Você está na página 1de 5

Platão, totalitário avant-la-lettre?

“A Noruega está fazendo o que Platão preconiza em “A República”. O


Estado como tutor da educação. As crianças são retiradas da casa de seus
pais para serem preparadas pra serem soldados, artesãos, professores,
juízes, etc. Essa é uma atitude platônica, filosoficamente falando. Eu penso
que, sob alguns aspectos, Platão é um dos precursores do autoritarismo,
pois ele era opositor da democracia. Embora ele defendesse uma espécie de
aristocracia ética e bem intencionada, tangencia o autoritarismo”.

Afirmações*:

1- Platão preconiza que o Estado seja o tutor da educação;

2- [Platão preconiza que] as crianças [sejam] retiradas para serem


preparadas [pelo estado] pra serem soldados, artesãos,
professores, juízes (etc.);

3- Platão, sob certos aspectos, é um dos precursores do


autoritarismo, pois ele era um opositor da democracia;

Aqui há

4- Embora defendesse uma espécie de aristocracia ética e bem


intencionada, tangencia o autoritarismo.

* A base dessas afirmações, alega o autor, é o diálogo “A


República”, de Platão.

Defender, com base no diálogo A República, que Platão preconiza


um “Estado tutor da educação” (lembra até a tal da “Pátria
educadora” petista) é um equívoco interpretativo. Ainda assim é
muito difundido. Figuras ilustres como Karl Popper (em seu livro
Sociedade Aberta e seus inimigos) abraça essa leitura. Por que
essa interpretação prospera tanto, mesmo em círculos “técnicos”
e acadêmicos?

Minha experiência na universidade faz-me crer no seguinte: sob a


linguagem melíflua do politicamente correto, na academia reina a
ditadura do relativismo. Um dos principais procedimentos do
relativismo é amputar a dimensão vertical/transcendente dos
valores e da vida humana. Extirpada esta dimensão, o que sobra é
a dimensão horizontal/imanente. A partir daí tudo é planificado e
posto lado a lado em lugar de igualdade. Platão é, por excelência,
o filósofo da transcendência. Tentar lê-lo com a exclusão prévia
dessa dimensão é a receita certa para não entendê-lo.

Mas nem a insistência com que uma tese falsa é repetida, nem a
quantidade de pessoas que a defendem, nem a fama de quem a
defende torna-a verdadeira.

Platão X Democracia

E aqui entramos na crítica platônica da democracia. O problema


“filosófico” da democracia é que não se toma decisões políticas
com base na verdade ou no melhor (o que seria o caso da
aristocracia, tomada em seu sentido etimológico), mas sim com
base na opinião da maioria. Em Platão, opinião não é
conhecimento e quantidade de adeptos não é critério de verdade.
Este é um dos pontos conceituais da crítica platônica à
democracia. Uma democracia será boa na medida em que a
maioria de seus integrantes guiar-se pela verdade ou por opiniões
verdadeiras. Do contrário… vai dar zebu. O ponto, portanto, não
está no sistema democrático, mas na qualidade humana daqueles
que o compõe.

Do ponto de vista existencial , como é que Platão poderia


endossar a democracia ateniense? A democracia que condenou
injustamente seu mestre, o “varão mais justo de seu tempo”? A
democracia que levou à morte seu integrante mais fiel e justo? A
democracia que elegeu Alcibíades como general para vê-lo
massacrar a juventude numa campanha furada à Sicília e depois
trair sua cidade entregando-a à Esparta? É certo que havia algo
errado com tal democracia; do ponto de vista existencial é mais do
que compreensível a crítica platônica à ela. Ele não está teorizando
isso ou aquilo, ele viu a máquina monstruosa de injustiças que a
democracia ateniense tornou-se e dedica-se obstinadamente em
entender as raízes profundas dessa perversão.

Desta oposição à democracia, o autor da mensagem depreende


que “Platão, sob muitos aspectos, é um precursor do
autoritarismo”. A partir deste raciocínio, seria preciso concluir que
o reinado de Salomão também era autoritário, uma vez que, não
sendo uma democracia, mas uma monarquia, opõe-se àquele
regime. Mas parece que a oposição tenta indicar o binômio
concentração de poder X distribuição de poder. E é de bom senso
supor que quanto menos concentração de poder, mais “seguros
politicamente” estamos (menos chance de dar zebu).

Aqui há o pressuposto, portanto, de que Platão defende um


sistema político 1- oposto à democracia e 2- Onde há
concentração de poder. O autor fundamenta esta premissa na
leitura do diálogo A República. E aqui está o problema todo dessa
interpretação.

