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O ENCONTRO COM O ARQUÉTIPO MATERNO: IMAGINÁRIO E

SIMBOLOGIA EM LYA LUFT

Eliane Ferreira de Cerqueira Lima


Aluna do Curso de Doutorado em Letras Vernáculas
(Literatura Brasileira)

Tese apresentada à Banca de Doutorado no


Curso de Pós- Graduação em Letras
Vernáculas da Faculdade de Letras da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Orientadora: Professora Doutora Elódia
Xavier

Faculdade de Letras da UFRJ


1o semestre de 2006
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FOLHA DE APROVAÇÃO

LIMA, Eliane Ferreira de Cerqueira. O encontro com o arquétipo materno:


imaginário e simbologia em Lya Luft. Tese de Doutorado em Literatura
Brasileira. Departamento de Letras Vernáculas. Rio de Janeiro: UFRJ/
Faculdade de Letras, 2006.

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________________________________
Professora Doutora Elódia Xavier - UFRJ
Orientadora

____________________________________________________________________
Professora Doutora Rosa Maria de Carvalho Gens - UFRJ

____________________________________________________________________
Professor Doutor Sérgio Martagão Gesteira - UFRJ

____________________________________________________________________
Professora Doutora Angélica Soares - UFRJ

____________________________________________________________________
Professora Doutora Helena Parente Cunha - UFRJ

____________________________________________________________________
Professor Doutor Wellington de Almeida Santos – UFRJ

____________________________________________________________________
Professor Doutor Luiz Edmundo Bouças Coutinho - UFRJ

Examinada a Tese

Conceito:

Em: / / 2006.
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DEDICATÓRIA

Tendo homenageado minha mãe em minha dissertação de


Mestrado, mulher fundamental em minha vida, dedico este
trabalho a meu filho Gabriel, amor irrestrito e infindável, que por
feliz, ata em mim as duas pontas do arquétipo materno, ideal
perseguido de forma desesperada pelas personagens de Lya Luft,
hipótese analisada e defendida nesta Tese.
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AGRADECIMENTOS

Agradeço, mais uma vez, à Professora Doutora Elódia


Xavier por me ter incentivado a fazer o curso de Doutorado, por
ter tido a paciência e carinho de me orientar, pela segunda vez, e
por estar sempre acolhendo minhas produções pessoais
ficcionais e poéticas, elogiando-as e exortando à publicação e à
participação em concursos, indo muito além, desse modo, de
suas obrigações acadêmicas.
Agradeço ao talento da escritora Leila Míccolis, com
cuja simpatia tive o prazer de privar como colega de mesmo
curso, e que engrandeceu minha Tese pela cessão de uma de
suas poesias.
5

*Além da Imagem

Além da Imagem: trama do inefável


para mudar contorno definido.
Ou não bem definido. Além da Imagem
treme de ser lembrança o que era olvido.
(Henriqueta Lisboa )
6

ABREVIATURAS DOS LIVROS DE LYA LUFT


AAEA – A asa esquerda do anjo
AP – As parceiras
AS – A sentinela:
E – Exílio
OPC – O ponto cego
OQF – O quarto fechado
RF – Reunião de família
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SINOPSE

Estudo do fio condutor narrativo em sete romances de Lya Luft: o


sofrimento pela irrealização do arquétipo materno em face de uma
ausência real ou afetiva da mãe pessoal. Levantamento dos recursos
artístico-simbólicos representativos dessa opressora lacuna
psicológica e da insólita atmosfera de inconsciente.
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SUMÁRIO

ABREVIATURAS DOS LIVROS 6


1 INTRODUÇÃO 10
2 FUNDAMENTOS TEÓRICOS 13
3 ARQUÉTIPO MATERNO: A REPRESENTAÇÃO DA AUSÊNCIA 15
3.1 O colo 25
3.2 As mães substitutas 30
3.3 O palhaço 33
3.4 A “Mãe Terrível” 38
3.4.1 A morte 44
3.4.2 A bruxa 46
3.4.3.Sedução e perigo: uma imagem psíquica de mulher 48
4 A NATUREZA/MÃE: A VISÃO TRANSFORMADORA 57
4.1 A árvore simbólica 60
4.2 Floresta e mãe: o regaço 65
4.3 A gruta: o útero materno 67
4.4 O morro e o mar 70
4.5 A magia da lua 73
4.6 O vento de Deus 76
4.7 A mãe telúrica 78
4.8 A natureza animal – o instintivo inconsciente 81
4.8.1 Os “afetos desgovernados” 81
4.8.2 O “cheiro de mãe” 86
4.8.3 O verme: o inconsciente na consciência 89
5 MEMÓRIA: ASAS DA IMAGINAÇÃO 96
5.1 As presentes emoções passadas 98
5.2 O nó do destino 101
5.3 Espectros do passado 103
5.4 A construção da lembrança 104
5.5 A trégua da vida 110
5.6 Evocadores do passado 112
6 O PALCO DO INDECISO 118
6.1 O cosmos e o caos 119
6.2. Espaço e inconsciente 122
6.3 Onirismo: sonho e alucinação 136
6.4 O espelho: reflexos do inconsciente 140
6.5 O “chamado do poço” 142
6.6 Sombra e persona: o eu oculto e o eu social 143
6.7 O ser esfacelado 164
6.7.1 Os gêmeos: as metades da unidade 166
6.7.2 Os dúbios: o modelo da inteireza 175
6.8 O guia da alma 184
7 CONCLUSÃO 202
I – REFERÊNCIAS 208
II – RESUMO 213
III – RESUMEN 214
IV – ABSTRACT 215
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V – ANEXOS 216
Anexo 1 – A imagem do andrógino 216
Anexo 2 – Representações pré-históricas da Mãe 217
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1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho conduziu-se, como procedimento inicial, pela investigação da


gênese do sofrimento das personagens protagonistas e de outras periféricas a elas nos sete
romances da escritora gaúcha Lya Luft: dada uma série de circunstâncias que se geram, em
cada um deles, de modos os mais variados, é possível se identificar sempre uma falha
profunda e incontornável no que deveria ser uma ponte afetiva entre mãe e filha,
principalmente.
Pela constância com que tal deficiência amorosa se repete, um analista cuidadoso deve
conjeturar que há uma causa maior que encadeia o conjunto da obra e se particulariza, a cada
novo romance, através das diversas tramas individuais, no contato incompleto com a mãe. A
natureza desse dado invariável, o que é sugerido pelos próprios textos, remete ao arquétipo
materno, conteúdo psíquico cujo conceito é inteiramente esclarecido ao longo desta análise.
Como representar aspectos psíquicos sempre requisita o concurso de símbolos e outros
recursos artísticos indiretos, o estudo teve como uma de suas metas principais a verificação de
todos os procedimentos expressivos mobilizados para compor o organismo ficcional,
inclusive os lingüísticos, focando sua investigação, então, também nos aspectos formais,
além daqueles que conduzem e organizam os enredos específicos.
Torna-se fundamental esclarecer, em vista da natureza da proposição que vai ser
exposta e avaliada neste trabalho, que termos como “materno”, bem como “feminino”, de
tanto questionamento para a crítica vinda de mulheres, terão aqui seu emprego, não como
verdades absolutas, mas ligado a conceitos sugeridos pelo texto como se surpreende em
Reunião de família: “Pego o bule. A mulher do espelho repete meu gesto, gesto atávico,
maternal: o leite.” (p.125). Ou, em verdadeira explicitação, o que se vê em O quarto fechado
– “Além do mais, nunca lhes dera amor natural de mãe.” (p.28) – ou em A sentinela: “Não era
a prática de lidar com crianças em sua profissão, nem por ter tido um filho: era alguma coisa
atávica. Olga era a mãe natural que eu queria ser, era plenamente mulher em tudo...” (p.100).
Conseqüentemente, sem estar presa a controvérsias e para respeitar estritamente o
espaço ficcional, a idéia da imprescindibilidade de uma “presença materna” – “Era um ponto
de referência para todos: Se um dia eu precisar, Mamãe estará sempre ali.” (OQF, p.54) – para
satisfazer a necessidade vital e afetiva da criança, evitando o sofrimento futuro do adulto, foi
tratada como uma verdade inegável do texto, mesmo que se entenda essa condição como não
inerente à mulher e se atribua sua origem no imaginário humano. A teoria de C.G. Jung e de
outros estudiosos da mesma linha, assim, foram a chave para o entendimento das
11

características e motivos dessa necessidade primeira, e seus conceitos sobre o psiquismo


humano, fundamentalmente, para a apreensão do modo pelo qual ela é utilizada na obra, como
se argumenta no item 2 deste estudo.
Deve-se, porém, chamar a atenção para o fato de que foi a obra literária,
exclusivamente, a responsável pela escolha da linha teórica que apontaria o caminho
interpretativo. Após a leitura exaustiva dos sete textos, a constatação do material
sugestivamente arquetípico manipulado ali com imensa engenhosidade – “Também percebi
que, sempre que a criança chorava muito, ou se agitava, bastava Olga a pegar no colo e
começar a falar, que ela imediatamente se aquietava; e fitava o rosto dela, como se a
reconhecesse desde sempre.” (AS, p.100) –, colocado sobre um terreno instável onde pisam
todas as suas personagens, situado em uma envolvente ambientação simbólica, onde freqüente
é a negação do real palpável, requisitou para si essa abordagem junguiana, dada a similitude
entre os objetos de seus interesses, mesmo que separados pela distância que há entre a ciência
e a arte. É entendimento desta análise que nem a psicologia, tal qual a filosofia ou, ainda, a
sociologia, ou qualquer outro recurso humano preso a premissas racionais pode servir para
favorecer ou iluminar inteiramente os caminhos da arte. A adesão completa e sem cautela a
qualquer uma dessas ciências só daria conta de parte dessa tarefa, visto que aspectos
psicológicos, filosóficos, sociológicos, por exemplo, colocados dentro do caldeirão artístico,
passam a ser uma outra manifestação humana, de diversa natureza.
Outra observação que cabe ser feita diz respeito ao uso de dicionários de símbolos,
cuja utilização se restringe àqueles elementos cuja definição se sustenta inteiramente na obra
da escritora e não o contrário. Os conceitos de seus verbetes, quando citados, têm a finalidade
de ser apenas ponto de partida para argumentações mais profundas, ou justificativa primeira
de seu aparecimento no texto, dado o fato de que, por fazerem parte do patrimônio do
psiquismo humano, também, são, naturalmente, utilizados pela escritora, mesmo que sob um
peso funcional e artístico individuais
Como ilustração dessa concepção, parece bastante oportuna a citação do prefácio de O
grande livro dos símbolos:

Aqui, o objetivo é proporcionar um dicionário sucinto de símbolos com uma


história mais longa, muitos dos quais importantes para uma compreensão
mais harmoniosa do desenvolvimento do pensamento, da arte, dos costumes,
da religião e da mitologia humanos. ((TRESIDDER, 2003, p.8).
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Porém é um trecho anterior do mesmo prefácio que parece antecipar, com muita
precisão, o ponto de vista desenvolvido neste estudo, o que valida sua transcrição:

Alguns símbolos encapsulam as crenças mais antigas e fundamentais que os


seres humanos tiveram sobre o cosmo, seu lugar nele, como se comportar e o
que honrar ou reverenciar. Muitos têm implicações psicológicas. (Ibid., p.7).

No capítulo 3, em que se inicia o conteúdo propriamente específico defendido por esta


tese, são discutidas todas as conflituosas lacunas materno-filiais, conforme o salientado
anteriormente. Tal procedimento pretende se definir como a comprovação da principal
hipótese desta verificação crítica de que há uma presença não consciente por parte das
personagens, a despeito de ser essencialmente dominadora, que subjaz a todos os problemas –
conflitos, desequilíbrios, inseguranças – daí advindos e se constitui na causa verdadeira deles:
a cobrança da necessária realização psicológica do arquétipo materno.
No capítulo 4, são arrolados para verificação aqueles elementos da natureza, os quais,
ecoando o imaginário coletivo da humanidade como ligados à maternidade, mantêm a
coerência interna da obra por simbolizar a emergência incontrolável do referido arquétipo,
que, por esse modo, se introduz, de todas as forma artisticamente possíveis, em todos os
espaços narrativos.
No capítulo 5, sendo um tempo transcorrido e o sofrimento da infância,
principalmente, o chão por onde caminham as protagonistas no presente, este estudo não
poderia deixar de ir verificar o recurso do memorialismo como estratégia narrativa, suas
conseqüências e desdobramentos, seus efeitos estilísticos.
Finalmente, no capítulo 6, são identificados e descritos, em toda a sua extensão, os
inúmeros procedimentos, os quais compõem a indefinida e nebulosa atmosfera de
inconsciente que se visualiza nos textos, insinuativamente, e que já havia sido anunciada
desde o terceiro capítulo. Tal ambiente de inabitual configuração se apresenta como o
fundamental locus da trama narrativa, onde se movimentam personagens de delimitação
imprecisa, em circunstâncias imponderáveis, carregadas de grande ambigüidade, que, assim,
desenham um esgarçado espectro espaço-temporal.
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2 FUNDAMENTOS TEÓRICOS

A apreciação que aqui se define pretende aplicar os conceitos do estudioso suíço Carl
G. Jung, nascido em 1875 e falecido em 1961, o qual fundou a psicologia analítica, teoria
psíquica de base arquetípica. Colaborador de S. Freud durante alguns anos, dele se separou na
amizade e, principalmente, na linha de pensamento, o que motivou, na verdade, o
rompimento.
Seus conceitos e de outros estudiosos que com ele mantenham afinidade – a visão de
que o inconsciente humano, a par de uma parte pessoal, possui uma outra de base coletiva e
que liga cada ser a sua espécie e a suas raízes; a concepção de que tal inconsciente tem como
conteúdo os arquétipos, dados permanentes que são a base para os complexos que se formam
ao longo da vida particular; a noção de um organizador psíquico, o si-mesmo, que conduz as
experiências individuais sempre em direção ao equilíbrio – conceitos que se viram
convocados pela obra ficcional, desde que, no contato inicial, o sofrimento motivado pelo
vazio onde caberia a satisfação do arquétipo materno ficou evidente, foram solidamente
examinados antes do início da execução do plano deste estudo. Esclareceram aspectos
manipulados artisticamente na ficção de Lya Luft para comporem a estrutura de suas várias
tramas e apontaram um caminho seguro para seu entendimento, visto que ajudaram a
descobrir a natureza que possuíam muitas personagens, a decifrar a verdade de suas funções.
Em virtude desse fato, tais conceitos vão sendo utilizados como material
metodológico, ao longo do desenvolvimento, com maior ampliação, a cada passo e, à medida
que o processo analítico vai acontecendo, comprovando sua eficiência interpretativa, como
dar conta dos aspectos específicos de cada romance, mas acima de tudo, de esclarecer a obra
em seu conjunto.
Dentre os mais requisitados teóricos aqui utilizados, além do próprio Jung, podem ser
mencionados Erich Neumann e os esclarecimentos profundos sobre o arquétipo materno e
suas origens; Mircea Eliade, no que tem de iluminador das manifestações psico-simbólicas da
humanidade, de forma geral, e, particularmente, em relação à Terra – mãe primeira – e ao
andrógino, enfaticamente visualizado no texto luftiano; M. Esther Harding, em seu estudo das
ligações simbólicas materno-femininas com a natureza no imaginário humano; Sylvia B.
Perera no estudado que faz, sob uma perspectiva junguiana, dos mitos que focalizam a mulher
e, finalmente, Marie-Louise von Franz na aplicabilidade das mesmas teorias ao texto literário.
Estes apresentaram-se como fundamentais, sem prejuízo de outros escritores, cujas
obras vêm enumeradas no item das Referências, e que, pelo estudo de algumas questões mais
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específicas, também têm enorme validade para o desvendamento dos procedimentos de uma
obra essencialmente simbólica como é a da escritora gaúcha.

Tanto na aplicação da teoria que foi apreendida através da bibliografia lida quanto no
aproveitamento das definições simbólicas dos verbetes dos dicionários específicos
consultados, a primeira regra estabelecida na composição da análise ora em curso é que o
escritor é uma individualidade e que ele adapta, por conseguinte, as concepções coletivas a
seu propósito artístico e que só deve ser levado em consideração o material que atenda,
rigorosamente, ao desejo de desvendamento do próprio texto.
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3 ARQUÉTIPO MATERNO: A REPRESENTAÇÃO DA AUSÊNCIA

**minha bisavó reclamava que minha avó


era muito tímida
minha avó pressionou minha mãe a ser
menos cética
minha mãe me educou para ser bem lúcida
e eu espero que minhas filhas fujam desse
cárcere
que é passar a vida transferindo dívidas
(Martha Medeiros)

Seguindo a proposta deste trabalho, dos romances que compõem o corpus narrativo
estudado – As parceiras (1980), A asa esquerda do anjo (1981), Reunião de família (1982), O
quarto fechado (1984), Exílio (1987), A sentinela (1994), O ponto cego (1999) – são
ressaltados aqueles elementos de relevância significativa e que permeiam toda a obra,
algumas vezes, com aparentes modificações formais e funcionais.
A obstinação com que muitos desses fatores voltam aos textos, mesmo de um romance
para outro, ainda que as realizações narrativas se apresentem sob as mais variadas roupagens,
pode-se já adiantar, revela um elo que os liga fortemente: a ausência de realização pessoal do
arquétipo materno: “Não me despedi dela: estamos tão distanciadas que nenhum adeus se
ouviria por cima dessa fenda.” (AS, p.27). Assim, a variabilidade que assume essa omissão
nos diversos enredos só faz aumentar a importância desse elemento psíquico, apropriado pela
obra e tornado ficcional, o qual, por si só, já se caracteriza, como foi afirmado anteriormente,
pela forma metamorfoseada com que normalmente se apresenta. “Sombras encaixotadas,
vermes aflitos no sótão, vultos na memória. Tudo o que dizemos: metáfora da mesma coisa.”
(p.95), como diria a própria protagonista de As parceiras.
Para o leitor, porém, chegar à compreensão da transformação desse fecundo tesouro
psíquico, que, então, se apresenta como obra de arte, dessa aventura particular, cujas raízes se
aprofundam, também, no terreno coletivo do inconsciente humano, tornam-se necessárias, ao
longo do estudo, uma ou outra citação de alguns conceitos junguianos. Utilizados doravante
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como material metodológico, sua enunciação, porém, se caracteriza por ser superficial e
resumida, pois a análise, objetivou, isso sim, uma segura interpretação do fazer literário da
escritora e o alcance artístico dessa sua criativa produção.
Segundo os conceitos emitidos pelo eminente estudioso, principalmente, em Aion –
estudos sobre o simbolismo do si-mesmo (JUNG, 2000a) e Os arquétipos e o inconsciente
coletivo (JUNG, 2000b), o ser humano possui dois sistemas psíquicos, evidentemente,
interligados.
O primeiro diz respeito à psique pessoal. Nessa se insere o campo da consciência, cujo
centro é o “eu”, agente de todos os atos conscientes da pessoa, o qual possui livre-arbítrio,
ainda que restrito a esses limites.
Para o entendimento da obra ora examinada é importante ser ressaltado o fato de que,
segundo o fundador da psicologia analítica, o ego, centro da consciência, se relaciona com o
inconsciente através de uma “gravitação psíquica”: se, normalmente, ele é vontade e interesse,
que podem ser traduzidos em ação, quando ocorre uma diminuição causada por motivo de
desequilíbrio psíquico, condição em que se encontram todas as protagonistas – “Nazaré me
ronda, insinua, acha que ando sozinha demais, que me deito demais, na rede ou na cama, que
penso demais. Pensar tanto faz mal. Ela tem razão.” (AP, p.94) –, seus conteúdos são atraídos
pelos componentes energeticamente mais carregados do inconsciente, tornando-se
inconscientes outra vez:

Choro por tudo e por todos. Se não sair dessa depressão, não vou nem
poder ser mulher de Antônio, nem mãe daquele seu filho
problemático.
Choro como criança, rosto escondido. (E, p.31-32)

Essa atração pode manifestar-se em um simbolismo visível, em casos psico-


patológicos, sem embargo de traduzir-se, também, em mitos, o que reforça seu caráter
coletivo.
Mas além dessa utilização, praticamente involuntária, pode povoar, fartamente, de
forma extremamente saudável, através de um seguro domínio da imaginação, a literatura de
todos os tempos e todos os povos, situação em que surge, comumente, o herói que sucumbe às
trevas da noite, do abismo, do inferno ou é devorado por monstros, ou, mais modernamente,
em circunstâncias ligadas à realidade cotidiana, mas equivalentes em termos significativos.
Nos dois casos, uma análise profunda pode revelar o surgimento incontrolável de um
arquétipo, como o da Mãe Devoradora, substanciada na figura dessa personagem surgida
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sempre na fantasia humana – “Frau Wolf tiranizava a família toda...” (AAEA, p.18) – com
maior força energética que a do ego, cuja carga se vê, desse modo, sorvida.
Evidente em narrativas de alcance de grandes grupos humanos, a recriação desse
fenômeno, mesmo que de modo não intencional, também pode ser reconhecida na obra
examinada, como se verá, cabalmente, neste capítulo e no sexto, fato que, aqui posto de forma
sucinta, principia a revelar, na verdade, elementos marcadores dos enredos da obra, como se
comprova daqui por diante.

De repente, com o canto do olho pensei ter avistado sombras no espelho


sobre a cômoda. Estar sozinha me assustou: desci, sentei-me na pequena
mesa onde comia. (E, p.40)

Prosseguindo com a teoria utilizada, deve-se acrescentar que esse sujeito consciente
atinge seu limite todas as vezes que alcança o âmbito do “desconhecido”, ou seja, tudo quanto
se ignora psiquicamente: “Apenas um encontro de família: mas sinto-me como se estivesse à
beira de um lago, um rio, mirando a superfície calma. Nas profundezas, movem-se criaturas
estranhas. Se as contemplar, ainda serei a mesma pessoa? (RF, p.15).
Uma das partes desse desconhecido é o inconsciente pessoal, cujos conteúdos são
dependentes das experiências individuais, de causas recentes, e, mais ou menos superficiais, e
aos quais Jung denominou “complexos”. Murray Stein, analista junguiano, em sua obra Jung:
O mapa da alma, cita-lhe a definição da estrutura desses complexos como “sendo composta
de imagens associadas e memórias congeladas de momentos traumáticos” (STEIN, /s.d./,
p.55). Chama a atenção, além disso, o que é bastante significativo para a obra ora examinada,
para o fato de que é a emoção que une os vários elementos associados dos complexos.
Como se pode acrescentar, os conteúdos armazenados nessa camada da psique, tendo
sido vivenciados, apesar de esquecidos, têm possibilidade de se tornar conscientes: “Tudo
nasce da minha fantasia, da memória; da funda garganta do pensamento, onde nem eu
penetro, mas de onde sou parida todos os dias, dormindo e acordada: é de lá que venho, dedos
enredados nos fios que transformo em tapetes.” (AS, p.14)
Torna-se de fundamental importância, então, a observação de que a trama
desenvolvida pela escritora gaúcha em cada romance caracterizaria, a princípio, lesões em
suas criaturas ficcionais nesse nível do psiquismo, o que é, mais adiante rediscutido. As
deficiências afetivas reconhecidas em toda personagem central, em especial, no que diz
respeito a sua mãe pessoal, alimentaria os complexos que as acompanham e aparecem como
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descargas emocionais perturbadoras da consciência, ao longo de toda a trajetória: “Minha mãe


apenas me encarou com o seu ar de mais funda rejeição.” (AS, p.28).
Do mesmo modo como ocorre na experiência com o ego, na realidade, o fato de que o
surgimento do complexo materno, nas narrativas investigadas, se dá sempre envolvido em um
tom muito emocional é bastante revelador e fundamental.
Essa parte psíquica particular, ainda pode ser passível de verbalização e de entrar em
contato com as circunstâncias externas do mundo. Pode ser identificada na enunciação dos
nomes das personagens, nos acontecimentos narrados e suas relações e é a responsável pelo
encaminhamento superficial da estrutura do enredo, através da memória supostamente
reabilitadora das protagonistas. Faz retornar da infância, um passado obsessivo, personificado
nas mães, nas avós, nas irmãs e nas demais figuras implicadas.
Deve-se, inclusive, a essa camada individual do inconsciente de quem conta, segundo
um efeito narrativo da escritora, o envolvimento do fato passado recuperado, carregado de
emotividade, em uma aura de veracidade, por assim dizer, a qual atrai o leitor, como uma
“isca”, para a sua perspectiva de visão, sem levar em consideração que aquela é uma
interpretação unilateral: “Acho que agora estou assim. Um corpo com memória, feito sótão
cheio de moradores esquisitos. Ossadas, flores, cartas, horas de amor, delírio e morte. E a
esperança, bruxa fantasiada de anjo-da-guarda companheira e traidora.” (AP, p.112)
Mas, a respeito desses conteúdos do inconsciente privado, os complexos, devem ser
acrescentadas outras observações do mesmo Stein:

O elemento central é a imagem nuclear e a experiência em que o complexo


está baseado é a memória congelada. Mas resulta que esse núcleo compõe-se
de duas partes: uma imagem ou traço psíquico do trauma originador e uma
peça inata (arquetípica) que lhe está intimamente associada.(/s.d./, p.55)

Segundo a visão analítica acima desenvolvida, todo e qualquer complexo contém,


além do material adquirido nas experiências pessoais de toda a vida, um componente
impessoal, arquetípico, o que vale dizer, inato, primitivo. Na hipótese levantada por este
estudo, é esse elemento que, embutido no sofrimento de cada personagem principal, encadeia
toda a obra ficcional de Lya Luft.
Para o esclarecimento deste novo dado que passa a ser discutido – os arquétipos – ,
faz-se necessário retomar o contato com os conceitos junguianos que ajudaram no
entendimento da obra literária. É preciso ser dito, que há uma outra parte dessa camada
psíquica desconhecida e que contém as camadas mais profundas da história racial, visto que
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um segundo sistema psíquico abrange o inconsciente de caráter não-individual, uma camada


que é herdada e universal: “Nunca se sabia o que poderia acontecer numa hora dessas, noturna
e primitiva, hora de horrores.” (AS, p.70)
É no inconsciente coletivo que se encontram os arquétipos, ou seja, elementos
formativos preexistentes à pessoa e a priori inconscientes e que, também, podem modificar a
consciência.
Tais conteúdos desse inconsciente, os arquétipos, nunca chegam, de forma pura, à
consciência e são formas preexistentes, tipos arcaicos, primordiais, portanto imagens eternas e
idênticas em todos os seres humanos, padrões de comportamento, que existem desde os
tempos mais remotos e estão presentes em todo tempo e lugar, para todos os indivíduos.
Desse modo, se evidencia a imensa premência do apaziguamento do arquétipo materno, visto
que esses conteúdos têm inata aptidão para agir sobre a consciência.
O entendimento desse segundo elemento de procedência coletiva, que se combina aos
traumas pessoais para formar o conjunto do complexo em seu todo, torna possível, como
acredita e defende esta Tese, o reconhecimento da origem da visão do sentimento de
rejeitadas, nutrido pelas protagonistas a respeito das mães pessoais, bem como para o
desenvolvimento de avaliações sobre o comportamento de outras personagens estritamente
ligadas à questão – Lilith, Mateus, Gabriel, entre outras. A experiência vivencial das
protagonistas, visto que passível de variação em cada caso, estaria sob o componente
arquetípico do complexo materno, estabelecido como o grande núcleo interconectivo do
sofrimento de todas elas, o responsável capital pelas possíveis distorções avaliativas das
circunstâncias maternas.
Alguns elementos mais profundos da mente humana, sejam em sonhos ou fantasias
incontroláveis, chegam, na narrativa, à consciência das personagens centrais, através desse fio
de Ariadne, invertida a funcionalidade do mito, visto que confunde as protagonistas, mistura
seu caminhar, no encontro com aspectos desconhecidos e não individuais. Participam desse
âmbito o palhaço, a bruxa, a voz do telefone, a imagem que passeia pelo espelho.
A psique individual da personagem narradora e sua maneira de apreender os
acontecimentos entra em confronto com essa parte não apreensível, sem controle possível por
um ego enfraquecido, como é o caso das sofredoras figuras nucleares examinadas, e,
verdadeiramente, instaura uma segunda versão possível. O Anão de Exílio, como se verá no
capítulo 6, tem o papel preponderante de estabelecer esse elo e desfazer os enganos
enunciados pela personagem, intencionais ou não, que são evidenciados na trama.
Sobre o fato descrito, são oportunas e esclarecedoras as palavras transcritas:
20

A “imago da mãe” é o complexo da mãe, distinto da mãe real. O ponto é que


o complexo é uma imagem e, como tal, pertence essencialmente ao mundo
subjetivo; é feito de pura psique, por assim dizer, embora represente também
uma pessoa, experiência ou situação real. Não deve confundir-se com
realidade objetiva – com uma outra pessoa real ou um corpo material. O
complexo é um objeto interior e em seu núcleo está uma imagem. (STEIN,
/s.d./, p.51)

Esses elementos, que afloram das profundezas, vão indicando os aspectos encobertos
da face mais externa voltada para o leitor e que, muitas vezes, podem não corresponder à
verdade ou ser uma avaliação desfigurada pela fantasia da protagonista. É o próprio texto
luftiano, portanto, que vem demonstrar a justeza e comprovar a aplicabilidade da definição
anterior:

