invocações do “deus de todos” com que D’Annunzio há
anos inicia seus pronunciamentos públicos. Diz-se que o presidente
americano fica horrorizado quando seus conselheiros resumem, em uma
versão mais branda, os conteúdos das obras licenciosas do poeta. Diz-se, até,
que o derrame que o acometeu em 2 de outubro foi fruto da cólera em relação
àquele homem que ousa desafiá-lo gabando-se de ter fornicado com centenas
de mulheres.
D’Annunzio, nesse meio-tempo, oscila entre êxtases sublimes e furores
apocalípticos. Rebatizou Fiume de “cidade holocausto”, um nome de tragédia
bíblica para um pequeno e sonolento porto centro-europeu famoso por suas
confeitarias. Em 5 de outubro, escreveu para Mussolini sua ameaça: “Se a
cidade não for restituída às suas condições de vida normais, em dez dias a
sorte será lançada de novo. Se a cidade mártir for mais uma vez martirizada,
eu a vingarei com uma represália enorme.”
Mussolini também hesita. No fim de setembro, após voltar do passeio a
Veneza, parecia ter se comprometido com o fanatismo. Escreveu sobre uma
“revolução em marcha” que, iniciada em Fiume, poderia se concluir em
Roma. Aconselhou o Parlamento para que votasse a anexação. Ameaçou-o,
por sua vez: “Ou a anexação em curtíssimo prazo ou a guerra civil entre a
Itália dos combatentes e a dos parasitas.” Porém, no início de outubro, enviou
Michele Bianchi a Fiume para refrear o Comandante. Nas contínuas
variações de temperatura, existe um único termômetro impossível de ignorar:
desde que D’Annunzio entrou em Fiume, as vendas do jornal aumentam sem
parar.
Wilson tem razão: Fiume é um delírio. O automóvel em que Mussolini
entra pela primeira vez na cidade em 7 de outubro se desloca devagar entre
manifestações populares entusiasmadas. É terça-feira, mas parece domingo, é
outono, mas parece o auge do verão, já é noite, mas parece meio-dia. Toda a
cidade parece estar em pleno orgasmo. O clima humano é de orgia a céu
aberto. A libido desenfreada do sedutor a invade. Soldados, marinheiros,
mulheres, cidadãos agitam-se, entrelaçados de várias maneiras, ao ritmo de
fanfarras militares. Em cada esquina, grupos de Arditi juram comovidos
sobre punhais desembainhados, as moças desfilam com guirlandas como
estátuas votivas ou então com um corte de cabelo masculino e trajando fardas
emprestadas, os muros estão cobertos de inscrições que declaram: “pouco me
importa!” Até os trajes marciais estão dissipados. Os soldados de infantaria
circulam com o casaco descerrado, o colarinho aberto, o pescoço nu. Alguns
têm o peito cingido por alamares pretos, os casacos adornados com arabescos
e galões, mas decoraram os barretes com estrelas prateadas e usam de
maneiras bizarras as fitinhas coloridas das condecorações por bravura como
esmaltes policromáticos sobre a superfície do nada. Tudo é bizarro,
incomum, excitante. Mas há algo de sinistro nesta festa. A juventude do
século, depois de ter escapado por quatro anos da morte nas trincheiras de
toda a Europa, em vez de voltar à economia, à família, à religião, aos
antepassados, às virtudes, aos dias, parece ter deslizado para Fiume,
arrebatada por uma esbórnia, para pôr fim àquela vida estúpida e inútil.
A conversa de Mussolini e D’Annunzio dura uma hora e meia. Esse
segundo encontro, como já acontecera em Roma em 26 de junho, também
não deixa testemunhas. Na entrada da sala de comando, contudo, antes de
anunciá-lo, o ordenança de D’Annunzio segura Mussolini por alguns
instantes com seu único braço. Chama-se Ulisse Igliori, tenente da infantaria,
mutilado da Grande Guerra, prisioneiro por dez meses no campo de
concentração de Mauthausen, condecorado com a medalha de ouro por
bravura devido ao heroísmo demonstrado em 16 de maio de 1916 no ataque
às posições austríacas no monte Maronia, onde os inimigos o recolheram
desmembrado, mas ainda vivo, sobre uma pilha de cadáveres sangrentos. O
herói aleijado, futuro fundador da A.S. Roma, quer saber o que pensa o
visitante sobre a oportunidade de marchar sobre Roma. Mussolini ainda veste
o uniforme branco de aviador amador. Debaixo de seu boné com viseira,
responde que Roma é a meta final, mas tudo depende da escolha do
momento:
“Os italianos ainda não estão preparados para esse evento; o feito poderia,
se imaturo, descambar para uma imensa tragédia. É necessário sentir o pulso
da nação, é o que farei ao retornar.”
É a mesma água que Mussolini jogara sobre o fogo do Comandante por
carta em 25 de setembro: marchar sobre Trieste, declarar derrubada a
monarquia, nomear um diretório de governo com D’Annunzio presidente,
preparar uma Constituinte, declarar a anexação de Fiume, mandar tropas fiéis
para desembarcar na Romanha a fim de suscitar um levante republicano. Esse
era o plano que Mussolini propunha a D’Annunzio. Porém, acrescentava que
era preciso adiar tudo até depois das eleições de 16 de novembro. Era esse,
portanto, o seu conselho: o adiamento cômico para evitar o drama.
Ao fim da tarde, Fiume está inteiramente coberta de flores. A cidade
“holocausto” se prepara para enterrar seus primeiros mortos. Chamam-se
Giovanni Zeppegno, sargento dos carabineiros, e Aldo Bini, tenente
observador. Seu avião precipitou durante um voo de reconhecimento, perto
de Sussak. Bini, encontrado ainda com vida, mas com queimaduras em quase
toda a superfície corporal, faleceu logo em seguida; Zeppegno, atirado para
fora da cabina, morreu na hora, empalado pela lança de uma grade em volta
de uma casa de campo.
Desde aquela manhã, preparando-se para a cerimônia, os cidadãos de
Fiume procuraram freneticamente por flores. Empenharam-se a noite toda, as
mãos dobrando folhas e entrelaçando coroas de louro. Os floristas ficaram
sem nada antes do meio-dia. As estufas foram saqueadas. Esgotado o
estoque, passaram para os jardins públicos e privados. Que alguém lembre —
anota um cronista local —, nunca se viram em Fiume tantas guirlandas em
uma câmara-ardente.
O cortejo fúnebre resplandece de cores. Flores, bandeiras, uniformes. É
interminável. Dois pelotões de atiradores escolhidos abrem a marcha
seguidos pelas autoridades da cidade e por uma banda musical. Logo atrás
dos fuzis e da música, uma ala de crianças. E, atrás destas, as carruagens
fúnebres, cobertas de coroas. Em cada lado das carruagens, os mutilados e os
condecorados de guerra. Atrás dos fuzis, da música, das crianças e dos
mutilados, das flores, o Comandante. Cercado por seu estado-maior.
Encerrando, duas grandes carruagens abarrotadas de flores destinadas a cobrir
e rodear as tumbas. Enfim, todas as categorias de cidadãos: soldados,
ferroviários, políticos, professores, bombeiros, músicos, operários, ginastas.
Por último, milhares de fiumanos. Toda a população de sangue italiano da
cidade.
A procissão culmina na Piazza Dante, incrivelmente apinhada, o cenário é
solene. Mussolini a assiste no meio da multidão. Todos vestem os melhores
trajes, ele ainda está usando seu engraçado uniforme de aviador. É claro que
toda a população está no teatro, mas o teatro invadiu as ruas. Ele, espectador,
observa e anota cada detalhe. Quando D’Annunzio toma a palavra, toda a
cidade dos vivos se transforma de repente em um cemitério:
“Glória ao par alado que ofereceu o primeiro holocausto de liberdade à
Cidade Holocausto!”
O orador está sozinho na sacada, diminuto, remoto. Mas suas palavras
soam claras na grande praça, envolvidas por um silêncio sepulcral.
D’Annunzio fala sem nenhum sistema de amplificação, só o ar dos pulmões
empurrado pelo diafragma na direção da traqueia rumo à laringe. O esforço
causa uma ressonância metálica, quase um falsete. No entanto, alcança a
praça, a mantém presa. Os milhares de pessoas que escutam parecem quase
não respirar, não viver. Ele as transformou em um povo de sombras. O poeta
fala sob a lua clara e cheia. Alguns choram. É um pranto profundo. Ele elogia
a noite pela sua pura morte.
“Glória aos dois mensageiros celestes que, na sucessão das horas breves,
ensinaram ao nosso espírito como esta que nós vivemos é a vida eterna.”
Uma mentira. Colossal, descarada, pronunciada na cerimônia solene. Essa,
queimada pelo fogo, precipitada por causa de uma manobra desastrada,
transpassada por engano pela ponta de uma lança que decora o portão de uma
villa, essa seria a vida eterna? Um envenenador. A palavra do poeta, por via
aérea, como gás que ataca os nervos, penetra até os alvéolos pulmonares da
multidão. As pessoas se abandonam a ela, apalermadas, intoxicadas pela
mentira como se fosse um veneno sistêmico.
Depois o envenenador dá uma guinada e faz com que todos despertem do
encanto:
“Cidadãos de Fiume, descubram-se. Soldados da Itália, apresentem as
armas.”
E eles obedecem. Todos os homens tiram o chapéu, todos os soldados
estendem o fuzil.
“Meus pilotos, cubram os dois caixões.”
E eles os cobrem.
“Povo de Fiume, senhores do Conselho, entregamos esses nossos primeiros
mortos à terra sagrada, à terra livre. Tomem conta deles.”
O Comandante já não fala mais para a plateia, dialoga com a multidão. A
cada palavra sua, a praça responde, com atos ou vozes. O teatro está nas ruas,
toda a cidade está no teatro, mas ela foi assistir a si mesma.
“A quem a morte?”, gritou o poeta.
“A nós!”, ecoa da praça um grito simétrico, mas imenso.
O aviador principiante toma nota.
Amerigo Dùmini
Florença, 10 de outubro de 1919
Teatro Olimpia

Ficaram horas à sua espera diante da estação de Santa Maria Novella.


Benito Mussolini, todavia, não desembarcou nem mesmo do trem direto da
meia-noite.
Mas, para Amerigo Dùmini, esperar nunca foi um problema. Esperar e
ficar calado. Para ele, é fácil. Fica imóvel naquele seu corpo maciço, a figura
atarracada, sólida, um pouco curvada, os cabelos cheios, pretos, lisos, sobre a
testa baixa; os olhos fixos, opacos, como se se concentrassem em um único
pensamento. Permanece em silêncio até mesmo por horas a fio, e, se precisa
falar, é em voz baixa. Fuma e bebe. Como fazia nas dolinas do Carso sob o
fogo dos obuses, saca o odre, segura-o com a mão esquerda paralisada,
desatarraxa a tampa com a mão boa e toma dois goles de grapa. São muitos
os que reclamam que ele fala pouco. Dizem que as pessoas têm medo de
gente como ele, capaz de entrar em um café e ficar calada por horas a fio,
olhando para o nada. Estraga-prazeres.
Umberto Banchelli, vulgo “mago”, compadre de bebedeiras e brigas,
fumou e bebeu como ele, mas ficou agitado todo o tempo, incapaz de
permanecer calado, embora gagueje de dar pena. Enquanto esperavam
Mussolini no direto da meia-noite, o “mago” não conseguiu se conter e
narrou mais uma vez suas guerras — aos 16 anos, foi com os garibaldinos
combater contra os turcos em Epiro; aos 20, foi coronel de tropas na Sérvia;
aos 25, suboficial do Exército italiano que apodreceu de malária na Albânia
—, não parou de falar sobre suas guerras e de praguejar contra Deus por
causa dos atrasos dos trens.
Dùmini não. Fica calado de bom grado. Se um homem tem o que beber e o
que fumar, nunca se entedia. Pode esperar a vida toda se tiver o que beber e o
que fumar. A vida para Amerigo Dùmini é isto: o período de tempo no qual
estamos vivos. Nada mais. Esperar e ficar calado. Desde que a guerra
terminou, parece que não fez outra coisa.
Em Florença, nada de bom está acontecendo. Entre março e outubro, foram
dispensadas onze turmas de alistamento, e ninguém encontra trabalho. Nos
campos, as greves são violentas a ponto de os carabineiros precisarem
intervir. Os incidentes se multiplicam diante das fábricas fechadas por
lockout. As crianças pedem esmola nas casas de fazenda e nas ruas de
Careggi. Dos companheiros que em 1914 tinham desejado a guerra, poucos
restavam. Esses poucos voltaram destroçados: mutilados, neurastênicos,
pedintes. Dividem-se entre dezenas de associações patrióticas. Alguns
fundaram o “Fascio politico futurista”. Muito barulho, poucas e bizarras
ideias. Educação patriótica do proletariado, uma assembleia de jovens com
menos de 30 anos no lugar do Senado, ginástica obrigatória com sanções
penais para os fracos. Esse é o programa político. Em novembro, esses
fantasiosos futuristas se lançaram contra uma manifestação de milhares de
“vermelhos”, em seguida fizeram um comício na Piazza Vittorio Emanuele.
Eram treze.
Outros veteranos descontentes se reúnem no número 38 da Via Maggio, na
villa de um nobre mutilado, ex-soldado de infantaria no Carso. Fala-se de
uma organização armada para conter as ligas vermelhas. A metralhadora é o
tema de discussão favorito. Há também a associação “Itália e Vítor
Emanuel”, da condessa Collacchioni, que se reúne em seu salão junto ao
conde Guicciardini, o marquês Peruzzi dos Médici e o marquês Perrone
Compagni. A condessa é muito gentil e também acolhe o povão agitado em
meio àqueles senhores calmos, elegantes, instruídos. Banchelli aparece de
bom grado. A condessa o chama de “meu escudeiro de ouro”. O “mago” se
arrasta pelas salas dos palácios com seus pés de pato e, todo altivo, gagueja
entre professores e marqueses suas aventuras de guerra. Mas é só papo
furado. Disso tem sempre aos montes.
Tem a Associação Nacional dos Combatentes, que quer de volta os postos
de trabalho ocupados durante a guerra pelas esposas (“Fora, mulheres!
Mulheres, façam tricô!”); a Associação dos Arditi, os voluntários do
desespero, e também a dos Mutilados e Inválidos, misturados a charlatães,
impostores, cegos videntes; há ainda a União Liberal e a Liga
Antibolchevique, e mais a “Aliança de Defesa Cidadã”, financiada com
dinheiro dos grandes proprietários de terra. Ali o advogado Francesco Giunta
conseguiu organizar gangues. Durante os tumultos de julho motivados pela
carestia, enquanto defendiam dos proletários comunistas os tecidos e os
frascos dos comerciantes, também promoviam saques com a desculpa de que
os comerciantes especulavam com os preços. O próprio Giunta, agitando um
par de sapatos caros, guiou o saque à fábrica de sapatos Ploner. Nunca se viu
pelas ruas de Florença tanta gente armada com garrafas de vinho como
naqueles dias.
Em Florença, em suma, todos tagarelam, ninguém fica calado e a sensação
de traição cresce universalmente. Os operários, cada vez mais atrevidos,
quando se deparam com um senhor alinhado saindo do Caffè Paszkowski,
com farda de oficial e monóculo, vangloriando-se das suas batalhas, se
convencem de que a guerra foi uma especulação com a vida dos pobres e
cospem-lhe na cara. Em contrapartida, os pequeno-burgueses, que no front
teriam comandado um pelotão e ganhado uma fitinha por bravura ou uma
medalha, agora, na vida civil, desempregados e ineptos, tomam escarradas
dos ex-subalternos e sentem-se ainda mais traídos. Resumindo: entre
burgueses e proletários, a desilusão é recíproca e universal. A guerra vencida
deixou nas consciências de todos a bile da derrota.
A esperança agora é Mussolini, o arauto do intervencionismo. Após tê-lo
esperado inutilmente a noite toda na estação de Santa Maria Novella, na
manhã seguinte Dùmini, Banchelli e os outros ex-Arditi florentinos ainda o
esperam no Teatro Olimpia, na Via dei Cimatori, para a primeira convenção
nacional dos Fasci di Combattimento.
Os Fasci di Combattimento em Florença são pequenos. A primeira reunião
aconteceu no fim de abril na Piazza Ottaviani, na Associação dos
Combatentes. Dos membros fundadores, logo se perderam os rastros. A
reconstituição do Fascio di Combattimento aconteceu no fim de junho,
sempre na Piazza Ottaviani. Participou um grupo de 27 pessoas. Foi nomeado
um diretório com três integrantes, proporcional ao número de participantes:
um diretor para cada nove pessoas.
A reunião já começou há meia hora. A sala é pequena, adornada com
bandeiras tricolores, estandartes de regimentos toscanos, flâmulas pretas,
cartazes que celebram a liberdade de Fiume, e as primeiras filas foram
reservadas para os delegados dos outros partidos. Nem mesmo eles
apareceram. O público alcança poucas centenas de pessoas. Já são 10h, e
Mussolini ainda não apareceu. Mas o Fundador não poderá faltar ao encontro,
e ele, Amerigo Dùmini, sabe esperar. Acende outro cigarro e toma mais um
gole de grapa.
No palco, Umberto Pasella, secretário-geral do movimento, vestido de
cinza, gorducho e prosaico — chamado para entreter a plateia na ausência de
Mussolini —, passa de repente do tom de vendedor a um mais comovido.
Para, ergue os olhos e os braços em direção ao cego e mutilado de guerra
Carlo Delcroix, que assiste, com o soldado acompanhante, em um camarote
próximo ao palco. Todos se levantam. O veterano, para receber a aclamação
do público sem perder o equilíbrio, deixa-se erguer por seu cuidador: além da
vista, na verdade, faltam-lhe os dois antebraços. Bracejando sem braços,
Delcroix toma a palavra e jura aos irmãos fascistas que os mutilados “serão
capazes de assinar, com os seus cotocos, a sentença de morte de todos os
covardes”. Ovação. Ele volta a se sentar. Pasella recomeça com o tom
simplório de caixeiro-viajante.
Depois, no entanto, irrompe na sala outra aclamação. Pasella volta a se
calar. Pelo fundo da plateia, entra Benito Mussolini. Avança a grandes passos
rumo ao palco. É seguido pelo líder dos futuristas, Filippo Tommaso
Marinetti, com um chapéu-coco na cabeça, Ferruccio Vecchi, usando verde-
musgo, com a camisa preta e o peito coberto de condecorações, e um jovem
alto e robusto em traje civil.
Na sala, ergue-se um singular grito geral de triunfo, mais uma das muitas
invenções de D’Annunzio adotadas pelos fascistas: “Viva o nosso Duce! Por
Benito Mussolini, eia, eia, eia, alalá!”
Apesar da recepção entusiasmada, o fundador dos Fasci di Combattimento
parece cansado, mal barbeado, veste um estranho macacão branco cheio de
manchas de óleo e um boné engraçado com viseira de ciclista.
Pasella se afasta. Mussolini sobe ao palco. Sorri com benevolência, brinca
com quem está nas primeiras fileiras. Faz bico, como se quisesse mandar
beijos distantes. Oscila sobre as pernas, as mãos nos quadris. É obrigado a
pedir silêncio várias vezes com movimentos rápidos da mão estendida.
Finalmente fala: “Desculpem o atraso. Acabei de aterrissar. ESTIVE
ONTEM EM FIUME, a cidade de milagre e maravilha!”
Ouvindo a menção a Fiume, a cidade da lenda dannunziana, a Jerusalém
prometida pelo poeta-guerreiro a todos os patriotas e aventureiros da Itália e
da Europa, as poucas centenas de fascistas reunidos no Teatro Olimpia
explodem em uma salva de palmas estrondosa. Todos aplaudem. Amerigo
Dùmini também, batendo a palma da mão sadia no dorso da mão paralisada.
Quando a aclamação termina, Mussolini conta que eludiu o bloqueio
governamental voando a uma altitude elevadíssima com um ás da guerra, diz
ter falado por três horas com D’Annunzio e ter sido obrigado, no caminho de
volta, a fazer uma aterrissagem forçada nos arredores de Udine, conta ter sido
preso pelos carabineiros, ter retomado o voo após uma conversa com o
general Badoglio. E, agora, aqui está ele, recém-desembarcado da carlinga,
vindo diretamente do céu para o palco deste pequeno teatro social na Via dei
Cimatori. O público exulta.
Benito Mussolini
Florença, 10 de outubro de 1919
Teatro Olimpia

Foi mesmo uma ideia brilhante apresentar-se com o macacão de aviador. A


plateia pareceu ter ficado entusiasmada. Uma pequena dádiva da solidão.
No dia anterior, quando chegou no último trem da noite na estação de
Santa Maria Novella, não havia mais ninguém à sua espera. Sozinho, pôde se
hospedar comodamente no Hotel Baglioni e dormir uma boa noite de sono.
Na manhã seguinte, Marinetti chegou para acordá-lo, insistindo que a
assembleia, já iniciada havia algum tempo, queria ver Mussolini a qualquer
custo, e ele, em vez de vestir roupas limpas, teve a ideia de voltar a vestir o
macacão branco manchado de óleo.
Seu voo de volta de Fiume terminara no campo de Aiello, nos arredores de
Udine. O piloto Lombardi, para evitar ser preso pelos carabineiros,
descarregou o passageiro e voltou ao céu sem nem mesmo desligar o motor.
Mussolini foi conduzido pelo general Pietro Badoglio, comissário militar
extraordinário para a Veneza Júlia. Embora em público todos se
proclamassem dispostos a morrer pela italianidade de Fiume, em particular,
Mussolini disse ao general que teve sua parte de infâmia na derrota de
Caporetto e sua parte de glória no triunfo de Vittorio Veneto e que era
favorável a um acordo, dando até a entender que o próprio D’Annunzio
poderia aceitar soluções diferentes da anexação e aconselhando um
abrandamento da censura e um apoio econômico à cidade rebelde. Após
aquela breve conversa entre homens de bom senso, tranquilizado, Badoglio
deixou-o ir embora sem problemas, e o fundador dos Fasci di Combattimento
pôde embarcar no último trem para Florença.
Agora os fascistas na sala estão hipnotizados pelas manchas de óleo de
motor em seu macacão. O encanto com que as olham dá a impressão de que
querem adivinhar nelas a geografia de um continente inexplorado. São
poucos. Pasella declara em público 137 seções com 40 mil afiliados. É uma
mentira ridícula. Para Mussolini, declara 56 seções com 17 mil afiliados. Mas
isso também é mentira. O Fundador sabe: as seções devem ser algumas
dezenas, e os inscritos, alguns milhares. De qualquer maneira, muito distantes
dos mil Fasci di Combattimento previstos em março e também dos trezentos
esperados em julho. Eles são poucos e se encontram cercados de hostilidade.
Os socialistas os detestam, os republicanos gostariam que fossem mais
resolutos no pré-requisito antimonárquico, os monárquicos gostariam de
eliminá-los, os burgueses sorriem satisfeitos em relação à sua violência, mas
xingam entre os dentes quando leem em seus programas a dizimação das
riquezas, os nacionalistas apreciam seu patriotismo, mas desprezam seu
socialismo residual, os democratas os consideram extremistas. Os únicos com
os quais os fascistas se dão bem são os Arditi e os voluntários de guerra.
Os adversários são muitos, os inimigos, poucos, e Benito Mussolini não
pretende eliminar nenhuma possibilidade. À plateia do Teatro Olimpia,
hipnotizada por suas manchas de óleo, declara que os fascistas são
“antidoutrinários, problemistas, dinâmicos”. As palavras de ordem deles são
as do futurismo: sintético, alegre, veloz, presentista, prático, moderno. O
aviador imaginário recém-desembarcado de Fiume insiste naquilo que os
fascistas não são: não são republicanos, socialistas, democratas,
conservadores, nacionalistas. São, por sua vez, uma síntese de todas as
afirmações e de todas as negações. Nós, fascistas, conclui, não temos ideias
pré-concebidas, nossa única doutrina é o fato.
Em um único ponto, Mussolini é drástico:
“Não pretendemos ser considerados uma espécie de guarda-costas de uma
burguesia que, especialmente na classe dos novos ricos, é apenas indigna e
vil. Se essa gente não sabe se defender por si mesma, que não espere ser
defendida por nós.”
A essa altura, Cesare Rossi e Michele Bianchi aconselham-no abertamente
a dar uma guinada à direita, abandonar todas as fantasias de formar um bloco
de intervencionistas de esquerda, mas ele insiste. É necessário manter a
ligação com os velhos companheiros, rebate. Pelo menos com os que
escolheram a guerra. É necessário evitar o isolamento a qualquer custo. O
povo não está perdido, só é preciso destituir os falastrões burgueses que o
guiam e recuperar o controle. O povo é melhor do que seus líderes. O povo
amou Benito Mussolini e voltará a amá-lo.
Marinetti fala em seguida. Pede nada menos do que a “desvaticanização da
Itália”, a substituição do Senado por um “órgão excitador” composto por
jovens de 20 anos, a exaltação dos intelectuais, a entrada gratuita nas
exposições de arte. O bizarro programa futurista diverte a plateia, mas a
assembleia política já acabou há algum tempo. Lá fora, esperando-os, está o
povo, aquele povo que Mussolini se ilude de não ter perdido. E está armado
com pedras.
Na hora do aperitivo, Mussolini está com os seus em uma mesa externa do
Gambrinus. Começa um arranca-rabo com os operários que estão voltando do
trabalho no bonde número 15. Após o banquete da Associação dos
Combatentes, os fascistas vão tomar a saideira no Café Paszkowski. Todos os
outros estabelecimentos da Piazza Vittorio, prevendo tumultos, já baixaram
as grades. A polícia percorre as ruas em patrulhamento, guiada pessoalmente
pelo chefe de polícia. Mussolini e os seus ainda estão se sentando em torno
das mesas externas quando os disparos de revólver começam. Um grupo de
operários socialistas cobre-os de vaias. Voam poltronas de vime. Cadeiradas,
pauladas, sopapos. Na confusão, uma anarquista que fora sua admiradora
consegue se aproximar da mesa de Mussolini e atira nele um punhado de
moedinhas de cobre, o preço da traição. Mussolini precisa ser escoltado até o
Hotel Baglioni. O grupo dos fascistas segue em fileiras cerradas com o
Fundador no centro, servindo-lhe de escudo. Leandro Arpinati, um jovem
ferroviário ex-anarquista bolonhês, alto e forte — que chegou com o Chefe já
naquela manhã ao Teatro Olimpia —, age como seu guarda-costas. Diante do
Hotel Baglioni, outras perseguições, outros arranca-rabos, mais pauladas. Os
fascistas finalmente conseguem entrar. Tomam bebidas no salão. A praça está
coberta de pedras.

***
Na manhã de 11 de outubro, Mussolini pode finalmente deixar Florença,
expulso pela hostilidade do “seu” povo. Vai embora de carro rumo à
Romanha, à casa paterna. Quem dirige o veículo é Guido Pancani, um piloto
célebre por suas proezas de aviador durante a guerra. No banco do carona,
Gastone Galvani, seu cunhado, e atrás, junto de Mussolini, Leandro Arpinati,
de Bolonha.
O Fundador conhece Arpinati desde que ele era um garoto rebelde e
Mussolini era o líder dos socialistas na Romanha. Sentados lado a lado,
relembram os dias em que o anarquista de 18 anos ia confrontar o secretário
da Federação de Forlì. Era 1912 e, em Civitella di Romagna, o mesmo
vilarejo de Bombacci, estava sendo inaugurado um mercado coberto que
levava o nome de Andrea Costa, o patriarca do socialismo italiano
considerado traidor pelos anarquistas por ter sido o primeiro a aceitar ser
eleito para o Parlamento do rei. A multidão se aglomerava sob o palco do
prestigioso orador vindo de Forlì. Arpinati e os seus rapazes, vestidos de
preto dos pés à cabeça, esperavam encostados em um muro, prontos para
começar a briga. Mussolini os esquadrinhou com um olhar intenso e, depois,
fez o comício mais breve da sua vida.
“Sigam o exemplo de Andrea Costa”, limitara-se a dizer, “os coveiros não
contam”.
Entretanto, após descer do palco, ele e aquele bando de “coveiros” de 18
anos ficaram amigos.
Agora, enquanto relembram esses fatos, o carro acelera por Faenza. Os
operários contestadores de Florença, aqueles que dez anos antes o aclamavam
quando ele era o líder dos socialistas da Romanha, ficaram para trás. Os
viajantes param para tomar um café e então seguem viagem. O homem ao
qual lançaram moedas de cobre adormece. O piloto de guerra engrena a
marcha. A cadeia das traições desaparece no ronco do motor. O automóvel, a
toda velocidade, acaba batendo na cancela abaixada de uma passagem de
nível.
Os passageiros são lançados a vários metros de distância, como
brinquedos. Tudo poderia terminar aqui, em um instante de distração, diante
de uma passagem de nível ignorada. Pancani e o cunhado, caídos em um
fosso, gritam de dor. Arpinati sofreu uma contusão. Mas Mussolini sai ileso.
Os feridos ficam internados no hospital local, e ele segue viagem com o
velho amigo. Dirá a si mesmo que o ódio dos inimigos serviu de talismã.
Referência sua 27644. Mussolini retorna Fiume aterrissou hoje campo
Aiello, acompanhado aqui teve longa conversa comigo que prometeu sigilo.
Disse-me expressamente que se solução projetada não encontrar oposição de
D’Annunzio ele a apoiará vigorosamente no seu jornal. Quanto a intenções
de D’Annunzio sobre tal projeto Mussolini não fez declarações, mas me
pareceu estar convencido que D’Annunzio também não é irredutível sobre
única solução de anexação.

Telegrama do general Pietro Badoglio ao Presidente do


Conselho, Francesco Saverio Nitti,
Udine, 8 de outubro de 1919

Não temos aliados. Os Fasci di Combattimento só


concordam com os Arditi e os voluntários de guerra.

Benito Mussolini,
Il Popolo d’Italia, 6 de outubro de 1919
Benito Mussolini
Milão, fim de outubro de 1919

Obrigaram-no ao ridículo. Diante de centenas de pessoas. Em uma


assembleia pública, nas escolas da Via Rossari.
Convencera a todos de que, nas eleições seguintes, não era possível votar
no bloco dos partidos de governo, nem mesmo em ação antissocialista.
Esgoelara-se. O fascismo, disse, é um movimento progressista, dinâmico,
jovem, vivaz, nascido para renovar a política italiana e abri-la à participação
das massas. Não podia apoiar liberais, democratas, nacionalistas. Eles eram a
velharia a ser “liquidada”, o continente dos ultrapassados. O fascismo era o
refúgio de todos os heréticos, a igreja de todas as heresias. Os carolas de
todas as igrejas deviam ser desprezados, sem consideração. O fascismo era
uma mentalidade especial de inquietações, de intolerâncias, de audácias, que
olhava pouco para o passado e usava o presente como um trampolim para o
futuro. E o futuro não faz prisioneiros.
Depois, contudo, Umberto Pasella se levantara e, com os mil rodeios de
sempre, demonstrara que a possibilidade de os fascistas formarem um bloco
eleitoral com as esquerdas intervencionistas estava mais uma vez em risco. O
motivo era sempre o mesmo: não queriam Mussolini na chapa. Temiam atrair
a ira de todos os socialistas.
O rejeitado, que até o dia anterior lutara com todas as forças por aquela
aliança, agora precisava convencer a todos de que ela se tornara inviável.
Benito Mussolini, com um movimento digno de um acrobata, fez uma
guinada de 180 graus e se esgoelou de novo, agora contra a aliança. Outras
contorções, espasmos, outros furores. Ele até poderia aceitar não se
candidatar em uma chapa fascista, mas não podia tolerar ser banido de uma
chapa de intervencionistas porque fora um profeta da intervenção, suportara
as cacetadas dos policiais, recebera 56 estilhaços de morteiro em cada canto
do próprio corpo. Era inaceitável. A esquerda intervencionista estava
encarnada nele, cicatrizada em sua carne. E também estavam se iludindo: os
socialistas certamente não o desarmariam se apresentassem uma chapa de
desconhecidos.
Mas, dessa vez, o discurso não foi convincente. O caso pessoal era
evidente demais. Um sujeito, aproveitando uma pausa no discurso, levantou-
se e o confrontou: “Por que não nos disse essas coisas na assembleia de dois
dias atrás?”
Àquela altura, ele foi obrigado a ser patético.
“Porque um dos meus filhos estava morrendo!”, exclamou cerrando os
punhos.
Todos os homens adultos presentes na sala então se levantaram e
aplaudiram o pai preocupado. Boa metade deles não ousaria mais votar
contra aquele homem. Naquelas assembleias, era assim: era necessário ter o
sentimento necessário à ocasião. Sempre teatro, mesmo quando o sentimento
era sincero. Aliás, sobretudo quando era sincero.
E sua angústia era verdadeira. Durante dois dias, sua mulher, Rachele, o
viu com o rosto derrotado, irreconhecível. Ficava ali parado, encolhido em
uma contração espasmódica sobre o berço do filho Bruno; o homem de ação
temido, admirado ou odiado, completamente aniquilado pelo perigo iminente
sobre aquela pequena criatura de apenas 18 meses, com o rosto sombrio,
asfixiada, quase sufocada. O menino foi acometido por uma forma grave de
difteria, as amígdalas avermelhadas, inchadas, a febre altíssima, que logo se
complicou, tornando-se uma broncopneumonia, e o pai ficava ali, imóvel,
paralisado pela angústia, contemplando mentalmente os bacilos que
penetraram nas primeiras vias aéreas, as falsas membranas que, hora após
hora, depositavam-se umas sobre as outras na laringe minúscula, provocando
a asfixia do filho. A dificuldade de respirar progrediu até se tornar ruidosa,
estrangulando-se em um assobio, e ele, o fundador dos Fasci di
Combattimento, não podia fazer nada além de ficar curvado observando a
pequena boca ressecada que exalava só um sopro.
Com as doenças, era sempre assim. Os ataques do inimigo interno o
aterrorizavam porque não se projetavam ao ar livre em nenhum teatro de
guerra. Não era possível reunir coragem diante delas porque não admitiam
nenhum público, nenhuma cena; nelas, não havia teatro.
Foi Rachele quem fez a diferença. Era uma mulher ignorante. Tinha 29
anos e estava começando a aprender a ler e a escrever. Escrevia no fim das
cartas “bachi” em vez de “baci” para mandar seus beijos e, no verso dos
envelopes, obstinava-se a especificar o remetente escrevendo “spedisse
Rachele Mussolini”, em vez de “spedisce Rachele Mussolini”, escorregando
na pronúncia sibilante do dialeto romanholo. Ele a quisera sob o arroubo
irrefreável de um impulso sexual. Era a última filha da sua madrasta. Jovem,
loura, forte. Uma noite, arrastara-a até diante do pai e da segunda mulher,
entre as bancadas da taberna que tinham em Forlì, e ameaçara matá-la e, em
seguida, suicidar-se caso não a dessem a ele. Eles a deram.
Rachele Guidi era uma mulher ignorante, nunca fora à escola. Não havia
sequer percebido que o pequeno Bruno corria perigo de vida. Só um
resfriado, menosprezara. Foi Sarfatti, a amante, e não a esposa, quem
percebera. Assim que ele, para justificar o atraso em um de seus encontros
secretos, descreveu os sintomas da criança, ela sentenciou: “É difteria! Pegue
um táxi e corra para chamar um médico.”
O dr. Binda — velho amigo da família que já havia tratado das feridas de
guerra de Mussolini — enfiou um canudo na garganta do menino e sugeriu
aos pais que torcessem para que não fosse expelido. Em uma família de ateus
professos, não era possível, de fato, sequer rezar. Então ele, o pai angustiado,
ficou torcendo, virado para a parede.
Rachele, por sua vez, mesmo com toda a sua ignorância, ficou abraçada ao
filho por 24 horas para dar-lhe um pouco de conforto, indo para cima e para
baixo no corredor escuro. Era uma boa mulher, uma boa mãe. Já lhe dera três
filhos. Em seus braços, Bruno recomeçou a respirar. Só naquele momento,
como que por magia, a respiração de Mussolini também voltou.
Mas era uma magia negra, ruim. Um efêmero encantamento, um total
engano. Bastava que um bacilo invisível se depositasse na mucosa faríngea e
o recém-nascido podia morrer. Bastava uma coisa de nada para levá-lo
embora. A gripe “espanhola” estava sufocando milhões de crianças nos
berços. A frágil vida delas era uma encenação mentirosa, toda uma
pantomima, assim como a pantomima das eleições, a espera de um messias
que saísse das urnas. Como se uma montanha de cédulas riscadas a lápis
pudesse substituir a violência da história.
Ele, mentindo, também escrevera a D’Annunzio, o poeta obcecado para
marchar sobre Roma, aconselhando-o a esperar o resultado das eleições. O
fundador dos Fasci di Combattimento repetia continuamente ao Comandante
que necessitavam esperar até 16 de novembro porque, naquele dia — ele
tinha certeza —, obteriam um grande consenso em relação a Fiume. Naquele
dia, gente nova sairia dos resultados eleitorais.
Na verdade, estava apenas ganhando tempo. As eleições não passavam de
uma mentira, uma dissimulação. Dos resultados eleitorais, não sairia nada —
disso ele tinha certeza —, a urna ficaria vazia. Carecia preparar de novo
armas de ferro. Quem se reunia em volta dessa bandeira, mais do que votar,
devia se preparar para a outra vitória, a sangrenta.
Agora estava decidido. Se os socialistas o odiavam, se os companheiros da
esquerda intervencionista não o queriam na chapa, se os partidos tradicionais
de governo eram “velharia” a ser despachada, os fascistas se candidatariam
sozinhos. Respaldados por combatentes e Arditi. Mais ninguém. Ele se
apresentaria como principal candidato da lista eleitoral.
Margherita Sarfatti riria dele. “Mas como? Até ontem você dizia que nunca
se candidataria à palhaçada dessas eleições!?”
Sim, claro, ontem... Mas amanhã é outro dia.
Meu caro D’Annunzio, Pedrazzi já deve ter lhe contado o que penso da
situação em geral. Aqui estamos mergulhando no pântano da papelada. É
triste, mas inevitável. As eleições são um pretexto magnífico para a gritante e
imunda especulação socialista. Para nós, são um meio de coleta e
camuflagem. Finalmente consegui alinhavar algo. Estamos organizando
grupos de vinte homens cada, com uma espécie de uniforme e com armas,
tanto para reivindicar nossa liberdade quanto para os outros eventos, para os
quais aguardamos suas ordens. No geral, a situação é difícil e faltam
coordenação e sincronia de movimento. Nós, das grandes cidades, seremos
facilmente submergidos pela onda socialista.

Carta de Benito Mussolini a Gabriele D’Annunzio,


30 de outubro de 1919
Gabriele D’Annunzio
Fiume, 24 de outubro de 1919

Os marinheiros do vapor Persia, que zarpou de La Spezia, depois de


fazerem escala em Messina para embarcar gêneros alimentícios, ao chegarem
ao largo da costa siciliana, em um mar espelhado atravessado por cardumes
de atuns e peixes-espada, em vez de seguirem rumo ao canal de Suez e dali
virarem a proa para o Extremo Oriente, em direção a Vladivostok, ou, talvez,
para algum porto chinês, inesperadamente deram meia-volta. Foi assim que,
após ter subido de volta o Adriático, a preciosa carga de baterias de
montanha, fuzis, munições e víveres, destinada a apoiar na Rússia os
exércitos contrarrevolucionários dos generais cossacos que permaneceram
fiéis ao czar, acabou por armar a rebelião da cidade livre de Fiume.
Reza a lenda que os responsáveis pelo desvio de rota do Persia foram os
“uskoks”, os piratas de D’Annunzio que, para abastecerem a cidade sitiada
pelas tropas regulares do Exército italiano, revitalizaram no Adriático os
gestos das guerras corsárias, pilhando víveres, abordando barcos e criando
mitos. A verdade é que a ordem para que os marinheiros do vapor
sequestrado desviassem a rota para Fiume partiu do capitão Giulietti, o
poderoso chefe da Federação dos Marítimos, aliado de D’Annunzio em nome
da liberdade dos povos e de um complicado braço de ferro com o governo
italiano que visava obter concessões para os trabalhadores do seu sindicato.
Fato é que, a partir da noite de 14 de outubro, com o Persia ancorado no
porto de Carnaro e as armas destinadas ao Exército Branco armazenadas nos
depósitos dos legionários de D’Annunzio, a pequena cidade de Fiume entrou
no mapa da luta planetária entre os jovens povos oprimidos e os velhos
senhores da Terra que se obstinam em querer organizar o mundo pós-bélico
sem eles.
Em contrapartida, em pouco mais de um mês, Fiume já se tornou um
mundo entre mundos, o porto franco da rebeldia de todas as facções políticas:
nacionalistas e internacionalistas, monárquicos e republicanos, conservadores
e sindicalistas, clericalistas e anarquistas, imperialistas e comunistas. As
vanguardas políticas, sociais e artísticas de toda a Europa estão indo ao
encontro da feira das maravilhas: sonhadores, libertários, idealistas,
revolucionários, anticonformistas, aventureiros, uma multidão de heróis e
desajustados, talentos inquietos e excêntricos, homens de ação e ascetas,
desesperados sem nada a perder e milionários em busca de emoções, jovens
violentos e escritores parisienses em voga, artistas vegetarianos e padres
reformados, amazonas em uniformes militares e militares enfeitados como
bailarinas, sedutores em busca de conquistas femininas e pederastas em busca
de conquistas masculinas. A mistura é entusiasmante, o bacanal, orgíaco, a
licenciosidade, normal, o arrebatamento, absoluto, o espetáculo, contínuo, a
festa, ininterrupta. O individualismo, a pirataria, a excentricidade, a
transgressão, as drogas, a liberdade sexual, o cosmopolitismo, o feminismo, a
homossexualidade, o anarquismo colocam Fiume fora do mundo e, ao mesmo
tempo, acima dele. Um só mundo não basta. Nos corredores dos palácios
romanos do poder, os politiqueiros recorrem às intrigas de sempre, tramam
estratagemas, temporizam, propõem soluções de meio-termo. Aquele é o
submundo. Fiume, na visão de Gabriele D’Annunzio, é o supermundo. Por
ali, não se passa.
O governo de Nitti, pelo ministro das Relações Exteriores Tittoni, propõe
aos rebeldes um estratagema diplomático: a cidade sob controle italiano, o
porto e a ferrovia sob o controle da Liga das Nações. É um truque do pré-
guerra, mas Nitti não é capaz de nada melhor. A política das massas é
totalmente estranha aos interesses dos tradicionais homens de poder. Para
eles, o povo deve ser mantido a distância, sob vigilância, retraído, em um
estado contínuo de minoria. Aqueles velhos destroços não sabem o que fazer
com o consenso popular, não o entendem, não o procuram, não o encontram.
Para eles, o poder é uma canastra jogada entre velhos conhecidos na mesa de
um círculo exclusivo em alguma colina.
D’Annunzio, em contrapartida, está totalmente empenhado em modelar as
massas de acordo com sua vontade. Confiante no consenso do povo de Fiume
para enfrentar a crise resultante do impasse das negociações, em 16 de
outubro mandou dissolver a representação municipal da cidade, convocando
para 26 de outubro as eleições para o Conselho Municipal. Seu plano é
simples: 30 de outubro é o primeiro aniversário da proclamada anexação de
Fiume à Itália, que aconteceu no fim da guerra por iniciativa da população
italiana da cidade. Passado um ano, o resultado das eleições deverá renovar
com o furor popular o voto solene dos fiumanos. As massas, caso atente para
elas, se não as ignorar, são assim: basta guiá-las e elas seguirão.
A propaganda eleitoral culmina em um grandioso comício no Teatro Verdi.
Na noite de 24 de outubro, o local já está abarrotado com duas horas de
antecedência. Quando o Comandante aparece às 21h, precisa se esforçar por
muito tempo para obter silêncio. Um arrebatador aplauso de afeto persiste por
pelo menos quinze minutos apesar de seus repetidos sinais. No momento em
que o poeta finalmente consegue tomar a palavra, logo fica claro que houve
um novo acontecimento.
D’Annunzio inicia o discurso celebrando a vontade de Fiume de ser
italiana, uma cidade livre da Itália livre. Detém-se com precisão de cartógrafo
nas fronteiras que aquela nação livre deve ter. Elenca de maneira minuciosa
terras e vilarejos, ilhas e arquipélagos, até o último, insignificante rochedo. É
o discurso nacionalista pedante e obstinado de sempre. Depois, porém, se
levanta de súbito. Dá uma guinada em direção a uma segunda decolagem. O
discurso se intitula “Itália e vida”, mas Fiume esta noite não é mais apenas
uma cidade italiana, Fiume se tornou por encanto o farol que dará luz ao
mundo, a “centelha do novo fogo que iluminaria o Ocidente”. Fiume, além
disso, não é mais a “cidade holocausto”; como um padre que reencontrou
Deus após a crise de fé na meia-idade, D’Annunzio descobriu para ela uma
segunda vocação, a mais difícil: Fiume se tornou a “cidade da vida”.
Como administrador, D’Annunzio sabe que a situação econômica só piora,
que o porto está à beira do desastre, que os gêneros de primeira necessidade
começam a escassear, que a nova moeda acelera a inflação. No entanto, o
jogador nele faz uma nova aposta. O aviador puxa para si o manche e
proclama que a grande causa é a causa da alma, da imortalidade. A subida
continua, ganha-se altitude.
Todos os insurgentes de todas as estirpes se reunirão sob o nosso sinal. E
os indefesos serão armados. E a força será contraposta à força. Do indômito
Sinn Féin irlandês à bandeira verde que no Egito une a Meia-Lua e a Cruz,
todas as insurreições do espírito contra os devoradores de carne crua se
reacenderão com o nosso fogo. Está lançada a nova cruzada dos homens
pobres e livres contra as nações usurpadoras e acumuladoras de todas as
riquezas, contra as raças predadoras. Por isso a nossa causa é a maior e a mais
bonita que hoje se opõe à demência e à indignidade deste mundo. É hora de
se lançar sobre o futuro.
Enquanto D’Annunzio fala no Teatro Verdi em 24 de outubro de 1919, o
tempo está suspenso, dilatado até o tédio ou precipitado no instante. Não há
tática, não há estratégia, não é um homem que fala aos fiumanos: é um
evento. Suas consequências são incalculáveis. Sua ação não tem objetivo,
consome-se no hiato entre a façanha histórica e o capricho pueril; Fiume, a
cidade da vida, gira eternamente sobre o eixo da própria espinha dorsal como
um dervixe.
As eleições marcam um triunfal plebiscito a favor do poeta e de seu futuro.
Benito Mussolini
Milão, 11 de novembro de 1919

Foi decidido que o único comício eleitoral milanês dos Fasci di


Combattimento aconteceria na Piazza Belgioioso, o coração elegante de
Milão, contornada por refinados palácios em estilo neoclássico, uma espécie
de salão a céu aberto da aristocracia. Uma escolha pessoal de Mussolini
durante uma visita de reconhecimento alguns dias antes: “Esta aqui está
ótima”, decidiu após cinco minutos, ao ver que a praça tinha um único lado
aberto, tornando-a adequada para defesa em caso de ataque.
A campanha eleitoral se desenrola em uma atmosfera de perigo e espera
messiânica que assumiu o fervor fanático de uma prece. Os operários
socialistas atacam os comícios de qualquer um que, em 1915, tenha se
manifestado a favor da guerra. Eles os atacam com a paixão que os
atormentados reservam aos seus algozes. Quando os variados tipos de
intervencionistas se apresentam nas praças, a multidão proletária não vê
diante de si adversários políticos, mas inimigos. Bissolati, prestigioso e
íntegro líder dos socialistas moderados, foi impedido de falar na província de
Cremona pela única razão de que, em 1915, havia se pronunciado a favor da
guerra e, então, foi combatê-la pessoalmente, alistando-se como voluntário
aos 60 anos. O comício do republicano Pietro Nenni em Meldola, na
Romanha, foi interrompido a tiros de fuzil. Em Sampierdarena, o comício do
socialista intervencionista Canepa foi interrompido a bordoadas pelos
socialistas maximalistas.
Para se defender das prováveis agressões, Mussolini mandou vir da
Romanha um grupo de antigos republicanos e anarquistas. Disse querê-los ao
seu lado como “guardas de honra e manípulos da morte”. Dentre eles,
Leandro Arpinati é, mais uma vez, o encarregado de ser seu guarda-costas.
D’Annunzio mandou sessenta legionários e autorizou Mussolini a remunerar
outros com verba dos fundos da subscrição para Fiume. Grupos de fascistas
vieram das cidades próximas. Foi estabelecido um reembolso de despesas de
30 liras para viagem e pernoite. Roberto Farinacci, um ferroviário fundador
do Fascio di Combattimento de Cremona, para quatro dos seus reivindicou
100 liras no lugar de 30. Afirma que são delinquentes dispostos a tudo.
Pessoal especializado. Albino Volpi e outros Arditi encheram algumas
mochilas com barras de ferro e granadas. Mussolini deu instruções precisas:
os partidários do bloco fascista vão se empenhar em fazer o mais profundo
silêncio para identificar eventuais perturbadores; em caso de conflito, o
público estranho deverá sair rapidamente pela Via Morone; nada de mulheres
nem crianças; o comício será rápido. Acontecerá mesmo em caso de chuva.
A escolha das candidaturas também foi rápida. Uma vez decidido que os
fascistas entrariam na luta com a própria chapa eleitoral, não demorou mais
do que dez minutos. Um pouco de ralé e alguns nomes ilustres, todos
combatentes. Entre os 19 candidatos, 18 estiveram no front, dos quais 7 eram
voluntários, 5 receberam medalhas de prata, 8 foram feridos e 2, mutilados.
Os nomes de destaque, além do principal candidato da chapa, são o de
Filippo Tommaso Marinetti, o do anticlericalista Podrecca, o do sindicalista
Lanzillo, o do industrial De Magistris. Também figura na lista Arturo
Toscanini, celebérrimo maestro e sócio diligente do Fascio di Combattimento
milanês. O maestro soube que seria candidato durante uma assembleia na
quadra de uma escola. Estava distante, apoiado em um cavalete. Marinetti o
convenceu a aceitar. Toscanini também financiou a lista com 30 mil liras. O
programa é o mesmo de San Sepolcro, envolto no casulo socialista do qual
Mussolini não quer sair: abolição do Senado, reforma tributária, dizimação
das riquezas, confisco dos bens eclesiásticos, acomodação dos mutilados,
inválidos, combatentes, nação armada. O símbolo eleitoral é uma granada
produzida por uma empresa francesa, equipamento dos Arditi do Exército
italiano. O manifesto eleitoral propagandeia o “Bloco Thévenot”, convidando
o eleitor a marcar o próprio voto sobre a granada de lançamento.
O comício está convocado para as 21h. Às 20h, a Piazza Belgioioso ainda
está deserta, já no escuro. Os burgueses que moram nos palácios do Centro
ficaram em casa. Depois, aos poucos, uma pequena multidão atravessa o
cordão dos Arditi, responsáveis pela segurança do lado do Corso Europa, o
único aberto, e se aglomera sob o palco improvisado. Trata-se de um
caminhão usado para o transporte das tropas, coberto de flâmulas e
estacionado transversalmente para barrar o acesso entre a Via Morone e a
casa onde viveu e morreu Alessandro Manzoni, a casa à qual se dirigiu, em
1848, uma delegação de jovens insurgentes contra os ocupantes austríacos
para implorar que o maior escritor da Itália fosse para a rua guiá-los nas
barricadas e de onde aquele homem precocemente envelhecido, extenuado
pela neurose em longas noites insones, os mandou embora, deixando escapar
o dia que havia esperado durante toda a vida. À luz das tochas que clareiam a
cena, diante da casa de Manzoni, o perfil do caminhão fascista parece um
rostro, o bico adunco de um enorme pássaro pronto para demolir a delicada
fachada de terracota cor-de-rosa. À sua volta, em todos os lados, minguadas
formações de homens armados em fileiras cerradas.
Aos poucos, a pequena praça se enche. A multidão espera em silêncio no
escuro pontilhado de tochas. Já é noite, a luz é funérea. Além dos archotes, só
uma escassa lua oblíqua. O canto mais afastado, da Via Omenoni, está
fracamente iluminado por uma lâmpada a arco voltaico.
Todavia, de repente, de trás do palco, sibila no escuro um sinalizador
luminoso, usado para clarear a “terra de ninguém” durante o conflito
mundial. Por poucos instantes, antes que o silêncio retorne, a luz branca de
um foguete de sinalização traça uma parábola leitosa no céu sobre Milão,
subitamente projetado em uma zona de guerra. Ao fim do trajeto, o foguete
de sinalização se abre em cascata, reverberado pelo teto de um palácio
neoclássico. Todos na praça seguem sua espuma iridescente com o encanto
de uma criança, as grandes comoções da humanidade primitiva. É o foguete
Very, a estrela cadente das noites nas trincheiras. É o sinal de abertura.
Sobe ao palco Ferruccio Vecchi, capitão dos Arditi. Discursa para a
multidão com a sua costumeira veemência de homem exaltado. Devaneia
sobre ataques, circunstâncias em que a guerra é mais sangrenta e amarga,
soldados divididos em ramificações, infantarias que brotam em altos-fornos
do Carso, almas rebeldes transformadas em lâminas curtas. Os Arditi,
apóstolos desinteressados, juram ser inimigos daquele obscuro emaranhado
de interesses, trapaças, parlamentarismo desonesto, bancos que negam crédito
aos desfavorecidos, pequenos industriais, perpétua traição burguesa, mofo.
Eu não dizimaria as riquezas, mas os ricos. A maré está subindo, brava gente.
Nós, desfavorecidos, faremos nossa justiça. Até a mais tranquila lagoa se
agita em delírio. Ao longe, passa a bandeira negra!
Vecchi se esgoela, multiplica as metáforas delirantes com a jugular
dilatada de sangue, mas suas palavras não são nada em comparação com o
foguete Very. Todos continuam a procurar com os olhos no céu o resplendor
de sua silenciosa magnificência.
Sobe ao palco Benito Mussolini. A pequena multidão o aclama. O major
Baseggio, fundador das “Companhias da Morte”, quer silêncio e levanta uma
bengala. Uma tocha se aproxima. A multidão emudece totalmente: o orador,
talvez para se proteger da garoa, usa uma balaclava sinistra.
Mussolini começa como um filósofo: “A vida nas sociedades modernas é
de uma complexidade formidável.” Suas várias necessidades inadiáveis
exigem habilidades técnicas, homens livres e audaciosos. Exigem “a
derrocada do passado”. É preciso eliminar por completo aquela burguesia
inerte e parasitária que ostenta uma riqueza mal adquirida e uma dupla
imbecilidade impotente. Ele não é contra o proletariado. É uma calúnia. Ele
sempre lutou pelas oito horas dos metalúrgicos. Ele é contra as tiranias,
inclusive aquela proletária. Só isso. E também é falso que eles sejam
violentos. Se atacados, reagem, mas os fascistas não são bebedores de
sangue. Ele, pessoalmente, é contra a violência. E também não dá a mínima
para o fato de ser ou não eleito, não faz questão da medalhinha.
Mussolini também se esgoela como Vecchi fez antes dele, mas nem
mesmo ele consegue superar o fascínio do foguete de sinalização. Das hordas
socialistas, nem sinal. As pessoas ouvem em silêncio, ainda encantadas por
aquele sinal de abertura. As pessoas suspiram. É verdade, a vida nas
sociedades modernas é de uma complexidade formidável, e se dissolve
totalmente, se aquieta no foguete Very, a cauda de cometa que marcou o
início e o fim do comício. Nunca no pós-guerra a simplificação da guerra foi
tão presente.
Tudo concluído, na Via Manzoni, Marinetti sobe nas costas de um fascista.
Contempla uma multidão que marcha em coluna noite adentro pelas ruas
elegantes do Centro, uma multidão disciplinada, compacta, vibrante, repleta
de bandeiras, bastões e tochas.
Deem o esplendor da violência a esses cidadãos de uma imperscrutável
metrópole moderna com sua escuridão densa e espessa, a esses homens
subjugados por uma existência que não entendem, deem um sinalizador
luminoso para o seu sangrento desejo de luz, deem a eles um destino e eles os
seguirão.
O que está acontecendo devia ter sido previsto. A multidão
proletária reage, com o ímpeto irrefreável da paixão por muito
tempo ofendida e atormentada, aos seus ultrajadores e algozes.
Por mais que se diga que seria desejável se os debates sobre os
problemas políticos atuais se desenrolassem em um ambiente
de serenidade e tolerância, tal exortação se depara com um
clima contaminado [...]. A multidão não vê na sua frente
adversários políticos quando surgem diante de seus olhos os
intervencionistas dos mais variados tipos, vê inimigos. Vê
aqueles que quiseram, impuseram, exploraram a guerra.

Avanti!, 1o de novembro de 1919

Advertência para o comício desta noite.


Na hora estabelecida, os Fascistas, os Arditi, os
Desmobilizados, os Voluntários de Guerra, os Combatentes,
os Futuristas, os estudantes futuristas se encontrarão em suas
sedes para se dirigirem ao local do Comício.
O Comício acontecerá mesmo em caso de chuva [...]
Se houver conflito, o público deve sair rapidamente pela
Via Morone, rumo à Via Manzoni [...]
Terminado o comício, ao grito de “Eia, Eia, Alalá”, a massa
fascista desfilará de maneira compacta pela Via Morone, Via
Manzoni, Piazza della Scala e Via Silvio Pellico e se
dispersará sem incidentes diante da Sede do Comitê Eleitoral
Fascista.

Outras medidas cuidadosas que não podemos tornar


públicas foram tomadas para que o Comício Fascista seja —
como de fato será — sossegado e solene.

Il Popolo d’Italia, 10 de novembro de 1919


Nicola Bombacci
Bolonha, início de novembro de 1919

Na Piazza del Nettuno, aglomeradas em torno da estátua do deus do mar,


deve haver 100 mil pessoas. Talvez 200 mil. Talvez mais ainda. Todas
esperam que o “Lênin da Romanha” pronuncie aquela palavra. Ele hesita. Já
está falando há vinte minutos, mas se refreia. O que o refreia é a relutância
diante das coisas sagradas.
Atrás da multidão, na frente de Nicola Bombacci, a figura serpeante do
gigante de bronze ergue-se majestosa sobre o chafariz de pedra coberto de
mármore. O Netuno que dá nome à praça impõe-se sobre quatro golfinhos
que simbolizam o Ganges, o Nilo, o Danúbio e o rio Amazonas, as quatro
partes conhecidas do mundo. O deus do mar, com grande aprumo, estende a
mão direita contra o vento, quase como se também quisesse aplacar as
tempestades. Mas o papa que encomendou a escultura no século XVI como
símbolo do seu poder, não domina mais o mundo. O século XX tem outro
deus: a palavra “revolução” não pode esperar.
Foi o que decretou o XVI Congresso do Partido Socialista ocorrido em
Bolonha no início de outubro. A maioria maximalista adotou um programa
que se inspira na revolução bolchevique, saudada como “o evento mais feliz
na história do proletariado”. Em vista do movimento, até foi reescrita a carta
magna do partido, que remontava ao século XIX, os tempos heroicos das
primeiras lutas operárias. Mas os tempos mudaram, e agora é o momento da
revolução. Para acelerar o amadurecimento, o congresso nomeou como
secretário justamente ele, Nicolino Bombacci, o “Cristo dos Operários”, ele
que prega o advento da república dos sovietes também na Itália: todo o poder
ao proletariado reunido nos seus conselhos. Quem não trabalha não come. E
ele logo adotou o símbolo dos comitês proletários russos: um martelo cruzado
com uma foice e circundado por duas espigas de trigo. Símbolo magnífico,
novíssimo, porém eterno, um círculo perfeito, a totalidade do mundo
redimido, a história que recomeça após ter chegado ao próprio fim. Todavia,
justo ele, diante da sua multidão de trabalhadores e do deus do mar, hesita em
pronunciar aquela palavra: revolução.
Com a mão esquerda, Netuno aplaca as tempestades, mas na direita segura
o tridente. Uma extremidade tricúspide capaz de eviscerar um cetáceo de sete
toneladas. A violência, esse é o problema. Eles discutiram longamente a
respeito no congresso socialista, discutem todos os dias, mas, quanto mais o
fazem, mais continuam a adiá-la. Gennari julgou-a “historicamente
necessária”, Lazzari advertiu que é crucial esperar até ter “segurança
matemática”, Serrati disse que “antes de tentar o passo mais alto, é necessário
pelo menos sondar o terreno”, Turati a considera loucura. O velho patriarca
do socialismo humanitário diz que, por ora, não o levam a sério, mas, quando
o fizerem, o apelo à violência revolucionária será recebido por fascistas cem
vezes mais bem armados do que eles. Turati tem razão, como sempre.
Nenhum daqueles dirigentes socialistas esteve no front. Entre eles e os
inimigos, aprofunda-se o intransponível abismo da Grande Guerra. A foice e
o martelo nunca amedrontarão o punhal.
Vladimir Degott, o representante da Internacional Comunista na Itália, que,
atrás do palco dos trabalhos do congresso, conspirava para preparar a
revolução, também pensa assim. A seu ver, Serrati, o líder do partido, é um
carreirista, um politiqueiro que fica com um pé lá e outro cá, e, segundo a
necessidade, concorda ora com a esquerda ora com os reformistas, um
menchevique comum que pode escrever coisas bonitas sobre a revolução,
mas tem medo de realizá-la; Gennari é um “marxista genial, mas sem espírito
de iniciativa” e Gramsci “entendeu melhor do que todos os outros
companheiros a Revolução Russa, mas não pode influenciar as massas”.
Degott, e Lênin através dele, contam com Bombacci, depositam sua
confiança no “Cristo dos Operários”. Têm certeza de que Nicola Bombacci,
quando for preciso, vai ficar do lado da vanguarda do proletariado que
avança. Mas ele estudou em um seminário, foi dispensado do serviço militar
por motivos de saúde, sabe que não faria mal a uma mosca. Então, Bombacci
continua a hesitar. A multidão na Piazza del Nettuno, que foi celebrar a
liturgia da palavra, fica a ver navios.
Turati sempre tem razão, tudo bem, mas o futuro não conhece as suas
razões. O futuro existe para redimir as injustiças. A violência não deve
assustá-los, eles a conhecem bem. Algemas, prisão e, quando nada disso
bastava, chumbo na barriga. Isso foi o que os burgueses, proprietários de
terras ou industriais sempre reservaram para o povo, tanto no tempo de seus
pais, quando apoiavam os Bourbon, o papa, os austríacos, quanto agora que
se dizem liberais, democratas, até mesmo republicanos. As multidões desta
praça conhecem a violência melhor do que qualquer outra pessoa: tornaram-
se especialistas por terem sido suas vítimas.
Há dezenas de exemplos. Em 11 de outubro, depois dos primeiros seis dias
de greve geral nos campos da região de Placência, em Mercore di Besenzone,
os irmãos Bergamasco atacaram com armas em punho uma multidão de
grevistas que invadira sua propriedade. Fogo aberto repetidas vezes, mirando
nas pessoas. Cinco mortos. Todos trabalhadores, diligentes, honestos, dóceis.
Em 26 de outubro, na Piazza di Stia, na província de Arezzo, o comandante
do quartel local dos carabineiros, sentindo-se subjugado pela multidão de
manifestantes socialistas, disparou à queima-roupa contra participantes. Duas
mulheres gravemente feridas, uma das quais, Rosa Vagnoli, morreu no dia
seguinte. Havia completado 18 anos. Em 11 de novembro, em Turim, o
motorneiro socialista Giovanni Cerea foi agredido com porretes e chicotes
por dois agentes de segurança pública só porque afixava manifestos eleitorais
de seu partido. Tentou fugir, caiu, eles o pisotearam. Como se fosse uma
câmara de ar caída de uma bicicleta, uma guimba, um objeto qualquer.
Deixaram-no em estado deplorável, morreu antes de chegar ao hospital.
Todos aqueles companheiros assassinados conheciam muito bem a
violência. E, além disso, a palavra “violência” já foi escrita com clareza na
moção vencedora no congresso de Bolonha que elegeu como secretário
Nicola Bombacci. Além disso, a guerra nunca acabou, esta paz tem todas as
características de uma trégua. E, na Piazza del Nettuno, há 100 mil
companheiros, talvez 200 mil, talvez mais. Não pode ser tudo uma farsa, uma
ilusão. A convicção no caráter decisivo dos acontecimentos é indubitável, a
fé no triunfo iminente do partido é absoluta. Os tempos estão maduros.
Então, Nicola Bombacci, em nome das vítimas dos irmãos Bergamaschi,
da camponesa de 18 anos Rosa Vagnoli, do motorneiro socialista Giovanni
Cerea, do partido, da convicção, da fé e do futuro, toma coragem e diz:
“Cortem minha cabeça se daqui a um mês eu não tiver obrigado o rei a
fazer as malas. Vocês terão que cortar minha cabeça se daqui a um mês
também não tivermos feito a revolução na Itália!”
O Congresso está convencido de que o proletariado deverá recorrer ao uso
da violência para a defesa contra as violências burguesas, para a conquista
dos poderes e para a consolidação das conquistas revolucionárias [...]. A
conquista violenta do poder por parte dos trabalhadores deverá marcar a
passagem do próprio poder da classe burguesa à classe proletária, instaurando
assim o regime transitório da ditadura de todo o proletariado.

Do programa do Partido Socialista Italiano,


congresso de Bolonha, 8 de outubro de 1919
Benito Mussolini
Milão, 17 de novembro de 1919

Um cadáver em estado de putrefação foi retirado das águas do canal.


Parece se tratar de Benito Mussolini.
Duas linhas de reportagem. O Avanti!, jornal dos socialistas que ele dirigiu
por anos, não dedicou à sua catástrofe mais do que duas linhas. E foram duas
linhas venenosas. Em contrapartida, na primeira página, embaixo do
cabeçalho, em letras garrafais, o triunfo deles é proclamado: “Nasceu a Itália
da revolução!”
No minúsculo escritório do diretor do Il Popolo d’Italia, sobe da rua o
vozerio da multidão que correu para o seu funeral. O corpo de Mussolini é
levado em procissão pelas ruas imundas do Bottonuto. Entoam-se aos berros
cânticos fúnebres em estridentes frequências de júbilo. As putas,
provisoriamente desocupadas por causa da barafunda que desencoraja os
clientes, observam desinibidas das portas dos bordéis.
Em sua miserável salinha, Mussolini, vivo, perambula como uma fera
enjaulada. Percorre todos cantos do ambiente, mas não avista brecha alguma
no muro da hostilidade universal. Toda vez que alguém bate à porta, encolhe
o pescoço e encaixa a cabeça entre os ombros para reduzir a superfície
corporal e se vira de súbito, movido pelo instinto de presa atacada. Depois,
assim que nota ter uma plateia, nem que seja somente um mensageiro,
recobra o autocontrole e ostenta indiferença. Para todos os que vêm verificar
as condições de saúde do morto que está vivo, solta alguma fanfarronice.
“Obtivemos poucos votos, é verdade, mas, em compensação, disparamos
muitos tiros de revólver.” Ou algo do gênero. Ri com escárnio até mesmo da
piada que já circula por Milão: “Com um maestro como Toscanini na chapa,
a sonata só podia ser excepcional.”
A verdade é que a derrota foi mortal para os fascistas, e a humilhação
pessoal para ele, que já se imaginava “o deputado de Milão”, foi
constrangedora. As eleições de 16 de novembro foram “vermelhas”. Os
socialistas receberam 1.834.792 votos, correspondentes a 156 parlamentares
eleitos. Um resultado triunfal, um presságio de revolução. O fracasso da
chapa fascista foi, inversamente, total: de cerca de 270 mil votantes do
colégio eleitoral de Milão, os fascistas obtiveram apenas 4.657 votos.
Mussolini obteve apenas 2.427 votos preferenciais. Nenhum dos candidatos
fascistas foi eleito. Nenhum. Nem sequer ele. Foi um fiasco completo.
Confessou apenas à mulher, mentindo a todos os outros: “Uma derrota
total. Não obtivemos sequer uma cadeira. Na Galleria, as pessoas avançaram
contra nós.” Foi obrigado a ligar para Rachele e tranquilizá-la quando
informaram que a galhofa do cortejo fúnebre encenado pelos socialistas havia
ficado de tocaia até mesmo embaixo da casa deles em Foro Bonaparte. “Aqui
está o cadáver de Mussolini!”, gritavam as pessoas e batiam contra o portão.
Atrás do seu caixão, outros dois caixões vazios acolhiam fantasiosamente os
cadáveres de Marinetti e D’Annunzio. Rachele, por sua vez, confessou ao
marido que havia se refugiado no sótão com as crianças. Parece que a
pequena Edda foi acometida por uma crise de nervos.
Os visitantes, como se fosse um funeral, continuam a afluir à sede do
jornal. É inútil tentar manter a porta fechada. Quando na rua estão tentando
enterrar até sua sombra, as pessoas vêm procurá-lo.
Para se mostrar inalterado, ele mandou lhe trazerem um copo de leite. Está
sentado atrás da sua mesinha de trabalho no cômodo despojado e manda
chamar Arturo Rossato, um de seus redatores, para que escreva com
caligrafia bonita os endereços do cardeal Ferrari e de Caldara, o prefeito
socialista de Milão, em dois pacotes redondos enrolados em papel-jornal. Ao
redor da sua escrivaninha, o ambiente passa a ideia de uma mudança
iminente. Da parede, pende somente um mapa da Itália com uma bandeirinha
tricolor espetada no local correspondente a Fiume. Sobre a mesa, em
contrapartida, destaca-se apenas o grande copo de leite e uma velha e
monumental pistola de furriel. Os gritos dos socialistas na rua se erguem
ameaçadores, Mussolini mexe o leite com lentidão estudada, toma-o gota a
gota, coloca-o sobre a mesa e volta a mexê-lo. As ondas de um branco
viscoso contrastam com o metal imóvel, escuro, da arma:
“Berram, gritam, fazem uma balbúrdia sem fim, mas, sem as gravatonas,
as bandeiras, sobra um bando de tolos. Eles nunca farão a revolução. Se esses
revolucionários da boca para fora não pagarem as promissórias, o povinho
vai protestar, e então vai ser uma lamaçal [...] como se costumava dizer nas
trincheiras. Há vitórias que valem tanto quanto uma derrota.”
Arturo Rossato, o redator que foi entregar os envelopes endereçados, nada
pode fazer além de concordar com as fanfarronices do chefe com um
movimento imperceptível da cabeça. Na rua, os gritos dos socialistas sobem
mais uma oitava.
“E não pense que eles virão aqui porque, como você está vendo, eu estou
morto. Já sou um homem sem sombra.”
Benito Mussolini para por alguns segundos, dando tempo ao redator para
ser invadido pela perplexidade. Mexe de novo o leite, recomeça: “Deram-me
por morto, mas por isso mesmo eles sabem que, se subirem, dou cabo de pelo
menos uns dois com esta pistola. E, se você não sabe, em Milão não existem
entre os afiliados do Partido Socialista dois heróis sequer que saibam
enfrentar o perigo. Um bando de tolos. São um bando de tolos. Por isso... eu
bebo leite.”
Do andar da administração, sobe Arnaldo Mussolini. Apesar de ser
habitualmente um homem afável, está furioso com o irmão:
“Mas então você é um delinquente, um verdadeiro criminoso!”, grita
Arnaldo sem se preocupar que o ouçam por toda a redação, e então segura a
cabeça com as mãos.
Os dois envelopes destinados ao bispo e ao prefeito de Milão contêm
bombas SIPE. Benito Mussolini cogitou enviá-las como represália à derrota
sofrida. Os endereços, escritos pela mão do redator, deveriam despistar o
inquérito dos investigadores.
“Uma bomba vale mais do que cem comícios.”
É o slogan que o jovem agitador possesso disparava nas praças
incandescentes da Romanha nos tempos em que pregava a revolução
socialista, um de seus antigos cavalos de batalha. Agora o homem maduro,
diretor de um jornal de tiragem nacional, enquanto seus velhos companheiros
cospem, na rua lá embaixo, no fantoche do seu cadáver, pronuncia aquele
mesmo velho slogan em voz baixa, sem trair a mínima emoção, para toda a
redação e para os Arditi em guarda atraídos pelos gritos de Arnaldo. Então,
Benito Mussolini, o terrorista, volta a mexer lentamente a colherzinha de
alumínio no leite. Não há mais nada para se ver. O espetáculo acabou.
Enquanto a pequena multidão se dispersa pelas escadas do balcão, Albino
Volpi puxa Arnaldo em um canto. Não há motivo para se preocupar,
tranquiliza-o. Uma bomba SIPE enviada por pacote, pelas características de
acionamento e detonação, não representa perigo algum.
Albino Volpi
Milão, 17 de novembro de 1919, 20h

A SIPE é uma granada de mão de fragmentação. Para acioná-la, após


retirar a tampa de proteção, deve-se esfregar a cabeça contra o acendedor ou
acendê-la direto com uma chama livre. Na guerra, costumava-se usar um
charuto. Como o seu raio de ação é superior à distância de lançamento, é um
artefato defensivo. Em geral, é usada para deter um ataque inimigo. O
petardo Thévenot, em contrapartida, é um artefato ofensivo. O raio de ação
limitado, sempre inferior à distância de lançamento de um bom arremessador,
permite dilacerar o adversário e permanecer incólume, ainda que lançado em
campo aberto. No momento do uso, é suficiente remover o pino. O impacto
com o solo ou com o alvo fará o resto. Trata-se, além disso, de uma bomba de
grande eficácia psicológica: a potente detonação atordoa e aterroriza. Uma
vez explodida, permite que o agressor dê cabo do inimigo com agilidade
usando a lâmina de uma faca.
O homem que às 19h está em pé sobre a Ponte delle Sirenette, no centro de
Milão, além de um punhal com cabo de madrepérola, leva na cintura duas
bombas Thévenot. Embora ninguém esteja olhando em sua direção, ele estufa
o peito e ergue o queixo como se estivesse posando para um fotógrafo.
Ninguém o nota, mas ele observa há meia hora o cortejo dos socialistas que,
na Via San Damiano, um pouco mais adiante e um pouco mais abaixo, festeja
a vitória eleitoral. Naquela margem do canal, milhares de pessoas cantam,
agitam bandeiras, comemoram. Homens, mulheres, crianças. Vindos da Via
del Verziere, desfilam há vários minutos e ainda não chegaram todos à sede
do Avanti!, onde o comício acontecerá.
Na ponte em arco rebaixado, em contrapartida, o homem está sozinho. Seu
rosto se encontra descoberto. Para chegar àquele ponto desde a sede dos
Arditi na Via Cerva sem ser visto, só precisou transpor o muro do Palazzo
Visconti e atravessar o jardim. Cinco minutos no total. Quatro estátuas de
ferro-gusa fundido colocadas nas extremidades do parapeito lhe fazem
companhia. As Sereias, que dão nome à ponte, levam nas mãos um remo.
Albino Volpi acaricia o cilindro de ferro de folha de flandres.
O homem solitário, ignorado pelo mundo, balança um pouco a cabeça. Não
é possível, são todos italianos, mas aqueles socialistas estão exaltando a
Rússia. São muitos, muitíssimos, poderiam formar um exército, mas não
marcham, arrastam-se, movimentam-se como um enxame, deslocam-se como
um rebanho. Suas bandeiras são vermelhas, os cravos na lapela são escarlate,
mas eles são desmazelados, descamisados, estão envoltos em confusas faixas
de pano. Causam asco, não têm dignidade alguma. São uma turba, e não um
grupo organizado, uma aglomeração de transviados. Uma orgia de cânticos,
de vinhos e de grapa, a esmo, uma horda de bandeiras vermelhas que
tremulam nas mãos de alferes cambaleantes. São magros, vacilantes, pobres,
diminutos e de físico desgastado, de mente desequilibrada, esfomeados e
famélicos, são bestas de carga. São animais, e não homens. Um rebanho de
ovelhas enfurecidas.
E há ainda aquele canto... “Bem unidos façamos, nesta luta final, de uma
Terra sem amos, a Internacional”... Aquele canto não tem nenhuma
exuberância, é solene, mas soturno, é baixo, terreno, empoeirado, o murmúrio
surdo da horda. De italiano, não tem nada, quem o canta é rebanho, não povo.
Sim, o canto... o próprio canto... é o pior. A monotonia marteladora que
parece evocar planícies sem fim, desertos, gente estrangeira, frio siberiano,
sopas de beterraba sem condimentos, estepes de fome infinita. Esse rebanho
asiático é a história?
Não pode ser, e, se for, é possível desviar seu curso. Está pronto para o
massacre, exposto a toda a violência.
Albino Volpi, os olhos sempre fixos na multidão, retira o cilindro de ferro
do cinto, remove a lingueta que bloqueia o percussor e estica os dois braços
perpendicularmente ao corpo. Fica naquela posição por alguns instantes, com
as asas abertas, inalando o ar úmido da noite, como se esperasse a corrente
atmosférica favorável para alçar voo. Em seguida, o equilíbrio se rompe, o
corpo se inclina, a mão direita embaixo, a esquerda no céu, a mola tensiona,
afrouxa, o tronco maciço se torna uma catapulta. A bomba voa, ignorada pela
multidão, desenhando um arco perfeito. A detonação é tremenda. Agora
ninguém mais canta. Berros, palavrões, gritos de feridos, lamentos às mães.
Agora o rebanho se dispersa.
O homem na ponte volta à sua posição de observador, os braços relaxados
nas laterais do corpo. Ele só precisa de um olhar rápido para avaliar a
situação: um só homem pôs milhares em fuga. Está escuro demais para contar
os mortos, mas isso não lhe interessa. A humanidade surge diante dele
dividida de acordo com suas atitudes em relação aos estilhaços de metal. O
veterano avalia os candidatos a fazer história com base em suas reações a um
bombardeio. Quem esteve no front se agacha de imediato em posição fetal, os
braços cruzados sobre o ventre. Reduz-se prudentemente ao mínimo animal
necessário para proteger as partes moles. Os outros, todos os outros, fogem
desabalados na ilusão de que a posição ereta poderá salvá-los.
Lá embaixo, na Via San Damiano, pouquíssimos se agacham. São quase
todos operários, e os operários não foram para a guerra com a desculpa de
que tinham que fazer as fábricas funcionar. Um rebanho de refratários.
Merecem o terror psicológico.
Albino Volpi empunha um segundo cilindro de ferro e abre novamente os
braços.
O gesto de um exaltado

Um cortejo socialista havia parado na Via S. Damiano,


embaixo das janelas do Avanti!, para aclamar um discurso de
Serrati celebrando o socialismo. O cortejo estava se
recompondo e voltando a se deslocar quando, segundo o
primeiro relato, um desconhecido, na altura da ponte de ferro-
gusa, lançou na direção da frente do cortejo um objeto que, ao
tocar o solo, explodiu; os estilhaços, da distância de 20 ou 30
metros, atingiram os primeiros manifestantes. Em meio ao
pânico que se seguiu, ergueram-se dos feridos gritos de dor e,
enquanto alguns companheiros prestavam socorros, outros
tentavam seguir o desconhecido, que logo desapareceu na
escuridão [...]. O gesto desajuizado de um exaltado, que
parece ter usado um petardo Thévenot, causou, assim que veio
à tona, indignação geral.

Corriere della Sera, 18 de novembro de 1919


Milão, 18 de novembro de 1919

Todos são presos em 18 de novembro de 1919. A linha dura do governador


da província de Pesce é ditada pelo presidente do Conselho, Nitti, que, de
manhã, telegrafou a Milão: “Quem guarda granadas deve, a priori, ser
considerado um criminoso.”
Primeiro, é a vez da sede da Associação dos Arditi, na Via Cerva, onde são
confiscadas numerosas granadas SIPE, Thévenot, revólveres, caixas de
munição, punhais e maças reforçadas. A busca se conclui com a prisão do
capitão Ferruccio Vecchi, Piero Bolzon e Edmondo Mazzucato. Albino Volpi
e outros veteranos suspeitos de estar entre os perpetradores do atentado na
Via San Damiano conseguem evitar a captura fugindo pelos telhados.
À tarde, após uma irrupção na sede do Fascio di Combattimento no
número 16 da Via Silvio Pellico, e depois que uma delegação de socialistas
composta por Treves, Turati, Serrati e pelo prefeito Caldara foi até a sede do
governo provincial exigindo o banimento dos Arditi da cidade e a dissolução
dos Fasci di Combattimento, é a vez do Il Popolo d’Italia. Os agentes de
segurança pública encontram, escondidos em um aquecedor, 13 revólveres
novos de vários calibres, 419 cartuchos, e um lança-foguetes usado
recentemente. Umberto Pasella, Enzo Ferrari, Filippo Tommaso Marinetti são
presos. Todos são acusados de atentado à segurança do Estado e formação de
quadrilha. Benito Mussolini é transferido para o cárcere de San Vittore.
Ocupará a cela número 40. Permanecerá lá apenas 24 horas.
Em 19 de novembro, após ter sido submetido a interrogatórios, ele é
liberado após um telefonema de Luigi Albertini a Nitti. Albertini, senador do
Reino, grande burguês, proprietário e diretor do Corriere della Sera,
convencido de que o destino do fascismo está marcado pelo desastre eleitoral,
para convencer o presidente do Conselho a liberar Mussolini, usou um
argumento típico do pensamento liberal do qual ele é um dos principais
expoentes italianos: “Mussolini é uma ruína, não façamos dele um mártir.”
Os núcleos prontos para a ação estavam na mente de Mussolini e em
seguida tornaram-se realidade prática: punhados de cidadãos e Arditi
afiliados aos Fasci di Combattimento, audazes e impávidos, que os próprios
Fasci deviam utilizar, lançando-os, armados, nas manifestações de rua no
momento oportuno [...]. No fim, averigua-se a existência de uma organização
de tipo militar, a existência no seio de tal organização de uma verdadeira
hierarquia de chefes e assistentes [...] averigua-se que o estilo das reuniões, o
teor das ordens, os meios bélicos de sinalização têm caráter militar, que
muitas das armas usadas pelos assistentes são militares, que alguns dos
oficiais e assistentes desses corpos fascistas armados foram mandados para cá
pelo Comando Militar de Fiume. Sejam quais forem as aspirações dos
diretores e dos componentes da organização, é certo, portanto, que um corpo
armado foi constituído no seio dos Fasci di Combattimento em Milão não
apenas contra as leis do Estado, não apenas com a tendência à usurpação dos
poderes de polícia, mas com o deliberado propósito de cometer delitos contra
as pessoas.

Denúncia do Chefe de Polícia Giovanni Gasti à


Procuradoria de Milão,
21 de novembro de 1919
Quando Mussolini estava no auge, ninguém ousava tocá-lo:
hoje o prendem porque parece menos forte. Não podemos
aprovar uma política desse tipo, inspirada não pelo respeito à
lei, mas pelo oportunismo.

Corriere della Sera, 19 de novembro de 1919

Uma rajada atingiu o fascismo, mas não conseguirá


arrebentá-lo.

Benito Mussolini,
Il Popolo d’Italia, 20 de novembro de 1919
Nicola Bombacci
Roma, 1o de dezembro de 1919
Montecitório

No dia em que o novo Parlamento do Reino da Itália é inaugurado, todos


estão distraídos.
Os deputados socialistas recém-eleitos admiram o majestoso friso pintado
por Aristide Sartorio para decorar o novo plenário do Parlamento. Cinquenta
telas com quase 4 metros cada, nas quais foi empregada a inovadora técnica
de encáustica, estendem-se por mais de 100 metros de largura e são
posicionadas a 20 metros de altura sobre o semicírculo. Um segundo céu de
cores deslumbrantes em que vivem mais de duzentas figuras, entre homens,
mulheres, crianças e animais, em matizes de verde, cor-de-rosa, laranja e
branco, graças a uma mistura de óleo e cera, tonalidades quentes e pastosas
obtidas espremendo-se o tubo inteiro, iluminadas pela luz natural do primeiro
céu, o céu de Roma, que escorre pelo velário. Um triunfo de imagens
alegóricas representando as virtudes da jovem Itália e os episódios notáveis
da história de seu povo ao despertar. Todas aquelas duzentas figuras de
gigantes, com uma predileção pelos nus viris e pelos cavalos em galope sobre
os pedestais, brilham ofuscantes e parecem avançar imponentes.
A 20 metros abaixo, os legítimos representantes daquele povo glorificado
percorrem com o olhar aquela epopeia espetacular procurando a si mesmos.
São 156 deputados socialistas, quase todos sentam-se pela primeira vez no
Parlamento da Itália, e muitos deles são filhos de operários, carroceiros e
trabalhadores rurais que, em toda a vida, nunca admiraram uma tela pintada a
não ser nos altares de uma igreja. Os filhos daqueles súditos miseráveis e
analfabetos hoje encontrarão pela primeira vez sua majestade o rei, que foi
inaugurar a nova legislatura com o costumeiro discurso da Coroa. À espera
de Vítor Emanuel III, está o trono real, disposto no lugar da mesa da
presidência, protegido dos dois lados por dois guardas do regimento dos
Cuirassiers com a espada desembainhada. Pela primeira vez na história, o
povo vivo está prestes a encontrar seu soberano pessoalmente, em carne e
osso, de homem para homem. É o momento culminante da epopeia, a única
tela que ainda falta ao admirável friso pintado por Sartorio.
O discurso do rei está previsto para as 10h30, mas os representantes do
povo, para não serem pegos de surpresa pelo evento, afluem às cadeiras do
Parlamento desde as 9h. Os socialistas ocuparam em massa, em um plenário
ainda vazio, os primeiros três setores à esquerda. Todos usam um cravo
vermelho na lapela do paletó. Os deputados reeleitos, que no passado haviam
se sentado daquele lado, reclamam ao encontrar suas cadeiras ocupadas. Não
há nada a ser feito. Até mesmo Giovanni Giolitti, veterano e figura dominante
da vida parlamentar nos últimos trinta anos, ao entrar no plenário pouco antes
das 10h, teve de se conformar em abandonar seu lugar de costume no terceiro
setor à esquerda. Hoje a esquerda inicia uma nova história e carrega na lapela
um cravo vermelho. Não há lugar para Giolitti.
Às 10h05, chega o deputado Vittorio Emanuele Orlando, o presidente da
vitória sobre os austríacos, e vai se sentar no quarto setor após apertar a mão
de Giolitti. Pouco depois, entra o deputado Bissolati trajando uma
sobrecasaca. O ex-presidente da Câmara atravessa o semicírculo com passo
um pouco incerto e se dirige à mesa das Comissões, logo festejado pelos
velhos parlamentares de Montecitório. Os setores à esquerda já estão
apinhados, aqueles à direita demoram a encher, na tribuna do corpo
diplomático notam-se a duquesa Di Laurenzana, a marquesa Salvago Raggi,
o ministro da Romênia, os embaixadores da Espanha, da Polônia, da Bélgica
e muitos outros.
Quando, às 10h28, um pajem real abre a portinha à direita, todos estão em
seus lugares. Diante do rei, cerca de quinhentos representantes da nação estão
presentes. Todos os senadores e todos os deputados se levantam e aclamam,
gritando em uníssono: “Viva o rei!” Todos, exceto os cravos vermelhos nos
três setores à esquerda do semicírculo, que permanecem sentados.
Vendo de relance, a cena é estridente, a manifestação de afeto do
Parlamento é barulhenta, e a defecção ainda passa despercebida. Vítor
Emanuel III recebe o aplauso dos parlamentares, faz reverência várias vezes,
está comovido. Senta-se no trono. Nitti, Presidente do Conselho, dirigindo-se
à assembleia, pede que deputados e senadores se sentem.
Então, os cravos vermelhos se levantam. Faz-se silêncio. Todos ficam
atônitos por alguns instantes, os Cuirassiers apertam a empunhadura dos
sabres, aí entendem o que está acontecendo: os socialistas estão simplesmente
indo embora. O povo se recusa a encontrar seu rei. Renega-o.
Nicola Bombacci, os cabelos desalinhados e a barba por fazer, marcha à
frente dos dissidentes. Enquanto passa diante do trono, encara o soberano e
grita: “Viva a república socialista!” Seu sucesso pessoal na circunscrição de
Bolonha foi enorme. Alguns jornais o definem como “o rei das preferências”.
Só com ele, sem contar todos os outros parlamentares socialistas, saem de
Montecitório mais de 100 mil italianos. O rei se vê pronunciando o discurso
da Coroa em um plenário quase vazio.
A cena é memorável; seu efeito teatral, fortíssimo. Os deputados
dissidentes, lá fora, na Piazza di Montecitorio, regozijam, se congratulam e se
abraçam. Suas risadas são genuínas, despreocupadas. O sonho de uma vida
livre e justa se realiza. No morno sol de inverno de uma praça romana, neste
momento, são os representantes de um povo que voltou a ser criança. A
alegria dura alguns instantes. Pouco depois, deputados e senadores percebem
com perplexidade que não têm nenhum projeto para o resto do dia. Os
socialistas conquistaram a Itália, mas não sabem o que fazer com ela.
Uma vez que aqueles homens não sabem o que fazer, são espancados.
Bandos de nacionalistas começam a espancá-los já no início da tarde. São
perseguidos pelas ruas de Roma, agarrados pelas gravatas pretas de
republicanos e obrigados a gritar “viva o rei!”. No início da noite, a
pancadaria continua com a estreia dos guardas régios, o novo corpo de polícia
recém-constituído para manter a ordem pública. Giacinto Menotti Serrati,
líder do partido, é levado à força para a chefatura de polícia e coberto de
socos.
Do lado socialista, como sempre, é proclamada a greve geral. A primeira
vítima é registrada no dia seguinte na Piazza Esedra. Trata-se de Tiberio
Zampa, operário da tipografia do Avanti!, com 23 anos.
As fábricas param novamente. Milão dorme mais uma vez com as armas
aos pés, à espera da revolução. Respira-se, escreve Claudio Treves, um ar
cheio de um frenesi acre, um vento de terrorismo. Bombacci declara que a
revolução é uma necessidade histórica, que o Parlamento é um resquício do
passado e que é seu dever dar os últimos golpes da picareta. A declaração é
feita de sua cadeira parlamentar.
Ao fim da greve geral, conta-se uma dezena de mortos entre Turim, Milão,
Adria, Módena. Juntam-se às 110 mortes resultantes, ao longo de 1919, dos
confrontos de rua entre socialistas e as forças de segurança. Encerra-se com
esse balanço o primeiro ano de paz.
Gabriele D’Annunzio
Fiume, 18 de dezembro de 1919

O Comandante está sozinho na sala de comando. Ao raiar do dia, depois


que Lilì de Montresor, uma cantora em voga nos cafés da cidade, saiu por
uma portinha secreta levando na bolsa 500 liras retiradas da verba do
comando, D’Annunzio ordenou que não deixassem entrar ninguém até
receber notícias.
Vigiando sua solidão no vestíbulo está Tommaso Beltrami, integrante da
guarda pessoal do poeta organizada por Guido Keller, que recrutou os
homens da companhia “Disperata”, uma formação de voluntários sem
documentos que passam os dias acampados nos canteiros navais bebendo,
cantando e mergulhando nus das proas dos navios paralisados pelo embargo.
Beltrami, ex-Ardito e ex-sindicalista, é considerado por alguns um verdadeiro
líder do bando irregular, e, por outros, um cliente de putas, jogador
inveterado e cocainômano. Ambas as coisas são provavelmente verdadeiras.
Atrás do portal guardado por Beltrami, D’Annunzio espera o resultado do
plebiscito popular convocado para decidir se aceita o “modus vivendi”, um
acordo proposto pelo governo Nitti. Está vestindo seu uniforme preferido, o
da “santa marcha” da noite de Ronchi, o uniforme branco imaculado com as
lapelas levantadas dos lanceiros de Novara. No bolso, carrega uma cânula de
prata.
Com o “modus vivendi”, o governo italiano, em troca do fim da ocupação,
se comprometeu a prestar honrarias de guerra aos legionários de D’Annunzio
e a controlar a cidade com tropas regulares em vista da sua anexação. Os
jovens turbulentos da guarda pessoal do Comandante consideram-no um
ignóbil embuste; os integrantes mais maduros de seu estado-maior, uma
retirada honrosa. Também neste caso, provavelmente, ambas as coisas são
verdadeiras.
Em 14 de novembro, D’Annunzio saiu de Fiume e encaminhou-se para
Zara. Sua entrada na outra cidade disputada pela Itália e pela Iugoslávia foi
triunfal, a população o acolheu como herói, ele estendeu ali também a
bandeira de Giovanni Randaccio para a multidão, e todos se ajoelharam na
lama diante dela. Pareceu, por um instante, que o projeto de levar a chama de
Fiume ao mundo não era o delírio de um poeta inebriado por si mesmo. A
“grande Itália” da pequena Fiume sentiu-se mais uma vez pronta para
desafiar os Estados Unidos, na sala de comando voltaram a projetar a marcha
sobre Roma. “Marchar, e não murchar”, gritaram.
Dois dias mais tarde, no entanto, chegaram de Roma os resultados das
eleições políticas nacionais. Os socialistas venceram, o orgulho nacional
passava para segundo plano em relação ao pão e à renda, o odiado Nitti foi
confirmado presidente do Conselho. A Itália poderia viver sem a glória de
D’Annunzio, mas não poderia sobreviver sem o dinheiro dos Estados Unidos,
tal era a resposta das urnas.
Enquanto isso, em Fiume, onde dos 30 mil adultos aptos a trabalhar 6 mil
se encontravam desempregados, a população começava a sentir os efeitos da
ressaca. O Comandante, então, autorizou seus tenentes a reiniciar as tratativas
com a latrina de Roma. Chegou a proposta do “modus vivendi”, e ele delegou
a decisão ao Conselho Nacional de Fiume. Em 15 de dezembro, após várias
reuniões, o Conselho aceitou a proposta de Nitti com 46 votos a favor e
apenas 6 contra. A epopeia da rebelião de Fiume estava, portanto, prestes a
terminar. O espírito estava se ofuscando.
Todavia, assim que a notícia da deliberação favorável ao acordo se
difunde, uma massa tumultuosa de legionários e civis, sobretudo mulheres, se
aglomera sob a sacada do palácio. Gritos de traição, convocações à
insurreição, milhares de vozes chamam o Comandante ao parapeito.
Novamente a praça, novamente o clamor, o Parlamento ao ar livre.
D’Annunzio surge, muito pálido, com folhas soltas na mão. Não declama,
mas lê, como um estudante, o texto do “modus vivendi”, o acordo proposto
pelos politiqueiros romanos. Na praça, cada cláusula do acordo é aclamada
com um simples “sim” ou rejeitada com um “não”. Ao fim da leitura, o
espírito se reacendeu. O Conselho da cidade já aceitou o acordo com ampla
maioria, mas aqui na praça o espírito sopra, a democracia é direta.
D’Annunzio incita o frenesi da multidão:
“É o que vocês querem?”
A resposta negativa é unânime. Anexação, liberdade, resistência.
“Mas a resistência é sofrimento. É o que vocês querem?” É o que eles
querem.
D’Annunzio convoca um referendo para o dia 18. Se o povo não julga que
as armas e o empenho dos legionários sejam indispensáveis para honrar o
juramento, que o expresse abertamente. Ele manda desfraldarem a bandeira
de Randaccio e convida os Arditi a entoar seus cânticos de guerra. A praça
explode em outra manifestação de entusiasmo que vai até a madrugada. A
decisão de aceitar o “modus vivendi” é entregue a um referendo popular.
Agora, dois dias após aqueles entusiasmos na praça, o Comandante
aguarda sozinho que a voz do povo o alcance. Deve esperar até a noite. Do
outro lado do portal protegido por Beltrami, transpiram desde cedo notícias
de episódios de violência. Os legionários estão atrapalhando a votação livre.
Em várias seções, invadiram os locais de votação, impediram o trabalho dos
apuradores, violaram as cédulas. Contudo, antes do pôr do sol, o resultado
surge inequívoco: a grande maioria dos fiumanos é favorável ao “modus
vivendi” proposto por aquele porco do Nitti. D’Annunzio pede outra vez para
ficar sozinho.
A voz de Fiume tornou-se áspera, transformou-se, e o Comandante não a
reconhece mais. A pestilência romana infectou sua água; a boca ficou
amarga; a garganta, seca. Fiumanos, irmãos, por que esses gritos, por que
essa angústia? Por que os companheiros heroicos estão tristes? Passaram de
um erro a outro, de uma violência a outra, de uma treva a outra. Não saíram
vivos dos comícios sem luz.
Diante do poeta-guerreiro, a faixa de pó branco se destaca sobre os veios
escuros da mesa de castanheira. A cânula de prata absorve a luz sob o olhar
composto dos solenes retratos de velhos governadores magiares. Inalado o
pó, as narinas coçam, ardem, os capilares sangram. O aumento de dopamina
nas sinapses cerebrais traz de volta a coragem do aviador em voo sobre
Viena.
As percepções tornam-se mais aguçadas, a reatividade cresce, o sono, a
fome, a sede desaparecem, a euforia aumenta, a libido volta. O Comandante
é, mais uma vez, incansável.
D’Annunzio convoca sua guarda pessoal e ordena que o referendo em
andamento seja anulado. Essa democracia, no fundo, é só um equívoco
pequeno-burguês.
Leandro Arpinati
Lodi, 18 de dezembro de 1919

Leandro Arpinati é solto na manhã de 18 de dezembro com mandado de


liberdade provisória. Ficou 36 dias na cadeia, na cela no 22, compartilhada
com Arconovaldo Bonaccorsi. Foi trancafiado ali em 13 de novembro, após a
malfadada noite no Teatro Gaffurio.
Na véspera das eleições, cerca de sessenta homens foram de Milão a Lodi
em três caminhões militares. O bando de sempre: oficiais do Exército
uniformizados, Arditi, futuristas, fascistas. Mussolini e Baseggio deviam
discursar, mas foi decidido que era melhor não arriscar. Três dias antes, em
Lodi, naquele mesmo teatro, os militantes socialistas impediram o comício do
candidato fascista.
Assim que chegaram à praça, Arpinati e os outros fascistas da comitiva
logo perceberam que também naquela noite teriam de combater para
conseguir falar. O Teatro Gaffurio estava barrado e protegido por uma
multidão de mil “vermelhos” decididos a impedir o comício. A desproporção
numérica era de dez para um, mas isso nunca foi um bom argumento para
impedir os rapazes de Arpinati, armados até os dentes.
Logo que Salimbeni, um fascista local, subiu ao palco para apresentar os
oradores, a galeria ocupada pelos socialistas começou a praticar tiro ao alvo.
Por alguns instantes, entraram correndo dando socos e atiraram objetos.
Enfim, o de sempre. Do alto, caiu sobre o palco um beiral de madeira
arrancado da galeria. Então, os Arditi sacaram os revólveres.
Nenhum de seus homens de Bolonha disparou na direção das pessoas. Ou
pelo menos foi o que pareceu a Arpinati: quando explode a confusão, não se
pode ter certeza de nada. Bonaccorsi — um esquentado, ex-alpino, 20 anos
recém-completados, um guerreiro na flor de seus anos violentos —, por
exemplo, foi condenado a nove meses de prisão. Arpinati e Bonaccorsi
chegaram juntos de Bolonha, mas o outro não retornaria com ele.
Enquanto isso, para voltar para casa, Arpinati precisou pedir o dinheiro da
passagem a Umberto Pasella, o secretário dos Fasci di Combattimento. No
momento da prisão, ele tinha no bolso 150 liras; agora, nem essas lhe
sobravam mais. Enquanto estava na cela, as Ferrovias comunicaram que ele
havia sido colocado em licença não remunerada até que tivesse resolvido suas
pendências judiciais. Também se viu fora da universidade porque o prazo
para a matrícula no segundo ano de engenharia venceu enquanto ele estava na
cadeia. As eleições que desencadearam toda aquela barafunda foram um
desastre. Enfim, não lhe restava nada. Nem sequer os cabelos. Para se
defender dos piolhos, também precisou cortá-los rente, como na sua
adolescência, em agosto de 1914, durante os confrontos de rua com os
anarquistas intervencionistas, quando os raspava para evitar que algum
socialista imobilizasse sua cabeça enquanto outro esmurrava sua cara.
Agora tinha perdido tudo. Restava apenas aquela moça, a Rina. Ele a
conhecera na Ars et Labor, a escola noturna. Ela trabalhava na prefeitura, no
departamento de despesas, e só podia estudar à noite. Os amigos o
aconselharam a manter distância porque ela parecia fria como um dia de
fevereiro na terra gelada de uma planície do interior. Caminhava ereta,
medindo os passos, quase enojada, como se tivesse medo de escorregar em
um chão alagado pela ruptura de um esgoto. Era escrupulosa, concentrada,
fazia perguntas aos professores o tempo todo, até sobre questões banais,
como se estivesse sempre esperando das respostas o sentido da vida. Uma
verdadeira desesperada.
No entanto, a beleza altiva daquela moça triste atingira Leandro como um
tapa na cara. Era uma beleza absoluta, daquelas que não fazem concessões
aos prazeres do mundo. Ficaram noivos.
Foi Mussolini em pessoa que enviou a ela um telegrama para comunicar a
notícia da prisão: “Leandro preso por acontecimentos Lodi. Confio soltura
em breve. Atenciosamente. Mussolini.” Foi a ela que o advogado Mario
Bergamo se dirigiu para obter o dinheiro para a defesa. E também foi a ela
que o outro advogado, Cesare Sarfatti, escreveu para informar sobre o
desenrolar do processo.
Mas as coisas estavam demorando, e ele se convenceu de que ela, com
razão, o largaria. Rina Guidi, em vez disso, cuidou de tudo. Foi até Milão no
início de dezembro, encontrou-se com Mussolini na sede do jornal, com
Sarfatti em seu escritório, depois foi até Lodi visitar o noivo na prisão. No
locutório, a moça triste não derramou uma lágrima sequer. Uma vocação
clara à infelicidade. Leandro voltaria para ela.
Benito Mussolini
Milão, dezembro de 1919

Não tem mais ninguém, todos foram embora. É domingo à noite, um


domingo de inverno na neblina do Vale do Pó.
Na redação, sobraram apenas Nicola Bonservizi, Cesare Rossi e ele, é
claro, o diretor, que fica agarrado à sua escrivaninha como ao destroço de um
naufrágio.
O pátio de acesso à redação do Il Popolo d’Italia tem a solidão metafísica
de um local evacuado após um terremoto. Até os Arditi da segurança
desapareceram, talvez estejam cochilando no acampamento improvisado no
porão, talvez tenham ido visitar a mãe. De vez em quando, um cortejo de
socialistas ainda passa gritando na Via Paolo da Cannobio, mas os fascistas
desarmados não parecem mais uma ameaça, nem dignos de ser ameaçados.
Ninguém mais vai visitar o diretor, ninguém mais escreve para ele, e as
saletas da redação parecem se expandir na desolação rarefeita de um deserto
africano.
Vive-se um dia de cada vez. Arnaldo o chamou em um canto para uma
conversa reservada. As vendas despencaram, os contínuos expedientes
financeiros não bastam, chovem credores, precisam reabastecer o estoque de
papel. Naquelas condições, o jornal pode continuar as publicações por vinte
dias, não mais. Ele mostrou serenidade. “Tudo bem”, respondeu ao irmão,
“avise-me com uma semana de antecedência, assim dividimos as cadeiras
entre os redatores e encerramos o negócio.” Os redatores... outra humilhação.
Em 5 de dezembro, Mussolini precisou suportar um interrogatório de cinco
horas sob a acusação de formação ilegal de quadrilha. Ao voltar, encontrou as
cartas de demissão de Rossato e de Capodivacca, que estavam com ele desde
a fundação do jornal. Declaravam um “enorme cansaço”, mas, na verdade,
queriam discutir a linha editorial. O diretor os mandou para o inferno.
Após a ruptura, os dois redatores rebeldes, mesmo sabendo que não havia
uma lira no caixa do Il Popolo d’Italia, apresentaram recurso aos árbitros da
associação lombarda de jornalistas para obter a indenização por demissão.
Agora ele terá de responder por isso também. Os encarregados de Nitti, nesse
período, continuam a lhe propor exílios vantajosos e grotescos, como a ideia
de ir estudar in loco as repúblicas autônomas da Rússia meridional. Há bons
negócios por lá, dizem com uma piscadela. Até os empregados dos correios
debocham dele. Um deles se recusou a emitir uma ordem de pagamento em
seu nome fingindo não reconhecê-lo. Umberto Pasella, confidencialmente,
confessou-lhe o verdadeiro número dos Fasci di Combattimento: são 37
seções com 800 inscritos.
“Traidor, porco, putanheiro!”, sibila a voz estridente da mulher como um
morteiro antes de explodir no pátio deserto. O vazio serve de caixa de
ressonância.
Lá vamos nós mais uma vez. É novamente Ida Dalser, a louca tridentina.
Dessa vez, porém, arrastou consigo o filho, Benito Albino. A mãe segura a
criança contra o próprio corpo, entre as pernas, como aconselhado aos pais na
presença de animais ferozes para evitar que os filhos, nas pupilas dos
predadores, pareçam caça de pequeno porte. Mas, nessa savana de vielas
imundas, a fera parece ser ela. Dalser grita como uma possessa:
“Explorador, porco, assassino!”
Enquanto Benito Mussolini permanece agarrado à sua escrivaninha, do
pátio, a ex-amante, diante de filho, de seus colaboradores e de um esquadrão
de Arditi, acusa-o de ser sustentado e de nunca ter devolvido o dinheiro que
ela emprestou quando ele era um pé-rapado ambicioso, chama-o de bígamo
por ter se casado com ela e tê-la abandonado. O pátio se enche de velhas
vizinhas fofoqueiras, moleques de rua, larápios, prostitutas e cafetões. É
domingo à noite: os clientes de uma taberna próxima, já embriagados, correm
até lá em massa. Cesare Rossi e Bonservizi descem para acalmar a mulher.
“Está se escondendo, não é? Venha aqui fora se tiver coragem! Desça para
beijar seu filho. Covarde!”
Ao som daquele insulto, insuportável para qualquer homem adulto que
quer manter o respeito diante de seus semelhantes, o corpo do menino
responde a um impulso de fuga. A mãe o agarra e o põe de volta no lugar.
“Maldito Senhor!”, dispara em dialeto.
Agora, o romanholo filho do ferreiro de Dovia desce correndo a escada em
caracol praguejando a Deus. Berra que quer acabar com aquilo de uma vez
por todas. A suspeita de covardia, como sempre, mexeu com ele; o público
numeroso, como sempre, deu-lhe coragem. Entretanto, sabe-se lá por que,
Mussolini empunha uma minúscula pistola, uma arma de bolsa, parece um
revólver de brinquedo. Vendo-o com aquele pequeno objeto na mão, pode-se
pensar que talvez seja um presente para o filho bastardo.
Cesare Rossi consegue bloquear o fundador dos Fasci di Combattimento
antes que ele faça uma bobagem. Em seguida, repreende-o asperamente.
Mussolini, arrependido, murmura algumas palavras incompreensíveis e volta
para o escritório. Dois guardas de patrulha no Bottonuto arrastam para fora
dali Ida Dalser e o pobre Benito Albino. Ela os segue satisfeita. O drama
acabou.

***

Tocam o barco. É sempre assim: a cada dois dias, um drama, uma greve,
um conflito, durante meses ou anos, com mortos, feridos, mães
enlouquecidas, crianças destruídas. Mas, então, tem sempre um hotelzinho
onde um homem se consola, os finais de tarde miseráveis que voltam a
suscitar o sentimento aventureiro da vida. Um desses momentos ocorreu na
Piazza Fontana, do lado direito de quem vem do Duomo, a dois passos do
jornal. Leva até lá a menina, Ceccato, sua ex-secretária, beija-a na rua,
despudorado; ela o adverte satisfeita (“Mas, Benito, ainda é dia claro, e as
pessoas nos veem!”). A dona do hotel se tornou quase uma amiga, uma
cúmplice daqueles clientes habituais (“A senhora não teria por acaso um
refúgio para estes pobres peregrinos que vêm de longe e estão muito
cansados?”).
Com a menina, o derrotado reencontra sua exuberância. No crepúsculo de
dezembro, ri como um louco, ele que raramente ri, e se deixa levar pela
volúpia do desastre (“Não me importa, querida: só você poderá dizer ao
mundo, amanhã, o que Mussolini fazia com seu cargo de deputado!”). Tendo
com ela com a fúria de sempre, ele se exalta na teoria da própria solidão,
afirma que nunca desfrutou tanto da própria condição de rejeitado, que ama
aquela vida esculachada e soberba, que reencontrou o gosto pela luta. Chega
até a compartilhar com a garota sua análise política: o sucesso dos socialistas
os esmagará sob o peso de suas promessas. Comprometeram-se demais na
campanha eleitoral, gritaram demais “Viva Lênin!” e agora precisam se
mexer para fazer a revolução. No ciclo das metamorfoses, quem não age
morre, e eles não vão agir porque não têm nenhuma capacidade
revolucionária. Apresentaram-se no Parlamento como os novos “selvagens”,
mas são guiados por gente como Bombacci, uma fera inócua que pertence à
espécie daqueles eternos doentes que enterram os sadios. Deem-lhe somente
um pouco de tempo e, quando a maré socialista refluir, é ele quem vai
mostrar o que é um verdadeiro selvagem. E, de qualquer forma, ninguém
poderá acusá-lo de não ter encarado a fera triunfante do socialismo.
Depois, ele adormece ao lado dela no quartinho da Piazza Fontana. Ela está
no sétimo céu. Estão distantes os tempos em que ele a obrigava a abortar nas
mãos de uma parteira em um hotelzinho na Ligúria, em um lugar na costa na
baixa temporada. A garota agora está feliz. “Tenho ao meu lado o homem
mais inteligente do mundo!”, anota em seu diário.
Com Margherita Sarfatti, por sua vez, Mussolini se abandona ao desânimo.
Diante daquele corpo maduro de mulher e intelectual que o satisfaz e o
desafia, o homem sucumbe ao peso das recriminações, dos sustos, ao
espetáculo mesquinho dos abandonos, das fugas, das inércias e das covardias.
Se com Bianca o fanfarrão empolgado se exalta, com Margherita o
melancólico se confessa. Diz que se sente levado de novo ao ponto de
partida, que não se sentia tão miserável desde que, na condição de emigrante,
dormia embaixo das pontes na Suíça, cede a crises de descontentamento.
Proclama que está a ponto de mudar de ofício. É jornalista há tempo demais.
Poderia ser pedreiro — leva muito jeito! —, ou então aproveitar as aulas de
piloto de aviação ou, talvez, rodar o mundo com o seu violino. Caso não seja
bem-sucedido como cantor errante, pode ainda se tornar ator ou autor. Já tem
na cabeça um drama em três atos, A lâmpada sem luz. Recebeu propostas de
um empresário. Quinze dias em isolamento e o escreve de uma só tacada. O
cruzeiro das profissões imaginárias — sabe-se lá por quê — sempre termina
na de romancista. Também tem três títulos prontos: Vocação, a noite de Natal
na cela de uma jovem monja; Os portadores do fogo, drama passional; A luta
dos motores, sem sombra de trama amorosa. Enfim, alguém como ele sempre
encontra do que viver.
Ela, sentindo o homem em quem apostou próximo do fracasso, uma noite o
pune. É uma ocasião na qual a sra. Sarfatti recebe convidados no salão de seu
palácio no Corso Venezia. Lá estão todos, Marinetti, a poeta Ada Negri,
Umberto Notari, Guido da Verona, artistas, poetas, pintores, literatos,
jornalistas e empresários. Lá está, sobretudo, Arturo Toscanini, que anunciou
o desejo de revelar um jovem violinista de talento extraordinário, um rapaz
de apenas 19 anos, natural da Boêmia, e que foi parar em Milão por acaso. A
expectativa é grande porque o “maestro” é um notório, cruel, caprichoso
perfeccionista, capaz de expulsar de repente do Scala instrumentistas
renomados.
Naquela noite, porém, Toscanini está de ótimo humor, nem um pouco
ressentido pela derrota eleitoral. Antes de ocupar o palco, até se aproxima da
poltrona de Mussolini, à margem de todos, para garantir que ele depositará a
contribuição prometida de 30 mil liras. Aí é a vez de Vasa Prihoda, o jovem
prodígio com passado misterioso. A atuação dele é brilhante, o aplauso,
estrondoso; seu futuro está garantido. Os garçons já se preparam para servir
os licores.
Mas a dona da casa bate em uma taça de cristal com uma colherzinha de
prata. Quando todos silenciam, Margherita Sarfatti lembra que há um
segundo violinista no salão e pede que Mussolini se exiba. Todos estão a par
do relacionamento dos dois, sabem que ele é um medíocre amador e fingem
compaixão por aquela ridicularização entre amantes.
Ele murmura alguma coisa a respeito de se sentir indisposto. Ela insiste,
em pé, enquanto ele permanece sentado. A anfitriã, com a cordialidade
venenosa de quem foi ultrajada por uma visita mal-educada, pede mais uma
vez para que ele toque algo para ela.
Dois minutos depois, o mal-educado está na rua. Está sozinho. Faz frio em
Milão em dezembro. Correm boatos de que, no fim do Corso Buenos Aires,
onde a cidade se perde, há um bordel que oferece putas chinesas. Do Corso
Venezia até lá, com o passo apertado, não dá mais do que vinte minutos a pé.
Benito Mussolini se encaminha na direção do Piazzale Loreto.
Benito Mussolini
Milão, 1o de janeiro de 1920

O esplendor de uma quinta estação no mundo.


Ontem D’Annunzio falou aos seus legionários. Diz que um ano memorável
passou, não o ano da paz, mas o da paixão. Diz que 1919 será lembrado como
o ano de Fiume, e não como o dos Tratados de Versalhes, onde, há mais de
um ano, as potências vencedoras da guerra estão partilhando o que sobrou do
mundo. Versalhes significa decrepitude, enfermidade, estupidez, má-fé,
escambo, significa a Europa que cambaleia, que tem medo, que gagueja, os
Estados Unidos predadores com um presidente mentecapto que sobreviveu ao
derrame; Fiume significa juventude, beleza, enorme inovação, luz, vida,
grandes dias e grandes noites, fé unânime, canções que ditam a cadência dos
nossos passos, significa ter atrás todos os nossos mortos e à frente os
nascituros, a legião daqueles que ainda não nasceram, mais numerosa do que
os mortos. Por isso, o poeta decidiu, contra a vontade dos fiumanos,
permanecer em Fiume, o lugar na Terra em que a alma é mais livre.
Muito bem, D’Annunzio. Viva! Mas a verdade é que os italianos não o
seguiram. A novidade são os “vermelhos”. O Vate, com todas as suas belas
palavras, está acabado. É um velho que o destino presenteou com o escárnio
de se tornar o príncipe da juventude.
Keynes, aquele economista do Tesouro inglês que abandonou a
Conferência de Paz de Paris para denunciá-la em um livro, tem razão. Ele
sustenta que a paz imposta por americanos, ingleses e franceses é cartaginesa,
que se os americanos se obstinarem a empobrecer a Alemanha com sanções e
reparações de guerra, teremos outra guerra em duas décadas. A vingança dos
alemães humilhados será terrível, o horror fará empalidecer as trincheiras e,
de qualquer forma, a ordem social do velho mundo chegou ao fim. Não é
possível atrasar o relógio da história, não é possível reduzir o pós-guerra a
uma questão de fronteiras e mercancia, a guerra civil não pode ser retardada.
Nesse ponto, D’Annunzio e Keynes, o poeta e o Tesouro, concordam: a
democracia é vulnerável, sua ferida é profunda, o Estado liberal pode ser
abatido. Fiume o demonstrou.
Temos de nos voltar para o Oriente. Se o Ocidente americano nos rejeita,
nos mata de fome, nos humilha, nós, povos mediterrâneos, faremos uma
política oriental. Contestaremos os tratados de paz, de livre comércio, todos
os tratados do capitalismo anglo-saxão. Não se pode viver sempre com a faca
no pescoço. Encontraremos no Oriente o que nos falta no Ocidente. O
senador Conti, magnata da indústria elétrica, está organizando uma missão
transcaucasiana. Diz que existem jazidas imensas no Azerbaijão,
oportunidades infinitas no mar de Azov. Convidou para participar também o
“dinâmico” diretor do Il Popolo d’Italia. Ele irá. Não está escrito que deve
ser jornalista para sempre. Benito Mussolini cede mais uma vez à tentação de
renegar a si mesmo.
Poderia ir, também, ainda mais para o Oriente. Alçar voo com o
Comandante, graças a seu brevê de piloto, para a travessia Roma-Tóquio.
Uma estirada, rumo ao Sol Levante... Ele sempre dissera: os fascistas não
acreditam nos programas, nos esquemas, nos santos, nos apóstolos. Não
acreditam, sobretudo, na felicidade, na salvação, na Terra Prometida. É
preciso navegar, sempre, é preciso. Não há solução, não há proteção,
nenhuma arribada a sotavento fechada no círculo das necessidades
primordiais. Navegar sem rota, rumo a uma maior latitude de vida. O futuro
deles é no mar. Seria absurdo não se lançar nas vias aquáticas quando o mar
nos circunda por três lados. Quando estamos circundados de cus, é um cu que
fodemos.
Navegar, sim, sempre, mas navegar à vista. O que mais se poderia fazer?
As pessoas pulam sem rodeios os relatórios dos debates parlamentares.
Passam logo para as páginas esportivas, concentram-se nas lutas de boxe.
Vejam Georges Carpentier, o grande boxeador francês: acabou de subir de
categoria, agora luta como peso pesado e as pessoas o adoram, explodem de
entusiasmo. Basta um soco seu bem dado para causar em milhões de
franceses a mesma exaltação alegre da vitória sobre os invasores alemães. É
assim, não adianta disfarçar, esse pós-guerra é uma tormenta, é um mar
fragoroso de redemoinhos: há somente impulsos, desordem, convulsões,
governos fraquíssimos, pregações demagógicas, o aguilhão que não nos deixa
dormir.
Não podemos ignorar a realidade, embora seja triste: os homens adultos, de
noite, nas periferias das cidades, choram no sono em suas camas. Precisam de
consolo, mas devem ser bentos com fogo, não com água. Chega de
pregadores benignos, chega de teólogos, vermelhos ou pretos, chega de todos
os cristianismos, de Jesus, de Marx! É preciso ser contra todas as igrejas, as
fés, as esperanças de salvação, contra todos. Muitos ou poucos, não importa:
nós somos todos. Contra as grandiosas massas operárias, lançaremos de novo
nossos profissionais a 30 liras por dia. A realidade humana, fora do
indivíduo, não existe. A belicosidade só se deslocou das trincheiras para as
praças, o tormento obscuro sofreu apenas uma interrupção; de vez em quando
faz pausas, mas então recomeça, recomeça sempre, e suas retomadas são
graves. E, por isso, é preciso pôr mais uma vez em movimento aquele ruído
surdo de oficina, é preciso ajudar a retomada, ajudar a indústria nacional,
facilitar a conversão da Marinha de Guerra em Marinha Civil, dar um jeito
com os materiais disponíveis após o armistício, liquidar a enorme quantidade
de encomendas. Eu escrevi no meu jornal — “Itália marinheira, avante!” — e
eles, os industriais genoveses, as divindades da siderurgia nacional, os deuses
do ferro-gusa bruto, me prometeram: não faltarão meios. Teremos uma nova
sede, mais espaço, rotativas mais modernas.
É preciso navegar, navegar à vista. Manter sempre o olhar fixo na costa,
noite e dia, no verão e no inverno, os olhos apertados como duas fissuras
selvagens na neblina lenta desta calmaria. A pequena cabotagem,
contracorrente, ao longo de uma linha ininterrupta e mesquinha de
minúsculos portos, uma rota de grandes amarguras traçada a lápis. Navegar é
preciso. O futuro está no mar, o naufrágio nos espera.
Meu caro Comandante, há muito não lhe escrevo, mas o senhor não deve
pensar em um arrefecimento de meu entusiasmo. Tive um momento de
dúvida quando toda a Itália [...] estava envolvida por uma rede de insídias
que não poupou nem mesmo Fiume [...]. Para mim, o período recente foi de
grandes amarguras: dois redatores me abandonaram e, eu poderia dizer, me
traíram! Agora quero chamar sua atenção para outro assunto que me é muito
caro. Desejo ser o preferido entre os jornalistas que pediram para segui-lo em
sua travessia até Tóquio. Peço-lhe a grande honra e o risco de segui-lo até
Tóquio. Telegrafei à Aeronáutica, e disseram-me que os postulantes são
muitos [...] mas que cabe ao senhor decidir. Não sou o mais inexperiente do
jornalismo italiano.

Carta de Mussolini a D’Annunzio, 10 de janeiro de 1920

A organização da Missão Transcaucasiana, da qual acabei aceitando a


presidência, já está completa [...]. Mussolini, que veio ontem para uma
entrevista, prometeu-me participar, o que me interessaria muito, pois me
daria a oportunidade de passar vários meses com aquele homem dinâmico.
Do diário de Ettore Conti, magnata da indústria elétrica,
27 de janeiro de 1920
1920
Gabriele D’Annunzio
Fiume, 18 de março de 1920

Gabriele D’Annunzio recebe de Alceste De Ambris um esboço de carta


constitucional em 18 de março de 1920. Não se pode duvidar que se trata de
um texto revolucionário, inspirado nas mais avançadas doutrinas europeias
do socialismo radical e nos mais evoluídos princípios libertários. O
sindicalista da ação direta, convocado pelo Comandante no início do ano
como chefe de gabinete, idealizou para Fiume uma constituição confiante no
futuro, uma democracia baseada nos direitos dos trabalhadores e das pessoas.
De todas as pessoas. Enquanto o poeta a folheia em particular, com os dedos
enluvados em seda branca, fora do palácio, nas colinas do Carso, as cerejeiras
já estão em flor. Os legionários colhem as primeiras eflorescências da nova
estação e enfiam os botões nos canos dos fuzis e das metralhadoras.
A primavera de Fiume, todavia, é uma falsa primavera. A “cidade da vida”,
que espera desde setembro do ano anterior uma anexação à Itália, já está em
coma há sete meses. Sobrevive presa ao respirador artificial do governo de
Roma, que, dosando os mantimentos, abre e fecha o fluxo de oxigênio a seu
bel-prazer. Em janeiro, para chantagear sentimentalmente o familismo
italiano, os sitiados chegaram até a lançar uma “cruzada das crianças”:
centenas de crianças de Fiume, pobres e esfomeadas por causa do embargo,
partiram do porto de Carnaro rumo a famílias de italianos compadecidos.
Mussolini se ofereceu para receber uma delas em casa. O Comandante,
depois, precisou até proibir a produção e venda dos fabulosos confeitos que
eram um orgulho da cidade desde o tempo do Império dos Habsburgo. Nada
mais de sanduíches amanteigados, café com chantili e Markenbazar. O
alimento é racionado; a cidade, por falta de óleo combustível, está fria e
escura.
No entanto, o Comandante se aquece com o fogo da democracia. A
República de Carnaro, prenunciada pela Constituição de De Ambris,
reconhecerá a soberania coletiva de todos os cidadãos, sem distinção de sexo,
raça, idioma, classe e religião. A Constituição garantirá a liberdade de
imprensa, de expressão, de pensamento, de religião, até mesmo a liberdade
sexual; garantirá que a vida seja digna, assegurando a educação básica, a
educação física, os salários mínimos, a assistência social em caso de doença,
invalidez, desemprego e velhice; sobretudo, e aqui está a jogada de mestre, a
Constituição garantirá que a vida dos cidadãos, além de digna, seja também
bela. “A vida é bela”, escreve D’Annunzio de próprio punho, reformulando o
texto de De Ambris, “e digna de ser magnificamente vivida pelo homem
refeito pela liberdade”.
Por isso, cada corporação de trabalhadores inventará suas insígnias, seus
emblemas, suas músicas, seus cantos, suas preces. O colégio dos
trabalhadores da construção civil convencerá seus operários a ornar com
alguns sinais de arte popular até a mais humilde das habitações, a música será
considerada uma instituição social na convicção de que “um grande povo não
é somente o que cria seu deus à sua semelhança, mas o que também cria o
hino para o seu deus”; o trabalho, sobretudo, deverá enfim deixar de ser,
passados milênios, um esforço brutal que destrói o corpo, deverá se tornar
“esforço sem cansaço”, o trabalho, até mesmo o mais obscuro, tenderá à
beleza e ornará o mundo.
Para garantir tudo isso, De Ambris pensou justamente em vincular a
propriedade privada à sua utilidade social; o Estado da futura República de
Carnaro não admitirá que uma propriedade possa ser reservada a uma única
pessoa como se dela fizesse parte, nem que um proprietário a deixe inerte ou
a utilize mal, excluindo todos os outros do processo. Nobre propósito, sem
dúvida, mas, com essa última cláusula — observa o grande economista
Maffeo Pantaleoni, futuro ministro da Fazenda de D’Annunzio —, a
magnífica Carta de Carnaro torna-se incompatível com qualquer atividade
econômica e comercial do capitalismo moderno. E caso encerrado.
D’Annunzio, de fato, mantém a Carta de Carnaro consigo. Não a rejeita,
mas a guarda em segredo com ciúme, reescrevendo-a diariamente, sem mudar
sua essência, com linguagem rebuscada e oracular. No fundo, ele é um poeta.
Para alguém como ele, o estilo é tudo. À tarde, pós-almoço, reescreve a
Constituição de De Ambris, mas de manhã, com as primeiras luzes da aurora,
marcha à frente das tropas em excursões marciais pelos pequenos vales que
circundam a cidade. Reúnem-se na Piazza Roma, diante do Palácio do
Governo. Todo dia um regimento diferente tem o privilégio de acompanhar o
Comandante. De polainas e esporas, o busto apertado no paletó de Ardito, ele
apresenta-se sem falta à chamada. Três toques de trompete e partem, saem
cantando rumo à praia ou à montanha. Todos querem ficar a seu lado
enquanto ele avança depressa, ágil. Nessas auroras primaveris, o Comandante
está vivaz, tem a mesma idade dos seus soldados, volta a ter 20 anos, como
eles. A ordem, a hierarquia e o passo cadenciado da partida logo são
esquecidos. Antes do meio-dia, é possível vê-los voltar espalhados,
recobertos de ramos, guirlandas de flores, arbustos em flor. Mais do que um
exército, parecem um jardim selvagem em movimento. Alguns vão embora
em pares, de mãos dadas, como a lendária legião tebana.
De noite, jantar na Ornitorinco, uma trattoria conhecida antes como Cervo
d’Oro e rebatizada pelo poeta depois que o excêntrico Guido Keller levou
para lá um animal empalhado surrupiado do museu de ciência natural. Ali
degusta-se um memorável risoto de camarão, e os rapazes bebem rios de um
licor local de cereja fosco, viscoso, açucarado, que também foi rebatizado de
Sangue Morlacco pelo imaginativo poeta.
Pós-jantar, muitas vezes vão ao teatro. Está em cartaz La fiaccola sotto il
moggio, um drama apocalíptico escrito por D’Annunzio em 1905, no qual é
narrada a catástrofe de uma antiga família composta inteiramente de
indivíduos desequilibrados, doentes, malditos ou corruptos.
O autor da tragédia assiste à representação do balcão nobre junto do seu
estado-maior. A tropa, por sua vez, se aglomera na galeria ou na torrinha.
Mas os atores trabalham muito mal, e os rapazes da tropa ainda querem se
divertir. Quando desce a cortina do segundo ato, no silêncio contaminado,
irrompe uma voz:
“Interrompamos esta chatíssima tragédia e cantemos as nossas canções!”
É o próprio D’Annunzio que protesta contra sua obra, é o rapaz de 20 anos
que retorna das marchas matutinas que entra em conflito com seu velho ser.
Ao sinal goliardesco do Comandante, na plateia e na galeria logo irrompe
um coro que entoa “Giovinezza”, em seguida o “Inno di Garibaldi” e, então,
o “Inno di Mameli”. Agora todo o teatro canta; a juventude, o prazer, a
alegria estão por toda parte. D’Annunzio canta de seu balcão nobre: o poeta
está feliz por sua literatura finalmente se desprender de seu corpo.
Aí, porém, os soldados rasos pedem “‘A tazza’e cafè”. Uma cançoneta
popular napolitana, uma cançãozinha de nada que brilha nos cafés com uma
vida resplandecente e fictícia.
Os oficiais se entreolham constrangidos. A tropa insiste: não disseram para
cantar “as nossas canções”? O coro inicia, sem acompanhamento musical,
vulgar, a cappella. A princípio, leve, alegre, torna-se violenta, impetuosa; e a
cançoneta se eleva. Os tercetos da tarantela, berrados por mil barítonos
embriagados com Sangue Morlacco e testosterona bombeada por corações
jovens aos membros escondidos sob as fardas, ribombam no teatro chamado
Giuseppe Verdi como a voz gutural de um animal enfurecido e gigantesco. A
cançoneta se encorpa, assustadora, brutal, impiedosa, e enterra na própria
alegria fácil a pompa dos cânticos oficiais.
Todos fazem sinais. Até os oficiais agora acham a coisa engraçadíssima.
Mas D’Annunzio não está mais cantando. Ficou pálido. O povo lhe ensina
sua canção. Ele parece ter entendido.
Só os produtores assíduos da riqueza comum e os criadores assíduos da
potência comum são, na República de Carnaro, os cidadãos completos e
constituem com ela uma única substância operante, uma única plenitude
ascendente [...] cada corporação inventa suas insígnias, seus emblemas, suas
músicas, seus cantos, suas preces; institui suas cerimônias e seus rituais;
contribui, da maneira mais magnífica possível, para o aparato das alegrias
comuns, das festas anuais, dos jogos terrestres e marinhos; venera seus
mortos, honra seus decanos, celebra seus heróis [...] todo culto religioso é
admitido, é respeitado, e pode edificar seu templo; mas que nenhum cidadão
invoque sua crença e seus ritos para se furtar ao cumprimento dos deveres
prescritos pela lei viva [...] a vida é bela, e digna de ser vivida severa e
magnificamente pelo homem que a liberdade volta a tornar pleno; o homem
pleno é aquele que sabe inventar todos os dias sua própria virtude para
oferecer todos os dias aos seus irmãos uma nova dádiva; o trabalho, até o
mais humilde, até o mais obscuro, se bem executado, tende à beleza e orna o
mundo [...]

Da Carta de Carnaro
Margherita Sarfatti
Milão, primavera de 1920

Ela é a única mulher nesta mesa de homens ensandecidos.


Há noites em que a dama da sociedade se satisfaz em receber visitas no
salão de seu palácio no Corso Venezia, encantando-se por 48 horas com
jovens pintores bonitos e delicados como anjos caídos; mas também há noites
como esta, nas quais a senhora da alta burguesia se rebaixa de bom grado à
mesa de futuristas delirantes, veteranos toscos, jornalistas arrojados, enquanto
a tinta do vinho espesso de Trani é despejada como um jorro hemorrágico
sobre as toalhas xadrez das trattorie populares. Nessas noites de beleza
desenfreada, ela é a única mulher sentada à mesa dos homens ensandecidos.
Neste momento, Filippo Tommaso Marinetti, como de costume, como se
galvanizado por uma corrente elétrica contínua, se destaca.
“Abaixo a toalettite,” grita, em pé sobre uma cadeira, com o mesmo ardor
com que outras vezes gritou “abaixo o rei!”, “abaixo o passado!” ou
“matemos o luar!”. Com a mesma histeria estridente do salvador de uma
humanidade ameaçada de extinção, o fundador do futurismo discursa para um
público de carroceiros e impressores em fim de turno — que, divertidos e
estupefatos, levantam por um instante a cabeça de seus pratos de sopa —
sobre os perigos que a mania sempre crescente do luxo feminino está
difundindo em todos os níveis sociais com a cumplicidade da imbecilidade
masculina.
“Essa mania doentia”, argumenta Marinetti, “obriga cada vez mais a
mulher a uma prostituição disfarçada, mas inevitável. Trocar três toaletes por
dia equivale a pôr o próprio corpo na vitrine para se oferecer a um mercado
de homens compradores. A oferta reduz o valor da preciosidade e do
mistério. A oferta afasta o homem, que despreza a mulher fácil!”
Os carroceiros exultam e entornam suas bebidas; os veteranos das
trincheiras brindam sem objeção ao desprezo pela mulher; Margherita
Sarfatti, a única mulher naquela mesa, diante daquele escarcéu, sorri
benévola, materna, mundana, bem protegida por seus trajes de alta-costura
para a noite.
Sua desenvoltura é total. Nenhum sinal de desconforto transpira da postura
elegante. Afinal, está circundada por “seus” artistas: o próprio Marinetti a
rebatizou de “papisa dos futuristas”. Para a Grande Exposição Nacional
Futurista de março de 1919, em Milão, Margherita contribuiu com o
empréstimo de quatro obras de sua posse, uma das quais era um retrato da
colecionadora. Os homens que se sentam e fazem barulho em torno da mesa
daquela taberna são, em grande parte, artistas com os quais essa mulher única
forjou uma aliança pessoal. Lá estão os pintores Achille Funi e Leonardo
Dudreville, o poeta Giuseppe Ungaretti, que colabora com o Il Popolo
d’Italia, todos artistas que passaram da arte à perturbação da história, todos
veteranos irmanados pela inefável experiência interior do evento bélico, todos
alunos da escola da verdade dos invernos nas trincheiras.
Lá está Mario Sironi, que pinta paisagens urbanas inanimadas nas quais a
natureza está ausente, com uma atmosfera carregada de ameaças e o ser
humano prisioneiro de um mundo hostil, periferias desconhecidas para os
burgueses do Centro da cidade, mundos que só existem para quem é
condenado a viver neles, como o próprio, o artista miserável, veterano de
guerra encalhado nas periferias misteriosas que ela, a sra. Sarfatti, encoraja e
subvenciona. E lá estão também os mortos. Eles se sentam àquela mesa. Lá
está Sant’Elia, arquiteto genial e muito jovem, morto à frente dos seus
soldados com o cigarro na boca; Umberto Boccioni, o pintor das visões
simultâneas, La città che sale, o maior, o mais promissor de todos. Ambos
alistados e mortos no “Batalhão lombardo dos voluntários ciclistas e
motoristas”.
Naquela mesa, ao lado de Margherita, está sobretudo ele, o seu
“devotíssimo selvagem”. Ele também está calado e sorri benévolo das
invectivas de Marinetti. O poeta faz barulho e agita os braços para se tornar o
centro das atenções, mas é ele, Benito Mussolini, quem está sempre sentado à
cabeceira da mesa. Ele foi humilhado, arrasado, abalado pelas eleições do
outono, mas é dele — Margherita tem certeza — que emana a força que vem
da rua; ele, filho de um ferreiro, encarna a “coragem que vem de baixo”
anunciada por Georg Wilhelm Friedrich Hegel, o maior filósofo alemão do
século anterior. Ele, Benito Mussolini, mais ninguém, com seu rosto glabro,
seus olhos escuros e profundos como os de um louco, com aquele olhar
desprovido de objeto, com a virilidade daquele seu corpo plebeu e ultrajante
de animal caçado, transmitirá a este novo século a mensagem de que o meio-
termo entre as boas maneiras dos velhos líderes socialistas barrigudos e a
fome raivosa das massas malnutridas está obsoleto, que agora é hora de se
lançar de dentro para fora como uma granada que não explodiu, que o velho
mundo acabou.
Benito Mussolini, por enquanto, está ali de mãos vazias, mas ele foi o
primeiro a entender que podia explorar o rancor no contexto da luta política,
o primeiro a assumir a dianteira de um exército de insatisfeitos, rebaixados e
fracassados que passam seus dias lustrando os próprios punhais enquanto ele
alterna entre a redação e a rua, esperando que algo exploda. E que ele possa
aproveitar a onda de choque ou então escrever a respeito no jornal.
Não há dúvida: a cadeia paciente dos pais que criam os próprios filhos se
partiu com a guerra. O esquema se rompeu, e somente alguém como
Mussolini poderá guiar as gerações às quais o destino concedeu o direito de
fazer história. De qualquer forma, a sociedade não concedeu a ela, a única
mulher sentada àquela mesa, o direito de fazer política e, portanto, assim
como Anna Kuliscioff fez primeiro com Andrea Costa e depois com Filippo
Turati, só lhe resta apostar em um homem.
Então, a grande dama passa seus dias nas saletas sujas da redação do Il
Popolo d’Italia, e, no fim do dia, pós-fechamento, a intelectual sofisticada se
enfurna com o autodidata bronco em algum hotelzinho fedorento e se deixa
amar. Toda vez leva consigo um livro novo, escancara a mente do amante,
entrega-lhe seu corpo, educa-o para que leia os clássicos e ensina-lhe a usar
as polainas sobre os sapatos surrados de revolucionário desleixado e
maltrapilho. Maquiavel, a queda do Império Romano, lenços brancos no
bolso e, no verão, um chapéu de palha. Treinando-o para usar o subjuntivo,
enfiando uma flor na lapela dos ternos pretos de bom corte de seu homem, ela
também se prepara para fazer história. Por meio de um intermediário.
E, afinal, ele a desejou tanto desde o início... Desde o primeiro encontro,
demonstrou que cobiçava nela a beleza loura carnuda e persuasiva... E
também lhe dedica poesias amadoras nas quais celebra a beleza do mar, do
vento, da amante, envia-lhe cartas de amor com ternura violenta.
Meu amor, meu pensamento, meu coração a acompanham. Passamos horas
deliciosas. Se eu puder, irei a Tabiano. Eu amo muito você, mais do que
imagina. Eu abraço você com força, beijo você com ternura violenta. Hoje à
noite, antes de adormecer, pense no seu devotíssimo selvagem, que está um
pouco cansado, um pouco entediado, mas é todo seu, da superfície às
profundezas. Dê-me um pouco de sangue dos seus lábios.
Teu Benito

Carta de Benito Mussolini a Margherita Sarfatti,


s.d., mas entre 1919 e 1922
Benito Mussolini
Milão, primavera de 1920

Na primavera de 1920, Angelo Tasca tem 28 anos e é um dos mais


influentes jovens socialistas italianos. Rebento de uma família da burguesia
turinense, estudou no exclusivo liceu clássico Vincenzo Gioberti, e, ao
abraçar a causa do proletariado, foi membro da federação socialista e, em
seguida, nomeado para a secretaria da Câmara do Trabalho da sua cidade. No
ano anterior, fundou com Antonio Gramsci, Palmiro Togliatti e Umberto
Terracini o periódico L’Ordine Nuovo, que logo se afirmou como usina do
pensamento obreirista e berço do movimento revolucionário dos conselhos de
fábrica. Foi o sogro de Tasca que emprestou metade do capital para a
fundação da revista aos jovens comunistas que pretendiam expropriá-lo de
toda a sua riqueza.
Quando Tasca encontra Benito Mussolini na Galleria Vittorio Emanuele
em Milão na primavera de 1920, o que o surpreende é que Mussolini está
com saúde para vender. No piso de mármore da via de pedestres coberta,
contornada por lojas e estabelecimentos elegantes que a tornam um dos
primeiros centros comerciais do mundo, ponto de encontro da burguesia da
cidade, que logo a rebatizou de “o salão de Milão”, sob a cúpula em estilo
neorrenascentista que a torna um dos mais célebres exemplos de arquitetura
do ferro na Europa, Tasca vê passeando um homem de terno preto no auge de
seu bem-estar físico. Tasca nota em Mussolini o pescoço grosso que se ergue
sobre um tronco grandioso, o rosto empertigado e cheio, o porte arrogante, o
cigarro recém-aceso que pende, em todo o seu comprimento, bem do meio
dos lábios carnudos, como um falo exibido e despudorado. Mussolini tem a
exuberância selvagem do homem do povo repaginado. Para quem, como
Tasca, o conheceu em 1912, quando era um jovem revolucionário anárquico
de aspecto miserável, com as bochechas caídas, a magreza de um penitente,
os olhos transtornados de alguém acometido pela febre, a transformação é
desconcertante. Ali está um patife que, rompidos todos os vínculos com o
homem rebaixado de outrora, descobriu a fartura, um homem que mantém
amantes, um homem que encontrou a graça da vida.
Entretanto, no dia desse encontro, Benito Mussolini é um empresário
próximo da falência, um mulherengo perseguido e, sobretudo, um político
acabado. Todos os caminhos que trilhou até aqui parecem interrompidos,
tanto o que deveria tê-lo conduzido a reconquistar as massas proletárias
quanto o que deveria tê-lo colocado no controle das vanguardas nacionalistas.
O primeiro está obstruído por um muro de ódio vingativo, o segundo está
atravancado pela gigantesca presença de Gabriele D’Annunzio. O fascismo
está em um beco sem saída.
No entanto, a Itália também está em um beco sem saída. Enquanto
Mussolini passeia na Galleria, muitas vezes acompanhado por Ferruccio
Vecchi com a farda de capitão dos Arditi, o país está submerso na maior onda
de greves de que se tem lembrança. Em janeiro, foram os funcionários dos
serviços postais, telegráficos e telefônicos, e então foi a vez dos ferroviários,
que não faziam greve desde 1907. A agitação, nascida como uma simples
reivindicação de reajuste salarial, degenerou em uma total paralisia do tráfego
enquanto as estações assumiam a aparência de campos de batalha, ocupadas
por tropas em formação de guerra. Uma após a outra, entraram em greve as
pequenas e médias categorias de trabalhadores: porteiros, cocheiros,
escreventes e padeiros, motorneiros, gasistas e até cabeleireiros. Milão, dia
sim, dia não, parece uma cidade morta, não circulam nem carroças nem
automóveis, nada de correspondência, sua vida está suspensa. Há milhares de
greves na indústria, os trabalhadores estão envolvidos aos milhões, os preços
no atacado quintuplicaram.
Na Fiat de Turim, no fim de março, desencadeou-se uma agitação por uma
questão de hora. O Conselho dos Ministros voltou a prorrogar o horário de
verão, já adotado nos tempos da guerra. Os operários, por sua vez, decidiram
que, daquele momento em diante, seriam eles, e não o senador Agnelli, os
donos do próprio tempo. Os industriais responderam com um lockout. O
resultado foi uma greve geral de dez dias que, apenas em Turim e na sua
província, envolveu 120 mil trabalhadores. Deles, 60 mil ocuparam as
fábricas contra o deslocamento do ponteiro do relógio uma hora para a frente.
A questão, obviamente, não é de ponteiros: não se trata do horário de verão,
mas da hora suprema. A hora da revolução.
Os diretores do partido, porém, adiaram-na mais uma vez. Muitos deles
condenaram abertamente a “greve dos ponteiros”. Como Mussolini havia
previsto, o triunfo eleitoral do socialismo desencadeou sua crise interna,
acentuando a divisão em facções: o maximalismo não quer participar do
poder e o reformismo não ousa a conquista total do poder. O socialismo
também está em um beco sem saída.
Claudio Treves, um de seus dirigentes mais influentes, admitiu-o em uma
dramática exposição no Parlamento, logo batizado de “discurso da expiação”.
A revolução, reconheceu Treves, “é uma época, não um dia”. Tem o aspecto
de um fenômeno da natureza: erosões lentas, desmoronamentos rápidos.
Estamos bem no meio de tudo isso — declarou —, e aí permaneceremos por
um bom número de anos. Dia após dia, episódio após episódio, hora após
hora. Gostaríamos que acabasse logo, de uma vez por todas, mas isso não é
possível. Não é morrer que nos assusta, é esse não viver que nos exaspera.
Enquanto isso, Mussolini passeia. Ele conhece bem Treves. Travaram um
duelo em 1912, após o jovem bárbaro, estrela em ascensão do socialismo
revolucionário, ter ocupado a cadeira de diretor do Avanti na qual até pouco
tempo se sentava o maduro, sofisticado e ponderado intelectual reformista.
Os padrinhos declararam nunca terem visto entre companheiros de partido
um duelo tão feroz. Os duelistas tiveram de ser interrompidos no oitavo
assalto. Ambos os sabres, à força de pranchadas, já eram pedaços inúteis de
ferragem retorcida.
Mussolini passeia. A questão é que os industriais não combatem mais
separados. Em Milão, a pouca distância da Galleria do seu passeio, reuniram-
se e fundaram pela primeira vez uma associação nacional em defesa de seus
interesses. O diretor do Il Popolo d’Italia, orientado cada vez mais para a
direita, sempre em busca de verba para o seu jornal, àquela altura já maduro
para a ruptura com a própria juventude descamisada de agitador
revolucionário, saudou favoravelmente o nascimento da Confederação
Industrial. “Um sopro de modernidade viva”, escreveu. Mussolini também
condenou abertamente as greves: os direitos dos trabalhadores devem ser
defendidos, mas os dirigentes socialistas não querem nada. A escolha entre as
duas civilizações é simples: a burguesa tem sobre os ombros uma história
secular de progresso e realizações, a proletária tem somente um relato de
inexperiências e insanidades. Trata-se apenas de esperar, com as armas aos
pés, e, enquanto isso, passear pela Galleria.
Partimos de Roma em 4 de fevereiro ao anoitecer: nenhum dos inscritos
deixou de comparecer, exceto Mussolini, retido na Itália [...] sinto muito;
porque esperava conhecer esse homem tão dinâmico e estranho que, por meio
de suas diversas manifestações, não é fácil de decifrar [...]. Um de seus
colegas de jornalismo, Pietro Nenni, que viaja conosco e que diz tê-lo
conhecido bem quando não estavam em lados diferentes da barricada,
reconhece nele um fascínio obscuro de líder, homem forte que quer se
distinguir, ser o primeiro, de uma maneira ou de outra; hoje contra os
burgueses, amanhã senhor; um homem, portanto, que poderá fazer muito bem
ou muito mal, mas que, de qualquer modo, dará o que falar. É, de fato, uma
pena que, no último minuto, tenha me deixado a ver navios: teria me
interessado enormemente [...]

Do diário de Ettore Conti, magnata da indústria elétrica,


fevereiro de 1920

Dos Fasci di Combattimento, foi hoje difundida para as seções das


principais cidades, que são cerca de trinta, uma circular na qual, citando
atuais agitações, as seções são convocadas a se organizar para eventualmente
reagir [...]. Em caso de perigo, os Fasci di Combattimento são convidados a
pôr as próprias forças à disposição da autoridade militar.

Telefonema do chefe de gabinete da Presidência do


Conselho, Enrico Flores, a Francesco Saverio Nitti,
Milão, 19 de abril de 1920

Nos últimos dias, um general da reserva foi a várias localidades da


comarca de Monza, em nome dos Fasci di Combattimento, oferecendo aos
industriais proteção, que ficará a cargo de esquadrões de Arditi durante
desordens ou greves.

