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Universidade Federal do Espírito Santo

Programa Institucional de Iniciação Científica


Relatório Final de Pesquisa
Ciências Sociais Aplicadas

A hermenêutica da autonomia privada no constitucionalismo


contemporâneo
Edital: Edital Piic 2022/2023
Grande Área do Conhecimento (CNPq): Ciências Sociais Aplicadas
Área do Conhecimento (CNPq): Direito
Título do Projeto: O direito civil na pós-modernidade jurídica
A hermenêutica da autonomia privada no constitucionalismo
Título do Subprojeto:
contemporâneo
Professor Orientador: Lucas Abreu Barroso
Estudante: Giordano Bruno Barone Thebaldi

Resumo

Esta pesquisa propõe investigar a travessia deôntica da autonomia privada. Trata-se de uma mirada hermenêutica
própria do pesquisador-intérprete engajado historicamente (ciente de sua interioridade) e que, nesse sentido, opõe-
se à ótica externa (cientificista) do observador privilegiado. Inicialmente, a pesquisa impulsiona uma compreensão
dos padrões linguísticos - vivenciados pela modernidade -, determinantes da gênese significativa da autonomia
privada: (i) critério normativo fundamental na orientação político-institucional da nova ordem jurídica; (ii)
concebido sob os quadrantes epistêmicos da filosofia da consciência (metafísica da subjetividade), do
individualismo possessivo e do positivismo jurídico; (iii) reduzido ao caráter apriorístico das verdades lógicas.
Diante da radicalização do caráter histórico e linguístico da prática jurídica, verificou-se que a adoção deste modelo
interpretativo no século XIX e início do século XX desaguou numa crise de legitimidade do direito, na qual se
encontra o desengate deontológico entre a autonomia privada do sujeito de direito e a autonomia do agente moral
(ser-com-os-outros). O ponto de chegada desta investigação encontra-se na necessidade de ressignificação da
autonomia privada segundo uma prática interpretativa compartilhada e renovada pelo constitucionalismo
contemporâneo, isto é, como um padrão decisório que se constrói historicamente no seio da comunidade política
deontologicamente comprometida com a dignidade da pessoa humana: desenvolvimento do ser que se
autocompreende como um membro livre e igual na comunidade política.

Palavras-chave: Autonomia privada; Hermenêutica moderna; Constitucionalismo contemporâneo; Autonomia


moral; Giro ontológico-linguístico; Dignidade da pessoa humana.

1 Introdução

A gênese da autonomia privada enquanto princípio fundante de uma ordem jurídica privada, ou seja, de uma esfera
de atuação jurídica garantida à pessoa para autorregulamentar o exercício de suas relações existenciais e

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patrimoniais, está estreitamente ligada à formação da Modernidade, em particular, ao surgimento do modo de


produção capitalista1 e à afirmação de um novo cânone interpretativo: o indivíduo2.

Com a ascensão da filosofia da consciência, a rígida ordem feudal, baseada na submissão à autoridade e à tradição,
deu lugar a uma eticidade fluida e a uma autocompreensão pelo homem de sua constituição ontológica: a razão é
o fundamentum inconcussum da verdade, sendo esta acessível no plano individual. Doravante, não haveria mais
mediadores entre o intérprete e o sentido (cogito ergo sum cartesiano); a nova ordem discursiva teria como
pressuposto hermenêutico a dominação - direta e autônoma - do mundo pelo homem3.

Percebe-se que esta racionalidade transcendental de matriz, sobretudo kantiana, constitui - mediante um processo
de universalização do particular - um sujeito homogêneo e atomizado4, responsável por definir o mundo (objeto)
conforme o seu cogito (esquema sujeito-objeto)5.

Desse modo, a fonte das leis, direitos e obrigações da Modernidade não poderia ser outra senão a própria vontade
de domínio individual6, de modo que a nova ordem normativa deveria estar ancorada nos pontos fixos desta
subjetividade imanente7.

Neste modelo de atribuição de sentido ao ser, a vontade livre, pois racional, independe de condicionamentos
exteriores e tem aptidão de ser lei para si mesma:

Autonomia da vontade é aquela sua propriedade graças à qual ela é para si mesma a
sua lei (independentemente da natureza dos objectos do querer). O princípio da
autonomia é portanto: não escolher senão de modo a que as máximas da escolha
estejam incluídas simultaneamente, no querer mesmo, como lei universal. Que esta
regra prática seja um imperativo, quer dizer que a vontade de todo o ser racional esteja
necessariamente ligada a ela como condição, é coisa que não pode demonstrar-se pela
simples análise dos conceitos nela contidos, pois se trata de uma proposição sintética;
teria que passar-se além do conhecimento dos objectos e entrar numa crítica do sujeito,