Ou sempre fui injusta com ela, que hoje vegeta na aridez de sua mente
obscurecida? Uma coisa é o que somos, outra o que vêem de nós: sei disso,
porque, apesar de todo o nosso amor, meu filho e eu habitamos zonas
diferentes. O que é bom ou ruim? Quem decide? (AS, p. 16)

Os arquétipos são processos energéticos ou forças condutoras que exercem influência


no interior da mente. Tornam-se visíveis à consciência unicamente através dos símbolos que,
aproveitando-se do plano pictórico instaurado pela consciência, apresentam-se como
personalidades em sonhos e fantasias do inconsciente, terminando por agir profundamente
sobre aquela. Nos textos analisados, essas imagens estão vivamente presentes e podem ser
entendidas, portanto, como único recurso colocado à disposição do psiquismo de suas
personagens, o que parece facilitar o embelezamento dos textos ao serem largamente
utilizados como material estilístico.
A chegada dos arquétipos à consciência surge de uma compulsão sobre o indivíduo e
se impõe como uma reação instintiva a problemas insolúveis, uma reação compensatória que
parte desse inconsciente coletivo. Em Exílio, por exemplo, a emergência do arquétipo materno
se dá de várias maneiras diferentes, inclusive através da figura do citado Anão, voz crítica e
auxiliadora, perturbadora da consciência, cuja imagem vai se anunciando em textos
precedentes e surge ali de forma inquestionável, com sua atuação entre o burlesco e o
julgador. Tem uma consistente vinculação à voz do telefone e à imagem do espelho,
misteriosa presença, no mesmo texto, que é interpretada, no nível mais consciente, pela filha
como uma reaparição persecutória da mãe.
Como diz Marie-Louise von Franz, em seu A interpretação dos contos de fada (2003a)
uma imagem arquetípica, no entanto, não é somente um pensamento padrão e precisa ter
21

realmente um valor fortemente emocional e afetivo para o indivíduo para que tenha vida e
significação. São exatamente essas condições em relação à vivência ficcional das
personagens, a intensa comoção que despertam, que possibilitam a discriminação de tais
imagens.
Todos os arquétipos têm um caráter positivo, favorável, luminoso, que aponta para o
alto e outro que aponta para baixo, em parte negativo e desfavorável, como se vê por toda a
obra que é objeto desta análise.
Como o sempre repetido em estudos feitos por Jung e pelos que levaram adiante sua
obra, a presença dos arquétipos pode ser comprovada nos contos de fada, bem como nos
sonhos e fantasias modernos, os quais, também, apresentam esse material coletivo, que surge
praticamente por toda parte, tratando-se, então, de fantasias normais.
Assim como os demais arquétipos, as características do elemento que Jung define
como o materno podem ser encontradas, de forma apreensível, em todas as épocas, nos mais
imprevisíveis setores da vida cultural humana, metamorfoseado tal elemento em uma
variedade incalculável de aspectos: é a mãe propriamente dita, estendendo-se até a avó (é com
essa funcionalidade que se pode encarar Frau Wolf, de A asa esquerda do anjo, Catarina de
As parceiras, Ana, de A sentinela), a sogra, a madrasta etc –; a meta da salvação – o paraíso, o
Reino de Deus –; a Igreja; a Universidade; a cidade ou país (mesmo recebendo o nome
inadequado de pátria e neste sentido, é relevante a dupla rejeição sofrida por Gisela, em A asa
esquerda do anjo, por parte de dois símbolos maternos: de um lado a pátria dos brasileiros, de
outro, sua família alemã); o Céu; a Terra (deve-se, já, atentar para a enorme importância de tal
simbologia, tendo em vista os comentários posteriores que serão feitos a respeito de Olga em
A sentinela, por exemplo.); a floresta (fundamental para o enredo de Exílio e que se configura,
claramente, em suas ligações com o arquétipo); o jardim, a gruta (esse elemento de extrema
relevância em A sentinela); a árvore (é um símbolo recorrente em Lya Luft, desde As
parceiras e como símbolo materno em Reunião de família); o mar (em As parceiras e Exílio)
e as águas quietas; a matéria (com a mesma raiz de mater); o mundo subterrâneo (tal aspecto
mostrar-se-á importante em Reunião de família e Exílio) e a Lua (tão simbolicamente
surpreendida em Exílio, A sentinela e O ponto cego), dentre outros. A natureza, desse modo,
englobando todos os elementos citados acima, como se vê no capítulo 4, é associativamente
vivenciada como maternal na imaginação humana, por ser aquela que contém, que gera e
nutre, acolhe e protege.
Vale a pena insistir no argumento de que, nas tramas em exame, as protagonistas têm
extremado seu sofrimento em face de uma relação insatisfatória com a mãe, dado que,
22

avaliado na superfície, se ligaria à sua psique pessoal. No entender deste trabalho, porém, o
aumento desgovernado desse sentimento se daria, verdadeiramente, pela ativação involuntária
do componente que parte daquela camada inconsciente pertencente à espécie humana e sobre
a qual o indivíduo não tem controle. Presos a tal origem estão o farfalhar dos galhos da árvore
cortada em Reunião de família, o espectro que surge ao espelho em Exílio, a veranista de As
parceiras, todos os rostos de personagens mortas, mais pressentidos que vistos, nas diversas
narrativas: “Sinto os olhos úmidos, fitando a janela. De repente, levo um susto: por trás da
vidraça, um rosto. Nitidamente um rosto que me encara. Não pode ser Evelyn: é um rosto
pequeno demais. E me observa.” (RF, p.22)
Para que o caminho dos processos pelos quais passam as personagens seja melhor
acompanhado é necessário acrescentar à discussão, ainda, certos conceitos veiculados pelo
psicólogo analista Erich Neumann em seu livro A grande mãe (/s.d./), mesmo que de forma
sintética.
Explica ele que, tal qual o ser humano primitivo, a criança recém-nascida, dominada
pelos instintos, é quase que somente parte da espécie, e encontra-se sob o domínio daquilo
que, por suas características fundamentais, se pode entender e nomear, apelando-se para a
grande cultura humana, como a Grande Mãe. Tal situação original da psique pode ser vista,
ainda sob o mesmo direcionamento, como matriarcal, relacionada à função de conter, ou seja,
bastante presa à necessidade de alimento, proteção e calor, situações explícitas ou
literariamente simbólicas, como fica evidente até em uma observação superficial, no que diz
respeito às carentes personagens centrais das obras ora examinadas: “Penso infantilmente, que
bom que Irmã Cândida está viva. Se tudo der errado, a gente corre para o colo da mãe.” (E,
p.145).
Entretanto, à medida que ocorre um crescimento no ser humano, individual ou
historicamente falando, devem ser desenvolvidas as funções do gerar e do libertar. Se uma
pessoa, não se encontra mais na situação original da criança e não consegue, sadiamente,
chegar ao desenvolvimento de tais funções, o conter, como conseqüência, acaba sendo
experienciado, negativamente, como reter e fixar, podendo chegar ao letal do Grande
Maternal, o de aprisionar: “- Você está botando fora um homem incrivelmente bom, paciente,
e amoroso. Nora, quando é que você vai crescer?” (AS, p.102). Pode-se, facilmente,
reconhecer, em todos os romances doravante apreciados, para as protagonistas, essa condição
de congelamento dentro do passado, de encarceramento no interior da própria infância. “-
Esse amor de criança carente na sua idade é coisa de psiquiatra.” (p.28) diz, exemplarmente, a
personagem Olga para Nora, em A sentinela.
23

É possível surgirem, daí, símbolos de retenção, como nos mitos, o que, também, é
reconhecível nos sonhos de Alice, em Reunião de família ou nos sentimentos de Nora, filha,
em A sentinela: “Ainda quero extrair-lhe do coração esse parto que ela não me deu, essa
maternidade verdadeira; mas isso, nada pode lhe arrancar.” (p. 26)
O arquétipo materno, esse conteúdo do inconsciente coletivo, segundo Jung, por ter
presença basilar no psiquismo humano, revelar-se-ia como uma força irrefreável e
transbordaria, portanto, até para obras de arte como a aqui apreciada, pois, como confirma
Neumann (/s.d./, p.29), “As imagens simbólicas do inconsciente são a fonte criativa do
espírito humano em todas as suas realizações.”
Não é à toa, portanto, que o primeiro romance estudado se intitula As parceiras: de
todas as ligações possíveis que justificam o título – e elas são inúmeras, como logo se verá – e
das ligações que unem todas as personagens femininas, o elo materno, que reforçaria a
cumplicidade mulher/mulher, traduzida na relação mãe/filha, passa a ser focalizado em sua
necessidade de realização e como fundamental na estrutura narrativa.
Parece muito ilustrativo citar o que diz, ainda, o mesmo Neumann, na mesma obra
anteriormente citada: “O grande motivo essencial dos Mistérios de Elêusis e, portanto, de
todos os mistérios matriarcais é a heuresis, a redescoberta de Core por Deméter, a reunião de
mãe e filha.” (p.268.)
E na página seguinte, a complementação do comentário parece justificar com
perfeição o surgimento dessas figuras femininas desequilibradas, alheias à vida e cujos
destinos se caracterizam pela impotência de conduzirem para adiante esse elo materno
interrompido. “Entretanto, o verdadeiro mistério através do qual se restabelece, enfim, a
relação primordial mas em um novo plano consiste na filha que se torna idêntica à mãe, ela se
torna a mãe transformando-se, assim, em Deméter.”
Neste capítulo, é feito o estudo dos vários elementos simbólicos, os quais, até em
pequenos detalhes do texto, reafirmam essa referida causa – ausência/ presença do arquétipo
materno –, linha que conduz os textos em questão e a leitura crítica aqui efetuada. Tais
elementos penetram em todos os recursos artísticos postos em ação pela escritora, tanto em
relação às personagens trazidas à arena narrativa, quanto aos elementos de um suposto cenário
que se descaracteriza como puramente ambiental, para ser utilizado em proveito do desenrolar
da trama, como expressão de sua causa motriz.
Vale chamar a atenção, então, da perfeita afinidade do tema com sua realização nas
obras. A cada romance, através das mais variadas manifestações, reafirma-se aquela
impreenchível lacuna. A obra se gesta, desse modo, dentro de uma absoluta coerência, como
24

um todo orgânico. O leitor é colhido e envolvido no sofrimento das personagens, em todos os


níveis em que a criação literária se desdobra, por todos os poros em que a recriação desse
arquétipo transpira.
Examinar os romances que são o objeto literário deste estudo é, portanto, ampliar o
significado da palavra “vazio”. A tal ponto isso se dá, que, em A asa esquerda do anjo, a
corporificação ficcional de uma mãe carinhosa, diferente das descritas nos demais romances,
não consegue satisfazer as necessidades previstas pelo arquétipo, em que a meiguice é apenas
um desses requisitos: “Eu me sentia outra vez falhada e, ao toque insuficiente da mão morena
e fina, chorava ainda mais, pensando que não me entendiam: não era sol, era tristeza e raiva
de mim mesma.” (p.33).
Essa insuficiência materna, entretanto, não se limita a preceder as protagonistas e
atingi-las, apenas, como filhas. Ela se expande para o futuro, como foi dito, utilizando as
mesmas personagens, que, seccionado o citado laço Deméter/Core, impossibilitam-se como
mães, ou seja, continuam a inviabilizar a plenitude do arquétipo.
Desde a maternal Alice de Reunião de família, que, entretanto, inveja a maligna e
ousada Alice do espelho, passando pela doutora de Exílio, que se afasta de seu filho e recusa-
se, também, a ser mãe do filho doente do amado; por Anelise de As parceiras, cujos abortos
foram diagnosticados por um médico como rejeição; pela mãe do Menino de O ponto cego,
igualmente abandonado; somando-se à desprezada Nora de A sentinela, que desenvolve pelo
filho um amor sufocante; e, ainda, a fria e indiferente personagem feminina central de O
quarto fechado – “Nunca fui mãe dele, admitiu Renata, um mar represado no coração, um
mar tão amargo.” (p.26) –, mãe ausente de seus dois filhos gêmeos, que, ansiosos de amor,
criam para si uma “caixa de vidro”, na qual só consegue penetrar a materna morte; até chegar
à Gisela, em A asa esquerda do anjo, solitária, e inteiramente dominada por aquela imagem
negativa do arquétipo, manifestada na avó, todas as personagens femininas nucleares levam
para adiante o ciclo materno não inteiramente edificado: “Meu cabelo está grisalho. Sou uma
das solteironas da cidade. Fui amada, mas não me entreguei!” (p.124),
E a face distorcida dessa frustrada ligação afetiva que deve ser construída desde os
primeiros anos da vida de um ser humano sempre emerge, mesmo nas relações amorosas:
“Antônio me abraça, me acarinha, o que me deixa animada. Mas nada parece suficiente para
tapar esse escancarado vazio que me ameaça, nem eu sei direito por quê.” (E, p.28)
Os relacionamentos que terminam ou, ainda, aqueles que não se efetivam
satisfatoriamente, passam para segundo plano e surge a verdadeira restrição sentimental,
aparentemente adormecida, que aguarda, no mais profundo do inconsciente, um momento
25

extremo de debilidade psíquica no estado normalmente crônico em que se encontram os seres


ficcionais: “Deitada no escuro, enquanto Antônio dorme, lembro, mais que tudo, minha mãe
morta.” (E, p.74) ou adiante: “Antônio dorme: minha memória se revolve, as patas
descarnadas abrem as cortinas, aparece o rostinho de Lucas.” (p.128).
“Com muita freqüência não há distinção entre a necessidade que a mulher sem carinho
tem da própria mãe ou de um parceiro masculino.”, diz Sylvia B. Perera (1985, p.63), em seu
livro Caminho para a iniciação feminina, afirmativa que se adequa aos comentários que vêm
sendo colocados e explica as palavras seguintes de Olga em A sentinela: “Mas ainda acho que
todo esse amor que não teve de sua mãe, que é uma alma árida...todo esse afeto; você vai
querer extrair de João, ou de quem quer que mereça o seu afeto; e vai quebrar a cara. (p. 84).
Pode-se observar que as personagens masculinas, com exceção dos “dúbios”, cujo
alcance narrativo é adiante avaliado, não têm uma condição efetiva na vida das protagonistas.
É de se salientar que os pais, mesmo aqueles que estabelecem uma vinculação de afetividade,
não conseguem superar a insuficiência sentimental e tornar suas filhas seres adultos
equilibrados, o que evidencia, desse modo, a incomensurável importância que o arquétipo
materno assume no texto. E, quando despóticos como o professor de Reunião de família, não
é exatamente por causa deles que os filhos choram, limitando-se sua atuação a trazer mais
rapidamente para cima aquele algo incontrolável que se revolve no fundo do já conceituado
“desconhecido”.
Em Exílio, a palavra orfandade permeia, insistentemente, todo o texto e vai se
imiscuindo em todos os relacionamentos, traduzida em Lucas, o filho, ou no relacionamento
com a freira, ou, ainda, fixando-se como índice, ao revelar a exata interpretação para o Anão,
inserido no círculo materno: “Algumas vezes o Anão não aparece nas refeições; sem ele,
sinto-me mais estrangeira e mais órfã na Casa Vermelha.” (p.87).

3.1 O colo

Recorrência, nos textos apreciados, de alta relevância por todo o significado que
encerra, é o colo materno – “O que vai ser de mim? Quem vai me dar colo de mãe, quem vai
me confortar e manter afastados os horrores todos?” (OPC, p.151). Como metonímia, na obra
em questão, aponta, sintomaticamente, para o aprisionamento na função de conter daquela
situação original matriarcal, citada por Neumann, perfeita tradução artística da teoria que ali
desenvolve e, portanto, revela-se um recurso não acidental em um texto que tem suas bases,
precisamente, nessa questão.
26

Antes de se sondar o texto literário propriamente dito, é necessário ser chamada a


atenção para o fato de que essa imagem, que tem fincadas raízes na psique humana e que se
revela na projeção costumeira sobre a mãe pessoal, pode ser comprovada, concretamente, nas
mais antigas e primitivas esculturas encontradas (Ver anexo 2, pág. 217):

Quanto aos ídolos – amplamente espalhados na Eurásia, desde os Pirineus ao


lago Baikal – de formas pesadas, neles se acentua o que evoca a
feminilidade: seios excessivos, vulvas muitas vezes abertas pelo menos até o
umbigo, enormes nádegas. Interpretam-se como Deusas-Mães, poderes
supremos de vida que presidem à reprodução das espécies animais e
humanas. (LÉVÊQUE, /s.d./, p.19)

A Grande Mãe, enquanto mãe e terra-mulher, é o “trono em si” e


caracteristicamente o “útero” (a maternalidade) do Feminino, não é somente
sua genitália, mas toda a extensa superfície das coxas da mulher sentada, o
colo onde a criança que ali teve origem senta-se como num trono. “Ser
levado ao colo” como “ser levado ao seio”, são expressões simbólicas da
aceitação da criança e do homem pelo Grande Feminino. (NEUMANN,
/s.d./, p.92)

Desse modo, a idéia de proteção subentendida no colo e que no texto luftiano


geralmente vem ligado a materno, perfeitamente justificada dentro da linha narrativa
desenvolvida, pontua todos os textos ficcionais da escritora: “Vontade de mãe: meu anseio tão
antigo, tão antigo; quem me tomaria nos braços, quem me pegaria no colo, quem lavraria
minha alma para nela brotar uma alegria duradoura?” (E, p.28).

É a personagem adulta de Exílio, ecoando, ainda, o mesmo sentimento de desamparo


revelado na infância, traduzido na frase “- Mamãe, Mamãe, deixe eu sentar no seu colo.”
(p.134), quem permite descobrir o estado de aprisionamento na função primitiva do conter.
Todavia é o trecho seguinte da mesma página, de colossal força trágica, em relação a um
pedido de colo negado, que, sobre se constituir em resumo sentimental do romance de onde é
transcrito, equivale a um emblema magnificamente bem urdido dos temas de todas as obras
sondadas: “Mijo em minha mãe, num espasmo de alegria e humilhação profunda.”

A representação ideal do elemento aqui estudado está naquela avó paterna de Exílio,
em cujo retrato a personagem central se reconhece – “Estou no colo dela, com aquele ar de
órfã com que devo ter nascido.” (p.165) –, avó que, como se vê mais adiante, traz em si a
representação primordial, arcaica, do colo relacionado à Mãe-Terra: “Tudo em casa deles era
diferente da nossa: menos sofisticado, menos misterioso, mais vital. Pão feito no forno;
27

verdura da horta; lençóis ásperos; mãos nodosas mas firmes, que gostavam de botar a gente
no colo.” (p.166)

Outro elemento assíduo à construção luftiana, semanticamente relacionado ao item


discutido neste segmento e cujo valor, justamente por isso, pode ser facilmente desvendado é
o trono. Sua utilização artística desdobra-se, apenas, como uma das pontas do núcleo
significativo gerador de toda a obra e que está latente no discurso final daquele menino
abandonado pela mãe de O ponto cego: “Impossível narrar melhor, pois estou sendo
desmontado, desenrolado, destronado e relatado como jamais pensei.” (p.152)

Em A sentinela, a idéia de "entronização" aparece diversas vezes, até mesmo em


relação ao enigmático retrato de Lilith, dominando a sala. A interseção da concepção de
"colo" e de "trono", na narrativa da protagonista adulta, norteia todo o envolvimento de Lilith,
a filha eleita, e dela, a desprezada, com aquela pequena gruta, a qual completa o símbolo
maternal, conforme observações feitas no item 4.3, e estabelece a verdadeira importância do
segundo.

Na obra da qual este estudo tem extraído conceitos fundamentais para o entendimento
das narrativas analisadas, Neumann, diz que "No ritual e nos costumes, sentar-se sobre
alguma coisa tem o significado de 'tomar posse' daquilo." (p.92), como introdução para o que
acrescenta na mesma página:

Não é por acaso que o nome da maior deusa-mãe dos cultos antigos seja
“Ísis”, o assento, o trono, cujo símbolo ela trazia sobre a cabeça; e o rei ao
“tomar posse” da terra, da deusa-mãe, age de acordo com o sentido da
palavra, posto que senta-se no colo daquela (sobre o seu útero).

Há, como se pode perceber, um vínculo estreitamente estabelecido por Nora entre a
preferência de Elsa pela filha primogênita e o domínio, por aquela, do trono da gruta, o que
produz, como conseqüência, todo o seu sofrimento.

Ainda haverá, no fundo da nossa gruta uma pedra redonda? Que servia de
trono para Lilith, a rainha , em nossas brincadeiras, quando eu era a escrava
e Lino o bobo da corte; e tínhamos de prestar homenagem a Lilith
entronizada na pedra... (AS, p.37)

O encadeamento de outro recurso metonímico, o seio, estendido ao leite materno, vem


reforçar o “colo vetado”, oposto à idéia de trono como posse. É na tradução da recusa em
28

amamentar, que se pode compreender o relacionamento de Renata de O quarto fechado e os


filhos – "Era verdade: um ato doloroso e cansativo que, inexplicavelmente, parecia desagregá-
la ainda mais. Aquelas duas bocas sugavam uma substância irrecuperável, ela não conseguiria
se recompor.” (p.45) – ou a dor da protagonista de Exílio, além da loucura de seu irmão:
“Gabriel certamente bebera um pouco desse sangue, denso e cálido como o seio que tanto
precisara e que lhe fora recusado. Sempre nos disseram que fomos alimentados com
mamadeira.” (p.77)

Mas parece ser o trecho relacionado à tão significativa Mamãe, o que apresenta a mais
perfeita definição artística para esse sonhado objeto materno, de tão profunda raiz no
imaginário humano. O título do romance no qual a personagem se insere – O quarto fechado
– pode ter, desta maneira, um dos possíveis significados desvendados, no que diz respeito à
protagonista e seus filhos, o que acolheria de vez as conclusões aqui desenvolvidas, ao
anexar-se, tal qual sinônimo, à cadeia dos termos ora citados: “Mamãe acolhera Renata
calidamente: seu peito, roído, era um aposento arejado onde caberiam Renata e seus dilemas,
os futuros filhos. As dores e medos de todo o mundo pareciam caber folgadamente nele.”
(p.58)

A interdição, então, desse “aposento arejado” tem valor de chave significativa no livro
editado posteriormente – “Dorme muito durante o dia; ao menos, fica trancada no quarto, para
mim o mais delicioso lugar da casa; mas onde só entro escondida, quando ela não está. Porque
minha mãe detesta que lhe invadam a privacidade.” (p.18) –, pois funciona, textualmente,
como um reforço qualificativo da inacessível mãe de Exílio: “De nossa mãe, lembro o abraço
negado, o olhar fugidio, o sorriso ausente...” (p.74) .

A tentativa do apossar-se da mãe, por seu quarto, através do “entro escondida, quando
ela não está”, pode ser equiparada, no alcance expressivo, à entrada na gruta, em A sentinela,
quando da ausência de Lilith, guardiã e dona, enfim, da figura genitora. “O retorno ao útero é
expresso quer pela reclusão do neófito numa choça, quer pelo fato de ser simbolicamente
tragado por um monstro, quer pela penetração num terreno sagrado identificado ao útero da
Mãe-Terra.”, diz Mircea Eliade, em seu estudo sobre o retorno coletivo ou individual às
origens.(ELIADE, 2000, p.75)

É, ainda, compondo o leque de manifestações simbólicas da idéia de colo, resumo


afetivo de mãe/ventre, como se sugeriu em “trono”, “gruta”, “seio” e “quarto”, que se
evidencia a imagem de “casa”. É de Gaston Bachelard, que diz que “todos os lugares de
repouso são maternais” (/s.d./, p.95), no capítulo sobre a casa onírica, em A terra e os
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devaneios do repouso, a citação seguinte: “A intimidade da casa bem fechada, bem protegida,
reclama naturalmente as intimidades maiores, em particular a do regaço materno, e depois a
do ventre materno.”(Ibid., p.94-95).

A tentativa frustrada de proteção e repouso resumidos nessa casa/colo – “Respiro forte


como se tivesse corrido. Por que fui sair de minha casa, da minha vida tão certa?” (RF, p.91)
–, partindo do inconsciente, incontrolável, pode ser identificado em um sonho de Exílio,
estendido o símbolo, pela protagonista, até si mesma como mãe:

...Preciso urgente construir uma casa para Lucas; um abrigo qualquer. Só


consigo escavar a terra com as unhas, tentando abrir uma espécie de
caverna; cova. Na terra preta e úmida, grudenta, surgem escorpiões,
vermes; venço qualquer repulsa para salvar meu filho, revolvo a terra
freneticamente... (p.55)

Adiante, uma outra passagem, também de conteúdo onírico, complementa e clarifica a


anterior, marcando, sem possibilidade de erro, as diversas faces com que desponta, aqui e ali,
o simbolismo materno: “...Tudo terrivelmente errado. Alguém coloca nas minhas mãos o bebê
que preciso meter nesse ventre aberto, mas não é um bebê: é o Anão, encolhido, nu, sem
chapéu...” (p.194)

Um último elemento vem compor a prolongada lista que, a cada nova inserção, aponta
para o mesmo símbolo: a cadeira, ainda da avó, de A sentinela – “É minha; gosto de me
embalar nela; é o colo de mãe que posso ter.” (p.95). Dos vários citados anteriormente, é,
talvez, o que melhor complete, enfim a questão, retomando e sintetizando todos os elementos
anteriores.