Telegrama de Enrico Flores a Francesco Saverio Nitti,


Milão, 19 de abril de 1920

Tentar frear, deter esse movimento de desintegração não é


reacionário, pois visa salvar os valores fundamentais da vida
coletiva [...]. Contra os falsos vendedores de ilusões, os
burgueses covardes afiliados ao Partido Socialista, os imbecis
de toda espécie, ergo alto e claro o grito forte: viva a reação.

Benito Mussolini,
“Operários! Quando vocês se libertam dos seus chefes
mistificadores”,
Il Popolo d’Italia, 25 de abril de 1920
Leandro Arpinati
Bolonha, abril de 1920

Em Bolonha, Leandro Arpinati está sozinho.


Já no início do ano pediu ajuda, em Milão, a Umberto Pasella, secretário
dos Fasci di Combattimento: “É extremamente necessária uma visita sua.
Nosso Fascio está se desfazendo.” A profecia previsível se tornou realidade
exatos dois meses depois. Pietro Nenni e os outros republicanos que haviam
fundado o Fascio bolonhês em abril de 1919 o abandonaram no ano seguinte,
um após o outro. O advogado Mario Bergamo comunicou em pessoa ao
Fascio original milanês o parecer: “Em Bolonha? Desde que os republicanos
se desassociaram, o Fascio morreu.”
O parecer está certo: sobraram seis fascistas bolonheses. Não têm dinheiro
sequer para alugar uma sede. Arpinati manda encaminhar a correspondência
para a trattoria da Via Marsala, onde costuma almoçar. Pasella, que conhece
bem Emília porque foi líder sindical na região de Ferrara antes da guerra,
prometeu dinheiro para pagar os seis primeiros meses de aluguel, mas ainda
não mandou um tostão. Mussolini, todavia, insiste que seja o amigo Leandro
a assumir a direção, confiou-lhe também a responsabilidade por toda a Emília
oriental. Sugere que sigam o exemplo de Milão. Precisam organizar milícias
cívicas de defesa cidadã contra as greves contínuas. Arpinati pede que
enviem um orador para os comícios de propaganda. É um homem de ação,
palavras em excesso o deixam constrangido.
A verdade é que tudo está indo por água abaixo. Desde que Arpinati
terminou de cumprir as penas pelos acontecimentos de Lodi, a ruína é geral.
Bolonha está de cabeça para baixo. Na cidade, as duas Câmaras do Trabalho
chegam a competir entre si no extremismo revolucionário. Até mesmo o
prefeito socialista Zanardi, que por opção seria um moderado, para não
perder terreno incita a invasão das mansões senhoriais, convidando os
inquilinos a se proclamarem donos dos apartamentos. As “mãos calejadas”
mandam e desmandam. Chegam a negar o pão a quem não tem carteirinha do
sindicato, a classe média está entre a cruz e a caldeirinha, muitos
empregadores preferem vender as propriedades do que ficar assim, entre a
vida e a morte. Não há freio.
E, na cidade, tudo ainda vai bem. O campo está perdido. Não há vilarejo
livre da influência do Partido Socialista. Em cada município, há um sindicato
de camponeses, uma Casa do Povo, uma cooperativa, uma célula. As ligas
“vermelhas” são donas da situação. Conseguem impor aos proprietários
rurais condições de trabalho que chegam a privá-los quase por completo do
direito de propriedade sobre suas terras. Os proprietários que violam as regras
impostas pelas ligas são submetidos a multas pesadas a favor dos caixas dos
grevistas. A aversão é particularmente tenaz em relação aos arrendatários e
aos pequenos proprietários. A esses semelhantes, os trabalhadores
temporários reservam o ódio mais impiedoso. O Vale do Pó, ao longo das
duas margens do rio, da nascente até a foz, é teatro de lutas épicas pelo
domínio dos campos.
Começaram, é óbvio, em Ferrara, província dominada pelas ligas
“vermelhas”. Os camponeses temporários iniciaram a agitação em 24 de
fevereiro para a renovação do pacto dos colonos, acompanhados pelos
meeiros. A convocação à greve suspendeu a semeadura do cânhamo e da
beterraba, sustento de toda a província. Intimidações, incêndios de palheiros,
animais abandonados nos estábulos. A luta dos grevistas foi determinada e
unânime a ponto de obrigar os proprietários a admitir a derrota em todos os
pontos de discussão. Em 6 de março, aceitaram os aumentos salariais, os
escritórios de recrutamento administrados pelos trabalhadores e, sobretudo, a
imposição da mão de obra que obriga os proprietários a contratarem 5
trabalhadores para cada 30 hectares de terra cultivável no período entre
novembro e abril, ou seja, nos meses em que não há trabalho. Em 5 de março,
o exemplo de Ferrara foi seguido nas províncias de Novara, Pavia e na
comarca de Casale Monferrato. A agitação durou quarenta e sete dias.
Quarenta e sete dias e quarenta e sete noites de estado de sítio: de novo
incêndios, sequestro de animais, tocaias, tiroteios, casas rurais transformadas
em acampamentos de combatentes, os “guardas vermelhos” em Lomellina
controlando as comunicações viárias e vigiando a presença de fura-greves. A
adesão dos trabalhadores temporários e assalariados foi total; sua vitória,
esmagadora. Os proprietários se renderam em 21 de abril.
Chegou a vez de Bolonha. A guerra pelo acordo agrícola mal começou e já
deixou dezenas de corpos no chão. O massacre aconteceu em Decima di San
Giovanni in Persiceto, um pequeno, insignificante distrito perdido em meio
aos campos. Um comício sobre o pacto dos colonos estava sendo realizado,
quem falava era Sigismondo Campagnoli, enviado da Câmara do Trabalho de
Bolonha. Poucas menções à questão agrária e, de súbito, as afrontas
costumeiras a capitalistas, padres, carabineiros e, por fim, a incitação da
multidão, a palavrinha mágica de sempre: revolução.
Àquela altura, ouvindo a palavra terrível, o sargento responsável pela
ordem pública se sente obrigado a interromper o orador. Sobe no palco outro
tribuno, Pietro Comastri, ele também da Câmara Sindical de Bolonha.
Comastri promete acalmar os ânimos, mas, ele também, em quinze minutos,
passa da imposição da mão de obra à revolução. O sargento dos carabineiros
o retira do púlpito. Uma demonstração de força que o idiota não é capaz de
impor: dispõe de vinte militares e, atrás dele, estão 1.500 trabalhadores rurais
miseráveis e enfurecidos.
Uma garrafa com sifão é lançada, uma das que são usadas para acrescentar
uma borrifada de água gaseificada a um vinho ruim. Por um instante, a cena
permanece suspensa entre a tragédia e a comédia. Ainda seria possível rir de
tudo aquilo. Mas o idiota do funcionário de plantão, achando que os colocava
em posição segura, alinhou os carabineiros diante da fachada da casa
adjacente. O sifão se espatifa contra a parede, e os estilhaços voam. Escorrem
algumas gotas de sangue da têmpora direita do vice-comissário. É o sinal do
desastre. O orador leva pancadas, a multidão avança de maneira instintiva
rumo aos opressores, os carabineiros se veem acuados contra a parede. Nem é
preciso que uma ordem seja dada. As armas abrem fogo sozinhas. Cerca de
cinquenta disparos, em parte de projétil, em parte de metralha. Os
carabineiros Raffaele Barile e Giuseppe Scimmia dão, sozinhos, sete e dez
tiros, respectivamente, nos camponeses desarmados. Um massacre. No chão,
oito mortos e cerca de trinta feridos. Será dito que os militares dispararam
para se salvar. Mas quase todos os mortos foram atingidos pelas costas.
Campagnoli, o primeiro orador, foi morto a baionetadas.
A partir daquele momento, sobre aqueles mortos, a ruína. A Câmara do
Trabalho proclama três dias de greve geral em toda a província. Por 72 horas,
estão suspensos todos os serviços públicos e privados, há abstenção completa
do trabalho de todas as categorias. Para a burguesia, grande e pequena, é a
proverbial última gota. Agricultores, industriais, comerciantes, profissionais
liberais, funcionários públicos e senhorios decidem se organizar sozinhos.
Em 8 de abril, em uma reunião promovida pela Câmara de Comércio, é
constituída a Associação Bolonhesa de Defesa Social. No dia 15, uma
delegação da associação apresenta ao primeiro-ministro Nitti um memorial
em que denuncia a abdicação do Estado diante da violência dos socialistas e
se declara pronta a substituí-lo em nome da autodefesa.
Leandro Arpinati não sabe o que fazer. É um ferroviário anarquista, de
origem pobre, o caçula de seis irmãos, filho de Sante, miserável taberneiro de
Civitella di Romagna, uma aldeia solitária nos Apeninos, no estreito vale do
rio Bidente. Os latifundiários que são donos de meia Emília-Romanha e não
dão a mínima para a Itália ofereceram-lhe 100 mil liras para defendê-los dos
pobres, a sua gente. Em contrapartida, aquela sua gente pobre, à força de
greves e delírios revolucionários, está acabando com a Itália. Arpinati escreve
a Milão:
“É certo que essa burguesia bolonhesa — e digo bolonhesa com o sentido
de apática e vil — só se mexeu quando sentiu, com a última greve, a própria
segurança e o próprio bolso ameaçados; mas será que, por isso, não devemos
aceitar a arma-dinheiro tão necessária à nossa batalha que essa burguesia,
ainda que por medo, nos oferece neste momento?”
Que o governo saiba que estamos prontos, acima de tudo, para defender
nossas famílias e nossos lares, para proteger nosso direito ao trabalho, a
nobreza de nosso trabalho cotidiano, para pôr fim de todas as maneiras a uma
sucessão de coisas intoleráveis e desastrosas, criando nós mesmos os meios
de defesa que até agora havíamos cedido às leis do Estado.

Associação Bolonhesa de Defesa Social,


memorial para o Presidente do Conselho Francesco Saverio
Nitti,
Bolonha, 15 de abril de 1920
Nicola Bombacci
Milão, 19 de abril de 1920

Quando Bombacci chega em Copenhague no fim de março de 1920, a


Dinamarca do príncipe Hamlet ainda dorme sob uma pesada camada de neve
boreal. Nicolino, ele também natural de Civitella di Romagna, a mesma
aldeia solitária nos Apeninos de onde vem Arpinati, no estreito vale do rio
Bidente, não conhece o mundo. Embora sonhe com o abraço planetário na
irmandade revolucionária entre todos os proletários da Terra, da Cidade do
México a Vladivostok, embora já tenha completado 40 anos, o “Lênin da
Romanha” nunca saiu das fronteiras italianas.
À sua espera em Copenhague estão Maxim Litvinov, comissário soviético
para as relações exteriores, e Leonid Krasin, o “mercador vermelho”,
plenipotenciário do comissariado para o comércio exterior da Rússia
revolucionária, ambos tenentes do verdadeiro Lênin. Chegar às margens do
estreito de Øresund, poder encontrar os emissários do grande Lênin, para o
“pequeno Lênin” da Romanha, deve ser um pouco como voltar para casa,
uma casa que até os 40 anos ele nunca conheceu.
O revolucionário romanholo está à frente de uma estranha delegação.
Trata-se oficialmente de uma missão organizada pela liga nacional das
cooperativas “vermelhas”, promovida por Caldara, prefeito socialista de
Milão, mas também conta com o aval político do governo italiano do
presidente Nitti, que os socialistas proclamam todos os dias que querem
destituir. O paradoxo é que Nitti foi obrigado a terceirizar a política externa
em relação à Rússia incumbindo-a aos socialistas italianos que querem
derrubá-lo.
Desde dezembro de 1919, o próprio Bombacci fez de tudo para forçar a
Itália a reestabelecer as relações diplomáticas com a Rússia de Lênin.
Bombacci não se interessa pelas atividades comerciais, dispensa-as como
“coisas burocráticas”, mas espera que esse possa ser um primeiro passo para
o reconhecimento diplomático da Rússia soviética por parte da Itália
capitalista. No fundo, a Itália é desde sempre a “grande proletária”, como a
definiu Pascoli, uma nação de gente pobre e boa que não pode deixar de
reconhecer a legitimidade de um Estado fundado pelos irmãos proletários
russos. Por fim, mais do que qualquer outra coisa, Bombacci deseja poder
falar pessoalmente, pela primeira vez, com os homens que fizeram a
revolução na Rússia sobre a revolução a ser feita na Itália.
Nicolino entregou-se de corpo e alma à ideia da revolução. No Conselho
Nacional de Florença do Partido Socialista, em 11 de janeiro, lutou pela
realização imediata em todo o país do Conselho dos Sovietes baseado no
modelo russo. Sua proposta obteve 401 votos entre 440 votantes. Um triunfo.
Mas a diretoria está dividida. Até Palmiro Togliatti — um jovem diretor de
Turim que deveria ficar do seu lado — ironizou seu projeto, julgando-o
prematuro, incompleto, teoricamente infundado. Mesmo que constituíssem os
sovietes na Itália, zombou com sarcasmo Togliatti, seriam uma imitação
patética dos russos, seriam “apenas a sombra de uma sombra”.
Mas o “Cristo dos Operários” não se rende aos vetos daqueles intelectuais
comunistas que se vangloriam do próprio isolamento, satisfeitos por estarem
sós contra todos, limitando-se à contemplação da própria força. A força do
socialismo italiano, por sua vez, é enorme: em apenas quinze meses, o
número de afiliados aumentou dez vezes, superando 200 mil. Mas é uma
força que deve rugir, circular, que deve olhar em seu entorno e arrastar todos
os possíveis aliados, até mesmo D’Annunzio. No fim, porém, também nesse
caso, os líderes socialistas se distanciaram da aliança com o Vate, opondo
reservas e distinções pedantes como havia feito Togliatti com seu projeto dos
sovietes. Mais uma vez ironias, mais uma vez teorias, mais uma vez
sarcasmos. Os comunistas italianos se concentram apenas nas coisas
menores, duvidam, ironizam, mas os homens de Moscou vão entender — diz
Bombacci a si mesmo —, os pais da revolução, aqueles que a fizeram de fato,
não podem deixar de entender.
Na Dinamarca, Bombacci vê primeiro Leonid Krasin, o “mercador
vermelho”. Toda a sua numerosa delegação encontra-se com ele em 7 de abril
nas salas de uma cooperativa socialista local de portuários. Nas plataformas
do porto de Copenhague, o gelo está derretendo e se transforma em neve
acinzentada quando Krasin declara abertamente que recebeu a ordem
exclusiva de obter para Moscou o reconhecimento oficial do Estado italiano.
Nada mais. Aos “mercadores vermelhos”, a revolução proletária italiana, por
enquanto, parece não interessar nem um pouco.
Nicolino, então, deposita todas as esperanças no encontro com Litvinov, o
homem que, nas reuniões do Partido soviético, senta-se à direita de Lênin. O
comissário do povo para Negócios Estrangeiros é um homem gigantesco,
com uma cara grande e vigorosa que parece um presunto curado. Em sinal de
saudação, oferece a Bombacci um copo de vodca gelada. São somente 10h da
manhã, e o destilado, no estômago vazio de seu corpo fraco e miúdo, provoca
espasmos violentos. Assim que Bombacci, lutando contra as cólicas, começa
a falar com entusiasmo sobre a iminente revolução italiana, Litvinov o
interrompe. Na Itália, o Partido Socialista é forte, mas a facção revolucionária
é fraca, diz. Isto posto, também o homem que se senta à direita de Lênin,
exatamente como teria feito Togliatti, tempera a análise com sarcasmo: os
socialistas italianos durariam no poder no máximo dois meses. E com ironia:
“A revolução”, acrescenta Litvinov, “já foi feita, na Rússia, e agora o único
problema urgente da Rússia revolucionária é reestabelecer as relações
comerciais e políticas com os Estados capitalistas. Nada mais.”
Poucos dias depois, assim que retorna da Dinamarca, Bombacci deve
apresentar um relatório ao Conselho Nacional Socialista, que acontece em
Milão entre 18 e 22 de abril. É recebido com mais sarcasmo e ironia. Dessa
vez, seu velho amigo Benito Mussolini ridiculariza Bombacci nas colunas do
Il Popolo d’Italia por ter parado em Copenhague, “às portas do Paraíso”, e
não ter tido a curiosidade de ir um pouco mais além, até Moscou.
Falando à assembleia socialista de Milão em 20 de abril, Nicolino não
consegue esconder sua amargura. O mundo, é possível intuir, decepcionou-o
um pouco. Toda a primeira metade da sua participação transpira melancolias
boreais. Porém, quando se trata de mais uma vez atacar as cautelas social-
democratas, sua paixão se reacende. Grita que o erro dos moderados é ainda
não ter entendido que a nova revolução deve ser feita fora do Parlamento,
sem o Parlamento, contra o Parlamento... que eles, de fato, já saíram do
Parlamento... rumo à ditadura do proletariado... rumo ao sol do futuro... que
podem andar pelo Parlamento sem que o Parlamento lhes interesse,
exatamente como os padres que andam na terra, mas querem ir para o
Paraíso.
Embora Bombacci tenha optado dessa vez pelo caminho de volta, o
Paraíso continua a ser o destino final. Até os mestres do sarcasmo, no
entanto, permanecem à espreita. Quanto mais Nicolino fala da revolução,
mais a revolução parece desvanecer na sombra de uma sombra.
Marx nos ensinou que a revolução é um processo de
desenvolvimento e de transformação das relações sociais, nos
ensinou que, em contato com a realidade dessas relações, ou
seja, da economia, a revolução se torna algo real e concreto
que a vontade humana consubstancia sozinha: Bombacci
contenta-se com a forma. E a revolução [...] se torna para ele
uma palavra, uma sombra: os órgãos revolucionários que ele
gostaria de criar são a sombra de uma sombra.

Palmiro Togliatti, L’Ordine Nuovo, março de 1920

Acho que o ministro Litvinov arrefeceu o entusiasmo do


“cidadão” Bombacci de maneira tão irreparável que ele
preferiu o caminho de volta para esta pútrida Itália burguesa à
estrada que leva ao paraíso sublime dos sovietes.

Benito Mussolini, Il Popolo d’Italia, abril de 1920


Milão, 24 de maio de 1920
Segundo Congresso Nacional dos Fasci di Combattimento

A guinada definitiva para a direita acontece por volta da meia-noite.


O congresso começou na manhã de 23 de maio no Teatro Lirico com a
inauguração das novas flâmulas dos Arditi e dos fascistas. Até o momento da
entrega, as bandeirinhas triangulares ficaram guardadas embaixo de folhas de
papel de seda com cores pastel. Ferruccio Vecchi, ao receber a flâmula dos
Arditi, jurou que a bomba e o punhal jamais se dobrariam diante da foice e do
martelo. Mussolini, recebendo a flâmula dos Fasci di Combattimento,
prometeu que a permissividade do pós-guerra estava prestes a acabar, que a
Itália voltaria a honrar os Arditi, e que Fiume seria italiana. Também foi dada
certa importância à cenografia: no palco, uma miríade de bandeiras, soldados
fardados em semicírculo, coros patrióticos de meninas sob as bandeiras. Na
plateia, Filippo Tommaso Marinetti até achou “bonitinhas” as madrinhas que
recitavam “vigorosamente” os discursos decorados. Pela primeira vez, em
uma assembleia política, mulheres bonitas.
Todavia, o congresso de verdade só começa em 24 de maio. É a “reunião
mesquinha de sempre, que comunica a escassa vitalidade do movimento”,
anota Cesare Maria De Vecchi, fascista monarquista de Turim. Há semanas
que Mussolini anuncia nas colunas do Il Popolo d’Italia que a “hora da
desforra está próxima”, Pasella informa números animadores, mas a verdade
é que se contam 600 afiliados em Milão, 300 em Cremona graças ao ativismo
de Roberto Farinacci, apenas 300 na capital, 100 em Bolonha, Parma, Pavia,
Verona, 40 em Mântua, Oneglia e Caulônia, 20 em Piadena e Recco, e assim
por diante. No total, os fascistas inscritos e regularmente afiliados são 2.375
em toda a Itália. Essa é a base militante na qual se pode confiar.
Mais de um ano se passou desde a fundação; no entanto, a plateia que
Mussolini vê à sua frente no Teatro Lirico é pouco mais numerosa do que a
de San Sepolcro. Alguma coisa, porém, mudou. Os números se parecem, mas
os rostos já não são os mesmos. A falange de aventureiros, desajustados e
combatentes desmobilizados mantém sua posição. O rancor dos veteranos é
tenaz. Mas os sindicalistas da esquerda intervencionista a abandonaram, os
republicanos como Pietro Nenni se afastaram nos primeiros meses do ano, os
nacionalistas idealistas como Eno Mecheri foram embora para Fiume em
janeiro. Na plateia, não dominam mais as cabeleiras pitorescas de aspirantes a
poetas, dramaturgos, publicistas frustrados e desempregados. Em seu lugar,
na plateia do Teatro Lirico, notam-se comerciantes, funcionários públicos,
diretores de baixo escalão, os paletós dignos e surrados da pequena burguesia
empobrecida pela inflação desenfreada. Marinetti e os futuristas também
estão descontentes. Houve uma transfusão de sangue.
Apesar disso, a primeira aparição matinal de Mussolini foi prudente. Desde
o início do mês, vem lançando ameaças abertas aos socialistas. O ódio
daquela gente contra ele — escreve — é totalmente compreensível. Ele, de
fato, mantém a promessa feita na noite de sua expulsão do partido: será
implacável. E agora sente que o dia de sua vingança não está distante.
No entanto, na manhã do dia 24, no Teatro Lirico, o vingador faz um
primeiro discurso de mediação. Ainda afirma que não representa um ponto de
reação, ainda distingue o proletariado da direção socialista, volta a dizer que
quer se aproximar do povo.
A tarefa de cortar os laços é deixada para Cesare Rossi. Há meses Rossi
prega a necessidade de se proclamarem brutal e resolutamente conservadores
e reacionários. Também no congresso do Teatro Lirico, manifesta-se contra
os saltos no escuro, pinta a imagem de um proletariado incapaz de substituir a
burguesia, como uma plebe vermelha moralmente desequilibrada, egoísta,
inculta, sem alma, surda aos valores patrióticos, um rebanho de iludidos.
Acima de tudo, Rossi agora julga que o proletariado é inseparável do Partido
Socialista, já abraçou sua causa e, por isso, não merece qualquer indulgência.
É preciso olhar para aqueles que não “trabalham com o braço”. A pequena
burguesia é ainda mais maltratada do que os operários. Combater um duelo
decisivo a três não é possível. Por isso, os Fasci di Combattimento devem se
alinhar por enquanto com o regime atual, apesar de lhes causar asco. Nenhum
pré-requisito antimonárquico, mas puro oportunismo. Os aliados devem ser
escolhidos a cada vez, assim como o terreno do combate. Enquanto os Fasci
di Combattimento autodenominavam-se um antipartido, eram capazes de
viver de ar, mas agora precisam de uma base social. Acertarão as contas com
o decadente Estado liberal em seguida.
Rossi conclui seu discurso trêmulo de raiva. O extremismo do sindicalista
revolucionário que, antes da guerra, por ódio aos patrões, incendiava
palheiros nos campos de Parma e Placência não o abandonou. Agora, porém,
aquela aversão encontrou um novo alvo: dirige-se aos camponeses que antes
ele incitava à revolta. Cesare Rossi volta a seu lugar na plateia entre os
aplausos de boa parte do público.
Os futuristas, em contrapartida, rebelam-se contra a guinada à direita.
Marinetti se enfurece. Grita que a monarquia é uma mochila cheia de coisas
velhas a serem jogadas fora, ataca como sempre o Vaticano, fala de pastores
e de rebanho, atribui a si mesmo a função do cão inteligente que fica de
guarda quando o dono está bêbado. Termina com poesia: “Nós viemos do
Carso”, relembra, “não iremos rumo à reação.”
No jantar, Mussolini se reúne com os mais íntimos em uma trattoria do
Bottonuto, atrás do teatro. Comem alimentos gordurosos, bebem muito,
bebem mal. Pasella conta as carteirinhas vendidas a 50 centavos. É
imperativo centralizar a organização, deixar ao Comitê Central milanês a
possibilidade de exonerar dos cargos os secretários provinciais e, sobretudo,
reservar-se o direito de decidir quais federações financiar. Giovanni
Marinelli, responsável pela administração, se afunda em um meticuloso
relatório de caixa. Mussolini fica calado, come pouco, de má vontade, bebe
menos ainda. Parece ter uma ideia fixa. Antes de voltar ao teatro para a
sessão noturna, quando Rossi menciona o discurso de Marinetti, Mussolini
dispara contra o pitoresco fundador do futurismo: “Mas quem é esse palhaço
extravagante que quer fazer política e ninguém na Itália leva a sério, nem
mesmo eu!?”
Diante de uma plateia dizimada e abatida pela difícil digestão das proteínas
animais, Mussolini intervém mais uma vez pouco antes da meia-noite. Os
fascistas, como querem os industriais, devem apoiar uma redução liberalista
do Estado às funções de soldado, policial, juiz e cobrador de impostos. Nada
mais. É indispensável também favorecer a colaboração dos setores produtivos
do proletariado e da burguesia. O navio burguês não deve ser afundado. É
indispensável subir a bordo e tomar o controle da sala de máquinas. Todo
pré-requisito institucional deve, portanto, ser abandonado. Os fascistas
tendem desde sempre para a república, mas, se a situação exigir, manterão
também a monarquia.
O Fundador para por alguns segundos, olha ao redor da sala em busca de
Marinetti. Não o encontra. Então, os poucos que ainda estão despertos ouvem
o romanholo blasfemo que nem sequer batizou os filhos afirmar que o
Vaticano representa 400 milhões de homens espalhados por todo o mundo e
que qualquer política inteligente deve usar essa força colossal. O próprio
Lênin, na Rússia, deteve-se diante da autoridade do Santo Sínodo. A religião
deve ser respeitada.
Mal se passaram vinte minutos e, do programa de San Sepolcro, quase
nada sobrou. Antes da meia-noite, a guinada à direita se completou.
Na manhã seguinte, os trabalhos do segundo Congresso Nacional Fascista
se dissolvem. De dezenove integrantes do primeiro Comitê Central, apenas
dez foram reeleitos. Dois deles, Marinetti e Carli, renunciarão no dia
seguinte. Os nove integrantes novos vêm das províncias e são todos de
direita.
É um lindo dia de primavera no norte da Itália. Mussolini e Rossi param na
soleira da porta. A passagem da penumbra à luz é violenta. A cidade de
Milão parece completamente indiferente às discussões furiosas que até
poucos minutos antes aconteciam no teatro. Os funcionários dos escritórios
do Centro, voltando para suas escrivaninhas depois do horário de almoço,
desviam incomodados daquele pequeno grupo de boas-vidas que fica
embromando diante da entrada do Teatro Lirico. Ali ao lado, um quitandeiro
reabastece sua bancada. Põe em um cesto de vime ameixas recém-tiradas de
um caixote de madeira que chegou do campo e, após refrescá-las com um
borrifador, lustra-as com um pano macio como se fossem puxadores de latão.
Cesare Rossi indica a cena para Mussolini com um gesto da cabeça. O
futuro é dos comerciantes. Danem-se as extravagâncias dos futuristas...
Não devemos afundar o navio burguês, mas entrar nele e expulsar os
elementos parasitários [...]. O problema hoje é de restauração. Todas as
greves em grande estilo estão destinadas ao fracasso, como em Turim, na
França e em outros lugares. Não vão além de determinado limite. Os fascistas
não devem mudar a própria linha de conduta. Afinal, sempre somos
reacionários em relação a alguém.

Benito Mussolini, discurso no Congresso Nacional dos


Fasci di Combattimento, Milão, 25 de maio de 1920
Fiume d’Italia, 15 de junho de 1920

Em Fiume, é dia de São Guido, e toda a cidade está se preparando para ir à


festa. Só que em Fiume, nos últimos tempos, é sempre dia de São Guido, e a
cidade está sempre indo a uma festa.
Em 10 de junho, caiu de maneira definitiva o governo do odiado Francesco
Saverio Nitti e, em Fiume, festejou-se. Nitti caiu por causa do preço político
do pão em um país com fome enquanto, em Trieste, unidades de Arditi que
deveriam reforçar as guarnições italianas na Albânia se rebelavam contra os
oficiais e percorriam a cidade lançando granadas. Mas, em Fiume, festejaram
mesmo assim. D’Annunzio emanou uma violenta e alegre proclamação de
insultos contra Nitti exaltando a “deusa Vingança”.
Entretanto, a festa ininterrupta está lançando a cidade no caos. Todas as
forças de segurança estão abandonando Fiume. Em maio, as unidades de
carabineiros foram embora. Na barra de Cantrida, foram cercados pelos
Arditi, e um conflito armado fratricida eclodiu. Um oficial a cavalo apontou o
mosquete, foi atingido por um disparo na lateral do corpo e caiu no chão. O
cavalo atravessou a barra sem cavaleiro.
Na cidade, também surgem brigas entre as divisões; os oficiais chegam a
empunhar armas para agarrar os voluntários. Uma disciplina militar de
saqueadores embriagados. Do outro lado, o da revolução, fracassaram todas
as tentativas de um acordo com os socialistas promovidas por Bombacci para
uma conquista conjunta do poder. D’Annunzio foi, portanto, repudiado
também por eles. Até o Conselho Nacional Fiumano tem sido abertamente
hostil a ele. O Comandante está cada vez mais sozinho, isolado do mundo.
Para receber notícias sobre o que está acontecendo, deve esperar a leitura dos
jornais da manhã. Mas a vida é uma festa, Fiume é a “cidade da vida” e os
poetas se preparam para redimir o mundo que os repudia.
Há meses Léon Kochnitzky — um jovem poeta belga com talento
modesto, mas de grandes ideais — está trabalhando na Liga de Fiume, uma
assembleia que pretende reunir os representantes de todos os povos
oprimidos com o objetivo de se contrapor à Liga das Nações desejada pelo
presidente americano Wilson, definida por D’Annunzio como: “um complô
de ladrões e vigaristas privilegiados.” Fiume está isolada do mundo, mas não
importa, pois o projeto que Kochnitzky cria a partir do entusiasmo do
Comandante se expande para “todo o universo”. Todos os oprimidos da Terra
deverão fazer parte dele, povos, nações, raças. A lista que aparece nos
memorandos enviados ao Comandante abarca todas as nações (e os povos)
privadas de liberdade, com Fiume à frente: Dalmácia, Albânia, Áustria alemã,
Montenegro, Croácia, irredentistas alemães, catalães, malteses, de Gibraltar,
da Irlanda, flamengos, e também dos povos islâmicos do Marrocos, Argélia,
Tunísia, Líbia, Egito, Síria, Palestina, Mesopotâmia, Índia, Pérsia,
Afeganistão, chegando até quase os antípodas, convocando para Carnaro
também birmaneses, coreanos, filipinos, panamenhos e cubanos. Entre as
raças oprimidas listadas por Kochnitzky, não faltam nem mesmo os israelitas,
os negros americanos e os chineses da Califórnia. Este é o mundo sob a
perspectiva sem muito discernimento de D’Annunzio: um globo cintilante de
liberdade, dignidade e revolta. A sala de baile do espírito em festa.
Kochnitzky está inspirado, tem 28 anos, também é um poeta. Por isso, o
Comandante o nomeou ministro das Relações Exteriores.
Esses são os ideais. Na prática, porém, a atividade da Liga de Fiume se
reduz à trama de pequenas e obscuras intrigas balcânicas. Misteriosos chefes
de exércitos rebeldes croatas, montenegrinos, dálmatas, albaneses batem às
portas de Fiume para obter armas e dinheiro contra sérvios que querem
submetê-los a uma grande nação iugoslava. O dr. Ivo Frank, em nome dos
separatistas croatas, promete insurreições na primavera. Não precisa de
armas, apenas 12 milhões de liras. Imediatamente. Com essa condição,
promete um sucesso certeiro. Na opinião de Kochnitzky, esse tal Frank
parece um personagem-chave do paiol balcânico, um líder importante. As
informações da contraespionagem italiana são diferentes. Em um telegrama
ao general Caviglia, em abril, Nitti o define como “um aventureiro que, a
meu ver, faz jogo duplo e trabalha para a restauração dos Habsburgo”. Com
personagens desse tipo, os embaixadores do comando fiumano assinam
tratados secretos para redesenhar o mapa de um mundo livre.
Às vésperas do verão, Kochnitzky pede demissão. Em sua nota para o
Comandante, reconhece que “a Liga de Fiume foi transmutada em uma
ferramenta de uso balcânico”. Não pode ser esse o globo cintilante que se
molda às mãos de Gabriele D’Annunzio.
Antes de voltar para as terras baixas de Flandres, o jovem poeta belga
participa da festa pela última vez. Em 15 de junho, são celebrados os santos
padroeiros de Fiume. No costume popular, é chamada apenas de festa de São
Guido. Este ano, a cerimônia é ainda mais solene, porque dela participa o
Comandante com todo o seu estado-maior e uma delegação veneziana que
trouxe como presente uma lápide comemorativa de mármore com o leão
alado de São Marcos. Às 11h, na praça central, é inaugurada a lápide inserida
na fachada do palácio da prefeitura. O Leão de São Marcos, a pata cheia de
garras que segura o livro do evangelista, abre suas asas sobre Fiume e sobre o
mundo sonhador de Gabriele D’Annunzio. O poeta, que sempre atribuiu
idealmente à Sereníssima República de Veneza a filiação de Fiume, fica
entusiasmado. Fala de um dia glorioso, esculpido segundo a vontade da
Dominante. Lista todas as cidades da Ístria e da Dalmácia, de Muggia a Piran
e Poreč, de Zara a Šibenik e Split. Todos, por enquanto, fecharam o livro.
Todos são leões. É o dia da revanche. Seguem-se, à tarde, competições
esportivas e, à noite, bailes populares nos bairros antigos.
Ali, antes de partir para sempre, Kochnitzky grava em sua mente uma
lembrança indelével. Não poderá esquecer aquela atmosfera de festa
perpétua, os cortejos, as procissões, as fanfarras, os cantos, as danças, os
foguetes, os fogos de artifício, os discursos, a eloquência, a eloquência, a
eloquência... Na praça iluminada, admira as bandeiras, as grandes escritas, os
barcos com as lanterninhas floridas, porque até o mar tem sua parte na festa, e
as danças... as danças estão por toda parte: na praça, nos cruzamentos, no
cais; de dia, de noite, dança-se sempre, canta-se. E não são barcarolas sem
energia, mas fanfarras marciais. Todos bailam e dançam ao seu ritmo,
girando em um bacanal desenfreado de soldados, marinheiros, mulheres,
cidadãos. O olhar, onde quer que se detenha, vê uma dança: de lampiões, de
tochas, de estrelas. Faminta, destruída, angustiada, Fiume, agitando uma
tocha, dança diante do mar.
Enquanto Fiume dança, outro jovem poeta, o italiano Giovanni Comisso,
passeia na cidade em festa. Vai ao hospital militar para visitar um amigo.
Erra o caminho e vai parar na ala de doenças venéreas. Naquela cidade
povoada por jovens legionários armados prontos para abrir fogo contra o
mundo, é claramente a ala mais cheia. Comisso fica atônito. Os tratamentos
são confiados a uma mulher, jovem e enérgica, uma espécie de dona de casa
ou parteira. Com as mangas arregaçadas sobre os braços brancos e carnudos,
trata os terríveis Arditi como se fossem meninos birrentos. Com severidade,
manda que tirem as roupas e se deitem às dezenas sobre tábuas rústicas,
segura seus pênis flácidos como se fossem excrescências inúteis, abre feridas,
retira chumaços de algodão imundo, desinfeta, fecha de novo, rega,
massageia aqueles corpos musculosos e de uma magreza perfeita,
inconcebível para os povos que conheceram o bem-estar. Eles se viram,
dóceis, malandros, complacentes, e abandonam-se de lado, tristes.
A vida é uma festa. Nos pobres casebres da cidade antiga, as mulheres
retiraram as imagens dos santos. As lamparinas ardem diante do retrato de
Gabriele D’Annunzio. É o baile dos ardentes. Em face do mundo hostil e
covarde, Fiume dança diante do mar, diante da morte. Ainda não é sequer o
final: quase acabou, é a penúltima aventura. Mas não importa. O Comandante
mantém sua lamparina votiva acesa no altar de Zaratustra: a grandeza de um
homem é ser uma ponte, e não um fim. O que também pode nos agradar no
homem é que ele seja um ocaso.
Benito Mussolini
Verão de 1920

O cadáver massacrado do homem jaz no Piazzale Loreto. Os donos do bar


em que foi trucidado arrastaram-no para a calçada. O movimento dos
transeuntes se detém diante da carcaça humana em um soluço que não é de
choro.
O homem se chamava Giuseppe Ugolini, era um sargento dos carabineiros
e viajava de bonde em uma cidade mais uma vez paralisada pela greve dos
ferroviários, novamente em estado de sítio. Um grupo de grevistas bloqueou
o bonde, mandou que os passageiros descessem e que Ugolini entregasse as
armas. O militar desceu e abriu fogo, matando na hora um operário de 19
anos e um ex-funcionário da Guardia di Finanze. A multidão perseguiu-o,
agrediu-o, linchou-o ali mesmo. Deram-lhe cabo a tiros de revólver,
disparados à queima-roupa no corpo já abatido, no bar em que se refugiara.
Os jornais noticiaram que cortaram seus dedos para pegar os anéis e a aliança
“A história italiana não tem episódios tão atrozes quanto o do Piazzale
Loreto. Nem mesmo as tribos antropófagas se lançam com fúria sobre os
mortos. É necessário dizer que aqueles linchadores não representam o futuro,
mas o retorno do homem ancestral.” No Il Popolo d’Italia, Mussolini
comenta com o tom grave, mas enxuto, de quem tem um sentimento
verdadeiro. Diferente do que costuma acontecer, parece sinceramente
abalado. Em vez de negar de maneira explícita, temos a impressão de que o
autor do artigo vê o canibalismo no horizonte do futuro.
O fundador dos Fasci di Combattimento parece assustado. Até aceita ser
seguido, a distância, por uma escolta de dois Arditi. Há semanas, reiniciou o
tumulto incessante e trágico das greves, manifestações, confrontos nas
praças; há semanas, em toda a Itália, os carabineiros atiram nos operários
com o frenesi de fuziladores obsessos, contam-se novamente dezenas de
mortos e feridos; os assassinos de hoje são os assassinados de ontem, os
canibais canibalizados; no entanto, para Mussolini, esse cadáver parece
diferente. O histrião parece, para variar, reduzir a distância entre o mundo e o
próprio sentimento do mundo. Parece que o diretor do Il Popolo d’Italia está
comentando o próprio suplício.
Em Ancona, no fim de junho, amotinou-se um regimento inteiro de
bersaglieri que deveria reforçar o comando militar italiano de Vlorë,
ameaçado por rebeldes albaneses. A população operária da cidade rebelou-se
em apoio aos soldados insubordinados. Atacaram a tiros de canhão o quartel
para fazê-los sair dali. A crise militar do Exército italiano é desanimadora.
Mussolini, desconsolado, escreve a D’Annunzio lamentando a “tremenda
crise de avacalhamento” atravessada pela Itália.
Também há momentos de entusiasmo. Esses também, ao que parece,
sinceros. Quando, em 17 de julho, os fascistas de Francesco Giunta
incendeiam o Hotel Balkan, sede da organização nacional dos eslovenos de
Trieste, Mussolini exulta: “Podemos dizer, sem cair na retórica, que é a hora
do fascismo!”
Giunta é um advogado toscano, intervencionista voluntário, ex-capitão e
legionário dannunziano, que se distinguiu nos movimentos contra a carestia
de 1919 em Florença por ter comandado o ataque a uma loja de calçados.
Depois de Fiume, Mussolini o enviou para organizar os Fasci di
Combattimento da Veneza Júlia na fronteira eslovena. Giunta os organizou
com precisão militar, subdividindo-os em grupos destinados a territórios
específicos. Trieste respondeu magnificamente. Nas zonas de fronteira, ao
inimigo de classe se soma o inimigo da pátria; ao bolchevique, o estrangeiro;
ao socialista, o eslavo: os operários eslovenos também são comunistas. A
mistura é explosiva e perfeita para que o fascismo crie raízes.
A fagulha surgiu durante uma manifestação para protestar contra o
assassinato na Croácia de dois soldados italianos. Longe do palco, no qual
Giunta invocava a lei de talião (“É necessário lembrar e odiar”), um rapaz é
esfaqueado numa briga entre italianos e eslovenos. Chama-se Giovanni Nini,
tem 17 anos, é de Novara, cozinheiro na trattoria Bonavia. Segundo alguns,
estava apenas passando por ali. Parece que, durante a agressão, antes que a
lâmina cortasse seu fígado, ele gritou: “Não tenho nada a ver com isso!” Mas
não importa. Um mártir é um mártir, a despeito das suas opiniões.
Após o esfaqueamento do patriota italiano, os fascistas de Giunta logo
abandonam a praça, marchando em colunas disciplinadas nas quais muitos
observadores percebem um plano premeditado. Uma hora mais tarde, as
chamas se deflagram no maciço edifício do Hotel Balkan, onde os
representantes dos eslovenos de Trieste ficam sitiados e submetidos aos tiros
de catapultas improvisadas. No dia seguinte, a sede do Fascio di
Combattimento em Trieste é invadida por uma multidão que pede para se
afiliar.
— O Balkan — anuncia Giunta, radiante, a todos os novos afiliados — é
nosso programa eleitoral.
Entusiasmante. Não resta dúvida. Aquele é o caminho. Organizar-se
militarmente. É o que Cesare Rossi repete a Mussolini há meses. Em 18 de
julho, os Arditi da Via Cerva pronunciaram um novo juramento de lealdade
pessoal ao fundador dos Fasci di Combattimento. Poucos dias depois,
D’Annunzio faz de Fiume uma proclamação aos Arditi. O poeta gritou que
coisas que cortam e explodem nunca o intimidaram. Dando asas ao
entusiasmo — é preciso dizer —, Mussolini até retoma as aulas de voo. O
instrutor, o tenente Redaelli, o vê chegar afobado, às vezes até de bicicleta,
ainda usando a roupa de diretor de jornal: terno preto, chapéu duro, polainas
cinzentas. O fundador dos Fasci di Combattimento está tão determinado,
impetuoso, que, quando surge, abre-se à sua volta um vazio. Um vazio de dar
medo.
Em seguida, porém, o país volta a cair na depressão, e ele também. O novo
governo decidiu abandonar o protetorado da Albânia, uma das poucas
conquistas que restam à Itália da Primeira Guerra Mundial, uma guerra paga
com o preço de 600 mil mortos. Tudo desmorona. Tudo é um lamaçal,
burguesia e proletariado, governo e governantes. Naquela terra miserável de
leis tribais, de febres quartãs, de tifo e malária, os soldados italianos haviam
sulcado estradas, marchado contra os guerreiros sérvios, ainda que reduzidos
a fantasmas, esqueletos vagantes, saciando a fome com ervas e a sede em
poças infectadas por carniças e cadáveres. Agora a grande exibição de
avacalhamento atinge todos nós, dos governantes ao povo, leva-nos a
abandonar até aquela ínfima posse além-mar. Fora da Albânia, fora de tudo,
vamos nos reduzir ao osso, vamos acabar cuspindo uns nos outros. Mas a paz
a todo custo não vai nos poupar uma nova guerra. Vai jogá-la contra nós. É
preciso ter coragem de atear fogo na casa para poder salvá-la.
Cesare Rossi jura ter visto em 2 de agosto Mussolini chorar ao receber a
notícia da retirada da Albânia. É um verão de comoções. O coração afunda.
Nunca conseguimos olhar além do monte, além do mar. Tem sempre um fim
de mundo qualquer que enlouquece e resolve brincar de revolução, tornando-
se por alguns dias o centro das atenções nacionais enquanto, do outro lado
das fronteiras, os outros nos fodem. Somos uma nação-carnaval, um país-
avanspettacolo. Cante que passa! Cante “‘A tazza’ e caffè!”. Cante Bandiera
rossa! Tudo desmorona. Tudo vai para o brejo.
Em 1915, ele contribuiu para inserir a história da Itália na história do
mundo, na guerra mundial. Arrancou-a com violência da sua soneca
provincial. Mas esta Itália ainda é a de ontem, a de sempre. Sempre prontos
para festejar. A estação dos figos docíssimos está quase no auge outra vez. Se
você quer fazer uma política mundial, precisa ter demonstrado que pode
aguentar uma catástrofe nacional, deve levar jeito para o estilo trágico. Veja
D’Annunzio em Fiume: ele não tem medo dos objetos cortantes. Mas aqui o
verão chega sempre cedo demais e dura o ano todo.
Os piores são os burgueses ricos. Sentem-se perdidos. Informam-se sobre a
data da revolução para saber se podem confiar e ir mais uma vez passar o
verão no campo. Mais uma vez, desertamos a história e nos reduzimos às
crônicas da atualidade. Os redatores já estão com os artigos de sempre sobre
as férias de agosto prontos.
A história italiana não tem episódios atrozes como o do
Piazzale Loreto. Nem mesmo as tribos antropófagas se lançam
com fúria sobre os mortos. É necessário dizer que aqueles
linchadores não representam o futuro, mas o retorno do
homem ancestral [...]. Hoje a pregação socialista empenha-se
no ódio e na violência; excita todos os instintos mais egoístas
das massas e procura elaborar os órgãos do terror vermelho de
amanhã [...]. Nós continuaremos a ser indicados nas multidões
como “sicários”, “vendidos” e não haverá possibilidade de
trégua civil.

Benito Mussolini, “Crocodilos!”,


Il Popolo d’Italia, 26 de junho de 1920

Meu caro Comandante, escrevo com pouca frequência porque a luta contra
a bestialidade devastadora que se espalha me consome [...]. Estamos saindo
de duas semanas de movimentos caóticos e muito sangrentos. Movimentos
sem direção e dirigentes sem objetivo. A Itália atravessa uma tremenda crise
de avacalhamento. A palavra de ordem é: fora! Fora de Vlorë! Fora de
Trípoli! Fora da Dalmácia! É um fenômeno de desintegração espiritual e de
covardia individual.

Benito Mussolini, carta a D’Annunzio, 30 de junho de 1920


Leandro Arpinati
Vale do Pó, verão de 1920

Ao longo do vale do rio Pó, estende-se a maior planície da Europa


meridional, uma região muito fértil, de cultivo intensivo e altíssimo
rendimento. Há séculos, no Vale do Pó, camponeses trabalhadores
arrancaram a terra da água empoçada, da podridão dos juncais, da malária.
Drenada a água, emersas as terras férteis, surgiram por toda parte as
plantações, as indústrias correlatas, as casas habitadas por uma população
abundante. O grande rio escorre benéfico e solene.
Em agosto de 1920, os cereais apodrecem nos campos ceifados, mas não
debulhados. A decomposição é acelerada pela disposição em forma de
caldeira, que favorece a estagnação de ar quente e úmido, uma vez recebido o
ciclone subtropical que sopra do norte da África. Está fazendo quase 40 graus
na planície do rio Pó e os grãos sufocam, não separados do folhelho, no
invólucro da espiga. Sobre o grão que apodrece, estende-se por quilômetros,
como uma sirene de alarme aéreo, o mugido dilacerante das vacas não
ordenhadas. O ódio dos camponeses em luta mortal contra os patrões os
tornou cruéis. Estimularam a produção de leite massageando os úberes e aí
trancaram a porta dos estábulos. O leite fermenta, as bactérias proliferam, as
tetas desenvolvem mastite. Com a boca escancarada, fazendo vibrar as
grandes línguas porosas, as vacas emitem na grande planície gritos
desesperados de alta frequência. Imploram aos próprios vitelos, com suas
bocas vorazes por leite, que venham salvá-las da dor.
As vacas não ordenhadas são apenas um episódio da maior ofensiva das
ligas camponesas contra os patrões. Os “baronatos vermelhos”, como os
chama com desprezo o chefe comunista obreirista Palmiro Togliatti, optaram
por uma luta sem fim. Na Emília, os socialistas controlam 223 municípios de
um total de 280. A economia rural e as atividades industriais são muito
rentáveis, mas, enquanto para os patrões se trata de uma questão de lucro,
para os camponeses é uma de vida ou morte. A população de assalariados
rurais temporários consegue trabalhar em média 120 dias por ano, por isso
precisa de salários altos para não morrer de fome nos meses improdutivos.
Nas lutas da primavera, as ligas camponesas conseguiram que toda a
contratação de mão de obra passasse por suas centrais de empregos. Agora
controlam toda a vida econômica das províncias, administram tudo: turnos de
trabalho, funcionamento das debulhadoras, fornecimento de sementes e safras
agrícolas. Para funcionar, o sistema deve ser totalitário, o controle da mão de
obra, completo. Basta os arrendatários não respeitarem a disciplina proletária
dos assalariados temporários, basta algum desesperado aceitar um salário
mais baixo, basta abrir uma pequena brecha para a ação dos fura-greves, e o
sistema desmorona. Por isso, quem cede e aceita trabalhar por menos,
reduzindo o espaço vital dos outros, é atormentado sem piedade. O padeiro
nega-lhe o pão, todos o abandonam, emigrar é a única solução. Os
proprietários que violam os acordos sobre o imposto local da mão de obra são
obrigados a pagar tributos e multas.
Ferrara é a província mais vermelha da Itália. Para destacar sua primazia, o
vermelho não basta: foi rebatizada de “província escarlate”. Em meados de
maio, o primeiro Congresso das Ligas de Unidade Proletária contou com 81
mil inscritos, entre operários agrícolas, arrendatários, meeiros e pequenos
proprietários. Os presentes são mais do que o dobro em relação a dez anos
antes, a expansão é contínua, progressiva, impressionante. A vitória nas lutas
da primavera foi acachapante. Primeiro os assalariados temporários, em
seguida os meeiros e os arrendatários, impuseram sua vontade aos patrões.
Ditam as condições de trabalho, os níveis salariais, até a escolha dos cultivos.
Os proprietários estão reduzidos a pouco mais do que o fornecimento de
capital. O ódio ancestral dos patrões em relação ao miserável que aspira a
uma repartição diferente da terra volta a despertar.
Na outra trincheira, a expectativa dos camponeses é febril: a revolução
prometida ao longo de todo o ano de 1919 não pode estar longe. Esse triunfo
sobre os patrões já deve ser necessariamente uma fase pré-revolucionária.
Não é possível fugir. Por isso, chegam a trancar os estábulos dos renitentes, a
incendiar os paióis, até a mutilar os animais e a atormentar os homens. Em
Tamara, perto de Copparo, um contador tenta arrendar suas terras a 25
famílias sem o acordo das ligas. Seus campos são incendiados, os animais,
mortos, os homens, surrados. Em agosto, permaneciam apenas 4 das 25
famílias. Em Berra, um certo Luigi Bonati compra uma pequena propriedade
com a intenção de cultivá-la pessoalmente. A liga o condena a boicote
vitalício, obrigando-o a abandonar o vilarejo. Em San Bartolomeo in Bosco,
um jovem veterano tenta fundar um círculo com orientação nacionalista. O
pai é boicotado até aceitar expulsar o filho. Suas colheitas apodrecem nos
campos. Ainda em Copparo, o arrendatário Roncaglia é ferido mortalmente,
pois se negou a aderir à greve e abandonar os animais que lhe foram
confiados. Mors tua, vita mea. O poder, no entanto, degenera, não se sacia
com a morte, estende-se sempre até a vida. Em Cona, o chefe da liga decide
até mesmo em que dias de festa os jovens podem dançar e estabelece de
maneira autoritária o calendário dos espetáculos de marionetes.
Agora o ponto mais fervoroso do front se desloca para a província de
Bolonha. As agitações camponesas, iniciadas no fim de 1919 por causa dos
novos contratos de trabalho, já duram oito meses. A luta se torna dramática
quando os trabalhadores temporários se negam a debulhar a safra. Reúnem-se
nas vias públicas, onde a polícia não os pode prender, tocam os sinos a rebate
e, quando são milhares, invadem os campos. Irrompem todos, homens,
mulheres e crianças, em massa, para destruir as debulhadoras. Até meados do
mês, ainda não aconteceu nenhum episódio cruento. Mas está próximo... está
próximo.
Em 17 de agosto, enquanto os que podem estão na praia, em Bolonha, no
meio do caldeirão fervente do rio Pó, pela primeira vez os proprietários de
terras se unem em uma federação nacional. Nasce a Confederação Geral de
Agricultura. O ódio se acumula. Os acordos com os governadores de
províncias e chefes de polícia são feitos por debaixo dos panos. Começa o
calvário.
Leandro Arpinati está desaparecido. O Comitê Central dos Fasci di
Combattimento milaneses não tem nenhuma notícia dele. Deve ter sido
tragado, em algum ponto ao longo do curso do grande rio que dá nome à
planície, por alguma corrente de desalento, de arroubo vital juvenil ou de
amor por sua bela e fria Rina.
Benito Mussolini
Milão, 28 de setembro de 1920

A fábrica de automóveis Alfa Romeo em Portello é um moderníssimo


estabelecimento industrial na periferia noroeste de Milão e está na vanguarda
da Europa. Seus engenheiros estão preparando o lançamento do modelo Alfa
Romeo RL, um inovador esportivo com motor de seis cilindros em linha,
dotado de carroceria conversível com dois lugares e em forma de torpedo.
Será o primeiro modelo esportivo produzido após o final da guerra e visa
completar a série, ocupando uma faixa de mercado até este momento vazia.
Executivos, diretores e proprietários depositam grandes esperanças neste
Torpedo vermelho a ser produzido em série e em diferentes versões. Os
operários, todavia, também têm grandes esperanças. No estabelecimento da
Alfa Romeo em Portello, em primeiro de setembro, tremulam as bandeiras,
vermelhas como o Torpedo, mas com a foice e o martelo.
Tudo começou ali. O antecedente é sempre o mesmo: a longa e espinhosa
disputa por aumentos salariais. As negociações foram interrompidas em
meados de agosto quando o advogado Rotigliano, chefe da delegação
patronal, no meio da discussão com os representantes dos operários,
levantou-se e começou a ajeitar as calças:
“Toda discussão é inútil”, disse, ao que parece. “Os industriais são
contrários a qualquer concessão. Desde que a guerra acabou, estamos sempre
abaixando as calças. Agora chega. E vamos começar por vocês.”
Os operários reagiram à ruptura com obstrução. Uma forma de greve
branca que desacelera o ritmo da produção sem a abstenção do trabalho. Em
30 de agosto, embora o governador da província de Milão tenha tentado
impedi-lo, Nicola Romeo, um engenheiro napolitano que ganhou dinheiro
com a guerra e com a faladíssima Banca Italiana di Sconto (BIS), proclama o
lockout de sua fábrica. A FIOM, federação que é o sindicato dos
metalúrgicos, proclama a sua ocupação. Em poucas horas, todas as fábricas
milanesas são invadidas por operários: os diretores, e às vezes os
proprietários, são feitos reféns. No dia seguinte, os industriais decidem o
lockout em nível nacional. A Confederação Geral do Trabalho revida: mais
de 500 mil operários ocupam 600 manufaturas em toda a Itália. A operação é
tão rápida e arrebatadora que pega todos de surpresa. Os governadores de
província, totalmente às escuras, sabem das notícias pelos jornais. De
Savigliano a Bagnoli, de Monfalcone a Castellamare del Golfo, de Turim a
Bari, as oficinas da Itália passam para as mãos dos operários. Os pátios e
galpões se transformam em acampamentos. Na Alfa Romeo, a bandeira
vermelha tremula. Ali perto, Cesare Isotta e Vincenzo Fraschini, fundadores
da empresa homônima, são mantidos reféns em seus próprios escritórios.
O grande medo toma conta das classes burguesas. No vale do rio Pó, as
disputas pelo acordo agrícola concluem-se com a vitória total dos
camponeses. Agora é a vez das fábricas. Tudo indica uma guerra civil. O
socialismo está chegando, gritam nas oficinas. “Uma declaração de guerra”,
escreve o economista liberal Luigi Einaudi no Corriere della Sera sobre a
ocupação das fábricas. O choque psicológico aniquila a alegria patriótica pela
empolgante vitória de Ugo Frigerio, que ganhou duas medalhas de ouro na
marcha nos VII Jogos Olímpicos da Antuérpia e de Nedo Nadi, que
conquistou cinco medalhas de ouro no florete individual e por equipes. De
repente, após as manchetes em letras garrafais, ninguém se lembra mais
deles.
Não falta violência. Os operários improvisaram comandos armados com
corpos de guarda, guaritas, sentinelas, capacetes, fuzis. Os “guardas
vermelhos” posam diante das objetivas dos fotógrafos dispostos em duas
filas, em pé ou agachados, como nas fotos de escola ou de times de futebol.
Seguram os fuzis em posição de tiro. Em Gênova, já em 2 de setembro,
contaram-se um morto e vários feridos. Mas aquela era a faísca. Em Trieste,
os habitantes do bairro San Giacomo, que se rebelaram durante o funeral de
um operário assassinado por capangas contratados, acabaram com um guarda
real. Foi necessária a brigada Sassari para expugnar as barricadas. Mas
Trieste é um caso à parte. Em Turim, o industrial Francesco Debenedetti,
caçador experiente, proprietário de uma fundição, na tarde de domingo, por
volta do meio-dia, do sótão de sua fundição, deu tiros de espingarda na
fábrica Capamianto, ocupada pelos operários, matando um sapateiro belga
Raffaele Vandich e Tommaso Gatti da Barletta. Mas ainda são todos casos de
exasperação individual. Fica-se aguardando a revolução.
São os dias da glória operária, os dias em que todos se elevam à altura do
próprio destino. A produção, de fato, passou para a mão do operariado. Sem
financiamentos dos bancos, suprimento de matérias-primas e orientação de
técnicos e engenheiros, os torneiros, fresadores, montadores de tubulações ou
simples trabalhadores braçais fazem funcionar sozinhos o processo industrial.
Homens robustos, simples e brutos se autodisciplinam com rigor: proíbem a
si mesmos o consumo de bebidas alcoólicas durante os turnos na oficina,
instituem turnos de vigilância para evitar furtos, protegem com escrúpulo
maquinário e materiais. Durante trinta dias memoráveis, a classe operária faz
frente ao dinheiro, à organização, à técnica, com uma profusão de energia
moral, uma corrida rumo a formas superiores de atividade humana. Durante
quatro semanas, os operários não são mais somente braços e costas cansadas,
não são mais apêndices vivos das máquinas. Merecem a revolução.
Mas ela, mais uma vez, não chega. Os dirigentes socialistas decidem,
novamente, adiá-la. Os chefes obreiristas de Turim temem que, ao levarem
sozinhos a luta do ambiente fechado das fábricas para as ruas, serão
esmagados. Sentem que a diferença é enorme. Estão armados, mas seu
arsenal não aguentaria dez minutos de fogo. Os líderes da Confederação
Geral do Trabalho delegam a decisão aos dirigentes do Partido Socialista.
Com base nos acordos, a prerrogativa é deles. Os dirigentes do partido não a
exercem e procrastinam mais o evento. Chega, então, o momento de
Giovanni Giolitti.
Com 80 anos, tendo sido cinco vezes presidente do Conselho de Ministros
com sorte alternada ao longo de três décadas, com bigode comprido e grosso
de granadeiro, 1,85 metro e 90 quilos, Giolitti é um gigante, também do
ponto de vista físico. Um patriarca entalhado em mogno, um daqueles
homens que batizam não um semestre, mas uma época. Dominou a vida
política italiana desde o fim do século anterior exercendo a arte da mediação,
do possível, do meio-termo, o domínio das combinações parlamentares, dos
privilégios das castas, das burocracias ministeriais. Após sua sólida oposição
à entrada da Itália na guerra em 1915, nos dias em que os nacionalistas
tentavam tomar de assalto sua residência, todos o consideravam um político
acabado. Mas, quando em junho Francesco Saverio Nitti caiu
definitivamente, com a revolução socialista às portas e o país passando fome,
o rei encarregou Giovanni Giolitti de formar seu quinto governo. No fim
dessa nova e longa estação seca, a burguesia se voltou para ele como se
Giolitti fosse o mago da chuva.
Convencido desde sempre de que por trás das greves existem motivos
econômicos, e não políticos, o estadista piemontês também desta vez se nega
a reprimi-los com sangue, como pedem os industriais. A Giovanni Agnelli,
que o critica por não usar a força contra os operários, Giolitti rebate com
sarcasmo:
“Muito bem, senador, tenho justamente um batalhão de artilharia
aquartelado em Turim. Vou colocá-lo diante dos portões da Fiat e ordenar
que abra fogo contra a sua fábrica.”
Dessa maneira, Giolitti consegue obter um acordo no qual Agnelli, De
Benedetti e Pirelli, no Hotel Bologna de Turim, concedem aos operários
aumentos salariais, melhorias normativas e até mesmo o princípio do controle
operário e da participação nos lucros. Esses últimos deverão permanecer, nas
intenções de Giolitti, uma mera promessa. Em troca, os proletários se
comprometem a devolver as fábricas. Para os trabalhadores, é uma
significativa vitória econômica e uma total derrota política. A revolução em
troca de um prato de lentilhas.
Em meio a toda essa confusão, Mussolini não se mexeu. Agitou-se,
gesticulou, andou de um lado a outro, escreveu a favor e contra, mas não se
mexeu. Ganhar tempo: às vezes não há mais nada a fazer. Quando todo o
mundo desmorona à sua volta, você permanece no lugar. Ele começou a não
se mexer já em junho, quando o rei encarregou Giolitti, seu inimigo histórico
nos tempos da guerra da Líbia e, então, do intervencionismo. Surpreendendo
a todos, o diretor do Il Popolo d’Italia, em uma reunião na sede do jornal,
saudou com fervor o retorno de Giolitti como o único estadista capaz de
restabelecer o equilíbrio social e de restaurar a ordem interna. Em seguida,
Benito Mussolini continuou sem se mexer durante todo o mês de setembro.
Foi a toda parte, mas não se mexeu. Flertou com todos — fascistas radicais,
sindicalistas “vermelhos”, operários, nacionalistas de Trieste —, mas não
tomou partido algum.
No começo do mês, Mussolini estava em Cremona, com Roberto
Farinacci, na convenção lombarda dos Fasci di Combattimento, fazendo
ameaças (“A quem nos agredir, atiraremos sempre na fuça”); em 16 de
setembro, porém, no Hotel Lombardia, na Via Agnello, em Milão, encontrou-
se em sigilo com Bruno Buozzi, líder do sindicato dos metalúrgicos,
reiterando seu apoio às lutas dos operários que não entrassem no terreno
político (“Para mim, não faz diferença se as fábricas são administradas pelos
operários ou pelos industriais”). Um pé em cada canoa, como sempre. Por
fim, no dia 19, partiu para Trieste, onde, diante de milhares de pessoas,
ridicularizou a loucura dos bolcheviques italianos: “Como vocês acham que o
comunismo seria possível na Itália, o país mais individualista do mundo?”
Foi lindo. Ele não via uma multidão como aquela desde os tempos dos
comícios socialistas.
Enquanto isso, nas fábricas, tocava a sirene da dispersão e da derrota. A
retirada, após um mês inteiro de ocupação, é submetida a um referendo entre
os ocupantes. Em Milão, 70% dos operários a aprovam. Em Turim, todos
abandonam-se ao desânimo de violências crescentes e insensatas. Confiscos
de propriedades, tiroteios com as forças de segurança, tocaias noturnas.
Funerais de operários. Batalhas sangrentas em volta dos caixões. Após as
cerimônias fúnebres, um jovem empregado da Fiat, voluntário de guerra,
contrário à ocupação desde o início, e um guarda carcerário de 20 anos são
sequestrados pelos ocupantes do estabelecimento Bevilacqua. Submetidos a
julgamento por um tribunal popular improvisado, do qual também participam
três mulheres, são condenados à morte. Descarta-se a hipótese de jogá-los nos
altos-fornos, desligados por causa da greve. Seus cadáveres mutilados serão
encontrados três dias depois, ao nascer do dia 24 de setembro. É a hora do
precipício e da recriminação. Começa a evacuação das fábricas. A classe
operária está exausta, cansada, desiludida. Por uma espécie de simpatia
cósmica com a desilusão, das margens do Vístula, chega a notícia de que o
avanço triunfal do Exército Vermelho rumo ao Ocidente foi freado pelos
poloneses às portas de Varsóvia. No terreno do confronto, resta o cadáver da
revolução.
Mussolini não se mexe nem mesmo agora. Agarrado à sua escrivaninha, no
editorial desta manhã exaltou a suposta vitória dos operários que, na sua
qualidade de produtores, conquistaram o direito de controlar toda a atividade
econômica. Proclamou com ênfase que uma relação jurídica de vários séculos
de submissão foi, enfim, rompida. Contudo, também acrescentou que
“quando a luta tiver chegado ao dilema Itália ou Rússia, será necessário levar
o combate até o fim e direcioná-lo para uma decisão”.
Mas são apenas palavras. Quando seus inimigos estão degolando uns aos
outros, a única coisa a fazer é esperar. E os inimigos são muitos, por isso é
preciso saber esperar muito tempo. Carece dar ao ferro o tempo de ser
deteriorado pela ferrugem; ao metano, o tempo de queimar o oxigênio; ao
estômago, o tempo de digerir os alimentos. Ele aprendeu a esperar: é
revolucionário ou conservador de acordo com as circunstâncias. Ele não se
ilude a respeito disso: sabe que é apenas um reagente. Deve-se dar às
moléculas o tempo de se chocar com violência.
Cesare Maria De Vecchi, a esta altura já líder indiscutível do Fascio di
Combattimento local, relatou que em Turim, no Corso Moncalieri, no
segundo dia da ocupação, para retirar os operários, os industriais já tomavam
de assalto a sede da Associação dos Combatentes empunhando notas de mil
liras. Trata-se apenas de esperar. E de estarem prontos no momento certo. O
senador Giovanni Agnelli, o dono da cidade, ao voltar à Fiat, teve de passar
embaixo de um arco de bandeiras vermelhas e ouvir seus operários gritarem
em seus ouvidos “Vivam os sovietes!”. No escritório, em cima de sua
escrivaninha, encontrou pendurado o retrato de Lênin coroado por foice e
martelo.
Vamos dar tempo ao tempo. A revanche dos dominantes vai irromper. Para
aqueles como Agnelli, mesmo após terem recuperado o comando, as oficinas
continuam habitadas por espíritos malignos. Vai ser necessário um exorcismo
gigantesco.
Não existe industrial que não esteja em estado de excitação
e furor, a ponto de conceber os propósitos mais loucos, desde
a recusa aberta da aceitação dos acordos até a sabotagem dos
seus resultados ou a derrubada, no Parlamento ou nas ruas, do
odiado governo.

Ottavio Pastore, Avanti!,


edição de Turim, 22 de setembro de 1920

Estamos mal! [...]. Esse controle, demandado pelas organizações operárias


com a finalidade de chegar à administração das empresas sem a necessidade
dos chamados patrões, representaria um forte retrocesso prejudicial à
produção [...]. De qualquer forma, deve ficar bem claro o conceito, inclusive
para os parlamentares, de que, como condição absoluta, os industriais pedirão
o restabelecimento do império da legalidade nas oficinas e fora delas, e isso
antes de iniciar qualquer tratativa.
A favor dessa intenção está o fato, que me parece comprovado, de que em
muitas fábricas foram importados milhares de fuzis, revólveres e bombas,
toneladas de cheddite e nitroglicerina. Pobre país! Quando vejo tremular
sobre os edifícios a bandeira vermelha, sinto-me profundamente desanimado.
O que esperam esses desgraçados? Não percebem que vão ao encontro da
própria ruína?

Do diário de Ettore Conti, magnata da indústria elétrica,


8-10 de setembro de 1920

Tudo é preferível a esta vida miserável, a esta agonia


vergonhosa na qual a Itália, vencedora da Grande Guerra,
gagueja a linguagem do medo.

Comentário sobre a ocupação das fábricas,


Corriere della Sera, 20 de setembro de 1920
Amerigo Dùmini
Montespertoli, 11 de outubro de 1920

A bandeira pende do mastro da prefeitura bem no meio da praça, vermelha


como os tijolos das torres gêmeas do relógio, a algumas ruas de distância.
Seu tecido está completamente imóvel, como um pendão de cimento. É uma
enorme bandeira vermelha — deve pesar 5 quilos —, para fazê-la tremular
seria necessária a tramontana. Parece que foi levada até o primeiro andar da
prefeitura por uma multidão de rapazes entusiasmados no dia das eleições ao
som de uma banda que entoava o hino dos trabalhadores. A vitória dos
socialistas foi esmagadora. Antes da manhã seguinte, aquele trapo vermelho
será recolhido, nem que tenham de arrancá-lo a dentadas.
Afinal, vieram de Florença para isso. Abbatemaggio, que está ali há uma
semana em missão de reconhecimento para coordenar a expedição com os
fascistas locais, diz que não há mais nada para se fazer no vilarejo. A não ser
beber Chianti.
Quando Amerigo Dùmini chega de Florença com Frullini e outros dois
fascistas no ônibus da Sita que sai de Santa Maria Novella, o camarada
napolitano já está bêbado. Gennaro Abbatemaggio é, sem dúvida, um
homenzarrão alto, parrudo, bigodão preto, pronto para a briga, mau a ponto
de quebrar dentes usando só as mãos, mas tagarela o tempo todo com aquela
sua voz de barítono e seu sotaque do Sul. Por sorte, parece que o pessoal
local não o reconheceu. São camponeses, cuidam do trabalho agrícola e não
acompanham as notícias, a não ser as pregações do Avanti!. Porém, antes da
guerra, falou-se muito desse camorrista infame que “dedurou” os compadres.
Gennaro Abbatemaggio. No mundo do crime, era chamado de “’o
Cucchiarello”, o cocheiro, por sua experiência em despistar. Havia acusado
seis integrantes de um clã do homicídio de um outro camorrista, um tal
Gennaro Cuocolo, e de sua mulher, estripada em seu quarto com 16 facadas.
Tinha também a história de um anel arrancado da vítima e encontrado na lã
de um colchão. Mais tarde, o acusador veio a se retratar e depor contra outros
supostos mandantes em uma nova versão dos fatos. Até acusou a si mesmo
de alguns roubos. Uma grande confusão. Os carabineiros, falsificando as
evidências, puseram atrás das grades quase sessenta pessoas. Durante o
processo de Viterbo, ’o Cucchiarello foi mantido em uma jaula à parte,
menor, separado da jaula grande das outras feras.
Durante a guerra, porém, Abbatemaggio se redimiu: lutou bem no Grappa,
alcançando o cargo de sargento dos Arditi. Dùmini o conheceu lá, na
trincheira. Um combatente aguerrido. Parece também que, ao voltar do front,
teve um desgosto na família. Dizem que a mulher o traiu com um dos
carabineiros encarregados de protegê-la da vingança dos chefões da Camorra.
Então, Gennaro seguiu para Florença para ajudar os camaradas.
Era tudo o que lhe restava. O Fascio di Combattimento florentino continua
a definhar. Também aqui em Montespertoli — um vilarejo na entrada do
Vale de Pesa, a apenas 20 quilômetros de Florença —, os fascistas devem ser
no máximo 4 ou 5 em 10 mil habitantes. Há meses que o pessoal de Milão
pede que sejam organizadas equipes para os confrontos de rua com os
socialistas, e Dùmini tentou. Batizou-as de “A Desesperada”, pediu a Frullini,
que é pintor de paredes, para desenhar uma flâmula com o crânio, o punhal,
os lábaros e todo o resto. Mas a sede do Fascio di Combattimento na Via
Cavour é um único cômodo alugado de um alfaiate, com uma mesa, duas
cadeiras, um retrato de Lênin no chão sendo usado como escarradeira e, no
alto, um cartaz, também pintado por Frullini, no qual lê-se “Fascio Italiano di
Combattimento e Vanguarda Estudantil”. Só isso. Por aquele caminho, não se
vai longe. Além disso, Milão continua a recusar o dinheiro para comprar os
revólveres. Umberto Pasella até devolveu ao remetente a fatura da Tipografia
Valgiusti, onde foram impressos os cartazes. “Para não criar precedentes”,
escreveu.
Entretanto, não faltava trabalho a ser feito. Em 10 de agosto, em San
Gervasio, o paiol de pólvora explodiu, uma desgraça. Dùmini havia
preparado pessoalmente um manifesto contra aqueles socialistas miseráveis
que, mais uma vez, não perderam a chance de criticar o Exército. O chefe de
polícia, todavia, proibiu que o difundisse. Definiu-o “monstruoso”. Depois
aconteceram os confrontos em Santa Maria Novella entre os manifestantes e
a força pública, com mortos de ambos os lados. Até nos funerais a cidade se
dividiu. Ninguém sentia a menor pena dos mortos dos outros. Mas os homens
da “Desesperada”, também naquela ocasião, apareceram pouco, mal
organizados e mal armados. Em setembro, aconteceu a ocupação das fábricas.
Os operários, sérios e disciplinados, faziam tudo funcionar às mil maravilhas
sem os patrões. Os industriais e os proprietários agrícolas sentiram-se
perdidos. Então, finalmente, os fascistas encontraram quem iria pagar pelos
revólveres.
E agora aqui estão eles na província para arriar aquela bandeira de
cimento. Decidiram fazer a mesma coisa em todos os municípios das colinas
florentinas em que os socialistas mandam demais. Incursões noturnas, como
no front, no Grappa.
Aqui em Montespertoli, porém, não se veem militantes socialistas. A praça
está deserta. A bandeira vermelha pende flácida. Lino Cigheri, o fascista
local, convida-os para jantar em sua casa. A mulher preparou a ficattola, uma
especialidade de pão frito recheado com frios da região: salame di cinta,
capocollo, finocchiona.
Após o jantar, vão ao bar. É o único estabelecimento aberto na praça do
vilarejo, o letreiro diz “Caffè Razzolini”. Animados pelo vinho do jantar, os
fascistas entram em formação compacta e, em vez de “boa noite”, gritam:
“Viva a Itália! Viva a Fiume italiana!”
O bar está lotado, deve haver mais de cinquenta pessoas lá dentro.
Ninguém responde à provocação, ninguém sequer vira a cabeça, para de falar
ou dá algum sinal de que os viu. Os “vermelhos”, é claro, haviam combinado
tudo: se ninguém os nota, eles não existem. Mas qualquer homem, até o mais
ínfimo, existe após ter bebido o quinto copo. Então, pedem mais bebida.
Abbatemaggio, que também esteve com D’Annunzio, pede Sangue
Morlacco, o licor de cereja bebido pelos legionários nos refeitórios de Fiume.
O velho Razzolini, que toca aquela taberna há décadas, blasfemando
amavelmente contra o Senhor, responde que só conhece o sangue de Cristo.
Senão, podem voltar no próximo mês, quando estará pronto o vinho novo,
que é bastante sanguíneo e talvez possa contentá-los.
Os fascistas acabam pedindo Vin Santo com cantucci. Vão para uma mesa
no canto e começam a entoar as canções dos Arditi. Para os aldeões, por mais
que eles se esgoelem, continuam a não existir. Frullini, terminada a primeira
rodada, começa com os relatos da guerra. Bêbado, pede que Dùmini também
conte alguma passagem sobre a epopeia do Grappa. Ele, como de costume,
declina com um aceno da cabeça o convite para falar e olha para o fundo do
copo. Às onze, depois de cerca de duas horas de insistência e de canções
espalhafatosas, o taberneiro finalmente se aproxima deles. A mera presença
daquele velho em pé ao lado da mesa é suficiente para que voltem a fazer
parte do mundo. Mas ele está ali para pedir que saiam. O bar está fechando,
em respeito às leis vigentes.
Abbatemaggio começa a tagarelar, soltando ameaças enquanto todos os
outros aldeões saem pela única porta, compostos e disciplinados, sempre
atendo-se à instrução de se comportar como se os fascistas nunca tivessem
pegado o ônibus Florença-Montespertoli. Enquanto o napolitano fala em seu
dialeto, Cigheri e os outros fascistas do local demonstram sinais claros de
constrangimento. Eles devem viver ali e se envergonham. Dùmini manda que
todos saiam.
Uma vez lá fora, de novo o deserto. Não há mais ninguém na praça escura.
Todos sumiram como que por encanto. Aqueles oito homens armados
perderam mais uma vez sua única razão de existir.
Com um gesto irritado, Frullini bate com violência na porta do bar já
trancada. Manda as filhas do taberneiro, que estão lá dentro arrumando o
local, abrirem a porta, ou ele mesmo vai abri-la com bombas. Da sacada, no
andar superior, outras mulheres da família gritam: “Socorro! Socorro! Vão
nos matar!”
Mas ninguém acode, como se eles não representassem uma ameaça séria.
Um retardatário se apressa sob os pórticos. É atacado com chutes: “Vá para a
cama, vagabundo!”
No fundo da praça, reúne-se um grupinho de rapazes. São dispersados com
tiros para o alto. Ninguém mais aparece. Eles são os donos da praça.
Mandaram todos para a cama. Só lhes resta fazer a mesma coisa. Acampam
sobre colchões que a mulher de Cigheri jogou sobre o chão.
Na manhã seguinte, lerdos por causa da ressaca, os fascistas levantam
tarde. Os outros já estão em formação na praça. Estão lá desde antes da
alvorada, esperando que os bêbados acordem. Centenas de homens formando
um semicírculo diante da prefeitura, prontos para defender o próprio direito
de escolher quem deverá governá-los, armados com os instrumentos que
usam para ganhar o pão: pás, foices, enxadas, forcados.
A mulher de Cigheri, preocupada com a casa e os filhos, chega pouco
depois com os carabineiros. O sargento Cocchi e um pelotão de militares
escoltam os fascistas até o quartel adjacente. Enquanto desfilam com as
roupas amarrotadas, a barba comprida, o hálito que fede a vinho, rastejando
rente aos muros, do lado oposto da praça todo o vilarejo armado os observa
imóvel, determinado a lutar, mas sem comentários, como se não sentissem
por eles rancor algum, sentimento algum, como acontece com a agressão
causada pelos animais aos homens.
Dùmini e seus homens ficam horas no quartel. As notícias devem ter se
espalhado: esperam reforços de Florença, mas estes não chegam. Quem
chega é o capitão Ronchi em um carro blindado com sessenta carabineiros,
um deputado socialista e o conselheiro provincial Dal Vit. O deputado Pilati
acalma os ânimos, mas tirar a bandeira vermelha está fora de questão.
Quando atravessam de novo a praça para subir no carro blindado que os
escoltará até Florença, Frullini começa a cantar o hino dos Arditi. Sou Ardito
orgulhoso e forte / não treme no meu peito o coração / sorrindo prefiro
seguir rumo à morte / do que rumo à desonra. Cantam desfilando entre duas
fileiras de carabineiros que foram protegê-los dos camponeses armados de
foices. Amerigo Dùmini limita-se a murmurar os versos do refrão. Juventude,
juventude / primavera da beleza / da vida e na embriaguez / o seu canto vibra
e vai. Antes que um cabo gire a chave de ignição do motor, é possível ouvir
distintamente um camponês se queixando com o deputado Pilati: “Valia a
pena perder uma manhã de trabalho por quatro bêbados?!”
Só então Dùmini fala. Um grito raivoso sobe do seu estômago inflamado
pelo álcool. Voltaremos. A promessa se perde no diesel do carro blindado.
Nem 20 quilômetros e a palhaçada já se torna épica. Quando avistam os
subúrbios de Florença, Frullini está engrandecendo a coragem com a qual se
aproximaram da morte. É verdade: aqueles camponeses os teriam
despedaçado de bom grado a golpes de enxada e, com os mesmos
instrumentos, espalhado os restos na turfa dos campos. Mas o chefe do grupo
para de ouvir. Prefere proteger-se no silêncio, sintonizando-se com o ronco
do motor. Foi apenas o enésimo papelão que passara.
Cidadãos, enquanto cada um chora a dor comum, muitos socialistas
miseráveis e infames ousam pronunciar palavras de brutal escárnio e
sanguinolenta ironia [...]. Cidadãos, enquanto esperam que a justiça cumpra o
seu dever e puna inexoravelmente, se existem responsáveis, linchem sem
piedade esses delinquentes natos.

Amerigo Dùmini, manifesto antissocialista redigido após a


explosão do paiol de pólvora de San Gervasio, Florença, 11 de
agosto de 1920
Giacomo Matteotti
Fratta Polesine, 12 de outubro de 1920

A vaca morreu de antraz, a doença é infecciosa, a carcaça deverá


permanecer intacta. Por esse motivo, o veterinário da circunscrição
administrativa fez ao longo de todo o seu corpo largas incisões nas quais
derramou petróleo e ordenou sua sepultura, como se faz com os cristãos. Três
ou quatro camponeses executam suas ordens na presença do oficial
municipal: escavam uma fossa, jogam lá dentro a carcaça do animal
infectado, cobrem-na. Logo em seguida, o oficial municipal dá meia-volta.
Vai embora sem nunca olhar para trás, com ar de quem diz: “Eu fiz o meu
dever, façam vocês o que quiserem.”
O homem acabou de atravessar as fronteiras do campo quando surgem do
matagal cerca de trinta camponeses famintos armados com pás, foices e
machadinhas. Avançam compactos, com passo veloz, em fileiras cerradas,
como uma falange que está atacando o inimigo. O animal é desenterrado em
poucos minutos, alguém escava os últimos palmos de terra com as mãos,
deitado de barriga na borda da sepultura. Esquartejam a vaca em grupos, com
os olhos brilhantes por causa da fome, lutam para conseguir o fígado, a
metade de uma coxa. Um jovem decapita o que resta do animal com um
golpe de machadinha. Uma velha esquelética grita como uma possuída, atira-
se sobre o crânio da vaca, segura-a pelos chifres, joga-a sobre as costas e
foge. Dois rapazes a perseguem e a derrubam, arrancando-lhe a cabeça do
animal. A velha, roubada de seu troféu, volta atrás vacilante, cai de joelhos na
beirada do buraco. Talvez reze, talvez implore — àquela distância, a cena não
tem som —, talvez se apresse a jogar os próprios ossos na sepultura espoliada
da carcaça bovina.
Enquanto sobe no palco do comício, o deputado Giacomo Matteotti
recorda essa lembrança da infância. Por um instante, volta a ser o menino
doentio a quem o pai estende o binóculo na sacada da casa dos patrões para
que o filho aprenda alguma coisa sobre a miséria que os tornou ricos. Mas ele
ouviu tantas vezes aquela história da vaca desenterrada a ponto de não ter
mais certeza de que não se trata de uma falsa lembrança. Nem sequer está
certo de que a vaca morreu de antraz. A única certeza daquela terra
pantanosa, pelagrosa e malárica que é a sua terra é a miséria.
Os camponeses do Polesine estão entre os mais miseráveis da Itália.
Levaram por séculos uma vida de animais, abestalhados pelo ar mefítico,
sempre febris, condenados a morrer jovens, criados em casebres apinhados de
pais, filhos, irmãos, avós, irmãs, em uma convivência asquerosa de homens,
frangos e porcos que disputam o alimento e o oxigênio com os patrões. Um
mundo degradado, desequilibrado, desnutrido, no qual os incestos são
frequentes, os organismos estão sempre debilitados, as doenças são sempre
crônicas, onde choram a morte da vaca, mas conformam-se com a morte da
esposa.
Por causa desse apocalipse cotidiano, desse infarto social, infarto lento, o
deputado Giacomo Matteotti — neto de Matteo, comerciante de ferro e cobre,
e filho de Girolamo, latifundiário suspeito de usura — é o traidor da sua
gente. Seus inimigos o acusam de ser o proprietário que se bandeou para o
lado dos proletários, o produtor agrícola que renegou sua classe, o “socialista
envolto em peles”, o filho do agiota que assume ares de moralista. Seu pai o
acusa de ter desertado o campo que lhe tinha sido atribuído pelo destino.
Mas quem é a sua gente? Ele fez uma escolha. A sua gente não é o pai e o
avô, é esses camponeses miseráveis, essas crianças lívidas de frio, essas mães
de 20 anos que parecem ter 40. O seu Polesine não é a terra do remorso, mas
da revanche, o pântano sulcado por quinhentos corpos hídricos, entre rios,
canais, emissários, fossos, nos quais, nos últimos vinte anos, foram realizados
milhares de saneamentos, instituídas as ligas, tratadas as doenças, afirmados
os direitos da gente pobre; o Polesine que nas últimas eleições em novembro
mandou Giacomo Matteotti para o Parlamento com outros cinco deputados
socialistas, tornando-se a província mais vermelha da Itália junto à província
de Ferrara, a terra que ele escolheu para si abdicando da paterna. O Polesine
do futuro, onde agora os socialistas estão triunfando também nas eleições
administrativas.
As votações acontecem desde o início de outubro com turnos eleitorais
distribuídos ao longo de todo o mês. Os primeiros dados são animadores: até
o presente momento, os filhos da pelagra venceram em todos os 25
municípios com os votos já apurados. Faltam outros 38, inclusive o de Fratta,
o vilarejo natal de Giacomo, onde Palladio projetou sua primeira villa com o
pronau e o frontão na fachada, e onde fica a maior necrópole da Europa da
Idade do Bronze. Os companheiros socialistas vencerão ali também — é o
que tudo indica —, e o partido terá o controle total da província. Será o início
de um novo mundo.
Necessitarão outras restaurações, isso é certo. Poucas coisas corrompem
tanto um povo quanto o hábito do ódio. E seus camponeses o amam tanto
quanto odeiam seu pai e os outros patrões. Há muita violência a ser saneada:
os párocos foram obrigados a fechar as igrejas, as pessoas que vão às missas
são agredidas, equipes de comunistas armados com porretes tomam conta dos
locais de votação, obrigando as pessoas a pôr na urna cédulas já marcadas.
Ele mesmo teve de socorrer o deputado Merlin, do partido católico, seu velho
conhecido de colegial. Os bondosos camponeses deram cacetadas em seu ex-
colega de turma na saída da seção eleitoral de Lendinara e, sem a intervenção
de Matteotti, o teriam deixado caído no chão.
Justamente Merlin, após a enésima agressão a um pequeno proprietário por
parte dos camponeses, acusou os líderes socialistas de semear o ódio, de ter
incitado os trabalhadores na esperança revolucionária, de tê-los deixado
obcecados pela Rússia, de ter enjaulado as massas em uma colossal ilusão, de
ter instaurado um regime de terror, de ter “transformado o Polesine em uma
terra de canibais”, e a agressão de Lendinara infelizmente parece ter lhe dado
razão. Merlin afirma que, há trinta anos, para ser socialista naquelas
paragens, era necessário ter coragem; agora é necessário ter coragem para não
sê-lo. Também nesse ponto tem razão.
Todavia, essa multidão de miseráveis que espera ouvir justamente de
Giacomo Matteotti, deputado socialista, filho de Girolamo, comerciante,
proprietário agrícola e agiota, a palavra da desforra, mastiga ódio porque há
séculos se nutriu da carne infecta de um animal morto. Precisam compreender
essa gente, ter pena dela, preparar-se para restaurá-la como foi restaurada a
terra em que ela viveu como escrava.
Matteotti não é um “maximalista” — alguém que aposta tudo na revolução
aqui e agora. Matteotti, pelo contrário, acredita na libertação gradual dos
oprimidos por meio de um trabalho lento, imenso, de sacrifício e esforço, que
mais uma vez é requisitado à humanidade sofredora. Ele sabe que a revolução
proletária de amanhã não será uma feliz coroa de triunfo. É isso que ele foi
repetir na convenção dos socialistas reformistas em Reggio Emilia no dia
anterior. Quando está em Roma, no Parlamento, o deputado Matteotti fala
sempre com moderação e bom senso.
Mas quando está aqui no Polesine, entre os seus camponeses endurecidos,
na sua terra pantanosa, Giacomo volta a ser o menino que assistiu ao
esquartejamento da carcaça enterrada. Sua gente espera que Giacomo
Matteotti, o filho redimido do agiota, diga o seguinte, e ele diz:
“Companheiros, vendam o trigo. Vendam o trigo e comprem um revólver.”
Benito Mussolini
Milão, fim de outubro de 1920

“Mas quando esse chato de galocha vai resolver se render?!”


Arturo Fasciolo, seu secretário pessoal, acabou de relatar que Harukichi
Shimoi, o “japonês de D’Annunzio”, passou de novo na redação para lembrar
ao diretor a promessa de ir se encontrar com o Comandante em Fiume. O
japonês se apresentou, como de costume, com uma carta de D’Annunzio que,
como de costume, começava assim: “Envio a você, camarada ausente e
frígido, esse irmão samurai [...].”
O samurai é um homenzinho ridículo que circula usando uma farda de
Ardito com uma katana pendurada no cinturão e fala italiano com forte
sotaque napolitano. É professor de língua e literatura japonesa no Instituto
Oriental de Nápoles e, ao eclodir da guerra, se alistou como voluntário no
Exército italiano. Vangloria-se de ter combatido nas divisões de ataque, mas
Albino Volpi afirma que ele dirigia ambulâncias.
Shimoi, perplexo por Mussolini ter faltado aos compromissos nos dias
anteriores, informou que esta noite Umberto Foscanelli, outro colaborador
próximo de D’Annunzio, estará mais uma vez à sua espera no primeiro vagão
do trem accelerato da meia-noite para Trieste. Foscanelli o espera, em vão,
há três noites consecutivas com as passagens do vagão-dormitório já
compradas e também não se conforma. Faltam somente quatro horas para o
encontro marcado.
D’Annunzio quer marchar outra vez sobre Roma. No fim de setembro,
enviou outro plano para a organização de um movimento revolucionário na
Itália. O plano previa a necessidade de reestabelecer na Itália “uma nova
ordem” a ser realizada por meio da “polarização de todas as energias
saudáveis do país”. O elemento polarizador devia ser, obviamente, o próprio
D’Annunzio. A intervenção fiumana na Itália devia ser feita, obviamente,
com base na Constituição de Fiume. Fiume — obstinava-se a acreditar o
Comandante — salvaria a Itália.
Mussolini mandou de volta o esquema da insurreição com mudanças nos
pontos que davam a D’Annunzio todos os poderes. No novo esquema, revisto
pelo fundador do fascismo, a organização das milícias voluntárias era
confiada ao Comitê Central dos Fasci di Combattimento. D’Annunzio havia
concordado com isso. Mas Mussolini — informado em sigilo por Sforza, o
ministro das Relações Exteriores — sabia que Giolitti, com uma das mãos,
reunia as tropas nas fronteiras de Fiume para uma ação militar contra
D’Annunzio enquanto, com a outra, negociava com a Iugoslávia um acordo
diplomático entre Estados soberanos. Por esse motivo, Mussolini ditou a
D’Annunzio uma segunda condição: só poderiam ousar realizar o golpe de
Estado, a marcha de fascistas e legionários sobre Roma, no caso de uma
eventual solução injusta da disputa adriática com a Iugoslávia (ou seja,
apenas se a negociação secreta de Giolitti fracassasse). D’Annunzio, que,
diferente de Mussolini, ignorava a negociação em andamento, aceitou essa
condição também. A essa altura, já estava acabado. Em 5 de outubro, chegou
até mesmo a afiliar-se aos Fasci di Combattimento.
A única condição que D’Annunzio não aceitava era adiar a insurreição até
a primavera de 1921. Queria agir logo. Exaltou-se novamente depois que
Guglielmo Marconi, o genial inventor do “telégrafo sem fios”, foi a Fiume,
encarregado por Giolitti, para convencer o Comandante a se render, mas
acabou na verdade permitindo que D’Annunzio difundisse para o mundo,
pelo ar, a partir da estação de rádio instalada em seu iate Elettra, um de seus
magníficos, incompreensíveis e inúteis pronunciamentos. Antes de ir embora,
Marconi aproveitou para requisitar o divórcio da mulher, algo permitido pela
legislação libertária de Fiume e proibido pela italiana.
Para Benito Mussolini, em contrapartida, divorciar-se de D’Annunzio seria
muito mais difícil. Muitos fascistas ainda admiravam as maravilhosas
empreitadas do Comandante e, por isso, ele também, nas colunas do jornal,
continuava a proclamar que teria defendido Fiume à custa da própria vida. Na
verdade, porém, não tinha intenção alguma de se meter mais uma vez no beco
sem saída da derrota. O ar de D’Annunzio era certamente inebriante, mas os
canhões que Giolitti estava posicionando em volta de Fiume ofereciam
perspectivas muito mais concretas aqui na terra. A hora dos fascistas se
aproximava: a luta, aqui na terra, estava finalmente chegando às facas.
Até poucos meses antes, os fascistas eram desprezados por todos. Foram
tachados de bandidos, sanguinários, vendidos, mas muitos dos que ontem os
ridicularizavam agora começavam a tremer. Muitas daquelas consciências
inquietas agora estavam ansiosas. Na reunião de 10 de outubro, Mussolini
havia conseguido convencer o Conselho Nacional dos Fasci di
Combattimento a não participar das eleições administrativas. As cédulas
eleitorais não eram para eles. Todos os partidos liberais e conservadores
estavam enfim aliando-se em um bloco nacional contra os socialistas, toda a
imprensa burguesa apoiava o bloco sem distinção, mas os Fasci di
Combattimento ficariam de fora. As circunstâncias ditaram que deveriam se
afirmar com tiros de revólver, incêndios, destruições. Os outros que
envelhecessem na cabine eleitoral. Cada um na sua. O fascismo não era uma
reunião de políticos, mas de guerreiros. Por isso, na noite de 16 de outubro,
seu fundador encontrou-se com Lusignoli, o governador da província de
Milão, que se reportava a Roma, assegurando que os Fasci di Combattimento
teriam se oposto com todos os meios à ruína da Itália desejada pelos
bolcheviques. Destacou “com todos os meios”. Lusignoli, satisfeito,
telegrafou a Giolitti.
A situação tinha sido esclarecida dois dias antes, em 14 de outubro. Os
socialistas haviam organizado em toda a Itália manifestações a favor da
Rússia dos sovietes, e os fascistas posicionaram-se definitivamente em defesa
do desprezado Estado liberal, contra o ataque dos “vermelhos”. Em Trieste,
os Fasci di Combattimento haviam incendiado a sede do Il lavoratore sem
encontrar resistência alguma do pelotão da Polícia Fiscal destacado para
defender o jornal; em San Giovanni Rotondo, os carabineiros abriram fogo
contra os socialistas enfrentados pelos fascistas na frente da prefeitura (11
mortos e 40 feridos); em Bolonha, os anarquistas de Malatesta haviam
atacado o quartel dos guardas reais na Via Cartoleria (5 mortos e 15 feridos);
em Milão, os anarquistas mais uma vez haviam explodido duas bombas no
Hotel Cavour. Na noite seguinte, todo o movimento anarquista insurrecional
foi praticamente eliminado por uma onda de prisões. Tudo isso no curso de
24 horas. Cerca de vinte mortos e setenta feridos de Trieste à Apúlia, do raiar
do sol ao entardecer. Era sem dúvida um período de desenvolvimento pleno,
promissor, prodigioso.
Nas horas seguintes, à medida que os resultados dos turnos eleitorais
decretavam o triunfo dos socialistas, das províncias mais vermelhas
chegavam notícias sobre a fundação de novos Fasci di Combattimento. Em
Bolonha, encarregara-se Arpinati; em Ferrara, constituíra-se em 10 de
outubro; em Rovigo, foi criado em plena campanha eleitoral, com o apoio
dos proprietários agrários. De todos os cantos, escreviam ao Comitê Central
em Milão pedindo armas ou dinheiro para comprá-las. Os fundadores eram
gente nova, expoentes da classe média; no entanto, sob outro ponto de vista,
eram os mesmos de sempre: rancorosos, ecléticos, amedrontados,
antissocialistas. Os filhos da guerra descontentes com tudo.
Em suma, finalmente a situação é propícia. E também, dali a poucos dias, a
Ceccato, a amante menina, vai parir seu filho. Será um bastardo, é claro, mas
não pode ser ignorado.
Benito Mussolini não tem tempo agora para os sentimentalismos de
D’Annunzio. O trem accelerato de meia-noite para Trieste partirá sem ele
outra vez.
Recebida visita de Mussolini que declarou fascistas e nacionalistas
firmemente decididos a opor-se com todos os meios até o mais violento,
contra intemperanças de partidos extremos que levam Itália à ruína [...].
Declara-se pronto com os seus para observar ordem e legalidade caso
governo reestabeleça ordem a funcionários públicos, caso contrário nenhum
excesso será poupado.

Telegrama do governador da província de Milão a Giovanni


Giolitti,
17 de outubro de 1920

O poder, a lei, o direito [...] será somente o nosso poder, a nossa lei, o
nosso direito contra o daqueles que são parasitas desde que o homem se
constituiu em sociedade civil [...]. Nós não queremos discutir com os nossos
inimigos; nós queremos abatê-los.

Do programa para as eleições administrativas dos socialistas


de Mântua
SE TIVER QUE SER GUERRA CIVIL, GUERRA SERÁ!

Il Fascio, órgão dos Fasci di Combattimento


milaneses, título de página inteira, 16 de outubro de 1920
Ferrara, 3 de novembro de 1920

A primeira pedra do Castelo dos Este em Ferrara foi colocada no ano de


1385, em 29 de setembro, dia de São Miguel, protetor de portas e fortes. A
fortaleza foi erguida por ordem do marquês Nicolau II d’Este após uma
violenta revolta popular que ocorreu em maio daquele mesmo ano.
Nos dois séculos subsequentes, o Castelo de Ferrara se tornou uma das
maiores obras-primas arquitetônicas, artísticas e urbanísticas do
Renascimento europeu. Suas salas abrigaram uma das mais esplêndidas
cortes renascentistas e fizeram de Ferrara, remoto burgo perdido entre os
aguaçais, uma das principais capitais do mundo. Nos fabulosos cômodos de
alabastro, Afonso I d’Este, marido de Lucrécia Bórgia, criou uma das
primeiras coleções de arte da história.
Quatro séculos mais tarde, em 3 de novembro de 1920, na torre de São
Paulo, construída no canto sudoeste do Castelo dos Este, bem no centro de
Ferrara, tremula a bandeira vermelha. No grande muro diante da capela ducal
e do jardim das laranjeiras, destaca-se um rabisco pintado apressadamente
com tinta fosforescente de cor fúcsia. Lê-se: “Viva o socialismo.”
As eleições administrativas marcaram para os socialistas o enésimo triunfo.
Nos campos da região de Ferrara, o partido dos trabalhadores obteve sozinho
10.185 votos contra os 2.921 de todos os outros partidos somados. O partido
da revolução proletária conquistou todos os 54 municípios. Seu controle
sobre a província agora é total.
Dentro dos muros do castelo, após a primeira reunião do Conselho no
Salão dos Jogos, onde os Este recebiam os hóspedes ilustres sob uma
magnífica cúpula ornamentada com cenas esportivas e mitológicas, os chefes
das ligas camponesas e da Câmara do Trabalho prepararam um banquete na
Sala do Governo. Não escondem o prazer malicioso: era o que os senhores
faziam, nós também podemos fazê-lo. Comem, bebem e cantam sob um teto
de madeira com lacunários de diversas formas. Nos pratos, um alimento
suculento e popular, a salama da sugo, um embutido preparado moendo-se
várias partes do porco — cachaço, bochecha, língua, fígado — temperadas
com sal, pimenta, noz-moscada. Nas taças, vinhos próprios para serem
bebidos à tarde. Na cabeceira da mesa, para dar aparência proletária,
colocaram o porteiro do castelo. Chama-se Ghelandi e, de acordo com os
relatórios do governador da província, é violento. Entronizado na cabeceira,
no lugar que foi do príncipe renascentista, o porteiro, após várias doses de
Lambrusco, incita os companheiros comensais: “Façam como eu, que estou
sempre na frente das colunas de manifestantes e até uso violência contra
aqueles que tentam me impedir.”
Logo após as eleições administrativas, Eugenio De Carlo, governador da
província de Ferrara, escreve a Roma. A situação lhe parece incendiária.
Cinco carabineiros foram espancados em Fossana, muitos eleitores foram
levados aos locais de votação com as mãos levantadas sobre a cabeça, os
militantes proletários sentem-se imunes, os abusos administrativos
multiplicam-se. Os conselheiros socialistas chegam a votar o financiamento
de suas despesas publicitárias e eleitorais com dinheiro público. O Partido
Socialista de Ferrara apresentou-se nas eleições com base na ordem do dia de
Giuseppe Gugino, seu secretário, que declara abertamente participar da luta
eleitoral com o objetivo de apoderar-se do aparato estatal para fazer a
revolução. Os dirigentes da Câmara do Trabalho não têm dúvida alguma de
que a revolução está a caminho. O deputado Ercole Bucco, um homenzinho
minúsculo com dois óculos pequenos e redondos como os de um contador,
propagandista na região de Ferrara e de Mântua, e agora secretário da Câmara
do Trabalho em Bolonha, boicota de modo sistemático qualquer acordo,
mesmo que vantajoso para os camponeses, aumentando a aposta para fazê-lo
fracassar. Ao longo da Via Emilia, Bucco aposta no desastre para vencer a
revolução.
Enquanto isso, em Baku, em setembro, o congresso dos povos do Oriente
difundiu o comunismo na Ásia. Os companheiros russos conquistaram o
Cazaquistão, abateram o Emirado de Bukhara, marcham sobre Samarcanda.
Baku se encontra na margem ocidental do mar Cáspio, no Azerbaijão, Ásia
Central, perdida nas lendas de Marco Polo e da sua rota da seda, mas a
embriaguez revolucionária também aumenta em Ferrara, ao longo das
margens e da planície do rio Pó. A embriaguez aumenta, a máquina vermelha
se propaga, não estamos distantes do sangue. Caminha-se no fio da navalha:
“Um momento de hesitação e a província será perdida por vários anos, talvez
para sempre”, adverte o governador.
A essa altura, nos relatórios do governador insinua-se um tom sombrio,
quase como um mártir que apresenta o próprio destino. De seu escritório, no
lado leste, observa que os fossos em volta do Castelo dos Este ainda estão
cheios d’água. Não seria a primeira vez que na história de Ferrara
coinquilinos desagradáveis se afogaram ali.
Porém, a leste, o Exército Vermelho é surpreendentemente derrotado às
portas de Varsóvia. Nos mesmos dias, nos campos ao redor de Ferrara, uma
repentina chuva de granizo reduz em um terço a colheita de beterraba em
relação ao ano anterior. Além disso, passado julho, o preço do cânhamo caiu
de maneira drástica. Às vezes, basta uma colheita ruim...
A Convenção Provincial Socialista delibera que o partido deve participar
da luta eleitoral para a conquista tanto dos municípios quanto da província
com o único objetivo de apoderar-se de todos os poderes, todos os aparatos
estatais burgueses, e paralisá-los a fim de tornar sempre mais fiel e fácil a
revolução e o estabelecimento da ditadura do proletariado.

Convenção Provincial Socialista de Ferrara,


18 de setembro de 1920, ordem do dia, Gugino

A Itália precisa de um homem que diga com vontade


decisiva “chega!” a essa corrida louca em direção ao suicídio.
Um homem que não tenha a irritante preocupação cotidiana de
manter o equilíbrio parlamentar [...]. Um homem que saiba
encarar a realidade que não suporta meias medidas [...]. Não
se cura a gangrena com panos quentes. Esse homem existe?
Que surja, e ele terá consigo o unânime consenso nacional.

Gazzetta Ferrarese (jornal conservador),


20 de outubro de 1920, editorial
Leandro Arpinati
Bolonha, 4 de novembro de 1920

No fim, ele mergulhou de cabeça. Em setembro, atravessada a desolação


do verão, voltou para a cidade e mergulhou de cabeça. Desde garoto, não faz
outra coisa: jogar-se na briga. A briga, também dessa vez, havia gerado todo
o resto. Quando se tratava de lutar, os homens apenas o seguiam como lobos
que se enfileiram atrás do chefe da matilha.
Sob os pórticos de Bolonha, em setembro, encontrou pessoas estranhas.
Não eram mais as mesmas de antes do verão. Oficiais desmobilizados que
não encontram emprego; funcionários públicos que mal conseguem comer;
grupos de atravessadores; lojistas; arrendatários; empreiteiros que detestam as
cooperativas socialistas de consumo e trabalho e a municipalização das
empresas; estudantes e jovens recém-formados, desempregados e enfurecidos
contra os politiqueiros senis; ex-sindicalistas revolucionários órfãos das
massas; rapazes de 18 anos irritados porque a guerra acabou antes que eles
também pudessem distribuir golpes; bandos de adolescentes inauditos,
criados por filmes impressionantes. Enfim, toda uma multidão de heróis
esquecidos entre a copa e a sala de estar. Parece que ficaram durante meses,
anos, enfurnados em casa e, com a chegada do outono, impulsionados pelo
prenúncio do inverno, foram todos jogados na rua com a faca entre os dentes,
incitados por veteranos que falam nos cafés como se estivessem nos campos
de batalha.
Arpinati nunca foi para a guerra, mas, assim que mergulhou de cabeça na
briga, os outros o seguiram. E azar se justamente ele, ferroviário anarquista,
filho do povo e membro da classe operária para todos os efeitos, acabou
servindo aos interesses de proprietários agrícolas e industriais, gente que
despreza. O gosto pela briga remediaria isso também.
Foi preciso coragem, mas eles mergulharam de cabeça. Bolonha está no
centro de uma vasta região agrícola inteiramente “vermelha”. Em outubro,
terminou a mais demorada luta pelos acordos agrícolas da história sindical.
Dez meses de greves e agitações. Derrota desastrosa dos proprietários e
triunfo dos camponeses. Foi preciso ter coragem para desafiar a ira das
massas. Houve uma primeira fase de reconhecimento. Arpinati enviou
patrulhas para percorrer as ruas, em geral entregues ao movimento operário,
com a ordem de cantar Giovinezza. Voltaram sem nunca encontrar
adversários. Ele, então, convenceu-se de que os socialistas jamais fariam a
revolução. No entanto, naquele exato momento, os proprietários agrícolas
também se assustaram e entenderam que não eram capazes de se defender
sozinhos. Olharam à própria volta em busca de uma mentalidade para
enfrentar a luta. Foi então que o encontraram.
Arpinati e seus homens começaram a agir em 20 de setembro diante da
biblioteca Salaborsa. O batismo de fogo aconteceu com um bando de
socialistas que festejavam o cinquentenário da Unidade da Itália sob o
monumento a Garibaldi, na Via Indipendenza. Houve inúmeros feridos, um
deles até morreu em seguida. As adesões ao Fascio di Combattimento logo
dispararam. Em 10 de outubro, fundaram novamente o Fasci na Via Marsala.
Ele escreveu a Milão cheio de entusiasmo. Seguiram-se discussões ferozes
com os que se recusavam a receber dinheiro dos proprietários agrícolas. Ele
as interrompeu: não é hora de debates, é preciso mergulhar de cabeça. Em
Milão, deram-lhe razão. Mussolini, por Cesare Rossi, concedeu-lhe amplos
poderes. Carta branca para avançar com a luta sem trégua. Quatro dias mais
tarde, os anarquistas de Malatesta, atiçados por Ercole Bucco, secretário da
Câmara do Trabalho, atacaram o quartel da Via Cartoleria. Além de um dos
agressores, ficaram no chão um comandante da guarda real e um vice-
inspetor de polícia. Os fascistas não poderiam ter pedido resultado melhor.
Em 16 de outubro, as equipes fascistas abriram o cortejo fúnebre. É o ponto
de ruptura.
Até aquele momento, falaram de maneira genérica de defesa civil, de
antibolchevismo; agora, passaram ao ataque. Antes, como sempre, veio a
guerra dos símbolos. Ele guiou pessoalmente uma tentativa de fincar uma
bandeira tricolor na prefeitura. O ataque foi rechaçado. Então, tentaram o
confronto aberto. Abriram fogo contra a banca de jornal-livraria do Partido
Socialista ao lado da prefeitura. Um colono que havia ido à cidade para a
feira foi atingido e morreu. Em uma semana, o Fascio di Combattimento
superou mil afiliados. Os resultados superaram todas as expectativas. Fileiras
de jovens os seguem, a massa dos grupos fascistas cresce. Todos olham para
Arpinati como porta-voz de seus rancores.
Estamos em 4 de novembro, segundo aniversário da vitória na Grande
Guerra, e chegou o momento de elevar o nível do confronto. No ano anterior,
essa data gloriosa não foi festejada porque aquele covarde de Nitti, temendo
explosões de violência no clima inflamado do momento, proibiu
manifestações. Mas agora a guerra dos símbolos recomeçou, e chegou o
momento de a violência explodir. Arpinati entrou no Palazzo d’Accursio e
expôs a bandeira tricolor. Os funcionários da segurança pública,
desobedecendo ordens, deixaram que ele o fizesse. Ele então tomou coragem
e, com um grupo de oficiais fardados, subiu ao topo da torre do Palazzo del
Podestà para tocar o “grande sino”. Mais uma vez, deixaram que ele o
fizesse. Assim, após a reunião no Teatro Comunale, o cortejo patriótico
desfila pelas ruas em meio a um tripúdio de bandeiras ao vento e sinos
repicantes.
Ao longo do percurso, as pessoas ficam olhando embasbacadas, com as
mãos nos bolsos, a maioria com o chapéu na cabeça. Faz muito tempo que a
pátria não se exibe, e não sabem mais como se comportar. Os fascistas
ensinam — “tire o chapéu, saúde a bandeira” — e distribuem tapas. Quando
não é suficiente, também entram em cena alguns porretes de boiadeiro
levados pelos fascistas para qualquer eventualidade. Enquanto isso, na praça,
os bondes também são parados e recebem bandeiras, os motorneiros que se
opõem são espancados, enquanto a polícia fica olhando. Os motorneiros —
todos socialistas — abandonam o serviço em sinal de protesto. Os fascistas,
que se tornaram os donos do pedaço, começam então a rodar pela cidade em
um carrossel louco de bondes tricolores. Giram por toda a cidade até a noite.
Param somente quando o governador da província manda cortar a energia
elétrica aérea.
A essa altura, a praça, com exceção dos fascistas, está deserta, mas
ninguém dorme na cidade. Uma outra eletricidade, que não se dispersa, sobe
da terra. É então que um tenente da reserva, veterano do Grappa, diz “vamos
tirá-los de casa”, e todos os rapazes de Arpinati, como um só homem, se
dirigem para a Via Massimo D’Azeglio.
A Câmara do Trabalho é um fortim. Isso não é mistério para ninguém.
Bolonha inteira sabe que, desde a noite anterior, uma centena de “guardas
vermelhos”, vindos de Ímola, baluarte da facção comunista, se aquartelaram
ali com fuzis e pistolas sob o comando do deputado Francesco Quarantini.
Dizem que também dispõem de uma metralhadora. A guerra dos símbolos
irrompe mais uma vez.
Assim que os fascistas chegam, como que por encanto, a guarda real se
dispersa. É só o tempo de se aglomerarem na Via D’Azeglio para os disparos
começarem. De fora, eles atiram no edifício. Do edifício, os outros atiram
neles. Estão descobertos, um fascista cai ferido, devem retroceder. Agacham-
se no acesso aos portões. Parece que não há meio de entrar, que só lhes resta
voltar para casa derrotados, quando chega um pelotão de carabineiros com
fuzis em riste. São recebidos no portão por Ercole Bucco, o secretário
maximalista da Câmara do Trabalho que prega a revolução há anos, todo
santo dia, desde quando doutrinava os camponeses nos campos de Cento.
Bucco está aterrorizado — dá para ver daquela distância —, recebe os
carabineiros com alívio evidente, convidando-os para entrar. Já correm
boatos de que foi ele, ao ouvir os primeiros disparos, quem ligou para a
chefatura para que a polícia fosse salvá-los.
Minutos mais tarde, o portão se abre de novo e os “guardas vermelhos”
saem em fila, acorrentados, às dezenas, escoltados pelos carabineiros.
Também levam algemado o deputado que os comandava, também prendem
Bucco, o revolucionário que, para proteção, chamou os guardiães daquele
poder que ele todo dia prometia derrubar. Enquanto o levam para a rua, um
capitão pede explicações sobre dezenas de fuzis enrolados em um saco,
quilos e mais quilos de explosivo confiscados em caixotes de fruta.
Então ouve-se Bucco, já cercado por carabineiros e fascistas, defender-se
agitado. Declara-se inocente, jura que as armas foram colocadas na sua casa
sem que ele soubesse, jura que foram levadas por pessoas desconhecidas “à
sua senhora”, choraminga, chia. Repete que “a sua senhora”, ao ouvir os
primeiros disparos, abriu as portas do apartamento em que vivem, ao lado da
Câmara do Trabalho, para desconhecidos que levaram para lá as armas. Mas
eles não sabiam nada a respeito, estavam às escuras com relação a tudo. O
agitador que até ontem prometia todos os dias a revolução agora mente sem
um pingo de pudor, acusa os companheiros, envolve a mulher. Ouvem-no
repetir “a minha senhora... a minha senhora”. É um homem acabado. Com
um gesto de piedade involuntário, os carabineiros o arrastam para o quartel,
impedindo-o de continuar a cena ridícula.
O portão da Câmara do Trabalho, indefeso, desguarnecido, fica
escancarado. Como nas histórias das velhas camponesas da baixada, se você
esquece a porta aberta à noite, as almas penadas dos mortos não sepultos
entram. Os fascistas, sossegados, convidados pela covardice de Bucco, se
entregam ao saque. É pouco mais de meia-noite. O sino da torre soa a morte
simbólica do socialismo revolucionário em Bolonha.
Benito Mussolini
Milão, 15 de novembro de 1920

O Tratado de Rapallo, entre Itália e Iugoslávia, para a solução da questão


adriática, foi anunciado de surpresa em 12 de novembro. As fronteiras
orientais italianas foram deslocadas até o monte Snežnik, deixando Trieste a
salvo. A Itália, contudo, abriu mão da Dalmácia. Ficou apenas com Zara, ou
Zadar, como os croatas a chamam, sem terras no interior e sem as ilhas à sua
volta. Dessa maneira, Zara fica sendo um rochedo italiano em um mar croata.
No espírito do acordo diplomático, foi reconhecido a Fiume o status de
independência plena, mas Sušak, o subúrbio litorâneo oriental que inclui
Porto Baross, ficou com a Croácia. A “cidade holocausto”, a “cidade da
vida”, por ora não é nem italiana nem croata, além disso, está excluída do
comércio marítimo com o Oriente. A notícia é uma bomba. Uma tonelada de
TNT que explodiu sobre os sonhos de D’Annunzio.
Apesar disso, no mesmo dia, nas colunas do Il Popolo d’Italia, Mussolini
se declarou “francamente satisfeito”. Em relação a Fiume, fez algumas
observações, mas também afirmou que a solução é a melhor dentre as
discutidas anteriormente. Sobre a Dalmácia, queixou-se e deixou para o
futuro a possibilidade de uma revisão: os direitos dos povos, escreveu, não
prescrevem. Em geral, porém, aprovou aberta e clamorosamente o acordo
alcançado por Giolitti. O artigo é uma paulada. Desferida em cheio na nuca
dos fascistas de Fiume.
Em Fiume, até os fascistas afiliados participam do incêndio que é ateado
na Piazza Dante ao fardo do Il Popolo d’Italia com o artigo criminoso.
Enviam ao jornal um telegrama feroz. A palavra “traição” começa a circular.
De novo aquela palavra.
Para exorcizá-la, ele, Benito Mussolini, o eterno traidor, o trovador da
guerra, é obrigado a apelar para a paz. Para a paz e a grandeza. Para
reencontrá-la — escreveu no dia seguinte em seu jornal —, devemos erguer o
olhar para o horizonte. Não devemos fixá-lo no Adriático, que é apenas um
modesto golfo de um grande mar, o Mediterrâneo, no qual as possibilidades
de expansão italianas estão vivíssimas.
Benito Mussolini apelou para a paz nas colunas do seu jornal, mas, como
sempre, prepara a guerra. A linha de frente passa pelo Vale do Pó, de Milão
até Cremona, Bolonha, Ferrara, e não pelas encostas do monte Snežnik, na
fronteira entre Itália e Iugoslávia. Os socialistas, que triunfaram nas urnas,
começam a acumular derrotas nas praças, recuam, retrocedem, não resta
alternativa a não ser perseguir o exército em retirada. Para isso, é preciso
abrir as fileiras para todas as forças da reação, para a burguesia que acreditou
de fato na fábula da revolução. Até agora, houve combates com a proporção
de um contra cem, mas, depois do recuo, todos terão coragem. D’Annunzio
que fique com a ideia fixa do Adriático, que se enforque por lá, se assim
quiser. Mussolini, por meio de Lusignoli, o governador da província, mandou
uma mensagem clara e forte a Giolitti: em caso de necessidade, a estrada
estará aberta para a repressão dos legionários fiumanos com seus alambiques
de aprendizes de bruxo. Os fascistas de Milão não vão mover um dedo.
O velho amigo Pietro Nenni esteve em Fiume em setembro por ocasião da
promulgação da Carta de Carnaro no primeiro aniversário da marcha sobre a
cidade. Ao voltar a Milão, Nenni relatou excessos bíblicos, devassidões
carnavalescas. Diz que, um dia, D’Annunzio ridiculariza os senhores
medievais e, no dia seguinte, se comporta como um príncipe do
Renascimento. A polícia envia relatórios segundo os quais Fiume é definida
como “Eldorado de todos os vícios”, “cidade da vida mansa”. Enquanto isso,
a degradação é tanta que os hospitais distritais assinalam casos de peste
bubônica. Nenni até imitou o Vate que dialoga com o povo da sacada do
governo. Palhaçada, tudo palhaçada. Chega de cheques em branco assinados
por poetas.
Com Giolitti, eles entram no grande jogo, e o grande jogo requer
ecletismo. Não podem ficar hipnotizados por causa de dois rochedos no
Adriático. Aquilo é coisa de quem tem presbiopia, e ele, desde garoto,
sempre teve hipermetropia. Nele, a maior capacidade de visão global
corresponde a uma menor capacidade de foco. Uma maior potência visual
que, em contrapartida, o condena a não ser capaz de distinguir as minúcias, a
ser obrigado a perder de vista os detalhes insignificantes. Sem dúvida, uma
deficiência grave em uma época na qual o insignificante é a única coisa
importante. Mas Benito Mussolini não se importa. Sua vista fica embaralhada
quando ele é obrigado a olhar os pequenos rabiscos que povoam as regiões
inferiores do universo, mas enxerga como poucos, com uma nitidez ímpar, as
grandes letras garrafais impressas ali no alto.
No entanto, o Comitê Central dos Fasci di Combattimento de 15 de
novembro é uma reunião de presbitas. Por isso, a atmosfera está muito tensa.
Já na disposição em volta da mesa, na sede da Via Monte di Pietà, delineiam-
se as duas facções. Cesare Rossi, Massimo Rocca e Umberto Pasella estão do
seu lado. Do outro, estão Cesare De Vecchi, Piero Belli, Pietro Marsich e
todos os outros fiumanos impassíveis. Também há uma delegação de
dálmatas que está em pé, encostada na parede, como um coro trágico.
O Fundador fala primeiro. Repete as razões já expostas nos
pronunciamentos jornalísticos. O Tratado de Rapallo é, em geral, satisfatório
em relação às novas fronteiras da Veneza Júlia e também de Fiume.
Obviamente, não é satisfatório em relação à Dalmácia. Mas devem aceitá-lo
como fato consumado como um gesto de disciplina nacional. O país está
exausto, os socialistas estão de tocaia, prontos para se aproveitar de uma crise
para erguer a cabeça mais uma vez, as pessoas nem sabem direito onde fica a
Dalmácia. Propõe uma ordem do dia que reflita essas posições. A revolta
dannunziana foi um feito maravilhoso, mas gangrenou, e a gangrena deve ser
extirpada.
A reação da oposição interna o acomete com uma força inaudita. Pietro
Marsich, o dannunziano mais fervoroso entre os dirigentes fascistas, o ataca
em público. É o chefe dos Fasci di Combattimento venezianos, um advogado,
um homem de grande cultura, íntegro, idealista, um babaca. Fala como um
patriota do Risorgimento. Grita que os “torpes negociadores de Rapallo” até
podem aplicar o “tratado nefasto”, mas que não é por isso que o fiumanismo
acabou. A “audaz revolução” iniciada em 1915 contra “a velha, cínica,
debilitada, covarde Itália, dignamente representada por Giolitti” continuará.
Marsich não é difícil de rebater. É só lhe dar razão. O problema começa
quando os dálmatas falam. São italianos desde os tempos do Império de
Roma, e o tratado os condena ao jugo croata. A comoção se espalha pela sala,
e a comoção entre homens adultos é sempre perigosa.
Mussolini, então, intervém pela segunda vez. Os dálmatas que digam de
maneira clara o que representam. Naquela sala, todos são apoiadores, mas é
necessária clareza. O que eles querem? A anexação até o Cátaro? Uma
república ítalo-iugoslava? A autonomia completa? A discussão continua,
sempre no clima de comoção. Ele intervém uma terceira vez. Entende que os
dálmatas se sentem meros soldados rasos de D’Annunzio, mas não são, têm a
responsabilidade da ação! Se D’Annunzio amanhã cismasse de anexar toda a
Dalmácia, eles não poderiam segui-lo. Que os dálmatas digam de maneira
clara o que querem. A discussão continua com o mesmo teor de antes. Ele
intervém pela quarta vez. Eles precisam entender que a questão não é apenas
sentimental: está em jogo o destino da nação. Se insistirem em seguir daquele
jeito, ele manterá sua ordem do dia, pura e simples.
Duas horas mais tarde, Benito Mussolini volta atrás. Retira sua ordem do
dia e aceita um outro acordo. É um meio-termo, como sempre. Aplaude as
novas fronteiras, faz duras críticas a respeito da Dalmácia e repete que Fiume
deve ser italiana. A crise interna do fascismo é evitada. Nem mesmo Cesare
Rossi entende. Até Cesarino fica transtornado com aquela reviravolta. Esteve
ao lado de Mussolini durante toda a diatribe e agora não aceita o passo atrás.
A ordem do dia é aprovada apesar de seu voto contrário.
Na mesma noite, o fundador dos Fasci di Combattimento escreve a
D’Annunzio: “Meu caro Comandante, o longo silêncio não enfraqueceu
minha voz tampouco atenuou minha devoção [...]. É vital indicar com
precisão os nossos objetivos, para mover, comover e orientar a consciência
nacional. Ou seja: a Dalmácia inteira, de Zara ao Cátaro? Ou então convergir
nossos esforços para salvar pelo menos aquela do Tratado de Londres? Diga-
me uma palavra sobre esse assunto. Quanto ao modo e ao tempo, confio no
senhor.” Uma obra-prima de hipocrisia. Mas, no fundo, é mesmo tão
importante ser chamado mais uma vez de traidor?

***

D’Annunzio não responde. Nenhuma outra carta proveniente do


Comandante chega a Milão. Nos dias seguintes, muitos o abandonam,
sobretudo nos altos escalões das Forças Armadas: o almirante Millo, o
comandante dos granadeiros Carlo Reina, Luigi Rizzo, que afundou
heroicamente o Santo Stefano, e o general Ceccherini, que nas fantasias
insurrecionais deveria ter guiado os bersaglieri no ataque ao Parlamento de
Roma. O Comandante, abandonado ao seu destino, se cala. Quem responderá
será o poeta, em 20 de novembro, falando no Teatro Verdi, em um concerto
realizado em Fiume por Toscanini: “Aqui estamos nós, novamente sós, sós
contra todos, com a nossa solitária coragem”, diz.
A Itália precisa de paz para recomeçar, para se refazer, para
enveredar pelo caminho da sua inevitável grandeza. Só um
louco ou um criminoso pode pensar em desencadear novas
guerras que não sejam impostas por uma agressão repentina.

Benito Mussolini,
Il Popolo d’Italia, 13 de novembro de 1920
Leandro Arpinati
Bolonha, 23 de novembro de 1920

“Domingo, as mulheres e as crianças que fiquem em casa. Se querem ser


merecedores da Pátria, exponham em suas janelas o Tricolor. Pelas ruas de
Bolonha, domingo, deve haver apenas Fascistas e Bolcheviques. Será a
prova. A grande prova em nome da Itália.”
Arpinati ordenou que o escrevessem com clareza. Foi pessoalmente com os
seus rapazes afixar o ultimato em todas as ruas da cidade. Teve de fazer os
cartazes em casa com um mimeógrafo porque o chefe da polícia negou a
autorização de impressão.
A espera do confronto é ardente, unânime, simétrica. Tendo chegado a esta
situação, lutemos: esse é o único ponto em que os inimigos concordam. Em
12 de novembro, em Cremona, os fascistas de Farinacci advertiram os
conselheiros municipais socialistas: “Se amanhã, após a conquista da
prefeitura, os socialistas quiserem conquistar a praça, saibam que tem gente
disposta a matar e a morrer.”
Em Módena, onde os socialistas conquistaram 59 dos 68 municípios, 2 dias
depois, em uma espécie de resposta a distância, o presidente do Conselho
Provincial, ao inaugurar a assembleia, anuncia: “Nós não queremos discutir
com os nossos inimigos; queremos abatê-los.” A linha de frente já se estende
por todo o Vale do Pó.
Em Bolonha, a União Socialista se reúne na noite de 16 de novembro.
Superando as numerosas divisões, decidiram se aparelhar para rechaçar com
violência a violência fascista. A vitória dos socialistas nas eleições foi clara, o
mandato dos eleitores é inequívoco, não é possível se dirigir às forças de
segurança pública porque o Estado é o “comitê executivo da burguesia”.
Vamos nos defender dos fascistas sozinhos, está decidido. Para enfatizar a
vitória, foi convocada uma grande manifestação popular para a cerimônia de
posse da junta no Palazzo d’Accursio. Decidiram realizá-la no domingo, 21
de novembro, para permitir a participação das multidões operárias. A
vigilância armada foi delegada aos “guardas vermelhos”. Em resposta, na
noite do dia 17, os cerca de 400 afiliados do Fascio di Combattimento de
Bolonha se reuniram na Via Marsala. Decidiram também manter-se prontos e
atentos.
Dos dois lados, há exaltação, circula uma euforia grosseira, acontecem
bizarras explosões de vitalidade. A longa espera parece ter chegado ao fim.
O choque parece inevitável, o conflito é anunciado, premeditado, até
mesmo negociado. Em 18 de novembro, no Parlamento, pela primeira vez o
deputado socialista Niccolai denunciou a difusão das violências fascistas, o
Avanti! destacou as conivências do governo, o Corriere della Sera, porém,
replicou falando abertamente de “santa reação da opinião pública” aos abusos
dos socialistas. Em Bolonha, o governador da província e o chefe de polícia
estão plenamente cientes de que basta uma faísca para que o fogo seja ateado.
Circulam boatos sobre o caixote de bombas que os socialistas estariam
guardando no Palazzo d’Accursio para a festa de posse da junta, são enviadas
cartas anônimas, são feitas negociações sobre os símbolos. O chefe de polícia
foi pessoalmente à sede fascista da Via Marsala negociar as regras de
participação. Após longas reuniões secretas dos dois lados, chega-se a um
acordo digno de um protocolo imperial: os fascistas não atacarão, com a
condição de que não seja soado o “grande sino” e não seja exposta a bandeira
vermelha, exceto no momento em que, ao fim da sessão, o novo prefeito
aparecer na praça para agradecer aos eleitores. Só então poderá ser tolerada
como bandeira do partido. O chefe de polícia, enquanto isso, solicitou ao
governador da província o envio de mais 1.200 soldados e 800 carabineiros
como reforço para os 400 guardas reais já disponíveis. Na manhã de 21 de
novembro, segundo os relatórios de Visconti, o governador da província, nas
ruas do Centro circulam 900 homens da infantaria, 200 a cavalo, 800
carabineiros, 600 guardas reais. Bolonha é uma cidade em estado de sítio.
O Palazzo d’Accursio é desde sempre a sede do poder civil de Bolonha,
Senado ou prefeitura que seja. É um palácio com ameias ao lado da catedral
de São Petrônio, que dá para a Piazza Maggiore. Depois das 14h, começaram
a afluir os cortejos dos delegados socialistas. São cerca de dois mil, não mais
do que isso, obedecendo a um acordo feito com a chefatura de polícia. A
praça é isolada, todos os acessos da Via Rizzoli e da Via Indipendenza estão
interditados. Um cordão de carabineiros a fecha de cada lado.
Todavia, ao que parece, alguns fascistas conseguiram entrar antes do
bloqueio. São talvez uma dezena, reunidos sob os toldos do restaurante
Grande Italia na praça repleta de milhares de socialistas aglomerados em
volta da fonte de Netuno. No interior do palácio, tudo está preparado para o
início da cerimônia de posse. No pátio, cerca de cinquenta guardas reais
supervisionam a entrada. Nas sacadas, estão os “guardas vermelhos” armados
de fuzis e granadas. Qualquer pessoa está em linha de tiro. Não voa uma
mosca sequer.
Porém, às 14h30, apesar das precauções do governador da província e dos
acordos com o chefe de polícia, na Torre degli Asinelli tremula uma bandeira
vermelha.
Os fascistas, liderados por Arpinati, saem em massa da sede da Via
Marsala e marcham em grupos rumo à praça. Um punhado consegue penetrar
pela Via Ugo Bassi em um espaço aberto para permitir a entrada da cavalaria.
Não são mais do que quinze. Entoam suas canções nas margens da multidão
socialista.
No palácio, às 15h, começa a sessão do Conselho. O discurso de posse do
novo prefeito prossegue sem problemas. Ele se chama Enio Gnudi, é operário
das ferrovias, comunista, rende a costumeira homenagem à Revolução Russa.
Meia hora mais tarde, enquanto os grupos fascistas aumentam a algazarra,
Gnudi, eletrizado, se apresenta na sacada da Sala Vermelha para saudar a
multidão circundado pelas bandeiras vermelhas das associações socialistas.
Para ele, é um dia de festa, mas o prefeito está olhando para a própria ruína.
Liberta de uma gaiola pombos que saem em revoada sobre socialistas e
fascistas, sem distinção. As aves também carregam bandeirinhas vermelhas
amarradas à cauda. Do restaurante Grande Italia, uma pistola é disparada.
Ao sinal do desastre, um grupo de 26 fascistas de Ferrara rompe a pauladas
o cordão de segurança. Tiros continuam a ser dados do restaurante Grande
Italia, e, das sacadas do palácio, abre-se fogo em resposta; mais disparos de
fuzil vêm da fonte de Netuno. A multidão se vê no meio do fogo cruzado.
Aterrorizada, corre em todas as direções. A maioria se dirige para o pátio do
palácio. Começa a debandada.
Os camponeses e operários socialistas suam, tremem, têm medo de morrer,
sensações de torpor, de sufocamento, de formigamento nos membros, de
pressão no peito, de desmaio, têm medo de enlouquecer, a respiração está
curta, a taquicardia é cada vez mais forte, a pressão sanguínea aumenta e em
seguida despenca, há calores, calafrios, náusea, os homens têm medo de não
conseguir se recuperar, sentem que o pior ainda está por vir, uma sensação de
irrealidade invade o mundo.
Das sacadas, os “guardas vermelhos”, vendo seus companheiros
procurando se salvar no pátio, acham que se tratam de fascistas que foram
invadi-lo. Jogam cinco bombas. Os cadáveres dos companheiros se
amontoam na entrada.
Enquanto um socialista termina seu discurso, da praça sobem os ecos de
detonações que chegam até a Sala do Conselho repleta de público, de guardas
municipais, de “guardas vermelhos”, de funcionários aduaneiros. Pelas
janelas, avistam-se os corpos caídos. Os conselheiros socialistas, sem saber o
que de fato aconteceu, sobem nas mesas da maioria parlamentar
acompanhados por bombeiros de plantão. “Assassinos! Estão matando nossos
companheiros!”, gritam para os poucos conselheiros dos partidos de minoria.
O advogado nacionalista Aldo Oviglio joga sobre a mesa o próprio
revólver: “Eu não estou matando ninguém.”
Há todo um mundo de homens armados nesse dia no Palazzo d’Accursio.
Do outro lado da sala, um deles — um militante socialista anônimo — se
levanta, aponta a arma contra aqueles senhores indefesos que, naquele
momento, ele vê como os responsáveis por uma carnificina causada, na
verdade, em grande parte por seus companheiros, e abre fogo. Ele nunca será
identificado pela polícia nem entregue pelos dirigentes do partido. O
advogado Giulio Giordani, conselheiro do Partido Nacionalista, ex-
combatente, medalha de prata, com uma perna mutilada, morre na hora.
Quando vivo, não era sequer fascista, mas se tornará quando morto. O
advogado Biaggi cai no chão com ferimentos leves. O advogado Cesare
Colliva se arrasta sangrando, de quatro, até a saída.
Dizem que Leandro Arpinati foi visto incitando os fascistas ao ataque,
agarrado à estátua de Netuno. Outros juram tê-lo visto ir até o pátio do
palácio com o revólver em punho. Boatos, rumores, lendas. Certo é que há
dez mortos e cinquenta feridos. A credibilidade da organização militar
socialista está destruída, a reputação do partido, também. O Conselho
Municipal, democraticamente eleito, abalado pelas prisões e pelo escândalo,
renuncia em bloco. Bolonha será governada por um comissário indicado pela
administração da província. Uma outra estação começou.
De quem é a culpa? Quem, senão o Partido Socialista,
aspira à guerra civil na Itália? Quem, senão o Partido
Socialista, cria e deseja esse ambiente de batalha selvagem? A
batalha encontra necessariamente os seus combatentes
também do outro lado [...]

Corriere della Sera, 23 de novembro de 1920

Está na hora de todos nós decidirmos nos desarmar e desmobilizar os


ânimos, depor não apenas as armas materiais, mas desarmar e desmobilizar
os ânimos [...]. Mãos para o alto, todos!

Filippo Turati, líder socialista,


discurso na Câmara, 24 de novembro de 1920

Contra a tosca covardia dos homens vermelhos aninhados


no Palazzo d’Accursio [...] olho por olho, dente por dente.
Fora os bárbaros!
L’Avvenire d’Italia, jornal católico de publicação
diária, 24 de novembro de 1920
Benito Mussolini
Trieste, início de dezembro de 1920

“Quando sitiado em uma cidade sem suprimentos, um grupo tem apenas


um caminho para não ser esmagado: sair e enfrentar a batalha em campo
aberto.”
Alceste De Ambris estica a cabeça para a frente, aproximando o
cavanhaque de mosqueteiro do interlocutor.
O fundador da União Sindical Italiana e o fundador dos Fasci di
Combattimento se conhecem há anos. Estiveram lado a lado nos tempos do
intervencionismo. De Ambris participou da redação do primeiro Manifesto
dos Fasci di Combattimento. Mussolini admira o sindicalista revolucionário
desde que, em 1908, em Parma, Alceste liderou a primeira grande greve
agrária da história italiana. O rei teve de mandar os lanceiros de Montebello
para desocupar a indomável Câmara do Trabalho do burgo proletário de
Oltretorrente. Naquele dia, De Ambris entrou com força no panteão do
socialismo revolucionário.
Agora, doze anos depois, Gabriele D’Annunzio enviou Alceste De Ambris
para fazer uma última tentativa de persuadir os fascistas a defender os
legionários de Fiume. Na alvorada de 1o de dezembro, sob ordens de Giolitti,
dois encouraçados, oito contratorpedeiros e dois rebocadores se
posicionaram, de fato, diante do porto de Fiume. O cerco começou. A cidade
está sob mira. De Ambris se inclina ainda mais para a frente.
— Mussolini é um amigo?
A pergunta fica suspensa no ar entre os dois velhos companheiros. O outro
abre a pasta de couro amarelo que leva sempre consigo, retira um lenço e
assoa o nariz:
— Esse resfriado não me larga mais. Eu o carrego sempre por aí comigo,
por isso dura mais.
— Mussolini é um amigo? — pressiona De Ambris.
— Mas é claro que sou um amigo! Repeti ontem mais uma vez no jornal
que seria o primeiro a convidar os italianos a se rebelarem como um só
homem caso o governo ousasse ordenar ao Exército abrir fogo contra os
legionários.
— E você está disposto a pôr seus homens sob o comando de D’Annunzio?
O terceiro homem na sala, o jovem Umberto Foscanelli, encarregado de
fazer anotações, levanta a cabeça da folha à espera da resposta. Ficou
acertado que a ata da reunião deverá ser transmitida tanto ao Comitê Central
dos Fasci di Combattimento quanto ao Comandante D’Annunzio.
Mussolini afirma:
— Você deve convencer D’Annunzio a aceitar o Tratado de Rapallo. Só há
uma maneira de rompê-lo: a revolução interna contra o governo que o firmou.
Mas a revolução interna é impensável porque 99% do povo italiano aceitou o
fato consumado com um profundo suspiro de alívio. Todos estão
abandonando vocês.
A lista dos que se afastaram é longa. O economista Maffeo Pantaleoni
escreveu para D’Annunzio implorando-lhe que desistisse. Também o
almirante Millo, que ocupava Zara com as tropas regulares, reiterou sua
fidelidade ao rei e rompeu com D’Annunzio. O general Ceccherini e o
coronel Siani foram embora lamentando a insuportável indisciplina dos
legionários. À sofrida carta de despedida deles, o Comandante replicou que
não podia ceder o poder absoluto: “É fundamental que eu mantenha essa
prerrogativa. É a única alegria em tanto tédio.”
De Ambris insiste. A insurreição é possível: a partir de Fiume, podem
marchar sobre Roma. Expõe os detalhes do plano de saída. Essa também é
uma lista longa. Em Fiume, há várias unidades navais: o cruzador Mirabello,
os contratorpedeiros Abba, Bronzetti, Nullo, uma flotilha MAS com equipe
completa. É verdade que, ao largo, estão de vigia o Dante e os outros navios
da Marinha Real, mas já foram feitas viagens a Zara com algumas dessas
unidades; de Zara a Ancona a distância não é excessiva. As tropas de Fiume
desembarcariam em Ancona, onde aquele regimento de bersaglieri já se
rebelou em julho por conta da expedição a Vlorë. Trata-se de fazer acordos
com os fascistas da região das Marcas. Os marinheiros do capitão Giulietti
ainda são amigos...
“E os socialistas do Norte da Itália?! E Bolonha vermelha?!”, explode
Mussolini. Escutara até aquele momento usando a mão para tapar o nariz com
o lenço, mas, de súbito, arregalou e revirou os olhos, como costuma fazer
quando quer enfeitiçar. “Após a carnificina do Palazzo d’Accursio, já é
guerra aberta. Vocês leem jornais em Fiume!?”
De Ambris não parece impressionado com a interrupção. Prossegue com a
exposição de seu plano meticuloso. Todo o pessoal de Parma está com eles,
garante. É imprescindível fazer com que as massas de trabalhadores saibam
que os dannunzianos carregam o Estatuto da Regência de Carnaro, legislação
que protege sobretudo o trabalho; é imprescindível fazer com que entendam
que a revolução deles será sobretudo para o povo; é imprescindível remediar
a falta de divulgação da Carta de Carnaro... seu espírito inovador não foi
comunicado o suficiente... nesse ponto, o Il Popolo d’Italia também teve sua
parte de culpa...
Mussolini parece não estar mais escutando. Já responde com monossílabos,
é frio, evasivo, assoa o nariz o tempo todo, alude a várias dificuldades — mas
são apenas alusões distraídas —, às tropas iugoslavas que pressionam ao
longo da fronteira, à escassez de provisões, a um inverno sem carvão.
A conversa é interrompida quando aludem aos rigores da estação, à
umidade, aos resfriados. Pedem que Foscanelli arranque as folhas em que
redigiu a ata. É o único ponto sobre o qual Mussolini e De Ambris
concordam. As folhas rasgadas vão parar no aquecedor.
Italianos de Trieste, italianos de toda a Ístria, italianos de toda a Veneza
Júlia, de Timavo a Carnaro, o crime está prestes a ser consumado, o sangue
está prestes a ser derramado. Os enfermos os saúdam. Os enfermos saúdam a
pátria próxima e a pátria distante. Eles dedicam o próprio sacrifício ao futuro
[...]. O Cego da vitória está prestes a ser abatido pelo Clarividente da traição.
Isto estava escrito; e isto é maravilhoso. Ei, irmãos! Se eu for atingido na
garganta, ainda assim reunirei a força para cuspir meu sangue e lançar meu
grito. Tapem os ouvidos com um pouco de lama fiscal. Viva a Itália!

Gabriele D’Annunzio, proclamação contra o Tratado de


Rapallo,
Fiume, 28 de novembro de 1920
Benito Mussolini
Milão, 20 de dezembro de 1920

O automóvel que estaciona na Via Lovanio é um Torpedo Bianchi modelo


S3, um modelo mais evoluído daquele que foi usado pelo estado-maior do
Exército italiano durante a Grande Guerra para observar as manobras
militares. Um veículo senhoril — quatro lugares mais os bancos dobráveis —
digno de um comendador, mas que flerta com o mundo dos automóveis
esportivos, como demonstram as rodas com raios tangentes.
É ele quem está ao volante. Do lado do carona, espera-se que desça uma
senhora elegante. Margherita Sarfatti não decepciona. Veste uma saia ampla
embaixo e justa na cintura, que abraça os quadris, segundo a moda de Paris,
feita de jérsei, um tecido elástico e brilhoso. Via Lovanio é uma rua
igualmente elegante, pouco distante da Academia de Brera, logo atrás da Via
Solferino, onde fica a sede do grande jornal da burguesia, Corriere della
Sera.
Para cá, em poucos dias, a redação do Il Popolo d’Italia também será
transferida. A mudança da tipografia já foi feita, as rotativas estão em ação.
Uma outra Milão em comparação com as vielas mijadas do Bottonuto. No
cubículo fedorento da Via Paolo da Cannobio, a máquina de escrever de
Mussolini já foi empacotada com os revólveres cenográficos e a bandeira dos
Arditi.
Hoje até o diretor tem um aspecto incomumente distinto. Terno preto,
chapéu-coco, camisa com colarinho armado, gravata de seda, lenço branco no
bolso do paletó. Não se barbeou como de costume; hoje foi ao barbeiro. Uma
exigência de sua primeira sessão de fotografias posadas. Ao descer do carro,
a mulher que antes o vestiu e depois o levou até lá dá-lhe o braço satisfeita.
Michele Bianchi, o redator-chefe, Manlio Morgagni, que agora se ocupa da
venda de publicidade, e seu irmão Arnaldo, que o substituiu no papel de
administrador, já estão lá esperando o diretor. A breve inspeção logo segue
para a sala que acolherá a direção. Tem pelo menos o triplo do tamanho do
cubículo da Via Cannobio, é luminosa, decorada com uma escrivaninha em
mogno, estantes, arquivos, quadros escolhidos por Margherita Sarfatti, a
crítica de arte do jornal, e tem uma poltrona de leitura.
“Uma poltrona? O que faz uma poltrona no meio do meu escritório!?”,
pragueja Mussolini, apertando os olhos e fazendo as pupilas percorrerem
aquela decoração habitual como se tivesse avistado um inimigo irredutível.
“Uma poltrona, para mim?! Levem isso embora daqui, ou vou jogá-la pela
janela. A poltrona e as pantufas são a ruína dos homens!”
Margherita sorri, a decoradora não mostra sinal algum de perturbação, a
pantomima a favor do amante deu certo.
A visita continua na sala adjacente, um vasto cômodo ainda não terminado,
completamente vazio, sem teto e sem revestimento sobre o cimento. Será
usada como sala de armas. O diretor poderá ter ali suas habituais aulas de
esgrima sem precisar roubar tempo demais do jornal. Nos seus trajes à
paisana, com o chapéu-coco na cabeça, no vazio da sala nua, Benito
Mussolini ensaia uma pose de espadachim, a mão na terceira posição, a arma
alinhada. A violência está cada vez mais na ordem do dia.
A escalada aconteceu após a carnificina de Bolonha. A progressão foi
exponencial, a diretriz, unívoca e clara, como se estivesse sendo guiada por
um instinto da espécie. Imediatamente após a matança, enquanto os cadáveres
e os feridos ainda gemiam na praça, os fascistas já se enfileiravam e
percorriam as ruas da cidade cantando seus hinos. No dia seguinte, começou
sua ascensão — milhares de novos afiliados em poucos dias —, e os fascistas
não tinham intenção alguma de se desarmar. Arpinati havia declarado ao
público: enquanto o período de violência não cessasse nos campos, enquanto
os órgãos do Estado não voltassem a ter domínio da situação, o Fascio di
Combattimento bolonhês continuaria a manter as armas em riste.
Mussolini logo enviou Cesare Rossi e Celso Morisi de Milão para
coordenar a formação das equipes. As formações paramilitares fascistas,
sonhadas em vão por muito tempo pela ambição por poder do Fundador,
agora eram resultantes de um processo de geração espontânea a partir do
sangue derramado na Piazza Maggiore em Bolonha. Rossi disse que já em 23
de novembro, durante o cortejo fúnebre de Giordani, os fascistas desfilaram
em formação entre duas alas da multidão carregando o estandarte do
município. Os socialistas não apareceram. Nem sequer reuniram coragem
para proclamar a greve geral em protesto contra o ataque fascista.
Aniquilamento político total. Naquele dia, a junta renunciou ao próprio
mandato; na mesma noite, a administração provisória foi confiada a um
governador de província; no dia seguinte, o comissário provincial tomou
posse. Começou a caça às bruxas vermelhas.
No dia 28, Arpinati, acompanhado por um bando de fascistas, partiu para o
monte Paderno para advertir o chefe da liga e trouxe de volta a bandeira
vermelha. Queimaram-na na Via Indipendenza. Em 4 de dezembro, em uma
assembleia no Teatro Comunale de todas as associações antibolcheviques, os
fascistas foram aclamados com gritos de “fora os bárbaros!”. Em 7 de
dezembro, saquearam a Câmara do Trabalho de Castel San Pietro; no dia 9,
houve um conflito em Monzuno; no dia 18, na saída do tribunal, agrediram e
atacaram a pauladas os deputados socialistas Bentini e Niccolai; no dia 19,
foi a vez do deputado Misiano, o desertor. E assim chegaram ao dia de hoje,
20 de dezembro, a apenas 5 dias do Natal.
Justo na manhã de hoje, Arpinati, eleito pelo furor popular como secretário
do Fascio di Combattimento de Bolonha, anunciou, por meio de um
telegrama, que estava partindo para uma expedição em Ferrara em apoio a
uma manifestação dos fascistas locais em homenagem ao advogado Giordani
no trigésimo dia do seu assassinato no Palazzo d’Accursio. De Ferrara,
chegaram a requisitar 3 mil distintivos para que a manifestação fosse bem-
sucedida. Até se comprometeram a antecipar o valor.
De fato, uma onda de entusiasmo e um coro de consensos havia saudado
por toda parte as ações dos grupos fascistas. O sucesso era total, o choque
causou reviravolta, o encanto vermelho se partira. E não somente em
Bolonha. A violência triunfal se propagava ao longo de toda a Via Emilia
com uma velocidade contagiante: na região de Rovigo, apoiadas pelos
proprietários de terras, os Fasci di Combattimento se difundiam ao longo do
eixo Cavarzere-Cona-Correzzola-Bovolenta; em Adria, as esquadras haviam
expulsado as cooperativas de assalariados temporários que haviam ocupado a
grande fazenda de Oca; em Módena, atacaram os conselheiros municipais;
em Carpi, a Câmara do Trabalho; dali, as ações penetraram por infiltração até
Reggio e Mântua; em Bra, na região de Cuneo, guiados por De Vecchi, os
fascistas perseguiram a pauladas os “guardas vermelhos” até entrarem nos
escritórios da prefeitura. O efeito era como o de uma avalanche, passava-se
da legítima defesa à contraofensiva; o fascismo desabrochava irrefreável em
todas as províncias da Itália. Um ar de batalha pairava nos campos.
Mussolini o proclamara pessoalmente nas colunas do jornal: logo, seriam
invencíveis, aproximava-se sua grande, sua grandíssima hora. Corações ao
alto! Vamos transformar o medo em ódio e nos atirar contra o inimigo.
Vamos fazer de todas as nossas vidas um aríete!
Os socialistas, por sua vez, coitados, gritaram “mãos para o alto”! Filippo
Turati içou sua barba de profeta sobre as cadeiras do Parlamento e fez um
nobilíssimo discurso. Denunciou a aquiescência das autoridades, chorou a
matança involuntária dos próprios companheiros socialistas, defendeu as
instituições e as liberdades estatutárias. Turati esclareceu que não queria
recriminar, mas cuidar do amanhã. Tinham de dar trégua aos excessos de
todos os lados, removendo suas causas. Era hora, concluiu, para todos se
decidirem a desmobilizar e a desarmar os ânimos. Para encerrar, deixou
elegantemente escapar uma culta e irônica citação literária.
O plenário em Montecitório escutou em silêncio absoluto, comovido. A
imprensa esclarecida aplaudiu admirada: o velho eremita socialista conseguiu
realizar o milagre de devolver aos deputados do seu grupo a consciência
socialista, e aos democratas, a consciência liberal.
Lendo a transcrição do discurso de Turati, Mussolini balançou a cabeça
divertido. Não havia nada a ser feito: aquela gente não entendia a brutalidade.
Lindo discurso — sem dúvida —, mas o terreno da violência não era para os
socialistas. Sim, claro, as ligas mandavam e desmandavam nos campos, as
Câmaras do Trabalho nas cidades oprimiam com multas, boicotes e gravames
os inimigos de classe, os camponeses socialistas até incendiaram alguns
paióis, mutilaram algumas vacas, surraram alguns arrendatários, atiraram em
autodefesa contra alguns policiais ou proprietários agrícolas, chegaram até
mesmo, em casos raros, à ferocidade de mutilar cadáveres ou violentar moças
que voltavam da missa, mataram a pauladas alguns fascistas, mas, no fundo,
eram sempre explosões de cólera ancestral, as costas chicoteadas que em um
espasmo de desespero se erguem e agarram a chibata, o colono que após
séculos de abusos, em uma noite de lua cheia e grappa, degola no sono o
feitor que estuprou sua filha, incendeia o celeiro e, em seguida, enforca-se. A
violência socialista era uma realidade indubitável, mas nela tudo se reduzia a
esse impulso. Os chefes socialistas discutiam sobre organizar a revolução por
meio de um exército de militantes armados e, na verdade, não havia
organização alguma. Ele conhecia bem aquela gente, havia décadas. Quanto à
violência, eram e permaneceriam sendo uns episódios precários.