1
PRATA, Ana. A tutela constitucional da autonomia privada. Coimbra: Almedina, 1982. p. 9.
2
COSTA, Alexandre Araújo. Direito e método: diálogos entre a hermenêutica filosófica e a hermenêutica jurídica.
2008. Tese (Doutorado em Direito) - Faculdade de direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2008. p. 64-66;
AMARAL, Francisco. Autonomia privada como princípio fundamental da ordem jurídica: perspectiva estrutural
e funcional. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 26, n. 102, p. 207-230, abr./jun. 1989, p. 217.
3
“E a revolução não era simplesmente a fixação de um novo sentido, mas a possibilidade de argumentos
formulados individualmente se contraporem à verdade definida pela instituição. Essa modificação altera a ordem
de poder, pois o poder da verdade não era mais um monopólio da autoridade tradicional: criou-se a possibilidade
de que o sujeito se contrapusesse à tradição.” (COSTA, Alexandre Araújo. Direito e método, op. cit., p. 67).
4
COSTA, Alexandre Araújo. Direito e método, op. cit., p. 121.
5
STRECK, Lênio Luiz. Esquema sujeito-objeto. In: STRECK, Lênio Luiz. Dicionário de hermenêutica: 50
verbetes fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do direito. 2. ed. Belo Horizonte:
Letramento; Casa do Direito, 2020. p. 123.
6
RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Autonomia da vontade, autonomia privada e autodeterminação: notas sobre
a evolução de um conceito da Modernidade e na Pós-modernidade. Revista de Informação Legislativa, Brasília,
a. 41, n. 163, p. 113-130, jul./set. 2004. p. 116-117.
7
PRATA, Ana. A tutela constitucional da autonomia privada, op. cit., p. 82-83; COSTA, Alexandre Araújo.
Direito e método, op. cit., p. 120-121.
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isto é da razão prática pura; pois esta proposição sintética, que ordena apodicticamente,
tem que poder reconhecer-se inteiramente a priori.8

Portanto, a liberdade enquanto categoria epistêmico-analítica revela-se mediante a autonomia da vontade: “aquela
cuja máxima pode sempre conter-se a si mesma” em sua autoridade imperativa suprema9.

O direito moderno juridiciza esta proposição sintética apriorística elaborada no campo moral, tendo em vista que
a moralidade é imanente à razão prática pura, ou seja, não pode o direito ser ele próprio uma ordem ética. Assim,
o ordenamento jurídico limita-se à coexistência dos arbítrios individuais, sem, todavia, determinar seu conteúdo10.

Desta apropriação parcial da doutrina kantiana, pois despida de seu conteúdo ético, chega-se ao princípio jurídico
da autonomia privada: o poder concedido ao particular de regular juridicamente suas relações existenciais e
patrimoniais, estabelecendo-lhes conteúdo e eficácia reconhecidos pelo direito, sob uma zona imune à coerção
realizada por exigências morais.

A vontade jurídica dos particulares não encontra vínculos normativos com os princípios da razão11. Com efeito, a
tutela do agente moral livre se limita ao plano da legitimação teórica, que, por sua vez, é esvaziada nos processos
de codificação e de interpretação dos códigos e, consequentemente, não vincula o agir jurídico ao princípio da
moralidade12.

Desse modo, ao sujeito privado é lícito usufruir e dispor, no exercício de sua propriedade pessoal (seu próprio
corpo) e no uso de sua propriedade real (uma extensão da propriedade pessoal), livremente, ou seja, em uma esfera
de não impedimento, em que a autonomia se realiza sob uma dimensão analítica (liberdade formal, abstratamente
garantida) e que tem como meio condutor a liberdade negocial e os direitos subjetivos.

A dogmática jurídica moderna elegeu o individualismo possessivo como critério hermenêutico fundamental,
segundo o qual o sujeito antecede e constitui voluntariamente o social e o político, condicionando todas as demais
instâncias à proteção da vontade de poder expressa, por excelência, na propriedade e nos contratos13. Nesse sentido,
a autonomia privada é conceitualizada não como parâmetro deontológico socialmente enraizado, mas sim como
um parâmetro deôntico natural que fundamenta a validade do direito.

8
KANT. Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições
70, 1988. p. 85.
9
KANT. Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, op. cit., p. 94.
10
RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Liberdade(s) e função: contribuição crítica para uma nova fundamentação
da dimensão funcional do Direito Civil brasileiro. Tese (Doutorado em Direito) - Programa de Pós-Graduação em
Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2009. p. 127.
11
A esse respeito, convém novamente citar o pensamento de Immanuel Kant: “Mas a proposição: «A vontade é,
em todas as acções, uma lei para si mesma», caracteriza apenas o princípio de não agir segundo nenhuma outra
máxima que não seja aquela que possa ter-se a si mesma por objecto como lei universal. Isto, porém, é
precisamente a fórmula do imperativo categórico e o princípio da moralidade; assim, pois, vontade livre e vontade
submetida a leis morais são uma e a mesma coisa.” (KANT. Immanuel. Fundamentação da metafísica dos
costumes, op. cit., p. 94).
12
RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Liberdade(s) e função, op. cit., p. 130.
13
RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Liberdade(s) e função, op. cit., p. 90.
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A partir desse vértice normativo, estrutura-se hierarquicamente o sistema jurídico e se deduzem as suas categorias
lógicas e excludentes (sujeito-objeto, público-privado, individual-social, liberdade-igualdade, entre outras)
reputadas como fundantes. O direito civil - “campo por excelência das relações de natureza privada e do processo
de construção da ciência e técnica jurídica”14 - foi alçado ao centro do ordenamento jurídico, enquanto o direito
constitucional exercia uma normatividade secundária15: regulação do espaço público residual, abreviando a
atuação minimalista e exclusiva do Estado em face do poder de dominação individual16.