Volto para a cadeira de balanço de Ana, tosca, feita à mão há mais de um


século. Sempre que me embalo penso em quantas mulheres terão feito o
mesmo, nesta mesma cadeira, em outros quartos de outras casas; embalando
filhos no colo, como Ana contava ter feito com meu pai. (p.94)

São as definidoras palavras de Neumann, mais uma vez, unindo a proteção do colo à
afetiva conquista do trono, objeto que intensifica o valor da união aqui examinada, que vêm
concorrer para a compreensão definitiva do ponto ora discutido, ao encadear esse último
elemento, numa síntese, aos demais:
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A lembrança da forma humana na cadeira maternalmente receptiva foi


preservada até os dias de hoje, quando nos referimos às pernas, aos braços e
às costas da mesma. Pode-se concluir que as imagens primitivas da mãe-
trono, do trono como mãe, da criança “entronizada” ainda estão bem vivas
nas profundezas da psique do homem moderno... ( /s.d./, p.93-94)

O encerramento da questão ora avaliada pode ser bem resumida, finalmente, no


momento derradeiro de As parceiras, quando a protagonista, liberta de seus medos e, naquele
morro, já despojado dos mortos, tantas vezes subido, símbolo de conscientização, sentada
naquele chão, como trono, como colo de Mãe telúrica – “Encolho as pernas, abraço os
joelhos, encosto a cara no brim áspero da calça” (p.148) –, efetiva o idealizado encontro com
a avó Catarina, com a qual atará as duas pontas do círculo materno aberto há, pelo menos, três
gerações ou na expressão “aninhar num regaço transitório”, referente à floresta, ao término da
narrativa de Exílio

3.2 As mães substitutas

Na trajetória das personagens luftianas, o sentimento de insuficiência no que diz


respeito a essa mãe da realidade externa mobiliza, como um todo, seu psiquismo,
estabelecendo uma conexão entre a consciência e o inconsciente pessoal. Aprofunda-se até o
inconsciente da espécie, sua verdadeira raiz e origem, como já foi dito anteriormente. Surgem
de lá todos os seus arcaicos símbolos, como se depreende do material artístico tão
engenhosamente manipulado pela escritora, articulado para compor a verossimilhança de uma
situação humana que, já pelo absurdo sofrimento decorrente, beira, então, o inverossímil e,
assim, cumprir seu papel de emocionar o leitor.
As mães substitutas são personagens femininas que desempenham esse papel em
referência às personagens, tendo uma assiduidade garantida na estrutura dos enredos, apesar
de não preencherem o sentimento de satisfação e, desse modo, não conseguirem compor as
necessidades arquetípicas, funcionando, em muitos casos, como elemento exacerbador dessa
falha não preenchível:

As Tias vinham todo dia cuidar de mim, me enchiam de agrados, me


consolavam – me fazia bem chorar escutando seus passinhos ao redor da
cama: alguém se importava, alguém cuidava de mim outra vez. Mas não era
a mesma coisa, não era o mesmo colo, não eram o perfume e a bondade dela.
(OPC, p.149)
31

Personagens como as Tias, de O ponto cego, Dora de As parceiras ou Olga, em A


sentinela, funcionam claramente como mães provisórias. Ao contrário das primeiras,
nomeadas pelo substantivo comum e valendo, apenas, pelo conjunto, as duas últimas,
especificadas em suas individualidades, são forte apoio para as desequilibradas protagonistas.
Têm como característica comum o carinho e a benevolência nos relacionamentos. Estão
separadas as duas, porém, pelo desconforto vivencial de Dora, traduzível na amargurada
atmosfera de mundano que a cerca, contra a ligação forte da irmã de A sentinela com os
instintos primevos, com a natureza, um contentamento no que diz respeito à vida, uma
positividade, que a erige ao patamar de modelo materno dentro da obra.
As personagens avós precisam ser citadas neste segmento. Embora Frau Wolf, de A
asa esquerda do anjo e as avós de A sentinela e Exílio sejam tratadas em capítulo à parte, por
suas especificidades, é importante salientar suas vinculações ao arquétipo materno.
Frau Wolf e Catarina de As parceiras têm um papel fundamental na trama dos
romances dos quais fazem parte, com forte influência nos destinos das protagonistas. No
primeiro romance publicado, a avó prende-se ao eixo narrativo do princípio ao fim: “Vontade
de sumir, de inventar meu sótão, ali em cima era um bom lugar: um cemitério por refúgio, um
mundo como o de Catarina, ordenado e branco. Os ossos limpos, os móveis alvos. (AP, p.45)
Em diversas passagens, vai-se estabelecendo uma aliança que prepara o leitor, como
uma justificativa para a misteriosa veranista e que se desvenda no desfecho:

Naquele tempo, mais que nunca, me senti próxima de minha avó: também
Catarina tivera uma realidade insuportável a enfrentar, e assumira aquilo a
seu modo. (p.124)

É Catarina que fecha, finalmente, em um movimento urobórico1, junto com a neta,


parceiras, duas pontas do ciclo materno.
As avós do quinto e do sexto romance, ao contrário das outras duas, têm uma atuação
mais marcada de mães substitutas, embora apenas eventuais, e sua forte caracterização
telúrica, tornam-nas, ao lado de Olga, partícipes do aspecto positivo do arquétipo. A herança
de Ana, de A sentinela, nesse aspecto, está materializada naquela cadeira, segurança e
consolo.
Menos transparentes, já que contaminadas com outros sentimentos mais sutis, são as
ligações enunciadas a seguir. A primeira delas é a da freira de Exílio, que consegue atrair para

1
O uróboro ou uroboros é um símbolo alquímico representado pela serpente ou dragão que engole a própria
cauda.
32

si o amor filial tão solicitado pela protagonista: “É ela o que me resta, sombra de mãe: velha,
cansada, talvez doente. Tem olheiras roxas, respiração difícil? Põe a mão no peito às vezes, ao
subir escadas? Não quero saber: para mim, é eterna.” (p180).
No que concerne a ela, é justo que se acrescente, vislumbra-se um outro tipo de
sentimento menos delimitado, que, por esse motivo, pode ser interpretado, ainda, como uma
adulteração oblíqua dessa vinculação mãe-filha:

Ela se dedicou extraordinariamente a mim: talvez pela minha orfandade


magoada; porque eu era uma boa terra onde lançar sementes de Deus, e ela
uma alma ardente; talvez porque, de alguma forma, eu instigava nela o senso
da maternidade. (p.97)

Afeição não esclarecida de ambas as partes – “O que realmente sentiu pela perturbada
adolescente que fui?” (p.187), a religiosa chega a ser afastada do colégio pela inconveniência
da intimidade sentimental estabelecida entre elas: “Fui pensando na minha Freira. Tive por ela
essa paixão difusa e confusa das adolescentes por uma mulher idealizada. É possível que,
alma ardente, ela alimentasse por mim afetos que de hábito controlava severamente.” (p.135).
Quando morre a amiga religiosa, como nas demais narrativas, a personagem nuclear,
sem lenitivo possível, vai até o fundo do poço e, eliminada a falsa mãe, vê-se invadida,
incontrolavelmente, ainda pela face verdadeira do arquétipo: “Pesada de luto, subo a escada e
me preparo para mais um velório de minha mãe.” (p.186).
Paroxismo dessa privação, em Reunião de família, são expostos os mais sofridos
momentos da tentativa de Alice, sujeito da enunciação, de preenchimento da figura materna
desejada pela irmã Evelyn – “Olho para Evelyn e recordo aquele brinquedo da infância, foi
raro mais singular: ela subia para minha cama, quando era bem pequena, e pedia para
brincarmos de ‘mãe e filha’.Então eu a tomava nos braços, embalava. Um brinquedo
melancólico e doce.” (p.60).
Mas é o comentário posterior sobre o desejo de afeição por parte da pequena irmã que
encaminha o entendimento da inadequação da própria narradora para a vida: “Olhando para
ela agora, meu coração se confrange: eu podia ter tentado ser sua mãe, embora não soubesse
como.” (p.60).
A mesma experiência dilacerante, descoberta tardiamente e adiante contada, agora
sobre seu outro irmão Renato, na época, homem de quase vinte anos, aumenta a crueza da
narrativa e desnuda emoções insatisfeitas e cristalizadas que mantêm as personagens
prisioneiras em uma eterna infância:
33

- É. Ele ia para o quarto dela de noite, ficava conversando assim como quem
não quer nada, depois pedia para Berta fazer de conta que era mãe dele.
Implorava como se fosse um menino pequeno. Então deitava a cabeça no
colo dela, Berta ficava embalando-o e falando bobagens um tempo enorme.
Depois ele levantava e ia embora...Só isso. (p.96)

A constatação do fechamento completo dos caminhos que estabelecem a afinidade


entre mãe e filha, processo primeiro de identificação entre duas mulheres, é o que
sugestivamente estabelece a possibilidade de interpretação do envergonhado e equívoco
relacionamento entre Alice e Aretusa na juventude, o qual se caracterizou como uma
armadilha do destino, do mesmo modo como ocorreu entre a instável cunhada, de infância
também tão desamparada, e a aluna Corália, fantasma de seu passado.
O encerramento deste segmento deve ser feito com a personagem de O quarto
fechado, assunção aparentemente completa do papel materno, com justeza no que diz respeito
a Martim e Clara, embora a citada característica se estenda até os gêmeos de Renata e,
segundo seu próprio cognome, para as demais personagens: “Com a idade, e a longa
enfermidade da filha, Mamãe tornara-se um símbolo de dedicação. Todos a chamavam de
Mamãe, mesmo amigos, criados, netos.” (p.54)
É possível compreendê-la, a princípio, quase como uma alegoria das qualidades
maternais, misto de Hera, a enérgica deusa grega, zeladora do casamento e das relações
familiares, e Deméter, a mãe mitológica por excelência. Por ser personagem que encadearia,
então, todos os outros textos da autora, desde os anteriores até os que vieram a seguir, serviria
de contraponto à ausência afetiva materna das outras personagens: “Mamãe assumira as
rédeas dos negócios e da vida, dava às crianças a segurança de que precisavam, Mamãe era o
mundo deles.” (OQF, p.40)
O caminhar da narrativa, entretanto, propicia o entendimento de que, se o nome com
que a chamam exibe o carinho e a admiração das outras personagens, também traz em si, a
ironia implícita na composição narrativa: sob a superfície onde bóiam todas as “sublimes”
qualidades de mãe incondicional, há um forte sentimento de culpa no que diz respeito a sua
filha Ella, que a tiraniza, pelo não cumprimento total do estereótipo que corporifica.

3.3 O palhaço

A reincidência de uma personagem na obra de Lya Luft indica uma necessidade de


reflexão: o palhaço. Como vários outros instrumentos artísticos ali utilizados, neste, também,
se pode detectar, sob uma mesma aparência, uma variabilidade de significações.
34

Partindo-se do romance Exílio, no qual aparece duas vezes citado, é possível


surpreendê-lo no mais raso de seus efeitos, face ingênua de um universo infantil – “- Hoje o
papai vai me levar ao circo, lá tem palhaço...tem anão...fica pro outro fim de semana, tá bom,
Mamãe?” (p.81) –, temporariamente anulada a carga significativa que ora será discutida, o
que amplia, a princípio sua ambigüidade:

Quando eu era pequena e não queria comer, meu pai fazia desenhos no
prato: uma cara de palhaço, nariz de tomate, olhos de feijão, boca de
pimentão, cabelo de cenoura. Eu comia, desfigurando a carantonha. Mais
tarde fiz isso com Lucas. (p.192)

Uma observação mais aprofundada do trecho acima transcrito, não obstante, começa a
esvaziar a positividade desse elemento sempre presente na imaginação da criança. O emprego
desse “Mais tarde fiz isso com Lucas”, enunciado em um tempo de adulta, admite o encontro
com uma bifurcação interpretativa: o da repetição, pela narradora mãe, para sua criança, do
gesto brincalhão e amoroso de incentivo do pai ou a repetição somente desse ato de
“desfiguração”, ainda por ela, agora com o próprio filho, entendimento cuja possibilidade se
fundamenta no abandono do menino pela protagonista. Essa segunda leitura se prende
inteiramente ao eixo palhaço/insatisfação filial que é perseguido, em seus aspectos funcionais,
daqui para a frente, neste segmento.

Da mesma forma que a constância com que são empregados outros recursos
expressivos aponta a presença de um campo metafórico especial, tal qual, em última análise,
em qualquer manifestação artística, a freqüência com que o palhaço aparece em toda a obra
solicita um cuidado e uma reflexão redobrados em relação a ele no sentido de apreender todo
o conjunto significativo do qual faz parte ou para o qual aponta como força indicial, ensejo
que começa a se apresentar ao atento leitor desde o primeiro romance em que aparece.

O dicionário de símbolos revela, inicialmente, alguns dos aspectos que o imaginário


humano tem atribuído a tal figura:

O simbolismo mais profundo e sinistro do bobo é o de ser uma imagem


antiga e invertida do rei ou soberano, usada como substituto dele nos rituais
de sacrifício antigos. De maneira mais geral, o palhaço ou bobo representa e
age como bode expiatório da falha humana – a rapidez com que a dignidade
e a seriedade podem desabar em farsa, ou sabedoria tornada idiotice.
(TRESIDDER, 2003, p. 258)
35

O aproveitamento dessa figura coletiva, logo no terceiro romance, Reunião de família,


inaugura uma tendência para representações trágico-satíricas na obra da escritora. Tal fato fica
claro no infeliz e grotesco Renato, tão possivelmente caracterizável como “bode expiatório da
falha humana”, modelo perfeito da insegurança e do fracasso. Construído assim por seu pai,
reforçada a imagem por sua mulher Aretusa, é visto do mesmo modo pelas outras personagens
– “Mas fica ali parado, vira para nós o traseiro magro metido em calças largas demais. Como
as de um palhaço.” (p.87) –, o que revigora seu perfil burlesco: “Quando crio coragem e olho
meu irmão, fico surpreendida com a semelhança: ele e o boneco têm cabelo ruivo e corpo
desengonçado. Só que o sorriso de Renato é triste e fugidio.” (p.61)
A revelação sem retoques, porém, da utilidade do elemento metafórico, no texto,
começa a se esboçar em “Difícil de acreditar: essa criatura equilibrada, que há alguns meses
levava uma vida normal, atendendo ao trabalho e à casa, agora naufraga na loucura, abraçada
ao filho morto.” (p.56), tornando-se inteiramente completa logo adiante: “Evelyn traz no colo
uma caricatura do filho.” Desse modo, o palhaço retorna sempre, o que será comprovado nos
outros romances, como simbolização de uma relação materno-filial interrompida e dos
momentos de insegurança dali advindos.
No texto em questão, em um momento de maior tensão, quando todos os filhos
enfrentam sua solidão e desamparo, reunidos por uma orfandade que não se atenua nem na
idade adulta e por um fim de semana, motivado pela loucura de Evelyn em face da perda do
filho, é o palhaço que esta trazia sempre ao colo que, jogado no rosto de Alice, resume o
sofrimento individual de cada um: “Ele fica encostado na jarra de água, sobre a toalha com
nódoas de vinho. Ali está, desabado para diante. Da boca rasgada escorre um chumaço de
algodão sujo.” (p.122)
Parece importante chamar-se atenção da conjugação, nesse momento, com outra
personagem também extremamente comprometida com essa ruptura mãe-filho, de uma
importância fundamental na obra como um todo e, por isso, analisada com profundidade em
6.8, que pode metamorfosear-se em outras personagens – nesse caso, o palhaço – e, assim,
estender a elas seu valor expressivo: o anão. Sua presença sarcástica reforça o simbolismo
entrevisto no boneco, fixando, definitivamente, sua natureza: “Quando saio da sala, volto-me
para ver outra vez: um gnomo vomita sobre a nossa mesa.” (p.122).
A interseção estabelecida entre as duas personagens não é ocasional. Em algumas
páginas anteriores essa imagem já surgira, nessa mesma atitude crítica, prenúncio do Anão de
Exílio: “Aperto os olhos com as mãos, no meio dos círculos coloridos salta um minúsculo
homenzinho, salta e ri; sacode-se de tanto rir; zomba de mim, esse anão debochado?” (p.77)
36

E é, ainda o transfigurável palhaço, o próprio Renato, quem, num momento de


desespero extremo, voltado para a simbólica árvore, dá um grito, avaliado pela irmã como a
evocação da mãe morta, encadeando essa ciranda que traz para a superfície a voz velada do
arquétipo.
Como se percebe, todos os recursos são arregimentados para o mesmo fim e
conseguem compor, com perfeição, o efeito desejado, uma vez que, praticamente fechando o
enredo, há a enunciação de um trecho, cujo final é o ápice desse processo e que, não por
acaso, ressurgirá como epígrafe em O ponto cego:

Se admitirmos o vórtice, o abismo, o subterrâneo por trás dos espelhos,


nossas bocas hão de se escancarar num grito.
- Mãe! – chamaremos agoniados. (p.124)

Dentro da coerência que permeia toda a obra – “Martim contava que, quando
pequenos, ele e a irmã eram os preferidos de Mamãe, que rejeitava a filha verdadeira.” (p.61),
recria-se em Mamãe de O quarto fechado, pelos mesmos motivos que em outras personagens,
a figura zombeteira, aqui descrita. O surgimento desse atributo, que adere como uma segunda
pele, distingue-se, assim, como um mecanismo valorativo e deve ser entendido, no caso, não
como uma dessacralização do mito materno em si, valendo, estritamente, como uma imagem
desse vazio ora estudado : – “Mamãe gemeu; deixara um resto de pintura no rosto, a cara de
um velho palhaço infeliz.” (p.120) . Assim apreendida, a personagem vale menos como peça
da engrenagem de seu próprio texto do que como representação ideológica do conjunto da
obra.

Contudo, Renata não imaginava a figura que a esperava na porta da casa:


uma velha baixa, gorda, peruca de alegres cachos louros. Cílio postiços, boca
pintada, rosto empoado e murcho. Um vestido amarelo, grande demais.
(p.55)

No entanto são os tão pouco amados gêmeos desse mesmo texto que se afiguram,
nesse sentido, como um rascunho antecipatório dessa solução expressiva que surgiria com
virulência total no livro seguinte: “Ela gostava de fantasiá-los com roupas de antigas festas,
carnavais remotos: maquiava-os com capricho e fazia com que desfilassem para Mamãe na
sala: duas sensuais odaliscas, dois melancólicos pierrôs. Renata desviava o olhar.” (p.84)
Em Exílio, o vocábulo “órfão” e seus derivados, como foi salientado anteriormente,
aparecem, pelo menos, seis vezes ao longo do texto como índice do sentimento de uma
37

protagonista que chora em todas as suas páginas pelo afeto de uma mãe alheada e por sua
perda, então abertamente caracterizada, através do suicídio. É sem surpresa, nesse caso,
seguindo uma tendência expressiva da escritora, que quem acompanha a narrativa vê o objeto
em estudo reaparecer na estrutura do romance, obsessivamente, em vários desenhos de
Gabriel, revigorado na significação emblemática já introduzida nos dois romances anteriores,
imbuído do papel de assinalador, pelos mesmos motivos, da causa da doença mental do irmão
– “Um louco pintaria aqueles palhaços tão reais? Ou só um louco os pintaria, todos com suas
próprias feições?” (p.113).

Para me distrair, começo a ver as pinturas: em todas elas, o mesmo


inexplicável tema. Palhaços. Grandes e pequenos, moços, velhos, alegres,
patéticos, aos pares ou sozinhos. Ali, dois palhaços de mãos dadas, corpos
encostados, quase gêmeos siameses; ali um palhacinho sentado num
tamborete chora com o rosto apoiado na mão, como um anjo de cemitério.
(p.70)

Seguindo a mesma lógica representativa, torna-se bastante coerente o fato de que, em


um dos desenhos, seja o retratado o filho da personagem central, abandonado por ela, filho a
quem Gabriel nunca vira. A passagem reveste-se de implicações de delírio, ainda mais,
porque a veracidade de todo o acontecimento torna-se incerta pela contribuição do duvidoso
Anão, aqui novamente presente e ligado ao mesmo palhaço, figura que se movimenta em
espaço especificamente psíquico desse eu narrador, assumindo, dessa maneira, o desenho
valor autojudicatório, o que antecipa as atribuições de tal última citada personagem:

Passo a mão pelo cabelo macio de Gabriel; sinto a dolorosa inutilidade de


minha presença: ele está longe. Ou mais perto do que penso? Por que
perguntou por Lucas? Lembro o desenho que o Anão me passou há dias: o
palhacinho com a cara de meu filho. (p.70)

Digna de nota é a aliança sutilmente estabelecida entre Renato de Reunião de família e


a personagem Gabriel aqui focalizada, através do elemento caracterizador e valorativo comum
aos dois, o palhaço, o que lhe reforça a carga significativa. Essa união se mostra inteiramente
revigorada, quando se atenta para a semelhança do grito desesperado do primeiro – “Chamou
pela que morreu tão cedo, sem dar sustento ao seu coração, sem lhe deixar a certeza de ter
sido amado? Sim, talvez ele tenha dito ‘mãe’”. (RF, p.87) – com aquela escatológica atitude
do segundo, não menos desesperada, misto de amor carente e agressividade:
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De repente Gabriel soergue os joelhos, passa a mão no traseiro, depois vai


desenhando alguma coisa com fezes na parede; ele parece uma fonte
inesgotável de imundície quando está nesse estado. (E, p.189)

Na sua letra infantil, desenhou caprichosamente a palavra MÃE. (E, p.190)

No romance A sentinela, pode-se reencontrar uma variação do símbolo como “bobo da


corte”. Lino, que faz parte do séqüito de Lilith, a personagem preferida da mãe, praticamente
está presente na trama quase como figura de realce do desprestígio da protagonista, visto que
tem uma atuação menos definida na intriga, o que anteriormente ainda não acontecera. A
carga de emoção inexplicável provocada em Nora por esse bobo, silencioso e servil, mesmo
depois de anos de separação da infância, traduz com perfeição o que tal personagem
representa para ela: “Nossos raros encontros me dão um grande desconforto, contra o qual
tento lutar, afinal é apenas o corcundinha filho da lavadeira, bobo da corte da pobre rainha
Lilith, morta e enterrada.” (p.149)
A figura do palhaço, tão presente no texto da escritora, alijado de sua puerilidade
imaginária e, ao contrário, penetrado de toda a carga profunda do inconsciente, com um
emprego fortemente significativo no encaminhamento das intenções fabulistas, inicia uma
lista de outros elementos imagéticos característicos dessa parte da psique humana, como se
discute nos segmentos imediatos.

3.4 A “Mãe Terrível”

Em seu Léxico junguiano, Daryl Sharp (1997, p.42-43), analista de Toronto, no


verbete sobre o complexo materno, diz:

No âmago de todo complexo materno está o arquétipo materno, o que


significa que por detrás das associações emocionais com a pessoa da mãe,
tanto nos homens como nas mulheres, existe, de um lado, uma imagem
coletiva de nutrição e segurança (a mãe positiva) e, de outro, a
possessividade devoradora (a mãe negativa).

A origem desse aspecto restritivo do arquétipo pode ser detectada nas palavras
seguintes, origem que, tendo seu alcance facilmente ampliado para o próprio contexto
luftiano, ajuda a acompanhar e entender o destino e sofrimento de suas personagens:

Considerando que todos os elementos positivos e necessários à existência,


como nutrir, alimentar, aquecer, proteger, oferecer segurança e proteção
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estão ligados à imagem do Grande Feminino e que este transmite, de fato,


todos esses conteúdos positivos no seu relacionamento com a criança e o
infantil, todas as rupturas e aflições que acometem o fluxo positivo que
provém da mãe para todo ser vivo, todas as necessidades e todo tipo de
privação serão atribuídas à mesma Grande Mãe em seu aspecto de mãe
“terrível” e “má”. ((NEUMANN, /s.d./, p.67)

Os textos anteriormente transcritos são definições perfeitas para a angustiosa atuação


de Nora em A sentinela, que, em sua incontrolável obsessão materna, faz mais mal do que
bem ao filho Henrique:

- Não me diga que nunca se preocupou com Pedro.


- Muito – ela olhou um ponto qualquer, sobre minha cabeça. – Mas talvez eu
não tenha a sua insegurança, Nora, essa sua ansiedade patológica, não sei.
Comigo foi mais...natural. (p.108)

Crescendo com um sentimento forte de ter sido sempre negligenciada pela mãe –
“Henrique preenchia um extraordinário vazio em mim. Para alguém eu finalmente era
especial, esse alguém não me rejeitaria nunca. Essa pessoa me amaria acima de tudo, sem
traições.” (p.103) –, não consegue encontrar em si o equilíbrio necessário para conduzir para a
frente seu próprio projeto materno: “Talvez eu simplesmente não tivesse estrutura interna para
ser diferente, exigia um amor sem tréguas e sem limites, e isso só poderia ter com meu filho.
Mas Henrique crescia e cada vez parecia mais ansioso por se afastar de mim.” (p.105).
Desenvolve, em tais condições, um sentimento neurótico de insegurança: “A experiência da
maternidade era doce e aterrorizante. Ele podia cair, se machucar, engasgar-se, perder-se na
rua se Jaime o largasse, morrer.” (p.101). É ela mesma, em seu momento final de revisão,
quem afirma: “Talvez minha ansiedade fosse o inconsciente terror de perder mais uma vez
uma pessoa muito amada, e eu não amara nada, nem ninguém, como àquele filho.” (p.101)

O contato com o filho, para Nora, passa a ser um exercício de “possessividade


devoradora”, sendo a tradução acabada da imagem negativa do arquétipo: “Há um lugar no
jardim que não mandei limpar; e, quando tinha parado de vigiar Henrique dia e noite com
minha ansiedade, Rosa me veio com essa história de que o encontrou duas vezes vagando pela
casa de madrugada.” (p.34)

É do aprisionamento na fase matriarcal do conter, conceituada por Neumann,


conjuntura na qual se encontra a mesma protagonista, que o filho Henrique tenta
desesperadamente se livrar: “- Mãe, estou cansado. Farto! Eu sei que você me ama, que sou o
40

que lhe restou na vida, eu sei, eu sei! Mas me deixe em paz, por amor de Deus.” (p.111).
Assim, o estático estado psico-afetivo em que se encontra a personagem principal termina se
perpetuando incontrolavelmente.
Dando-se continuidade ao exame abordado neste item deve-se acrescentar que os
aspectos nefastos com que se apresenta esse face do arquétipo – a Mãe Terrível –, nos
romances investigados, são a bruxa (aquela presença impalpável de mulher, voz que chama ao
telefone, rosto que surge ao espelho, em Exílio) e que se constitui, na verdade, em elemento
recorrente no corpus analisado; o túmulo como útero devorador, bastante significativo em A
asa esquerda do anjo; o caixão; o buraco sombrio das profundezas – do mar devorador, como
se encontra em As parceiras ou do abismo (de novo, o sonho reiteradamente presente em
Reunião de família, pode ser um bom exemplo); a morte, presente em quase todos os textos
da autora, sobremaneira em As parceiras, em A asa esquerda do anjo e, em O quarto fechado,
ali revestida de essencialidade para a trama.
Se, como se vê, traços essenciais desse arquétipo são o bondoso, o que gera, cuida e
proporciona condições de crescimento, os aspectos negativos podem, igualmente, surgir,
dependendo do estado psíquico em que o arquétipo é ativado, condição preponderante nas
histórias analisadas, constituindo-se o que se denomina a Mãe Terrível, como se constata
neste segmento. A figura assustadora das Górgonas, cuja cabeça é coberta de serpentes –
analogia feita com a personagem Aretusa, em Reunião de família –, com seu olhar
petrificador, é uma projeção exterior desse aspecto do arquétipo na cultura ocidental.
Monique Augras, em A dimensão simbólica, diz que “Nos mitos da Iara, pelo contrário, é o
filho que morre por ter-se unido à Mãe-d’Água.”, acrescentando que o mito indígena
brasileiro “aparece aliás mais como um símbolo da mãe terrível...”. (1967, p.132),
comprovando a hipótese junguiana de que o inconsciente coletivo humano, nos mais variados
lugares, produz sempre os mesmos símbolos.
Nos romances da escritora gaúcha, dado o constante não atendimento da satisfação
da necessidade psíquica ainda primitiva, é de se esperar que a faceta negativa conduza, como
de fato ocorre, toda a urdidura narrativa em questão, sendo sua configuração dominante em
Exílio.
Ressalte-se que os símbolos que representam o lado arquetípico negativo, como ensina
Jung, não resultam do relacionamento real entre mãe e filha ou de características imanentes ao
feminino. Geradas por fontes psíquicas fantásticas e profundas e não tendo sua
correspondência no mundo exterior, essas representações se metamorfoseiam em imagens
possíveis a partir das vivências da consciência. A experiência do horror, sob o lado escuro do
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maternal, assume aspectos inumanos ou sobre-humanos, como figuras monstruosas. A


recorrência de todas as figuras extravagantes que permeiam o texto em exame – Bila, Ella,
Lalo, Gabriel e sua tendência ao escatológico, todos os vermes que se contorcem na
imaginação das protagonistas – ajudam a compor o ambiente onde se movem todas as figuras
de mães agressoras.
Parece importante se observar que, mesmo quando tais imagens extremas não
irrompem na teia ficcional, o sofrimento pela falha materna gera, em várias oportunidades,
suas representações, ou as que a elas correspondam, como seres deformados pela grandeza do
arquétipo: “Não era muito bonita a minha Mãe, grande e tranqüila por fora.” (OPC, p.20).
Essa visão engrandecida pode ser visualizada desde a Madame de Exílio, a dona
daquela casa de tantas possibilidades simbólicas – “Uma pensão medíocre, pertence a uma
mulher que nunca aparece.” (p.21) –, enunciada sempre através de um “nunca a vi”, “ainda
não consegui um encontro com ela” (p.34) e que, por ser tão “inatingível” quanto a floresta
que cerca a casa, penetra, inconscientemente, o círculo da mãe verdadeira. Por causa dessa
atmosfera enigmática, pode ser aproximada do fantasma do espelho, da voz ao telefone,
sendo, ao final, vista, em uma cena inserida no apenas possível, com as mesmas dimensões
físicas da outra: “...junto do fogão, olhando pela janela, de costas para mim, uma mulherona
de cabelo grisalho num coque na nuca.” (p.181). O desfecho do encontro, reforça para a
personagem condutora da trama, e para o leitor, os sentimentos a que se ligam as duas: “Fico
na soleira, enfim: digo ‘Madame’ alto, duas vezes, mas ela nem se move. Então não é a dona
da casa? É alguma visita; uma nova cozinheira. Apenas mais uma hóspede excêntrica?”
(p.181)
Passando, em Exílio, pela alcoólatra – “Cabelo preso na nuca; uma mulher grande,
maior que meu pai, que vem logo atrás;...” (p.17-18) e pela freira, de nítidos contornos
maternos – “Aquela mulher, tão alta e quase tão pálida quanto fora minha mãe...” (p.37) –,
figura tão insistentemente relembrada na outra – “Abraça-me com seu jeito seco, é mais alta
do que eu; minha mãe seria assim se fosse viva, teriam a mesma idade talvez.” (p.96) – a
caracterização continua a corresponder a essa quimera.
A imagem, reiterada desde o primeiro romance, pode se dilatar, penetrando a avó de
As parceiras – “A balaustrada era alta demais para se cair, mesmo alguém da altura de
Catarina.” (p.142) –, chegando à Frau Wolf, de A asa esquerda do anjo, que, avolumadas
todas as qualidades, “parece imbatível” (p.110) para a neta – “Em geral batiam juntos, com
diferença de frações de segundos, como se até as máquinas obedecessem à grande dama.”
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(p.43) – e que se agiganta diante da pequenez adotada por Maria da Graça em seu papel
materno: “Falávamos à vontade na mesa, ríamos como duas meninas.” (p.45).
Esse “lugar” inatingível onde se agitam as figuras de “Mães Devoradoras”, é
apreensível, de forma denotadora, também no nível da linguagem, onde se identifica todo um
universo semântico periférico à palavra ausente, como as palavras desinteressada, distraída,
distante ou alheada, reiteradamente empregadas, ligadas à mãe, em primeiro lugar, ainda que,
também, o sejam em qualquer relação afetiva amenizadora dessa lacuna, universo que gravita
em torno de sentimentos, ações e gestos, em vários desses romances. Assumem tais palavras
uma conotação forte de relacionamento sentimental não estabelecido e envolvem algumas
personagens em uma atmosfera de exclusão, presas a uma dimensão à parte das demais, como
se pode comprovar por toda a obra:

Renata o amara na juventude, como sabia amar: um pouco distante, e sempre


em segundo plano. (OQF, p.114)

Nossa família era isso: os pais, felizes e alheados, falavam conosco, nos
levavam para a praia nos verões. (AP, p.28)

Dizem que do jardim se via seu rosto branco e ausente. (AP, p.12).