***

O vazio da sala de armas de repente é ocupado por uma multidão. Um


mensageiro chegou correndo da Via Cannobio: ocorreu um pandemônio em
Ferrara.
Mussolini balança a cabeça para se desfazer de suas meditações sobre a
espada fantasma. Pede mais detalhes. O mensageiro os fornece.
Houve violentos confrontos à margem de um comício convocado pelo
prefeito socialista de Ferrara. De um cortejo de enfermeiros que ia ao comício
agitando a bandeira vermelha, foram feitos disparos em direção à
contramanifestação guiada por cerca de cinquenta fascistas bolonheses, com
Arpinati à frente. Não ficou claro quem atirou primeiro, mas parece que os
bolcheviques também atiraram dos espaldões do Castelo dos Este, onde a
polícia encontrou bombas. Enfim, a agressão dos “vermelhos” contra os
camisas-negras foi premeditada. Parece que pelo menos três fascistas
permaneceram no chão.
— Arpinati?
— Arpinati está vivo.
Os músculos da cervical se contraem, os nervos tensionam, calcanhares
são girados. A visita à nova sede da Via Lovanio terminou.
Mussolini entra de novo no Torpedo; ao seu lado, onde primeiro estava
sentada Margherita Sarfatti, agora segue Michele Bianchi. Lusignoli,
governador da província de Milão, contato deles com o Presidente do
Conselho em Roma, os espera. Quer garantias sobre a conduta dos fascistas
em relação a D’Annunzio. Mussolini prometeu-lhe há tempos que, ali em
Milão, não vão mover uma palha, mas faz dias que no Il Popolo d’Italia
aparecem inesperadamente duras críticas do diretor a Giolitti, que ameaça
desocupar Fiume a tiros de canhão. Lusignoli quer garantias e vai obtê-las: a
promessa a Giolitti será mantida, a polêmica jornalística é só para despistar
os fascistas fiéis a D’Annunzio.
Após a parada no governo da província, eles partem imediatamente no
Torpedo S3. Saem velozes, a todo vapor. É preciso jogar em várias mesas,
combater em diversas frentes, manter-se em perpétuo movimento. Agora está
na hora de fazer um discurso no salão do Automóvel Clube, onde está sendo
celebrado o primeiro aniversário da “Associação Nacional Legionária de
Fiume e da Dalmácia”. Estarão presentes a presidente Elisa Rizzoli e a
condessa Carla Visconti di Modrone Erba, madrinha da flâmula social. A elas
também não será negada satisfação.
No dia 20 do corrente mês, acontecerá aqui em Ferrara, em um teatro, um
grande comício em homenagem ao trigésimo dia da morte do advogado
Giulio Giordani de Bolonha. É nossa intenção, naquela ocasião, fazer uma
demonstração de todas as nossas forças, da cidade e da província. Precisamos
de imediato, para poder distribuí-los a todos os nossos fascistas e amigos, 2
ou 3 mil distintivos. Enviaremos a vocês logo em seguida o valor
correspondente. Repetimos, precisamos da máxima rapidez no envio de tais
distintivos, que nos são indispensáveis, para mostrar a todos, em especial aos
adversários, de quais e quantas forças dispõe o Fascio di Combattimento de
Ferrara.

Carta enviada ao Comitê Central do Fascio di


Combattimento de Ferrara,
8 de dezembro de 1920
Italo Balbo
Ferrara, 22 de dezembro de 1920

Nas eleições políticas de novembro de 1919, o Partido Socialista, na


província de Ferrara, obteve 43 mil votos: três quartos dos ferrarenses
votaram a favor da revolução. No ano seguinte, nas eleições administrativas
de 1920, o bloco dos partidos antirrevolucionários obteve, em toda a
província, menos de 7 mil votos. No entanto, apenas um mês mais tarde, em
22 de dezembro, em Ferrara, 14 mil pessoas participam do funeral dos 3
fascistas mortos nos confrontos com os socialistas diante do Castelo dos Este.
As relações de força estão se invertendo, a apuração dos poderes deve ser
atualizada dia a dia.
Embora a causa do confronto tenha sido, sem dúvida, a agressão dos
grupos fascistas vindos de Bolonha sob o comando de Arpinati, as bombas
encontradas no Castelo dos Este, introduzidas pelos socialistas para preparar
a defesa, permitiram que os agressores revertessem as responsabilidades. Um
telegrama alarmado partiu de Ferrara para Giolitti em nome de todas as
associações burguesas de autodefesa civil: “Também aqui das torres Castelo
dos Este sede Administração provincial socialista por obra de representantes
dos cargos públicos são assassinados premeditada e traiçoeiramente cidadãos.
Invocamos imediatamente extensão inquérito parlamentar de Bolonha
também a esta província. Saudações.”
O governo de Roma identificou o bode expiatório no governador da
província, imediatamente removido do cargo. Uma recompensa de 20 mil
liras foi oferecida a qualquer pessoa que oferecesse indicações sobre os
“nomes dos assassinos”. Os responsáveis por aquilo que a imprensa burguesa
e fascista apresenta como uma “matança friamente planejada” são
perseguidos. O prefeito socialista Temistocle Bogianckino, Zirardini e outros
dirigentes da Câmara do Trabalho não podem mais sair na rua sem serem
insultados e ameaçados. O front proletário recua: La scintilla, o jornal
socialista local, suspende a publicação. Seus mortos são ignorados. O
enfermeiro Giovanni Mirella, militante socialista falecido nos confrontos,
chega até a ser atribuído ao Partido Popular.
Os mortos fascistas, em contrapartida, são honrados como “mártires” da
liberdade. Chamam-se Natalino Magnani, 19 anos, inscrito no Fascio di
Combattimento de Bolonha; Giorgio Pagnoni, assalariado agrícola
temporário de Gaibana; Franco Gozzi, tenente da reserva dos bersaglieri e
pioneiro do fascismo na província. Na cerimônia fúnebre, os oradores
enfatizam a coragem deles. Lembram que Gozzi, em toda a província de
Ferrara, conseguiu fundar apenas cinco círculos fascistas. Em contrapartida,
naquela mesma província, ao longo daquele mesmo ano de 1920, foram
contabilizados 192 celeiros incendiados pelos “vermelhos”. A audácia de
poucas dezenas de homens que enfrentaram milhares de outros é exaltada.
Que sejam louvados esses homens das sombras que “foram os primeiros a
romper o gelo da indiferença dos amigos e o ferro da prepotência dos
inimigos. Mas que não sejam feitas guirlandas do nosso pesar. Os mortos
marcham ao lado dos vivos”.
A cerimônia fúnebre avança solene, memorável, grandiosa, porém não
serve para enterrar os mortos. Pelo contrário, tudo nela, a homilia, o mea-
culpa, o pai-nosso, as alas da multidão devem servir para deixá-los
insepultos. Que não seja jogada terra sobre a tumba deles. Os mortos não são
homenageados: são vingados.
Terminado o cortejo fúnebre, os fascistas, cerca de mil, reunidos em
grupos e ordenados em uma coluna, voltam às ruas do Centro da cidade
cantando seus hinos. Toda a burguesia, grande e pequena, abre alas e os
exalta. Empresários, industriais, comerciantes, lojistas, pequenos
proprietários de terras, arrendatários, meeiros, funcionários, profissionais
liberais, artesãos. O sonolento Centro da cidade de Ferrara, abandonado pela
classe operária, desperta. A capital parasitária do vasto império agrícola se
liberta da indolência pequeno-burguesa. Dali a dois dias, é Natal, mas este
ano o capão magro terá um sabor diferente.
Anônimo entre os milhares de pessoas, assistindo ao funeral dos “mártires”
fascistas, está também um capitão dos alpinos. É um jovem de 24 anos, alto,
magro, forte, filho de um bom professor primário da província. Frequentou o
prestigioso liceu Ariosto em Ferrara, mas foi expulso devido ao baixo
rendimento escolar e ao mau comportamento. Desde garoto sua paixão
sempre foi a política. Republicano inflamado, mazziniano, foscoliano, com
16 anos fugiu de casa para se juntar ao neto de Garibaldi que organizava uma
expedição em apoio à liberdade do povo albanês. O pai teve de enviar amigos
para buscá-lo.
Depois, quando o garoto, que se tornara homem, finalmente foi para a
guerra, ganhou reputação. Guiou um batalhão de assalto na ofensiva final ao
monte Grappa. Conquistada a trincheira inimiga, só se salvou fingindo-se de
morto por um dia inteiro. Recebeu duas medalhas de bronze e uma de prata.
Dispensado em maio de 1920, como outros oficiais complementares, foi
enviado para Pinzano al Tagliamento, uma cidadezinha na parte central da
região do Friul, com o cargo de comissário do governo da província. Ali
apaixonou-se e foi correspondido, por Emanuela Florio, uma moça de origem
dálmata, filha de uma das famílias mais ricas da região. O pai, o conde Florio,
opõe-se àquela união com um pretendente pé-rapado. Mas o corajoso capitão
dos alpinos não tem nenhuma intenção de ceder. Aliás, prepara-se para voltar
até ela às margens do Tagliamento. Em 22 de dezembro, encontra-se em
Ferrara apenas de passagem, tendo voltado à cidade natal para as festividades
natalinas. Assiste ao funeral de 22 de dezembro quase que por acaso. Seus
cabelos são compridos, rebeldes, caídos sobre a testa, e um cerrado
cavanhaque preto desce por seu queixo. Chama-se Italo Balbo.
O luto que nos atingiu reforça nossos músculos e nossa fé. E nossos
Mortos não ficarão privados da mais justa vingança. Unidos agora e sempre,
unidos no sangue, nas dores e nas Vitórias: Venceremos!

A. Del Fante, fundador do Fascio di Combattimento de


Ferrara, carta ao Fascio de Milão, 22 de dezembro de 1921
Benito Mussolini
Milão, 24 de dezembro de 1920

“Aqui estão se preparando para consumar o delito. Você e seus


companheiros estão prontos para invadir o governo provincial, para atacar as
chefaturas de polícia?”
O apelo que os sitiados de Fiume fazem na carta que chega em Milão é
dramático. São os dias mais frios do ano. A geada se deposita em lascas sobre
os tetos dos automóveis estacionados nas vagas ao longo das calçadas. A
carta de D’Annunzio, quando Mussolini entra na sede do Fascio di
Combattimento na véspera de Natal, está no bolso interno de seu paletó.
A missiva desesperada de D’Annunzio foi entregue pessoalmente pelo
capitão Balisti naquela manhã. O oficial do comando fiumano viajou a noite
toda. Sabendo que a comunicação da cidade com o resto da Itália seria
cortada a qualquer momento, na noite de 23 de dezembro o Comandante
enviou aos apoiadores alguns homens de sua confiança no último navio a
vapor que partia. Logo Giolitti ordenará um ataque surpresa a Fiume. Escrita
à mão pelo próprio D’Annunzio, a carta desesperada pede mais uma vez aos
fascistas que mantenham a promessa de se rebelar caso aconteça o ataque
“fratricida”. Após tê-la lido em segredo, Mussolini desabafa com o emissário
de D’Annunzio:
“Aquele seu poeta é grandioso. Mas é louco. Nós já estamos com a polícia
no nosso encalço. Vão nos prender a qualquer momento.”
A situação em Fiume beira o precipício, o sucesso da reunião milanesa
parece incerto, mulheres e filhos dos dirigentes fascistas os esperam em casa
para a ceia da véspera de Natal.
No alto Adriático, são dias de ultimato e adiamentos contínuos. No início
de dezembro, o general Caviglia, à frente do contingente enviado de Roma
para fazer cumprir o Tratado de Rapallo, já ordenara que D’Annunzio
liberasse as localidades de Veglia e Arbe, ocupadas em violação do tratado.
Em 20 de dezembro, um novo ultimato de Caviglia chega a D’Annunzio. Ele
tem 48 horas para fazer com que seus legionários recuem até as fronteiras do
Estado de Fiume reconhecido pelo tratado. Simultaneamente ordenou o
bloqueio efetivo, por terra e por mar, do território fiumano.
Aos ultimatos, D’Annunzio respondeu com proclamações. Lançou três em
24 horas. Com a primeira, em 23 de dezembro, apelou para os marinheiros da
Itália que sitiavam os “heroicos irmãos” italianos de Fiume: “A pátria hoje
confia que cada um de vocês fará seu dever desobedecendo.” Na segunda,
mais breve, abandonou-se à melancolia. Fiume está vendida. Apenas um é o
dever de todos: resistir. E, se preciso, morrer. Na terceira proclamação,
endereçada mais uma vez “aos irmãos que sitiam os irmãos”, o poeta lançou
mão da carta desesperada das mães. Se os soldados de Caviglia derramassem
o sangue dos seus compatriotas enfileirados em defesa da italianidade de
Fiume, suas mães — garantiu o cego vidente analisando a esfera de cristal da
chantagem sentimental — os renegariam: “Eu não fiz você, meu filho.”
Em Milão, Mussolini também escreveu muito nos últimos dias. Em
diversos artigos, convidou Giolitti a reconhecer oficialmente o governo da
Regência dannunziana, protestou com força contra o bloqueio imposto à
cidade e, sobretudo, lançou-se contra os boatos de uma iminente ação militar
contra os legionários. O diretor do Il Popolo d’Italia gritou das colunas do
jornal que ordenar que soldados italianos ataquem os legionários italianos
seria uma falha indelével, definiu o bloqueio como uma “coação bárbara”,
ameaçou consequências terríveis. Todavia, sempre disse estar confiante de
que não haveria derramamento de sangue.
Mussolini reiterou essa sua certeza mais uma vez hoje, em um artigo, já
entregue à tipografia, que será publicado amanhã, na edição de Natal. Ao
mesmo tempo, jogando em duas mesas, como de costume, o fundador dos
Fasci di Combattimento tranquilizou Giolitti. Nas conversas com Lusignoli, o
governador da província, deixou claro que discordava da conduta infeliz do
poeta. O governador da província, por sua vez, tranquilizou o chefe do
governo: “Tática, pura tática de Mussolini.” Os Fasci di Combattimento não
vão se mexer. O caminho está livre.
A reunião secreta do Comitê Central em 24 de dezembro corre sem
problemas. Circulam demonstrações de bom senso, são repetidas fórmulas
consolidadas como “realismo saudável”, “noção de Estado”, “conselhos mais
brandos”. Em vista do clima de conciliação, Mussolini chega a confiar aos
seus colaboradores que a questão de Fiume é de importância secundária. O
fascismo não deve se mostrar intransigente na política externa. Seu futuro
está em outro lugar. Na política interna.
Opõem certa resistência apenas os fascistas de Trieste. Mas em Milão é
véspera de Natal, nas ruas a bruma se adensa em superfícies cristalinas que
revestem com um manto opaco as agulhas do Duomo, e a maioria dos
milaneses já considera o Comandante um louco megalomaníaco. O caldo de
capão já ferve no fogo. A última, desesperada, carta de D’Annunzio
permanece no bolso interno do paletó de Mussolini.
Quando, às 17h, é lançado sobre Fiume o ataque das tropas regulares
italianas, a reunião secreta do Comitê Central dos Fasci di Combattimento já
terminou, e seus integrantes se apressam rumo a casa para se reunirem com
as famílias na celebração do Santo Natal do Nosso Senhor Jesus Cristo.
Tive uma conversa com Mussolini que discorda profundamente da conduta
D’Annunzio. Quando perguntei por que no seu jornal apoia oportunidade
reconhecimento Fiume respondeu que tal reconhecimento mesmo excluindo
anexação poria fim atual disputa. Todavia não pode apoiar tese oposta porque
seria considerado traidor pelos seus.

Telegrama de Alfredo Lusignoli, governador da província


de Milão, a Giovanni Giolitti, 20 de dezembro de 1920

Avançar imediatamente ao longo de toda a linha, subjugando qualquer um


que tente impedir a obediência dos nossos soldados. Entrar em Fiume o mais
rápido possível. Pela salvação e a honra da pátria. A ação continuará até a
ocupação da cidade.

Ordem do governo italiano ao general Enrico Caviglia,


24 de dezembro de 1920
Gabriele D’Annunzio
Fiume, Natal de 1920

O Comandante não é mais ele. Desde que começou o ataque, mantém o


olhar fixo sobre um ponto distante, como se arrebatado por uma miragem
africana. Por volta das 18h de 24 de dezembro, quando chega na sala de
comando a notícia da ofensiva, o major Vagliasindi, inspetor dos legionários,
gasta uma hora tentando obter de D’Annunzio a ordem de atirar nos
atacantes. Enquanto isso, os primeiros postos avançados de legionários nos
arredores de Cantrida já foram cercados e capturados pelos soldados
regulares do Exército Real italiano.
Há semanas D’Annunzio declara estar disposto a morrer pela causa.
Restam-lhe apenas 5 mil legionários para defender Fiume, e a morte, não a
esperança, surge para ele como a última deusa. Mas agora que a morte tantas
vezes invocada aparece de fato, trazida pelas fortes formações de alpinos e
carabineiros que atacam em setores distintos do front, de Val Scurigna até o
mar, o Comandante parece mais perplexo do que relutante. Então essa coluna
de homens com aquela pena preta engraçada enfiada na insígnia vermelha do
chapéu de feltro é o fim?
Desferido apesar de os legionários, que receberam ordens de não travar
combate, terem recuado até a última linha de resistência em volta da cidade, o
ataque das tropas regulares foi fulminante. Os patéticos cartazes que invocam
a irmandade entre italianos — “Irmãos, se querem evitar a grande tragédia,
não ultrapassem este limite” — foram ignorados. No entanto, quando
finalmente recebem de D’Annunzio a ordem de abrir fogo, os legionários
conseguem reforçar os pontos de ruptura na linha defensiva e até mesmo
contra-atacar. O efeito da surpresa é neutralizado. Antes da noite, a linha de
resistência é reconstituída em volta de Fiume.
Ao saber que o ataque foi rechaçado, o general Ferrario, comandante do
corpo de Exército, ordena o uso maciço de todas as artilharias para a
retomada da ação no dia de Natal. Esperando uma retratação dos
dannunzianos, o general Caviglia, à frente das operações, impõe uma trégua
até o amanhecer do dia 26. Nas 24 horas de hiato entre a vida e a morte, o
poeta reencontra a inspiração. Entrega ao seu ajudante uma proclamação a ser
lançada sobre Trieste e Veneza: “O delito foi consumado. A terra de Fiume
está ensanguentada de sangue fraterno [...]. À noite, transportamos em macas
nossos feridos e nossos mortos. Resistimos desesperadamente, um contra dez,
um contra vinte. Ninguém passará, a não ser sobre os nossos corpos [...]. E a
Itália, desonrada para sempre perante o mundo, não soltará um grito? Não
erguerá uma mão?”
Mas a Itália está à mesa para o almoço de Natal e não solta grito algum, a
não ser para os brindes de praxe. Só em Trieste acontece um levante de apoio
a Fiume. Logo é reprimido, também por causa da escassa participação
popular.
Às 6h50 de 26 de dezembro, as tropas regulares recomeçam o ataque. A
ação, apoiada pelos disparos da artilharia, concentra-se no setor central.
Fracassa novamente. Os legionários se curvam, mas mantêm a linha, contra-
atacam, capturam um canhão e fazem prisioneiros. Na hora do almoço, fica
claro que, para entrar na cidade, apenas com um massacre.
Ao meio-dia, o general Caviglia ordena que o almirante Simonetti, no
comando do encouraçado Andrea Doria na enseada do porto de Fiume, abra
fogo contra os alvos militares da cidade.
Redigida a proclamação, D’Annunzio parece outra vez ausente, apático,
distante, desnorteado por seu misterioso vazio mental. Sozinho na sala de
comando, sai para a sacada na qual há mais de um ano falou ao mundo, e sua
mente se perde no horizonte. O canhoneiro do Andrea Doria, a apenas 800
metros da costa, distingue-o claramente no telescópio da mira. O poeta volta
a entrar, fecha a porta que dá para a sacada. Poucos instantes depois, duas
granadas de 152mm explodem contra a fachada do edifício. Um dos disparos
acerta a arquitrave da janela do gabinete. D’Annunzio pula sentado na
poltrona e se curva para a frente, o deslocamento de ar do impacto faz com
que incline violentamente a cabeça sobre a escrivaninha, destroços caídos do
teto ferem de leve sua nuca. Três oficiais se precipitam no gabinete e o
carregam para fora. No chão do salão de entrada, um metralhador rola com
um buraco nas costas, resultado de um estilhaço de granada. Os socorristas
consideram inútil perder tempo com o moribundo.
O tiro de canhão põe fim a todas as ilusões, em ambos os lados.
D’Annunzio desperta. O disparo de canhão o catapulta do torpor depressivo
para a raiva vingativa. Ordena que, em represália contra a Itália indigna, seja
torpedeado o encouraçado Dante Alighieri, bloqueado no porto de Fiume. A
ordem não é executada.
Enquanto isso, espalhou-se a notícia de que o poeta estaria morto. Mas ele
está vivo e, a essa altura, pretende permanecer assim. Sua ira agarra de novo
a pena. Assina a segunda proclamação desde o início do ataque. “Ó, covardes
da Itália, ainda estou vivo e implacável.” O Vate se lança contra um povo
incapaz de se erguer pela justiça e até mesmo de sentir vergonha. Ele que
ofereceu cem vezes a vida sorrindo agora não está mais disposto a fazê-lo.
Declara abertamente que esteve pronto para o sacrifício até o dia anterior,
mas que não está mais.
Poderia se dizer que, pela primeira e última vez na sua longa e
resplandecente existência, Gabriele D’Annunzio depara-se com o senso de
ridículo: tenham paciência, mesmo com toda a boa vontade, como é possível
se sacrificar por um povo que, nem mesmo quando o governo manda
assassinar seus heróis com determinação impiedosa, consegue se afastar por
um instante da farra natalina?! Nenhuma morte heroica tem sentido para os
italianos, sempre prontos a sacar a faca para se degolar em brigas de taberna,
mas incapazes de mover um dedo pela Itália, essa abstração geográfica e
política com a qual não podemos sequer bater um papo, dar duas risadas,
tomar um drinque, essa palavra vazia que não dá para convidar para jantar.
Durante as 48 horas seguintes, continuam, ainda que leves, os bombardeios
ao Centro da cidade. O saldo é um morto e alguns feridos entre a população
civil. Na manhã de 28 de dezembro, o general Ferrario se recusa a negociar
condições para a rendição dos legionários e ameaça intensificar os
bombardeios. Os representantes dos cidadãos imploram que D’Annunzio se
renda. O Comandante abre mão de seus poderes: “Sou hoje, como na noite de
Ronchi, o Chefe das legiões. Guardo apenas minha própria coragem [...]. Não
posso impor à cidade heroica a ruína e a morte total [...]. Entrego nas mãos do
Podestade e do Povo de Fiume os poderes que foram a mim outorgados em
12 de setembro.” Durante toda a semana de combates, o poeta-guerreiro
quase nunca deixou o gabinete, nunca foi até seus legionários na linha de
fogo. Uma sombra no muro.
Às 16h30 do dia 31 de dezembro, em Abbazia, é firmada uma convenção
para a total desmobilização dos legionários da cidade. Nas horas seguintes, ao
aproximar-se da meia-noite, Gabriele D’Annunzio vislumbra o futuro. Daqui
a pouco, este ano de dor e horror termina. Daqui a pouco, o novo ano
começa. Já é nosso. Pertence a nós.
Surge a cabeça de um morto coroada de louros. O crânio aperta um punhal
entre os dentes à mostra, e as olheiras profundas fixam o desconhecido.
Esta noite, os mortos e os vivos têm o mesmo aspecto e fazem o mesmo
gesto.
A quem o desconhecido?
A nós!
Benito Mussolini
Milão, 31 de dezembro de 1920

O Natal deveria ser abolido. Todos aqueles dias de férias, todas aquelas
horas passadas à mesa, toda aquela comida, as crianças que choramingam, as
mulheres que fofocam, os abdomes que perdem sua firmeza... Nesse ritmo,
um homem enfraquece, amolece como um bacalhau de molho. Um homem
envelhece um ano a cada dez dias passados com a família durante as
festividades natalinas. Se lhe coubesse decidir, não hesitaria em suprimi-las.
No almoço de Natal, a família Mussolini ficou à mesa por mais de três
horas. Aquelas dez pessoas devoraram uma fôrma de massa assada que
serviria para matar a fome de um regimento. Além do panetone que Benito
Mussolini comprou na confeitaria Cova, Rachele também quis se aventurar
com uma torta polvilhada “artisticamente” com açúcar de confeiteiro sobre
um disco de cartolina recortada, uma sugestão de uma revista feminina; ele
também teve de escutar a cantilena natalina da pequena Edda e a prece de
agradecimento ao Nosso Senhor Jesus Cristo recitada por seu irmão Arnaldo.
No entanto, Mussolini passou a tarde de São Silvestre de 31 de dezembro
de 1920 em paz, na casa da Ceccato, a amante jovem, na região do Duomo.
Depois que o filho bastardo nasceu no fim de outubro, Mussolini alugou para
ela um apartamentinho no número 1 da Via Pietro Verri, tendo já antecipado
seis meses de aluguel, correspondentes a 1.200 liras. A garota mora ali com a
mãe e o pequeno Glauco. Foi batizado assim, com o nome do herói homérico
que, com Sarpedão, ataca o muro erguido pelos aqueus para defender os
navios.
Glauco herdou os olhos e cabelos escuros do pai, embora tenha o campo
do nome “em branco” e a certidão de nascimento indique apenas filiação
materna: “Glauco Ceccato, pai desconhecido”. De todo modo, Bianca morre
de felicidade quando Benito vai visitá-los: tira os sapatos dele, acomoda-o na
poltrona, não pergunta nada de coisa alguma.
Esta tarde, ainda por cima, ele chegou com doces e espumante para brindar
o novo ano. Ela o lisonjeia pedindo que toque um pouco de violino para eles.
Diz que nada consegue acalmar o pequeno Glauco como o instrumento
tocado pelo pai. E Mussolini o faz de bom grado. Não é mais tempo de se
divertir entre a casa e o bordel, entre a esposa e as putas. Em 1921, vai
completar 38 anos: está começando a ficar velho demais para isso. Em
contrapartida, um pai de família sério também tem o direito — e talvez até o
dever — de não abdicar dos prazeres da vida.
E, afinal, ele merece um pouco de descanso: os últimos dias foram difíceis,
como sempre. Em 27 de dezembro, a Comissão Executiva dos Fasci di
Combattimento insistiu para divulgar um comunicado de condenação
violenta da ação militar do governo contra Fiume. A moção foi aprovada por
unanimidade, com apenas seu voto contrário. Mas, no dia seguinte, para os
leitores do jornal, ele publicou um artigo ardoroso em defesa de D’Annunzio.
Intitulou-o “O delito!”, com ponto de exclamação e tudo. Fiume, de qualquer
maneira, são águas passadas. Os italianos viraram o rosto para o outro lado
para não ver. E D’Annunzio, afinal, não podia continuar sua récita diante de
um teatro vazio.
Já o teatro dos Fasci di Combattimento agora se enche com uma
velocidade surpreendente. Pela primeira vez, Umberto Pasella não é mais
obrigado a mentir sobre os dados de afiliação. Após os fatos sangrentos de
Bolonha e Ferrara, de 1.065 carteirinhas vendidas no bimestre de
outubro/novembro, o número pulou para 10.860 vendidas em dezembro. A
esta altura, contam-se na Itália 88 seções com 20 mil afiliados. Só em
Bolonha alcançaram 2.500 afiliados, ao passo que no início de novembro
eram poucas dezenas. Além disso, categorias sindicais inteiras estão
abandonando a Câmara do Trabalho socialista. Em poucas semanas,
funcionários municipais e provinciais, empregados das repartições
aduaneiras, professores catedráticos e também guardas municipais,
professores primários, funcionários das obras de caridade, todos rasgaram a
carteirinha da Confederação Geral do Trabalho para fazer a fascista. Toda vez
que um grupo fascista queima uma bandeira vermelha na praça, centenas de
pequeno-burgueses fazem fila nas sedes dos Fasci di Combattimento. O
efeito é de uma avalanche, o fascismo se difunde com a progressão de um
contágio. É gente nova, gente desconhecida, gente com quem até um ano
antes ele não teria sequer tomado um café; uma multidão de funcionários e
lojistas que, antes da guerra, assistia indiferente à política, nem de direita nem
de esquerda, e muito menos de centro, nem vermelhos nem negros; gente que
se mexe sempre, e para todo sempre, na zona cinzenta. Mas agora não estão
mais apenas olhando. Ah, sim... os espectadores mudam.
Às vezes, como em Ferrara, basta uma colheita ruim para difundir o
pânico. Que coisa maravilhosa é o pânico, essa parteira da história! Cesare
Rossi repete o tempo todo que esse pode justamente ser o milagroso escambo
deles: ódio em troca de medo. Os novos fascistas são todos pessoas que até
ontem tremiam de medo da revolução socialista, gente que vivia de medo,
comia medo, bebia medo, deitava-se na cama com medo. Homens que
choramingavam no sono como crianças e, quando a mulher perguntava “o
que foi, querido?”, respondiam fungando: “nada, não é nada, durma.” Agora,
na bolsa de valores dos miseráveis, estão trocando o metal pesado da angústia
pela apreciada moeda do ódio mortal.
Pequeno-burgueses que odeiam: essa é a gente que formará o exército
deles. As classes médias rebaixadas por causa das especulações bélicas do
grande capital, os oficiais que não se conformam em perder um comando
para voltar à mediocridade da vida cotidiana, os burocratas de baixo escalão
que, acima de qualquer outra coisa, se sentem insultados pelos sapatos novos
da filha do camponês, os meeiros que compraram um pedacinho de terra pós-
Caporetto e agora estão dispostos a matar para mantê-lo, todas pessoas de
bem tomadas pelo pânico, consumidos pela ansiedade. Pessoas abaladas no
mais íntimo de seu âmago por um desejo irrefreável de submissão a um
homem forte e, ao mesmo tempo, de domínio sobre os indefesos. Estão
prontas para beijar os sapatos de qualquer novo patrão desde que também
lhes seja possibilitado pisar em alguém.
O pequeno Glauco dorme, o som do violino o aquietou. A Via Pietro Verri
está quase deserta, exceto por um veículo que a percorre rumo a Via
Montenapoleone. A calmaria antes da tempestade: daqui a poucas horas, nas
sacadas dos cortiços, serão acesos os fogos de bengala, a festa irromperá, um
ano novinho em folha vai começar.
O Fundador olha o próprio reflexo nos vidros das velhas janelas levemente
curvadas e não se reconhece. A difusão do movimento que ele ajudou a criar
não faz nem dois anos parece envolta na majestade de um pensamento alheio,
de uma vida estrangeira.
Mas quem, de fato, são essas pessoas? Onde estavam enfurnadas até
ontem? Não é possível que tenha sido ele a dar vida a essas multidões de
acomodados que de súbito erguem a clava. E nem mesmo a guerra. Para ser
sincero, nem mesmo a guerra pode ser o pai de todas as coisas. O vírus que se
propaga ao longo da Via Emilia contagiando milhares de funcionários dos
correios prontos para incendiar Câmaras do Trabalho deve ter sido incubado
previamente nos tempos de paz. Não pode ser diferente. Na guerra, eles não
renasceram, a guerra apenas os devolveu a si mesmos, os transformou
naquilo que já eram. O fascismo talvez não seja o hospedeiro desse vírus que
se propaga, mas o hóspede.
É preciso acelerar os eventos. Só isso. Talvez o novo ano chame você para
ser o árbitro do encontro. Nesse ritmo, a revolução não será feita pelos
comunistas, mas pelos donos de um apartamento de dois quartos com cozinha
em um condomínio da periferia.
1921
Nicola Bombacci
Livorno, 16-17 de janeiro de 1921

Giacomo Matteotti
Ferrara, 18-22 de janeiro de 1921

O XVII congresso do Partido Socialista Italiano foi inaugurado em


Livorno — destino turístico famoso por seus excelentes estabelecimentos
balneários e termais —, às 14h do dia 5 de janeiro de 1921, pelo presidente
em caráter provisório Giovanni Bacci, com uma comovida lembrança da
insurreição espartaquista de 1919. Em seguida, o secretário Francesco Frola
leu a tradução italiana da saudação aos delegados do Comitê Executivo da
Internacional Comunista: um duro ataque de Moscou aos companheiros
reformistas e a quem ainda se obstinava a não expulsá-los do partido.
Naquele exato momento, logo após o almoço, começou a tragédia do
proletariado italiano.
Nicola Bombacci escutou aquelas palavras inaugurais, mas já definitivas,
dos balcões no lado esquerdo do Teatro Goldoni, onde estão reunidos os
delegados dos 58 mil eleitores da fração comunista. A posição dos
congressistas reflete materialmente a separação entre as facções em luta: os
comunistas nos balcões à esquerda; a plateia ocupada pelos “centristas”
respaldados por 100 mil mandatos; nos balcões à direita, os reformistas, com
15 mil votos. Os trabalhos mal começaram e no teatro paira a desalentadora
sensação de que as apostas já foram feitas.
No congresso em julho do ano anterior, a Internacional Comunista fez sua
escolha, articulada em 21 teses peremptórias como pregos cravados no caixão
da unidade proletária: para poder permanecer na Internacional, os italianos
precisam mudar o nome do partido e repudiar como contrarrevolucionários
todos os companheiros de luta que acreditam no socialismo, mas não na
revolução. O problema é que na Itália, após o fracasso da ocupação das
fábricas, Bombacci e seus companheiros, a essa altura, são os únicos que
acreditam na revolução. Nem mesmo os “maximalistas” do secretário Serrati,
em franca maioria, que ainda a defendem no discurso, acreditam nela. Não
creem mais, embora, lá fora, o socialismo italiano ainda esteja se propagando.
Nas eleições de novembro, o partido conseguiu um sucesso clamoroso,
conquistando a maioria em 2.162 municípios. Além do mais, conta com 156
parlamentares e 216 mil afiliados divididos em 4.300 seções, o triplo de 3
anos antes, e o Avanti! supera a tiragem de 300 mil cópias diárias. Lá fora, o
proletariado italiano ainda está pronto para um esforço heroico, mas, aqui
dentro, no Teatro Goldoni de Livorno, a discórdia morde. Aqui dentro, é a
guerra de quadrilhas.
Na manhã do dia 16, toma a palavra Christo Kabakčiev, delegado da
Internacional. Após ajeitar a gravata-borboleta e os óculos redondos de
míope, o comunista búlgaro berrou seu ultimato: não há mais tempo a perder,
a situação é revolucionária, portanto, qualquer um que a atrapalhe ao lado de
reformistas fracos é um traidor. Por isso, a Comintern de Moscou expulsará
quem votar a moção unitária dos maximalistas. Bombacci e os comunistas o
aplaudiram enquanto, em todos os outros setores do teatro, explodiam gritos
sarcásticos: “Grande excomunhão! Viva o Papa! Viva o Papachieff! Não
somos servos, não queremos legados papais!” Enfim, um circo equestre. Com
três picadeiros.
Durante todo o dia 17, a polêmica prosseguiu em um clima turbulento
entre reformistas e revolucionários, unitários e divisionistas, intransigentes de
direita e de esquerda, políticos e sindicalistas. Depois, no fim da tarde, tomou
a palavra Vincenzo Vacirca, um sindicalista siciliano que aos 16 anos
organizou a liga camponesa de Ragusa e já escapou várias vezes de atentados
na Itália e nos Estados Unidos da América. Vacirca defende com paixão a
causa dos assalariados agrícolas temporários do Sul do país, obtendo a
concordância de todos. Em seguida, porém, quando a assembleia já está se
distraindo com a miragem do jantar, em nome da liberdade de pensamento e
da unidade de ação, ataca as diretrizes de Moscou. Para o inimigo do
latifúndio siciliano, comunismo e socialismo são uma coisa só. A culpa pela
reação que ataca o movimento operário e camponês é, quando muito, dos
falastrões que pregam indiscriminadamente a violência, evocando assim a
repressão burguesa, a culpa é dos “revolucionários do canivete”.
Um sopro de realidade foi insuflado de surpresa na prisão das fórmulas
ideológicas. No Teatro Goldoni, de repente, faz-se silêncio. A expressão de
Vacirca é vaga, mas a referência é clara, o escárnio é pessoal: em uma
entrevista concedida em outubro, Nicola Bombacci, o “Cristo dos Operários”,
um homem tranquilo e sincero, declarou a respeito da violência que “não
sabe usar um canivete sequer”.
Para que sua zombaria de Bombacci seja mais pungente, Vacirca tira uma
faquinha do bolso do paletó e, com ar de desafio e escárnio, afasta lentamente
a lâmina do cabo. Por um instante, as divisões se recompõem: todos na sala
se viram para os camarotes à esquerda, onde está sentado, atrás da sua fluida
barba castanha, o “Lênin da Romanha”.
Nicola Bombacci, como se incitado pela poderosa corrente de vergonha
que percorre a sala, se levanta. Treme de raiva, mas não sabe o que fazer.
“Pegue isto, mostre a ele do que você é capaz.” Atrás de Bombacci, a voz
de Umberto Terracini, dirigente comunista favorável às teses de Moscou,
sibila em seu ouvido. Mais abaixo, fora de vista, suas mãos oferecem um
revólver.
Nicola Bombacci nunca empunhou uma arma na vida. Agarra-a, inclina-se
para fora da frisa e a aponta para Vacirca, paralisado no palco dos oradores, o
braço ainda esticado no gesto zombeteiro, acusatório.
“Isto aqui não é um canivete, agora você vai ver!”
O grito sufocado, tornado histérico pela ofensa, ressoa na sala. Em volta do
palco, os delegados se jogam embaixo das cadeiras. Mas a mão roliça, rósea,
delicada que segura a arma vacila sob o peso do grande revólver a tambor.
Este, primeiro brandido, agora é guardado. Bombacci se encolhe na
penumbra do camarote. A tragédia descamba para a farsa.
***

Os ódios faccionais, a escravidão das fórmulas, as cegueiras ideológicas, a


língua que bate nas questões formais, de pura lógica, a eterna roda das
rivalidades pessoais, a surdez em relação ao estrondo do mundo, às
promessas da alvorada.
Tudo isso é moído pelas rodas do trem que corre ao longo da planície do
rio Pó, em direção à foz, rumo ao mar. O destino está próximo. O assobio do
vapor os engole junto a séculos de pensamento, de crítica, de discussão, de
sacrifício, de batalha, a lutas milenares de trabalhadores explorados de todas
as raças, épocas, línguas, latitudes, religiões, cores, às esperanças de
companheiros desconhecidos, de uma humanidade fraterna e estrangeira, com
a construção definitiva da história. As mãos femininas de Nicola Bombacci,
que sucumbem sob o peso insustentável de um revólver apontado para os
companheiros, pulsam nas têmporas como dois graus de febre.
Giacomo Matteotti teve de abandonar às pressas o congresso, precisou
partir de Livorno quando ainda estava escuro no trem regional para Florença.
Tomou o trem expresso Florença-Bolonha e outro, regional, para Ferrara.
Teve de abrir mão até do seu discurso no congresso e correr para a sede da
circunscrição que o elegeu para assumir a direção da Câmara do Trabalho.
Seu secretário, após os incidentes de 20 de dezembro, foi preso com o
prefeito. Em Livorno, na sala tumultuada do Teatro Goldoni, Matteotti
escutou ao longo de dois dias dezenas de discursos de homens do combate
vindos de toda a Itália e de meia Europa, que debatiam por horas a questão da
unidade dos socialistas, os dogmas da ortodoxia marxista, as teses de
Moscou. Sobre os fascistas e o que os seus grupos estão fazendo na Emília e
na Romanha, nem uma palavra sequer.
O trem entra na estação ao meio-dia em ponto. Uma minguada delegação
de companheiros acolhe o deputado Matteotti e o conduz até o Corso della
Giovecca, ao escritório do advogado Baraldi para uma primeira reunião do
programa.
Menos de uma hora depois, ouvem-se os primeiros gritos na rua. Em
poucos minutos, tendo a notícia se espalhado, os manifestantes, com o
acréscimo dos estudantes que saem das escolas, já são milhares. Uma
multidão de cassetetes fascistas espera o deputado socialista que veio de
Livorno.
Matteotti se recusa a usar um automóvel e se dirige a pé para a Câmara do
Trabalho, encapsulado em uma patrulha de policiais que o protegem do
linchamento da multidão. O percurso se transforma em uma via crucis com
um tom mais brando. Cusparadas, hortaliças atiradas, golpes na nuca e nas
orelhas. Os carabineiros que chegam para reforçar as fileiras cercam a vítima,
dispersam os manifestantes, se afastam e se recompõem. Uma paulada
ultrapassa o cordão de isolamento e atinge Matteotti na têmpora. Ele
responde gritando várias vezes para os agressores: “Canalhas! Canalhas!”
E é só o começo. No dia seguinte, o padeiro socialista Ettore Borghetti é
assassinado com um tiro de revólver ao sair de uma reunião na Câmara do
Trabalho. Em Ferrara, a cidade governada por uma maioria esmagadora de
socialistas, Giacomo Matteotti não pode pisar na rua sem escolta. Na manhã
de 22 de janeiro, insiste com Pugliese, o governador da província, para
eliminar a vigilância dos agentes da segurança pública. Para protegê-lo —
afirma —, são suficientes seus companheiros armados com porretes. Nos
jornais da manhã, leu há pouco a notícia: em Livorno, os maximalistas se
recusaram a expulsar os reformistas e, então, os comunistas se separaram dos
maximalistas.
No dia anterior, enquanto Giacomo Matteotti era perseguido pelos fascistas
nas ruas de Ferrara, no Teatro Manzoni de Livorno o líder comunista
Amadeo Bordiga subia ao palco do congresso e, com o costumeiro tom
gélido, desdenhoso, ao estilo de toda a sua batalha, ordenava que os
delegados da fração comunista abandonassem a sala.
Os comunistas, segundo os relatos, saíram entoando “A Internacional” e
foram para um segundo teatro, o San Marco, a poucas centenas de metros,
onde fundaram o Partido Comunista da Itália. Os fundadores, sobre o piso
irregular da plateia, diante de cortinas esfarrapadas que pendiam em torno da
boca de cena, sob amplas goteiras no teto encharcado de onde caíam cascatas
de chuva gélida, não encontraram cadeiras nem bancos para se sentar.
Verificadas as carteirinhas com a foice e o martelo, ficaram em pé durante
horas, imperturbáveis sob a chuva.
De Ferrara, Matteotti escreve para a esposa Velia: “Foi meu dever assumir
com firmeza o posto de defesa de Ferrara; e isso foi imensamente útil, contra
todos os abusos de poder.” A esposa, perto de dar à luz o seu segundo filho,
relembrando as responsabilidades dele como pai em contraposição às de
herói, responde: “Para mim, é difícil acreditar que, tendo chegado a esse
ponto, nenhuma covardia lhe seja permitida, mesmo que isso venha a custar
sua vida. Sem dúvida se deve esquecer todo o resto.”
Sentimo-nos herdeiros daquele ensinamento que veio dos homens ao lado
de quem demos os primeiros passos e que hoje não estão mais conosco. Nós,
se tivermos de ir embora, companheiros, tiraremos de vocês a honra do seu
passado!

Amadeo Bordiga, líder da fração comunista divisionista, no


XVII Congresso do Partido Socialista Italiano,
Livorno, 19 de janeiro de 1921

Fomos — é necessário dizê-lo — atropelados pelos


acontecimentos; fomos, sem querer, um aspecto da dissolução
geral da sociedade italiana [...] tínhamos um consolo, ao qual
nos agarramos tenazmente: ninguém se salvaria, nós podíamos
afirmar que havíamos previsto matematicamente o cataclismo.

Antonio Gramsci, cofundador do Partido Comunista


Italiano, a propósito da cisão de Livorno, L’Ordine
Nuovo, 1924
Em Livorno, começou a tragédia do proletariado italiano.

Pietro Nenni, ativista do PSI, já fundador em 1919 do


Fascio di Combattimento de Bolonha, Storia di quattro anni,
1926
Italo Balbo
Ferrara, 23 de janeiro de 1921

O licor é viscoso, de alta graduação alcoólica, cor fosca, de sangue pisado,


o vermelho turvo do coágulo, do sangue sexual ou do sangue doente,
violento, o que deve ser motivo de preocupação se encontrado nas fezes. O
sabor, porém, é dulcíssimo. Efeito das cerejas — caroços e polpa —
maceradas por meses na aguardente. Por causa dessa sua alegria açucarada, o
cherry brandy agrada às mulheres: é a bebida perfeita quando você quer vê-
las deitadas de costas. Mas agrada também aos homens do grupo fascista
“Celibano”, que devem a ele o próprio nome. Quem os batizou assim foi
Arturo Breviglieri, ex-metralhador nas divisões de assalto, integrante do
Fascio di Combattimento de Ferrara desde a sua fundação, funcionário da
empresa Bignardi & Co. Ao que parece, aquele brandy de cerejas nunca
faltava nas cantinas de Fiume e, graças à profundeza sanguínea de sua cor,
D’Annunzio em pessoa inventou o nome Sangue Morlacco, evocando os
terríveis guerreiros nômades das populações latinas que sobreviveram
durante séculos às invasões bárbaras nos vales escuros dos Alpes Dináricos.
Seja como for, esses outros guerreiros que bebem brandy de cereja no Caffè
Mozzi, no Corso Roma, em Ferrara, diante do pórtico do Castelo dos Este,
devem o próprio nome à aguardente que dá coragem para o combate.
“Celibano”, de fato, é a corruptela dialetal de “cherry brandy”, seu licor
preferido.
A expedição punitiva que parte de Ferrara em 23 de janeiro rumo aos
povoados rurais e às aldeias da comarca é a primeira concebida com métodos
militares. O encontro é marcado por dezenas de homens, todos bem armados
e organizados para atingir ao mesmo tempo inúmeros objetivos. A fim de
destruir as ligas camponesas de San Martino, Aguscello, Cona, Fossanova
San Biagio, Denore e Fossanova San Marco, contam com a determinação da
violência premeditada, com técnicas de ataque surpresa e com caminhões
postos à disposição pela Agrária. Por isso, devem ser muitos. Os “vermelhos”
provavelmente os esperam, e a subjugação não deve deixar margem alguma à
incerteza no confronto.
Na praça da rodoviária, fora dos muros do Centro da cidade, reúnem-se
homens separados por abismos: lá estão a violência personificada do Ardito
grosseiro, taurino, com a farda coberta de fitinhas, o professor de latim
fanático pela estética legionária e o débil filho do privilégio, como o tal
Barbato Gattelli, filho de uma família de proprietários, veterano da Grande
Guerra, que iniciou uma atividade industrial no ramo automobilístico. Os
integrantes das esquadras ferrarenses prontos para percorrer os campos em 23
de janeiro de 1921 são muitos. São muitos, mas nem todos estão presentes.
Olao Gaggioli não está. Em 17 de dezembro, pediu demissão do cargo de
secretário do Fascio di Combattimento da cidade em protesto contra o
afastamento de Mussolini em relação a D’Annunzio e a interferência dos
produtores rurais. Não é fácil digerir sua defecção porque Gaggioli fundou o
Fascio di Combattimento de Ferrara, porque estava na Piazza San Sepolcro
em 23 de março de 1919, porque é um tenente dos Arditi condecorado com
quatro medalhas por bravura, porque foi legionário em Fiume, porque guiou
o grupo de Ferrara durante o ataque ao Palazzo d’Accursio, porque combateu
com os socialistas também na matança do Castelo dos Este, porque é um
homem de proporções gigantescas e de força desmedida. No fim de
dezembro, seu irmão Luigi, que, como Olao, era contrário a que os fascistas
fizessem o jogo dos patrões, até escreveu uma carta ao Comitê Central de
Milão na qual denunciava abertamente que o Fascio di Combattimento de
Ferrara era financiado pela Agrária e que estava se tornando “guarda da
grande burguesia”.
Para entender o que estava acontecendo, e para manter o controle da
província, Mussolini enviou um inspetor. Chamava-se Marinoni e teve de
reconhecer que as muitas novas seções surgidas na província no período de
um mês após a carnificina do Castelo dos Este eram “desprovidas de
qualquer conteúdo político e ideais”, tendo como único objetivo opor-se aos
socialistas. Os produtores rurais, naturalmente, exultam e fornecem o apoio
material. Os poderosos inscrevem-se como sócios mantenedores e também os
próprios filhos como integrantes dos grupos. Desde 20 de dezembro, já
depositaram 20 mil liras nas caixas dos Fasci di Combattimento. Todos
acorrem: grandes e pequenos proprietários de terras, meeiros, comerciantes,
arrendatários.
De Milão, Mussolini, nas colunas do jornal, para evitar que o fascismo
rural parecesse enfeudado nos interesses dos grandes proprietários de terras,
lançou o slogan “a terra para quem trabalha”, com um programa de custódia
dos terrenos incultos, subdivididos em pequenos lotes, para os colonos que
trabalham pessoalmente a terra. As transações deveriam ser administradas por
meio de um “gabinete das terras” sob o comando dos fascistas. Também o
novo jornal do Fascio di Combattimento local, Il Balilla, que publica logo em
23 de janeiro seu primeiro número, se distancia dos proprietários rurais
especificando que o fascismo ferrarense nasce “na praça” e não “nas salas dos
ricos”. Para dirigi-lo, a pedido de Milão, foi designado Italo Balbo, o jovem
mazziniano, ex-tenente dos alpinos que se destacou nos pelotões de ataque,
patriota inflamado, antibolchevique aguerrido, ele também um herói de
guerra, ele também desmobilizado e à procura de um destino e de um
emprego.
Sobre esse tal Italo Balbo, que surgiu do nada, já circulam histórias
obscuras e fascinantes. Dizem que, em Trentino, seduziu a filha de um certo
conde Florio, formou-se em Ciências Sociais em Florença ameaçando
fisicamente o professor e chegou ao fascismo por acaso e por interesse.
Parece que, durante o funeral dos mártires de 20 de dezembro, estava jogando
pôquer nos fundos de um café e, indo até a porta para ver o desfile dos grupos
em formação, perguntou: “Quem paga esses aí?” Há boatos de que, quando
ofereceram-lhe para entrar no Fascio di Combattimento, sua primeira resposta
foi: “Sass ciapa a far el fascista?” (“Ganha-se para ser fascista?”). Murmuram
que aceitou a oferta com três condições: salário mensal de, no mínimo, 1.500
liras; nomeação como secretário político; e garantia de um emprego como
inspetor do Banco Mutua, de propriedade de Vico Mantovani, presidente da
Agrária.
Mas nada disso mais tem importância, porque os furgões já estão em
movimento. Agora a palavra é passada para as armas, o resto não conta.
Balbo está sentado ao lado de Breviglieri e dos outros da “Celibano” em
uma caçamba de resíduos bélicos com destino a Denore, um povoado na
margem direita do Pó de Volano. Agora todos os integrantes da esquadra, a
despeito de suas motivações, suas realidades, suas misérias, a despeito das
condições de seu nascimento e do ofício que usaram para ganhar a vida até o
dia anterior, são apenas um grupo de homens armados agachados em uma
caçamba na qual não é possível ficar nem deitado nem sentado, sob um céu
branco que paira sobre um campo arcaico. Diante deles, bois cinzentos e
idiotas aram devagar os campos em um silêncio vítreo, seus olhos míopes e
corações enormes completamente ignorantes em relação à história daqueles
homens que foram ali quebrá-lo. Acima deles, em colônias de dez, as garças,
que fazem ninhos não muito longe dali, entre os salgueiros-brancos com seus
arbustos nas bacias lacustres perto da foz, seguem o trabalho surdo nos
campos. Levam um eco salobro de campinas úmidas e baixios, cordões de
dunas e areais que surgiram com o depósito progressivo de sedimentos e o
recuo do mar. Mais alto ainda, um falcão dá lentas voltas, traçando no branco
do céu plano seus círculos suaves.
Alguém interpreta isso como um bom sinal. Dividem entre si uma garrafa
de vinho frisante. Por que esse digladiar-se, essas mortes? O medo retrai o
grupo de homens: certamente devem tê-los visto sair, alguém pode ter
espalhado a notícia. Todos sabem que em Fossanova, três dias antes, os
socialistas dispararam com fuzil em um arrendatário que saía de uma
residência paroquial onde acontecera uma reunião política. Hoje poderia ser a
vez de algum deles, um dos irmãos armados agachados sobre os calcanhares
naquela caçamba como ciganos de um parque de diversões. O silêncio dos
campos os envolve no emaranhado de uma ameaça constante. Atrás de cada
sebe, em cada lezíria entre a margem e o leito de estiagem, a emboscada
espera. O ferro frio do revólver, apalpado no bolso escondido, reconforta.
No cruzamento de Stellata, os caminhões se separam. Dois grupos rumam
para Cona e Fossanova, os outros, para Aguscello e Denore. Na entrada de
Aguscello, um carro de proprietários rurais da região acolhe os fascistas e os
escolta pelas poucas ruas da aldeia. A resistência dos socialistas é branda.
Alguém atira com um fuzil usado para caçar codornas. Os chumbinhos mal
penetram na trama densa dos casacos. A sede da liga camponesa é invadida
facilmente, os vidros são quebrados, os móveis, retirados e espatifados na
praça. Os carabineiros prendem os socialistas que se defenderam com os
fuzis de chumbinho.
Os agressores, exaltados, sobem de novo a bordo dos furgões. Agora
cantam, o vinho desce aos borbotões pelo esôfago liberado. Ao chegarem a
Denore, o proprietário Giuseppe Gozzi os guia até a sede da liga camponesa.
Mas aqui os socialistas são numerosos, estão entrincheirados, prontos para a
defesa.
Italo Balbo salta do furgão brandindo uma maça usada pelos húngaros do
monte San Michele em Carso Isontino para arrebentar os crânios dos
inimigos feridos. Contudo, aqui a violência é irrefletida, pessoal, direta,
imediata, sem as intermináveis esperas de turnos nas trincheiras; aqui dezenas
de milhares de homens não são aniquilados como germes pelo apocalipse
térmico das artilharias pesadas. Aqui só existem corpos com domínio de si
mesmos, irrigados por sangue quente e vinho perfumado, que se lançam à
peleja como se fosse uma farra. A luta é furibunda, os camponeses não
desistem, um fascista saca um revólver e fere dois deles gravemente. Balbo,
Breviglieri e Chiozzi também sofrem feridas superficiais.
No caminho de volta, o grupo de homens armados também devasta a sede,
indefesa, da liga camponesa de San Biagio. Agora o ódio corre solto. Nas
caçambas que solavancam a cada buraco, não há mais Arditi, professores de
latim e filhos de proprietários de terras; agora o sangue derramado os
aparentou, ninguém está mais sozinho, não se contam mais divisões nem
facções; a igualdade social é a dádiva da experiência fundamental de matar
juntos.
Nos furgões, agora, comovem-se ao relembrar uma empreitada já antiga,
embora realizada meia hora antes; agora brincam, cantam a plenos pulmões:
o grupo de homens exposto ao risco de agressões letais tem todo o direito de
expressar seus sentimentos, seus desejos. Agora os integrantes do “Celibano”
e os homens de Balbo fizeram por merecer os mesmos goles de Sangue
Morlacco que os esperam no Caffè Mozzi, os mesmos bocados de salama da
sugo picante e temperada, a merecida luxúria no bordel da Rina no Vicolo
Arnaldo da Gaggiano.
Mas, antes, os animais nos campos ao longo da margem direita do Pó de
Volano, impassíveis, contrapõem à história dos homens o idiotismo de seu
olhar bovino, o mesmo com que os aniquilaram poucas horas antes.
Ordenada revogação imediata porte armas nas suas províncias. Proceda
imediatamente [...]. De acordo lei 26 de dezembro de 1920, pessoas
encontradas na posse de armas serão presas e denunciadas à Autoridade
Judiciária.

Circular do Presidente do Conselho de Ministros Giovanni


Giolitti aos governadores das províncias de Bolonha, Módena
e Ferrara, 25 de janeiro de 1921

Estou me empenhando [...] porém não escondo dificuldade devido


ressentimento proprietários rurais contra ordem retirada armas que segundo
eles deixa sem defesa quem mora no campo em regiões saneadas longe de
centros habitados e postos de carabineiros.

Telegrama de Samuele Pugliese, governador da província


de Ferrara, ao ministro do Interior, 5 de fevereiro de 1921

Se o Comitê Central, promotor e propulsor do movimento, ficava em


Milão, o verdadeiro berço do fascismo foi a Emília, teatro das mais amargas
lutas econômicas. Bolonha, Ferrara, Módena e Reggio foram as províncias
mais atormentadas pelas agitações fascistas: depois, as próprias agitações se
propagavam em algumas províncias limítrofes do Piemonte, da Lombardia,
do Vêneto [...]. São incursões realizadas em caminhões por fascistas armados
com o objetivo de punir (com invasões, destruições de círculos, ligas e
cooperativas, sequestros de pessoas, intimidações e violências, sobretudo
contra os líderes oponentes) atos ofensivos e injustos, verdadeiros ou
supostos, realizados pelos adversários socialistas, comunistas ou populares;
são as vinganças desses últimos contra os primeiros: são conflitos que
terminam, quase sempre, com numerosos feridos e com mortos.

Do relatório do inspetor-geral de segurança pública


Giacomo Vigliani, junho de 1921
Margherita Sarfatti
Milão, 30 de janeiro de 1921

O salão do Instituto dos Cegos na Via Vivaio está repleto de homens e


mulheres que foram homenagear um rapaz. Hoje choram e celebram Roberto
Sarfatti, nascido em Veneza em 10 de maio de 1900 e morto em Col
D’Echele em 28 de janeiro de 1918, aos 17 anos, com uma cratera na testa.
Nas primeiras fileiras, ao lado da mãe, do pai e da irmã do herói, estão
sentadas dezenas de convidados do instituto. Apenas os cegos recentes — em
sua maioria vítimas de guerra — procuram um diálogo na escuridão
balançando a cabeça no ritmo da voz dos oradores. Os outros, aqueles que
nunca conheceram a luz do mundo, estão sentados imóveis como se, além de
cegos, também fossem surdos para qualquer agonia dos vivos em relação aos
mortos. Atrás deles, centenas de jovens militantes do Fascio di
Combattimento milanês que organizou a homenagem aguardam o discurso de
Benito Mussolini. Também em Milão, após os acontecimentos do Palazzo
d’Accursio e do início das expedições que percorrem os campos da planície
do rio Pó, as adesões crescem como uma tromba-d’água.
Os oradores se alternam no palco do salão de honra. Muitos já falaram —
Buzzi, Panzini, Siciliani —, a poeta Ada Negri também já falou. Uma
despedida lapidar e perfeita composta por Gabriele D’Annunzio antes do
Natal de sangue também já foi lida, mas todos esperam Mussolini. Ele se
esquiva:
“Hoje ficarei aquém da minha tarefa. Minha oratória está sobrecarregada
por vinte anos de batalhas mesquinhas. A celebração dos heróis deveria ser
reservada aos poetas, aos espíritos eleitos, que vivem acima da refrega
cotidiana e furibunda na qual nós, homens ditos ‘políticos’, estamos
mergulhados até o pescoço.”
Depois do preâmbulo, Mussolini reevoca o rapaz de 15 anos que, já em
1915, coetâneo do século, ardia de desejo de combater. Reevoca o rapaz de
16 anos que, com um nome falso, ficou um mês no quartel em Bolonha
graças a um documento falso fornecido por Filippo Corridoni. Ao ouvir o
nome de Corridoni, alferes e mártir do intervencionismo, a plateia se levanta
e aplaude demoradamente. O orador continua a ler trechos das cartas do rapaz
que, aos 17 anos, enfim alistado após a derrota de Caporetto, ansiava com a
ideia de partir para o front: “Qualquer um capaz de defender a Itália deve
fazê-lo imediatamente e sem esperar. Esta é mais do que uma batalha, é o
choque entre duas raças: bárbaros teutônicos e cimbros contra os latinos.
Ainda cabe a Roma suportar o choque, e ela o suportará.” A plateia aplaude
mais uma vez o herói.
A mãe, por sua vez, na primeira fileira, lembra-se de um menino muito
meigo que, à espera de partir para a guerra, apertava as mãos, nervoso, e
estalava de maneira macabra todas as falanges dos dedos entrelaçados uns
aos outros. Era uma noite estrelada e os dois, mãe e filho, estavam tão
desesperados! Leram com os olhos cheios de lágrimas os trágicos boletins do
avanço inimigo, implacável, irrefreável. As mulheres choravam, e os
intermináveis trens de refugiados do Vêneto passavam. Ambos, mãe e filho,
sentiam o coração pisoteado pelos passos daqueles coturnos de turcos,
alemães, búlgaros que invadiam seu país. Mas o rastro deixado não era o
mesmo: “Não faço isso pela Itália, mas por mim, pelo meu dever, pela minha
consciência”, protestara o filho.
Agora Mussolini também se entrega à lembrança pessoal. Recorda janeiro
de 1918, quando o rapaz, promovido a cabo por méritos de guerra, voltou
para casa em uma licença-prêmio e foi visitá-lo na redação do jornal. Ele
perguntou sobre o moral das tropas, e o rapaz o tranquilizou: o moral estava
alto, altíssimo. “Queremos, devemos vencer e venceremos”, foi a despedida.
O público aplaude mais uma vez, mas a mãe se lembra dos dois homens
que se estudavam como se quisessem beber a alma um do outro, a orgulhosa
mentira do filho e a negligente satisfação do outro. Lembra-se do rapaz
raivoso, exasperado, desequilibrado, um que ela não reconhecia mais, e das
palavras que ela lhe disse: “Não é mais a hora romântica de vencer ou morrer:
é preciso viver; é crucial.”
Na segunda-feira seguinte, às 10h, no planalto de Asiago, Roberto guiou
seus alpinos no ataque de Col d’Echele. Tomou posse de uma metralhadora
inimiga e em seguida, como que possuído, partiu para o ataque do último
baluarte no topo. Um projétil explodiu no seu rosto.
“Entre os primeiros a chegar à trincheira, lançava-se sobre um fosso de
comunicação inimigo [...] provas excepcionais de intrepidez e sublimes
virtudes militares [...]. Lançou-se novamente no ataque de uma galeria [...].”
Benito Mussolini lê a documentação da proposta de uma medalha de ouro.
Os cegos de guerra esticam o pescoço em busca de luz, os cegos de
nascimento não se dão o trabalho, todos se calam em um silêncio comovido.
Benito Mussolini está elevando Roberto Sarfatti a primeiro mártir do
fascismo.
Já se passaram três anos. Roberto está morto. E dorme, sozinho, no
pequeno cemitério solitário e distante. À mãe, resta apenas uma possibilidade
de velar a tumba do filho: aqueles veteranos violentos em verde-acinzentado,
aqueles homens de camisas negras que levam a morte aos casebres dos
camponeses agora são sua família. Margherita Sarfatti foi socialista, dedicada
à causa daqueles camponeses, por muito tempo contrária à intervenção bélica,
mas depois a vida é sempre uma questão pessoal, e, se não é assim, não é
nada.
Desde o dia do funeral, Benito Mussolini dobrou-se a sua consternação de
mãe e pediu para compartilhar um pouco de sua dor. Só ele — e não Cesare,
o marido de Margherita, que desde aquele dia se perdeu em uma névoa de
remorso; nem os velhos companheiros socialistas, que continuam a desprezar
os combates — demonstrou que sabia compreendê-la. Entregando-se a
Mussolini, ela mantém acesa a chama sobre a tumba de Roberto. Só o
fascismo pode dar sentido à morte do filho.
Então a mãe permanecerá até tarde da noite na redação apertada daquele
jornal, desertando as salas do edifício no Corso Venezia, para ficar mais
tempo na companhia de seu garoto, e a mulher se entregará nua, sem pudores,
à fúria erótica daquele outro homem nos quartinhos sujos daqueles hotéis
tristes, para não abandonar o seu Roberto. A esposa trairá o marido — o
marido e todo o resto — para que a mãe possa se manter fiel ao filho.
Roberto, meu querido, quero pôr pela primeira vez a nova data do novo
ano na carta que levará até você a expressão do meu afeto e do meu carinho
ardente. Parabéns! Meu pequeno grande abençoado, você é uma parte muito
grande da minha felicidade; o seu bem-estar, a sua saúde, a sua satisfação são
todos elementos integrantes essenciais, indispensáveis ao meu bem-estar, e
não posso dizer outra coisa a você senão a prece profunda do meu coração, a
todas as horas e em todos os instantes: Deus te abençoe! Recebi três cartões
seus hoje e um ontem; obrigada, meu xodó, pelas suas expressões tão
queridas e pelo esforço que você faz para nos dar notícias com assiduidade e
regularidade

Margherita Sarfatti, carta ao filho Roberto,


1o de janeiro de 1918
Giacomo Matteotti
Roma, 31 de janeiro de 1921
Parlamento do Reino

O plenário de Montecitório está semideserto. A maior parte dos deputados


ainda não voltou do almoço. Provavelmente demoram-se no bar ou cochilam
prostrados em algumas poltronas dos seus gabinetes.
Quando, após o relatório sobre o escândalo dos depósitos de
reabastecimento na Líbia, a sessão parlamentar de 31 de janeiro de 1921 é
retomada com as moções da política interna, estão presentes no plenário não
mais do que 70 deputados, quase todos sentados nas cadeiras da esquerda. O
primeiro a falar dos 56 inscritos é Giacomo Matteotti. Assim que De Nicola,
o presidente da assembleia — um advogado napolitano de área liberal eleito
na chapa do Partido Democrático —, lhe dá a palavra, o jovem deputado
vêneto se atira com ímpeto no vazio. Os velhos homens prostrados nas
cadeiras do governo são imediatamente ressuscitados do colapso pós-
prandial. Ressoa uma nota inédita sob o friso de Aristide Sartorio: a denúncia
da violência fascista está pela primeira vez na ordem do dia do Parlamento
italiano.
“Somos um partido que não aspira a uma simples sucessão de ministérios,
mas que quer chegar a uma grandiosa transformação social; e, portanto, prevê
necessariamente a violência. Sabemos que, ferindo uma infinidade de
interesses, teremos reações mais ou menos violentas, e não nos
arrependemos. Por isso, não nos queixamos da violência fascista.”
Matteotti faz uma pausa retórica perfeitamente estudada, deixa que a
palavra “violência”, associada ao fascismo, circule no ar sob a cúpula de
vidro que encerra o imenso vazio do semiciclo de Montecitório. Comprime a
boca escondendo o lábio inferior sob o fino superior e, tendo retomado o
fôlego, cospe seu desafio direto na cara das cadeiras do governo:
“Nós não nos queixaremos dos delitos nem os narraremos. Não temos de
mendigar ao governo favor algum, nada temos a pedir, nem ao governo nem
a ninguém.”
Agora a atenção de todos está fixada no fino lábio superior daquele jovem
filho de latifundiários dedicado à causa dos miseráveis. Depois do orgulho, o
deputado de Fratta Polesine apresenta a honestidade intelectual:
“Somos um partido de massa e não renegamos erro algum das massas.
Estamos, aliás, prontos para reconhecer que algumas vezes a teorização da
violência revolucionária, que visa suprimir o Estado burguês, pode ter
induzido alguns dos nossos militantes ao erro de ações episódicas de
violência.”
“Belo atrevimento!” O grito do deputado D’Ayala, proveniente das
cadeiras dos liberais, é logo sufocado pelos protestos dos socialistas.
Matteotti continua.
“Mas hoje, na Itália, existe uma organização publicamente conhecida cujos
afiliados, chefes, sedes, em bandos armados, declaram abertamente que
preparam atos de violência, represália, ameaças, incêndios, e os executam
assim que acontece, ou finge-se que acontece, uma ação realizada pelos
trabalhadores que seja prejudicial aos patrões ou à classe burguesa. É uma
perfeita organização da justiça privada. Isso é indiscutível.”
Enquanto Giacomo Matteotti expõe sua acusação contra a burguesia
agrária italiana, da qual é filho, mais do que contra os fascistas, que o
obrigam a andar escoltado, o plenário começa a se encher, devagar, de
homens arrancados da sua lenta digestão reptiliana por aquela invectiva
clamorosa. Matteotti os açoita. Mais do que a própria violência, denuncia os
burgueses covardes e opulentos que financiam a violência das esquadras
fascistas.
“Enquanto perdura na grande maioria da sociedade capitalista do país a
hipocrisia de não apoiá-lo abertamente, nós reconhecemos que o fascismo
tem coragem de se expor.”
“Vivam os Fasci di Combattimento!!!”
Agudíssimo, quase estrangulado por um falsete histérico, o berro sibila por
cima do orador socialista, lançado pelas cadeiras da direita. Seu autor é
Valentino Coda, veterano de guerra, eleito entre os nacionalistas
monárquicos.
Matteotti o desvia para o Presidente do Conselho de Ministros. Grita, por
sua vez, que os proprietários de terras estão dispostos a deixar o Estado
morrer para salvar o próprio bolso, e aponta o dedo tremendo de desdém para
o rosto do patriarca Giolitti:
“Quem de vocês assume a responsabilidade pelo fascismo?!”
Os socialistas aplaudem, oferecendo um tripúdio ao seu tribuno. Ele,
todavia, não terminou.
“O governo tem a presunção de ser algo fora e acima das classes, tutor da
ordem pública [...]. Nós, em contrapartida, afirmamos que o governo do
presidente do Conselho de Ministros Giolitti é cúmplice de todos esses atos
de violência!”
“Nem o senhor acredita nisso!”
Giolitti está em pé, ainda fisicamente ameaçador com 1,90 metro, apesar
dos 80 anos de idade e 50 de acordos parlamentares.
“Não, digníssimo Giolitti, neste momento a habilidade parlamentar é
perfeitamente inútil.”
Matteotti continua sem se sentir minimamente intimidado pelo velho líder
que poderia ser seu bisavô:
“Esse seu jogo, no qual é tão hábil, agora de nada vale. A questão é muito
mais simples. Não lhe pedimos nada. Antes de qualquer coisa, não confiamos
em um servidor como o senhor, que seria sempre desonesto. Não pedimos
nada. É uma falsidade jornalística que tem afirmado que pediríamos proteção
ao digníssimo Giolitti. Não mendigamos nada!”
Giolitti volta a se sentar. Matteotti o repudiou. Não reconheceu seu papel
institucional de responsável pela liberdade e pelo direito, cortou o fio que
ainda poderia ligar o socialismo ao Estado. Nós não pedimos nada, não
mendigamos nada. O nada reiterado pelo deputado socialista em seu discurso
ecoa no plenário como uma palavra definitiva.
O discurso do jovem tribuno socialista prossegue na sua análise marxista:
este é o momento — proclama Matteotti — no qual a classe burguesa, que
detém riqueza, exército, magistratura, polícia, sai da legalidade e se arma
contra o proletariado para manter o próprio privilégio. O Estado democrático
que se baseia no princípio de que “a lei é igual para todos” é uma burla.
“As sementes da violência darão frutos; sim, generosamente darão frutos
[...].”
Quando Giacomo Matteotti volta a se sentar, o ar no plenário está
irrespirável. A palavra “violência”, como um vazamento de gás, mais uma
vez o impregna. A porta está fechada.
Depois dele, é a vez do deputado Sarrocchi, que apresenta a moção dos
liberais. Enquanto isso, o plenário voltou a se encher. Ali estão sentados pelo
menos 250 deputados, descansados graças ao cochilo vespertino; ouvem
Sarrocchi despejar sobre os socialistas a culpa da situação violenta que abala
o vale do rio Pó. O deputado liberal expõe a costumeira ladainha dos
boicotes, ameaças, extorsões, excessos, ocupações das fábricas.
“Alguns boicotados”, diz no auge da patetice, “sem mais um teto, sem a
possibilidade de ganhar a vida, após ter ido de vilarejo em vilarejo, até
tiveram de emigrar.”
“Esse era o judeu errante!”
Os socialistas riem às gargalhadas do escárnio de Matteotti. Os outros
protestam. Sarrocchi continua.
“Vocês querem saber o valor total dos danos produzidos pelos membros
das ligas vermelhas em todos esses anos? Onze milhões!”
“Ainda é pouco!”, grita o deputado Belloni, comunista.
Rumores, protestos.
“Irresponsável!”, grita mais alguém.
A sessão ainda dura muito, mas já terminou faz tempo.
É possível, portanto, com a consciência tranquila, definir
como facciosamente artificioso o discurso do deputado
Matteotti. O orador socialista não nos apresentou um quadro
sintético da situação emiliana; não se preocupou em pesquisar
suas causas remotas e profundas [...]. O Partido Socialista e as
organizações que dele dependem temem agora perder de uma
só vez, por causa da repentina reação fascista, os frutos
abundantes prometidos pelo trabalho tenaz de um vintênio no
campo político e econômico. Diante da ação dos adversários, o
socialismo é obrigado a adotar, no Parlamento e no país, um
comportamento defensivo e tenta, portanto, fazer esquecer
suas violências passadas [...]. Agora é necessário esperar que o
presidente do Conselho de Ministros Giolitti revele em amplas
declarações o conceito no qual pretende inspirar sua ação
política, que, entrementes, pode se valer de um elemento que
faltava aos predecessores: a reação espontânea da opinião
pública contra a prepotência dos socialistas.

Editorial não assinado, Corriere della Sera, 1o de


fevereiro de 1921
Benito Mussolini
Milão, final de fevereiro de 1921

A violência, sempre a violência, só a violência, não se fala de outra coisa


que não seja violência... Como se houvesse algo a se dizer sobre a violência!
Será que eles pensam que vão reduzir o fascismo, a política e o século a uma
mancha de sangue na calçada?
São acusados de levar a violência à luta política. Ele foi bem claro: os
fascistas são violentos sempre que a situação exige. Ponto. Não há nada mais
a acrescentar. Eles quebram, destroem, incendeiam quando são obrigados a
fazê-lo. Isso é tudo. Para ele, parece uma fórmula satisfatória.
A conclusão do debate parlamentar sobre a matança em Bolonha também
parece ter lhe dado razão. Apesar da denúncia daquele tal Matteotti, que
procurava inutilmente no fascismo um álibi para a incapacidade
revolucionária dos socialistas, o plenário de Montecitório reconfirmou em 3
de fevereiro a plena confiança em Giolitti. O que significa que foi aceita a
tese da violência contra a violência, que os moderados consideram os
fascistas um agente patógeno virulento, mas essencial às razões supremas da
sobrevivência do organismo social. Uma espécie de vacina inoculada sob a
pele contra o socialismo.
Em 22 de janeiro, em Módena, o jovem fascista Mario Ruini é assassinado
em uma emboscada noturna por três anarquistas. No dia seguinte, durante o
seu funeral, nos confrontos entre camisas negras, comunistas e guardas reais,
morrem outros dois fascistas e Leandro Arpinati é ferido na perna? Pois bem,
na mesma noite, em represália, a Câmara do Trabalho da Via del Carmine é
incendiada e, no outro dia, o próprio Arpinati incendeia também a Câmara do
Trabalho de Bolonha, a sede da União Socialista e do jornal La Squilla. É
assim que funciona a violência, a irmã tola da política. Não é o caso de ficar
tecendo grandes teorias. Caso contrário, perde-se de vista o quadro geral, e o
quadro geral é complexo.
Após a cisão, a crise socialista é irreparável. Os 15 mil delegados de
Livorno não representam mais ninguém, porém necessitam agir com rapidez
para colher os frutos. Assim que os democratas bem-comportados também se
derem conta, vão soltar um suspiro de alívio e achar que não precisam mais
dos fascistas. É muito provável que Giolitti, o velho mago da chuva,
aproveite a fraqueza socialista para dissolver o Parlamento, convocar novas
eleições e aprofundar a rachadura no muro vermelho, levando Filippo Turati
e seus reformistas moderados para o governo. É vital agir depressa, subir a
bordo, viajar com pouca bagagem e se livrar de todo o peso morto.
A violência deve continuar apenas quando for inevitável para mostrar aos
velhos burgueses imbecis que eles não podem viver sem os violentos. Mas
também é fundamental controlar aqueles loucos selvagens que matam por
esporte nos campos da planície. Nesse ponto, Cesarino Rossi tem razão: é
imperativo fazer uma limpeza geral, selecionar de maneira radical; o sucesso
trouxe gente demais para as fileiras fascistas. Fora! Sem hesitações, livrar-se
do peso morto. Aí é preciso se preocupar em manter os últimos laços com a
esquerda. Os votos deles também serão úteis nas próximas eleições. Por isso,
o slogan já está pronto: “A terra para quem nela trabalha, a terra para quem a
faz dar frutos.” Deve ser suficiente para matar a fome secular das massas
rurais. E há também o Comandante. Agora D’Annunzio se recolheu em
Cargnacco, no lago de Garda, em uma cômoda villa, embalsamado nos
confortos e luxos, onde jura querer voltar a se dedicar à única ocupação que
já conheceu: si mesmo. Seus amigos o descrevem como cansado, subitamente
envelhecido, desiludido, cego, derrotado, mas é imprescindível de qualquer
forma chegar a um acordo para evitar que ele atrapalhe. Será preciso facilitar
seu principesco desejo de isolamento, ajudá-lo a se tornar de novo o
decorador de interiores que sempre foi, a se enterrar vivo na sua pirâmide à
beira do lago junto aos seus fiéis, aos seus ourives, aos seus louros, aos seus
canhões, aos seus cavalos, às suas velhas e novas amiguinhas, às suas manias,
aos seus amados cães. Bastarão apenas alguns meses de agonia no lago e o
Comandante se tornará, como nos versos da sua última poesia, o cão do seu
nada.
Agora se trata de encontrar um lugar no mundo para a Itália, um lugar na
história para os italianos, e não um lugar no cosmo para o ser humano. A
política externa não pode depender dos delírios de um D’Annunzio. Na
reunião de Trieste em 7 de fevereiro, que aconteceu no Politeama Rossetti,
Mussolini disse com todas as letras àqueles que o acusavam de ter
abandonado Fiume: a violência é breve, mas a arte política é longa, o cenário
é vasto, complicado, variado, a época é incerta. Necessitam de uma análise
abrangente da situação mundial, e não marchas improvisadas sobre Ronchi
ou explosões extemporâneas de violência. É sempre a mesma questão. A
história é como o teatro: existem plateias raivosas que, tendo pagado o
ingresso, querem a todo custo um gran finale. Mas a revolução não é uma
boîte à surprise que alguém leva no bolso!
No plano internacional, a situação geral é ainda mais complexa. A Europa
tem dificuldade em reencontrar seu equilíbrio, delineia-se um forte contraste
entre Estados Unidos e Japão, o eixo da civilização tende a se deslocar de
Londres para Nova York e do Atlântico para o Pacífico. O grande enigma é a
Rússia. Em uma Europa que tem dificuldade em reencontrar seu equilíbrio,
não há dúvida de que a história de amanhã será obra principalmente do
mundo russo e do mundo germânico. O dilema que espera a Itália é o
seguinte: dividir com a Alemanha e a Rússia a honra de dirigir a vida do
velho continente ou se tornar um grande “bordel” internacional. Uma nação
de garçons e putas à qual os ricos eslavos, germânicos, orientais e americanos
vêm nas férias para dar vazão aos próprios vícios.
Ele, fundador dos Fasci di Combattimento, tenta voar alto, mas eis que
logo os acontecimentos do dia a dia o agarram e o puxam para baixo: a
secretária anuncia que o sr. Cucciati aguarda na redação para ser recebido
pelo diretor. É uma chateação: a filha do postulante se casou com um cabeça
quente, um tal de Bruno Curti, um chefezinho das esquadras milanesas,
herdeiro de um industrial do bronze, que atirou em alguém em algum lugar
durante uma briga e agora está apodrecendo na cadeia. Enfim, mais uma vez
a lenga-lenga da violência. Mas agora ele não poderá se eximir: Giacomo
Cucciati é um velho companheiro dos tempos do socialismo, um daqueles
filhos de ricos proprietários de terras que ficou obcecado pela causa dos
miseráveis, como Giacomo Matteotti. Mandem-no entrar.
Sentado, Mussolini se prepara para receber o postulante. É uma técnica
testada e aprovada para desencorajar os chatos. Mussolini sentado, eles em
pé, o encontro termina logo.
No entanto, há um imprevisto: com Giacomo Cucciati, no escritório do
diretor, entra uma brisa de perfume, chiffon e rendas. Cucciati trouxe consigo
a filha, a mulherzinha do idiota violento. Mussolini se levanta.
Os cumprimentos entre velhos companheiros duram pouco. É evidente que
a atenção do diretor está magnetizada pela jovem mulher. A moça tem
grandes olhos pretos, as maçãs do rosto altas, o queixo forte, uma onda de
cabelos corvinos que caem sobre suas costas, quadris largos, seios
abundantes. É feita para excitar os homens, e o homem se excita. O Fundador
a encara com olhos arregalados, como nas fotografias que ficariam para a
posteridade. O pai solta o braço dela, dá um passinho para o lado, não
interfere.
É o sogro que expõe o triste caso do genro. Mussolini, queixo para o alto,
se mostra interessado.
Bruno Curti está apodrecendo na cadeia por conta de uma acusação de
homicídio.
Onde?
Aqui em Milão, em San Vittore.
Muito bem.
Fazia parte de um Fascio di Combattimento.
Um dos nossos.
Sua esquadra deu uma lição em um professor, um tal Gadda. Um
bolchevique.
Merecida.
Gadda morreu por causa dos ferimentos.
É a guerra...
Tratava-se de disparos de arma de fogo. Os investigadores são inflexíveis.
Podemos tentar, mas não é fácil. Estão em cima de nós com essa história
da violência...
Giacomo Cucciati não responde à última, preocupada, suspirante
observação de Mussolini. O pai agora fica calado e se vira para a filha. Ela
também respira fundo, olha para baixo, recatada, e diz apenas uma coisa:
Nós nos casamos muito jovens. Eu só tenho 22 anos...
Quando Angela Cucciati Curti, sentada composta ao lado do pai, ali
presente para defender a causa do marido, ergue modestamente o olhar após
ter enxugado uma lágrima em um minúsculo pedaço de organza, Benito
Mussolini a fita eletrizado como se um pedaço de esperma escorresse no
canto da sua boca.
Giacomo Cucciati é um homem do mundo e entende que seu plano
funcionou. Ausenta-se, portanto, com uma desculpa banal.
Assim que Cucciati sai da sala, o diretor do Il Popolo d’Italia, o fundador
dos Fasci di Combattimento, o Duce dos Arditi, o terrível revolucionário, na
mesma hora viola a barreira da intimidade: fica do lado da moça e sussurra
em seu ouvido.
Acusam-nos de levar a violência para a vida política. Somos
violentos sempre que é necessário [...]. A nossa deve ser uma
violência de massas, inspirada em critérios e princípios ideais
[...]. Quando encontramos esses sacerdotes e esses padres
vermelhos, nós, que somos inimigos de todas as igrejas,
mesmo respeitando as religiões decentemente professadas,
penetramos nesse vil rebanho de ovelhas e varremos tudo.

Benito Mussolini, “Aos fascistas da Lombardia”, Il


Popolo d’Italia, 22 de fevereiro de 1921

As notícias diárias pululam de episódios de violência na luta


travada entre fascistas e socialistas [...]. Trata-se, agora, em
vista da continuação da luta, de atribuir uma “linha” ao
exercício da nossa violência, de modo que essa permaneça
tipicamente fascista [...]. Antes de mais nada, temos de voltar
a declarar que, para os fascistas, a violência não é um capricho
ou um propósito deliberado. Não é a arte pela arte. É uma
necessidade cirúrgica. Uma dolorosa necessidade. Em
segundo lugar, a violência fascista não pode ser violência de
“provocação” [...]. Enfim, a violência fascista deve ser
cavalheiresca [...]. Sem dúvida alguma [...]. Não se
ultrapassam impunemente fronteiras. A violência, para nós, é
uma exceção, não um método nem um sistema. A violência,
para nós, não tem um caráter de vingança pessoal, mas um
caráter de defesa nacional.

Benito Mussolini, “Sobre a violência”,


Il Popolo d’Italia, 25 de fevereiro de 1921
Campos do Polesine
Fim de fevereiro de 1921, noite

O casebre dorme. Dorme no silêncio e na escuridão dos gélidos invernos


da planície do rio Pó. É noite profunda, a luz do dia inalcançável,
equidistante. É a hora meridiana do esquecimento, a hora que não passa, a
hora do lobo. Qualquer criatura dorme, dentro e fora da casa, em uma raio de
dezenas de quilômetros. Dormem as crianças e os velhos, dormem as
mulheres e os homens, os pais, as mães, os filhos, dormem os animais no
estábulo, os cães nas casinhas e as centenas de espécies silvestres, entre
mamíferos, répteis, anfíbios e peixes, que passam o inverno nas terras úmidas
do delta.
O caminhão partiu de Ferrara. Os homens sentados na caçamba descoberta
— uma meia dúzia — tiveram um jantar farto na trattoria, riram, apostaram e
esperaram que desse a hora tragando licor no lugar de sempre. O caminhão,
uma sobra da guerra, anda devagar sobre pneus cheios, perdido nos meandros
enevoados entre os canais de drenagem de territórios anfíbios, sobre
superfícies rebaixadas com amplas porções que não atingem o nível do mar.
Suas rodas cheias agravam a subsidência, o lento afundamento dessa faixa
continental, pressionam séries de detritos com milhares de metros de
espessura na crosta do solo.
Quando chega ao campo de visão do casebre, o caminhão desacelera ainda
mais, avançando quase em velocidade de marcha. Alguém sugere apagar os
faróis, mas não há lua, o céu está vazio e eles sairiam da estrada. Todas as
ínfimas criaturas que vivem rastejando no solo, atraídas pela luz dos faróis,
saem das tocas. Ratos, toupeiras, lagartos, lagartixas, sardões, cobras, vermes,
minhocas, sapos e centopeias aproximam-se do automóvel arrastando-se.
Entre as primeiras a buscar o dia artificial dos faróis, acabando por se chocar
contra eles, estão as mariposas de todos os tamanhos.
O pequeno corpo globular de um sapo encontra a roda. Ele procura, em
vão, escavar o terreno com a sua espora. A insignificante massa elástica
recebe o peso sobre o dorso escuro com manchas oliváceas, a esfera de
matéria gelatinosa se estica com um espasmo e o esmagamento libera um
som no qual se misturam um sopro de ar e um derramamento de água. Ao
irromper no pátio do casebre, a roda do caminhão recupera a total aderência
ao solo.
Os integrantes da esquadra circundam a casa e o chamam pelo nome. O
nome de sua presa ecoa a milhares de metros no silêncio do campo
paralisado. Estão todos armados com mosquetes da Grande Guerra, italianos
ou austríacos. Todos menos o sujeito alto, envolto em uma capa de chuva de
couro preto, o rosto escondido por um par de grandes óculos de motociclista.
Ele brande uma grande clava com a ponta reforçada com ferro. É ele que
chama no meio da noite.
O chefe da liga camponesa, que ouviu o caminhão chegar e avistou na
escuridão a luz dos faróis, foge para o campo por uma portinha nos fundos. Já
está longe, a salvo, quando o homem com a capa de chuva preta derruba a
golpes de clava a porta de entrada da sua casa. A devastação é metódica,
simples, sem encontrar resistência. Tomados pela euforia fácil, os
destruidores atiram no armário onde é guardado o pão do dia anterior. O
homem em fuga, ouvindo à distância os gritos aterrorizados da esposa e das
filhas, volta. Abre os braços para os integrantes da esquadra no pátio:
— É a mim que vocês querem? Estou aqui.
Encostam-no na parede. Fazem descer os velhos, a esposa e as crianças
para que assistam ao fuzilamento do filho, do marido, do pai, e se alinham na
frente dele em uma caricatura de pelotão de fuzilamento. As duas meninas —
devem ter 7 e 9 anos — não gritam, não choram, emudecidas pela morte
iminente do pai e pelo apocalipse do seu mundo.
Os integrantes da esquadra apontam as armas. Ao comando do homem
com os óculos de motociclista, abrem fogo. Mas o chefe da liga camponesa
ainda está em pé: todos levantaram a mira para uma falsa execução.
Naquele momento, a esposa começa a soluçar, desfaz-se em um irrefreável
choro de alívio. O marido afasta as costas da parede e dá um passo cauteloso
na direção dela. Só a menina mais velha entende. Estende uma mãozinha com
a palma aberta, voltada para cima e para fora, e solta um grito que vai durar
toda a sua vida.
“Não, papai, fuja, fuja!”
O homem com os óculos grandes gira a clava com a ponta de ferro acima
da própria cabeça e desfere um golpe no crânio do chefe da liga camponesa.
O pai abatido se arrasta com o rosto coberto de sangue na direção das filhas,
gagueja palavras desconexas, rasteja com a barriga no chão entre as pernas
dos outros membros da esquadra que o golpeiam com seus porretes.
Parece que acabou. O chefe dos assassinos, porém, faz sinal aos seus
homens para que parem o massacre. Ele avança lentamente até o homem
caído no chão, passa a perna direita por cima deste e, montado, dobra os
joelhos, com um gesto incongruente, uma posição desconfortável e
desengonçada, quase como se fosse impelido por uma vontade repentina de
defecar. No entanto, em vez disso, saca do bolso da capa de chuva um
revólver e atira nas costas do moribundo. O corpo estremece. Agora acabou.
No caminho de volta, amontoados na caçamba do caminhão, os assassinos
cantam. O som se perde a leste na primeira luz que surge no mundo, vinda
das lezírias do delta como no primeiro dia da criação. Após essa noite, a vida
não será mais a mesma nos campos do Polesine. O terror se estende por toda
parte, tênue, uniforme, em um véu de geada.
Não damos a mínima para um dia na cadeia / não damos a mínima para
uma morte feia / para preparar esta gente forte / quem dá a mínima agora para
a morte. / O mundo sabe que a camisa negra / é usada para matar e morrer
[combater e sofrer] [...].

Canto dos integrantes da esquadra ferrarense


Amerigo Dùmini
Florença, 27 de fevereiro — 1o de março de 1921

A notícia correu de boca em boca, de esquina em esquina: a reunião é às


15h na sede da Via Ottaviani. Os “vermelhos” explodiram uma bomba na
esquina do Palazzo Antinori. Todos os fascistas armados.
A detonação foi ouvida, forte como o canhão que sempre dispara ao meio-
dia, em todo o Centro da cidade. Mas não era o canhão do Janículo. Eram os
“bolcheviques” de sempre, sem Deus, sem pátria, sem família, os habituais
apunhaladores de costas, seviciadores dos inimigos caídos, os covardes de
sempre. Alguém disse ter visto uma gravata preta esvoaçante dos
republicanos, alguns falam de cravos vermelhos, outros afirmam que foram
os anarquistas, mas não faz diferença. O Partido Liberal, apoiado por
nacionalistas e fascistas, inaugurava a flâmula de um grupo estudantil, as
pessoas saíam aos bandos das missas na igreja de São Marcos e no Duomo
rumo às confeitarias, o homem à frente do cortejo patriótico havia acabado de
chegar em San Gaetano quando a bomba explodiu no meio das suas pernas.
Esses são os fatos.
O arremessador, o terrorista, não foi visto por ninguém. Os carabineiros
começaram a atirar como loucos, a esmo. O chão — coberto de cartuchos —
parecia o de um campo de batalha. A Confraria da Misericórdia levou embora
nas macas um militar que perdia matéria cerebral e um jovem camarada
dilacerado. Ambos morreram antes de chegar ao hospital. Os feridos,
inclusive em estado grave, são dezenas. O número de mortos só pode
aumentar.
A cidade está tomada por convulsões e terror. Ao longo do trajeto das
ambulâncias, gritavam para que os transeuntes descobrissem a cabeça em
sinal de respeito às vítimas. Na Loggia del Bigallo, um sujeito com um cravo
vermelho na lapela agitou um jornal em sinal de provocação. Um carabineiro
que escoltava o colega morto, pendurado no estribo do veículo, chorando de
raiva, apontou para ele o mosquete que segurava com um braço, como uma
pistola, e o matou ali mesmo. Um tiro só. A mesma ambulância também
carregou aquele cadáver.
Na sede do Fascio di Combattimento na Via Ottaviani, deve haver, quando
muito, uma centena de pessoas. É domingo e, como sempre no feriado, pelo
menos cinco esquadras estão percorrendo os vilarejos dos arredores. Todos os
fascistas que permaneceram na cidade se aglomeram na sala de reuniões. Lá
estão os de sempre: Chiostri, Moroni, Manganiello, Annibale Foscari, o
“condezinho” veneziano, delicado e pálido como um trapo, o gigantesco
Capanni, despenteado como sempre. Acima do burburinho, ergue-se o timbre
nasal do louco Pirro Nenciolini, calvo, torto. Gesticula e blasfema sozinho
como se estivesse possuído: “Deus maldito, Deus imortal, Deus maldito...”
A um canto, Bruno Frullini, assustador, carrega o revólver.
Esperam que fale o marquês Dino Perrone Compagni. Nos meses
anteriores, em Florença, o Fascio di Combattimento rachou em dois: de um
lado, aqueles com acesso aos palácios dos senhores; do outro, aqueles como
Dùmini, mantido com dificuldade pelos pais velhos, como Umberto
Banchelli, fechado em seus tiques e rancores, ou como Tullio Tamburini,
com a folha corrida manchada pelo furto. Os desesperados prontos para tudo.
Mas, nas surras de Pisa, no incêndio do jornal socialista, na algazarra no
Conselho Provincial para que os “vermelhos” expusessem a bandeira tricolor,
eles, de qualquer forma, sempre estiveram juntos. O pagamento era igual para
todos. O ódio era o mesmo.
Agora, para sanar a cisão, tiraram da cartola esse marquês. É um pouco
mais velho — deve ter passado dos 40 —, fala demais, ainda vive na casa da
mãe. Ela, a marquesa, ao que parece, costumava ter uma propriedade em
Greve, mas tudo foi perdido em dívidas de jogo. Na guerra, o senhorzinho
ficou enfurnado nos serviços administrativos militares e, nos tempos de paz,
foi rebaixado de oficial de cavalaria a soldado raso por causa das dívidas de
jogo. Dùmini e Banchelli o chamam de “Conde de Culagna”, e os
verdadeiros aristocratas também sempre o desdenharam. Mas os figurões
florentinos não foram muito exigentes. Era útil, então deram-lhe uma nova
roupagem.
Perrone Compagni finalmente fala. Articula as sílabas como se estivesse
ditando um telegrama:
“O-lho por o-lho, den-te por den-te! Antes do anoitecer, os chefes
bolcheviques vão ter pagado por essa última infâmia!” A resposta é um
estardalhaço. Perrone Compagni continua: “Precisamos agir antes da polícia e
dos carabineiros. Somos nós que devemos fazer respeitar a ordem pública e
realizar as ações de justiça.” Enquanto fala, desabotoa o paletó mostrando o
revólver enfiado no cinto.
Discutem um pouco, debatem o plano de ação, dividem-se em cinco
esquadras. Políticos vêm implorar que eles não ponham fogo em Florença em
busca de vingança. Ninguém presta atenção. Os fascistas dão início à
represália.
Dùmini estabelece o quartel-general da sua esquadra no Caffè Gambrinus.
Tem ao seu lado o indefectível Banchelli e Luigi Pontecchi, vulgo “Gigi”, já
com 50 anos, ex-ciclista profissional, extravagante, cego de um olho,
torturador irredutível. Ao longo de toda a tarde, as esquadras se limitam a
impor o fechamento das lojas por motivo de luto, a exposição de bandeiras a
meio mastro, o esvaziamento dos restaurantes com algumas bofetadas. De
vez em quando, param um pedestre e inspecionam seus documentos como se
fossem policiais. Se alguém protesta, leva uns socos. Mas as ruas se esvaziam
sozinhas perceptivelmente. Os automóveis blindados percorrem as avenidas,
os holofotes do corpo de engenharia militar se acendem sobre o Piazzale
Michelangelo, as metralhadoras da polícia em posição de guerra protegem as
pontes do Arno que levam aos bairros populares, os bairros “vermelhos”.
Paira em toda parte uma atmosfera de pesadelo. Ninguém sabe onde buscar a
vingança.
Até que alguém tem uma ideia. A esquadra, com cerca de trinta homens,
marcha militarmente em fileiras triplas no meio da rua. Alguns usam
capacete, outros, o fez preto com o laço, muitos vestem a farda do Exército.
Na Via dei Ginori, cruzam com um cortejo fúnebre. Os homens se afastam, o
comandante ordena a saudação militar, cada um vira de súbito a cabeça. Os
transeuntes, aterrorizados, notam que todos os integrantes da esquadra
empunham um revólver: seguram-no com o cano para o alto, apoiado no
ombro direito.
A esquadra prossegue pela Via Taddea, chega ao número 2 da rua pouco
antes das 18h. É o momento do pôr do sol, sopram rajadas de um vento frio e
seco, a porta do sindicato dos ferroviários está aberta. Ninguém a protege. A
maioria dos homens do grupo fica vigiando a rua, sobem apenas Italo
Capanni e outros dois.
Deslocam-se com prudência. A porta do primeiro andar também está só
encostada. Ninguém. Nem mesmo no corredor de acesso aos escritórios.
Talvez os “vermelhos” tenham se enfurnado nos bairros de Oltrarno.
Silêncio. Penumbra. Mas, pela porta de um escritório, dá para ver um pouco
de luz. Empurram-na. O homem que procuram está ali, sentado atrás da sua
escrivaninha com um cigarro na boca. Florença está em estado de guerra e
ele, Spartaco Lavagnini, secretário do sindicato dos ferroviários, diretor do
jornal Azione comunista, o homem do qual todos os bolcheviques da Toscana
esperam a revolução, está no seu local de trabalho, a cabeça curvada sobre
uma folha, a caneta na mão. Ele escreve, infatigável, indefeso, disciplinado
pelo dever, corrige rascunhos, como se o destino pudesse depender de uma
desatenção, de um erro tipográfico.
Quando Spartaco Lavagnini ergue os olhos da folha, o assassino que foi
matá-lo está na sua frente, em pé, a 1 metro de distância. Aponta o revólver
para o meio da sua testa. É um ótimo atirador, um velho caçador, reserva para
si o primeiro tiro na presa indefesa.
No entanto, o tiro erra o alvo. Lavagnini é ferido de raspão, embaixo do
nariz. Inclina a cabeça, bate na mesa e tomba, mas ainda não está morto. O
segundo disparo o atinge no chão, do lado esquerdo, à queima-roupa, acerta
em cheio o pavilhão do ouvido. Outros tiros, mirados no tronco, crivam a
parte posterior da sua axila quando ele provavelmente já era um cadáver. A
vítima jaz imóvel.
Depois o assassino é tomado por uma espécie de reconsideração diabólica.
Quase como se quisesse restaurar uma ordem cósmica que sua própria
maldade infringiu pouco antes, agarra o cadáver mutilado da vítima pelos
cabelos, coloca-o sentado na mesma cadeira na qual o surpreendera dedicado
ao trabalho, tira do canto da boca o cigarro que, durante todo o tempo que o
extermínio levou, ele nunca parou de fumar e o enfia entre os dentes
quebrados do morto como um calço. A saliva do assassino se mistura ao
sangue na boca da sua vítima.

***

Naquela noite, a cidade se divide. Quando surge uma alvorada de tragédia,


Florença desperta rachada em duas ao longo de fendas traçadas pela bomba
do Palazzo Antinori e pelo assassinato de Spartaco Lavagnini.
Durante as horas de trevas, o mesmo talento artesanal que a edificou nos
séculos, erguendo muros secos e barricando-se com as pedras do calçamento,
separa a parte esquerda do Arno do resto. A ralé, temendo o ataque,
entrincheirou-se nos bairros populares e nos povoados, de San Frediano a
Scandicci. Na outra margem, temendo o levante do povo, alinhou-se o
exército. Quatro canhões de 65mm na Piazza Vittorio dominam as ruas, a
polícia em formação de guerra bloqueia as pontes. A repressão é iminente.
Ninguém, nem mesmo a polícia, se aventura à noite nos bairros. Ninguém
dorme do outro lado do Arno. Choram Spartaco Lavagnini, ninguém se ilude
e todos se questionam. Quem atirou aquela bomba? A quem pode interessar
pôr em perigo cinquenta anos de conquistas operárias? Alguém vocifera que,
quando uma bomba explode na multidão, não importa quem a armou, não
importa quem foi por ela ceifado, a culpa é sempre da esquerda proletária.
Na cidade, desde a manhã, a vida desapareceu. Os ferroviários, assim que
se espalhou a notícia do assassinato de Lavagnini, bloquearam os trens nas
estações de Rifredi, Campo di Marte e San Donnino. Logo em seguida, ao
lado deles, foram para a luta os motorneiros, seguidos pelos eletricistas e, aos
poucos, por quase todas as categorias de trabalhadores proletários. Falta água,
gás, energia elétrica; faltam trens, bondes; as lojas estão fechadas.
Os fascistas não aparecem até o meio-dia. Passam a noite na sede da Via
Ottaviani combatendo o sono à base de ponche ao rum. Após o almoço, saem
em colunas para atacar San Frediano, mas são obrigados a cruzar o rio na
ponte mais distante, a de San Niccolò, e voltar pelas rampas e pelo Viale dei
Colli. São poucos e vão se aventurar em um bairro que se defende com a
ferocidade de quem sabe que, se não vencer agora, nunca mais vencerá.
Na Piazza Tasso, Dùmini e seus homens se veem cercados por uma chuva
de projéteis de todo tipo: telhas, batentes, mármores de criados-mudos. Sobre
eles, cai também uma pia de pedra. As mulheres do povo, incitando seus
homens, gritam como loucas. Das janelas, atiram coisas. Um dos agressores,
caído no chão, agoniza. Um fio de sangue escuro escorre pelo terno cinzento
e suja a calçada. Os Arditi também são obrigados a se esconder atrás de um
portão. Os canhões do Exército ficaram na margem direita do rio. Os
agressores só ficam a salvo quando um automóvel blindado da polícia vai
libertá-los.
Depois da incursão fracassada, a polícia pede a intervenção do Exército.
Ordena-se que, de Santa Trinita e Carraia, entrem em Oltrarno divisões da
84a e da 69a infantarias, acompanhadas pelos bersaglieri. As barricadas dos
“vermelhos” são forçadas com os automóveis blindados, mas o populacho
não se rende. Devem atacar casa por casa e desaninhar os núcleos de
resistência um a um. Os fascistas agora penetram nos bairros atrás do
Exército e da polícia. Passam de uma vingança a outra, as sirenes da
Confraria da Misericórdia soam por toda parte, os boatos de atrocidades se
espalham.
Na ponte suspensa sobre o Arno, ocupada por uma multidão aguerrida de
comunistas, um jovem irresponsável, de luvas, polainas e bicicleta — todas
coisas desconhecidas aos operários —, que se obstinava em passar, foi
massacrado e jogado no rio. Dizem que o fascista se pendurou no parapeito
da ponte e que os comunistas esmagaram suas mãos para que ele caísse. Foi
preciso dragar o leito do rio com ganchos para recuperar o cadáver. Várias
contusões no rosto, mas nenhum sinal de feridas nas mãos.
Uma segunda noite de trevas desce sobre Florença. Em Borgo Ognissanti,
na altura do hospital Vespucci, e sob os pórticos de Santa Maria Nuova, uma
multidão angustiada faz vigília à espera de notícias de parentes e amigos.
Na manhã de 1o de março, a batalha é retomada. Em Ponte a Ema, onde as
mulheres e crianças foram colocados a salvo nas colinas, a defesa só é
rompida pelos canhões de 75mm. Em Santa Croce, o combate dura cinco
horas. Finalmente, ao cair da noite, as tropas voltam para a cidade celebrando
o próprio triunfo. Os bersaglieri, de barrete vermelho com borla azul, entoam
o hino de Mameli; agitam bandeiras vermelhas arrancadas do inimigo
comunista e um grande retrato de Lênin. Ao chegar na Via Martelli, seus
canhões e suas carretas são decorados com mimosas.
Por toda parte, usando polícia e Exército como escudo, os fascistas
devastaram as sedes das associações do inimigo. Agora a força pública não os
ameaça mais de ir para a cadeia; pelo contrário, por meio do corpo de
Exército, a bordo de um caminhão 15 Ter, foram reabastecidos com 120
mosquetes e 3 caixotes de bombas SIPE.
Ao fim do dia, na sala da Câmara do Trabalho na Via Tintori, Pirro
Nenciolini, integrante de um Fascio di Combattimento, após ter blasfemado
sem parar nas últimas 56 horas, acende uma fogueira com um amontoado de
bancos, registros e bandeiras vermelhas. Enquanto todos se dispersam,
alguém ironiza:
— Ei, Pirro, cuidado para não queimar os sapatos novos.
— Pode deixar, pode deixar, hoje quero queimar até esses aqui, Deus
imortal.
Pirro Nenciolini, o blasfemo compulsivo, o disco arranhado da cólera
perene, o cão raivoso evitado pelos próprios camaradas, fica sozinho na sala
da fogueira. Esquenta as mãos naquele calor e se sente feliz.
Cidadãos, os paladinos da “Humanidade Nova” e da “Ordem Nova”, os
depravados cruzados da paz a qualquer custo [...] tramaram e executaram
outro delito bárbaro [...] despontando das tocas imundas [...] eles mataram
nossos filhos e nossos irmãos jovens, culpados de serem belos e inocentes.

Cartaz dos Fasci di Combattimento florentinos após o


atentado do Palazzo Antinori, 28 de fevereiro de 1921

Enquanto sentimos todo o profundo pesar por Gino Mugnai, que todavia
morria com o sol na testa em meio à impetuosidade do conflito que o tornou
uma vítima inconsciente, a horripilante morte de Spartaco Lavagnini parte
nossos corações de irmãos [...]. Morreu enquanto se ocupava serenamente de
suas tarefas de secretário [...] vítima de suas ideias livremente professadas
[...]. Morreu na sua inocente atividade enquanto, fumando um cigarro,
encaminhava-se para abrir a porta aos seus algozes [...]. Fique deserta a
estação, a oficina, até que eles não estejam para sempre na paz eterna do
sepulcro.

Cartaz dos ferroviários socialistas florentinos,


28 de fevereiro de 1921

A revolta do proletariado florentino foi completa, repleta de


generosidade e ímpeto. Quem narrará sua história deverá
contar como, durante dois dias, o povo foi o dono de seus
bairros e de suas casas e os defendeu com as armas em punho.
Deverá exaltar o sangue-frio dos operários que enfrentaram,
com uma arma mesquinha, as metralhadoras e o canhão [...].
Saudamos os chefes e os gregários que morreram, mas
afirmamos alto que estamos todos prontos, por nossa conta,
para atacar, morrer e matar. É melhor, cem vezes melhor,
deixar cinquenta mortos no calçamento de uma cidade do que
tolerar sem reação a violência e a ofensa.

Palmiro Togliatti, “O exemplo de Florença”, L’Ordine


Nuovo, 2 de março de 1921

Não fomos capazes de realizar nada. Após a guerra dos capitalistas, nós
também travamos a nossa guerra, mas a nossa é uma guerra de fracos. Hoje
temos a contrarrevolução sem ter feito a revolução.

Rinaldo Rigola, líder socialista reformista, da tribuna do


congresso da Confederação Geral do Trabalho, 1o de março de
1921

Nunca a ordem foi tão perturbada na Itália como desde que


os fascistas assumiram a tarefa de restabelecê-la.

Luigi Salvatorelli, “Classe e nação”, La Stampa,


22 de fevereiro de 1921
Benito Mussolini
Milão, 5 de março de 1921

“Um acidente aéreo aconteceu ontem com Benito Mussolini, diretor do Il


Popolo d’Italia, enquanto, à tarde, no aeródromo de Arcore, ele estava
treinando, sob a orientação do piloto Cesare Redaelli, para obter o brevê de
piloto. De repente, o aparelho foi visto inclinando-se e precipitando de cerca
de 40 metros de altura [...].”
Uma pinha no tubo de resfriamento do motor. Às vezes, basta um incidente
banal para desviar o curso da história. E tudo termina em ferragens retorcidas
à margem de um campo de couves em Arcore, no cu do mundo.
Com a proximidade da primavera, Benito finalmente havia conseguido
retomar as aulas de voo. No entanto, na noite de 2 de março, Rachele teve um
mau pressentimento, assim como a esposa de Júlio César. Porém, Benito
estava determinado a se tornar o primeiro homem político europeu a viajar de
avião pilotando ele mesmo seu aparelho, e não ia deixar que as superstições
de uma camponesa ignorante o atrasassem. Deixou em casa, portanto, a
jaqueta de voo para tranquilizar a mulher e chegou a Arcore de bicicleta.
Na segunda decolagem, após uma manobra sobre o campo, a velocidade do
motor começou a diminuir. Não houve tempo para uma aterrissagem
improvisada: o aparelho, já sem empuxo, caiu em parafuso de 40 metros de
altura. Redaelli, com exceção de alguns arranhões, saiu ileso. Mussolini, por
sua vez, sofreu um leve trauma craniano e uma forte contusão no joelho
esquerdo. Foi medicado no ambulatório de Porta Venezia. Quando chegou
em casa, Rachele explodiu em uma crise histérica:
“Bem feito!” gritou.
O lado bom é que agora o Corriere della Sera se ocupa dele até por causa
de um acidente banal. Dedica-lhe o mesmo espaço que dois anos antes
reservava à fundação dos Fasci di Combattimento. A despeito do ponto de
vista, o fato novo e dominante da política italiana é o fascismo. As eleições
estão se aproximando e, desta vez, eles vão participar do jogo. Ou melhor,
eles é que darão as cartas. Foi o que ele escreveu com todas as letras no jornal
na véspera do acidente: o Parlamento envelhece dez anos a cada dia. Para
uma realidade nova, homens novos e Câmara nova.
Não, não vão pregá-lo na cruz da violência. Ele nunca se cansa de repetir,
como quem deseja convencer sobretudo a si mesmo: é uma cruz que eles
carregam com espírito de sacrifício, nada mais. Da Toscana, chegam todos os
dias notícias de cenas selvagens. Em 1o de março, em Empoli, o populacho
bolchevique, temendo uma expedição punitiva fascista, armou uma
emboscada para dois foguistas da Marinha transferidos para Florença a fim
de operar os trens bloqueados pela greve de outros ferroviários bolcheviques.
Nove mortos e dezenas de feridos. Ao que parece, os camponeses
aterrorizados destroçaram aqueles pobres marinheiros como feras.
Tudo o que está acontecendo é triste do ponto de vista humano, mas é uma
inevitável necessidade histórica. Isso ele também repete o tempo todo nos
seus artigos no Il Popolo d’Italia. Por meio dessa crise, o mundo reencontrará
o equilíbrio e os fascistas estão decididos a não recuar um passo sequer: após
cada delito socialista, a represália chegará inexorável. Avante. Sem parar.
Não foram eles que começaram essa guerra civil, mas eles a encerrarão.
Trata-se de tornar a violência cada vez mais inteligente, de inventar uma
violência cirúrgica.
Ele já escreveu e reescreveu no seu jornal: não é a arte pela arte. É uma
dura necessidade.
Mas como escrever deitado na cama com a cabeça enfaixada e um coágulo
na articulação do joelho? Na noite anterior, a febre passou dos 40 graus, o dr.
Binda precisou dar cinco pontos de sutura na sua cabeça e puncionar o
sangue da perna. São a mesma perna e o mesmo joelho feridos em 1917 pela
explosão do morteiro. Também naquela ocasião, os ferimentos não queriam
cicatrizar; também naquela ocasião, enfrentou problemas para caminhar e
perda de sensibilidade nos membros inferiores. Binda diz que talvez seja o
sangue infectado. Tabes dorsal. Sífilis terciária. Administra sais de ouro. Seu
plasma não quer ficar sufocando nas veias.
Enquanto isso, Edda chora na cozinha porque levou um bofetão, Vittorio e
Bruno se engalfinham em volta de um cavalinho de balanço. Nenhum homem
pode sobreviver a sete dias ininterruptos com a família.
Rachele anuncia uma visita. Parece irritada, quase lívida. Há dias recebem
chatos de todo tipo, bilhetes de melhoras, sem falar dos militantes que
começam a entoar Giovinezza embaixo da janela.
Na soleira do quarto do casal — ali, na sua casa, com sua esposa atrás —,
surge Margherita Sarfatti. Está impecável, como sempre: elegante, educada,
dirige-se a ele com formalidade. Trouxe presentes para as crianças. Ele tenta
se sentar na cama que divide com Rachele.
É evidente que a mulher não resistiu. Nos últimos tempos, são
inseparáveis, no jornal e fora dele. Os dois mantêm, a quatro mãos, uma
espécie de diário de bordo no qual ele rebatizou a amante de “Vela”, um
pouco à maneira de D’Annunzio.
Agora que ela está ali, porém, “Vela” tem dificuldade em suavizar um
vinco de asco nos cantos da boca. Quando se trata dos grandes senhores, a
descoberta do prosaísmo dos casamentos populares, das moradias populares,
das vidas populares sempre provoca esse efeito. Mas a mulher do mundo se
recompõe. Fala de política europeia. Conta que soube de uma opinião muito
lisonjeira do grande Georges Sorel, o teórico do mito da violência. Diz-se que
Sorel falou a um amigo: “Mussolini não é um homem menos extraordinário
do que Lênin. Inventou algo que não está nos meus livros: a união do
nacional e do social.”
Ele, o homem extraordinário, deitado na sua cama de casal, sente o sangue
latejar no joelho.
Quando Margherita vai embora, Rachele explode:
“Algumas pessoas têm mesmo muita cara de pau. O mínimo que você
devia fazer seria atirá-la pela janela.”
O marido a interrompe. Vira-se para o outro lado. Diz que a esposa está
com caraminholas na cabeça.
É triste, visto de um ponto de vista humano, tudo o que está
acontecendo, mas é inevitável. É por meio dessa crise interna
que a nação reencontrará seu equilíbrio. Os fascistas estão
decididos a não recuar um passo: tornarão cada vez mais
inteligente sua violência, mas dela não abrirão mão até que, do
campo adversário, seja levantada, e com sinceridade, a
bandeira branca da rendição. Os fascistas se mantêm coesos e
prontos para todos os acontecimentos [...].

Benito Mussolini,
Il Popolo d’Italia, 1o de março de 1921

Se os socialistas de fato se desarmarem, os fascistas, por sua


vez, se desarmarão. Repetimos que não gostamos da violência,
que a violência é para nós uma exceção, e não uma regra:
aceitamos essa espécie de guerra civil como uma necessidade
maior [...].

Benito Mussolini,
Il Popolo d’Italia, 5 de março de 1921
Giacomo Matteotti
10-12 de março de 1921

Giacomo Matteotti toma a palavra no plenário do Parlamento italiano para


denunciar a violência fascista pela segunda vez na tarde de 10 de março de
1921.
Antes que ele possa falar, a Câmara, sob a presidência de De Nicola, e por
proposta do deputado Guglielmi, exprime seu unânime pesar pelo assassinato
do presidente do Conselho de Ministros espanhol, acontecido dois dias antes
pelas mãos de revolucionários anarquistas. Os socialistas italianos se unem à
deploração contra os atentados individuais à vida humana, mas, pela boca do
deputado Vella, fazem com que conste da ata uma observação: esperam que a
Espanha adote uma política de liberdade em relação aos trabalhadores.
Qualquer coisa que Matteotti estiver prestes a dizer cairá, portanto, no
Tártaro efervescente da guerra civil europeia, um abismo aparentemente sem
fundo.
Antes do seu discurso, ainda é a vez de Corradini, subsecretário do
Interior. Replica a denúncia anterior de Matteotti reconduzindo as violências
ao quadro da luta agrária para a renovação do acordo agrícola, reconhecendo
que os proprietários rurais foram “destemperados”, mas garantindo que o
governo está fazendo todo o necessário para reprimir as expedições fascistas.
O presidente De Nicola, então, cede a palavra ao deputado socialista, dando-
lhe a possibilidade de se declarar satisfeito.
Mas Giacomo Matteotti não se declara nem um pouco satisfeito:
“Na calada da noite, enquanto os homens de bem estão em casa dormindo,
chegam os caminhões dos fascistas nas aldeias, nos campos, nos povoados
com poucas centenas de habitantes; chegam, naturalmente, acompanhados
dos chefes da Agrária local, sempre por eles guiados, ou não seria possível
reconhecer na escuridão em meio aos campos isolados o casebre do chefe da
liga camponesa ou a miserável central de empregos.
“Apresentam-se diante de uma casinha e a ordem é ouvida: cerquem a
casa. São vinte, são cem pessoas armadas com fuzis e revólveres. O chefe da
liga camponesa é chamado e intimado a descer. Caso não acate, dizem: se
não vier, queimamos sua casa, sua esposa, seus filhinhos. O chefe da liga
desce, abre a porta, eles o pegam, amarram, levam para o caminhão, aplicam
as torturas mais inenarráveis, fingindo matá-lo, afogá-lo, e o abandonam no
meio do campo, nu, amarrado a uma árvore!
“Se o chefe da liga camponesa é um homem corajoso e não abre e recorre
às armas para se defender, então é o assassinato imediato que se consuma na
calada da noite, cem contra um. Esse é o sistema no Polesine.”
O plenário escuta em silêncio. Daquela vez, ninguém vocifera, não
ressoam protestos, aplausos, zombarias. Parece que um recanto da noite
polesina projetou as próprias trevas até a colina de Montecitório.
Matteotti, então, inicia a sua lista. Minucioso, preciso, pedante. Em
comparação com a denúncia anterior, sua oratória sofreu uma reviravolta na
direção dos fatos, dos pequenos detalhes das existências absorvidas todos os
dias pela sombra das coisas mais próximas. Como se, àquela altura, só os
nomes de aldeias, de ruas, de pessoas fossem dignos de serem mencionados.
Em Salara, um desafortunado operário ouve baterem à sua porta à noite.
Quem é? Pergunta. Amigos!, respondem. Abre e, através da fresta, vinte tiros
de fuzil o transformam em um cadáver. Em Pettorazza, o chefe da liga
camponesa ouve baterem à porta de casa à noite, sempre à noite... Em
Pincara, um pequeno povoado no meio do campo, à meia-noite, chega um
caminhão e para na frente da central de empregos, um casebre miserável, um
quartinho... Em Adria, vão à meia-noite à casa do secretário da seção
socialista, que é pego, amarrado, levado até o Ádige, mergulhado e
abandonado amarrado a um poste telegráfico... Em Loreo... em Ariano... em
Lendinara... E assim continua a história; mas ninguém intervém, ninguém é
descoberto, ninguém sabe quem são os delinquentes. Noite após noite, dia
após dia, é assim que incêndios e assassinatos são cometidos. Nos miseráveis
campos do Polesine, todos já sabem que, quando batem à porta de casa à
noite e dizem que é a força pública, os moradores estão condenados à morte.
A essa altura da denúncia de Matteotti, começam no plenário de
Montecitório os murmúrios, os comentários das cadeiras da direita. Quando
se chega à responsabilidade do governo, o encanto do silêncio unânime se
quebra. Matteotti aumenta o volume da voz:
“Agora trata-se de um ataque, de uma organização de bandidos. Não é
mais luta política; é barbárie; é medieval.”
O orador continua com sua lúgubre ladainha, entre aclamações da esquerda
e ataques da direita. O presidente, impaciente, convida-o várias vezes a
concluir seu discurso.

***

A réplica não vem de um fascista, de um extremista da direita, de um


inimigo de Matteotti, mas do deputado Umberto Merlin, membro do partido
dos católicos fundado por dom Sturzo, o único a ser eleito no colégio
eleitoral de Rovigo-Ferrara. Ele tem a mesma idade de Matteotti e foi seu
colega no liceu clássico Celio em Rovigo. Em 1919, Matteotti o salvou
protegendo-o com o próprio corpo de uma surra dos seus camponeses
socialistas.
“Matteotti deve admitir”, articula Merlin, “que antes que os socialistas
chorassem os próprios mortos, os fascistas choravam os deles.”
A afirmação do deputado católico gela os socialistas. Merlin cita um jovem
esfaqueado em Gavello e outro apunhalado em Badia pelos socialistas, aos
quais são atribuídos o desencadeamento da fúria homicida no Polesine.
Prossegue defendendo a causa dos católicos:
“Enquanto, na minha província, 30 anos atrás, exigia heroísmo se
proclamar socialista, hoje a situação se inverteu e quem precisa de coragem
são os humildes trabalhadores que aderem às nossas organizações e
reafirmam, em uma província completamente vermelha, sua fé, a fé dos seus
pais.”
Por fim, se dirige à cadeira onde está o velho colega de escola.
“Digo aos socialistas uma palavra leal e serena: vocês querem que essa
situação vergonhosa, intolerável, indigna de um país civilizado cesse? Para
fazer isso, para construir a paz, não basta apenas condenar a violência dos
outros e encontrar atenuantes para a própria violência, mesmo quando a
desaprovamos.”
O plenário aplaude. A segunda denúncia de Matteotti sobre a violência
fascista também se afoga no caldeirão da guerra civil europeia.
Dois dias depois, em 12 de março, Giacomo Matteotti está em
Castelguglielmo, na província de Rovigo, para uma reunião política,
acompanhado do prefeito de Pincara. Centenas de fascistas de toda a
província o esperam. Como sempre, muitos integrantes das esquadras vieram
de Ferrara, ali perto.
O deputado socialista é arrastado para a sede da Agrária. Talvez tenha sido
desarmado, talvez tenham confiscado um revólver. De qualquer forma, os
membros da esquadra obrigam Matteotti a assinar declarações de abjuração.
Ele se recusa. Os fascistas incendeiam a sede da liga camponesa e o põem em
um caminhão.
Circulam com ele pelos campos, submetem-no a maus-tratos, insultos,
ameaças de morte. À noite, Matteotti é abandonado perto de Lendinara.
O sequestro durou várias horas. Giacomo Matteotti se tornou um dos
personagens das suas histórias. Há boatos de que as torturas chegaram até a
sodomia.

***

Ferrara é a cidade da Itália com a maior porcentagem de bordéis. Parece


que essa primazia se deve à presença de cinco quartéis. As “casas de
tolerância”, de acordo com o decreto Crispi, que emanou o primeiro
regulamento a respeito, se subdividem em três categorias: primeira, segunda e
terceira. A lei fixa as tarifas, que vão de 10 liras para as casas de luxo a 4 liras
para as populares. Quase todas ficam entre as silenciosas Via Croce Bianca,
Via Sacca, Via Colomba e, sobretudo, Via delle Volte, o eixo ao longo do
qual se desenvolveu a Ferrara “linear”. Os clientes dos bordéis, ao percorrê-
la, apreciam a visão de edifícios dos séculos XIV e XV, bem como o fascínio
das cúpulas que dão nome à rua.
Com base em uma regra tácita, a política fica fora dos bordéis. Zona
franca. Todavia, em todos os bordéis de Ferrara, há dias, há semanas, não se
fala de outra coisa a não ser das torturas sofridas pelo deputado socialista. As
piadas indecentes germinam na atmosfera infectada pelas bravatas dos
integrantes das esquadras fascistas, clientes assíduos e habituais. Até os
estudantes sem dinheiro, que ficam embromando nas salas inferiores sem ter
condições de ir para um quarto com uma garota, aprenderam a brincar com a
gerente sobre a suposta sodomização a golpes de cassetete do deputado
Matteotti. Os rapazes, rindo, informam-se sobre as moças que praticam “o
Matteotti”, a legalidade do “Matteotti”, o custo de um “Matteotti”.

***

Enquanto isso, Giacomo Matteotti é banido da sua terra. Durante o


sequestro de Castelguglielmo, os fascistas foram claros: se ele quisesse
continuar vivo, deveria deixar a província e não voltar.
Começa assim sua vida de cão vadio. Viaja incógnito, aonde quer que vá
corre perigo, é um homem amaldiçoado, que pode ser morto. Ninguém, nem
mesmo o carteiro, deve saber onde fica seu domicílio provisório. Matteotti
passa um mês em Veneza para ficar mais perto da família, mas é reconhecido
e precisa fugir dali também. Escreve à esposa, Velia, cartas sem remetente:
“Demorarão anos para recomeçar e, nesse ínterim, recuaremos trinta anos.
Não fico triste por mim, que posso sempre construir uma nova vida de cem
maneiras diferentes; mas, por todo o nosso movimento, criado com tanto
trabalho, e por aquela pobre gente que, mesmo tendo se excedido, havia
finalmente se libertado das condições de servidão.” E a acalma: “Enquanto
isso, fique tranquila, pois garanto que estou sendo prudente ao máximo. Não
é mais como antes, quando um ato de coragem podia ser útil; hoje até isso
seria inútil, e danoso não somente para quem o realiza, mas também para os
outros.”
Leandro Arpinati
Ferrara, 18 de março de 1921

Na cadeia, tudo é um equilíbrio precário.


Leandro Arpinati é preso de novo em 12 de março, assim que desce do
trem vindo de Bolonha. Em Milão, deveria se encontrar com Mussolini, que o
espera para combinar a grande reunião fascista prevista na Emília para o
início de abril, mas este vai esperá-lo em vão porque “o amigo Arpinati” não
tem tempo sequer para pôr os pés na cidade. É detido diante da plataforma,
algemado, colocado de volta em um trem para a Romanha, onde é transferido
para a prisão judiciária da Via Piangipane. É a quinta vez em 18 meses que
Leandro Arpinati vai parar na cadeia.
A primeira foi em novembro de 1919 por causa dos acontecimentos
sangrentos no Teatro Gaffurio de Lodi durante a primeira campanha eleitoral
fascista, e ficou preso por 46 dias. Na segunda vez, foi encarcerado mais ou
menos um ano mais tarde, em Bolonha, em setembro de 1920, após o
assassinato do militante socialista Guido Tibaldi durante os confrontos com
as formações de defesa civil nacionalistas, mas foi liberado logo em seguida,
passados apenas três dias, porque, embora estivera presente, não participara
do tiroteio. Na terceira ocorrência, voltou à prisão em Bolonha em 18 de
dezembro por causa da surra nos deputados socialistas Bentini e Niccolai, já
diversas vezes ameaçados nos dias anteriores e agredidos na saída do
tribunal, onde se obstinavam em defender os bolcheviques. Mas, àquela
altura, o andar da carruagem já era outro: a batalha decisiva do Palazzo
d’Accursio já acontecera, o vento já soprava na vela negra do Fascio di
Combattimento e ele foi parar em uma cela porque se apresentou de maneira
voluntária na chefatura de polícia para se acusar corajosamente pela
expedição punitiva com outros três camaradas. O chefe de polícia foi
obrigado a prendê-lo, mas limitou-se a autuá-lo por desacato e ameaça a
membros do Parlamento, deixando de lado a acusação por lesões corporais. O
ano-novo trouxe também a quarta prisão. Por fim, essa quinta em Milão.
Desta vez, era acusado de ter obtido o caminhão para uma expedição a Pieve
di Cento na qual uma operária “infelizmente” morreu, embora ele não tenha
participado da incursão.
É assim, não dá para evitar, é uma verdadeira guerra civil. Ele escreveu
com todas as letras no L’Assalto. Socialistas e fascistas são inimigos
irredutíveis, enredados em uma luta mortal. Um ar de ódio redemoinha em
torno de suas cabeças como uma atmosfera necessária à própria razão de
viver.
Foi muito discutido nos Fasci di Combattimento se eles estão entrando
demais no jogo dos proprietários rurais, se as esquadras estão se tornando um
instrumento da reação, mas ele, quando se trata de debater nas assembleias e
desfiar rosários de teorias, perde a paciência. Durante a assembleia de 3 de
janeiro, a ala esquerda do Fascio di Combattimento, apoiada pelos
legionários de Fiume, lançou-se contra a direita acusando-a de ter se deixado
subjugar pela “velha Itália”. Só conseguiram chegar a um acordo graças à
mediação de Dino Grandi, que também ficou com a direção do L’Assalto.
Arpinati, embora fosse o secretário, permaneceu afastado e não conseguiu
orientar o voto dos afiliados. Todavia, quando se trata de ações de campo, os
homens, inclusive Grandi, o seguem. Ele é o ídolo das esquadras, é aclamado
como o verdadeiro “duce”. Para ele, o fascismo é uma intemperança, é o
passo liberto da juventude sobre as pedras antigas da Piazza Maggiore, é uma
organização de homens livres e violentos que sacodem um país de apáticos e
servos. Ele não entende os campos, mas a cidade de Bolonha é toda sua.
Nos fins de semana, Arpinati e seus rapazes vão até as aldeias da
província. Atacam as Casas do Povo, as sedes sindicais, os municípios
“vermelhos”, interrompem os boicotes, batem, destroem, arrancam dos
inimigos as bandeiras e as queimam na Piazza Maggiore, em fogueiras
públicas que suscitam entusiasmo. Às vezes, como em Paderno, a situação
não demanda luta: bastam as ameaças, e os chefes das ligas camponesas
aceitam a humilhação de lhes entregar as bandeiras.
Em outras ocasiões, a luta é mais dura. Além das feridas nas pancadarias,
ele já levou dois tiros. O primeiro em Ferrara, em dezembro, e o segundo em
Módena, em 24 de janeiro, durante o funeral do fascista Mario Ruini, morto
três dias antes. E pensar que eles foram até lá quase como se fosse uma alegre
excursão, como se vai a uma festa! Até levaram de Bolonha um séquito de
esposas e namoradas. Ele foi acompanhado de Rina e da irmã dela. Dois
camaradas, de 22 e 19 anos, morreram. Ele foi ferido por um disparo de
revólver no tornozelo. À noite, em represália, incendiaram primeiro a Câmara
do Trabalho de Módena e, em seguida, a de Bolonha. A polícia não se
mexeu.
Agora Giolitti pôs na cabeça que vai desarmar os fascistas. Mandou um
novo governador para a província de Bolonha, Cesare Mori, que já se
destacou pela dura repressão à bandidagem na Sicília e às agitações
dannunzianas em Roma. Mori, em seu primeiro ato, proibiu a circulação de
caminhões na província de sábado à tarde até domingo à noite, o período em
que as expedições saem. Tanto que, para a expedição a Pieve di Cento, o
motivo para a recente prisão de Arpinati, eles tiveram de estacionar os
caminhões nos pátios das fazendas e pegar os rapazes em campo aberto.
Não é assim que Mori vai detê-los. Não é com proibições de circulação
que aqueles velhos políticos mumificados, sem sangue nas veias, destruirão
seu ímpeto. Claro, de vez em quando algo dá errado. Em Pieve, uma pobre
coitada, uma operária — dizem que se chama Angelina — foi atingida por
engano, bem na cara, por um tiro de revólver enquanto fechava uma janela.
Mas Leandro Arpinati não estava em Pieve di Cento, e a reação do Fascio
di Combattimento bolonhês à prisão do seu chefe foi impulsiva. Além disso,
muitos partidos que os apoiam expressaram solidariedade a Leandro Arpinati,
o homem que deteve os bolcheviques em Bolonha. A Confederação do
Comércio e da Indústria até ameaçou o fechamento de lojas em protesto
contra a sua prisão.
Arpinati é solto pela quinta vez em 17 de março à noite. No Il Resto del
Carlino, principal jornal da cidade, lê-se que, no seu retorno a Bolonha, um
“mar de gente” o acolheu como herói e o levou até a Piazza Nettuno. O
relatório do chefe de polícia fala de um cortejo com cerca de 3 mil pessoas.
Nos tempos atuais, as coisas avançam rapidamente: hoje se é preso, amanhã
se sai triunfante.
Benito Mussolini
Milão, 23-27 de março de 1921

São 23h. Para os burgueses bem-comportados e trabalhadores de Milão, é


quase hora de ir dormir. Este ano, a Páscoa cai cedo, no último domingo de
março, mas amanhã é somente quinta-feira, ainda se trabalha.
No seu edifício no Corso Venezia, após um jantar leve, Margherita Sarfatti
está tomando chá de erva-doce, hibisco e valeriana na companhia de alguns
amigos. Erva-doce é recomendada para ajudar na digestão; a valeriana, para o
sono; as propriedades benéficas do hibisco ninguém se lembra mais.
De repente, a xícara de porcelana do conjunto de chá chinês treme sobre o
pires; a massa vitrificada de granulação finíssima racha. Após uma fração de
segundo, o estrondo segue o deslocamento de ar: os vidros das grandes
portas-balcão que dão para a rua reverberam, parece que o edifício vai se
partir desde os alicerces.
Todos correm para a janela; porém, lá fora, está tudo deserto, em silêncio.
Mais dois minutos e a rua é tomada por uma multidão em fuga. Fogem pelo
Corso Venezia rumo ao Centro.
De vez em quando, alguém se vira, mas sem interromper a corrida, e
gesticula para trás, no vazio, na direção do horror de onde partiu. Mas
ninguém grita, nem uma voz sequer: qualquer que seja a causa, o horror deles
é mudo. Uma turba de fantasmas afônicos e ensandecidos irrompe na noite de
Milão.
O espetáculo no Kursaal Diana começara com grande atraso por causa da
demissão de um músico da orquestra, que foi readmitido devido ao protesto
dos colegas. Seria a décima quinta e última apresentação de Mazurka azul de
Franz Lehár.
O público burguês adora a opereta, sua tramas simples e inverossímeis, seu
gosto pela paródia, suas cenas suntuosas, a vivacidade da música, o prazer
imediato e, sobretudo, adora a onipresença quase maníaca das danças em
coreografias de dez, doze, às vezes dezesseis bailarinos, que reevocam a
alegria despreocupada de histórias sentimentais ambientadas na boa
sociedade do fim do século. “Meu amigo, vista-se alinhado, fique elegante,
caiu a noite caprichosa...” Senhoras e senhores, eis aqui os prazeres da vida
antes da guerra mundial.
O populacho também lota de bom grado a sala do círculo recreativo, lúdico
e artístico do Kursaal Diana. Esta noite, porém, estava em cena a mazurca —
amadíssima pelos pobres —, aquela dança com volteios de compasso ternário
dos camponeses poloneses, muito semelhante à valsa vienense, mas com um
ritmo mais moderado e movimentos muito mais secos, acentuados por uma
batida com o salto; aquela dança desenfreada e graciosa a ser bailada por
casais dispostos em um círculo, o círculo mágico das antigas danças
primitivas, o símbolo da união e da força de pequenas, corajosas
comunidades de mulheres e homens que, à margem da floresta escura,
dançam em uma minúscula poça de luz circundada pelas trevas infinitas.
Dizem que a bomba explodiu no fim do primeiro ato.
Deve ter sido colocada perto da entrada dos artistas, no lado da Via
Mascagni, porque, naquele ponto, a rua está enterrada debaixo de destroços e,
através do que restou das estruturas das janelas, avista-se o palco coberto de
cadáveres mutilados dos músicos da orquestra. As patrulhas da guarda real
estão desocupando a rua até a altura da Via Melzo.
Diante da entrada, em parte fechada pelas portas abaixadas, um pequeno
grupo de bersaglieri, enviado pela chefatura de polícia, prepara um bloqueio
posicionando-se em arco. O toque das cornetas dos bombeiros ressoa em toda
a área enquanto uma equipe de cerca de trinta homens apaga as chamas com
o caminhão dos bombeiros. A cada vez que um grupo de maqueiros surge dos
escombros, a multidão, que correu para a rua vinda do Corso Buenos Aires,
acompanha com um murmúrio de angústia a aparição do corpo mutilado.
O ambulatório de Porta Venezia, ali perto, já está repleto de mortos ou de
feridos graves. Os outros são enviados em ambulâncias dos bombeiros para
locais de atendimento médico mais distantes, muitos são medicados nas casas
dos moradores do bairro, que, comovidos pela tragédia, os recebem. Na
entrada do que resta do teatro, os parentes sobreviventes uivam de dor como
lobos na noite de Milão, os jornalistas anotam minuciosamente o estado
dilacerado dos corpos para os jornais da manhã: pouco depois do último
degrau, perto do camarote no 8, jaz um pedaço de calota craniana coberto de
longos cabelos femininos; no camarote no 10, entre entulhos, fragmentos de
vidro e ossos, um fino braço feminino ainda oculto pela manga de uma
camisa de seda; entre o camarote no 13 e o camarote de boca, o tronco nu de
uma menina.
Os anarquistas. Não há dúvida, isso é obra deles. Errico Malatesta, seu
velho chefe histórico, encarcerado em Milão, protesta há dias fazendo greve
de fome contra sua prisão sem motivo e há dias dispositivos de pequeno
calibre explodem por toda parte. Um dos sobreviventes afirma que viu um
anarquista atirar a bomba no camarote. É quase certamente uma bobagem,
mas, certamente também, essa é uma obra deles.
Benito Mussolini conhece os anarquistas. E também conhece muito bem
aquele lugar: esteve lá várias vezes para encontrar o chefe de polícia Gasti,
que mora em um apartamento em cima do hotel Diana Majestic, ao lado do
teatro. É provável que fosse ele quem os perpetradores do atentado queriam
atingir.
Um grupo de fascistas atraídos até ali pela explosão avista o Chefe na
multidão. Reúnem-se à sua volta manifestando intenções imediatas de
vingança. Competem em audácia vingativa: a sede do Avanti!; a sede da
União Sindical; a sede do Umanità Nova, a folha anarquista dirigida por
Malatesta. Os objetivos são sempre os mesmos, o ódio quase sempre é
desprovido de criatividade.
Mussolini não os desencoraja, mas não os incita. Partam eles em
represália, ele permanece na contemplação da cena da tragédia. Sozinho,
anônimo, no meio da multidão. Enterra o chapéu na cabeça. Esta bomba-
ruína muda tudo, denota o fim de um período da vida política da Itália. Esta
bomba providencial marca um novo início.
Os fascistas são jovens, não têm história — foi o que ele escreveu no Il
Popolo d’Italia logo naquela manhã —, ou talvez tenham história demais.
Entretanto, há dias em que os acontecimentos provocam o arrepio da
conspiração cósmica. Como se um deus sanguinário e idiota escolhesse com
uma ferocidade perfeita no calendário do século as datas do destino; exatos
dois anos antes, neste mesmo dia, ele fundou os Fasci di Combattimento.
Então eram poucos, agora são muitos. Mas esta carnificina é o passado, a eles
pertence a carnificina do futuro.
O fascismo não é uma igreja, é uma academia de ginástica; não é um
partido, é um movimento; não é um programa, é uma paixão. O fascismo é a
nova força. Trata-se, agora, de dirigir o olhar até o fundo do abismo, de
destacar a qualidade certa da luz no espectro óptico da violência. Uma coisa
deve mostrar-se óbvia para o olho que se alinha à mira da arma, e Benito
Mussolini, o Fundador, escreve claramente no seu jornal: os fascistas surram,
atiram, incendeiam, mas não colocam bombas em teatros. Os fascistas lutam
em campo aberto contra os socialistas, mas nunca fariam mal ao público da
opereta, às pessoas de bem e indefesas que proporcionam a si mesmas uma
noite de lazer com a Mazurka azul; os fascistas são guerreiros, não
perpetradores de massacre. Os massacres são a violência tenebrosa dos
outros, dos anarquistas, dos comunistas. A violência fascista é luz, seu
comprimento de onda vibra na faixa do amarelo, do laranja, do vermelho, não
no ponto cego do preto; seu fenômeno de guerra é a antítese do terrorismo.
Mais do que isso: a guerra do fascismo é a guerra contra o terrorismo.
O artigo do dia seguinte já está pronto. E também o de dois dias depois. A
partir de amanhã, nos candidatamos a governar a nação.

***

O cortejo fúnebre acontece na segunda-feira de Páscoa. Passaram cinco


dias desde o massacre — cinco dias e cinco noites em que os cadáveres
ficaram nas celas funerárias —, porque não houve entendimento nem mesmo
diante da morte em massa.
A junta socialista de Milão logo se ofereceu para providenciar os funerais a
expensa da prefeitura, mas as delegações de muitas associações da cidade
opuseram-se à participação dos socialistas, considerados apoiadores dos
culpados. As investigações, como previsto, logo identificaram os
responsáveis entre os militantes anarquistas da extrema esquerda. Além disso,
em Turim e Milão, a facção comunista não condenou com clareza o
massacre. Por isso, após longas negociações, o nó foi desatado por Roma: por
meio do governador da província, foi decretado que fossem funerais de
Estado. Somente a bandeira tricolor tremulará, enlutada. Nenhuma outra.
Os mortos são vinte; os feridos, oitenta; pelo menos trinta em estado grave.
No Cemitério Monumental de Milão, quinze sacerdotes da Santíssima
Trindade abençoam, do altar do Panteão, os corpos entre os sussurros dos
devotos. Em seguida, o clero desce entre os caixões e o cortejo fúnebre parte
rumo ao Duomo, aberto pelas evoluções de um pelotão de carabineiros
montados e do 3o Regimento de Cavalaria de Saboia, com as bandeiras das
lanças ao vento. Da cripta, sai em primeiro lugar o ataúde de Leontina Rossi,
uma menina de 5 anos, o pequeno receptáculo adornado por fitas brancas.
Logo atrás dos féretros, há uma densíssima coluna de 2 mil fascistas.
Entrecortados por coroas de flores, divididos em pelotões, marcham com
passo cadenciado. Conforme prometido, vingaram os mortos a seu modo,
atacando as sedes do Avanti! e do jornal anarquista. É a primeira vez que
Milão, cidade operária, cidade “vermelha”, assiste nas próprias ruas a um
desfile de camisas negras. Tudo dá a entender que não será a última. O
cortejo dos fascistas desfila e é observado com respeito. Ninguém protesta.
Nos dias anteriores, Mussolini insistiu para que os integrantes das suas
esquadras fossem adestrados pelo major Attilio Teruzzi, veterano recente das
campanhas militares na Cirenaica. Treinaram no degrau da calçada da Via
Monte di Pietà, em frente à sede dos Fasci di Combattimento. Afobados,
acostumados a caminhar em bandos, não foi fácil conseguir que descessem
aquele degrau formando fileiras cerradas. Agora, porém, enquanto avançam
pela Piazza del Duomo, marcham em coluna. Benito Mussolini segue à frente
das esquadras, de camisa negra, o rosto taciturno, a cabeça erguida. Ninguém
lembra que dez anos antes ele exaltara os anarquistas que lançaram bombas
entre os espectadores do Teatro Colón em Buenos Aires.
No adro do Duomo, o arcebispo Ratti, alinhado com o clero em
paramentos solenes, ministra absolvições e bênçãos aos cadáveres. Atrás
dele, com as portas escancaradas, o templo cristão reluz de misericórdia e
cânticos. À sua frente, nos degraus, diante das esquadras, Mussolini o
enfrenta, todo ossos e maxilar. Está, é óbvio, a pé, mas Margherita Sarfatti,
no meio da multidão, tem a impressão de que o Duce do fascismo está a
cavalo, como uma estátua equestre.
É horripilante a ideia dos monstros incubados pela sombra
das grandes cidades. Não é possível imaginar um coração
humano que delibere o assassinato de outros homens, nem
mesmo culpados de ter opiniões diferentes, desconhecidos,
que estão em um teatro para ganhar o pão e buscar um
modesto descanso do trabalho cotidiano e que, de súbito, são
arrastados para uma morte horrenda, dilacerados, destroçados
[...]. As teorias e as deduções de princípios que vão despertar
em almas tenebrosas ideias capazes de tais perversões não têm
direito à cidadania em lugar algum onde a vida tenha um
sentido e a civilização seja um tênue raio de luz sequer.