Em outras palavras, os direitos constitucionalmente protegidos - intitulados fundamentais - garantem o


autointeresse esclarecido do sujeito singular contra a invasão do ente estatal, numa clara polarização quanto à
titularidade interpretativa do sistema de direitos17. Sob este viés, o discurso jurídico compreende a relação entre o
indivíduo e o Estado como o momento resolutivo das tensões imersas pela distribuição de poder na sociedade18.

Sobre essa conjuntura, é preciosa a síntese realizada por José Joaquim Gomes Canotilho:

Esta concepção do individualismo possessivo influenciará, em parte, decisivamente,


a teoria liberal dos direitos fundamentais que os considerará sempre como direitos de
defesa do cidadão perante o Estado, devendo este abster-se da invasão da autonomia
privada. Daí que o Government se reduzisse à «Preservation of their (isto é, dos
homens) Property, e o modelo dos direitos de liberdade fosse essencialmente um
modelo económico, traduzido no facto de os direitos dos indivíduos se reconduzirem
à autodeterminação do indivíduo através da livre disposição sobre a sua pessoa e os
seus bens.19

Como adverte o citado constitucionalista, é fundamental atentar-se para a interdependência das instâncias
filosóficas, jurídicas e econômicas, pois a revolução epistêmica densificada no plano normativo se realiza
mutuamente com o desenvolvimento do modelo de produção capitalista.

Em outras palavras, pela atribuição de personalidade e capacidade jurídicas aos indivíduos para autorregulamentar
sua atuação, viabilizam-se as condições para o intercâmbio capitalista, quais sejam: i) a libertação da propriedade
dos encargos feudais e do regime enfitêutico de apropriação da terra; ii) a livre circulação dos bens objeto do direito

14
AMARAL, Francisco. O direito civil na pós-modernidade. In: NAVES, Bruno Torquato de Oliveira; FIUZA,
César; SÁ, Maria de Fátima Freire de (coord.). Direito civil: atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 63.
15
HESSE, Konrad. Derecho constitucional y derecho privado. Traducción e introducción de Ignacio Gutiérrez
Gutiérrez. Madrid: Civitas, 1955. p. 38.
16
CARVALHO NETTO, Menelick de; SCOTTI, Guilherme. Os direitos fundamentais e a (in)certeza do
direito: a produtividade das tensões principiológicas e a superação do sistema de regras. 2. ed. Belo Horizonte:
Fórum, 2020. p. 69-70.
17
CARVALHO NETTO, Menelick de; SCOTTI, Guilherme. Os direitos fundamentais e a (in)certeza do
direito, op. cit., p. 69-70.
18
PRATA, Ana. A tutela constitucional da autonomia privada, op. cit., p. 78.
19
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Edições
Almedina, 1941. p. 384.
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de propriedade; iii) a desvinculação da força de trabalho da terra e do senhor feudal, apta, doravante, à venda por
seu titular e à correlata apropriação por outrem20.

O princípio da autonomia privada passa a sintetizar a forte vinculação construída pela hermenêutica moderna entre
liberdade, trabalho e propriedade21, e a compreensão de que as relações contratuais constituem a nova sociabilidade,
âmbito em que a vontade egoística dos indivíduos se conecta como fonte de direitos e obrigações22, garantindo
uma dimensão dinâmica sobre a propriedade e sobre a força de trabalho23.

Não obstante a coesão entre essas instâncias, a codificação de uma autonomia privada amoral eliminou qualquer
discussão acerca da legitimidade normativa do sistema de direitos, renegando-o aos padrões de racionalidade das
ciências naturais expressas sob fórmulas matemáticas e critérios cartesianos24.