Ninguém tem uma mãe tão bonita e majestosa. E tão remota. (E, p.18)

Por sorte, casei-me com um homem menos exigente, que não é severo;
apenas um pouco distante. (RF, p.20)

Em referência a A asa esquerda do anjo, retomando-se esta sondagem, pode-se


apontar como bom exemplo a oposição entre os dois aspectos do arquétipo: a Mãe Bondosa –
Maria da Graça –, fraca, indecisa, e a Mãe Terrível – Frau Wolf –, decidida, com grande
ascendência sobre toda a família e em particular, sobre a neta, sobre a qual consegue se impor
e determinar-lhe o futuro, sendo, verdadeiramente, a responsável pelo destino narrativo.
Podem-se citar as observações feitas pelo já citado Jung (2000b, p.109) sobre esse aspecto,
oportunamente relidas:

A partir disto o eu começa a diferenciar-se da mãe e sua particularidade


pessoal vai-se tornando cada vez mais distinta. Assim todas as qualidades
fabulosas e misteriosas desprendem-se da imagem materna, transferindo-se à
possibilidade mais próxima, por exemplo, à avó. Como mãe da mãe, ela é
“maior” do que esta última. Ela é propriamente a “Grande Mãe”. Não raro
ela assume os traços da sabedoria, bem como as características da bruxa.
Quanto mais o arquétipo se afasta da consciência, mais clara esta se torna e o
primeiro assume uma forma mitológica cada vez mais nítida. A passagem da
mãe para a avó significa que o arquétipo subiu de categoria.
43

Embora Frau Wolf seja a mãe do pai, acrescida dos traços naturais de sua
personalidade, os quais fazem dela a encarnação perfeita dessa “Grande Mãe” – “Meu pai
ficava dócil diante dela, ouvia atento seus conselhos sobre nossa vida particular ou sobre
assuntos das empresas. Minha mãe assumia a atitude de uma colegial.” (p.45) –, fica mantida
sua condição hierárquica de avó, sendo perfeita para ela a definição: são os ecos de uma
memória infantil insegura em uma personagem adulta em desequilíbrio que configuram o
perfil da matriarca da família; é apenas através desse filtro que se estabelece o contato do
leitor com a personagem, impossibilitado este de verificação da real dimensão daquela, que
aparece sempre como uma grande presença, diante da qual a mãe brasileira quase se anula –
“Minha mãe pára atrás da sogra, indecisa. Meu momento de felicidade ruiu.” (p.64).
Por esse motivo, enorme significação assume a morte da insegura, embora meiga e
acessível, Maria da Graça: caindo sobre os ovos que se quebram – símbolos evidentes de
continuação de vida, de procriação e, no caso, de maternidade malograda –, morrendo com o
rosto sujo de gema, traduz definitivamente tal carência na vida da filha, preenchida, desde o
começo, pela outra imagem materna negativa, mais presente, mais forte, como se pode
comprovar em outro momento da página 64:

Minha mãe vem ao meu encalço, fala brandamente, não sabe ao certo o que
fazer, sua dúvida me aflige mais. Não me deixo convencer nem consolar,
estou encolhida, obstinada, feroz porque sei que os adultos – a avó – acabam
vencendo sempre.

Mas o crescimento do aspecto negativo do arquétipo não se limita ao confronto entre


essas duas personagens. A carga significativa de recusa materna, cuja figura nuclear é a avó,
é fortemente reforçada para a protagonista por sua inadequação em se relacionar com as
pessoas unidas a ela por laços de parentesco, sentida como rejeição de quase toda a família
alemã, e por se estender, por outro lado, ao desprezo dos brasileiros, por conseguinte, da
pátria onde nasceu. Perdida entre dois segmentos sociais profundamente vivenciados pelo ser
humano como maternos e que a repelem, ela vive uma crise de identidade: “Na proibida
trégua de liberdade, à espera de que logo mandem me chamar (anti-higiênico deitar na terra
suja), imagino que com todas essas plantas se poderia matar uma porção de gente. Uma
família inteira...” (AAEA, p.49)
44

3.4.1 A morte

Significativamente, a morte é um elemento recorrente em todos os sete romances


estudados, personagem obrigatória, quer como pretenso efeito da realidade, quer como
elemento alegórico, ao qual, nesse caso, pode ser atribuída uma origem ligada ao mais
profundo psiquismo das personagens, principalmente, se for levado em conta o fato de que,
em seis desses romances, a narração é conduzida pela própria personagem principal.

Desde o primeiro romance, essa figura, comprometida com os aspectos negativos do


arquétipo em questão, se evidencia, quase compulsivamente. E, da idéia geral implícita em
“as parceiras”, pode-se inferir desde a ligação de sofrimento de todas as mulheres da família,
até o “jogo”, citado no próprio texto, entre Morte e Vida – “Então a traidora não era só a
morte: era a vida também, a parceira, a outra bruxa soprando velas na noite.” (p.124) –, afinal,
reconhecidas como duas faces do mesmo aspecto.

Encontra-se nesse símbolo da mãe a mesma ambivalência que nos da terra e


do mar: a vida e a morte são correlatas. Nascer é sair do ventre mãe; morrer
é retornar à terra. A mãe é a segurança do abrigo, do calor, da ternura e da
alimentação; é também, em contrapartida, o risco da opressão pela estreiteza
do meio e pelo sufocamento através de um prolongamento excessivo da
função de alimentadora e guia: a genitora devorando o futuro genitor, a
generosidade transformando-se em captadora e castradora. (CHEVALIER,
GHEERBRANT, 1995, p.580)

É imprescindível chamar a atenção para o jazigo do segundo romance da autora,


símbolo último de útero, e, portanto de inquestionável peso. Passa a compor, com os outros
elementos narrativos – avó, família, pátria – a já sem controle sensação de rejeição e visto que
representa um momento derradeiro, encerra, de forma irrecuperável, a repulsa com que se
configura essa face negativa na obra.

Fazia algum tempo que eu não ia ao cemitério: o estranho é que só resta um


único lugar naquelas paredes, como se a família aguardasse meu pai para
encerrar seu ciclo.
Eu ficarei de fora. (p.58)

Em todos os textos, afinal, a morte ronda a protagonista e em vários deles é descrita


como um animal, com suas garras e cauda, devorador, o que se afina, irrepreensivelmente,
com a imagem dessa Mãe Agressora. Pode-se antecipar aqui o que é dito no item 4.8, qual
45

seja, que a imagem do animal serve, normalmente, para simbolizar estados distantes da
consciência humana.

O quarto fechado é o romance em que a figura da morte toma, praticamente, todo o


ambiente narrativo, dando título à terceira parte e congregando, em si, todas as possibilidades
já superficialmente enunciadas nos romances antecessores e prenunciadas nos próximos.

Os vários nomes por que a morte de Camilo é anunciada, mais do que simples
eufemismos, como já se vê em Exílio – “Mas confessa-me que sente a morte rondando. Diz
‘ela’, e nós duas sabemos de quem se trata” (p.102) –, são na verdade descrições,
caracterizações funcionais e valorativas dentro da trama, por se estenderem, em alguns casos,
até aquele que a designa. “Aquela” ou “Adversária” são as expressões empregadas em relação
aos sentimentos de Martim, de punhos cerrados; “Sinistra” aos de Clara, que conhecia o jogo
de morrer dos gêmeos; “Anêmona”, a actínia marítima, que se caracteriza por sugar e devorar
os peixes que dela se aproximam, relacionada aos de Carolina.

O processo da dupla caracterização se torna bastante evidente no que diz respeito a


Renata: “Esfinge”, atribuindo à morte, dublê dela mesma, todo o mistério que a acompanha
desde o princípio e que impossibilita a aproximação dos filhos e do marido. Torna-se mais
significativo, contudo, chamá-la de “Outra”, no reconhecimento da morte como assunção da
maternidade negada ainda por ela, ao perceber, em Camilo, morto, um “encantador sorriso
infantil” (p.48).

Mas “Dama”, “Amante” ou “noiva noturna”, “a Amada de Camilo”, barqueiro da


barca dos mortos que “era uma mulher” (p.130), são os epítetos que lhe fixam o valor já
pressentido em Reunião de família, em relação à personagem Evelyn: “Amedrontador, dormir
sob o mesmo teto com alguém que cultiva essa doce possibilidade de morrer, o noivado com a
morte, o alívio à mão.” (p.57). Nesses casos, a soturna presença vai além do aspecto maternal
e, de certa forma, acaba fortalecendo a ambigüidade sexual de Camilo.

Mas nesse quarto livro, apesar de toda a carga dramática que acompanha a presença de
Thanatos, Renata, que desde criança é atraída pelo soturno quadro daquela “ilha dos mortos”,
quadro sentido, no velório do filho, como “belo e consolador”, sempre pressente no rosto do
filho um sorriso e imagina, expressando, talvez, o seu próprio anseio, que o recado enviado
por este “Talvez seja alívio, talvez libertação...”(p.48). O desejo da morte, expresso tão
diretamente em “Ansiava por ela muitas vezes, como libertação de seus tormentos.” (OQF,
46

p.38), unirá Renata e o Menino do último romance publicado: “E se eu me jogasse aqui da


sacada, tantos andares acima do chão, será que morria?” (p.100).

Preso à pedra do Renegado e, em vista disso, possivelmente comprometido com ele,


no último romance surge a bela e imponente figura do cavalo alado, inventado pela mãe e
inteiramente assumido pelo Menino, porquanto “Depois que ela me perdeu, o cavalo de mel
seria a minha salvação.”(p.33). Aos poucos, aquele animal imaginário, habitante dos sonhos
do protagonista, vai anexando às suas propriedades psíquicas a de parceiro da morte.

Se um menino – que tem um Pai com olho de vidro, que se esfrega nas
moças e bate em criança – saltar do telhado, um cavalo que bebe em águas
escuras o levará consigo? (p.101)

Nunca vi a mulher afogada montada no meio daquelas asas, mas sabia: ela
está ali, o cabelo entrançado com as crinas do animal. (p.126)

Tanto quanto para a protagonista de O quarto fechado, a morte, encarnada naquele


“cavalo-anjo” – “E de um cavalo cor-de-mel cujas patas varavam a noite e um dia levaram
alguém para onde não tem o sim nem o nada.”(p.18) –, adquire positividade para aquela
criança, fim de todas as suas angústias, salvação através de sua fantasia: “E quando soprasse
o vento, aquele vento, um grande cavalo cor-de-mel, um cavalo mágico – que eu já vi
algumas vezes – carregaria tudo isso em suas asas para dentro do sossegado definitivo.”
(OPC, p.113).

Ao se aproveitar o Menino do significado do nome da filha amada de seu pai, a qual


jazia no cemitério, para um jogo de tortura e vingança contra aquele, o jogo acaba tragando o
próprio enunciador, pois a efetivação de sua carga significativa – Letícia –, em suma, é
vedada a ele. Tantas vezes repetido e desejado, o nome e tudo que, afinal, representa, precisa
ser concretizado na figura daquele esperado companheiro alado, mesmo que termine se
constituindo em sinônimo de “morte”: “(Se eu lhe desse um nome seria: Alegria.)” (p.125)

3.4.2 A bruxa

Face acabada do ângulo negativo do arquétipo genitor, a figura da bruxa ou mesmo


uma imagem equivalente, perpassa sempre o imaginário humano, em fantasias coletivas,
como as que dominam mitologias e religiões, ou em fantasias individuais.
47

Kali, a “Mãe Negra” da mitologia indiana, é a imagem mais alarmante da


destruidora-criadora. A “mãe terrível” da psicologia é um símbolo do amor
possessivo e do perigo de uma fixação infantil que persiste e bloqueia o
desenvolvimento do ego. O simbolismo da mãe-bruxa pode refletir essa
tirania, assim como antigos laços entre a mãe e o secreto conjunto de
conhecimentos terrenos. (TRESIDDER, /s.d./, p.216)

É Jung que, ao perseguir seu objetivo de sempre fundamentar-se cientificamente em


conclusões empíricas, ancora-se em criações humanas de cunho geral, estudando-as e
ampliando seu alcance a um dinamismo psíquico individual. Baseado em tais experiências,
em última análise, explica e complementa:

Os conteúdos das fantasias anormais só podem referir-se parcialmente à mãe


pessoal uma vez que freqüentemente eles aludem de modo claro e
inequívoco a coisas que ultrapassam o que se poderia atribuir a uma mãe
real. Isto principalmente quando se trata de imagens declaradamente
mitológicas, tal como ocorre muitas vezes com fobias infantis, em que a mãe
aparece sob a forma de um animal, de uma bruxa, fantasma, canibal,
hermafrodita e coisas desse tipo. (JUNG, 2000b, p.94)

É a versão artística dessa perigosa “fixação infantil que persiste e bloqueia o


desenvolvimento do ego” e que estabelece “os conteúdos das fantasias anormais”, experiência
que suscita a ativação do arquétipo, que tão magnificamente engendra as personagens
luftianas, sobremaneira aquelas que centralizam a trama e que podem ser surpreendidas a
cada página de seus vários romances:

Nestes dias, minha companhia mora naquele espelho sobre a cômoda. Não
olho para lá a não ser raras vezes, e minha mãe passa ali no fundo, vagarosa;
olhos de bruxa, e uma atração que me arrastaria a sei eu que abismos, se me
debruçasse para ela. (E, p.57)

Em Exílio, essa imagem especial irá se apresentar e perseguir a protagonista das mais
variadas formas, delirantemente, como se verá, com detalhes nos itens 6.3. e 6.4.

A figura da bruxa, adulteração da mãe, a qual acossa essa protagonista de forma clara,
como no romance citado, pode insinuar-se, outrossim, no discurso narrativo de todos os
outros textos, metamorfoseado nas formas mais sutis, menos esperadas, recuperando esse
fantasma alucinatório. Essa invasão da linguagem denuncia, assim, por parte das narradoras,
eternamente envolvidas em seu próprio sofrimento, uma forma quase patológica de expressão.

Em As parceiras – “Não gostava quando Adélia falava na morte, era como se a velha
bruxa estivesse à espreita para levar embora aquela que eu amava.” (p.22), se surge já como
48

atributo da animizada morte, essa qualidade passa a se estender à sua “antípoda”, recurso
que, afora sua significação potencial, se estabelece como mecanismo de interseção entre tais
aparentes elementos opostos: “Na hora do jantar o telefone toca, soa estranhamente no Chalé
e nem era Tiago pedindo para brincarmos mais um pouco de irmãozinho e irmãzinha. João e
Maria perdidos na floresta, e sempre a velha bruxa. Duas até.” (p.119). Desse modo, parece
delinear-se uma visão completamente proibitiva de felicidade e configurar-se como nulas
todas as oportunidades de salvação.

Em Reunião de família, Berta, quando vai revelar um segredo, “dá uma risadinha de
bruxa” (p.92); em O quarto fechado, é a personagem Mamãe quem lembra “uma velha bruxa
de pano, com o cabelo amarelo e um vestido vermelho, largo” (p.80). E até mesmo em Exílio,
a par da já citada dominante figura que preenche todo o espaço psíquico da protagonista, são
as duas criadas, personagens periféricas, hipóstases do absurdo que compõe a atmosfera
reinante da Casa Vermelha, que ainda reforçam a persistente presença: “As duas bruxas me
dizem que são velhos clientes de Madame...” (p.110).

3.4.3 Sedução e perigo: uma imagem psíquica de mulher

Cabe, ainda neste capítulo, o comentário sobre uma estrutura psíquica – anima/
animus 2 – que ajuda o ego na adaptação às partes mais profundas da natureza interior, onde
estão os pensamentos intuitivos, sentimentos, imagens e emoções, tal qual a persona, voltada
para o mundo social, funciona como colaboradora nas adaptações externas.

A definição de anima, aspecto enfatizado neste segmento pelo fato de que o exame ora
empreendido se refere a ligações inusitadas entre personagens masculinas e femininas, tem
sido resumida de forma bastante apressada, a partir dos estudos de Jung: “O homem tem
portanto em si um lado de características femininas, isto é, ele mesmo tem uma forma
feminina inconsciente, fato de que em geral ele não tem a menor consciência. Presumo que
todos já sabem que chamei esta figura de anima.” (JUNG, 2000b, p.277).

Essa noção junguiana, sem uma reflexão mais cuidadosa, causa muita polêmica, nos
dias atuais, por parte de quem tem uma visão equalizada entre os sexos e, por esse motivo,
mereceu ser modernamente rediscutida e reinterpretada por seus seguidores, o que já pode ser

2
O animus são as características masculinas interiores da mulher projetadas em um homem, segundo Jung.
49

pressentido na conceituação do próprio analista: “Na prática porém a coisa não é tão fácil,
pois em geral o inconsciente feminino do homem é projetado em uma parceira feminina, e o
inconsciente masculino da mulher em um homem.” (JUNG, 2000b, p.177). Nesse sentido,
parece oportuna, para se precisar exatamente a visão com que este elemento psíquico foi
encarado nesta tese e, conseqüentemente, de que forma foi utilizado como ferramenta para a
interpretação da obra literária, a transcrição de alguns trechos de dois escritores junguianos,
que, por sua atualidade, conseguem reavaliá-lo nas devidas dimensões. Os primeiros são de
Murray Stein (/s.d./):

Jung diz que os homens são masculinos no exterior e femininos no interior, e


que as mulheres são o inverso. As mulheres são dadas a relacionar-se, são
receptivas e impressionáveis em seu ego e persona, e são firmes e
contundentes no outro lado de sua personalidade; os homens são duros e
agressivos no exterior, brandos e comunicativos no íntimo. Deixem-se de
lado as personas de adultos masculinos e femininos, e a percepção de sexo
será invertida. (p.123)

Aqui, só porque a estrutura anima/animus é vista como complementar da


persona é que as características do sexo vieram a ser incluídas em sua
imagem. Se a persona de um homem contém aquelas qualidades e
características comumente associadas à masculinidade numa dada cultura,
então as características da personalidade que não se coadunam com essa
imagem serão suprimidas e reunidas na estrutura inconsciente
complementar, a anima. Portanto, a anima contém as características que são
tipicamente identificados como femininas nessa cultura.(Ibid.,p.125)

June Singer, em seu livro Androginia (/s.d./, p.198), termina por esclarecer
inteiramente esse conceito anima/animus, desfazendo toda a resistência que se possa ter em
relação a ele, quando redefine suas dimensões e características psíquicas, livrando-os de seus
incômodos vestígios históricos e culturais:

As descrições que Jung faz das qualidades irritantes e antipáticas da anima e


do animus, e que despertam tanta resistência da parte de quem as lê hoje, são
justamente aquelas qualidades pessoais fadadas a surgirem num estado rude
e não-lapidado, por terem sido por tanto tempo reprimidas e impedidas de
desenvolverem-se naturalmente.

Conceitos, descrições e avaliações da anima em relação ao inconsciente masculino, os


quais são largamente encontrados na obra do mencionado estudioso e que são apresentados
em trechos selecionados a seguir, parecem estar de acordo com relacionamentos e
50

comportamentos de algumas personagens desse sexo em Lya Luft, sendo, por esse fato,
apropriadamente aplicáveis a aspectos examinados nelas:

A anima é uma figura bipolar, tal como a “personalidade supra-ordenada”3,


podendo ora aparecer como positiva ora como negativa; a velha ou jovem,
mãe ou menina; fada bondosa ou bruxa; santa ou prostituta. Ao lado dessa
ambivalência, a anima tem relações “ocultas” com “segredos”, com o mundo
obscuro em geral, tendo freqüentemente um matiz religioso. (JUNG, 2000b,
p.199)

Além das propriedades exclusivas que são examinadas ao longo deste segmento, esse
fator do psiquismo masculino possui alguns componentes, como foi dito anteriormente, que o
relacionam com o arquétipo materno, o grande tema que tem sido proposto.

No homem, o complexo materno nunca se encontra em estado “puro”, isto é,


ele vem sempre misturado ao arquétipo da anima, resultando daí o fato de as
afirmações do homem sobre a mãe serem quase sempre emocionais, isto é,
preconceituosas, impregnadas de “animosidade”. (JUNG, 2000b, p.103).

A fundamental conseqüência do contato com o trabalho analítico desenvolvido pelo


estudioso é a possibilidade de se estabelecer uma nova perspectiva sobre a visão e
comportamentos do homem relativamente à mulher, que parece partir, basicamente, de seu
interior, comprometida com ângulos, quase sempre, pouco iluminados e que parece agir,
inclusive, como elemento determinador das escolhas feitas daquela que será seu objeto
amoroso:

No filho, o fator que forma as projeções é idêntico à imago materna e por


isto esta última é tomada como sendo a verdadeira mãe. A projeção só pode
ser desfeita quando o filho percebe que há uma imago da mãe no âmbito de
sua psique, e não só uma imagem da mãe, como também da filha, da irmã e
da amada, da deusa celeste e da Baubo ctônica universalmente presente
como imagem sem idade, e que toda mãe e toda amada é, ao mesmo tempo,
a portadora e geradora desses reflexos profundamente inerentes à natureza
do homem. Ela lhe pertence, esta imago da mulher. (JUNG, 2000a, p.10-11)

3
“Personalidade supra-ordenada. Um aspecto da psique que é superior ao ego e que o transcende.
(SHARP,/s.d./, p.123, grifo do autor.)
51

A pertinência da evocação de tal particularidade masculina vai sendo fortalecida,


quando qualidades negativas dessa possessão vão se fazendo mais presentes no texto, eleitas

pelos seres ficcionais e motivadas pelo sentimento de incompletude, fato que pode gerar uma
imagem psíquica de Mãe Terrível, o que já foi tão amplamente discutido neste capítulo:

No menino aparece na mãe uma certa forma de anima, conferindo-lhe a


radiância do poder e da superioridade ou então uma aura demoníaca, talvez
ainda mais fascinante. Devido porém à ambivalência, a projeção pode ser de
natureza inteiramente negativa. Grande parte do medo que o sexo feminino
suscita nos homens é devido à projeção da anima. (JUNG, 2000b, p.199)

Tal imagem surge na criação luftiana com todas as atribuições negativas do arquétipo,
nos relacionamentos com diversas personagens masculinas, misto de hostilidade e atração, por
tal forma evidentes seus atributos que, normalmente, a insensatez da opção fica nítida para as
demais personagens envolvidas:

Com o tempo fui entendendo que as preocupações de tia Dora não eram
infundadas: Mariana não ligava para o marido, e só Deus sabe que estranho
fascínio o prendia tão loucamente a ela. (AP, p.90)

Envelhecida, Renata ainda o perturbava. Qual seria o encantamento com que


o seduzira há vinte anos, e que ainda brotava dela? (OQF, p.42)

Talvez Olga, que não era filha dela, tivesse razão ao me dizer, mais tarde,
que Mateus mimava a mulher, parecia bobo diante dela porque a amava;
porque, seduzido pela figura miúda e perfumada, casado, não admitiria um
fracasso, e se submetia às suas infantilidades quando estava em casa. (AS,
p.17)

O tio Nando tivera arrancado o coração, a luz de dentro. A nova mulher


chegava seduzindo com aquela voz rouca, chamando, chamando. (OPC,
p.115)

O primeiro desses agentes narrativos pode ser detectado logo no romance inicial, o
qual inaugura a lista de recriações masculinas presas a suas próprias projeções psíquicas de
mulher. Muitos dos atributos que, por forças culturais, o imaginário coletivo, principalmente o
patriarcal, estabelece para a mulher – “Por que se prendera em quem não o amava, ele tão
terno, delicado? Obscuridades.” (p.92) –, podem ser identificados, ao contrário, no “interior”
dessa personagem masculina, mas que, em sentido oposto do desejável, ela mantém
encarcerados – “Ele, cada dia mais sozinho num canto do apartamento, com seu piano e seu
52

mundo no qual ninguém entrava, nem a ruiva.” (p.93) – e que só permite deixar fluir através
da música:
Tínhamos falado das nossas vidas, eu queria descobrir o que havia no meu
primo que o fazia recolher-se de vez em quando para um mundo só dele,
atrás das pálpebras meio descidas, especialmente quando tocava. Ele temia
alguma coisa: não fantasmas no sótão, como eu, mas algo intangível, mais
perigoso, mais devorador. (p.75)

Otávio, definido pela narradora por sua dubiedade, questão que se volta a discutir no
subcapítulo 6.7.2 e que se torna, portanto, um complicador em suas relações – “Comecei a
notar que ele não sabia bem o que fazer com sua mulher.” (p.91) –, por ser filho adotivo de
Dora, já permite admitir, no mínimo, um relacionamento frustrado com a mãe natural e,
incompleto, com a substituta: “Tia Dora não tivera filhos, mas adotara aquele bebê, criava
como podia, não era fácil, ela viajava muito. Mas ele parecia um rapaz independente,
arranjava-se com amigos, internatos quando era preciso.” (p.67):

No estado de possessão ambas as figuras4 perdem seu encanto e seus valores,


que só possuem em estado de despreocupação em relação ao mundo
(introversão), isto é, quando constroem uma ponte para o inconsciente.
Voltada para fora, a anima é volúvel, desmedida, caprichosa, descontrolada,
emocional, às vezes demoniacamente intuitiva, indelicada, perversa,
mentirosa, bruxa e mística. (JUNG, 2000b, p.129).

E então reaparece a figura da bruxa, tão comprometida com a Mãe Terrível como
parece ser o aspecto negativo que assume a anima inadequadamente fixada no interior e, da
mesma forma, inadequadamente projetada:

Mariana e sua cara de bruxa. A única mulher com quem, talvez, ele se
sentisse a salvo? Malvada assim, e única? Ou Mariana, sabendo da sua
fraqueza, se ria dela, a explorava deixando-o humilhado e cada vez mais
preso? (p.135)

A confirmação da verdadeira fonte de onde partem as características da anima


refletidas no exterior pode ser identificada, fartamente, em suas reconstruções artísticas, fato
que o mesmo criador do conceito, por diversas vezes, já observara em seus escritos, e que o
texto de O ponto cego sobre Nando, o tio do Menino, volta a confirmar, em um momento em
que a desconstrução do modelo patriarcal é magnificamente conseguida: “É fácil gostar de
quem não se finge de forte, e se entrega à fraqueza para ser mais real.” (p.115). Pois é

4
As duas figuras mencionadas são a anima e o animus.
53

justamente tal personagem masculina, tão sensível, que perdera mulher e filho de forma tão
trágica, que proporciona ao leitor uma segunda versão da patológica convivência
masculino/feminino – “E depois vem a continuação: a feiticeira que o chamou quando ele não
queria ir porque ainda chorava a morte da outra.” (p.115) –, cercada de adulterações
psíquicas, de As parceiras:

- Seu irmão parece enfeitiçado – disse um dia ao meu Pai –, o Nando é tão
bom, coitado, já sofreu tanto, estava na hora de ser feliz. Mas desconfio que
foi se apaixonar pela mulher errada. (p.116)

Ecoando seu mestre, Marie-Louise von Franz (2003b, p.151) explica: “É por isso que
um homem que não está em contato com sua anima é seco, embotado, intelectual e
praticamente sem vida. Houve ocasiões em que cheguei a definir a anima como o estímulo
para a vida.”. O encontro ficcional perfeito com a teoria da anima prossegue:

Tocado de tanta morte, ouvindo o insistente chamado da vida apaixonou-se


outra vez, e foi como se revivesse: sem cuidado nem reservas, ele se
inflamou. (OPC, p.115)

Em Reunião de família, agregam-se filhos completamente destroçados em seu


psiquismo, quando se acumpliciam um pai tirânico e a morte prematura da mãe pessoal, única
oportunidade de consolo afetivo, o que é capaz de despertar o lado negativo do arquétipo,
traduzido em imagens e símbolos, como se viu em avaliações anteriores. Para Renato, porém
a questão se intensifica, ainda, pela agravante presença de uma anima descontrolada, que o
subverte nas águas revoltas de sua doentia projeção:

Talvez Renato a amasse, mas de longe, como às vezes amamos o que é mais
oposto, mais diferente de nós. Ela insistia, não saía de perto dele, usava da
sedução do seu olhar dourado, das maneiras desinibidas, da voz sensual.
Renato entregou-se: é como se ela se punisse fazendo-o sofrer. (p.62)

A caracterização cabal da natureza de tal relacionamento é brilhantemente simbolizado


em “A Medusa casou-se com meu irmão, estão se devorando mutuamente.” (RF, p.57). O
recíproco sentimento assim enunciado, já marcado em Otávio naquele “algo inatingível, mais
perigoso, mais devorador”, dissemina uma das principais particularidades da negatividade do
arquétipo materno, assim sentido e representado, independentemente da presença realizada ou
não da mãe pessoal:
54

Para o filho, a anima oculta-se no poder dominador da mãe e a ligação


sentimental com ela dura às vezes a vida inteira, prejudicando gravemente o
destino do homem ou, inversamente, animando sua coragem para os atos
mais arrojados. (JUNG, 2000b, p.39)

Nesse romance, o epíteto de bruxa, do qual a enunciação se vale repetidas vezes para
expressar essa figura emergente, é significativamente substituído pelo de Medusa, ao conferir
todas as características da entidade mitológica à personagem Aretusa, recurso artístico
carregado de dramaticidade que intensifica e dá uma feição nova à concepção ideológica
embutida no outro:

Certamente de noite vai me procurar para falar de Renato, a quem ama e


atormenta; que é apaixonado por ela e a odeia; uma confusão de emoções
que nem eles devem entender. (p.26)

A tendência para uma justificativa que se baseie em uma causa psíquica para essa
união, sem qualquer explicação racional, ou ainda afetiva, como se comprova nos trechos
“Não sei por que Aretusa o procurou...” (p.62) e “Nunca entendi esse casamento...” (p.17),
vai sendo estimulada à medida que o laço materno-filial subentendido, estabelecido via
anima, é decodificado:

Mas Aretusa é uma mulher emancipada; trabalha fora e não precisa do


consentimento de meu irmão para nada; talvez Renato nem reclame, porque
a maior parte do tempo é ela quem sustenta a casa. Ele apenas abaixa a
cabeça quando a mulher o critica em público. (p.11-12)