Luigi Albertini,
Corriere della Sera, 24 de março de 1921

Todos os jornais se indignam hoje com os horríveis


episódios da tragédia do Teatro Diana. Os horríveis episódios
da luta armada contra os camponeses nas regiões de Bolonha,
de Ferrara, do Polesine e da Lomellina são silenciados. A
Itália não sabe mais o que é justiça.

L’Ordine Nuovo, jornal comunista fundado por


Antonio Gramsci,
Turim, 24 de março de 1921

Sejam então feitos os funerais das vítimas. Ficaremos alheios a uma


manifestação à qual se atribui artificiosamente um caráter antiproletário.

Manifesto da seção milanesa do Partido Comunista da Itália

É necessário rebelar-se imediatamente para evitar uma


grande deformação da verdade [...] ou seja, estão tentando
enquadrar o bárbaro atentado na luta entre fascismo e
socialismo [...]. É necessário dizer logo que entre as duas
coisas não há relação alguma [...]. O massacre do Diana é uma
explosão de terrorismo.

Benito Mussolini,
Il Popolo d’Italia, 25 de março de 1921
Benito Mussolini
Bolonha-Ferrara, 3-4 de abril de 1921

“Neste resplandecer de cores está a vida.”


Está decidido: vai importunar Goethe para descrever aos leitores do Il
Popolo d’Italia a visão das flâmulas multicoloridas que o receberam em
Bolonha. Benito Mussolini, nos seus primeiros 37 anos de vida, nunca passou
por um momento como aquele, nem mesmo quando era o ídolo dos jovens
socialistas revolucionários: do lado de fora da estação, a esperá-lo, entre uma
selva de flâmulas e bandeiras organizada por Leandro Arpinati, há uma massa
de 20 mil fascistas.
Uma apoteose: os participantes das esquadras enfileirados e divididos em
quatro batalhões, mais um de ciclistas, patrulhas de motociclistas, a
Avanguardia Giovanile Fascista, o Grupo Feminino e as bandas musicais dos
Fasci di Combattimento. Quase todos de farda, camisa negra fascista ou
verde do Exército; só ele e Arpinati à paisana; ele com uma capa de chuva
bege por cima de um suéter de lã preto porque ainda está convalescendo do
acidente aéreo, Arpinati em calça de flanela e camisa. Pareciam dois reis que
se distinguem da multidão de súditos exibindo uma nobreza de loja de
departamentos.
Ao som da fanfarra que entoa marchas militares, o cortejo atravessa toda a
cidade e desfila sob o Palazzo d’Accursio no mesmo dia em que o
governador da província anunciou a dissolução da administração socialista da
cidade após o inquérito sobre a matança de 21 de novembro.
Em seguida, na frente da igreja de São Petrônio, as esquadras da Juventude
desfilam diante do carro conversível no qual o Duce do fascismo, em pé
sobre o banco do carona, ereto, as passa em revista, as abençoa com a
saudação romana, o braço esticado, a palma da mão virada para o chão, os
dedos alinhados, o punho aberto. Do torreão do Palazzo del Podestà, descem
os toques dos sinos. Um autêntico triunfo imperial. Inimaginável, em
Bolonha, apenas um ano antes, uma tal ruína do poder “vermelho”.
Bolonha aclama Mussolini como um comandante, mas a cidade não é sua.
Bolonha é de Arpinati, de Dino Grandi, de outros “chefes” que Mussolini
nem sequer conhece. A recepção triunfal reservada ao hóspede também é
uma demonstração de poder. O hóspede não gerou aquela força, só veio
seduzi-la. Antes da noite de amanhã, com seu corpo grande e peludo, deverá
tê-la envolvida, possuída. Em Bolonha, a grande mãe, a abelha-rainha, ele
não é o pai do fascismo, é apenas seu zangão.
A Emília-Romanha, neste momento, é a força proeminente do movimento:
Bolonha conta com 5.130 afiliados; Ferrara, 7 mil; Milão, apenas 6 mil.
Diante do zangão ereto no automóvel, desfilam as flâmulas de 117 Fasci di
Combattimento emilianos, ao passo que, na Lombardia, nem chegam a 100. É
uma força fora de controle: a violência das esquadras no campo não tolera
freios, os agressores respondem somente aos homens que lideram os ataques,
os administradores dos Fasci di Combattimento locais se negam a entregar ao
Comitê Central de Milão os enormes financiamentos recebidos dos
proprietários rurais.
E agora, em Bolonha, tem esse Dino Grandi, a estrela em ascensão, a
cabeça pensante do grupo, alguém que, em poucos meses, passou dos liberais
aos republicanos aos fascistas, só se afiliou depois dos acontecimentos do
Palazzo d’Accursio e revelou a um amigo jornalista que tem horror a “ser
considerado apenas um fascista e nada mais”. Mas é um radical desde
sempre, intervencionista, capitão dos alpinos, condecorado por bravura,
formou-se em Direito antes mesmo de ser dispensado do Exército, logo se
tornou diretor do L’Assalto e entrou imediatamente para o conselho diretor. A
cabeça política do fascismo bolonhês é ele: professa uma mistura de
romantismo revolucionário, sindicalismo nacionalista e dannunzianismo de
segunda mão. Identifica fascismo e fiumanismo, afirma querer redimir as
massas camponesas do socialismo distribuindo para elas a terra em nome da
nação e, enquanto isso, aceita o dinheiro dos proprietários rurais. Uma cabeça
confusa, mas perspicaz, um cérebro traiçoeiro. Será necessário acertar as
contas com ele.
E não será fácil, porque Mussolini foi a Bolonha fazer com que eles
engulam dois sapos: a moderação da violência e a aliança eleitoral com
Giolitti. Deve convencer esses rapazes ferozes que idolatram D’Annunzio a
se aliar com o homem que disparou canhões contra ele, deve convencê-los de
que, para expurgar a sífilis de um Parlamento cheio de velhos mentecaptos,
precisam aliar-se com as putas mais rodadas do prostíbulo romano, deve
sobretudo convencê-los a pôr um freio aos orgasmos proporcionados pelas
sevícias aos comunistas. Deve convencer a juventude de que, para salvar a
pureza, precisam ir para a cama com a puta velha.
A reunião decisiva acontece no Teatro Comunale, o mesmo lugar onde
nem dois anos antes os socialistas italianos, arrebatados pela exaltação,
abraçaram o projeto revolucionário bolchevique.
A manhã começa da melhor maneira possível: o chefe que veio de Milão é
precedido pelo anúncio de que, em 5 de abril, após meses de gelo, encontrará
D’Annunzio em Gardone, e o dannunziano Dino Grandi o saúda com uma
autêntica bajulação:
“Saúdo em Benito Mussolini o primeiro fascista da Itália, o homem só, o
homem de ferro que nunca se dobra, que sempre permaneceu só entre todos,
só contra todos, entre o desprezo e a indolência e a aparente negação da
história, combatendo, general sem exército, a mais trágica e iníqua batalha.
Ele volta hoje para o nosso seio nesta velha Bolonha purificada, de onde foi
expulso por vontade dos socialistas, uma congregação de histriões sem pátria.
Ele retorna hoje Duce, triunfante.”
Aí está um cenário, e, quando há um cenário, ele é seu. Como sempre, os
fundamentos do teatro — palco, cortina, urdimento, público, plateia —
exaltam Benito Mussolini. O elogio introdutório de Grandi permite que ele
comece por onde tudo começa: por si mesmo. Estilo seco, nervoso, frases
cortadas em períodos de uma só oração e, diante de cada uma delas, a
bandeira hasteada de uma reiteração do eu: quando a guerra acabou, eu senti
que minha tarefa não havia terminado; quando fomos derrotados nas eleições
de 1919, eu, todo orgulhoso dos meus 4 mil votos, disse que a batalha
continuava; eu às vezes sozinho, eu que reivindico a paternidade desta minha
criatura tão transbordante de vida, eu posso sentir que o movimento já foi
além dos modestos limites por mim atribuídos a ele.
Quando são abordados os temas da violência e das eleições, chega a parte
mais difícil. Aqui se deve empregar ao mesmo tempo duas linguagens
diferentes: “Precisamos avançar precedidos por uma coluna de fogo”,
proclama o Duce aos seus guerreiros. Todavia, pouco depois, fala o político:
“Mas digo logo que é imprescindível manter na violência inerente do
fascismo uma linha, um estilo claramente aristocrático ou, se preferirem,
claramente cirúrgico.”
Agora é a vez das eleições. O tribuno então se torna poeta. Mussolini fala
de “uma Câmara velha e, pior do que velha, deteriorada e apodrecida”; de
uma “cansadíssima semitragédia de homens usados e desgastados e, pior
ainda, esgotados”, fala de eleições que varrerão para longe os velhos homens
da velha Itália. Para que engulam a aliança com Giolitti, o mais velho e
esgotado de todos, Mussolini passa do eu ao vocês e usa o trunfo de
D’Annunzio: “Vocês não sentem que o timão passa em uma transição
espontânea de Giovanni Giolitti, o velho neutralista de 1915, para Gabriele
D’Annunzio, que é um homem novo!?” Aplausos prolongados, gritos de
“viva D’Annunzio!”. Missão cumprida: Bolonha foi seduzida.
No fim do discurso, todos de pé, uma longa ovação, os fascistas desfilam
novamente diante do seu “duce” que veio de Milão. À noite, a manifestação
continua à luz de tochas, velas e lâmpadas tricolores.

***

Se possível, o dia seguinte, em Ferrara, é ainda melhor. Aqui, em vez de


Arpinati, quem recebe Mussolini é Italo Balbo e os fascistas que o aclamam;
em vez de 10 mil, são 20 mil. Aqui não precisa nem se dar o trabalho de os
convencer a aceitar o acordo eleitoral: os fascistas ferrarenses, nos bastidores,
pedem a Mussolini a honra de poder lançá-lo como candidato em sua
província com os grandes proprietários de terras. Aquele que todos começam
a chamar de “Duce” do fascismo chegou à estação de Ferrara acompanhado
por dois homens que, nem dez anos antes, tinham sido chefes da incendiária e
socialista Câmara do Trabalho local — Umberto Pasella e Michele Bianchi
—, e que agora estão do mesmo lado do que Vico Mantovani, o reacionário
chefe da Agrária contra o qual, antes da guerra, eles atiçavam os camponeses.
Todavia, a esta altura, nestas paragens, Italo Balbo, com a violência
sistemática e a promessa de redistribuir a terra, embaralhou as cartas. As ligas
camponesas socialistas começam até a passar em bloco para os sindicatos
fascistas. A primeira foi a de San Bartolomeo in Bosco.
Mais do que orgulhoso, Balbo parece divertido pelo seu triunfo. Com os
cabelos encaracolados, escandalosamente compridos e levantados com o
pente na nuca para que pareçam ainda mais volumosos, empunhando a
bengala pela qual é famoso, anda desconjuntado, rindo ao lado de Mussolini,
calvo, taciturno, empertigado. No entanto, se algum admirador desastrado os
atrapalha, Balbo desobstrui o caminho com duas bordoadas raivosas. Em
seguida, sem rancor, sem perder o bom humor, continua a caminhar e não se
vira para olhar quem foi surrado.
“Não dou a mínima.” De fato, Balbo parece a encarnação do lema
dannunziano, agora adotado pelos fascistas. Transmite mesmo a impressão de
que a vida dos outros não lhe interessa, mas que também, no fim das contas,
nem mesmo a própria vida é importante.
O palco está montado no gramado da Marfisa, ao lado da residência
construída no século XVI por Francisco d’Este para a filha. Atrás do estrado,
tremulam setenta bandeiras socialistas arrancadas do inimigo. Em frente ao
palco, uma multidão imensa. Sobre o tablado, antes de tomar a palavra,
Mussolini tem um instante de perplexidade:
“Todos são gente sua?”, sussurra para Balbo. O espancador da Romanha ri
zombeteiro. Sim, são todos gente sua.
À noite, pós-banquetes, vão de carro com Dino Grandi rumo a Gardone,
onde D’Annunzio os espera. Balbo, como de costume, bebeu muito. A cabeça
cacheada balança para a direita e para a esquerda, e acaba se apoiando no
ombro do Duce. O Duce, paciente, aguenta.
A reunião de hoje em Bolonha celebra um ano de batalhas
fascistas. É a consagração de uma vitória. É a preparação para
outras batalhas e para outras vitórias. O fascismo se difunde
porque carrega em si os germes da vida, não os da dissolução.
É um movimento que não pode fracassar antes de ter
alcançado sua meta. E não fracassará.
“Neste resplandecer de cores está a vida”, diz o velho
Goethe diante do espetáculo maravilhoso de um arco-íris entre
o monte e o mar [...].

Benito Mussolini,
Il Popolo d’Italia, 3 de abril de 1921

Caluniavam-nos, não queriam nos compreender e, por mais que se possa


deplorar a violência, para fincar nossas ideias nos cérebros refratários,
tínhamos de plantá-las ao som de bordoadas.

Do discurso de Benito Mussolini no Teatro Comunale de


Bolonha,
3 de abril de 1921

Meu caro Balbo, mais um fervoroso agradecimento [...]. Vivi horas de


comoção indescritível. Guardarei uma grata recordação por toda a vida.

Benito Mussolini, carta particular a Italo Balbo, 6 de abril


de 1921
Benito Mussolini
23 abril — maio de 1921

“A chapa não é para ser comentada, é para ser votada.”


O último obstáculo também caiu. Das colunas do Corriere della Sera, o
senador Luigi Albertini, proprietário e diretor do jornal da burguesia liberal,
convida a todos para taparem o nariz diante da malcheirosa aliança entre
liberais e fascistas. Benito Mussolini finalmente lê ali o salto do fascismo do
sangue sobre a grama dos fossos para o plenário parlamentar.
Até dois dias antes, Albertini havia tenazmente oferecido seu veto à
entrada dos fascistas nos “Blocchi nazionali”, a união de todos os partidos
antibolcheviques tradicionais com os quais Giolitti pretende reforçar o
próprio poder. Agora que Albertini também cedeu, só o La Stampa de Turim,
de propriedade e sob a direção de Frassati, outro senador liberal, continua
afirmando que os liberais não podem, sem se suicidar como partido, se
confundir moralmente com quem exalta a violência. Mas Frassati já não tem
mais relevância.
O que importa é que já em 7 de abril, no mesmo dia da dissolução das
Câmaras, ao voltar das reuniões de Bolonha e Ferrara, e também da
obsequiosa visita a D’Annunzio, o Comitê Central dos Fasci di
Combattimento, incluindo Dino Grandi, votou a favor da adesão aos
“Blocchi” de Giolitti e, na noite seguinte, a assembleia do Fascio di
Combattimento milanês a confirmou. O que importa é o arranjo. O diretor do
Il Popolo d’Italia escreveu claramente: a vida, para quem não quer ficar na
torre de marfim de sempre, impõe certos contatos, certas transações e,
digamos a terrível palavra, certos arranjos. Páginas de arranjos fazem parte da
vida de todos os grandes homens, e não são páginas vergonhosas: são páginas
de sabedoria. O arranjo é importante, o resto é alegria de náufragos.
Giolitti tem um plano: conter a ilegalidade fascista, considerada um
fenômeno passageiro, prendendo-a no arco constitucional. Mussolini tem um
contraplano: suscitar a desordem para mostrar que só ele pode restabelecer a
ordem. Soltar as esquadras com uma das mãos para em seguida contê-las com
a outra. Para fazer isso, porém, duas batalhas devem ser travadas em duas
frentes diferentes, nas quais os aliados e os inimigos trocam de lugar. É vital
um sortilégio hipnótico que permita fazer e desfazer, afirmar uma ideia e seu
oposto, convencer a si mesmo de maneira consciente da verdade de algo
mesmo conhecendo de maneira inconsciente sua falsidade; sobretudo, é
preciso ser capaz de esquecer e de esquecer de ter esquecido. Em suma, é
necessário duplipensar. Assim, ficamos sempre na ortodoxia.
Os integrantes das esquadras, nem é preciso dizer, não apoiam seu jogo.
São violentamente antiparlamentares. Sabem que se impuseram fora do
Parlamento e hoje não dão a mínima se têm dez ou cinquenta deputados
fascistas. Estão certos: todo o fascismo nasceu como movimento
antiparlamentar. Mas o Duce os tranquiliza: nada mudou, a marcha continua
ininterrupta, com a mesma meta. Só que agora vão entrar para o Parlamento
pregando contra o Parlamento.
No entanto, os problemas não terminam por aí. Deve-se pensar nos
legionários de D’Annunzio, que são contrários a Giolitti. Como sair dessa?
Fácil: os fascistas vão se aliar a Giolitti, mas afirmando que seus Blocchi se
opõem a ele — como o próprio Mussolini escreveu em 26 de abril. Além
disso, o Duce vai declarar a poucos dias da eleição que Giolitti não pode ter a
pretensão de governar infinitamente porque está velho e também
ultrapassado. Duplipensar, é essencial sempre duplipensar.
Os eleitores moderados, por sua vez mestres do duplipensar, com Giolitti à
frente, ficam ao mesmo tempo tranquilizados e horrorizados com as
violências fascistas. Não se pode culpá-los: aqueles canibais de camisas
negras das colinas de Pisa mataram, em 13 de abril, a tiros de revólver, no
pátio de uma escola primária, Carlo Cammeo, ativista do sindicato dos
professores primários, diante dos olhos das meninas que, com o avental
branco e a fita cor-de-rosa, formavam confiantes e disciplinadas uma fila
dupla atrás do professor. Poucos dias depois, na região de Arezzo, as
esquadras florentinas, em represália ao assassinato de três camaradas durante
uma expedição punitiva, mataram nove pessoas indefesas após improvisarem
um tribunal na praça de aldeia de Foiano: mandaram os camponeses
comunistas se ajoelharem, fizeram um interrogatório e atiraram em seus
rostos. Diante dessa ferocidade inédita, os tradicionalistas de Giolitti
desapareceram.
Então, um segundo lance é crucial. Mussolini sabe: não se deve permitir
que a opinião pública, perplexa, equipare a violência fascista à violência dos
“vermelhos”. Então, serve a tática das “duchas escocesas”. Inflamar com uma
mão e resfriar com a outra: enquanto o Fundador dos Fasci di Combattimento
exalta as represálias violentas contra a barbárie socialista, o diretor do Il
Popolo d’Italia se posiciona contra a violência. A violência fascista, escreve
em 27 de abril, é “cavalheiresca”, o fascismo tem “noção de limite”, ao
recolocar na linha o socialismo maximalista, deu novamente à Itália “a noção
do que é sabedoria e a noção do que é loucura”. E avante com o duplipensar.
A violência, vejam bem, tem isto de bom: é veneno e, ao mesmo tempo,
antídoto. Nela, a doença e o remédio são a mesma substância administrada
em doses diferentes. Afinal, não é verdade que Pasteur nos vacinou contra a
raiva dos cães injetando medula espinhal de coelhos infectados?
Durante a campanha eleitoral, Mussolini aparece pouquíssimo nas praças.
Participa de um comício em Milão em 3 de maio só para marcar terreno,
voltando ao lugar onde tudo começou. Na Piazza Belgioioso, realiza o
capricho de falar da sacada do edifício privado do príncipe que, dois anos
antes, nem quis recebê-lo.
Depois, participa apenas de um segundo comício em Verona e de um
terceiro em Mortara. Mais nenhum. Vai à Lomellina porque, junto à Toscana,
à província de Ferrara e à província de Cremona, onde Farinacci age a todo
vapor, essa é a região na qual a atuação das esquadras cresce. O chefe é
Cesare Forni, filho de um dos arrendatários mais ricos da região,
cocainômano devasso na juventude e, mais tarde, capitão da artilharia com
sete medalhas por bravura durante a guerra. Alto, robusto, louro, olhos
marcados por olheiras perenes, generoso e colérico, entre o sábado e o
domingo do segundo fim de semana de abril, Forni guiou pessoalmente a
devastação da Sociedade de Mútuo Socorro de Bigli e das sedes socialistas de
Garlasco, Lomello, Tromello, San Giorgio, Valle Lomellina e Ottobiano.
Tudo destruído em 48 horas.
Mussolini, porém, parece mais interessado em uma outra lenda local da
cruzada antibolchevique: a condessa Giulia. Nascida de família pobre, loura,
bonita, os seios fartos de plebeia saudável, Giulia Mattavelli se casou com o
conde Cesare Carminati Brambilla, pálido, desconjuntado, excêntrico,
acometido por um ricto contínuo no canto da boca, errante, vagabundo,
apático, perverso, oficial de cavalaria e agora proprietário de terras. Os dois,
juntos, tendo contratado diversos homens de armas, aterrorizam os
camponeses do seu feudo. Até montaram nas torres do seu solar — onde com
frequência se refugiam os integrantes das esquadras milanesas procurados
pela polícia — potentes refletores que, à noite, varrem os campos. Diz-se que
a condessa participa pessoalmente das expedições sobre a sela do próprio
cavalo. Diz-se também que Giulia, amazona guerreira e mulher de lupanar,
entrega-se de bom grado como prêmio para os mais úteis ou os mais ferozes.
Diz-se que o conde, homem amargurado, entediado e ardiloso, não se mete,
ou se aproveita de tudo isso para fazer a própria carreira.
Mussolini chega em Mortara no domingo, 8 de maio, na companhia de
Michele Bianchi e Arnaldo, seu irmão, a exata uma semana do dia das
eleições. Não é a primeira vez que ele visita a cidadezinha da região de Pavia:
esteve lá na primavera de 1914, como diretor do Avanti!, para inaugurar a
Casa do Povo, agora destruída pelas suas esquadras.
O Duce do fascismo deixa entusiasmada a praça da prefeitura repleta de
camisas negras. Declara estar comovido por aquela acolhida. Após descer do
palco, manifesta a intenção de voltar a Milão logo após o banquete em sua
homenagem. Os festejos culminam na entrega de uma medalha. Quem a
entrega é a condessa Brambilla. Benito Mussolini decide, então, ficar ali para
a “Veglione Tricolore Italianissimo”. Dançam. Ele e ela deixam as danças e
rumam para o hotel Tre Re, quarto no 5.
No dia seguinte, em Mortara, correm boatos de que a camareira encontrou
o quarto devastado. Rastros de sexo por toda parte. Parece que, em algum
lugar, havia até uma mancha de sangue.
A chapa não é para ser comentada, é para ser votada.
Mesmo que, ao passar os olhos pela lista de nomes, o espírito
crítico, despertando simpatias e antipatias, se dissocie. Mas o
bloco é feito para associar [...]. A chapa, assim como está, é
uma “posição” a partir da qual é necessário atacar o inimigo
em comum socialista.

“Os candidatos do Bloco”,


Corriere della Sera, 23 de abril de 1921

Os liberais não podem, sem se suicidar como um todo


enquanto partido, confundir-se moralmente com quem [como
os fascistas] afirma, exalta e pratica a violência como
princípio de vida e de luta social.

“Aos liberais”,
La Stampa, 29 de abril de 1921

Nós não pertencemos à turba de virgens empoadas e solteironas que


sempre temem perder a virgindade (privilégio) (e — intimamente — é o que
tanto desejam!); nós, fascistas, não pertencemos àqueles que têm um temor
constante de se contaminar, de se diminuir, de embaçar, mesmo que
minimamente, sua esplêndida e onanística isolation.

Benito Mussolini, discurso na assembleia do Fascio di


Combattimento milanês para justificar a aliança com os
liberais, 8 de abril de 1921

Aqui se trata do bom nome da Itália e, portanto, não é tolerável nenhuma


fraqueza. O que acontece em Bolzano não é digno de um país civilizado [...].
É necessária uma repressão exemplar. Todos aqueles que participaram da
abominável ação devem ser presos.

Giovanni Giolitti, aliado dos fascistas, telegrama à


delegacia geral de Bolzano após uma expedição de esquadras
fascistas, 27 de abril de 1921
Italo Balbo
abril-maio de 1921

Nas fotos que começam a imortalizar as ações fascistas na primavera de


1921, Italo Balbo é o único que ri. Mussolini exibe sempre sua já célebre
expressão sinistra e magnética com os olhos arregalados; todos os outros
chefes assumem ares com circunspectas poses marciais; Italo Balbo, por sua
vez, sempre mostra os dentes. Nem sempre é um sorriso maligno. Às vezes,
como na fotografia que retrata os integrantes da esquadra de Ferrara em pose
na frente da basílica de São Marcos em uma excursão a Veneza para
expugnar o bairro operário de Castello, é um sorriso jovem, benigno, com a
cabeça um pouco inclinada para trás e a bengala quase escondida sob os
trajes burgueses. A atmosfera na qual gravitam esses excursionistas cruéis é
tempestuosa, magnética, talvez até mesmo fatal, mas, no fundo,
despreocupada: Veneza, primavera de 1921 — Como se não houvesse
amanhã. Esta poderia ser a legenda da foto de recordação entre os pombos da
Piazza San Marco. Antes que a noite caia, alguém morrerá violentamente na
Salizada San Francesco, mas, de qualquer forma, quase dá vontade de se unir
ao passeio.
Da lenda de Balbo, não é possível subtrair essa despreocupada ferocidade.
Seja espontâneo ou astutamente alimentado, é patente seu gosto pelo
escárnio, pela fanfarronice típica de um rapaz rebelde e irredutível. Quando
Mori, o governador da província, proíbe o uso de bengalas, os integrantes da
esquadra de Ferrara usam como açoites bacalhaus secos segurados pelo rabo
e espalham o sal sobre as feridas das vítimas. Balbo, por sua vez, recomenda
que sejam administradas “surras com estilo”. Isso significa golpear os dois
lados da boca, ambas as articulações mandibulares, de modo a fraturar os
maxilares. Em meados de abril, para destruir a liga camponesa de Voltana,
perto de Ravena, os homens da “Celibano” pegam o trem. Enquanto tudo
pega fogo, o maquinista os espera. Quando o teto desmorona, voltam a subir
no vagão e dão o sinal de partida. O trem accelerato chega em Ferrara com
apenas meia hora de atraso.
É uma ferocidade despreocupada, mas sistemática e disciplinada. As ações
adotam sempre uma tática militar que baseia a superioridade de fogo na
possibilidade de concentração e deslocamento. Seu planejamento é científico,
rigoroso, mortífero. O sucesso do confronto não é deixado ao acaso, à
coragem dos combatentes, ao capricho das divindades da luta. De agora em
diante, quase não se corre mais o risco da derrota. A campanha da primavera,
no campo estratégico, desenvolve uma guerra de movimento. A tabela do seu
avanço segue etapas obrigatórias.
Já em 8 de abril, logo após a dissolução das Câmaras, é incendiada a
central de empregos de Jolanda e a administração é obrigada a renunciar.
Dois dias depois, quando Arturo Breviglieri, integrante das esquadras, é
morto durante uma expedição em Pontelagoscuro, seus camaradas ocupam
militarmente a cidadezinha, incendeiam a Câmara do Trabalho e obrigam os
socialistas a beijar as mãos do cadáver. Em 11 de abril, os homens de Balbo
atacam no Polesine a Câmara do Trabalho de Granzette e matam em casa, na
frente dos familiares, o tesoureiro Luigi Masin. No dia 14, uma esquadra com
uma centena de homens mantém Ferrara sitiada por dois dias, atacando a
Casa do Povo e o círculo dos ferroviários. No dia 15, em Roncodigà, durante
uma assembleia de integrantes da liga dos camponeses que passaram para o
sindicato fascista, Umberto Donati propõe o retorno à Câmara do Trabalho. É
assassinado ali mesmo. E prosseguem assim, destruindo as ligas de Bondeno,
Gaibanella, Ostellato e outras. Em poucos meses, em Ferrara, são destruídas
9 Câmaras do Trabalho, 1 cooperativa e 19 ligas camponesas. A Câmara do
Trabalho de Rovigo, na qual se formou Matteotti e cujos bens materiais já
foram aniquilados diversas vezes, cessa de existir em definitivo. É dissolvida.
A ruína socialista é vertical. La scintilla, o jornal socialista de Ferrara,
proclama: “Acreditam, senhores do Fascio di Combattimento e da Agrária,
que suas conquistas obtidas com tais sistemas poderão ter uma estabilidade
consistente? Ora, é de uma ingenuidade infantil acreditar que um edifício
político tão vasto possa em um instante ruir com o golpe de um porrete ou a
ameaça de um revólver.” Mas é isso o que acontece. A infância é infinita.
Em diversos lugares, as massas camponesas já rasgam as bandeiras
vermelhas e passam para os sindicatos fascistas; os muitos que ainda se
obstinam, tomados pelo desespero, ainda dão alguns tiros, matam animais e
cortam as raízes das parreiras. Matteotti continua a lutar pregando uma
submissão evangélica:
“Fiquem em suas casas; não respondam às provocações. Também o
silêncio, também a covardia são heroicos às vezes.”
Todos os outros líderes do movimento camponês assistem assustados à
rapidez e à amplitude da ruína. Uma espécie de paralisia psíquica os petrifica,
um grito de pânico assombra os campos, as rendições humilhantes são
incontáveis.
Os socialistas entregam as bandeiras sem lutar, aceitam pisar nelas em
cerimônias públicas, capitulam abertamente. Em Codrea, por exemplo, votam
pela resistência. No entanto, os numerosos integrantes de esquadras presentes
na reunião proletária surram o secretário diante da assembleia. Os
camponeses aderem ao Fascio di Combattimento durante a sessão.
O líder comunista Angelo Tasca, que decidiu há pouco em Livorno com
Gramsci e Togliatti a divisão do Partido Socialista e assiste pessoalmente a
algumas dessas destruições, tenta explicar o inexplicável. Os fascistas —
escreve — são quase todos Arditi ou ex-combatentes liderados por oficiais;
muitas vezes são transferidos, como acontece no front, e podem viver em
qualquer lugar. Os trabalhadores, por sua vez, estão ligados à terra onde,
durante longas lutas, realizaram conquistas admiráveis. Essa situação
proporciona ao inimigo total superioridade: do ataque em relação à defesa, da
guerra de movimento em relação à guerra de posição, da ilegalidade impune
em relação à legalidade escrupulosa, da facilidade da destruição em relação
ao cansaço da construção, de quem nada tem a perder em relação a quem
tudo tem a perder.
As Casas do Povo são o fruto de sacrifícios de três gerações; os
trabalhadores as amam e hesitam, instintivamente, em usá-las como se
fossem um simples recurso de guerra. Quando as chamas as devoram, o
coração deles fica dilacerado, sobrecarregado pelo desespero, ao passo que os
agressores — leves, alegres, insolentes — riem. Na luta entre o caminhão e a
Casa do Povo, o primeiro sempre vencerá. O formigueiro trabalhador ficará
sempre à mercê da legião.
Todavia, nesse colapso repentino resta algo misterioso. Os 63 municípios
da província de Rovigo, todos controlados pelos socialistas, são ocupados um
após o outro sem que jamais ocorra a seus cidadãos se unir para se opor ao
agressor. O Partido Socialista, que controlava a província por completo,
perde esse controle em um único inverno. Envoltos nesse mistério, vão votar
em 15 de maio.
Balbo ri. Das burlas das quais é mestre, dizem que também faz parte a
artimanha do óleo de rícino. Agarram um socialista indômito, enfiam um
funil na sua boca, obrigam-no a beber 1 litro de laxante. Amarram-no ao capô
do automóvel e circulam pela aldeia enquanto ele peida, se esgoela, caga nas
calças. Um remédio barato, sem derramamento de sangue, sem ameaça de
prisões. Impossível não rir.
E a tragicomédia também tem outras vantagens. Impede que a vítima se
torne um mártir porque a vergonha afasta o pesar: não é possível dedicar um
culto a um homem que caga nas calças.
O ridículo, por fim, tem um alto valor pedagógico. E, ainda por cima, é
duradouro, influencia o caráter. A merda, mais do que o sangue, se estende
sobre o futuro de uma nação. A ideia de vingança, se manchada de
excrementos, é transmitida por décadas, de geração em geração. Para ser
apagada, a vergonha do purgante, vista ou sofrida, exige nada menos do que
um apocalipse.
É indispensável que se chegue o quanto antes à formação regular e militar
das nossas forças. Que cada um, portanto, se ponha a trabalhar sem cessar
atividade. Em setembro próximo, os regimentos fascistas de Ferrara já devem
estar magnificamente ordenados em suas fileiras. Somente com um exército
disciplinado conquistaremos a vitória decisiva [...]. Para o comando das
esquadras de ação, as pessoas mais indicadas são os ex-oficiais, em especial
os Arditi e os da infantaria [...]. Quanto aos metralhadores, especifiquem o
conhecimento das metralhadoras austríacas e das metralhadoras de mão, bem
como das metralhadoras Fiat, Lewis e S. Etienne [...]

Federação dos Fasci di Combattimento de Ferrara, circular


secreta no 508, endereçada por Italo Balbo a todos os
secretários políticos, julho de 1921

Fiquem em casa; não respondam às provocações. Também


o silêncio, também a covardia são heroicos às vezes.

Apelo de Giacomo Matteotti aos camponeses do Vale


do Pó, em Critica sociale, no 7, 1921
Benito Mussolini
Milão, 16 de maio de 1921

Vênus, o planeta “terrestre”, o planeta gêmeo, muito semelhante à Terra


em dimensão e massa, o corpo celeste mais luminoso no céu noturno, com
exceção da Lua, pode ser visto brilhando somente por algumas horas e
somente após o pôr do sol ou antes da alvorada, quando a feroz luminosidade
solar que dá e ao mesmo tempo tira a sua luz, mantendo-o na corrente curta
da própria órbita estreita, se extingue. Isso é o que geralmente acontece. Hoje,
entretanto, o amarelo esbranquiçado da estrela da noite começou a brilhar,
luminosíssimo, a oeste do horizonte, pelo menos duas horas antes do
crepúsculo.
A luminescência diurna de Vênus é um fenômeno quase tão raro quanto
um eclipse solar. Ao diretor do Il Popolo d’Italia, notoriamente supersticioso,
que a observa do seu escritório na Via Lovanio, alguns redatores explicaram
que a eclíptica no horizonte é o fator fundamental para a visibilidade de
Vênus. Ao que parece, no Hemisfério Boreal, a inclinação máxima é a do pôr
do sol durante o equinócio de primavera. Mas a primavera já chegou faz
tempo e ele, mais do que na ciência, acredita no destino. Por isso, ficou pelo
menos uma hora na janela do novo escritório contemplando o astro que se
destaca no céu limpo, porém ainda iluminado por um sol baixo. Vênus, a
estrela da noite, também é conhecida desde a Antiguidade como “estrela da
manhã”. Trata-se de um sonho de bom augúrio. Não há dúvidas. O horóscopo
de Benito Mussolini está favorável.
Os dados que chegam do ministério do Interior são incontestáveis. Os
socialistas perdem, mas menos do que o esperado, conservando-se como o
primeiro partido com 25% dos votos, e boa parte do que perdem está sendo
ganho pelos comunistas, com 3%, ou pelos republicanos, que sobem para 2%.
Os populares se mantêm em 20% e os partidos do Blocco Nazionale crescem,
mas menos do que Giolitti esperava: democratas, liberais, nacionalistas e seus
aliados menores, somando todos os votos, mal chegarão a 47%. Portanto, não
pode haver dúvida alguma. Os vencedores dessas eleições de maio de 1921
são os fascistas.
Após ter negociado até o esgotamento com os emissários de Giolitti,
trabalhando como um escravo durante um mês, Cesare Rossi obteve oitenta
candidaturas fascistas nas chapas nacionais. Pelo menos quarenta deles irão
para o Parlamento, eleitos quase que em toda parte como cabeças de chapa.
Ainda são poucos, nada em relação às centenas de socialistas ou liberais,
mas, em muitos casos, são rapazes com menos de 30 anos, comandantes de
esquadras armadas até os dentes, uma novidade absoluta, uma força
literalmente explosiva, o fracasso total das velhas astúcias de Giolitti.
A campanha eleitoral terminou, assim como havia começado, no turbilhão
da violência, entre o sangue de novas vítimas e os fulgores dos incêndios. No
dia das eleições, houve confrontos mortais em Biella, Novara, Vigevano,
Mântua, Crema, Pádua, Lecce, Foggia, Siracusa. Vinte e nove mortos e 104
feridos em um único dia. Todavia, e também por esse motivo, os votos
afluíram para eles, de dezenas de milhares de novos simpatizantes seduzidos
por aquele sangue, de falanges cerradas de pequenos proprietários dispostas a
derramá-lo, e as urnas o purificaram, redimiram.
Giolitti, a velha raposa, o mago da chuva, a puta velha, queria domesticá-
los, mas acabou legalizando-os; queria usá-los para precipitar a queda dos
socialistas arrebentados por cassetetes e reforçar o próprio governo, mas terá
a ingovernabilidade de um Parlamento fragmentado em partidos
incompatíveis, em grupos dilacerados internamente por facções hostis e
vorazes. Em suma, a velha merda de sempre, cada vez mais densa, cada vez
mais merda.
A crise da democracia entra agora na sua fase mais aguda, a decadência
parlamentar é irreversível, uma estrela fixa, baixa no horizonte do céu do
equinócio. Na sua luz crepuscular, o jovem, pequeno, robusto Partido
Fascista começará sua vida parlamentar com a XXVI legislatura, a última da
decadência, preparando-se para lutar sozinho pela XXVII, que será a primeira
legislatura fascista.
E há também o seu triunfo pessoal. Benito Mussolini foi o cabeça de chapa
em Milão com 197 mil votos, o cabeça de chapa em Bolonha com 173 mil
votos. Terceiro entre os dez mais votados em nível nacional!
O sucesso é tal que, assim que recebeu a notícia, em um raríssimo ímpeto
de entusiasmo conjugal, o vencedor até abraçou a esposa Rachele, segurou-a
contra a porta da cozinha e, encarando-a como não era seu costume fazer,
advertiu-a comovido: “Rachele, lembre-se de que este será um dos períodos
mais bonitos da nossa vida.” A mulher, assustada pela profecia de uma
alegria estranha, sem saber como recebê-la em sua casa plebeia, abaixou o
olhar para o chão de granilito ocre e preto.
Agora, porém, sozinho, Benito Mussolini se afasta da janela, deixa a
estrela da noite ao seu pôr do sol e anda pelo cômodo enchendo-o com a
própria euforia. Os fantasmas a serem afugentados são muitos: o fantoche do
seu cadáver afogado no canal pelos 4 mil míseros votos de 1919; o traidor
expulso como um cão raivoso pelos companheiros em 1914; o emigrante
furioso que dorme embaixo das pontes na Suíça em 1908; o professorzinho
de escola primária que percorria 1,6 quilômetro desde a aldeia, andando com
os pés descalços sobre os trilhos do trem, segurando os sapatos sobre os
ombros para não gastar a sola; na raríssima luminescência diurna de Vênus,
reverbera até o espectro do menino que, muitos anos atrás, nos campos da
Romanha, em uma manhã clara de sol, as vinhas amarelas e as dornas já
prontas para a vindima, ouve soar no ar de setembro o sino de luto pela sua
avó.
O “deputado” Mussolini. Sua hora se aproxima, a hora de todos, a hora da
vingança. Ele venceu com o dinheiro dos proprietários rurais que esfomearam
sua infância, sob a égide de Giolitti, ao lado dos inimigos da sua gente, da sua
juventude. Mesmo assim, venceu.
Por um instante, olha com desconfiança, com rancor, para seu novo
escritório elegante. Mas a voz da Sarfatti está pronta para sussurrar no seu
ouvido:
“É preciso ser homem, a juventude semeia, a virilidade colhe.”
Afinal, a esta altura, ele já está chegando aos 40 anos, está quase calvo,
daqui a pouco não terá mais um fio sequer na cabeça, a semeadura tem seu
tempo, um tempo breve. É necessário ceifar, é necessário concluir, é
necessário vencer. E então voltar a vencer mais uma vez, porque o mundo
não tem piedade dos vencedores.
O deputado Mussolini se entrega sem mais freios à própria alegria
insolente. Tornou-se o homem que odiava quando menino.
Benito Mussolini
Roma, 21 de junho de 1921
Parlamento da Itália

O deputado Mussolini escolheu a última cadeira à direita, onde ninguém


antes dele havia ousado se sentar. Afastado de todos, lá no alto, solitário por
estar sempre de tocaia e vice-versa, parece, para quem o olha lá de baixo e da
bancada da esquerda, um abutre agachado em um penhasco. Hoje a ave
necrófaga, com a cabeça sem plumas, deverá pronunciar seu primeiro
discurso parlamentar.
No penhasco desdenhado por todos, montou com satisfação a própria casa.
Após um instante de irritação e constrangimento — quando, ao entrar pela
primeira vez no plenário de Montecitório, percebeu, quase com surpresa
infantil, que as cadeiras à esquerda, para as quais se dirigiu institivamente,
estavam todas ocupadas pelo desprezo dos ex-amigos socialistas, e as
cadeiras à direita, pela arrogância dos novos e desprezados amigos partidários
de Giolitti — subiu com prazer à última fileira.
O Parlamento, contudo, não o agrada. Ele revelou a um jornalista que o
plenário parece “cinza nas coisas e nas pessoas”. Quando ali falam, fazem o
contrário do que a normalidade exigiria: falam de baixo para cima, mas
deveria acontecer o contrário. A verticalidade errada faz tudo descambar para
fofocas inúteis. E os corredores... todos aqueles sussurros de passos perdidos,
aqueles colegas que o tratam com informalidade, com confiança melosa,
chegando até a tocá-lo — tapinhas nas costas, apertos de mão prolongados
—, aqueles burgueses nojentos que de dia se enfileiram resfolegantes,
capengando, atrás do fascismo e, à noite, nos salões, contam para as senhoras,
horrorizadas e empolgadas, sobre seu encontro com os fascistas, aqueles
selvagens antropófagos, os animais exóticos que Giolitti, o velho explorador
das selvas parlamentares, prometeu domesticar para o seu circo.
Mas Benito Mussolini está decidido a permanecer uma fera desconhecida.
Em Roma, nas primeiras semanas do seu mandato, fez pouquíssimos contatos
pessoais. Nenhuma amizade. Não é possível ter amigos, e ele não quer tê-los.
Por isso, nomeou como secretário pessoal Alessandro Chiavolini, o traidor, o
único redator que, em seu momento mais tenebroso, após a desastrosa derrota
eleitoral em 1919, quando o diretor do Il Popolo d’Italia também foi
processado pelo júri dos jornalistas lombardos, recusou-se a assinar a carta de
solidariedade. Não, nenhuma amizade, apenas submissão. O traidor
Chiavolini oferece mais garantias do que um falso amigo.
“Não me desagrada, caros colegas, iniciar meu discurso naquelas cadeiras
da extrema direita, onde, quando a quitanda da fera socialista triunfante tinha
um comércio em pleno andamento, ninguém mais ousava se sentar. Declaro
logo que, no meu discurso, defenderei teses reacionárias. O meu discurso será
antidemocrático e antissocialista.” Manifestações de aprovação à direita. “E,
quando digo antissocialista, quero dizer antigiolittiano.” Hilaridade geral.
Os deputados não se espantam com o ataque inesperado de Mussolini a
Giolitti, seu principal aliado eleitoral. Afinal, o fundador do Fasci di
Combattimento, já no dia seguinte às eleições, em uma entrevista bombástica
ao Il Giornale d’Italia, denunciou a aliança com Giolitti, frustrando qualquer
esperança deste em usá-lo para os seus jogos parlamentares. Logo ficou claro
que os fascistas levariam de imediato para o plenário de Montecitório os
sistemas da sua luta e não respeitariam ninguém, muito menos Giolitti, cujo
plano de domesticação fracassara. Dali em diante, jogariam com um novo
maço de cartas. Mussolini desdenhava a aposta e visava o banco. Nos
círculos políticos liberais e industriais, homens abonados e experientes se
arrependeram.
Mussolini dedica os trinta minutos iniciais do seu primeiro discurso
parlamentar a um duro ataque à política externa de Giolitti. Em um crescendo
de furor nacionalista, acusa-o de condescendência, de renunciar à
grandiosidade que é o destino da Itália. Reprova Giolitti por não ter protegido
a italianidade nas fronteiras orientais, pelo sacrifício da independência de
Montenegro. Nada foge a esse olhar orbital sobre o mundo, nem mesmo uma
referência aos problemas da difícil convivência interreligiosa na Palestina.
Giolitti já está liquidado, seu governo acabou de nascer, mas — todos o
sabem — tem poucos dias de vida.
O orador desce mais na sala de aula para que o ouçam melhor e passa
então a uma segunda panorâmica, de raio mais curto. Examina, uma de cada
vez, todas as forças parlamentares acomodadas no semicírculo lá embaixo.
Primeiro, os comunistas. O comunismo é uma doutrina que surge em épocas
de miséria e desespero, uma filosofia neoespiritualista que, como as ostras, é
agradável ao paladar, mas, depois, é difícil de digerir. Mussolini zomba,
caçoa, mas depois os acolhe paternalmente em um teatral senso de culpa:
“Conheço os comunistas. Conheço-os porque parte deles são meus filhos [...]
no sentido espiritual, que fique bem claro.”Riso geral tanto à direita quanto à
esquerda. Na vez dos socialistas, a tática do porrete e da cenoura se acentua.
Primeiro Mussolini os atrela às suas responsabilidades, depois faz distinções
— entre movimento operário e partido político, entre líderes de partido e
representantes sindicais — e, em seguida, faz promessas: “Escutem bem o
que estou dizendo. Quando vocês apresentarem a proposta para a jornada de
trabalho de oito horas, nós, fascistas, votaremos a favor.”
Por fim, chega a vez dos populares, representantes das massas católicas.
Também joga uma isca para eles: “A tradição latina e imperial de Roma é
hoje representada pelo catolicismo [...]. Ninguém fica em Roma sem uma
ideia universal, e a única ideia universal que existe hoje em Roma é a que
irradia do Vaticano.”
Em suma, porrete e cenoura para todos. No fim, acima de tudo, como de
costume, a violência. Aqui também, primeiro a ameaça, depois a promessa.
Se os socialistas insistirem naquele terreno, naquele terreno serão derrotados.
Conformem-se: o mundo segue à direita, e não à esquerda, a história do
capitalismo está só começando. Se eles se desarmarem espiritualmente, os
fascistas também se desarmarão. A violência não é um esporte. O triste
capítulo da guerra civil pode concluir-se. Somos humanos, e nada do que é
humano nos é alheio. Terminei.
Os aplausos à direita são vivazes, reiterados; as congratulações,
numerosas; os comentários, prolongados.
***

No entanto, agora que chegou ao Parlamento, o fundador dos Fasci di


Combattimento deve fazer uma limpeza em casa. A sua criatura tem origens
bastardas, nasceu do cozimento lento da violência, das contrações de uma
história promíscua. A burguesia começa a se cansar: se antes adotava os
fascistas como barreira para a violência, logo os repudiará como uma nova
violência. É necessário aproveitar o sucesso eleitoral, e a Itália é um país no
qual as revoluções nunca seguem métodos revolucionários.
O fascismo, entre o capitalismo e o comunismo, deve ser o terceiro entre
dois adversários. Aquele que se deleita. É necessário se manter leve para se
permitir qualquer tipo de guinada, combinação, manobra, cambalhota, salto.
Os fascistas não são uma das duas grandes classes em luta, são a camada
intermediária, o sofrimento profundo de uma crise psicológica de insegurança
do pequeno-burguês enraivecido porque teme perder tudo sem ter ainda o
bastante, do verdureiro que se sente preso entre a bigorna do grande capital e
o martelo do comunismo, que não sabe mais qual é seu lugar no mundo, que,
duvidando se de fato tem um lugar no mundo, chega a duvidar da própria
existência. É necessário um novo e grande partido de massa do mundo
intermediário dentro de uma perspectiva parlamentar tranquilizante. O
pequeno-burguês precisa de conforto, o país precisa de paz, é necessário dar-
lhes as duas coisas.
O trono está vazio há tempo demais, a violência nunca vem sem a própria
sombra, a espada deve voltar a ser embainhada. À frente do fascismo, estarão
os políticos, não os guerreiros, e o meu lugar nessa mesa é a cabeceira. Agora
é preciso chamar de volta a matilha ruidosa de cães de guerra.
Amerigo Dùmini
Sarzana, 21 de julho de 1921

Dizem que foi assim que aconteceu.


Era 1h e Amerigo Dùmini estava fumando, em silêncio, apoiado em uma
cabine de praia com Banchelli, o “mago”, na praia de Avenza, no litoral de
Massa Carrara. Lá estava a lua, quase cheia, alta no céu do poente, lá estava a
torre medieval iluminada pela noite clara na boca do rio, e, ao fundo, na
direção do levante, a coroa dos Alpes Apuanos delimitava o horizonte. A
reunião seguia bem. Cerca de quinhentos fascistas se concentravam no areal,
tendo chegado até ali de trem, ônibus ou por meios improvisados,
provenientes de Pisa, Florença, Viareggio, Prato, Pescia e de outras aldeias
nos arredores. Agora já eram muitos, mas não tantos quanto se esperava. Pelo
menos a metade eram rapazes de 16 ou 18 anos que tinham se lançado
naquela aventura junto com os mais velhos. Levavam tudo ao pé da letra,
amaldiçoavam baixinho os comunistas e, mesmo àquela hora da noite, com o
entusiasmo dos predestinados à morte, sussurravam suas canções à sombra
das flâmulas.
Dois homens de Renato Ricci tinham ido informá-los de que, de acordo
com certos boatos, todos os campos nos arredores de Sarzana estavam em
alerta, estavam sendo distribuídos aos camponeses revólveres, fuzis de caça,
bombas rudimentares preparadas por cavuqueiros anarquistas dos Alpes
Apuanos, gente dura, acostumada ao longo da vida e por gerações anônimas a
explodir o mármore com dinamite.
Em Sarzana, estavam em pé de guerra havia meses e em alerta havia dias.
Combatiam os fascistas desde sempre. Todas as vezes que os camponeses
avistavam um rosto suspeito, o mensageiro partia e as pessoas armadas
tomavam as ruas. Renato Ricci, o chefe fascista da região, que subjugara
quase toda a área de Carrara correndo ao ataque com seu fez de bandido,
terminou na cadeia justamente em Sarzana na enésima tentativa fracassada de
conquistar a fortaleza dos “vermelhos”. Ele e sua esquadra de desgarrados
foram presos após terem sido cercados pelos carabineiros no leito seco do
Magra, entre os salgueiros-brancos das margens. Por isso, era preciso libertá-
lo. Era por esse motivo que as esquadras florentinas de Dùmini pernoitavam
na praia de Avenza. Estava na hora de dar um fim àquela gente de uma vez
por todas.
Não havia um plano operacional, tudo era feito de maneira improvisada,
muitos membros das esquadras nem sequer se conheciam. Partiram costeando
o mar iluminado pela lua cheia. Entorpecidos, sonolentos, em fila indiana, às
vezes a 10 metros de distância uns dos outros como uma cambada de
bêbados, assim que deixaram o litoral guiaram-se pela linha férrea, escalando
até a vereda que ladeia a escarpa e depois seguindo os trilhos da ferrovia. Um
trem noturno, ao ver os trilhos ocupados, desacelerou, parou e então seguiu
viagem. Um imbecil cansado, na expectativa de uma carona, atirou em sua
direção.
Denunciados por aquele tiro de fuzil cretino, os vingadores de camisa preta
chegaram à estação de Sarzana às 5h30, meia hora depois da alvorada de
verão. O sol já estava alto nas pedreiras de mármore dos últimos Alpes, mas a
cidade hostil ainda parecia deserta, silenciosa, surpreendida no sono. Dùmini
reuniu seus homens, depois ordenou ao vigia que abrisse o portão para a
praça. Diante dos fascistas que foram conquistar a fortaleza do inimigo,
abria-se uma bela alameda de plátanos cujo nome homenageava Garibaldi, o
herói dos dois mundos.
No entanto, ao fim da alameda, fora disposto em linha única um pelotão de
carabineiros. Não deviam ser mais do que quinze, e as metralhadoras estavam
desguarnecidas na caçamba dos furgões estacionados. Quinze contra
quinhentos. Além disso, os carabineiros sempre foram amigos, cúmplices das
esquadras em expedição punitiva. “Viva os carabineiros, viva o Exército,
viva a Itália!”, gritaram, como sempre, os fascistas.
Àquela altura — já eram 6h —, veio a segunda surpresa do dia. Dùmini,
que avançou para negociar com um sorriso cortês, foi confrontado por dois
carabineiros, um à paisana e outro fardado. Ambos hostis. O capitão dos
militares até segurava um chicote de nervo de boi na mão direita enluvada.
Dùmini, sem preâmbulos, ditou suas condições para a libertação de Renato
Ricci e para a represália contra os comunistas. Foram rechaçadas como
inadmissíveis.
“Avante!”
Os fascistas começaram a avançar, em desordem, de maneira
inconsequente, prontos para uma vitória fácil e julgando-se invencíveis. Aos
quinze militares, foi ordenada a posição de ataque, com o joelho no chão,
preparados para usar a baioneta e para disparar a arma. Então, como sempre
acontece quando os fuzis estão em riste, um deles disparou. Um carabineiro
caiu, o fogo de barragem dos seus companheiros havia ceifado a primeira
linha dos fascistas aglomerados. Fogo à vontade dos dois lados.
Os soldados de carreira sabem: depois da primeira rajada furiosa entre dois
grupos de homens armados, interpõe-se sempre um misterioso instante de
hesitação, às vezes devido ao esgotamento simultâneo dos carregadores,
outras vezes em virtude da relutância sagrada diante da epifania do sangue.
Naquele instante, os chefes fascistas e o capitão Jurgens dos carabineiros
reais conseguiram fazer o fogo cessar. Voltaram a negociar.
Mas os gritos dos feridos já rasgavam o véu da alvorada, os cadáveres
encharcavam as pedras da alameda com líquidos hemorrágicos, e os fascistas,
atônitos por causa da resistência inesperada, passando por sebes, fossos,
muretas, fugiram, espalhados às centenas pelos campos. Os gritos
desesperados do capitão Jurgens os seguiram, quase implorando que
voltassem.
Então aconteceu a terceira surpresa daquele dia de fogo: os “vermelhos” os
esperavam agachados entre os arbustos. Grupos de camponeses armados com
gadanhos, machadinhas e alfanjes capturaram os desertores daquele bando de
vingadores que tinham ido até ali incendiar suas casas e agora fugiam
aterrorizados. Arrastaram-nos para trás de um terreiro, um palheiro ou uma
sebe, e os degolaram com aguilhões como se faz com os porcos. Alguns
corpos foram deixados ao sol; outros, foram pendurados nas árvores.
Em seguida os disparos cessaram. As tropas de reforço dos guardas reais,
que correram ao som dos primeiros tiros, exploraram os campos em busca
dos mortos. O que restava da coluna fascista havia se refugiado no edifício da
estação. Muitos rapazes choravam amontoados embaixo dos bancos, pediam
ajuda.
Enquanto isso, Dùmini obtivera a soltura de Ricci. Os sobreviventes das
esquadras, que deveriam ter conquistado Sarzana, foram escoltados até um
trem especial que os levaria de volta ao lugar de onde haviam partido. Alguns
cadáveres dos seus companheiros, mutilados, alimentariam por dias a fio os
animais selvagens nas grutas entre os bosques que vão rareando nas encostas
das montanhas próximas.

***

“Erigimos nosso sucesso sobre túmulos. Precisamos ficar atentos para que
agora nossos adversários não alcancem esse mesmo sucesso”, sussurra o
Duce do fascismo a Cesare Rossi antes de entrar na sala em que convocou o
Conselho Nacional assim que as notícias da matança de Sarzana chegaram a
Roma. É a noite entre 21 e 22 de julho, uma noite abafada. Mais do que
aterrorizado pelos laudos de óbito, Mussolini parece perturbado por aquilo
que sua superstição interpreta como o presságio funesto de outra morte,
menos certeira, porém mais terrível. “O fascismo não pode morrer”, são suas
palavras antes de enfrentar a assembleia.
Seu plano para salvar o fascismo das consequências letais da sua própria
violência é simples e delirante: fazer as pazes com os socialistas. O nome do
plano é “pacto de pacificação”. Os membros das esquadras das províncias o
boicotam desde o início de julho. No dia 12, em Milão, o Conselho Nacional
Fascista, liderado por Farinacci e Grandi, insubordinou-se a Mussolini
votando contra qualquer hipótese de pacificação. Enquanto isso, 1.500
integrantes das esquadras ocuparam militarmente Treviso, incendiando as
sedes dos populares católicos e dos republicanos.
Mas agora a situação mudou. Giolitti caiu. Foi substituído por Ivanoe
Bonomi — o socialista reformista que o próprio Mussolini conseguiu
expulsar do partido em 1912 —, e Bonomi, apesar de vir do socialismo,
conseguiu levar para o seu governo os católicos do Partido Popular. Se
Bonomi também conseguisse o apoio dos socialistas moderados, todos
formariam uma frente comum contra os fascistas e, para eles, seria o fim. É
necessário sair do isolamento. Se eles não querem se suicidar, precisam parar
de fazer “exterminismo”. Ou então Bonomi, uma vez liquidados os
socialistas maximalistas com a violência dos fascistas e tendo se aliado aos
socialistas moderados, logo lhes daria o coice do asno.
Sarzana demonstrava que a força pública já obedecia a uma nova palavra
de ordem. E também demonstrava outra coisa: se quinhentos homens podiam
ser destroçados por quinze carabineiros, isso significava que a ferocidade das
esquadras, acostumadas a atacar inimigos desarmados e desorganizados com
a cumplicidade das autoridades, desapareceria ao primeiro fogo de um
exército treinado.
“Um círculo de ódio se fecha ao redor do fascismo. É necessário rompê-lo.
As praças da Itália não devem se transformar em matadouros dominicais. O
país precisa de paz. É preciso fazer a distinção entre os nossos jovens
fanáticos por ódio antissocialista — pois o socialismo nega os valores
sagrados da pátria — e os oficiais pagadores das várias Agrárias que
objetivam apenas suprimir as ligas operárias e as conquistas sindicais. A
nação veio até nós quando nosso movimento se anunciava como o ocaso de
uma tirania; a nação nos repudiaria se assumíssemos o aspecto de uma nova
tirania.”
Os membros do Comitê Central escutam em silêncio as diretrizes de
Mussolini para realizar uma acelerada marcha a ré: interrupção de qualquer
violência individual, proibição de qualquer expedição punitiva, análise dos
antecedentes penais dos inscritos, remoção dos fascistas mais recentes dos
postos de comando, investigação sobre as responsabilidades das ações
danosas.
Diante dessas propostas, a discussão esquenta. Dura até a alvorada,
irascível, sobretudo por parte dos chefes das províncias — Farinacci,
Tamburini, Forni, Perrone Compagni, Balbo, Grandi —, decididos a se opor
a qualquer pacificação com os “vermelhos”.
Ao fim da reunião, O Duce puxa para um canto Cesare Rossi e ordena que
ele reinicie as tratativas com os socialistas.
“Não haverá cisões. Somos um exército, e não um enxame. E sou eu que
comando esse exército [...].”
Hoje, após muitas contradições, Mussolini ameaça destruir
o fascismo se o fascismo não se corrigir.
É uma utopia. O fascismo destruirá seu Duce, e esse homem
que traiu os socialistas, os intervencionistas revolucionários,
os fiumanos e os fascistas mais antigos vai se lançar com a
mesma desenvoltura na direção de outro partido ou
agrupamento, dando origem tenazmente a uma nova
agremiação contrária, oposta ao que fez até aqui.
Será que vai encontrar outros iludidos que o seguirão, ou o
bom senso do povo italiano acabará por triunfar e gritará um
basta?

Ugo Dalbi, sindicalista revolucionário,


Sindacato Operaio, 30 de julho de 1921
Italo Balbo
Gardone, 18 de agosto de 1921

Gabriele D’Annunzio engordou visivelmente. Embora tenha dedicado à


magreza ágil um verdadeiro culto retórico, e ainda que seja abstêmio, dezoito
meses de autoexílio no lago de Garda fizeram crescer, embaixo do seu
esterno, uma barriguinha de alcoólatra — retesada, inchada, redonda — que
nenhum paletó consegue ocultar. É difícil desviar o olhar do abdome do
Comandante, em especial para alguém que, como Balbo, magríssimo, o
encontra pela primeira vez depois de tê-lo venerado a distância por anos. Ele
e Dino Grandi partiram de Bolonha rumo a Gardone na noite de 16 de agosto,
logo após a reunião dos Fasci di Combattimento do Vale do Pó, que decidiu a
revolta contra o “pacto de pacificação” proposto por Mussolini. Foram
oferecer ao poeta guerreiro a direção do fascismo.
O Vate, fotofóbico, recebeu-os na manhã do dia 17 na penumbra de
cortinas pesadas e luzes difusas em sua villa asfixiada por dezenas de
milhares de objetos e livros dispostos em um preciso e imperscrutável jogo
de referências simbólicas, como um mausoléu consagrado à memória de uma
múmia viva. Com aqueles dois exuberantes jovens de 20 anos, D’Annunzio
falou por muito tempo da nova edição, definitiva, que está elaborando de
Notturno, sua meditação poética sobre a morte composta em 1916 nos meses
de cegueira temporária causada por uma aterrissagem dramática feita de
improviso enquanto ia para Trieste. Durante a dissertação, referiu-se a si
mesmo como o “cego vidente”, depois calou-se para escutar em silêncio a
proposta deles. Então, após oferecer deliciosos bombons de avelã de um vaso
de cristal multicolorido, pediu uma noite para refletir. Ao se despedir,
esclareceu que, como sempre, antes de qualquer decisão, devia consultar as
estrelas.
Os dois embaixadores da dissidência fascista se hospedaram em uma
sonolenta pensão lacustre. Cada um mata o tempo como pode. Grandi escreve
cartas aos conspiradores, Balbo paquera as camareiras.
O “pacto de pacificação” que deveria decretar o fim do conflito entre
“vermelhos” e “negros” foi firmado na noite de 3 de agosto no gabinete de
Enrico De Nicola, presidente da Câmara, por uma delegação de
representantes dos grupos parlamentares fascista e socialista e também por
Baldesi, Galli e Caporali da Confederação Geral do Trabalho. A primeira
assinatura da lista foi a de Benito Mussolini. Segundo o pacto, as duas partes
se comprometiam a cessar de imediato qualquer tipo de violência e a
perseguir os transgressores. Ao que parece, depois das assinaturas, os líderes
socialistas se negaram a apertar a mão do fundador do Fascio. Talvez essa
seja apenas uma maledicência, mas, em contrapartida, a recusa dos chefes do
fascismo nas províncias é uma certeza clamorosa.
Os Fasci di Combattimento toscanos, vênetos e emilianos, reunidos em
uma conferência, denunciaram o pacto já nas primeiras 48 horas após sua
assinatura. Mussolini respondeu com desprezo: apelidou-os de “rases”, o
nome dos selvagens chefes guerreiros etíopes. Em um artigo no Il Popolo
d’Italia, dirigiu-se a eles como o pai que deve “usar as varas” para corrigir o
próprio filho transviado. Deplorou-os como aldeões ignorantes, presos a
pequenos bairrismos, incapazes de se desligar de seus ambientes, de enxergar
e até mesmo de acreditar “na existência de um mundo mais vasto, complexo
e formidável”.
Grandi respondeu ao Duce em 6 de agosto, inaugurando a dissidência
aberta com um artigo no qual afirmava que o “pai” não era Mussolini, mas
D’Annunzio e que o verdadeiro fascismo, no caso, nascera em Bolonha, com
a carnificina do Palazzo d’Accursio, e não em Milão. Depois foi a vez de
Balbo atacar o Líder sem nenhuma diplomacia. A luta entre fascismo e
socialismo — escreveu Balbo — só se resolverá com a aniquilação de um dos
dois. Essa é a realidade, todo o resto são “fantasias infantis, sentimentalismos
de mulherzinha”.
Mussolini, com o apoio de Cesare Rossi, rebateu que o movimento dos
emilianos, subjugados aos produtores rurais, não é mais fascismo. Ameaçou
expulsá-los ou, até mesmo, sair.
O plano de Mussolini, como sempre, era astuto e, como sempre, dúplice.
Se tivesse êxito, prevaleceria a imagem do fascismo “respeitável”, e ele seria
recebido de braços abertos pelos liberais, levaria um ministério. Se
fracassasse, de todo modo ele teria o crédito de ser o único fascista razoável
naquele bando de rases ferozes das províncias. Enfim, Mussolini só tinha a
ganhar com tais ladainhas.
Já eles tinham tudo a perder. A pacificação, para gente como Balbo e
Grandi, significa o fim certeiro e rápido, a condenação a um limbo obscuro,
sem ação, sem história porque sem luz e sem luz porque sem história. Eles
estão dispostos a perder a vida, mas não a entregá-la de mãos beijadas.
Essa é a situação em 16 de agosto, na reunião de Bolonha: seiscentos Fasci
di Combattimento da Emília Romanha renegam o Líder proclamando que,
enquanto durar aquela situação, não vão depor as armas da violência. Depois,
oferecem ao Vate a direção do movimento.
Entretanto, a resposta de D’Annunzio demora. Ele deixa Balbo e Grandi
mofando quase dois dias naquele limbo lacustre de pensionistas moribundos
que se agarram ao último suspiro com o bridge e os tratamentos termais. No
fim da manhã do dia 18, respeitado o repouso do poeta até quase meio-dia, os
dois peregrinos sobem de novo até a villa de Cargnacco. D’Annunzio não os
recebe. Manda seu empregado dizer que é preciso esperar mais: a noite tinha
sido nebulosa, Diana não apareceu, talvez “os astros não estejam propícios”.
A Balbo e Grandi, achincalhados, furiosos, resta voltar ao ponto de partida
ou, talvez, tomar a estrada para Milão. Entretanto, na aldeia, os vendedores
de jornais já anunciam aos gritos a notícia do dia: Mussolini renunciou ao
Comitê Central dos Fasci.
“A partida chegou ao fim. Quem foi derrotado deve ir embora. E eu saio
do primeiro escalão. Continuo, e espero poder continuar, a ser um simples
soldado raso do Fascio milanês”, escreveu o Duce do fascismo no Il Popolo
d’Italia.
Os fascistas locais são sem dúvida contrários à pacificação, que julgam
nociva ao desenvolvimento do seu programa agrário. Os socialistas, por sua
vez, mesmo aderindo de bom grado à ideia da pacificação, não têm muita
confiança [...]. Comunistas e anárquicos são contrários. Populares a encaram
bem, mas não se manifestam de fato. Liberais e radicais se mantêm ausentes.
A imprensa, por submissão aos Fasci di Combattimento, não ousa se
pronunciar.

Telegrama de Cesare Mori, governador da província de


Bolonha, ao ministério, 12 de julho de 1921

A discórdia, o desconforto e às vezes a repugnância por certos gestos que


ofendem todos os nossos sentimentos de homens de liberdade — amigos,
vocês já se perguntaram, por exemplo, o que representam de sagrado aquelas
casas do povo, com toda a sua carga de alfaias e afetos, que em algumas
regiões do Vale do Pó nossos soldados rasos queimam com tanta serenidade
só porque são habitadas por adversários?

Cesare Rossi, carta de demissão como vice-secretário dos


Fasci di Combattimento, 21 de agosto de 1921

Se for preciso dar fortes marteladas para acelerar a ruína


desse fascismo, eu me adaptarei a essa ingrata necessidade. O
fascismo não é mais libertação, mas tirania; não é mais
salvaguarda da nação, mas defesa de interesses privados das
castas mais opacas, surdas, miseráveis que existem na Itália; o
fascismo que assume essa fisionomia talvez ainda seja
fascismo, mas não é mais o motivo pelo qual, nos anos tristes,
alguns — poucos — de nós enfrentaram a cólera e o chumbo
das massas, não é mais o fascismo como foi concebido por
mim.

Benito Mussolini, “O berço e o resto”,


Il Popolo d’Italia, 7 de agosto de 1921

Quem traiu trairá.

Pichação antimussoliniana nos muros de Bolonha, agosto de


1921
Benito Mussolini
Módena, 28 de setembro de 1921

A carta na manga dos rases são suas visões limitadas, uma vantagem
inalcançável quando se trata de levar a própria vida. Os velhos rancores
bairristas, as espeluncas dominicais, o brilhante para as comadres, o carro
esportivo estacionado na frente da taberna. Os chefinhos da província vivem
das estreitezas das notícias policiais, medem as eras com a fita métrica do
presente, e por isso toda a vida se torna uma notícia de jornal, se reduz a uma
doença incurável de longo curso. Ele, jornalista de raiz, sabe muito bem que
as notícias são sempre pretas ou rosa: aventuras amorosas ou acidentes de
trânsito, histórias de traição ou de facadas casuais. Tudo se polariza ao
extremo, termina em uma mulher conquistada ou em uma coluna quebrada.
Não há mais nada, o mundo contado pelo repórter é sempre só uma
“notinha”.
Veja, por exemplo, o espetáculo revoltante desses comerciantes, vendeiros,
proprietários de terras, especuladores-relâmpago, essa velha burguesia
incapaz que venderia tudo para não abrir mão dos próprios privilégios, essa
velha burguesia que se une aos fascistas, empunha bandeiras e grita com voz
nasalada “Viva o rei, viva a Itália”, a mesma voz com que gritava “Viva a
República!” nos dias da “semana vermelha”. Veja essa massa inerte, de
chumbo, opaca, esses homens sem fé e sem ideais, prontos para cometer
qualquer traição, veja-os assumir a dianteira.
Contudo, quando se trata da vida dos povos, o discurso muda. Quando
Benito Mussolini, filho do humilde ferreiro de Dovia, quer viver e contar
cada dia da sua vida como se já pertencesse à história, então o panorama se
expande para o mundo, o horizonte explode, e não se pode mais distinguir o
dançarino da dança.
Em 27 de agosto, em Florença, o Conselho Nacional dos Fasci di
Combattimento recusou sua demissão. Os rases permanecem contrários à
pacificação, mas ninguém, nem mesmo Grandi, que assume ares de filósofo,
sonhou tomar o lugar de Mussolini no cenário nacional.
Os únicos que se deram mal foram Cesarino Rossi, afastado do Comitê
Central por ter permanecido fiel a Mussolini em Milão, e Leandro Arpinati,
afastado da secretaria de Bolonha por permanecer fiel a ele na província. No
momento, não se pode fazer nada por eles, mas dá para fazer muito para
retomar as rédeas do movimento. De que vale um líder que comanda apenas a
si mesmo?
Em toda a Itália, proclamaram Mussolini insubstituível, e, assim, chegou o
momento de cobrar essa solidariedade forçada dos pequenos chefes de
província. Contudo, a retórica do retorno às origens não funciona, é
necessária uma fuga para diante. O desprezo pelos partidos políticos
tradicionais foi a estrela que norteou o movimento fascista desde o início,
mas, para governar o país, agora é necessário justamente um partido. Para
governar o ingovernável, para subjugar o caos, é preciso um partido, um
organismo político que contenha a violência das esquadras, uma doutrina
ecumênica que abrace todos os heréticos das outras doutrinas, um partido dos
antipartidos. O Partido Nacional Fascista. É isso que decidirá a vida ou a
morte do fascismo.
Mussolini propôs a transformação do movimento fascista em partido em 7
de setembro, na discussão do grupo parlamentar. A proposta foi aprovada
com alguns votos contrários, mas em seguida deverá ser aprovada pelo
Conselho Nacional e, depois, será necessário um congresso. Ali tudo será
posto em jogo, e é preciso convocá-lo depressa. Alguns rases, como Marsich
em Veneza, já proclamaram a traição do espírito original e, em Bolonha,
Dino Grandi e seus seguidores, com ou sem partido, decidiram votar contra o
pacto. Essas, porém, são desavenças. A verdadeira ameaça à ideia do partido
não vem dos nostálgicos como Marsich, mas do Exército, e não do Exército
em verde-militar do rei da Itália, mas do Exército representado pelas
esquadras em camisas negras.
Os rases fizeram de tudo para derrotar o pacto de pacificação. E
conseguiram. Em 12 de setembro, pelos 600 anos da morte de Dante e os 2
anos da aventura de Fiume, Balbo e Grandi conseguiram reunir 3 mil
membros das esquadras e fazê-los marchar em colunas, disciplinadas
militarmente, pelas estradas da Romanha até Ravena. Balbo até conseguiu,
pela primeira vez, impor a todos a camisa negra como uniforme. Nunca se
tinha visto algo do gênero, uma exibição de força assustadora: o nascimento
de um verdadeiro exército fascista. Agora o real dilema não é mais entre
movimento ou partido, o real dilema é este: constituir um partido ou criar um
exército? O nó górdio, como sempre, deve ser cortado: melhor um partido,
mas um capaz de se transmutar em exército, de transmutar imediatamente
seus afiliados em soldados prontos para lutar no terreno da violência. Um
partido conversível, um partido-milícia. Claro, algo desse gênero também
nunca foi visto, mas estes tempos são novos, incertos, o amanhã é misterioso
e imprevisível.
Enquanto isso, ele, o Duce que voltou a ser soldado raso, se prepara para
um salto no escuro. E o faz aumentando a aposta. Instituiu uma Comissão
para a Transformação, fundou uma escola de filosofia política. Palavra um
pouco exagerada, sem dúvida, mas, para domesticar os assassinos das
reportagens dominicais, é preciso arrastá-los para o ataque à história. Então,
do alto do penhasco, deve-se olhar para a grandeza moral e política —
mediterrânea e mundial — da pátria. A esta altura, trata-se de responder a
algumas perguntas filosóficas: qual é a posição do fascismo diante do
Estado? Diante do regime? Diante do capitalismo? Diante do sindicalismo,
do socialismo, do catolicismo, diante da Igreja e do seu Deus? Qual é a
posição do fascismo no cosmos?
Não se limitem a odiar o porteiro, que vocês espancaram por ser socialista,
levantem a cabeça, olhem para a história que passa, vejam a assustadora
carestia que assola a Rússia, milhões de pessoas reduzidas à fome; vejam as
agitações promovidas pelo tal Gandhi contra o domínio inglês. A
independência da Índia — profetizou em um artigo — “não é mais uma
questão de possibilidade; é uma questão de tempo”.
Após o rompimento com os rases, Benito Mussolini ressurge para as
massas fascistas em Módena em 28 de setembro, por ocasião do funeral de 8
fascistas.
Eis o que aconteceu. Dois dias antes, alguns integrantes das esquadras,
tomados pelo entusiasmo, ergueram o cassetete contra um capitão dos
guardas reais, que os ceifaram como trigo maduro.
Agora, em Piazza Sant’Agostino, repleta de militantes, centenas de
flâmulas coroam os caixões; sob um límpido céu de setembro, o Duce do
fascismo fala à história como estadista: “Para esses jovens que morreram,
para os outros que restam, a Itália não é a burguesia ou o proletariado: a Itália
não é sequer quem governa ou desgoverna a nação e quase nunca entende sua
alma; a Itália é uma raça, uma história, um orgulho, uma paixão, a Itália é
uma grandeza do passado.”
O fascismo perderá todo o seu triste prestígio e toda a sua força assim que
parar de ser violento [...]. O fascismo se esvaziará como um odre derramado e
voltará a ser o pequeno movimento minoritário que era no início de 1919,
com o acréscimo da lembrança das violências, que não lhe abrirá as portas do
futuro. Posso até estar errado, mas esta me parece ser a natureza das coisas.

Luigi Fabbri, militante anarquista,


La contro-rivoluzione preventiva, Bolonha, 1921

Um drama foi imposto pelas origens e pelo curso da crise


fascista: constituir um partido ou criar um exército [...]. A meu
ver, o problema deve ser resolvido nos seguintes termos: é
preciso constituir um partido tão fortemente enquadrado e
disciplinado que, quando necessário, possa se transmutar em
um exército capaz de agir no terreno da violência [...]. Esse
assunto deverá ser colocado na pauta do congresso de Roma.

Benito Mussolini, “Rumo ao futuro”,


Il Popolo d’Italia, 23 de agosto de 1921
Realizei, em setembro de 1921, a primeira experiência grandiosa: a
mobilização de 3 mil homens, a marcha sobre Ravena. Pela primeira vez, as
esquadras das duas províncias — Ferrara e Bolonha, com representantes de
Reggio Emilia — foram divididas em 2 colunas com 1.500 homens cada
uma, subdivididas em companhias e pelotões. A cada chefe, seus graus.
Nessa ocasião, a camisa negra apareceu pela primeira vez como uniforme
militar, o traje ordinário do trabalhador da Romanha que se tornou a farda do
soldado da revolução.

Italo Balbo, Diario, 1922


Benito Mussolini
Livorno, 27 de outubro de 1921

O espetáculo é de fato bizarro. Dois pequenos fantasmas de homens,


cercados pelo nada e, de qualquer forma, prestes a voltar ao nada, se
trancaram no térreo de uma villa para fugir da polícia, prepararam com areia
e resina um amparo improvisado e agora se sustentam nas pernas, sem nem
mesmo serem jovens, a dez passos de distância um do outro, esperando
naquela postura ridícula, armas em riste e baricentro baixo, que o árbitro grite
“agora!” para poderem atacar-se mutuamente, voltando a se lançar na não
existência.
Aquele combate que Benito Mussolini se prepara para travar contra
Francesco Ciccotti Scozzese é seu terceiro duelo. O último aconteceu em
março de 1915 em uma villa em Bicocca, às portas de Milão, contra Claudio
Treves, seu então companheiro no Partido Socialista e seu predecessor na
direção do Avanti!. Francesco Ciccotti também é um deputado socialista, um
ex-companheiro, mas, diferentemente de Treves, de quem sempre foi rival,
também é um velho amigo de Mussolini. Em 1912, Ciccotti, que se mudou
para a Romanha a fim de substituir Mussolini — preso por tumultos contra a
guerra da Líbia — na direção do La lotta di classe, apoiou com ímpeto sua
ascensão aos vértices do partido. Depois, quando a guerra eclodiu,
permaneceu neutralista, mas, mesmo assim, nunca atacou o traidor que se
bandeou clamorosamente para o lado intervencionista.
Contudo, Mussolini buscou esse duelo contra o velho amigo com a
obstinação de quem é um profissional do ódio. Embora Ciccotti já se
houvesse furtado ao desafio de outros espadachins fascistas, após obrigá-lo a
aceitar o duelo com um artigo repleto de insultos ferozes (“Franceschiello
Scozzese é o ser mais desprezível de todos os que poluem a vida pública
italiana”), o deputado Mussolini chegou a apresentar um primeiro e único
pedido de explicações ao Parlamento sobre a mobilização das chefaturas de
polícia da Itália, ordenada pelo governo Bonomi com a intenção de impedir o
duelo entre os dois parlamentares. Não satisfeito, embora estivesse sendo
vigiado, na manhã de 28 de outubro, seguido por viaturas da segurança
pública, o duelista encarou uma tempestade de neve no Abetone, peripécias
automobilísticas ensandecidas e 24 horas de viagem para poder se atirar
contra o velho amigo.
Para fugir da vigilância, apesar de se gabar de ser um ás do volante,
Mussolini escolheu um motorista demoníaco. Aldo Finzi, filho de um rico
industrial moleiro de Badia Polesine, cidade a poucos quilômetros da de
Giacomo Matteotti. Durante a guerra, foi condecorado com a medalha de
ouro como aviador da 87a Esquadrilha e sobrevoou Viena com D’Annunzio,
e no último mês de setembro, no campeonato de motociclismo em estradas,
foi o primeiro piloto a dirigir um bólido de 500 cavalos da recém-nascida
indústria italiana: a Moto Guzzi de Gênova. Seu amor pela velocidade só se
equipara ao seu desprezo pelos miseráveis trabalhadores das fazendas do seu
pai. Diz-se que Finzi chega ao ápice das suas duas grandes paixões quando,
em uma curva da estrada ocupada por um rebanho de ovelhas, pode acelerar e
dizimar os animais dos quais depende a sobrevivência dos camponeses. Com
Finzi ao volante, a perseguição das patrulhas motorizadas terminou em uma
colisão contra uma carroça de feno perto de Placência.
Ao chegarem a Livorno, local designado para o duelo, Mussolini e Finzi
são informados, no entanto, de que Ciccotti está sendo vigiado no Palace
Hotel. Ciente de que estava sendo procurado pela polícia, Ciccotti
provavelmente se hospedou naquele hotel do Centro fornecendo os próprios
dados pessoais com a intenção de se furtar mais uma vez ao duelo. De fato,
Francesco Ciccotti Scozzese, mais do que covarde, é cardíaco.
Para tirá-lo da toca, Mussolini, em um caso único na história dos duelos,
envia seu motorista, Aldo Finzi, ao Palace Hotel para buscar o desafiador.
Esse homem perseguido com tanta obstinação é culpado de ter mostrado nas
colunas do seu jornal — o Il Paese — as esquadras fascistas como uma
organização criminosa. Culpa compartilhada, por sua vez, por toda a
imprensa socialista da Itália. Mas agora o socialismo italiano se suicidou, e o
insulto não pode ser perdoado. Mussolini sabe que os socialistas, se
vitoriosos, não lhe perdoariam nada. Franceschiello Ciccotti, portanto, é
imperdoável. É preciso bater no cão que se afoga.
O socialismo, sem dúvida, está se afogando. Apenas duas semanas antes,
os líderes socialistas, após terem desperdiçado nos dois anos anteriores todas
as oportunidades de revolução, rejeitaram qualquer hipótese de colaboração
parlamentar com o governo Bonomi em uma ação antifascista. Sua expulsão
da Internacional Comunista já foi decidida em Moscou e, na Itália, cem mil
militantes não renovaram a filiação após a insensata cisão em Livorno: o
isolamento deles é total, agora que rechaçaram a responsabilidade de
governar o país com Bonomi, velho companheiro. Mussolini, nas colunas do
seu jornal, suspirou de alívio e exultou: “Declaramo-nos, então,
particularmente satisfeitos. O fascismo agora tem diante de si um jogo de
amplas possibilidades.”
Naquele momento, em um porão da Villa Perti, na periferia de Livorno,
sob uma proteção improvisada com areia e resina, Benito Mussolini tem
diante de si apenas Francesco Ciccotti Scozzese. E fareja e deseja seu sangue.
O dr. Ambrogio Binda, seu médico pessoal, a fim de prevenir consequências
letais, desinfeta as espadas, tendo escondido no pano embebido em álcool
uma pedra-pomes para embotar as lâminas. Benito Mussolini ordena
raivosamente que ele pare com aquilo.
Assim que o árbitro dá o sinal, o desafiado se lança contra o adversário.
Ciccotti, que sofre de uma malformação cardíaca, recua aflito, retrocedendo
além do limite que lhe foi designado.
A interrupção é quase imediata. Já no primeiro assalto, a inferioridade do
deputado socialista é patente. No segundo assalto, Ciccotti começa a arquejar.
Seu coração não bombeia sangue suficiente e, quando consegue fazê-lo, é à
custa de pressões ventriculares anormais. No quarto e quinto assaltos, a ponta
da espada de Mussolini espeta seu corpo. Primeiro em cima do cotovelo,
depois quatro dedos abaixo da axila. O duelo é suspenso. Ciccotti sangra.
Mussolini, furioso, insiste em prosseguir.
Os assaltos sucessivos são breves, marcados por estertores do atacado.
Ciccotti está pálido, sem fôlego, banhado em suor, sem forças. Mussolini o
insulta, o chama de cardiopálmico, insiste em continuar. Nono, décimo,
décimo primeiro assaltos. As palpitações aumentam. Os médicos se dirigem
aos assistentes para interromper o massacre. Mussolini protesta, fica
enfurecido. Décimo segundo, décimo terceiro, décimo quarto assaltos.
Ciccotti está um farrapo, nos seus recessos atriais o risco de trombose atinge
os píncaros, a hipertensão arterial sobe, a fibrilação tem início. O derrotado é
posto na cama de um quarto da villa, recebe injeções de estrofantina e óleo de
cânfora.
O vencedor, no porão, nem assim se declara satisfeito. Imóvel em uma
cadeira, corroído pela impaciência, os braços cruzados com a espada no alto,
o olhar fixo na empunhadura, Mussolini morde o freio, espuma de raiva,
proclama-se enojado com o resultado daquele duelo miserável, grita que deve
recomeçar imediatamente, ou naquela mesma noite, ou talvez no dia seguinte,
ou então, melhor ainda, que seja concluído com pistolas. O vencedor
pretende vingar sobre o cadáver de um cardíaco milhões de bocas que, há
anos, batendo no peito, gritam para ele “traidor”.
O dr. Binda, diante daquela cena histérica, procura na própria profissão um
pretexto para acalmar a fúria homicida do seu assistido. Mede, então, as
pulsações de Mussolini.
Para sua grande surpresa, os batimentos estão regulares, os parâmetros
estão normais, até mesmo baixos, não mais do que setenta pulsações por
minuto. A frequência de um homem adulto em repouso, o coração de alguém
que, após uma noite de sono, acabou de acordar. O dr. Binda deixa escapar
um sorriso sob os bigodes à chomberga.
Roma, 7-9 de novembro de 1921
Teatro Augusteo, Congresso Nacional dos Fasci di Combattimento

Chegou a hora dos fascistas desconhecidos. O fascismo deve se


despersonalizar, as responsabilidades, tiradas dos ombros de um homem só,
devem recair sobre as massas. Ele, portanto, está pronto para dar um passo
atrás. É o que Mussolini repete antes de entrar na sala repleta do Auditorium
Augusteo, seus repórteres registram em anotações fielmente e reproduzirão
tudo no seu órgão pessoal de propaganda: estou pronto para dar um passo
atrás. Isso, amanhã. Hoje, porém, aquele teatro de Roma construído no local
onde ficava o mausoléu de Otaviano Augusto, seu primeiro imperador, e que,
ao longo dos séculos, tornou-se arena de justas, caças, tauromaquias, parece
ter voltado aos antigos combates.
No salão do Augusteo, o mar negro de fascistas que vieram de toda a Itália
calçando os coturnos com travas de uma tropa de ocupação se dividiu em
facções, os grupos aglomerando-se em volta dos próprios líderes. As facções
“exterministas” do Vale do Pó, da Toscana, da Úmbria, do Vêneto e da
Apúlia, que rejeitaram a paz desejada pelo Fundador, parecem ser maioria.
Dentre todas, destaca-se a “Desesperada” de Florença, uma das esquadras
mais famigeradas, resplandecente em seu novo uniforme: um lírio vermelho
no peito, duas chamas no colarinho da camisa e, por cima, uma caveira
branca destacando-se em fundo preto. Parece aqueles avisos nos frascos de
tintura de iodo: “Atenção, não ingerir, perigo de morte.” Os homens de Tullio
Tamburini, chefe da “Desesperada”, apelidado de “o grande espancador”,
tomam conta da entrada, controlam as carteirinhas e cantam com gritos de
desprezo na cara dos transeuntes: “Não me importa é o nosso lema, não me
importa morrer, não me importa Giolitti, nem o sol do futuro, uma bandeira
muito preta nos reúne à sua volta, não me importa o delegado, o governador
da província nem o rei!”
Lá dentro, gritam, assobiam, aclamam, entoam cantos de guerra. Gritos,
balbúrdia, empolgação. Os bate-bocas são intensos; os aplausos, calorosos; as
vaias, ensurdecedoras. O ambiente é elétrico, nervoso, repleto de uma
violência histérica digna de um acerto de contas. As mesas da presidência
foram colocadas no lugar da orquestra, cercadas pelos rases que se preparam
para travar batalha.
O cerco, contudo, não acontece só lá dentro. A assembleia fascista se
sente, por sua vez, sitiada. Os primeiros confrontos nas ruas acontecem já na
chegada dos trens especiais, quase em todos os lugares a recepção dos
romanos foi hostil, os membros das esquadras de província dizem que estão
enojados com a cidade grande que os acolheu com frieza. Para eles, Roma é a
repugnante capital parlamentar de todos os vícios da nação, o grande alvo da
revanche fascista, uma cidade suja, fraca, inerte, desmiolada, que eles
percorrem com passo cadenciado farejando o fedor da podridão, da lentidão
ministerial, do sulismo degenerado, das corruptelas universais,
esquadrinhados pela eterna plebe capitolina dos pés à cabeça, como se eles,
os purificadores daquela ruína fétida, e não os romanos, fossem a plebe
selvagem que chegou para invadir a Basílica sagrada.
É nesse clima que Mussolini sobe na tribuna. Quando ele entrou no teatro,
os aplausos foram contidos, ao passo que Dino Grandi, chefe dos rebeldes,
recebeu uma ovação. Durante os trabalhos da manhã, todos aqueles que
propuseram deixar de lado a discussão sobre o pacto de pacificação para
acalmar os ânimos, de Pasella a De Vecchi, foram submetidos a vaias. A
assembleia, ao longo de horas, dividiu-se entre os apoiadores de Mussolini e
os de Grandi.
Mas depois o rás de Bolonha tomou a palavra e, logo de cara, declarou que
aquelas torcidas contrapostas lhe causavam uma profunda sensação de
tristeza e melancolia.
Os membros das esquadras que se exaltam, vibram, se agitam não sabem,
mas, na véspera, os dois adversários tiveram um encontro secreto: Mussolini
barganhou o pacto de pacificação com a fundação do Partido Fascista. O
acordo com Grandi já foi quase selado, e a paz com os socialistas foi
sepultada. Resta estabelecer como fundar o partido. Por isso, os integrantes
das esquadras se esgoelam como protagonistas, porém são figurantes em uma
comédia já escrita.
Após Grandi lhe preparar o cenário, Mussolini também é recebido com
uma ovação unânime. Deixa que prossiga por alguns segundos, as mãos nos
quadris, os lábios esticados, o queixo projetado como se estivesse farejando
no fragor dos aplausos o tempo que está por vir. Nas correntes de ar do teatro
erguido sobre a tumba do primeiro imperador, o Duce do fascismo fareja o
animal moribundo e se une ao vencedor.
Quando começa a falar, Benito Mussolini parece ter total domínio de si
mesmo. Sorridente, jovial, balança o corpo seguindo o movimento das
pernas, anui com a cabeça ao que ele mesmo disse e gesticula pouco. Vez por
outra liberta os dois braços para que rodopiem sobre a cabeça, as palavras
borbotam como cataratas, depois o tumulto se acalma e o orador, sempre
concordando consigo mesmo, põe as mãos novamente no bolso.
A questão é simples: se o congresso não quer votar o pacto de pacificação,
ele não insiste. Se, em contrapartida, fizerem questão de votar, ele se
empenhará na luta até o fim. Ou se vota, ou não se vota, mas, se votarem, é
necessário fazer uma contagem. Até o último homem. Como sempre, o
orador dá o melhor de si dosando afagos e ameaças. Então brinca: ele é
unitário, mas não se comporta como Turati. Risos, aplausos, gritos de
“bravo!”. Ele é unitário quando a unidade é possível. A decisão do voto sobre
o tratado fica a cargo do congresso. Eles que decidam. Na sua opinião, as
questões vitais para o fascismo são outras: o programa e a fundação do
partido.
Um instante de silêncio estupefato.
Eis que, com o costumeiro salto de acrobata, Mussolini reverteu o
prognóstico. O pacto de pacificação que dividia a plateia já ficou para trás,
sacrificado. Não há mais matéria de disputa, ela desapareceu. Basta que os
membros das esquadras aceitem o partido, e a concórdia, como que por
encanto, voltará entre os irmãos de armas.
No fim do discurso, Mussolini recebe uma segunda ovação. Acertou na
mosca.
Grandi só retoma a palavra para reiterar que o objetivo do congresso é unir
todos os fascistas em um bloco compacto; em seguida, o jovem romanholo
desce do palco. Naquele instante, a massa fascista se levanta, por instinto, em
uma ovação interminável, como se tivesse sido libertada do peso opressor da
luta interna e se encaminhasse rumo às alegrias iminentes da violência
extrovertida, voltada para fora, contra os “outros”, e não contra si mesmos.
Como o mar que toca o rio, o aplauso incessante parece empurrar Dino
Grandi outra vez até a nascente, e ele compreende a mensagem. Abre espaço
entre um grupo de companheiros e se encaminha até Mussolini, já em pé
junto à mesa da presidência. Abraça-o.
O entusiasmo dos congressistas parece receber um freio: estão todos em
pé, nas galerias, na plateia, nos camarotes. O beijo entre irmãos de armas é
contagiante, todos fazem fila para abraçar e beijar Mussolini. Um homem
gigantesco ergue-o e o põe sobre a mesa da presidência. Chama-se Italo
Capanni, é o homem que, em Florença, atirou à queima-roupa e a sangue-frio
no rosto de Spartaco Lavagnini e enfiou entre os dentes destroçados do
cadáver o próprio cigarro. Nasceu o Partido Nacional Fascista.

***

No dia seguinte, após a reconciliação espetacular, Mussolini retoma a


palavra. O novo partido precisa de um programa para o futuro, e ele o
fornece. Fala por três horas, de improviso, vomitando o novo credo fascista
em um discurso pitoresco.
Sua visão é panorâmica, nada lhe escapa, sua vontade é onipotente, está
pronta para remodelar o mundo. Primeiro, uma perspectiva geral da história
recente, das questões de sempre, dos outros partidos. O fascismo é a síntese
de tudo. Absorveremos os liberais e o liberalismo porque, com o método da
violência, sepultamos todos os métodos precedentes. Depois, olhando para o
futuro, introduz temas novos. O fascismo completará a nacionalização dos
italianos. O fascismo fará com que, dentro das fronteiras, não existam mais
vênetos, romanholos, toscanos, sicilianos e sardos, mas italianos, somente
italianos. No entanto, além das fronteiras o fascismo sente o mito do império.
Não pode haver grandeza nacional se a própria nação não é sustentada por
uma ideia de império. A Igreja romana, com seu magistério milenar e
universal, entra na apologia do império. Chega de anticlericalismos tolos.
Quanto ao Estado, o problema é simples: o Estado somos nós. Na economia?
Liberalismo no sentido mais clássico da palavra. Depois, uma definição sobre
a “conquista das massas”, tema caro a Grandi e aos sindicalistas. Dizem: é
preciso conquistar as massas. Há também quem diga: a história é feita pelos
indivíduos, pelos heróis. A verdade está no meio. O que faz a massa quando
lhe falta um intérprete? Nós não somos antiproletários, queremos servir a
massa, educá-la, mas, quando erra, fustigá-la. Enfim, resta o problema da
raça. Se a Itália estivesse cheia de doentes e loucos, a grandeza seria uma
ilusão. Portanto, os fascistas devem se preocupar com a saúde da raça, porque
a raça é o material com o qual queremos construir também a história.
Após resumir todo o século em três horas — partidos, nação, Igreja,
império, Estado, massas, raça —, resta ao fundador do fascismo o último
ponto do programa para o futuro. O último ponto do programa para o futuro é
ele, Mussolini em pessoa. Admite ter cometido erros por causa do seu
péssimo caráter. Mas isso não vai se repetir: “Na nova organização, quero
desaparecer porque vocês devem se curar do meu mal e caminhar sozinhos.
Só assim, encarando as responsabilidades e os problemas, vencem-se as
grandes batalhas.”
Quando, no fim da tarde, após três horas de palavras inauditas, Mussolini
enfim se cala, desencadeia-se no Teatro de Augusto um entusiasmo louco.
Gritos, cantos, aplausos que não acabam mais. O Duce é beijado, abraçado,
coberto de flores. A sessão é suspensa, a empolgação transborda para as ruas,
os fascistas desfilam em formação militar rumo ao Altar da Pátria.
Cinco dias antes, em 4 de novembro, no aniversário da vitória sobre os
austríacos, após atravessar todo o país em um trem especial entre duas alas
em júbilo de uma multidão comprida como toda a península, o corpo do
soldado desconhecido foi ali sepultado com a cerimônia mais solene até ali
celebrada na Itália unida. É a primeira vez que o cadáver de um soldado
desfigurado, irreconhecível, é sorteado para representar todos os outros, a
primeira vez que todos rezam diante da tumba dos próprios caros defuntos
como se estivessem diante do altar de um deus desconhecido. Só esse caixão
de mármore para um cadáver desconhecido pode ser a ara apropriada para o
culto de uma guerra em que o ato de matar se transformou em uma operação
mecânica e de uma morte que se tornou experiência coletiva, impessoal,
indiferente.
Enquanto as esquadras vindas do Norte, fugindo do controle dos líderes
políticos, iniciam combates nos becos dos bairros populares de Roma, os
fundadores do Partido Nacional Fascista, sob a liderança de Mussolini,
recolhem-se em prece no exato centro de uma cidade eterna, estrangeira e
adversa, permanecendo ajoelhados por mais de meia hora no mármore desse
soldado sem nome. Não restam dúvidas: a política está se tornando uma
religião.
Dentro de mim, lutam dois Mussolinis, um que não ama as massas, o
individualista, e outro absolutamente disciplinado. Pode ser que eu tenha
usado palavras duras, porém elas não foram dirigidas contra as milícias
fascistas, mas contra quem queria subjugar o fascismo a interesses privados
enquanto o fascismo deve proteger a nação. Prefiro a obra de um cirurgião,
que afunda a faca afiada na carne gangrenosa, ao método homeopático, que
demora a agir. Na nova organização, quero desaparecer porque vocês devem
se curar do meu mal e caminhar sozinhos.
O Império é a necessidade instintiva de cada indivíduo que busca ir longe
na vida e, quando os povos não sentem mais esse aguilhão, não são mais
carne viva.

Benito Mussolini, discurso no III Congresso Nacional dos


Fasci di Combattimento, 8 de novembro de 1921
Giacomo Matteotti
Roma, 2 de dezembro de 1921
Câmara dos Deputados

O fascismo não é mais um fenômeno passageiro, o fascismo vai durar.


Quando Giacomo Matteotti toma a palavra em 2 de dezembro para
denunciar pela terceira vez no Parlamento italiano o terror fascista no
Polesine, ainda ecoam no plenário de Montecitório as promessas do deputado
Mussolini pronunciadas no dia anterior. Os fascistas já haviam renegado o
pacto de pacificação em 14 de novembro, depois que seus ataques foram
rechaçados pelo proletariado nas ruas de Roma, permitindo, todavia, que
Mussolini expusesse aos parlamentares a lista dos mortos.
Matteotti declara que preferiria abrir mão do seu discurso, mas não pode se
eximir de dar voz ao grito de dor que se ergue das suas terras. O tom desse
início é mais pacato em relação às denúncias anteriores: uma nota
melancólica o suaviza. Desde o verão, sua oposição ao fascismo mudou de
rota, guiada por uma nova estrela de intransigência, mais maleável, menos
incandescente, uma estrela de redenção, mas também adulta, realista.
Na época da assinatura do tratado de pacificação, Matteotti trabalhou pela
constituição de um bloco antifascista que unisse socialistas e populares e,
depois, se dedicou à possibilidade de colaboração socialista com o governo
Bonomi em defesa das instituições democráticas. Na reunião do seu partido
em 15 de outubro, implorou aos companheiros que abandonassem dogmas e
pachorras, pediu que se abrissem “ao imenso mundo de trabalhadores que
está lá fora à espera dos fatos”.
Agora, no plenário de Montecitório, Giacomo Matteotti denuncia pela
primeira vez a violência fascista na presença dos próprios fascistas, eleitos
em abril graças a Giolitti. Apesar da nova sensatez de suas palavras, e não
obstante o gosto amargo em sua boca enquanto as pronuncia, sua obstinação
rigorosa exige que desbarate as farsas com fatos. O pacto, para as esquadras
provincianas, sempre foi “um pedaço de papel”; as grandes expedições
punitivas pararam, é verdade, não por cumprimento do pacto, mas porque se
voltaram contra os agressores. As pequenas expedições contra as aldeias e as
casas dos camponeses nunca pararam, as esquadras reivindicam sua autoria
abertamente em seus boletins de guerra, os bandos circulam armados com
porretes, usando o uniforme da morte, revólveres, mosquetes, bombas,
gasolina. Como sempre, nunca são punidos. Há mortos fascistas, é claro, mas
eles morrem atacando as casas. Em contrapartida, os mortos socialistas
caíram defendendo-as. O poder está na mão de associações terroristas,
organizações criminosas, assassinos profissionais.
Diante de tais palavras, as interrupções, o vozerio, os rumores que
fragmentaram o discurso do deputado socialista desaguam desde o início em
um protesto aberto. Cesare De Vecchi pula na cadeira gritando que não pode
suportar aqueles insultos. O presidente interrompe a sessão.
Quando, depois de 10 minutos, às 17h, a sessão é reaberta, Matteotti tenta
mais uma vez ser brando. No entanto, as palavras “delinquente”,
“assassinos”, “criminosos” ainda ressoam em sua garganta e, então, voltam a
ocorrer as interrupções, os gritos, os tumultos. No fim, a paixão pela justiça
cede mais uma vez à melancolia:
“Por muitos meses, pedi aos meus companheiros que padecessem todas as
violências, que não reagissem. Até cheguei a fazer, devo confessar, a
apologia da covardia, pois a covardia também pode ser um ato de heroísmo.
Mas, após longos meses de sacrifício, de espera, de tolerância, sinto,
Excelentíssimo Bonomi, e caros colegas da Câmara, que não é mais possível
continuar assim e que precisamos decidir mudar de comportamento.” A
transformação imposta aos homens de boa vontade pela violência fascista é,
segundo Matteotti, drástica, radical, lúgubre. É preciso que se despeçam
melancolicamente daquilo em que acreditaram, daquilo que foram e que
esperaram se tornar. É necessário que se convençam de que humanismo e
revolução, civilização e resgate não são compatíveis. A política, estrela da
redenção para gerações de socialistas, hoje se brutaliza. Ou nos adaptamos,
ou sucumbimos.
No dia seguinte, em réplica a Matteotti, dos bancos da direita levanta-se
um homem que, com apenas 30 anos, já é uma lenda. Aldo Finzi, o
demoníaco motorista do carro de Mussolini no duelo com Ciccotti, é do
Polesine como Matteotti e, como Matteotti, é filho de um rico proprietário de
terras. No entanto, diferentemente do deputado socialista, ele não repudiou a
própria casta. Pomposo, atrevido, talentoso, pioneiro das corridas de
automóveis, voluntário de guerra, foi condecorado várias vezes por bravura.
Finzi, acima de tudo, sobrevoou Viena com D’Annunzio. Em 9 de agosto de
1918, enquanto Matteotti estava confinado na Sicília por causa da sua
propaganda neutralista, Finzi assumiu o comando de 1 dos 10 aviões
monopostos que, às 6h, decolaram de Pádua, chegaram à capital austríaca e,
inundando-a com folhetos de propaganda caídos do céu, tornaram-se uma
lenda. Em suma, Matteotti e Finzi poderiam ser irmãos, criados na mesma
casa, com a diferença de que um decidiu sair mundo afora pelo portão dos
patrões, e o outro, pela porta dos fundos reservada aos empregados.
O ataque retórico de Finzi a Matteotti é frontal, simétrico, especular. Quem
levou a violência para o Polesine foi a propaganda de ódio dos socialistas, o
veneno de sua irresponsabilidade demagógica. O argumento é conhecido,
quase óbvio a esta altura, mas, vindo daquela voz gemelar, tem o efeito de
inverter totalmente a análise, reverter a acusação: “Não é culpa do fascismo
ter nascido nos nossos povoados mais do que em outros lugares; foram vocês,
apóstolos da fraternidade humana, que, instaurando um regime de terror,
obrigaram todos os honestos, até os de caráter mais pacífico, a ressurgir no
fim, pois nossa situação estava fixada em uma escolha trágica: defender-se ou
morrer.”
Nas súmulas parlamentares não há registro de uma réplica de Matteotti a
Aldo Finzi. Contudo, naquele mesmo dia, Giacomo escreveu à mulher, com
orgulho e uma ponta de vaidade, referindo-se a si mesmo na terceira pessoa:
“Ontem grande batalha. Imagine que puseram na cabeça que calariam Gian,
com tudo o que já tem que engolir, sobre a pobre gente sacrificada do
Polesine. Mas tiveram de me ouvir até o fim, implacavelmente. Pareciam ter
sido picados por víboras. Mas aquela gente não sente remorso nem qualquer
outro bom sentimento.”
Dez dias depois, a resposta de Velia, obrigada agora a criar também o
segundogênito Matteo sozinha, escondida, longe de um pai perseguido, não
demonstra nenhum traço da euforia adrenalínica legível nas palavras do
marido: “Quando penso nestes anos, que são os melhores, vividos assim, sem
um pouco de luz, fico achando que a vida da mulher é muito mesquinha e
qualquer desejo distante se esvai em mim como algo vão.”
O deputado Mussolini zombou ontem da indecisão socialista. Sim, essa é a
tragédia da nossa alma, ter de renegar o princípio por meio do qual chegamos
ao socialismo. Constatamos dolorosamente que não é mais possível unir
nossa aspiração de civilização à da redenção do proletariado. Não há mais
possibilidade de vida naquele terreno. Não podemos pedir aos nossos pobres
camponeses que deem toda a sua vida, gota a gota.

Giacomo Matteotti, discurso parlamentar,


2 de dezembro de 1921
Benito Mussolini
28 de dezembro de 1921

Tenho os olhos vendados. Estou deitado de costas na cama, com o tronco


imóvel, a cabeça jogada para trás, um pouco mais baixa do que os pés. O
quarto está sem luz. Escrevo na escuridão. Traço meus sinais na noite, que é
sólida como uma tábua pregada contra cada uma das coxas. Aprendo uma
nova arte.
O mundo cultural fervilha por causa da publicação de Notturno, o novo
livro de Gabriele D’Annunzio. O Vate o escreveu em 1916, enquanto jazia
imobilizado na cama, temporariamente cego por causa de um acidente aéreo
durante uma das suas mirabolantes aventuras de guerra. Ele o escreveu nas
trevas, palavra por palavra, em dez mil cartelas, cada frase em uma cartela. O
mundo cultural se pergunta se essa prosa violentamente visionária de um
cego provisório, mas a seu modo enxuta, seca como um osso, como um miolo
de noz, como o esqueleto sobre o qual se debruça, pode ser considerada uma
obra-prima menor do nosso poeta maior, ou então um acidente. Mas o mundo
cultural tem isso de bom: assim como seu Vate, objeto de questionamento,
está cego em relação ao fluxo do mundo, e é generosamente correspondido.
Além da nova edição de Notturno publicada pelo editor milanês Treves e
autografada pelo poeta, neste fim de ano Mussolini recebe um segundo texto
sobre o qual refletir. Trata-se de um projeto para a organização militar das
esquadras fascistas redigido pelo general Asclepio Gandolfo e encomendado
pela recém-nascida direção nacional do partido. Gandolfo concebeu o
Exército das milícias fascistas a partir do modelo da legião romana,
subdividindo-as em duas formações: Príncipes e Triários. As esquadras serão
compostas por grupos de vinte a cinquenta homens, quatro delas formarão
uma centúria; quatro centúrias, uma coorte; e de três a nove coortes, uma
legião. Esta última, comandada por cônsules, terá como insígnia a águia
romana, e seus alferes carregarão o Feixe Litório sob uma estrela da Itália.
Todos usarão o uniforme, mas cada legião, após a devida autorização, será
livre para adotar pequenos ornamentos e distintivos próprios. Todos os postos
serão eletivos porque, no âmbito regional, as esquadras gozarão da máxima
autonomia. O fascismo ainda é, por enquanto, uma agregação heterogênea de
guerreiros que elegem seu chefe, e não de soldados submetidos a ordens. Por
isso, o chefe político e o chefe guerreiro serão a mesma pessoa. O general
Asclepio destaca a dificuldade de conciliar a eletividade dos postos com o
princípio hierárquico, mas a estrela guia, e nisso todos estão de acordo, tem
três pontas: militarização, disciplina e hierarquia. A política — e aqui
também não pode haver dúvidas — é uma guerra civil contra os próprios
adversários apresentados como inimigos da nação. É o que todos fazem desde
o fim do primeiro conflito mundial, absolutamente todos, sejam fascistas ou
socialistas, só que os outros se limitam a comícios de protesto e a uma guerra
de símbolos, enquanto o fascismo vai além. É evidente que, para os fascistas,
a guerra nunca acabou.
Um sopro misterioso ergue da vastidão ofuscante relevos de formas
humanas e bestiais. Tenho à minha frente uma rígida parede de rocha
fervente esculpida como homens e monstros. A dificuldade não está na
primeira linha, mas na segunda e nas seguintes.
Até Bonomi, presidente do conselho de ministros, enfim percebeu que o
prognóstico é esse. Coitado, desde o verão se debate nas convulsões do
Estado liberal: os projetos para refrear as esquadras de nada valem, os
carabineiros tornam-se fascistas, o Conselho Disciplinar os absolve, a
magistratura nega fogo. Em 15 de dezembro, Bonomi fez nova tentativa ao
emitir uma circular para os governadores de província na qual equipara o
cassetete às armas que exigem licenças e inclui os grupos paramilitares
fascistas entre as formações ilegais. Foi frustrado em 48 horas pelas
disposições emanadas por Michele Bianchi, pelas quais o recém-eleito
secretário geral do Partido Nacional Fascista afirmava que as sessões do
partido e as esquadras de combate formavam um conjunto inseparável. A
diretriz foi publicada, descaradamente, no Il Popolo d’Italia.
Diante do secretário de um partido representado no Parlamento que declara
ter constituído uma milícia armada, um Estado digno desse nome teria
mandado prender todos os culpados. De imediato. Porém, o Estado não existe
mais. Bonomi limitou-se a enviar em 21 de dezembro uma segunda circular
para os governadores de província, na qual lamentava que muitas das suas
disposições em matéria de ordem pública ainda não estavam sendo
observadas. Em especial, a proibição do uso cotidiano, por parte de cidadãos
comuns, de bastões pontiagudos e maças de ferro.
Não tenho a defesa das pálpebras nem de outro escudo. O tremendo ardor
está sob a minha fronte, inevitável. O amarelo se torna vermelho, a calmaria
se agita. Tudo se torna hirto e cortante.
Michele Bianchi é o homem certo para a secretaria do Partido Fascista.
Calabrês, filho de burgueses, Bianchi foi primeiro socialista, sindicalista
revolucionário, antimilitarista, anticlerical e anti-imperialista; depois, como
Mussolini, em uma noite, bandeou-se com o mesmo ardor para o
intervencionismo, convicto de que a guerra mundial teria levado à revolução
proletária. A despeito da posição adotada na sua vida, Michele sempre a
defendeu com um fanatismo implacável, o mesmo que usa para fumar um
cigarro atrás do outro. Fisicamente insignificante, politicamente perspicaz,
não suporta fardas, usa a camisa preta sobre roupas à paisana e sabe ser alvo
de gozações por causa do aspecto funéreo. Expectoração estriada de sangue,
febrezinha constante, suores noturnos, perda de peso, o diagnóstico é patente.
Tuberculoso, Michelino Bianchi carrega em si a morte. Tem apenas 32 anos,
mas não lhe resta muito a viver. Todos sabem, qualquer um que o vê, até
mesmo o desconhecido que, no final do corredor, ouve os acessos raivosos da
sua tosse seca, entende. É esse destino de morte evidente e iminente que faz
dele o secretário perfeito para o Partido Nacional Fascista. Nenhuma ambição
pessoal de poder, dedicação fanática à revolução. E aquela autoridade
irrefutável que apenas os estertores da necrose pulmonar podem dar.
Está tudo escuro. Estou no fundo de um hipogeu. Estou no meu caixão de
madeira pintada, estreito e adaptado ao meu corpo como uma bainha, como
se o embalsamador tivesse de fato realizado comigo sua grande obra. Meu
companheiro está morto, sepultado, dissolvido. Eu estou vivo, mas colocado
exatamente na minha escuridão, como ele, na sua.
O ano-novo começa, em resumo, com os melhores auspícios. Foi o que o
fundador dos Fasci di Combattimento disse abertamente ao concluir seu
discurso parlamentar em 1o de dezembro: a ditadura é uma carta alta, que
pode ser jogada uma só vez. E, com a mesma clareza, escreveu em seu jornal:
a ditadura comporta riscos terríveis, porém não está escrito que virá um
período de mais liberdades, de mais democracia. Talvez as sufragistas tenham
tido seu tempo. Do governo de muitos e de todos, é provável que se retorne
ao governo de poucos ou de apenas um. Na economia, a experiência do
governo de muitos ou de todos já fracassou. Na Rússia, voltaram aos
ditadores das fábricas. Entretanto, o socialismo cometeu o erro de garantir um
mínimo de felicidade aos homens: vinho, frango, mulher e cinema. Mas na
vida a felicidade não existe. O fascismo não cometerá o mesmo erro grosseiro
de prometê-la.
De qualquer forma, a política não pode deixar de seguir a economia. As
massas já cortejam o ditador.
A glória se ajoelha e beija o pó. Saiamos. Mastiguemos a neblina. A
cidade está repleta de fantasmas. Os homens caminham em silêncio, envoltos
em névoa. Os canais fumigam. Alguns cantos de bêbados, vozerios,
algazarras. Pus a boca na plenitude da morte. Minha dor saciou-se no
caixão como em uma manjedoura. Depois não pude suportar outra nutrição.
E tremo diante dessa primeira linha que estou prestes a traçar nas trevas.
Mando o Il Popolo d’Italia com um artigo de Mussolini, que anuncia a
necessidade de uma ditadura, ou melhor, de um ditador — que afinal é ele
mesmo — para salvar a Itália.

Carta de Anna Kuliscioff a Filippo Turati, 24 de novembro


de 1921
1922
Benito Mussolini, Pietro Nenni
Cannes, 8 de janeiro de 1922

O dia se enterra na linha do horizonte. A sombra invade o pinheiral,


alcança as suntuosas villas no litoral, submerge o porto, engolindo a cidade.
Os hotéis e os cinematógrafos se iluminam, o ar invernal é ameno, morno. A
noite branda cai sobre Cannes.
Foi Aristide Briand, presidente do Conselho de Ministros da França, que
impôs a opulência elegante da Costa Azul para a conferência que lançará a
reconstrução econômica e diplomática da Europa devastada pelo apocalipse
bélico. Lloyd George, primeiro-ministro inglês, está em Villa Valletta; Briand
hospedou-se no Carlton; o exército de fotógrafos e cinegrafistas acampou
diante do círculo náutico, discute-se política em todas as línguas do mundo na
Croisette. Pela primeira vez, desde o fim da guerra, também é esperada uma
delegação alemã. Os alemães, os agressores, os derrotados, pediram uma
moratória para o pagamento das reparações. Os ingleses são favoráveis, já os
franceses, contrários. Briand luta corajosamente pela reconciliação entre as
grandes nações europeias, mas os jornalistas dão as últimas notícias de Paris.
São ruins. Ao voltar a Paris, Briand fica desanimado. Os revólveres dos
nacionalistas permanecem de tocaia à sombra das tamareiras. As palmeiras
são selvagens, as discussões, violentas. Só tarde da noite a agitação se
acalma.
A lua agora reina em um céu fulgurante de estrelas. O mar resplandece. As
ondas arrebentam com suavidade no dique do porto. Os dois homens que
vemos passear ao longo da Croisette vieram do outro lado da fronteira, da
Itália, um país em que não se passa uma semana sem que fatos sangrentos
sejam registrados. Discutem com animação, mas são compatriotas,
conterrâneos, velhos amigos, e foi impossível se evitarem. Pietro Nenni e
Benito Mussolini agora são inimigos, porém foram companheiros de cela nos
tempos da luta contra a guerra imperialista, suas mulheres ficaram amigas nos
parlatórios do cárcere, Pietro pegou no colo a pequena Edda, filha do amigo,
Benito o contratou como editor-chefe do seu jornal e o manteve a seu lado até
1919. Em abril daquele ano, Nenni fundou o primeiro Fascio di
Combattimento de Bolonha e aplaudiu a devastação do Avanti!. No entanto,
dois anos mais tarde, em março de 1921, correu para defender aquele mesmo
jornal durante o segundo ataque fascista. Naquele dia, de republicano
simpatizante dos fascistas tornou-se socialista, e agora está em Cannes como
correspondente do jornal cuja destruição aprovara.
Enquanto isso, o movimento fascista, nascido como antipartidos,
anticlerical, socialista, revolucionário, republicano, se transformou em um
partido conservador, monárquico, armado com um exército próprio, aliado
com a classe dirigente que os dois velhos companheiros de luta combateram
juntos quando jovens.
Os noctâmbulos — enquanto gesticulam embaixo das palmeiras —
conversam pessoalmente talvez pela última vez, e defendendo lados opostos.
É a segunda vez que Mussolini viaja para o exterior. Antes, saiu como
emigrante em busca de pão na Suíça. Agora, permite-se até uma esticada a
Paris para se comover com a recordação das fantasias revolucionárias juvenis
e para quebrar a rotina de brutalidades cotidianas. Ao chegar a Cannes, antes
de ir entrevistar Briand, jogou no cassino, perdeu. Depois, para disfarçar os
sapatos descosturados, foi comprar um par de polainas brancas.
— A guerra civil foi uma trágica necessidade. Assumo essa
responsabilidade. Era preciso quebrar a ameaça bolchevique, restabelecer a
autoridade, salvar a nação.
A voz peremptória de Mussolini, estridente, metálica, é a única coisa que
perturba o silêncio noturno. É tarde, o horário implora silêncio, mas Nenni o
acossa:
— As classes burguesas das quais você se tornou o instrumento chamam
de bolchevismo o direito dos trabalhadores de se organizarem em defesa de
suas conquistas.
— Não ignoro nada disso. Não sou o instrumento delas. No momento
oportuno, proclamei que era necessário fugir do círculo sanguinário da
violência.
— Foi então que você ficou sozinho.
— Quando falei de paz, riram na minha cara; precisei aceitar a guerra.
O fantasma do pacto de pacificação paira sobre a Croisette como a alma
abortada de uma criatura natimorta. Os integrantes das esquadras o
hostilizaram desde o início, os comunistas atacaram os socialistas por terem-
no assinado, os socialistas o assinaram só por necessidade tática. Os dois
velhos amigos sabem que, naqueles dias, os membros das esquadras
cantavam “Pancadas, pancadas, sempre pancadas/ se conosco não marchar/
pancadas em quantidade Mussolini também vai levar”, sabem que os muros
de Bolonha estavam cobertos de cartazes “quem traiu trairá”, e que o general,
para se manter na sela, teve de seguir os humores da tropa.
No entanto, Pietro Nenni não dá trégua ao velho companheiro:
— É o individualismo que tira você do caminho. Não sei o que vai se
tornar, mas tenho certeza de que tudo o que fizer será marcado pelo ferro
incandescente do arbítrio. Porque lhe falta o sentimento de justiça.
As ondas do porto no dique são agora o único ruído a romper o silêncio da
noite. Mas Nenni não terminou. No afã da discussão entre os dois
romanholos, o dialeto se mistura ao idioma. Há dois anos a política é briga.
Por quê? Os fascistas têm um programa? Obedecem a algo além do brutal
desejo de se impor?
— A paz que você oferece aos meus companheiros seria o fim deles. E
você está esquecendo coisas demais. Esquece que foi o líder do Partido
Socialista, que os socialistas atacados pelos fascistas hoje se tornaram
socialistas ontem em resposta ao seu apelo, você esquece os mortos...
Agora as vozes estão baixas, são quase dolorosas, o banco está sitiado
pelas ondas que arrebentam nos rochedos do quebra-mar. A noite insone se
torna uma cátedra a céu aberto para uma melancólica meditação sobre a
história.
Mussolini se cala, reflete. Nenni erra ao imputar tudo ao seu cínico
individualismo. O individualismo não dá trégua, está por toda parte, o
individualismo é a própria modernidade. Não é de forma alguma uma
tendência pessoal de Benito Mussolini. Desde que o indivíduo tomou o
centro de tudo, cada um está livre para buscar a própria ideologia, para
desenhar o estilo da própria existência, para brincar com as ideias como lhe
convém. O culto romântico dos sentimentos pessoais, da espontaneidade, das
palpitações do coração, da liberdade de amar a si mesmo, gerou tudo isso. O
cinismo, então, veio de brinde com todo o pacote. Agora até o bocejo do
último dos idiotas um pouco entediado se sente no direito de engolir o
mundo.
Benito Mussolini teme e despreza os membros das próprias esquadras, e a
recíproca é em boa parte verdadeira, mas, a esta altura, o círculo de ódio está
se fechando de cada lado. Talvez, se ele pudesse, voltasse atrás. Mas é tarde
demais. É preciso obedecer à baixeza de uma classe embriagada de vingança.
Na brisa noturna, sopra um vago pressentimento de triunfo.
— Sei que os mortos pesam. Sei disso mais do que qualquer um. Muitas
vezes penso no passado como uma terra estrangeira.
A voz do fascista está soturna, obituária. Seu tom é solene e definitivo. A
aurora desponta no horizonte. A brisa leva consigo o eco das últimas
palavras.
— Mas, na vida, não há lugar para sentimentalismo. Seus amigos precisam
entender isso. Estou tão pronto para a guerra quanto para a paz.
— Você perdeu o direito de escolha.
— Nesse caso, será a guerra.
Agora não há nada mais a ser dito. De que importam, nesta enorme
tragédia, as ilusões de dois pequenos homens em uma noite no litoral? Toda a
vida moderna é uma organização de massacres necessários. Se alguém se
rebelasse para defender a vida, seria esmagado em nome dela. A civilização
industrial, assim como a guerra, se nutre de carniça. Sangue no campo e
sangue na estrada: sangue embaixo da tenda e sangue na oficina.
Além disso, o cinismo está nos fatos, não nos olhos. Veja as francesas...
todas corrompidas e putas. Ele as viu babar nos bordéis de Paris. A mulher
francesa gosta de negros. Porque eles não têm um pau bem sólido e robusto,
mas comprido, compridíssimo, e parece que isso as diverte mais. Sim, as
francesas são loucas por negros. Todas.
Benito Mussolini volta sozinho pela Croisette, o maxilar marcante
encaixado nos ombros largos, na postura de um boxeador que se prepara para
receber um golpe, a cabeça inclinada em direção às próprias polainas brancas
de mendigo enfeitado.
Amerigo Dùmini
Prato, 17 de janeiro de 1922

Federico Guglielmo Florio não sabia montar, mas amava circular pelas
ruas do Centro com um chicote de cavalariço. Em Prato, todos se lembram
dele: o cigarro nos lábios, o chapéu abaixado sobre a testa e, na mão direita, a
chibata. Sentia prazer em bater no rosto dos operários dos lanifícios. O
sangue deles espirrava na vara forrada de couro. Para reeducá-los, dizia, para
reprimir a insolência do operariado produtor de lã vitorioso nas greves de
1919. Na verdade, sentia o prazer do escravocrata que açoita seus escravos. E
todos viam isso também.
Mas agora Federico Guglielmo Florio está em um caixão de mogno, levou
um tiro na barriga, à queima-roupa, de um operário que não queria ser
açoitado no rosto. Agora os sinos tocam em luto, as fábricas estão fechadas,
as bandeiras tricolores enlutadas surgem nas portas abaixadas das lojas, agora
está proclamado o luto na cidade, a Câmara do Trabalho foi incendiada, seu
secretário, ferido, a prefeitura, invadida. Agora Florio foi elevado a mártir
fascista, seu trabalho como membro das esquadras está totalmente absolvido.
O cortejo se moveu. A missa foi oficiada no Duomo pelo monsenhor
Vittori em pessoa, o bispo de Prato e Pistoia. Falou de uma trindade de luz
surgida do sangue, de veias que se esvaziam para formar a nova pia batismal,
invocou uma comunidade que liga os mortos aos vivos, as gerações passadas
às futuras, o dever amargo de ontem ao dever ainda mais amargo de amanhã.
Ao longo das ruas, dezenas de milhares de pessoas se apinham. O
movimento foi seco, enxuto como o disparo de um petardo, o toque de uma
trombeta. Legiões de fascistas assumiram a posição de alarme. No segundo
disparo, os galhardetes foram desembainhados, os fascistas fizeram a
saudação e a banda entoou o hino. No terceiro disparo, todos novamente em
posição de descanso. Depois, a marcha rumo ao cemitério.
Pela rua, a multidão, comovida, dócil, primitiva, como que suscitada pela
passagem do caixão, ajoelha-se na lama. Tudo é lentíssimo, a tristeza dilata o
tempo de maneira desmedida. Desfilam, uma após a outra, as autoridades
máximas do Partido Nacional Fascista, do secretário Michele Bianchi até
Dino Perrone Compagni, de Achille Starace a Pietro Marsich. Mussolini
mandou uma saudação, escreverá um necrológio no Il Popolo d’Italia.
Seguem-se todas as esquadras florentinas, com a “Desesperada” à frente.
Após o congresso da fundação, não se fez outra coisa além de discutir se o
partido deve ser guiado pelos líderes das províncias ou pelos líderes da
capital, pelos rases ou pelos deputados, pelos políticos ou pelos guerreiros.
As conversas inúteis de sempre. Aqui os dirigentes são todos integrantes das
esquadras, aqui não há distinção entre políticos e guerreiros, aqui os
adversários são odiados, os mortos são vingados, a tolerância é desprezada,
aqui a mentalidade é integralista, a conquista do poder é uma consequência
obrigatória, aqui a política é milícia, a vida é brutal, a morte é sagrada, aqui
só existem homens acomunados pela experiência da luta. A arte do
agrupamento humano tem seus cantos, guturais, seus mitos: a guerra, a nação,
a juventude. Durante a marcha rumo ao cemitério, a massa se ajoelha, o
tempo se dilata, a tristeza se sublima. Chegou o momento de o mito se
preparar para se tornar história.
Na chegada ao campo-santo, as formações fascistas se dispõem em um
quadrado sob os pórticos do cemitério. É quase noite. Silêncio profundo. No
centro, o caixão, nas laterais, quatro candelabros enormes. A luz funérea das
tochas transforma os vivos em uma legião de espectros. A brisa noturna desce
do céu como um sinal combinado na hora da acolhida. Cai a noite, começa a
vigília. A sentinela vigia a barreira. Esta noite e todas as noites seguintes.
Michele Bianchi lê a despedida de Mussolini: “Há nomes que têm o valor
de um símbolo. Nomes de batalha e emblemas de reunião. Esses, agarrados
pela morte, irrompem na imortalidade.”
Então, Bianchi se ajoelha diante da mãe do mártir. A mulher está pálida,
tensa, o olhar vazio parece fixar no calçamento uma mancha de sangue que
foi seu filho. À sua volta, todo o mundo está saturado de símbolos, todos os
mortos se levantam das tumbas para repovoar as casas dos vivos, tudo acabou
e ainda não começou.
Das esquadras, ergue-se um canto. É alegre, exuberante, quase descarado.
Exalta a juventude, refuta a inquietude de um mundo decadente, ultrapassado.
Todavia, é um canto duro, cheio de dor, o padre não o entende, a mãe que viu
o filho morrer parece balançar de leve a cabeça.
No fim, o hino alcança uma tonalidade estranha, uma nota profunda de
trompa que desperta os adormecidos. Depois cai novamente o silêncio, os
rostos colapsam endurecidos, concentrados, de repente envelhecidos. Os
fascistas fixam o caixão como se, de uma hora para outra, fossem ver
ressurgir um Cristo armado com um chicotinho.
“ONDE ESTÁ O CAMARADA FEDERICO GUGLIELMO FLORIO?!”
A voz do chefe da esquadra rasgou de repente a noite com um grito de
demência. Pede notícias do morto, que todos sabem que é prisioneiro do
caixão. Talvez tenha enlouquecido, talvez tenha bebido.
A mãe de Florio sobressalta, aterrorizada, reprime um soluço. O coveiro
empunha a pá como se fosse um porrete, com os nós dos dedos brancos, o
padre faz três vezes o sinal da cruz.
“PRESENTE!” Mil vozes de soldados sobreviventes saltam dos peitos em
uníssono. “Camarada Federico Florio, presente!”
O grito se apaga na noite. As flâmulas, purificadas, se inclinam. O rito
terminou. Ensinou a enterrar os mortos deixando-os insepultos.
Giacomo Matteotti
janeiro-fevereiro de 1922

Para Giacomo Matteotti e Velia Titta, sua mulher, a distância é como o


vento. Apaga as pequenas chamas e acende as grandes. Entretanto, no
inverno de 1922, a chama é a dos incêndios ateados por uma mão dolosa na
casa ancestral, a que foi dos avós, aquela em que deveriam criar os filhos em
paz. É a chama que, de súbito, arrancados da cama pelos membros das
esquadras no meio da noite, nus e tremendo diante de uma decisão grande
demais para qualquer um, os obriga a se questionar: “O que faremos
enquanto tudo arde?”
Giacomo e Velia se conheceram em julho de 1912, quando ela tinha 22
anos e ele, 27. Desde aquele dia, nunca deixaram de se escrever. Uma
correspondência densa, torrencial, tecida por cartas em sua maioria
dominadas por paixões tristes: introspecções, autocompadecimentos,
prostrações. A primeira carta foi enviada por Giacomo em agosto daquele
ano, a primeira resposta de Velia chega em setembro. Durante um ano,
tratam-se com pudica formalidade. Um amor liberado aos poucos.
Velia é a irmã mais nova do barítono Ruffo Titta, um dos mais célebres
cantores da época, nascida em uma família abastada e educada em
instituições católicas que marcaram sua alma com uma fé pensativa e
profunda, a ponto de cogitar fazer os votos, colocando os muros de um
convento entre si mesma e o mundo. Como alternativa ao repúdio definitivo,
quando garota, a freira frustrada escreveu e publicou romances.
Os dois jovens amantes epistolares se casaram em Roma, no monte
Capitolino, às 16h do dia 8 de janeiro de 1916 e, a partir daquele momento,
não pararam de se separar.
Giacomo, um perigoso agitador socialista, é logo confinado por três anos
na Sicília, segundo ele, o período mais tranquilo da sua vida. Entretanto,
quando ele volta para montar casa com a mulher, depois do fim da guerra, o
vento do distanciamento recomeça a soprar. Eleito para o Parlamento na
arrebatadora ascensão socialista de 1919, o deputado Matteotti se joga de
corpo e alma nos trabalhos parlamentares. Então começam as perseguições,
os banimentos, as solidões de animal caçado. Amor fortíssimo, necessidade
desesperadora um do outro, mas, na verdade, vidas separadas, penhoradas em
um afastamento essencial. Mesmo quando poderiam ficar juntos, Giacomo e
Velia preferem escrever um ao outro, de longe, ela em Fratta Polesine, ele em
Roma, ela em Varazze, ele em Milão. Dez anos de cartas melancólicas:
caríssima Velia, caríssimo Giacomo, amo você com sofrimento, como se
deve amar.
Em 7 de janeiro de 1922, na véspera do aniversário de 6 anos de
casamento, Giacomo Matteotti escreve de Verona para Velia: “Alguns anos
se passaram, e foram mais semeados de dor do que de alegria. Quando por
um período acreditávamos que reencontraríamos a tranquilidade, às vezes
encontrávamos apenas um novo transtorno [...]. Mas, apesar de tudo, a
esperança e o amor não diminuem.” Em seguida, porém, uma sombra —
sempre a mesma, eterna sombra — se estende sobre a lenda da esperança,
sobre a outra eternidade, a amorosa, e Giacomo acrescenta: “Talvez não seja
assim com você.”
Na semana seguinte, ele está em Vicenza. Privado do desmentido ou da
confirmação da qual depende sua vida, ele implora abertamente: “Diga que
me ama apesar desta vida tremenda que nunca nos deixa desfrutar da
companhia um do outro.”
Nas cartas seguintes, em meados de fevereiro, o mundo exterior ganha
outra vez primazia sobre o sentimento íntimo, o marido cede à palavra do
homem público e o lutador incansável, que substitui o apaixonado, atualiza
Velia Titta sobre a situação política. O governo Bonomi caiu. A esperança de
que nascera, o pacto de pacificação que deveria amansar a guerra civil,
desapareceu há meses. Já em novembro era possível entender que suas
tentativas de desarmar os fascistas fracassariam, e quem o manteve
artificialmente vivo até fevereiro, por cálculos de conveniência, foi
Mussolini. Paradoxalmente, quem o afundou foram justo os socialistas. Por
não quererem entrar em uma coalizão governamental com os partidos
capitalistas, preferiram denunciar mais uma vez a impotência do Estado
diante dos criminosos em vez de reforçá-lo à custa de um acordo. O resultado
é que agora todos começam a se convencer de que não é possível resolver a
questão tratando o fascismo como um mero problema de polícia. Pelo
contrário, será necessário levá-los ao governo. Enquanto isso — Matteotti
informa a mulher —, arrasta-se a mais longa crise parlamentar da história
italiana e, ainda por cima, dentro do Partido Socialista está prestes a se
consumar a ruptura entre reformistas e maximalistas. Outra cisão.
A resposta de Velia lança uma boia de salvação. É a réplica de uma
náufraga que se agarra desesperadamente ao bote, que não aceita a loucura de
quem está disposto a se afogar na vida para se salvar na história. Não lhe
importam as brigas entre reformistas e maximalistas: “Com pessoas tolas e
presunçosas, não chegamos a conclusão alguma.” Na semana seguinte,
reforça a dose, deslocando a chama do ressentimento para o marido: “Tenho
certeza (afinal, entre nós, podemos falar) de que você, na verdade, não sente
essa obstinação [...]. Eu quase diria que, em certas situações, você se
comporta como um garoto [...] se for possível, alguns dias de repouso lhe
farão bem.” Giacomo protesta, veemente, consternado, como faria um garoto
decepcionado: “Você se precipita ao condenar. Aliás, chega ao ressentimento.
Eu não acreditava ser possível para alguém que ama ter ressentimento do que
o outro faz [...]. Claro, você está muito distante; e não apenas quando estou
distante.” Outra vez aquela sombra...
A resposta de Velia ao marido é de uma dureza exasperada, traz ecos das
acusações de extremismo dos seus inimigos: “Não é preciso exagerar a tal
ponto nem mesmo no idealismo [...]. Desde que você entrou para a luta, só
conheci amarguras, desilusões, períodos sombrios [...]. A luz deve estar em
você, porque fora nunca a vi.” Eis que a sombra se move para engolir o
mundo.
Imagino que todos vocês tenham ficado decepcionados com Bonomi [...]
ele continuou sendo o socialista que se contenta, mas é a negação mais
absoluta de um homem de Estado. Como pensador inteligente, como
indivíduo das vias intermediárias, como homem honesto, que diz o que
pensa, como homem desprovido de vaidades pessoais ou de interesses
parciais, Bonomi é isso e não se pode pedir mais dele [...] porém, se limitou
aos meios morais e espirituais para sanar a psicologia manicomial do
fascismo e do comunismo.

Filippo Turati, carta a Anna Kuliscioff, dezembro de 1921

Um governo decidido a reprimir a violência fascista deveria estar disposto


a enfrentar a guerra civil, porque os fascistas são fortes, audazes, cheios de
vontades. No fim das contas, é uma situação terrível, o país se aproxima do
precipício dia após dia.

Anna Kuliscioff, carta a Filippo Turati,


8 de fevereiro de 1922
Benito Mussolini
Milão, 25 de fevereiro de 1922

Nos primeiros meses do ano, o deputado Mussolini se dedica mais do que


de costume à vida mundana e social. Frequenta o Scala e o Teatro Manzoni,
assumindo ares de espectador bem informado — para escândalo dos habitués,
horrorizados pelo seu smoking combinado com sapatos amarelo-canário —, é
padrinho de casamento de camaradas e chega a ser visto no jóquei de San
Siro com binóculos, chapéu-coco preto e as indefectíveis polainas brancas,
que entraram definitivamente para o seu guarda-roupa após o retorno da
França. De resto, os industriais milaneses começaram outra vez a financiá-lo,
fazendo, ainda por cima, depósitos diretamente nos caixas da direção central,
diferentemente dos proprietários rurais, que fazem contribuições para os
Fasci di Combattimento das províncias. O reacionário Achille Ratti,
arcebispo de Milão, que no ano anterior abençoou no Duomo as flâmulas
fascistas, ascendeu ao trono pontifício justamente enquanto Mussolini subia
até o Quirinal, convocado pelo rei, para consultas após a enésima crise de
governo. Enfim, a alta sociedade estende a mão. Por que não segurá-la? Por
que se limitar a mordê-la?
Em 25 de fevereiro, Mussolini aceita participar do banquete em sua honra
após a inauguração da flâmula de um grupo de bairro, fascista, batizado em
sua homenagem. Deixa-se envolver pelo entusiasmo dos jovens militantes,
toma um cálice de Barbera, dança uma mazurca com uma apoiadora formosa
e irradia confiança. A crise de governo por fim terminou, e o que o deixou de
bom humor foi o bigode de Luigi Facta, um inócuo, cinzento e tolo advogado
de província que o rei nomeou primeiro-ministro, um homem honesto,
íntegro, cândido, cuja única ambição política é não desagradar seu patrono
Giolitti e cujo único orgulho pessoal é o grotesco bigodão em forma de
guidom de bicicleta ao qual dedica a primeira meia hora de cada manhã após
ter se deitado infalivelmente antes das 22h.
A crise ministerial de fevereiro foi devastadora para o país. O rei demorou
quase um mês para encontrar alguém disposto a assumir a responsabilidade
do governo. Uma crise às escuras, sem vislumbre de luz no fim do túnel, uma
situação perenemente crepuscular. A gota d’água para a crise ocorreu pela
falência da Banca di Sconto, cujos proprietários, os irmãos Perrone,
industriais que enriqueceram com os lucros da guerra, fizeram a limpa nos
depósitos dos correntistas para financiar as próprias instalações, jogando na
sarjeta milhares de pequenos poupadores. A partir daquele momento, no
Parlamento, teve início um jogo de massacre.
Em um delírio nominalista de ações suicidas, os dois grupos que apoiavam
a maioria liberal de Bonomi — Democracia Liberal e Democracia Social —
se fundiram em um terceiro — Grupo Democrático —, com o propósito de
derrubar o próprio primeiro-ministro. Em apoio a Bonomi, restaram apenas
os populares de Dom Sturzo, também divididos entre integrantes da liga
“branca” de esquerda, inimigos do fascismo, e conservadores próximos ao
Vaticano que, por sua vez, opunha-se com veemência a Sturzo, fundador do
partido dos católicos. Dom Sturzo, após a eclosão da crise, recusou-se a
apoiar que se desse um novo cargo para Giolitti, seu adversário histórico e
único homem capaz de domar o fascismo. Assim, enquanto até os socialistas,
que mais do que todos os outros teriam se beneficiado com uma coalizão
antifascista, se preparavam para se liquefazer em três vertentes, um de seus
deputados, o reformista Celli, ao apresentar uma moção que pedia o
fortalecimento da ordem pública, obteve involuntariamente a queda de
Bonomi. Enquanto os vetos cruzados, as rivalidades pessoais, os ódios entre
facções jogavam a última pá de cal no caixão da vida parlamentar, Mussolini,
espertíssimo, com um golpe de mestre, evitou o isolamento e a formação de
um governo antifascista apoiando a pauta do socialista Celli, proposta contra
ele. O rei e Dom Sturzo, desde sempre contrário a Giolitti, fizeram o resto,
bloqueando o caminho da volta do confiável estadista e nomeando Facta
como sua sombra.
A essa altura, o Estado está a caminho da ruína total, e Mussolini percebe
isso com clareza. Só resta dar um belo suspiro de alívio, dançar com uma
garota bonita e tomar um cálice de Barbera.
O bigodão de Facta está ótimo, o que de fato o preocupa é a mesa dos
violentos, lá embaixo, no canto mais escuro do círculo recreativo, a mesa em
que se bebe no gargalo. Enquanto, em Roma, Facta e seu bigode se
vangloriam de terem conseguido formar o novo ministério, os membros das
esquadras sentados em torno daquela mesa ignoram até os nomes dos
ministros. Com aquela gente ali, o problema é sempre o mesmo: para eles o
poder significa comer, beber, trepar e arrebentar cabeças. Sempre armados
com apenas uma faca, o instrumento da eterna briga, ninfomaníacos da
violência, embriagados pelos próprios impulsos, dedicados à descarga do
prazer imediato, eles se movem sempre na zona dos espasmos, incapazes de
vivenciar dentro de si mesmos a espera, o esforço contido, o sofrimento
ascensional da verdadeira batalha. Com eles, nenhuma respeitabilidade,
nenhuma elevação é possível. Eles puxam você para baixo.
Atrás daquela mesa, agora também está sentado Cesarino Rossi. Após ser
expurgado por vontade dos rases em agosto, durante o conflito sobre o pacto
de pacificação, ele voltou às fileiras em 2 de fevereiro como secretário do
Fascio di Combattimento milanês e se alinhou com os rases. O dirigente
político tarimbado, o manipulador de congressos e assembleias, o mediador
perspicaz renasce como líder das esquadras lombardas. Agora Rossi tem ao
seu lado Amerigo Dùmini, o espancador florentino refugiado em Milão que
se vangloria dos homicídios cometidos e que foi o artífice do desastre de
Sarzana. Rossi não dá mais um passo sem o respaldo de Dùmini. E Dùmini,
claro, logo se entrosou com Albino Volpi, que também está na mesa de canto
no fundo do salão de baile.
De resto, ainda não é possível dispensar aquela gente. Assim, em
novembro, centenas de pessoas em uma sala do tribunal de Milão ouviram o
deputado Mussolini inocentar com falso testemunho Albino Volpi da
acusação de ter assassinado a tiros de revólver Giuseppe Inversetti, um velho
operário que estava jogando cartas no círculo socialista Spartacus em Foro
Bonaparte. Graças aos seus conhecimentos na chefatura de polícia, o
deputado Mussolini também arranjou dois documentos falsos para Dùmini,
que se colocara sob a proteção de Cesare Rossi.
Não é possível, portanto, fugir dos violentos: estamos sempre, de qualquer
maneira, acuados. É preciso evitar olhar para a mesa no fundo do salão, torcer
para que o fundo do salão não venha até você. O centro da pista está cheio de
garotas bonitas. Olhe para aquele lado.
O quadro mundial também é positivo. Basta levantar o olhar para o
horizonte amplo e distante. Benito Mussolini fundou no início do ano uma
revista de pensamento político, intitulou-a Gerarchia e entregou a direção
para Margherita. Chega de submundo, agora é pensar alto, mudar para bairros
elegantes! Inaugurou-a com um artigo intitulado “Para que lado vai o
mundo?”. A resposta, ele mesmo deu: o mundo vai para a direita. A farra
democrática acabou em desgosto. Terminada a festa, acordamos de manhã
com a camisa suja de sangue, uma grande dor de cabeça e a cara enfiada na
privada vomitando a refeição. A alma está cansada, as pessoas têm saudade
da força. A longo prazo, não se distinguirá mais entre respeitabilidade e
exterminismo. Trata-se mais uma vez de se entrincheirar e esperar o pior.
O regime atual desmorona. Resta apenas uma coleção de estadistas
decrépitos que comunicam sua paralisia ao Parlamento e aos órgãos do
Estado. Os governadores de província não têm mais como se orientar. Que
espetáculo! Nós, fascistas, nos importamos pouco com isso. É extraordinário
como os membros das minhas esquadras ignoram até os nomes dos ministros
demissionários e daqueles em exercício.

Italo Balbo, Diario, 25 de fevereiro de 1922

Os povos se movem ansiosos em busca de instituições, de


ideias, de homens que representem pontos sólidos na vida, que
sejam portos seguros [...]. Os regimes de esquerda, como os
que foram instaurados em toda a Europa entre 1848 e 1900 —
com base no sufrágio universal e na legislação social —,
fizeram o que foi possível [...]. O século da democracia morre
em 1919-1920 [...]. O processo de restauração da direita já é
visível nas manifestações concretas. A orgia da indisciplina
cessou, os entusiasmos por mitos sociais e democráticos
acabaram. A vida volta para o indivíduo. Uma retomada
clássica está acontecendo.