20
RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Liberdade(s) e função, op. cit., p. 97-98; PRATA, Ana. A tutela
constitucional da autonomia privada, op. cit., p. 88.
21
Carlos Pianovski Ruzyk, analisando o individualismo proprietário de John Locke e sua influência sobre o Código
Civil Napoleônico de 1804, esclarece: “Impende observar que a aquisição da propriedade em Locke é mais do que
o simples uso ou fruição de bens: é propriedade aquilo que se incorpora ao próprio indivíduo, uma vez que é fruto
de seu trabalho. Este, a seu turno, é também propriedade individual, pois parte da primeira propriedade que o
indivíduo detém como direito natural: seu próprio corpo. Como se observa, é possível afirmar que, na teoria
política desse autor, o indivíduo é livre porque é proprietário.” (RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Liberdade(s)
e função, op. cit., p. 91).
22
Alexandre Araújo Costa é preciso acerca da relevância do contrato na conformação jurídica e política da
modernidade: “O contratualismo é uma argumentação que assenta seus fundamentos em uma visão jurídica de
mundo, pois ele acentua o fato de que os vínculos que estabelecem a base da sociedade são estabelecidos por um
‘contrato’, ou seja, por um instrumento jurídico derivado da vontade individual das partes envolvidas. Dado que
os homens eram entendidos como indivíduos livres e iguais, a única legislação válida seria uma espécie de auto-
legislação, estabelecida por meio de uma decisão política fundada em critérios racionais. Assim, já não se trata
mais da mera aceitação das verdades tradicionais, nem da justificação das autoridades constituídas, nem da
afirmação de que a sociedade é uma derivação espontânea da natureza humana. Frente à crescente heterogeneidade
das sociedades modernas e ao individualismo que as marca, era preciso uma teoria que religasse o homem à
sociedade, e a única saída que se mostrou plausível foi a de estabelecer um vínculo jurídico, fundado no uso
autônomo da razão [...]. Porém, em todos esses casos, a razão humana foi colocada na base de um contrato que
estabelecia as bases para a organização de uma autoridade social legítima. E, na base da sociedade, não estava
mais a autoridade, nem o sagrado, nem a tradição, nem a solidariedade, nem o vínculo com os antepassados, mas
a norma, com sua abstração e generalidade. Portanto, foi o jusracionalismo que fixou a norma como o elemento
jurídico fundamental, abrindo espaço para o positivismo normativista que veio a tornar-se a concepção jurídica
hegemônica do século XIX.” (COSTA, Alexandre Araújo. Direito e método, op. cit., p. 166-167).
23
Sob a ótica da Economia Política, Luiz Gonzaga Belluzzo e Gabriel Galípolo: “Adam Smith faz nascer do casulo
moral e político do Iluminismo a crisálida da sociedade mercantil. É a troca de mercadorias que torna os indivíduos
privados interdependentes, definindo a natureza da nova ‘sociabilidade’. Na Riqueza das Nações, os indivíduos,
produtores independentes de mercadorias, buscando o seu interesse, “constituem” a sociedade. Smith procede, na
verdade, uma ‘despolitização’ das relações sociais, buscando afirmar a autonomia da sociedade econômica em
relação ao Estado Absolutista e Mercantilista. O caráter natural e ‘espontâneo’ do intercâmbio de mercadorias se
revela na sabedoria providencial e impessoal da Mão Invisível, cujos movimentos, é bom insistir, são articulados
pela negociação e pelo contrato.” (BELLUZZO, Luiz Gonzaga de Mello; GALÍPOLO, Gabriel. A escassez na
abundância capitalista. São Paulo: Editora Contracorrente, 2019. p. 22).
24
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. 1, p. 117.
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Sob o manto do positivismo normativista, o direito é reduzido a uma aplicação subsuntiva e literal da lei - pretensão
meramente declarativa -, excluindo de si mesmo todo o debate sobre a legitimidade das normas, já que essa seria
uma controvérsia filosófica e não científica25.

Dessa forma, a atividade jurisdicional, alheia à sua própria historicidade, deveria se limitar à pura exegese
sistemática dos códigos (a identificação do sentido imanente da norma, sistematicamente dado e cristalizado pelo
legislador), cuja validade não seria uma questão deontológica, mas uma questão factual empiricamente verificável
(procedência legislativa). A garantia de cientificidade (neutralidade e objetividade) do novo sistema de direitos
residiria em sua (ingênua) impermeabilidade a juízos valorativos e à moralidade da comunidade política26.

Por conseguinte, à luz da hermenêutica normativista, a justeza da autonomia privada seria um corolário de sua
coerência lógica (argumentação sistemática). Ou seja, atribui-se um valor intrínseco ao direito que, assim como as
equações matemáticas, basta a si em sua lógica interna (dura lex sed lex). Ao fim e ao cabo, o exercício da liberdade
negocial e dos direitos subjetivos seria justo por ser legal, derivado de uma norma jurídica geral e abstrata27.

Por óbvio, essa concepção de autonomia privada só poderia legitimar-se por si mesma enquanto a hermenêutica
moderna subjacente ao direito positivo mantivesse sua condição de utopia totalizante. Nesse contexto, a
radicalização do caráter linguístico e histórico da narrativa jurídica trouxe à tona o desengate deontológico entre o
direito e a gramática cotidianamente vivenciada, dilatando-se, no seio da comunidade política, a necessidade de
reprojetar a autonomia privada e a responsabilidade política de seus intérpretes.

Nesse contexto que se radicaliza com o segundo pós-guerra, ficou clara a incapacidade da ordem jurídica moderna
para lidar com uma realidade complexa, plural e contingente, caracterizada por um intenso desenvolvimento
tecnológico e pela promessa de uma democracia estável e inclusiva28. Instaurou-se, então, uma crise de
legitimidade (e representatividade) do direito: a desordem do mundo contrastava a ordem da norma.

É neste cenário desafiador de revitalização do direito que emerge o constitucionalismo contemporâneo, um


movimento teórico jurídico-político que propõe, no interior do Estado Democrático de Direito, uma nova
perspectiva deontológica que desafia o civilista a ressignificar a compreensão da autonomia privada segundo a
cooriginalidade entre direito e moral, enraizada no todo principiológico da Constituição29.

Diante desta perspectiva deôntica, propõe-se a abertura de um diálogo sobre a ressignificação e


constitucionalização da autonomia privada como um padrão decisório que se constrói historicamente no seio da

25
COSTA, Alexandre Araújo. Direito e método, op. cit., p. 172.
26
COSTA, Alexandre Araújo. Direito e método, op. cit., p. 232; CARVALHO NETTO, Menelick de; SCOTTI,
Guilherme. Os direitos fundamentais e a (in)certeza do direito, op. cit., p. 33-34.
27
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia, op. cit., p. 116-117; COSTA, Alexandre Araújo. Direito e
método, op. cit., p. 242.
28
AMARAL, Francisco. O direito civil na pós-modernidade, op. cit., p. 73-74.
29
STRECK, Lênio Luiz. Constitucionalismo contemporâneo. In: STRECK, Lênio Luiz. Dicionário de
hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do direito. 2. ed. Belo
Horizonte: Letramento; Casa do Direito, 2020. p. 57-60.
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comunidade política deontologicamente comprometida com a dignidade da pessoa humana (autonomia do agente
moral).