Assisti a várias brigas deles: Aretusa começa a gritar, fica vulgar e feia,
perde a compostura. Ele se encolhe, cabeça baixa, como se pensasse merecer
aquele tratamento. (p.66-67)

As palavras da própria irmã parecem não querer deixar espaço para uma dúvida quase
completamente neutralizada:

Talvez antes de dormir Renato rasteje para a cama da mulher: quer ser minha
mãe, quer? (p.124)
55

Embora seja permitida uma atenuação das cores com que é concebida, caso se entenda
que há um possível exagero valorativo motivado pela parcialidade da opinião da filha
narradora, a ligação afetiva Mateus/Elsa (A sentinela), ainda que sem a marca tão explícita
dos dois casos anteriores, também pode ser aqui referida: “Mas meu pai lhe era submisso,
diante dela perdia a força, – seu jeito imperioso se tornava dócil, fazia brincadeiras bobas,
deixava-se dominar: e eu sentia uma raiva surda, pois sabia que muitos comentavam: ‘Ela faz
dele o que quer’”. (p.15)

É em O quarto fechado, entretanto, mesmo que não guarde as características


fornecidas por Jung e identificadas no presente conjunto narrativo, que se podem inferir todas
as implicações do arquétipo aqui avaliado: “Ella: quem teria escolhido para a menina sem pai
o nome ambíguo, profético, de meia humanidade, meia ausência?” (p.53).
Imediatamente atraído pela originalidade do nome – “Renata ficara intrigada: havia
sombras nos olhos de Martim ao falar nela; o nome dúbio, as reticências despertaram-lhe a
curiosidade.” (p.55) –, aos poucos, o leitor vai tomando conhecimento de um jogo montado
sobre uma questão polissêmica: é substantivo próprio, mas, ao mesmo tempo, é pronome
pessoal, representativo de aspectos categoriais, de gênero feminino e, nesse sentido, está
ligado intrinsecamente à anima de Martim, projeção de toda a sua sensibilidade:

Ella, antiga e perfeita, esperava ainda por ele para viverem um ardente amor.
(p.58)

Martim falava e falava: sentia que cumpria assim um doloroso pacto com um
doloroso amor. (p.58)

Mas é o destino, traduzido por “Mamãe” e que passa a agrupar em si o paradoxo da


positividade e da ironia, como já foi comentado, o que se colore de marcante significação para
o estudo empreendido, quem afasta Martim da reunião, quase natural, com o reflexo de sua
mais íntima idealização e o arroja contra o erro que forjará, não só seu enganoso futuro, mas a
criativa teia narrativa do romance: “Martim só voltara a vê-la dias depois, paralisada numa
cama, mal o reconhecendo: Ella iniciara uma viagem sem retorno para longe dele, que só a
podia contemplar do lado de cá.” (p.54)
Assim, a mulher a quem a personagem masculina se entrega – “Envergonhava-se:
Renata fora a sua fraqueza, sua humilhação.” (p.16) – e sobre quem a experiente Mamãe fora
capaz de fazer, imediatamente, seu julgamento – “Vendo Renata, ficara frustrada: não era
56

mulher para ele. Aquele passarinho distraído podia até ser uma grande pianista, mas não
acompanharia o ritmo de Martim.” (p.60) –, passa a ser a encarnação da anima negativa:

Ao encontrar Renata, também ele se sentia só. Queria laços, emoções


estáveis. Queria uma mulher que lhe adoçasse a vida e compensasse as
durezas do trabalho.
(Mas não poderia ter sido aquela.) (p.40)

Embora este capítulo pareça encerrar-se, é importante a ênfase no fato de que todos os
seguintes prendem-se a uma cadeia que estrutura, com perfeição, a economia textual da
escritora, de tal sorte que muitos elementos aqui investigados têm sua presença garantida em
outros capítulos, mas ressaltados, então, de aspectos diversos. Sob a luz da investigação
literária, vai sendo iluminada, aos poucos, toda a riqueza do multifacetado simbolismo de
Lya Luft.
57

4 A NATUREZA/MÃE: A VISÃO TRANSFORMADORA

*** Esse útero

Navega no espaço, solta e silenciosa,


como um seio-esfera,
como totalidade: Terra.
Fechada sobre si,
fechada sobre mim,
abraça a cria: Mãe.
Abre seu colo
e me dá ao universo,
no meio da noite.
Olhos de água,
corpo de terra,
hálito de vento,
mãos de árvores que me acenam na tempestade.
Amamenta-me com seus rios, cascatas e chuva.
Deusa-Gaia,
que me aguarda,
que me receberá novamente e para sempre,
filha de sua mãe,
em seu rotundo ventre.
(Eliane F. C. Lima)

O capítulo que ora se inicia caracteriza-se pela investigação de elementos quase


estritamente figurativos na obra luftiana e seu desempenho ficcional dentro das linhas
estruturadoras do enredo. O que se busca, então, é apreender por quais mecanismos está
ligado àquele tema que é a base da criação literária da obra, segundo a visão deste estudo – o
arquétipo materno não saudavelmente realizado – e o quanto sua inserção ultrapassa os
possíveis limites, se constituindo em recurso fundamental para o andamento da trama. Para
começar a estabelecer o percurso de avaliação aqui empreendido torna-se estratégica a
transcrição de dois trechos de A grande mãe (NEUMANN, /s.d./), que a ele se adequam com
perfeição:

Antes de ocorrerem os abrangentes fenômenos ligados à figura humana da


Grande mãe, verificamos o surgimento espontâneo de uma vasta gama de
símbolos, que se referem à sua imagem ainda não determinada e amorfa.
Tais símbolos, especialmente os da natureza em todos os seus reinos, estão
de certa forma marcados pela imagem do Grande Maternal, que vive neles e
lhes é idêntica, sejam eles uma pedra, uma árvore, um lago, uma fruta ou um
58

animal. Aos poucos eles se unem à figura da Grande Mãe como atributos e
criam o círculo de aspectos simbólicos que cinge a figura arquetípica e se
manifesta no rito e no mito. (p. 25)

Mesmo numa designação relativamente tardia como essa, está evidente que
não é meramente conceitual a combinação das palavras “mãe” e “grande”,
mas que esta consiste na reunião de símbolos coloridos pelo emocional.
“Mãe”, neste caso, refere-se não somente a uma relação de filiação mas
também a uma complexa condição psíquica do ego, da mesma forma que o
termo “grande” expressa o caráter simbólico de superioridade que a figura
arquetípica possui em comparação com o que está presente em todos os
homens e, aliás, em todas as criaturas. (p.25).

Desse modo, a natureza que cerca, indiscutivelmente, o ser humano, em todos os seus
aspectos, como um acolhedor ventre natural, capaz de proteção e provimento, é uma das mais
fortes referências para a criação de símbolos em relação àquilo que se caracteriza, em todas as
expectativas da cultura humana, como uma imagem materna, e, como tal, de surgimento de
vida, imagem extremamente arcaica para o ser humano, mas que, ainda modernamente, torna-
se um recurso artístico: “O ambiente simples me fazia bem. Ninguém repara nos meus
defeitos, eu me sentia quase tão amada quanto Anemarie, o peixinho dourado.” (AAEA,
p.49).
Esse fato é inteiramente verdadeiro no material ora analisado, não só como figura de
expressão, mas principalmente, como elemento básico para a construção da estrutura dos
romances. A natureza é um dos itens indispensáveis na condução do enredo: floresta, árvore
ou gruta5, como se pode comprovar, são pilares da narrativa em Exílio, Reunião de família ou
A sentinela: “...eu, mesmo sem compreender, sinto que Rosa lida com todo um mundo que
desconheço, mas existe, está aí, nós mergulhamos nele: o das forças da natureza, as palpáveis
e as indizíveis, bem e mal, vida e morte.” (AS, p.133).
De forma introdutória, podemos citar as palavras de M. Esther Harding (/s.d./, p.138-
139), quando focaliza essa natureza que, por sua presença constante nas manifestações
culturais humanas, indo muito além da pura necessidade de sobrevivência, revela-se
fundamental a seu psiquismo.

Essa mãe que é provedora de tudo, mãe dos deuses, dos homens e das
criaturas dos campos, aparece várias vezes nas mitologias primitivas.
Algumas vezes é a Mãe-lua e outras vezes a criativa Mãe-terra ou Mãe-
natureza. Em muitos sistemas, esses dois conceitos estão estreitamente
entrelaçados, de maneira que é difícil dizer se algumas das antigas deusas

5
Para maior esclarecimento, consultar o capítulo “Aspectos psicológicos do arquétipo materno”, (JUNG, 2000b,
p.92).
59

mães foram primeiramente divindades da terra ou da lua; com efeito, cada


uma delas era considerada como representante do mesmo poder generativo.

A importância psicológica da Terra, mãe natural, por exemplo, se evidencia pelo


surgimento continuado, na obra analisada. Tomada como figura estilística com o significado
que mantém relação com “matéria”6, cuja raiz latina – mater -tris – é a mesma de “maternal”,
de “matriz”, sua utilização nessa expressão específica ajuda a caracterizar não só uma das
personagens masculinas à qual alude, mas termina por ampliar a noção de mãe a esse mesmo
elemento natural: “Pianista de sucesso, Renata descera dos palcos para o mundo de Martim,
um mundo terra-a-terra, forte e racional” (OQF, p.15).
A metáfora da ficcionista anteriormente citada, então, opõe fortemente as duas
personagens, Martim – “um mundo terra-a-terra” – e Renata – “descera dos palcos” –,
definindo-as, de forma indireta, individualmente, e na maneira de ser que as separa, confronto
que encaminha o enredo, ele com maior inserção nesse círculo materno do que ela.
Em seu livro O gato, Marie-Louise von Franz (2003), a propósito das implicações
simbólicas que cercam a viagem de uma determinada personagem de um conto analisado,
confirma o significado empregado por Lya Luft para o elemento aqui estudado, esclarecendo
alguns aspectos que devem ser trazidos para este estudo como dado elucidativo: “Se for por
terra, ela permanece no campo da consciência, pois a terra geralmente representa a superfície
sobre a qual podemos nos manter, território conhecido” (p.43). E mais adiante, continua a
precisar-lhe o alcance simbólico, ao estabelecer-lhe o contraponto: “Sem dúvida, porém, o
imperador tem intuição correta, ou seja, que é necessário um remédio mais forte, uma viagem
noturna pelo mar, algo do inconsciente.” (p.44).
Mas a Terra, abrigo natural de seus habitantes diante do imenso universo, é, não só a
sua mais importante casa, como a provedora das suas necessidades fundamentais. Nesse
aspecto, se irmana à mãe pessoal, símbolo uma da outra, fundidas ambas dentro do psiquismo
humano. Em O grande livro dos símbolos, encontramos a seguinte definição para o verbete
MÃE:

Natureza, a terra e suas águas, fertilidade, alimento, calor, abrigo, proteção,


dedicação, mas às vezes também uma imagem de amor sufocante, destino
mortal e túmulo. Esculturas paleolíticas, talvez datando de 30 mil anos,
sugerem que as figuras maternais com seios intumescidos foram os mais
antigos de todos os símbolos da fertilidade.7 E, embora muitas cosmogonias

6
Ver Dicionário etimológico Nova fronteira da língua portuguesa, verbetes “mãe” (p.488) e “matéria” (p.506)
(CUNHA, 1998).
7
Ver anexo 2, pág. 217 desta Tese.
60

identifiquem divindades criadoras masculinas ou de sexo dual como a fonte


original da vida, é possível que fossem precedidas pela veneração de deusas-
mães que personificassem a Natureza, a Terra ou a própria Força Criadora.
Hesíodo (c.700 a.C.), o poeta que sistematizou a mitologia grega, situou Gê
ou Gaia (a Terra) em primeiro lugar, na sua genealogia dos deuses, como a
“mãe universal, solidamente estabelecida, a mais antiga das divindades”. Ela
deu à luz os deuses e, segundo o mito ático, o primeiro ser humano,
Erictônio. No mundo greco-romano, a veneração de símbolos da natureza
materna, inclusive Réia e Démeter, culminou na Grande Mãe frigia Cibele,
cujo culto foi um rival inicial do cristianismo. (TRESIDDER, 2003, p.216)

Como ficou claro, a natureza, desdobrada em seus mais variados aspectos, sempre
surgiu nas produções do imaginário humano carregada de simbolismo materno. A obra de Lya
Luft, que confirma essa tendência, foi o caminho principal para as pesquisas e conclusões
aqui levantadas: “Eu aprendia bem, aprendia depressa, mas tinha certeza: Olga nunca
precisara aprender: nela, era instinto, era coisa de mãe-terra.” (AS, p.100). O estudo das
conseqüências da ausência materna, que é entendida como a fonte básica da arquitetura
ficcional da escritora presentemente apreciada, não poderia fugir dessa natureza
insistentemente evocada, embora funcionalmente ambígua em seu texto, que, a par de sua
carga concreta, emana de si um segundo aspecto, transcendental, esse realmente importante
para a construção do significado.

4.1 A árvore simbólica

A árvore, como observou Jung (2000b, p.92), é um dos símbolos do arquétipo


materno. Não é por acaso, portanto, que ela surgirá em Reunião de família, onde impõe-se
como imagem concreta, fundamental no eixo da intriga, ainda que duplicada
significativamente. Por sua importância como símbolo materno, tem um espaço maior de
análise neste segmento, porém é pela árvore estritamente metafórica de As parceiras, que se
inicia a abordagem.
Para se focalizar esse elemento de tanta significação artística, a árvore, faz-se
necessário o registro da carga simbólica que carrega e que é descrita em textos dos mais
variados estudiosos do imaginário humano.

A árvore tem o significado de maternal, de uma parte como lugar de


nascimento e de outra parte como sepulcro (esquife, árvore mortuária,
sarcófago etc.); da mesma forma, como uterus (útero) e como o líquido
amniótico. (JUNG, 1990. p.33-34)
61

Como árvore da vida que dá frutos, ela é feminina: gera, transforma e nutre;
as folhas, os ramos e os galhos estão “contidos” nela e lhe são dependentes.
O aspecto protetor torna-se claro na copa, que abriga os ninhos e as aves.
Além disso, a árvore desempenha a função de conter, porquanto é o tronco
“dentro” do qual vive o seu espírito, assim como a alma habita no corpo.
(NEUMANN, /s.d./, p.53)

A evidência que se impõe é a presença universal da grande Mãe, que se vê


representada com animais diversos (serpentes, aves, simbolizando os
poderes da terra e da fecundidade; grandes feras encarnando as forças vivas
da natureza), ou com a árvore e a planta sagrada, por exemplo com a coluna
e o pilar, derivados da árvore. (LÉVÊQUE, /s.d./. p.12)

O mistério da inesgotável aparição da Vida corresponde à renovação rítmica


do Cosmos. É por essa razão que o Cosmos foi imaginado sob a forma de
uma árvore gigante: o modo de ser do Cosmos, e sobretudo sua capacidade
infinita de se regenerar, é expresso simbolicamente pela vida da árvore.
(ELIADE, 1992, p.121)

No romance As parceiras, é indiscutível sua inserção como força expressiva.


Estabelece-se como uma ligação histórico-genealógica entre as diversas personagens,
destituída da carga geradora de vida, que normalmente encerra, e carregada de impulso
negativo, tomando parte, coerentemente, na representação do vácuo do desejado arquétipo
materno, que é a força da estrutura narrativa – “Engravidei. Não podia, mas ia deitar novo
fruto. Uma árvore apenas meio-estéril, porque o fruto vinha, mas cedo demais, chocho,
encolhido, morto. E agora?” (p.120-121).
Seu aproveitamento como versão materna se dá das formas mais variadas,
principalmente quando, seccionada em suas diversas partes, vai apresentando-se, com
significados específicos e aprofundados. Engenhosamente, tal recurso artístico consegue
intensificar essa faceta negativa arquetípica.

Essa tia anã era o fruto mais caprichado da árvore temida, a árvore familiar
de que eu também fazia parte. Só quando Lalo nascesse, eu entenderia como
esse medo fora grande. (p.61).

Vânia era agora a neta de Catarina. A sobrinha de Sibila. Minha irmã. A


possibilidade de que do ventre liso despontasse uma ponta de galho da
árvore doente. (p.48)

Vim para o Chalé, resolver sabe Deus o quê. Pensar, ficar sozinha. Repassar
o filme, avaliar o jogo. Tudo acidente ou predestinação? Raízes de Catarina
von Sassen, ou acaso da vida? (p.143)
62

Essas raízes da árvore familiar doentia, profundamente fincadas numa simbologia


materna não realizada, estende seus galhos de frustração por toda a obra. Mas sua recorrência,
ultrapassa a primeira obra e a imagem retorna em Exílio:

Esticada sobre a cama, olhos cerrados, penso em meu irmão. Revejo-o


criança; depois, na cama da mãe morta; suas mutações até transformar-se
nessa criatura de agora. Nunca teve chão bondoso onde se deitar, criar raízes,
erguer sua casa. (p.71)

No último exemplo, é preciso se atentar para o fato de que “raiz”, agora com um
aspecto de saudável necessidade, não é apenas uma metáfora superficial: “O que é
verdadeiramente sólido sobre a terra tem, para uma imaginação dinâmica, uma forte raiz.”, diz
o já citado Bachelard (/s.d./b, p.226). Conforme se percebe, no texto transcrito, é introduzida,
significativamente, ao lado do vocábulo casa, estabelecida uma relação através de um outro
elemento, “chão bondoso”, apontando os três, finalmente, para a idéia de terra e,
explicitamente no exemplo, para “mãe”, constatação que o próprio romance justifica.
Torna-se oportuno relembrar, portanto, a passagem anteriormente transcrita do mesmo
Bachelard sobre essa imagem idealizada da casa, introduzida no exemplo, aquela que ressurge
nos sonhos, mas também mencionar-lhe os comentários sobre as imagens literárias da raiz,
esse elemento a que a escritora recorre com uma freqüência decisiva e que, com a outra, fecha
o círculo de significação aqui pretendido:

Multiplicaríamos sem dificuldade os exemplos que provam que a imagem da


raiz se associa a quase todos os arquétipos terrestres. De fato, a imagem da
raiz, desde que sincera, revela em nossos sonhos tudo aquilo que nos faz
filhos da terra. (Ibid., p.228)

Em Reunião de família, ressurge a árvore, um grande álamo que é cortado, quando


cortada é a ligação mãe/filho – Evelyn e Cristiano –, ligação que, para a primeira, tem uma
importância fundamental, como início de um vínculo que ela mesma não tinha vivido: a morte
prematura de sua mãe não deixara nos filhos, torturados por um pai neurótico e castrador, nem
o consolo da lembrança. Assim a palavra raiz é empregada num entrelaçar denotativo e
conotativo, um complementando o outro. Se o componente da árvore aparece em seu aspecto
físico, adiante ele pode ser convocado como metáfora:

As raízes levantaram as lajes em muitos lugares; da última vez em que estive


aqui ainda não se notava. Agora, desde que não têm o tronco para alimentar,
63

parece que criaram força dobrada: expelem brotinhos de álamo que passam
espremidos por qualquer fenda. (p.28)

Ninguém nos falava em nossa mãe, era como se tivéssemos nascido sem ela;
desenraizados. (p.34)

E o elemento da natureza vai se revestindo, dentro do próprio universo da ficção,


desse aspecto de símbolo maternal, de refúgio, de proteção, como quando Renato, em um
momento de extrema tensão, abre a janela e “solta um grande grito”. “Ou foi ‘mãe’ que ele
gritou?” (p.87) diz Alice. A alusão da protagonista, imediatamente, à árvore revela esse
aspecto nada casual e o transbordamento representativo que esta adquire em sua mente.

Vai se esconder nos ramos da árvore? Sei que foi cortada, mas hoje nesta
casa tudo é possível, não duvido que Renato suba pelos galhos inexistentes
para dependurar no alto a sua dor. (p.86-87)

Mas se a mãe pessoal havia morrido, o arquétipo permanece vivo. E a árvore que, a
princípio se apresentara como um elemento físico dentro da estrutura narrativa,
paradoxalmente, à medida em que cresce em força e impõe sua presença dominadora como
matéria, vai se revelando como um elemento psíquico indomável e avassalador. Ela não quer
ser esquecida. Parece ser marcante, ainda, o fato da escolha dessa árvore como álamo, se
atentarmos para a seguinte definição de Chevalier e Gheerbrant (1995):

De acordo com as lendas gregas, o álamo era consagrado a Hércules.


Quando o herói desceu aos Infernos, ele fez para si uma coroa de ramos de
álamo. O lado das folhas voltado para ele permaneceu claro, o lado voltado
para o exterior tomou a cor sombria da fumaça. Daí vem a cor dupla de suas
folhas e é nessa diferença que se funda a simbologia do álamo. Ele significa
a dualidade de todo ser. (p.26)

E é o próprio texto que vai desfazendo para o leitor a materialidade desse elemento da
realidade palpável e revelando de onde vem a natureza subterrânea daquela árvore. É preciso
notar que, se Alice, misteriosamente, não se lembrava da mãe, o inconsciente tem seus
recursos e cria uma imagem à altura, a árvore que não quer morrer.

Nesse instante, todos ouvimos uma grande voz. Que voz é essa? Fora de
casa, um rumor como de ramos poderosos inunda o pátio, derrama-se pela
janela, um sopro que envolve nossos cabelos.
A essa respiração fantástica mistura-se o fervilhar da vida subterrânea, as
raízes imortais que expelem sua seiva das profundezas.
64

É absurdo. É impossível. Mas estou ouvindo, todos estamos ouvindo: uma


árvore decepada farfalha com suas ramadas inexistentes. No galho mais forte
embala-se um menino sem pernas; a pobre mãe demente o empurra enquanto
com a outra mão segura um boneco de pano. (p.119-120)

Uma “grande voz” para uma Grande Mãe, nos braços da qual se embala um filho, já
agora sem mãe, junto com uma mãe sem filho Uma análise do trecho identifica uma
exacerbação dos adjetivos que equivale a essa imagem – “ramos poderosos”, “respiração
fantástica” – e o emprego de verbos que a ela se adequam: “inunda”, “derrama-se”,
“envolve”. E se em um momento anterior, Alice, sonolenta, já ouvira aquele farfalhar, o qual
atribui à “voz da lembrança; ou meu desejo de que o álamo continuasse ali.” (p.38), aqui
amplia para todos o testemunho do absurdo, do impossível. Nesse momento, pode-se
compreender também a imagem do menino sem pernas como uma simbolização de Alice e
seus irmãos. Deve-se chamar a atenção para a reaparição reforçadora do boneco de pano, o
palhaço, cuja interpretação, igualmente ligada à mãe, foi esclarecida em segmento precedente.
Apesar de não se lembrar da mãe pessoal, a raiz da árvore que não se rende vai
desmentindo simbolicamente o adjetivo “desenraizados”, atribuído à Alice e seus irmãos, e
reconquistando o espaço mnemônico a que tem direito: “Já se vêem árvores diminutas
sacudindo folhas desproporcionalmente grandes rente ao chão. Um câncer vegetal, roendo as
profundezas ignoradas; logo invadirá a casa.” (p.28).
Os comentários de Bachelard (/s.d./b) são ainda ideais para estabelecerem toda a
dimensão imaginativa embutida no recurso a esse processo expressivo:

A verdadeira comedora de terra, a serpente mais terrestre de todas, é a raiz.


O devaneio materializante realiza incessantemente uma assimilação da raiz à
terra e da terra à raiz. A raiz come a terra, a terra come a raiz. (p.242)

Assim, uma espécie de síntese ativa da vida e da morte aparece muitas vezes
na imaginação da raiz. A raiz não é enterrada passivamente, ela é o seu
próprio coveiro, ela se enterra, não cessa de se enterrar. (p.239)

As palavras do filósofo são a caracterização perfeita daquela árvore. Embora


arrancadas quase diariamente pela velha empregada, sem tronco que a mantenha ou folhas
que a anunciem, suas raízes, numa relação intrínseca com a terra, testemunhando uma
recordação não consciente, vão caminhando pelo chão, tentando penetrar na casa, arrancando
um solo que, metaforicamente, esconde um sentimento arcaico. Está sempre ali, traduzida em
substância, mas cobrando sua importância psicológica, a qual não deixa morrer o sofrimento
em Alice e seus irmãos em relação à mãe, perpetuando o sentimento que adoçara e apaziguara
65

por algum tempo a fria Evelyn. Se a morte cortara o laço com aqueles filhos ou de Evelyn
com seu menino, a mesma morte é inócua em relação à memória primordial que não se pode
apagar: “Saio da cozinha para o pequeno pátio, limitado pelos muros de outras casas antigas e
modestas. Sento num banco que oscila, o chão está todo em desnível, várias lajes levantadas
pelas raízes do álamo decepado.” (p.44).

4.2 Floresta e mãe: o regaço

Do mesmo modo que a árvore, a floresta é também, segundo Jung, plena de


significado materno para o ser humano. A citação é do verbete “floresta”, ainda, em O grande
livro dos símbolos:

A escuridão úmida, terrosa e semelhante a um útero da floresta ligava-se no


mundo antigo a idéias de germinação e ao princípio feminino. Para os
druidas, era a parceira feminina do Sol. Entender a floresta, suas plantas e
seus animais era a marca de dádivas xamanistas, notavelmente na América
central. (p.146-148)

É essa mesma natureza físico-simbólica que surge em Exílio. Ali, a representação


materna aparece metamorfoseada em selvagem natureza, o que reforça, definitivamente, essa
presença psíquica primitiva. A floresta que limita a Casa Vermelha por um dos lados, não se
prende ao estereótipo romântico, prenhe de exuberância e idealizada. Poucas vezes é descrita
como um todo, mas sempre “sedutora e inatingível”. É bastante significativa, nesse aspecto, a
resposta dada pela moça “Morena”, personagem do romance: “- Proibido, filha – diz ela – É
reserva. Não se pode entrar.” (p.64). Estabelece, também, nessa característica, um paralelo
seguro com a interdição materna.
Na maioria das vezes, surge em detalhes, caótica, e, da mesma sorte que a outra,
bêbada e doente, são sempre frações de dissolução os expedientes utilizados para caracterizá-
la, como exemplificam com perfeição os trechos seguintes: “...ramos caídos, madeiras podres,
silenciosos vermes, cogumelos; tudo tão longe das copas do sonho...” (p.14) e “Cheiro de
mato, almíscar, musgos úmidos. Decomposição e nascimento, cogumelos saltando do
esterco.” (p.200).
Com o mesmo encaminhamento que os demais elementos constitutivos da trama
literária, pode ter uma presença física – pouco em Lya Luft pode ser entendido como
estritamente físico –, mesmo com fortes indícios metafóricos, ou ser apenas um elemento
retórico de descrição de angústia, o que é passível de se depreender em “Amanhã visitarei
66

Gabriel, meu irmão, que não vejo há alguns dias; e a quem a mata que tudo engole já
devorou.”( p.22) ou ainda em “Gabriel fita o teto, como se eu não estivesse ali: seu coração é
uma floresta na qual ninguém penetra.” (p.70)
Em outros momentos, os dois aspectos se superpõem, de tal forma entrosados, que o
leitor tem dificuldade de distinguir com qual dos dois recursos a narradora está lidando. E
essa estratégia estilística, destrói os limites entre o palpável e o imaginado, entre verdade
física e verdade psicológica, adensando a forte ambientação de inconsciente que o texto
recria, principalmente, pois a floresta é um símbolo forte, também, desse estrato psíquico8:
“Agora, Gabriel vegeta numa floresta sem saídas; e eu deparo com uma floresta para a qual
não vejo entradas.” (p.31). Se à protagonista está vedada a última fronteira possível com o tão
ansiado encontro, o irmão, em sua alienada loucura, permanece enclausurado no locus da
inconsciência.
Aos poucos, os indícios maternos da floresta vão sendo reforçados. Os atributos de
uma e de outra e suas possíveis ações vão sendo confundidos e vão relacionando as duas
imagens:

Mas ela, a minha rainha, composta, majestosa, a quem eu admirava como a


uma floresta de sonhos numa montanha? (p.59)

No quarto, duas grandes janelas gradeadas pelas quais a floresta abre seus
braços dia e noite para meu irmão: ele não quer que se fechem as venezianas.
(p.66)

Observe-se que o “abrir os braços”, observado em diversas passagens, é uma ação


caracterizadora de mãe nos textos de Lya Luft: “Virei-me, num milagre meu filho chegara?
Mas, numa dolorosa inveja, fiquei olhando a mulher de cabeleira vermelha, braços abertos,
acolhendo um menininho parecido com o meu, que corria para ela.” (E, p.80-81).
Ao final da narrativa, a protagonista quase explicita a representatividade daquela
floresta, não deixando qualquer espaço para uma segunda interpretação: “Aperto os dentes:
sei qual a casa para onde preciso ir. Minha mãe foi uma floresta de enigmas: descobrirei uma
entrada e uma clareira para saciar minha sede.” (p.194)
No desfecho de sua procura, morto o anão, como o início de uma tomada de posição,
busca de equilíbrio e renovação, resolve voltar para casa, indo ao encontro do filho, assunção
possível, em si, do arquétipo materno.