Benito Mussolini, “Para que lado vai o mundo?”,


Gerarchia, 25 de fevereiro de 1922
Italo Balbo
Ferrara, 12-14 de maio de 1922

Nas suas terras, Italo Balbo tem a situação sob controle. Ao longo de 1921,
atacadas pelas expedições das esquadras, 80% dos governos socialistas e
católicos do Norte da Itália foram dissolvidos, e os governadores de província
nomearam novos comissários. Em muitos casos, foram os próprios prefeitos
socialistas, aterrorizados, que renunciaram. Na província de Ferrara, as
massas rurais migraram em bloco das ligas vermelhas para os sindicatos
fascistas. Alguns dos chefes das ligas até se rebaixaram à humilhação de pisar
publicamente nas próprias bandeiras. Centenas de milhares de assalariados
rurais temporários socialistas se tornaram fascistas no intervalo de um ano.
Um milagre eucarístico de transmutação do vermelho em negro.
O ano-novo também começou da melhor maneira. Em 6 de janeiro, em
Oneglia, Balbo encontrou em segredo o general Gandolfo e Perrone
Compagni, o rás da Toscana, para iniciar a organização nacional da milícia
fascista. Em 11 de abril, durante a visita do ministro da Agricultura a Ferrara,
sem nunca perder o gosto pelo escárnio, Balbo aumentou a aposta ao afrontar
pessoalmente Cesare Mori, governador da província de Bolonha, o último,
odiadíssimo, irredutível representante do Estado que está impondo o respeito
à lei. Enquanto o ministro se cercava de banqueiros, burocratas e sacristãos,
com o seu costumeiro esgar estampado no rosto, o rás de Ferrara se
aproximou de Mori com a ameaça de que bastaria um assobio seu para
milhares de fascistas atacarem e sequestrarem o ministro. Mori teve de
prometer a libertação de Gino Baroncini, um dos chefes das esquadras
bolonhesas, preso durante uma expedição punitiva.
Em 25 de abril, Balbo está em Milão com Mussolini para ilustrar-lhe seu
projeto. A situação é a seguinte: para os guerreiros, a primavera é a estação
dos grandes ataques, mas, para os assalariados rurais temporários da região
de Ferrara, é a estação da fome. Durante o inverno, graças ao acordo que
obriga os proprietários rurais a contratar seis trabalhadores a cada trinta
hectares, os temporários arranjam trabalho, mas, entre abril e maio, ficam
ociosos. Os números são bíblicos: cinquenta mil, setenta mil desempregados
sofrendo de pelagra. No passado, o Estado remediava com 10, 15 milhões em
obras públicas. Mas, agora que os campos estão nas mãos dos fascistas, o
governo de Roma, influenciado pelos deputados socialistas, quer que os
camponeses paguem sua conversão ao fascismo passando fome. A ideia de
Balbo é explosiva: ocupar Ferrara com uma mobilização de massa que
obrigue o governo a ceder e demonstre a capacidade dos fascistas de
conseguir pão para os seus adeptos. Além disso, o plano teria a vantagem de
obter trabalho para os trabalhadores rurais temporários à custa do Estado sem
prejudicar os interesses dos proprietários rurais que financiam os Fasci di
Combattimento. Ao fim da apresentação, como sempre, Balbo solta uma
risadinha.
Mussolini o escuta em silêncio. No sorriso diabólico daquele jovem alto,
magro e forte, vê o passado e o futuro. O fascismo discípulo e herdeiro da
lição socialista: as massas não mais relegadas às margens da história, mas
convocadas ao palco da política. A atuação mesclada à violência, o teatro de
massa, a cidade do socialismo transformada em palco para a récita da
passagem do poder ao fascismo com os camponeses que interpretam a si
mesmos. É um projeto louco.
O Duce o autoriza. As condições, porém, são claras: se der certo, o mérito
é do fascismo; se for um fracasso, o problema é de Balbo.
A execução do plano começa já no dia seguinte. Balbo envia para todos os
secretários da província uma circular ultrassecreta na qual ordena que fiquem
de prontidão para a mobilização. Tudo deve dar certíssimo, as ordens são
peremptórias, detalhadas, ascéticas: proibidos os espancamentos, mesmo dos
piores inimigos, absolutamente vedado o consumo de bebidas alcoólicas,
mesmo em quantidade limitada, e suspensas também as visitas aos bordéis.
A mobilização começa à meia-noite de 11 de maio. De todas as casas mais
isoladas dos campos da região de Ferrara, arregimentados por secretários dos
Fasci di Combattimento, a pé, de bicicleta, em carroças, a bordo de barcas
puxadas por cavalos ou por homens nas margens que ladeiam os canais do Pó
de Goro e de Volano, milhares de miseráveis se põem em marcha na calada
da noite rumo à cidade.
Ferrara acorda na manhã seguinte invadida por um exército descalço:
cinquenta mil trabalhadores rurais emaciados pela fome, endurecidos por uma
crosta de poeira, mantas jogadas nas costas, nada além de pedaços de polenta
e queijo nos bornais, que saciam a sede nos hidrantes, controlados por
piquetes fascistas, desfilam enfileirados ao longo do Corso della Giovecca
sob os olhos arregalados dos burgueses.
O campo adentrou a cidade, a cidade está invadida e paralisada. Balbo
mandou cortar os cabos telefônicos, requisitou os edifícios escolares para os
aquartelamentos, ordenou o fechamento de todos os estabelecimentos
comerciais. A mobilização, considerada impossível, é um sucesso que supera
todas as previsões. Milhares de miseráveis acampam nas ruas, deitados sobre
enxergões. O castelo está cercado pelo exército da fome; o governador da
província, aterrorizado, pede uma entrevista com o líder do exército invasor.
Quando Balbo se apresenta na ponte levadiça, é acompanhado pelo grito de
milhares de bocas famintas e desdentadas.
Pálido e congestionado, com o costumeiro colete branco atravessado por
uma corrente de ouro sobre a barriguinha redonda, o governador Bladier
recebe o ultimato de Balbo: a polícia deve ser reconvocada aos quartéis, a
ordem pública será garantida pelos fascistas, os camponeses não se
desmobilizarão até que o governo garanta a concessão de obras públicas.
Passam-se 48 horas, 2 dias e 2 noites de tergiversações, tratativas,
comícios e acampamentos, o forno comunal produz 20 mil quilos de pão.
Então, na aurora de 14 de maio, chega a notícia: o ministro Riccio cedeu em
tudo, o Estado capitulou, a vitória é total. Balbo ordena a desmobilização.
Ferrara agora é sua.
De Milão, Mussolini exulta, mas fica pasmo diante da repentina mudança
de bandeira daqueles trabalhadores rurais que até ontem eram socialistas e
hoje são fascistas. Sente a grandiosidade do momento, porém, dentro de si,
uma fibra oculta de pressentimento angustiado treme diante da rapidez da
inversão da fidelidade dos povos. Efêmera ou duradoura? Aparência ou
substância? Uma onda que passa ou algo que fica?
Caro amigo, você deve ter entendido pelo manifesto federal no dia de hoje
como é indispensável a nossa demonstração de força contra o governo para
obter aquelas indispensáveis obras públicas que podem aliviar o desemprego
na Província [...]. Portanto, prepare tudo para não ser pego de surpresa pela
eventual ordem de deslocamento que posso lhe enviar de uma hora para outra
[...]. Ocorrerá em Ferrara uma manifestação que deverá ser a mais formidável
do fascismo de Ferrara, e que funcionará como termômetro da nossa potência
[...]. Ao receber a ordem, na hora indicada, você deverá estar em Ferrara com
todos os seus fascistas e com quantos operários dos Sindicatos conseguir
reunir [...]. Confiando no seu espírito de disciplina, na sua fé, comunico ainda
que nunca tive a intenção de mandar uma ordem mais peremptória do que
esta. Saudações fraternas.

Italo Balbo,
circular secreta aos Fasci di Combattimento da província, 27
de abril de 1922

Os proprietários rurais, que, ao que parece, são em geral os verdadeiros


financiadores dos Fasci di Combattimento e, mais especificamente, da
recente greve, devem ser considerados os criadores inconscientes do
desemprego devido ao egoísmo que os impeliu a negligenciar o cultivo
racional dos terrenos e, por conseguinte, uma utilização mais ampla da mão
de obra. Sem a manutenção do compromisso de dar a terra aos camponeses,
agora se associaram aos sindicatos fascistas para pressionar o governo e os
seus representantes e obrigá-los a remediar a própria covardia com as
finanças públicas.

Relatório do governador da província Gennaro Bladier,


exonerado após a ocupação de Ferrara,
19 de maio de 1922
Benito Mussolini
Milão, 13 de maio de 1922

“Escravidão agrária.”
A acusação é uma infâmia. O que a torna insuportável é o fato de ter sido
feita por D’Annunzio, o Vate, o poeta, o homem das grandes empreitadas e
dos grandes ideais, o guerreiro da glória pura e desinteressada. Nas últimas
semanas, D’Annunzio tem saído do silêncio ao qual se ateve até o momento
em seu dourado exílio voluntário em Gardone só para olhar do alto, com
nojo, para a cloaca fascista e marcá-la com o selo da infâmia: escravidão
agrária. Um semideus irado e calculista, sempre à espreita no alto do seu
Olimpo, sempre pronto para ordenar aos homens mesquinhos que se afainam
lá embaixo com os braços mergulhados até os cotovelos na merda e no
sangue: saiam da frente porque daqui em diante eu assumo.
O homem que parece ter colocado na boca de D’Annunzio aquela fórmula
maligna e brilhante está diante da espada de Benito Mussolini. Chama-se
Mario Missiroli, é o príncipe do jornalismo italiano, um liberal de direita, um
maçom, diretor do Il Secolo e ex-diretor do Il resto del Carlino, jornal de
Bolonha do qual foi expulso por causa do ostracismo dos integrantes das
esquadras locais.
Missiroli nunca antes empunhara uma espada; porém, quando Mussolini o
insultou publicamente, chamando-o de “soleníssimo covarde”, reagiu com
um bilhete de desafio no qual impunha condições muito duras. Em seguida,
treinou todos os dias com o famoso espadachim Giuseppe Mangiarotti e se
apresentou com absoluta pontualidade no velódromo do Corso Sempione
acompanhado por Francesco Perrotti, um afável redator-chefe do seu jornal.
São 18h de 13 de maio, e esse refinado intelectual completamente
inexperiente em duelos espera o ataque com coragem, trajando uma
magnífica camisa de seda aberta no peito. Insuportável.
Todos sabem que Missiroli tem razão. Nos campos emilianos,
abandonados a si mesmos pela destruição das ligas socialistas, os camponeses
se rendem devido à fome. Os proprietários rurais travam uma impiedosa
guerra de revanche que aniquila décadas de reformas sociais. As corporações
fascistas negociam diretamente com os patrões, abolindo, um após o outro, os
acordos rurais, ou então, quando isso não é possível, suspendendo o caráter
coletivo dos contratos. Dessa maneira, cada camponês está sozinho diante da
ferocidade vingativa do patrão. Quando ainda encontram forças para
protestar, das outras províncias, ainda mais desesperadas, chegam como
nuvens de gafanhotos fura-greves escoltados por esquadras armadas para
desfazer as paralisações.
Obrigado a engolir a predominância do fascismo das províncias, Mussolini
tentou dar uma justificativa teórica no seu jornal, fazendo uma distinção entre
agrários — grandes latifundiários conservadores — e rurais — pequenos
proprietários revolucionários. O fascismo é rural, não agrário, escreveu. Mas
de nada serviu. Diante dele, está a acusação de escravismo usando uma
magnífica camisa de seda descaradamente aberta no peito.
No entanto, o Fundador faz todo o possível para civilizar o fascismo. No
início de março, viajou para a Alemanha a fim de ampliar os próprios
horizontes. Viu com os próprios olhos os alemães usarem a máscara da
república e do pacifismo. Por baixo dela, a Alemanha também se volta outra
vez à direita. Contudo, precisou voltar para a Itália às pressas devido à
corrente opositora de Pietro Marsich, o rás dannunziano de Veneza, que de
novo questionou sua liderança acusando-o mais uma vez de traição
parlamentar dos ideais originais do movimento. Seguiu-se um duelo fratricida
com sabres contra o major Baseggio, um dos participantes da reunião em
Piazza San Sepolcro, idealizador do arditismo, fundador da mítica e
desastrosa “Companhia da Morte”, apoiador de Marsich.
Depois, em 26 de março, após ter se engalfinhado com Baseggio,
Mussolini conseguiu fazer desfilar em Milão, a capital do socialismo italiano,
em fileiras compactas, sem incidentes, vinte mil jovens fascistas com camisas
pretas. Eram tão bonitos, másculos, compostos e respeitáveis que as senhoras
em Piazza del Duomo os aplaudiam após conferir a maquiagem. Em seguida,
porém, nas províncias, as esquadras bárbaras se lançaram de novo ao ataque a
fim de arrastá-lo para a lama. A verdade é a seguinte: ele é um homem
sozinho, não tem amigos e não pode se dar o luxo de tê-los.
No Conselho Nacional de 4 de abril, Mussolini falou claramente. A aura de
simpatia que cercava o fascismo em 1921 está desvanecendo. A afirmação do
movimento nos campos acontece no momento em que a burguesia sente que
as razões para a ação das esquadras estão em declínio. Os socialistas não
metem mais medo. Os industriais milaneses oferecem uma gorjeta de
agradecimento com uma mão enquanto, com a outra, estão prestes a demitir o
servo devasso. Falam até em voltar a negociar com a Rússia soviética.
Arriscam, portanto, ficarem cercados. As surras devem terminar. A violência
defensiva é sacrossanta, mas quem entra nas casas, quem se embosca atrás de
uma sebe não é fascista. A hipótese da insurreição não pode ser excluída,
mas, neste momento, é irrealista. É necessário inserir o fascismo plenamente
na vida nacional, é necessário aceitar o decadente jogo eleitoral. Não se pode
excluir uma participação no governo: o Parlamento deve ser desprezado,
claro, mas é preciso usá-lo.
Dino Grandi o apoiou, todos votaram sua moção, mas de nada isso adianta
também. O Partido Fascista continua a encorpar sua massa de afiliados,
porém, com exceção da direita, nenhum outro partido representado no
Parlamento o quer no poder. Os socialistas os odeiam, os populares os
temem, os democratas e os liberais moderados os desprezam. Houve
encontros por debaixo dos panos com Facta. Fala-se de não mais do que três
subsecretários. As costumeiras e miseráveis migalhas. Insuportável. O
fascismo não tem amigos e não os quer.
Quando Mussolini se lança sobre Missiroli, seu rosto está lívido de raiva.
No primeiro assalto, a ponta da espada se parte. A arma é substituída. Ao
empunhar a espada reserva, o desafiado se lança novamente contra o
desafiador. Missiroli mantém a calma, defende os golpes. O atacante se arroja
com raiva, abrindo a guarda a cada assalto, com pranchadas de corte, como
se, em vez de brandir uma espada, empunhasse um sabre.
Perrotti, o pacífico redator-chefe do Il Secolo que Missiroli arrastou até lá
como padrinho, repete obsessivamente para o dr. Binda, médico do duelo: “É
preciso interromper a luta, é preciso encerrá-la!”
No terceiro assalto, Missiroli é ferido. A ferida é considerada leve. Os
duelistas são levados de volta ao terreno. Mussolini, furioso, lança-se mais
uma vez ao ataque. Perrotti agora grita abertamente: “É preciso encerrá-la, é
preciso encerrá-la, alguém vai acabar morrendo!”
No sétimo assalto, a ponta da espada de Mussolini penetra profundamente
no feixe venoso do antebraço direito do adversário. Sua inferioridade agora é
patente. O duelo é concluído. Nenhum dos dois duelistas se diz satisfeito.
Enquanto o dr. Binda remedia o braço ensanguentado de Missiroli, sempre
calmo, seu improvável padrinho, agitado por um tremor histérico, aproxima-
se delicadamente e fala aos sussurros em seu ouvido da indecifrável doença
da sua filhinha. Implora que ele vá visitá-la. Levaram-na para a praia, em
Salsomaggiore, na esperança de que o ar salubre a ajude a se recuperar. É sua
única filha, uma criaturinha deliciosa, é insuportável pensar que ela deve
sofrer, o mundo é um lugar regulado pelo mal.
Ambrogio Binda, o médico pessoal de Mussolini, aceita a súplica e, no dia
seguinte, parte para Salsomaggiore. Na semana seguinte, Francesco Perrotti,
o representante de Mario Missiroli no duelo do velódromo do Corso
Sempione, tem a intenção de tirar a própria vida.
Não posso me queixar do andamento dos negócios da minha empresa, nem
das outras, prevalentemente elétricas, nas quais tenho participação [...]. A
retomada das relações econômicas com a URSS permitirá ampliar a ação da
Itália até o estabelecimento de empresas nossas na Rússia [...]. Julgo que a
Itália fez bem em tomar a iniciativa desse tratado. Para nós, o perigo
comunista está em declínio. As forças de organização dos combatentes e as
afirmações do fascismo criaram um clima de resistência à propagação das
teorias bolcheviques.

Do diário de Ettore Conti, magnata da indústria elétrica,


abril-maio de 1922

O desfile em si teve, todavia, um resultado grandioso, imponente,


ordenado. Participaram 20-30 mil pessoas; quem poderia avaliar o número?
Todos aqueles jovens entre 17 e 25 anos, galhardos, ágeis, belos rapazes
disciplinados militarmente, se não soubéssemos a que torpes objetivos dirige-
se sua ação, surtiriam um efeito mágico de beleza e força.

Anna Kuliscioff, carta a Filippo Turati sobre a parada


fascista de 26 de março de 1922 em Milão

Os senhores duelistas estarão munidos de luvas e sapatos de passeio. É


proibido o uso de lenços para enfaixar os pulsos e de correia para prender a
arma ao pulso. As calças poderão ser presas por cinto com largura máxima de
4 centímetros. O combate acontecerá com o torso nu. É proibido o uso de
suspensórios.

Dos acordos preliminares para o duelo Missiroli-Mussolini,


13 de maio de 1922
Leandro Arpinati
Bolonha, 28 de maio — 2 de junho de 1922

“Você deve voltar ao seu posto” foi a ordem pessoal de Mussolini, que
escreveu de Roma em 19 de fevereiro, e ele voltou ao seu posto de líder dos
fascistas bolonheses. Rina, agora sua esposa, se desesperou.
Leandro casou-se com ela no civil em 8 de junho de 1921, pouco antes de
ser afastado. Sua índole anarquista sempre o contrapôs instintivamente ao
modelo ferrarense de submissão das massas rurais aos sindicatos por meio
das esquadras e, por esse motivo, em 20 de junho a assembleia já elegera
Gino Baroncini como secretário da federação provincial no seu lugar.
Durante o confronto com os rases a respeito do pacto de pacificação,
Arpinati, embora fosse contrário, permanecera fiel a Mussolini. Não fora à
convenção dos dissidentes e também não participara da marcha de Balbo em
Ravena. Sua corrente saiu derrotada da assembleia seguinte dos Fasci di
Combattimento de Bolonha, e ele nem sequer foi encarregado no congresso
de fundação do partido. Chegaram a caluniá-lo com a acusação de uso
arbitrário do patrimônio social. Excluído de tudo.
“Vamos dar um jeito”, prometeu Leandro à mulher, e voltou a estudar.
Renovou a matrícula na universidade e pediu transferência para a Escola
Superior de Agricultura. Rina Guidi, esposa de Arpinati, saboreou um raro
momento de felicidade plena, entrevendo no horizonte a miragem de uma
vida simples, trabalhadora, pacífica. Mas em fevereiro Benito Mussolini
chamou seu marido de volta para a linha de fogo.
Os socialistas não são mais os inimigos, e sim o Estado. Em Bolonha, o
Estado se chama Cesare Mori. Como muitas vezes acontece com os inimigos
irredutíveis, Mori, embora seja o único governador de província italiano que
está combatendo com afinco as esquadras, talvez seja o único que os
membros das esquadras escolheriam espontaneamente como líder. Maxilar
quadrado como o de Mussolini, criado no orfanato de Pavia, comissário em
Trapani nos primeiros anos do século XX, Mori combateu a máfia com
métodos inflexíveis e violentos, sobrevivendo a numerosos atentados. Voltou
à Sicília em 1915, após formar esquadrões especiais, e debelou com aqueles
mesmos métodos o banditismo, chegando a matar pessoalmente dois
malfeitores e prendendo até trezentos deles em um único dia.
Agora, enviado por Bonomi a Bolonha com plenos poderes de
coordenação regional da ordem pública, Mori não muda. Com três lances
simples, acua a organização fascista: ao impedir a circulação de furgões nos
fins de semana, conteve as expedições das esquadras; ao impor centrais de
emprego governamentais, tirou dos sindicatos fascistas o controle das massas
rurais; ao proibir a imigração de mão de obra sazonal, está destruindo a ação
dos fura-greves nas paralisações dos assalariados rurais temporários. A
polêmica feroz dos fascistas contra a incapacidade do Estado exige que
Cesare Mori, que é a encarnação da sua eficiência, seja abatido.
O caminho foi indicado por Balbo ao ocupar Ferrara. É necessário
marchar. Marchar não mais apenas para impor a própria vontade ao Estado,
mas para se contrapor abertamente a ele. A marcha é uma técnica, mas é
também uma forma. É preciso erguer a praça e jogá-la como uma pedra
contra as janelas do governador Mori.
Leandro Arpinati se dirige a Italo Balbo. Em 28 de maio, quando Michele
Bianchi, secretário nacional do partido, ordena a mobilização de todas as
esquadras de Bolonha, Balbo se prepara para descer até a cidade com os seus
homens de Ferrara. A partir do dia 29, os fascistas chegam aos milhares das
regiões de Codigoro, Portomaggiore e Copparo e se revezam em turnos de 30
horas. Os cidadãos de Bolonha assistem estupefatos ao espetáculo de
milhares de homens que pernoitam durante quatro noites sob os pórticos, em
leitos de palha comprimida.
Entretanto, a marcha, mais uma vez, dá o braço à violência. Ao longo do
caminho, os fascistas devastam, como sempre, sistematicamente, todas as
sedes socialistas, comunistas, da Câmara do Trabalho e das cooperativas
agrícolas. A novidade, porém, é que agora surram sem distinção deputados
socialistas e comissários da segurança pública. Quando Mori põe cordões de
isolamento formados por carabineiros, guardas reais e agentes à paisana em
volta do Palazzo d’Accursio, os fascistas simulam uma pressão no centro e os
forçam com uma distração no lado oposto, rompendo-os. Quando os
esquadrões a cavalo avançam, os fascistas ficam parados, agitando lenços ou
explodindo petardos. Os cavalos se assustam, empinam e derrubam os
cavaleiros. Arpinati, apesar de tolerar na própria cidade a iniciativa de Balbo
e de Grandi, guia uma esquadra no ataque ao cárcere de San Giovanni in
Monte para libertar sessenta prisioneiros fascistas.
O Estado cede. Em 29 de maio, um comitê de cidadãos da burguesia de
Bolonha envia um telegrama ao ministério do Interior pedindo a destituição
de Mori. No dia 30, mandam de Roma Giacomo Vigliani, diretor de
segurança pública, para realizar um inquérito. O senador do reino acusa Mori
de zelo excessivo. Boa parte da imprensa nacional apoia a insurreição fascista
contra ele. Os oficiais de cavalaria, chamados para incursões mais enérgicas,
não escondem a simpatia pelos rebeldes.
Sitiado há três dias no seu gabinete, o governador da província envia
continuamente telegramas a Roma para receber ordens. Suas mensagens
obtêm respostas vagas, elusivas. Enquanto isso, chegam da praça os cânticos
dos acampamentos: “Mori, Mori, você deve morrer/ com o punhal que
afiamos/ Mori, você deve morrer assassinado.”
Se alguém abrisse fogo, seria um massacre. Mas a ordem não chega. O
braço de ferro se rompe com uma zombaria. O método Balbo prevê que a
marcha deve ser guiada com “alegria juvenil”. Então, Giacomo Vigliani,
senador do reino, inspetor enviado pelo governo, informa a Roma que os
membros das esquadras se enfileiram, revezando-se, e, com perfeita
disciplina, um depois do outro, durante horas põem o pau para fora das calças
e mijam no palácio do governador da província. O círculo do ridículo se
fecha em torno do Estado italiano e de Cesare Mori, que o encarna.
Após cinco dias de ocupação em Bolonha, e garantida a transferência de
Mori, em 2 de junho Mussolini promulga a ordem de desmobilização. “Esse
exemplo”, lê-se na conclusão, “marcará uma época na história italiana.
Assumo formalmente o compromisso, caso se torne necessária uma retomada
da agitação, de liderá-la entre vocês. Contudo, então, ela terá amplitude mais
vasta e objetivos mais distantes.” Depois de Ferrara, depois de Bolonha,
começa-se a pensar em Roma. É claro como o dia que a marcha de Balbo fez
escola.
Naquelas mesmas horas, Arpinati — que, entre os candidatos que não
foram eleitos em maio de 1921, foi o que recebeu mais votos — é informado
que, pela invalidação de candidatos fascistas que não cumpriam o requisito
da idade mínima, ele irá para o Parlamento.
O deputado Arpinati faz as malas, beija Rina e também parte para Roma.
Italo Balbo, na página de 5 de junho, comentando a ocupação de Bolonha,
anota em seu diário: “Ensaio geral da revolução.”
Eles ainda não entenderam que os bandidos e a máfia são duas coisas
diferentes. Nós atingimos os primeiros, que, sem dúvida, representam o
aspecto mais visível da criminalidade siciliana, mas não o mais perigoso.
Vamos desferir um verdadeiro golpe mortal na máfia quando nos permitirem
fazer uma operação de pente-fino não apenas entre as figueiras-da-índia, mas
nos corredores das sedes dos governos provinciais, das chefaturas de polícia,
dos grandes mansões e, por que não, de alguns ministérios.

Declaração de Cesare Mori a um colaborador depois que os


jornais publicaram a manchete “Golpe mortal na Máfia”,
Sicília, 1917

Uma brisa de reação antifascista [...] se abateu sobre o Vale do Pó. Mori,
essa espécie de vice-rei asiático, esse imundo guardinha de Nitti [...] continua
na Emília redimindo seus tristes faustos com um crescendo trágico.
Perseguições, violações de domicílio, prisões se sucedem, as liberdades
estatutárias estão abolidas.

Comunicado da Federação de Módena do Partido Nacional


Fascista, fevereiro de 1922

O senhor governador Mori chamava por qualquer motivo o Coronel ao seu


gabinete, às vezes até à noite.

Do relatório do inspetor-geral de segurança pública Paolo


Di Tarsia sobre a ocupação fascista de Bolonha,
15 de julho de 1922

Esse homem que exerceu com a desengonçada e pedantesca


arrogância de um guardinha o cargo especial de vice-rei do
Vale do Pó não é mais nada.

“Mori, aquele cão”, L’Assalto, órgão do Fascio di


Combattimento de Bolonha,
1o de julho de 1922
Benito Mussolini
26 de julho de 1922

“Do deputado Miglioli e do deputado Garibotti tira-se para sempre a água


e o fogo.”
No fim, quem fez cair o governo de Facta foi aquele falastrão do Roberto
Farinacci, o rás de Cremona. Um homem capaz de banir da própria terra com
um único édito tanto o deputado dos socialistas quanto o dos católicos,
errando a conjugação do subjuntivo. No entanto, o empurrão final no
presidente do Conselho de Ministros foi dado justamente por esse
personagem do folclore italiano, esse filho de um policial do Molise que
emigrou para Cremona, esse intervencionista inflamado que não interveio,
esse ferroviário patriótico que os adversários apelidaram de “marquise”
porque, depois de tê-la invocado, passou a guerra embaixo dos alpendres de
uma estação de trens da província, esse fundador do jornal Cremona Nuova
que tropeça na gramática, esse chefe de esquadra que nunca participa
pessoalmente da luta, esse homem de meia-tigela fanático pela violência
exterminadora.
Com o início do verão, os integrantes das esquadras de Farinacci em
Cremona lançaram uma campanha capilar de devastação de todas as ligas
camponesas e juntas municipais, tanto “vermelhas” quanto “brancas”, tanto
socialistas quanto católicas: 35 governos municipais demissionários em 2
meses por “impossibilidade de suportar a situação”. Em 16 de junho, os
camisas negras ocuparam o governo da província e incendiaram a casa de
Miglioli, o deputado católico que liderava havia anos as ligas camponesas
“brancas”, ameaçando os proprietários rurais de acabarem “como Judas”,
pendurados de ponta-cabeça “nas árvores das nossas terras”. Em 5 de julho,
em um dia abafado de verão, Farinacci entrou sozinho, sorrateiro, no palácio
da prefeitura — o vigia estava dormindo à sombra fresca do átrio — e, do
gabinete particular do prefeito, em papel timbrado e com selo da prefeitura,
notificou o governador da província que havia se autonomeado prefeito de
Cremona. Dez dias mais tarde, voltou com milhares de membros das
esquadras para sitiar a cidade: três dias e três noites de devastações,
assassinatos, impotência governamental. Mais dois dias e o governo caiu.
Agora todos estão outra vez contra o fascismo. Durante o debate
parlamentar, o deputado Treves definiu abertamente como “eunucos” os
ministros de Facta; Turati, evocando o retorno à Idade Média, foi ainda mais
longe: “Se não corrermos para reparar os danos, estaremos diante da ruína de
uma civilização”, gritou com a voz consumida por uma ira próxima ao
desespero.
E os jornais liberais dessa vez apoiaram o protesto socialista: o Corriere
della Sera enfim deplorou a chantagem da violência fascista, no La Stampa
de Turim, Luigi Salvatorelli desmascarou as inércias cúmplices dos ministros
de direita: ou defendem o Estado, ou nem mais um minuto no poder.
Benito Mussolini, como de costume, carrega sua cruz embebida do sangue
dos outros. Nos dias da violência, nas colunas do Il Popolo d’Italia, louvou a
guerra de conquista: “Como sempre, nos chamam de bandidos, canalhas,
bárbaros, escravagistas, marginais, vendidos”, escreveu. “Não damos a
mínima. Vocês, senhores, imprimem inúteis palavras de injúria. Nós
respondemos sabotando política e sindicalmente seus ossos.”
Contudo, nos bastidores da propaganda, foi ele quem impôs a Farinacci a
desmobilização de Cremona. Após uma primeira recusa, precisou ameaçá-lo
fisicamente. Em 18 de julho, até se apressou em tranquilizar o Estado, por
meio do governador da província de Milão, em relação à sua vontade de
conter os membros das esquadras para chegar ao governo pelas vias legais.
Desde junho, Mussolini está batendo em todas as portas a fim de romper o
isolamento dos fascistas. Em seus esforços, lisonjeou o rei, os velhos liberais
de Nitti, até mesmo o odiado Dom Sturzo e os socialistas reformistas.
Tentativas fracassadas. Então, o deputado Mussolini tomou a palavra no
Parlamento em 19 de julho, renovou sua habitual ameaça e compartilhou de
coração aberto seu tormento, seu dilema entre partido de governo ou partido
da insurreição.
Depois, o Chefe dos fascistas utilizou mais uma vez sua velha jogada e fez
um movimento surpresa ao votar contra Facta, acompanhando o voto dos
católicos e dos socialistas, que apresentaram a moção de desconfiança
justamente pela incapacidade do primeiro-ministro de defendê-los dos
ataques das esquadras. Todavia, foi só mais um hábil passinho para o lado
para não ficar soterrado pelas ruínas do enésimo desmoronamento. Nada
mais.
A verdade é que o tormento, esse sim, existe, embora não exista dilema
algum. Os fascistas não dão a mínima para nada nem para ninguém, os
fascistas se proclamam autênticos representantes da nação sã, máscula, forte,
contra os fantoches melancólicos que se apresentam no teatro de
Montecitório; mas, no fundo, se o Parlamento italiano é uma nojeira — e
quanto a isso não pode haver dúvidas —, a Itália não é melhor. De nada
adianta ter ilusões, a ruína não tolera distinções, não há nenhum desvio,
nenhuma margem, nenhuma fenda. A estratégia de Mussolini é sempre a
mesma: ele espera, espera, espera... porque deve-se esperar a passagem do
morto diante da porta de casa. No entanto, o morto já entrou porta adentro, o
cadáver da democracia liberal está arrumado entre a poeira e os ácaros do
sofá há tanto tempo que ninguém mais nota. Não, não há dilema algum, a
violência não tem aberturas. A tática de Mussolini é sempre aquela: dosar,
diluir, dilatar e, por fim, negociar em uma posição de força. E por isso
estamos condenados a sempre espreitar o horizonte por sobre a copa das
árvores incineradas para avistar o fogo do próximo incêndio. A única
verdadeira diferença entre o Duce e os membros das suas esquadras é que,
para ele, a violência é uma simples ferramenta afiada, ao passo que, para os
violentos, é um sangrento desejo de luz, uma sede, um apetite; para ele, a
briga é uma pequena realidade da vida, para eles, o choque entre grupos
armados é um mito. Não existe partida.
Enquanto Mussolini, no dia 22 de julho, em Roma, subia com suas
polainas brancas as escadas do Quirinal para ser consultado pelo rei da Itália,
em Trecate, nos cafundós da província de Novara, as esquadras de De Vecchi
demoliam a Câmara do Trabalho usando a tração de ônibus presos com
correntes às colunas de sustentação, depois completavam o serviço
explodindo cargas de dinamite. No dia seguinte, em Magenta, ali perto, cenas
selvagens.
Agora é 26 de julho de 1922 e, no seu escritório de Via Lovanio, em
Milão, Benito Mussolini espera e treme. Filippo Turati, o velho patriarca do
socialismo italiano, pela primeira vez aceitou subir aquelas mesmas escadas
para conversar com o rei. Os comunistas já dizem que ele se prostituiu, mas
os católicos enfim parecem dispostos a aceitar os socialistas no governo, e os
socialistas, a dele participar. Está anunciada a união do marxismo e do
cristianismo, as duas Igrejas, as duas religiões do século XX. Dizem também
que o rei escreveu a Giolitti, que está em Vichy tratando-se nas águas
termais. Caso os socialistas de fato entrassem em seu primeiro governo ou
Giolitti fosse chamado para formar o seu sexto, em ambos os casos seria o
fim para os fascistas.
Enquanto isso, ele negocia, sempre, ainda, com todos, nacionalistas,
liberais, democratas, populares, até com os socialistas. Depois só lhe resta
esperar andando de um lado para outro no seu escritório de Via Lovanio.
Deve, todavia, prestar muita atenção para não pisar nos quadrados de
granilito preto da moldura ornamental do pavimento com gregas. A
superstição é a única fé religiosa adequada a esse mundo infame, o medo de
um deus menor, desconhecido, bizarro e vingativo.
O fascismo já está perto de resolver seu tormento interno: ser um partido
legalista, ou seja, um partido de governo, ou querer ser um partido
insurrecional [...]. De qualquer maneira, nenhum governo poderá se sustentar
na Itália se tiver em seu programa as metralhadoras voltadas contra o
fascismo [...]. Se porventura surgisse desta crise um governo de violenta
reação antifascista [...] nós responderemos com insurreição [...] espero que o
fascismo chegue a participar da vida do Estado por meio de uma preparação à
conquista legal. Mas também existe a outra eventualidade, que preciso, por
dever de consciência, apresentar a fim de que cada um de vocês, na crise de
amanhã [...] leve em consideração estas minhas declarações, que confio à sua
meditação e à sua consciência. Terminei.

Benito Mussolini, discurso parlamentar,


19 de julho de 1922
Italo Balbo
Ravena, 27-30 de julho de 1922

Enquanto, em Roma, Benito Mussolini negocia com todos para levar os


fascistas ao governo ou para evitar um governo antifascista, em Ferrara, Italo
Balbo recebe uma carta de Ravena: “A situação é gravíssima. Mataram
Balestrazzi a pauladas. Tiroteio geral. Sete mortos. A cidade está nas mãos
dos subversivos. Venha logo.”
A mensagem foi enviada por um rapaz de 20 anos que, em 1917, aos 15
anos, falsificara a data de nascimento para se alistar como voluntário nos
Arditi. É forte, atlético, está sempre na primeira fileira nos confrontos com os
socialistas. Em Fiume, onde corria para cima e para baixo com os “uscocos”,
o corpo de piratas encarregado do saque dos navios mercantes para o
reabastecimento da cidade sitiada, D’Annunzio em pessoa o rebatizou de
“Jim dos olhos verdes”. Chama-se Ettore Muti.
A situação é clara, a mesma de sempre: durante o conflito entre sindicatos
fascistas e socialistas para o transporte do trigo debulhado, um carreteiro
fascista morreu com o crânio aberto a bordoadas. Ao receber a carta, Balbo
transmite para todas as esquadras da Romanha a ordem de marchar sobre
Ravena e parte.
Balbo é assim, o homem das marchas, das barracas, dos cantos, dos
acampamentos, e sorri, sorri sempre. Para ele, ir para a direita ou para a
esquerda significa simplesmente agir, movimentar-se, manobrar, marchar,
acampar. A partida hoje será disputada em Ravena, fora do Parlamento.
Enquanto na cidade Balbo negocia com os líderes socialistas e
republicanos da Aliança do Trabalho, na província, os militantes combatem.
Em Cesenático, Leandro Arpinati foi vítima de um atentado. Levou um tiro
na praça da aldeia enquanto dirigia um automóvel a caminho de Ravena. Saiu
ileso, mas o homem que estava com ele, Clearco Montanari, um dos
fundadores do Fascio di Combattimento bolonhês, morreu na hora. O ataque
à Confederação Provincial das Cooperativas Socialistas para vingar
Montanari é lançado à noite.
O velho edifício, baluarte das ligas vermelhas, está destruído. Como as
manchas de sangue no lenço de um tuberculoso, o incêndio da construção
projeta seus clarões no escuro. Ravena não tem um aqueduto, as chamas do
enorme material acumulado ao longo dos anos pelo trabalho de milhares de
camponeses ardem por horas, livremente. O incêndio parece inextinguível.
Como primitivos nas grutas, os homens, hipnotizados pelo fogo, permanecem
olhando.
Então o círculo se abre, rompido pela chegada de um idoso que se
desespera. Invoca a intervenção dos bombeiros, retorce as mãos, arranca os
cabelos, quer se jogar entre as chamas. Chama-se Nullo Baldini, é o fundador
da cooperativa, um deputado socialista moderado, toda uma existência
dedicada aos assalariados rurais temporários da Romanha. O que ele vê é o
incêndio dos sonhos e dos esforços de uma vida.
Baldini tem 60 anos. Aos olhos de Ettore Muti e dos outros membros das
esquadras com 20 anos, é um velho. Ninguém encosta nele. No seu diário,
Balbo anota: “Temos de criar no adversário a sensação de terror.” Nos
instantes em que aquele velho inconsolável enfrenta, intacto, sua vida
destruída, o terror paira sobre todos.
Em seguida, a marcha recomeça, com os seus cantos, suas gargalhadas,
seus acampamentos. De Roma, Michele Bianchi telegrafa a Balbo em nome
do partido para que ele cesse imediatamente a violência. Mussolini está
negociando para entrar no governo e eles, com aquelas bravatas, tornam tudo
impossível. Entretanto, nos povoados e nos campos, já se contam nove
mortos, os homens tremem de medo, sozinhos na imensa planície. Roma está
distante. Aqui é necessário decidir outro ângulo de ataque, aqui a sensação de
terror é o sentido da luta.
Ignorando a reprovação de Michele Bianchi, Balbo vai até o chefe de
polícia e ameaça queimar todas as casas dos socialistas de Ravena se, em
meia hora, não obtiver caminhões abastecidos com gasolina para levar
embora os fascistas. A chefatura de polícia os fornece. Ele embarca no
primeiro veículo da fileira, e todos partem.
A marcha tem início às 11h do dia 29 de julho, no exato momento em que
Filippo Turati, pela primeira vez na história do Partido Socialista, sobe as
escadas do Quirinal para se encontrar com o rei, e termina na mesma hora do
dia seguinte. São 24 horas contínuas de viagem, durante as quais ninguém
descansa um instante sequer nem toca em comida. São 24 horas de
extermínio.
Os fascistas passam por Rímini, Santarcangelo, Savignano, Cesena,
Bertinoro, por todos os centros e grandes casas das províncias de Forlì e
Ravena. Sua passagem é marcada por uma coluna de fogo. Toda a planície da
Romanha, até as colinas, arde.
Voltam a Ravena ao raiar do dia. Quando a notícia chega em Roma, todas
as tratativas são interrompidas. Até a tentativa de Turati virou fumaça: os
socialistas proclamaram outra vez greve geral.
Tomo meu lugar em um automóvel que abre a longa fileira de caminhões,
e partimos. Esta marcha, iniciada às 11h de ontem, dia 29, terminou hoje, na
manhã do dia 30. Quase 24 horas contínuas de viagem, durante as quais
ninguém descansou um instante sequer nem comeu. Passamos por Rímini,
Sant’Arcangelo, Savignano, Cesena, Bertinoro, por todos os centros e as
grandes casas entre a província de Forlì e a província de Ravena, destruindo e
incendiando todas as casas vermelhas, sedes de organizações socialistas e
comunistas. Foi uma noite terrível. Nossa passagem foi marcada por altas
colunas de fogo e fumaça.

Italo Balbo, Diario, 30 de julho de 1922


Amerigo Dùmini
Milão, 3 de agosto de 1922

Na frente do Scala, o mais célebre teatro de ópera do mundo, onde, em


1783, as notas alegres de O barbeiro de Sevilha celebraram pela última vez
as doçuras da vida antes da revolução, onde, em uma tarde de 1846, durante o
ensaio geral de Nabuco, os operários se comoveram até as lágrimas ouvindo
aquele coro inaudito que evocava a primavera dos povos, onde, em 1907, a
angústia sem futuro de Madame Butterfly fez o mundo se despedir para
sempre do século romântico, um caminhão enlouquecido se lança sobre a
multidão. Na lateral do caminhão assassino, uma escrita em tinta preta:
“Terror!”
Em pé na caçamba, com as mangas da camisa preta arregaçadas revelando
os braços musculosos, um homem forte se segura nas laterais e comanda o
ataque. Filho de um dos mais ricos proprietários de terras da Lomellina, 32
anos, louro-acinzentado, duas pesadas bolsas serosas sob os olhos
febricitantes, Cesare Forni passou a juventude em meio a cocaína, quartos de
bordéis e salas de bilhar de Turim. Depois, como muitos homens da sua
geração, encontrou na guerra o sentido para uma vida sem sentido. Capitão
de artilharia, foi condecorado oito vezes por bravura no campo de batalha. Ao
voltar à casa do pai, semeou terror nas suas terras, liderando esquadras
fascistas na destruição metódica de todas as ligas camponesas da comarca e,
depois, de toda a Lombardia meridional. Após surrar centenas de
camponeses, obrigou-os a se afiliarem aos sindicados fascistas pregando sua
total subordinação ao partido. Seus homens o veneram. Trouxe de Mortara
setecentos deles até Milão para acabar com a greve dos subversivos em sua
fortaleza. Agora, o caminhão no qual Cesare Forni se ergue como um louco é
lançado a toda velocidade contra o Palazzo Marino, sede da junta comunal da
cidade onde nasceu o socialismo italiano. Bem na frente do Scala.
Os fascistas tentam tomar o Palazzo Marino ao longo de todo o dia, mas o
comandante da divisão de Milão concentrou milhares de guardas reais na sua
defesa. Os integrantes das esquadras, entocados sob os pórticos do teatro,
confrontam-se com os soldados a cavalo desde a manhã. Um deles, escalando
as grades das janelas de uma rua lateral, conseguiu penetrar no palácio,
expondo a bandeira tricolor na sacada da sala do conselho comunal, mas logo
foi preso. Agora, porém, o motorista do caminhão, incitado por Forni, pisa no
acelerador diante dos cordões de isolamento da polícia.
Os policiais se afastam por um triz, a dianteira do caminhão explode contra
a grade em ferro batido de estilo art nouveau floral. O som das ferragens se
mescla aos relinchos dos cavalos. Enquanto o clangor ensurdece os policiais,
vários carros repletos de fascistas irrompem na praça, impedindo a manobra
do pelotão de guardas montados. Ao mesmo tempo, três colunas de fascistas
despontam de Via Verdi, Via Manzoni e Via Santa Margherita. Gritam
“Avante!”, atropelam os militares, invadem o palácio. Por um instante, tudo
para: o mundo se cristaliza em um grito contra o bom senso, em um grito de
revolta total contra a realidade, na necessidade irrefreável de derrubá-la.
Cesare Rossi está louco de alegria. Espera por esse momento há 48 horas,
desde que os trabalhadores de toda a Itália proclamaram a greve geral para
protestar contra a “coluna de fogo” de Balbo, mas, na verdade, parece que o
aguarda desde sempre. Amerigo Dùmini está ao seu lado desde a alvorada,
ordenou-lhe que ficasse grudado como uma sombra para proteger sua
retaguarda e começou a distribuir ordens às esquadras que chegavam de toda
a Lombardia. Mussolini não está presente: deveria estar em Roma, mas
ninguém consegue encontrá-lo. Dizem que, assanhado por uma nova
conquista, levou-a em um passeio romântico até os Castelos Romanos.
Arnaldo, seu irmão, a cada meia hora liga para as centrais telefônicas de
todos os hotéis entre Ariccia e Frascati. O Duce está sumido.
Eis o que aconteceu: assim que soube da “coluna de fogo” de Balbo, a
Aliança do Trabalho tentou uma última resistência e proclamou greve geral a
partir da meia-noite de 31 de julho. Batizaram-na de “greve legalista”: todas
as organizações operárias e camponesas da Itália prontas a lutar de maneira
compacta pela defesa das liberdades políticas e sindicais. Uma daquelas
batalhas que não permitem revanche, o jogador aposta tudo na última cartada,
preparado, em caso de derrota, para dar um tiro na cabeça.
A notícia da greve foi antecipada sem querer por um jornal operário de
Gênova, e os planejamentos foram por água abaixo. O rei, que ainda
negociava com os socialistas o apoio a um governo de esquerda, convocou
Facta e, em lágrimas, implorou que ele formasse um novo gabinete sem os
socialistas. Às 17h, Facta já havia formado um ministério idêntico ao
anterior. Às lágrimas de um rei não se pode dizer não.
Em 1o de agosto, no início da agitação, Michele Bianchi, não menos
exaltado do que Cesare Rossi por aquela oportunidade imperdível oferecida
pela cegueira dos socialistas, promulga o ultimato dos fascistas: “Damos 48
horas para que o Estado dê prova da sua autoridade em relação a todos os
seus dependentes e a todos aqueles que atentam contra a existência da nação.
Ao fim desse prazo, o fascismo reivindicará plena liberdade de ação e
substituirá o Estado no caso de mais uma prova da sua incompetência.”
Mussolini, nas colunas do seu jornal, exulta: “Pedimos apenas isto: ter campo
livre para lutar, para viver, para sofrer, para vencer; ou melhor: para triunfar.
E triunfaremos.”
Agora, enquanto circula pelos escritórios do prefeito de Milão invadidos
pelas esquadras, Cesare Rossi está de fato triunfante. Continua a se virar para
o seu guarda-costas e a repetir que aqueles pobres dementes dos líderes
socialistas, ao proclamar a enésima greve geral, ressuscitaram o único
fantasma que ainda poderia justificar a violência de Balbo: o espectro da
revolução bolchevique. Um medo irracional em troca de uma esperança
irracional.
“Você já pensou”, repete Rossi, radiante, ao seu guarda-costas, “que agora
os fora da lei não são os nossos, que há meses incendeiam e matam, mas são
eles, que fazem greve para que a lei seja respeitada!?”
A ação à mão armada dos fascistas se inicia em toda a Itália ao término do
prazo do ultimato, um contra-ataque desenfreado, impune, mais uma vez
sustentado pelo medo dos burgueses e dos liberais. Em Milão, quem se
encarregou de começar a partida foi Aldo Finzi, que, às 8h, saiu do depósito
de Via Leoncavallo dirigindo pessoalmente o bonde da linha número 3. Os
membros das esquadras, das janelas do veículo, apontavam os mosquetes e
metralhadoras para a multidão de grevistas.
Nos salões do Palazzo Marino, em meio aos fascistas inebriados, correm
boatos de que alguém foi chamar D’Annunzio. O Vate se encontra, por acaso,
no Hotel Cavour, em Via Manzoni, a dez minutos a pé dali. Sua presença
nada tem a ver com a greve e com a sua repressão. D’Annunzio está em
Milão para negociar, como de costume, um dos fabulosos adiantamentos com
o seu editor. Diz-se que o Comandante nem sequer quis receber os
mensageiros fascistas. O advogado Colseschi, que o acompanha, pediu que
não insistissem na tentativa de envolver seu nome em um ato violento que o
poeta desaprova totalmente.
Finzi e Rossi trocam ideias. Depois da acusação de “escravagismo
agrário”, Mussolini odeia D’Annunzio mais do que nunca. Contudo,
Mussolini não está ali, está em Ariccia ou Frascati, ou talvez em Albano,
trepando e bebendo vinho frisante. Rossi ordena aos seus homens que
espalhem o boato de que Gabriele D’Annunzio está prestes a chegar ao
Palazzo Marino e corre com Aldo Finzi ao Hotel Cavour.
O Comandante não pode deixar de receber Aldo Finzi, que sobrevoou
Viena com ele, mas resiste, um pouco ressentido por aquele convite que julga
evidentemente ofensivo. Finzi escancara as janelas do quarto que dá para Via
Manzoni. A multidão, possuída pelo anúncio da sua chegada, articula o nome
do poeta como nos tempos de Fiume.
— Não somos nós que o invocamos, Comandante, é o povo de Milão.
Gabriele D’Annunzio não é um homem capaz de resistir àquele tipo de
lisonja.
— Vamos.
Na rua, o carro já está pronto.
Em Piazza della Scala, no Palácio da Prefeitura, ao lado das flâmulas
negras, Cesare Rossi mandou colocar a bandeira de Fiume. D’Annunzio a vê,
se comove e sobe até a sacada. Arrebatado pelo entusiasmo dos outros,
improvisando, o Vate, pela primeira vez na vida, não sabe o que dizer:
“Cidadãos milaneses, aliás, homens milaneses, como diria um capitão dos
tempos de ferro, é a primeira vez que volto a falar desta balaustrada depois da
campanha de Ronchi [...] desta balaustrada que, por tempo demais, ficou
desprovida da bandeira tricolor, desprovida daquele colóquio divino que o
símbolo da Itália trava com o céu da Itália [...]”
Sua renomada eloquência se mantém vaga, se perde em metáforas
rebuscadas, em preciosismos literários, o delírio adrenalínico da multidão a
submerge. Mas não importa, a essa altura a palavra não conta. O corpo
nervoso, miúdo e mais gordo do poeta inclinado na direção do Scala fica
impresso naquele dia como um sinete no lacre. O homem de letras até tenta
um apelo humanista à fraternidade:
“Aqui parece que estou falando uma palavra de batalha, mas tudo o que
digo é uma palavra de fraternidade [...]. Nunca como hoje, enquanto as
feridas ainda sangram, nunca como hoje uma palavra de bondade teve tanta
potência. Eu invoco a grande chama da bondade, não da bondade inerte, não
da frouxidão, mas da bondade masculina, aquela que planta os sinais da justa
fronteira [...].”
Nem mesmo esse apelo tem importância. No mesmo instante em que o
Vate da Itália invoca a fraternidade entre todos os trabalhadores e a chama da
bondade, a poucas ruas de distância, em Via San Damiano, os membros das
esquadras de Forni e de Farinacci preparam-se para incendiar pela terceira
vez a sede do Avanti!. Um deles cairá fulminado nos alambrados armados
para a defesa da construção, outro será destroçado por uma bomba; depois,
no entanto, as chamas se elevarão dos depósitos de papel. Agora não há mais
obstáculos no caminho, prepara-se uma represália mais vasta.
Há cerca de duas semanas, o fascismo não gozava de grande
fervor junto à opinião pública. Suas expedições e os sistemas
para executá-las e levá-las a cabo pareciam exorbitantes diante
da reduzida obstinação e da fraca resistência dos adversários
[...]. Hoje a Itália está muito mais propensa aos fascistas. De
nada serve dissimulá-lo[...]. A greve geral foi o espelho no
qual a nação viu refletido outra vez o rosto bolchevique dos
tristíssimos anos após a vitória.

“Realidade”, Corriere della Sera, 6 de agosto de 1922


Benito Mussolini
Milão, 13 de agosto de 1922

Ele voltou de avião de Roma para Milão, com o ar morno de agosto a


açoitar seu rosto mal barbeado, no comando de um hidroavião Macchi M.18,
versão de verão com a cabine aberta, motor Isotta Fraschini Asso, 150
cavalos de potência, 1.000 quilômetros de autonomia, quase 200 quilômetros
de velocidade máxima. De resto, prometeu a Sarfatti e tem a intenção de
cumprir sua promessa: será o primeiro chefe de Estado europeu a se deslocar
de avião, pilotando-o pessoalmente.
A Itália vista lá de cima é linda, o assobio do ar tragado pelo ribombo do
motor o acompanha como uma melodia de oboés submersos e misteriosos
que se alternam com a violência repentina dos arcos. No sobrevoo, o olhar
desfocado pelos grandes óculos de aviador pousa sobre as colinas e encostas
como faria sobre o corpo solene, quieto, de um adversário abatido. Você se
sente vivo.
O socialismo está destruído. Não vai se reerguer. O castigo infligido pelas
esquadras fascistas foi implacável, não parou nem mesmo quando, em 4 de
agosto, a Aliança do Trabalho, derrotada, revogou a “greve legalista”. Pelo
contrário, àquela altura, lançou-se sobre o inimigo caído no chão por dias e
dias: centenas de cooperativas, círculos, Câmaras do Trabalho destruídos em
todo o país, administrações socialistas demissionárias. Ele sobrevoou a Itália
em 12 de agosto e, na Toscana, na Emília, na baixada do rio Pó, a fumaça dos
incêndios ainda era visível. Um autêntico golpe de misericórdia.
Na manhã do dia 12, antes de empunhar o manche, Mussolini leu no La
Giustizia um artigo no qual Turati redigia pessoalmente o boletim da derrota:
“É preciso ter coragem para confessar: a greve geral foi o nosso Caporetto.
Saímos dessa prova derrotados. Demos a última cartada e, no jogo, perdemos
Milão e Gênova, que pareciam os pontos invulneráveis da nossa resistência.
Em todos os principais centros, a rajada fascista é desferida com a mesma
violência destruidora. É preciso ter coragem para reconhecer: os fascistas
hoje dominam o campo. Se quisessem, poderiam continuar a desferir golpes
formidáveis.”
A Itália é de fato um país maravilhoso; 48 horas de pauladas conseguiram
o que um século de luta não conseguiu: os socialistas foram massacrados.
Olhe lá embaixo aqueles homens, aqueles jornais, aquelas organizações
socialistas que até ontem animavam as planícies, o litoral, as encostas deste
magnífico país. Olhe para eles agora... nem um gesto, nem um grito, não
ousam sequer respirar.
De novo, Turati tem razão, mas exagera no pessimismo. Agora nem é mais
necessário atacar os socialistas, restaram apenas duas forças em campo: os
fascistas e o Estado liberal, e será um duelo mortal. Espere bastante antes de
desferir seu único golpe. Essa é a máxima à qual é obrigatório se ater. Como
sempre.
Mas não será fácil, nunca é. Em Milão, os integrantes das esquadras
ficaram exaltados com o sucesso arrebatador da iniciativa tomada em sua
ausência. Quando o Duce se irritou com Bianchi por ter ordenado a
mobilização sem o seu consentimento, Michelino reiterou sua fidelidade
absoluta, mas ousou afirmar que não o teria seguido em suas manobras
palacianas “para entrar em um governozinho”, que o salto rumo à conquista
do verdadeiro poder estava preparado. Cesare Rossi, quando Mussolini ligou
para ele em 5 de agosto, chegou a desaconselhar que o líder voltasse sozinho
àquela altura para enterrar os três fascistas mortos no ataque ao Avanti!. Em
seguida, Rossi, Bianchi, Finzi e os outros, tomados pelo entusiasmo,
começaram, todos juntos, a fantasiar um golpe de Estado sem pé nem cabeça,
no qual arregimentavam a esmo quase todos. Foram até a uma delegação
anunciá-lo ao Corriere della Sera, onde o irmão de Albertini os pôs para fora.
Em Roma, no Parlamento, em 9 de agosto, durante a discussão sobre o
voto de confiança a Facta, enquanto um deputado comunista os atacava com
firmeza, Leonardo Arpinati se levantou da cadeira e, sem pestanejar, dirigiu-
se com toda a calma em direção ao deputado comunista. Os funcionários do
Parlamento conseguiram detê-lo quando ele já estava com a mão na arma.
Nada vai bem assim. Mussolini, levado pelos acontecimentos, defendeu
como sempre a repressão pelas esquadras à greve legalista, mas não
participará desse tiro no escuro. A milícia fascista deve ser organizada
militarmente, mas só um demente poderia deixar tudo a cargo de uma ação
militar pura e simples. Até hoje o Exército nunca abriu fogo contra os
participantes das esquadras e, quando o fez, como em Sarzana, não houve
possibilidade de reação. Até o rebanho socialista deteve as esquadras quando
se organizou. Como aconteceu em Parma, em 6 de agosto, com a defesa dos
Arditi del Popolo no subúrbio operário de Oltretorrente. Ali, Balbo, com 4
mil camisas-negras, não conseguiu sequer cruzar o rio.
E há também o Sul, essa farpa da Idade Média cravada na carne da nação,
ainda enfeudada aos antigos poderosos locais como Nitti. Com exceção da
Apúlia e, até certo ponto, de Nápoles, o fascismo ainda não pôs os pés no Sul
do país. A maioria dos rases emilianos, toscanos e lombardos nunca desceu
além de Roma. Uma incógnita total.
Sem mencionar D’Annunzio, ainda ele, sempre ele. Após o discurso na
sacada do Palazzo Marino, ficou ressentido por causa dos comunicados de
imprensa de Rossi que o incluíam automaticamente nas fileiras fascistas e
dissociou sua persona pública deles. Mas a recepção da multidão também o
envaideceu. A ciclotimia depressiva do cocainômano parece ser substituída
por um novo lampejo de entusiasmo político.
Enfim, o manche deve ser manobrado com suavidade, sob risco de queda.
Por meio de incansáveis negociações secretas, ele, pilotando com maestria,
conseguiu agendar um impensável encontro com D’Annunzio e Nitti, os dois
velhos arqui-inimigos, para um projeto de governo a três que possa unir tudo,
Norte e Sul, legalidade e ilegalidade, revolução e restauração da autoridade
estatal, palácio e praça, merda e sangue, segredos ministeriais e misteriosos
prodígios da raça. O encontro está marcado na Toscana, em 19 de agosto, na
mansão do barão Camillo Romano Avezzana, ex-embaixador da Itália em
Washington. O único problema é que, é óbvio, D’Annunzio vai querer
comandar.
Na reunião das lideranças fascistas que acontece em Milão, em 13 de
agosto, exceto por Bianchi e Rossi, ninguém sabe nada disso. Estão reunidos
o Comitê Central, o grupo parlamentar e a Confederação das Corporações;
compareceram todos os líderes do fascismo; muitos participam pela primeira
vez de um summit daquele tipo, até Caradonna, da Apúlia, e Aurelio
Padovani, de Nápoles, foram até lá, mas ninguém sabe do projeto secreto
para formar um governo com D’Annunzio e Nitti. A reunião acontece na sede
do Fascio di Combattimento na Via San Marco, a portas fechadas, em uma
sala simples e vazia.
O relatório sobre a situação geral é apresentado por Bianchi, secretário do
partido, que, fumando um cigarro atrás do outro, apresenta o dilema:
“Estamos diante de enormes responsabilidades: grandes massas de
trabalhadores vêm até nós... O fascismo se impõe... ou vai se tornar linfa da
qual o Estado vai se nutrir, ou então substituiremos o Estado.”
O dilema está entre a insurreição e a tomada legal do poder por meio de
novas eleições. Ninguém, com exceção de Bianchi, Farinacci e Balbo, pensa
de fato na insurreição. Dino Grandi, seguido por vários outros, se declara
abertamente contra. Mas em uma coisa Bianchi tem razão: eles estão em um
ponto crítico, irreversível. A pregação a esmo da revolução socialista lhe
ensinou: daqui em diante, ou o poder ou a ruína. Foi o que Vilfredo Pareto, o
grande estudioso, também escreveu a Mussolini em uma mensagem
particular de Paris: “Agora ou nunca.”
Durante o intervalo para o almoço, Bianchi e Mussolini cercam Balbo, que
insistiu na centralização organizacional das esquadras de combate, e lhe
confiam a direção da milícia em nível nacional. Balbo sorri, aceita. Decidem
pôr ao seu lado dois generais para manter o Exército sob controle. A escolha
recai sobre De Vecchi, o rás de Turim, e Emilio De Bono, um general da
reserva que envelheceu precocemente e procura há anos adesão política em
todos os partidos do espectro parlamentar.
Os trabalhos recomeçam à tarde, e participam apenas os poucos membros
da direção do partido. A discussão é dirigida por Mussolini. Quatro pautas
estão em votação: militarização das esquadras sob um comando supremo
composto por Balbo, De Vecchi e De Bono; pedido ao Parlamento de novas
eleições; penetração do fascismo nas regiões ainda não atingidas; e uma
proposta confusa de intransigência em relação a eventuais alianças eleitorais
da qual ninguém entende nada.
É noite. Quando a comitiva já está pronta para se dispersar, toca o telefone:
D’Annunzio está moribundo. O Comandante caiu da janela da sua mansão. O
trauma craniano é grave; a perda de sangue, considerável.
A notícia gera grande desconcerto. Que só aumenta quando as causas da
queda são mencionadas: diz-se que o poeta estava molestando Jolanda, a irmã
mais nova e menor de idade de Luisa Baccara, sua amante residente,
enquanto a célebre pianista entretinha ambos sentada ao piano. Não está claro
qual das duas o empurrou lá embaixo, se foi a amante enfurecida ou a irmã
mais nova molestada. Ou, talvez, o voo do poeta se deva apenas à típica
incapacidade, por causa do pó branco, de avaliar o perigo. De qualquer
forma, é uma guinada na história da Itália.
O entusiasmo de Benito Mussolini retorna a um nível que só é atingido
quando ele pilota seu avião. Dessa vez, porém, ele se senta ao volante do seu
carro esporte. Arrasta consigo o jovem Balbo e o leva para dar uma volta por
Milão. Pisa fundo no acelerador, o automóvel derrapa um pouco sobre o
calçamento das ruas da cidade e, no crepúsculo de verão, desliza sobre os
trilhos dos bondes. Mas não importa. O Duce do fascismo entretém de bom
grado o jovem amigo falando sobre o destino cultural da nação. Alguns
jornais, também de direita, ao comentar as violências cotidianas entre
“vermelhos” e “pretos”, vociferam tempos obscuros, de decadência. Imbecis
que tentam trazer azar. Não entendem nada. Até a Divina Comédia, a maior
poesia em língua italiana, foi o poema da nossa eterna guerra civil. Se os
guelfos e os gibelinos não tivessem se degolado ao longo de um século,
Dante não teria se inspirado para criá-la.
Sentindo que seu Duce, enfim, está de bom humor, Balbo brinca sobre os
poetas, sua inspiração, seus voos e suas quedas de sacadas. Alegria! É uma
bela noite de verão, o carro esporte dispara sobre as placas de pórfiro do
calçamento de Milão e a vida é maravilhosa.
Antes de sair para o passeio, o piloto, com um sorriso sonso, ditou um
comunicado da direção do Partido Fascista para a imprensa. Diz que a
marcha sobre Roma é um “boato destituído de qualquer fundamento”.
Vamos ao dilema fascista: ou eleições ou violência — tão
abertamente enunciado, é preciso mais uma vez que seja
contraposto, por qualquer pessoa que mantenha um pingo de
bom senso estatal, o pressuposto legalista [...]. Deve-se
considerar inadmissível que, para afirmar a própria força, um
partido apele ao veredito das urnas, de acordo com as formas
legais do nosso regime constitucional, e, ao mesmo tempo,
ameace claramente uma revolta, um levante armado, o golpe
de Estado. O equívoco no qual se baseia é fazer crer que o
fascismo está obrigado a estabelecer esse dilema entre
legalidade e revolução para alcançar a própria salvação; isso é
o exato contrário da verdade. O fascismo não se encontra
diante de nenhuma bifurcação necessária, porque ninguém o
está ameaçando e ninguém está contestando seu lugar ao sol:
cabe a ele, e somente a ele, escolher entre a cédula eleitoral e a
insurreição.

La Stampa, Turim,
15 de agosto de 1922
O fascismo venceu sua batalha campal, derrotando plenamente e
desbaratando seus adversários [...] é intenção das autoridades, quando a
poeira baixar, proceder ao confisco das armas. Deem, a propósito, ordens
taxativas para que, sem demora alguma, armas e munições sejam colocadas
em segurança.

Michele Bianchi, circular confidencial a ser lida e destruída


pelas federações provinciais fascistas, 7 de agosto de 1922

Há um plano militar do fascismo, idealizado com perícia


por generais e oficiais que dirigem as esquadras de ação [...].
A esta altura, há uma interrupção, mas uma interrupção de
alguns dias, se não de poucas horas. O exército fascista se
prepara para a última arrancada, para conquistar a capital [...].
A capital é a meta.

Avanti!, edição de Roma, 6 de agosto de 1922

O boato em circulação, de que os fascistas estão apostando


em Roma para tentar o golpe de Estado, é destituído de
qualquer fundamento.

Il Popolo d’Italia, 8 de agosto de 1922


Giacomo Matteotti
10 de outubro de 1922

“Creio que, daqui a não muito tempo, vou renunciar como deputado,
porque tudo é só trabalho e cansaço inútil. Estamos contra os outros partidos;
e nosso próprio partido não faz nada do que deveria fazer. Então, qual é o
objetivo?”
O desconforto começa a tomar conta de Giacomo Matteotti na primavera
de 1922. É o que testemunham essas linhas escritas para a esposa em 20 de
maio. O mundo, o dia a dia, se manifesta sempre e ainda como uma ruína,
mas, agora, o homem parece não ter nada mais a contrapor à ruína do mundo,
nem sequer ele mesmo. Nas cartas, diante das repreensões de Velia,
desaparece o protesto, o último deus das horas desesperadas. A pergunta não
é mais “o que fazer”, mas “com que finalidade?”. O dilema das batalhas
perdidas.
Dois dias mais tarde, em 22 de maio, no dia em que completa 37 anos, para
Giacomo já parece ser hora de fazer um balanço: “Hoje completo 37 anos;
exatamente 37... Tudo está igual a antes; mas os 37 são indiscutíveis, então
sinto um grande medo do tempo que passa tão rápido; sobretudo, ou melhor,
quase que exclusivamente, de tudo aquilo que me foi tirado de você, do seu
amor, da sua pessoa. Parece que essa talvez seja a única coisa que
irremediavelmente perco.”
No início do verão, enquanto a última e decisiva ofensiva fascista é
lançada, nas cartas à esposa Matteotti recua para a conversa íntima, seu
discurso amoroso se concentra no amor conjugal como conspiração de duas
almas dentro do mundo e contra o mundo, sua vida de figura pública, homem
dedicado à luta, privatiza-se: “Sim, penso em você. Você foi meu grande,
verdadeiro e único amor. Horas inteiras de cada dia foram ocupadas por meu
pensamento em você. Por anos inteiros, todo o meu coração foi ocupado por
você.”
Uma menção à situação política, uma única menção, aflora do de profundis
em 29 de junho: “Aqui estamos desnorteados [...] ninguém, exceto o nosso
partido, sente toda a tragédia da situação atual.” O isolamento, a solidão, o
deserto, o naufrágio: a política se reduziu a isso para os socialistas italianos
no verão de 1922.
Em 1o de junho, por solicitação da Confederação Geral do Trabalho, o
grupo parlamentar socialista havia votado a pauta Zirardini, que obrigava os
deputados a buscar um acordo com o governo para o restabelecimento das
liberdades públicas e da lei. Mas os líderes maximalistas do partido
rejeitaram-na, acusando a ala reformista de conivência com a burguesia.
Enquanto isso, entre o fim de julho e o início de agosto, apenas na província
de Novara, 221 administrações de esquerda caíram. Como observara Pietro
Nenni, os líderes do proletariado comportavam-se como os doutores da Igreja
que, enquanto seu mundo desaba em ruínas, brigam sobre a letra dos textos
sacros. O proletariado, enquanto isso, era abandonado à própria sorte, sem
defesa nem ajuda.
A poeira tóxica do ódios entre as facções causou um enorme estrago
quando, em 29 de julho, Turati subiu as escadas do Quirinal para se reunir
com o rei. Todo o socialismo radical havia condenado o encontro como uma
autêntica traição. Os comunistas chegaram a zombar do “cadáver de Turati”.
No dia seguinte, a greve geral deu o golpe de misericórdia no que restava do
movimento socialista. Aqueles que não queriam pedir demissão, os
ferroviários que eram tirados de casa sob a mira de armas para voltar ao
trabalho enquanto suas casas eram queimadas, os operários que haviam feito
cem greves e, apesar de tudo, ainda respondiam ao chamado, ofereciam aos
olhos de Giacomo Matteotti um espetáculo admirável e comovente, o
espetáculo de um ato de fé sem amanhã.
No fim de agosto, derrotado, Matteotti ousa esperar pelo menos um pouco
de paz. O verão, como se sabe, acende esperanças desse tipo. Ele e Velia
escolheram Varazze, no litoral ocidental da Ligúria, pelo seu clima
excepcionalmente ameno. Protegida dos ventos da tramontana pelo monte
Beigua, ao norte, nas noites de inverno, nas tardes de verão, a cidadezinha
litorânea é refrescada pelas enérgicas brisas do mar da Ligúria. Mas Giacomo
Matteotti também é reconhecido aqui e, em 29 de agosto, é obrigado a partir,
escoltado até a estação ferroviária pelos policiais e pelos integrantes da
esquadra local dos Fasci di Combattimento.
O dilaceramento se consuma em 3 de outubro, em Roma, durante os
trabalhos do XIX Congresso do Partido Socialista Italiano, em uma outra
sessão melancólica e torturante. A única coisa a evitar é uma nova cisão.
Divididos, os revolucionários não poderão fazer a revolução, e os reformistas
não poderão colaborar com o governo. Entretanto, eles se separam, uma cisão
suicida, mas, àquela altura, inevitável: nas moções da direita e da esquerda,
veem-se dois extremos do mesmo desespero. A proposta de Giacinto Menotti
Serrati, secretário do partido, de expulsar os reformistas prevalece por um
punhado de votos. Filippo Turati e Giacomo Matteotti são expulsos do
Partido Socialista ao qual dedicaram a vida. Depois da mutilação, o
congresso delibera a adesão à Internacional Comunista e o envio de uma
nova delegação a Moscou. A discussão, acalorada, se conclui com quem deve
participar da comitiva.
Os expulsos — Turati, Matteotti, Claudio Treves, Giuseppe Saragat,
Sandro Pertini — fundam um terceiro partido da esquerda italiana, que, não
se sabe bem se pelo prazer do paradoxo ou se por inspiração do insuperável
desespero de sempre, é batizado de Partido Socialista Unitário. O jovem,
enérgico, indomável Giacomo Matteotti é eleito secretário. Agora estão livres
dos delírios “maximalistas” de uma revolução sempre anunciada e nunca
tentada. Estão livres, mas não sabem o que fazer com sua liberdade.
Giacomo Matteotti, aparentemente convencido pelo bom senso de Velia,
que há anos pede que ele recue, em 10 de outubro escreve à mulher: “Quero
defender as crianças, você e também a mim mesmo. Os sacrifícios inúteis não
adiantam, não ajudam em nada... Enquanto isso, para me afogar totalmente,
aceitei também o secretariado do partido. Mas por pouco tempo, espero.”
A conversa política que vocês travaram com o monarca, o
início da obra de colaboração com a monarquia e a burguesia,
é o fim das relações de partido que têm conosco. Nós não
colocamos em discussão sua boa-fé — que está fora de
questão —, afirmamos que vocês mesmos, com as próprias
mãos, romperam aquela unidade da qual, até ontem,
acreditavam ser tenazes e decididos apoiadores.

Avanti!, dirigindo-se diretamente a Filippo Turati e aos


seus companheiros,
30 de julho de 1922

Turati procurou o rei. O movimento socialista se esfacela. É


um cadáver a menos a ser arrastado no futuro.

Palmiro Togliatti,
L’Ordine Nuovo, 30 de julho de 1922

A Aliança do Trabalho, que promove a união do proletariado, deve viver,


deve ser reforçada pelo posterior desenvolvimento do movimento de defesa
proletária. Quanto mais furiosos os esforços adversários para afastá-la, mais
próxima está a vitória.

Manifesto da direção do Partido Socialista,


8 de agosto de 1922
Benito Mussolini
Milão, 16 de outubro de 1922

“Ao primeiro fogo, todo o fascismo ruirá.”


É o que supostamente disse o general Badoglio em uma reunião em Roma,
na presença de banqueiros, jornalistas e até do general Diaz. A frase
pronunciada em um salão qualquer de Roma, cidade pestilenta por
excelência, paira como uma pistola apontada para as têmporas dos homens
que se reúnem em sigilo em Milão, na sede do Fascio di Combattimento
original no número 16 da Via San Marco. Entre eles, estão também quatro
generais do Exército, e todos sabem que Badoglio tem razão. O único que
não sabe parece ser Italo Balbo. Em 6 de outubro, convocado pelo Duce em
Milão, Balbo garantiu que a militarização das esquadras procedia com
eficiência. Chegado o momento, os rapazes nas províncias estariam prontos.
No fim da conversa, contrariando seus hábitos, Mussolini o convidou com
camaradagem para comer algo no Campari. A conversa entre os dois no café
foi cordial; a atmosfera, relaxada. No entanto, Mussolini deve saber que os
surradores de Balbo não são soldados, que a coragem das brigas é diferente
da das batalhas, que a agressão impiedosa contra homens despreparados e
materiais inflamáveis com o objetivo de aterrorizar uma aldeia hostil é uma
ação espetacular, mas não é guerra. Contrapor caminhões a bicicletas, a
ofensiva à passividade, o ataque desenfreado de esquadras motorizadas à
branda confiança democrática nas manifestações de massa dos socialistas é
emocionante, mas não é guerra. O novo regulamento da Milizia per la
Sicurezza nazionale, elaborado por De Bono e De Vecchi em meados de
setembro, impôs aos integrantes das esquadras uma disciplina militar, previu
hierarquia e graus militares, aboliu os comandantes eletivos; mas a verdade, a
despeito dos nomes e dos adjetivos, é que não existe uma verdadeira força
militar do fascismo. Todas as esquadras do Vale do Pó dispõem apenas de
alguns milhares de fuzis, e ninguém está treinando os participantes das
esquadras para usá-los.
Ao primeiro fogo do Exército regular, o fascismo ruiria. Todos sabem
disso. No entanto, quatro generais experientes e quatro veteranos com muitas
condecorações se reúnem em uma tarde de outono em Milão para decidir a
insurreição armada contra o Estado.
O encontro é convocado para 16 de outubro na salinha do diretório do
Fascio di Combattimento, na Via San Marco, às 15h. O convite foi enviado
quatro dias antes por Mussolini, com a ordem de que não faltassem. Os
destinatários, além de Michele Bianchi, que já está lá, eram os comandantes
da Milizia per la Sicurezza nazionale: Balbo, De Bono, De Vecchi, Ulisse
Igliori, chefe das esquadras romanas e medalha de ouro na Grande Guerra, e
dois novos adeptos, os generais Fara e Ceccherini, ambos com carreiras
brilhantes. O edifício está vigiado, do lado de fora, por uma dupla de guardas
reais, e, do lado de dentro, por integrantes das esquadras.
Antes de começar, é inevitável resolver um incidente diplomático: De
Bono, sem saber da convocação, se irrita com a presença de Fara e
Ceccherini. Avisado da controvérsia, Mussolini dá de ombros: os recém-
chegados são soldados renomados, Ceccherini guiou os bersaglieri na
segunda batalha do Isonzo, Fara conquistou o planalto de Banjšice e salvou a
honra da Itália na Líbia em Shar al-Shatt. Ninguém conhece De Bono fora
dos círculos militares. Todos se conformam, a reunião tem início. Balbo, que
é o mais jovem em quaisquer circunstâncias, prepara a ata.
O Duce do fascismo toma a palavra e explica por que estão ali. Estão ali
porque um Estado que não sabe mais se defender não tem o direito de existir.
Se, na Itália, houvesse um governo de verdade, os guardas reais entrariam por
aquela porta naquele exato momento, acabariam com a reunião, ocupariam a
sede e prenderiam todos eles. Não é concebível uma organização armada com
chefes e regulamentos em um Estado que tem seu exército e sua polícia. Só
que, na Itália, o Estado não existe. Não adianta, os fascistas devem
necessariamente assumir o poder, ou a história da Itália se tornará uma piada.
O silogismo é elementar: a Itália é uma nação, mas não tem um Estado. O
fascismo, portanto, vai lhe dar um Estado. Na convenção fascista de Udine
em 20 de setembro, Mussolini disse claramente: “Nosso programa é simples,
queremos governar a Itália.”
O presidente do Conselho de Ministros Facta, ofuscado pelo seu bigodão
em forma de guidom, continua a se iludir, a confiar em uma participação
fascista no seu terceiro ministério, mas Facta é o homem que, em 24 de
setembro, para festejar com os seus eleitores os 30 anos da sua vida
parlamentar, participou em Pinerolo de um banquete à base de vol-au-vents e
vitel tonné com 3.200 comensais, dentre os quais, 71 senadores e 117
deputados. Um funeral de primeiríssima classe.
As múmias ministeriais insistem em considerar a marcha sobre Roma uma
metáfora, mas a marcha já está em andamento na história, porque Roma está
infectada e é necessário marchar para expurgar a ferida, para tirá-la da mão
dos politiqueiros ineptos. A Milizia per la Sicurezza nazionale está pronta;
reformada pela violência de um exército em guerra, a profecia da violência se
torna realidade, há uma violência que liberta e outra que acorrenta, a massa é
um rebanho, o século da democracia acabou, o Estado liberal é uma máscara,
o fascismo é a Itália jovem, forte, máscula, o choque é inevitável, o momento
é propício, chegou a hora do ataque, a profecia é agora. Quando o sino tocar,
marcharemos como um só homem.
Escutando o canto de guerra do Duce; os olhos de Balbo se inflamam com
um instintivo desejo de ação; Bianchi termina o enésimo cigarro; De Vecchi,
pálido, pede a palavra:
— Duce, ninguém mais do que eu despreza a Italiazinha contaminada,
pútrida, senil, piolhenta, pátria de castrados pacifistas, mas, aqui, estamos
ignorando o ponto fundamental da questão: sem um organismo militar capaz
de manobrar as forças fascistas, o plano está destinado ao fracasso.
Mussolini e Bianchi trocam um olhar cúmplice e ambos, ao mesmo tempo,
encaram o objetor. De Vecchi recomeça:
— A Milizia per la Sicurezza nazionale ainda não está preparada, e será
necessário tempo para que seja capaz de agir como força orgânica.
Mussolini, exasperado, o interrompe. De Vecchi pede tempo justamente
porque não há tempo, o ataque deve ser lançado em pouquíssimos dias.
— É absurdo, a menos que se prefira o desastre ao sucesso — replica pela
última vez De Vecchi. Em seguida, reduz sua exigência a apenas um mês de
adiamento e pede a opinião dos outros.
Italo Balbo se diz preocupado:
— As manobras dos velhos partidos parlamentares estão cada vez mais
aceleradas. Mesmo sem querer, o fascismo corre o risco de ficar prisioneiro
da intriga que é tramada contra ele com a armadilha das eleições. Se não
tentarmos logo o golpe de Estado, na primavera será tarde demais: na tepidez
de Roma, liberais e socialistas vão selar um acordo.
Michele Bianchi intervém, apoia Balbo e acrescenta motivos de ordem
política para a ação imediata. De Bono e Ceccherini, consultados por Bianchi,
apoiam com cautela a tese de De Vecchi, favorável a um adiamento. O
general Fara diz que não vê necessidade de uma ação imediata, que ainda não
conhece os homens e os comandantes. Tende ao adiamento.
Mussolini, enfim, retoma a palavra. Seu tom se suavizou, perdeu a
opacidade da armadilha:
— O ato revolucionário da marcha sobre Roma ou se realiza logo ou nunca
será feito. Minhas negociações com Facta são apenas uma distração. O tempo
está maduro, e o governo está podre. O espectro de Giolitti avança aos
poucos, e vocês sabem que, com ele no poder, é melhor fazer outros planos
— afirma. Faz uma pausa, observa a todos para avaliar o efeito das próprias
palavras, aí recomeça: — Pelo que sei, alguns colaboradores de Facta
cogitam uma clamorosa reconciliação entre Giolitti e D’Annunzio. Encontrei
D’Annunzio semana passada em Gardone e chegamos a um acordo. Por
enquanto, ele está conosco. Mas o abraço com Giolitti planejado por Facta
deveria acontecer no Altar da Pátria, em presença de mutilados e ex-
combatentes, em 4 de novembro, no aniversário da vitória. Não é preciso ser
um profeta para saber que um gesto desse tipo, teatral sem dúvida, mas
inegavelmente importante, daria a Giolitti nova força. Devemos agir antes
disso.
A decisão é tomada: ação violenta. A escolha do dia exato é adiada para
depois da grande convenção marcada para 24 de outubro em Nápoles. Resta,
portanto, avaliar as modalidades de ação. Assim que o ataque militar
começar, todas as hierarquias políticas deverão desaparecer. Será instituído
um quadrunvirato composto por Bianchi, Balbo, De Bono e De Vecchi. O
comando militar terá plenos poderes. Monterotondo, Tivoli e Santa
Marinella, a uma noite de marcha de Roma, serão locais de concentração das
colunas. Perúgia será a sede do quadrunvirato, e Foligno, da Reserva.
Mussolini tira do bolso uma folha. Em meio ao espanto dos presentes, lê a
proclamação a ser lançada aos fascistas quando a insurreição eclodir.
Carrega-a no bolso, já pronta, há dias: “Fascistas! Italianos! A hora da batalha
decisiva soou...”
Na sede da Via San Marco, entre os aposentos vazios ou desguarnecidos, o
escritório de Cesare Rossi é o único a exibir uma mobília abundante e
rebuscada. Italo Balbo, assim que a reunião foi encerrada, antes de ir embora
junto aos outros, até zombou dele por causa daquela pretensão de lambris de
madeira da alta burguesia. Agora é Mussolini, ameaçador, que percorre o
ambiente elegante de um lado a outro. Para diante da escrivaninha de Rossi:
— Se Giolitti voltar ao poder, estamos fodidos.
A pronúncia separa as sílabas — fo-di-dos —, a voz é cortante, elevada em
notas agudas por uma onda de angústia.
— Lembre-se de que, em Fiume, em uma ocasião como esta, ele mandou
disparar os canhões contra D’Annunzio. Precisamos queimar etapas. Aqueles
outros não queriam entender... Mas eu insisti. Até o fim deste mês,
precisamos terminar os preparativos.
A voz se cala, os pés voltam a marchar naqueles 20 metros quadrados.
Rossi sabe que, dali a pouco, o outro vai recomeçar o raciocínio e oferece o
apoio do próprio silêncio. A intimidade com o conselheiro sugere ao príncipe
o verdadeiro quadro da situação:
— O fascismo transborda por toda parte; agora quer também assumir a
aparência de organização militar. O antifascismo não está mais em condições
de opor resistência definitiva; bastará vigiar algumas zonas isoladas e alguns
homens. Carabineiros e guardas reais, ainda mais nas províncias, estão
evidentemente conosco. O alto escalão do Exército nos apoia porque sente
que somos a Itália que veio das trincheiras; no mínimo, permanecerá passivo.
O governo de Facta não vai atirar em nós. Os monárquicos foram
tranquilizados pelo meu discurso em Udine e, em Nápoles, serei ainda mais
explícito. As classes parlamentares, após o fracasso de todas as suas
manobras, só pensam em fazer um acordo conosco. Não passam de um
punhado de suicidas voluptuosos... Industriais, burgueses, proprietários de
terras, todos querem nos levar para o governo. Até os liberais como Albertini
agora sustentam que a prioridade é essa, a qualquer custo. Até Luigi Einaudi
no Corriere manifesta simpatia por nós...
Mussolini para de novo, põe as mãos no bolso, como se os obstáculos da
marcha rumo ao poder também o impedissem de caminhar pelo escritório de
Cesare Rossi.
— Os pontos obscuros da situação são: Parma, onde os comunistas
mantêm a cidade com armas, D’Annunzio, o rei e a indisciplina dos fascistas.
Seria desagradável que, em uma ação decisiva, ficássemos bloqueados no
meio do Vale do Pó. D’Annunzio, como sempre, exerce fascínio, também
sobre parte dos nossos, mesmo após ter caído da sacada, mas é um
inconcludente. Escreveu Alcyone, o que eu certamente nunca escreveria, mas,
como político, não vale nada. É o homem dos grandes passos... porém,
superada a distância, só resta a sombra do transeunte... Não será difícil
manobrá-lo, embora esteja cercado de muitos inimigos nossos... — Ele para
mais uma vez. — Não, os que mais me preocupam são os fascistas. Como
material humano, para uma ação de grande porte, são material vagabundo.
Feudos pessoais, oligarquias regionais, pequenos bairrismos... Será
necessário domá-los... Quanto ao soberano, é decerto uma figura enigmática,
mas existem alavancas em volta do trono que vamos pôr em funcionamento...
A alusão à rainha-mãe e ao duque de Aosta, notórios simpatizantes dos
Fasci di Combattimento, fica suspensa no crepúsculo que invade o aposento.
Bem como a alusão impronunciável à maçonaria. Mussolini leva de novo as
mãos aos bolsos, balança outra vez a cabeça.
— Faltam os botões das polainas... Entende, Cesare!? Se este momento
favorável passar, será o fim para nós, e De Vecchi, De Bono e nossos outros
generais fúteis dizem que as fardas não estão prontas! Como se, em vez de
marchar sobre Roma, devêssemos organizar uma parada de honra...
No escritório do secretário dos Fasci di Combattimento milaneses,
escureceu. Os dias começam a ficar mais curtos. No Norte da Itália, na
metade de outubro, a noite chega cedo.
Cesare Rossi enfim se levanta da escrivaninha para acender uma luminária
art déco. A essa altura, seu silêncio obstinado e olhar penetrante desenham na
parede o perfil de uma pergunta constrangedora, lançam sobre a proclamação
marcial uma sombra de sarcasmo. A expressão “marcha sobre Roma”,
tragada por aquele silêncio, perde totalmente o sentido.
Benito Mussolini capta o olhar e sorri. A compreensão entre os dois
homens é perfeita.
A guerra é algo sério demais para ser deixada aos generais. Eles não têm
pensamentos dúplices, não sabem nem pensar, não distinguem guerra de
guerra psicológica, ameaça de violência de violência em si. No entanto, é
preciso agir “como se”, é toda uma filosofia do “como se”... Proclamar,
mobilizar-se, armar, até se matar um pouco e depois... depois, fingir marchar
de fato marchando. Ou vice-versa, pode escolher. Trata-se, de qualquer
maneira, de fanfarras, estrondos, hinos, algumas manchas de sangue; trata-se
de uma ficção que, para ser aceita como verdadeira, exige um excesso de
realidade. Cada grande ato, no fundo, na melhor das hipóteses, é um símbolo.
Na pior, é melhor nem falar.
“Agora ou nunca”. Foi o que também lhe escreveu em um telegrama o
grande Pareto de Genebra. Porém, o ilustre estudioso acrescentou: “Os
italianos amam as grandes palavras e os pequenos fatos.”
O fascismo é uma revolução, sim, mas é imprescindível evitar pôr tudo em
jogo. É vital deixar alguns pontos firmes, evitar de qualquer maneira a
impressão de que tudo está desmoronando. Senão as ondas de entusiasmo do
primeiro momento serão substituídas pelas ondas de pânico do segundo. Uma
barbárie moderada. Pronto... para a conquista do poder, isto é essencial: uma
barbárie moderada.
O confronto é entre uma Itália de politiqueiros covardes e a Itália sadia,
forte, vigorosa, que se prepara para varrer para longe, definitivamente, todos
os incompetentes, todos os mercenários, toda a ralé infecta da sociedade
italiana [...]. Enfim, queremos que a Itália se torne fascista.

Benito Mussolini, comício de Cremona, 24 de setembro de


1922

O Estado liberal é uma máscara por trás da qual não há rosto algum [...].
Essa é a tolice do Estado liberal, que dá liberdade a todos, até àqueles que a
usam para abatê-lo. Nós não daremos essa liberdade [...]. O que nos separa da
democracia não são os artifícios eleitorais. As pessoas querem votar? Que
votem! Votemos todos até o cansaço e a imbecilidade! Ninguém quer
suprimir o sufrágio universal. Mas faremos uma política de reação e de
severidade [...]. Dividimos os italianos em três categorias: os italianos
“indiferentes” que ficarão em casa esperando; os “simpatizantes”, que
poderão circular; e finalmente os italianos “inimigos”, e esses não circularão.

Benito Mussolini, discurso no círculo de bairro Amatore


Sciesa,
Milão, 4 de outubro de 1922

Aquela raposa do Giolitti está preparando a derrocada do fascismo. Creio


que, se os fascistas se deixarem domesticar, será o fim [...]. A multidão que
agora abandona os socialistas abandonará também os fascistas, porque eles
não poderão lhe dar a lua para roer. É necessário, portanto, fazer a revolução
antes do abandono, ou a festa acabou.

Carta de Maffeo Pantaleoni a Vilfredo Pareto,


17 de outubro de 1922

O fugaz instante que os socialistas não souberam aproveitar está agora nas
mãos do fascismo; nós, homens de ação, não o deixaremos escapar e
marcharemos.

Benito Mussolini para os homens da esquadra de ação


Sauro e Carnaro, Milão, primeiros dias de outubro de 1922
Nicola Bombacci
Moscou, fim de outubro de 1922

A democracia tem um péssimo estilo. Literatura ruim. Trótski tem razão.


Os jornais liberais colocados diante do ataque fascista estão ali como prova
disso: gaguejam, simpatizam, em seguida se retraem, uma prosa pedante,
intricada, trêmula. A prosa da democracia atrasada, desprovida de ideias, de
vontade, que olha ao redor com medo, acumula nos seus escritos uma
ressalva atrás da outra, traduzindo do inglês, uma língua que não é a sua, que,
por sua vez, ecoa o grego antigo, um passado estrangeiro. A Itália não sabe o
que é democracia. Nem a Rússia, mas lá, pelo menos, para dar conta da
ignorância, deram o comunismo ao mundo.
No fim de outubro, Nicola Bombacci parte para Moscou, onde acontece o
IV Congresso da Internacional Comunista. Viaja com a delegação do Partido
Comunista da Itália, que se separou do Partido Socialista em Livorno em
janeiro de 1921, e que, por sua vez, se dividiu em uma ala de direita,
minoritária, liderada por Angelo Tasca, favorável à reunião com os socialistas
depois que esses últimos expulsaram no início do mês os reformistas de
Turati, e em outra de esquerda, majoritária, liderada pelo secretário Bordiga,
contrária à “frente única”. Os bolcheviques russos pressionam pela fusão para
poder contrapor ao fascismo em uma frente compacta de todo o proletariado,
mas Bordiga resiste. Do seu ponto de vista, a democracia já é o fascismo, a
contrarrevolução capitalista já venceu, que diferença poderia fazer se os
fascistas chegassem ao poder? Com Bordiga, Trótski insiste em destacar as
características peculiares do fascismo italiano por causa da inédita
mobilização da pequena burguesia contra o proletariado, mas Bordiga
permanece imperturbável. Para gente como ele, democracia e fascismo, a
despeito do que diga Trótski, continuam sendo a mesma coisa.
Bombacci, sempre alinhado com Moscou, é a favor da reconstituição da
“frente única”. No congresso de Roma, em fevereiro, lutou abertamente
contra o abstracionismo, o purismo dos bordiguianos, preocupados apenas em
evitar qualquer contaminação com os socialistas. O resultado foi o isolamento
por parte dos próprios companheiros, a solidão, a desconfiança e, por fim, a
sua exclusão do Comitê Central do partido. Bombacci escreveu uma carta
pungente a Zinoviev, lamentando o próprio “assassinato político”.
Quando a delegação dos comunistas italianos — derrotados pelos fascistas,
separados dos socialistas e divididos também internamente — chega à Rússia
no fim de outubro, o comunismo ali está no auge do próprio triunfo. Leon
Trótski, a quem Bordiga não dá atenção, que antes da revolução era um
homem de letras apelidado de “pena”, levantou-se da escrivaninha e, em
poucos meses, organizou o Exército Vermelho — o maior exército popular
da história, milhões de operários e camponeses armados, uma nova
concepção da guerra de movimento em escala planetária —, à frente do qual,
em quatro anos de sangrenta guerra civil, esmagou, em dois continentes e
dezenas de fronts, todos os inimigos da revolução. Os comunistas do Oriente,
após dispersarem os inimigos internos e externos, estão prestes a fundar a
União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e a inaugurar uma nova era na
história mundial. Os comunistas do Ocidente, por sua vez, registrando uma
derrota após a outra, recuam em todas as frentes. Dentro da Comintern, a
internacional de todos os partidos comunistas do mundo, delineia-se a
hegemonia absoluta dos companheiros russos. Aos outros, tendo Bordiga
como líder, seja qual for a toca em que se esconderão, só resta defender como
podem a conquista dos russos das profundezas da própria derrota.
Nicola Bombacci, bem aconselhado pelo sutil brilho de melancolia que
atravessa as íris azuis dos seus olhos de boneca de porcelana, tem consciência
da própria subordinação a Moscou. Proclamou desde Livorno aos
companheiros reunidos em congresso: “Nós seguimos em frente, atrás da luz,
embora cheia de terror, embora tomada de dor, da Revolução Russa.”
Durante o ano seguinte, lutou no Parlamento para que o Estado italiano
reabrisse o comércio com a Rússia e reconhecesse seu governo como
legítimo. Nessa batalha, viu-se ao lado de estranhos companheiros de luta, os
magnatas da indústria como Ettore Conti. Mercantilismo e comunismo
posicionados lado a lado. O destino zombeteiro dos derrotados deve se dobrar
também a essas ironias da história.
Em Moscou, as fotografias da gloriosa Revolução Russa já entraram, como
é justo, no arquivo central do tempo. São expostas nos escritórios dos
dirigentes e nas salas dos congressos. Julho de 1917: as tropas fiéis ao
governo provisório atiram na multidão na Rua Sadovaya. Setembro de 1917:
grupos de operários bolcheviques patrulham com fuzis em riste na caçamba
de uma carroça as ruas de Petersburgo. Outubro de 1917: os marinheiros do
cruzador Aurora se preparam para o combate.
A foto mais bonita de todas leva a data de 25 de outubro de 1917: os
guardas vermelhos se dirigem correndo rumo à entrada do Palácio de
Inverno. A foto do ataque proletário à residência principal do czar de todas as
Rússias, símbolo do seu poder, foi tirada do alto, talvez o fotógrafo tenha
escalado um poste de luz. Retrata uma multidão de homens escurecidos sobre
a superfície branca da praça nevada que se lançam sobre uma muralha de
pedra, também escura, que obstrui o horizonte do futuro lá embaixo. O
bastião inimigo parece uma barreira intransponível, uma negação peremptória
no gelo de um inverno sem fim, muda e surda, e, no entanto, nenhum
daqueles homens minúsculos que se lançam ao ataque está com ambos os pés
no chão. Correm, todos correm, até perder o fôlego, formando uma pirâmide
quase perfeita, fiel às leis matemáticas da perspectiva renascentista, como se
sua luta triunfal tivesse sido pintada por Masaccio ou Piero della Francesca.
Aos olhos de Nicola Bombacci e dos outros delegados italianos naquele fim
de outubro de 1922, a revolução comunista ainda não pode ser vista como o
remorso dos vencedores — para isso, serão necessários muitos anos —, mas
certamente já é o pesar dos derrotados.
Antonio Gramsci, a mente mais brilhante do Partido Comunista da Itália,
que participa da delegação com Bombacci, está em péssimas condições de
saúde. Para poder participar do congresso em Moscou, voltou poucos dias
antes do sanatório após seis meses de internação que só serviram para
impedir o agravamento da sua doença. Gramsci é atormentado por cansaço
crônico, amnésias, insônias.
Lênin, o maior homem do século, infelizmente também está doente.
Quando recebe os companheiros italianos, já foi acometido por um ataque
apoplético, mas os acolhe sorridente, dirigindo-se a Bordiga e a Camilla
Ravera em italiano, lembrando sua juventude de exilado em Capri. Bordiga
manifesta a apreensão de todos por sua saúde.
“Estou bem”, responde de pronto, “mas devo obedecer às prescrições
tirânicas dos médicos. Para não voltar a adoecer...”.
Em seguida, tendo deixado em suspenso seu breve futuro, pede notícias
dos acontecimentos na Itália.
Bordiga menciona a questão das relações com o Partido Socialista, mas
Lênin o interrompe. Não tem tempo para essas diatribes. Quer saber o que
está acontecendo com os fascistas na Itália.
Bordiga, obediente, expõe os fatos, repete análises e opiniões já expressas.
De repente, o grande homem o interrompe e pergunta o que os operários e
camponeses acham daqueles acontecimentos. Bordiga, o líder dos comunistas
italianos, fica paralisado, como o estudante pego de surpresa por uma
pergunta inesperada.
Enquanto isso, na Itália, dezenas de milhares de camisas-negras gritam
“Para Roma! Para Roma!” na Piazza del Plebiscito em Nápoles; em Milão, os
principais líderes do Partido Socialista, concordando em não levar a sério
aquela resolução e considerando irreal aquela ameaça, acompanhados pela
certeza absoluta de que nada está acontecendo de importante, tomam o trem
para Moscou.
Supondo, ainda que por motivos puramente tradicionalistas,
que o Estado tem um mínimo de capacidade para resistir no
caso de sobreposição violenta do fascismo, nunca acreditamos
e continuamos a não acreditar na marcha sobre Roma.

“Um conflito que não existirá”,


editorial anônimo, Avanti!, 15-16 de outubro de 1922
EM MARCHA
24-31 de outubro de 1922

Nápoles, 24 de outubro de 1922


Teatro San Carlo, 10h

A aparição de Benito Mussolini às 10h do dia 24 de outubro de 1922 no


gigantesco palco do Teatro San Carlo, em Nápoles, a rainha do Mar
Mediterrâneo, capital mundial dos entusiasmos fáceis e das desilusões
inesquecíveis, desencadeia um novo tipo de euforia. É uma emoção
semelhante à suscitada pelos discursos de D’Annunzio, mas purgada da sua
veia lúgubre. Agora o chefe carismático não exige mais holocaustos da
multidão fervilhante, promete orgasmos.
Estupefatos e admirados pela patente manifestação da principal novidade
do século — a massa protagonista da história —, os repórteres escrevem
sobre uma “manifestação mágica, quase religiosa”, uma “visão maravilhosa”,
sobre a impossibilidade do leitor de “formar um conceito exato da vibrante
comoção”. Em resumo, é essencial ter vivido o instante vibrante para
compreender o que sentiram os 7 mil napolitanos, aglomerados por 2 horas
em um teatro com um pouco mais de mil assentos, quando Benito Mussolini,
acolhido pelo governador da província, pelo prefeito, por toda a junta
comunal e por um grupo de deputados do Sul, circundado por 50 flâmulas,
anunciado por um toque de trombeta, enfim surgiu no palco. A fanfarra entoa
Giovinezza. Todos em pé. Cantam em uníssono, a plenos pulmões,
comovidos.
Antes de mais nada, o Duce, ciente de que os napolitanos são um povo
alegre, brinca um pouco. Depois, à burguesia da cidade apinhada no teatro
régio, oferece um discurso franco, porém comedido. O fascismo, é inútil
esconder, é um partido armado porque, em última instância, é a força que
decide. Por esse motivo, eles reuniram, enquadradas pela força e firmemente
disciplinadas, suas legiões. O fascismo, é melhor que se diga com clareza,
quer se tornar o Estado. O Parlamento é um brinquedo, mas o fascismo não
vai tirar o brinquedo do povo. Que fique com ele, que brinque, o objetivo é
outro: nosso mito é a nação, a sua grandeza.
Ao chegar a este ponto, o orador toma uma decisão súbita. O ideal
republicano é definitivamente posto de lado. As regras do jogo são estas: o
rei não está em questão, a menos que ele mesmo decida, opondo-se aos
fascistas, pôr-se em questão. O Exército chega a ser venerado. Mas, mesmo
com o rei e com o Exército, é chegada a hora. Estamos no momento em que a
flecha deixa o arco ou a corda esticada demais do arco se rompe. Nós,
fascistas, não pretendemos chegar ao poder pela porta de serviço. Não
renunciaremos à nossa formidável primogenitura ideal por um miserável
prato de lentilhas ministeriais.
Os 7 mil da multidão se exaltam em uma comemoração desenfreada.
Todos, sem exceção. Os liberais não entendem nada. Na segunda fileira de
uma frisa, afundado em uma poltrona barroca de veludo vermelho, Benedetto
Croce também bate palmas. É provável que o filósofo napolitano seja a maior
autoridade intelectual da nação, líder daquele pensamento liberal pisoteado
explicitamente pelo fascismo. Tem 54 anos, é senador há 12, foi ministro da
Educação no último governo Giolitti, tem horror dos socialistas, cuja
revolução, a seu ver, é a revolta dos ignorantes contra os cultos, despreza em
Mussolini o autodidata grosseiro, o mendigo de ideias. No entanto, Dom
Benedetto aplaude.
Ao lado de Croce, o estudioso das questões do Sul Giustino Fortunato
sente um arrepio:
— Tem violência demais nessa gente.
Croce, citando o filósofo, o tranquiliza com um sorriso de superioridade:
— Mas, Dom Giustino, o senhor se esqueceu do que Marx diz? A
violência é a parteira da história.
Ao sair da galeria, o erudito Luigi Russo, discípulo de Croce, reúne forças
para conquistar o respeito do mestre:
— Pode me explicar, professor, por que tantos aplausos? Para mim,
Mussolini pareceu um histrião.
O grande filósofo, bonachão e sabichão, com ar de homem do mundo que
já viu de tudo, instrui o jovem descomedido sobre a escola do cinismo eterno:
— Concordo, Luigi. Mas, como eu, você sabe que a política é teatro.
Todos são comediantes. Esse Mussolini é um histrião talentoso.
Aliás, o palco no qual Mussolini recebe o fim de um aplauso interminável
ainda está montado com a cenografia de Madame Butterfly, apresentada na
noite anterior. Tudo se encaixa, tudo se sustenta: exotismo, chinoiserie,
supremacia do Ocidente, genial síntese dramática.
Piazza San Ferdinando, 16h30

A prova de força foi um sucesso absoluto. Não menos do que 20 mil


fascistas — alguns chegam a estimar 40 mil — foram a Nápoles, sem
oposição, provenientes de toda a Itália, viajando em trens especiais colocados
à disposição pelas ferrovias daquele Estado que eles querem dominar.
As esquadras, segundo as ordens transmitidas pela instrução no 1 da
Milizia per la Sicurezza nazionale, foram reunidas e enquadradas no campo
esportivo de Arenaccia. A parada, apesar do alerta que manteve o prefeito e o
governo apreensivos por dias a fio, com exceção de poucos eventos isolados,
prossegue marcial, mas pacífica, pelas ruas da cidade. Os homens estão
armados, as armas são exibidas, há até um esquadrão montado vindo da
Apúlia. O adido militar da embaixada britânica na Itália admira seu porte e
seu equipamento bélico. Apesar de tudo isso, em Roma, Luigi Facta suspira
de alívio. O presidente da Câmara, o advogado liberal Enrico De Nicola,
chega a dar os parabéns a Mussolini. A tão temida insurreição não aconteceu.
Às 16h30, o Duce, cercado por todo o estado-maior do fascismo, após
aplacar a burguesia pela manhã no Teatro San Carlo, passa em revista as
tropas sobre um palco erguido na Piazza San Ferdinando. A massa de
camisas-negras transborda para a adjacente Piazza del Plebiscito. Os
camaradas aclamam, gritam “vivas!”, Mussolini se cala. Lá embaixo, ao
fundo, após o nível irregular das ruas de Pallonetto di Santa Lucia, o mar do
golfo reverbera a última luz.
Então, Italo Balbo desce do palco, encontra em meio à multidão seus
camaradas emilianos e dá a ordem. Na direção do palco, e mais acima, rumo
à colina, insinua-se pelos becos miseráveis, ergue-se uma onda de incitação:
“Roma! Roma!”
Os homens das esquadras marcam o tempo daquele fim de tarde
articulando sem interrupção as duas sílabas. Mussolini então diz: “Camisas-
negras de Nápoles e de toda a Itália, hoje, sem desferir um golpe sequer,
conquistamos a alma vibrante de Nápoles, a alma ardente de todo o Sul da
Itália. A demonstração não tem outra finalidade e não pode se transmutar em
batalha, mas eu digo com toda a solenidade que o momento pede: ou nos
darão o governo ou nós o tomaremos indo até Roma! A essa altura, é questão
de dias ou talvez de horas.”
O discurso breve termina com o convite para que a multidão aclame o
Exército sob as janelas do comando militar. Da praça, erguem-se gritos de
“Viva o fascismo! Viva o Exército! Viva a Itália! Viva o rei!”.
No palco, Cesare De Vecchi, monárquico ardoroso, se aproxima do ouvido
de Mussolini:
— Grite você também: viva o rei!
Mussolini não responde.
De Vecchi insiste:
— Grite: viva o rei!
Mussolini continua a ignorá-lo. De Vecchi segura seu braço e insiste pela
terceira vez. O velho republicano que ainda sobrevive em algum lugar no
âmago de Benito Mussolini, enquanto a multidão dá meia-volta em direção
ao palácio do comando, passa a mão na face, comprimindo as maçãs do rosto
em seu habitual gesto de cansaço, e se livra com um empurrão de De Vecchi.
— Pare com isso. É suficiente que eles gritem. Mais do que suficiente.
Nápoles, 24 de outubro de 1922
Hôtel du Vésuve, quarto de Mussolini, noite

A caldeira do Vesúvio se estende por quilômetros de pedra-pomes


resfriada rumo ao Sul e ao Oriente. Sua silhueta escura, deslavada pela chuva
intensa, domina o golfo com um tom de preto mais intenso. Sob o vulcão, a
cidade de Nápoles dorme largada, inconsciente, destinada à ruína. Soluça no
sono, ignorando a si mesma e aos motivos do seu pranto.
— Entrem. — Benito Mussolini está sentado ao lado da janela, enfeitiçado
pelo temporal sobre o mar.
— A nós!
De Vecchi, De Bono, Balbo e os vice-secretários do partido Teruzzi,
Bastianini e Starace cumprimentam-no com o braço estendido. Todos vestem
a camisa negra, o uniforme militar e as medalhas sobre o peito. Cesare De
Vecchi esconde a barriga proeminente sob uma ampla faixa de seda preta, as
calças verde-acinzentadas perfeitamente passadas. Balbo emporcalha os
tapetes persas com as botas enlameadas. O único que não levanta o braço
para a saudação romana e que ostenta roupas civis frouxas e puídas é Michele
Bianchi. Em sua jaqueta preta e murcha por causa da sua magreza doentia,
parece o dono de uma funerária que veio para oficiar o funeral dos outros.
— A nós, a nós... Sentem-se. Você, Balbo, anote.
— Não tenho papel, Duce.
— Escreva nos formulários dos telegramas, ali em cima da mesinha. Esta é
uma reunião secreta. Nada de formalidades. Depressa.
Eles se sentam. Só Bianchi permanece em pé, diante da poltrona de
Mussolini, onde é possível, sem ser visto, trocar olhares com ele.
Mussolini comunica o plano. As hierarquias políticas do Partido Fascista
vão ceder o poder ao quadrunvirato à meia-noite, entre os dias 26 e 27 de
outubro. A partir daquele momento, todos, inclusive ele, deverão obedecer às
ordens emanadas pelos quadrúnviros em seu quartel-general de Perúgia. O
plano militar é aquele concebido em Milão em 16 de outubro e aperfeiçoado
na reunião secreta de Bordighera 2 dias depois. A Itália foi dividida em doze
zonas, cada uma delas sob a responsabilidade de um inspetor-geral. A mais
importante, que engloba Piemonte, Ligúria e Lombardia, foi confiada a
Cesare Forni, o rás da Lomellina, que guiou o ataque à prefeitura de Milão.
No dia marcado, os inspetores das zonas vão dar a ordem de mobilização, e
as forças fascistas ocuparão os principais pontos nas províncias. A marcha
em si partirá de três localidades próximas a Roma: Santa Marinella, Mentana
e Tivoli, onde, na noite de 27 de outubro, se concentrarão os homens das
esquadras vindos de toda a Itália. O objetivo é a conquista do poder com um
ministério que tenha pelo menos seis fascistas nas pastas mais importantes.
“Camaradas, os dois pontos do dilema são os seguintes: mobilização
imediata ou, antes de mobilizar, atacar in loco, ocupando os edifícios
públicos das principais cidades? Na minha opinião, ocupação e mobilização
devem ser simultâneas. Alguém discorda?”
O tom de Mussolini é peremptório como o de uma ordem disfarçada de
pergunta em vão.
Emilio De Bono, como se falar lhe exigisse um enorme esforço, pronuncia-
se a favor. General de carreira, corroído pela ambição de se tornar de
qualquer maneira ministro da Guerra, chorou em público duas semanas antes
em um escritório em Roma quando foi forçado a escolher entre o pedido de
demissão do Exército ou do Partido Fascista.
Depois dele, Bianchi também se pronuncia a favor. A seu ver, está muito
claro que, naquele cômodo, todos são apenas atores — o Duce já decidiu tudo
—, e ele aprova a atuação. Basta-lhe um gesto de anuência com a cabeça,
como em uma pantomima infantil que não exige nada mais elaborado. Balbo
também consente. Só manifesta preocupações em relação a Parma, a única
cidade que resistiu ao ataque do seu exército de esquadras.
O único a se manifestar contra é, como sempre, De Vecchi. Choraminga
que o plano militar não está pronto, o armamento é insuficiente. Mas se diz
confiante de que não acontecerá embate algum com as Forças Armadas. Só
falta pôr o soberano diante de uma crise parlamentar, acrescenta De Vecchi,
então, “eu cuido de todo o resto”.
Balbo parou de escrever. Olha para De Vecchi com ar de desafio. Nas
palavras do quadrúnviro relutante, aflora a agitação do homem acuado. A
passagem do poder ao comando militar de Perúgia, assim que a insurreição
eclodir — predisposta por Mussolini com sua habitual argúcia —
descarregaria toda a responsabilidade em cima deles. Todos estão cientes
disso. Mas De Vecchi, com aquela sua expressão vaga e ambígua — “eu
cuido de todo o resto” —, na verdade está pedindo autorização para conduzir
negociações separadas com os políticos romanos e com a corte antes do fim
do prazo do ultimato. E todos compreendem isso também.
No olhar trocado entre Mussolini e Bianchi, soçobra a melancólica certeza
dos momentos fatídicos: um traidor, um covarde sempre aparece.
Condenando suas tramas monárquicas à irrelevância, Mussolini ainda
assim autoriza De Vecchi a negociar tudo o que quiser. Logo após, pega a
proclamação dos quadrúnviros acordada em Milão e a lê. Por fim, dá boa-
noite aos camaradas e diz que voltarão a se encontrar em Roma. No dia
seguinte, enquanto em Nápoles a convenção de fachada continua, ele voltará
a Milão.
Agora está tudo decidido. O plano está estabelecido nos “Cinco Momentos
da Revolução”: 1) mobilização e ocupação dos edifícios públicos; 2)
concentração dos camisas-negras nas proximidades de Roma; 3) ultimato ao
governo de Facta para a cessão dos poderes; 4) entrada em Roma e tomada a
qualquer custo dos ministérios; 5) em caso de derrota, recuo rumo à Itália
Central, constituição de um governo fascista e rápida reunião dos camisas-
negras no vale do Pó.
É um plano infantil. Mesmo um analfabeto militar entenderia isso. Os
últimos dois pontos, em especial, são até motivo de riso. A chuva continua a
cair sobre a cidade adormecida aos pés do vulcão.
Desejo que cheguem ao senhor e a todos os colegas que intervieram em
Nápoles minhas afetuosas e cordiais saudações pessoais.

Telegrama de Enrico De Nicola, presidente da Câmara, para


Mussolini, 10h30

Manifestação fascista ocorreu em ordem. Nada a assinalar [...]. Depois


Mussolini pronunciou breve discurso no qual disse [...] que se o governo não
for dado aos fascistas o fascismo o tomará à força.

Telegrama de Angelo Pesce, governador da província de


Nápoles, para o presidente do Conselho de Ministros Luigi
Facta, 19h30

Comício fascista Nápoles procedeu tranquilamente: dois pequenos


incidentes causados por pânico não tiveram nenhuma importância [...].
Acredito projeto marcha sobre Roma abandonado.

Telegrama de Luigi Facta ao rei, que está de férias em San


Rossore, 21h40

Queremos crer que o discurso de Nápoles seja mais um


sinal de impaciência do que de resolução.

Corriere della Sera,


25 de outubro de 1922

Comediantes [...] uma parada de fantoches.

L’Ordine Nuovo, jornal comunista,


25 de outubro de 1922

É necessário pegar pelo pescoço a miserável classe política dominante.

Benito Mussolini,
Piazza San Ferdinando, Nápoles,
24 de outubro de 1922
Roma, 25 de outubro de 1922
Plataforma da Estação Termini, 19h30

“Estou esperando uma pessoa.”


Quando, poucos minutos antes, o trem expresso de Nápoles freou,
interrompendo sua corrida sob a marquise castigada pela chuva, Mussolini,
recolocando as indefectíveis polainas brancas no compartimento forrado de
veludo vermelho, se limitou a essa lacônica declaração. Nem Cesare Rossi
nem Alessandro Chiavolini, seu secretário pessoal, que viajam com ele, se
espantariam se o Duce se servisse de uma mulher no intervalo de meia hora
antes da partida para Milão. Aquela necessidade animal, como se sabe, o
acomete até nos momentos mais graves. Aliás, sobretudo nesses momentos.
A estação parece tranquila, o alarme soado de manhã cessara, os trens
especiais em que viajam os fascistas que vêm de Nápoles foram desviados
para a linha de Orte, os carabineiros ociosos se amontoam diante das vitrines
do bufê. Agrupados em rodinhas, esquentam-se com a respiração rançosa de
estômagos vazios, como bois na noite de Belém.
Não se trata de uma mulher. Um grupo de senhores distintos, capitaneados
por um sujeito de óculos e chapéu-coco, aproxima-se do vagão. Mussolini
desce. O quatro-olhos o puxa de lado e começa a lhe dar informações,
agitado. Gesticula, se afoba; o tempo é curto. Estão negociando, é evidente.
Estão vendendo e comprando algo.
As negociações ocorrem há dias, semanas, por debaixo dos panos, sem
parar. Ninguém sabe disso melhor do que Cesare Rossi. Negociam com
Antonio Salandra, o suposto liberal, reacionário como um barão prussiano, o
desprezível, mesquinho latifundiário da Apúlia que ainda conta em número
de pessoas as propriedades dos seus feudos, o fascista honorário mais à
direita do que os próprios fascistas, o ex-presidente do Conselho de Ministros
que arrastou a Itália para a guerra contra a vontade do país e carrega na
consciência milhões de mortos e feridos. Para lisonjeá-lo, no caminho para
Nápoles, Mussolini fez uma parada em sua casa romana. Prometeu-lhe uma
nova presidência em troca de cinco ministérios e não pediu nada para si.
Negociam com Nitti, o notável do Sul, o grande, insubstituível especialista
em questões financeiras, o homem mais insultado da Europa, que Mussolini
em particular define como “o porco” porque anistiou os desertores da Grande
Guerra, e que D’Annunzio apelidou de “Caramujo” quando ele se opôs à
libertação de Fiume. Negociam com Facta, com seu bigode de gendarme
francês, de tabelião de província, de furriel de alojamentos, o bigode de um
homem inadequado, cansado, fiel como um cão de caça ao seu dono, Giolitti,
tentado pelas alegrias crepusculares da aposentadoria, porém atormentado
pelo desejo de não fazer feio diante da história, seduzido pela vaidade de um
último gran finale. Negociam sobretudo com Giolitti, o velho estadista
octogenário, o único com quem a negociação é séria, o único ainda capaz de
restabelecer a autoridade do Estado, de impor a Mussolini o conchavo
ministerial. Rossi negocia pessoalmente com ele, por meio de Lusignoli,
governador da província de Milão. Mas Giolitti está em Cavour, no
Piemonte, nos seus campos, onde o farmacêutico tira o chapéu quando ele
passa, onde se festejam seus 80 anos.
Negociam com todos, aproveitando as miopias parlamentares, brincando
de esconde-esconde, apostando em várias mesas, jogando todas as fichas,
confiando nos vetos cruzados, atiçando os ódios das facções — o veto de
Sturzo a Giolitti, a rivalidade entre Giolitti e Nitti —, lisonjeando as vaidades
de cada um, e todos caem na cilada. No fundo, prometem sempre a mesma
coisa: a presidência de um governo de coalizão, o apoio dos fascistas
redimidos em troca de quatro ou cinco ministérios. E, com todos, usa-se a
mesma ladainha. O objetivo primário, o “plano secreto” de Mussolini, na
verdade permanece igual: protelar, levar a crise política a um ponto
irreversível, ao ponto em que não reste solução alternativa a não ser um
governo fascista, para só então forçar Facta a renunciar sob ameaça de
insurreição e tomar o poder sem desferir um golpe sequer. O terceiro
momento da revolução se torna o primeiro.
E, de fato, tudo é uma questão de oportunidade: é imperativo exorcizar o
“cedo demais”, o que permitiria a outros formarem um governo de
emergência excluindo os fascistas, ou o “tarde demais”, que desmascararia o
blefe militar deles. Se Facta caísse quando os fascistas já estivessem às portas
de Roma, ninguém teria autoridade para ordenar o massacre e, então, seria
possível jogar na balança o peso das esquadras. “Só existe uma pessoa que
pode atirar nos fascistas: eu”, repete Mussolini nas suas negociações secretas,
e promete que liquidará as esquadras um minuto após ter entrado em um
governo. Só existe um homem capaz de salvar o país do caos da violência das
esquadras. É o mesmo que, primeiro, deve suscitá-la.
Na plataforma, começa uma avalanche de abraços e apertos de mão.
Mussolini cumprimenta arqueando as costas da mão estendida para trás, na
saudação fascista, enquanto o comissário da estação o empurra para o
compartimento, temeroso de que aquele viajante incômodo possa ficar em
Roma e causar problemas. O trem volta a partir.
“Aquele era Raoul Palermi, o Grão-Mestre da maçonaria de rito escocês.
Garantiu que oficiais da guarda real, da guarnição de Roma, e o general
Cittadini, primeiro ajudante de ordens do rei, vão ajudar nosso movimento.
Talvez o Duque do Mar também, o Grande Almirante Thaon de Revel. Todos
integrantes da maçonaria da Piazza del Gesù.”
O Duce informa isso a Cesare Rossi quase de imediato, quando ainda é
possível ver os arcos milenares do aqueduto romano, com o tom brusco dos
momentos em que não consegue conter o entusiasmo.
Agora é inevitável esperar que a viscosidade das férias faça efeito. Esperar
que Giolitti não desperte cedo demais dos torpores do outono piemontês, que
o rei não volte cedo demais da caça em San Rossore para decretar o estado de
sítio e que o que resta de D’Annunzio não fuja da letargia das suas perversões
levando-o a tentar uma última empreitada. D’Annunzio... sempre
D’Annunzio... ainda D’Annunzio. Talvez a vaidade do Vate tenha sido
fisgada pelas iscas que foram jogadas...
O expresso das 20h segue em direção ao Norte. Deixa para trás Nápoles,
Roma, Perúgia, afasta-se das comédias dos pronunciamentos memoráveis, da
democracia ou dos guerreiros. Deixa tudo para trás, rumo a Milão! É lá que a
partida será jogada. Negociar, enganar, ameaçar. Os êmbolos dos pistões que
transmitem o movimento às bielas, e essas, às rodas motrizes, parecem repeti-
lo como um rosário de destruição: negociar, enganar, ameaçar. Negociar com
todos, trair todos.
Gardone, 25 de outubro de 1922
Villa di Cargnacco

Ainda chove, o nariz escorre, a cabeça dói, a umidade congestionou suas


vias respiratórias. Envelhecer, engordar, ficar resfriado a cada mudança de
estação, ficar nauseado com os subterfúgios e a covardia dos homens que, no
passado, você teve o prazer de desprezar. É esse o prêmio por sobreviver.
Eles o estão atazanando há dias, todos querem uma libra da carne flácida
de Gabriele D’Annunzio, cujo prolapso nem mesmo o bem cortado paletó de
abotoamento duplo em tecido claro príncipe de gales consegue ocultar.
O primeiro que insistiu em encontrá-lo, ele deve admitir, foi Mussolini. O
Vate teve de responder categoricamente que estava impossibilitado de
recebê-lo. Então foi a vez de Facta. Em 21 de outubro, convidou-o a celebrar
com pompa máxima o aniversário da vitória em Roma, no túmulo do soldado
desconhecido, com uma carta que tentava imitar seu estilo: “Caríssimo
amigo, o que acontecerá em Roma em 4 de novembro será grandioso. Dizer à
Itália a palavra da paz, fazendo-a irromper mais uma vez daqueles que deram
à Itália tudo, tudo, tudo, é a obra mais ilustre que se pode realizar neste
momento [...]. Enquanto isso, o país bebe com avidez a água fresca que brota
do convite: nunca como neste momento houve tanta sede de paz. Até 4 de
novembro.” Patético. Realmente patético.
No passado, as imitações lisonjeiras do seu estilo “inimitável” envaideciam
Gabriele D’Annunzio, mas, agora, ao envelhecer, parecem-lhe um sinal de
mau agouro. Patético e azarento. Facta, aquele pobre homem que idealizava
seu Piemonte do fundo da “cloaca romana”, apostou tudo na participação de
D’Annunzio nas comemorações do aniversário da vitória, ou seja, baseou
todo o seu sistema defensivo em um poeta envelhecido que, cercado por
milhares de mutilados e cegos de guerra, deveria salvar a Itália do desastre. O
poeta, tomado por um escrúpulo de sobriedade, aceitou a oferta do presidente
do Conselho de Ministros em estilo telegráfico: “Obrigado pelas suas
palavras afetuosas pt Toda a minha força recuperada pt Vemo-nos em Roma
pt Tenho sede da água de Trevi pt”
Mas as ofertas para o Vate não haviam terminado. Pouco depois,
propuseram-lhe um governo com Nitti e Vittorio Emanuele Orlando. Em
seguida, Mussolini voltou ao ataque enviando-lhe Aldo Finzi, o companheiro
do sobrevoo de Viena. Foi obrigado a recebê-lo, mas também ditou condições
severas: nenhum ataque às organizações operárias, nem um tostão dos
industriais e dos proprietários rurais. Dois dias mais tarde, em 24 de outubro,
aquele plagiador canalha que se autodenominava Duce mandou-lhe Tom
Antongini, seu secretário pessoal, aspirante a poeta, um rapaz bonito, ágil e
puro, propondo que D’Annunzio se unisse a ele na “sua” marcha sobre
Roma. Uma proposta afrontosa para quem havia idealizado a marcha sobre
Roma desde os tempos de Fiume. Sim, tinham lhe roubado tudo: os hinos, os
lemas, os gestos. Só deixaram para trás as ideias e os ideais. O poeta-
guerreiro estava furioso, pronto para voltar à briga só pelo prazer de estragar
os planos de Mussolini.
Todavia, começou a chover, seu nariz voltou a escorrer, sua garganta
inflamou. O poeta, então, mandou chamar o médico, foi para a cama e
escreveu ao amigo Aldo Rossini: “Ainda estou quase áfono, como no céu de
Trento com 17 graus abaixo de zero! Devo, por ordem severa e sincera do
médico, permanecer calado. E sinto-me profundamente triste. Você sabe que
eu havia planejado ir a Roma, mas não posso prometer nada. Se eu me
recuperar, irei.” Quando o dr. Duse chegou na mansão no fim da tarde,
D’Annunzio intimou-lhe:
“O tropel dos postulantes me deixou moribundo. Receite-me a solidão.”
O dr. Duse obedeceu, comunicando aos jornais uma prescrição médica de
repouso absoluto redigida em perfeito estilo dannunziano.

***

No entanto, menos de 24 horas depois, na tarde de 25 de outubro, Gabriele


D’Annunzio pula da cama e pede que Duse comunique a repentina melhora
das suas condições de saúde aos jornais, aqueles mesmos que, ao lado da
breve notícia sobre sua doença, relatavam naquela manhã, em páginas
inteiras, o triunfo de Mussolini em Nápoles.
O poeta recuperado agora veste seu paletó em tecido príncipe de gales e se
acomoda no estúdio repleto de bibelôs. Está prestes a receber a visita de
Alfredo Lusignoli, o governador da província de Milão, homem-chave nas
negociações ensandecidas daqueles dias. Talvez até tenha parado de chover.
Alfredo Lusignoli fala dos muitos fascistas dannunzianos que gostariam de
vê-lo no governo da nação, dos muitos industriais e banqueiros que gostariam
de ver Giolitti outra vez no governo, e, como que por acaso, propõe a
Gabriele D’Annunzio um acordo com Mussolini e... com Giolitti!
Marmorizado em sua pose de dândi, D’Annunzio encara por alguns
instantes o imbecil insolente que lhe propõe com desenvoltura uma aliança
com o homem que disparou tiros de canhão contra ele em Fiume.
O poeta se levanta, escancara a janela que dá para o jardim. Ainda chove.
Volta a fechá-la. Despede-se de Lusignoli com um aperto de mão frouxo e
lacônico:
“Faremos o possível.”
Assim que Lusignoli entra no carro, o poeta dita um telegrama para o seu
homem de confiança em Roma: “Estou mais doente do que antes. Castigado
pelas transgressões. Impossível receber visitantes. Renuncio a tudo
irrevogavelmente. Qualquer tentativa será em vão. D’Annunzio.”
Por fim, Gabriele D’Annunzio escreve de próprio punho um aviso para ser
afixado na porta da mansão como se fosse um cartaz e volta para a cama.
Enquanto isso, caiu a noite. Os alabastros, os cristais, as porcelanas
multicoloridas reluzem na penumbra, absorvendo a pouca luz de um pôr do
sol chuvoso no lago de Garda. Naquela luz fraca, mal se consegue ler a
proclamação ao mundo com a qual o poeta cansado espera poder deter a
marcha da história na entrada da sua mansão:
“O que tenho em comum com o homem do canhão naval que tentou matar
em Fiume meu pensamento invicto? Estou triste usque ad mortem. De Roma,
só vejo as cloacas.”
Milão, Foro Bonaparte, 26 de outubro de 1922
Casa Mussolini, manhã

O dono da casa, curvado para a frente, mantém a cabeça inclinada sobre a


tigela, como um predador que afunda o focinho nos intestinos da presa. Toda
a sua concentração parece dedicada a não manchar o colarinho duro da
camisa engomada. A mulher, ainda de roupão, observa o marido, recém-
chegado de Roma, sorver o mingau.
Benito e Rachele não se falam. Sabem, por experiência, que, como sempre,
entre marido e mulher, nenhuma palavra valeria o risco de romper o silêncio.
Se ele lhe confiasse suas aspirações de se tornar primeiro-ministro, Rachele
responderia com um provérbio de camponesa: “Quem deixa a estrada velha
pela nova, acaba se dando mal.” Se, depois, informasse que se trata de um
cargo honorífico, sem salário, ela o insultaria: “Belo trabalho o de primeiro-
ministro! É como se tornar o empregado de todos os italianos, e ainda por
cima de graça! Bela honra!” A miséria excessiva passada com aquela mulher
aconselha Benito Mussolini a ficar calado.
Ao acolhê-lo em seu retorno de Nápoles uma hora antes, Rachele informou
que se livrara das granadas que ele mantinha escondidas em casa. Era
perigoso demais com o risco iminente de buscas. Sua irmã Pina, tuberculosa
em último grau, transportou-as para o castelo Sforzesco, uma de cada vez,
mantendo-as escondidas nos seios, e jogou-as no fosso.
Ele então lhe pergunta se ainda tem a pistola que quis para se defender das
rivais no amor. Sim, a pistola ainda está escondida embaixo do estrado do
sofá onde dorme o pequeno Vittorio.
Toca o telefone. É Michele Bianchi de Roma. Através de uma tempestade
de descargas de estática, informa-o da situação. Os boatos sobre a iminente
mobilização, apesar dos desmentidos oficiais, circulam nos corredores. Um
Conselho de Ministros foi convocado para a tarde, dizem que Facta está
prestes a renunciar. Bianchi o encontrou na noite anterior, ao voltar de
Nápoles, para pressioná-lo a protelar com a promessa de uma participação
fascista em um eventual novo governo seu. Também disse que estariam
dispostos a se contentar com apenas quatro ministérios. O rei, por sorte, ainda
está de férias em San Rossore. Contudo, como Bianchi infelizmente havia
previsto, De Vecchi praticamente rompeu com eles. Talvez nem vá a Perúgia.
Negocia com a direita monárquica um governo de Salandra. Dizem que, com
esse objetivo, o ministro Riccio, próximo aos fascistas, porém homem de
Salandra, poderia derrubar Facta entregando sua renúncia já naquela tarde.
Dino Grandi está ao lado de De Vecchi, que o nomeou chefe do estado-maior
do quadrunvirato.
Mussolini, porém, não parece alarmado com aquela notícia.
— Deixe-os agir. Não podem nos prejudicar. Vigie-os.
— Lusignoli esteve em Gardone.
— D’Annunzio decidiu alguma coisa?
— Ainda não se sabe.
— Continue a tranquilizar Facta. Deixe-o acreditar que é nosso homem de
confiança. Arraste a situação ao máximo com ele. Mas tenha em mente,
Michelino, que não vamos voltar atrás.
Após desligar, o marido ordena à mulher que não saia mais de casa pelas
próximas 48 horas. Deve ficar ao lado do telefone e anotar com o maior
cuidado todas as ligações. Grandes acontecimentos se aproximam. Ele ficará
acampado no jornal.
Benito Mussolini passeia sem pressa. O caminho até a Via Lovanio está
tranquilo. A Via Brera, a Via Solferino, a Via Statuto são as de sempre. As
pessoas trabalham, os artistas zanzam em volta da Academia de Belas-Artes,
suas putas tristes, abatidas pela noite, ainda dormem o sono matinal na Via
Fiori Chiari. Os clamores de Nápoles, os sussurros de Roma, ouvidos em
Milão, soam como a algazarra sem sentido de um bêbado.
Milão, Via Lovanio, 26 de outubro de 1922
Sede do Il Popolo d’Italia, tarde/noite

O telegrama com a renúncia de D’Annunzio foi obviamente interceptado


pelo governo da província de Bréscia, que já às 20h45 de 25 de outubro
informou o ministério do Interior em Roma. A situação despenca.
Sem D’Annunzio, pivô da sua estratégia defensiva, Facta não pode mais
esperar. A reabertura da Câmara, prevista para 7 de novembro, está distante
demais. A situação despenca, e despenca muito depressa. Já é uma corrida
contra o tempo. Além disso, da província de Milão, Lusignoli informou ao
governo que recebeu a confirmação de que os fascistas estão preparando um
golpe para a noite de 27 de outubro. Naquela mesma manhã, esperando, é
claro, ainda poder selar o acordo Giolitti-Mussolini e, talvez, também
participar do próximo governo, o governador da província de Milão
transmitiu a informação a Roma delineando três hipóteses de como enfrentar
o ataque fascista: impor-se por número, subjugá-los com armas ou até mesmo
deixar que aquilo aconteça.
Descartando a terceira hipótese absurda do colega de Milão, às 12h10, de
Roma, por meio de um telegrama cifrado, o ministro do Interior, Paolino
Taddei, intimou todos os governadores de província do Reino a resistir com
armas a qualquer eventual tentativa de insurreição fascista. Foi o próprio
Taddei que ordenou a prisão imediata dos líderes fascistas, em especial
Mussolini, ao primeiro sinal de sedição. O telegrama que daria fim à marcha
antes do seu início está sobre a escrivaninha de Lusignoli.
Na Via Lovanio, Mussolini não tem como saber de nada isso. Entretanto,
para se precaver, mandou montar ao longo do portão uma barricada protegida
por militares com mosquetes. Esse obstáculo foi erguido com bobinas de
papel de rotativas tiradas da tipografia do jornal, que já se dissolvem sob a
chuva incessante. Para a própria defesa, recorreu aos poderes apotropaicos do
idioma: a sede do jornal foi rebatizada de “fortim”. Na falta de armamentos
mais tangíveis, recorreu-se, enfim, aos esconjuros. A palavra taumatúrgica foi
pronunciada, em tom apocalíptico, naquela mesma tarde, durante uma
reunião dos redatores, na qual foram dobrados os turnos e preparadas as
tiragens máximas. O diretor proclamou:
“A partir desta noite, devemos nos considerar todos mobilizados. Teremos
de providenciar a defesa armada do edifício e das máquinas. A ação
revolucionária está prestes a começar, e cada um deve permanecer em seu
posto. Este é um fortim, o nosso fortim, e devemos defendê-lo a todo custo.”
Enquanto isso, porém, o Duce do fascismo usa outro tom com o mundo
externo, o conciliador e satisfeito de quem até ontem cortejou o mundo, e que
agora é por ele cortejado. De repente, os outros é que querem negociar com
ele, e ele não nega uma piedosa mentira a ninguém. Continua a garantir a
Lusignoli que prefere a composição com Giolitti; a Costanzo Ciano, de
partida para Roma, indicou com precisão que a atribuição de cinco pastas
determina a disposição fascista para um acordo com Salandra; chegou a
receber os embaixadores de Nitti projetando a possibilidade de uma
recondução, àquela altura impossível, do ex-presidente do Conselho de
Ministros ao seu velho cargo.
Defendido dos ataques por uma barricada de papel ensopado, Mussolini
fala a linguagem da sabedoria e do comedimento. Também usa esse mesmo
idioma com os “mandachuvas” quando, no fim da tarde de 26 de outubro,
após anos de diferenças e desdém, eles finalmente resolvem subir as escadas
do “fortim”, mal iluminadas pela claridade avermelhada das lâmpadas em
formato de gota. Uma delegação dos principais industriais milaneses e
lombardos, liderada por Alberto Pirelli, desfilou sob a chuva no estreito
corredor entre as bobinas de papel molhado; enfim, o visitou e o homenageou
ao cair da noite. Debateram as principais preocupações do momento: as
movimentações cambiais, o andamento dos títulos do governo, o crédito do
país no exterior. Todos ficaram admirados com o líder do movimento
revolucionário em curso, o selvagem arauto de ameaças ferozes, que discutia
aqueles problemas com grande ponderação e clara noção da sua devida
importância. Assim que saíram do “fortim”, os industriais lombardos
mandaram que a Associação Bancária depositasse 2 milhões de liras na conta
de Giovanni Marinelli, administrador do Partido Nacional Fascista.
Logo em seguida, chega de Roma a notícia de que Facta não renunciou. O
Conselho de Ministros decidiu uma deliberação intermediária: os ministros
puseram suas pastas à disposição do presidente do Conselho, que ainda tem
ilusões, talvez, de que pode abrir espaço para os fascistas no próprio governo.
No fortim da Via Lovanio, ouve-se um suspiro de alívio. Por enquanto, a
marcha está a salvo.
Lá fora ainda chove, chove sobre as bobinas de papel que, àquela altura, já
viraram uma papa. A polpa desmanchada pela chuva lembra os cadáveres dos
companheiros de armas decompostos nas trincheiras da Grande Guerra.
Mas talvez não seja necessário chegar a tanto. A solução intermediária, no
país do calor meridional, mesmo sob uma chuva torrencial, continua sempre a
ser a estrada principal. O telegrama do ministro Taddei com a ordem de
prender os líderes da insurreição fascista jaz, por ora, sobre a escrivaninha do
governador da província que ainda espera se tornar ministro. Vamos aguardar
o desenrolar dos eventos.
Informações recebidas de repente indicam possibilidade alguma tentativa
fascista. Governo reagirá energicamente. Mussolini me informou ontem que
estaria disposto a entrar ministério mesmo abrindo mão algumas pastas
pedidas contanto que ministério presidido por mim. Para não encerrar assunto
respondi a seu encarregado que era algo para examinarmos juntos.

Telegrama de Luigi Facta a Vítor Emanuel III,


26 de outubro 1922, 12h

Chegam várias notícias de tentativas de insurreição planejadas pelo Partido


Fascista a serem postas em prática em data próxima com tomada de
repartições governamentais em alguns centros. Caso tais tentativas se
manifestem, esgotados todos os outros meios, deveremos resistir com armas.

Telegrama do ministro Paolino Taddei aos governadores de


província,
26 de outubro, 12h10

Confidencial pessoal pt — De várias partes sinalizados indícios de um


próximo movimento de insurreição visando apoderar-se com meios violentos
dos poderes do Estado pt — Tenho certeza de que nenhum elemento militar
poderá aderir a tal movimento violando deveres essenciais juramento militar
pt [...]. Mantenham-se V. Eminências com Comandos dependentes prontos
assumir poderes para manutenção da ordem pública pt

Telegrama do ministro da Guerra aos comandos militares,


26 de outubro de 1922, 17h

A Itália pede a seus filhos que desistam das lutas que a destroem: a Itália
pede, para a sua prosperidade e para a sua grandeza, que se interrompa, sem
delongas, uma exasperação que só produz dor e ruína.
Não é possível que esse apelo não seja atendido.

Ata do Conselho de Ministros,


26 de outubro de 1922, 19h30

A única solução possível para a crise consiste em confiar a sucessão do


ministério de Facta ao deputado Mussolini. O partido que determinou a crise
foi o Partido Fascista; portanto, é o líder desse partido que deve ser chamado
para formar um novo ministério. Estamos em uma crise extraparlamentar.
Não é mais a Câmara que faz a designação, mas o país. Quem representa o
país neste momento? Somos nós, os fascistas [...]. Os outros se recusam a
reconhecer a realidade da situação. Nós já estamos em Roma.

Michele Bianchi, secretário do Partido Nacional Fascista,


declaração aos jornalistas, Roma, por volta de meia-noite

Esse espectro das eleições é mais do que suficiente para cegar os olhos dos
velhos parlamentares, que já se movimentam para invocar nossa aliança.
Com essa lisonja, faremos deles o que quisermos. Nascemos ontem, mas
somos mais inteligentes do que eles.

Italo Balbo, Diario, 1922


Milão, Via Lovanio, 27 de outubro de 1922
Sede do Il Popolo d’Italia, 2h40

O toque do telefone rompe o estrondo das rotativas, obsessivo, e o barulho


da chuva, implacável. A voz que responde, irritada, no “fortim” sitiado pela
depressão atlântica impulsionada por ventos ocidentais que sopram sobre o
continente é a de Cesare Rossi.
Milão: Enfim, quem é?
Do outro lado da linha, em Roma, está Michele Bianchi, que, do Viminale,
pediu à telefonista uma ligação para Benito Mussolini. Embora as conversas
telefônicas estejam sofrendo muita interferência por causa das tempestades
que caem sobre a península, Bianchi deve ter percebido que um funcionário
do ministério do Interior, a mão esquerda apertando o auricular do telefone e
a direita pronta para estenografar, o interceptou.
Roma: Os ministros puseram suas pastas à disposição do presidente do
Conselho e Facta reservou-se o direito de avaliar hoje... Você me entende...
Na pausa, entre os ruídos da chuva, ecoa a preocupação de Michele
Bianchi de que, em Milão, um acordo entre Mussolini e Giolitti possa abortar
a marcha. Bianchi, com os pulmões invadidos pela morte por tuberculose, é o
mais ávido defensor da aventura a qualquer custo. Duas horas antes, por
iniciativa própria, o quadrúnviro, para precipitar o impasse na direção da
tomada de poder, convocou uma coletiva de imprensa na qual declarou que a
única solução possível para a crise é entregar o país nas mãos de Benito
Mussolini.
Roma: Como você avalia a situação de Milão?
Milão: Excelente.
Roma: Então permanecemos de acordo com o que foi dito em Nápoles?
Milão: Sim... mas... tem uma novidade.
Roma: O que foi?
Milão: Como faço para dizer por telefone? Enfim, há alguns ajustes em
vista.
Roma: Ai! Ai!
Milão: Mas veja... aviso que, de acordo com as minhas previsões, esse
“ajuste”, que no fim das contas duraria apenas alguns dias, será rejeitado
pelas duas partes...
Roma: Mas seria um “ajuste” de que tipo?
Milão: Utilitário.
Roma: Entendo, também para fazer a maré subir um pouco.
Milão: É... Quer dizer... Finzi está aqui e também quer falar com você.
Roma: Estou aqui.
Aldo Finzi toma o lugar de Cesare Rossi. São 2:45. Faz alusões às
renúncias do gabinete de Facta.
Milão: Amanhã a transição é certa?
Roma: Acho que sim.
Milão: Está bem, está bem.
Roma: Quanto a nós, não devemos recuar nem um passo.
Milão: Com certeza.
Roma: Parece que nosso caminho está traçado.
Milão: Decididamente.
Roma: O que você está me dizendo me reconforta muito. Coragem.
Milão: Adeus, Michelino.
Milão, Via Lovanio, 27 de outubro de 1922
Sede do Il Popolo d’Italia, 3h

No “fortim”, o telefone toca outra vez. Passaram-se apenas 15 minutos


desde a última ligação. De novo, é Michele Bianchi. Fica evidente, diante das
reticências de Cesare Rossi, que as tranquilizações de Finzi não lhe foram
suficientes.
A linha é novamente a da direção do Il Popolo d’Italia; mais uma vez o
telefonema provém, interceptado, do Viminale. Agora, entretanto, quem
atende é o diretor em pessoa.