2 Objetivos

Objetivo geral: analisar a gradual historicização do pensamento jurídico, com ênfase na construção, jurídica e
filosófica, da autonomia privada. Propõe-se a superação do enredo jurídico-discursivo calcificado pela metafísica
da subjetividade e pelo juspositivismo, e a construção de uma narrativa capaz de oferecer sentido à autonomia
privada segundo a cooriginalidade entre direito e moral, incorporada pelo constitucionalismo contemporâneo.

Objetivos específicos: investigar as premissas normativas da prática jurídica moderna, tendo em vista os vínculos
entre a autonomia privada e os quadrantes epistemológicos da subjetividade e do positivismo jurídico. Enfrentar
a perspectiva deontológica impulsionada pelo constitucionalismo contemporâneo e os desafios por ela impostos à
compreensão jurídica moderna. Tornar circulares e reflexivos os discursos legitimadores da autonomia privada e,
desse modo, acentuá-la como um padrão deôntico historicamente determinado.

Pretendeu-se, assim, analisar uma história institucional em busca de uma interpretação correta da autonomia
privada, isto é, capaz de conduzir uma intersubjetividade efetiva e deontologicamente condicionada à autonomia
moral (dignidade) da pessoa humana: desenvolvimento do ser que se autocompreende como um membro livre e
igual na comunidade política.

Por fim, buscou-se alinhar os objetivos expostos a uma perspectiva hermenêutica própria do pesquisador-intérprete
engajado historicamente, ciente de sua interioridade (reflexivo) e que, nesse sentido, opõe-se à ótica externa do
observador privilegiado e escondido pela terceira pessoa impessoal.

3 Embasamento Teórico

Esta pesquisa parte da percepção heideggeriana de que o discurso externo e impessoal proposto pelo cientificismo
moderno destitui o intérprete de critérios adequados para criticar a tradição em que está inserido. Nesse sentido,
as questões de validade e legitimidade do direito e, em especial, da autonomia privada, somente se colocam pela
circularidade hermenêutica do participante, ou seja, por um discurso interno no qual o engajamento é condição de
possibilidade para atribuição de sentido à própria experiência (ser que se autocompreende como sentido)30.

Assim, esta pesquisa reconhece o alerta de Francisco Amaral sobre a vigência de uma tensão normativa entre a
realidade contemporânea (plural, economicamente globalizada e de uma comunicação massificada) e a gramática
moderna, disposta segundo o positivismo jurídico e a filosofia da consciência31. É a partir desta tensão que se narra
a travessia deôntica da autonomia privada.

30
COSTA, Alexandre Araújo. Direito e método, op. cit., p. 400.
31
AMARAL, Francisco. O direito civil na pós-modernidade, op. cit., p. 73-74.
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A respeito da compreensão moderna, Carlos Eduardo Pianovski esclarece que a autonomia privada, manifestada
tanto nas codificações quanto na sua interpretação (norteada pelo juspositivismo), enseja uma liberdade negativa,
formalmente assegurada e exercida preponderantemente no âmbito das relações patrimoniais como possibilidade
para a autodeterminação individual32.

Em análise profunda sobre a hermenêutica moderna, Alexandre Araújo Costa acrescenta que o discurso jurídico,
ao se alinhar ao cientificismo positivista, reduziu-se a uma compreensão lógica (formal e objetiva) dos padrões
normativos, de modo que a prática interpretativa do direito se tornou alheia aos critérios de legitimidade
historicamente constituídos33.

Considerando o caráter histórico e linguístico da prática jurídica (vivência intersubjetiva e socialmente enraizada),
Jürgen Habermas esclarece que a interpretação positivista dos direitos subjetivos resultou no desengate
deontológico entre a autonomia privada do sujeito de direito e autonomia moral da pessoa, provocando uma crise
de legitimidade (representatividade) do direito34.

Diante deste tensionamento deontológico que aflige a comunidade política em sua autocompreensão normativa e
afronta o intérprete jurídico, esta pesquisa se alinha à proposta de Lênio Streck - sob a influência da hermenêutica
gadameriana e da teoria do direito de Ronald Dworkin - de um constitucionalismo contemporâneo lastreado na
cooriginalidade entre direito e moral. Trata-se de uma perspectiva deontológica oposta ao positivismo jurídico, em
que os princípios constitucionais assumem relevância sobre a totalidade da vida normativa35.

4 Metodologia

A pesquisa vincula-se à hermenêutica jurídica e filosófica, como alternativa ao modelo positivista de compreensão
da realidade normativa. Considera o fenômeno jurídico como uma prática interpretativa (sempre) renovada à luz
da faticidade, tradição e historicidade, na qual a comunidade de intérpretes e o texto jurídico se constituem
reciprocamente numa relação circular e reflexiva (autocompreensão normativa)36. Neste ponto, buscou-se avultar
os pressupostos hermenêuticos (engajamento) adotados pelo pesquisador para atribuir sentido à experiência de
pesquisa.

Admite-se, portanto, com segurança, que a narrativa proposta não cumpre função explicativa, mas fundadora; não
visa a objetividade, mas a contextualização; não lida com o universal, mas com o contingente; especialmente, não
se devota ao resultado (sempre provisório), mas à travessia (entendida como constante)37.