8
“A floresta que escurece, a ponto de seu interior mergulhar na penumbra e regredir ao estado de mata virgem,
significa um transportar-se ao seio do inconsciente.” (JUNG, 2000a, p.125)
67

Mas o leitor é surpreendido, porque é na floresta que ela entra, pela primeira vez, só,
aventurando-se, em última instância, a empreender o derradeiro e único encontro, mesmo que
apenas representativo, com a mãe.

Aqui haverá enfim lugar, como nunca tive. Avanço rápido, arfando:
-Mãe, mãe... (p.200)

Agora, a floresta é explicitamente, casa e mãe. Através dessa tática, o entrelaçamento


de uma nova imagem vai estendendo e reiterando o significado simbólico de cada uma.
E o leitor depara-se com um novo acontecimento inesperado: para buscar o filho, ela
procura antes pela mãe, ficando claro que a segunda experiência, pelo menos no mundo
narrativo, só se efetiva após a realização completa da primeira. E esse duplo aspecto, portanto,
diminui a figura da mãe pessoal, já morta. É incontestável que na floresta, elemento, no texto,
de alta relevância psicológica, símbolo do inconsciente, o que se realizará será, finalmente, o
apaziguamento com o arquétipo materno: “Mas posso me aninhar num regaço transitório,
entre essas raízes cúmplices, chão eterno.” (p.200)
Não é por acaso que o texto se fecha nos versos finais de um poema que remete à
“venerada mãe” da página 57: “ah maldita/ ah venerada / enfim.” (p.201).

4.3 A gruta: o útero materno

Ainda dentro da coerência interna da obra, que delineia, implícita ou explicitamente,


essa omissão do materno devido ao não preenchimento pela mãe pessoal, falha apresentada
com as mais diversas facetas em cada um dos romances, surge a gruta, já aludida, de forma
superficial, no item 4.1. Delineia-se como forte elemento significativo de ventre, já pela sua
própria estrutura de acolhimento, bastante claro desde o homem primitivo, já pela carga
simbólica adquirida além desse fato, ou talvez, por causa dele mesmo. O redondo, descrito
por Neumann, na obra freqüentemente mencionada, é, no imaginário humano, a forma mais
acabadamente significativa do útero e a psicanalista Franz também diz que “Todos os
recipientes, qualquer coisa que sirva como recipiente, têm uma conotação feminina.”
(FRANZ, 2003b, p.137). É, ainda, o oportuno texto de A terra e os devaneios do repouso
(BACHELARD, /s.d./b) quem reforça, com detalhes esclarecedores, tal aspecto:

Desde que nos orientemos na sombra, longe das formas, esquecendo a


preocupação com as dimensões, não podemos deixar de constatar que as
imagens da casa, do ventre, da gruta, do ovo e da semente convergem para a
68

mesma imagem profunda. Quando aprofundamos no inconsciente, essas


imagens vão perdendo aos poucos sua individualidade para assumir os
valores inconscientes da cavidade perfeita. (p.158)

A gruta é uma morada. É a imagem mais clara. Mas exatamente por causa do
apelo dos sonhos terrestres, essa morada á ao mesmo tempo a primeira e a
última morada. Torna-se uma imagem da maternidade, da morte. O
sepultamento na caverna é uma volta à mãe. A gruta é o túmulo natural, o
túmulo preparado pela Mãe-Terra, a Mutter-Erde. (p.159)

Assim a gruta acolhe sonhos cada vez mais terrestres. Morar na gruta é
começar uma meditação terrestre, é participar da vida da terra, no próprio
seio da terra maternal. (p.160)

Desse modo, como ventre de uma mãe natureza, em A sentinela, a gruta traduz o
sentimento de incompletude arquetípica da protagonista, marcando-se como mãe devoradora,
predominância da característica mais primitiva, que “demonstra a tendência de conservar para
si aquilo a que deu origem e envolvê-lo como uma substância eterna”. (NEUMANN, /s.d./,
p.36).
Reduplicando uma situação de preferência – “...acho que Lilith era tudo para ela, Lilith
lhe bastava. Aí perdeu a filha amada...e sobrei eu.” (p.29) – o espaço da gruta, dominado pela
irmã mais velha, conseqüentemente, estimula a sensação de rejeição. Quando a irmã não está,
a filha preterida por Elsa, entra ali, numa tentativa clara para o leitor, embora inconsciente
para a personagem, do apossar-se de seu colo e, indiretamente, de seu legítimo direito ao
amor materno, em um “devaneio de intimidade”, para se usar uma das expressões
conceitualmente perfeitas do filósofo francês, aqui acrescidas de aspectos psicológicos
particulares.

A gruta era um espaço entre a raiz maior e mais saliente da figueira e o


muro; disfarçada por arbustos, era preciso entreabri-los para entrar e, uma
vez dentro, tinha-se a sensação de um perfeito abrigo. Quando Lilith não
estava, ou se distraía no quarto, eu entrava sozinha: era o meu esconderijo,
onde me sentia poderosa. (p.37)

A gruta, adjetivada por aquele pensador como a “cavidade perfeita”, instaura-se como
o “perfeito abrigo” nas coincidentes palavras da personagem, ao “assumir os valores
inconscientes” mencionados por aquele. Finalmente, ao imaginar a cabeça do pai ali alojada,
fantasia infantil vivida com tal intensidade que passa a ser o motivo dos sonhos e pesadelos
dali para a frente, é medo e desejo, mesmo que na idade adulta.
69

...mas era pior, porque eu via por toda parte os olhos de gato de Lilith, ou a
solitária cabeça de meu pai. Como teria sido? Caíra pelos degraus de pedra,
o sangue em seu rastro fumegando no ar frio? Prosseguira depois o seu
caminho para a treva, o nada, o ventre da gruta que fora meu esconderijo
algumas vezes, e, sempre o reino absoluto de Lilith? (p.70)

Nesses sonhos, a cabeça do pai é inteiramente engolfada por aquela natureza que,
como foi dito no início deste capítulo, pode ser entendida como a vitória definitiva daquele
sentir arquetípico que domina a protagonista. A vegetação que cerca a gruta, útero onde
reinava Lilith, reproduz a vida real ficcional e, como mãe e filha, submete a cabeça do pai,
envolvida inteiramente e da qual não se pode mais separar.

Lilith jogava com as pessoas um jogo que eu não compreendia.


Essa era a única coisa que eu não lhe perdoava: que até meu pai ignorasse
suas maldades e pusesse aos pés dela o seu poder. (p.49)

Nunca mais tive coragem de perguntar sobre a morte dele por muito tempo,
acreditei que sua cabeça estava na gruta, ele continuava lá, cuidando das
coisas que tivera de deixar cedo demais, fazendo companhia a Lilith. (p.71)

Em meus pesadelos descia até ela, cada vez mais oculta porque minha mãe
se desinteressara de tudo, especialmente do jardim. E eu via: via a cabeça de
meu pai, cabelos ainda crescendo, agora brancos como os musgos em que se
enredavam; boca e ouvidos cheios de terra e folhas, insetos entrando e
saindo pelo nariz, e vermes. Mas ele parecia não se importar: agora, Mateus
era a natureza. (p.37-38)

Embora a mãe pessoal estivesse viva e continuasse desprezando a filha, o arquétipo


irrealizado, independente de sua concretização humana, cobra sua realização psíquica,
revelando-se nessas manifestações oníricas da protagonista, completamente incontrolável.
Sua forma negativa dominará, posteriormente, também a Nora adulta, transformada na
sentinela referida no título, ação que divide na narrativa com o pai – “Talvez lá continue o seu
reinado; talvez lá Mateus ainda vigie, controlando a maldade dela com seu amor rude e
ansioso.” (p.161). Da mesma forma obsessiva com que zelava pela cabeça do pai, adormecida
em criança – “Ninguém sabia, senão eu; tornei-me portanto, sua guardiã.” (p.37) –, esse
estado de “aprisionamento” numa fase tão primitiva do arquétipo se estende em seu
relacionamento com o filho: “Há um lugar no jardim que não mandei limpar; e, quando tinha
parado de vigiar Henrique dia e noite com minha ansiedade, Rosa me veio com essa história
de que o encontrou duas vezes vagando pela casa de madrugada.” (p.34).
70

Nos momentos finais do romance, já superando suas angústias como mãe em relação a
Henrique, outra ponta da mesma doença afetiva que ela começa a superar, desenhando-se,
sutilmente, um início de estabilidade emocional, o arquétipo vai sendo apaziguado:

Num tom baixo para que ninguém da casa me escute, mas sabendo que
talvez na gruta eu seja ouvida, chamo, duas vezes:
- Mateus. Mateus.
E talvez seja finalmente uma despedida. (p.161-162)

A gruta evidencia-se, por essa via, indubitavelmente, como representação do elemento


psíquico em questão, apontando o esmorecimento de sua força negativa, de seu poder de
fascínio, sendo afastado para o lugar de origem e reduzido às proporções do inconsciente:
“Neste momento, a noite não me ameaça; a gruta não me atrai; tudo tem seu tempo. E há
coisas que estão fora de todo o tempo humano.” (p.163).
A positividade de um ego equilibrado, enfim, começa a assumir o legítimo espaço do
qual, por toda a vida da protagonista, estivera alijada: “E do seu canto foi brotando o mundo:
dele nasceram as árvores e os carros e as casas; os caminhos dos amantes; as grutas da noite, e
o ventre do dia; a morte nascia dessa música; e a vida também.” (p.163)

4.4 O morro e o mar

A presença do mar é bastante forte em Lya Luft. Como todos os outros elementos da
natureza, compor o ambiente é a atribuição menos valorizada na obra.
Dentre as várias manipulações artísticas feitas pela escritora, uma delas é o puro
emprego metafórico dada ao mar em estados de alma, mesmo processo anteriormente
identificado em relação à floresta. Tal fato pode ser verificado, aqui e ali, em alguns de seus
romances, sempre como mecanismo expressivo: “Nunca fui mãe dele, admitiu Renata, um
mar represado no coração, um mar tão amargo.” (OQF, p.26) ou “Atirei-me nesse mar
sombrio: Antônio, minha tábua.” (E, p.52).
E, enfatizando esse reaparecimento estilístico em relação ao mar, podemos
surpreendê-lo como recurso especificamente significativo também com Otávio, que será
adiante analisado com mais profundidade em sua marca de “dúbio”. É importante perceber
que a conexão Otávio/mar, torna-os unidades polissêmicas, ao anexar a ambos uma segunda
propriedade, não clicherizada, que os transporta para uma região além daquela na qual
parecem superficialmente inseridos: com a ligação, ganha a figura humana, que, como
71

Gabriel, de Exílio transita entre uma condição concreta e outra imaterial, mas, além disso, o
próprio elemento da natureza, que aparece, assim, resgatado para um indefinido espaço,
passível de ilimitadas interpretações, para ajudar a compor um caminho narrativo, de outra
forma, inefável.

E tocava lindamente, quando eu o ouvia e pressentia que aquilo era uma


fuga, uma entrega a qualquer coisa no mundo particular, de que ninguém
partilharia. Um aquário, um espaço submarino, de sombras verdes e
sinuosas, onde as bocas dos afogados emitiam borbulhas, aquelas delicadas
dissonâncias. (AP, p.67)

Como é explanado seguidamente neste estudo, um dos grandes trunfos artísticos


luftianos é a atribuição, ao mesmo tempo, de um valor real e um surreal a um dado do mundo
material. Mas é importante se observar que esse processo não é um recurso puro e simples de
linguagem, ou estilístico, devido ao fato de que agindo sobre a composição estrutural do
enredo, amplia para ela esse valor ambivalente e estabelece-lhe o verdadeiro rumo por
intermédio de uma ponte instável entre uma dimensão física e outra puramente anímica.
Prosseguindo a avaliação sobre o mar luftiano, torna-se importante relembrar que,
psiquicamente, como água, é um símbolo do inconsciente, representação mítica do caos
primordial mitológico, do qual nasce a incipiente mente humana, versão levantada por Jung.
Embora, às vezes, se apresente como um elemento da realidade percebido estritamente pela
consciência – “Bernardo se molha todo, entra nas primeiras ondas, volta e me respinga.”
(p.59) –, como outros desencadeadores da isotopia9 seguida pela presente verificação crítica,
em As parceiras, volta-nos, além dessa, outra face que brota de camadas mais profundas da
mente, como engolidor de gente e de consciências: “Parece que no vozerio do mar se ergue
uma voz humana...” (p.23).
É, ainda, carregado dessa ambivalência que o mar surge, também, em Exílio e traduz
simbolicamente a insegurança que persegue a protagonista desde a infância e que, ali, aflora.

Mas, na época em que descobri a primeira traição de Marcos, num fim de


semana na praia, descobri que tinha mudado: eu não gostava mais do mar,
perdera a intimidade com ele, tinha medo. Alguma coisa, obscura, me
ameaçava no fundo das águas: medusas imensas, anêmonas inquietas, dentes
afiados? Não sei dizer, mas deixei de entrar no mar, e mesmo numa piscina
funda precisava controlar o pânico. (p.65)

9
“Em análise do discurso, isotopia é a recorrência do mesmo traço semântico ao longo de um texto. Para o leitor,
a isotopia oferece um plano de leitura, determina um modo de ler o texto.” (FIORIN, 2001, p.81)
72

Neste segmento, contudo, além das qualidades significativas que tal fator natural traz
por si só, deve-se encetar a análise da importância emblemática que se manifesta quando a ele
se anexa um segundo: o morro. No trecho seguinte, Neumann (/s.d.) estabelece a ligação
psicológica entre os dois elementos, enriquecidos mutuamente por esse entrelaçar:

O oceano primordial, cujo aspecto de origem e noite já conhecemos, gera a


colina primordial, que significa no plano cosmológico a terra e, no
psicológico, a consciência que se eleva a partir do inconsciente, o alicerce do
ego diurno. Essa é a razão pela qual a colina primordial, como a consciência
em relação ao inconsciente, é como uma “ilha” no meio do mar. (p.211)

Parece, ainda, interessante citar outras duas definições, a respeito desse elemento
representativo “montanha”, o que não invalida a analogia, pois tem íntima ligação
significativa com o morro insistentemente galgado de As parceiras e adquire, portanto,
relevância como subsídio para a elucidação dos meandros narrativos:

Psicologicamente, galgar a montanha simboliza um grande desafio, as etapas


em direção ao autoconhecimento. (TRESIDDER, 2003, p.228)

Nas religiões índias, a montanha relaciona-se com a Deusa-Mãe. Estando


perto dos céus, ela é sempre um local para revelações, como a transfiguração
de Cristo. (FRANZ, 2003a, p.149)

É interessante notar os dois aspectos novos e profundamente significativos que são


anexados à montanha (morro): é para conseguir chegar ao autoconhecimento, refazer um
caminho, remontar o “quebra-cabeça insolúvel”.(p.76) que Anelise vai ao chalé: “Mas eu
tenho muito que fazer: descobrir como tudo começou, como acabou. Por que acabou. Se dou
com a ponta errada do fio, se descubro o lance perverso da jogada, a peça de azar, quem sabe
consigo sobreviver.” (p.18). Mas é, sobretudo, o laço estabelecido entre a idéia da Deusa-Mãe
e a montanha que se revela tão apropriado ao final do romance e, conseqüentemente, à tese
ora discutida.
As imagens do morro e do mar, em As parceiras, como se argumentou então, não têm
possibilidade de serem examinadas separadamente. Realmente são uma só e única imagem.
No primeiro, a mulher misteriosa sobe para a contemplação do segundo, deixando-se ver pela
protagonista, cuja dúvida constante já aponta para essa possibilidade de revelação: “Não sei o
que tanto a veranista procura no morro, mas vale a pena subir: à frente, o mar pardo e sinistro.
Atrás, as dunas tumulares.” (p.16). E, da mesma maneira, sempre faz o mesmo percurso na
73

tentativa de “descobrir” quem é a outra: “De que estará tentando se livrar? Ou o que espera
encontrar ali em cima?” (p.126).
Significativo, entretanto, é o fato de que no primeiro parágrafo, o que abre,
literalmente, a narrativa, portanto, morro e mar já vinculem a avó e aquela enigmática
aparição, sem nenhuma marca de intencionalidade aparente. Estruturalmente, então, da
mesma forma, princípio e final do romance, enlaçados, reproduzem o mesmo movimento pelo
qual se reúnem progenitora e neta:

Catarina tinha catorze anos quando casou, penso, enquanto seguro a


balaustrada, me debruço para aspirar melhor a maresia, e deparo com a
mulher postada no morro à minha direita. Bem na pedra saliente, onde a
rocha cai na vertical até às águas inquietas. (p.11)

Lá em cima do morro, alcançado em uma manhã “tão cintilante” (e a luz é


tradicionalmente ligada à consciência), “depois da tempestade”, sobre o mar, o qual, pode ser
símbolo, também do inconsciente, o que intensifica o alcance significativo da imagem,
acontece o momento de conscientização, completamente envolvido em uma experiência
sensorial, terminando no que será não só um encontro com a outra, mas o final de busca de si
própria, e de onde, significativamente, descem juntas.

Uma rajada mais forte ergue suas roupas, que roçam em mim.
Alfazema! (AP, p.149)

É importante ser lembrada, também, a figura do cão, Bernardo, que no texto já fora
construída como um elemento concreto dentro do clima de imaterialidade a que se entregara a
personagem principal – “Meu cachorrão de bochechas caídas: isso também é algo sólido. Não
preciso mais realidade do que isso.”(p.21). Apropriadamente, esse símbolo da vida física
cotidiana havia desaparecido, desligando-a de uma condição menor que a amarrava ainda,
possibilitando, deste modo, uma iluminação transcendental.

4.5 A magia da lua

Elemento transportado da natureza para a ficção, a lua luftiana, além de toda a


simbologia popular, fio que a prende, pelo imaginário, ao inconsciente coletivo, é acrescida de
todas as significações já citadas anteriormente para os outros elementos naturais em sua obra.
74

O fato de os simbolismos da lua terem evoluído a partir de povos tão


distantes uns dos outros, em diferentes épocas, e ao mesmo tempo serem tão
semelhantes entre si, é uma evidência de que brotaram das profundezas da
psique humana, onde repousam verdades que são de validade universal.
Imagens que surgem das profundezas da psique inconsciente do homem sob
forma de símbolos contêm uma verdade que transcende a sabedoria ou
inteligência humana. (HARDING, /s.d./, p.69)

Ela revela nos romances a presença do mágico, do mistério, do não apreensível,


instaurando todas as possibilidades, do consciente ao inconsciente. Tornam-se fundamentais,
neste momento, acrescentar outros comentários da mesma M. Esther Harding (/s.d./), que são
bastante elucidativos desse elemento e pertinentes na ficção ora estudada:

A deusa Lua cujo culto talvez tenha se disseminado mais amplamente


durante os tempos da antiguidade foi Istar de Babilônia. Foi cultuada sob
nomes diferentes, nos diferentes países onde era venerada. (p.210)

Em sua fase brilhante ou do mundo superior, Istar era cultuada como a


Grande-mãe que trazia a frutificação para a terra e cuidava de seus filhos.
(p.218)

Como Rainha-do-submundo10, entretanto, tornava-se inimiga do homem e


destruía tudo aquilo que havia criado durante sua atividade no mundo
superior. Era, então, cognominada a Destruidora-da-vida, a Deusa-dos-
terrores-da-noite, a Mãe-terrível, deusa das tempestades e da guerra. Era
também a provedora dos sonhos e presságios, da revelação e compreensão
das coisas que estão escondidas. (p.219)

Assim, Hécate11 era chamada Antéia, que significa doadora-de-visões, mas


também podia atacar com loucura. Cibele fez seu filho Átis explodir com um
êxtase que resultou em loucura quando ele se apaixonou pela filha do rei, e
assim acontece com todas as deusas da lua. A inspiração e a confusão da
demência não estão muito distantes. Genialidade não está muito longe da
anormalidade psíquica, pois o tipo de entendimento ou inspiração que a lua
dá não é um pensar racional; é mais semelhante à intuição artística do
sonhador e do vidente. (p.292)

A lua, pensava-se, insinua na mente do homem idéias e intuições que não


estão absolutamente de acordo com padrões intelectuais, mas são estranhas e
bizarras e, por causa da verdade profunda escondida debaixo de sua forma
inusitada, podem ser criativamente novas. (p.302)

Mesmo em seu emprego mais corriqueiro, a lua já inocula nas personagens


sentimentos alteradores do cotidiano: “A lua brotava feito um navio iluminado, e até mamãe,
que raramente descia à praia, ria deliciada, abraçando papai.” (AP, p.25)

10
É importante citar o que a autora acrescenta, na mesma página: “O submundo dos antigos representa, como
vimos acima, as profundezas escondidas e desconhecidas que chamamos de inconsciente.”
11
Hécate, conforme informado na página 87 da já citada obra, é a deusa da lua escura.
75

Mas essa lua, inocentemente presente, vai, a cada novo romance sendo
metamorfoseada em propulsora ou, pelo menos, presença explícita de elementos surreais:

...lá estava minha irmã, como uma aparição branca de lua. Não tinha medo
de ficar sonâmbula, achava lindo.
- Eu ficar sonâmbula? Quero ser lunática.
-O que é isso? – eu sussurrava, debruçada no meu peitoril.
- Alguém hipnotizado pela lua. (AS, p.50)

É coerente, então, o envolvimento da personagem Lilith, que na tradição mítica já


aparece ligada ao noturno, ao demoníaco, com o elemento aqui analisado quase sempre
revelador de um simbolismo feminino. Como foi visto minuciosamente no capítulo próprio,
aquela personagem de A sentinela, compõe, junto com a mãe rejeitadora, a imagem da Mãe
Terrível, essa face negativa do arquétipo materno.
Parece revelante, ainda, para a ambivalente personagem Gabriel, de Exílio, que
também deve ser focalizada neste segmento, a descrição feita por Luc Benoist, em Signos,
símbolos e mitos (p.57), quando, enumerando os anjos e sua caracterização, diz que “Ao sol se
relaciona o arcanjo Miguel; a Júpiter, Zacariel; a Mercúrio, Rafael; à lua, Gabriel; a Vênus,
Amael; a Marte, Salael; a Saturno, Orifiel.”, ligação que se sustenta no próprio texto
analisado, ampliados os significados tradicionais dessa lua, o que já se poderá observar no
emprego entrelaçado dos dois semanticamente diferentes adjetivos, na passagem abaixo
transcrita.

Ele dorme com luar batendo na cara – disse o Enfermeiro certa vez, mas
achei graça: que diferença faria para Gabriel, banhar-se de sol ou de lua?
Imaginei-o feliz, lunático e enluarado. Gabriel estava além de todos os
esconjuros. (p.66)

Será a sua própria voz que, profetizando as palavras de Lilith naquele romance
posterior, reafirmará o encadeamento da lua com o sonâmbulo – “- Porque nas noites de lua
cheia os sonâmbulos sobem para os telhados e ficam balançando na beiradinha...”(E, p.114) –,
figura já tão carregada de mistério no imaginário popular, carga significativa recuperada na
obra, pelo que se percebe, não só na angústia da mística Rosa e da ansiosa Nora de A
sentinela, sobre o possível sonambulismo de Henrique, mas, também, no comentário da irmã
médica: “- Você já deu muito susto na gente com isso. Pode parar por aí.” (p.133).
Novamente presente em O ponto cego, a transcendência da lua cheia então
identificada, também acrescida de evidências mágicas, permite a um analista atento enxergar,
76

da mesma forma, esses desconcertantes predicados do sonambulismo expostos nos romances


que o precedem na publicação:

O rio, riozinho, o Riacho do Renegado, como dizem as pessoas daqui.


Contam que nas noites de lua cheia, ainda mais se for sexta-feira, o Diabo
aparece agachado nessa pedra na curva do rio, pitando um cigarro e rindo
sozinho. (p.79)

A lua, elemento do mundo físico, mas de largo poder de mostrar-se como reflexo de
um estado psíquico especial e de clara força imaginária na personagem protagonista é
chamada como testemunha dessa região que invade, embora dissimulada em uma presença
animal irrefreável: “E na lua por cima do campo calado, ele começa a existir: estica o dorso,
move os flancos, levanta a cabeça, a cauda balança no vento apenas anunciado. A crina de
leite reflete-se nas águas soturnas.” (p.125)
Na madrugada, o poder evocador daquela lua consegue desenovelar das camadas mais
profundas do psiquismo da personagem o fio do símbolo que está preso ao grande tema
luftiano, visto que é a mãe do menino que ensina: “Podemos inventar qualquer coisa que nos
dê alegria, que nos ajude a escapar. Um amigo, um cavalo, um caminho.” (p.32), o que lhe
permite adiante acrescentar: “As histórias de minha Mãe eram o meu conforto.” (p.33).

4.6 O vento de Deus

Torna-se bastante oportuno voltar-se a atenção para aquela “rajada mais forte”, sopro
de vento, no final de As parceiras, o possível pneuma bíblico, tantas vezes citado por Jung,
que algumas vezes, na escritora, acompanha um momento de conscientização das personagens
ou um princípio de revelação: “De repente, sei quem é.”(p.149). A definição de Franz, em seu
A interpretação dos contos de fada (2003a, p.82) parecer ser adequada ao citado trecho, por
ser esclarecedora: “...e o vento é um símbolo bem conhecido da inspiração espiritual do
inconsciente.”
Em Exílio, se verá novamente o surgimento do vento – “Então vejo, rolando no vento
de Deus pela calçada, o chapeuzinho do Anão.” (p.179) –, como fim de busca, como encontro,
conscientização, quando da primeira entrada na floresta/mãe da sofrida personagem central:
“...o vento era Deus andando na floresta e abrindo caminhos para o implacável destino”
(p.163). Assim, revelador, é nomeado, finalmente, sem qualquer disfarce.
77

Sobre esse vento, entendido biblicamente como um índice divino, vale lembrar a
advertência feita por Jung que as imagens com que o Self – ou Si-mesmo, centro regulador da
psique humana total12 – se revela, por sua presença numinosa e causadora de extrema
perturbação, podem ser assimiladas e entendidas – e provavelmente sempre assim o foram –
como uma imagem de Deus.
Em Reunião de família, terceiro romance, o leitor já tinha se deparado com “um sopro
que revolve nossos cabelos.” (119) e que assume proporções bastante reveladoras adiante, em
momento de extrema tensão e irrealidade: “A essa respiração fantástica mistura-se o fervilhar
da vida subterrânea, as raízes imortais que expelem sua seiva das profundezas.”( p.119). Visto
que acompanha o farfalhar das “ramadas inexistentes” de uma árvore decepada, composição
inegável de um símbolo da carência materna, é possível se atribuir à “vida subterrânea”, à
“raízes imortais” e à “seiva das profundezas” conotações psíquicas.
Digna de nota, além disso, é o fato de que há uma oscilação, nesse mesmo texto, entre
a idéia de Deus, do qual o vento é uma das manifestações, e a de mãe, dúvida colocada pelas
personagens Alice e Aretusa (p.97) para o impreciso grito de Renato. Reforçada pela analogia
que o leitor pode identificar entre os dois, validada pelas duas passagens a seguir transcritas,
tal oscilação termina por contaminar, finalmente, a idéia de vento:

(Renato terá realmente chamado por Deus? Essa palavra terrível, que deve
ter ficado reboando de galeria em galeria, um eco respondendo ao outro,
interminavelmente, no vazio.) (p.98)

Um lugar vazio: minha mãe. (p.121)

Seguidamente, a imagem do vento vem reforçada pela presença mágica da lua, e essa
fator, como foi largamente abordado no item 4.5, ajuda a instaurar uma ambientação ainda
mais inquietante do que a normalmente estabelecida por um só dos dois elementos: “Pela
janela entram lua e ventania. Levanto-me com muita dificuldade, arrasto-me até lá. Tenho
vontade de vomitar.” (E, p.177)
Em O ponto cego surge aquele vento insólito, impossível, que já se anunciara em
romances anteriores:

De repente, vindo de longe, um rumor. O vento se desenrola poderoso, e


aquele lamento me fere tão fundo que todos os pelinhos de meus braços e as
raízes dos cabelos em minha cabeça ficam de pé, a pele se arrepia mas não é
o vento frio: é a sensação de um mar levado que insiste em retornar. (p.38)

12
Ver aprofundamento do conceito a partir da página 165 desta Tese.
78

No sétimo romance, a aparição desse vento não se dá de forma ocasional, mas ora
como um “vento antiqüíssimo”, o vento do mar, que passa a ter uma posição marcante e
fantástica junto ao cavalo de mel, de indiscutível simbolismo nessa obra – “O vento do mar o
leva, caravela no mar perdido que há milhões de anos varria este lugar.” (p.125) – ora como
um outro tipo, pejado de fatalismo, de origem desconhecida: “Procuro embaixo de sua cama o
que ali vejo ela nem imagina. O que se mexe, remexe, suspira como se fosse vento trazendo a
desgraça.” (p.127).
De gênero equivalente, é aquele “riso arquejante de um velho demônio agachado num
canto” ( p.132), o hálito que agita novelos de poeira e teias embaixo dos móveis em O quarto
fechado. E é, mais uma vez, a já referida psicanalista quem traduz com extrema justeza o
momento ficcional:

É na cama que entramos em contato com nossos instintos e com o


inconsciente. Pessoas pouco asseadas geralmente não varrem debaixo da
cama, o que provoca a formação de poeira e o acúmulo de sujeira. Por isso, é
nesse lugar que em geral se instalam e vivem os demônios do inconsciente
pessoal. (FRANZ, 2003a, p.112)

Mas, ao mesmo tempo em que é descrito como “bafo dos infernos”, causando surpresa
e inquietação nos presentes ao velório, é ele que, como riso, sai pela janela e consegue varrer
a cerração que mantém as cercanias da casa imersas em uma atmosfera flagrantemente
inconsciente, como será discutido no capítulo 6, denunciando um início de conscientização:
“O frio vinha de dentro da casa, o hálito: a Palavra, o Nome?” (p.133).