A cidade ideal platônica

Ao acompanharmos a argumentação da República desde sua


gênese, vemos que o objetivo do diálogo é investigar a natureza
da justiça na alma individual. A construção da cidade ideal é
apenas um artifício mental com a finalidade explícita de melhor
entender a justiça na alma. É a analogia das letras grandes e das
letras pequenas.

Deduzir que este constructo mental é um plano prático de ação é


tão absurdo quanto deduzir, da alegoria da caverna, que o plano
prático de educação platônico é pôr o povo numa caverna escura
e fazer uma excursão de baixo pra cima e vice versa.

A psicologia das três partes da alma no livro IV, a descrição dos


diferentes tipos de governo como diferentes tipos de vida (livros
VIII e IX) e a conclusão do diálogo com o mito de Er (que narra o
destino além morte da alma individual), deixam claro que o
objetivo platônico não é a política. Não no sentido raso em que se
emprega o termo hoje. Platão quer reestabelecer a Ordem, não
criar a ordem. E essa ordem, diz-nos o ápice do diálogo (a
contemplação do filósofo na alegoria da caverna) só é acessível
através da contemplação, faculdade mais alta da alma individual (e
não de uma coletividade vaga - o estado). A ordem vem através da
contemplação da alma individual e espraia-se à sociedade na
medida em que esta alma individual encarnada ocupa lugares de
poder político.

Não há um plano prático de implantação de um sistema político na


República de Platão. Há sim, um projeto pedagógico de formação
da consciência. Portanto, qualquer conclusão que parta desta
premissa está equivocada.

Do ponto de vista conceitual mais amplo, todo projeto de


autoritarismo/ totalitarismo do Estado configura-se como um
aprisionamento na dimensão imanente da vida, ou, para usar o
termo voegeliano, uma imanentização do schaton (daí o termo
estado como religião civil). Nada mais avesso, e mesmo
diametralmente oposto, à proposta platônica.

Platão autoritário

Esta pecha de autoritário soa muito estranha quando aplicada à


Platão. Pois ele é, por excelência, o filósofo do diálogo. No plano
literário, o monólogo (artifício dos sofistas) é o recurso autoritário.
O diálogo é a investigação democrática. Por que alguém
autoritário se daria ao trabalho de colocar em sua obra magna
opiniões tão agressivas, absurdas (e diametralmente opostos às
suas) como as de Trasímaco? Não só opiniões, mas mesmo
insultos feitos à Sócrates. Platão dá pleno espaço ao contraditório
ao longo de sua obra.

Ainda que faça críticas à democracia, seu método de exposição e


investigação estão imbuídos do espírito democrático. Mas não
uma democracia rasa e relativista.

Em um desses diálogos, Platão põe na boca de Sócrates: “não é


Sócrates que não podes refutar, é a Verdade”. Se compreendemos
que o autoritarismo é a concentração de forças e seu uso arbitrário
em benefício próprio, teremos de reconhecer que Platão combate
o autoritarismo, mas não pela via do sentimentalismo torpe que
tudo acata ( e que é o precursor de cruéis tiranias). Ele o combate
nivelando por cima, afirmando a hierarquia de valores e o governo
do valor supremo: a Verdade. A autoridade da verdade é um dos
elementos que nos guardam do autoritarismo. Neste sentido, a
máxima “ao erro a morte, ao errado o perdão” caracteriza bem o
espírito socrático que vemos ao longo dos diálogos.

Ao erro a morte, pois a liberdade humana (e ,portanto, sua


dignidade) depende, individual e socialmente, da soberania da
Verdade. Ao errado o perdão, pois o diálogo filosófico acontece
entre duas pessoas vivas e nobres o suficiente para submeter suas
opiniões pessoais ao escrutínio filosófico em busca da verdade.

Filósofo X Sofista

Platão não conhecia as ideologias modernas que nos assolam. O


que havia de mais próximo em seu tempo, sob os aspectos de
concentração arbitrária e assassina de poder, era a tirania. Ele foi
um ferrenho combatente da tirania (vide a descrição que faz desse
regime e da alma correspondente no livro VIII e IX) da República.
Na Atenas de Platão, o sofista é a ama de leite intelectual da
tirania. O filósofo platônico é o oposto do sofista.

Por este motivo, filósofos contemporâneos que continuam lutando


contra a tirania em suas manifestações modernas (vide Eric
Voegelin, por exemplo) continuam encontrando em Platão um
campo fecundo para articular o combate à cegueira da ideologia.

Você também pode gostar