Bianchi: Benito...
Mussolini: Diga, Michelino.
Bianchi: Eu e meus amigos queríamos saber quais são suas ordens.
Um intervalo de silêncio. Mussolini está atônito.
Mussolini: Ordens minhas?
Bianchi: Sim. Quais são as novidades?
Mussolini: As novidades são estas: Lusignoli foi até Cavour se encontrar
com Giolitti e diz que pode arrancar dele quatro pastas importantes e quatro
subpastas.
Bianchi: Que pastas seriam?
Mussolini: Marinha, Tesouro, Agricultura, Colônias. Depois teria também
a da Guerra, que seria dada a um nosso amigo, e mais quatro subsecretarias.
Bianchi: E então?
Mussolini: Então mandou ligarem de Cavour, estará de volta esta manhã às
nove.
Bianchi: Benito...
O nome do amigo tem a inflexão de uma súplica.
Mussolini: Diga.
Bianchi: Benito, quer me ouvir? Quer ouvir minha resolução final
irrevogável?
Mussolini: Sim... sim...
Bianchi: Responda: NÃO.
Silêncio.
Mussolini: Claro... é natural, a máquina a esta altura já está montada e nada
pode pará-la.
O estenógrafo está provavelmente suando enquanto transcreve a frase que
será comunicada ao ministro do Interior, dele a Facta e, por meio do
presidente do Conselho de Ministros, ao rei.
Bianchi: É fatal como o próprio destino o que está para acontecer... Já não
é mais o caso de discutir a pasta.
Mussolini: É natural...
Bianchi: Então, estamos de acordo. Posso também comunicar isso em seu
nome?
Mussolini: Espere, primeiro... Vamos ver o que Lusignoli diz... amanhã
voltamos a nos falar.
Bianchi: Está bem.
Mussolini: Para atualizá-lo de todo o movimento, lhe passarei o relatório
que Lusignoli vai me fazer.
Bianchi: Está bem... está bem.
Mussolini: Adeus.
Bianchi: Adeus, Benito.
Milão, Via Lovanio, 27 de outubro de 1922
Sede do Il Popolo d’Italia, tarde

Costanzo Ciano chegou no primeiro trem da manhã. Na Via Lovanio,


encontrou homens abatidos pelas poucas horas de sono, passadas ainda por
cima em colchões jogados sobre o chão.
O herói de Buccari, esgotado pelas idas e vindas entre Roma e Milão,
parecia ainda mais cansado do que aqueles revisores de provas acampados
sobre o chão como tropas de assalto. O destemido invasor de torpedeiros e
contratorpedeiros, que agora acumula riquezas dirigindo a companhia de
navegação de Giovanni Agnelli, deixou cair o corpo gigantesco sobre a
poltrona diante da escrivaninha de Mussolini e, debaixo do bigode com dois
dedos de espessura, logo começou a informá-lo sobre as manobras romanas.
Falou das conversas com Salandra, da visita a Giolitti por parte de Vittorio
Emanuele Orlando, dos boatos a respeito da iminente crise de governo e do
iminente retorno do rei a Roma. Por fim, Ciano entregou uma carta na qual
Facta insistia mais uma vez para que o Duce fosse a Roma negociar
pessoalmente com ele.
Enquanto, como de costume, fazia anotações em folhas soltas, margens de
jornais e formulários de telegramas, Mussolini sabia que tinha à sua frente
um daqueles participantes que, junto a De Vecchi e Dino Grandi,
participavam da pequena conspiração fascista ainda em curso para evitar a
qualquer custo a marcha sobre Roma. Deixou que ele falasse como fizera
com os outros. Cada subterfúgio, cada sussurro deles nos corredores de
Montecitório sobre o “vento de loucura que sopraria sobre os fascistas
incitados por Michele Bianchi”, sobre o “banho de sangue” que os loucos
esquentados desencadeariam às portas de Roma caso não fossem detidos, é
útil para os fascistas porque contribui para evocar o espectro que ele está se
esforçando para exorcizar. A única realidade de um exorcismo, Mussolini
sabe, é o medo do demônio e o próprio medo. Este, Mussolini também sabe,
é a única arma afiada que eles têm. A marcha, até ontem um monte de argila
informe, ganhara vida graças aos sussurros dos conspiradores e agora é um
monstro com vida própria. A visão de milhares de homens de preto que,
saídos das trevas, avançam armados sobre a capital para conquistar o poder é
uma daquelas antigas profecias que basta pronunciar para que se torne
verdade.
Pouco antes da chegada de Ciano, para ganhar ainda seis ou doze horas,
Mussolini enviou Rossi a Lusignoli a fim de anunciar sua próxima visita para
concluir a negociação com Giolitti.
O telefonema de Antonio Salandra, por sua vez, chega ao Il Popolo
d’Italia às 10h25, quando Ciano ainda está sentado na frente do diretor. Os
dois rivais na conquista do poder se estudam e ambos blefam, como dois
jogadores de pôquer.
Salandra: O ministério renunciou, pondo as pastas à disposição do
presidente do Conselho.
Mussolini: E Facta já entregou a renúncia ao rei?
Salandra: Isso eu não sei.
Mussolini: Ah! E... existe a possibilidade de o presidente resolver a crise?
Salandra: Sei lá... Vai depender dos acontecimentos.
Por um instante, a comédia se interrompe. O olhar de Mussolini cruza com
os de Ciano e de Cesare Rossi, que servem de espectadores. A próxima fala
exige uma entonação diferente.
Mussolini: Mas se... se o senhor fosse designado para compor o novo
ministério, aceitaria essa tarefa?
Salandra: Bem... eu não poderia responder agora. É melhor que o senhor
venha a Roma!
Mussolini: Não posso. Não é possível para mim ficar indo e vindo de
Milão a Roma.
Salandra: Neste momento, é necessário que o senhor esteja em Roma
porque ninguém, nem eu nem outros, consegue resolver a crise sem a sua
presença. O senhor viu Ciano?
Mussolini pisca para o homenzarrão sentado do outro lado da sua
escrivaninha.
Mussolini: Sim, está aqui no meu escritório, e é exatamente por isso que eu
queria notícias do senhor.
Salandra: Muito bem, Ciano pode contar o que aconteceu ontem. Se eu
tiver mais notícias, comunicarei ao senhor.
A conversa se encerra com essa nota de impaciência. Um assalto no qual
ambos os pugilistas ficaram se testando, tomando cuidado especial em não
baixar a guarda, negando o que sabiam e se vangloriando do que não podem
saber. Mas Mussolini, ao contrário do adversário, em meio àquelas
conversas, prepara um golpe direto no queixo.
Após despachar Ciano com um abraço comovido e um vago “nos vemos
no Quirinal!”, Mussolini passa o resto do dia na Via Lovanio ganhando
tempo. Àquela altura, a “marcha” desliza em um plano inclinado. Mais
algumas horas e, à meia-noite, se ninguém os prender durante a tarde, os
integrantes das esquadras atacarão as sedes dos governos provinciais nas
principais cidades das províncias de toda a Itália. Aquelas poucas horas serão
as últimas em que se dirá sim a todos. Sim a um ministério de Salandra por
meio de Ciano, sim a Giolitti por meio de Lusignoli, e assim por diante.
Todos agora pedem que Mussolini vá a Roma para lhe oferecerem três,
quatro, cinco pastas. Os outros candidatos ao poder, ao aceitarem negociar
somente com ele pela mesma aposta, perderam a possibilidade de fazer a
roleta girar na sua ausência. São velhos ex-presidentes em fim de carreira que
esperam um último cargo, políticos tradicionais que sabem oferecer apenas
um ministério a mais, homens do século passado que sobreviveram além da
conta.
Após ter dito os últimos “sim”, Mussolini convoca em seu escritório
Cesare Rossi e lê a lista dos ministros do seu governo. Rossi abre um sorriso:
aquele louco decidiu que ele mesmo será o primeiro-ministro!
Mas o louco não esgotou as surpresas. Tira o telefone do gancho e pede à
secretária para reservar um camarote no Teatro Manzoni. Aquela noite, está
em cartaz O Cisne, de Ferenc Molnár, um drama de que estão falando muito.
Mussolini vai acompanhado pela sra. Sarfatti.
“Esta noite, vou ao teatro!”
Diz a todos, em voz alta, para que todos ouçam. Está na hora de fazer com
que sua presença seja desejada, está na hora de desaparecer. Está na hora de
ensinar àqueles velhos politiqueiros do século passado que, na política de
aniquilação inaugurada no século XX, não existe “sim”, existe apenas um
único, gigantesco, sanguinário NÃO.
Resta ainda descobrir se o exército do rei abrirá fogo contra os camisas-
negras. Naquele caso, porém, o massacre dos camaradas fascistas cairá sobre
os quadrúnviros atolados em Perúgia. Ao soar da meia-noite, quando a
cortina se fechar após O Cisne de Molnár, a batata quente passará para eles.
Perúgia, 27 de outubro de 1922
Hotel Brufani, quartel-general do quadrunvirato, noite

Michelino Bianchi e Emilio De Bono estão debruçados sobre os mapas há


horas. Ambos de uma magreza espectral, suados e perdidos, um à paisana e o
outro de uniforme, dão a impressão de estar usando roupas que já foram de
um irmão mais velho. Estudam os mapas porque o território que deveriam
controlar lhes é desconhecido por completo.
A pequena cidade úmbria é, de fato, totalmente inadequada para servir de
comando das operações: afastada das linhas ferroviárias, com estradas
escassas, longuíssimas e atoladas na lama, comunicações telefônicas e
telegráficas quase inexistentes. Em Perúgia, nada se sabe do restante do
mundo. Imagine se é possível dali coordenar uma invasão! Após horas de
inércia, alguém propôs transferir o comando para Orte, entroncamento
ferroviário próximo a Monterotondo, Santa Marinella e Tivoli, locais
designados para a concentração das tropas que os quadrúnviros deveriam
comandar e das quais, em Perúgia, eles não têm notícia alguma. Precisaram
desistir porque não foi possível pedir permissão a Mussolini, que continua em
Milão. O telefone está mudo. O quartel-general da marcha sobre Roma está
isolado. Os quadrúnviros estão na mais completa escuridão.
O comando fascista de Perúgia dispõe de algumas centúrias locais e das
esquadras “Satana”, “Toti”, “Fiume”, “Grifo”, “Disperatissima”. O desespero
do nome dessa última parece a todos o mais apropriado para a situação.
Ao soar da meia-noite, os integrantes das esquadras dos vilarejos vizinhos,
que, após invadirem a cidade, escalaram com as mãos desprotegidas as
íngremes escarpas dos montes próximos, armados só com fuzis de caça,
porretes, podadeiras e facões que em geral usavam para degolar porcos,
deveriam ocupar os correios, os telégrafos, as outras repartições públicas, as
portas da cidade e os entroncamentos rodoviários defendidos pelo Exército
em formação de guerra, armado com dezenas de metralhadoras pesadas.
Nesses mesmos montes, parques de artilharia comandados por oficiais
experientes mantêm os canos de suas armas apontados para o Hotel Brufani.
Lá embaixo, na mira dos pequenos canhões que o fazem de alvo, as janelas
do hotel surgem reforçadas por sacos de areia e terra. A entrada, após a
dispensa do porteiro, é vigiada por fascistas com baionetas caladas. Duas
metralhadoras, uma de cada lado, esforçam-se inutilmente para criar um
aspecto ameaçador.
Na mesma praça, diante do Brufani, a poucas dezenas de metros, a sede do
governo provincial que os fascistas deveriam atacar está defendida por um
cordão triplo de guardas reais e carabineiros em formação sob o pórtico do
edifício. Nos telhados, dezenas de metralhadoras. Por enquanto, a tropa do
comando da região continua no quartel, mas, ao primeiro fogo, enfrentariam
os fascistas. Não há dúvida de que, se o Exército abrisse fogo, o comando
fascista seria derrotado em poucos minutos.
Às 20h, chega a notícia. Ao que parece, as esquadras da Toscana e de
Cremona, comandadas por Farinacci, anteciparam a ação e estão causando
um desastre. Em Florença, os homens do cônsul da Milizia per la Sicurezza
Nazionale, Tullio Tamburini — cada vez mais orgulhoso do apelido “O
Grande Espancador” —, prenderam alguns oficiais e sitiaram a sede do
governo provincial, onde acontece um banquete em homenagem a ninguém
menos do que o general Armando Diaz, o “Duque da Vitória” da Primeira
Guerra Mundial.
“Imbecis!”
É a última palavra que Bianchi e De Bono ouvem Italo Balbo pronunciar
antes de entrar no carro e disparar rumo a Florença pelas estradas lamacentas,
no escuro e sob chuva forte. Uma ofensa fascista ao general Diaz implicaria
ter todo o Exército contra eles. Seria a carnificina. Sem contar que o “Duque
da Vitória” já tem no bolso o ministério da Guerra em um eventual governo
de Mussolini.
Para não desmentir a própria reputação, embora esteja enfurecido e ansioso
por conta das notícias de Cremona e Florença, enquanto o automóvel já o
espera do lado de fora do hotel, Balbo ordena que os homens das esquadras
que vigiam a entrada riam, com a boca aberta, em intervalos regulares, a cada
duas horas, a partir daquele momento, na cara dos guardas reais enfileirados
diante da sede do governo provincial.
Cesare Maria De Vecchi, ainda ocupado em Roma com conspirações para
evitar a marcha, não chegou sequer em Perúgia. Quando Balbo parte, o que
resta do quadrunvirato passa o tempo como pode à espera da hora H. Emilio
De Bono, esqueleto de general descarnado em uma camisa negra engomada,
volta ao seu mapa. Michele Bianchi, sacudido pelos seus estertores de
tuberculoso, com o indefectível chicote abandonado entre as pernas, deixa-se
cair em uma poltrona da biblioteca.
Cremona, 27 de outubro de 1922
Edifício da prefeitura, noite

A escuridão deu o sinal. Às 18h, a iluminação pública, sabotada por um


participante das esquadras, apagou-se de repente em todas as salas da
prefeitura da cidadezinha lombarda e nas ruas próximas. Após aquele sinal,
na escuridão, cerca de setenta integrantes das esquadras comandados por
Roberto Farinacci invadiram o edifício. Carabineiros e guardas reais, de
serviço em uma província cedida aos fascistas havia anos, surpresos e
coniventes, deixaram que entrassem sem opor resistência. Ao mesmo tempo,
outras esquadras ocuparam agências telegráficas e telefônicas. Uma ação
surpreendente, fulminante, mas conduzida muitas horas antes do horário
estabelecido e sem nenhum cálculo das consequências. Um ato de
impaciência, de indisciplina individual, evidentemente sugerido pelo desejo
de se destacar, um gesto de puro desleixo. Típico de Farinacci.
O governador da província, após um primeiro momento de perplexidade,
volta a si, alerta o comando do contingente local e, ao receber os reforços
militares, prende os fascistas. Os quarenta participantes capturados, reunidos
em uma mesma sala, choramingando como crianças desiludidas por causa das
promessas não cumpridas pelos adultos, protestam com as autoridades do
Estado, em geral coniventes. Para convencer o governador a libertá-los, os
prisioneiros garantem que, naquele momento, a mobilização concordada pelo
Duce supremo com as autoridades máximas do Estado está em andamento em
toda a Itália. O governador da província não tem notícia alguma a respeito.
Sabe apenas de um conflito armado desencadeado por alguns dos camaradas
deles em San Giovanni in Croce, um pequeno povoado fora de Cremona.
Poucas horas depois, um segundo contingente fascista tenta um novo
ataque. Alguns homens das esquadras lançam um automóvel em alta
velocidade contra os cordões de militares que cercam a prefeitura, outros
tentam chegar às janelas usando escadas de corda. Soam dois toques de
trombeta. Então, um ruído de mosquetaria. Em formação cerrada, fuzis
apontados para os agressores, os soldados do comando da cidade sobem o
Corso Vittorio Emanuele.
Farinacci, incrédulo, se joga sobre eles: “Parem! Não atirem! Certamente
devem ser tiros de festim...”
Roma, 27 de outubro de 1922
Hotel Londra, 22h

Milão: Lá em cima, querem concluir. E, pelas notícias recebidas assim que


cheguei, entendi que aqui também consideram oportuno concluir. Ligo daqui
a meia hora.
Roma: Obrigado.
O dia de Luigi Facta começara com uma promessa. Ao voltar de um
encontro com Giolitti em Cavour (“lá em cima”), enquanto esperava receber
Mussolini (“aqui”), Lusignoli havia prometido um telefonema em meia hora.
O restante do dia, porém, transcorreu em uma espera sombria e vã.
Às 20h05, todavia, Vítor Emanuel III enfim chegou. À espera do soberano
na estação, além de Facta, estavam o governador da província, o diretor-geral
da segurança pública e o chefe da polícia de Roma. Após descer do trem, o
rei apertou a mão do presidente do Conselho de Ministros e os dois se
dirigiram à saleta real da estação. Vítor Emanuel declarou estar cansado,
contrariado, debilitado e ameaçou abdicar e se retirar com a mulher e o filho
no campo.
Entretanto, tomado por orgulho, o soberano declarou que Roma deveria ser
defendida a qualquer custo. Se os fascistas se apresentassem armados às
portas da capital, a simples passagem dos poderes à autoridade militar não
bastaria. A expressão “estado de sítio” foi pronunciada então pela primeira
vez. Sua simples proclamação teria bastado para dar cabo da marcha.
“Mantenha a ordem pública.”
A injunção peremptória ressoou na saleta real da Estação Termini como
uma despedida para Facta. O rei nada mais acrescentou. Ao sair da estação,
recolheu-se em Villa Savoia.
Por volta das 21h, finalmente o tão esperado telefonema de Lusignoli.
Mussolini fora para o teatro, a negociação fracassara.
Luigi Facta, então, deveria ter pedido uma segunda audiência com o
soberano. O homem havia ido até Villa Savoia e capitulado. Se o presidente
do Conselho de Ministros tivesse entregado sua renúncia pelo menos 24
horas antes, permitiria ao país ter um governo capaz de enfrentar a agressão
fascista. Se o fizesse naquele momento, deixaria o país sem governo algum
para confrontá-la. Facta entregou a renúncia naquele exato momento.
De volta ao Viminale, Facta deu aos funcionários permissão para irem
dormir.
— Afinal, pedimos demissão — disse —, há uma crise. Voltamos a nos
reunir amanhã de manhã.
O diretor da segurança pública manifestou a mesma opinião.
— Bem — acrescentou —, de qualquer forma, os fascistas não chegarão a
Roma antes das 7h.
Então, reconfortado, Facta anunciou:
— Também vou dormir.
Como costuma fazer há pelo menos trinta anos todos os dias, sem nenhuma
exceção, Luigi Facta de Pinerolo deita-se também esta noite antes das 22h.
Fora um dia cansativo. No seu quarto solitário no Hotel Londra, o senhor
idoso não reúne forças sequer para tirar a coberta da cama. Deitado sobre a
colcha, joga por cima do próprio corpo o capote que acabara de despir, ainda
úmido de chuva, e adormece.
Por sua vez, Efrem Ferraris, seu jovem chefe de gabinete, de volta ao
ministério do Interior, inicia sua vigília de armas.
Durante horas, observa emudecido, na escuridão da noite, o piscar das
luzes dos telefones que conectam as sedes dos governos provinciais ao
ministério. Durante horas, no silêncio das grandes salas do Viminale, Ferraris
observa o acúmulo do fonogramas e despachos urgentes nas mesas e anota os
nomes dos governos provinciais ocupados, das agências telegráficas
invadidas, dos contingentes militares que confraternizaram com os fascistas,
dos trens requisitados que partem carregados de armas rumo à capital. Dura
até a alvorada o espetáculo grandioso do desmantelamento de um Estado.
Milão, 27 de outubro de 1922
Camarotes do Teatro Manzoni, logo após as 22h

Luigi Freddi é um rapaz promissor. Integrante antigo, logo do começo das


esquadras, redator-chefe do Il Popolo d’Italia, demonstra um talento especial
para a propaganda. Um artigo seu publicado no Il Fascio teve certa
repercussão. Escreveu ali que “o soco é a síntese da teoria”.
Agora, porém, Freddi hesita. Quando se aproximou do camarote do Teatro
Manzoni, indicando ter notícias urgentes, Mussolini sinalizou para que
esperasse. Ele e a sra. Sarfatti estão inclinados sobre a balaustrada, de mãos
dadas, arrebatados pelo segundo ato de O Cisne, de Ferenc Molnár.
Mas, no intervalo, assim que toma conhecimento do que aconteceu em
Cremona, Mussolini corre para o jornal. O mensageiro é um sujeito que
chamam de “Volpevecchia”, ou Raposa Velha. Barba hirta, jaquetão de couro
cru, óculos de aviador pendurados no pescoço, ele os espera ao lado de uma
motocicleta preta com o farol quebrado e sujo de lama. Volpevecchia parece
encarnar a fatalidade do destino. Ao olhar para aquela figura com sua moto
Guzzi, seu punhal na cintura e o revólver enfiado nas calças, é inevitável se
perguntar o que mais um brucutu daqueles poderia ter feito na vida se não
tivesse montado naquele selim sobre duas rodas. As coisas, é claro, só
podiam ter tomado aquele rumo. Em Cremona, está acontecendo um
massacre.
Os soldados atiraram direto nos integrantes da esquadra de Farinacci que
tentaram escalar com cordas as janelas da sede do governo provincial.
Volpevecchia chegara em Cremona, vindo de Perúgia, quando os cadáveres
ainda estavam quentes. Assim que soube que a ação começara antes do
previsto, Balbo o enviou com a ordem de adiá-la. Farinacci, por sua vez, deu-
lhe um bilhete escrito de próprio punho a ser entregue ao Duce: “Aqui
estamos morrendo. Nenhum adiamento.”
De volta ao seu escritório, Mussolini recebe um telefonema de Balbo em
Florença. Ele relata a catástrofe que aqueles incompetentes de Tamburini
estavam aprontando. Por sorte, conseguiu detê-los a tempo e homenagear o
general Diaz.
Após desligar o telefone, Mussolini pede que lhe tragam a proclamação
dos quadrúnviros que ele mesmo havia redigido na semana anterior. Ninguém
encontra o documento. Alessandro Chiavolini, a quem havia sido entregue, o
guardara em um cofre na agência dos correios, agora protegida pela polícia.
Assim que o texto da proclamação reaparece, o redator, sabendo que Facta
renunciara, modifica algumas frases. Como se fosse um Cristo Pantocrator a
quem basta dizer “luz” para que se faça luz, o diretor do Il Popolo d’Italia, do
seu escritório na Via Lovanio em Milão, em nome de quatro infelizes
perdidos na noite chuvosa pelos quatro cantos da Itália, escreve: “O
quadrunvirato secreto de ação declara deposto o atual governo, dissolvida a
Câmara e fechado o Senado. O Exército deve permanecer nos quartéis. Não
deve participar da luta.” Mussolini sabe muito bem, e as notícias de Cremona
são a prova de que, caso haja participação do Exército, não haverá luta
alguma.
Seus últimos atos dessa madrugada — passada à espera de descobrir se o
rei da Itália, aquele anão maldito que o despreza por causa de suas origens
plebeias, proclamará o estado de sítio e dará cabo da sua marcha — são dois
atos de devoção aos poderes talismânicos com os quais, às vezes, as
divindades menores da palavra, a despeito dos fatos, permitem que os
homens mantenham a realidade distante.
Em primeiro lugar, o jornalista de grande valor, omitindo o massacre de
Cremona, dita aos colaboradores a manchete daquela que pode ser a última
edição do seu jornal: “A história da Itália em uma guinada decisiva — A
mobilização dos fascistas já aconteceu na Toscana — Todos os quartéis de
Siena ocupados pelos fascistas — O verde-militar confraterniza com os
camisas-negras.” Então, o fascista censor convoca Cesare Rossi e ordena que
faça uma ronda pelas redações milanesas com Aldo Finzi para impor uma
imprensa aliada.
“Chegou a hora”, conclui Mussolini, despedindo-se do seu conselheiro
com expressão quase conformada.
Cesare Rossi, para que a ronda de intimidação pelas redações dos jornais
tenha credibilidade, leva consigo aquele participante de esquadra toscano que
gosta de se apresentar aos desconhecidos vangloriando-se dos próprios
crimes.
“Prazer, Amerigo Dùmini, nove homicídios.”
Roma, 28 de outubro de 1922
Ministérios da Guerra e do Interior, noite

Pouco depois da 1h, na sua cama no Hotel Londra, o presidente Facta


ainda jaz na mesma posição que seu corpo esgotado assumiu três horas antes.
Quando vai acordá-lo, Efrem Ferraris, o jovem chefe de gabinete, vê naquele
corpo prostrado apenas um velho encolhido sob o manto do próprio capote
molhado. Passada menos de uma hora, o velho cadavérico está no ministério
da Guerra.
A reunião que acontece ali às 2h é dramática. O ministro do Interior Taddei
exprime ao general Pugliese, comandante da divisão de Roma, a própria
dolorosa surpresa diante do fato de as Forças Armadas não terem sido
capazes de impedir a conquista fascista de muitos governos provinciais.
Pugliese, revoltado e enfurecido, joga a responsabilidade na indolência da
classe política. O general preparou há dias a defesa da capital e pede há dois
dias ordens escritas para poder executá-la. O ministro Paolino Taddei garante
que agora ele as terá.
Após a reunião, Facta vai até o rei em Villa Savoia. Vinte minutos mais
tarde, com o fim da audiência, dirige-se a Amedeo Paoletti, seu secretário
pessoal:
“Mande o motorista me levar de volta ao Viminale. Devo preparar o estado
de sítio que o rei assinará amanhã de manhã.”
Chegando à sede do ministério do Interior, o velho cavalheiro piemontês
tem até um rompante de heroísmo:
“Se os fascistas quiserem vir, terão de me tirar daqui em pedaços”,
sussurra no seu dialeto.
O Conselho de Ministros é convocado para as 5h30. Na pauta, o estado de
sítio. Essa providência jurídica excepcional que, diante de uma grave ameaça
à soberania do Estado, suspende as garantias constitucionais e transfere todos
os poderes à autoridade militar não é adotada desde 1898. Por isso, mandam
buscar o texto daquela proclamação. Copiam-no, suavizando os tons mais
violentos e inoportunos. O resultado é um manifesto grave, mas moderado,
firme, conciso e digno. Com ele, Luigi Facta, às 9h, segue novamente até
Vítor Emanuel III. Bastará apenas sua assinatura para que a marcha dos
fascistas termine não em Roma, mas na cadeia, ou no cemitério.
Logo depois das 6h, Facta transmite ao general Pugliese as ordens escritas
para a defesa de Roma esperadas havia dias; passada meia hora, parte o
telegrama para os governadores de província com a ordem de prisão dos
responsáveis pelo levante; às 7h50, é redigido o telegrama para as
autoridades militares com o qual é comunicada a instauração do “estado de
sítio”; às 8h30, o manifesto é afixado nas ruas de Roma.
Giovanni Amendola, ministro das Colônias, surrado pelos fascistas na
véspera do Natal, fundador do Partido Democrático Italiano e do jornal
liberal Il Mondo, cuja sede napolitana foi incendiada pelas esquadras em 24
de outubro, tem enfim um significativo momento de rara felicidade.
“Os fascistas não passarão: decidimos ordenar o estado de sítio e, amanhã,
esses canalhas serão colocados no seu lugar”, exulta o sincero democrata
quando é liberado o decreto.
O Conselho de Ministros decide por unanimidade propor ao Rei a
proclamação do estado de sítio.

Da ata do Conselho de Ministros,


28 de outubro, 6h

O governo, com decisão unânime do Conselho de Ministros, ordena que


Vossas Senhorias providenciem a manutenção da ordem pública [...] usando
todos os meios, a qualquer custo, e com prisão imediata, sem exceções, de
líderes e promotores do movimento de insurreição contra poderes do Estado.

Telegrama da presidência do Conselho de Ministros aos


governadores de província e comandantes militares do Reino,
28 de outubro de 1922, 7h10

No 23.859 — Conselho Ministros decidiu proclamação estado sítio em


todas as províncias Reino a partir meio-dia de hoje. Tal decreto será
publicado agora mesmo. Enquanto isso Vossas Senhorias usem
imediatamente todos meios excepcionais para manutenção ordem pública e
segurança propriedades e pessoas.

Telegrama da presidência do Conselho de Ministros aos


governadores de província e comandantes militares do Reino,
28 de outubro de 1922, 7h50

Contra Roma, mãe da civilização, ninguém jamais ousou marchar para


sufocar a ideia de liberdade que nela se personifica. Cabe a vocês defendê-la
até o último sangue e serem dignos da sua história.

Ordem do dia do general Emanuele Pugliese para oficiais e


soldados da praça militar de Roma, alvorada de 22 de outubro
de 1922
Santa Marinella, Monterotondo, Tivoli,
28 de outubro de 1922, 8h30

Enquanto nas estradas de Roma é afixada a proclamação do estado de sítio


que deveria impedir a insurreição, esta, nos campos do Lácio, já fracassou.
A divisão para a defesa da capital, sob as ordens do resoluto general
Pugliese, soma no total 28 mil homens, entre soldados, carabineiros, guardas
fiscais e guardas reais, que dispõem de 60 metralhadoras, 26 canhões, 15
tanques.
Diante desse imponente bastião defensivo, no momento em que a ação
deveria começar, as 3 colunas fascistas que chegaram às zonas de
concentração contam, talvez, no total, com 10 mil homens. Estão sedentos,
famintos, e seguem a pé, desanimados, mal armados, encharcados de chuva.
Muitos carregam no cinto somente revólveres, punhais e ferramentas
agrícolas; nas mãos, brandem maças curtas, porretes, chicotes. A maior parte
deles está sem armas. Os que empunham um fuzil militar não têm cartuchos.
Os chefes das centúrias ordenam que os mais jovens entreguem os poucos
fuzis a atiradores escolhidos, veteranos da Grande Guerra, para que se
posicionem à frente e nas laterais das colunas. A chuva, torrencial, açoita-os
impiedosa: cai enviesada, bate em cheio nos rostos, penetra por baixo das
capas, atinge as poças e borrifa lama nos homens. A interrupção das linhas
ferroviárias em Orte e Civitavecchia, ordenada pelo comando de Roma,
obriga os fascistas a prosseguir a pé. Eles se perdem pelos campos e bosques.
Os jovens revolucionários, após marcharem de toda a Itália durante a
madrugada para tomar a história de assalto, acampam como homens das
cavernas em cabanas e grutas, procuram abrigo da chuva embaixo dos olmos.
Os palheiros úmidos ou molhados servem de catres, as meias ensopadas são
substituídas por papel-jornal. As rações são escassas — poucos sacos de
batata, biscoitos de arroz. Os miseráveis desvalidos, ao chegarem nos centros
habitados, se atiram nas fontes, mas as encontram sem água potável.
Doloridos, mancando, improvisando, avançam. Alguns tiram as botas de
montaria e, carregando-as balançando nas costas, prosseguem descalços. Ao
redor, um deserto. Se avistam uma casa em construção, os rapazes de
Mussolini se iludem. Ali se refugiam em centenas. A água penetra em
torrentes. No entanto, muitos dormem, insensíveis a tudo. Outros cochilam,
embrutecidos. A subsistência dos homens, e não a guerra, ocupa todo o
horizonte da sua existência: pedem pão, inventam matadouros onde animais
são degolados por açougueiros improvisados. São “pobres-diabos”, dezenas
de milhares de jovens vindos de todo o país para fazer a revolução, mas
ninguém lhes ordena nem a retirada nem o ataque. Como nos três anos de
trincheira, estão aprisionados nesta nova terra de ninguém entre Orte e Tivoli
e permanecem, esquecidos, encharcados, capturados, com sua maldade, com
seu desejo pelo butim, com seus ideais, apodrecendo sob a chuva neste beco
sem saída da história.
Milão, Via Lovanio, 26 de outubro de 1922
Sede do Il Popolo d’Italia, por volta de 8h

A Galleria está bloqueada pelos guardas reais, três metralhadoras apontam


para a Piazza della Scala a partir do edifício da Banca Commerciale Italiana,
os bondes que atravessam a Via Manzoni foram desviados. Aparentemente
alheia aos eventos até o dia anterior, esta manhã toda Milão tem a impressão
de que o estado de sítio já está em vigor. A batalha — sem dúvida — se
anuncia desigual: os homens das esquadras alinharam cavalos frísios diante
da sede do Fascio di Combattimento na Via San Marco, mas, ao longo do
canal cheio pela chuva, nos cruzamentos com a Via Solferino, a Via San
Marco e a Via Brera, os soldados do rei estão posicionando sobre cavaletes
metralhadoras pesadas.
Após passar a noite em casa, Mussolini chegou ao jornal faz duas horas
quando Enzo Galbiati, um ex-pedreiro nomeado chefe das esquadras da
Brianza e que agora está no comando da defesa do “fortim”, anuncia que, da
Via Moscova, três tanques estão avançando, e da Via Solferino, um batalhão
de guardas reais partiu para ocupar a sede do jornal. Estão vindo,
provavelmente, executar a ordem de prisão dos líderes do levante.
O primeiro a argumentar é Cesare Rossi. Propõe um modus vivendi para
evitar o derramamento de sangue. Os Arditi e os fascistas que foram para a
rua ostentando mosquetes e granadas diante do que resta da barricada de
bobinas de papel desmanchadas pela chuva vão se retirar do edifício, e a
força pública vai parar na esquina da Via Moscova.
O major da guarda real, porém, não quer conversa. Recebeu ordens e vai
executá-las.
Enquanto o bigode do major se prepara para escrever a palavra final em
relação à marcha, Benito Mussolini se apresenta pessoalmente na
encruzilhada dos eventos. O major não se deixa domar, repete ao Duce as
palavras de ameaça.
Mussolini, que continuava até ainda há pouco prometendo o ministério do
Interior ao governador Lusignoli, se dirige ao comandante da segurança
pública, seu subalterno, que está ao lado do major:
“Senhores, aconselho que reflitam sobre o caráter do nosso movimento.
Não há nada que vocês não aprovem”, diz e blefa. “De qualquer maneira, a
resistência dos senhores seria inútil: toda a Itália, até Roma, caiu em nossas
mãos. Informem-se.”
As palavras — de novo, as palavras — prevalecem sobre a realidade,
mantendo esta à margem. Pequenas causas, grandes efeitos. O comissário
Perna concorda, o major vacila. O derramamento de sangue é adiado.

***

Luigi Federzoni telefona uma hora mais tarde, enquanto Facta está em
audiência com o rei, discutindo a assinatura do decreto do estado de sítio.
Federzoni — íntimo do rei, líder do movimento nacionalista de camisas-azuis
que se posicionou em defesa de Roma e, todavia, simpatizante dos fascistas
prontos a atacá-la — faz jogo duplo ou triplo. Mussolini não quer falar com
ele. Manda que Aldo Finzi atenda à chamada e Cesare Rossi fique escutando
no segundo fone. A voz que vem de Roma está carregada com a sensação de
uma catástrofe iminente.
Federzoni: Falei com o general De Bono em Perúgia, que me pediu para
fazer todo o possível, pois ele não consegue se comunicar com Milão, a fim
de que Mussolini venha para Roma o quanto antes; aqui a situação está
paralisada porque o rei não pode conversar com nenhum dos líderes fascistas.
De Vecchi está em Perúgia, dizem, mas até meia hora atrás ainda não havia
chegado. Aqui não tem ninguém e corremos o risco, diga logo a Mussolini,
de que o rei vá embora caso a situação se agrave.
Finzi: Vou relatar agora a Mussolini.
Federzoni: De Bono me pediu para comunicar a Mussolini este seu desejo
como comandante-geral: que Mussolini venha logo para Roma.
Finzi: Entendido. Mas, ouça, é necessário que as ordens de Milão para a
autoridade militar sejam um pouco diferentes. Não podemos nos afastar do
Fascio di Combattimento e começar a atirar.
De Roma, agora gritam.
Federzoni: Não vamos perder a cabeça! Para que o rei não tome decisões
que venham a agravar a situação de maneira incalculável, é imprescindível
que ele possa agir imediatamente em condições de visível liberdade, ou seja,
não deve haver pressão... enfim... exterior... Em contrapartida, ele declarou
que não quer ser responsável pelo derramamento de sangue; nesse caso, iria
embora. Toda a Itália está em estado de sítio, portanto, a autoridade militar
age também por conta própria...
“Derramamento de sangue”... “estado de sítio”... Benito Mussolini entra na
cabine telefônica.
Finzi: Mussolini chegou. Vou passar para ele.
Federzoni: Antes de mais nada, quero dizer que fui eu que tomei a
iniciativa desta conversa. Falei com De Bono, que me informou sobre os
termos da situação: há conflito; e, se essa situação continuar, aquela coisa vai
acontecer... o rei abandona o trono. Aqui falta uma pessoa que possa
representar o Fascio di Combattimento. De Vecchi não chegou a Perúgia. De
Bono pede que eu lhe informe tudo isso e que você venha imediatamente para
Roma.
Mussolini: Eu não posso ir a Roma porque a ação em Milão está em
andamento. É imperativo ouvir aquele lugar que você conhece, o comando
supremo. Eu aceitarei todas as soluções que o comando supremo decidir
adotar...
Federzoni, exasperado, acentuando o sotaque emiliano que o assimila ao
seu interlocutor, o interrompe.
Federzoni: Mas como o comando de Perúgia pode lhe informar as
condições se eles nem sequer conseguem se comunicar com Milão!?
Mussolini: Trate de me informar você, que deve se comunicar com
Perúgia. Preste atenção, porque o movimento é sério em toda a Itália.
Federzoni: Agora se trata de não destruir o ponto de apoio, ou está tudo
acabado.
Mussolini: Estabeleça contato imediatamente e diga que Mussolini acatará
o que os comandantes decidirem.
Federzoni: Trate de não sair do Il Popolo d’Italia.
Mussolini: Não saio daqui. Mas cuide para que a crise se oriente para a
direita, para a direita, para a direita...
Federzoni: Em que sentido?
Mussolini: Um governo de fascistas.
A enormidade faz se instaurar um instante de silêncio. O agente duplo se
recupera.
Federzoni: Estamos de acordo, não há dúvidas. Mas deve-se evitar uma
situação de armistício. Até amanhã à noite, eu vou me empenhar para obter o
que você deseja.
Mussolini desliga. Sai da cabine e Cesare Rossi se aproxima. Benito
Mussolini solta uma risadinha.
“Como eu já lhe disse: querem que eu vá para Roma. Manobra prevista.”
Na cidade de Milão, que continua em estado de sítio, ainda chove. No fim
da Via Lovanio, na esquina com a Via Moscova, no ponto em que os pelotões
de guardas reais bloqueiam o acesso, a água escorre pelos canos escuros das
metralhadoras.
Todo o peso da carnificina incipiente foi descarregado outra vez sobre os
ombros dos quatro figurantes que, isolados do mundo, esquadrinham o
horizonte dos eventos a partir de uma sala de hotel em Perúgia.
Perúgia, 28 de outubro de 1922
Hotel Brufani, Comando supremo da marcha sobre Roma, mesma hora (por
volta das 8h)

Poças de vinho e champanhe refletem o que resta do amanhecer. O ácido


do vômito é incorporado ao azedume da cinza exalada por centenas de
guimbas enfiadas em restos de pão e salame, em fatias de bolo, afogadas em
sobras de grapa.
Cesare Maria De Vecchi, que acabou de descer do seu Lancia azul com
Dino Grandi, as mãos apertando as costas na altura dos rins após oito horas
de viagem na lama, está enjoado. Quatro integrantes das esquadras roncam
deitados no chão da sala do comando, o mau hálito pesa junto ao cheiro de
algazarra noturna. De Vecchi os acorda a chutes. Começa uma briga. O mapa
topográfico das operações pende da parede, preso por um só prego. Essa é a
revolução fascista.
De Bono está cadavérico, Bianchi é sacudido por estertores. Ambos têm
notícias muito vagas do mundo exterior. De Vecchi os informa dos
acontecimentos em Roma, do que ele viu ao longo da estrada até Perúgia:
grupos de fascistas mirrados, atormentados pela água e pelo frio, que
marchavam cambaleando e desarmados rumo ao Sul, fantasmas de uma
batalha que não será combatida.
Os quadrúnviros, que estavam tão imóveis quanto as estátuas da
lamentação sobre o Cristo morto, reanimam-se com a chegada de Balbo.
Com os cabelos desalinhados — é impossível definir se ainda está bêbado ou
apenas exaltado —, Balbo ataca De Vecchi com escárnio e desprezo. Acusa-o
de ser um politiqueiro e vangloria-se da ocupação da sede do governo
provincial de Perúgia, conquistada em sua ausência.
“Muito bem! Muito bem! E o comando da divisão? Você também
conseguiu isso? E o comando da brigada Alpi que apontou os canhões contra
vocês? E as tropas, você as desarmou?”
A raiva faz a gengiva de Cesare Maria De Vecchi sangrar.
Pouco depois, por volta das 10h, da agência telegráfica chega a notícia de
que foi proclamado o estado de sítio e emitida a ordem de prender os líderes
da insurreição. Bianchi procura desesperadamente se comunicar com Milão e
com Roma. Fracassa em ambos os casos. Escuridão total.
Um fascista de bicicleta para diante do Hotel Brufani. Na chefatura de
polícia, um telefonema de Roma. Querem falar com o quadrúnviro De
Vecchi. Se não é trote, ligam em nome do rei.
Não é um trote. Cittadini, o ajudante de ordens de Vítor Emanuel III, pede
que De Vecchi volte imediatamente a Roma. O soberano quer conversar com
um alto representante do movimento fascista, e Mussolini não arreda pé de
Milão. De Vecchi ousa perguntar se há novidades. Sim, há.
Antes de partir no carro de um fanfarrão que promete levá-lo a Roma em
quatro horas — “Dirijo como Mussolini”, se vangloria —, De Vecchi
encontra um velho colega, o general Cornaro, comandante da brigada Alpi,
aquartelado em Perúgia.
Cornaro o repreende pela loucura daquela encenação, mas, entre colegas, a
repreensão é benévola. De Vecchi pede paciência, tolerância,
condescendência, de soldado para soldado.
Nada disso, replica Cornaro, pode ser concedido. Desde a madrugada,
estão em estado de sítio, as ordens são precisas. De Vecchi, então, garante
que elas vão mudar, revela que foi convocado a Roma pelo rei. Implora que
ele evite confrontos. Cornaro responde com garbo:
— Confrontos? Não acontecerão confrontos. A cidade está isolada,
ninguém virá socorrê-los, as metralhadoras estão apontadas.
O general enlaça o braço com o do fascista, indica os tetos dos edifícios, as
colinas que circundam a praça e, quase em um sussurro, acrescenta:
— Você não cometerá o equívoco de imaginar que não sei para onde se
aponta a artilharia.
Cesare Maria De Vecchi relata aos outros quadrúnviros sua conversa com
o general Cornaro. Balbo, como de costume, xinga, insulta, ameaça, sibilando
entre dentes:
— Vocês que abaixem as calças... façam a revolução ao telefone... eu vou
resistir e, se tiver que morrer, só morrerei após disparar o último cartucho.
Enquanto De Vecchi entra no carro ao lado do chofer improvisado que
“dirige como Mussolini”, a voz de Balbo, alcançando frequências histéricas,
o persegue.
“A revolução começou... eu atiro... eu atiro.”
Milão, Via Lovanio, 28 de outubro de 1922
Sede do Il Popolo d’Italia

No 23.871 — Adverte-se que ordens telegrama de hoje no 23.859 sobre


estado de sítio não devem ter andamento.
O telegrama da presidência do Conselho de Ministros do Interior e da
Guerra é enviado às 12h05. Às 12h30, o ministro da Guerra comunica ao
comando de divisão a ordem de suspensão do estado de sítio. Pouco depois, a
Agência de Informações Stefani difunde a notícia: o rei, ao contrário de todas
as premissas e todos as obrigações, não assinou o decreto. O estado de sítio
está revogado.
É inútil se perguntar por quê. As razões são muitas e nenhuma. A esfinge
da história senta-se muda, irremovível, sobre o que foi, o que será, o que
poderia ter sido, mas que permanecerá para sempre sem ser realizado.
Benito Mussolini sabe da notícia no seu escritório da Via Lovanio
enquanto recebe a visita de Alfredo Rocco, líder dos nacionalistas e ilustre
jurista. Rocco veio de Roma apenas para convencê-lo a apoiar um governo de
Salandra. Mussolini lhe entrega uma lista de ministros. O único ministério
possível. O seu. Àquela altura, declara, já é tarde para qualquer solução que
não conduza a ele.
Alfredo Rocco, movido por uma intuição fulminante que capta a realidade
com um único, perdoável, instante de atraso, esquece Salandra, se lança rumo
ao Duce e o abraça comovido:
“Você tem toda a razão; você, sim, é que trará sorte à Itália.”
O Fundador do fascismo venceu, Mussolini sabe disso — ultrapassada a
ameaça do estado de sítio, só resta a das esquadras fascistas que se amontoam
às portas de Roma — e passa o resto do dia nas ocupações costumeiras do
vencedor.
O novo chefe dos destinos gerais redige listas de subsecretários, promete
ministérios, aconselha-se por telefone com o diretor do Corriere della Sera,
prepara uma edição extra do seu jornal para anunciar o seu triunfo e com um
mero gesto de “não” com o dedo indicador recusa a todos os telefonemas de
De Vecchi e dos outros fascistas romanos cúmplices dos seus rivais. Recusa
também o convite oficial do ajudante de ordens do rei para ir à capital para
reuniões. Ele vai de imediato, mesmo que seja necessário pilotar um avião em
pessoa, mas só para receber a incumbência de formar seu governo.
Às 17h, Mussolini dá uma entrevista a um jornalista do L’Ambrosiano:
“Continuam se iludindo de que a solução pode estar em Roma e não veem
que é em Milão que devem procurá-la. A essa altura, há apenas uma solução:
a solução Mussolini.” Às 18h, quando, por engano, um pelotão de guardas
reais marcha mais uma vez pela Via Lovanio, o Fundador dos Fasci di
Combattimento, certo de que não vão atirar, pega um mosquete no armário e
se dirige à rua para enfrentá-los. Às 19h, recebe, pela segunda vez em dois
dias, uma delegação de industriais: De Capitani D’Arzago, Pirelli, Benni,
Crespi, Ettore Conti, que já aprenderam o caminho. Às 20h, dá o nó na
gravata sobre o colarinho rígido da camisa elegante e vai de novo ao teatro,
mas, desta vez, não com Margherita Sarfatti, a amante de longa data, mas
com Rachele Guidi, sua mulher, a consorte legítima. Por volta da meia-noite,
enfim, aceita atender o enésimo telefonema de Roma em um aparelho que
toca sem parar há horas. De Vecchi, Ciano e Grandi fazem uma última
tentativa para um governo de Salandra. O novo chefe não hesita:
“Não valeria a pena mobilizar o exército fascista, fazer uma revolução,
causar mortes, para assistir à ressureição de Dom Antonio Salandra! Não
aceito.”
Em Roma, bem como em Milão, ouve-se o golpe seco do fone batendo
com força no gancho.
Perúgia, 28 de outubro de 1922
Hotel Brufani

No Hotel Brufani, a notícia chega justo quando os guardas reais se


preparam para reocupar o edifício dos Correios: o estado de sítio foi
revogado. Michele Bianchi e Emilio De Bono, vencendo a repulsa física
recíproca, se abraçam como amantes apaixonados.
Todavia, lá fora, a notícia não se espalhou pelas ruas. E, a poucos metros
da entrada do hotel, naquele mesmo instante, as tropas guiadas pelo general
Cornaro desfilam pela Via Mazzini, prontas para tomar de assalto o edifício
público controlado pelos camisas-negras da “Disperatissima” com apenas
duas metralhadoras. As trombetas soam; as armas são apontadas; os líderes
fascistas, pálidos, discutem entre duas fileiras.
Naquele momento, Emilio De Bono, os olhos lacrimosos de quem
envelheceu antes da hora, posiciona seu corpo esquelético entre as formações
prontas para abrir fogo. O estado de sítio — grita De Bono quase em falsete
— foi revogado, o rei convocou Mussolini a Roma, seu governo é iminente.
O general Cornaro desiste pela segunda vez.
Poucas horas mais tarde, De Bono vai visitar o general Petracchi,
comandante da praça de armas de Perúgia. Os oficiais e a tropa o
cumprimentam militarmente, então sorriem. Petracchi, que poucas horas
antes, desdenhoso, enfurecido, marcial, não quisera sequer receber o ex-
colega e ameaçara deixar os canhões falarem, agora, imediatamente
convertido à causa fascista, justifica-se, desculpa-se, curva-se aos novos
chefes. Enquanto De Bono, após tê-lo tranquilizado, despede-se, o general
Petracchi lança um novo apelo:
“O rádio, por favor, o rádio, deixe que eu o conserte.”
No Brufani, já está o maior vaivém; camaradas, curiosos, pedintes.
Chegam também as máquinas fotográficas. Bianchi, De Bono e Balbo se
deixam imortalizar no instante fatídico, todos um pouco curvados para a
frente. Sentem o peso do grotesco, quando o drama, de repente, se transforma
em uma “pièce” com final feliz.
Tivoli, Monterotondo, Santa Marinella,
28 de outubro de 1922

Os acampamentos ficam superlotados, os recém-chegados disputam lugar


com os velhos miseráveis em volta das fogueiras reduzidas a cinzas pela
chuva. Cerca de 3 mil homens da legião de Siena chegaram após o almoço;
500 de Ancona e 300 da Sabina, à tarde; 2 mil da primeira legião florentina, 2
mil da legião Arezzo e da coorte Valdarno, e os 3 mil da segunda legião
florentina chegam à noite.
Eles chegam, e todos se prostram machucados para uma espera convulsiva.
Não há água potável, não há provisão de alimentos, não há dinheiro.
Sobretudo, não há ordens. Sabe-se apenas que Balbo passou de motocicleta
para ordenar que não se mexam para não comprometer o jogo político. Então,
nada mais, por horas, por dias. Nenhuma ação, nenhuma comunicação,
nenhuma notícia, nenhuma instrução a não ser a que impõe todas as
proibições: não se afastar por motivo algum dos próprios acantonamentos,
não causar danos, não disparar tiros, não roubar aves dos camponeses.
A marcha atola na lama, os legionários, esquecidos sob a chuva, reduzidos
a ladrões de galinhas, vagam pelos acampamentos, esgotados por rondas
absurdas, trêmulos pelas febres provocadas pelos temporais e pela angústia
de viver sem propósito, privados de qualquer resposta.
A coluna acantonada nos arredores de Tivoli é comandada por Giuseppe
Bottai, um jovem poeta frustrado, filho de um comerciante de vinhos,
voluntário na Grande Guerra como oficial dos Arditi, futurista que se tornou
chefe das esquadras romanas. Bottai posicionou seu comando em um
hotelzinho empoleirado sobre os rochedos entre os bosques de Tivoli, de
onde se avistam os topos dos ciprestes de Villa d’Este.
Junto àqueles homens que vieram de toda a Itália para marchar sobre a
capital dos Césares, Bottai fica ali, dias a fio, esperando um sinal,
mergulhado nos fragores hipnóticos da cascata. Roma é um espaço vago no
horizonte, um quadro distante, lá embaixo, a oeste, sob um céu cinza, partido
por raios.
Se esta situação não for interrompida logo, os problemas ficarão ainda
maiores. Mussolini está decidido a ir a Roma caso seja encarregado de formar
um novo governo [...]. Se ele receber a resposta logo, iria até mesmo de
avião; mas o essencial é que se decidam [...]. No fundo, acho que, uma vez
que ele for a Roma para formar o ministério, será possível influenciá-lo para
que forme um gabinete melhor do que o já anunciado ontem à noite.

Luigi Albertini, diretor do Corriere della Sera, ao telefone


com o ex-chefe de gabinete de Salandra,
28 de outubro de 1922

A situação é esta: grande parte da Itália setentrional está sob


pleno poder dos fascistas. Toda a Itália central [...] está
ocupada pelos “camisas-negras” [...]. A autoridade política —
um pouco surpresa e muito aturdida — não foi capaz de
enfrentar o movimento [...]. O governo deve ser claramente
fascista [...]. Que isso fique bem claro para todos [...].
Qualquer outra solução deve ser rejeitada [...]. A
irresponsabilidade de certos políticos de Roma oscila entre o
grotesco e a fatalidade. Decidam-se! O fascismo quer o poder
e o terá.

Editorial de Benito Mussolini,


Il Popolo d’Italia, 29 de outubro de 1922

Cada cônsul providenciará pessoalmente a formação de rondas legionárias


que deverão, sob a responsabilidade pessoal de seus chefes, tomar
providências para que não sejam causados danos de tipo algum às
propriedades, para que não sejam roubadas galinhas.

Instrução no 4 do comando fascista de Santa Marinella,


28 de outubro de 1922
Benito Mussolini
Roma, 31 de outubro de 1922
Hotel Londra, quarto do presidente do Conselho de Ministros, noite

Há o fedor de chulé.
Ele tirou as polainas, desamarrou os sapatos, afrouxou o cinto e, em
mangas de camisa, afundou na poltrona. Com o cigarro entre os lábios, à
moda francesa, estica as pernas sobre a poltrona da frente, “do jeito
americano”, diz.
“É preciso reconhecer que as divisões dos outros nos ajudaram muito...
Ah! Todos aqueles candidatos ao governo: Bonomi, De Nicola, Orlando,
Giolitti, De Nava, Fera, Meda, Nitti... Parecia a chamada desesperada dos
chefões do parlamentarismo em agonia. E o que dizer daquele pobre coitado
do Facta, que começou uma crise ministerial logo após o nosso comício em
Nápoles!?”
Cesare Rossi, com poucos outros companheiros — porque ele insiste em
não querer amigos —, ouve-o reevocar calmo, sóbrio, desmobilizado, a
campanha vitoriosa para os presentes. Mas sabe que ele, também naquele
momento de triunfo, sobretudo naquele momento, está falando, antes de mais
nada, consigo mesmo.
“E a passividade do antifascismo?... Sim, tudo bem, depois da greve
legalista, aquele barco já estava meio afundado... Mas, enfim, até uma
grevezinha geral qualquer colocada no nosso caminho teria nos atrapalhado
muito.”
Fora da salinha preparada pela direção do Hotel Londra para o novo
presidente do Conselho de Ministros, alvoroçaram-se o dia todo, e continuam
a se alvoroçar, homens arrogantes de esquadras, novos ministros,
subsecretários, generais de serviço e de folga, mulheres e homens do demi-
monde romano, brasseurs d’affaires, todos atrás de um encorajamento, uma
promoção, um benefício, todos buscando na Via Ludovisi com o faro de aves
de rapina. Agora, porém, o clamor queixoso daquela gente não chega até o
acampamento de luxo no qual o viajante, descalço e desalinhado, lança um
olhar sobre a jornada percorrida.
“Claro, se Giolitti estivesse no governo, as coisas não teriam corrido tão
bem... Nas nossas regiões, teria havido forte resistência, mas, na verdade, não
teríamos conseguido. Quando um Estado quer, pode sempre se defender;
então, o Estado vence. A verdade é que o Estado na Itália não existia mais...”
O solilóquio em público continua — ameno, amansado pela vitória, quase
uma cantilena, uma canção de ninar —, enquanto enfim parou de chover e o
outono de Roma concede ao cansaço dos homens uma noite agradável antes
da chegada do inverno. Os vencedores agradecem ao deus do outono e
aproveitam porque sabem que o inverno vai chegar, já está chegando.
Começa a reevocação das últimas horas. Alguém empurra o carrinho das
bebidas, deslizando-o sobre o chão de mármore.

***

Do ajudante de ordens do rei que, após a renúncia de Salandra, em 29 de


outubro, 2 dias antes, o convocava a Roma para encarregá-lo de formar o
governo, Benito Mussolini exigiu um telegrama.
“Se eu receber um telegrama, parto imediatamente, até mesmo de avião.”
O telegrama chegou, mas ele não partiu, nem de trem. O trem especial
agendado por Lusignoli para as 15h o esperou em vão. Primeiro ele quis
fechar a edição especial do seu jornal que anunciava seu triunfo.
Somente após se permitir um breve momento de comoção com o irmão
Arnaldo (“Ah, se papai estivesse vivo!”) e fechar a primeira página,
Mussolini embarcou no expresso 17, que partiu da estação central às 20h30,
com chegada prevista em Roma para as 9h30 do dia seguinte. A acolhida pela
multidão foi breve. O novo presidente do Conselho de Ministros havia
exigido a partida no horário (“De agora em diante, tudo deverá funcionar com
perfeição”). O canto dos fascistas milaneses — “juventude, juventude...” —
foi se perdendo à distância enquanto os vagões traseiros deslizavam na
escuridão.
O trem, infelizmente, chegara ao destino com quase duas horas de atraso.
Os camisas-negras, postando-se entre os trilhos, bloquearam-no já em
Fiorenzuola, em seguida em Sarzana e Civitavecchia, e o Duce teve de descer
para passá-los em revista (“A vitória é nossa, não devemos estragá-la. A Itália
é nossa e devolveremos a ela sua antiga grandiosidade.”).
Da janela do vagão-dormitório, durante toda a noite, e até o amanhecer do
dia seguinte, Benito Mussolini viu a Itália desfilar aos seus pés. Quando
finalmente chegou, às 10h50, os céus de Roma lhe saudaram com 6 aviões
que decolaram do aeródromo de Centocelle.
Às 11h05 de 30 de outubro de 1922, no momento em que subia as escadas
do Quirinal para receber do rei da Itália o encargo de governá-la, Benito
Mussolini, de origem plebeia, nômade político, autodidata do poder, era, com
apenas 39 anos, o mais jovem primeiro-ministro do seu país, o mais jovem
dos governantes de todo o mundo no momento da ascensão; sem qualquer
experiência de governo tampouco de administração pública, entrara para a
Câmara dos Deputados somente 16 meses antes e trajava a camisa negra, o
uniforme de um partido armado sem precedentes na história. Apesar de tudo
isso, o filho do ferreiro — filho do século — subira as escadas do poder.
Naquele momento, o novo século se abriu e, no mesmo instante, voltou a se
fechar com os seus passos.
No dia seguinte, foi inevitável deixá-los entrar na cidade. Não havia mais
nada a fazer. O rei em pessoa, agora que Benito Mussolini obtivera o que
queria, pediu que ele os mandasse de volta, preservando a capital. Mas
Mussolini retorquiu que, se não lhes desse a satisfação de desfilar, não podia
responder pela reação deles: aqueles desgraçados ficaram apodrecendo três
dias e três noites ao relento, debaixo de chuva, embora já tivessem alcançado
as portas de Roma antes que ele chegasse de trem na manhã do dia 30.
Mesmo naquele momento, foi negada a Giuseppe Bottai a autorização para
marchar sobre a cidade à frente da sua coluna de desesperados. Mas, em 31
de outubro, com a formação do governo fascista, não seria possível mandar
de volta para casa os integrantes das esquadras sem permitir um triunfo
apócrifo, miserável. Alguns, nas províncias, já haviam se obstinado a morrer
quando, em Milão, Mussolini obteve o telegrama do ajudante de ordens do
rei. Em Bolonha, após libertar dezenas de camaradas detidos na prisão de San
Giovanni in Monte guiados ao ataque por Leandro Arpinati, enquanto
Rachele preparava as malas do Duce, oito daqueles rapazes loucos e
generosos em camisas negras acabaram mortos ao atacar quartéis de
carabineiros coniventes e depósitos de munições já totalmente inúteis. Oito
cadáveres póstumos.
Uma auréola de heroísmo e violência era indispensável. Servia, naquele
século novo, para consagrar o poder do seu filho predileto. A insurreição
militar teria fracassado, claro, mas a comédia se tornara realidade, e a faca
devia ser mantida apontada para a garganta.
Assim, na manhã de 31 de outubro, enquanto o governo fazia o juramento
no Quirinal, eles se reuniram em Villa Borghese. O cortejo partiu às 13h ao
longo das margens do Tibre, onde o Duce passou em revista dezenas de
milhares de fascistas vestidos de todas as maneiras, enlameados, famintos,
punhais na cintura e cassetetes no ar. Então, arregimentados na Piazza del
Popolo, imposta a máxima ordem e disciplina, proibida qualquer ação
violenta para as quais haviam sido mobilizados — agora o presidente do
Conselho de Ministros, garantidor da legalidade, era o próprio Mussolini —,
fizeram-lhes desfilar em coluna pelo Corso Umberto até o Altar da Pátria e,
dali, sob as janelas do Quirinal.
Na sacada, o rei, espremido entre o general Diaz e o almirante Thaon de
Revel, saudou-os brevemente. O Duce surgiu por apenas alguns minutos na
janela da Corte Constitucional. A parada durou seis horas.
Esgotados pelo cansaço que se sucedeu à tensão nervosa, enxotados como
cães de uma igreja, depois de terem percorrido outros tantos quilômetros
pelas ruas da capital enquanto eram aclamados pela covardia dos romanos —
que, passado o medo, acenavam nas laterais das ruas —, os participantes das
esquadras fascistas, os protagonistas carnais de uma história fantasma, sem
nem perceber, se viram outra vez dentro de trens, mastigando os sucos
gástricos de sua vitória.
Alguns, é claro, insubordinaram-se ali também. Após anos de surras e
expedições punitivas todo fim de semana, sob o impulso da violência, grupos
de fascistas renitentes devastaram a vila de Nitti, devastaram o escritório do
deputado Bombacci, golpearam repetidamente a cabeça de Argo Secondari, o
chefe dos Arditi del Popolo, deixando-o no chão, acabado com uma incurável
concussão cerebral. Outros, mais corajosos ou mais imprudentes, tentaram
levar a guerra ao campo do inimigo, penetrando armados nos bairros
populares de Borgo Pio, San Lorenzo, Prenestina, Nomentana, dos quais
haviam sido expulsos no ano anterior. Foram rechaçados dessa vez também.
Mussolini em pessoa, ao saber dos incidentes, dirigiu-se apressado à
Estação Termini a fim de garantir que os últimos integrantes irredutíveis das
suas esquadras fossem colocados à força nos trens. Roma devia ser
desocupada; a Itália, normalizada. Amanhã é outro dia.
Agora, no seu quarto no Hotel Londra, o Duce do fascismo se estica na
poltrona, alonga as pernas e, preparando-se para dormir, deixando a voz cair
uma oitava, prazerosamente aparvalhado pela nuvem de fedor íntimo exalada
pelos pés descalços, repete aos poucos acólitos o que já disse à tarde a um
redator do Corriere della Sera:
“Digam a verdade, realizamos uma revolução única no mundo. Em que
época da história, em que país, foi feita uma revolução como esta? Enquanto
os serviços funcionavam, enquanto o comércio continuava, com os
funcionários nos escritórios, os operários nas oficinas, os lavradores nos
campos, enquanto os trens viajavam regularmente. Tivemos, no total, trinta
mortos, incluindo os dez em Mântua, oito em Bolonha e quatro em Roma.
Com a exceção de Parma, San Lorenzo e poucos outros casos isolados, a
Itália ficou olhando. É uma revolução com um estilo novo!”
Ninguém se opõe, ninguém rebate. A arte da docilidade ensina aos novos
adeptos os primeiros fundamentos.
O que farão amanhã? Ninguém sabe dizer, nem mesmo naquele quarto.
Inebriam-se com o fato consumado: chegaram ao poder, agora querem
mantê-lo. A noite de outono em Roma é amena.
Reiterando a escuridão com o silêncio, ele desliza languidamente rumo ao
crepúsculo da consciência que leva ao sono. Haverá todo o tempo, no futuro,
para calcular o que de irreparável foi perdido quando se permitiu que aquele
homem esparramado na poltrona tomasse à força o poder sobre o mundo
viajando em um vagão-dormitório.
Estamos assistindo a uma bela revolução de jovens. Nenhum perigo, é
cheia de cor e entusiasmo. Estamos nos divertindo muito.

Richard Washburn Child, embaixador dos Estados Unidos


em Roma,
31 de outubro de 1922

Reconhecemos que houve um desenrolar pacífico dos


acontecimentos [...]. Contudo, infelizmente, a ausência de
tragédia em certos momentos da existência de um povo pode
significar falta de seriedade moral.

La Stampa,
1o de novembro de 1922

Uma ferida foi aberta na nossa vida nacional [...] há quatro


anos, os italianos se habituaram a ver na violência o caminho
para o progresso ou o encontro de soluções, e a considerar um
partido tão mais forte quanto mais ameaçador fosse [...] é o
que demonstra a indiferença com que o grande público assistiu
à insurreição fascista, à queda sem dignidade das autoridades
do Estado e à humilhação de todos os poderes do Estado, sem
exceções.

Luigi Albertini,
Corriere della Sera, 2 de novembro de 1922

Compartilho com vocês a dor pela maneira como os últimos dias se


desenrolaram; sinto o dano que foi, e continua sendo, causado à liberdade, e
que não será logo sanado. Mas me pergunto se vocês não se sentem também
responsáveis por tudo isso, por não terem agido a tempo de levantar a voz
contra a ilegalidade, os abusos, a brutalidade que estavam sendo cometidos.
Por vezes demais, foi feita a apologia do porrete e dos dentes afiados dos
fascistas para que hoje se possa queixar daquilo que, enfim, nada mais é do
que a conclusão lógica deles.

Giuseppe Prezzolini, carta a Luigi Albertini,


3 de novembro de 1922

Enfim desapareceu o sistema semissocialista sob o qual o país penou no


passado [...] claro, houve uma revolução, mas foi uma revolução tipicamente
italiana, um prato de espaguete, e o modo como a mudança ocorreu não deve
suscitar muita apreensão só porque foi totalmente inconstitucional.

Monsenhor Francesco Borgongini Duca, secretário da


Sagrada Congregação dos Assuntos Eclesiásticos
Extraordinários,
6 de novembro de 1922

Falou-se de uma revolução fascista. O mote é pomposo,


sonoro. Os fatos talvez sejam mais modestos. A abdicação dos
poderes estatais chegara a tal ponto que, àquela altura, os
fascistas só precisavam esticar a mão para colher o fruto
maduro de suas obras [...]. No fascismo, nem tudo era blefe,
mas havia muito blefe e, diante de metralhadoras que tivessem
cantado, o ardor dos camisas-negras teria se atenuado.

Pietro Nenni,
Avanti!, 14 de novembro de 1922
Benito Mussolini
Roma, 16 de novembro de 1922
Câmara dos Deputados, 15h

O plenário está abarrotado. A sede do Parlamento italiano tem um “aspecto


fantástico” que nem mesmo os repórteres mais velhos — observa o
L’illustrazione italiana — se lembram de ter visto antes em trinta anos
trabalhando ali. As tribunas dos senadores, dos diplomatas, dos ex-deputados
transbordam com cavalheiros elegantes e senhoras de casacos de pele, as
tribunas do público estão apinhadas de espectadores, os corredores laterais
foram obstruídos por gente comum que correu para ir saudar o novo governo.
A visão geral da multidão é festiva, até mesmo empolgante, mas todas as
máquinas fotográficas estão apontadas para a mesa da presidência.
Às 15h em ponto, nem um segundo a mais, precedido pelo presidente da
Câmara dos Deputados Enrico De Nicola, seguido por todos os ministros do
seu governo, escoltado pelo general Diaz, ministro da Guerra e “Duque da
Vitória” sobre os austríacos, entra o Excelentíssimo Mussolini. Todos os
deputados, com a exceção dos representantes da esquerda, se levantam para
aplaudi-lo. As tribunas do público se unem à ovação. A Itália, qualquer que
seja o ponto de vista, está em lua de mel com esse homem, que entra no
Parlamento com passo triunfal, tão acima do chão que, mesmo caminhando,
parece estar entrando a cavalo.
Passaram-se apenas 15 dias desde a chamada “marcha sobre Roma”, a
imprensa nacional e internacional comentou-a amplamente: “uma revolução
bonita e alegre de jovens fortes”, “uma revolução incruenta”, “uma
experiência decisiva, a alvorada de uma nova era”, “uma coisa tipicamente
italiana, um prato de espaguete”, uma “comédia”. Passaram-se apenas 15
dias, nos quais, somente em Roma, 19 pessoas morreram e 20 ficaram
gravemente feridas. Todavia, a marcha sobre Roma está prestes a ser
esquecida.
Ninguém parece querer lembrar os dias de angústia para as multidões de
homens de preto em marcha pelo mundo, toda a atenção está concentrada
naquele único homem que revira os olhos ameaçadores, olhos que até para os
seus adversários desdenhosos têm uma aparência resplandecente “como
faróis acesos na noite”. Em relação a ele, a expectativa é enorme. Espera-se
que, com ele, animal noturno que saiu das trevas, a noite tenha fim.
Os primeiros a entrever no Duce do fascismo uma promessa de paz são,
paradoxalmente, os liberais. Benedetto Croce continua a aplaudir, Giolitti
espera que Mussolini tire o país “do fosso no qual ia apodrecer”, Nitti
promete “nenhuma oposição”, Salvemini o incita a eliminar essas “velhas
múmias e canalhas” da classe política em deterioração, até Amendola, cujo
jornal os membros das esquadras incendiaram, espera do Duce o
restabelecimento da legalidade. No seu governo, entraram, além dos fascistas,
os populares, os nacionalistas, os democratas e os liberais. O filósofo de fama
europeia Giovanni Gentile aceitou o convite para o ministério da Educação, o
general Armando Diaz e o almirante Paolo Thaon de Revel, vencedores do
conflito mundial, ficaram com os ministérios da Guerra e da Marinha. A
Itália não aguenta mais jogar os mesmo jogos, ouvir as vozes de corredor, os
suspiros perdidos, as conjuras palacianas incruentas e inconcludentes, as
pessoas estão fartas de verem seus defeitos representados no Parlamento. Os
italianos, em suma, estão enjoados de si mesmos. Quase todos, e também
algumas de suas vítimas, desejam vida longa e uma “saúde de ferro” ao
homem da emergência para que ele expurgue a ferida infeccionada. A doença
deve curar a si mesma.
Benito Mussolini parece não ter intenção de decepcioná-los. Após longos
aplausos ao general Diaz e ao rei da Itália, põe-se de pé e, em um silêncio
perfeito, alongando as sílabas como de costume, inicia com sarcasmo:
“Senhores! O que realizo hoje, neste plenário, é um ato de deferência
formal a vocês, pelo qual não peço de vocês nenhum atestado específico de
reconhecimento.”
Longa pausa, feita para que as múmias de Montecitório tenham tempo para
apreciar o insulto: o presidente do Conselho de Ministros acabou de declarar
aos seus parlamentares que se digna a cumprimentá-los apenas para respeitar
as formalidades. Logo em seguida, Mussolini retoma o discurso colocando o
povo contra eles.
“O que aconteceu é que o povo italiano, na sua melhor parte, desmontou
um ministério e deu a si mesmo um governo que está fora, acima e contra
qualquer designação do Parlamento... Eu afirmo que a revolução tem os seus
direitos. Estou aqui para defender e potencializar ao grau máximo a revolução
dos camisas-negras.”
Com aquela referência inesperada à “revolução”, explodem aplausos
fragorosos nas tribunas ocupadas pelos integrantes das esquadras. O Duce
acabou de reevocar a marcha sobre Roma que todos já se preparavam para
esquecer. A marcha de repente invadiu o Parlamento, quase dá para ouvir os
sapatos com travas batendo no travertino dos corredores, a marcha — “meus
senhores” — não será esquecida. Não se virem para trás, olhem para a frente.
O caminho está só começando.
Enquanto isso, nas cadeiras dos democratas e dos liberais começam a se
erguer olhares inquietos na direção das tribunas em que os membros das
esquadras fazem barulho. Mussolini os chama de volta:
“Recusei uma vitória acachapante, e eu poderia ter obtido uma vitória
acachapante. Impus limites a mim mesmo.”
Uma sensação de alívio percorre o salão. Muitos dos deputados que
segundos antes olhavam com terror os integrantes das esquadras, agora,
tranquilizados, concordam com a cabeça: o Líder deles declara que não quer
se enfurecer. Muito bem. Alívio e gratidão do rato poupado pelo gato.
No entanto, Benito Mussolini de repente tira o chicote de baixo da mesa
dos ministros:
“Com trezentos mil jovens impecavelmente armados, prontos para tudo e
esperando quase misticamente uma ordem minha, eu poderia castigar todos
aqueles que difamaram e tentaram jogar o fascismo na lama. Eu poderia fazer
deste plenário surdo e cinza um acampamento exíguo.”
Uma chicotada bem na cara. O insulto ao Parlamento ecoa no plenário do
próprio Parlamento: este plenário surdo e cinza! Agora ficou claro que a
instituição democrática sobrevive por piedosa concessão do homem que
deveria governá-la, respeitá-la, e é ele mesmo quem o declara. A imagem do
castigo — poupado, mas talvez somente adiado — torna-se, para os
parlamentares desonrados, o próprio castigo. Uma chibatada na cara. Quase
todos, sentindo que fizeram por onde, recebem-na sem nem mesmo tentar
desviar o rosto, sem se proteger nem reagir.
Enquanto os membros das esquadras se exaltam nas tribunas, a impressão
suscitada pelo ultraje de Mussolini é, para todos os não fascistas, penosa,
profunda. Todavia, só Francesco Saverio Nitti, indignado, abandona o
plenário em silêncio, só Modigliani e Matteotti se põem de súbito em pé na
bancada dos socialistas. Um único grito — “viva o Parlamento!” — se ergue
em todo o Parlamento humilhado. Os outros, quase a sua totalidade, parecem
sentir merecer a humilhação. Seu silêncio é um ato de servil contrição.
Quando Mussolini volta a falar, dirige-se a uma assembleia de culpados:
“Eu poderia fechar o Parlamento e formar um governo só de fascistas.
Poderia, mas, pelo menos neste primeiro momento, não quis.”
Outra vez aquela melancólica sensação de alívio, de novo, entre as
cadeiras, aqueles acenos conformados de anuência com a cabeça. Os
representantes legais das liberdades democráticas estão aceitando que elas
sejam concedidas do alto, por puro arbítrio e com a condição de que não as
usem mais de forma alguma. O que resta da instituição democrática se
conforma em viver de favor. Nenhum, ou quase nenhum dos seus
representantes, é claro, se acha digno de representar a liberdade, encarregado
de defendê-la.
Após subjugar a assembleia, o presidente do Conselho de Ministros agora
pode prosseguir falando dos grandes temas da política internacional — a
Tríplice Entente, as relações com a Turquia, com a Rússia, com os outros
Estados —, mas, para os deputados de Montecitório, que ouvem
distraidamente as próprias pulsações para se certificarem de que ainda estão
vivos, o discurso dele acabou.
No fim, antes das saudações, ao chegar ao tema da autoridade do Estado,
um instante após tê-la pisoteado, o Líder dos fascistas promete restabelecê-la
e defendê-la contra a ilegalidade dos próprios fascistas. Aplausos de todas as
partes, até dos socialistas, de Facta, congratulações recíprocas. Mussolini,
unindo o indicador e o polegar em um anel levado até a testa, volta a brincar
de gato e rato, mas o rato, a essa altura, animado apenas por um sopro de
vida, preso nas garras do gato, ergue o olhar para o predador e parece até
sorrir para ele, quase um sorriso de desculpas.
Então vem a última chibatada, sempre precedida por um epíteto que
substitui, em um desprezo confidencial, o obrigatório “excelentíssimos
parlamentares”, ou então o respeitoso “colegas” ou “compatriotas”, pelo
genérico “senhores”:
“Senhores, não quero governar contra a Câmara... até quando isso me seja
possível... mas a Câmara deve perceber sua posição singular, que possibilita
sua dissolução em dois dias ou em dois anos.”
E, com esse ultimato, a XXVI legislatura é enterrada. Os mais inteligentes
duvidam que possa haver outra. Sobreviverá dois dias ou dois anos, expiando
aos poucos a própria morte.
Para que não reste dúvida sobre quem manda, Benito Mussolini também
pede à Câmara dos Deputados a delegação dos “plenos poderes”. Mais uma
vez, ninguém se rebela.
Durante a suspensão dos trabalhos, um grupo de parlamentares solicita a
Giovanni Giolitti um protesto em defesa da dignidade da Câmara dos
Deputados.
“Não vejo necessidade“, responde o velho estadista, “esta Câmara tem o
governo que merece.”
Ele não será desmentido. A Câmara dos Deputados, conquanto o Partido
Nacional Fascista tenha apenas 35 deputados, vota a favor da confiança plena
no governo Mussolini, o mesmo governo que a desmoralizou. São 306 votos
a favor, 116 contra e 7 abstenções. Concederá a ele também os plenos
poderes. Até os críticos, os indignados, como os deputados Gasparotto e
Albertini, votam a favor. Um adamantino desejo de capitulação.
Depois do discurso do chefe do governo, esta assembleia não tem mais
razão de existir.

Deputado Luigi Gasparotto, discurso à Câmara dos


Deputados, 16 de novembro de 1922

Mussolini deu a impressão de estar no controle da situação e, se a


instituição parlamentar encontrou hoje muitos defensores, a Câmara dos
Deputados atual não encontrou nenhum, nem mesmo em seu seio.

Camille Barrère, embaixador da França em Roma,


18 de novembro de 1922

As chicotadas de anteontem na Câmara dos Deputados, os insultos de De


Vecchi aos populares, as veleidades de um gesto orgulhoso antes da morte de
alguns parlamentares mais visados [...] tudo se aquietou antes do voto, e os
306 que votaram a favor do ministério foram todos logo domesticados pelo
tom mais parlamentar do domador [...] como coelhos [...]. E agora, o que vai
acontecer? [...] os deputados, como cães surrados, voltarão aos seus colégios
eleitorais na esperança de que, na primavera, durante as eleições, possam
voltar como membros de esquadras nos blocos nacionais.

Anna Kuliscioff, carta a Filippo Turati,


18 de novembro de 1922

Cara Emilia, mal terminei minha carta de hoje e já sinto a necessidade de


escrever outra para lhe recomendar prudência, prudência, prudência. Li o
relatório da Câmara de hoje e meu coração quase parou. Imagino o que você
sentirá amanhã. Mas o amor pela liberdade não se demonstra com conversas
fiadas. Agora é hora de ficarmos calados. A hora de falar virá, e precisamos
nos preservar para ela.

Francesco De Sanctis, carta à mulher,


17 de novembro de 1922
Giacomo Matteotti
Roma, 18 de novembro de 1922
Câmara dos Deputados

Giacomo Matteotti não se cala. Há homens, raros, para quem tomar a


palavra e manter a posição são a mesma coisa.
Dois dias após a Câmara dos Deputados ter concedido o voto político de
confiança ao governo, Matteotti toma a palavra durante o debate sobre a
prorrogação da execução provisória do orçamento anterior para o ano
financeiro de 1922-23. Após a capitulação dos dias anteriores, muitos
relatores inscritos para falar desistem. Ele não renuncia. Ainda tem essa
possibilidade e fala.
O secretário do Partido Socialista Unitário declara logo que sua
intervenção, preparada com cuidado, meticulosa, até pedante, se concentrará
exclusivamente em questões técnicas. E não é possível crer que lhe falte
lucidez, como ocorre com muitos dos seus colegas liberais, para compreender
o que está acontecendo. Suas primeiras palavras crucificam de cara, sem
piedade, a deformação do presente pelo porrete da ditadura iminente:
“Excelentíssimos colegas, por determinação do grupo, devo fazer poucas e
breves declarações sobre a execução provisória apresentada pelo governo.
Não é o caso de repetir aqui as declarações políticas que foram feitas ontem.
Limitamo-nos a observações estritamente técnicas, como se estivéssemos em
um regime democrático, e não ditatorial.”
A consciência de Matteotti em relação à ameaça ditatorial é total, até
exagerada: intui que o pedido de execução provisória esconde a ameaça de
dissolução da Câmara dos Deputados, seu “estrangulamento imediato”, que
exige dos parlamentares mortificados um segundo “voto de aprovação e de
contrição” após a votação do dia anterior. Todavia, à beira do precipício,
Matteotti se delonga, ponto a ponto, em questões detalhadas, minúcias de
balanço: perequação dos tributos, rolamento da dívida flutuante, previsões do
Tesouro sobre o déficit ferroviário. Com a precisão escrupulosa de um
patologista que decifra o mal por pequenos sinais, Matteotti vê a degeneração
do tecido democrático nos mínimos embustes dos balancetes dos ministérios
econômicos de Mussolini. Com a obstinação do inimigo irredutível, contesta
até o menor dos erros de cálculo. Com o pessimismo sufocante que suscita
ódio implacável, prevê que, depois de tantas proclamações revolucionárias,
os fascistas vão acabar, assim como todos os velhos governantes que os
precederam, emitindo os bônus do Tesouro de sempre.
“Que morra o astrólogo!” é o grito, anônimo, que se ergue da bancada da
direita contra aquele obstinado profeta de desventuras.
Mas esse discurso de Matteotti, pronunciado no afã do momento após a
fala histórica de Mussolini, não pretende ser inesquecível. Quase parece que
o antifascista renunciou à palavra memorável em prol do seu inimigo. A fim
de encontrar um verbo que ainda morda a carne, capaz de dar uma pequena
unhada na crosta da terra, é necessário abandonar a oratória pública. A vida,
como se sabe, à medida que a sombra da ditadura cresce sobre o mundo,
recua para a esfera privada.
Então, é nas cartas endereçadas pelo jovem e batalhador secretário do
Partido Socialista Unitário a Filippo Turati, o velho patriarca, seu expoente
mais ilustre, que devemos procurar o que resta do seu espírito combativo.
Nessas mensagens, Matteotti promete que não recuará um passo e lamenta a
rendição dos companheiros às lisonjas dos novos poderosos; nelas, seu
moralismo feroz pula no pescoço da moralidade declinante de um partido que
ele define como “puteiro”. É também nessas cartas que, diante da enorme
força de sedução exercida por Benito Mussolini, ele formula o diagnóstico
exato: “Nós não somos desonestos nem ingênuos o bastante para aderir.”
Mais ainda, é nas cartas de Giacomo Matteotti à mulher que devemos
procurar a expressão sincera desses dias atormentados. Se dermos um passo
para trás, descobriremos, de fato, que esse homem — acostumado desde
sempre a viver longe dos seus caros, há muito habituado a levar uma vida
semiclandestina, sem moradia fixa, vivendo em quartos de hotel e abrigos
improvisados — procurava uma casa na capital no início de outubro, quando
os seus perseguidores ameaçavam invadir Roma. Diante do perigo extremo,
parecia que ele não conseguia mais viver longe da mulher e dos filhos. E
estava procurando uma moradia em Roma como se o poeta tivesse razão ao
dizer que lá onde surge o perigo máximo surge também a salvação. 10 de
outubro:
“Eu quero defender as crianças, você e também a mim mesmo. Os
sacrifícios extremos não adiantam, de nada servem. Mesmo que eu tivesse
uma casa aqui em Roma, não daria a ninguém o endereço.”
No entanto, vinte dias mais tarde, no fim do mês, quando os fascistas já
haviam marchado sobre a capital, no momento em que a procura afobada por
uma casa romana parecia enfim concluída, eis que, em suas cartas a Velia,
Matteotti, que via mais uma vez com lucidez como a farsa não excluía a
tragédia, mas, pelo contrário, misturava-se a ela, duvida da eficácia do seu
propósito de construir um refúgio doméstico no olho do furacão, duvida de si
mesmo:
“Parece que a tragédia-farsa acabou [...]. Só hoje à noite os trens voltam a
circular e, se eu pudesse, iria até você, primeiro para vê-la, depois para
aconselhá-la. Diante das agitações, que eu havia previsto há muito tempo,
ratifiquei a ideia de não os ter aqui em meio ao perigo. Pensei até em mandá-
los para o exterior.”
A única que não duvida é Velia. Alicerçando-se no basalto de uma
melancolia indestrutível — a melancolia é sua rocha, sua única certeza —,
em pleno naufrágio, Velia Matteotti escreve ao marido palavras de amor e de
beleza:
“Pobre vida também a sua, e, mais do que tudo, sem nenhum hábito que
lhe seja caro, sem nenhum conforto material, jamais. Você chegou assim à
sua idade e eu também não pude lhe dar isso até o momento. Mas agora está
para acabar, ficaremos unidos para sempre, mesmo que as coisas deixem
você ausente, e teremos uma cama nossa, uma luminária nossa, um canto
quentinho para passarmos juntos uma hora de descanso e onde poderemos
dizer, com serenidade, ‘você se lembra?’.”
Benito Mussolini
Roma, 31 de dezembro de 1922
Gabinete do presidente do Conselho de Ministros

Aqui estão eles, todos enfileirados, não falta ninguém. Grandes


economistas, grandes filósofos, os generais vencedores da guerra mundial.
Todos os integrantes do seu governo vieram em procissão para desejar feliz
ano-novo ao primeiro-ministro, o jovem, formidável estadista que os jornais
americanos saúdam como “o homem mais interessante e poderoso da Itália”.
Todos agora anseiam para prestar as próprias homenagens à aventura. O
golpe de Estado fascista foi realizado e o mundo não acabou.
Em 24 de novembro, o Parlamento, humilhado pelo seu discurso inaugural,
concedeu a Benito Mussolini plenos poderes para a reforma da administração
pública e o reordenamento das finanças. Mas sua afirmação pessoal
ultrapassa até as fronteiras nacionais: na semana anterior, o astro nascente
quis participar em pessoa da Conferência de Paz em Lausanne, encontrando
pela primeira vez, de igual para igual, o presidente francês Poincaré e o
ministro das Relações Exteriores inglês Curzon; Mussolini até exigiu que
fossem eles a visitá-lo em Territet — uma aldeia às portas de Lausanne — e
lhes arrancou a promessa de rediscutir os mandados coloniais no Oriente
Médio. Um grande sucesso, o primeiro passo para que a Itália voltasse a ser
uma grande potência. O objetivo é esse. Agora ele proclama tudo isso aos
seus ministros obsequiosos, que o escutam em pé enquanto ele permanece
sentado, prepotente, atrás da escrivaninha:
“Esta é a tarefa histórica que nos espera: fazer desta nação um Estado, ou
seja, uma ideia moral que encarne e exprima um sistema de hierarquias bem
identificadas cujos componentes, do mais alto ao mais baixo, orgulhem-se de
fazer o próprio dever, um Estado unitário, único depositário de toda a
história, de todo o futuro, de toda a força da nação italiana.”
Os ministros assentem, os subsecretários aplaudem, a revolução fascista
está só começando.

***

Uma obra imensa aguarda o Duce do fascismo, uma epopeia de refundação


que exigirá anos, décadas. Só os frouxos, os arquitetos dos variados projetos
de felicidade universal acreditam em milagres, em transições rápidas. Mas ele
não está aqui de passagem, chegou para ficar e para governar. Os primeiros
que ele vai pôr na linha, graças aos seus plenos poderes, serão os funcionários
da administração pública romana que não querem abrir mão da sesta.
Defendem com obstinação aquela horinha de sono, agarram-se a ela com
unhas e dentes, reivindicam-na como o direito secular de um povo sonolento
e lânguido a quem nunca acontece nada de irreparável. Mas eles também
devem obedecê-lo e o farão, ele os transformará em uma máquina de
relojoaria. Para dar uma sacudida nos italianos, ele está pronto para lutar
contra inimigos, amigos e até contra si mesmo.
Claro, a fim de realizar tudo isso ele não pretende, por enquanto, infringir
as leis, a Constituição. Mussolini disse claramente no Parlamento: a
revolução acabou de começar, mas não se pode tumultuar tudo, improvisar
um mundo novo, ele não pretende “acabar com o universo”. Alguns pontos
de referência, fundamentais na vida dos povos, devem ser respeitados. A
sesta, porém, não será um deles.
É preciso tempo, calma, eles devem deixá-lo trabalhar. Ele organizou tudo
para poder se dedicar à Itália, até deixou Rachele e a família em Milão para
não ter obstáculos familiares. Depois, como presidente do Conselho de
Ministros, escreveu ao governador da província de Trento a fim de que ele
internasse em um manicômio aquela louca da Dalser, que continuava a
persegui-lo, também pôs em um apartamentinho bem decorado Angela Curti,
que o procurou em março de 1921 para obter a libertação do marido e logo se
tornou sua amante regular — a meiga Angela, que, em 19 de outubro, poucos
dias antes da marcha sobre Roma, deu-lhe outra filha clandestina. Mas
daquela vez ele fez tudo como se deve: sugeriu o nome Elena — outro nome
homérico — para a filha e a levou para Roma, para um apartamento elegante
no Parioli.
Ele, por sua vez, se contenta com pouco. Vive em um quarto no Grand
Hotel, onde só o ajuda um tal Cirillo Tambara, um misto entre garçom,
motorista e guarda-costas que também cozinha para ele o minestrone com
pele de porco, seu prato preferido. De resto, vida monástica, disciplina
militar. Às 6h, o Duce já está de pé; às 7h, está na rua; às 8h, chegou ao seu
gabinete no Palazzo Chigi, onde se pendura no telefone para controlar se
todos os 40 mil funcionários da burocracia romana estão em seus postos. Ele
vai reformar a administração pública — mesmo que seja preciso usar canhões
—, vai despertar aquele monstruoso paquiderme perenemente atordoado por
uma digestão lenta, prostrado na eterna sesta de uma tarde abafada, sem pôr
do sol.
Também é preciso enjaular a outra fera, a que salta, a que é feroz. Após a
tomada do poder, os membros das esquadras começaram os últimos acertos
de contas. Em Milão, ocuparam descaradamente as sessões eleitorais durante
as eleições governamentais; na Bréscia, chegaram até a bater nos padres nas
residências paroquiais; e também houve os acontecimentos de Turim... Só um
mês após o voto de confiança no seu governo... Turim... uma matança. Até
Francesco Giunta, um dos seus integrantes de esquadras mais violentos,
enviado ao Piemonte para uma investigação, fala de uma ferocidade inédita,
uma horda de delinquentes, toda uma cidade nas garras de bandos de
assassinos.
Dizem que os acontecimentos em Turim ocorreram assim: na noite entre
17 e 18 de dezembro, em Barriera di Nizza, um motorneiro comunista matou
2 fascistas durante um confronto na rua. O motivo parece ter sido uma
questão pessoal, disputa por mulheres. Piero Brandimarte, chefe das
esquadras locais, um animal, logo reuniu três mil camisas-negras de toda a
região. “Nossos mortos não são pranteados, são vingados” era seu slogan.
Para se manterem fiéis ao bordão, os membros das esquadras de Brandimarte,
das 13h de 18 de dezembro até a tarde do dia 20, praticaram 2 dias e 2 noites
de expedições, capturas, incêndios, devastações, assassinatos às claras,
execuções sumárias; 2 dias e 2 noites de violências desmedidas, erros
gigantescos, equívocos de pessoas, vítimas inocentes. Um taberneiro
arrastado para os fundos do estabelecimento e assassinado com dois tiros de
revólver na cabeça, o fígado destroçado por perfurações e cortes, pais de
família abatidos durante o jantar, jovens operários arrastados para a rua e
mortos a golpes de clava, as ruas do Centro alagadas de sangue, os cadáveres
encontrados nos fossos, nos vales e nos bosques das colinas, os corpos
devolvidos pelas cheias do rio. Atrocidades inomináveis, crueldades
inconcebíveis, angústia universal. E, para coroar, o incêndio da Câmara do
Trabalho, o terceiro consecutivo, e os membros das esquadras de
Brandimarte, bêbados como cães saciados, tocam, cantam e dançam diante do
pano de fundo avermelhado das chamas.
O Duce os renegou de imediato. O presidente do Conselho de Ministros
Benito Mussolini definiu o massacre como “uma vergonha para a raça
humana”, ameaçou punições exemplares. Contudo, em 23 de dezembro, 3
dias depois, proclamou a anistia geral para os crimes de sangue por motivo
político (“fim nacional”). No dia 28, após o Natal, impôs ao Conselho de
Ministros o primeiro decreto para a instituição da Milizia per la Sicurezza
nazionale. Isso significa que, para evitar outros crimes deles, os assassinos de
Brandimarte devem se tornar uma instituição do Estado, uma espécie de
guarda nacional, a base da nação armada. Esse é o cautério que o Duce
pretende aplicar na ferida.
O paradoxo não lhe passa despercebido, nem o despropósito. Entretanto, é
preciso realismo: quando um grupo chega ao poder, tem a obrigação de se
fortalecer, de se defender contra todos e, afinal de contas, o país está cansado.
A Itália acabou de voltar a respirar por ter escapado do perigo após a
angustiante espera da marcha sobre Roma. Agora chegou o momento de pôr
fim ao tempo da desordem, das greves selvagens, das cabeças arrebentadas a
golpes de clava. A qualquer custo, mesmo que isso signifique promover os
marginais a gendarmes. De resto, não seria a primeira vez. O fascismo no
poder deve aliviar a Itália do peso da própria ameaça. A Itália quer descansar,
a calma deverá inundá-la.
A aquiescência se espalha, submerge a península. Muitos jornais nem
sequer comentaram as carnificinas de Turim, pois tudo cria sombras, tudo
cria suspeitas. Agora tudo acabou, agora finalmente podemos dormir, agora
devemos dormir, porque agora ele, o homem novo, está a velar. Fechem os
olhos, tenham bons sonhos, sonhos de grandeza, de potência mediterrânea,
sonhem com o amanhã, pois o amanhã nos espera e nós o alcançaremos, pois
o novo ano começa em seu nome, em nome de Benito Mussolini, o herói do
cansaço.
1923
Benito Mussolini
Roma, janeiro de 1923

É muito provável que esses sejam os meses mais felizes da sua vida. É o
que ele sempre repete a Rachele em seus telefonemas de Roma. Liga para ela
todos os dias, uma vez por dia, sem falta (a família é importante, embora
esteja distante, sobretudo na distância): “Rachele, o período mais feliz da
nossa vida.” Depois, põe o aparelho no gancho e se lança ao trabalho como
uma catapulta. Aos funcionários ministeriais romanos, parece um possesso,
tomado por completa euforia, estupefato e quase incrédulo diante da
realidade da sua maravilhosa ascensão. À pequena multidão que se aglomera
no hall do Grand Hotel — para onde, nesse ínterim, ele se mudou —, o Duce
do fascismo já parece envolto pelo halo de uma lenda.
A essa altura, é o que sempre acontece aonde quer que ele vá: assim que é
reconhecido, seu corpo que atravessa o espaço atrai as pessoas com a força de
um impulso sexual. Quando Mussolini tenta simplesmente percorrer a pé o
trecho entre o gabinete e o Grand Hotel, já em Piazza Colonna a multidão o
reconhece, o assedia, quer tocá-lo, adoradora, exaltada, em orgasmo por
causa desse político novo que vem da rua, da multidão, que vive do contato
direto, pessoal com ela, ostentado, exilado, obsceno, esse filho de ferreiro que
acabará com os velhos politiqueiros desconhecidos das massas, perdidos nas
sombras de suas intrigas e manobras palacianas. Aonde quer que ele vá, a
multidão o cerca, o abraça, lá fora, na praça.
Esse é o homem. O homem novo, o homem da juventude contra a
“velharia”, do renascimento após a decadência, da saúde diante da
degeneração. Aí está o árbitro do caos, o iniciador de uma era, o obstetra da
história, esse parto difícil. Comparados a ele, os politiqueiros da velha Itália,
que ainda se afligem fazendo criancices com rançosas fórmulas
parlamentares, quando dão algum pequeno sinal de vida, parecem larvas
saindo do cemitério da pré-história.
Aí está o homem forte, o homem da força, força física — não há outra —,
o homem da violência que a aplacará, o homem da ferocidade que a
amansará, o homem da luta que a fará cessar porque logo não haverá mais
duas linhas de frente, apenas uma, o homem que volta a dar segurança aos
coitados presos até ontem no fogo cruzado, o homem que fez um deserto e o
chamou de paz, aí está o domador de leões, aquele que entra na jaula
enquanto o público prende a respiração e, com um estalo do chicote, impõe
que as feras arreganhem e depois voltem a fechar a boca, cumprindo suas
ordens, obedientes, porque aqueles são os seus leões.
Esse é o homem do destino, precedido por sinais, profecias, episódios
premonitórios, o déspota genial capaz de subjugar as massas e restabelecer a
ordem, o vencedor empolgante esperado por um tempo longo demais por um
povo deprimido pelos efeitos de um drama interminável, inconcludente,
enfadonho, no qual tudo é concatenado, porém nada é fatídico.
Ele sabe, não tem como não saber; seus adversários, os últimos, repetem
sempre: o país está cansado, dilacerado, abatido, sonha com o descanso,
sonha com um sono sem sonhos, um sonho de facilidade. O país está cansado
e, por esse mesmo motivo, ele é incansável. Transferiu seus escritórios para o
Palazzo Chigi, sede do ministério do Interior, instalou-se na chamada Galleria
Deti, a escrivaninha sob uma cúpula decorada com estuques e afrescos de
cenas bíblicas, ornamentos heráldicos. Chega às 8h, sem falta, manda trazer
um lápis com a ponta quadrada, uma cestinha de frutas, e se lança ao trabalho
até a noite, até a madrugada, durante 10, 12, 18 horas por dia.
O homem do destino come e bebe pouco, precisou reduzir o consumo de
café, mas direciona todos os seus apetites em um transbordante dinamismo
saneador. Há uma enorme quantidade de trabalho atrasado, o barco está cheio
de furos, o relaxamento dos funcionários públicos é vergonhoso. Então ele
leva tudo às costas, não delega — não confia —, lê todos os jornais, até os
que não mereceriam ser lidos — quase todos —, faz chover sobre a Itália
uma tempestade de decretos — começando pela simplificação da burocracia
—, recebe todos os dias centenas de visitantes que o esperam ansiosos na
antessala, ajeitando a gravata e verificando a ponta dos sapatos como antes de
um encontro amoroso. Depois, no fim do dia, rearruma meticulosamente os
papéis, até os mais inúteis, supérfluos, coloca-os novamente na sua pasta de
couro amarelo, que o acompanha há anos, e volta para o hotel. Na manhã
seguinte, acorda ao raiar do dia, exercita-se na pista de esgrima, toma aulas
de equitação com Camillo Ridolfi, seu professor de espada, está também
aprendendo a andar a cavalo, galopa meia hora entre as alamedas de Villa
Borghese na sela de um garanhão baio chamado “Ululato”.
O único prazer que o domador de leões se permite, além do poder, são as
mulheres. Disso ele não conseguiria abrir mão. E, afinal, por que deveria? A
natureza dos dois prazeres é a mesma, sua exuberância erótica é irreprimível,
seu estranho celibato permite que ele a descarregue sem freios.
Margherita Sarfatti viaja especialmente de Milão até o Hotel Continentale,
e ele, fugindo da vigilância por uma portinha secundária que se abre para Via
Cernaia, vai se encontrar com ela. O comandante da segurança pública em
Roma e o chefe de polícia vivem noites de angústia enquanto os dois amantes
se amam, preparam juntos os discursos sobre o futuro da nação, redigem a
matéria que o homem novo prometeu à diretora do Gerarchia sobre “o
segundo momento da revolução”.
Juntos, os dois amantes escrevem que o primeiro momento, na sua beleza
violenta e convulsa, terminou, é irrevogável, irreparável, não se volta atrás.
Agora é preciso normalizar, deixar por enquanto tudo inalterado, harmonizar
o velho e o novo, proceder com um acordo após o outro, avançar lenta, mas
inexoravelmente. Que os inimigos não se iludam: o Estado fascista não os
tolera; ele os combate e os destrói. Essa é sua principal característica. E o
Estado fascista não pode ficar por muito tempo à mercê do Parlamento — um
Parlamento que deverá ser cotidianamente humilhado, desprezado
publicamente —, porque o fascismo já representa a Itália. Quem está fora do
fascismo é um inimigo ou está morto. Não passará um dia sem que uma linha
seja traçada.
Então, ao alvorecer, após ter vaticinado, ameaçado e gozado, ele pode se
permitir o último prazer, talvez o mais precioso: a solidão na cidade
conquistada.
Benito Mussolini levanta a lapela, acende um cigarro, enfia as mãos no
bolso e, sozinho, sem escolta, satisfeito, desce a Via Goito deserta.
A época dos Giolitti, dos Nitti, dos Bonomi, dos Salandra,
dos Orlando e dos deuses menores do Olimpo parlamentar
acabou. Houve, entre outubro e novembro, uma liquidação
gigantesca: de homens, de métodos, de doutrinas [...]. Não há
dúvida de que o segundo momento da nossa revolução é
dificílimo e importantíssimo. O segundo momento decide o
destino da Revolução [...] a Revolução fascista não derruba
por inteiro e de uma vez aquela delicada e complexa máquina
que é a administração de um grande Estado; procede por
graus, por pedaços [...].

Benito Mussolini, “Segundo momento”,


Gerarchia, 31 de janeiro de 1923
Margherita Sarfatti
Janeiro de 1923

Meu Benito, meu adorado.


É a manhã de 1o de janeiro de 1923. Quero escrever esta data pela
primeira vez em uma folha dirigida a você, como uma consagração e
uma dedicatória.
Benito: Meu Adorado.
Sou, serei, sempre, para sempre toda, mais ainda sua. Sua.

São os dias do idílio. A apoteose dos amantes explodiu para conquistar o


mundo. No entanto, já que a dor é eloquente, mas a felicidade é muda, até
Margherita Sarfatti, a refinada salonnière, a dama cultíssima, precisou se
entregar aos clichês sentimentais de uma empregadinha apaixonada.
Adoração e repetição. Repetição e adoração. Assim, e de nenhuma outra
maneira, o amor terrestre desafia a eternidade.
Fiel a essa linha de patético, obtuso e sublime heroísmo dos apaixonados,
antes que chegasse ao fim o primeiro dia do ano, Margherita Sarfatti voltou a
pegar o papel timbrado do Hotel Continentale e endereçou uma segunda carta
ao hóspede do ilustre Grand Hotel de Roma.

As primeiras horas de 1923.


Adorado, meu adorado!
Quero começar o ano escrevendo seu nome em um pedaço de papel:
Benito, meu amor, meu amante, meu adorado! Sou, me proclamo, me
vanglorio de ser, apaixonadamente, inteiramente, devotamente,
perdidamente Sua: agora, por todo o ano de 1923 e, se você quiser, meu
adorado, para que você me ame como eu amo você, para sempre; Sua.

Mais uma vez aquele compromisso solene, aquele protesto contra o tempo
no jogo trapaceado que nos opõe à eternidade: “Amo você, para sempre, para
sempre [...].”
Depois a mulher apaixonada prometeu ao seu homem viver dissimulada na
sombra da sua luz, implorou que ele lhe permitisse ficar ao seu lado,
silenciosa, secundária, para poder lhe dar só um pouco de tranquilidade,
alguma doçura, a certeza de um amor infinito, para poder ser nada mais do
que o porto seguro no qual, navegados todos os oceanos, o “grande navio
glorioso” repousa.
Fiel a essa promessa impossível, nos primeiros dias do ano, Margherita
esperou Benito por muito tempo no seu quarto do Hotel Continentale, mas,
quando convocada pelo desejo ou pela necessidade, também não se recusou a
subir a escada de serviço do Grand Hotel reservada aos serviçais. Pelo seu
homem, a mulher apaixonada também subiu aquelas escadas mesquinhas.
São os dias do idílio, mas também são os dias do orgulho. Ela o escreve
com todas as letras, proclama-o como proclama seu amor.

Eu também sou da sua milícia: evidente e secreta. E fiz um juramento a


você, ratifiquei o juramento, como sua amiga, sua mulher, sua esposa;
fiz um juramento a você, senhor e esposo, chefe e amante. Com
fidelidade absoluta e devoção de partidária, de italiana, de cidadã, de
mãe e de amante [...]. Estou orgulhosa de você, mas pelo que você é, e
não por aquilo que você aparenta. Estou orgulhosa de você até o
fanatismo e até a loucura, mas pelo seu valor intrínseco, e não pelo
fetichismo que a multidão alimenta em relação a você.

Embora ela seja a única a conhecer na intimidade o verdadeiro rosto —


atormentado, raivoso, muitas vezes incerto — daquele homem público que,
em público, posa sempre como déspota granítico, a mulher apaixonada, a
miliciana do amor eterno não hesita em se esconder entre a multidão para
admirar de longe a “cabeça quadrada de romano antigo” do próprio amante
como uma entre mil. É até onde chega a floração viçosa, precoce, descarada
dessa paixão alimentada durante muito tempo por uma linfa secreta. Todavia,
como sabe muito bem qualquer leitora de romances açucarados, toda rosa
tem seu espinho.
Margherita se oferece totalmente a Benito em sua plena nudez, prostra-se
na pose de entrega e subserviência própria da criatura em relação à divindade.
Contudo, na admiração por aquela “cabeça quadrada de romano antigo” que
desponta dominadora sobre a multidão, exprime-se o orgulho da criação. Foi
ela quem refinou o bronco, revestiu o roceiro, instruiu o autodidata,
introduziu o filho do ferreiro na alta sociedade, foi ela quem encorajou o
indeciso quando se tratava de jogar os dados, pôs à sua disposição sua casa de
campo na Brianza para que ele pudesse fugir para a Suíça se o ataque à
história falhasse, foi ela quem segurou sua mão no palco do Scala na noite em
que tudo foi posto em jogo, foi ela quem emprestou ao pedestre seu próprio
automóvel para que ele pegasse o trem que o levaria a Roma. E fez tudo isso
pelo próprio homem com sua última juventude.
Em abril, Margherita Sarfatti completará 43 anos. É fácil prever que logo,
durante uma das muitas e intermináveis esperas em seu quarto no Hotel
Continentale, ao vislumbrar o próprio reflexo em um espelho de toalete, ela
verá apenas o rosto desfeito de uma mulher que envelhece.
Benito Mussolini
Roma, 12 de janeiro de 1923
Grand Hotel, aposentos do Excelentíssimo Mussolini
Primeira reunião do Grande Conselho do Fascismo

A saleta no segundo andar, inteiramente ocupado pelos aposentos do


Excelentíssimo Mussolini, fervilha de rancores.
Seu desejo era fazer as coisas em grande estilo para essa primeira reunião
dos líderes do fascismo. A assembleia consultiva recém-formada ainda tem
caráter informal, pertence às miudezas da vida de partido, reúne-se em seus
aposentos privados, mas seu idealizador quis lhe dar um alcance histórico
com um nome resgatado da glória dos doges da “Sereníssima” República de
Veneza. Mussolini batizou de Grande Conselho do Fascismo essa pequena
reunião noturna, bastarda, semiclandestina, convocada às pressas. No último
minuto, até mandou chamar um fotógrafo com laboratório no Corso Vittorio
Emanuele — um ex-socialista intervencionista como ele — para imortalizar o
evento com os flashes de magnésio.
Entretanto, apesar dos seus esforços, fervilha de rancores a saleta na qual
estão sentados, em volta das pernas arqueadas das mesinhas estilo império, os
rases do fascismo, aqueles que deveriam ser seus colaboradores mais
agradecidos e de confiança.
Observe esses insatisfeitos, esses desiludidos, esses insubmissos. São eles
o principal obstáculo à velocidade mussoliniana, a bola de ferro no pé do
segundo momento dessa revolução. E todos são fascistas. Na placa de vidro
embebida em brometo de prata imprime-se a fotografia do seu
descontentamento. Uma névoa tóxica de ambições desiludidas, frustrações
revolucionárias, personalismos irredutíveis, um miasma fedorento de
rivalidades familiares, clientelas locais, vendetas tribais, rixas de aldeias, um
borrifo sufocante de conluios, dissidências, extremismos. Do Grande
Conselho, participam os secretários, vice-secretários e os membros da direção
do partido, os ministros, os subsecretários e as personalidades proeminentes
do fascismo, diretores da segurança pública, comissários das ferrovias,
secretários das corporações sindicais, dirigentes de cooperativas, comissários
políticos. Em sua maioria, são homens medíocres, ávidos, mesquinhos,
alçados às suas posições pela corrente ascensional suscitada no céu da Itália
pelo ciclone Mussolini e nomeados diretamente por ele, o Líder supremo.
Porém, em vez de gratidão, os espelhos polidos do Grand Hotel refletem os
olhares oblíquos, carrancudos, funéreos de descontentamento.
Os chefes fascistas começaram a se queixar já no dia seguinte à marcha.
Para o seu governo de coalizão, Mussolini nomeou apenas três ministros
fascistas, além dos ministérios reservados a si mesmo. Assim, às 10h de 31
de outubro, Bianchi e Marinelli, secretário político e secretário administrativo
do partido triunfador, apresentaram-se ao Duce no Hotel Savoia com suas
renúncias como protesto contra a não nomeação de De Bono como ministro
da Guerra. Já então, 24 horas após a revolução, falavam da sua “traição”.
Para aplacá-los, foi necessário pôr De Bono como chefe da polícia. Então foi
a vez de Costanzo Ciano protestar por causa da sua não nomeação como
ministro da Marinha. Foi assim que se tornou comissário da Marinha
Mercante. Já Alfredo Rocco, esquecido em um primeiro momento, depois
dos protestos habituais, foi nomeado subsecretário do Tesouro e precisou
digerir a subordinação ao ministro De Stefani, que foi seu aluno de direito
penal na Universidade de Pádua. E assim por diante, em uma fila infinita de
ressarcimentos póstumos, de rancores inesgotáveis, de soldados rasos
indisciplinados em fuga solitária.
Mas as paixões tristes também encontram seu líder. No dia seguinte à
marcha, Roberto Farinacci se tornou o líder do descontentamento fascista,
assim como, até o dia anterior, havia sido o do entusiasmo. Excluído de todos
os cargos de primeiro escalão, recusou um cargo secundário e se refugiou em
seu feudo provincial de Cremona, capitaneando a dissidência interna.
Autoproclamado guardião da pureza original, vestal da intransigência,
começou a vomitar do seu jornal local — Cremona Nuova — acusações de
traição contra todas as negociações; advertências para que os fascistas não se
desarmassem contra “os inimigos de ontem, que são os inimigos de hoje”,
para que o fascismo não fosse manchado por “contatos impuros”; e convites
para extirpar toda a dissensão, como se faz com um parasita infestador.
Esta noite, na primeira reunião do Grande Conselho do Fascismo,
convocada nos aposentos privados do presidente do Conselho de Ministros, o
provinciano Farinacci fica quieto, em uma poltrona na segunda fileira, de
tocaia atrás do seu bigode, pronto para sabotar qualquer projeto de
normalização, qualquer ordem de desmobilização. Porque é exatamente isso
— Farinacci sabe, todos sabem naquela saleta adjacente aos seus aposentos
privados — que Mussolini quer impor aos seus hierarcas.
O projeto a ser sabotado se chama Milizia per la Sicurezza nazionale. Foi
anunciado nas reuniões de cúpula fascistas em meados de dezembro e
aprovado pelo Conselho de Ministros no dia 28 do mesmo mês. Agora o
decreto jaz há três semanas na escrivaninha do rei, que ainda hesita em
assiná-lo. Se o fizesse, batizaria o nascimento de um segundo exército
paralelo, partidário e faccioso, ao lado do Exército nacional. Com a Milizia
per la Sicurezza nazionale, um corpo de voluntários armados integrado ao
Exército mediante recrutamento regular, porém ligado por juramento apenas
ao presidente do Conselho, Mussolini quer normalizar a violência fascista,
legalizando-a, mas também quer desmobilizar as esquadras das províncias,
arregimentando-as em sua nova armada pessoal. Com um único golpe, ele se
apropriaria da violência legítima, que na Era Moderna é somente do Estado, e
poria sob controle a violência das esquadras.
Como sempre, sua manobra é dúplice, abrangente. Os integrantes das
esquadras, após tê-lo alçado ao poder, de volta às cidades natais onde se
recusam a se desarmar, estão se tornando um problema crucial. Devem,
então, ser tirados dos chefes locais, que poderiam usá-los contra ele. Em
contrapartida, ele ainda precisa usá-los para manter sob pressão o Parlamento
e a monarquia. A ameaça velada de guerra civil continua sendo a principal
garantia do seu poder.
“A revolução fascista pode durar toda uma geração.”
O anúncio com que o Líder abre a reunião causa sobressaltos nos homens
que acreditaram e esperaram já ter concluído com sucesso sua luta e se
preparavam apenas para colher seus frutos. A hipótese vertiginosa de toda
uma vida de violência por um instante dispersa a névoa do descontentamento.
A palavra é passada a De Bono, que expõe o projeto da Milizia per la
Sicurezza nazionale.
Sua finalidade será a defesa da revolução fascista e a manutenção da ordem
pública. Tal incumbência não recairá mais ao Exército, e a guarda real, que a
desempenhou nos últimos anos, será liquidada. O recrutamento será
nominalmente voluntário, porém restrito aos membros das formações
militares fascistas. Todas as esquadras serão dissolvidas, e todos os seus
integrantes que quiserem permanecer fascistas deverão se alistar à Milizia per
la Sicurezza nazionale. Os altos oficiais virão do Exército, auxiliados por
alguns cônsules, elevados à posição de coronéis. O juramento será à Itália e,
sobretudo, ao presidente do seu Conselho de Ministros, Benito Mussolini. A
disciplina deverá ser “cega, imediata, respeitosa e absoluta”.
Terminada a apresentação, antes de passar a palavra aos presentes,
Mussolini a retoma brevemente. Arregala os olhos, gira as pupilas e as fixa
em Farinacci, meio escondido do seu olhar:
“Dirijo-me aos senhores da segunda fileira de poltronas. Aviso: a Itália
suporta no máximo um Mussolini, e não várias dúzias.”
Cesare Rossi aprova sem hesitar a estatização da Milizia per la Sicurezza
nazionale. Todos os fascistas “moderados” a aprovam. Mesmo declarando
sua escolha pelo menor dos males, até Massimo Rocca a aprova — ex-
anarquista, intervencionista, nome de destaque no Il Popolo d’Italia, diretor
nacional do Partido Nacional Fascista, principal defensor da “normalização”
contra o perdurar da violência das esquadras.
Mas o descontentamento já fervilha outra vez na sala. Interpelado,
Farinacci limita-se por enquanto a garantir que as esquadras são muito mais
eficazes do que a Milizia per la Sicurezza nazionale para manter o país
obediente. Então acrescenta, sonso: “Sobretudo em caso de perigo. Sua
intervenção dá início ao protesto. Attilio Teruzzi — oficial com várias
condecorações, vice-secretário do partido — defende apaixonadamente a
“necessidade de manter o espírito revolucionário; Francesco Giunta lamenta
que não adianta permanecer no partido se ele deve servir apenas aos amigos
do Duce; Balbo, que foi indicado com De Bono e De Vecchi como supervisor
da Milizia per la Sicurezza nazionale, pelo puro prazer polêmico de rebater o
Líder exibindo o privilégio de tratá-lo com informalidade, questiona:
“Benito, mas a revolução foi feita para você ou para todos nós?”
Com a pergunta de Balbo, a reunião é encerrada. Michele Bianchi, com
poucas palavras de praxe, marca a retomada dos trabalhos para o dia
seguinte.
Depuração e intransigência devem ser nossas armas para
manter o fascismo como nós o criamos, o defendemos, o
reforçamos [...]. E permaneceremos alertas para defender tais
interesses supremos contra todos e contra tudo. Antes de tirar
proveito do fascismo, antes de ofender a memória dos nossos
mortos, será necessário ter a coragem de pisar em nossos
corpos. E isso não é fácil.

Roberto Farinacci,
“É necessário defender-se e purificar”,
Cremona Nuova, 17 de fevereiro de 1923.

Somos fascistas agressores/ alegres e cheios de juventude/ por que nos


transformar em assessores/ ó Benito, ó Pátria, ó Jesus?

Il lamento dell’intransigente, canto fascista, 1923

Há muito tempo, e diante da crítica de amigos e de


adversários de que a revolução fascista deu à Itália somente
um homem, ainda que desmesurado, e pouquíssimos
colaboradores dignos dele, eu me pergunto se o Partido
Fascista representa o apoio político necessário a Benito
Mussolini ou se vive parasitariamente nas suas costas.

Massimo Rocca, membro da direção nacional do


Partido Nacional Fascista, Critica Fascista, 1923

Tirando três ou quatro nomes, não posso ter mais qualquer estima pela
nova direção nacional [...] fraca, mentirosa, corrupta: essa minha opinião é
compartilhada por muitos e está se difundindo.

Giuseppe Bottai, cofundador do Fascio di Combattimento


romano, chefe de esquadra, chefe de coluna na marcha sobre
Roma, carta privada a Mussolini, 13 de janeiro de 1923
Margherita Sarfatti
Milão, 26 de março de 1923
Galeria de arte Pesaro

“Eu me sinto da mesma geração destes artistas. Tomei outro rumo, mas
também sou um artista que trabalha uma certa matéria e persegue
determinados ideais [...].”
Benito Mussolini veste um terno cinza de bom corte — nenhuma camisa
preta — e, ao contrário do que costuma fazer, não fala de improviso, mas lê
seu breve discurso em uma folha batida à máquina. Escutam-no nas salas art
déco da galeria de Lino Pesaro não apenas críticos, colecionadores e artistas,
mas todas as personalidades importantes de Milão: autoridades, políticos,
industriais e jornalistas.
Fora, na rampa de lançamento sobre o calçamento da Via Manzoni, com o
bico voltado para o Ocidente, estão os “loucos anos 1920”. Sepultada a
guerra, o desenvolvimento industrial acelera, o dinheiro circula, o comércio
triunfa. E a tecnologia também domina — automóveis, rádios, fonógrafos —,
novos deuses são inventados, os próprios mitos são vividos na tela do
cinema, todos se inclinam para o progresso, a modernidade, e todos são
convidados a participar do Reino, graças ao gramofone todos escutam
música, todos dançam ao ritmo sincopado da explosiva era do jazz.
Explodem também as mulheres, impertinentes, descaradas, sufragistas,
machonas, desnudam os ombros, reinvindicam o direito ao voto. Enquanto
isso, aos milhões, as massas descobrem o tempo livre, os hobbies, os
esbanjamentos e os prazeres reservados no passado a uma dúzia de príncipes
e marqueses; compositores escrevem rapsódias inspiradas em ruídos
metálicos, nos estrondos rítmicos dos trens; no lago Michigan, amontoam-se
multidões de banhistas dominicais e, das colinas de Hollywood, Rodolfo
Valentino, um imigrante italiano nascido em Castellaneta di Taranto,
vestindo os trajes brancos de um xeque, magnetiza o mundo com seu “olhar
assassino” de míope dispensado do serviço militar. Tudo acontece sob outro
olhar, o olhar vazio de dois olhos azuis gigantescos que, do alto de um
enorme cartaz publicitário, propiciam com sua indiferença suprema o
despertar do mundo ressuscitado.
Claro, tudo isso ocorre nos Estados Unidos, além-mar, mas aqui em Milão
o século também ressoa. Na Lombardia, acaba de ser inaugurado um traçado
rodoviário destinado a dar vazão ao tráfego automobilístico entre Milão e as
zonas turísticas dos lagos de Como e Varese, e há quem diga que se trata da
primeira “autoestrada” do mundo, há quem diga que se trata da primeira
especialmente concebida para os bólides metálicos impulsionados pelos
incansáveis motores a explosão, e não para as carroças puxadas por animais
esgotados. Há até quem diga que não será o patriotismo o salvador da
Europa: os americanos a salvarão para transformá-los em um grande mercado
de consumo de massa dos novos produtos da sua indústria.
Tudo isso se dá lá fora e, aqui dentro, na galeria de arte de Lino Pesaro, a
voz de Benito Mussolini celebra o novo século, o século italiano: “Mil e
novecentos é um ano importante porque marca a entrada de grande parte do
povo italiano na vida política. Não é possível fazer uma grande nação com
um povo pequeno. Não é possível governar ignorando a arte e os artistas: a
arte é uma manifestação essencial do espírito humano. E, em um país como a
Itália, um governo que se desinteressasse da arte e dos artistas seria faltoso.”
Mussolini, como de costume, alonga as palavras sílaba após sílaba: “Fal-
to-so”. “Ar-tis-tas”. A galeria de Lino Pesaro fica assombrada. Nunca se
ouviu um chefe de Estado atribuir tanta importância à arte, não era sequer
imaginável que Benito Mussolini — o selvagem formidável que subjugou a
Itália com uma folha de jornal e um exército de integrantes de esquadras, o
novo rosto carrancudo do poder que todos cortejam — pudesse ir inaugurar
uma exposição de sete pintores que a pequena multidão de políticos e
industriais presentes mal conhece. Acima de tudo, parece inacreditável que o
“homem forte” da Itália faça isso lendo palavras de outra pessoa em uma
folha datilografada que lhe foi passada por uma mulher. É isto o que
assombra: nas salas elegantes, ressoa a voz estentórea e metálica dele, mas
quem fala é ela. Benito Mussolini é o ventríloquo de Margherita Sarfatti.
Hoje é ela quem triunfa. Ela reuniu sete artistas amigos seus — Funi,
Sironi, Bucci, Dudreville, Oppi, Malerba e Marussig — e decretou o
nascimento de uma nova corrente. Nem deu para arranjar um nome coerente.
Então, a exposição foi simplesmente intitulada “Sete pintores do Novecento”.
Contudo, para ela, está bem claro que esse vernissage deverá marcar um
novo início, um novo Renascimento, o fim do caos futurista, a arte de um
“moderno classicismo” que espelha a hierarquia e a ordem restabelecida por
Benito Mussolini no mundo. Uma arte nova para a nova era fascista. Está
bem claro para ela que a suma sacerdotisa dessa nova arte fascista se chamará
Margherita Sarfatti. Por esse motivo, encerrado o discurso do Duce,
aplaudido brevemente, é ela quem, com um gesto elegante, porém imperioso,
manda que os garçons de luvas brancas sirvam os aperitivos.
A luz brilha através de vidros esmerilhados de luminárias apoiadas em
pesadas hastes de ferro-gusa florido; no entanto, sobre a galeria de Lino
Pesaro estende-se a sombra do poder. Em 3 de novembro, após a marcha
sobre Roma, alguns dos artistas expostos esta noite assinaram um caloroso e
servil cartão de felicitações para Mussolini. Todavia, nem todos estão de
acordo. Anselmo Bucci e Leonardo Dudreville ficaram horrorizados quando
Margherita anunciou a participação do Duce do fascismo no vernissage e,
agora, enquanto na Via Manzoni o champanhe é aberto, os dois dissidentes
brindam vulgarmente com vermute no Caffè Cova, ali perto.
Entretanto, a sombra mais venenosa é outra: a do desamor. Bastaram três
meses de Benito em Roma para que Margherita se sentisse traída. As cartas
de alegre adoração do início do ano já são uma lembrança. Ela ainda lhe
escreve, continuamente, mas agora são palavras de angústia, desdém e
recriminação, palavras sem resposta, cartas para ninguém. A mulher
trabalhadora lamenta a ingratidão, reivindica cargos para si e para o marido,
Cesare, a mulher independente lamenta as cenas despóticas de ciúme do
tirano birrento, a mulher apaixonada se aflige pelas esperas em vão em
quartos desertos:

Caro amigo, estou física e moralmente abatida. Você sabe por quê. Não
aguento mais, não aguento mais, não aguento mais. Adeus! Parto, volto,
para longe, para longe, depressa. Ah, eu gostaria de já ter partido.
Adeus. Tudo deu errado, tudo, até o telefonema que devia ser o
penúltimo. Só importa essa tristeza amarga, feroz, que tenho dentro de
mim.

Como quase sempre acontece, também neste caso a grande história da


paixão se esmiúça logo na pequena crônica dos pobres amantes. Uma
enxurrada de despedidas, cenas absurdas, ignóbeis, indignas,
arrependimentos repentinos, impulsos de sacrifícios, pressentimentos
lastimáveis: “Amor, você é infinitamente elegante. Eu vi hoje, quando me
esforçava para ser alegre esta noite, que você me olhava com olhos fundos de
tristeza e piedade. Obrigada, amor, por aquela tristeza e piedade.”
Ela oscila. Às vezes, se proclama pronta para o sacrifício de si mesma,
disposta a deixar todo o mundo lá fora “cronometrando e espiando”, para se
contentar em poder apertar entre os braços seu amor, mesmo que por poucas
horas, para poder “saciar um pouco a fome que sente por ele”, seu “grande
lobo selvagem”, e vice-versa. Outras vezes, ela se obstina e reivindica
independência, respeito, dignidade, o direito de dividir o poder: ele na
política, ela na arte.
Então, ela pede mais uma vez que ele a autorize a partir em viagem para a
Tunísia com o filho Amedeo, uma outra peça da sua aventura de mulher livre,
de intelectual voraz, mal ocultada atrás do pretexto banal de um estudo sobre
os problemas da escola, sobre os hospitais, sobre o mercado imobiliário nos
territórios de além-mar. Ele — amante possessivo, ciumento, despótico —
nunca lhe deu permissão. Mas a enxurrada continua, no fim todos se
arrependem, todos choram, até ele chora — por incrível que pareça —, então,
no fim, ele a deixa sozinha em seus quartos desertos ocupando-se de história
da arte porque tem mais o que fazer: ele tem a história do mundo a fazer.
Assim, quando chega a primavera, o “grande lobo selvagem” autoriza a
própria amante a partir para a África, e Margherita vai.
Nosso aplauso ao jovem chefe do governo [...] o Homem
que saberá avaliar com justiça as forças da nossa Arte
dominante no Mundo.

Homenagem feita a Benito Mussolini por poetas,


romancistas e pintores, Il Popolo d’Italia,
3 de novembro de 1922.
Carrà, Funi, Marinetti, Sironi (entre outros)

Dê-me a ternura porque ela é minha. Fora isso, peço apenas que não se
ocupe da minha vida exterior para diminuí-la, restringi-la, sufocá-la com uma
série de proibições absurdas, exigências, desaforos e cóleras e cenas [...] você
tem o grande destino; e a sua tarefa enorme [...] tenho minha vida e meu
trabalho modesto, mas que para mim é sagrado e querido. Peço que você o
respeite, acho que não estou pedindo muito [...].
Poderia ter sido um dia tão bonito! Sozinhos, diante da lareira, todo o amor
era nosso, e todos os amores. Mas você quis derramar em mim todos os
venenos! A violência, as injúrias, as insinuações [...]. Depois, você se
arrependeu e ficou choroso e confuso [...] suas lágrimas com as minhas, você
teve seus grandes gestos, sublimes, dos quais só você é capaz [...].

Margherita Sarfatti, carta a Benito Mussolini, 1923


Benito Mussolini
Roma, 17-23 de abril de 1923

O palácio romano do conde Santucci tem duas entradas. Pela da Via del
Gesù, entra um ateu, materialista e anticlerical que poucos anos antes
desafiou Deus publicamente concedendo-lhe, a fim de provar sua existência,
dois minutos para fulminá-lo; pela outra, em Piazza della Pigna, entra o
cardeal Gasparri, um homem que serviu a Deus durante toda a vida traindo
todos os dias sua cidade celeste pela terrena. Os dois entram separados e
separados saem do Palazzo Guglielmi, silenciosos, apressados, atravessando
vestíbulos e escadarias desertas.
A conversa entre Benito Mussolini — até ontem blasfemador compulsivo,
anticlerical e defensor do amor livre — com o secretário de Estado do
Vaticano se dá sem testemunhas. Dela não participa nem mesmo o anfitrião,
o senador católico Santucci, presidente do Banco di Roma. Ninguém deve
saber e ninguém saberá o que foi dito ali, deve permanecer e permanecerá um
segredo. Sabe-se apenas que o encontro se prolonga. E que, ao sair, o
secretário de Estado da Santa Sé, chegando em Piazza della Pigna, diz-se
satisfeito pelo seu encontro com o Duce do fascismo.
As negociações secretas iniciadas há meses pelo presidente do Conselho de
Ministros com o alto escalão do Vaticano para uma reconciliação com a
Igreja são uma carta na manga no braço de ferro que o opõe ao Partido
Popular, o partido político dos católicos italianos. Ao nível secreto,
corresponde a ação manifesta do governo que assina, uma após outra,
concessões ao Vaticano dissimuladas de medidas técnicas: equiparação das
taxas escolares, retorno dos crucifixos às salas de aula, obrigatoriedade do
ensino religioso, escolha dos professores por parte das autoridades
eclesiásticas e, o mais importante, isenção do imposto extraordinário sobre o
patrimônio dos seminários. Mussolini está pronto para conceder ao papa isso
e muito mais para se livrar de dom Sturzo, o fundador do partido dos
católicos, pelo qual sente um incômodo insuperável que beira a repulsa física.
“É hora de acabar com os padres que fazem política”, repete muitas vezes
Mussolini em segredo para Cesare Rossi. E acrescenta comentários que seu
colaborador mais próximo, sempre ao seu lado — agora no delicado papel de
chefe da assessoria de imprensa da presidência do Conselho de Ministros —,
jamais poderia divulgar ao público: “Dom Sturzo, esse padre politiqueiro e
disforme que nunca celebra uma missa e anda por aí manipulando a baixa
política.”
Mussolini o odeia a ponto de, após a marcha sobre Roma, apesar de incluir
os populares no seu governo, ter se recusado a receber Sturzo, o fundador do
partido deles. Gritou para Rossi, que insistia que Mussolini concedesse a
audiência, com uma regurgitação do seu anticlericalismo juvenil: “Está
absolutamente fora de questão eu receber aquele senhor. Inseri no meu
governo alguns ministros que julgo idôneos e qualificados, mas não pretendo
me tornar uma marionete nas mãos deles. Quanto a dom Sturzo, considero-o
um homem nocivo ao funcionamento de qualquer governo. Chega dessa
eminência parda! Os padres ficam bem nas igrejas. Não devem arrastar suas
batinas nas antessalas dos ministérios!”
Mas, além do ranço pessoal entre os dois seres humanos irredutíveis, a
dissidência é política. A fundação por parte de dom Sturzo, filho da grande
aristocracia rural siciliana, de um partido de católicos também em 1919 foi o
acontecimento histórico mais importante desde os tempos da Unificação da
Itália, em conjunto com a fundação dos Fasci di Combattimento por parte de
Benito Mussolini, filho do ferreiro socialista de uma aldeia da Romanha. Até
aquele momento, o papa proibira que os católicos votassem nas eleições e
participassem da vida política. A partir de então, o partido deles — com seus
110 deputados, eleitos uniformemente em todo o país — se tornou o fiel da
balança do Parlamento. Os deputados católicos são indispensáveis à
formação de todas as coalizões governamentais, provocam e decidem as
crises. Por vontade de dom Sturzo, eles impediram, na primavera de 1922, o
retorno de Giolitti, abrindo caminho para os fascistas. Contudo, agora o padre
siciliano, após tê-los favorecido antes da marcha sobre Roma e ter apoiado
abertamente o governo deles depois da marcha, se tornou o único verdadeiro
adversário dos fascistas em sua conquista plena do poder.
Todavia, o partido dos católicos também está internamente rachado. A
direita, próxima das hierarquias vaticanas, é a favor da plena colaboração
com Mussolini e participa do seu governo com ministros e subsecretários. A
esquerda, expressão das ligas camponesas “brancas”, alvejada de forma
constante pelos membros das esquadras, é radicalmente contrária. O centro,
presidido por dom Sturzo e pelo seu jovem secretário Alcide De Gasperi, é a
favor de uma colaboração condicionada à aceitação das razões éticas dos
católicos e à sua total autonomia em relação aos fascistas.
O congresso decisivo do Partido Popular tem início em Turim em 12 de
abril. Em jogo não está apenas a unidade dos populares, mas também a
unidade dos católicos italianos. Dom Sturzo, embora não se manifeste
abertamente, prevalece. A ordem do dia votada pela maioria em 15 de abril
marca sua clara vitória: a colaboração dos populares com o governo de
Mussolini está condicionada ao respeito da autonomia deles, da integridade
do Parlamento, das liberdades constitucionais e, sobretudo, à salvaguarda de
uma lei eleitoral do tipo proporcional.
A verdadeira aposta é esta: a reforma eleitoral. Mussolini pode manter o
Parlamento sob cabresto com a ameaça da violência e da sua dissolução, mas
conta com uma bancada de apenas 36 deputados fascistas. Para que o seu
poder se torne estável e absoluto, são necessárias novas eleições e uma lei
eleitoral que lhe proporcione uma maioria sólida, um controle total sobre os
aliados indóceis e também sobre os fascistas dissidentes. Desde fevereiro,
portanto, não se fala de outra coisa: a reforma eleitoral.
O Grande Conselho do Fascismo encarregou uma comissão interna do
estudo das diversas possibilidades. Os figurões liberais do Sul e os rases
fascistas das províncias queriam um sistema com colégio uninominal para
garantir o voto de suas clientelas locais. Farinacci posicionou-se abertamente
a favor desse sistema. Mussolini, por sua vez, quer um sistema majoritário
baseado em chapas nacionais com prêmio para o partido com maioria
relativa. Giacomo Acerbo, subsecretário da presidência do Conselho de
Ministros, está estudando uma lei que atribua dois terços das cadeiras
parlamentares ao partido que superar 25% dos votos, provavelmente o
Partido Nacional Fascista. Essa lei entregaria o Parlamento e o país ao seu
Líder, Benito Mussolini. Seus efeitos morais seriam explosivos,
devastadores: toda oposição, externa ou interna, seria aniquilada; toda
reivindicação de autonomia dos aliados, sufocada. Quem quisesse ter a
esperança de voltar ao Parlamento deveria aceitar a candidatura nas chapas
nacionais fascistas e Mussolini, do seu quarto no segundo andar do Grand
Hotel de Roma, poderia nomear a seu bel-prazer os dois terços com um
simples risco de caneta, decidindo a posição dos candidatos nas chapas. Para
o Duce, a aprovação dessa lei representaria a coroação do seu sucesso
pessoal, a autêntica tomada do poder. Seria, enfim, a maravilha das
maravilhas.
No entanto, dom Sturzo quer a lei proporcional. E infelizmente seus 110
deputados podem impô-la. O congresso do partido católico, encerrado em 15
de abril em Turim, deixou tudo às claras.
Em 17 de abril, Mussolini convoca Stefano Cavazzoni, o último ministro
do Partido Popular após a morte de Tangorra, com os subsecretários
católicos. São todos da direita do partido, saíram derrotados do congresso em
Turim, vencido por dom Sturzo. O presidente do Conselho de Ministros lê
para eles uma declaração na qual agradece a “leal e diligente” colaboração e
lhes restitui “a mais completa liberdade de ação e movimento”. Em outras
palavras, o Duce os eliminou.
Cavazzoni não tem escolha a não ser pôr as pastas à disposição do chefe do
governo. Assina uma carta de renúncia em branco:
— Presidente, os elementos responsáveis do Partido Popular compreendem
toda a necessidade de colaborar com o governo.
— Cavazzoni, eu não duvido, mas preciso de um esclarecimento mais
explícito da situação de vocês.
O tom de Mussolini agora é conciliador. Em troca da ratificação de
ministros e subsecretários católicos, o Duce pede um voto a seu favor ao
grupo parlamentar popular, convocado para 20 de abril. Cavazzoni promete
colaborar.
— Muito bem. Então, depois do voto, reservo-me o direito de tomar
decisões.
A reunião termina.
Em 20 de abril, Cavazzoni cumpre a promessa. Il Popolo d’Italia anuncia
triunfante o voto do grupo parlamentar popular: “Plena e leal colaboração
com o governo fascista.”
Mas Sturzo, embora traído por seus ministros, não desiste: mantém suas
condições para o apoio ao governo. Passam-se mais três dias e Mussolini
surpreende a todos. Cesare Rossi é o primeiro a ficar pasmo quando o Duce
pede que ele comunique que, apesar de seu ato de submissão, o presidente do
Conselho de Ministros aceitou a “renúncia” de Cavazzoni e dos vice-
ministros do Partido Popular. O Parlamento começa a tremer novamente.
Diante da resistência de Sturzo, Mussolini fez sua escolha: volta ao jogo
duro, à ação da força. Foi o que ele escreveu com todas as letras no número
de março de Gerarchia: neste novo século, do qual é filho, força e consenso
são uma coisa só. A liberdade é um meio, não um fim. Como meio, deve ser
controlada. Para controlá-la, é preciso força.
Portanto, Benito Mussolini troca outra vez de máscara. O conciliador
moderado, que depois da marcha sobre Roma pregava a “normalização” aos
seus rases rebeldes, cede novamente ao belicoso cabo de honra da Milizia per
la Sicurezza nazionale. Agora chega de minuetos, volta à cena o titã que, no
intervalo de um mês, no Scala, recebido por Toscanini, deleita-se com o
aplauso unânime da plateia, dos camarotes e das galerias; o vanguardista que
inaugura na Galleria Pesaro de Milão a exposição “Novecento Italiano”, com
curadoria de Margherita Sarfatti, para revelar ao mundo a arte do novo
século; o pontífice laico que, com fortes golpes de picareta, inicia a
construção da autoestrada de Milão até os lagos; o patriota que se dirige aos
italianos da América do Norte enquanto assina a convenção para a instalação
de cabos telegráficos através do oceano entre a pátria-mãe e o novo
continente.
Diante de tudo isso, a liberdade é sem dúvida superestimada. Chega de
padres na política.
A liberdade é uma divindade nórdica, adorada pelos anglo-
saxões [...]. O Fascismo não conhece ídolos, não adora
fetiches: já passou e, se necessário, voltará tranquilamente a
passar por cima do corpo decomposto da Deusa Liberdade
[...]. A liberdade hoje não é mais a virgem casta e severa pela
qual combateram e morreram as gerações da primeira metade
do século passado. Para as juventudes intrépidas, inquietas e
ásperas que se aproximam do crepúsculo matinal da nova
história, há outras palavras que exercem um fascínio muito
maior, e elas são: ordem, hierarquia, disciplina.

Benito Mussolini, “Força e consenso”,


Gerarchia, março de 1923
Italo Balbo, Amerigo Dùmini
Roma, 29 de maio de 1923

Quando, vestindo o uniforme inventado por ele mesmo — camisa preta,


calças militares, paletó dos Arditi com as chamas pretas, barrete —, na
função de comandante-geral da Milizia per la Sicurezza nazionale, Italo
Balbo viaja sem parar por todas as províncias da Itália, até as mais isoladas,
para enquadrar membros relutantes ou desenfreados das esquadras, e, com
ódio ou com admiração, amigos e inimigos começam a chamá-lo de
“generalíssimo”. Ele deixa. No fundo, os outros dois comandantes-gerais se
omitem — De Bono, tragado pela função de chefe da polícia; De Vecchi,
atolado na subsecretaria de Tesouro e Pensões de Guerra —, e ele, com 27
anos, ganha um salário mensal de 3 mil liras, equivalente ao de um general de
corpo do Exército e, sobretudo, comanda uma armada de 150 mil homens.
Isso é mais do que suficiente para reacender o frenesi depois dos maus
humores de fevereiro, embora o novo papel de normalizador atraia para
Balbo o rancor de muitos integrantes das esquadras que o idolatravam como
surrador. Contudo, o problema é que aqueles 150 mil homens não são
soldados, e a Milizia per la Sicurezza nazionale não é um exército.
Faltam o vestuário, os alojamentos, os transportes; faltam também os
mosquetes, e os 30 milhões alocados para despesas extraordinárias quase se
esgotaram em uniformes. Faltam, sobretudo, a precisão, a competência, a
iniciativa, falta a disciplina. Ele o disse claramente em abril, no Teatro Lirico
em Milão: chega de discussões sobre o caminho a seguir, tudo o que os
fascistas devem fazer é “caminhar e agir”. Mas, por anos, ele, antes de todos
os outros, ensinou aqueles homens a responder “não me importa”, a se exaltar
na rebelião, ensinou a eles a vida como guerrilha. Agora é difícil chamá-los
de volta à ordem, quando até os chefes se destroçam como nas brigas de
cachorros.
No dia 25 de abril, em Roma, em um gramado do outro lado da Porta del
Popolo, até duas figuras de destaque do fascismo como Francesco Giunta —
agora alçado a secretário do Grande Conselho — e Cesare Forni, o rás da
Lomellina, se enfrentaram com sabres por causa de rivalidades pessoais, de
mulheres, de controle territorial, de ideais traídos, tudo misturado a esmo.
Depois do duelo, o capitão Forni, uma lenda das esquadras, com a artéria
labial rompida, a fim de protestar contra a corrupção dos fascistas romanos,
renunciou ao cargo de comandante da milícia da primeira zona, a mais vasta,
a mais importante, a que cobre todo o triângulo industrial. É a mesma coisa
por toda parte: apetites desenfreados, conflitos, discórdias, paixões
individuais, objetivos inconfessáveis. Agora que os bolcheviques foram
eliminados — entre dezembro e fevereiro, De Bono mandou prender todos os
chefes do Partido Comunista —, a Itália está dividida em feudos fascistas em
conflito entre si.
Agora é a vez de Alfredo Misuri. Balbo o conhece bem desde que, depois
de fundar o Fascio de Combattimento de Perúgia em janeiro de 1921, Misuri
se tornou chefe das esquadras na Úmbria. Mas, em 1922, antes da marcha,
por rivalidade com Bastianini, outro líder das esquadras de Perúgia, Misuri
passou para o lado dos nacionalistas. Agora, porém, os nacionalistas
confluíram para o Partido Nacional Fascista, e Misuri se descobre novamente
fascista contra a sua vontade. Quatro dias depois da fusão de fascistas e
nacionalistas, a junta executiva do partido o expulsou pela dissidência
anterior. Tendo sempre permanecido pessoalmente devoto de Mussolini, o
filho pródigo, contra a própria vontade, anunciou-lhe que faria na Câmara dos
Deputados um discurso de “oposição fascista”. O Duce o advertiu,
ameaçando mandar prendê-lo. Misuri replicou apelando para as liberdades
constitucionais: “Digam ao presidente que, entre mim e ele, está o Estatuto.”
Na manhã de 29 de maio, a Câmara dos Deputados está apinhada de
deputados e do público. Todos estão ali para escutar as críticas de Alfredo
Misuri. De fato, é a primeira vez que se espera um discurso de oposição por
parte de um fascista. Entre as bancadas, passa de mão em mão a edição
daquele dia do Cremona Nuova, na qual Roberto Farinacci, para que a
revolução seja completada e todo dissenso seja domado, teoriza abertamente
a respeito da necessidade de uma nova campanha de violência das esquadras.
Dessa vez “definitiva”. O artigo se intitula “Segunda onda”.
Como para dar razão ao rás de Cremona e oferecer a si mesmo como
primeiro alvo, Alfredo Misuri, com entradas profundas nas têmporas, o rosto
perfeitamente barbeado, a fala apurada de um professor de zoologia, levando
em consideração sua fidelidade pessoal a Mussolini, em meio ao silêncio
absoluto, ataca com a cabeça baixa: o fascismo está se degenerando — grita
Misuri —, meio milhão de afiliados subjugaram o núcleo saudável, os
“simoníacos” de última hora agora poluem a administração pública. O Estado
deve ser separado do partido, a Milizia per la Sicurezza nazionale deve ser
incorporada às fileiras do Exército, a função democrática do Parlamento deve
ser restabelecida, a base do governo, ampliada a outros partidos nacionais.
O discurso de Misuri suscita uma enorme impressão. Muitos parlamentares
correm para parabenizá-lo. Como se Mussolini não estivesse ali sentado a
observá-los atrás da mesa da presidência do Conselho, alguns fascistas até
parabenizam-no: o subsecretário para a Agricultura Corgini e cinco outros
deputados.
Cesare Rossi, ao sair da tribuna da imprensa, ameaça abertamente o
dissidente: “Esta noite, você vai ver!”
O Duce está furioso. Nos corredores de Montecitório, cercado pelos mais
íntimos, balança a cabeça, cruza os braços, depois os descruza, apoia-os nos
quadris:
— Intolerável... é intolerável. O partido não pode suportar um discurso
como esse. Ele deve ser punido. Imediatamente. Inexoravelmente.
— Deixe comigo. — Balbo saltou para a frente como se estivesse com
molas. — Arconovaldo Bonaccorsi está em Roma. Vou acioná-lo.

***

Amerigo Dùmini ocupa o banco traseiro com dois membros das esquadras
bolonhesas de Bonaccorsi, do lado da calçada. Pegaram o Lancia K em um
dos pátios do palácio do Viminale, ainda em construção, projetado para se
tornar sede da presidência do Conselho de Ministros. Quando o professor
Misuri enfim sai do Parlamento, a altas horas, com o motor girando baixo,
seguem-no passo a passo pelas vias próximas ao Montecitório. Então
estacionam em um cone de sombra entre as luzes da Via Due Macelli.
O carro é espaçoso, mas Arconovaldo Bonaccorsi, alto, grande,
transbordante, satura o espaço do banco do carona. Passa a língua no lábio
superior, permanentemente desfigurado por uma ferida, e espia, do outro lado
da rua, a saída do mictório público de Vico dello Sdrucciolo. Inalada dali, a
primavera romana fede a mijo.
Bonaccorsi acende um cigarro. A janela está aberta, ele fuma com a mão
direita. A esquerda empunha, abandonado entre as coxas, um cassetete grosso
como o meão de uma carroça. Empunha-o com naturalidade: o bolonhês
integrante das esquadras fez isso a vida toda, desde quando, aos 20 anos,
durante o “biênio vermelho”, servia nas alas do Exército usadas para a
manutenção da ordem pública nos confrontos de rua com os socialistas.
Bandeado para o outro lado dos tumultos, fascista desde San Sepolcro, o
surrador profissional foi preso pela primeira vez já em novembro de 1919,
quando, tendo ido a Milão para as eleições com Arpinati, o “férreo
Bonaccorsi”, como adora ser chamado, atirou dentro do Teatro Gaffurio de
Lodi. Dez meses na cadeia. Desde então, nunca mais parou: dezenas de
prisões por lesões, agressões, violências políticas, dezenas de solturas,
dezenas de feridas, até aquela permanente na boca que lhe dá o aspecto de um
menino aberrante, nascido com lábio leporino, como se a violência o tivesse
marcado já no colo materno com uma má coesão do tecido cartilaginoso por
um sinal do destino.
Quando Alfredo Misuri desponta do abrigo do mictório público, Dùmini
nem tem tempo de sair do automóvel: Bonaccorsi já está na rua. Agora ele
segura o bastão com a mão direita, não o esconde, não o ostenta, brande-o
com absoluta desenvoltura, como se fosse um mero prolongamento do braço.
Misuri, que ainda remexe na braguilha das calças, não o vê chegar.
O golpe na cabeça ecoa no beco estreito. Uma só pancada e o agredido vai
ao chão. Os três membros das esquadras bolonhesas caem em cima dele.
Atacam-no com bordoadas e chutes. Misuri se protege como pode, sem força,
com os braços. Então, Bonaccorsi se inclina e, aproximando a laceração do
falso lábio leporino a um antebraço da vítima, arranca-lhe a mordidas uma
faixa de pele que ainda cheira a mijo.
Uma patrulha dos carabineiros chega às pressas. Dùmini desembainha uma
faca e a agita a esmo. Depois, resmungando que quer matar todos os inimigos
do fascismo, refugia-se em um bar das redondezas, o Caffè Cilario.
Bonaccorsi não se deixa intimidar: “Vocês não podem me prender“, grita,
“sou seu superior, sou um comandante da Milizia per la Sicurezza nazionale.”
O deputado Misuri fica caído, em meio ao próprio sangue.
No dia seguinte, 30 de maio, durante a votação a respeito do Exército
provisório, seus colegas do Parlamento, como se nada tivesse acontecido,
confirmam a confiança no governo com 238 votos a favor e 83 contra.
Giacomo Matteotti
Siena, 2 de julho de 1923

O pálio não é um folclore exumado para curiosos ou turistas, o pálio é a


vida do povo de Siena ao longo do tempo.
Desde 1644, esses 12 cavalos maremmanos, com seu casco grande e o
baricentro baixo, animais de trabalho duro suportado com os camponeses,
acostumados aos despenhadeiros e às matas, montados a pelo por um jóquei
leve como uma pena, enfrentam a curva fechada de San Martino para dar 3
voltas ensandecidas na Piazza del Campo em 3 minutos, 1 volta por minuto.
E há 3 séculos a cidade de Siena, dividida em 17 bairros, se inflama ao longo
daqueles 3 minutos de corrida selvagem no fogo ardente de um povo que
resgata em poucos instantes de tripúdio existências inteiras de submissão
apática, de costas arqueadas e de gerações anônimas.
Alguns socialistas contestam a prática do pálio. É verdade, por exemplo,
que Modigliani, corajoso companheiro de partido, em um comício para os
mineiros de Siena, censurou a brutalidade espetacular dessa corrida furiosa
que muitas vezes sacrifica os cavalos, mas, mesmo assim, Giacomo Matteotti
levou a esposa, em um raríssimo momento de lazer, para assistir àquela
maravilhosa manifestação do ardor popular mesclado à fúria animal. Para a
ocasião, Velia tirou do guarda-roupa um daqueles vestidos sóbrios e
elegantes que nunca consegue usar ao lado do marido. Agora pode se
pressionar contra seu braço sob as abóbadas em cruz de Loggia della
Mercanzia, atrás da Piazza del Campo, para assistir com ele, escondida entre
a multidão, ao cortejo histórico encenado pelos 17 distritos.
Não, Modigliani se engana. Os senhores da burguesia, os capitães da
indústria, os magnatas, os proprietários rurais aproveitam aquele espetáculo
brutal ao abrigo de algumas sombrinhas nas tribunas de honra montadas em
volta da praça ou nas sacadas dos palácios que a circundam, mas o pálio é do
povo que se aglomera no centro da praça, atordoado pelo sol a pino,
empolgado até a desordem, cercado por cavalos que correm à sua volta na
balbúrdia desenfreada. Sim, o protagonista do pálio é o povo! É verdade: aqui
também os senhores ficam no alto e o povo, embaixo, mas, se você olhar com
atenção, vai perceber que no pálio, como na história, por mais que eles
possam dominá-la, determiná-la, até tirá-la, os senhores são apenas
espectadores da vida do povo que sofre e espuma suor na terra de turfa ali no
meio do campo.
Nunca como hoje o povo foi o elemento de Giacomo Matteotti. A multidão
anônima o acolhe, o esconde, o protege. O convidado de honra para o qual as
autoridades de Siena não poupam reverências é o filósofo Giovanni Gentile,
ministro da Educação Pública, que acabou de conquistar a aprovação da sua
reforma das escolas, toda centrada na exaltação dos estudos humanísticos,
alardeada por Benito Mussolini como grande sucesso do seu governo e muito
elogiada até mesmo por Benedetto Croce. Parece que em Roma querem tirar
a universidade de Siena, e o parecer do ministro — em visita oficial na
segunda cidade toscana — será decisivo para evitar o rebaixamento. Portanto,
todas as atenções dos líderes fascistas estão voltadas para Giovanni Gentile, e
Giacomo Matteotti pode afundar felizmente no abismo amniótico do seu
povo.
Há meses sua intransigência envenena sua vida também dentro do partido.
Muitos, em especial entre os homens do sindicato, estão propensos a
colaborar com os fascistas na esperança de que o passado socialista de
Mussolini e sua tática de normalização possa beneficiar os trabalhadores. Há
décadas demais aqueles socialistas “de palácio” se habituaram a todos os
acordos parlamentares. Não entendem que a marcha sobre Roma marcou o
início da ditadura, não o fim dos conflitos. Matteotti não se cansa de repetir
que aqueles companheiros não têm ouvidos para escutar ou não querem ver.
Cometemos sempre o erro de esperar a catástrofe do futuro, depois, em uma
manhã, acordamos com uma sensação de sufocamento que aperta nosso
peito, olhamos para trás e descobrimos que o fim ficou para trás, o pequeno
apocalipse já aconteceu e nós nem percebemos. A “segunda onda”, agora
abertamente invocada por Farinacci, já os submerge.
Para demonstrá-lo, Matteotti está se empenhando há meses, com a minúcia
de sempre, em um desgastante trabalho de denúncia de todas as violências
fascistas. Ele as anota uma a uma nas páginas de um livro que pretende
publicar no fim do ano com o título Un anno di dominazione fascista. Até
hoje, já anotou e documentou 42 assassinatos, 1.112 espancamentos,
agressões, ferimentos, 184 devastações de edifícios e domicílios, 24
incêndios de jornais. Entretanto, a cada novo item, o relator da denúncia
torna-se cada vez mais solitário. O círculo da solidão se estreita à sua volta,
mesmo dentro do partido do qual ele é secretário, à medida que a lista das
violências aumenta. Até Turati o convida a desistir do projeto do livro, acusa-
o de “hostilidade pré-concebida” em relação aos companheiros mais
moderados. Para conseguir manter sua posição, só resta ao jovem secretário
isolado insistir nas ameaças de renúncia. Às vezes, parece que o único
caminho para convencer os indiferentes de sua própria ilusão é atiçar a
represália fascista contra si mesmo.
O outro único caminho para salvar essa Itália cada vez mais perdida é ir
para o exterior. Com o início do primeiro ano de dominação fascista,
Giacomo Matteotti passou a multiplicar suas viagens ao exterior para formar
alianças com os companheiros franceses, belgas, alemães, ingleses. Em
fevereiro, esteve em Lille, no congresso dos socialistas franceses; no mês
seguinte, em Paris; então, foi a Berlim encontrar os social-democratas
alemães. Mas esse caminho também foi bloqueado. Após a viagem à
Alemanha, Mussolini cancelou seu passaporte.
Agora, sob a Loggia della Mercanzia, Siena se prepara para o evento. O
desfile com os gonfalões dos distritos e as centenas de figurantes fantasiados
vai se esvaziando. Daqui a pouco, a corda vai ser esticada e os cavalos
começarão a entrar na praça, preparando-se para a largada. Giacomo e Velia
Matteotti, abraçados, seguem de bom grado a multidão em festa.
Mas alguém grita seu nome. Grita como se estivesse anunciando a chegada
de um lobo, de um ladrão. É o nome de um inimigo.
Os homens que o reconheceram nem estão trajando a camisa negra, apenas
as cores berrantes de um distrito. O milhafre, o porco-espinho, o ganso,
talvez a onda, a pantera, a tartaruga. De qualquer forma, estão em cima dele.
Velia se agarra ao braço do marido, ele a protege com o corpo. O povo não
repara, as brigas entre os torcedores de cada distrito são constantes.
Desta vez, porém, há uma mulher em meio à confusão, uma senhora
distinta. A estranheza é notada, alguém para. Mesmo para a belicosidade
facciosa da rivalidade entre os distritos, aquilo é uma vergonha: não se toca
em mulheres.
Uma viatura da polícia abre caminho entre a multidão. Em meio ao
constrangimento geral, os policiais põem a salvo os dois senhores distintos
para que a corrida possa começar. Enquanto Giacomo e Velia Matteotti são
escoltados até a estação, expulsos, banidos da cidade em festa, o tumulto da
Piazza del Campo sobe até as colinas de argila e as vinhas ao redor de Siena,
que secam e fermentam sob o sol de julho.
À noite, Giacomo Matteotti volta a trabalhar em seu livro, acrescenta uma
conta ao rosário da dominação fascista. Na data de 2 de julho, está escrito:
“Siena — O deputado Matteotti, enquanto passa com a família, é agredido
pelos fascistas e obrigado a deixar a cidade. A polícia assiste inerme.”
Só isso, nenhum outro detalhe é fornecido, nenhum comentário é redigido.
Mas só constatamos que essa gente [os socialistas] é tão
profundamente ignorante que ainda não entende em que
mundo vive. A verdade é que esses seres são deixados
provisoriamente em circulação; a revolução fascista, mais
cedo ou mais tarde, vai agarrá-los, e então, à morte civil,
também se sucederá a física. E que assim seja.