4.7 A mãe telúrica

Nos segmentos anteriores, toda a natureza literária foi abordada em seu emprego
materno. Mostrou-se símbolo do sofrimento das protagonistas: é uma mãe psíquica que se
transmuta, visualmente para as personagens nucleares, em natureza para indicar, para cobrar
sua realização. Neste item, ao contrário, é feito o estudo de uma natureza que se apresenta
agora como mãe, marcando, assim, quão fundamentais são as duas presenças e quão inerentes,
uma à outra são as suas concepções, no inconsciente humano: “Alguma coisa nele, sua
inocência, me comove; muitas vezes eu quis ser uma mulher do povo, simples, forte, ligada à
vida e à terra...”(AS, p.78). Cabe aqui complementar com as palavras de Mircea Eliade, em
79

seu O sagrado e o profano: “Esta experiência fundamental – de que a mãe humana é apenas a
representante da Grande Mãe telúrica – deu lugar a inúmeros costumes.” (1992, p.115).
Revela-se importante, ainda, reforçar as ligações já feitas no início deste capítulo,
informações histórico-culturais, que têm sua base no inconsciente coletivo:

Deméter foi antes “Ge-Meter”, isto é, a Mãe Terra que se manifesta no


crescimento da vegetação no ciclo das estações. Ligava-se em especial com
os grãos, como a deusa do milho. (MCLEAN, 1998, p.71)

Encontra-se esta imagem em todas as partes do mundo, sob inúmeras formas


e variantes.É a Terra Mater ou a Tellus Mater, bem conhecida das religiões
mediterrânicas, que dá nascimento a todos os seres. (ELIADE, 1992, p.113)

A abordagem, aqui, se inicia, então, pela personagem Olga, de A sentinela,


caracterização perfeita da acessibilidade, da bondade, mas, principalmente, da determinação,
desejadas em uma mãe: “Olga e eu estávamos sentadas no terraço da pequena casa, antiga e
original, comprada recentemente; reformada, ficara tão aconchegante quanto a própria
Olga.”(p.82).
Nesse sentido, opõe-se a todas as mães ausentes de todos os romances, sobremaneira
na última de suas características citadas, sendo contraponto, até mesmo, para Maria da Graça,
a doce mãe de A asa esquerda do anjo, que não preenche a necessidade de segurança da
personagem Gisela, frente à presença onipotente e negativa da avó.
Olga é natural, de um maternalismo “atávico”, como diz Nora. Funciona para esta
como uma tentativa de substituição, embora não totalmente compensadora, da mãe
verdadeira. É sua profunda ligação com a natureza o que acaba de construí-la como símbolo
psíquico:

Vencia nela, quase sempre, uma natureza saudável; gostava de rir, de


caminhar, gostava de bichos e de gente. (p.135)

Tudo exatamente como foi nos longos anos de seu casamento, tudo ao gosto
de Olga, que no fundo tem alma de fazendeira, de mulher da terra, do
campo. (p.146)

Era uma mulher madura; a maternidade, o casamento amoroso, conferia-lhe


uma beleza que estava além da realidade física: era uma coisa boa e vital.
(p.82)
80

Atualização perfeita da Deméter clássica, símbolo de firmeza, proteção e carinho, ou


seja, daquilo que se entende culturalmente como maternal, opõe-se ao artificialismo de sua
madrasta e não é por acaso que o adjetivo “natural” caracteriza-a, com freqüência, na
maternidade, na escolha da profissão, como a do pai, adjetivo que, no texto, francamente
prende-se ao lado positivo da vida da personagem principal: “- Filho não se controla; se
educa, se ama, se acompanha, se estimula. Você devia pegar uma foca e amestrar – Olga sabia
ser cruel.”(p.108).
Órfã de mãe, ao contrário da irmã, Nora, a lacuna materna não a atemoriza, não a
fragiliza, provavelmente pela substituição, à altura, por essa mãe natureza, que a recebe e
compensa e da qual ela faz parte: “Quando caminha, também seus passos ainda são quase
sempre da guerreira intrépida que me adotou quando eu parecia abandonada de todo. “(p.28).
Esse contorno telúrico, elemento de contraste e realçador, nesse caso, da ausência de
mãe, não é recurso narrativo ocasional e, por esse fato, de grande valor significativo:
recorrente na obra, o surgimento de personagem desse tipo vem sempre pleno da positividade
de Olga. Pode ser identificado, também, naquelas substitutas, as avós, em A sentinela e Exílio,
já citadas em capítulo próprio:

Morava na fazenda e, quando vinha à cidade, Elsa fechava a cara. Não


gostava da sogra, achava que cheirava mal, não tinha modos à mesa, que
Mateus gastava dinheiro demais com ela. (AS, p.39)

Eu adorava ir ao quarto dela, onde pairava sempre um aroma de água-de-


colônia e de roupa limpa, vindo da lavanderia. Nunca faltava um agrado: um
biscoito, um refresco, uma história. (AS, p.40)

Essa era uma mulher simples: lidava com terra, plantas e bichos e pessoas
com a mesma generosa disposição. Um sorriso bom na cara larga. Ela e meu
avô foram as pessoas mais reais da minha infância. (E, p.165)

Como se viu, o envolvimento com a terra não é uma relação gratuita, ele vem sempre
ligado a todos os qualificativos positivos tão bem descritos por Neumann como as
características principais do arquétipo do Grande Maternal. Essas figuras femininas telúricas –
é importante se atentar para o adjetivo “vital” que sempre se refere a tais personagens – são o
outro prato da balança do desejado equilíbrio das personagens, mas que, dado o enorme peso
dos sofrimentos de uma vida construída na deficiência de amor de mãe, revestem-se de uma
coloração de leve lenitivo. Funcionalmente, no texto, servem de aprofundamento contrastante.
81

4.8 A natureza animal – o instintivo inconsciente

Neste segmento, ligado ainda à simbólica da natureza, faz-se o estudo do animal como
elemento também repetidamente emergente, como o gato: é caracterizador físico de Henrique,
de A sentinela, como um “Um grande gato louro, ágil.” (p.43) e dos olhos de Gabriel, de
Exílio, aquelas “vidraças foscas”, ou numa radicalização da descrição: “os olhos de um tigre à
espreita” (p.68). Por ser, entretanto, de importância extrema, dada sua significação e
envolvimento com outras personagens, ou seja, sua ambigüidade de significados, o gato é
estudado, mais detalhadamente, em capítulo próprio.
O mais superficial dos empregos, como visto acima, é o do animal como elemento de
comparação. Os exemplos abundam: “...enfio-me na banheira onde sou uma medusa amorfa.”
(E,108) sobre a protagonista; “...aves de mau agouro nos seus aventais pretos e
puídos.”(E,138), para as duas empregadas da Casa Vermelha, ou ainda “uma ninhada de
cachorrinhos” (p.106), quando se refere aos filhos daquele “Bicho-Papão” (p.63) de Reunião
de família, o pai, para quem as metáforas são uma constante: “olhar de velha águia” (p.79),
“velho pássaro solitário.” (p.55), “um pássaro louco de bico torto”(p.121).

4.8.1 Os “afetos desgovernados”

As similaridades, no entanto, são sempre mais fundas do que as sugeridas pelo físico.
Elas invadem o psíquico e vão buscar os elementos comuns mais inatingíveis da relação
humano/animal. Embora já faça parte do senso comum o relacionamento do instinto humano
e de sua parte inconsciente, parece oportuna a transcrição do conceito, emitido por Jung
(2000b, p.241): “O animal, devido à sua quase completa inconsciência, sempre foi o símbolo
da esfera psíquica humana, oculta na obscuridade da vida corporal instintiva.”
Pelos motivos enunciados pelo eminente estudioso, uma avaliação das manifestações
menos racionais e mais primárias do ser humano, expressas nas imagens que, então, são
produzidas, sempre se confrontará com o simbolismo do animal.

Símbolos teriomórficos são muito freqüentes nos sonhos e em outras


manifestações do inconsciente. Eles expressam o estágio em que se acham
os conteúdos designados por eles, ou seja, um estado de inconsciência, tão
distante da consciência humana, quanto a psique do animal. A este respeito,
os vertebrados de sangue quente ou de sangue frio e mesmo os invertebrados
das mais diversas espécies revelam, por assim dizer, gradações no estado de
inconsciência. (JUNG, 2000a, p.176)
82

Além da intenção exclusiva a que se destina, a teoria aludida apresenta uma completa
precisão no que diz respeito ao texto luftiano, questão que se evidencia, facilmente, mesmo
nos trechos mais simples: “Sinto um prazer animal, primitivo, ao mexer no proibido, sempre
me proibiam de pegar em coisas sujas, terra, areia, capim, bichos.” (AAEA, p.60)
No entanto são as diversas tonalidades com que esse animal aparece nos textos
artísticos ora analisados, num acréscimo de significados que se sobrepõem, que se
complementam, que devem ser aqui ressaltadas. Sua utilização, quase sempre, tem como
finalidade propiciar um entrosamento completo com a natureza humana, denunciando-lhe a
tão negada, mas verdadeira, procedência. É muito revelador o que é dito sobre Renata, de O
quarto fechado, mãe fria e distante, quando, inesperadamente, em momento extremo,
desfeitas as armaduras sociais, recebe o corpo do filho morto tragicamente: “De súbito a
torrente do amor se desatava nela, um amor desesperado, animal, sem esperança alguma.”
(p.80)
São expressões bastante significativas dessa recuperação da essencialidade primeira,
além da já citada Olga, de A sentinela, no mesmo romance, seu pai Mateus e seu filho Pedro,
em uma continuação quase hereditária, ligados pelo viés do instinto, do animal:

Ainda bem que eu tinha Olga, embora raramente aparecesse em casa; era a
cara de Mateus, ria do mesmo jeito, gostava das mesmas coisas. Nas férias ia
com ele para a fazenda, e eu os via cavalgando lado a lado: eram da mesma
raça, centauros de cabelos desgrenhados ao vento: nessa hora, eram livres.
(p.22)

Eu gostaria, por exemplo, que ele tivesse feito um curso superior, mas
resolveu usar apenas da prática, desse instinto, coisa que deve ter herdado de
Mateus – ela falava com orgulho. – Está lá, criando cavalos, vai montar um
haras, e vai ter sucesso, esse meu filho. (p.108-109)

E, assim as personagens, já tocadas pelo desnudamento de seu ser animal, – “Mateus


vinha da fazenda cheirando a suor e sol, mas Elsa dizia que era fedor de bosta de vaca, e logo
o mandava subir...” (AS, p.15) –, passam a ser definidas por esse traço. É de igual teor aquele
“mugido” de Mateus, repetido três vezes no texto, quando da dramática morte de sua filha
Lilith ou o “berro de animal ferido” (RF, p.52) de Renato, quando da agressão do pai, ou de
Aretusa, naquele mesmo texto (p.109): “o guincho, uma voz obscena.”
Em O quarto fechado, ressurge o centauro, ainda que não explícito, Martim, separado
da mulher por um compacto muro cultural e que se identifica com seus cavalos – “- Mas eu
não sou um dos seus delicados amigos – respondera Martim, sério. – Sou antes de tudo um
83

homem do campo, não se engane.” (p.17) –, em todos os momentos, o que o distancia cada
vez mais do delicado filho:

Também no amor não conseguia mais agradar.


- É preciso ser como um bicho nessa hora! – reclamava Martim. (p.44)

A esse aspecto animalesco que caracteriza as personagens, psiquicamente, não se deve


imputar, na maioria das vezes, nos textos em análise, qualidade positiva ou negativa. É,
apenas, um traço daquela parte da espécie que a marca desde antes de suas anexações
culturais. Aparecem em todos os romances, traduzidos nas mais variadas metáforas: “Camilo,
antes controlado, de emoções débeis, sentia-se agora como um dos touros enfurecidos que
cobriam as vacas na fazenda: impulso de atacar, arranhar, morder e matar.” (OQF, p.116)
A expressão “como um bicho”, de exemplo destacado anteriormente, bastante
assinaladora dessa neutralidade instintiva, perpassa toda a obra. Não é sempre, no entanto, que
a equiparação à natureza do animal relativamente às personagens mantém essa tendência à
neutralidade. Se em A sentinela, a comparação sofre uma suavização valorativa quando em
referência à música que sai do saxofone de Henrique, personagem que, mesmo ambígua, é,
inegavelmente, tratada como marca de transformação para a protagonista e, nesse caso, de
positividade – “Há nela algo de lamentoso, como de um animal atocaiado; de sensual, como
um corpo chamando...” (AS, p.65) –, a expressão “bicho acuado” de Reunião de família, no
momento em que toda a família se digladia, traduz artisticamente as palavras junguianas:
“Emocionalidade, no sentido de afetos desgovernados, é um assunto essencialmente
animal;...” (JUNG, 2000a, p.48).
Mas, ao mesmo tempo em que parece considerar os aspectos primitivos como
imanentes ao ser humano, as comparações a que se recorre para caracterizar as personagens,
em Reunião de família, tornam-se um recurso negativo e vão em um crescente de
rebaixamento de sua condição:

Nosso pai não devia ter-se dado conta de que estava criando filhos solitários
e tristes, que passavam perto dele encolhidos como cães escorraçados e
ficavam por ali, na esperança de um carinho, mesmo distraído. (p.58),

Baixei as mãos, continuo em pé diante deles, mostro o rosto, ofereço meu


focinho sujo para que olhem bem e cuspam nele. (p.116)

Grita num desespero de bicho acuado:


- Cadela! (p.120)
84

Talvez seja esse o texto em que mais cruamente a condição basilar humana seja
retratada, sem sutilezas. Filhos sem mãe, desamparados e infelizes, são retirados, um a um,
todos os véus culturais com que a sociedade esconde sua verdadeira natureza animal: “Sinto
que não podemos arriscar nem um movimento impensado; a redoma é frágil demais, pode
romper-se o encanto e todos viramos bichos. Sapos?” (p.61)
Entretanto o recurso pode ser surpreendido, além disso, nos textos posteriores,
acrescido de um recrudescimento desse processo artístico. Exemplo quase perfeito de alusão
teratológica, tão ao gosto da escritora e que espreita desde o primeiro romance através de Bila
e Lalo – “Pouco mais que um vegetal” (p.123) –, passando por Corália, de Reunião de família
e indo até o filho de Antônio, em Exílio – “O monstruoso bebê soltou uma espécie de miado
débil, e outro ruído repugnante; um cheiro fétido espalhou-se no quarto.” (p.149), é a
caracterização da personagem Ella – O quarto fechado –, personagem de força significativa,
imagem viva da crítica ao caos humano:

Ella não era um bicho. Ou era? (p.85)

Talvez imaginassem o tempo todo o que haveria lá: animal raro, planta
singular, criatura de charco, enviando sinais pela casa a toda hora. Medo.
Medo? (p.97)

Vou ser igual àquela que cheira a caverna e podridão, como um bicho.
(p.124)

Iniciavam assim a longa, elaborada descoberta do poder. Podiam tudo, diante


daquela carcaça inanimada: Molusco. (p.97)

Em uma radicalização crescente, de animal, planta até carcaça inanimada, molusco, é


sem surpresa que o leitor constata: “Ser mãe de Ella era ser mãe de nada.” (p.60), em um
completo aniquilamento. Mas quanto mais reduzida racionalmente, mais qualificada como
uma presença do inconsciente de toda a família, de Mamãe, tão significativamente assim
nomeada.
Digna de registro, em Reunião de família, já como medida de amargura extrema, é a
retomada, no tempo da enunciadora, da cena de infância, na qual o bichinho de estimação é
morto pelo pai. Mas, na condição de repetição, a traumatizante experiência infantil se agrava
e tem seu intenso sofrimento duplicado, confirmando a crueldade de um sentimento, quando,
assim, revivido.
Embora modificada, a passada dor moral ressurge e atualiza a antiga comoção em
momento de semelhante intensidade de Alice adulta, no presente da enunciação, – “...que
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animal guincha na minha memória?”. Como o porquinho-da-índia que fora obrigada a


entregar para ser morto, é a própria Alice, agora, a esmagada. E o sentimento que a domina,
no momento, transporta, também, personagem – e leitor – ao passado, em um círculo vicioso
do qual não consegue fugir:

Sofro de insônia, isso sim: nessas horas não consigo ficar deitada, o coração
parece saltar pela garganta. Uma angústia o aperta como um bicho que,
esmagado entre os dedos, começasse a se debater, esperneando
enlouquecido...Então saio da cama, com cuidado para não acordar ninguém,
e vou sentar na sala; leio ou penso. (p.18)

Não era pequena a relevância psicológica que o animalzinho tinha assumido para a
personagem sem mãe – “Mas cada vez mais difícil era abandonar uma postura rígida. Éramos
destreinados na ternura...” –, emotiva e profundamente revelada no próprio romance,
relevância que, com sua morte, metamorfoseia-o em um símbolo forte de insegurança e
comprometimento afetivo:

Mantivemos a palavra; quando meu pai saía, eu pegava o bichinho, apertava


meu rosto no corpo quente e macio, tinha acessos de ternura; queria gritar de
amor. (p.45)

Nele eu queria soltar toda a minha ternura retida, que não se saciava no seco
beijo no aniversário de meu pai, nos desajeitados abraços de Berta, ou mais
tarde, nos agarramentos de Aretusa. (p.45)

Figura freqüente em quase todos os romances, o bicho de estimação, em protagonistas


carentes de uma realização materna positiva, é necessidade de afetividade: aparece como o
gato esquartejado pelo irmão, em Exílio, animal que acumula outras funções menos
superficiais; retorna em A sentinela – “Lembra aquela vez que disse que sua mãe tinha
preparado seu coelho de estimação para o almoço?” (p.143) –; mas, principalmente, é a
pomba-rola de A asa esquerda do anjo – “Estou sendo a mãe do pássaro e, embora não tenha
mais do que seis anos, nasce em mim a inesquecível sensação de comunhão com outro ser.”
(p.63) –, a qual acaba sendo morta, acidentalmente, pela própria Gisela, na ânsia de a proteger
de Frau Wolf, que participa de um momento decisivo: primeiro, numa manifesta oposição,
enfraquece a figura da “hesitante” mãe e engrandece a da avó, cuja dimensão psicológica já
foi anteriormente fixada; depois, encaminha para a impossibilidade do amor por Leo e, como
conseqüência, para a gestação do insólito verme: “Não era limpo amar.” (p.65)
86

4.8.2 O “cheiro de mãe”

A representação da personagem sob aspectos não humanos pode aparecer de uma


forma mais delicada: se o cotejo com o animal aparece, nesse mundo ficcional, dessa maneira
assaz descoberta, como o estudado anteriormente, a enfática emergência, tão-somente, de seus
agudos recursos sensitivos e fundamentais para sua sobrevivência, evidencia processo
semelhante, mas que, por conduzir a caracterização de uma forma mais sutil e, portanto,
engenhosa, obtém maior eficiência persuasiva: – “A voz das ondas permanece em meus
ouvidos, o cheiro de maresia não se desfaz.” (OPC, p.152).
Tal fato fica claro na alusão bastante freqüente aos odores, de profunda significação
dentro da condução da trama narrativa, odores que, se, dentre os cinco sentidos, se relacionam
ao de maior importância para um animal irracional, estendem-se à personagem e a nivelam a
este: “Talvez seja apenas o ruído do tráfego fora dos muros, o áspero cheiro de combustíveis
queimados e da aflição humana. Ou é o rumor e o odor de meu pobre corpo que desmancha e
se desfaz sem salvação?” (OPC, p.153).
As personagens sentem e têm cheiros e por eles são guiadas: pelo olfato se estabelece
a atração ou rejeição, o que marca a possibilidade de emergência desses traços animais
profundos, no entanto sempre tão à beira do inconsciente. Quando estimulados por
circunstâncias desumanas, facilmente, transbordam para as camadas externas, traduzidos de
uma forma física.

Ofegamos como bichos prestes a se dilacerar. Sinto novamente no ar o


cheiro selvagem, o penetrante odor animal. (RF, p.107)

Às vezes trazem rapazes, quando meus pais saem para alguma festa. Quando
todos vão embora e minha irmã se tranca no quarto, paira na casa um cheiro
animal, enjoativo e assustador. Eu me enfio em minha cama, tapo a cabeça
com o lençol e chamo os meus fantasmas. (OPC, p.71-72)

Eu, de longe, o amava. E quando passava por mim eu inspirava fundo, só


para sentir e segurar o cheiro dele. (AS, p.154)

O quarto fechado, no entanto, é a obra em que sua reaparição torna-se quase

obsessiva:

Pensando em Ella, Renata lembrou o cheiro do filho quando o recebera


morto naquela tarde. Camilo sempre asseado, cuidados femininos consigo
mesmo, usando a água-de-colônia da irmã, horror a tudo que fosse vulgar.
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Detestara até os cheiros da fazenda, reclamava o tempo todo quando estavam


lá. (p.71)

É preciso serem salientados os vários romances em que a presença do elemento


olfativo, com o significado bastante específico de “fragrância aromática” – “Você é minha
Mãe cheirosa – eu digo, pois ela não liga muito para jóias, mas perfumes são seu luxo.” (OPC,
p.83) – acompanha a personagem protagonista em sua busca, cria guiada por puro instinto
sensorial, verdadeiro faro, aspecto que se reveste de importância fundamental para a narrativa.

Nem retratos dela existem mais pela casa, alguém recolheu tudo. Só eu tenho
alguns escondidos no quarto, mas sei que um dia não vou mais lembrar
direito do cheiro dela, da voz, das mãos, do jeito de andar, nada. (OPC,
p.148)

Como se vê, em Reunião de família, o leitor já tinha encontrado o código para o


principal significado dessa marca olfativa, condutora de uma procura incessante, inclusive,
para os outros romances. Paradoxalmente, é esse índice marcadamente físico que tem a
incumbência de despertar das camadas mais íntimas do psiquismo os sinais, esquecidos ou
não, do arquétipo materno:

Cresci sem mãe; sem avós, sem tias nem primas; nosso pai não era ligado à
família, falava como se fosse sozinho no mundo. Nunca tive alguém
perfumado e doce para me abraçar; para ajeitar meu cobertor na hora de
dormir, ou contar histórias; para me dar conselhos. (RF, p.20)

Convém observar, como especificidade desse, por assim dizer, “cheiro de mãe”, a
anexação caracterizadora, que contribui como reforço da representação gerada pelo
imaginário coletivo:

Mas eu quase delirei de alegria, a imaginação fervilhando: enfim uma


presença feminina mais doce do que Berta. Comecei a sonhar: tia Luci,
bonita, perfumada, maternal. (p.58)

Da mesma forma, em Exílio, outra solitária moradora da Casa Vermelha que é “uma
doce velhinha” (p.28), inspira na protagonista, que se caracteriza por um constante
comportamento arredio, um desejo de aproximação, porque traz do passado o anseio de mãe,
o desejo de colo.
E o perfume, então, reforçada sua condição pela íntima ligação ao adjetivo “doce”,
com ele instaura o ideal materno, qualidade que também surge, já ali sem nenhuma dúvida
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aceitável, como uma das propriedades do amor de mãe na avaliação do Menino de O ponto
cego – “Seu amor se derramou sobre mim forte e grudento, e doce também. Era tudo o que eu
tinha, eu que não possuía nada.” (p.29). Por esse motivo, é impossível não retornar com igual
valor como garantia de composição do simulacro de relacionamento materno-filial, já citado
no item 4.2, em outro momento da infância de Alice e sua irmã, quando o cita como um
“brinquedo melancólico e doce.” (p.60).
É ainda o caráter considerado como essencial à condição materna – “Doce como nunca
fora com meu marido...” (p.118) – que ajuda a entrever a verdadeira categoria a que pertence
a fantasia criadora do suposto amante de Alice, corporificação da carência afetiva, e
assegurar, junto ao leitor, sua absolvição moral: “Naquela noite com Evelyn falei; contei
detalhes; perdi a vergonha, insisti, revelei...como era doce com Matias, eu disse isso, como
era doce!” (p.117)
Mas, como se disse no início deste segmento em relação ao perfume de mãe, desde o
primeiro romance editado aquele “cheiro forte de alfazema”, em As parceiras, reveste-se,
como marca sensorial, de vital importância para a estrutura da obra, pois, como o branco do
vestido, torna-se indicador da presença de Catarina, e, ao final do romance, induz em Anelise,
e no leitor, uma identidade para a veranista, satisfação final do arquétipo.
Se até então foram ressaltadas as características afirmativas que encaminham o
desabrochar do sentido olfativo, mesmo que se constitua em uma busca doída da presença
materna – “Minha mãe aparece no umbral, precedida de seu perfume e do farfalhar do vestido
de seda clara com grandes orquídeas roxas e lilases.” (p.17) –, esse odor desperta a lembrança
de cria abandonada, condição primeira das personagens principais, em Exílio, e se vê
circunscrito a uma intransponível cadeia negativa de odores que vão marcando,
sensitivamente, um caminho de dor iniciado na infância. Ultrapassando o puro limite de
solução expressiva, essa ferramenta compõe a trama projetada.

Fica comigo esse mesmo perfume que há pouco entrou aqui no quarto da
Casa Vermelha e me levou até a janela para ver o que havia. Só que minha
mãe deixava um rastro onde se mesclava um discreto odor de bebida, que
mais tarde aprendi a identificar. (p.19)

Nesse texto, não obstante, a fragrância maternal vem misturada a outros cheiros que
compõem um quadro de decadência, os quais são, expressivamente, prenunciadores dessa
mãe alcoólatra. Reaparecem, inclusive, sob o miasma de podridão da Casa Vermelha – “No
andar térreo, o bafo de umidade, azeite rançoso, cozinha suja. Meu estômago me incomoda.”
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(p.24) –, que, também por outros indícios, pode ser entendida como uma representação da
suicida:

De longe, a Casa Vermelha parece um ferimento no morro.(p.33)

...mas a maioria a conhece como Casa Vermelha; pois esta é a cor desbotada
de suas paredes, dentro e fora, lascas de tinta saindo por toda parte como
pele velha revelando feridas mais velhas ainda, em tom alaranjado. (p.32)

Despertando do passado as “feridas mais velhas ainda”, a imagem de ventre de fêmea,


se revela, finalmente, sem disfarces: “A Casa vermelha carrega em seu bojo roído pelo tempo,
habitado de ratos e infectado de angústias, toda uma raça de exilados.” (p.47)
Ao contrário das impressões, portanto, que a idéia de casa deve suscitar, bastante
próximas da idéia arquetípica de mãe – “A casa é um refúgio, um retiro, um centro.”
(BACHELARD, /s.d./b, p.80) –, o sentimento sobre a Casa Vermelha funciona como um
elemento de reforço das lembranças traumáticas deixadas pela mãe alcoólatra, a qual também é
decadência e rejeição, evocada, reiteradamente, por essas impressões sensoriais. Não é, como
deveria ser, sensação de repouso, de intimidade, como não o é a própria mãe.
Mas a situação extrema, ritual de adoração e desprezo, é a palavra “mãe”, escrita com
fezes, por Gabriel, aquele filho tão comparado ao animal, que precedida pelos odores, tal qual a
simbolizada, vai do aromático ao cheiro de dissolução.

4.8.3 O verme: o inconsciente na consciência

Presença constante, à qual se atribui uma flexível capacidade expressiva, o último


elemento a ser analisado neste capítulo, dada sua importância, é o verme. Como todas as
demais criações de sua obra, os vermes podem ter uma atuação concreta no texto e, aos
poucos, perdendo sua substância primeira, irem assumindo outras conotações. É sob esse
genérico nome que podem aparecer desde os bichos-da-seda de As parceiras e O ponto cego,
à primeira vista reais, ou os vermes, com sua ligação rotineira com a morte, em alguns de seus
outros textos. É, ainda, comparação com a personagem Alice em sua fragilidade, em Reunião
de família, com uma atuação apenas tropológica:

(Tudo fantasia. Mais tarde habituei-me à minha vida doméstica e segura;


fora dela, fico desamparada. Como um bicho que, despido da casca, expõe
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um corpo viscoso e mole, onde qualquer caco de vidro pode penetrar,


liquidando essa vida rastejante.) (p.15)

Mas a representação maior, sem dúvida, se faz na polissêmica personagem de A asa


esquerda do anjo, discutida adiante, presença rastejante, criada, provavelmente, a partir de um
espaço psíquico, que reúne em si as mais variadas origens:

Mas meu inquilino reviveu. Fênix monstruosa, assoma na noite, enche meu
estômago, rasteja até a garganta, como se do lado de fora dos meus lábios
alguém chamasse, vem,vem,vem. (p.11-12)

Para se iniciar uma avaliação, torna-se inteiramente conveniente a transcrição das


palavras de Jung (1990, p.92), sugeridas pelo próprio trecho citado anteriormente: “Também
em outro lugar está espalhada a concepção primitiva que os espíritos dos mortos têm forma de
serpente. Poderia ela ter ocasionado a versão do verme no mito da Fênix.”. Em trecho anterior
do mesmo livro (nota 292, p.86), faz referência a outra versão, em que, após a queima de si
própria, sai de suas cinzas, primeiro rastejando como um verme e, depois, se cobre de penas e
se renova. Como se percebe há coincidência entre o significado mitológico e os abaixo
transcritos:

É mais provável que se trate de uma transformação, da passagem a um


estado superior, simbolizado pelo estado larvatório transitório.
(CHEVALIER, GHEERBRANT, 1995, p.943, grifo do autor).