32
RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Liberdade(s) e função, op. cit., p. 144.
33
COSTA, Alexandre Araújo. Direito e método, op. cit., p. 172.
34
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia, op. cit., p. 117.
35
STRECK, Lênio Luiz. Constitucionalismo contemporâneo, op. cit., p. 57-60.
36
CARVALHO NETTO, Menelick de; SCOTTI, Guilherme. Os direitos fundamentais e a (in)certeza do
direito, op. cit., p. 56.
37
COSTA, Alexandre Araújo. Direito e método, op. cit., p. 35.
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Assim, a hermenêutica se opõe à compreensão do homem como elemento natural, radicalizando seu caráter
linguístico e histórico38. Há sempre uma história interpretativa compartilhada que se antecipa ao sujeito, de modo
que “o sujeito” e “o objeto”, enquanto entes dotados de sentido, só existem na linguagem39.

A partir dessa consciência circular, dilui-se a externalidade do discurso científico e a pretensão de descrever a
realidade a partir de relações lineares e objetivas de causa e efeito. Rompe-se com a longa tradição filosófica de
identificar estruturas ontológicas por trás dos movimentos do mundo. A verdade, portanto, deixa de ser uma
questão metodológica ancorada fora da linguagem e da história, como se o texto fosse uma enunciação de um
pensamento pré-linguístico (correspondência entre o enunciado descritivo e o fato descrito) que liga sujeito e
objeto40.

Desse modo, a hermenêutica jurídica evidencia que a reconstrução abstrata do universal representa o abandono do
sentido (ser histórico), de modo que a compreensão deontológica, assim como todas as demais, é histórica,
irredutível, contingente, e, portanto, não pode ser realizada por leis de indução que se pretendem gerais e abstratas.

5 Resultados e Discussão

A partir da mirada reflexiva radicalizada no século XX (especialmente no campo da filosofia), dilui-se a


subjetividade assujeitadora (filosofia da consciência) e a objetividade sistemática (cientificismo positivista),
desvendando-se a linguagem (intersubjetiva) como lócus dos sentidos41.

Daí em diante, o sujeito torna-se consciente do seu condicionamento hermenêutico, afinal, há sempre uma história
interpretativa compartilhada que o antecipa, de modo que “em toda relação com os entes está pressuposta uma
interpretação que o ser-aí tem de si mesmo e essa interpretação de si se transforma na medida em que o ser-aí se
relaciona com o mundo e vice-versa”42. Diante dessa circularidade, o pertencimento (sujeito-sujeito) é a própria
condição de possibilidade para o desenvolvimento humano43, que é sempre recíproco44, pois se trata de um ser-
com-os-outros.

O giro linguístico considera a autocompreensão como um fenômeno constitutivo e inerente a toda prática
interpretativa. Nesse entendimento filosófico, os juristas incorporaram a ideia de que o caráter vinculante do

38
COSTA, Alexandre Araújo. Direito e método, op. cit., p. 104.
39
STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica. In: STRECK, Lênio Luiz. Dicionário de hermenêutica: 50
verbetes fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do direito. 2. ed. Belo Horizonte:
Letramento; Casa do Direito, 2020. p. 130-131.
40
COSTA, Alexandre Araújo. Direito e método, op. cit., p. 38-39.
41
STRECK, Lênio Luiz. Giro ontológico-linguístico. In: STRECK, Lênio Luiz. Dicionário de hermenêutica: 50
verbetes fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do direito. 2. ed. Belo Horizonte:
Letramento; Casa do Direito, 2020. p. 123-126.
42
STRECK, Lênio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 6. ed. rev. e
ampliada. São Paulo: Saraiva, 2017. E-book. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/
9788547215644/. Acesso em: 17 abr. 2023, p. 581.
43
STRECK, Lênio Luiz. Giro ontológico-linguístico, op. cit., p. 125.
44
CARVALHO NETTO, Menelick de; SCOTTI, Guilherme. Os direitos fundamentais e a (in)certeza do
direito, op. cit., p. 22.
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sistema de direitos encontra-se sempre condicionado pela circularidade hermenêutica, em que determinada
comunidade, na gramática de suas práticas sociais, se autocompreende em seus direitos e deveres. Logo, a
formação de uma ordem normativa e a correlata constituição do sujeito de direito pressupõem que os agentes
morais se reconheçam reciprocamente em seus direitos e deveres, reciprocamente referidos uns aos outros como
membros livres e iguais de determinada comunidade política45.

O surgimento dessa consciência reflexiva, no campo do direito, enfraquece as condições pelas quais se dava a
atribuição de sentido à autonomia privada. Como já mencionado, a conformação jurídica da modernidade se baseia
em uma dimensão atomizada e abstrata do sujeito, que, partindo de sua subjetividade imanente, assujeita a
determinação da realidade, impondo os limites em que alguma coisa pode “vir à objetividade”. Trata-se da
aquisição e posse das formas de vida e relacionamentos coisificados (esquema sujeito-objeto) pelo sujeito da
vontade de domínio46.

Imersa neste voluntarismo relativista, a autonomia privada passou a estar associada não ao entendimento mútuo
(reflexivo), mas à mútua dominação. O direito paradoxalmente torna-se o âmbito dos sujeitos jurídicos,
encapsulados, que se relacionam possessivamente uns contra os outros, na contramão da circularidade (fundante)
entre a ordem jurídica e a moralidade política vivenciada intersubjetivamente.