Artigo sobre a expulsão de Giacomo Matteotti do


pálio, La scure, órgão da Federação Fascista de Siena,
3 de julho de 1923
Roma, 15 de julho de 1923
Parlamento italiano, Câmara dos Deputados

Aqui aguardam a “segunda onda” fascista. A tensão da espera chega a


ponto de quase transformá-la em uma invocação, uma prece muda ao deus
surdo da história: se tiver de vir, que venha logo essa “segunda onda” e nos
carregue consigo. Esperam-na principalmente os salvos, os que se safaram da
primeira.
O plenário de Montecitório está abarrotado, tanto nas bancadas quanto nas
tribunas do público. Discute-se a reforma da lei eleitoral — que entregaria o
Parlamento aos fascistas —, e os deputados liberais, democratas, socialistas e
populares são convocados para levantar uma última barreira. A Comissão
Parlamentar aprovou de surpresa o projeto de lei assinado por Acerbo, que
prevê a atribuição de dois terços das cadeiras à chapa que obtiver a maioria
relativa e, se o plenário não rejeitá-lo agora, a próxima eleição poderá ser a
última.
Fora do plenário, há semanas os líderes do Partido Nacional Fascista
ameaçam, mais ou menos explicitamente, uma segunda onda de violência em
caso de derrota. Dentro do plenário, encostam o ouvido no chão para
pressentir o fragor nas vibrações surdas da terra, erguem o olhar para as
tribunas em que os membros das esquadras trajando camisas negras brincam
com seus punhais ao lado das senhoras em toalete de verão. A incessante
tensão nervosa está levando a maioria ao esgotamento. É verdade que a vida
não tem sentido sem um pequeno apocalipse no horizonte, mas também é
verdade que não se pode viver vaticinando todos os dias os sinais do fim
desde o primeiro café tomado pela manhã.
Os deputados do Partido Popular foram convocados em peso para barrar o
projeto. Já se sabe que os liberais que apoiam Giolitti decidiram aceitar o
monstruoso sistema eleitoral proposto por Acerbo com a usual esperança de
que ele sirva para domesticar o fascismo, e que até muitos socialistas
reformistas estariam prontos para colaborar justificando-se com o velho
argumento da proteção dos trabalhadores. Os populares, por sua vez, estão na
bifurcação de sua história política: em 10 de julho, Dom Luigi Sturzo, a
quem, em nome da Santa Sé, o monsenhor Pucci exortou a “não criar
apuros”, foi obrigado a renunciar. Mussolini exigiu o fim da carreira política
de Sturzo, e o Vaticano, submetido a ameaças contínuas de represálias contra
as instituições e associações católicas, até mesmo contra as igrejas, cedeu.
Com o banimento do fundador, agora a sobrevivência do partido dos
católicos está nas mãos dos seus deputados. Sem os votos deles, a batalha da
oposição é inútil, e agora a única batalha que pode ser travada é esta: votar
contra. Nada mais. Cada voto pode decidir a vitória ou a derrota, em qual
ponto da batalha vai arrebentar a onda e onde vai começar a ressaca.
Quando, após o relatório da maioria, chega a vez da oposição, Filippo
Turati toma a palavra para pregar os deputados cristãos à sua pequena cruz:
“Hoje vocês são convocados a assinar sua sentença com as próprias mãos.
Hoje vão decidir, ou nunca mais, se serão uma força nova ou se contentam
em continuar como uma pecinha que se move e é habilmente movida neste
miserável tabuleiro de xadrez parlamentar. Serão vocês nossos aliados em um
amanhã não distante ou também teremos de jogar essa herança sobre nossos
modestos ombros? Esse é hoje o dilema da política italiana. Reflitam!”
Das cadeiras centrais, os católicos escutam o apelo do líder dos socialistas
em um silêncio absoluto. Sua tensão é espasmódica. Para quebrá-la, ergue-se
da direita fascista a voz de barítono de Cesare Maria De Vecchi. O escárnio
se dirige a Turati, aos seus olhos pequenos, esbugalhados, à sua testa baixa, à
sua barba de profeta:
“Você é feio demais para bancar a sereia!”
Risos gerais, tumultos à esquerda, vozes ao centro.
Enfim chega a vez dele. O presidente do Conselho de Ministros, o
Excelentíssimo Benito Mussolini, se aproxima da tribuna dos oradores
acompanhado pelo eco da onda. O plenário de Montecitório se transforma na
espiral cônica, madreperolada, de uma concha marinha. Se encostar o ouvido,
você escutará o mar.
Mas Mussolini sorri. Começa com uma tirada espirituosa. Anuncia que
quer informar o plenário das importantes questões de política externa em uma
sessão posterior se “a Câmara não quiser realizar hoje o capricho de morrer
antes do tempo”. Risadas, murmúrios animados, comentários prolongados.
Depois sua voz, em geral cortante, metálica, se suaviza com tons de
comoção. O Duce se declara calmo, comedido, reevoca a gloriosa história
renascentista, dedilha todas as cordas da persuasão. O fascismo não é
contrário às eleições, não é contrário ao Parlamento, quer apenas que as
eleições preencham o hiato entre o Parlamento e o país. O fascismo está
mudando de pele (“É incrível como se modifica o chefe de esquadra que se
torna assessor ou prefeito. Entende que não pode atacar os balancetes das
prefeituras, precisa estudá-los”). Murmúrios de concordância, aplausos do
centro, silêncios. O orador voa alto, sobe até os píncaros da sabedoria
filosófica: “A liberdade existe? No fundo, é uma categoria filosófico-moral.
Existem as liberdades. A liberdade nunca existiu.” Ele também dirige seu
apelo conciliador à oposição, aos populares, aos socialistas (“Vocês sabem
que eu ficaria feliz de ter amanhã em meu governo os representantes diretos
das massas operárias organizadas”). Mussolini, por fim, faz o apelo decisivo,
dirigido à responsabilidade em relação à nação que pede um governo estável,
o fim da era da ansiedade, o apelo às consciências:
“Digo-lhes uma coisa: não deixem que o país tenha mais uma vez a
impressão de que o Parlamento está distante da alma da nação... Porque este é
o momento em que o Parlamento e o país podem se reconciliar... ouçam a
advertência solene e secreta de suas consciências.”
As últimas palavras de Mussolini são recebidas com uma chuva de
aplausos. Aplaudem à direita, mas também na bancada da esquerda. A
ovação se prolonga. O público nas tribunas se une à aclamação. Lá embaixo,
no semicírculo, Giolitti abre caminho entre os deputados que correram para
parabenizar o presidente do Conselho de Ministros e aperta demoradamente
sua mão.
A segunda onda não chegou. Pelo contrário: o mar é uma planície azul,
levemente encrespado por uma brisa suave. Sobre a Itália, resplandece um
agradável dia ensolarado de verão: Benito Mussolini, surpreendentemente,
pôs sua máscara mais conciliadora, urbana, a do estadista equânime. Nas
cadeiras ao centro, ocupadas pelos deputados do Partido Popular, a
debandada.
Às 20h10, o presidente De Nicola reabre a sessão. O plenário está
apinhado, as cadeiras estão todas ocupadas, da extrema esquerda à extrema
direita. O presidente adverte que o governo põe em pauta um voto de
confiança. Ou os princípios jurídicos da reforma eleitoral são aprovados e se
passa à discussão de cada um dos artigos, ou haverá crise ministerial.
Toma a palavra Alcide De Gasperi, secretário do Partido Popular após a
renúncia de dom Sturzo. O plenário faz silêncio, atento:
“Excelentíssimos colegas, peço a divisão da pauta em duas partes.
Votemos em separado na primeira parte ‘a Câmara confirma sua confiança no
governo’ e depois, na segunda, ‘aprova os princípios da reforma eleitoral’.”
Vozerio frenético da bancada fascista, comentários animados em todos os
outros setores. De Gasperi acabou de anunciar que os católicos não vão
ceder. Perfilam-se compactos em uma linha de resistência: estão dispostos a
reafirmar a confiança em Mussolini, mas não a aprovar sua lei eleitoral.
Querem fazer alterações nos artigos. O limiar para o prêmio de maioria deve
ser aumentado para 40%.
São 21h. Após seis horas de sessão, o calor no plenário sufoca. Nas
tribunas, ouve-se apenas o farfalhar de leques e lenços. Nas cadeiras, os
deputados se abanam com folhas de papel.
Entretanto, pede a palavra em nome dos populares o deputado Cavazzoni,
já ministro demissionário do governo Mussolini:
“Tomo a palavra em meu nome e em nome de um grupo de amigos...”
O Parlamento é tomado por gargalhadas. A referência de Cavazzoni ao
“grupo de amigos” é suficiente para desencadear a risada geral em todas as
bancadas. O preâmbulo deixa claras para todos as intenções de Cavazzoni e
dos seus amigos. As risadas graves, amargas, da esquerda têm a soturnidade
baritonal da barragem que desmorona.
Cavazzoni controla os ruídos: “Sempre me mantive obediente à disciplina
do partido, mas há momentos...”
As risadas atropelam novamente sua voz, misturam-se aos murmúrios
enquanto, das cadeiras da esquerda, em volta dele, muitos colegas do seu
partido já protestam agitando os braços.
“... Há momentos em que não devemos trair os compromissos já assumidos
com este governo. Julgo justo, equitativo, digno colocar em votação a
confiança no governo junto à aprovação dos artigos do projeto de lei.”
Rumores, comentários vivazes, protestos do centro. A unidade do Partido
Popular se despedaçou. Depois de Cavazzoni, os socialistas
“colaboracionistas” também tomam a palavra. Anunciam seu voto contrário,
mas fazem questão de deixar claro que isso não implica “a oposição das
associações sindicais que representam”, apolíticas por natureza. Em resumo,
deles também partem distinções minuciosas, apelos às circunstâncias,
concessões. A barragem da oposição se desmantela.
A confiança no governo obtém 307 votos a favor, 140 contra e 7
abstenções. A tramitação para a discussão dos artigos da lei Acerbo, que
prepara a sua aprovação, recebe o voto favorável de 235 deputados, enquanto
139 são contra e há 77 abstenções. É aprovada com o apoio decisivo dos
católicos dissidentes.
Os olhos de todos estão apontados para a cabeça, a essa altura já quase
completamente calva, do triunfador. Emilio Lussu, deputado da esquerda que
em protesto acabou de anunciar aos gritos a própria renúncia, o vê sair do
plenário rindo como uma criança. Mas, no fim do mês, poucos dias mais
tarde, Benito Mussolini completará 40 anos. Mesmo assim ele ainda é o
primeiro-ministro mais jovem da história do mundo.
A cumplicidade de Giolitti no atentado à constituição democrática do país
atinge em cheio o valor histórico do estadista. É não apenas uma fraqueza
condenável, um desnorteamento da consciência, mas um verdadeiro suicídio
político.

Zino Zini, escritor e filósofo, diário 1914-1926


(sobre a aprovação da lei Acerbo), julho de 1923

Na hora do voto dos nossos, faltaram trinta ou quarenta, o que significa


que fomos nós a dar a vitória ao fascismo! [grifado no texto]

Filippo Turati, carta a Anna Kuliscioff, 20 de julho de 1923

Uma espécie de Caporetto.

Comentário sobre a posição dos populares nas


votações sobre a lei Acerbo,
Civiltà Cattolica, 24 de julho de 1923
Eu não sou, Senhores, o déspota que se tranca em um castelo. Eu circulo
em meio ao povo sem preocupações de nenhum tipo e o escuto. Muito bem, o
povo italiano, até este momento, não me pede liberdade. Outro dia, em
Messina, a população que cercava meu automóvel não disse “deem-nos
liberdade”, disse “tirem-nos dos barracos”. No dia seguinte, os municípios da
Basilicata pediram água.

Benito Mussolini, discurso parlamentar, 15 de julho de


1923
Italo Balbo
Ferrara, 24 de agosto de 1923

Dom Giovanni Minzoni, natural de Ravena, era o arcipreste de Argenta.


Durante a guerra, partiu como voluntário para o front como capelão militar.
Recebeu uma medalha de prata.
Ao voltar para os seus camponeses, opôs-se ao fascismo desde o início.
Quando os populares deixaram o governo de Mussolini, os banqueiros e os
proprietários rurais católicos da região de Ferrara, tendo abandonado o
partido, passaram a afluir ao Partido Nacional Fascista. Em Ferrara, todos os
dirigentes do Partido Popular rasgaram a carteirinha. No sul da província,
Dom Minzoni era o único que desejava continuar a educar os jovens católicos
fora da ideologia fascista e organizava os trabalhadores fora dos sindicatos
fascistas. Também o seguiam muitos camponeses socialistas. Dessa maneira,
o pároco de Argenta causou incômodo tanto nas hierarquias eclesiásticas
quanto nos sindicatos “vermelhos”. Ele prosseguiu, tenaz, traçando o próprio
caminho. Em julho, durante uma assembleia de Giovanni Esploratori
organizada na paróquia pelo sacerdote, Minzoni quase chegou às vias de fato
com Ladislao Rocca, o dirigente do Fascio di Combattimento local.
Na quinta-feira, 23 de agosto, Dom Giovanni Minzoni estava voltando
para a casa paroquial na companhia de um jovem aluno. Passavam ao lado do
Instituto de Recreação, em uma rua estreita e escura, por volta das 22h. Na
saleta do cinematógrafo, era exibido o filme de sempre.
Na curva da rua, dois homens saíram da sombra. Uma única paulada,
desferida com toda a força, atingiu sua nuca. Dom Minzoni cambaleou por
um instante e caiu. Com o crânio arrebentado, lutou: conseguiu se ajoelhar.
Deu ainda alguns passos na direção da sua casa, então caiu novamente. Em
definitivo. Carregaram-no e o deitaram na cama do seu quartinho. O médico
se declarou impotente, o tenente dos carabineiros não conseguiu interrogá-lo.
O padre antifascista não podia mais falar, parecia murmurar baixinho
incompreensíveis palavras em latim. Duas irmãs da Caridade rezavam e
choravam inclinadas de cada lado do moribundo. Morreu pouco depois da
meia-noite.
Uma sombra de sangue escuro, denso, escorre da narina direita de
Tommaso Beltrami enquanto relata a Italo Balbo, que chegou às pressas de
Roma, o que havia acontecido. A hemorragia é lenta, lentíssima, incerta entre
a protuberância e o fluxo, imperceptível, tanto que Beltrami não parece se dar
conta de que está sangrando. O ex-lugar-tenente de D’Annunzio em Fiume,
que Balbo nomeou secretário da Federação Fascista de Ferrara, fala de
maneira frenética, convulsa, tomado por incompreensíveis explosões de
euforia. Submetido a interrogatório por Balbo, Beltrami se vira o tempo todo
para trás e olha por cima dos ombros com o sensor alucinado das suas pupilas
dilatadas.
Italo Balbo sinaliza para que ele se cale e pondera a ameaça que aquele
assassino estende sobre seu feudo de Ferrara. Não foi fácil para o
“generalíssimo” Balbo reafirmar seu poder absoluto nos últimos meses. Nas
eleições administrativas de dezembro, após a marcha sobre Roma, os
socialistas nem sequer se candidataram, e os fascistas, sem adversários,
triunfaram em todos os municípios da província. Ele consolidou a aliança
com os proprietários rurais ao rever os impostos municipais em prol deles
depois de ter colocado amigos, parentes e até dissidentes nas principais
funções da administração pública e do partido. Tudo parecia perfeitamente
regulado por sutis partituras orquestradas por seu poder absoluto.
No entanto, chegou a primavera e, com ela, o desemprego dos assalariados
rurais temporários. A fome dos camponeses alimentou a dos dissidentes
fascistas. O primeiro a renunciar foi Brombin, o fundador do Fascio di
Combattimento da cidade, afirmando que não queria “ser escravo da corja
fascista maçônica”. Depois dele, uma avalanche. Primeiro Beltrami
renunciou em protesto contra os mandos e desmandos dos proprietários rurais
que extorquiam os camponeses, depois até o amigo Caretti jogou a toalha
para não se ver “servindo a classe burguesa plutocrática e aproveitadora do
sangue de centenas dos nossos irmãos”. Em Ferrara, difundira-se uma
verdadeira espera messiânica de revolta. Após a surra dada em Misuri, em
alguns muros da cidade surgiu uma pichação: “Viva Misuri, M a Mussolini,
M ao seu facínora Balbo.”
A mão do dissidente não julgou necessário completar a palavra: naquelas
paragens, para invocar a morte do inimigo, era suficiente a letra inicial.
Diante da revolta interna, Balbo aplicou a regra que ele mesmo havia
estabelecido. Ocupado em implementar a disciplina da Milizia per la
Sicurezza nazionale ao movimento nacional das esquadras, manteve-se
aparentemente afastado. Enviou Dino Grandi para ser representante do Fascio
di Combattimento na cidade e mandou que um comandante da milícia de
Perúgia enviasse a Ferrara seis homens de confiança: só peixes pequenos,
mas sem piedade. Arrebentar mandíbulas: essa havia sido a ordem. E ela foi
executada. Os seis membros da esquadra de Perúgia desentocaram, um por
um, os dissidentes fascistas de Ferrara até mesmo nos bordéis da Via Croce
Bianca, considerados pela tradição fascista locais de asilo invioláveis. Com a
absoluta cumplicidade da chefatura de polícia, o sangue se misturou ao
esperma. Até o fim de junho, toda divergência havia sido debelada. Os
dissidentes foram dispersados. Beltrami foi recolocado no comando.
Agora é ele quem relata a Balbo o assassinato de Dom Minzoni, e é para
ele que Balbo dita o comunicado à imprensa que os dissocia dos assassinos,
dois integrantes quaisquer das esquadras, dois vira-latas:
— Exprimimos nosso repúdio aos atos desses miseráveis que, esperamos,
logo serão capturados pela Justiça, miseráveis que nada têm em comum
conosco, embora escondidos entre as nossas fileiras.
Beltrami para de escrever, hesita. Enfim percebe o sangue que escorre das
suas narinas de cocainômano. Limpa-o com a manga do paletó. Balbo faz
sinal para que ele fale.
— A ideia foi de Forti. Maran também está envolvido. Eu mesmo ajudei os
dois a fugir da casa onde estavam escondidos.
Augusto Maran é o secretário do Fascio di Combattimento de Argenta,
Raoul Forti é cônsul da Milizia per la Sicurezza nazionale e amigo pessoal de
Balbo. O “generalíssimo” se espelha, por um instante, nas pupilas dilatadas
de Beltrami. Depois balança a cabeça:
— Vamos abafar o caso.
Benito Mussolini
Fim de agosto de 1923

Levanto, um povoado da costa lígure voltado para o mar ao fim de um vale


coberto de oliveiras, videiras e pinhos, faz parte do léxico familiar deles, das
lembranças de uma vida juntos. Viajavam para lá quando ainda eram pobres,
e Rachele afirma que Edda foi concebida ali. Agora a mulher alugou uma
casa circundada por videiras e o marido conseguiu arranjar um fim de semana
livre em meio aos compromissos como presidente do Conselho de Ministros.
De manhã, assim que acorda, ele gosta de sair de casa já de roupa de banho,
com o torso nu, e ir logo para o mar entre os turistas, que abrem caminho
para sua passagem. Mussolini gosta de oferecer seu corpo, já famoso, aos
comentários das alemãs, das eslavas, das húngaras. Os homens da escolta
presidencial devem se conformar: seu poder emana da multidão, e seu tórax,
suas coxas nuas, seus músculos dorsais devem sempre permanecer na ardente
zona de contato com a multidão.
Foi o que ele entendeu no início do verão, ao viajar pela Itália, oferecendo
por toda parte seu corpo ao banho de multidão, como nenhum outro primeiro-
ministro antes dele havia feito. Em Bolonha, em visita a Arpinati, depois na
Romanha para o retorno à casa paterna, em seguida em Messina devido a
uma repentina erupção do Etna, mais tarde na “Florença das esquadras” e, por
fim, em Roma, falando pela primeira vez da sacada de Piazza Venezia em um
comício de ex-combatentes. Em todo lugar, imerso em seu povo,
experimentou os diálogos com a multidão roubados de D’Annunzio na época
em que ele ainda era o comandante de Fiume. “Ainda deve haver liberdade
para mutilar a vitória?” “Não!” “Ainda deve haver liberdade para sabotar a
nação?” “Não!” “Digam-me, camisas-negras da Toscana, se for necessário
recomeçar, recomeçaremos?” “Sim! “Para quem a Itália?” “Para nós!”
Nem em Levanto — de volta à mulher e aos filhos por 48 horas — está de
fato com a família. Sua pessoa pertence, agora mais do que nunca, por
direito, à história do século, não à vida doméstica. Somente a Edda, que com
12 anos está prestes a se tornar mulher, dedica um pouco do próprio tempo.
Ela sempre foi sua predileta, e ele sempre a manteve por perto quando
possível, ensinando a filha, ainda menina, a tocar violino e levando-a para
ficar até de madrugada na redação do jornal em Via Paolo da Cannobio, nos
becos miseráveis do Bottonuto. Em seguida, após terem trocado o dia pela
noite, pai e filha pegavam um coche de aluguel e voltavam para casa para
dormir até tarde. Nunca um tapa em Edda, nunca um castigo.
Agora é ela quem toca violino para ele, mas sem nunca ter deixado de
esperar seu retorno. Quando, em 26 de agosto, ele chegou de trem em
Levanto, a estação ferroviária havia sido palco de um desastre aéreo surreal.
Um jovem piloto descera até uma altitude baixíssima para cumprimentar a
namorada, caindo sobre o edifício da estação. Edda, que estava esperando a
chegada do pai, cismou que a desgraça o havia atingido. Nem sua aparição
em carne e osso, ileso, conseguiu convencê-la de que a tragédia não tivesse
sido destinada a ela. Aos olhos daquela garotinha tenaz, evidentemente, o
corpo do Duce não tinha a última palavra.
Sua filha não é a única a não se deixar convencer com facilidade. Julho foi
um mês de triunfos: Dom Sturzo expulso, os populares desagregados, a lei
eleitoral aprovada, as comparações da imprensa internacional entre ele e
Alexandre, o Grande. No entanto, são justamente seus homens que o
atrapalham. Repete sempre a Margherita, quando se encontram no Hotel
Continentale,: ele gostaria de se ocupar da Europa, da posição da Itália na
Europa e no mundo, mas aqueles outros exigem que se dedique à
controvérsia entre os fascistas de Tradate. A Itália está presa no Adriático,
uma boa bacia para lavar o rosto; diante dos problemas da política mundial,
que àquela altura já desaguam em dois oceanos, até o Mediterrâneo parece
pequeno, mas Benito Mussolini não pode se dedicar a isso, porque aconteceu
uma briga em um lugarejo qualquer, ou porque mataram um padre em
Argenta e a Itália inteira não fala de outra coisa.
Ao fim desses desabafos, Margherita o ouve repetir a mesma coisa: é
preciso acabar com os torpes, os impulsivos, os violentos, aqueles que só
vivem para dar bordoadas, movidos por uma inquietude orgânica, pelo
frenesi de alguém que tem urgência para esvaziar o intestino ou a bexiga. O
carnaval duelístico deve acabar — ele mandou escrever até no Il Popolo
d’Italia —, mas eles não querem entender.
Assim, como sempre, também este ano sua perseguição de verão voltou.
De meados até o fim de julho, ele teve de presidir catorze reuniões do Grande
Conselho, todas dedicadas às discórdias internas do partido. Teve de
examinar um por um, província por província, os diversos conflitos de poder,
de competência, de rivalidade pessoal nos sindicatos, nas federações, nas
cooperativas, precisou vencer, sobretudo, as resistências dos integrantes das
esquadras, capitaneados por Farinacci, à instituição da Milizia per la
Sicurezza nazionale. Agora o rás de Cremona, cujos discursos e artigos
pululam de erros de gramática, rebelou-se contra a obrigação de os oficiais se
submeterem a provas para serem confirmados na patente. Em um violento
editorial em 16 de agosto, denunciou que aquelas veleidades culturais
acabariam “abastardando” o movimento das esquadras fascistas, depurando-o
dos combatentes mais valorosos. O Duce calou-lhe a boca ao responder que
se livraria de bom grado daquele estorvo, que daria de presente a quem os
quisesse, com todo prazer, cem ou duzentos mil fascistas daquela laia.
Nem isso foi suficiente. Nada há a fazer: por mais que o Duce do fascismo
faça um esforço de elevação, os fascistas puxam-no para baixo. Ele gostaria
de empurrar sua horda para o futuro a fim de relançar a tradição latina e
imperial de Roma, soltar sua cambada de piratas para a reconquista do
Mediterrâneo; mas eles, por sua vez, prendem-no ao chão. E não são apenas
os facínoras a sobrecarregá-lo, como também os espertos. Naquelas
intermináveis reuniões do partido, vicejam acusações recíprocas de
mercantilismo, são todos uma corja.
Nomes são revelados, detalhes das roubalheiras são denunciados, mas ele,
então, para de ouvi-los: os homens não são nada, só as cenas de massa
importam. Os casos individuais não interessam, eles o entediam. Mussolini
tem um faro inigualável para os humores dos povos, mas não entende os
indivíduos: os vê como se estivesse no cinematógrafo. Todavia, a caça ao
butim começou e, para os aproveitadores, todo triunfo, assim como toda
catástrofe, é só outra boa oportunidade. Margherita é que tem razão: assim
morrem as revoluções, na encruzilhada entre dinheiro e sangue.
Bem no fim do verão, a sorte, como sempre, o ajuda. É 28 de agosto e ele
acabou de voltar para Roma quando chega a notícia: em uma localidade
isolada e tacanha na fronteira entre a Grécia e a Albânia, uma delegação de
oficiais italianos em missão em nome das potências aliadas foi massacrada
por motivos desconhecidos por um bando de criminosos balcânicos. Por obra
do acaso, Salvatore Contarini — secretário de Relações Exteriores, diplomata
de grande experiência, defensor de uma política de alianças com a Grã-
Bretanha e as outras grandes potências — ainda está de férias. Eis, enfim, a
chance de jogar as cartas do nacionalismo italiano no Oriente mediterrâneo,
de se emancipar de uma vez por todas da subordinação aos ingleses. Benito
Mussolini a espera há anos e não vai deixá-la escapar.
Antes que Contarini possa voltar a Roma com os seus conselhos de cautela
e moderação, Mussolini envia um telegrama a Atenas. Exige do governo
grego reparações desmedidas: desculpas da forma mais ampla, cerimônia
fúnebre solene, honras à bandeira italiana, investigação conduzida por
inspetores italianos, punição capital para os culpados, indenização de 50
milhões de liras. O governo grego, que se declara alheio aos fatos,
obviamente não pode aceitá-las e apela à Liga das Nações, contando com a
proteção da Grã-Bretanha. Benito Mussolini replica enviando uma esquadra
naval para ocupar a ilha grega de Corfu. Em 29 de agosto, ao término do
ultimato, se não for atendido, ordenará o início do desembarque,
bombardeando o velho castelo veneziano. O que ele está fazendo é inédito:
um país membro da Liga das Nações viola abertamente seu estatuto. É a
primeira vez que isso acontece desde o fim da guerra mundial.

***

O entusiasmo volta a crescer. O fascismo enfim retoma altitude graças à


audácia do seu Duce, livre do lastro das ambições mesquinhas dos seus
soldados rasos. Finalmente sopra um vento favorável da Itália para os Bálcãs,
o Oriente Médio, o continente africano. Quarenta navios italianos, sete mil
tropas com munições e bagagens se concentram diante do litoral do Épiro.
Nas horas da vigília, toda a nação, no sono atormentado, suado, em um rastro
de verão no agosto mediterrâneo, volta a respirar com um só pulmão.
Naquela noite, Benito Mussolini não dorme, fica em vigília, com o ouvido
atento ao telégrafo, que transmite, hora após hora, os radiogramas marinhos.
Os velhos partidos continuam desacreditados; o Partido
Nacional Fascista está quase igualmente desacreditado; o
primeiro-ministro Mussolini goza de enorme popularidade. O
desaparecimento de Mussolini teria na Itália as mesmas
consequências que, no mundo grego, teve a ausência de
Alexandre, O Grande.

L’Êre Nouvelle,
Paris, julho de 1923

A Itália quer ser tratada pelas grandes nações do mundo


como uma irmã, e não como uma empregada.

Benito Mussolini, declaração à imprensa, 3 de


novembro de 1922
Amerigo Dùmini
Trieste, 3 de setembro de 1923

Desde que os fuzileiros navais desembarcaram em Corfu, não se passa um


dia sem que a assessoria de imprensa da presidência do Conselho de
Ministros decante a glória azul do nosso mar. Em contrapartida, para
Amerigo Dùmini o Mediterrâneo, esse mar fechado, antigo como uma
gangrena, é só um cemitério de conchas encrustadas em cascos corroídos,
destroços afogados em terreno salobro, embarcações perdidas, escoadouros
betuminosos, uma mancha oleosa que se expande nos mapas náuticos de uma
eterna e pequena cabotagem sem ancoradouro. Quando o sol está alto no
horizonte, seu azul ofusca, traiçoeiro. Ele o olha e lê um registro de história
militar, nada mais: conflitos, afundamentos, guerras, a sua, a do Duce, as dos
legionários zarolhos agachados nos rochedos balcânicos, antes ainda, as dos
mercadores venezianos na rota da pimenta e assim por diante, até a guerra do
fogo.
O negócio dos excedentes de guerra é colossal. Dùmini logo intuiu.
Toneladas de armas, projéteis, materiais sanitários, frotas, tecidos, veículos,
roupas, carburantes, combustíveis vendidos pelo Estado a preços módicos e
depois revendidos pelos traficantes a preços de mercado com lucros
ciclópicos. Epopeias inteiras abortadas de materiais bélicos cedidos em
leilões para especulações homéricas.
O mecanismo da fraude é simples: a lei estabelece que, nos leilões, deve
ser privilegiada a miríade de associações de ex-combatentes, mutilados,
inválidos de guerra, grupos de operários aparentemente anarquistas e
desempregados, cujas condições miseráveis suscitam todos os dias vibrantes
apelos patrióticos, mas os melhores lotes — por meio de laranjas ou de
associações fantasmas com nomes truculentos — acabam sempre nas mãos
dos grandes especuladores. Negociantes ousados como Filippo Filippelli,
advogado calabrês, ex-secretário pessoal de Arnaldo Mussolini e agora
diretor do jornal pró-fascista Corriere Italiano, ou então como Carlo Bazzi,
embusteiro milanês, primo do quadrúnviro e chefe da polícia Emilio De
Bono, prosperam à sombra da “Associação Italiana dos Combatentes de
Trincheiras Tuberculosos”. Assim, materiais declarados como sem uso à
noite tornam-se reaproveitáveis e voltam a invadir o mundo equipando
esquadras espectrais.
Já a marcha sobre Roma foi financiada em boa parte graças aos negócios
dos excedentes de guerra, mas depois todos entraram na dança: a começar por
De Bono, que, na qualidade de chefe da polícia, deveria controlar as fraudes,
passando por Aldo Finzi, que se aproveita do papel de vice-ministro do
Interior, até Cesare Rossi. E Dùmini também não perdeu a oportunidade, sob
a proteção de Rossi, que, instalado no palácio da presidência do Conselho de
Ministros como chefe da assessoria de imprensa, quis tê-lo ao seu lado para
cuidar das “operações sujas”, que, no jargão do novo poder fascista, não são
as malversações em detrimento do Estado, mas os espancamentos dos
dissidentes à sombra do Estado. Amerigo não se fez de rogado. Desde
janeiro, posicionou-se atrás de uma escrivaninha no gabinete de Rossi, onde,
com a mesma mão que empunha o cassetete, a mão boa, passa os dias a
datilografar cartas, entregar missivas, transmitir ordens e repreensões a
subsecretários de Estado. Depois, no almoço, com os outros camaradas do
grupo, sai com Rossi para comer picadinho de carne de gado chianina no
restaurante Brecche.
No início, para as “operações sujas”, procedia-se sem uma ordem
específica. Quando era necessário catequizar um deputado da oposição ou um
fascista dissidente — como no caso do professor Misuri —, Italo Balbo,
Francesco Giunta, De Vecchi, Finzi, Marinelli ou Rossi encarregavam o
primeiro capanga à disposição. Entretanto, no verão as coisas começam a
mudar. Rossi quer centralizar as “tarefas menores” e encarregou Dùmini de
formar uma esquadra com homens de absoluta confiança. Também passou a
lhe pagar um salário mensal proveniente da verba da presidência: 1.500 liras
por mês a título de cobertura de gastos. Forneceu-lhe uma identidade e um
passaporte falsos emitidos pela direção-geral da segurança pública: “Gino
Bianchi, filho de Emilio e Fanny Franceschi, natural de Florença, nascido em
3 de janeiro de 1895, residente em Roma, publicista.” Foi o próprio Dùmini
quem pediu para viver sua vida fictícia como jornalista. Ele sempre gostou de
escrever, desde que, em Florença, dirigia e redigia sozinho seu jornal
panfletário, o Sassaiola Fiorentina.
Mas essas tarefas “menores” são a parte fácil do trabalho. Tecidos vivos
não têm grandes pretensões: se você os golpeia com um corpo contundente,
sofrem; se você os lacera com uma ponta cortante, sangram. A dificuldade
começa com a matéria inerte: fuzis enferrujados, detritos ferrosos,
combustíveis fósseis. Ele tentou fazê-los render por meses. Começou com a
recuperação de uma frota mercante italiana que afundou durante a guerra ao
longo da costa da Líbia, em Derna, Brega, Bomba e ao sul de Bengazi. Para
estudar a fundo todos os aspectos da questão, foi pessoalmente até a
Cirenaica. Dias e dias vasculhando os fundos arenosos de uma costa baixa,
uniforme, árida, aprisionada entre cemitérios marinhos, desertos e
depressões. No fim, não conseguiu nada. Então, ainda graças à cobertura de
Rossi, que, do Viminale, pressionava o ministério da Agricultura,
apresentando-se como Gino Bianchi, ex-Ardito e mutilado, tentou negociar
um lote de óleos combustíveis que estava no porto fluvial de Roma. Na
verdade, tratava-se mais uma vez de excedentes de guerra, como ele próprio.
Contudo, Giuriati, o ministro das Terras Libertadas, encarregado pelo
próprio Mussolini de um inquérito sobre os escândalos dos excedentes de
guerra, intrometeu-se. Ex-chefe de gabinete de D’Annunzio em Fiume,
íntegro, idealista, Giuriati propôs denunciar Dùmini e seus sócios à
autoridade judiciária por aquele estoque arrematado por um quarto do valor
prefixado. Assim, tudo foi por água abaixo outra vez. O diretor da repartição
de petróleo cancelou a licitação.
Em março, por fim o vento soprou do lado certo e Dùmini obteve do
ministério da Guerra uma opção com vencimento em 16 de junho sobre um
lote inteiro de excedentes de guerra austro-húngaros: 35 mil fuzis Mauser,
640 mil fuzis Mannlicher e 20 milhões de cartuchos. Suficiente para encher
um navio inteiro, para se ajeitar pelo resto da vida. As garantias milionárias
para o veterano sem um tostão foram fornecidas por Alessandro Rossini, um
delegado da empresa Banca Adriatica de Trieste, alguém que costuma
financiar os fascistas nos tráficos de materiais a serem vendidos no exterior,
sobretudo nos Bálcãs.
No entanto, Dùmini, ao arrematar o estoque, decidiu fazer tudo sozinho.
Tentou primeiro com a Grécia, mas o cargueiro foi enviado de volta do porto
de Pireu. Então, entre a primavera e o verão, começaram as viagens turísticas
de Gino Bianchi a Belgrado, a cidade na confluência entre o Sava e o
Danúbio — e de todas as tragédias da Europa, onde a guerra é endêmica
como a fome em certas regiões africanas e da qual ele nunca deixava de
mandar cartões-postais afetuosos para Cesarino Rossi na Itália. O único
problema é que a Iugoslávia, por causa da disputa por Fiume, ainda estava
entre os países inimigos da Itália. Mas ele, para contornar a proibição de
armar o inimigo, utilizou uma empresa de fachada em Marselha.
Dessa forma, tudo estava definido. Entretanto, Francesco Giunta, o rás dos
fascistas da região da Giulia que em Roma se tornou secretário do partido, à
frente de um grupo de negociantes rivais, denunciou na coluna do seu jornal,
o Il Popolo di Trieste, o “tráfico de armas com um país inimigo” e informou
pessoalmente Mussolini do caso. Amerigo Dùmini, codinome Gino Bianchi,
foi detido pelos iugoslavos em Pula. Assim que pôs os pés outra vez em
Trieste, por ordem de De Bono — ele também no grupo de Giunta —,
Dùmini foi preso. Gino Bianchi passou o feriado de 15 de agosto preso no
Coroneo, a penitenciária construída pelos austríacos pouco antes da guerra
mundial.
Não se podia fazer nada: austríacos, italianos, negros, vermelhos... não
fazia diferença alguma para os peixes pequenos que agonizavam nos baixios
daquele grande mar betuminoso. Aquela era uma eterna guerra de gangues, a
infinita obra de escoamento de excedentes de guerra de batalhas anteriores.
Mas, apesar de Gino Bianchi ter ido parar na cadeia, Amerigo Dùmini não
se deixou abater. Do mezanino do cárcere, lá no fundo, além do canal de
Portorosso, avistava-se sempre o azul traiçoeiro daquele Mediterrâneo
abandonado, e dali ele enviou telegramas a Cesare Rossi, a Michele Bianchi,
a Fasciolo, o secretário pessoal do Duce. A todos, a mesma ameaça: não se
deixaria crucificar por eles, não serviria de bode expiatório para ninguém.
Libertaram-no após dois dias, com muitas desculpas, e o transferiram para
o Grand Hotel. Dali também apreciava o mesmo mar.
Nos dias seguintes, Arnaldo Mussolini assumiu a defesa do “amigo
Dùmini” no Il Popolo d’Italia, o Duce ordenou a invasão de Corfu e, ao
longo da linha de flutuação dos navios de guerra, brilhou outra vez o
esplendor da glória, o Mediterrâneo tornou-se novamente outro mar, e ele,
apesar do feriado na prisão, se predispôs a esquecer.
Agora, porém, Francesco Giunta se obstina na perseguição. No início de
setembro, apresenta um segundo inquérito parlamentar sobre o tráfico de
armas com países inimigos, e Gino Bianchi precisa pôr a mão na caneta outra
vez. Redige um relatório detalhado sobre o episódio iugoslavo, apresentado
como uma missão secreta com objetivos patrióticos, e o envia à direção do
partido. Mas o relatório é seguido por uma carta pessoal de Amerigo Dùmini
endereçada a Cesare Rossi que se revela descaradamente ameaçadora e
chantagista:
“Ser obrigado a justificar minha atividade no exterior constitui para mim
um sofrimento, mas estou disposto a considerar o ocorrido como infortúnio.
Se, no entanto, este meu memorial, que é puramente justificativo, viesse a se
tornar defensivo, eu me encontraria na dolorosa necessidade de revelar a obra
de personagens que pertencem ao ministério do Interior.”
Amerigo Dùmini foi expulso da Iugoslávia por ter mandado traduzir para o
eslavo panfletos de propaganda fascista [...]. A detenção de Dùmini e as
acusações contra ele foram fruto de um equívoco [...]. Dùmini forneceu
amplas elucidações [...] documentando a improcedência das acusações,
comprovada por sua imediata libertação por parte das autoridades de
segurança pública.

Comunicado da presidência do Conselho de Ministros,


Roma, 19 de agosto de 1923

O amigo Dùmini é um valoroso ex-combatente de antigo e


comprovado patriotismo, vítima de atroz injustiça por causa de
um suposto contrabando de armas.

Arnaldo Mussolini,
Il Popolo d’Italia, 21 de agosto de 1923
Italo Balbo
Início de outubro de 1923

A massa é um rebanho, o século da democracia acabou, a massa não tem


futuro.
As diretrizes do Duce são claras. Deixados por conta própria, os indivíduos
aglutinam-se em uma gelatina de instintos elementares e de impulsos
primordiais, um gel sanguinolento movido por um dinamismo indiferente,
fragmentário, incoerente. Em suma, são simples matéria. Portanto, é
necessário abater dos altares democráticos “sua santidade, a massa”. A
democracia tem uma concepção de vida com prevalência política. O fascismo
é algo muito diferente. Sua concepção é guerreira. As hierarquias de ordem
militar devem ser “ferreamente constituídas”. Disciplina militar inclui
disciplina política. Seus afiliados são, antes de mais nada, soldados. A
carteirinha equivale à plaquinha de reconhecimento recolhida dos cadáveres
dos soldados nos fossos.
As diretrizes do Duce são claras, e Italo Balbo, “generalíssimo” da Milizia
per la Sicurezza nazionale, antes mesmo de compartilhá-las, está determinado
a colocá-las em prática. No entanto, o principal obstáculo é representado
justamente pelos indivíduos, aquela matéria que, na visão do Duce, deveria
ser moldada: é de má qualidade. É o que está sendo demonstrado sem
nenhuma dúvida pelas provas de confirmação da patente dos cônsules da
Milizia per la Sicurezza nazionale, às quais Balbo — justo ele, que conseguiu
o diploma de graduação em Direito ameaçando surrar o orientador da tese —
está submetendo com a obstinação de sempre os chefes das esquadras: a
matéria humana é de má qualidade. Quando se trata de cultura geral, não há
problema, mas, quando passam para as disciplinas militares e profissionais,
os resultados são desoladores. Balbo escreveu a Mussolini: “Os oficiais
demonstraram ter pouca e escassa cultura sobre tudo o que dizia respeito a
disciplinas militares. E a incompetência demonstrada foi maior na execução
do esquema tático em campo.” No entanto, a maioria deles esteve na guerra,
muitos, em pelotões de assalto. Parecem alheios a si mesmos. Mas isso não é
de se espantar, pois quase todos demonstram ignorar até mesmo os
regulamentos da própria organização que deveriam comandar. Se as coisas
continuarem assim, o “generalíssimo” será obrigado a propor a introdução de
oficiais do Exército nos quadros da Milizia per la Sicurezza nazionale.
Enquanto o Duce tenta impor a própria vontade ao mundo, o mundo
obedece ao caos. Farinacci se posicionou abertamente a favor desse último.
Embora a sanção preveja a expulsão de quem não se submeter às provas, o
rás de Cremona se recusou a fazê-las, certo de que ninguém arrancará os
graus das suas dragonas. Durante o verão, chegou a iniciar uma queda de
braço com Mussolini por meio de telegramas para a nomeação de seus
acólitos para alguns postos de comando nas legiões da Tripolitânia.
Conseguiram impedir que o conflito vazasse para a imprensa, mas Mussolini
teve de enviar em segredo um telegrama ao governador da província de
Cremona ordenando a prisão por insubordinação do rebelde caso não
retirasse sua renúncia. Só então Farinacci mandou um telegrama para Roma.
A ameaça da renúncia foi retirada. “Com inalterado afeto e inabalável fé.”
Apesar dos esforços de Balbo e de Mussolini, a discórdia serpenteia. Em
Roma, as esquadras de Bottai enfrentam as de Calza Bini pelas ruas; em
Placência, as facções fascistas de Amidei e de Tedeschi chegam ao confronto
armado. No fim de setembro, nos bastidores do partido, eclodiu a polêmica
“revisionista”. Massimo Rocca publicou um artigo explosivo a favor da
“normalização” na Critica Fascista, a revista fundada com Giuseppe Bottai.
Após tê-la violentado, o fascismo deveria — segundo Rocca — “converter a
Itália”, os integrantes das esquadras deveriam se aproximar dos inimigos de
ontem, o Partido Nacional Fascista deveria se reconciliar com a Itália de
Mussolini. Em resposta, os líderes do partido, com Farinacci à frente,
expulsaram o “revisionista”. Contudo, essa vitória durou poucas horas.
Mussolini exigiu a renúncia de toda a junta executiva que havia decidido a
expulsão. Obteve-a.
Apesar de tudo isso, as diretrizes do Duce permanecem claras. E Italo
Balbo está determinado a colocá-las em prática. Então, o “generalíssimo”
Balbo, com a mesma ferocidade meticulosa com que arrebentava cabeças nos
campos da Romanha, continua a submeter a provas, como se fossem alunos
desobedientes, os homens que as arrebentavam ao seu lado. Não dá nenhum
desconto: redação sobre os regulamentos da Milizia per la Sicurezza
nazionale, arguição genérica, prova de tática militar. E também continua a
anotar observações impiedosas na lateral da coluna com as notas baixas.
Na antologia da futura classe dirigente, tem de tudo. Ao lado da cultura e
das competências de homens como Rocco, Turati, Gaggioli, vemos a
brutalidade ignorante de Carlo Scorza, ex-tenente dos Arditi e chefe das
esquadras de Lucca: “Escreveu a redação de maneira bem tortuosa e com
base em poucos conceitos. Demonstrou completa insuficiência no
conhecimento dos problemas táticos mais elementares. A prova prática em
campo confirmou a nota da prova oral.” Nota 43/80. Reprovado. Vemos
também a inconsequência juvenil de Enzo Galbiati, também ele ex-Ardito,
ex-legionário em Fiume, chefe das esquadras da Brianza: “As informações
recebidas do Fascio di Combattimento milanês são absolutamente
demolidoras: declaram-no insincero e leviano a ponto de tornar
insustentáveis, por teimosia e falta de tato, as relações entre a Milizia per la
Sicurezza nazionale e a autoridade política na Zona.” Nota: 47/80. Em
recuperação. Vemos a violenta neurose de Bernardo Barbiellini Amidei,
conde, proprietário de terras, voluntário de guerra, condecorado por bravura,
rás de Placência, amigo pessoal de Balbo, que anota para Mussolini ao lado
do seu nome: “É um jovem honesto ao qual não falta talento, mas tem
temperamento neurastênico, eu diria quase de caráter epilético. Não é um
indivíduo normal e não tem prudência para manejar com sabedoria o timão
de um navio.”
E há também Farinacci; o inefável, indomável, grotesco Farinacci, justo ele
que é a quintessência do espancador fascista, inflexível ao pregar uma
“segunda onda” de cassetetes, justo ele que encontra admiradores até entre os
últimos socialistas sobreviventes — como aquele rapaz de Turim, aquele tal
de Gobetti —, literatos magros, doentios, ligados à vida por uma débil baba
de choro, que seriam definitivamente afogados por aquela onda e, seja por
gosto do paradoxo, seja pela invencível atitude intelectual de ostentar sempre
um distanciamento superior em relação ao senso comum, ou seja ainda pela
premonição da morte, elogiam Roberto Farinacci nas colunas de suas
revistas. Sim, Farinacci também está lá, mas ele é um caso à parte, ele se
furta à avaliação. Talvez o futuro o julgue, mas com certeza sem competência
alguma.
Quanto à ameaça de renúncias coletivas convido deputado Farinacci e
companheiros a meditar sobre oportunidade e gravidade do gesto que se
dispõem a realizar pt Orientação atual Milícia se deve exclusivamente a mim
é obra minha pt Declaro que pretendo liberar a Milícia não do fascismo mas
do partido que é um vasto e lastimável panorama de rixas imbecis e
intermináveis objeto de riso e escárnio cotidiano por parte todos adversários
pt

Benito Mussolini, telegrama ao governador da província de


Cremona,
17 de setembro de 1923

Os seguidores de Farinacci defendem posições pessoais


ilegítimas, mas conquistadas com sacrifícios e músculos [...].
Nós devemos respeitar nessa ignorância e nessa barbárie um
sentido de dignidade e uma prova de sacrifício [...]. Os
verdadeiros especuladores são os que desfrutam de salários em
Roma fabricando teorias. Os verdadeiros especuladores são os
intelectuais; não esses analfabetos saudáveis que escrevem os
artigos cheios de erros de gramática, mas que sabem manter a
espada e o porrete nas mãos. Se há um fascismo que pode ter
alguma utilidade para a Itália, é o fascismo do cassetete.

Piero Gobetti, “Elogio a Farinacci”,


La Rivoluzione Liberale, 9 de outubro de 1923
Benito Mussolini
Milão, 28 de outubro de 1923
Aniversário de um ano da marcha sobre Roma

A concentração para o aniversário de um ano da marcha sobre Roma teve


início às 8h nas alamedas do parque: batalhões de representação do Exército,
centúrias das milícias, associações civis e patrióticas. O Duce surgiu na sela
do seu cavalo, vestindo a farda de honra da Milizia per la Sicurezza
nazionale: barrete, camisa preta, paletó dos Arditi com as flechas nas lapelas,
punhal na cintura. Milhares de homens com as medalhas de ouro no peito o
acolheram em uma ovação festiva. Ele os cumprimentou com o braço
estendido e a mão enluvada de preto, a palma esticada para fora, olhar altivo,
para a frente, direcionado ao infinito.
Da garupa de um animal de guerra, não há nada na superfície terrestre que
não possa ser visto em sua forma mais pura. Vista lá de cima, Milão nunca
foi tão bela. No fundo da perspectiva rigorosa das alamedas, avistam-se até
os cumes já nevados dos Alpes. Passou-se apenas um ano desde a sua partida
em um vagão-dormitório para a conquista de Roma. Agora todo o programa
se resume a um único verbo: durar, durar, durar. Apenas um ano... e agora ele
já comemora na sela de um cavalo. O tempo é um bastardo.
Após a revista das tropas, a cerimônia comemorativa prossegue em Piazza
Belgioioso. Outra fenda temporal, outro encontro com a própria história ao
qual não se pode faltar. Nessa pequena praça elegante diante da casa de
Alessandro Manzoni, há apenas quatro anos Benito Mussolini fez seu
primeiro comício fascista. Poucas centenas então, milhares hoje. Naquela
ocasião, a caçamba de uma carroça; agora, a sacada de um palácio
principesco. Piazza Belgioioso. Ele retorna ao local sempre que pode. Uma
espécie de meridiana urbana, um instrumento de marcação do tempo baseado
na posição do sol. O sol é ele. Precedido por três toques de trombeta, o Duce
fala:
“Gloriosos e invictos e invencíveis camisas-negras, eis que o destino me
permite mais uma vez falar nesta praça já consagrada na história do fascismo.
Aqui nos reunimos em poucas centenas de fiéis que tinham a coragem de
desafiar a fera então triunfante em tempos obscuros, em tempos bastardos,
em tempos que não voltam mais...” Aplausos saúdam os tempos bastardos
que não voltam mais.
Éramos poucos, hoje somos legiões. Éramos, então, grupos esparsos, hoje
somos uma multidão sem fim. Claro, há algo de misterioso nesse
reflorescimento da nossa paixão, algo de religioso nesse exército de
voluntários que nada pedem e estão dispostos a tudo. É a primavera, a
ressurreição da raça, é o povo que se torna nação, é a nação que se torna
Estado, que procura no mundo as linhas da sua expansão.
A felicidade do orador se propaga na praça, a onda das suas frases
submerge os militares, o entusiasmo deságua em uma longa ovação de
aplausos. Depois a ovação se repete. Ele quer então estabelecer um diálogo
com eles, diz ter certeza de que as respostas serão afinadas e formidáveis.
“Camisas-negras, pergunto a vocês: se amanhã os sacrifícios fossem
maiores do que os de hoje, vocês estariam dispostos a suportá-los?” Um baita
“sim” de confirmação.
“Se amanhã eu pedisse a vocês aquela que se pode chamar a prova sublime
da disciplina, vocês a dariam para mim?” Gritos de entusiasmo.
Se amanhã eu dissesse que é necessário retomar a marcha e levá-la até o
fim, rumo a outras direções, vocês marchariam? Se amanhã eu desse o sinal
de alarme, o sinal dos grandes dias, aqueles em que se decide o destino dos
povos, vocês responderiam? A multidão responde: o coro fascista escala os
picos do diapasão mais agudo. Naquele instante, o “tempo bastardo” parece
que de fato nunca mais vai voltar.
Depois o tempo volta e, por um instante, joga sua sombra sobre o orador.
Fala-se dos adversários, daqueles filósofos da história, dos “melancólicos
masturbadores da história que nunca entendem a história”.
“Disseram que éramos algo efêmero, que não tínhamos uma doutrina, que
o governo fascista mal duraria seis semanas. Passaram-se 12 meses. Vocês
acham que durará 12 anos?”
A praça explode mais uma vez em uma fragorosa ovação. O orador,
porém, trava por um instante, como se estivesse perplexo consigo mesmo.
Sua voz se embarga.
Giuseppe Bottai, ao seu lado na sacada, observa Mussolini pensar rápido.
Em 12 anos, ele terá acabado de completar 52. O número deve lhe parecer
modesto. Com a seca precipitação de sílabas quase aglutinadas dos seus
frenesis oratórios, o Duce se corrige:
“Do-ze a-nos mul-ti-pli-ca-dos por cin-co!”
A praça o aclama.
Nós duraremos porque não eliminamos a vontade da história, nós
duraremos porque desbarataremos sistematicamente nossos inimigos, nós
duraremos porque queremos durar.

***

Depois do banquete em homenagem a Mussolini oferecido no restaurante


Grande Italia, o resto do dia também transcorre em uma turnê comemorativa
do passado recente, história viva, feridas ainda abertas e ensanguentadas. Ao
ritmo de Giovinezza, o cortejo se enfileira na Via San Marco, sede do Fascio
di Combattimento original, passa por círculos fascistas de bairro, chega até a
Via Paolo da Cannobio, para diante dos míseros aposentos que foram do Il
Popolo d’Italia. Por toda parte, faixas, guirlandas, fanfarras, generais,
assessores, mães e irmãs de mártires. O prefeito, em nome da junta
municipal, anuncia que um trecho de rua que vai de Gamboloita a Rogoredo
receberá o nome de Benito Mussolini.
A Milão fascista celebra às pressas o aniversário de um ano do governo
fascista com o mesmo frenesi com que seu Duce o vivenciou, acumulando
reformas sobre reformas, multiplicando os decretos da sua vontade, forçando
as margens de uma única temporada. Mussolini se vangloria dos números do
esforço: em um único ano, o Conselho de Ministros se reuniu 60 vezes para
deliberar sobre 2.482 questões e aprovar 1.658 decretos. Tudo corre a favor
de Mussolini: o projeto de reforma Acerbo que entregará o Parlamento para
ele nas próximas eleições se tornará lei do Estado em poucos dias, a perigosa
controvérsia internacional iniciada pela ocupação de Corfu terminou no fim
de setembro com a recuperação do prestígio da Itália, que recebeu 50 milhões
de ressarcimento, as relações com o Vaticano voltaram a se tornar cordiais
após meio século de hostilidades.
A oposição também foi domada. Os socialistas — com exceção da
obstinação de Giacomo Matteotti — praticamente não ousam mais piar, a
dissidência interna foi vencida no Grande Conselho de 12 de outubro com um
lance que sacrificou os “revisionistas” de Massimo Rocca para deixar em
posição de impedimento os “intransigentes” de Farinacci: agora o novo
regulamento prevê que o diretório deve ser proposto pelos secretários
federais, mas a escolha definitiva cabe ao Duce, que recebe a nomeação do
alto. Por fim, a imprensa livre foi contida no verão com uma série de decretos
censores que dão à polícia o poder de entrar nas sedes dos jornais da mesma
maneira que entra nos cassinos clandestinos ou nas casas de tolerância.
Entretanto, até os filósofos liberais que deveriam amaldiçoá-lo louvam o
primeiro ano do governo Mussolini, tendo à sua frente Benedetto Croce, que,
ontem mesmo, em entrevista aos jornais, exortou seus seguidores ao “dever
de aceitar e reconhecer o bem a despeito de onde tenha surgido, a se preparar
para o futuro”. Até os grandes artistas italianos celebram Mussolini. Luigi
Pirandello, o genial dramaturgo que com Seis personagens à procura de um
autor, muito apreciado pelo Duce, revelou que todo homem é apenas a
própria máscara, antes de partir para os Estados Unidos, foi homenagear o
Duce no Palazzo Chigi. Dos Estados Unidos, fez eco Luigi Barzini, o grande
jornalista, com um telegrama de júbilo pela sua “magnífica ascensão”.
Nas próximas horas, também o rei e a família real investirão publicamente
em Benito Mussolini, o filho do ferreiro, com uma recepção no Palazzo
Venezia, da qual deverá participar toda a aristocracia romana. Depois será a
vez dos soberanos da Espanha em visita oficial a Roma, acompanhados de
Primo De Rivera, o general sobrevivente da conquista do poder com uma
conjura militar que declara abertamente inspirar-se no fascismo italiano.
Filósofos liberais, famílias reais, generais golpistas... não falta ninguém.
Todos se unem de bom grado ao coro de júbilo.
Nesse clima de entusiasmo, em 18 de outubro de 1923, o cortejo de
comemoração da marcha sobre Roma, recebido por uma centena de
mutilados e inválidos, por mães e viúvas de vítimas da guerra, chega ao
número 69 do Corso Venezia para inaugurar a nova sede do Fascio di
Combattimento de Milão.
Ao fim do breve discurso inaugural, um contínuo do Il Popolo d’Italia,
após autorização de Cesare Rossi, que protege o Duce, aproxima-se dele.
Informa que em Filettole, um município rural na província de Pisa, perto do
clube Trionfo, foi encontrado o cadáver de um camponês socialista, um tal de
Pietro Pardi, com uma ferida na têmpora. Poucas horas antes, em um bar de
Vecchiano, Sandro Carosi, o chefe da esquadra da região, desejara festejar à
sua maneira o aniversário da marcha fazendo saltar os chapéus das cabeças de
alguns clientes a tiros de pistola. Como Guilherme Tell, disse. Pardi se
recusou. Carosi — um psicopata preso por vários delitos e sempre libertado
por ser um protegido de Morghen, o rás de Pisa — o seguiu.
Mussolini parece ter sido picado por uma tarântula. A notícia do homicídio
insano estragou sua festa. Furioso, o Duce começa a se agitar em todas as
direções, a dar ordens para as providências policiais, para a cobertura da
imprensa, para o expurgo do Fascio di Combattimento local. Então, isolado
em um quartinho, Benito Mussolini se joga em uma cadeira. Sobre a
elegância neoclássica de Corso Venezia, começa a cair a noite. Naquele
crepúsculo outonal, o glorioso aniversário de um ano da história fascista
parece descambar para um crime de página policial.
Cesare Rossi, o único autorizado a procurá-lo naqueles momentos de
recesso, leva duas fotos para que faça uma dedicatória. São para Emma
Gramatica, a grande atriz, intérprete também de Pirandello, e para a célebre
cantora Luisa Tetrazzini, ambas admiradoras de Mussolini.
Colocado diante da própria efígie fotográfica, o Duce se recompõe. Rossi o
observa escrever com a caneta-tinteiro de ponta quadrada, a predileta de
D’Annunzio, expressões elegantes em homenagem às suas excepcionais
admiradoras. Então, embaixo da assinatura, ele acrescenta uma sigla
indecifrável: “Ano II - E.F.”
— O que você está escrevendo, Benito?
— Ano dois, Era Fascista. É preciso começar a demarcar o tempo.
Sempre senti por ele uma grandíssima admiração e acho,
aliás, que posso compreender como poucos a beleza dessa
contínua criação de realidade que Mussolini executa: uma
realidade italiana e fascista que não é submetida às realidades
dos outros. Mussolini sabe, como poucos, que só o homem
tem o poder de construir a realidade e que ela é criada somente
com a atividade do espírito.

Luigi Pirandello, entrevista a La tribuna di Roma, 23


de outubro de 1923

Na vida, é necessário durar; daqui a um tempo, vamos nos


entender melhor.

Benito Mussolini, entrevista à imprensa estrangeira,


1o de novembro de 1923
Nicola Bombacci
30 de novembro de 1923

Hoje o plenário está incomumente lotado. Quando o deputado De Nicola


abre a sessão, contam-se nos vários setores 250 deputados, um número bem
alto para um Parlamento quase sempre semideserto. Na bancada do governo,
estão presentes vários subsecretários. Discute-se a conversão em lei de um
decreto de 1921 entre o Reino da Itália e a República Federal Socialista dos
Sovietes da Rússia. No mesmo plenário em formato de semicírculo, nas
bancadas em leve declive, dispostas como em um anfiteatro, sob a cúpula de
vidro e ferro magnificamente decorada por formas orgânicas, linhas curvas,
ornamentos de predileção floral do art nouveau — delicadezas de um estilo
ainda fresco no fim do promissor século passado e já envelhecido de modo
irremediável no início deste século —, confrontam-se comunismo e fascismo,
os dois titãs da época.
Depois das comunicações de praxe, o presidente do Conselho de Ministros,
o Excelentíssimo Mussolini, entra no plenário acompanhado do deputado
Acerbo e senta-se na sua cadeira. É o início.
As primeiras intervenções são rotineiras. O deputado Ayala, em nome do
Partido Popular, de acordo com o que foi anunciado, se diz favorável à
ratificação do decreto para favorecer o estabelecimento de acordos
comerciais entre a Itália fascista e a Rússia soviética. Costantino Lazzari, em
nome dos socialistas maximalistas, inicia o costumeiro bate-boca polêmico
com Francesco Giunta — secretário do Partido Nacional Fascista que se gaba
de levar para o debate parlamentar o estilo das esquadras —, contrapondo as
razões do comunismo às do capitalismo. A lenga-lenga de sempre.
Mas depois quem toma a palavra é Nicola Bombacci. É o homem de
Moscou, todos sabem disso. Desde sempre, os líderes da vitoriosa revolução
soviética russa dão preferência a ele entre todos os expoentes da frustrada
revolução soviética na Itália. Mas Nicolino Bombacci é amigo de Benito
Mussolini, e todos sabem disso também. Ainda rapazes, quando os dois eram
professores primários nas escolas dos isolados povoados da Romanha, eles
dividiram o pão da ciência e o da fome. Correm comentários maldosos de que
ele foi poupado durante a recente onda de prisões de dirigentes comunistas
graças ao velho amigo Mussolini.
Sem dúvida há o fato de que, se você usar uma lente com distância focal
curta e fechar o enquadramento até o primeiro plano dos rostos, as duas
forças titânicas do século contrapostas em uma luta mortal revelam pessoas, e
não personagens históricos, e essas pessoas tiveram uma infância, uma
juventude, muitas vezes comum, pequenas idiossincrasias, manias, às vezes
decisivas, pequenas vaidades — a cabeça raspada de general, a barba
comprida de profeta —, pequenas rugas de expressão nos cantos da boca ou
atravessando a testa enrugada; e são essas minúcias, essas simpatias ou
antipatias, essas lembranças insossas de bebedeiras na taberna que traçam na
vida, assim como na história, a rota dos indivíduos. O ódio implacável da
época é mudo como uma sanguinária divindade babilônica. Os homens,
porém, se falam.
Assim, Nicola Bombacci, o fiduciário italiano de Lênin e o amigo de
Benito Mussolini, toma a palavra entre as risadas irônicas da extrema direita.
Há anos Bombacci vem trabalhando em prol do estabelecimento de acordos
comerciais entre Itália e Rússia que levem ao reconhecimento do Estado
soviético por parte do Estado italiano.
O líder comunista declara logo que não vai tratar da política dos dois
Estados, mas dos motivos econômicos que tendem a uni-los: Bombacci: Os
governos anteriores ao governo fascista nada fizeram em relação a esta
matéria...
Já a essa altura, Mussolini o interrompe:
Mussolini: Ainda bem que o senhor reconhece!
Bombacci: É a verdade.
Giunta: Então, viva o fascismo! (Risos; ruídos dos comunistas.)
Bombacci retoma o discurso exortando o governo a negociar com a Rússia
em uma atmosfera de cordialidade. Dirige-se a Mussolini, o velho amigo que
se tornou, por um capricho da história, inimigo ferrenho, lembrando seu
compromisso de não antepor precondições de caráter político.
Bombacci: O senhor diz que quer reconstruir não apenas a Itália, mas
também a Europa...
Mussolini: Dou-me por satisfeito com a Itália! (Risos gerais.) Aliás, fiz
dezenas de tratados comerciais.
Bombacci: Faça também com a Rússia.
Mussolini: Os dois têm de querer.
Bombacci: Tomara. Aliás, o tratado com a Rússia deve ser concluído
também para fazer frente à obra de penetração comercial iniciada por
franceses e ingleses para se apoderarem dos mercados russos e deixarem a
Itália de fora. Eu protestei...
(Vozes irônicas à direita: Muito bem!)
Bombacci: Os americanos também estão agindo por baixo dos panos a fim
de obter o monopólio do petróleo. A Itália, portanto, dever protestar muito...
Giunta: Muito bem! Temos uma carteirinha pronta para você.
Bombacci: Nem todo cidadão italiano que quer cumprir seu dever precisa
de uma carteirinha no bolso. Os industriais italianos que quiserem negociar
na Rússia serão bem recebidos. Eu rezo, embora essa palavra não seja de uso
comum entre nós, comunistas (risos), para que o governo italiano, por meio
do primeiro-ministro Mussolini, firme um tratado, até porque as duas
revoluções, a revolução fascista e a revolução russa, ainda podem se concluir
com uma aliança entre os dois povos...
Aqui o discurso de Bombacci trava, esmagado pela gravidade das palavras
recém-pronunciadas e das que estão prestes a segui-las. O orador se cala por
alguns instantes e levanta os olhos para a cúpula como se tivesse sentido
bater sobre ele a asa de um pressentimento. Então recomeça.
Bombacci: A Rússia está em um plano revolucionário: se vocês, como
dizem, têm mentalidade revolucionária, não deveria haver dificuldade para
uma aliança definitiva entre os dois países (risos vivazes à direita e no
centro, ruídos à esquerda).
Os homens se falam, mas as ideologias, não. As divindades babilônicas
não admitem as sutilezas irônicas, a generosidade fervorosa. O “caso
Bombacci”, engendrado por essas palavras do deputado comunista, explode
já no dia seguinte. O Avanti! estigmatiza. Para o jornal socialista, pôr lado a
lado a revolução russa e aquela paródia de revolução feita pelo fascismo é
inadmissível. O desprezo monolítico pelo fascismo é uma linha de dignidade
e coerência da qual ninguém deve se desviar. Antonio Gramsci também
deplora publicamente a “cordialidade” de Bombacci, que se rebaixou “até a
adulação da revolução fascista e das manias de grandeza de Mussolini”.
Em 5 de dezembro, é a vez do partido. Seu Comitê Executivo convida o
deputado Bombacci a entregar sua renúncia. Alguns membros do grupo
parlamentar o defendem: não veem motivo algum para acusá-lo de
indignidade. Nem a base operária que o venera há anos entende: Bombacci
falou pela Rússia, por Lênin, por que o partido quer expulsá-lo?
O “Cristo dos operários” não renuncia. Todavia, sua resistência e sua boa-
fé se revelam inúteis. O Partido Comunista da Itália ordena que Nicola
Bombacci, o “Lênin da Romanha”, renuncie na mesma época em que chega
de Moscou a notícia de que Vladimir Ilyich Ulyanov, o verdadeiro Lênin,
após outro derrame, relegado a uma cadeira de rodas, não se comunica mais
com o mundo. A paralisia do seu corpo já é completa. Só resta preparar-se
para a sua morte.
1924
Benito Mussolini
Roma, 28 de janeiro de 1924
Palazzo Venezia, reunião dos dirigentes fascistas

A Câmara dos Deputados foi dissolvida em 25 de janeiro. As eleições


foram convocadas para 6 de abril. A inauguração da XXVII legislatura está
marcada para 24 de maio. Mais do que um voto a favor ou contra o regime
fascista, as eleições que se aproximam se anunciam como um plebiscito a
favor ou contra ele. Um ano após a marcha sobre Roma, o fascismo
enfraqueceu, mas ele, Benito Mussolini, pelo contrário, se fortaleceu. Ele se
agiganta.
O chefe do partido — que na noite de 28 de janeiro de 1924 se apresenta à
grande reunião da cúpula fascista, a primeira de uma longa série, na sala do
Consistório no Palazzo Venezia — é o mesmo estadista que, no dia anterior,
no Palazzo Chigi, a poucas ruas de distância, conseguiu firmar com a
Iugoslávia um acordo que devolve Fiume à Itália, fechando uma ferida que
sangrava desde 1919. De Belgrado, o rei Alexandre da Iugoslávia saudou o
memorável pacto exaltando seu artífice: “Somente um homem com a
genialidade e a força de Mussolini poderia ser bem-sucedido em uma tarefa
tão árdua.” Assim, a disputa que mantinha abertas as feridas planetárias da
Primeira Guerra Mundial havia anos foi encerrada, e foi ele, Benito
Mussolini, quem a encerrou com um hábil lance diplomático, e não com a
presunçosa aventura de um poeta. Com isso, jogou outra pá de cal na tumba
monumental que Gabriele D’Annunzio, seu eterno rival, está edificando,
ainda vivo, às margens do lago de Garda.
Em certos aspectos, apesar dos sucessos e dos elogios hiperbólicos, esse
Mussolini do início de 1924 ainda é um homem simples. Faz a própria barba,
mal, em dias alternados; os porteiros do Palazzo Chigi, vendo-o usar com
frequência roupas amarfanhadas, sentem pena daquele pobre-diabo cujas
calças ninguém passa a ferro; mora em Via Rasella, não em um palácio ou
em uma villa aristocrática, mas em um aposento do Palazzo Tittoni, de
propriedade do barão Fassini, que lhe ofereceu hospitalidade em troca do
pagamento de um aluguel, mantendo também o direito de coabitar com o
chefe do governo. Dele, ocupa-se apenas uma camareira, uma tal Cesira
Carocci, natural de Gubbio, que também serve de cozinheira nas refeições
frugais que o pensionista consome em casa, muitas vezes sozinho, em poucos
minutos. Segundo os boatos, a camareira também cumpre o papel de cafetina
dos desafogos sexuais, que também são consumados com pressa, com as
calças emboladas em volta dos tornozelos. Cesira o acode, mas o trata sem
deferência excessiva; aliás, queixa-se com o único policial que monta guarda
no andar por causa de um leãozinho, presente do dono de um circo equestre,
que o Duce teima em manter em uma jaula no salão.
No entanto, se você olhar para ele sob outro ângulo, Benito Mussolini é o
conquistador que, se vai a Londres em visita de Estado, na estação Victoria é
acolhido por uma multidão em delírio; é o pensador a quem Giuseppe
Ungaretti, nessa mesma época, pede que escreva o prefácio da sua obra-prima
poética O porto sepulto; é o chefe carismático que industriais, políticos
experientes, bispos e militantes esperam durante horas, trepidantes, para se
encontrarem na antecâmara do seu gabinete na Sala das Vitórias. Até um
animal de combate como Albino Volpi, apesar de ser seu velho conhecido,
tem por ele um temor reverencial: ao chegar à audiência com um par de
sapatos novos, percebendo que as solas rangem um pouco, por medo de
irritar o Duce, o ex-“jacaré do Piave” pede ao garçom um copo d’água e
molha as solas com um lenço. Visto por essa perspectiva, no início de 1924, o
rosto de Mussolini já é o totem que o escultor Adolfo Wildt está retratando
em um colossal busto em bronze fundido e montado sobre uma coluna de
mármore, inundado por uma aura de trágico e inquietante ídolo moderno.
É esse ídolo mal barbeado que se apresenta diante da grande assembleia do
fascismo reunida no Palazzo Venezia para ditar a linha da próxima batalha
eleitoral. Mussolini toma a palavra depois do ministro Giovanni Giuriati, que
falou em nome do governo, e de Enrico Corradini, que falou em nome do
partido.
Em primeiro lugar, anuncia que não fará nenhum outro discurso eleitoral:
considera-os os “mais mortificantes da sua vida”. As eleições serão
realizadas, porém trazem à tona o pior de cada um e, portanto, têm que ser
desprezadas. Depois, eliminando logo o fetiche democrático da sacralidade
eleitoral, Benito Mussolini se dedica a desmistificar outras fábulas. A
primeira é a da pureza original, constantemente invocada pelos membros
“intransigentes” das esquadras, liderados por Farinacci: “É preciso dizer, sem
purismos e sem eufemismos, que a mania do purismo e do dezenovismo, com
base em velhas guardas, no fascismo da primeira ou da vigésima quarta hora,
é simplesmente ridícula.”
Nos bastidores, a ala partidária de Farinacci murmura em
descontentamento, mas o orador já desmascara a segunda fábula, a do “bom
ditador” cercado de “maus conselheiros”, pelos quais seria misteriosamente
influenciado. Aqui o tom passa ao escárnio: “Tudo isso, antes mesmo de ser
fantástico, é idiota. Minhas decisões amadurecem muitas vezes à noite, na
solidão do meu espírito. Aqueles que seriam os cinco conselheiros do tirano
são cinco ou seis pessoas que vão até mim todas as manhãs para me informar
de tudo o que está acontecendo na Itália e que, sobretudo, dividem comigo o
pão salgado da responsabilidade direta do governo fascista.”
O Duce lhes agradece e manifesta sua amizade. Não os cita pelo nome,
mas todos sabem a quem é dirigida sua gratidão íntima: Francesco Giunta,
Emilio De Bono e, principalmente, Cesare Rossi, Aldo Finzi e Giovanni
Marinelli.
Desmistificadas as lendas malévolas dos opositores internos, ele passa à
estratégia para as próximas eleições políticas: o fascismo não faz aliança com
partido algum. Contudo, aceita incluir nas próprias listas homens de todos os
partidos ou também de partido algum, desde que sejam úteis à nação. A
estratégia é clara: desidratar os outros partidos e transferir seus integrantes
para o Partido Nacional Fascista. Para isso, é necessário pôr fim de uma vez
por todas às violências casuais dos membros selvagens das esquadras, acabar
com os loucos, os exaltados, os destinados à morte certeira. O fascismo
triunfará nas eleições trilhando “a via legalista”. Mas também é preciso
acabar com as queixas da oposição sobre as liberdades pisoteadas: “A
revolução fascista não veio com sacrifícios de vidas humanas; não criou até
agora tribunais especiais; não houve rajadas de pelotões de fuzilamento; não
exerceu o terror; não foram promulgadas leis de exceção.”
No fim, o tom se torna solene, os conceitos se elevam: “O fascismo, como
doutrina de potencialização nacional, como doutrina de força, de beleza, de
disciplina, de senso de responsabilidade, já é um farol que brilha em Roma e
que é observado por todos os povos da terra. Quando se trata de pátria e de
fascismo, estamos prontos para matar, estamos prontos para morrer.”
As últimas palavras são pronunciadas com ardor. Todos os presentes,
como se estivessem eletrizados, levantam-se para aplaudir. Os aplausos se
renovam em ondas, por vários minutos.
Enquanto os cortesãos se aglomeram em torno do “bom tirano” na
esperança de que ele os inclua naquelas “listas eleitorais abertas a qualquer
um”, Cesare Rossi se distancia com os outros “maus conselheiros”.
A despeito das proclamações públicas relativas à “via legalista”, em 10 de
janeiro, ele, Giunta, Marinelli e De Bono se reuniram na casa de Mussolini na
Via Rasella, gerida por Cesira Carocci, e ali, após brincarem um pouco com o
leãozinho, decidiram construir um organismo secreto que dependesse
diretamente deles para atingir os inimigos do fascismo. O Duce o considera
indispensável: nessa fase de transição, em que as leis ainda sentem os efeitos
do espírito liberal, não é possível fazê-lo com meios legais. A lacuna deve ser
preenchida.
Durante a reunião, Mussolini também manifestou sua admiração pela
energia impiedosa com que Lênin, na fase nascente do Estado comunista, não
hesitou em autorizar que a Tcheka, a polícia secreta russa, usasse métodos de
terror. O elogio, então, serviu como sugestão aos conselheiros para que
batizassem a organização clandestina com o nome “Tcheka Fascista”. No fim
da reunião, o Duce, satisfeito, cheirou as próprias mãos: “Sinto cheiro de
leão!”, exclamou.
Para ficar à frente da “Tcheka Fascista”, foi proposto o nome de Amerigo
Dùmini. O Duce o aceitou de bom grado. Nos últimos meses, o integrante
florentino das esquadras desempenhara várias missões secretas na França
para eliminar perigosos antifascistas fugitivos.
Lênin morreu em 21 de janeiro e Dùmini terá que arrumar um passe
ferroviário.
Caro presidente, Amerigo Dùmini, para cumprir mandados meus ou de
Finzi ou de outros, é obrigado, com muita frequência, a pegar trens. Essa
necessidade aumentará daqui em diante, sobretudo no incipiente período
eleitoral. É preciso que você, talvez por telefone, peça para Torre ou Chiarini
fornecer a ele um passe ferroviário permanente a partir de 1o de fevereiro:
tudo isso por motivos intuitivos de economia. Saudações, Rossi.

Cesare Rossi, carta a Mussolini,


23 de janeiro de 1924 (grifo do original).
Cesare Rossi
Roma, fevereiro de 1924

Desde que foi nomeado chefe do comitê encarregado de compilar as listas


eleitorais, Cesare Rossi não tem mais paz. Os pedintes não dão trégua.
Encontrou um deles encolhido nos degraus à porta da sua casa na Via
dell’Arancio à meia-noite. Era um ex-deputado da província de Catanzaro
que a camareira em vão tentara dissuadir. “O comendador tem de passar por
aqui”, respondeu inflexível o faminto por reeleição. Outro foi catá-lo na Via
Frattina, no consultório do doutor Visconti, ilustre pedicuro, e leu cartas de
recomendação de altos prelados e príncipes enquanto o doutor limava a unha
encravada do seu dedão.
A comissão é composta pelos habituais homens de confiança de Mussolini:
Michele Bianchi, Aldo Finzi, Francesco Giunta, Giacomo Acerbo. Os jornais
a rebatizaram de “pentarquia”, mas o verdadeiro chefe é ele, Rossi. Em 1o de
fevereiro, ele se instalou no Viminale, no grande salão ao lado do corredor
central da presidência do Conselho de Ministros, e, dali, consultando
governadores de província e prefeitos das principais cidades, submerso por
centenas de telegramas que se amontoam na escrivaninha, perseguido por
milhares de autocandidatos que batem ao mesmo tempo às portas de todos os
partidos, deve redigir o “listão” com 350 nomes, subdivididos em 16
circunscrições que, de acordo com o plano de Mussolini, deveriam formar o
primeiro Parlamento de maioria fascista.
Em público, o Duce continua a ostentar desprezo em relação à corrida pela
cadeira: “Entramos no período da chamada luta eleitoral. Por favor, não se
importem muito com esses jogos de papel. Tudo isso é a velha Itália oficial,
ancien régime. Nada mais ridículo do que pensar em um Mussolini que esteja
exaustivamente compilando listas eleitorais.” Em seu íntimo, porém, o
condottiero de povos ainda se ressente com a corrida ansiosa dos aspirantes a
parlamentar, que o distrai dos tratados com a Iugoslávia e da meditação sobre
a morte de Lênin.
Todavia, o mestre de tática deu a Cesare Rossi indicações precisas para a
compilação das listas. Primeira: se os homens dos velhos partidos quiserem
entrar no “listão” fascista, deverão ser desmembrados. Entrarão um por vez,
de cabeça baixa, desarmados. Ao obrigá-los a abjurar o pertencimento ao
partido de origem, sua reeleição será equivalente a uma rendição. Sua cadeira
no Montecitório implicará a insignificância política. Fim dos partidos
tradicionais, despolitização da vida parlamentar, um único e grande “partido
da nação”: o fascista. Segunda indicação: seja qual for a proveniência dos
desmembrados, seu destino deve ser um só: a submissão ao Líder, a total
dependência da sua vontade e, talvez, do seu capricho. Portanto, o sistema
das nomeações deve vir do alto. Em síntese: só indivíduos, e não partidos, e
todos nomeados por um único homem, o único que importa.
Recebidas as diretrizes, Cesare Rossi deve enfrentar a feira dos aspirantes,
uma balbúrdia de pelo menos três mil suplicantes que chegam a Roma
escoltados por imponentes séquitos de protetores e falastrões e se amontoam,
impassíveis, no palácio do governo, onde acampam por horas e dias,
obrigando o funcionário de serviço a dispersar grupos de deputados com o
velho grito policial usado nas praças com os grevistas: “Circulando, pessoal,
circulando...”.
A corrida pela “medalhinha parlamentar” por parte dos rases das
esquadras, que sempre a desprezaram publicamente, não é menos renhida do
que a dos figurões do Sul, que sempre fizeram dela uma razão de vida.
A luta intestina no Partido Nacional Fascista se torna feroz. Em Turim, a
esquerda fascista apoia Gioda, Ponti e Torre, enquanto a direita de De Vecchi
os combate. O governador da província é obrigado a aplacar cotidianamente a
desavença. Em Ferrara, Olao Gaggioli, reconquistado há pouco para a
ortodoxia, exige de Balbo que também sejam incluídos na lista os outros
dissidentes; em Placência, disputam a candidatura pelo menos três facções
fascistas. A Lombardia, em geral, é um desastre, uma ciranda de dissidências
e expulsões.
Entretanto, no plano político a estratégia de Mussolini está dando frutos.
Não está em jogo apenas a conquista de uma maioria, mas uma gigantesca
operação de transformação para corromper o pouco que resta das ideias do
Risorgimento: uma obra de demolição moral. Esse é o objetivo que Mussolini
estipula para si mesmo, instigando os maiores líderes liberais, com todos os
seus discursos de constitucionalidade e democracia, a entrar no “listão” e a se
endividarem com os fascistas para se reelegerem. Giolitti, por muito tempo
cortejado, embora apoie o “listão” fascista, insiste em formar uma lista
“paralela” própria, mas quase todos os outros aceitaram o englobamento. Em
meados de fevereiro, entre os nomes mais conhecidos do velho mundo
político, Cesare Rossi pode contar com Salandra, o presidente da participação
na Primeira Guerra Mundial; Orlando, o presidente da vitória; De Nicola, o
presidente da Câmara dos Deputados; e mais uma centena de liberais, social-
democratas, democratas independentes de esquerda e populares dissidentes,
prontos para renegar os alardeados ideais em troca de uma cadeira no
Parlamento. Até o senador Agnelli, dono da Fiat, negocia com Rossi para
excluir do colégio eleitoral de Turim alguns sindicalistas fascistas que
limitam seu poder extraordinário sobre os operários em suas fábricas de
automóveis.
Em suma, tudo parece estar tomando o rumo certo. O campo das esquerdas
não causa preocupação: o demônio do suicídio o obsedia mais do que nunca.
Indeciso entre abstenção e participação, o movimento socialista se divide em
três facções: unitários, maximalistas e comunistas. Como se não bastassem
tais divisões, às vésperas da apresentação das listas, foi anunciado um quarto
grupo dissidente: os terceiros-internacionalistas. Entre eles, está Giuseppe Di
Vittorio, sindicalista venerado por todos os camponeses e operários da
Apúlia. Resultado: enquanto o gênio político do Duce obriga quase todos a
entrar em um único listão fascista, a oposição apresentará 21 listas. Nem as
formações mais afins conseguiram formar um bloco. Moral: tantas oposições,
nenhuma oposição.
Sobrou apenas Matteotti vociferando suas acusações. Acabou de publicar
seu libelo intitulado Un anno di dominazione fascista. A inútil ladainha de
sempre. Uma voz no deserto em transformação.
Em contrapartida, o que inquieta o Duce é a dissidência fascista. Em
especial, a de Cesare Forni, o herói de guerra, o rás da Lomellina, o capitão
que liderou o ataque das esquadras à prefeitura de Milão, o chefe do setor
Lombardia-Piemonte durante a marcha sobre Roma. Forni ameaça apresentar
uma lista autônoma no colégio eleitoral de Mortara, onde é venerado pelos
membros lombardos das esquadras como Di Vittorio é venerado pelos
assalariados rurais temporários da Apúlia. Os motivos da desavença são
sempre os mesmos: acusações de “revolução traída”, revolta contra o
mercantilismo dos fascistas de Roma, apelo à pureza das origens. No caso de
Forni, há também uma inimizade com Francesco Giunta, com o qual duelou,
e até uma rivalidade pelos favores daquela puta chamada condessa
Mattavelli.
Amerigo Dùmini, enviado por Rossi para inspecionar a situação lombarda,
fez um relatório alarmante. Em seguida, Rossi convocou Forni a Roma,
tentando trazê-lo à razão. Em troca da retirada da sua candidatura,
ofereceram-lhe o pródigo cargo de inspetor das tropas coloniais na Somália.
O capitão Forni, contrapondo sua lenda pessoal, além do volume dos seus
1,95 metro e 110 quilos, recusou. Para Mussolini, um verdadeiro tormento.
“Quem não está conosco está contra nós.”
É só isso que o Duce continua a repetir para Cesare Rossi nos raros
momentos em que se digna a lançar um olhar de desprezo e ira para o mingau
que borbulha na baixa cozinha eleitoral.
A situação do fascismo milanês, e em algumas zonas lombardas, requer
medidas enérgicas e imediatas [...]. A ala Forni-Sala, unida à de Silva,
poderia exercer pressão — se o movimento de secessão se estendesse —
como uma tenaz sobre uma parte nada desprezível do fascismo provincial e
milanês, e, mais grave ainda, sobre a força das esquadras.

Relatório de Amerigo Dùmini ao ministério do Interior, fim


de fevereiro de 1924

O comportamento eleitoral de Forni cria algo irreparável entre ele e o


nosso partido. Considero Forni um inimigo do meu governo.

Benito Mussolini, telegrama a Umberto Ricci, governador


da província de Pavia, recém-nomeado

Pode me perseguir, presidente. Eu não vou me dobrar até


que o senhor mande tirar minha vida. Nós combatemos uma
batalha santa não contra o senhor, nem contra seu governo,
mas contra a degeneração do partido.
Cesare Forni, carta aberta a Benito Mussolini,
Corriere della Sera, 2 de março de 1924

Ordena-se que os senhores Cesare Forni e Raimondo Sala sejam


considerados os mais temíveis inimigos do fascismo. Por conseguinte, e
paralelamente às instruções fornecidas pelo chefe do governo aos
governadores das províncias, é preciso tornar a vida desses senhores
impossível [...].

Circular telegráfica enviada pelo Partido Nacional Fascista


às federações provinciais lombardas e piemontesas,
11 de março de 1924
Amerigo Dùmini
Milão, 12 de março de 1924
Estação Central

“O que Dùmini está fazendo? Batendo punheta?!”


O átrio da estação ferroviária de Milão está apinhado de pessoas com
idades, sexo e condição social diversos que se amontoam em volta das
catracas de saída, mas, qualquer que seja o modo como ganham a vida, todas
avançam com passos leves e rápidos: nenhuma delas, diferentemente de
Amerigo Dùmini, tem que carregar o peso da furiosa desilusão do Duce.
“O que Dùmini está fazendo? Batendo punheta?!”
Comerciantes, homens de negócios com fraques cinza, soldados de licença
com fardas verde-acinzentadas, dois padres de batina preta, uma mulher com
os filhos, provavelmente voltando de uma visita aos parentes. Todos parecem
um pouco esbaforidos, mas, no fundo, contentes. Nenhuma divindade irada
os amaldiçoou. Olhando-a como um todo, do alto, a humanidade surge como
uma espécie inutilmente afobada e moderadamente feliz. Surge assim quando
você a olha do alto da escadaria de um átrio ferroviário na hora mais
movimentada de um dia útil e, se você se mantiver afastado, procurando o
rosto de um único indivíduo em meio à multidão, vai se perguntar: “Que
lugar eu ocupo naquela corrente?”
Amerigo Dùmini posicionou-se à margem da cena. Está ali sozinho com
sua maldição — “O que Dùmini está fazendo? Batendo punheta?!” — e fuma
um cigarro atrás do outro. Fuma em pé, cigarros de tabaco negro, sem filtro,
ao lado de uma banca de jornal.
As palavras raivosas de um Mussolini enfurecido pela dissidência de Forni
lhe foram relatadas ao telefone por Cesare Rossi, que, convocado com
urgência em 9 de março, ouviu o Duce se queixar que está cercado de
imbecis, que sempre tem de fazer tudo sozinho, que está condenado a
“sempre ser o homem na linha de frente”.
Amerigo acende o enésimo cigarro nas brasas do anterior. Perder a
benevolência do Duce seria uma catástrofe. Após suas missões secretas na
França à caça de antifascistas, Mussolini desejara parabenizá-lo
pessoalmente. A secretaria dos Fasci di Combattimento no exterior mandou
cunhar uma cigarreira de prata para ele — a mesma da qual ele se serve agora
— com uma dedicatória do Duce: “A Dùmini, coração de ferro.” Depois,
Mussolini também lhe enviou uma foto autografada que ele logo publicou na
primeira página do seu jornal de província, o Sassaiola Fiorentina. Como se
não bastasse, no início de fevereiro, Mussolini até o recebeu em casa, na Via
Rasella, para nomeá-lo chefe da “Tcheka Fascista”. Giovanni Marinelli, o
tesoureiro do partido, presente à reunião, propôs que fosse fornecido um
disfarce a Dùmini, contratando-o como inspetor-viajante das vendas do
Corriere Italiano, dirigido por Filippelli, um trambiqueiro a serviço da
família Mussolini que enriqueceu com os excedentes de guerra. Duas mil e
quinhentas liras de salário mensal. E tem também o automóvel do jornal à sua
disposição, o quarto no Hotel Dragoni, o aluguel de 400 liras mensais do
apartamento na Via Cavour, as remunerações, as regalias, as gratificações a
serem divididas a seu bel-prazer entre seus homens de confiança, a mesa
cativa nas trattorie Bracche ou Al Buco. Tudo à custa do partido.
Impensável perder tudo isso, impossível. Quem o conhece há mais tempo
diz que ele, ultimamente, até mudou de caráter. Agora “o Dùmini” é descrito
como um homem exuberante, barulhento, um tipo jovial, irreverente, falador
e gozador.
Quando, no dia anterior, Rossi o descobriu em Perúgia, onde ele se
embrenhara com uma mulher, e ordenou que fosse às pressas para Milão a
fim de coordenar a operação, Dùmini telefonou para Florença, àquele louco
do Pirro Nenciolini, seu companheiro de expedições punitivas nos velhos
tempos, arranjou um grupinho de camaradas de confiança e, em seguida,
pegou o primeiro trem. À sua espera em Milão, encontrou Asvero Gravelli,
comandado diretamente por Francesco Giunta, secretário do partido. Gravelli
lhe entregou 5 mil liras, registradas no livro de pagamentos de Rossi com a
justificativa “para tarefa política especial”. A fim de levá-la a cabo, Roma
também mobilizou os Arditi milaneses da Via Cerva, os de Albino Volpi, a
“esquadra da carne crua”. Assim, a missão fica mais segura; no entanto, o
enxerto dos membros florentinos das esquadras era indispensável: na
verdade, Rossi teme que, se deixasse os rapazes dos Fasci di Combattimento
lombardos por conta própria, eles não executariam a tarefa. Para eles,
significaria envelhecer trinta anos em uma tarde. Seria como surrar a própria
juventude.
Os viajantes continuam a se aglomerar na saída. A escadaria está
congestionada. Àquela hora, três trens chegam quase ao mesmo tempo. Os
capangas de Nenciolini e de Volpi estão posicionados no sopé da escadaria,
na frente das catracas que, sob uma marquise, dão para a praça. Por alto,
devem ser mais de vinte. Cassetetes e porretes com aros de ferro. O homem
que esperam ainda não apareceu, mas não tem como escapar. É um homem
inconfundível.
É o tipo de homem que você sempre gostaria de ter ao seu lado, nunca à
sua frente, mas foi ele quem procurou encrenca. Nas eleições, apresentou
uma lista dissidente: os Fasci di Combattimento Nacionais. Mussolini tentou
de tudo: lhe propôs um comando na África, ameaçou-o, ordenou que os
governadores de província fechassem seus jornais, prendessem seus amigos,
dissolvessem as seções do partido em seus territórios, mas nada funcionou,
ele não cedeu. Depois ultrapassou qualquer limite. Em um comício em Biella,
em uma praça abarrotada com milhares de pessoas, milhares de fascistas,
apontou o dedo contra os mandachuvas do partido: “Conheço muito bem
indivíduos de condição financeira extremamente humilde que, em 1920 e
1921, me pediam poucas liras de esmola para poder matar a fome. Hoje
vivem em Roma, em apartamentos principescos, pagos com o dinheiro do
povo italiano.” E os fascistas o aplaudiram. Até Vittorio Sella, fundador do
Fascio di Combattimento da cidade, subiu ao palco para argumentar, mas, em
vez de replicar, o elogiou.
Lá está ele. Cesare Forni é pelo menos uma cabeça mais alto do que as
centenas de passageiros anônimos, ignorantes e moderadamente felizes.
Impossível não avistar seus cabelos ainda louros e as pálpebras já pesadas
naquele mar de simples transeuntes. Difícil imaginar a violência no meio
daquela multidão de padres, contadores e comerciantes.
Vão enfrentá-lo com o rosto descoberto? Será que Volpi, Nenciolini ou
algum dos outros Arditi vai prestar uma última homenagem ao capitão Forni,
às suas nove medalhas por bravura na Grande Guerra?
Atacam-no pelas costas. Logo desferem pauladas na cabeça, as primeiras
acertam a nuca. Uma selvagem, indubitável vontade de matar. Um enxame de
moscas varejeiras que se transformaram em pupas a partir de larvas
depositadas em restos de comida, em carcaças de animais. Ao redor de Forni,
a multidão — afastada pela força centrífuga da violência — se dispersa.
Sozinho no círculo dos agressores, o agredido parece ainda maior. Enorme,
desarmado, combate com as mãos nuas, com chutes e socos. Com as mãos já
fraturadas pelos golpes, arranca um porrete recoberto de ferro e distribui
golpes cegos. Um sujeito que estava com ele se aproxima. Um dos agressores
sangra, recua, o círculo se rompe. Atraídos pela pausa momentânea, alguns
transeuntes invertem a fuga e se aproximam.
Então, a cizânia de golpes recomeça, o círculo volta a se fechar, dezenas de
madeiras estalam contra os ossos do crânio, quebram úmeros, escafoides,
metacarpos. Cesare Forni, o rosto mascarado de sangue, cambaleia, recosta
em um muro, desaba. Continuam a golpeá-lo mesmo no chão. A multidão
grita “Chega! Chega!”. Quando todos o deixam sozinho, de Cesare Forni
resta apenas um monte de farrapos no imenso volume vazio de um átrio
ferroviário, uma pequena, cega mancha de sangue no universo infinito.
Em 15 de março, Benito Mussolini reivindica em um artigo assinado —
originalmente intitulado “Quem trai morre” — o direito do fascismo de punir
os próprios traidores. Consegue facilmente sustentar que a violência fascista é
pouca coisa comparada à ferocidade com que os bolcheviques exterminam os
dissidentes: na Rússia, no dia anterior, morto Lênin, Stálin ataca
publicamente as teses de Trótski, o principal artífice da revolução. E, afinal
de contas, Forni nem sequer morreu.
Então, na semana seguinte, para agradecer pelo tratado que devolve Fiume
à Itália, Vítor Emanuel III confere a Benito Mussolini o colar da Ordem
Suprema da Santíssima Anunciada, a honorificência máxima da Casa de
Saboia. Agora o filho do ferreiro de Predappio é oficialmente primo do rei.
Como irmão denuncio com alma angustiada tentativa
assassinato organizada e executada hoje Estação Milão em
nome família peço que Vossa Excelência faça com que autores
e organizadores covarde delito facilmente identificáveis sejam
entregues à justiça pelo bom nome fascismo e Itália.

Roberto Forni, telegrama a Benito Mussolini,


12 de março de 1924 (tornado público pelo Corriere
della Sera)

O bolchevismo suprimiu fisicamente os dissidentes


mencheviques. Também não tiveram melhor sorte os
dissidentes socialistas revolucionários [...]. Com que
criminosa cara de pau esses répteis imundos da subversividade
italiana ousam lançar altos lamentos quando alguns traidores
do fascismo são mais ou menos clamorosamente punidos?
Ainda estamos bem longe dos sistemas da Rússia.

Benito Mussolini,
Il Popolo d’Italia, 15 de março de 1924

É necessário ser a favor ou contra. Ou fascismo, ou antifascismo. Quem


não está conosco está contra nós.

Benito Mussolini, discurso comemorativo da fundação dos


Fasci di Combattimento pronunciado no Teatro Costanzi,
Roma, 24 de março de 1924
Giacomo Matteotti
Roma, 1o de abril de 1924

O desconforto os atrai com a isca do abstencionismo. Abstenção ou


derrota? Foi esse o dilema do que restava da oposição socialista desde que,
em janeiro, começaram os comícios eleitorais. Abster-se em massa: é esse o
demônio tentador do deserto deles.
Furtar-se ao evento. Não se sentar à mesa do trapaceiro. Contrapor uma
recusa preliminar, absoluta, ao jogo fraudulento do mundo.
Em um primeiro momento, Giacomo Matteotti também deu preferência a
essa posição. Prevendo uma luta eleitoral dominada pelo cassetete, achou que
deveria virar a mesa. Temendo a derrota viciada pelo jogo sujo dos fascistas,
a virtude sugeria que ele a evitasse, que se retirasse, que combatesse uma
batalha de desengajamento, considerando o presente já perdido. No fundo,
sob o céu dos violentos, onde nem o azul dá trégua, até as eleições eram
apenas um episódio. Eles deviam, e podiam, somente manter a posição,
reforçá-la para um futuro distante, dizer “não” aos dias do presente, embora
não se avistasse sinal algum de um futuro diferente no horizonte.
Nos primeiros meses do ano, Matteotti trabalhou nesse projeto. Por um
instante, pareceu que sua esperança desesperada pudesse reagrupar todas as
forças antifascistas na abstenção em massa. Em fevereiro, o acordo com os
democratas de Giovanni Amendola, espancado no fim de dezembro pelos
membros das esquadras, parecia próximo. Por um instante, até pareceu
possível a reunião das esquerdas em prol da proposta comunista de “Frente
Única Proletária”. No entanto, tudo voltou a cair na divergência. O gosto pelo
fratricídio e o fascínio pelo desastre voltaram a levar a melhor, e Matteotti foi
o primeiro a cair novamente na polêmica com os cruéis irmãos do Partido
Socialista Italiano. Acusou-os de executar “a manobra de sempre,
descarregando sobre nós, infames reformistas, a responsabilidade pela
divisão e pelo enfraquecimento do proletariado”.
Com a perda da esperança da frente unitária, o secretário do Partido
Socialista Unitário abandonou a ideia da abstenção. Na decomposição, no
aturdimento, com tantos companheiros e dirigentes desesperançados, prontos
a ceder, a se render, a abstenção acabaria sendo somente uma fuga, um meio
mesquinho para escapar da realidade. Era necessário, então, retomar a luta,
em todos os campos, não ceder um metro sequer, não recuar nem um passo
em todos os terrenos, até no eleitoral. Às vésperas das eleições, foi o que
também escreveu a Turati, o afável patriarca do socialismo humanitário: era
necessário endurecer, recrudescer, cavar um sulco entre maioria e oposição,
entre fascistas e socialistas, entre socialistas puros e socialistas
colaboracionistas, um sulco que ninguém ousaria ou poderia transpor.
É o que Matteotti escreve para Turati. No entanto, para Velia, ele já não
escreve há meses. A última missiva para a mulher é um cartão ilustrado de
Veneza, datado de 28 de dezembro de 1923. Reproduz o voo dos pombos na
Piazza San Marco. A dedicatória diz apenas: “Saudações bem.” Duas
palavras, nem uma vírgula. O deserto engoliu até a pontuação.
Entretanto, não falta nem mesmo uma vírgula no livro que Matteotti
acabou de publicar: Un anno di dominazione fascista. Na sua minuciosa lista
das violências cometidas pelos homens do regime, abusos e delitos
perpetrados pelos integrantes das esquadras nas províncias enquanto
Mussolini, em Roma, se finge de pai da pátria, não falta uma cruz sequer. As
surras, os incêndios e os assassinatos são elencados um a um, às dezenas, às
centenas, aos milhares. Ao lado de cada um deles, o lugar, o nome, a data,
como nas lápides funerárias.
Mas o livro em que Matteotti trabalhou por tantos meses, consumindo-se
na vertigem da lista, mal é publicado e já está desatualizado. Suas páginas
minuciosas haviam acabado de deixar a tipografia quando chegou a notícia de
que, em Reggio Emilia, foi assassinado o candidato socialista Antonio
Piccinini, também ele tipógrafo de profissão. Penduraram seu corpo em um
gancho de açougue.
É assim: a história da tragédia humana é um editor faminto. Você acaba de
publicar o volume completo e ele já exige que se acrescente um novo capítulo
sobre o último delito que acabou de ser noticiado. Mas Giacomo Matteotti,
como de costume, não desiste. Em fevereiro, publicou a primeira edição da
sua enésima denúncia; em março, já trabalha na reedição.
E o secretário do Partido Socialista Unitário não abre mão nem da sua
censura escrupulosa das malversações econômicas. Está preparando um
dossiê no qual demonstra que o fechamento das contas apresentado pelo
governo Mussolini a Vítor Emanuel III, e por ele endossado, é falso.
Matteotti redige listas de malversações com prejuízo para o Estado não
menos minuciosas do que as compiladas dos delitos de sangue. Aqui a
vertigem das listas também retorna: interesses privados na reconversão
colossal do aparato industrial, bilhões perdidos pelo fisco ao abrir mão da
taxação dos lucros extraordinários de guerra, privatização de setores públicos
estratégicos inteiros, como o da telefonia, auxílios a bancos fraudulentos,
especulações financeiras, fraudes contra o erário. Ele anota tudo
minuciosamente, procura documentos que corroborem, como se anotar uma
manobra após a outra pudesse por si só garantir um ressarcimento, como um
caixeiro-viajante que reivindica seu reembolso ao pé da lista.
Agora, de Londres, os companheiros das trade unions informam que têm
revelações comprometedoras sobre os acordos secretos do governo italiano
com a Sinclair Oil, sociedade americana que está recebendo o monopólio da
prospecção petrolífera em grande parte do subsolo italiano. Um lote de mais
de 75 mil quilômetros quadrados, um quarto do território nacional. Uma
propina colossal, segundo os boatos. Matteotti já se programa para ir a
Londres no fim de abril. Antes, porém, são realizadas as eleições. Dali a seis
dias, em 6 de abril. É preciso combater esse outro round na luta de um
homem contra o mundo. Quem vencerá?
Não se pode dizer que o país seja indiferente em relação à pergunta. Nos
últimos dias, as tiragens dos jornais aumentam, as sessões dos partidos
enchem, as discussões nos bares esquentam. A paixão política se inflama
desde ontem à noite, os homens do povo de Campo Marzio, onde Giacomo
Matteotti mora com a família, só falam daquela menina. Brincava no
parquinho da Piazza Cavour, perto da mãe, a pouca distância dali. Então a
mãe percebeu que a filha havia desaparecido. Duas horas mais tarde, uma
mulher ouviu um choro de criança atrás de uma sebe. Encontrou-a com a
sainha rasgada, um lenço colorido em volta do pescoço. Alguém viu um
homem alto, distinto, magro, na faixa dos 50 anos, recompor-se e escapar.
Todavia, o estado da pequena Emma não permitia que os socorristas
dedicassem a devida atenção ao fugitivo.
Antes de mais nada, é preciso assumir, em relação à Ditadura fascista, um
comportamento diferente do mantido até aqui; a nossa resistência ao regime
do arbítrio deve ser mais ativa; não ceder em nenhum ponto; não abandonar
nenhuma posição sem os mais incisivos, os mais altos protestos. Todos os
direitos dos cidadãos devem ser reivindicados; o mesmo código reconhece a
legítima defesa. Ninguém pode se iludir de que o fascismo dominante vá
depor as armas e restituir espontaneamente à Itália um regime de legalidade e
de liberdade; tudo o que ele obtém o impele a novos arbítrios, a novos
abusos. É a sua essência, a sua origem, a sua única força; e é o próprio
temperamento que o dirige.

Giacomo Matteotti, carta a Filippo Turati, às vésperas das


eleições de 6 de abril de 1924
Benito Mussolini
Milão, início de abril de 1924

Ele dorme pouco, mal, sonos perturbados: seu pesadelo são as urnas
vazias. À medida que 6 de abril se aproxima, a inquietude cresce. Não teme
um novo despertar das oposições, nem um sobressalto das consciências: tem
medo do vazio. Seu espectro é a abstenção em massa, a surpresa assustadora
de um tranquilo domingo de abril, domingo eleitoral, domingo italiano, nos
quais as seções eleitorais permanecem desertas. Todos desapareceram, foram
para a praia, para a montanha, estão amontoados em suas cozinhas, uma
nação inteira que — nauseada por uma força arrebatadora à qual não
consegue opor nada exceto a própria crise violenta de repulsa —, em vez de
ir para as praças, levantar barricadas e votar abertamente contra, revoga em
bloco sua procuração. Uma nação fantasma. Esse é o seu espantalho.
O fundador dos Fasci di Combattimento não teme a luta, a derrota em
campo aberto, a descoberta repentina daquela hostilidade incansável que
arma a mão do inimigo. Ele tem medo do medo. Aquele medo que devora a
alma, que devora o coração de todo um povo fechado em casa depois das
19h.
Dessa maneira, o período que antecede a eleição se transforma em um
alerta contínuo. O chefe supremo do fascismo apura o ouvido e fica
escutando as notícias das províncias. A cada vez que os ecos de gritos
remotos o informam de uma violação deslavada das liberdades civis na
planície do Sarno ou de uma violência fascista gratuita na foz do rio Pó, ele
se enfurece, lança impropérios, depois transmite circulares aos governadores
de província ordenando a mais severa repressão de qualquer ilegalidade.
Entretanto, as ilegalidades proliferam como colônias de bactérias em um
fruto putrefato. Nas principais cidades das províncias, a luta eleitoral ocorre
com aceitável regularidade, mas, nos centros menores, os jornais são
fechados, as agressões aos candidatos da oposição são incontáveis, em
Novellara, em Frascati, em Veneza, em Prato e em muitos vilarejos da
Brianza agridem até os sacerdotes; em muitas regiões do Sul e do Vale do Pó,
os pequenos rases das províncias, refratários a toda e qualquer disciplina,
proclamam abertamente que não permitirão a candidatura de nenhuma chapa
exceto a fascista, expulsam das cidades os líderes socialistas, chegam a
intimar a entrega dos certificados eleitorais na sede local do Fascio di
Combattimento.
Quando chegam essas notícias, o presidente do Conselho de Ministros
reforça as ordens para aumentar a severidade da repressão. Em meados de
abril, De Bono telegrafou por impulso ao chefe de polícia de Milão
ordenando a prisão até de Albino Volpi caso este continuasse a perturbar as
vésperas das eleições. Mas depois o Duce do fascismo nunca reúne coragem
para impor a execução daquelas ordens. Não consegue se decidir: quer ser
amado por um sentimento plebiscitário, quer o consenso do povo, mas não
sabe abrir mão do fórceps com o qual sempre o pariu. E se o povo, deixado
por conta própria, não o elegesse, se o seu amor não fosse sincero?
Benito Mussolini passa a semana que precede as eleições de 6 de abril em
Milão, onde chegou ao volante de um carro esportivo. Os colaboradores mais
próximos engolem cotidianamente a pílula tóxica do seu descontentamento,
do seu nervosismo: suportam os ataques de fúria contra o sistema
parlamentar, o incômodo em relação aos chefes fascistas que não resistem à
“volúpia do mandato”, à doença eleitoral, ouvem-no despejar toda a amargura
que carrega no corpo em discursos públicos impertinentes nos quais
contempla a instituição de tribunais especiais e a prorrogação dos plenos
poderes e esbanja um pessimismo cósmico, um desprezo universal.
A desconfiança em relação ao gênero humano é o tema obsessivo do
“Prelúdio a Maquiavel”, que Mussolini escreve para o número de abril da
Gerarchia, a revista dirigida por Margherita Sarfatti. O Duce reevoca as
páginas de O príncipe que havia escutado da boca do pai quando adolescente.
Declara-se plenamente de acordo com o pessimismo antropológico de
Maquiavel. Os Estados são mantidos com as espadas, e não com as palavras.
Os indivíduos tendem a evadir o tempo todo, a desobedecer leis, a sonegar
impostos, a não ir para a guerra. O poder não emana de forma direta da
vontade do povo. Trata-se de uma ficção. O povo, por si só, não é capaz de
exercer de forma direta a soberania, pode apenas se limitar a delegá-la.
Regimes exclusivamente consensuais jamais existiram e, provavelmente,
jamais existirão. Todos os profetas armados vencem e os desarmados
sucumbem.
Os seres humanos são tristes, mais afeiçoados às coisas do que ao próprio
sangue, prontos para mudar sentimentos e paixões. Foi o que escreveu o
secretário da República florentina, o fundador da ciência política moderna, no
início do século XVI; e Benito Mussolini, presidente do Conselho de
Ministros do Reino da Itália, no início do século XX e às vésperas das
eleições, confirma: “Muito tempo se passou, mas, se me fosse dado julgar os
meus semelhantes e contemporâneos, eu não poderia de forma alguma
atenuar a opinião de Maquiavel. Talvez devesse agravá-la.”
Para fugir do seu entourage de amedrontados e cortesãos, Mussolini se
refugia logo na casa de Margherita Sarfatti, viúva havia poucas semanas.
Embora Rachele esteja hospedada com toda a família ali perto, no novo
apartamento da Via Mario Pagano, ele não volta para casa à noite.
Oficialmente dorme na sede do governo da província com a desculpa de
comandar dali a luta eleitoral, mas, na realidade, passa as noites no prédio da
amante no Corso Venezia. A tensão nervosa, o asco furioso pelos próprios
semelhantes, a melancólica visão da miséria humana despertaram no macho,
como muitas vezes acontece, o fervor erótico. Rachele, humilhada, pega as
três crianças e se refugia em Forlì, na casa da irmã Pina, por sua vez mãe de
sete filhos, acometida por tuberculose.
O marido toma conhecimento no fim do enterro de Nicola Bonservizi,
fundador do Fascio di Combattimento de Paris, companheiro dos primeiros
tempos, assassinado por um anarquista enquanto estava sentado à mesa de
um café. Seu caixão é transportado nos ombros da estação até a sede do Il
Popolo d’Italia, e dali até a sepultura. Mussolini o segue a pé ao longo de
todo o percurso, sob chuva forte. Participa com tristeza, abatido, silencioso,
das exéquias grandiosas para o velho companheiro de luta.
Encerrado o cortejo fúnebre, Cesare Rossi o informa da fuga de Rachele. A
tragédia da história se mistura à farsa conjugal em meio ao pólen do
Cemitério Monumental. Mas não há um instante sequer de descanso: mal o
caixão de Nicola Bonservizi baixa à sepultura, quatro delegados das
províncias pedem audiência para falar de irregularidades eleitorais. Ele
balança a cabeça e se vira para Rossi: “Esta é a última vez que serão
convocadas eleições. Da próxima vez, eu votarei por todos.”
Já há relatos e especulação sobre incidentes eleitorais que jornais
subversivos publicam em negrito para impressionar exterior e interior. É
absolutamente indispensável 1) tomar todas as medidas preventivas
necessárias para evitar incidentes 2) reprimi-los da maneira mais rápida 3)
assinalá-los ao ministério do Interior a fim de que se possa identificar
entidades para frustrar eventuais especulações [...]. É imprescindível impedir
ações vandalismos contra jornais oposição especialmente se como assegurado
a lista nacional sairá vitoriosa das eleições. Informar isso a Cesare Rossi e
outros.

Benito Mussolini, telegramas a todos os governadores de


província do Reino e ao diretor-geral da Segurança Pública,
29 de fevereiro, 4 de abril de 1924

Fica decidido que não será permitido a outras listas, qualquer que sejam
suas cores, contraporem-se à nossa, ainda que em minoria, e serão tomadas as
providências consideradas mais oportunas contra aqueles que vierem a fazer
propaganda de abstenção.
Ordem do dia votada pelos fascistas de Moggio (Udine),
1924

Em tempos de destruição da democracia, as eleições são uma grandeza


totalmente errada para medir as relações de força.

Ignazio Silone, dirigente do Partido Comunista da Itália,


exilado político na França, 1924
Margherita Sarfatti
Veneza, 1o de abril de 1924

A XIV Exposição Internacional de Arte da cidade de Veneza é a primeira


da era fascista. Como sempre, as gôndolas, festivamente adornadas, desfilam
em cortejo na praça d’água da bacia entre San Giorgio e San Marco. Como
sempre, a sabedoria popular dos carpinteiros navais dos estaleiros de San
Trovaso as esculpiu na madeira perfeitamente desequilibradas para que os
gondoleiros possam governá-las remando de um lado só. Como sempre, os
artistas marcam de se encontrar no Caffè Florian, as senhoras recebem nos
salões dos seus palácios no Canal Grande e Veneza — museu de si mesma há
quase dois séculos — é o pano de fundo perfeito para uma exposição de arte.
Este ano, no entanto, quem recebe o rei Vítor Emanuel III no jardim do
Palazzo delle Esposizioni, sob o Leão de San Marco, são os hierarcas de
camisa negra.
De certo modo, para Margherita Sarfatti também é a primeira Bienal da
vida. Mesmo para ela, que, nascida em Veneza, nunca perdeu uma mostra de
arte, viu-as todas, desde que seu pai, o próspero comerciante judeu Amedeo
Grassini — que, após fundar a primeira empresa de lanchas a vapor, iniciou
um grupo financeiro para a transformação do Lido em local turístico e se
tornou conselheiro municipal, deixando o Gueto e mudando-se para o
Palazzo Brembo — começou a levá-la, ainda criança, às bienais entre os
gentios que tiravam o chapéu quando passavam.
Apesar de tudo isso, para Margherita, é uma estreia. Expõe, pela primeira
vez, em uma sala reservada só para ela, os pintores do seu grupo
“Novecento”. Deixa-se fotografar no meio deles, entre as telas bem
escolhidas, bem posicionadas, minuciosamente distanciadas, tensa, os ombros
contraídos, coberta por echarpe e touca, menor do que já é, a única mulher
entre seis homens, a única mulher em um mundo cultural dominado por
homens.
Para Margherita, é a prova decisiva. Sua ideia de uma nova objetividade
artística, de um retorno à ordem, de um classicismo moderno baseado na
composição geométrica, na consistência do desenho, na harmonia da cor, na
maternidade puríssima de uma jovem operária retratada como uma madona
renascentista por Achille Funi, vai ser mostrada, ao lado dos pavilhões do
Japão, da Romênia e dos Estados Unidos da América, ao mundo que atracou
no cais de Riva degli Schiavoni, representado pelas delegações internacionais
da Espanha, Bélgica, França, Holanda, Hungria, Grã-Bretanha, Alemanha e
Rússia. Mas a prova à qual Margherita se submete também é decisiva para a
sua ideia de um poder da arte que dialogue de igual para igual com o poder
político, que fale a mesma linguagem dele, que forme com ele uma nova
constelação. Não é a estreia apenas da crítica de arte, mas da “ninfa Egéria”,
da “ditadora da cultura”, da “presidenta”, é a estreia da amante culta de
Benito Mussolini. Todos estão com os fuzis apontados para ele e para ela.
Apesar disso, tudo corre bem. Não há dúvida de que as obras do grupo
“Novecento” são bonitas, bem escolhidas, bem expostas. Apenas Marinetti,
durante a cerimônia de inauguração, na presença do rei, traz um pouco da
velha agitação ao interromper o preâmbulo de Giovanni Gentile com gritos
de “Abaixo a Veneza saudosista!”. Mas, a essa altura, o caos futurista é
afetação, Marinetti recai na caricatura de si mesmo, todos sabem que ele
protesta porque não foi convidado, correm boatos de que em breve vai se
casar e constituir família. O incidente, provavelmente, é até bem recebido
pelo soberano, que aproveita para abandonar antecipadamente a sala e o
tédio. Enfim, a nova ordem, desejada por Margherita e imposta por Benito
Mussolini, triunfa. Contudo, para ela, é uma vitória com gosto de derrota.
O primeiro dissabor foi causado, já na véspera do vernissage, pela
deserção de Ubaldo Oppi. Alto, louro, um corpo esculpido nas academias de
boxe — talvez o pintor mais representativo do grupo —, Oppi aceitou o
convite de Ugo Ojetti, crítico de arte do Corriere della Sera, para expor suas
pinturas em outra sala dedicada a ele. Depois foi a vez da crítica malévola:
Giovanni Papini escreveu sobre uma arte “mole e inchada como uma
bexiga”. Por fim, com tudo pronto, houve a desistência de Anselmo Bucci, o
mais jovem de todos, o dândi do grupo, lindo como Lúcifer.
De resto, o ano de 1924 se iniciara para Margherita sob uma má estrela.
Em 18 de janeiro, no trem que, de Roma, o levava de volta para casa, Cesare
Sarfatti teve um mal súbito. Morreu cinco dias mais tarde. Após tantas
frustrações em suas ambições políticas, Margherita havia acabado de obter do
amante para o marido a presidência da Cassa di Risparmio delle Province
Lombarde, mas o coitado, acometido por uma apendicite inoperável, nem
teve tempo de aproveitar o cargo. Morto o marido, quando enfim ela estava
livre para o amante, este também a desertou. Logo após a morte de Cesare,
Mussolini confiou-lhe publicamente a responsabilidade jurídica da
Gerarchia, que àquela altura já se tornara a revista oficial do regime, mas a
sacerdotisa da arte fascista via-se com cada vez mais frequência a esperá-lo
em vão nos quartos solitários dos seus hotéis tristes. Aquele homem viajava
sempre em trilhos duplos, na política e no amor: a praça e o palácio; as
esquadras e os ministérios; a amante e a mulher. Nenhuma possibilidade de
seguir o trilho único de uma vida reta.
Resumindo, outro fracasso. Sim, ela foi capaz de ensinar a ele como se usa
um talher de peixe, mas, no fim, quando precisou escolher uma estátua da
Vitória para o seu gabinete no Palazzo Chigi, entre os milhares de mármores
antigos de Roma, O Duce do fascismo realizou a proeza de selecionar uma
falsificação.
Todavia, Benito Mussolini e Margherita Sarfatti, por enquanto, ainda se
frequentam. Nos dias que se sucederam à inauguração da Bienal, quando vai
a Milão, fingindo dormir na sede do governo da província, agora que Cesare
repousa na ala judaica do Cemitério Monumental, o presidente do Conselho
de Ministros, em vez de ficar na sua própria casa, se refugia diretamente no
palácio dos Sarfatti no Corso Venezia. Ele está raivoso, ansiosíssimo por
causa dos resultados das eleições iminentes, todos os músculos do corpo
estendidos na direção da conquista do poder absoluto. Ela o acolhe, como
sempre, dedica-se a ele, acalma-o, mas, evidentemente, não consegue
esconder o próprio descontentamento de mulher decepcionada. Então, voltam
a falar de viagens, de lonjuras exóticas, de desertos africanos. A viagem de
Margherita à Tunísia no ano anterior foi fecunda. Na volta, após ter penado
tanto para obter de Benito a permissão para ir, ela conseguiu escrever um
livro de sucesso. Mas agora é ele quem a aconselha a partir.
Ela viaja outra vez, porém não vai tão longe. Ao chegar à Espanha,
descendo a escada de um hotel de luxo e de uma sorte em declínio, a viajante
cai e quebra a perna.
Quantas coisas tristíssimas à nossa volta, que tecido de insídias, quanto
sofri neste longo e infaustíssimo ano com toda sorte de dores.

Margherita Sarfatti, carta a Benito Mussolini, 1924

Quanto é melhor e maior a arte, até em suas manifestações mais


rudimentares, do que a política, por mais brilhante que seja.

Margherita Sarfatti, carta a Arturo Martini, 1924


Roma, 24 de maio de 1924
Parlamento do Reino, plenário de Montecitório

Quatro milhões, seiscentos e cinquenta mil votos. Dois de cada três


italianos votaram na chapa nacional do Fascio di Combattimento Litório. A
lei Acerbo previa um desmesurado prêmio de maioria para a chapa que
superasse 25%. Não houve necessidade: a chapa fascista obteve 64,9% dos
votos. Elegeu todos os seus 356 candidatos, até o último. A eles,
acrescentam-se os 19 eleitos de uma chapa nacional suplementar. Até o
comparecimento às urnas aumentou. O governo de Benito Mussolini poderá,
assim, contar no Parlamento com uma maioria esmagadora de 374 eleitos.
Não há dúvidas: a Itália, já conquistada pelo Duce do fascismo, agora se
submeteu a ele. Até alguns dos inimigos mais inflexíveis reconhecem que a
vitória de Mussolini é incontestável. Em sua revista, Piero Gobetti define a
subordinação da classe dirigente liberal ao fascismo como “obra-prima do
mussolinismo”.
O triunfo. Na Roma Antiga, era a homenagem máxima prestada em
cerimônia solene a um general vencedor. Após a vitória eleitoral, é concedida
a Benito Mussolini a cidadania honorária da “cidade eterna”. Ao recebê-la no
Capitólio no aniversário de sua fundação, o Duce fala inspirado pela honra
mais gloriosa. Desde garoto — revela Mussolini —, Roma sempre foi imensa
em seu espírito que se debruçava sobre a vida. Ele agora se inclina diante do
segredo que nenhuma crítica pode revelar: o de um pequeno povo de
camponeses e pastores que conseguiu, aos poucos, elevar-se a potência
imperial e transformar ao longo dos séculos o obscuro vilarejo de cabanas às
margens do Tibre em uma cidade gigantesca, que contava seus cidadãos aos
milhões e dominava o mundo com suas legiões.
Ao fim do discurso, enquanto Mussolini assiste a um desfile das
organizações sindicais, ocorre algo extraordinário: uma massa que se tornou
selvagem por causa do entusiasmo carrega-o em um turbilhão e dá duas
voltas na praça, arrancando-o de toda e qualquer proteção da polícia.
As reportagens dos jornais que o apoiam perpetuam também nas semanas
seguintes a sugestão do pai da pátria comovido pelo sopro amoroso dos seus
filhos. Durante uma viagem à Sicília, o presidente do Conselho de Ministros
Mussolini promete que acabará com a máfia: “Não deve mais ser tolerado
que poucas centenas de bandidos subvertam, empobreçam, achaquem uma
população magnífica como a de vocês.” Nas colinas de Florença, ao fim de
uma convenção de mutilados e inválidos, o ex-bersagliere se senta à mesa
com os colegas de trincheira martirizados enquanto a noite cai sobre o parque
da mansão e estende sobre seus rostos a sombra da tragédia. Àqueles que o
chamam para ir à cidade a fim de cumprir os compromissos de governo, ele
responde: “Sinto-me triste e bom, deixem-me ficar com vocês.”
A todos os italianos, em seu primeiro discurso após as eleições, o
Estadista, investido da responsabilidade do seu dever histórico, proclama
equânime: “Queremos dar cinco anos de paz e de trabalho fecundo ao povo
italiano. Morram todas as facções, até a facção fascista, desde que a Itália seja
sempre grande e respeitada.”
Mas as facções não morrem, e nem toda a Itália está com Mussolini. Os
partidos de oposição foram sem dúvida dizimados: os deputados socialistas,
em comparação com a legislatura anterior, diminuíram de 123 para 46; os
populares, de 108 para 39; e os democratas, de 124 para 30. Só os comunistas
ganharam alguma coisa, passando de 15 para 19 deputados. Entre eles,
Antonio Gramsci entra para a Câmara no lugar de Nicola Bombacci, excluído
da chapa. Contudo, a análise do voto, realizada friamente com base nos dados
que chegam do ministério do Interior nos dias seguintes à embriaguez, revela
que a grande chapa fascista está em minoria nas grandes regiões
industrializadas do Norte e em todas as principais cidades de suas províncias,
incluindo Milão: os operários das fábricas do Norte se obstinaram em votar
contra o fascismo. Seu triunfo se deve ao plebiscito no Centro e, sobretudo,
no Sul, onde o fascismo quase não existia até a marcha sobre Roma. Foram
os fascistas recentes que entregaram o país a Mussolini, foi a vocação à
servidão dos povos com pouca educação política, a corrida para pular na
carruagem dos vencedores. Embora derrotado, Giacinto Serrati, secretário do
Partido Socialista que se refugiou em Moscou, clama por vingança em nome
daqueles operários de fábrica milaneses, genoveses e turinenses.
Mussolini sabe de tudo isso e fica profundamente incomodado. A ideia de
que há alguém lá fora que nega a ele seu próprio triunfo é insuportável. Sua
exasperação atinge o ápice quando lê nos jornais de oposição a intenção de se
contestar, desde a primeira sessão do novo Parlamento, a legitimidade da sua
eleição. Cesare Rossi, recém-promovido a chefe do quadrunvirato que
sustenta o partido com Marinelli, seu tesoureiro, é testemunha, como sempre,
dos humores do Duce: “O que eles querem? Ainda não se convenceram?
Enfim, o que eles querem? Que o sapo seja estripado?”, grita um Mussolini
encolerizado. Os acessos de fúria terminam invariavelmente na blasfêmia:
“Senhorzinho Maldito!”
Os fascistas também estragam o triunfo de Mussolini. As facções não
morrem nem mesmo entre seus apoiadores. Massimo Rocca retoma a
polêmica revisionista contra Farinacci, e os membros das esquadras nas
províncias dão continuidade às violências privadas disfarçadas de motivações
políticas. Durante um encontro com Ettore Conti, convocado para discutir
questões financeiras, o grande industrial reafirma para o presidente do
Conselho de Ministros a aversão dos cidadãos aos vandalismos contínuos dos
camisas-negras. Mussolini balança a cabeça e golpeia o espaldar da poltrona.
— Senador, o senhor estaria disposto a dar tiros de fuzil por mim?
— Repito que não — rebate Conti. — Tendo jurado fidelidade ao rei,
estaria disposto a fazer isso somente por ordem dele.
— Os violentos! Os violentos! — explode Mussolini. — Muito bem, eu
também preciso deles!
E tem mais. A imprensa adversária monta uma campanha feroz sobre o que
define como o “escândalo do petróleo”. O governo assinou em 29 de abril a
concessão dos direitos de exploração do subsolo italiano para a Sinclair Oil,
mas, poucos dias depois, Mussolini em pessoa é obrigado a mentir em um
comunicado à imprensa no qual assegura solenemente que a empresa
americana não está envolvida com as multinacionais que detêm o monopólio
do comércio exterior do petróleo na Itália. A mentira é necessária: correm
boatos de que Giacomo Matteotti, em viagem recente à Inglaterra, obteve
provas da corrupção subjacente.
De qualquer forma, em 24 de maio, no aniversário de 9 anos da entrada da
Itália na Grande Guerra, é inaugurado o Parlamento resultante das eleições
“triunfais” de 6 de abril. A data foi escolhida para marcar o início de uma
nova era fascista. A nova era, porém, tem dificuldade para começar.
Em protesto contra as irregularidades eleitorais, os socialistas deixam o
plenário. Suas cadeiras vazias, embora poucas, abrem um abismo no triunfo
de Benito Mussolini, que ainda agora, e apesar de tudo, odeia ter de se passar
por um homem de direita. Justamente da bancada da direita, onde estão
sentados seus seguidores, elevam-se insultos e ameaças aos ausentes. Vítor
Emanuel III, rei da Itália, ignorando tal abismo, inaugura a nova Câmara com
tom triunfante, saudando nos novos eleitos “a geração da Vitória”. Benito
Mussolini assiste impassível da cadeira do governo, de braços cruzados.
A prática de não resistir ao mal é uma doença não menos
grave do que a politicagem do nosso país [...]. O dever das
oposições é exasperar a luta, não se deixar abater pela
intransigência, provocar o regime sem conceder trégua [...].
Não seremos nós a contestar ao fascismo sua maioria. Nós nos
contentamos modestamente com um futuro que talvez não
vejamos.

Piero Gobetti, “Depois das eleições”, La rivoluzione


liberale, 15 de abril de 1924
Roma, 30 de maio de 1924
Montecitório, Câmara dos Deputados

— Pediu a palavra o deputado Matteotti. Está concedida.


Os rumores se iniciam assim que o novo presidente da Câmara dos
Deputados, o jurista Alfredo Rocco, passa a palavra a Giacomo Matteotti.
Começam com um zumbido surdo, de refluxo marítimo, antes mesmo de ele
pronunciar uma única sílaba. É um homem sozinho, quase desamparado,
aquele que se levanta da bancada da esquerda anunciado por um véu sonoro
de incômodo e aversão.
Em quatro anos de mandato, Giacomo Matteotti já pronunciou 106
discursos, longos, minuciosos, muitas vezes enredados em questões
financeiras e contábeis das quais ninguém — exceto ele e poucos outros —
entende nada. Sua figura magra, consumida, os raros sorrisos de gengivas
retraídas que revelam as raízes dos dentes decerto suscitam a admiração de
alguns, mas, para outros, incluindo muitos dos seus companheiros de partido,
Matteotti é apenas irritação, tormento e rancor.
Seu primeiro tema é a lista dos nomes propostos pela junta eleitoral para a
validade do pleito. A primeira interrupção — causada pelo grito de um
deputado da direita — o atinge após somente três frases. Matteotti a ignora.
— Ora, contra a validade, apresentamos esta pura e simples exceção: a lista
de maioria governista, que obteve nominalmente uma votação de quatro
milhões e tantos de votos, não os obteve, na verdade, livremente...
Logo os comentários, os rumores e os protestos o interrompem novamente.
O secretário do Partido Socialista Unitário está mirando no maior alvo:
entrou no plenário para contestar logo de cara, desde a primeira afirmação, a
validade das eleições. As frases seguintes do discurso repetem o argumento
como em uma ladainha fervorosa: “para nós, essencialmente, não é válida”,
“nenhum eleitor italiano se encontrava livre para decidir com base na própria
vontade”, “nenhum eleitor se encontrava livre diante desse quesito”...
— Oito milhões de italianos votaram! — berra o fascista Meraviglia.
— Você não é italiano! Vá para a Rússia, renegado — insulta-o Francesco
Giunta, pondo-se de pé sobre a bancada.
Os impropérios o submergem. Matteotti permanece imperturbável. Lembra
que o governo, para constranger os eleitores, dispunha de uma milícia
armada. Sua cantilena incessante agora bate nesta tecla: “existe uma milícia
armada...” (interrupções à direita, rumores prolongados) “há uma milícia
armada...”(rumores, protestos, vociferações) “uma milícia armada composta
por cidadãos de um único partido que deveria se abster, mas estava agindo...”
A irritação dos 370 parlamentares fascistas, uma maioria esmagadora,
atropela o orador. Os corações martelam nos peitos, a pressão dilata as
artérias, o plenário de Montecitório se impregna dos indícios de sangue.
Quase todos, a essa altura, se calariam, mas Giacomo Matteotti desafia a
tempestade e começa a lista das violações. Assinaturas que faltam na
apresentação das listas, formalidades notariais impedidas com o uso de
violência, comícios eleitorais negados aos opositores, sessões dominadas
pelos representantes da lista fascista...
Explode um novo escarcéu. Interrupções, rumores, injúrias. Covarde,
mentiroso, provocador. Injúrias, rumores, interrupções. Provocador,
mentiroso, covarde. Matteotti os rechaça: ele professa a fé nos meros fatos.
Está se limitando a elencar os fatos.
Matteotti: Vocês querem os fatos detalhados? Aqui estão: em Iglesias, o
colega Corsi estava coletando trezentas assinaturas e sua casa foi cercada...
Vozes da direita: Não é verdade, não é verdade!
Bastianini: Isso é o que o senhor diz!
Carlo Meraviglia: Não é verdade. É o senhor que está inventando isso
neste momento!
Farinacci: Vamos acabar fazendo de verdade o que não fizemos!
Matteotti: Farão o trabalho de vocês!
Nem mesmo o crescendo de raiva que culmina com as ameaças de
Farinacci o desencoraja. Quando os rumores se atenuam por um instante, o
deputado socialista recomeça a listar os abusos. Expõe os fatos — repete
obstinado. Só os fatos. Os fatos ou são verdadeiros, ou são falsos, não
deveriam provocar rumores.
Entretanto, os rumores, as interrupções e as ameaças recomeçam após
poucos instantes. E não param. As interrupções vêm de todas as partes, de
Teruzzi, Finzi, Farinacci, Greco, Presutti, Gonzales e muitos outros fascistas.
Matteotti se senta, volta a se levantar, protesta que não acabou. Entre os
toques de campainha afobados de Rocco, os punhos cerrados dos fascistas
que batem nas bancadas e os gritos, os estrondos do público apinhado nas
tribunas, a lenga-lenga prossegue por horas. Não se sabe quantas. Alguns
contam uma hora e meia; outros, duas; outros ainda, até mesmo três. O tempo
se dilata, se afoga, roda cruelmente em falso sobre si mesmo. Alfredo Rocco,
na qualidade de presidente da assembleia, intima o orador, quase como se
também temesse pela sua vida, a evitar provocações, devolve-lhe a palavra,
mas o convida a usá-la “com prudência”. Todos, amigos e inimigos,
imploram que Matteotti termine. Matteotti termina, mas não antes de chegar
ao fundo:
— Vocês que hoje têm nas mãos o poder e a força, vocês que se
vangloriam da própria potência deveriam, mais do que todos, ser capazes de
fazer cumprir a lei... se a liberdade é dada, pode haver erros, excessos
momentâneos, mas o povo italiano, como qualquer outro, demonstrou que
sabe corrigi-los por si mesmo. Nós, em contrapartida, deploramos que se
queira demonstrar que somente o nosso povo no mundo não sabe se manter
de pé sozinho e deve ser governado pela força. As dominações estrangeiras
causaram muito dano. Mas nosso povo estava voltando a se erguer e a se
educar. Vocês o devolveram ao atraso.
Mais uma vez, o orador é sobrepujado por gritos de ameaça e de desprezo.
Desta vez, porém, ele terminou. Giacomo Matteotti parece satisfeito. Sua
palavra de dupla oposição — contra seus inimigos do governo fascista e
contra seus amigos socialistas propensos à colaboração — foi pronunciada.
Agora todas as pontes foram destruídas.
O antifascista irredutível volta a se sentar, submerso pela balbúrdia, vira-se
para o companheiro ao lado e diz:
— Fiz meu discurso. Agora vocês que preparem o texto para o meu
funeral.
Após dizer isso, Giacomo Matteotti sorri, mostrando aqueles seus dentes
compridos, salientes, descobertos na raiz pela inflamação na gengiva.
Impossível saber se é um sorriso de galhofa ou um ricto nervoso.
Durante todo o interminável centésimo sétimo discurso parlamentar do
deputado Matteotti, Benito Mussolini ficou em silêncio, sentado à mesa da
presidência. Ostentou indiferença, como se a onda tempestuosa que agitava o
plenário à sua frente não alcançasse sua margem a barlavento. Durante quase
todo o tempo do conflito, Mussolini permaneceu imerso na leitura dos
jornais, fazendo anotações a lápis e batendo com a ponta do grafite na
madeira da cadeira. No entanto, quando enfim pôde deixar o plenário, os
repórteres que trabalham no Parlamento o viram lívido, com o rosto tenso.

***

“O que Dùmini está fazendo? O que essa Tcheka faz?! É inadmissível que,
depois de um discurso como esse, aquele homem ainda possa circular!
Senhorzinho Maldito!”
O acesso de fúria do Líder após o discurso de Matteotti desencadeou ondas
de pânico no seu entourage.
Apenas os colaboradores mais próximos de Mussolini e alguns dos seus
parentes — o irmão Arnaldo, Rachele, Finzi, Cesare Rossi e poucos outros —
conhecem as explosões de cólera habituais, os ataques de ira, os instantes de
feroz criminalidade que arrebatam Benito Mussolini. A violência, de resto, é
o clima de toda uma época, a lei da atmosfera na qual se enreda o planeta
fascista.
De fato, poucos minutos após o discurso de Matteotti, entre as bancadas da
Câmara dos Deputados, após um insulto de Francesco Giunta à oposição,
desencadeia-se uma troca de socos furiosa, aplacada com dificuldade pelos
auxiliares, entre fascistas e expoentes da oposição; além disso, na saída do
plenário, vários jornalistas testemunham um Cesare Rossi, em geral
controlado, sentado atrás de uma mesa nos corredores de Montecitório, muito
exaltado, lançando ameaças (“Com adversários como Matteotti, só é possível
dar a palavra ao revólver [...] se eles soubessem o que passa pela cabeça de
Mussolini, se acalmariam logo [...] quem o conhece deveria saber que, de vez
em quando, ele precisa de sangue”); por fim, nos dias seguintes, os jornais
fascistas imprimem com toda clareza sequências de insultos triviais e
ameaças evidentes ao deputado socialista.
Apesar de tudo isso, os íntimos de Mussolini sabem que sua inimizade é
tenaz, mas sua cólera muitas vezes é efêmera: sabem também que “tornar a
vida impossível” para um opositor é, nos tempos que correm, um leitmotiv,
um refrão, uma sentença de morte e, ao mesmo tempo, uma força de
expressão. Cabe ao intérprete escolher qual dos dois significados — literal ou
metafórico — deve ser atribuído.
Entre os íntimos de Mussolini, infelizmente, também se encontra Giovanni
Marinelli, o mais desprezado dos líderes fascistas. Inepto no que se refere ao
físico em meio a um bando de violentos, envelhecido de forma precoce aos
40 anos em meio a um coro de exaltadores da juventude, incapacitado por
uma gastrite devastadora em um partido que fez do vigor uma religião,
Marinelli se agarra ao enorme poder que lhe é concedido pelo cargo de
tesoureiro, exercendo-o com meticulosidade e tacanhice vingativas. Os
próprios fascistas o odeiam, em especial os integrantes das esquadras aos
quais ele tem o prazer de mesquinhar o soldo quando partem para
desencadear a violência que ele gostaria de exercer, mas não pode. O
tesoureiro do partido não é de forma alguma um homem dócil. O estômago
regurgita acidez e espasmos, sofrimentos contínuos e complexos de
inferioridade cada vez que ele se senta à mesa, os humores envenenados
provocam contínuos extravasamentos de bile, irascibilidade, rancores.
Giovanni Marinelli, em suma, é um ulceroso que fez da úlcera sua própria
visão de mundo. Além disso, conforme o que todos dizem, é um homem
obtuso, fiel ao seu dono como o cão-guia de um cego.
Por todos esses motivos, desde a instituição da polícia secreta em janeiro,
Marinelli guarda com ciúme seu cargo de chefe da Tcheka, atribuído a ele por
Mussolini e compartilhado com Cesare Rossi. O inepto se apaixonou por
aquela missão de comando de homens de ação. E é justamente com esse tolo
e irascível servo que o patrão dá vazão à sua raiva pelo ultraje de Giacomo
Matteotti:
“O que Dùmini está fazendo? O que essa Tcheka faz?! É inadmissível que,
depois de um discurso como esse, aquele homem ainda possa circular!
Senhorzinho maldito!”
A agenda dos compromissos do presidente do Conselho de Ministros
mostra que, após uma reunião urgente do diretório fascista realizada no
Palazzo Wedekind, Benito Mussolini convocou Giovanni Marinelli para uma
conversa particular em seu gabinete em 1o de junho, embora fosse um
domingo. No dia seguinte, 2 de junho de 1924, ele o convoca de novo.
Os italianos, por muito tempo, se habituaram a ser enganados por todos
aqueles em que haviam confiado; e agora só estarão dispostos a acreditar em
quem derrame o próprio sangue por eles. Sim, para que acreditem, os
italianos devem ver sangue.

Giacomo Matteotti, início de 1924

O deputado Matteotti fez um discurso monstruosamente


provocador, que teria merecido algo mais tangível do que o
epíteto de “corja” lançado pelo deputado Giunta.

Il Popolo d’Italia, 1o de junho de 1924


Roma, 7 de junho de 1924
Montecitório, Câmara dos Deputados

“A vítima, torpemente assassinada, ficou a noite inteira sob o céu


estrelado. O sol raiou e subiu no horizonte e aquele pequeno cadáver
permanecia imóvel em sua nudez massacrada. A pequena vítima inocente jaz
com a cabecinha inclinada para a esquerda, os bracinhos agarrados ao
terreno, o corpo nu, cheio de hematomas: um pezinho calçado, o outro, não.
Da boquinha entreaberta, sai um rastro de sangue.”
A menina desaparecera em 4 de junho, por volta das 22h, na Via del
Gonfalone. Chamava-se Bianca Carlieri. A polícia a procurou em vão a noite
toda. Seu corpo violentado foi encontrado às 11h nos arredores da basílica de
São Paulo Extramuros.
Antes de meio-dia, o terror já tomara conta da cidade com a violência
fulminante de uma cãibra. As crianças são trancadas em casa, os romanos
clamam por justiça. Em Piazza Vittorio, um coronel aposentado, enternecido
pela visão da filha dos vizinhos, escapa por um triz do linchamento dos
transeuntes. Roma tem um milhão de habitantes. Em 6 de junho, todos, em
corpo ou em espírito, estão no funeral da pequena Bianca.
Entretanto, a notícia do crime contra uma menina romana dessa vez
aparece na imprensa nacional. Em sua reportagem, o Il Giornale d’Italia
utiliza seis vezes o adjetivo “horrível”. Foi um delito “horrível” o cometido
pelo desconhecido rebatizado de “o monstro de Roma”. Sua sombra já está se
transformando em mito. De fato, mais uma vez foi entrevisto um homem alto,
juvenil, distinto. O Corriere della Sera, de Milão, traça a silhueta elegante de
“um homem de aspecto ainda jovem, vestido de cinza”. O homem do terno
cinza enche de novos terrores as noites dos italianos.
Também sob o céu da política, uma pestilência vaporosa paira outra vez
sobre Roma. Os violentos rastros da batalha eleitoral e a duríssima acusação
de Matteotti voltaram a gerar o miasma do ódio do pós-guerra.
Em 3 de junho, no plenário do Parlamento, Roberto Farinacci grita para
Giovanni Amendola e os outros líderes da oposição: “Cometemos o erro de
não os fuzilar!” Poucas horas mais tarde, fora do plenário, a manifestação de
solidariedade fascista exigida por Mussolini e organizada por Cesare Rossi
culmina em uma caçada humana. Os deputados socialistas são perseguidos
por centenas de membros de esquadras nos becos do bairro em volta de
Montecitório.
Nem um pouco assustado com isso, assim que entra no plenário no dia
seguinte, Matteotti ataca de novo o presidente do Conselho de Ministros,
censurando-o por ter aprovado a anistia dos desertores de 1919. Diante de
suas sutis explicações, Mussolini o leva ao silêncio com ironia: “Não vá
exigir que publiquemos a edição crítica completa das suas obras!”
Passa-se mais um dia e, em 5 de junho, na comissão orçamentária, após o
governo declarar o equilíbrio das contas diante do soberano e do Parlamento,
Giacomo Matteotti — esse homem que lê o orçamento de um país como os
outros leem um romance — desmascara o truque contábil: seus cálculos
demonstram um vertiginoso déficit de 2 bilhões e 34 milhões de liras. A
tensão aumenta a cada dia. Em 6 de junho, estoura na Câmara dos Deputados
um enésimo tumulto entre Mussolini e os grupos de extrema esquerda.
Enfurecido, o Duce promete aos comunistas que vai se inspirar no exemplo
dos ídolos bolcheviques deles: “Na Rússia, vocês teriam levado chumbo
pelas costas! (Interrupções.) Mas nós temos coragem e vamos demonstrá-la.
(Aplausos, rumores.) Ainda há tempo!”
Enquanto a base formada pelos integrantes das esquadras usa o cassetete
para dar vazão à raiva causada pelas contestações da oposição, uma ansiedade
mais sutil, mais venenosa, contamina os dirigentes do Partido Nacional
Fascista. Correm boatos de que Matteotti, durante sua viagem à Inglaterra,
reuniu um dossiê sobre as graves irregularidades na concessão petrolífera à
Sinclair Oil. O deputado socialista estaria se preparando para denunciá-las
publicamente durante a sessão parlamentar de 11 de junho, dedicada à
discussão da execução provisória do orçamento do ano anterior. Parece que
ele possui documentos comprometedores para o regime e para a família
Mussolini.
Do ministério da Economia, é mandado um telegrama para Washington:
solicita-se o envio de informações a respeito das supostas relações —
negadas publicamente pelo presidente do Conselho de Ministros — entre a
Sinclair Oil e a Standard Oil. Especifica-se que as informações devem ser
recebidas com a máxima urgência e impreterivelmente até o dia 10 de junho
corrente.
Uma nuvem de rancores e medos obscurece o sol, uma mistura
malcheirosa de derivados de petróleo, parentescos e propinas envenena o
solo. A imprensa do regime tenta atribuir o miasma aos acusadores. Matteotti
é crucificado com frequência. Tudo não passa de gritos, fofocas, provocações
— escrevem os jornais fascistas —, emaranhados de excrementos e
secreções. Nesse drama de consciências inquietas, tendo chegado a esse
ponto, nem importa mais se Matteotti tem ou não os documentos
comprometedores. O que interessa é que a existência de tais documentos é
temida.
Assim não dá para continuar. É o que Turati escreve a Kuliscioff: “Muitos
dos nossos estão cansados de ficar o tempo todo com os punhos cerrados e
não pedem nada além de um pouco de distensão, como os soldados da nossa
guerra, que enviavam garrafas de vinho das nossas trincheiras para a
trincheira oposta, e vice-versa.” Turati, quando vê os companheiros
caminhando de braço dado com os deputados fascistas ou brincando com os
ministros entre as bancadas do governo, fica desnorteado. Ele pensa como
Matteotti. Aos socialistas, resta apenas uma arma: o desprezo. O desprezo
irredutível. Se até isso fosse tirado de suas mãos, seria o fim. Entretanto, o
líder do socialismo moderado deve reconhecer que essa ladainha não pode
durar. O discurso de Matteotti deixou Mussolini acuado, o equívoco sobre o
qual se ergue seu governo não pode persistir. Agora o presidente do Conselho
de Ministros é obrigado a escolher: ou o terror desejado por Farinacci, ou o
fechamento da Câmara dos Deputados por tempo indeterminado, e até
mesmo a sua supressão.
O mais inquieto de todos é o próprio Mussolini. No primeiro ano de
domínio, viveu — e fez seus colaboradores viverem — em estado de alarme
permanente. A meia solução que foi a marcha sobre Roma, o acordo com os
velhos poderes, o governo de coalizão e a minoria fascista no Parlamento o
mantiveram em uma condição de equilíbrio precário e de irascibilidade
constante. Agora a esmagadora vitória política nas eleições de 6 de abril
parecia ter liberado o caminho, limpado o ar. No entanto, lá está o miasma
outra vez. Quando, em 7 de junho, o presidente do Conselho de Ministros
toma a palavra para responder no plenário à oposição, todos esperam uma das
explosões de ira do seu temperamento violento.
Mas surpreendentemente Benito Mussolini veste os trajes graciosos do
sedutor, ostenta seu melhor perfil. Faz um dos seus discursos mais brilhantes,
moderados, conciliadores. Nada de leis excepcionais, nada de subjugação do
Parlamento, reconhecimento do papel formativo que a oposição poderia ter.
O registro das suas palavras é leve; o tom, brincalhão; o sentimento,
bonachão. O Duce parece estar de novo sereno, com domínio sobre o jogo,
fala como se tivesse esquecido por completo o episódio de Matteotti, como se
a semana de orgia frenética recém-terminada se destinasse a ser a última.
Contudo, no semicírculo de Montecitório, o discurso de Mussolini também
soa franco, realista, coerente. Dirige-se diretamente aos socialistas. Interpela-
os como interlocutores, não como inimigos. Com a mão, atrela-os às suas
responsabilidades, convida-os a um exame de consciência: “Não é possível
estarem sempre ausentes, não é possível ficarem sempre alheios; é necessário,
bem ou mal, dizer ou fazer algo, uma colaboração negativa ou positiva deve
existir, ou nos condenamos ao exílio perpétuo da história.”
Todavia, ele oferece a outra mão: há vinte meses, a oposição está
encalhada na contestação de velhas polêmicas estéreis, protestos
crepusculares, mas talvez, sendo otimistas, possa ser avistado algum sinal de
possível superação das velhas posições apriorísticas e negativas. Voltaremos
a falar a respeito. Os rancores do passado não têm importância.
O Duce do fascismo mal terminou seu discurso conciliador de 7 de junho
de 1924 e o boato já se espalha: Mussolini quer levar os socialistas para o seu
governo. No fundo, sempre desejou poder voltar a abraçar os velhos
companheiros. Parece que já havia tentado em novembro de 1922, após a
Marcha. Na ocasião, não teve êxito. Talvez consiga agora, em junho de 1924.
Nos corredores de Montecitório, volta-se a respirar.
Espero ansioso se urge minha presença. Albino

Telegrama enviado de Milão por Albino Volpi a Amerigo


Dùmini em Roma, 7 de junho de 1924

Peço que parta imediatamente pt Necessidade sua presença para definição


contrato de publicidade pt Traga consigo Panzeri e habilíssimo chofer pt
Saudações. Gino D’Ambrogio

Cabograma enviado por Dùmini (sob pseudônimo) a Albino


Volpi, 8 de junho de 1924, 13h
Amerigo Dùmini
Roma, 10 de junho de 1924

Há pelo menos uma hora Giuseppe Viola se contorce no banco de trás


como uma parturiente. Sente fisgadas ardentes — “punhaladas”, diz — na
boca do estômago e implora que o levem logo para a farmácia mais próxima,
na Piazza del Popolo. Por volta das 16h, Viola enfim desembucha um vômito
sanguinolento — sangue escuro — no estofamento do automóvel. O bolo
alimentar indigesto, fosco, granuloso, parece borra de café. Ninguém ousa ler
ali seu futuro. Visto daqui, o futuro é péssimo.
Agora o ar no Lancia Lambda se tornou realmente irrespirável. O modelo
com carroceria fechada, tipo limusine, com seis lugares, dois externos e
quatro internos, dois fixos e dois móveis, é tão espaçoso que uma janela de
vidro corrediça separa o habitáculo do lugar destinado ao motorista. Mesmo
assim, não dá para respirar. Há duas horas, cinco homens adultos,
corpulentos, empolgados e saciados, inchados de comida, empanturrados de
vinho e testosterona, estão queimando o oxigênio daquela atmosfera
resguardada aspirando com a boca aberta por causa da digestão lenta e
emitindo dos pulmões alcatroados fumaça de cigarro. O habitáculo está
carregado de arrotos, flatulências, lembranças de guerra.
Do banco do carona, Amerigo Dùmini, o chefe da expedição, proibiu
qualquer troca de ar com o calor externo de um verão precoce em Roma e no
mundo. As janelas estão fechadas, as cortininhas, baixadas. Ninguém pode
avistá-los enlatados ali dentro, eles não devem deixar nenhum rastro. Por
isso, o influxo mitigador do rio que corre lamacento ali ao lado ainda é uma
miragem. A pesada lataria em chapa de aço, castigada pelo sol da tarde, é
uma bolha asfixiante estacionada na esquina da Via Scialoja com a Via
Arnaldo da Bréscia, que margeia o Tibre. Montam guarda ali, diante do
portãozinho da Via Giuseppe Pisanelli, número 40, onde o alvo mora com a
mulher e os 3 filhos.
Os cinco homens enjaulados no último modelo da casa automobilística de
Vincenzo Lancia sabem aguardar. As longas esperas, antes da batalha ou do
banho de sol, fazem parte do aprendizado de vida deles. Os cinco homens de
tocaia no Lancia Lambda — Amerigo Dùmini, Giuseppe Viola, Albino
Volpi, Augusto Malacria e Amleto Poveromo — são todos ex-Arditi, e já
sofreram alguma condenação por crimes comuns. Estiveram todos nas
trincheiras e também na prisão. Agora que Viola, depois de cuspir seu sangue
ulceroso, parou de reclamar, podem recomeçar, acendendo o enésimo cigarro,
atordoados pelo calor, pelo vinho e pelo fumo, a regurgitar algumas
lembranças de quando passavam as noites ao longo das margens do Piave
entre os cadáveres dos colegas militares ou nas camas piolhentas da casa de
correção de San Vittore. A espera, àquela altura, não pode demorar muito
mais.
Giacomo Matteotti é um homem metódico, eles o vigiam há dias,
estudaram seus hábitos. Quando há sessão na Câmara dos Deputados, ele sai
de manhã às 9h e retorna às 13h30, almoça, sai de novo por volta das 15h e
não volta para casa antes das 21h. Agora que o Parlamento está fechado, sai
regularmente depois do almoço, por volta das 16h30, para ir trabalhar na
biblioteca da Junta de Orçamento, pegando o bonde número 15 na Piazza del
Popolo. Carrega sempre embaixo do braço aquele envelope de papel branco
com o cabeçalho “Câmara dos Deputados”, o envelope que eles devem pegar.
“Não voltem sem o envelope”, recomendara insistentemente Giuseppe
Marinelli, o tesoureiro do partido.
Amerigo Dùmini não tem intenção de decepcioná-lo. Embora seja um
piolhento tacanho — isso todos sabem —, Marinelli está financiando a boa
vida de todo o bando desde 22 de maio, quando se reuniram no Hotel
Dragoni após terem se hospedado com nomes falsos. Durante dez dias, não
fizeram nada a não ser comer, beber e trepar à custa do partido. No almoço e
no jantar, costumavam acampar no restaurante Brecche ou no Al Buco,
culinária toscana em ambos, garrafas de Chianti à vontade. Depois iam
farrear até de madrugada em uma sala da Villa Borghese. Certa noite, a
polícia entrou de repente e pegou Viola com um revólver. Mas Dùmini logo
conseguiu que ele fosse solto pelo cavalier Laino, chefe de gabinete da
chefatura de polícia. A vida boa terminou no início de junho, quando
Marinelli convocou Dùmini e disse que era chegada a hora.
De início pensaram em agir durante uma viagem ao exterior. A chefatura
de polícia emitiu o passaporte para Matteotti com esse objetivo. Mas o acaso
criou um obstáculo: o trem que levaria o deputado socialista à Áustria era o
mesmo que o próprio Marinelli pegaria para Milão. Ao ver todo o bando na
plataforma, este quase teve uma síncope: “Não estão pretendendo pegá-lo
agora que eu estou aqui!”, gritou com o rosto vermelho.
De qualquer forma, Matteotti não apareceu.
Então, decidiram surpreendê-lo na saída de casa. Filippelli, o diretor do
Corriere Italiano, ex-secretário pessoal de Arnaldo Mussolini, alugou o
Lancia Lambda em uma estacionamento público. Aluguel sem motorista. Na
noite anterior, estacionaram o carro no pátio do Palazzo Chigi. Dùmini
garantiu aos carabineiros de plantão que desempenhava uma importante
tarefa por ordem do governo. Ali todos o conhecem. Sabem que ele trabalha
na assessoria de imprensa da presidência do Conselho de Ministros. Depois
teve de telegrafar para Volpi, que enquanto isso havia voltado para Milão,
intimando que este regressasse a Roma com urgência trazendo um dos seus.
Volpi não se fez de rogado. Encontraram-se na galeria Colonna para o
aperitivo, depois foram almoçar no Al Buco, e em seguida Viola começou a
sentir sua úlcera duodenal.
Dùmini dá uma olhada no estofamento manchado pelo vômito hemático de
Viola. Terá de mandar limpá-lo antes de devolver o carro a Filippelli. Este
não deixa passar nada.
O relógio de bolso marca 16h40. É um Roskopf de prata preciso. Dùmini
gosta de contar que o herdou de um primo distante que era chefe de estação.
O portãozinho do número 40 da Via Giuseppe Pisanelli se abre.
Instintivamente, os homens de tocaia se inclinam para a frente, tensionam os
músculos, abotoam as calças. Por um instante, ficam paralisados: Matteotti
não está usando chapéu. Deve ter acontecido algo estranho: para o decoro de
um homem de bem, mesmo com aquele calor, é inconcebível sair na rua com
a cabeça descoberta. O deputado socialista veste um terno claro, sapatos
brancos de camurça e gravata combinando. Pressiona o envelope embaixo do
braço. Tudo de acordo com o roteiro, exceto o chapéu.
O segundo imprevisto do dia logo os obriga a improvisar. Diferentemente
do seu costume, ao sair da Via Mancini, Matteotti atravessa a rua que
margeia o Tibre e prossegue na calçada do lado do rio. Talvez queira dar uma
olhada na corrente contra a qual, nos raros momentos de descanso, gosta de
remar. Mas daquele lado da rua tem gente: um carabineiro parado à sombra
de um plátano ao lado do Villino Almagià, vários banhistas deitados ao sol
nos degraus de pedra que descem até o rio, um gari que limpa a calçada, dois
meninos pulando carniça e cantando modinhas que correm na direção de
Matteotti.
Dùmini ordena que Viola ligue o carro e fique com ele no veículo. O
Lancia Lambda desliza pela rua ao longo do rio, ultrapassa o homem que a
percorre sem chapéu e com um envelope branco embaixo do braço, então
freia, para e as portas se escancaram dos dois lados.
O primeiro a pôr as mãos nele é Malacria, condenado por falência
fraudulenta, ex-capitão dos Arditi, filho de Nestore, um general corajoso.
Albino Volpi, estranhamente relutante, limita-se a indicar ao compadre o
homem a ser capturado.
A terceira surpresa do dia é que Matteotti, empurrado, reage. Malacria
tropeça, estatela-se no chão. Volpi, então, se lança, mas Matteotti, magro e
reativo, também luta com ele.
Amleto Poveromo, açougueiro em Lecco, avança por trás deles com seu
passo pesado. Desfere em Matteotti um único soco nas têmporas, a paulada
na cabeça com a qual antigamente abatia os animais. Matteotti desmorona.
Enquanto isso, Dùmini os alcançou. Os quatro erguem, cada um segurando
um membro, o corpo inerte. O quarto imprevisto do dia: a resistência da
vítima. Matteotti recobra os sentidos e recomeça a lutar. Seus sequestradores
voltam a golpeá-lo enquanto o transportam. Mas ele esperneia como um
possuído. De onde tira força? Talvez seja impelido pela reminiscência do
outro sequestro, quando, no Vêneto, em sua região, segundo dizem, enfiaram
um cassetete à força em seu ânus.
Enfim estão no automóvel, que parte, derrapa, pega a ponte Milvio, a
preferida dos apaixonados, segue em grande velocidade a nordeste, rumo aos
campos, para fora dos limites da cidade, o som da buzina escandalosa
encobrindo os gritos do sequestrado, como a sirene de um carro de bombeiro
desembestado para domar um incêndio.
Nem mesmo no carro, sob os golpes de três agressores, Giacomo Matteotti
para de lutar. Resiste. Até as últimas consequências. Quebra com um chute o
vidro que divide o habitáculo e o lugar do motorista. Dùmini, que está
sentado na frente e se vira o tempo todo, angustiado, recebe os estilhaços bem
no peito. Não devia ser assim, a resistência não estava prevista.
Matteotti, cravejado de golpes, não para de gritar. Dùmini fica se virando.
Estica-se para calá-lo. O motorista é obrigado a tocar de novo a buzina. Os
gritos da vítima chacoalham a indolência da tarde de verão incipiente.
Então, de repente, a convulsão amaina. Os gritos param. No lugar deles,
um gorgulho, um estertor estrangulado.
Dùmini se vira outra vez.
Giacomo Matteotti está pálido como um trapo. Agora sua boca também
lança um vômito sanguinolento. Albino Volpi o segura, passando o braço
esquerdo sobre seus ombros, como um abraço na namorada. A mão direita,
engolida pelas pregas do paletó claro, está cravada no tórax.
Eram 16h30. Eu estava brincando com os meus colegas. Perto de nós, tinha
um carro que havia estacionado bem na frente da Via Antonio Scialoja. Dele
saíram cinco homens que começaram a andar para cima e para baixo. De
repente, vi Matteotti sair. Um dos homens foi na sua direção e lhe deu um
soco violento que o fez cair no chão. Matteotti pediu ajuda. Então chegaram
os outros quatro e um deles o golpeou duramente no rosto. Então, pegaram-
no pela cabeça e pelos pés e levaram-no para dentro do carro, que passou ao
nosso lado. Assim pudemos ver que Matteotti estava lutando. Depois não
vimos mais nada.

Renato Barzotti, vulgo “Neroncino”, 10 anos, testemunha


ocular do sequestro de Matteotti
CEM HORAS TERRÍVEIS

Roma, quarta-feira, 11 de junho

“Tudo bem, eu dou um jeito. Enquanto isso, trate de não fazer alarde.”
Arturo Benedetto Fasciolo, secretário particular, datilógrafo e estenógrafo
pessoal de Benito Mussolini no Palazzo Chigi, está em pé diante da
escrivaninha do chefe. Na bancada de mogno, entre os dois homens, um em
pé e o outro sentado, jaz uma carteira com uma crosta de sangue pisado. Com
um movimento rápido do braço, Mussolini a pega. Sempre sentado, segura-a,
abre uma gaveta da escrivaninha e a joga lá dentro. Agora sabe de tudo. São
9h e a sorte foi lançada.
Ao voltar para casa na noite anterior, Fasciolo avistou Albino Volpi na
Galleria Vittorio Emanuele, no bar Picarozzi, lugar de encontro habitual dos
noctâmbulos romanos. O ex-Ardito foi até ele, contou-lhe tudo e entregou-lhe
a carteira.
Agora, ao sair do gabinete do Duce, Fasciolo se depara com Cesare Rossi.
O Chefe ordenou discrição, mas, para o estenógrafo, abalado, é impossível
respeitar as ordens. Assim que é informado, Rossi vai atrás de Marinelli. A
conversa entre os dois é tempestuosa. Marinelli, investido pela fúria do seu
cúmplice de fato, tenta tranquilizá-lo: “Acalme-se. Era necessário. Agora
trate de não incitar o Duce com seu alarmismo.”
Rossi vai correndo para o Il Giornale d’Italia e irrompe no escritório do
diretor. Filippo Filippelli, que sempre está a par de tudo, acostumado com
tudo, que ouve até a grama crescer, ostenta a desenvoltura de um homem do
mundo: o Lancia Lambda está bem escondido na garagem de um dos seus
redatores-chefes. Só está um pouco sujo: Matteotti deve ter tido uma “crise
visceral” — acrescenta o homem do mundo com um sorrisinho. Ordenarão
que Dùmini limpe o veículo. Pouco depois, por volta da hora do almoço, os
integrantes do bando se encontram com Marinelli no Hotel Dragoni. O
tesoureiro lhes entrega 20 mil liras para a fuga e dá a instrução de que deixem
a cidade após o automóvel ter sido limpo. Antes do cair da noite, um obscuro
fio criminoso liga homens do Estado ocupados em limpar sangue e merda.

***

Velia Matteotti, que passou a noite acordada à espera do marido, alertou os


companheiros de partido do desaparecimento dele já pela manhã. Um
espasmo involuntário de angústia contrai, sob a pele, os músculos das suas
coxas. À tarde, Filippo Turati informa Anna Kuliscioff. Confessa que está
sentindo “uma angústia terrível pela sorte de Matteotti”, mas que ainda não
consegue acreditar em um delito organizado pelo governo. Parece-lhe
inverossímil. Por esse motivo, hesita em ir até o chefe da polícia. O risco é o
de lançar sobre todos “uma onda de ridículo”.
Rossi encara o primeiro-ministro à noite e, segundo seu próprio relato,
Mussolini se protegia com um sarcasmo que, em uma espécie de perversa
identificação com a vítima, atribuía-lhe trechos da própria autobiografia: “Os
socialistas estão inquietos em Montecitório porque desde ontem nada sabem
de Matteotti. Deve ter ido atrás de putas...”
Quinta-feira, 12 de junho

A notícia se espalha logo após o almoço. Rodolfo de Bernart, comissário


de Segurança Pública do bairro Flaminio, interrogou os dois zeladores,
marido e mulher, do edifício do número 12 da Via Stanislao Mancini,
adjacente à moradia de Matteotti, os quais, na noite de 9 de junho, véspera do
sequestro, desconfiaram daquele Lancia Lambda que patrulhava as ruas do
bairro. Temendo uma ronda de ladrões de apartamentos, anotaram a placa.
De Bernart, ingenuamente fiel ao dever, transmite depressa a notícia à
chefatura de polícia. A notícia chega como um raio a De Bono, que a
transmite a Mussolini.
“Eles alugaram um carro em um estacionamento público! Puta merda!
Podiam pelo menos ter mijado na placa, assim a poeira da rua a teria
encoberto.”
Cesare Rossi, em uma audiência extraordinária com o Duce após os jornais
vespertinos terem começado a difundir a notícia, vê pela primeira vez o
aturdimento desfigurar seu rosto.
Benedetto Fasciolo, que o encontra pouco depois, tem a mesma impressão.
Na manhã anterior, entregou-lhe a carteira de Matteotti, agora leva de
presente para o Duce o passaporte, recebido diretamente de Dùmini:
“Por que você pegou isso?!”, protesta Mussolini. “Agora toda Roma deve
estar sabendo.”
De qualquer maneira, Mussolini pega o passaporte, como havia feito com a
carteira no dia anterior, e o coloca na mesma gaveta.
“Agora eu dou um jeito.”
Antes de se despedir de Fasciolo, informa-se sobre a sepultura. Quer saber
tudo: local, dimensões, cobertura da fossa.
Às 19h30, o presidente do Conselho de Ministros enfrenta o Parlamento. É
acolhido pelo desdém e pelo terror de homens cientes de que alguém como
eles, um colega, pode ser atacado e sequestrado em plena luz do dia no
Centro da capital do Reino. Mussolini reforça esse sentimento: as
circunstâncias do sequestro sugerem “a hipótese de um delito” — declara —,
um delito que não poderia deixar de suscitar “a comoção e a indignação do
governo e do Parlamento”.
Depois, diante de quinhentos representantes do povo e da gravidade da
tragédia, Benito Mussolini mente sem pudor: “A polícia, nas suas rápidas
investigações, já está no rastro de elementos suspeitos e nada negligenciará
para esclarecer esse acontecimento, prender os culpados e entregá-los à
Justiça. Espero que o deputado Matteotti possa voltar logo ao Parlamento.”
Naquele exato momento, o chefe do governo conhece lugar, dimensões e
cobertura da fossa onde jaz o cadáver perfurado do homem que espera rever
em breve. Uma blasfêmia contra a única divindade que não perdoa, o deus
dos mortos.
A oposição também não está satisfeita. Os socialistas declaram ser
inconcebível que um acontecimento do gênero possa ser liquidado daquela
maneira. O deputado Eugenio Chiesa, republicano, pede a Mussolini mais
explicações. Mussolini, entretanto, permanece sentado na bancada do
governo, imóvel, com os braços cruzados.
“Então é cúmplice!”
O comentário, que Chiesa deixa escapar instintivamente, mas que é
pronunciado em voz alta, ressoa no plenário emudecido. Agora que a palavra
foi pronunciada, a suspeita sobe um degrau na escada da existência.
Como se quisesse arrastá-lo de novo para baixo, lançando por terra quem
lhe deu voz, Giuseppe Bottai derruba a poltrona na qual estava sentado e se
joga sobre Chiesa. Começa a briga. O presidente Rocco, desesperado, toca a
campainha sem parar.

***

Poucas horas mais tarde, Amerigo Dùmini é parado na estação Termini


enquanto tenta a fuga rumo ao Norte. De Bono, chefe de polícia, ignorando
todos os protocolos de detenção, arrasta-o para uma conversa particular na
delegacia da estação e exige a entrega da mala cheia de roupas
ensanguentadas da vítima: “Você deve negar tudo, negar tudo. Aqui se trata
de salvar o fascismo.”
Amerigo Dùmini se torna o detento 780/Gsi (grande supervisão e
isolamento) da prisão Regina Coeli. Por ora, é o único a pagar pelo delito,
mas lhe prometem uma libertação precoce. Com a certeza da impunidade,
aceita. Os outros membros do bando ainda estão todos foragidos.
Nesse ínterim, no Palazzo Wedekind, reúne-se o Grande Conselho do
Fascismo, convocado com urgência. Ao fim do conselho, Rossi, Marinelli e
Finzi se reúnem em segredo no escritório que De Bono mantém na direção-
geral da Segurança Pública.
Rossi parte logo para o ataque: o que está acontecendo é uma loucura, é
necessário acabar com o equívoco, a prisão de Dùmini é uma comédia
perigosa. Marinelli justifica as ações dos dias anteriores aludindo às
fortíssimas pressões vindas do alto desde os primeiros dias de junho para que
liquidassem Matteotti.
Incomodado com a chorumela, Rossi abre o jogo:
— Vocês podem prender Dùmini e todos os outros, mas façam isso como
uma comédia. Mantenham-nos alguns dias trancafiados e depois tratem de
soltá-los.
— Por quê? — questiona De Bono, como se não soubesse.
— Porque senão vão falar que foi ele quem pôs a ideia na cabeça do outro.
— Ele? Quem?
— O primeiro-ministro.
Sozinho em seu gabinete no ministério do Interior, o chefe da polícia,
quadrúnviro da marcha sobre Roma, velho general do Exército Real, telefona
ao Duce do fascismo usando uma linha reservada.
— Estão jogando a responsabilidade em cima de você.
— Aqueles covardes querem me chantagear! — urra Mussolini. Então, a
ligação é interrompida. Tem início uma noite de fantasmas.
Sexta-feira, 13 de junho

Circulam boatos de que Dùmini teria capado o cadáver de Matteotti e


entregado os testículos a Filippelli, que desmaiou de horror. Diz-se também
que, na verdade, os teria mandado diretamente para Mussolini, que, rindo,
teria jogado o troféu em uma gaveta da escrivaninha ao lado do passaporte.
Circulam boatos de que o cadáver teria sido levado de volta para Roma,
escondido em uma carroça de feno e queimado em um forno; diz-se que teria
sido jogado no Tibre, descarnado com ácidos e exposto em um gabinete de
anatomia, saponificado, afundado no lago de Vico. Também se diz que o
cadáver do deputado socialista teria sido dado como refeição para os leões do
zoológico de Villa Borghese.
As fantasias sobre o desaparecimento de Matteotti entronizaram-se na
imaginação coletiva, no lugar ocupado até o dia anterior pelo caso da menina
estuprada e assassinada em São Paulo Extramuros pelo misterioso “homem
do terno cinza”.
A notícia do sequestro de um parlamentar em plena luz do dia, nas ruas do
Centro, rompeu com violência a vida violenta de todos os dias. A indignação
é geral, as vozes de protesto se erguem por toda parte, até entre os próprios
fascistas. Os jornais de oposição imprimem uma edição extraordinária após a
outra, mas, mesmo assim, deixam insatisfeitos os leitores ávidos por justiça e
vingança. O provável crime parece tão perverso e odioso que coloca em crise
todo o sistema. A corrupção evidente, os métodos violentos de luta política e
a corrosão dos ideais de repente se tornaram intoleráveis para todos.
Recriminações, repulsas, ameaças, tintinar de sabres, soluços, remorsos,
todos torcendo as mãos e arrancando os cabelos. De súbito, não se ouve nem
se vê mais nada, para onde quer que se vire. A ideia abstrata, dispersa, do
Mal se coagula, como um extrato de concreto de secagem rápida, na pessoa
de Amerigo Dùmini e dos seus cúmplices, desconhecidos ou foragidos.
Na casa fascista, explode o “salve-se quem puder”. De manhã, foi realizada
outra reunião do Grande Conselho: foi um “todos contra todos”. São
preparados memoriais defensivos, Balbo vai correndo ao Palazzo Chigi pedir
o “fuzilamento imediato de Dùmini”, começa a ocultação das provas, a
disseminação de indícios falsos, a destruição dos rastros, os despistamentos,
as falsas notícias difundidas com arte, a máquina da lama. Dizem que
Matteotti teria fugido para o exterior, que estaria entocado na casa de uma
amante, que alguns dias antes teriam chegado em Roma dois matadores da
extrema-direita francesa, que um grupo de homens das esquadras de Rovigo
estaria atrás do deputado.
Entretanto, as falsas notícias saem pela culatra e atingem os caluniadores:
Aldo Finzi, deputado fascista de Rovigo, cai na fossa dos suspeitos.

***

Às 16h, o presidente do Conselho de Ministros apresenta-se outra vez


diante do Parlamento, mas dessa vez o Parlamento está vazio. Estão
obedientemente sentados em suas cadeiras 370 deputados fascistas; no
entanto, eles não são suficientes para preencher a cratera deixada pela
oposição, que decidiu desertar o plenário em protesto; não são suficientes
para preencher o abismo aberto pela presença de Velia Matteotti sentada lá no
alto, na tribuna.
Mussolini promete punir os culpados, condena a abominação, se diz
comovido, pesaroso, se diz até pronto para fazer “justiça sumária” se lhe
pedirem, depois protesta que um delito tão absurdo, danoso, foi cometido —
mais do que contra a oposição — contra o tronco da revolução fascista, que
resta profundamente manchado por ele: “Só um inimigo meu”, exclama com
força, “que por longas noites tivesse pensado em algo diabólico poderia
cometer o delito que hoje nos aflige com horror e nos arranca gritos de
indignação.”
Benito Mussolini pede que um único lençol cubra os mortos, todos os
mortos, para que os mortos durmam sem rancor. Depois, declara
antecipadamente encerrada a sessão de verão do Parlamento e prorroga a
reabertura para uma data a ser definida.
***

Todavia, o terrível dia 13 de junho, festa de Santo Antônio de Pádua, ainda


não acabou: Velia Matteotti pediu para se encontrar com o primeiro-ministro.
Apresentou-se na Câmara dos Deputados de manhã para solicitar que alguns
deputados socialistas a acompanhassem até Mussolini. Turati tentou dissuadi-
la de todas as maneiras, mas ela não se rendeu às súplicas.
Na versão relatada pela imprensa do regime, Benito Mussolini recebe a
“pobre senhora”, com os deputados Acerbo e Sardi em pé diante da porta de
uma sala do Palazzo Chigi. Assim que a sra. Matteotti passa por aquela porta,
ele fica em alerta. Quando ela desata em soluços, ele, comovido, a consola
com firmeza: “Senhora, eu gostaria de lhe entregar seu marido vivo. O
governo fará plenamente seu dever. Não sabemos nada de positivo, mas ainda
há esperança.”
O advogado Casimiro Wronowski, cunhado de Matteotti, narra outra cena.
Velia, à qual todos já se referem como a “viúva Matteotti”, acompanhada
pela irmã Nella, espera em pé na antecâmara que um assistente avise o chefe
do governo sobre a sua presença.
Mussolini recebe Velia Matteotti em pé também nessa segunda versão,
mas ladeado — quase sustentado — pelos subsecretários Acerbo, Sardi e
Finzi.
Duas mulheres e quatro homens se enfrentam. Mussolini treme. Finzi
esconde o rosto com a mão. Velia pede que deixem o marido, caso esteja
vivo, voltar para casa e, caso esteja morto, que lhe entreguem os despojos
para que sejam sepultados de forma cristã. Mussolini, gaguejando como
quem mendiga palavras, responde:
“Nada sei, senhora; se soubesse, vivo ou morto, devolveria para a senhora
o seu marido.”
Sábado, 14 de maio

“Quem deve afogar que afogue até o fim.”


A sentença impressa no Il Popolo d’Italia resume esperanças e certezas de
toda a oposição. Certeza do inelutável, esperança de redenção.
Uma onda de desprezo e comoção está submergindo o fascismo, um
gorgulho de murmúrios o arrasta para o fundo. À medida que emergem
detalhes do crime que comprometem os homens do governo, os jornais se
lançam em revelações escandalosas sobre delitos de todo tipo: as trapaças de
Aldo Finzi em áreas edificáveis compradas a preço de banana com lucro
enorme, as despudoradas especulações de Michele Bianchi envolvendo a
emigração clandestina e assim por diante. A foto em grupo dos homens que
cercam Mussolini parece a de uma corte de baixo império.
Em contrapartida, a figura de Giacomo Matteotti ascende à glória de um
santo. Sua casa na Via Giuseppe Pisanelli já se tornou meta de peregrinação;
no local do sequestro, acumulam-se centenas de coroas de flores, uma espécie
de mausoléu a céu aberto. A polícia intervém para dispersar a procissão de
fiéis às margens do Tibre, os carabineiros a cavalo varrem as flores e
dissipam a aglomeração.
“Por enquanto, não há nada a ser feito. Aqueles rapazes fizeram burrices
demais. Estou impotente. De Bono não serve de nada. Há demasiado sangue
ruim fervendo.”
São as últimas palavras que Cesare Rossi ouve, pronunciadas por um
Mussolini lívido antes da ruptura. O Duce parece aturdido, apalermado pela
surpresa, paralisado pela desilusão. Giovanni Marinelli acabou de confessar
que ainda tem, cinco dias depois do sequestro, os recibos formalmente
assinados pelos pagamentos feitos aos assassinos antes e depois do delito. O
tesoureiro do Partido Nacional Fascista se justifica com o escrúpulo do bom
administrador que arquiva em perfeita ordem os lançamentos pendentes.
Então, coloca a mão na cabeça e corre para destruí-los.
Mussolini balança a cabeça, fixa com olhar vítreo um fantasma na linha do
horizonte: ele sempre sonhara, pregara, a necessidade histórica da violência
cirúrgica, a ferocidade precisa, exata, inexorável, mas, entre suas mãos
lambuzadas de fezes e sangue, há um delito bestial.
Se não for rompida, a cadeia de responsabilidade logo chegará até ele.
Então ele a rompe, sacrificando seus colaboradores mais próximos: Benito
Mussolini pede a renúncia de Aldo Finzi e Cesare Rossi.
Aldo Finzi, seduzido por uma promessa — sua abnegação será
recompensada muito em breve com o ministério do Interior, é o que lhe
dizem —, aceita. Já Cesare Rossi tem um ímpeto violento: afirma sua
completa inocência, declara que deve defender a própria honra, chama
Mussolini de louco na presença de amigos. Rossi escreve uma carta oficial de
renúncia, sóbria, cortês, porém depois envia outra, secreta, com ameaças
claras. Uma vez enviadas as duas cartas, toma um chá de sumiço.
Mussolini tenta se recompor interpretando o papel do chefe de Estado.
Recebe a visita do negus Hailè Selassiè. Mas aquele gesto de estadista não
serve de nada. Na Il becco giallo, revista satírica dirigida por Alberto
Giannini, jornalista brilhante que foi agredido a pauladas por Dùmini e que
por isso, em seguida, o desafiou corajosamente para um duelo, é publicada
uma charge letal. O rei da Etiópia aparece empoleirado como um urubu no
ombro de De Bono, chefe da polícia fascista. Sussurra com ar cúmplice ao
seu ouvido: “Podem me dizer a verdade: vocês o devoraram.”
Domingo, 15 de junho

De repente, em volta de Mussolini restou apenas o vazio. A ordem de


mobilização da Milizia per la Sicurezza nazionale, que deveria defender o
regime com a espada em riste, quase não surtiu efeito: em Roma,
responderam apenas 40% dos milicianos; em Milão, 20%; em Turim,
ninguém. Em Roma, no Corso Umberto, sob as janelas do Palazzo Chigi,
onde o presidente do Conselho de Ministros se barricou em seu gabinete, os
transeuntes passam depressa, assustados, com a evidente preocupação de não
ter de dirigir o olhar para aquela sacada. Em Milão, ao receber a notícia da
prisão de Albino Volpi, Giuseppe Viola declara aos amigos que ainda o
mantêm escondido, que, se interrogado em um processo, gostaria de falar
unicamente com Mussolini: “Então vou pular em cima dele e devorar um
pedaço do seu nariz!”

***

Ninguém conhece melhor do que um criado a solidão do seu patrão.


Quinto Navarra encontrou Benito Mussolini pela primeira vez em Cannes,
em 1920, quando estava no séquito de Sua Excelência o marquês della
Torretta, na época ministro das Relações Exteriores. Naquela ocasião,
apareceu na sua frente um jornalista desconhecido que queria entrevistar o
ministro, estendendo-lhe um cartão de visita: “Benito Mussolini.” Depois
encontrou-o de novo às 13h de 31 de outubro de 1922 no Palazzo della
Consulta, quando ele já se tornara chefe do governo.
A partir daquele dia, Quinto Navarra protegeu a antecâmara do presidente
do Conselho de Ministros como se vivesse em uma redoma de vidro, e ali viu
a Itália desfilar aos seus pés. Durante vinte meses, o servo fiel ouviu a voz do
patrão tonitruar atrás da porta e viu ministros, generais, industriais,
integrantes de esquadras e marqueses saírem cabisbaixos. Certo dia, um
Mussolini disposto a fazer confidências lhe disse: “Tenho certeza de que o
melhor para os italianos seria se eu dormisse um dia inteiro. Bastaria saber
que eu existo e que poderia acordar de repente. A admiração e o medo andam
lado a lado.”
Mas agora tudo mudou, agora restou apenas o medo. Nas últimas cem
horas dentro do Palazzo Chigi, respirou-se um ar de tumba. Nas ruas, os
cidadãos tiravam os distintivos fascistas, e o mesmo acontecia no ministério.
As salas luminosas que poucos dias antes fervilhavam de pessoas
obsequiosas foram se esvaziando. Até que, naquela manhã, a antecâmara
ficou completamente vazia. Se um vingador de Matteotti subisse a praça com
revólveres em riste, não encontraria ninguém para detê-lo.
Esta noite, espera-se o retorno do rei à capital: o país e Mussolini estão
outra vez nas suas mãos. O Duce aguarda sozinho, em silêncio, no Salão das
Vitórias.
Quinto Navarra não sabe o que fazer. Também fica sozinho, sentado em
seu lugar na antecâmara, resistindo à tentação da fuga, com a alma suspensa,
impondo a si mesmo a mais absoluta circunspecção. Mas o primeiro-ministro
não o chama há horas, não pede que realize nenhuma das tarefas habituais,
nem que anuncie as visitas. Visitas, aliás, não há.
De repente, Navarra é convocado pelo secretário da presidência com um
despacho urgente para Mussolini. Nesses casos, o protocolo prevê que ele
pode entrar na sala do chefe mesmo sem ter sido chamado.
Prendendo a respiração, Quinto Navarra decide abrir a porta do Salão das
Vitórias. Do outro lado da porta, vê algo que não esquecerá jamais.
Benito Mussolini ocupa sua poltrona atrás da mesa de trabalho, uma
poltrona muito alta, de espaldar, sustentada dos lados por hastes de madeira
dourada. No exato momento em que Quinto Navarra abre a porta, Benito
Mussolini, com os olhos arregalados, bufando e arfando, bate a cabeça calva
à direita e à esquerda nas hastes douradas, como um metrônomo enferrujado
que marca inexorável o tempo do próprio fim.
A causa do delito não deve ser procurada em razões simplesmente
políticas, mas na necessidade de calar o deputado Matteotti, que havia
estabelecido como objetivo criar um escândalo contra grupos financeiros
relacionados a políticos.

Epifanio Pennetta, chefe da polícia judiciária durante a


instrução do processo Matteotti, junho de 1924

Representando a viúva e a família Matteotti, presenciei na Câmara dos


Deputados a abertura da gaveta de Matteotti, mas ela continha apenas papel
timbrado da Câmara [...]. Então, procurei também na sua casa, revistei as
gavetas uma a uma. A única coisa que encontrei foi um certo número de
folhetos, com grandes cifras anotadas, subtrações, multiplicações, divisões.
Era possível entender que eram todas operações para verificar as contas do
Estado. Nada mais encontrei. Portanto, a história dos documentos
comprometedores não é corroborada.

Casimiro Wronowski, cunhado de Giacomo Matteotti


Presidente,
A partir de uma série de indícios e de notícias circunspectas, tenho a
impressão de que você escolheu a mim, e apenas a mim, como bode
expiatório da catástrofe que se abateu sobre o fascismo [...].
Pois bem, para certas coisas, é preciso que duas pessoas estejam de acordo.
Não sirvo de forma alguma para isso [...]. No tribunal: se eu não receber, nos
próximos dias, a prova do reconhecimento dos deveres de apoio não tanto em
relação à minha pessoa, ao meu passado; não tanto em relação à minha
condição de seu colaborador e executor, às vezes de ações ilegais por você
ordenadas; mas sobretudo em relação à elementar ausência das razões de
Estado, realizarei o que declarei esta manhã e aperfeiçoei ao longo do dia
[...].
É desnecessário advertir que, se o cinismo de que você deu provas
assustadoras até hoje, complicado pelo desnorteamento pelo qual você foi
invadido logo quando deveria dominar as situações criadas exclusivamente
por você, o induzisse a ordenar gestos de supressão física durante o período
em que eu estiver foragido, e na desafortunada eventualidade da minha
captura, você também seria um homem destruído, e, como você, o regime,
pois minha longa e detalhada declaração documentada já está, é óbvio, nas
mãos de amigos de confiança que de fato cumprem os deveres da amizade.

Carta particular de Cesare Rossi a Benito Mussolini,


15 de junho de 1924
A QUALQUER CUSTO
16-26 de junho de 1924

Um rei não é um porco na engorda, como afirmava Napoleão. Um


monarca constitucional deve saber o que acontece no seu país. Se um
primeiro-ministro criminoso afunda aquele país na vergonha, desaprovada
pela maioria dos seus súditos, o soberano, apoiando-se na lealdade do
Exército, tem o dever de pôr fim ao regime criminoso, forçando o chefe do
governo à renúncia.
Esse é o sentido da mensagem que Giovanni Amendola, em nome de todos
os grupos constitucionais de oposição, enviou a Vítor Emanuel III por meio
do conde de Campello, seu fidalgo de corte.
Vítor Emanuel III, de volta da Espanha, ordena que o conde de Campello
agradeça a Giovanni Amendola pela sua lealdade, e, em 16 de junho,
encontra-se com Benito Mussolini, exorta-o à conciliação entre as forças
políticas, defende a necessidade de uma reforma do governo e, em seguida,
incita-o a prosseguir no caminho da “normalização”. Em essência, apesar do
desprezo geral, o rei da Itália, atendo-se ao respeito à Carta Constitucional de
um ponto de vista estritamente formal, reconfirma a confiança no chefe do
governo. Benito Mussolini se reanima. Tem início a contraofensiva.
No mesmo dia, Mussolini convoca o Conselho de Ministros e obtém
aprovação das suas iniciativas. Em primeiro lugar, como demonstração da
sua boa vontade moderadora, dá um passo para trás: renuncia ao ministério
do Interior em favor de Luigi Federzoni, líder nacionalista estimado pelos
conservadores de direita. Em seguida, liquida Emilio De Bono, que se
mostrou inepto e envolvido em outros casos. Nomeia como novo chefe da
polícia Crispo Moncada, governador da província de Trieste. Então, antes que
o dia termine, convoca Aldo Finzi para induzi-lo à enésima reconsideração.
Após concordar inicialmente com um pedido de renúncia, Finzi, sentindo-
se acuado, entrou em contato com o Corriere della Sera ameaçando fazer
revelações: o herói do sobrevoo de Viena daria tudo à pátria, mas não a
honra, o mandante do delito era um só — Benito Mussolini de Predappio.
Todavia, uma hora mais tarde, quando o ex-secretário do Interior sai da
reunião de 16 de junho com Benito Mussolini de Predappio, dá a impressão
de ser um homem aterrorizado. Finzi surge pálido, agitado, diz-se
arrependido do seu passo na direção da oposição. O Duce prometeu que,
assim que voltar a ter domínio da situação, vai lhe devolver o cargo. Depois o
dispensou:
“Adeus, Aldo, estamos entendidos.”
Aquele “estamos entendidos” causou confusão na mente do piloto.
Nos dias seguintes, Mussolini prossegue com a contraofensiva. Ordena aos
governadores de muitas províncias que organizem comícios fascistas em
apoio ao governo. Os governadores obedecem. Nas praças, voltam a girar os
cassetetes. Tullio Tamburini, o “grande espancador”, vai de Florença para
Roma à frente da 92a Legião da Milizia per la Sicurezza nazionale, conhecida
como “a legião de ferro”, e a faz desfilar pelas ruas do Centro histórico em
formação de guerra. O apoio mais caloroso, contudo, vem de novo do vale do
Pó e de Leandro Arpinati. Embora acamado por conta de um acidente de
carro, o rás de Bolonha, leal como sempre, já em 19 de junho reúne milhares
de integrantes das esquadras e, 3 dias mais tarde, em 22 de junho, leva às ruas
50 mil camisas-negras de toda a Emília.
Mas também a justiça segue seu curso. Após permanecer foragido, Albino
Volpi é enfim detido em um restaurante de Bellagio enquanto almoça antes
de cruzar a fronteira suíça. Filippelli, o diretor do Corriere Italiano que
alugou o carro do delito, após alguns dias de despudorada impunidade, é
interceptado pela guarda costeira a bordo de uma lancha em rota para as
praias francesas. Nas horas seguintes, caem na rede, um após o outro, quase
todos os acusados: Giuseppe Viola e Amleto Poveromo são presos em Milão,
enquanto Cesare Rossi, sem esperança de poder continuar foragido, se
entrega à chefatura de polícia de Roma em 22 de junho. Por fim, é a vez de
Giovanni Marinelli, incriminado por vários testemunhos e por um telefonema
em 31 de maio ao diretor da penitenciária napolitana de Poggioreale, no qual
pedia a libertação imediata de um dos homens da quadrilha para uma missão
de governo. Marinelli, fiel como sempre, se entrincheira por trás de um
silêncio absoluto. Enquanto isso, Carcere di Regina Coeli: embora na mala de
Amerigo Dùmini tenham sido encontrados retalhos do estofamento e de
roupas ensanguentadas, a arma do delito e cartões de visita timbrados com
“Assessoria de Imprensa — ministério do Interior”, ele continua a negar
qualquer envolvimento da cúpula fascista e qualquer intenção homicida. De
acordo com Dùmini, Giacomo Matteotti morreu acidentalmente durante a luta
por causa de uma hemorragia das vias respiratórias, sufocado pela própria
tuberculose.
Fortalecido por tudo isso, em 24 de junho, o chefe do governo se apresenta
diante do plenário lotado onde se encontram os senadores do Reino. Faz um
discurso moderado, hábil, pacato nos tons e calculado nos registros.
Mussolini se apresenta mais uma vez como o homem da ordem dedicado a
aplacar todas as violências.
Em 25 de junho, tem um encontro privado com Arturo Benedetto Fasciolo,
seu afável estenógrafo pessoal que foi o primeiro a informá-lo do delito,
obrigado por Albino Volpi ao papel de mensageiro do horror e, por Dùmini,
ao papel de entregador dos restos macabros da vítima. Até a Fasciolo
Mussolini pede a renúncia. Dele também, exige lealdade e sacrifício. A ele
também promete recompensas:
“Se eu me salvar, salvo todos. Fique tranquilo. Quanto mais confusão,
melhor.”
Em 26 de junho, o governo obtém a moção de confiança do Senado com
ampla maioria: 225 votos a favor, 21 contra, 6 abstenções.
“Votação importantíssima”, escreve Mussolini em suas notas, “eu ousaria
dizer decisiva. O Senado, em um momento difícil, em plena tempestade
política e moral, alinha-se quase de maneira unânime ao governo.”
Mussolini não é o único a suspirar de alívio com o voto dos senadores que
o salva. Benedetto Croce, líder do pensamento liberal, dá uma entrevista em
que explica os motivos da sua escolha. Assumidas algumas críticas,
confessados alguns arrependimentos, manifestada certa nostalgia pelos bons
tempos passados, o grande filósofo liberal reafirma sua escolha em apoio ao
fascismo. O fascismo, declara ele, não é uma paixonite nem uma brincadeira
de mau gosto, o fascismo respondeu a sérias necessidades e fez muita coisa
boa. Não devemos deixar de lado seus benefícios e voltar à fraca ineficácia
que o precedeu. O fascismo chegou ao poder em meio aos aplausos e ao
consenso da nação; agora, seus melhores expoentes têm a possibilidade de
confirmar “o fator político forte e salutar do qual são portadores”. O coração
do fascismo, proclama Croce, é o amor pela pátria italiana, é o sentimento da
sua salvação.
Do fórum de Cremona, ecoando as palavras do ilustre professor
napolitano, o advogado Roberto Farinacci — que, como é bem sabido, após
ter comprado o diploma do ensino médio, conseguiu a graduação em Direito
copiando da primeira à ultima linha a tese de outro candidato — aceita, por
sugestão de Mussolini, participar do grupo de defensores de Amerigo
Dùmini, o algoz de Giacomo Matteotti. Dez dias antes, ele havia recusado a
mesma proposta. Agora o regime entra em campo para defender os
assassinos.
Aos governadores das províncias de: Alexandria, Mântua, Florença,
Bolonha, Placência, Treviso, Carrara, Perúgia, Sulmona, Foggia, Catanzaro,
Cagliari.
O delito contra Matteotti, que foi lealmente deplorado por todo o partido,
foi adotado pela oposição como o tão procurado pretexto para atacar o
governo. Estamos diante de uma espécie de frente antifascista unida.
Para a noite de segunda ou terça-feira, ordene uma reunião dos fascistas da
cidade e da província em uma praça para reafirmar solenemente a confiança
no Governo e no Fascismo. MUSSOLINI.

Benito Mussolini, telegrama aos governos de província,


16 de junho de 1924

O objetivo geral da minha política de governo permanece inalterado:


atingir a qualquer custo, respeitando as leis, a normalidade política e a
pacificação nacional, selecionar e depurar com incansável vigilância
cotidiana o partido, bem como dispersar com grande energia os últimos
resíduos de uma concepção ilegalista inatual e fatal [...]. Que se faça luz e
justiça! Que se afirme cada vez mais o império da lei!
Benito Mussolini, discurso ao Senado, 24 de junho de 1924
O PAÍS OPACO
27 de junho — 22 de julho de 1924

“Nós não comemoramos. Estamos aqui reunidos para um rito, um rito


religioso, que é o próprio rito da pátria. O irmão, aquele que não preciso
nomear porque seu nome é evocado neste mesmo momento por todos os
homens de coração, aquém e além dos Alpes e dos mares, não é um homem
morto, não é um homem vencido, não é sequer um homem assassinado. Ele
vive, ele está aqui presente, e combate. Ele é um acusador; ele é um julgador;
ele é um vingador. Em vão terão retalhado seus membros. Em vão seu rosto,
meigo e severo, terá sido desfigurado. Os membros se recompuseram. O
milagre da Galileia foi renovado. A tumba nos devolveu o corpo. O morto se
ergue. E fala. E juro para ele, em nome de todos vocês, que sua sombra logo
será aplacada.”
Filippo Turati pronuncia essas palavras de sublimação do amigo
assassinado em 27 de junho diante da assembleia de todos os grupos de
oposição reunidos. Enquanto Turati fala, muitos se viram, assustados, para a
entrada do plenário B de Montecitório esperando ver a aparição do fantasma
retalhado de Giacomo Matteotti. Pouco antes, no início da sessão, uma gafe
desastrada inaugurou a atmosfera espírita: o secretário, que fazia a chamada
dos participantes lendo de modo burocrático as listas da Câmara, ao chegar
ao “nome”, inadvertidamente o interpelou:
— Giacomo Matteotti?
Após um instante de espanto e comoção, muitos gritaram:
— Presente!
Mas é toda a Itália que, nesses dias, contagiada, encantada pela morte, leva
uma existência espectral. A começar logo pela oposição cuja assembleia,
fecundada pelas palavras de Turati, dá à luz a decisão de se abster dos
trabalhos da Câmara até a restauração da ordem política e jurídica violada. A
abstenção por tempo indeterminado do Parlamento logo é rebatizada de
“Aventino”, em memória de outros fantasmas, de uma outra secessão, de uma
outra plebe romana, a que se retirou em protesto para a colina homônima em
494 a.C.
A nova secessão, nas intenções dos seus líderes, Giovanni Amendola à
frente de todos, deveria repudiar qualquer “acomodação vulgar”, deveria se
opor com intransigência à barbárie, mas, de fato, joga todas as cartas no
desprezo universal. Aposta tudo na questão moral. Como se o bloco fascista,
cimentado pela reverência a Mussolini e pelas cumplicidades do poder, para
ser espatifado, não precisasse sair derrotado de uma batalha a golpes de
martelo. Como se bastasse a indignação para se contrapor ao cassetete. Como
se a moral fosse uma categoria da política.
É o que acontece por toda parte, em cada escritório, em cada círculo, em
cada bar da Itália. As pessoas mais diversas, unidas pelo desejo de entrar em
contato com entidades espirituais — a começar pela de Giacomo Matteotti
—, se reúnem em sessões mediúnicas com o objetivo de dirigir aos espectros
perguntas específicas. Mas essas sempre ficam sem resposta. Os fantasmas
proliferam e se calam.
Dezenas de milhões de trabalhadores de todo o país, a fim de homenagear
Matteotti, abstêm-se do trabalho. Entretanto, lembrando-se das desastrosas
greves gerais por tempo indeterminado dos anos precedentes, agem de
maneira responsável: param por apenas dez minutos. Apesar disso, os
industriais, os capitães da Itália econômica não dão um pio contra o regime,
julgando a retomada da produção e o reequilíbrio das contas preferíveis à
liberdade política. Contudo, os veteranos de guerra, reunidos em congresso
em 7 de julho, também se afastam do fascismo. Poucos dias mais tarde, os
mutilados e os inválidos os acompanham no protesto. Mas Gabriele
D’Annunzio, que todos, ex-combatentes, mutilados e inválidos, veem como
líder natural, infelizmente não é mais um homem de aventuras e já decidiu se
abandonar por completo à literatura: a aquisição a peso de ouro por parte do
Estado dos manuscritos do poeta, como sempre em condições econômicas
precárias, antes de uma série de subvenções, o aplaca de vez. A momentânea
indignação antifascista de veteranos, mutilados e inválidos fica, portanto,
desprovida de um guia.
Enquanto isso, em Florença, em 9 de julho, milhares de fascistas armados
invadem as ruas. Parecem anunciar a chegada da tão ameaçada “segunda
onda”, mas esse ímpeto também acaba minguando e se torna uma
reestruturação do governo. Saem Gentile, Carnazza, Corbino, entram Casati,
Sarrocchi e Lanza di Scalea, e a eterna hesitação atenua a onda.
As bolsas despencam desastrosamente após a difusão da notícia do
sequestro, mas o rei, como um “prisioneiro de guerra”, descumprindo o
próprio juramento sobre o Estatuto Albertino, firma um decreto que permite
que os governadores de província fechem os jornais que divulguem notícias
prejudiciais à nação e, assim, amordaçada a imprensa, a histeria das bolsas se
aquieta. O fatalismo quietista do rei, por sua vez, dá o pano de fundo da
existência espectral que contagia seu povo. A uma delegação de ex-
combatentes que vai até ele pedir providências urgentes e drásticas, Vítor
Emanuel III replica, desinteressado, mudando de assunto: “Hoje minha filha
matou duas codornas”, informa com mal dissimulado orgulho paterno.
Sim, a maioria dos italianos, horrorizados com o delito, gostaria de ver a
queda do fascismo para limpar suas casas infestadas de fantasmas, mas, lá
pela hora do jantar, as exigências da vida cotidiana prevalecem. A moralidade
não está entre elas. O país é opaco, seu sentimento de justiça é fraco, turvo. O
sentimento de revolta se reduz à paixão doentia com que são seguidas as
reportagens sobre o escândalo.
Proliferam, sobretudo, as hipóteses sobre a eliminação do cadáver: serpeia
entre muitas pessoas o devaneio de uma fogueira no forno crematório de
Roma, enquanto outros preferem o gelo e, então, fantasia-se uma cela
frigorífica no gabinete de medicina legal do Policlínico. Outros ainda
insistem no fundo misterioso do lago de Vico. Os mergulhadores o exploram
palmo a palmo. O leito está vazio, solitário, abandonado. Só lama, só lodo é
dragado daquele mistério. Então, exploram com entusiasmo cavernas,
catacumbas, pequenos cemitérios abandonados. A agitação do país
transforma-se em pesadelo. A Itália grita enquanto dorme, oprimida por
espectros que sufocam qualquer sentimento de libertação, como em um sonho
ruim.
Nessas semanas, até a existência de Benito Mussolini — ele, que é um
conjunto entre seu corpo e a matéria férrea da qual, segundo dizem, seria
forjado – torna-se um espectro. “Há dois mortos”, escreve o jornalista Ugo
Ojetti, “Matteotti e Mussolini.”
Após a breve chama de dinamismo de meados de junho, o Duce do
fascismo volta a cair, de fato, no desânimo morno, vai vivendo no
impalpável. Deixa, assim, que volte à tona no partido a polêmica entre
revisionistas e intransigentes. Para dar voz aos últimos, surge um jovem ex-
voluntário de guerra toscano — que adota o nome de Curzio Malaparte —,
fundador de uma revista, La conquista dello Stato, na qual, em nome da alma
popularesca, rústica, generosa e atrevida do fascismo provincial em
contraposição à “cloaca romana”, defende com a espada desembainhada a
irrupção do esquadrismo intransigente contra os viúvos de Matteotti.
Mussolini o deixa falar, não consegue se decidir. No Grande Conselho do
Fascismo de 22 de julho, o Duce ainda hesita: declara que a revolução exige
espertezas e estratagemas, pede compreensão e ajuda, em seguida se declara
pronto também para a violência, caso necessária. Enquanto isso, o jovem
advogado que assumiu com ímpeto a defesa de Dùmini sugere que Mussolini
se afaste para as sombras, como um espectro: há gente demais falando de
memoriais dos investigados, interrogatórios, indícios; é perigoso, ele deve
recusar o assunto, ignorar o processo.
Até a vida privada de Mussolini oscila nos extremos entre breves euforias
e lúgubres melancolias. Bianca Ceccato, sua amante “garota”, agora mãe da
sua filha bastarda, convidada a ir a Roma, passa alguns dias trancada no seu
apartamento da Via Rasella, sempre à disposição dele. No auge da vaidade,
ele lê para ela cartas e mais cartas de admiradoras desconhecidas, e, de
repente, explode em acessos de fúria contra sua esposa, Rachele, que,
segundo dizem, finalmente começou, por sua vez, a ter um caso com um
sujeito na Romanha. A infidelidade da esposa, somada à amargura daquele
cadáver jogado a seus pés, provoca em Benito Mussolini, pela primeira vez
na vida, violentos ataques de úlcera. Os médicos recomendam reduzir a
ingestão dos sucos de laranja que ele tanto aprecia e o proíbem de tomar café.
Quinto Navarra, seu impecável camareiro, um dia o vê se dobrar de dor no
estômago sobre o tapete do Salão das Vitórias.
Os poucos amigos que ainda o visitam descrevem um Mussolini obcecado
pelos fantasmas. No fim de julho, recuperado do acidente de carro, Leandro
Arpinati vai a Roma com quatro camaradas. Ao ingressarem no Palazzo
Chigi, deserto, têm a impressão de que todos fugiram. Arpinati entra depressa
no gabinete do Duce, sem esperar ser anunciado. Encontra-o abatido, a barba
de três dias por fazer, os olhos febris:
— A posição é insuportável: não é possível ficar no governo com um
morto entre os pés — queixa-se o presidente do Conselho de Ministros.
— Você o mandou matar? — pergunta o outro à queima-roupa.
— Não.
— Então o que você tem a ver com isso? Castigue quem cometeu esse
delito estúpido e não pense mais a respeito.
Benito desabafa com Leandro, o velho amigo leal: não pensar mais a
respeito é impossível. Ele sai todas as noites por volta das 19h e, na rua de
casa, sempre cruza com uma pequena multidão que o observa passar muda,
hostil. É um pesadelo. A mulher de Matteotti vai quase todos os dias pedir
notícias do marido. Nas primeiras vezes, ele a recebeu, mas agora não tem
mais coragem.
Não é verdade, é outra mentira, talvez até uma alucinação: Velia Matteotti,
após aquele único encontro em 13 de junho, não apareceu mais. Todavia,
enquanto Mussolini se confessa com Arpinati, o amigo, aturdido, vê o Duce
do fascismo olhar à sua volta como se temesse uma aparição dela. O rás de
Bolonha, antes de voltar para a Emília, ordena que seus quatro integrantes
das esquadras se infiltrem naquela multidão muda, hostil, e aplaudam quando
o Líder passar no portão. Mussolini fica surpreso — havia semanas que
ninguém mais o aplaudia —, esboça um sorriso.
Dura pouco. Apesar da promessa solene de Turati, a sombra de Matteotti
não desaparece. Seu fantasma ainda vaga, atormentado, pelo país. O país,
porém, não se ergue. Continua opaco. Será que a perseguição vai durar para
sempre?
No seu diário, Benito Mussolini anota: “O cadáver não é encontrado — A
tensão aumenta — As acusações de mercantilismo se espalham.”
Há dois mortos, Matteotti e Mussolini. A Itália está dividida em duas,
aqueles que choram a morte de um e aqueles que choram a morte do outro.

Ugo Ojetti, julho de 1924

Há gente demais se ocupando do processo e gente demais vem aqui falar


dele com o senhor. Isso é extremamente perigoso! [...]. E me permita, senhor
primeiro-ministro, dar-lhe um conselho: com qualquer pessoa que venha lhe
falar a respeito, o senhor deve ignorar o processo e não deve permitir a
ninguém conversas sobre esse assunto [...]. Essa também é uma necessidade
imprescindível para uma justa proteção das nossas responsabilidades
pessoais. Ousei dar-lhe tais conselhos porque quero sinceramente bem a sua
pessoa.

Giovanni Vaselli, advogado de defesa de Amerigo Dùmini,


carta particular a Benito Mussolini, julho de 1924
CLOROFÓRMIO
22 de julho — 7 de agosto de 1924

— Como você está?


— Como você quer que eu esteja, minha Vela?
— Nenhuma novidade?
— Nenhuma. A esta altura, nada me surpreende mais, nem o mais absurdo,
o mais nefasto... O que me magoa é que não sei nada do que pensam meus
amigos-inimigos. Aqueles que me traíram!
— Você vai ver que tudo vai se acertar; mas, por favor, mantenha a calma,
não se deixe ser dominado pelos nervos.
— Mas não é uma questão de nervos, não sinto ódio por ninguém, não
guardo rancores! Infelizmente, ao dar as cartas, o destino favoreceu os meus
inimigos, e na eventualidade, quase certeira, de eu perder a partida, não há
sequer a possibilidade de tentar o desempate!
— Mas você sempre demonstrou ser um jogador habilidoso, por isso sabe
que muitas partidas que de início parecem perdidas acabam mudando na
última mão.
Como testemunham as interceptações telefônicas dos responsáveis pelas
linhas reservadas do presidente, no fim de julho de 1924, é Margherita
Sarfatti quem mais uma vez infunde em Mussolini confiança em si mesmo,
em suas habilidades em jogos de azar: nunca deixar a mesa depois de uma
mão ruim (por uma ironia do destino, na intimidade, o amante a chama
carinhosamente de “Vela”, que difere em uma única letra do nome da viúva
de Matteotti). O mesmo encorajamento para que não renuncie chega a
Mussolini vindo de Costanzo Ciano, o herói das lanchas torpedeiras, usando
sua experiência de marinheiro: desde o primeiro embarque — lembra Ciano
ao Duce — ensinaram-lhe “a não descer do barco quando o mar está em
borrasca”.
E Benito Mussolini não desce. Afinal de contas, ninguém o obriga a fazê-
lo. O rei reconfirmou sua confiança, a oposição se limita à polêmica
jornalística, e a investigação judiciária, manobrada do alto, não o afeta
pessoalmente.
Amerigo Dùmini, instalado na ala VI em Regina Coeli com todas as
comodidades, continua a se ater à versão da surra que terminou em tragédia e
a negar qualquer responsabilidade de Mussolini. Enquanto isso, a
administração do Partido Nacional Fascista paga, sem dar um pio, todas as
despesas do ilustre detento e dos seus compadres: alimentação de um
restaurante externo, ternos de vicunha inglesa forrados de seda, pijamas
enfeitados com pele de astracã, papel de carta com o emblema do partido e o
incrível cabeçalho de “Grupo Arditi Fascistas — Destacamento de Regina
Coeli — Roma — Via della Lungara 29”.
Dùmini tem um único gesto de intemperança quando, no fim de julho, uma
declaração juramentada de De Bono, “aquela puta velha”, parece fazer ruir
sua versão do crime sem dolo. O integrante toscano das esquadras escreveu
então cartas chantageadoras a Finzi ameaçando, se enganado, vender caro a
própria pele, contra tudo, contra todos e a qualquer custo; porém, Dùmini
recua, arrepende-se do desabafo e promete voltar a ser “o bom e fiel fascista
de antes”. No fundo, para Amerigo Dùmini, Regina Coeli é um “cárcere sem
barras” e o pacto com Mussolini é mantido.
Mussolini, então, sente que pode superar a borrasca e retoma o controle do
partido. Os integrantes do Conselho Nacional, que participam das sessões de
7 de agosto na Sala do Consistório no Palazzo Venezia, recebem do seu Duce
redescoberto, que declara de antemão falar como Líder do fascismo e chefe
do governo, o novo slogan e a nova rota:
“Um filósofo alemão disse: ‘Viva perigosamente.’ Eu gostaria que esse
fosse o lema do jovem, passional, fascismo italiano: ‘Viver perigosamente.’
Já lançado o slogan, seu significado é explicado. É necessário estar pronto
para tudo, para qualquer sacrifício, para qualquer perigo, mas, enquanto isso,
é necessário reconhecer os erros. Perdeu-se tempo demais com futilidades,
comendadores demais, cavaleiros demais. Era necessário, isso sim, ter o
orgulho de “chegar nus à meta”. E chega de violências inúteis: não devemos
mais dizer que estamos dispostos a matar e morrer pelo fascismo, mas
somente que estamos dispostos a nos sacrificar pela pátria. Entretanto,
também chegou a hora de parar com os revisionismos. Esses revisionistas são
pessoas que amam a retaguarda para estarem na vanguarda em caso de
contra-ataque. Agora, porém, a revolução iniciada em outubro de 1922 deve
ser completada com a conquista definitiva do decrépito Estado democrático e
liberal. O fascismo só admitirá ser julgado pela história.
Sobretudo, porém, uma vez lançado o slogan, uma estratégia bastante
sofisticada torna-se vital, pois a batalha é difícil, uma vez que se deve evitar o
desmantelamento da maioria governista — e Mussolini calcula quase uma
centena de deputados hesitantes. A estratégia é esta: “Devemos
cloroformizar, permitam-me o termo médico, a oposição e também o povo
italiano.”
É preciso crueldade, claro, mas a crueldade do cirurgião. Chega de
alarmismos, chega de histeria. É possível bater em um povo, pressioná-lo
com tributos, impor-lhe uma dura disciplina, mas não é possível pisar em
certos sentimentos profundamente arraigados. Não é possível viver sob o céu
de um apocalipse cotidiano. O estado de espírito do povo italiano — o Duce
reanimado garante aos participantes do Grande Conselho — é este: não nos
estressem todos os dias dizendo que querem fazer pelotões de execução. Isso
nos aborrece. Uma manhã, ao acordarmos, informem-nos que os fizeram e
ficaremos contentes, mas, pelo amor de Deus, chega dessa ladainha contínua.
Façam tudo, mas nos contem depois.
Além disso, dali a uma semana é o Ferragosto, o feriado da Assunção de
Nossa Senhora. Este ano, cai em uma sexta-feira. O povo terá três dias
inteiros para levar as crianças à praia, para se reconciliar com os velhos, com
os mortos, em uma refeição, diante de um prato de macarrão, as pernas
embaixo da mesa, a garrafa de vinho em cima dela, três dias inteiros para não
pensar em mais nada, para não se dar conta de nada.
A verdade é que os parlamentares nada podem fazer além de esperar
passivamente, e os não parlamentares só podem votar ordens do dia [...]. No
fundo, o que faz a oposição? Faz greves gerais ou parciais? Manifestações
nas praças? Ou tentativas de revoltas armadas? Nada disso. A oposição
desempenha uma atividade puramente de polêmica jornalística. Não podem
fazer outra coisa.

Benito Mussolini, discurso ao Grande Conselho do


Fascismo,
22 de julho de 1924

Tentemos evitar o alarmismo na população, tentemos nos apresentar sob


nosso aspecto guerreiro, mas somente capaz da crueldade necessária, da
crueldade do cirurgião. Não vamos exacerbar os nervos já abalados da
população: no fundo, o povo fará o que nós quisermos que faça. Amanhã, mil
indivíduos determinados controlam Roma; amanhã, se agirmos para valer,
com a decisão daqueles que queimaram as pontes atrás de si e devem
obrigatoriamente seguir adiante, a população se recolherá porque, no fundo, a
humanidade ainda é aquela do taberneiro de Alessandro Manzoni que diz:
“Não me ocupo disso, cada um tem as próprias questões pessoais.”

Benito Mussolini, discurso ao Conselho Nacional do


Partido Nacional Fascista,
7 de agosto de 1924

O golpe foi duro, estúpido, repentino. Mas acho que vou superar essa
tempestade: a última das infinitas tempestades causadas por aqueles que
deveriam tê-las evitado.

Benito Mussolini, carta à irmã Edvige,


1o de agosto de 1924
O CADÁVER

Macchia della Quartarella, 16 de agosto de 1924

Um bueiro, uma cadelinha, um bosque selvagem que abrigava bandidos.


Assim a Itália sai do seu pesadelo atroz.
Alceo Taccheri, funcionário responsável pela manutenção de estradas,
encarregado da Via Flaminia, ao fazer a desobstrução de uma valeta, examina
de quatro o bueiro entupido no quilômetro 18. Encontra ali um paletó, sem
uma das mangas, com o debrum encrustado de sangue seco no local em que
se coloca o lencinho de bolso, na altura do coração. Procurando mais a fundo,
uma coisa branca aparece apoiada no solo. Ao recolhê-la, ele constata que se
trata da manga que estava faltando, com o forro virado para fora.
Ovidio Caratelli, sargento dos carabineiros, está em Riano Flaminio, de
licença, com a família. Conhece como a palma da mão a Macchia della
Quartarella, um bosque fechado, alto, lugar inacessível e selvagem, porque
percorreu em longas excursões de caça todos os bosques dos arredores.
Separada da estrada por uma paliçada imponente, adensada por árvores de
troncos compridos e arbustos espinhosos, a mata, na sua parte mais interna,
leva a um despenhadeiro profundo. Mas, entre a faixa oeste e o
despenhadeiro, abre-se uma pequena clareira de uma carvoaria abandonada,
impossível de se avistar da estrada, enterrada pela vegetação espessa,
contornada por sarças e carvalhos. É dali que, ao cair da noite, na distância de
um crepúsculo de verão, o carabineiro ouve a própria cadela latir. O animal
se agita pelo terreno. Mas já é tarde, está escuro, é melhor voltar para casa.
No dia seguinte, a cadelinha, ávida, sai desembestada na direção da mata
fechada assim que eles avistam a Quartarella. O animalzinho volta a se agitar,
no mesmo local do dia anterior.
O carabineiro perfura o terreno, coberto de folhas e de cascas secas de
carvalho; o bastão afunda no terriço mole; ele o calca para ver se afunda
mais. Da terra, como que para devolver o golpe, sobe um nauseante cheiro de
putrefação. O solo, quase que de imediato, também traz à tona ossos humanos
e retalhos de carne, completamente cobertos por vermes em intensa atividade.
Quando a terra é um pouco mais revolvida, surge a parte anterior de um
crânio.
Giacomo Matteotti já está em estado avançado de decomposição. Restam
poucas partes moles revestidas de cútis. Está curvado e comprimido em uma
fossa pequena demais. Na sua sepultura, serve de cruz apenas uma grande
lima cravada no terreno: a ferramenta usada por seus assassinos para escavar
a fossa.
Os magistrados investigadores anotam: bosque da Quartarella (diante da
Via Flaminia, no quilômetro 23 a partir de Roma, entre Riano e Sacrofano),
em uma fossa oval, superficial, com uma largura de 0,40m a 0,75m, no nível
da terra, com um comprimento central máximo de 1,20m e profundidade
máxima de 0,45m (folha 26,3, volume per.), situada em uma pracinha já
usada como carvoaria, contornada por sarças.
O médico-legista constata que o cadáver deve ter ficado muito tempo na
fossa, onde aconteceu a dissolução, por processo natural de decomposição,
sem ação de agentes externos, e que o cadáver, embora completo, mesmo
sem ter sofrido mutilações, nem em vida nem após a morte, deve ter sido
comprimido com muita força no túmulo superficial, demasiado pequeno,
escavado às pressas, com meios inadequados, presumivelmente tendo sido
pisado, então dobrado em dois, as pernas viradas para baixo das costas, enfim
coberto sumariamente com um pouco de terra recolocada no lugar. Dois
dentes de ouro, descobertos por causa da retração da gengiva, confirmaram
que se tratava dos restos do deputado Matteotti.
Em vista da ausência de órgãos internos, de lesões específicas no esqueleto
e de outras vestimentas, com exceção do paletó rasgado e das calças já
encontradas, é impossível definir com precisão a causa do óbito. Mas, a título
de hipótese, e em vista da mancha de sangue que se alastrou pela parte
interna e externa, encontrada na região peitoral anterior superior esquerda e
na região axilar correspondente do paletó apreendido, é perfeitamente
verossímil que a morte tenha acontecido em consequência de uma ferida com
arma perfurante e de corte na região torácico-anterolateral superior esquerda,
que sangrou de maneira abundante. Uma única punhalada na área do coração.
Durante toda a tarde, os carabineiros vasculham o perímetro em busca de
algum outro pedaço de carne ou de algum resto de ossos. Todavia, antes do
anoitecer, a mata dos bandidos já está sitiada por uma multidão armada com
lanternas, que se aglomera nos confins do bosque. Entre os primeiros a
chegar, os deputados do Partido Socialista Unitário. Filippo Turati cambaleia
e aperta um lenço contra o rosto, não se sabe se para sufocar o choro ou para
reprimir a ânsia de vômito causada pelo fedor do cadáver.
O horror volta a invadir o mundo. Os jornalistas se esbaldam. Nos boatos
da imprensa, a descrição minuciosa do desnudamento do corpo, a violência
usada contra o cadáver para comprimi-lo à força em uma fossa inadequada,
escavada às pressas com uma lima, lança a profanação de Riano entre as mais
“premeditadamente ferozes da história”. Os depoimentos de Ovidio Caratelli
e Domenico Pallavicini, o capitão dos carabineiros que encontrou o paletó,
suscitam ceticismo: os dois se contradizem e há quem suspeite de
manipulação na descoberta.
A essa altura, no entanto, isso já não importa. Irradiando-se para todo o
país de uma pobre fossa escavada com uma lima e descoberta pela agitação
de uma cadelinha, descargas de choque emocional tiram os italianos do seu
torpor semifestivo. Durante a noite, nas ruas da capital, os retratos de
Mussolini são retocados com nódoas de tinta vermelho-sangue.
A terra, portanto, devolveu o cadáver de Giacomo Matteotti. O cadáver,
mesmo com seus poucos pedaços de carne, aplaca o fantasma. O pesadelo
terminou. O fim começou.
Vou poupá-la da descrição minuciosa dos restos. Tudo está destruído. Não
há sequer o esqueleto, apenas tíbias, fêmures, costelas, ossos dispersos e o
crânio.

Filippo Turati, carta a Anna Kuliscioff,


16 de agosto de 1924

Quantas coisas tristíssimas à nossa volta, que tecido de insídias [...]. A


descoberta desse maldito cadáver calará a boca da matilha e dos vira-casacas
que a seguem.

Margherita Sarfatti, carta a Benito Mussolini, agosto de


1924
PRECIPÍCIO
21 de agosto — 16 de dezembro de 1924

O que resta de Giacomo Matteotti é entregue pela segunda vez à terra no


dia 21 de agosto. Dessa vez, trata-se da sua terra: as exéquias acontecem em
Fratta Polesine por vontade de Velia, a esposa, que recusou a oferta de Turati
de um sepultamento “político” em Roma, no cemitério de Verano.
De qualquer maneira, a partida do caixão da estação de Monterotondo foi
saudada pelos gritos de uma multidão de camponeses, trabalhadores braçais e
ferroviários ajoelhados ao longo dos dormentes e acolhida em Fratta por uma
aglomeração semelhante, com dezenas de milhares de trabalhadores de luto e
à espera de vingança, de justiça, de revanche:
“Vingança! Viva Matteotti! Viva o mártir! Viva a liberdade!”
Em Fratta Polesine, no lugar de origem, o foco não é mais a esposa jovem,
mas a mãe idosa. O batalhão enfileirado na estrada provincial apresenta as
armas; o padre dá a bênção ritual; em seguida, o luto da mãe, acompanhada
ao lado do caixão, começa com soluços e termina com gritos de suplício.
Lucia Elisabetta Garzarolo, chamada comumente de Isabella, enterra com
Giacomo o último dos sete filhos, todos levados pela tuberculose, pela vida e
pelo fascismo.
A partir desse momento, tudo despenca, o barraco desmorona, a Itália é um
país em luto, enfileirado ao lado da dor materna.
O fascismo, de novo odiado pelo mundo, volta a cair no abismo da
atividade das esquadras. Nos dias anteriores, já deixara mortos e feridos nas
ruas de Nápoles, mas, em 31 de agosto, falando em um comício para os
mineiros do monte Amiata, Mussolini em pessoa evoca a violência definitiva:
o clamor dos socialistas — diz — é incômodo, mas eles são impotentes por
completo; no dia em que passarem das palavras aos fatos, “naquele dia,
faremos deles forragem para os acampamentos dos camisas-negras”. Os
opositores que se retiraram no Aventino seguindo suas próprias consciências
não o preocupam: “Os ausentes estarão errados.”
A violência, evocada pelo Duce, eclode poucos dias depois, em 5 de
setembro, em Turim. Piero Gobetti, o delicado e jovem diretor do La
rivoluzione liberale, é esperado na rua por um grupo de integrantes de
esquadras; surram-no violentamente, causando gravíssimas lesões internas;
uma pequena multidão assiste atônita e prudente à luta de um homem contra
uma dezena. Mas não é apenas a agressão de Turim. Voltam a surgir por toda
parte manifestações, destruições, alvoroços. De ambos os lados. A piora
culmina em um bonde em Roma no qual, em 12 de setembro, o operário
Giovanni Corvi assassina com três tiros de revólver o sindicalista fascista
Armando Casalini diante dos olhos petrificados da filha pequena. Em
Cremona, Farinacci invoca a limpeza étnica da oposição: “Se não é suficiente
a vassoura, que se use a metralhadora.”
O jornal fascista L’impero pede campo de concentração para os chefes do
Aventino. Os integrantes das esquadras de província imploram a Mussolini:
“Duce, desate nossas mãos.” A “segunda onda” parece inevitável, incipiente,
uma necessidade histórica.
No precipício, por sua vez, continua o repúdio ao fascismo. Os primeiros a
se mexer são os grandes industriais que o apoiaram. Em 14 de setembro, a
delegação de sempre — Olivetti, Conti, Pirelli — apresenta a Mussolini um
memorial que vale como um ultimato. Em seguida, mexem-se os liberais,
reunidos em congresso no início de outubro. Eles também se distanciam do
regime do qual ainda fazem parte. Até o Corrirere della Sera, enfim, o ataca
abertamente. Despenca também a investigação judiciária: Amerigo Dùmini,
encurralado pelo depoimento de De Bono sobre as responsabilidades de
Rossi e Marinelli, é obrigado a mudar de linha defensiva. Em 20 de outubro,
admite que estava a serviço da “Tcheka Fascista” e que obedeceu ordens dos
seus mandantes. A ordem do ex-chefe da polícia — “negue, negue, negue
sempre tudo” — já não faz mais sentido. Em 28 de outubro, as celebrações
dos milicianos pelo segundo aniversário da marcha sobre Roma acontecem
em praças desertas. Não participam nem mesmo os mutilados de guerra. Até
Gabriele D’Annunzio toma a palavra de Gardone, definindo a Itália do crime
contra Matteotti uma “ruína fétida”. Nos bastidores, são tramados complôs
para assassinar Mussolini. O Partido Nacional Fascista está fechado em si
mesmo como uma fortaleza sitiada. Todos esperam que, do Aventino, chegue
a ordem de atacá-la.
Em queda livre, o fascismo sitiado faz uma última, tóxica, tentativa de se
purificar. Em 22 de outubro, Emilio De Bono, já destituído como chefe de
polícia, é obrigado a deixar o comando da Milizia per la Sicurezza nazionale
unicamente nas mãos de Italo Balbo. Em 25 de outubro, Dom Sturzo é
exilado em Londres. Em Paris, no processo pelo homicídio do fascista Nicola
Bonservizi, assassinado por um exilado político socialista, Curzio Malaparte
fabrica um infame documento falso que tiraria a responsabilidade pelo crime
do cadáver de Giacomo Matteotti. Até Luigi Pirandello, o maior dramaturgo
italiano vivo, contribui com a tentativa de expurgar o fascismo filiando-se ao
partido bem no fim de outubro. Em 4 de novembro, aniversário da vitória, o
regime, em queda, tenta fascistizar por completo o culto à pátria. Mussolini
se ajoelha diante da tumba do soldado desconhecido enquanto, às suas costas,
na Piazza del Popolo, os participantes das esquadras atacam um cortejo
nacionalista guiado pelo neto de Giuseppe Garibaldi. A tentativa fracassa. Por
toda parte, eclodem confrontos entre fascistas e ex-combatentes.
Condecorado com a medalha de ouro por bravura militar, Mario Ponzio di
San Sebastiano rasga a carteirinha de filiação ao PNF. Ele também está entre
o grande número de italianos que continua a esperar do Aventino uma
iniciativa política específica para abater o regime.
No precipício, enquanto isso, em 12 de novembro, o Parlamento, até então
cúmplice, também começa a repudiar o fascismo. O calendário do primeiro
dia de trabalho na Câmara, reaberta após um longuíssimo fechamento, prevê
a homenagem aos deputados falecidos nos últimos meses. O nome de
Giacomo Matteotti aparece naquela lista. O comunista Repossi, que desceu
do Aventino, proíbe que os fascistas participem da cerimônia fúnebre:
“Desde que o mundo é mundo”, grita Repossi diante de todos, “não é
permitido que os assassinos e os cúmplices dos assassinos homenageiem suas
vítimas!”
O ataque é violento, mas nenhum fascista ousa calá-lo. Nos corredores de
Montecitório, fala-se de acordos entre os principais líderes liberais para minar
a autoridade de Mussolini. Giovanni Giolitti surpreende por não estar
presente na primeira sessão, mas assume uma posição em 15 de novembro
votando contra uma proposta de lei do governo. Enfrenta Mussolini no
plenário sobre as medidas que reprimem a liberdade de imprensa. Poucos
dias depois, une-se a ele Vittorio Emanuele Orlando, o primeiro-ministro da
vitória. A cada novo voto, o governo perde apoio. Em 24 de novembro, o
famoso comediógrafo Sem Benelli anuncia sua renúncia: “Ou o fascismo
renuncia ou o Estado renuncia”, declara. A maioria desmorona, o poder de
Mussolini mostra sinais de instabilidade. Turati até escreve a Kuliscioff que,
àquela altura, “a sucessão está aberta”.
Em 26 de novembro, cai também Italo Balbo. O rás da Romanha, atacado
por um jornal por conta da sua responsabilidade no homicídio de Dom
Minzoni, tentou abrir um processo por difamação. Mas, durante este, seu ex-
tenente Tommaso Beltrami exibe uma carta na qual Balbo garante a
impunidade dos agressores após o delito. Mussolini exige sua renúncia. Cai
também, assim, o ídolo dos participantes das esquadras. O fascismo continua
em queda livre.
Em 30 de novembro, todas as forças antifascistas se reúnem em Milão.
Grande participação popular, grande comoção. No centro do palco, destaca-se
um grande retrato de Matteotti cercado por uma guirlanda de flores brancas e
vermelhas e folhas verdes. Grita-se “Viva Matteotti!”, grita-se “Abaixo os
assassinos!”. Os magistrados investigadores, concluída a fase de instrução do
processo, pedem o indiciamento não apenas dos executores materiais do
delito, como também de Rossi e Marinelli. Em 3 de dezembro, Luigi
Albertini, diretor do Corriere della Sera e senador do Reino, protesta com
veemência contra o abuso de decretos-lei. Poucas horas mais tarde, também o
magnata Ettore Conti toma a palavra no Senado contra Mussolini: o fascismo
foi bem-sucedido em sua empreitada para restaurar o país do ponto de vista
material, porém fracassou na restauração moral. Em sequência, o general
Giardino dá voz ao mal-estar dos ambientes militares e monárquicos,
atacando a Milizia per la Sicurezza nazionale. Em 5 de dezembro, a maioria
perde mais 20 votos no Senado. O bloco social que levou Mussolini ao
governo se esmigalha em 48 horas. O sino toca em sinal de luto.
O acerto de contas parece iminente, os ângulos de ataque se multiplicam.
Em 6 de dezembro, Giuseppe Donati, diretor do jornal católico Il Popolo,
apresenta uma detalhada denúncia sobre a cumplicidade de De Bono no
delito. Este, interrogado pelo júri, confirma que, na noite de 12 de junho, na
reunião secreta no Viminale, Rossi e Marinelli declararam estar executando
ordens de Mussolini. Em 16 de dezembro, chega-se ao ponto em que até um
simples deputado, o liberal Giovanni Battista Boeri, embora eleito na “grande
lista” fascista, reúne coragem para contestar publicamente Mussolini.
— Devolva o mandato — grita enfurecido o Duce do fascismo —, uma
vez que o senhor estava na lista nacional.
— Ao entrar na lista nacional, eu não acreditava estar assumindo
corresponsabilidades penais — rebate Boeri.
O La Stampa, jornal liberal e antifascista de Turim, o único que nunca
atenuou os atos do fascismo, interpreta como uma sentença definitiva essa
rebelião aberta do homem afável do segundo escalão contra o Líder totêmico:
“O governo tem uma única preocupação: não acabar. Um único medo: as
sanções da justiça. Uma sensação de incerteza e inquietude se difunde pelo
país sem possibilidade de ser interrompida nem remediada.”
No mesmo dia, em outro jornal, naquela inquietude difusa, Filippo Turati
vê o estado de espírito das “multidões do ano mil”, ansiosas para que do
Aventino chegue o sinal “de um ato decisivo, não bem definível, mas, por
isso, simplesmente terrível”. Esperando ter alcançado o fundo do precipício,
embora com algumas décadas de antecedência em relação à chegada do
segundo milênio, os italianos prendem a respiração à espera do fim do
mundo.
Anna Kuliscioff, de acordo com Turati, porém mais prática, responde de
Milão: “Acho que é o momento de fazer as coisas acontecerem.”
PÂNTANO

Roma, 21 de dezembro de 1924

Raffaele Paolucci é uma pessoa de bem, um patriota fervoroso, um médico


ilustre. Nome ilustre no campo da cirurgia torácica e abdominal, conquistou
na guerra uma medalha de ouro por bravura militar por afundar um
encouraçado austríaco com um só companheiro e com uma só mignatta, um
torpedo autopropulsionado de 8 metros construído por ele mesmo. Na noite
de 19 de dezembro, Raffaele Paolucci convidou o “pântano” à própria casa.
Quarenta e quatro deputados da direita moderada — o fascismo dos “pais
de família”, aqueles da maioria silenciosa, os que estão sempre no meio entre
duas conflitantes formações de alucinados, aqueles cuja consciência civil fica
horrorizada a cada nova violência, mas, na superfície, pouco se abala — se
reúnem em um palácio romano, entre bombons e decorações da alta
burguesia, para pôr fim ao caos, restabelecer um clima pacífico, favorecer a
conciliação, a normalidade, a Constituição. O objetivo dos deputados da zona
cinza, convencionalmente chamada de “pântano”, é minar a autoridade do
atual governo, forçando Mussolini a romper com os rases para se aliar aos
antigos liberais — o que talvez abrisse espaço para Vittorio Emanuele
Orlando como primeiro-ministro — e induzir a oposição a voltar para o
Parlamento. Há dias, o senador Pompeo di Campello, fidalgo da corte do rei,
solicita que eles façam isso.
Com esse objetivo e com esse mandado da Coroa, os 44 assinam uma
ordem do dia de recuperação nacional: liberar-se do poder extraordinário dos
rases, evitar por completo a violência, confiar a ordem pública à polícia,
eliminar “segundas ondas revolucionárias”, defenestrar de todos os cargos os
violentos, os ladrões, os corruptos, reformar a lei eleitoral introduzindo o
sistema uninominal.
Pode parecer estranho que, com os lobos às portas, alguém esteja
considerando uma reforma eleitoral, mas, na verdade, no Parlamento, um
grupo de deputados eleitos não pensa em outra coisa e, na visão de Raffaele
Paolucci, o sistema uninominal, que prevê a eleição de um só deputado por
colégio eleitoral, submetendo cada um dos candidatos ao exame direto do
corpo eleitoral, deveria eliminar os intriguistas da política, os parasitas das
organizações sindicais, os exaltados, os violentos, os alucinados. Forçaria
Mussolini a se entregar aos liberais, aos moderados, ao rei, às pessoas de
bem.
Raffaele Paolucci, no entanto, é um homem honrado, não um conspirador,
e, por isso, embora saiba que essa reforma eleitoral está sendo discutida há
meses, e que o Duce sempre se declarou contrário a ela, após a reunião do
“pântano”, vai até o Líder relatar lealmente seus resultados, para lhe deixar
ciente dos desejos manifestados pelos seus parlamentares. Mussolini o escuta
com atenção, porém Paolucci fica com a impressão de que não foi levado a
sério.
Raffaele Paolucci revê Benito Mussolini no dia seguinte, no plenário de
Montecitório, quando ele se aproxima da bancada do governo e apresenta um
decreto-lei para a reforma do sistema eleitoral em sentido majoritário com
colégio uninominal, justamente a reforma que Paolucci havia proposto no dia
anterior e que Mussolini desprezara. Ninguém sabia nada do decreto; por
enquanto, apenas dois ministros o tinham assinado, os outros se associariam
mais tarde.
O homem de bem fica perplexo: o animal político, antecipando a jogada,
jogou no pântano não uma pedra, mas uma bomba. O efeito do decreto-lei é
arrasador, causa um desconcerto enorme, agita a água lodosa.
Superada a perplexidade diante da reviravolta magistral, Paolucci entende.
Sob o ataque da oposição, dos moderados, dos integrantes de esquadras,
Mussolini, com aquela única jogada repentina, se tornou o dono do jogo: a
oposição socialista, comunista e popular — que deve muito ao sistema
proporcional — será dizimada; os velhos figurões liberais, que ainda gozam
de amplo séquito individual em seus feudos eleitorais, apreciarão o presente;
os fascistas moderados e os participantes radicais das esquadras, em ambos
os casos sem uma base eleitoral própria, eleitos graças à maré proporcional,
ficarão agora à mercê da chantagem de Mussolini, que, fechado em seu
gabinete, atribuindo ou negando a eles um colégio vencedor, poderá designá-
los para a reeleição ou para o esquecimento.
Em suma, graças a uma simples reforma do sistema eleitoral, Mussolini
está de novo no jogo. A direita liberal, até ontem pronta a alijá-lo, se
reaproxima atraída pela perspectiva da reeleição. Ameaçados pelo risco de
não se reelegerem, os fascistas moderados, até ontem seduzidos pela corrente
de oposição do partido, correm para se realinhar. O pântano, assim, se fecha
sobre o próprio lodo. A única coisa que importa para os políticos de carreira é
a reeleição. Mesmo que o mundo desabasse, eles não levantariam um dedo
para ajudar ninguém.
A oposição, enquanto isso, é tirada da toca. Encastelada há meses no
Aventino enquanto a Itália esperava inutilmente que desferisse o ataque final,
agora ela se vê obrigada a tentar uma investida. A arma mais potente, talvez a
única a essa altura, ainda é a acusação de violência. Desde o início de agosto,
Giovanni Amendola, líder do Aventino, está de posse do memorial de Cesare
Rossi, redigido em 15 de junho. Guardou-o por mais três meses, e então, em
meados de novembro, enviou-o para Vítor Emanuel III, esperando que o
soberano solucionasse a questão. Durante todo o mês de dezembro, a Itália
esperou em vão uma manobra do Aventino. O rei, como de costume, não
moveu uma palha.
Amendola decide, então, publicar o memorial. A primeira prévia dele sai
no jornal Il Mondo em 27 de dezembro. O fascismo é desmascarado como
uma verdadeira inconstitucionalidade de Estado; o político Mussolini é
retratado com a índole de um delinquente, mandante direto das violências; o
homem Mussolini aparece como alguém que é o cabeça por trás de crimes,
sempre atento em conseguir um álibi para o dia e a hora do delito.
Todavia, por mais estranho que pareça, Mussolini nada fez para impedir a
publicação do memorial. Diz-se até que a facilitou, que a apressou. “Nenhum
embargo, visibilidade máxima”, dizem ter ordenado. Será um cálculo
diabólico, será o prazer do desastre, será que os jornais diários se chamam
assim porque suas notícias duram apenas um dia?
De qualquer maneira, a repercussão das revelações de Rossi é enorme. Os
homens das esquadras esperneiam, os jornais fascistas as descartam como as
fofocas de sempre, o Corriere della Sera pede abertamente, pela primeira
vez, a renúncia do presidente do Conselho de Ministros. Estamos de novo em
confronto aberto, facas desembainhadas.
Terminada a primeira impressão de espanto por causa da surpresa, ficou
claro o objetivo da manobra de Mussolini: aterrorizar a oposição, mas,
sobretudo, desbaratar os núcleos da maioria que demonstravam veleidades de
independência. Devemos reconhecer que Mussolini foi admiravelmente bem-
sucedido.

Declaração de Antonio Salandra, ex-presidente do Conselho


de Ministros, a propósito do decreto-lei sobre a reforma
eleitoral de 20 de dezembro de 1924

Mais algumas semanas e as oposições, que trabalharam


freneticamente em cima do morto, que se aproveitaram do
morto com uma cobiça sádica e exasperada digna de tubarões
macabros, que mantiveram sobre o peito da nação o peso de
um pesadelo horroroso, será definitivamente abalroada pela
simples lógica humana e pela indestrutível realidade dos fatos.

“Bexiga com bomba”


(comentário à publicação do memorial Rossi),
Il Popolo d’Italia, 30 de dezembro de 1924

Quando somos chamados em causa por certas acusações,


temos o dever de nos colocar à disposição da Justiça,
renunciando às prerrogativas e às imunidades que o poder de
fato defere.
Em qualquer outro país constitucional da Europa, um
primeiro-ministro chamado em causa dessa maneira
renunciaria ao cargo por vontade própria ou seria obrigado a
fazê-lo, para se inocentar como um cidadão livre.

Luigi Albertini,
Corriere della Sera, 27 e 30 de dezembro de 1924
LA MUTA

Roma, 31 de dezembro de 1924


Palazzo Chigi

Os sete lápis vermelhos e azuis da marca Faber, bem apontados de ambos


os lados e bem alinhados, avivam o canto noroeste da escrivaninha. As
lâminas metálicas das penas de ponta quadrada, talhadas na extremidade da
sua sutil fenda, estão devidamente inseridas nos cilindros de três canetas
diferentes.
Depois da habitual cavalgada matutina em Villa Borghese, o Duce
encontrou a Sala das Vitórias livre das insuportáveis moscas graças ao
impecável Quinto Navarra, que, seguindo suas instruções, aspergiu-a
abundantemente de geraniol. A inseparável pasta de couro amarelo, a mesma
de sempre, encontra-se apoiada em uma mesinha de café, os decretos das
medidas policiais e de censura da imprensa já estão assinados na
escrivaninha. No gabinete do presidente do Conselho de Ministros, tudo está
em ordem também nesse último dia do ano; como em qualquer outro dia,
todos os detalhes, inclusive os mais ínfimos, são preparados de maneira
meticulosa. Tudo, com a exceção do mundo: esse, infelizmente, resiste,
recusa-se a obedecer.
Os jornais matinais, amontoados sobre a escrivaninha em pilhas que vão se
afunilando, insuflam no cômodo asséptico, bem-arrumado, o desalinho
delirante do mundo. Os jornais liberais pedem a renúncia de Mussolini, os
socialistas pedem sua cabeça, os fascistas do cartel extremista ameaçam-no
abertamente. Na primeira edição do novo ano, Farinacci declara em seu
Cremona Nuova que o cassetete, por enquanto guardado no sótão, “deve ser
desempoeirado e deixado à mão”. No seu La Conquista dello Stato, Curzio
Malaparte, um participante do segundo escalão das esquadras, ousa adverti-
lo: “Quem não está conosco está contra nós”; o lema fascista por excelência
também vale para aquele que o cunhou, para Benito Mussolini em pessoa,
clama Malaparte. As manchetes são explícitas, insolentes: “O fascismo contra
Mussolini?”, “Todos devem obedecer, Mussolini também, à advertência do
fascismo integral”. As acusações dos integrantes das esquadras são precisas;
suas esperanças, arrogantes. Malaparte o ataca de frente, lembra que “o
deputado Mussolini, mais do que receber o cargo da Coroa, obteve o mandato
das províncias fascistas”, e estas, irredutíveis, não querem ouvir razão
alguma: deve-se dar continuidade à revolução, contra todos os acordos, as
covardias, as negociações. E os membros das esquadras estão prontos para
dar continuidade à revolução mesmo sem ele.
De súbito, a porta da Sala das Vitórias se escancara sem que ele, lá dentro,
tenha ouvido alguém bater. Sob o batente, não é o rosto deferente, o corpo
cortês de Quinto Navarra que surge. Em seu lugar, irrompem dezenas de
homens barulhentos, pesados, com passo marcial, trajando camisas negras
com medalhas por bravura bem à vista. Alguns carregam punhais na cintura.
Como se o sitiassem, mas deixando aberta uma via de fuga, formam um
semicírculo em volta da escrivaninha do presidente do Conselho de
Ministros, que permanece sentado.
Os 33 cônsules da Milícia chegaram aos poucos e incógnitos de toda a
Itália, aquartelaram-se na caserna da milícia da legião comandada pelo cônsul
Mario Candelori; aí, em pequenos grupos de três, para não dar na vista,
concentraram-se na Galleria Colonna, em frente ao Palazzo Chigi. Agora os
cônsules pressionam fisicamente seu Duce, surpreso e incomodado. São
guiados por Enzo Galbiati e Aldo Tarabella.
Mussolini conhece os dois há anos. Galbiati é o chefe das esquadras de
Monza, cônsul comandante da 25ª legião “Férrea” da Milizia per la Sicurezza
nazionale, o grupo encarregado da defesa do Il Popolo d’Italia durante a
marcha sobre Roma. Aldo Tarabella é uma lenda: capitão dos Arditi na
Grande Guerra, especializado no uso da pistola-metralhadora (uma nova arma
de ataque), seis vezes condecorado por bravura com três medalhas de bronze
e três de prata, inscrito no Fascio di Combattimento original de Milão desde
abril de 1919.
Tarabella é o primeiro a falar. Apresenta ao Duce as saudações para o novo
ano, o quarto da revolução. Mussolini, ainda firme, se diz incomodado em
recebê-los daquela maneira impetuosa. O herói de guerra põe logo as cartas
na mesa:
— Duce, viemos para lhe dizer que estamos cansados de marcar passo. As
prisões já estão cheias de fascistas. Estão julgando o fascismo, e o senhor não
quer assumir a responsabilidade pela revolução. Assumiremos nós essa
responsabilidade e hoje mesmo nos apresentaremos ao juiz Occhiuto, que
ficará bem feliz de nos trancafiar em Regina Coeli. Ou todos na prisão,
inclusive o senhor, ou todos fora.
Mussolini exige disciplina do soldado.
Tarabella, sempre em pé, não desiste: foi ele, o Duce, que inflamou seus
corações, que os incentivou contra os canalhas socialistas, agora não pode
querer aplacá-los. Tendo chegado a este ponto, o Duce que decida liquidar a
oposição para continuar com a revolução, ou todos eles vão se entregar como
criminosos ao seu lado.
Mussolini vacila. O ultimato do soldado o atingiu como um soco no rosto.
O homem sentado olha à sua volta, espia os punhais, não avista Tullio
Tamburini, o “grande espancador”, tenta sair pela tangente.
— Por que não vejo Tamburini entre vocês? — pergunta Mussolini.
— Porque já está em marcha à frente de 10 mil camisas-negras.
Para acompanhar essa resposta, Tarabella lhe estende uma carta de próprio
punho na qual Tamburini aprova a iniciativa deles.
Mussolini lê ganhando tempo, concentra-se nas primeiras linhas. Sabe pelo
ministério do Interior que, em Florença, os participantes das esquadras das
províncias toscanas incendeiam jornais socialistas, tomam de assalto quartéis
para libertar os camaradas detidos, semeiam a violência pelas ruas.
O tom peremptório do Líder se rompe, sua voz se suaviza, tenta a
persuasão, pede compreensão, sua mão direita se levanta para proteger o
corpo.
— Abriram uma clareira à minha volta... jogaram esse cadáver entre as
minhas pernas...
— Duce, acha demais um cadáver para uma revolução?
A resposta de Tarabella, fulminante, impiedosa, desencadeia na sala um
vórtice de baixa pressão. O ar se torna elétrico, o silêncio, absoluto, é
memória e presságio de gritos. Uma mosca que escapou do extermínio zumbe
batendo as nervuras das suas asas no vidro da janela que a aprisiona.
Mussolini se levanta, a voz atinge notas agudas, estrídulas, recorre mais
uma vez à disciplina: todos aqueles cônsules da Milizia per la Sicurezza
nazionale, por terem deixado sem permissão seus postos, são passíveis de
sanções. O Líder se diz amargurado, decepcionado com aqueles soldados dos
quais esperava obediência cega. Alguns deles, redarguidos, retrocedem.
Surge uma disputa. Mussolini os manda embora.
Tarabella fica para trás:
— Assumimos posição de alerta, Duce — esclarece —, mas vamos embora
batendo a porta.
A contestação do herói deixa atrás de si um homem desmontado, acuado.

***

Poucas horas mais tarde, naquela mesma noite, o sitiado se transforma em


um rejeitado. Durante a tradicional recepção no Quirinal para as celebrações
de Ano-Novo, uma ocasião solene da qual participam, além dos integrantes
da família real, todas as figuras importantes da Itália, Benito Mussolini se vê
isolado em um canto da grande sala. O Duce do fascismo teve de entrar na
última leva, depois dos cavaleiros da Ordem Suprema da Santíssima
Anunciação, dos senadores e dos deputados — não cumprimentado por
Giolitti nem por Salandra — e agarrar-se à companhia de alguns dos seus
ministros para não ficar de castigo.
Filippo Turati, que assiste à cena, considera-o desenganado. Escreve à
companheira que há apenas “o problema de encontrar o modo para a retirada
do Duce”.
Ao Duce, então, só resta mais uma vez se lançar em um jogo de azar. Pede
que o rei assine um decreto em branco para a dissolução do Parlamento, com
o qual poderia chantagear os deputados. O monarca se recusa a assinar,
subordina a firma ao sucesso da moção de confiança e à aprovação da
reforma eleitoral. Mussolini transmite então um comunicado desesperado no
qual, blefando, anuncia que, uma vez aprovada a nova lei, será possível
dissolver a legislatura.
Passa a noite que precede a reabertura da Câmara sozinho com seus sete
lápis vermelhos e azuis da marca Faber, preparando o discurso que usará para
enfrentar o tribunal do futuro. Senta-se atrás da mesma escrivaninha na qual
os 33 cônsules das Milícias o cercaram como uma matilha de cães de guerra.
As violências de Florença, o decreto que impediu a publicação de todos os
jornais em 1o de janeiro [...] são apenas uma manobra ligada ao chefe do
bando para que ele assuma uma postura decente em relação ao extremismo
fascista; um modo, enfim, de decorar com vestimenta digna a morte já
considerada inevitável.

Filippo Turati, carta a Anna Kuliscioff,


2 de janeiro de 1925
Roma, 3 de janeiro de 1925
Parlamento do Reino, Câmara dos Deputados, 15h

O plenário de Montecitório está abarrotado do centro até a direita extrema;


todavia, bastam aquelas cadeiras obstinadamente vazias da ala esquerda para
necrosá-lo como um infarto do miocárdio. No entanto, quase todos os
deputados secessionistas da oposição estão de alguma forma presentes,
escondidos entre a multidão nas tribunas.
Lá embaixo, no semicírculo, Francesco Giunta brinca com Alfredo Rocco
à mesa da presidência, o deputado Lanza di Trabia grita “Viva a Itália!”,
Farinacci rebate berrando “Viva o fascismo!”, os homens das esquadras
entoam Giovinezza. Hoje, no Parlamento da Itália, brincam, gritam, cantam,
ninguém fala.
Há dois dias os ventrículos do país fibrilam, os boatos de renúncia do
primeiro-ministro se sucedem, as praças ressoam de clamores antifascistas, e,
recebida a desmentida, voltam a ficar em silêncio. A cena muda de um
minuto para outro em uma gangorra de paixões tristes, a vida é vivida como
em um filme cinematográfico.
Circulam boatos de que “Ele” está abatido, humilhado pela rajada que o
atingiu, próximo ao colapso; outros sustentam que os cônsules da Milizia per
la Sicurezza nazionale teriam lhe injetado o bacilo da resistência. De qualquer
maneira, é Ele que todos esperam, prendendo a respiração, esperam-no como
o acontecimento capaz de estender as próprias consequências sobre o resto de
uma existência, de partir o cinema natural da vida em antes e depois.
Poucos minutos após as 15h, o primeiro-ministro Mussolini entra no
plenário pela portinha de sempre, à direita, seguido pelos deputados Di
Giorgio, Federzoni e Ciano. Surge “carrancudo e de rosto fechado”, anota o
repórter do Corriere della Sera.
O Duce do fascismo liquida com um gesto da mão direita os aplausos
rituais dos seus acólitos e assume seu lugar atrás da mesa da presidência.
Quando o deputado Rocco lhe passa a palavra, no silêncio mais tenso, com
um gesto habitual, Benito Mussolini ajusta o nó da gravata. Em seguida, parte
logo para o ataque.
Uma secessão da oposição funciona se o adversário negocia, mas esse
homem, acuado, considerado desenganado por todos os seus inimigos, logo
demonstra que não vai negociar. Sua poltrona de presidente do Conselho de
Ministros ainda é uma barricada, seu ataque é dirigido abertamente aos seus
inimigos.
“Senhores! O discurso que estou prestes a pronunciar não poderá ser, a
rigor, classificado como um discurso parlamentar. Não procuro em vocês um
voto político, já os obtive em demasia.”
O orador agora empunha um livro. É o manual dos deputados, que contém
o Estatuto do Reino. A atenção de todos se concentra no volume encadernado
como se fosse uma granada ativada.
“O artigo 47 do Estatuto diz: ‘A Câmara dos Deputados tem o direito de
acusar os ministros do rei e de conduzi-los à Alta Corte de Justiça.’ Pergunto
formalmente: nesta Câmara, ou fora desta Câmara, há alguém que queira se
valer do artigo 47?”
É uma exibição. Benito Mussolini ergue o livro das regras democráticas
diante dos parlamentares como um padre que exibe aos fiéis a partícula do
corpo do nosso Senhor Jesus Cristo.

***

Silêncio.
Apenas um.
Basta que apenas um fale e ele estará perdido.
Entre os líderes da oposição, sentados em suas cadeiras ou em meio à
multidão das tribunas, há homens corajosos. Por anos, o dia a dia deles foi
uma trincheira, suportaram ameaças, alguns foram surrados várias vezes.
Basta que apenas um deles se levante, que se erga solitário na acusação,
rompendo a disciplina partidária, o anel da violência, opondo força moral a
força física, respondendo ao apelo do futuro, sendo justiçado no presente para
ser vingado na posterioridade, submergido pela vida para se salvar na
história. É suficiente que apenas um se levante para envenenar tudo aquilo
que “Ele” ainda teria a dizer, anotado em poucos apontamentos lançados de
improviso em uma folha solta.
Ninguém se levanta.
Ficam em pé somente os cortesãos fascistas para aplaudir seu Duce.
Então o Duce extravasa. Se ninguém naquele plenário ousou se levantar
solitário em acusação, será ele, Benito Mussolini, a retirar a acusação contra
si mesmo.
Assim, sua voz se ergue, potente, no plenário de Montecitório,
metralhando uma sílaba após a outra. Disseram que ele teria fundado uma
Tcheka. Onde? Quando? De que maneira? Ninguém poderia dizer. Se
ninguém o culpa, ele, então, exonera-se: ele sempre afirmou ser discípulo
daquela violência que não pode ser expulsa da história, mas ele é corajoso,
inteligente, visionário, a violência dos assassinos de Matteotti é covarde,
estúpida, cega. Que não cometam a injustiça de considerá-lo tão cretino! Ele
nunca se demonstrou inferior aos acontecimentos, não teria sequer imaginado
poder ordenar o absurdo, catastrófico assassinato de Matteotti; ele não odiava
de maneira alguma aquele adversário inflexível, até o estimava, apreciava sua
teimosia, sua coragem, tão semelhante à própria indefectível coragem. Da
qual ele agora está prestes a dar uma prova.
Benito Mussolini se cala por alguns segundos como quem deve recarregar
uma arma. Planta as mãos nos quadris, estica o pescoço e volta a articular as
sílabas, martelando as frases em rápida sequência.
Durante meses, fez-se uma campanha política imunda e miserável,
difundiram-se as mentiras mais macabras, mais necrófilas, fizeram-se
inquisições até debaixo da terra. Ele permaneceu calmo, freou os violentos,
trabalhou pela paz. E como responderam seus inimigos? Elevando a aposta,
sobrecarregando-o. Encenaram a questão moral, disseram que o fascismo não
era uma paixão soberba do povo italiano, mas uma libido obscena, que o
fascismo era uma horda de bárbaros acampados na nação, um movimento de
bandidos e assaltantes. Dessa maneira, reduzindo tudo a delinquência, foi
sugerido aos italianos que nunca aceitassem nada como verdadeiro, insinuou-
se a venenosa suspeita de que o céu, a terra, o ar, as cores, os sons, os cheiros
são todos somente o logro de um demônio maligno, que o drama grandioso
da história — a luta dos povos jovens contra os decadentes, o cais
mediterrâneo do continente europeu lançado na direção do africano —
deveria ser desqualificado como um caso banal, inútil, de reportagem
policial. Em suma, pôs-se em dúvida toda a criação, atribuindo-a à fantasia de
um deus idiota que vomitaria sequências de frases insensatas do centro de um
universo desconhecido; sustentou-se que o mundo nada mais seria do que um
perpétuo erro regulado pelo mal.
Então, Ele, agora, com sua habitual coragem, vai se opor aos caluniadores
da vida, do mundo, da história:
“Pois bem, senhores, declaro aqui, perante esta assembleia e perante todo o
povo italiano, que assumo, sozinho, a responsabilidade política, moral,
histórica por tudo o que aconteceu. Se as frases mais ou menos deturpadas
são suficientes para enforcar um homem, peguem a haste e peguem a corda!
Se o fascismo foi apenas óleo de rícino e cassetete, e não uma paixão soberba
da melhor juventude italiana, a culpa é minha! Se o fascismo foi uma
organização criminosa, eu sou o chefe dessa associação criminosa!”
Mais uma vez, ninguém se levanta para deter o filho do século. O plenário
responde com um único grito, respeitoso, devoto, entusiasta:
“Todos com o senhor! Todos com o senhor, primeiro-ministro!”
Ele, então, ergue o queixo na direção do horizonte, estufa o peito, conclui.
Quando dois elementos estão em luta e são irredutíveis, a solução é a força.
Nunca houve e nunca haverá outra solução na história. Ele, homem forte,
promete que a situação será esclarecida “em toda a sua extensão” em 48
horas após seu discurso.
Aquela expressão ambígua, ampla — “em toda a sua extensão” — cai
sobre a Câmara dos Deputados como uma lápide. A sessão é encerrada sem
discussão nem voto. A assembleia, sem ter estabelecido data ou ordem do dia
da sessão seguinte, será reconvocada em domicílio.
Atenuados os clamores das ovações fascistas, o plenário, lentamente,
pouco a pouco, se esvazia. Benito Mussolini fica por muito tempo, sozinho,
sentado à sua mesa de primeiro-ministro.
Ouça-os. “Viva Mussolini! Viva Mussolini!”
Gritam o nome do Líder porque, na vida de um homem, um Líder é tudo.
Antes mesmo de irem parabenizar o Líder à mesa da presidência do Conselho
de Ministros, entoam mais uma vez a Giovinezza. Entoam essa canção porque
ainda são rapazes e, para os rapazes, são necessárias canções cantadas a
plenos pulmões.
Veja-os. Salandra e os outros dissidentes moderados ficaram por muito
tempo sentados atrás de suas mesas enquanto os fascistas, em pé,
prolongavam sua ovação. Em seguida, após a sessão ter sido declarada
encerrada, eles também, sussurrando sua patética decepção, aos poucos,
encaminharam-se para a saída. Enquanto os liberais retrocediam, nas tribunas
ainda era possível avistar Turati, interrogado pelo olhar perdido dos
socialistas, que replicava com tranquilizadores gestos de superioridade.
Como se estivesse dizendo: “Não fiquem alarmados. É o Mussolini de
sempre que tenta espantar os pássaros.”
Veja-os, ouça-os, não entendem o que está acontecendo. Nem estes nem
aqueles. Não entendem o que estou fazendo com eles.
Continuarão a combater, de um lado e de outro, sem saber que já moram
em uma casa de mortos. Os nossos, os fascistas em camisas negras com
crânios bordados em branco, moram nela desde sempre; os outros, que
cresceram por séculos em meio ao respeito da essência humana, não a
conhecem. Vagueiam tateando, tremendo, na noite da planície imensa, sem
sequer poder ir atrás do instinto da luta. Não entendem, não entendem...
gatinhos cegos enrolados em um saco.
Justifiquei-me perante a história, mas devo admitir: é comovente a
cegueira da vida em relação a si mesma.
No fim, retorna-se ao início. Ninguém queria pôr nas costas a cruz do
poder. Pego-a eu.
PERSONAGENS PRINCIPAIS

Fascistas, apoiadores e afins

Acerbo, Giacomo Filho da burguesia provinciana, conservador,


intervencionista, condecorado por bravura na guerra, inicia a carreira
acadêmica, mas a abandona pela política, fundando o Fascio di
Combattimento da sua província. Deputado a partir de junho de 1921.

Arpinati, Leandro Jovem ferroviário ex-anarquista, natural da Romanha,


amigo pessoal de Mussolini. Filho de família pobre. Alto, robusto, generoso,
leal, líder natural de homens de armas.

Balbo, Italo Filho da pequena burguesia urbana — ambos os pais eram


professores de escola primária —, voluntário de guerra, tenente dos alpinos e
dos Arditi, condecorado por bravura. No pós-guerra, adere às esquadras
fascistas de Ferrara ao ser financiado pelos proprietários rurais. Alto, magro,
forte, corajoso, despreocupado e impiedoso, logo se torna seu líder.

Banchelli, Umberto Filho de pai desconhecido e da plebe florentina,


voluntário na Grande Guerra, combate na Sérvia, em Argonne e no Carso.
Companheiro de armas de Dùmini, é seu aliado também nas batalhas do pós-
guerra. Odeia os bolcheviques tanto quanto odeia os descendentes da
burguesia urbana. Todos o conhecem pelo apelido de “O Mago”.

Barbiellini, Amidei Bernardo Conde, proprietário de terras, voluntário de


guerra, condecorado por bravura, de temperamento neurastênico, quase
epileptoide. Chefe das esquadras de Placência.

Beltrami, Tommaso Aventureiro, defensor do fascismo de Ravena, lugar-


tenente de Balbo, integrante das esquadras e sindicalista, legionário em
Fiume e participante da guarda pessoal de D’Annunzio. Ambíguo, imoral,
sem escrúpulos, dedicado à prostituição e à cocaína.

Bianchi, Michele De origem calabresa, militante socialista, virou sindicalista


revolucionário dos mais radicais, intervencionista, voluntário de guerra,
redator-chefe do Il Popolo d’Italia e participante da reunião na Piazza San
Sepolcro. Homem de confiança de Mussolini, inteligente, fanático, fumante
inveterado, embora acometido por tuberculose. Destinado a uma morte
precoce.

Bonaccorsi, Arconovaldo Veterano da Grande Guerra, protagonista dos


confrontos de rua com os socialistas, fascista do primeiro escalão, pilar do
serviço de vigilância do Il Popolo d’Italia. Dotado de força física
extraordinária, hiperviolento, compositor apaixonado de modinhas, várias
vezes preso.

Bottai, Giuseppe Voluntário dos Arditi, ferido e condecorado com medalha


de prata, futurista, poeta diletante. Fundador do Fascio di Combattimento de
Roma, organiza as primeiras esquadras de ação locais.

D’Annunzio, Gabriele Primeiro poeta e primeiro soldado da Itália. Já


literato de fama internacional, dândi, esteta primoroso, sedutor implacável,
exaltado pela guerra, realiza durante o conflito façanhas lendárias. Um mito
vivo para o movimento dos combatentes e para a burguesia decadente.
Talvez, então, o italiano vivo mais famoso do mundo.

De Bono, Emilio General várias vezes condecorado, colocado na reserva e


que envelheceu precocemente, busca adesões políticas em todos os partidos
do arco parlamentar. Vai encontrá-las no fascismo.

De Vecchi, Cesare Maria General monárquico de Turim. Tenente de


artilharia e capitão dos Arditi durante o conflito mundial, ferido em combate,
condecorado com três medalhas de prata e duas de bronze. Obtuso, patriótico,
impetuoso, adere ao fascismo já em 1919.

Dùmini, Amerigo Filho de emigrantes, cidadão dos Estados Unidos,


renuncia à cidadania americana para se alistar no Exército Real. Ferido,
mutilado, condecorado por bravura, inscreve-se no pós-guerra na Aliança de
Defesa Cidadã em função antibolchevique, e está entre os fundadores do
Fascio di Combattimento de Florença.

Farinacci, Roberto Ferroviário socialista, intervencionista obstinado


suspeito de ter, em seguida, sido refratário, fascista de primeiríssimo escalão,
jornalista que assassina a gramática, é grosseiro, rude, canalha como poucos,
destemido e determinado como ninguém, companheiro de Mussolini, esteio
do movimento das esquadras na Lombardia.

Federzoni, Luigi Bolonhês, filho de um literato, aluno de Giosuè Carducci,


líder do movimento nacionalista e simpatizante do fascismo.

Filippelli, Filippo Advogado calabrês, ex-secretário pessoal de Arnaldo


Mussolini, diretor do jornal fascista Corriere Italiano. Vigarista,
conchavador, especulador que enriqueceu com os excedentes de guerra.

Finzi, Aldo Aviador, piloto, motociclista, ama a velocidade e odeia os


camponeses miseráveis que sonham com a revolução bolchevique. Filho de
um rico industrial de origem judaica do Polesine, a mesma terra de Giacomo
Matteotti, durante a guerra foi condecorado com a medalha de ouro por
bravura por ter sobrevoado Viena com Gabriele D’Annunzio.

Forni, Cesare Filho de um rico agricultor da Lomellina, após passar uma


juventude dissoluta nas salas de bilhar de Turim, encontra a própria vocação
nas trincheiras da Grande Guerra, onde é condecorado com uma medalha de
prata por bravura e duas de bronze. Alto, forte, louro, guia as esquadras
fascistas na destruição das ligas camponesas nas terras paternas.

Galbiati, Enzo Órfão de pai, estudante de contabilidade, ex-Ardito e ex-


legionário em Fiume. Líder das esquadras fascistas da Brianza.

Giampaoli, Mario Filho do povo, militante socialista na juventude,


sindicalista revolucionário, em 1914 se posiciona a favor da intervenção da
Itália na guerra e se alista nos Arditi. Funda com Mussolini os Fasci di
Combattimento e dirige seu serviço de ordem. Homem do submundo,
autodidata, viciado em jogos de azar, tem um relacionamento com uma ex-
prostituta e é condenado por roubo e assalto a uma idosa.

Giunta, Francesco Florentino, formado em Direito, voluntário na Grande


Guerra, capitão de infantaria, legionário em Fiume, guia os levantes contra a
carestia, inscreve-se no Fascio di Combattimento de Milão em 1920.
Mussolini confia a ele o comando do fascismo na região da Júlia.

Grandi, Dino Intervencionista, capitão dos alpinos condecorado por bravura,


formado em Direito, no pós-guerra passeia por várias afiliações políticas até a
inscrição no Fascio di Combattimento de Bolonha em novembro de 1920.
Inteligente, ideologicamente confuso, mas politicamente safo, logo ascende a
líder do fascismo emiliano.

Keller, Guido Filho da burguesia, expoente da nascente Aeronáutica italiana,


herói de guerra com várias condecorações, ás da lendária esquadrilha de
Baracca, excêntrico, nudista, bissexual, vegetariano, dannunziano.

Marinelli, Giovanni Integrante da média burguesia convertido ao


socialismo, segue Mussolini desde 1914. Tacanho, mesquinho, obtuso,
rancoroso, míope, sofre de gota; todavia, segue fielmente o Líder. Mussolini
o nomeia administrador dos Fasci di Combattimento.

Marinetti, Filippo Tommaso Poeta, escritor, dramaturgo, fundador do


futurismo, a primeira vanguarda histórica do Novecento Italiano.
Nacionalista, cantor da guerra, intervencionista, voluntário dos alpinos,
participa do triunfal avanço de Vittorio Veneto ao volante de um carro
blindado Ansaldo-Lancia 1Z. Está com Mussolini na reunião da Piazza San
Sepolcro.

Mazzucato, Edmondo Sem posses, criado em um internato, rebelde a


qualquer figura de autoridade, violento e intolerante, anarquista por índole e
convicção, tipógrafo de vários jornais revolucionários, em 1917 se alista nos
Arditi e luta com honra. Está com Mussolini desde 1918.

Misuri, Alfredo Professor de zoologia, fundador do Fascio di


Combattimento de Perúgia, líder do movimento das esquadras da Umbria,
passa para o lado dos nacionalistas devido à rivalidade com Giuseppe
Bastianini, outro líder das esquadras de Perúgia.

Muti, Ettore Forte, atlético, audaz, já aos 15 anos falsificou os documentos


para se alistar como voluntário nos Arditi. Em Fiume, onde se une aos
“uscocos”, os bandos de piratas que saqueiam os navios mercantis,
D’Annunzio em pessoa o rebatiza como “Jim dos Olhos Verdes”.

Pasella, Umberto Sindicalista revolucionário, já secretário da Câmara do


Trabalho de Ferrara e de Parma, acompanha Mussolini na opção
intervencionista. De pele cinzenta, gorducho, prosaico, experiente
organizador de comícios, é secretário-geral dos Fasci di Combattimento a
partir de agosto de 1919.

Rocca, Massimo Célebre nome do jornalismo anarquista e revolucionário na


juventude com o pseudônimo de “Libero Tancredi”, conhece Mussolini no
Avanti! e o segue no Il Popolo d’Italia. Entre os dirigentes máximos do
Partido Nacional Fascista, defende uma política de normalização e
moderação.

Rocco, Alfredo Napolitano, antidemocrático, imperialista, professor


universitário, líder do movimento nacionalista favorável à fusão com o
fascismo. Excelente jurista.

Rossi, Cesare Já militante socialista, antimilitarista e tipógrafo desde garoto,


torna-se sindicalista revolucionário, passa para a frente intervencionista em
1914, combate na guerra como soldado raso. Brilhante jornalista, dono de
uma inteligência política aguda, é o principal conselheiro de Benito
Mussolini.

Sironi, Mario Pintor, signatário do Manifesto do Futurismo, alista-se ao


eclodir da guerra no Batalhão Voluntário de Ciclistas, no pós-guerra adere
com ímpeto ao movimento fascista desde 1919. Mora na periferia de Milão,
retrata-a em paisagens urbanas inanimadas inéditas e tem dificuldade em se
manter financeiramente.

Tamburini, Tullio De estatura pequena, mas briguento e malvado,


condenado por estelionato, vive de expedientes até a eclosão da Grande
Guerra, durante a qual serve como tenente. Em 1920, adere ao Fascio di
Combattimento de Florença, torna-se líder da ala militar e constitui a
esquadra de ação “La Disperata”.

Tarabella, Aldo Capitão dos Arditi na Grande Guerra, especializado no uso


da pistola-metralhadora, condecorado seis vezes por bravura, inscrito no
Fascio di Combattimento original de Milão desde abril de 1919.

Toscanini, Arturo Célebre maestro e diligente sócio do Fascio di


Combattimento original milanês. Candidato na chapa fascista nas eleições de
outubro de 1919.

Vecchi, Ferruccio Estudante de engenharia, futurista, intervencionista,


capitão dos Arditi com várias condecorações. Fundador da Federação
Nacional dos Arditi da Itália, participante da reunião da Piazza San Sepolcro,
violento, exaltado, tuberculoso, sedutor impiedoso e escultor diletante.

Volpi, Albino Aos 30 anos, marceneiro, várias vezes condenado por delitos
comuns e herói de guerra. Extremamente violento, foi um dos “jacarés do
Piave”, invasor especializado em atravessar à noite o rio a nado para degolar
as sentinelas inimigas. Líder dos Arditi milaneses desmobilizados.
Socialistas e comunistas

Bombacci, Nicola Filho de camponeses pobres, padre frustrado, dispensado


do serviço militar por motivo de saúde, magro, miúdo, gentil, dócil, é o líder
mais amado da fração maximalista revolucionária do Partido Socialista.
Operários e camponeses o veneram como um santo laico, mas os dirigentes
soviéticos de Moscou também confiam nele. Apelidado de “Cristo dos
Operários” e “Lênin da Romanha”, é amigo pessoal de Benito Mussolini
desde quando ambos percorriam os campos como professores de escola
primária.

Bordiga, Amadeo Nascido em uma família de cientistas, formado em


engenharia, abraça o pensamento marxista, adere ao movimento comunista
internacional e funda a fração comunista abstencionista dentro do Partido
Socialista Italiano. Frio, desdenhoso, desde sempre hostil à democracia
representativa e à pedagogia do socialismo humanitário.

Bucco, Ercole Propagandista profissional, secretário da Câmara do Trabalho


de Bolonha. Organizador frenético, participante exaltado de comícios,
defende o modelo soviético e prega cotidianamente a iminência da revolução
comunista. No momento decisivo, não se demonstrará à altura.

Gramsci, Antonio Filósofo, cientista político, jornalista, linguista, crítico


teatral e literário, fundador da revista L’Ordine Nuovo, expoente de ponta da
fração comunista do Partido Socialista e teórico do poder operário.
Acometido pelo mal de Pott, sofre de abscessos, dores artríticas, fadiga,
desvio da coluna vertebral, cardiopatia, hipertensão. Intelectual brilhante.

Kuliscioff, Anna Revolucionária e jornalista de origem russa, uma das


fundadoras do Partido Socialista Italiano. Médica, estuda a origem bacteriana
da febre puerperal, contribuindo para salvar a vida de milhões de mulheres, e
presta gratuitamente assistência ginecológica nos bairros populares.
Companheira e conselheira de Filippo Turati, já companheira de Andrea
Costa, primeiro deputado socialista italiano, é obrigada a fazer política por
meio dos seus homens, pois, na Itália, as mulheres são excluídas dos direitos
políticos.

Matteotti, Giacomo Filho de um grande proprietário de terras suspeito de


agiotagem, abraça desde a juventude a causa dos camponeses do Polesine —
entre os mais pobres da Itália — que passam fome devido ao pai dele. Culto,
batalhador, intransigente, eleito para o Parlamento em dezembro de 1919, é
venerado pelos camponeses da sua terra e odiado pelos participantes da sua
classe, que o apelidam de “o socialista envolto em peles”.

Matteotti, Velia Titta Jovem de família abastada, melancólica, educada nas


instituições católicas, irmã menor do célebre barítono Ruffo Titta, mulher de
Giacomo Matteotti.

Serrati, Giacinto Menotti Ex-descarregador de carvão, exilado, emigrante,


depois líder da fração “maximalista” dos comunistas unitários, que se tornou
majoritária dentro do Partido Socialista em 1919. Amigo e protetor do jovem
Mussolini, será seu substituto na direção do Avanti! quando da sua expulsão
do partido em 1914 e se tornará seu adversário obstinado.

Treves, Claudio Socialista democrata, deputado, intelectual refinado,


pacifista. Líder da fração reformista. Em 1915, desafiou para um duelo
Benito Mussolini, que, após o breve período de Bacci em outubro de 1912,
assumiu o cargo de diretor do Avanti!, jornal do socialismo italiano.

Turati, Filippo Advogado de formação, político e cientista político, orador


primoroso, fundador do Partido Socialista Italiano, pai nobre da sua corrente
humanitária, moderada, gradualista.
Liberais, democratas, moderados e homens das instituições

Albertini, Luigi Diretor e acionista do Corriere della Sera, expoente ilustre


do pensamento liberal conservador, senador do Reino desde 1914.

Bonomi, Ivanoe Advogado, jornalista, socialista democrata e moderado, por


moção de Benito Mussolini é expulso do partido em 1912 devido a seu apoio
parcial à guerra da Líbia. Funda o Partido Reformista Italiano, com o qual
apoia os governos de Giolitti. É presidente do Conselho de Ministros a partir
de julho de 1921.

Conti, Ettore Engenheiro, magnata, pioneiro da indústria elétrica, presidente


da Cofindustria — Confederação-Geral da Indústria Italiana —, senador do
Reino, liberal, conservador, milanês.

Croce, Benedetto Maior filósofo italiano então vivo e suprema autoridade


intelectual da nação, senador do Reino, já ministro da Educação Pública.
Embora seja o maior expoente do pensamento liberal, vê a violência
autoritária do fascismo como uma mistura de arrogância, miopia e
condescendência.

De Gasperi, Alcide Secretário do Partido Popular Italiano após a renúncia


forçada de Dom Sturzo.

Facta, Luigi Após passar a juventude estudando, entra para a política como
vereador de Pinerolo, sua cidadezinha natal. Ali é eleito deputado em 1892 e,
mais tarde, sistematicamente reeleito durante os 30 anos seguintes. Realiza
toda a sua carreira política à sombra de Giovanni Giolitti. O rei da Itália o
nomeia presidente do Conselho de Ministros em fevereiro de 1922. Homem
dócil, nostálgico da vida de província, orgulha-se de seu enorme bigode em
forma de guidom, ao qual dedica a primeira hora de cada manhã. Deita-se
sem falta antes das 22h.

Gasti, Giovanni Inspetor-geral de segurança pública, aluno de Cesare


Lombroso, pioneiro da criminologia científica. Chefe de polícia de Milão,
homem de Giolitti.

Giolitti, Giovanni Aos 80 anos, 1,85 metro e 90 quilos, um enorme bigode


de granadeiro, 5 vezes presidente do Conselho de Ministros, mestre dos
arranjos parlamentares e profundo conhecedor das burocracias ministeriais,
foi quem dominou a política italiana nos últimos 30 anos.

Lusignoli, Alfredo Funcionário de carreira na administração interna,


governador da província de Milão, senador desde 1921. Homem de Giolitti,
negocia por conta própria com os fascistas.

Missiroli, Mario Liberal de direita, maçom, príncipe do jornalismo italiano.


Pena cáustica e brilhante, homem de coragem, combatido pelos fascistas.

Mori, Cesare Físico imponente, maxilar quadrado, criado no orfanato de


Pavia. Como delegado na Sicília, combateu a máfia e debelou a bandidagem
com métodos inflexíveis e violentos. Governador da província de Bolonha
com plenos poderes a partir de fevereiro de 1921.

Nitti, Francesco Saverio Economista de fama, expoente de destaque do


pensamento liberal, nascido no Sul e defensor do Sul, várias vezes ministro,
sustentado por uma vasta clientela pessoal em seu feudo eleitoral. Presidente
do Conselho de Ministros a partir de junho de 1919. Odiado por Gabriele
D’Annunzio e pelos veteranos nacionalistas por causa da anistia aos
desertores.

Orlando, Vittorio Emanuele Jurista, professor universitário, ministro várias


vezes, presidente do Conselho de Ministros após Caporetto, guia o país à
vitória sobre os austríacos. Em 1919, guia a delegação italiana na conferência
de paz de Versalhes.

Salandra, Antonio Latifundiário da Apúlia, jurista ilustre, reacionário apesar


de ser membro do Partido Liberal, foi 12 vezes deputado, a partir de 1886.
Presidente do Conselho de Ministros em março de 1914, arrastou a Itália para
a guerra contra a vontade dos italianos. Carrega na consciência 600 mil
mortos.
Sturzo, Luigi De saúde fraca, rebento de uma família nobre siciliana,
ordenado sacerdote pelo bispo de Caltagirone, funda em 1919 o Partido
Popular Italiano, o primeiro que exorta os católicos a participar da vida
política da nação.

Vítor Emanuel III de Saboia Introvertido, inseguro, meticuloso, de físico


delicado e caráter fraco, provavelmente também por causa do raquitismo que
o aflige (sua estatura mal chega a 1,53 metro). Rei da Itália a partir de julho
de 1900.
Parentes, amigos e amantes

Ceccato, Bianca Órfã de pai, miúda, graciosa, menor de idade, secretária do


Il Popolo d’Italia, seduzida pelo diretor Mussolini, torna-se sua amante
habitual. Ele a obriga a fazer um aborto em 1918.

Curti, Angela Filha de um velho companheiro socialista de Benito


Mussolini, mulher de um participante de esquadra preso por crimes de
sangue. Morena, voluptuosa, meigos olhos escuros. Enquanto o marido está
preso, é seduzida por Benito Mussolini e se torna sua amante habitual.

Dalser, Ida Natural de Trento, ex-esteticista, de gênio irascível, amante de


Benito Mussolini no pré-guerra e por longo tempo, tem um filho ilegítimo
dele e talvez tenha lhe emprestado dinheiro nos anos de miséria. Afastada,
persegue o ex-amante e o acusa, ao que parece com razão, de vários ultrajes.

Mussolini, Arnaldo Irmão mais novo de Benito. Professor de agronomia,


secretário municipal, após a guerra junta-se ao irmão em Milão e se torna
diretor administrativo do seu jornal. Homem dócil, pacato, devoto, bom pai
de família, ligado por um grande afeto, retribuído, ao irmão tempestuoso.

Mussolini, Edda Primogênita de Benito e Rachele Guidi. Predileta do pai,


que a apelida carinhosamente de “filha da miséria” como lembrança dos
“tempos difíceis”, é uma menina de caráter forte, independente,
descomedido. O pai reconhece muito de si nela.

Mussolini, Rachele Guidi Filha de camponeses da Romanha, cresceu na


miséria, semianalfabeta, companheira de Mussolini desde 1909 e mãe dos
seus filhos. Benito e Rachel, ateus e socialistas, são contrários à instituição do
casamento, mas finalmente se uniram em uma cerimônia civil em 16 de
dezembro de 1915.

Nenni, Pietro Republicano, amigo pessoal de Mussolini com o qual divide as


lutas contra a guerra da Líbia e o cárcere, jornalista brilhante, funda em abril
de 1919 o Fascio di Combattimento de Bolonha. Todavia, logo se desvincula
do fascismo para se tornar socialista.

Sarfatti, Margherita Grassini Rica herdeira, veneziana, judia, convertida à


causa do socialismo, muito culta, colecionadora e crítica de arte, casada com
o advogado Sarfatti, amante e mentora intelectual de Benito Mussolini desde
1914.
LISTA DE ARTIGOS CITADOS

Com o intuito de não prejudicar a fluidez da leitura, os títulos dos artigos


citados pelo autor foram traduzidos ao longo do texto. Segue a lista completa
deles com os respectivos títulos originais.

Anônimo
“Aos liberais”: “Ai liberali”
“Bexiga com bomba”: “Vescica non bomba”
“Mori, aquele cão”: “Quel cane di Mori”
“Os candidatos do Bloco”: “I candidati del Blocco”
“Realidade”: “Realtà”
“Um conflito que não existirá”: “Un conflitto che non ci sarà”

Farinacci, Roberto
“É necessário defender-se e purificar”: “È necessario difendersi e purificare”
“Segunda onda”: “Seconda ondata”

Gobetti, Piero
“Depois das eleições”: “Dopo le elezioni”
“Elogio a Farinacci”: “Elogio di Farinacci”

Mussolini, Benito
“Aos fascistas da Lombardia”: “Ai fascisti della Lombardia”
“Contra a fera que está voltando”: “Contro la bestia ritornante”
“Crocodilos!”: “Coccodrilli!”
“Força e consenso”: “Forza e consenso”
“O berço e o resto”: “La culla e il resto”
“Operários! Quando vocês se libertam dos seus chefes mistificadores”:
“Operai! Quando vi liberate dei vostri capi mistificatori”
“Para que lado vai o mundo?”: “Da che parte va il mondo?”
“Prelúdio a Maquiavel”: “Preludio al Machiavelli”
“Rumo ao futuro”: “Verso il futuro”
“Sobre a violência”: “In tema di violenza”

Salvatorelli, Luigi
“Classe e nação”: “Classe e nazione”

Togliatti, Palmiro
“O exemplo de Florença”: “L’esempio di Firenze”
NOTAS

1 Os Fasci Italiani di Combattimento (no singular, Fascio di


Combattimento), conhecidos em português como Grupos Italianos de
Combate, foram uma organização paramilitar fundada em 1919 que viria a
se tornar, mais tarde, o Partido Nacional Fascista. Um de seus fundadores
foi Benito Mussolini. (N. do T.)

2 Fiume é uma cidade onde atualmente é Rijeka (Croácia). Sua população era
bastante misturada, com italianos, croatas, alemães, eslovenos, entre outras
nacionalidades. Após a Primeira Guerra Mundial, o status de Fiume foi
posto em xeque. De 1919 a 1920, foi um Estado autoproclamado Regência
Italiana de Carnaro, seguido por um período como Estado Livre de Fiume.
(N. do T.)
SOBRE O AUTOR
Philippe Matsas/Opale/Leemage/Mondadori Portfolio

Nascido em Nápoles, em 1969, Antonio Scurati é professor de Literatura


Contemporânea na Universidade de Comunicação e Línguas (IULM) de
Milão. É colunista do La Stampa e autor de vários ensaios. Estreou em 2002
com Il rumore sordo della battaglia, que ganhou os prêmios Kihlgren,
Fregene e Chianciano. Em 2005, com o romance histórico Il sopravvissuto,
conquistou a edição XLIII do prêmio Campiello. Com Una storia Romantica,
de 2008, recebeu o Mondello, e, em 2015, com a publicação de Il tempo
migliore della nostra vita, recebeu o Viareggio e outros prêmios, como o de
Seleção Campiello. Com M, o filho do século foi laureado com o Prêmio
Strega, o mais importante da literatura italiana.
LEIA TAMBÉM

O papa e Mussolini
David I. Kertzer
Toda luz que não podemos ver
Anthony Doerr
Table of Contents
Folha de rosto
Créditos
Mídias sociais
Sumário
1919
Fundação dos Fasci di Combattimento 1: Milão, Piazza San
Sepolcro, 23 de março de 1919
Benito Mussolini: Milão, início da primavera de 1919
Amerigo Dùmini: Florença, final de março de 1919
Filippo Tommaso Marinetti, Benito Mussolini: Milão, 15 de abril
de 1919
Gabriele D’Annunzio: Roma, 6 de maio de 1919
Benito Mussolini: Milão, meados de maio de 1919
Benito Mussolini, Cesare Rossi: Fim de junho de 1919
Benito Mussolini: 19 de julho de 1919
Nicola Bombacci: Milão, 20 de julho de 1919
Benito Mussolini: Praia de Senigália, fim de agosto de 1919
Gabriele D’Annunzio: 11 de setembro de 1919
Benito Mussolini: Veneza, 20-22 de setembro de 1919
Benito Mussolini: Fiume, 7 de outubro de 1919
Amerigo Dùmini: Florença, 10 de outubro de 1919
Benito Mussolini: Florença, 10 de outubro de 1919
Benito Mussolini: Milão, fim de outubro de 1919
Gabriele D’Annunzio: Fiume, 24 de outubro de 1919
Benito Mussolini: Milão, 11 de novembro de 1919
Nicola Bombacci: Bolonha, início de novembro de 1919
Benito Mussolini: Milão, 17 de novembro de 1919
Albino Volpi: Milão, 17 de novembro de 1919, 20h
Milão, 18 de novembro de 1919
Nicola Bombacci: Roma, 1º de dezembro de 1919
Gabriele D’Annunzio: Fiume, 18 de dezembro de 1919
Leandro Arpinati: Lodi, 18 de dezembro de 1919
Benito Mussolini: Milão, dezembro de 1919
Benito Mussolini: Milão, 1º de janeiro de 1920
1920
Gabriele D’Annunzio: Fiume, 18 de março de 1920
Margherita Sarfatti: Milão, primavera de 1920
Benito Mussolini: Milão, primavera de 1920
Leandro Arpinati: Bolonha, abril de 1920
Nicola Bombacci: Milão, 19 de abril de 1920
Milão, 24 de maio de 1920
Fiume d’Italia, 15 de junho de 1920
Benito Mussolini: Verão de 1920
Leandro Arpinati: Vale do Pó, verão de 1920
Benito Mussolini: Milão, 28 de setembro de 1920
Amerigo Dùmini: Montespertoli, 11 de outubro de 1920
Giacomo Matteotti: Fratta Polesine, 12 de outubro de 1920
Benito Mussolini: Milão, fim de outubro de 1920
Ferrara, 3 de novembro de 1920
Leandro Arpinati: Bolonha, 4 de novembro de 1920
Benito Mussolini: Milão, 15 de novembro de 1920
Leandro Arpinati: Bolonha, 23 de novembro de 1920
Benito Mussolini: Trieste, início de dezembro de 1920
Benito Mussolini: Milão, 20 de dezembro de 1920
Italo Balbo: Ferrara, 22 de dezembro de 1920
Benito Mussolini: Milão, 24 de dezembro de 1920
Gabriele D’Annunzio: Fiume, Natal de 1920
Benito Mussolini: Milão, 31 de dezembro de 1920
1921
Nicola Bombacci: Livorno, 16-17 de janeiro de 1921
Italo Balbo: Ferrara, 23 de janeiro de 1921
Margherita Sarfatti: Milão, 30 de janeiro de 1921
Giacomo Matteotti: Roma, 31 de janeiro de 1921
Benito Mussolini: Milão, final de fevereiro de 1921
Campos do Polesine: Fim de fevereiro de 1921, noite
Amerigo Dùmini: Florença, 27 de fevereiro — 1º de março de 1921
Benito Mussolini: Milão, 5 de março de 1921
Giacomo Matteotti: 10-12 de março de 1921
Leandro Arpinati: Ferrara, 18 de março de 1921
Benito Mussolini: Milão, 23-27 de março de 1921
Benito Mussolini: Bolonha-Ferrara, 3-4 de abril de 1921
Benito Mussolini: 23 abril — maio de 1921
Italo Balbo: abril-maio de 1921
Benito Mussolini: Milão, 16 de maio de 1921
Benito Mussolini: Roma, 21 de junho de 1921
Amerigo Dùmini: Sarzana, 21 de julho de 1921
Italo Balbo: Gardone, 18 de agosto de 1921
Benito Mussolini: Módena, 28 de setembro de 1921
Benito Mussolini: Livorno, 27 de outubro de 1921
Roma, 7-9 de novembro de 1921: Teatro Augusteo, Congresso
Nacional dos Fasci di Combattimento
Giacomo Matteotti: Roma, 2 de dezembro de 1921
Benito Mussolini: 28 de dezembro de 1921
1922
Benito Mussolini, Pietro Nenni: Cannes, 8 de janeiro de 1922
Amerigo Dùmini: Prato, 17 de janeiro de 1922
Giacomo Matteotti: janeiro-fevereiro de 1922
Benito Mussolini: Milão, 25 de fevereiro de 1922
Italo Balbo: Ferrara, 12-14 de maio de 1922
Benito Mussolini: Milão, 13 de maio de 1922
Leandro Arpinati: Bolonha, 28 de maio — 2 de junho de 1922
Benito Mussolini: 26 de julho de 1922
Italo Balbo: Ravena, 27-30 de julho de 1922
Amerigo Dùmini: Milão, 3 de agosto de 1922
Benito Mussolini: Milão, 13 de agosto de 1922
Giacomo Matteotti: 10 de outubro de 1922
Benito Mussolini: Milão, 16 de outubro de 1922
Nicola Bombacci: Moscou, fim de outubro de 1922
Em marcha: 24-31 de outubro de 1922
Roma, 25 de outubro de 1922: Plataforma da Estação Termini,
19h30
Gardone, 25 de outubro de 1922: Villa di Cargnacco
Milão, Foro Bonaparte, 26 de outubro de 1922: Casa Mussolini,
manhã
Milão, Via Lovanio, 26 de outubro de 1922: Sede do Il Popolo
d’Italia, tarde/noite
Milão, Via Lovanio, 27 de outubro de 1922: Sede do Il Popolo
d’Italia, 2h40
Milão, Via Lovanio, 27 de outubro de 1922: Sede do Il Popolo
d’Italia, 3h
Milão, Via Lovanio, 27 de outubro de 1922: Sede do Il Popolo
d’Italia, tarde
Perúgia, 27 de outubro de 1922: Hotel Brufani, quartel-general do
quadrunvirato, noite
Cremona, 27 de outubro de 1922: Edifício da prefeitura, noite
Roma, 27 de outubro de 1922: Hotel Londra, 22h
Milão, 27 de outubro de 1922: Camarotes do Teatro Manzoni, logo
após as 22h
Roma, 28 de outubro de 1922: Ministérios da Guerra e do Interior,
noite
Santa Marinella, Monterotondo, Tivoli: 28 de outubro de 1922,
8h30
Milão, Via Lovanio, 26 de outubro de 1922: Sede do Il Popolo
d’Italia, por volta de 8h
Perúgia, 28 de outubro de 1922: Hotel Brufani, Comando supremo
da marcha sobre Roma, mesma hora (por volta das 8h)
Milão, Via Lovanio, 28 de outubro de 1922: Sede do Il Popolo
d’Italia
Perúgia, 28 de outubro de 1922: Hotel Brufani
Tivoli, Monterotondo, Santa Marinella: 28 de outubro de 1922
Benito Mussolini: Roma, 31 de outubro de 1922
Benito Mussolini: Roma, 16 de novembro de 1922
Giacomo Matteotti: Roma, 18 de novembro de 1922
Benito Mussolini: Roma, 31 de dezembro de 1922
1923
Benito Mussolini: Roma, janeiro de 1923
Margherita Sarfatti: Janeiro de 1923
Benito Mussolini: Roma, 12 de janeiro de 1923
Margherita Sarfatti: Milão, 26 de março de 1923
Benito Mussolini: Roma, 17-23 de abril de 1923
Italo Balbo, Amerigo Dùmini: Roma, 29 de maio de 1923
Giacomo Matteotti: Siena, 2 de julho de 1923
Roma, 15 de julho de 1923: Parlamento italiano, Câmara dos
Deputados
Italo Balbo: Ferrara, 24 de agosto de 1923
Benito Mussolini: Fim de agosto de 1923
Amerigo Dùmini: Trieste, 3 de setembro de 1923
Italo Balbo: Início de outubro de 1923
Benito Mussolini: Milão, 28 de outubro de 1923
Nicola Bombacci: 30 de novembro de 1923
1924
Benito Mussolini: Roma, 28 de janeiro de 1924
Cesare Rossi: Roma, fevereiro de 1924
Amerigo Dùmini: Milão, 12 de março de 1924
Giacomo Matteotti: Roma, 1º de abril de 1924
Benito Mussolini: Milão, início de abril de 1924
Margherita Sarfatti: Veneza, 1º de abril de 1924
Roma, 24 de maio de 1924: Parlamento do Reino, plenário de
Montecitório
Roma, 30 de maio de 1924: Montecitório, Câmara dos Deputados
Roma, 7 de junho de 1924: Montecitório, Câmara dos Deputados
Amerigo Dùmini: Roma, 10 de junho de 1924
Cem horas terríveis
A qualquer custo: 16-26 de junho de 1924
O país opaco: 27 de junho — 22 de julho de 1924
Clorofórmio: 22 de julho — 7 de agosto de 1924
O cadáver: Macchia della Quartarella, 16 de agosto de 1924
Precipício: 21 de agosto — 16 de dezembro de 1924
Pântano: Roma, 21 de dezembro de 1924
La Muta: Roma, 31 de dezembro de 1924
Roma, 3 de janeiro de 1925: Parlamento do Reino, Câmara dos
Deputados, 15h
Personagens principais
Lista de artigos citados
Notas
Sobre o autor
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