Essa abordagem equivocada firma a compreensão jurídica segundo uma mirada externa, neutra, impessoal e
objetiva, própria do sujeito fagocitado pelo cientificismo positivista, que, sob a formalização lógica, rompe a
relação entre o sentido dos direitos subjetivos e seus contextos sociais de uso.

Assim, desligada de qualquer condicionante histórica e abstraída das condições mundanas de sua formação, a
autonomia privada é reduzida ao caráter apriorístico das verdades lógicas: o conceito final da cadeia discursiva
que, por si só (isto é, a partir da sua coerência lógica dentro do sistema normativo conceitual), esgota a
controvérsia47.

O elevado grau de objetividade e neutralidade proporcionado pela lógica dedutiva - por meio desta a realidade era
questionada (cogitare) e, em seguida, subjugada pela perfeição do sistema (auctoritas, non veritas facit legem) -
conduziu a uma rarefação hermenêutico-normativa da liberdade negocial e dos direitos subjetivos. Dito de forma
mais clara, a “ciência jurídica” moderna, em sua reconstrução individualística e abstrata do universal, precisou
deixar de lado tudo que é propriamente histórico, particular, contingente, ou seja, tudo que é propriamente humano,
e que, por sua vez, não se deixa reduzir a explicações meramente causais48.

Diante desse desajuste entre o sistema de direitos e sua legitimidade normativa, abriu-se espaço para uma aplicação

45
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia, op. cit., p. 121.
46
STRECK, Lênio Luiz. Esquema sujeito-objeto, op. cit., p. 100.
47
PRATA, Ana. A tutela constitucional da autonomia privada, op. cit., p. 83-84.
48
COSTA, Alexandre Araújo. Direito e método, op. cit., p. 105.
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meramente funcional dos direitos subjetivos, norteada pela integração capitalista da nova sociedade49, a qual, em
síntese, demandava pela livre acumulação de capital, pela livre circulação da riqueza e por uma ampla
disponibilidade sobre a massa de trabalhadores. Por outro lado, o reconhecimento da vontade como base para a
reflexão jurídica ocultou o caráter institucional da autonomia privada, enquanto pedra de toque na orientação
política, econômica e social do ordenamento jurídico. Ao fim e ao cabo, a autonomia privada do sujeito de direito
e a autonomia do agente moral passaram a compor, com frequência, dimensões antagônicas50.

Ficou clara, principalmente no segundo pós-guerra, a incapacidade da ordem jurídica moderna para lidar com uma
realidade complexa, plural e contingente, caracterizada por um intenso desenvolvimento tecnológico e pela
promessa de uma democracia estável e inclusiva51. Instaurou-se, então, uma crise de legitimidade (e
representatividade) no direito: a desordem do mundo contrastava a ordem da norma.

É neste cenário desafiador de revitalização do direito que surge o constitucionalismo contemporâneo, um


movimento teórico jurídico-político que propõe, no interior do Estado Democrático de Direito, uma nova
perspectiva deontológica que, por sua vez, desafia o civilista a ressignificar a compreensão da autonomia privada.
Cuida-se de uma reformulação da teoria das fontes, da teoria da norma e da teoria da decisão, segundo a
cooriginalidade entre direito e moral, enraizada no todo principiológico da Constituição52.

A nova perspectiva adotada nesta pesquisa parte de uma imbricação principiológica entre direito e moral.
Considera-se que a comunidade política e seus membros se constituem, reciprocamente, segundo um arranjo
principiológico, isto é, segundo padrões de conduta que emergem de uma autocompreensão intersubjetiva, de uma
história interpretativa partilhada (vinculante) que condiciona as práticas cotidianas53.

Os princípios constitucionais - vivenciados pela comunidade em sua autocompreensão normativa -


institucionalizam o mundo prático no direito, interrompendo a cadeia jurídico-discursiva calcificada pelo
positivismo jurídico e pela metafísica da subjetividade54. Recorda-se que a ordem jurídica moderna propõe,
mediante um sistema de regras, uma discursividade causal-dedutiva que busca antecipar as condições fáticas e
históricas próprias do momento decisório (incidência normativa) em um plano universalizante e abstrato55. O
constitucionalismo contemporâneo, então, emerge como uma resposta a este contrassenso normativo, que de um
lado pretende normatizar uma vivência intersubjetiva historicamente determinada, enquanto do outro lado deseja
transcender o contexto para uma dimensão analítica, ou seja, entificar as diversas situações de aplicabilidade.

49
HESSE, Konrad. Derecho constitucional y derecho privado. Traducción e introducción de Ignacio Gutiérrez
Gutiérrez. Madrid: Civitas, 1955. p. 39; HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade,
op. cit., p. 119.
50
PRATA, Ana. A tutela constitucional da autonomia privada, op. cit., p. 77.
51
AMARAL, Francisco. O direito civil na pós-modernidade, op. cit., p. 73-74.
52
STRECK, Lênio Luiz. Constitucionalismo contemporâneo, op. cit., p. 57-60.
53
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso, op. cit., p. 580-581.
54
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso, op. cit., p. 598.
55
CARVALHO NETTO, Menelick de; SCOTTI, Guilherme. Os direitos fundamentais e a (in)certeza do
direito, op. cit., p. 34-35.
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As Constituições do pós-guerra teceram uma circularidade deontológica entre direito e moral, deslocando o sentido
jurídico da dimensão analítica para o lócus fático-social - condição de possibilidade para a incidência normativa.
Assim, ao colocar no centro protetivo do direito a pessoa humana, dotada de dignidade (intersubjetivamente
considerada), o constitucionalismo contemporâneo condiciona a aplicação jurídica mediante um quadro histórico
e factual constituído por regras e princípios56.

A partir desta ótica propriamente hermenêutica, em que a validade da ordem jurídica (constitucionalmente
fundamentada) encontra-se enraizada socialmente, cabe trazer ao debate a possibilidade de ressignificação e
constitucionalização da autonomia privada, enquanto padrão decisório que se constrói historicamente no bojo da
comunidade politicamente engajada, tornando-se, assim, reflexivos os critérios para a medição de sua validade,
legitimidade e eficácia.

Uma vez inserida no mundo vivido, a autodeterminação do sujeito de direito liberta-se da vontade de domínio
(esquema sujeito-objeto) e compreende o agente moral (ser-com-os-outros), e vice-versa. Assim, a autonomia
privada passa a estar deontologicamente condicionada à autonomia moral (dignidade) da pessoa humana, ou seja,
ao desenvolvimento do ser que se autocompreende como um membro livre e igual na comunidade política. Desse
modo, a institucionalização do mundo prático pelos princípios constitucionais atribui uma responsabilidade aos
intérpretes (o cidadão, a comunidade, o juiz ou o tribunal): demonstrar a legitimidade de suas decisões
(interpretações) a partir da cooriginalidade entre o direito e a moralidade política vivenciada intersubjetivamente57.

Por fim, esta pesquisa propõe a constitucionalização da autonomia privada como condição de possibilidade para
que o exercício da liberdade negocial e dos direitos subjetivos adquira força normativa sobre o tráfego jurídico
entre particulares para além das suficiências ônticas propostas pelas codificações no contexto do
constitucionalismo contemporâneo.

Este direcionamento se destina, sobretudo, à abertura de um diálogo jurídico-institucional, na exata medida em


que a radicalização do caráter linguístico e histórico da autonomia privada busca impedir a cristalização dos seus
locais de fala.

6 Conclusões

Com lastro neste relatório final, verifica-se que a autonomia privada é um dos principais instrumentos de
transformação jurídica e política da Modernidade. São inegáveis seus vínculos com o positivismo jurídico, com a
filosofia da consciência e com o individualismo possessivo.

Contudo, diante de sua vigência e relevância no atual estágio do fenômeno jurídico, o modelo moderno de
significação da autonomia privada não se coaduna com as demandas filosóficas (históricas e linguísticas) e
jurídicas (Estado Democrático de Direito) apresentadas ao intérprete pelo constitucionalismo contemporâneo.

56
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso, op. cit., p. 600.
57
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso, op. cit., p. 582-583.
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Portanto, conclui-se pela necessidade de ressignificação e de constitucionalização da autonomia privada enquanto


padrão decisório que se constrói historicamente no seio da comunidade política.

Trata-se de um padrão normativo com densa urdidura legal e dogmática, fundamental para a orientação política,
econômica e social da ordem jurídica. Refletir sobre sua história institucional e deliberar sobre sua legitimidade,
validade e eficácia são tarefas extremamente complexas e delicadas.

Em face dessa complexidade, esta pesquisa encontrou algumas limitações, entre elas a dificuldade de atingir todos
os objetivos traçados no subprojeto e adentrar nas inúmeras camadas interpretativas do objeto de investigação. A
título exemplificativo, deixou-se de examinar com a devida profundidade como a doutrina e a jurisprudência
nacionais (imaginário jurídico comum) vêm enfrentando o desafio de ressignificar a autonomia privada em face
de uma novel normatividade constitucional, especialmente sob a popularizada teoria da eficácia horizontal dos
direitos fundamentais nas relações entre particulares. Entretanto, em breve análise, tem-se a hipótese de que o
debate sobre a constitucionalização da autonomia privada ainda se encontra fortemente vinculado às linhas
epistêmicas cartesianas e, portanto, com dificuldades de se apresentar à luz de uma perspectiva deontológica não
positivista.

Nesse sentido, considera-se que os pressupostos hermenêuticos adotados pelo constitucionalismo contemporâneo
não se encontram presentes no senso comum que organiza a narrativa jurídica. Apesar da consciência jurídica
sobre a necessidade de se repensar a autonomia privada e as relações entre particulares segundo uma nova
compreensão deontológica (novas teorias das fontes, das normas e das decisões judiciais), as premissas modernas
estratificadas pelo cientificismo positivista e pela metafísica da subjetividade (esquema sujeito-objeto) ainda
reverberam sobre a “ciência do direito” descrita nos manuais e praticada nos tribunais brasileiros.

Conclui-se, assim, que a travessia (narrativa) hermenêutica impulsionada nesta pesquisa não se propôs a traçar a
compreensão da autonomia privada à luz da normatividade (concreta) derivada da Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988, do Código Civil brasileiro ou do entendimento dogmático e jurisprudencial praticado
em terrae brasilis. Cuidou, na verdade, de pavimentar um espaço de reflexão e impulsionar a possibilidade do
diálogo normativo-institucional sobre a autonomia privada, na convicção de que as demais camadas interpretativas
deste fenômeno (algumas delas expostas acima) compõem perspectivas de continuidade de árduo trabalho
investigativo.

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