Símbolo da vida que renasce da podridão e da morte. (Ibid., p.943)

Embora inseridos, no enredo, como uma realidade aparentemente inocente, são os


bichos-da-seda de O ponto cego conceituados, então, por uma definição extremamente
coincidente a essa idéia de estado latente, o que confirma a crença deste estudo de que a
linguagem figurada, as imagens, os símbolos, por mais individualizados que possam ser pela
força criativa de um artista, têm uma sustentação no inconsciente coletivo humano:

Eles eram o feio contendo o belo, o nojento prometendo a delicadeza toda.


Eram o segredo do destinado, eram o desatinado da compulsão, não havia
como escapar: eles também eram obrigados a produzir fios e a tecer, a
encapsular-se e finalmente morrer para que a alma pudesse voar e se
desdobrasse o brilho das sedas. (p.114)

Mas, tendo em vista o inusitado comportamento daquele Menino que não quer crescer
– “(Eu armei os emaranhados tremendos e dei os nós, eu finalmente disse sim aos meus
91

perversos desejos.)” (p.145) –, o aspecto positivo anunciado no mito da Fênix se desfaz e uma
leitura polivalente de suas palavras pode ser feita sempre: “Isso me consolava: o levíssimo
rumor dos vermes pelados e moles devorando folhas e secretando o que seria amarrado em
tramas e nós.” (p.114)
Como os demais bichinhos de estimação, aqueles têm um final trágico. Entretanto
deve-se observar o fato de que, se até então a morte desses pequenos elementos de
consolação, à revelia de seus sofridos donos, se constituía em aumento da carência afetiva,
aqui, é o surpreendente desfecho da situação o que permite pressentir a intensidade do
desequilíbrio vivido pela personagem central:

Tanto me doeu o que acontecia e tanto me atormentou o que estava por vir,
que um dia tirei de baixo da cama os meus confidentes famintos e insidiosos,
derramei tudo no assoalho e esmaguei um a um com os pés. (p.144)

De volta a As parceiras, deve-se ressaltar o aspecto denunciador de uma dinâmica


discursiva bem cuidada, que, com grande destreza, lida, ao mesmo tempo com múltiplos
semas, quando, no emprego do segundo verbo no exemplo a seguir, desvia-se de sua inicial
concretude: “Bila adorou os bichos-da-seda que um dia inquietaram o sótão.” (p. 61)
É preciso se destacar, inclusive, a não gratuidade da presença deles como objetos do
interesse de Bila, personagem com limites não muito nítidos e mais de uma possibilidade
interpretativa, que abre caminho para o Anão de Exílio. Deve-se recordar e comparar com
aqueles “vermes aflitos no sótão, vultos na memória” (AP, p.95), já citados anteriormente,
manifestação de forças primitivas e instintivas, inconscientes, que sempre ressurgirão nas
obras ora estudadas.
No romance aludido, a progressão narrativa vai delineando um significado diferente
do aceito no senso comum, já acrescentando e reforçando uma ligação cada vez mais psíquica
anã/verme, ligação que se tornará mais apreensível, quando da materialização daquele verme
abstrato de A asa esquerda do anjo, finalmente, aberto, naquele romance, o leque de todas as
suas significações e onde, finalmente, é anulada qualquer possibilidade de contato com a
realidade, ainda concebível nos outros, revestida, então, a figura de uma carga puramente
psíquica.

Noite de pesadelos: uma anã de trança escava numa sepultura, retira ossos,
desmonta esqueletos. Um fêmur pequeno e branco. Vermes verdes, bichos-
da-seda. Era uma caixa de sapato ou um caixãozinho de criança?
92

Sonho que estou cheia daqueles nojentos vermes pelados, grudam em mim
as perninhas inquietas, viram as cabeças aflitas, querem entrar na minha
boca, em todos os meus orifícios. (AP, p.111).

Perifericamente ou como elemento fundamental, esse surgimento quase compulsivo do


verme nos textos luftianos, acompanhando protagonistas que se ressentem da ausência de
mãe, permite comprovar, que é patenteador desse sentir-se preso no estado “larvar”,
transitório e de que há uma não passagem para o estado final, realizado, adulto, tão bem
descrito por Neumann. “Não precisava ter ido, mas Olga, que me conhece tanto, está certa
quando me censura por não crescer direito.” (p.25), confessa sobre si mesma a personagem
Nora de A sentinela.
A imagem da náusea metamorfoseada em verme já vinha sendo desenhada desde As
parceiras – “A náusea se arrasta pela minha garganta, como um grande verme que morasse no
meu estômago.” (p.130) e se repete em A sentinela: “Uma coisa morna, e pegajosa, começou
a rastejar do meu estômago para a garganta.” (p.82). É, no entanto, em A asa esquerda do
anjo que o verme, então francamente psíquico, invertendo a dinâmica dos bichos-da-seda de
Bila, em As parceiras ou no último romance publicado, por um engenho artístico de amplas
conseqüências, se materializa, elevado à categoria de personagem.
Engloba em si uma série de funções, algumas atreladas aos outros textos da autora.
Auto-representação de um ser inseguro e de identidade indefinida, não completada – “Ele vai
me fitar, sem olhos, sem nariz, sem feições. Sem identidade como eu – qual é o meu nome?
Onde fica o meu lugar? Como se deve amar? Neve ou fogo?” (AAEA, p.141) –, é a mais
claramente posta no segundo romance, dentro do leque de atribuições semânticas que possui.
Deve-se chamar a atenção para o fato de que, desde o início da narrativa, já se podia
entrever, mesmo dissimulada em aspectos ainda não tão precisos, essa singular figura e
adivinhar-lhe, então, o principal elemento gerador: “Afinal nunca descobri o que havia atrás
da portinha. Talvez ainda exista, embaixo do edifício. Minha fantasia de criança imaginava
alguém aprisionado lá dentro, gritando sem ser ouvido. Ou algum ser monstruoso,
enrodilhado na poeira, alguma coisa sem feições.” (AAEA, p.57). É, mais uma vez, o texto
de Marie-Louise von Franz que pode reforçar a argumentação que aqui se faz:

O cômodo proibido com o seu terrível segredo é um tema bastante amplo.


Em tal cômodo, alguma coisa estranha e importante está guardada e isso
significa que um complexo está reprimido e trancado – pois é algo
incompatível com a atitude consciente. (2003a, p.144)
93

Presa à palavra “grávido”, “parto” ou “parir”, ou à sedução do materno leite, o verme


final de A asa esquerda do anjo conduz o leitor , inclusive, até a idéia de filho não desejado –
“Não tive um filho de Leo, não abri minhas pernas, mas pari esta criatura que, enrodilhada,
bebe o leite.” (p.140), conclusão baseada nos conceitos que são semeados pelos vários
romances e, nesse sentido, pode-se encarar este verme como uma versão radical da anãzinha
Bila, fruto de violência sexual, ou de Lalo de As parceiras, de uma enorme insegurança. O
grande número de exemplos a seguir citados tem como finalidade indicar que os sentimentos
negativos sobre filhos não é uma ocorrência ocasional e que, por reincidente, na obra – em A
sentinela a referência se faz três vezes –, esse aspecto precisa ser levado em consideração.

Deve ser como um parto, a gente agüenta porque não tem volta, não se pode
fingir que não houve casamento, não se pode desfazer o filho, voltar tudo às
tranqüilas inocências. (AP, p.102)

Uma existência segura: Aretusa odiaria isso. Nem filhos ela quis, dizia que
só davam problemas. (RF, p.17)

Filhos: em vez de serem elos, transformavam-se em problemas e mais


separação. (OQF, p.16)

Por que não gostam de homens? tenho vontade de perguntar. Por que não
casam e têm filhos? Mas depois eu diria: Não, não façam isso. Vivam o seu
estéril amor, abençoadas e eximidas dos meus padecimentos de agora. (E,
p.107)

...com filho, Olga sempre repete, não existe aposentadoria; não se é


alforriado dessa servidão, que pode ser deslumbramento e funda angústia.
(AS, p.31)

Existe a possibilidade de se estabelecer, além de uma outra interpretação que é


defendida no item 6.6, uma vinculação daquele verme com aspectos sexuais, preocupação
constante nesse livro, o que o torna peculiar em face dos outros: “O Anjo tem algo da plácida
beleza de Anemarie. Nada de sexo e violência. Também não permiti que ninguém me
violasse, nem mesmo Leo.” (p.38). Palavras como “limpa”, utilizada com tal carga, compõe,
com outras de igual teor, – “O corpo magro, mas o ventre avançando, me deixa uma
impressão de pecado e despudor.” (p.15) – todo um universo significativo: “Estou sentada na
beira da cama, e quando me deito a velha estrutura range como se fizessem movimentos
indecentes em cima dela. Meu ventre repuxa.” (p.12)
Unindo toda uma experiência de medo em relação a sexo – as queixas das mulheres
entreouvidas na infância, as histórias misteriosas sobre as noites de núpcias contadas pelas
94

recém-casadas, o horror do rosto da tia diante da ameaça de violência sexual protagonizada


pelo tio ébrio e, acima de tudo, o efeito das palavras fortes e amedrontadoras da avó para
Gisela – “Minha mãe me lava com cuidado, me consola, mas sinto-me violada. À noite, meu
corpo comicha, sensações estranhas no sexo, no ventre, estou contaminada.” (p.60) –
incentivam o sentimento idealizado pela prima – “Quero me libertar: ser pura, como
Anemarie, que morreu e na minha memória continua imaculada.” (p.83) –, traçam um futuro
de solidão e recusa ao amor em toda a sua plenitude.

Sou uma mulher normal?


Sou? Guísela ou Gisela? Ódio ou amor? Fogo ou gelo? Meu lugar ainda é
nos braços de Leo, que me ama? Ou nesse campo de neve, eu comigo
mesma encastoada no corpo imune a qualquer toque, qualquer afago,
incandescido apenas à memória do que poderia ter sido e não foi? (p.100)

É sob uma ótica sexual, ainda, que se surpreende uma das probabilidades
interpretativas da portinha secreta, de tanta dúvida para a protagonista e em tantos momentos
introduzida:

O fogo do amor de Leo: a pedra de gelo no meu ventre, resistindo,


resistindo, ninguém entra nele. Se não tivesse visto a cena com tio Ernst,
minha vida teria sido diferente?
A portinha do porão continuava secreta? (p.123)

Mas é esse sentimento pendular – “Fogo ou gelo” – que engendra, finalmente, aquele
ser, que em alguns momentos pode ser percebido como uma imagem de contornos
inteiramente fálicos:

Essa coisa doente, comprida, pelada, que estica e encolhe e volta a


arremeter, dando-me náuseas, um corpo onde talvez não se distinga cabeça e
cauda, revirando-se no bafo das minhas entranhas, emanações lembrando as
do corredor atrás da porta de seu Max na minha infância. (p. 83)

A negação do sexo – “Vaga sensação de pecado, curiosidade e vergonha, como


quando tento desvendar os seios do Anjo.” (p.123) –, o medo das coisas telúricas e, portanto
sujas, do contato com tudo que fosse natural, animal, conceitos incutidos pela matriarca,
transformam Gisela no ideal proposto pela outra, mas também inoculam dentro de si o verme,
manifestação do instinto, recalcada característica primordial, mas necessária ao ser humano
como um todo: “Meu corpo, esticado na cama, sente melhor as vibrações do animal
aprisionado...” (p.37).
95

Valer-se da figura animal, comparativamente, constitui-se em truísmo, visto que, na


literatura universal, tal procedimento é uma constante e, tradicionalmente, esse
relacionamento se dá em um nível quase que exclusivamente exterior, sendo pessoa e animal,
e as características que os aproximariam, detectáveis no mundo visível. No corpus aqui
estudado, ao contrário, esse recurso artístico tem um peso bastante diferente, pois se trata de
entrelaçar os dois extremos do mundo psíquico, trazendo para a tona aqueles elementos
inconscientes, instintivos, irracionais, que fazem do ser humano um ser animal. É,
principalmente, com esse sentido que se deve avaliar a metáfora luftiana.
96

5 MEMÓRIA: ASAS DA IMAGINAÇÃO

**** Aquarela

Da minha infância
retiro as fotografias da família
no luto diário,
os olhos invisíveis
condenando curiosidades,
o baú de preciosidades
(e traças devassas),
trancadas a cadeado,
os sonhos desenfreados,
a mística do susto,
os flagrantes,
evitados a custo,
e por fim retiro-me do porão
com tudo o que continha minha imaginação
delirante.
Fica a vida.
Que nem parecia importante.
(Leila Míccolis)

Ao se adotar a perspectiva proposta neste estudo para se analisar a obra de Lya Luft, e
como um primeiro passo para os aspectos focalizados no último capítulo, é impossível não se
examinar a questão da memória, fundo norteador dos discursos das personagens principais e
motivo condutor da trama que se desenvolve a partir daí: “Minha vida no internato em breve
seria uma recordação, um entrecho de existência guardado num limbo.”(E, p.137)
A primeira observação a ser colocada é a de que a ficção enfocada se apresenta, no
enunciado, não como uma narrativa, mas como o simulacro de um processo rememorativo: no
nível superficial, há um impulso de memória voluntária, quando cada protagonista, numa
avaliação de vida, tenta voltar ao passado para entender, recompor o presente, conviver, de
uma forma minimamente saudável, com ele: “Mas esse é um ninho fofo, macio, consolador:
deitar-se para sofrer menos, refugiada nas lembranças para não ter que decidir a vida,
mergulhar no passado para não enfrentar o futuro. Ou para entender o presente? Tão vazio o
meu presente.” (AP, p.94).
97

No entanto a tentativa de viajar em direção a uma época que se acredita haver escoado
mostra que ela não findou e o continuum temporal não se rompeu.
Se, à primeira vista, se supõe um retroceder, por vontade própria, do presente para o
passado – “Pois eu queria viver como toda gente, parar de remexer nos baús.” (AP, p.117) –,
verifica-se logo que é este último que teima em voltar continuamente, convocado pelas
mesmas emoções: “Sinto frio. Apesar da tarde quente, do mormaço, tenho calafrios. Deve ser
começo de gripe, por isso me sinto esquisita, aérea.” (RF, p.46).
Por causa disso, uma imagem recorrente em vários de seus romances é o da figura
pretérita que, no momento atual, requisita a atenção para a fase que realmente comanda a vida
da personagem enunciadora. Dessa maneira, como se vê, não é a protagonista que empreende,
na maioria das vezes, o ato de lembrar, mas é a reminiscência que se faz sujeito da ação.

E há os mortos no morro, e no meu cemitério particular da memória: como


num sótão, me fazem companhia sem serem vistos. Murmuram, chamam.
Cada vez me atemorizam menos: já sou quase um deles. (AP, p.17-18)

Aretusa-Medusa, gritam as meninas na calçada da memória.(RF, p.25)

É a Voz; há dias não me chamava; pensei que me tivesse esquecido, quem


sabe ela se matou, enfim, que alívio. Mas desta vez ela não fala: arfa, geme,
parece soluçar. Sinistra e repulsiva.(E, p.123)

Mudei de assunto, mas depois dessa conversa mais de uma vez me virei, de
súbito, caminhando no corredor: Lilith estaria no meu encalço? E aquele
movimento atrás da vidraça, era ela me chamando? (AS, p.63)

Portanto parece imprescindível uma pesquisa detalhada do modo pelo qual se realiza
esse percurso rememorativo – voluntário ou predominantemente involuntário –, por ser a
pedra de toque da composição de pelo menos cinco dos livros examinados, com exceção, mas
não inteiramente excluído, em O quarto fechado e O ponto cego, o primeiro por não ser
construído sob o ponto de vista interno e o último por se caracterizar pelo discurso de uma
criança que não possui ainda um passado, em sentido literal, suficientemente rico e, por isso,
com possibilidades de intervenção no presente.
Por esse caminho, pode-se reconhecer um movimento que, se consciente, imagina
olhar para trás, inconscientemente, é apenas o submeter-se a uma força que, qual a erupção de
um vulcão aparentemente adormecido, lança, do mais profundo interior, em vários momentos,
das mais variadas formas, sua lava de sentimentos, desde que estimulado por condições
traumáticas semelhantes: “A vida nos separaria; tantos anos depois, na minha grande crise, eu
98

lembraria dela; e apesar de um natural estranhamento trazido pela passagem do tempo, ela
haveria de me ajudar.” (E, p.38)

5.1 As presentes emoções passadas

O estudo inicial diz respeito, justamente, a tais condições traumáticas e em que se


configura a semelhança daí advinda entre esses dois tempos. Na verdade, pode-se reconhecer
que no íntimo das protagonistas, a partir da infância e, principalmente, em todos os aspectos
relacionados com a já tão citada lacuna na realização do arquétipo materno, se cristalizou uma
série de emoções – “...sentia tudo se esboroar como areia fininha, sutil mas implacável; tinha
na alma o gosto de todas as perdas.” (E, p.48) –, que acabam por se estabelecer praticamente
como categorias psíquicas, em uma dinâmica transtemporal: em todas as situações de vida,
incluindo as de adulta, que é o tempo da enunciação, a cada vez que uma das categorias se
apresenta arroja atrás de si todo o passado, com seu cortejo de sensações, que se renovam e
ressurgem, independentemente de quem sejam, na atualidade, as personagens circunstanciais
– “Dor e revolta, incredulidade e mágoa retornam em sonhos: a dor, o sufocamento. As
pessoas a quem mais amei me traíram: minha mãe, meu marido.” (E, p.100). Mediante tal
condição, o que se acompanha página a página, não se limita à rotineira prática da recordação,
mas mostra-se um constante reviver o que ainda não se esgotou: “Perdas antigas: quase
esquecidas, mas agora reavivadas, e cheias de pus; o tempo as infeccionou, e eu nem sabia...”
(E, p.21).
Nos cinco romances focalizados, pode-se reconhecer a ininterrupta solidão como o
principal sentimento que, atravessando todas as fases das vidas das protagonistas, domina-as
novamente na idade adulta, o que faz ressuscitar, fantasmas de uma fase distante, as mesmas
emoções.

Papai indagava da escola, mas não éramos nós sua verdadeira preocupação:
era mamãe. Pensei que se amavam demais, o resto do mundo não
interessava: e me senti mais só ainda. Cada vez mais só. (AP, p.28)

Os assuntos que me fascinavam e assustavam. E eu, sozinha no quarto frio, à


margem. (AAEA, p.31)

Embora tenham passado tantos anos, ainda sinto a solidão de menina: mas
me pesa muito mais. (E, p.17)
99

Em Exílio, esse sentir estratificado no tempo de criança e que foi adquirido em dadas
condições pode ser reconhecido em uma constante insegurança da protagonista manifestada
no pressentimento de estar sempre excluída do círculo afetivo de outro – “Poderei me
reconstruir ou terei sempre essa sensação de estar mutilada, fora do mundo, dos segredos e do
afeto alheio?” (p.56) –, reproduzindo aquela impressão em relação à mãe, aprendida em um
tempo muito remoto, estendida às demais personagens sempre que se apresentam situações
relacionais conflitantes:

Era Marcos quem, com um trabalho menos absorvente, lhe dava banho
quando a babá não estava; era Marcos quem lhe contava histórias para
dormir; era Marcos quem o levava a passear quando eu estava cansada
demais. Havia laços especiais entre eles: eu ficava de fora. (p.51)

Tanto afeto nessas palavras, uma expressão tão patética. Nesse círculo eu
não conseguiria entrar. Você abaixou-se, beijou-o na testa.
Eu ficaria de fora, como sempre. (p.149)

Motivada pela reiterada sensação de rejeição ou de traição que percorre os diferentes


textos – “...Elsa preparara tudo, sem me informar. Traição: a palavra retumbava em meus
ouvidos, o dia todo e toda a noite.” (AS, p.61) –, a impressão de sempre estar só pode trazer
como conseqüência para as personagens centrais emoções essencialmente infantis – “Faz tudo
por eles, banca a escrava deles, apenas porque tem medo da solidão. Você não ama
ninguém.”(RF, p.105) – ou outras, de uma causa menos visível – “A culpa, a culpa habita a
alma de Aretusa, uma aranha cinzenta, quando menos se espera, salta e dá o bote.”(RF, p.74),
sentimentos que, da mesma maneira, perpassam o conjunto da obra, como se pode comprovar
pelos inúmeros exemplos:

E, sem notar quase, também iniciei um jogo e esconde-esconde com meus


antigos medos. (AP, p.105)

Mas nunca deixei de ter medo de meu pai. Acho que todos temos. (RF, p.35)

Criança, eu sofria de insônia e dos terrores que Lilith me incutia: falava de


coisas esquisitas, falava da morte. (AS, p.20)

Dúvidas e culpas foram a soma dos anos de infância. (AAEA, p.65)

Faria qualquer coisa para voltar: me submeteria ao desprezo de Marcos, à


culpa pela decepção de Antônio, a tudo. (E, p.56)

Passei a ter esperança de conquistar um lugar meu na casa, no coração de


meus pais; oscilava entre a alegria por esse projeto e uma estranha sensação
100

de culpa, porque eu desejara tanto remover Lilith do seu reinado; só que não
daquele jeito. (AS, p.58)

Em As parceiras, sensações do momento que se apresentam como análogas às do


passado fazem despertar os acontecimentos de então que vão puxando outros, em uma cadeia
cruel e interminável, comprovação cabal de que o sentimento categorizado, está vivo, apenas
espreitando através do tempo:

Nunca tive outra amiga como Adélia. A morte entrou em mim num
ferimento que jamais sarava, pois logo outra pessoa morria, e eu a enterrava
naquele lugar. Até Catarina emergiu da minha memória, e aninhou-se ali,
sempre murmurando. Bila postou-se num canto, fazendo caretas e me dando
remorso. Um buraco enorme aquele. (AP, p.24)

A ferida da morte cresceu desmesuradamente. Tudo se precipitara naquele


pó, nas águas, como Adélia de cima do rochedo. (p.32)

E a mesma condição enfrentada pela neta em tal romance – “Lembro de minha avó, as
roupas brancas, alfazema, solidão. E medo.” (p.13) – traz Catarina, do período em que vivia,
como signo máximo de uma determinada classe de emoções experimentadas: “Desde que
estou no chalé ainda não chorei por mim, mas hoje chorei por Catarina, cuja sorte, embora
diversa da minha, nos aproxima tanto.” (p.55)
De igual natureza, a ligação continuamente estabelecida, ao longo do caminhar da
trama de Exílio, entre os sentimentos suscitados pela frustração com Antônio e os enlaçados à
mãe, na meninice, apontam, definitivamente, para um núcleo comum, que se faz recuperado a
cada novo estado de instabilidade afetiva:

Não vou encontrar Antônio, há dias ele só me fala ao telefone. Comenta seu
desejo de me ver, diz palavras apaixonadas, mas está ocupado demais; de
modo que também ele de repente parece fora do meu mundo, ou eu do
mundo dele, como estive fora do segredo de minha mãe; quem era ela
afinal? (p.62)

A incontrolável inundação da recordação de acontecimentos idos, em particular os da


primeira fase da vida, é flagrantemente traduzida pela utilização, com freqüência, no nível da
língua, de verbos no presente: “Sem mais olhar para mim ou para o bebê, sai como entrou,
irritada e solene. O passo talvez um pouco inseguro. Meu pai me abraça rápido, faz uma
brincadeira qualquer, beija a cabecinha de meu irmão e vai apressado atrás dela.” (E, p.19).
Igualmente, em A asa esquerda do anjo, em impulso inicial para recordar, as formas verbais
estão todas nesse tempo, em duas páginas inteiras, tratado o fato como vivido no momento
101

atual, o que ocorre em vários de seus capítulos, recurso empregado, ainda, em outros
romances. O trecho seguinte parece dirimir qualquer dúvida possível: “O grupo que
contempla Anemarie continua fixado, fotografado na minha lembrança.” (p.77).

5.2 O nó do destino

Todavia o mais direto registro desse retorno diz respeito à memória voluntária,
marcada como um exercício de relembrar. “Enquanto isso lembro.”(p.13), diz Gisela, no
segundo romance, e Anelise, de As parceiras – “Vim ao Chalé resolver minha vida, se é que
ainda há o que resolver.” (p.16) –, quando se verifica que “resolver a vida” é revolver o que já
foi: “Tenho bastante tempo para repassar o filme todo mais uma vez.”(p.18). Com elas, fazem
coro os seres ficcionais dos outros romances:

O cascalho do tempo escoa na memória: conto fatos da minha vida como


quem contasse carneiros. Só que não quero dormir: preciso ficar lúcida, para
desatar o nó do meu destino emperrado e complexo. (E, p.17)

Não desço para me despedir das tapeceiras; ainda há coisas a fazer neste
quarto, filmes a rever. (AS, p.94)

No sexto romance, deve-se chamar a atenção para o fato de que um componente da


própria estrutura do enredo reforça a importância ostentada pelo rememorar, o qual, sob esse
aspecto, passa a cruzar a iniciativa consciente e a atitude involuntária como criação artística
por onde se escoam as emoções mais recônditas. Dentre todas as atividades começadas e
abandonadas, a tecelagem, que se desenvolve, nitidamente, com caráter memorialista para a
protagonista, é a única que, levada até o fim, realiza a artista e aponta para um futuro pleno de
expectativas.

Só os tapetes floresceram: especialmente esses, de seda, que eu mesma faço,


e são poucos: árvores, aves-do-paraíso, animais de fábula, frutas, mãos,
olhos espreitando. Às vezes uma gruta quase secreta.. (AS, p.15)

Um dedo cálido toca meu ombro, clareia tudo abaixo de mim: teares
lustrosos, novelos coloridos, prontos para desenrolar minhas histórias e
produzir os objetos dos meus sonhos. (Ibid.,p.30)

É, igualmente, através da tapeçaria, nesse exercício de refazer artisticamente as dores e


dúvidas, que Nora consegue conjurar o passado e se apossar, afinal, do reinado de Lilith – “-
Dona Penélope saboreando o seu reinado?” (p.43) –, tantas vezes citado como um reduto de
102

subserviência, anulação e medo, mas para o qual termina por fixar um novo significado, o
qual se estabelece em referência às suas novas atividade e postura diante da vida: “Levanto-
me, inquieta, ando pela sala como numa gruta mal iluminada: amanhã, vou brincar de rainha,
aqui será meu reino, mas não haverá escravos nem bobo da corte.” (p.35).
Características peculiares desse reviver, no entanto, podem ser observadas em Reunião
de família. Nesse romance, essa tendência consciente de buscar o que se viveu para se decidir
o que se vive não acontece. Em sentido inverso, e apenas de forma acidental, o encontro com
esse tempo é temido e enche a personagem de insegurança: “Essas lembranças deixam meu
coração apertado, enquanto o táxi estaciona junto da casa.” (p.20)
Em uma arguta dinâmica narrativa por parte da escritora, a inadiável viagem para a
casa do pai – “É só uma velha casa, digo a mim mesma, aborrecida por me sentir tão inquieta
e triste aqui.” (p. 45) –, trazendo de volta indesejadas situações passadas à lembrança,
constitui-se em um sofrido movimento psíquico, rompida, assim, a diferenciação entre as
dimensões espaço/tempo: “Agora, pensando em minha casa, de que não devia ter-me
afastado, sinto-me tão alheia a eles como se fossem irreais; não passam de figurinhas correndo
longe; tento chamar, mas já não me ouvem.” (p.22).
A questão fica inteiramente clara quando se constata que a casa onde Alice mora
funciona para ela não como delimitador físico, mas como uma fortaleza em que, resguardada
por marido e filhos, em seu restrito e estéril cotidiano, se defende contra os riscos da vida,
contra os perigosos vôos da imaginação, mas, também, contra desestabilizadoras invasões da
memória:

Mas hoje sou obrigada a sair dessa concha: por um fim-de-semana, estarei na
casa onde meu pai mora faz alguns anos, com minha irmã mais moça,
Evelyn, e seu marido. (p.11)

É apenas um fim-de-semana, não me canso de repetir. Mas tenho a sensação


de que vou visitar um doente condenado, cujo rosto macilento terei de beijar,
falando coisas banais, sem poder lhe anunciar a morte iminente. Sempre essa
cumplicidade na mentira, quando o desejo seria dar o grande grito: quem
somos afinal? (p.12-13)

Esse relacionamento entre espaço e tempo, que na autora parece conjugar mais
afinidades que afastamentos – “Tão distante o meu universo familiar, esfumado como se eu
estivesse fora dele há muitos anos. E estou vagando por um presente igualmente irreal.” (RF,
p.103), já vinha sendo explorado desde o primeiro livro, quando Anelise, no chalé, ou seja,
longe da restrição de seu ambiente tradicional, pode locomover-se também na dimensão
103

temporal. O mesmo se dá para a Casa Vermelha – “Outras vezes, parece que estou num
pesadelo: o que faço neste lugar decadente, com essas pessoas com as quais nada me liga
senão tristeza e solidão, longe do meu mundo arrumado e certo?” (p.48) –, em Exílio, e, em A
sentinela, morar na casa da infância é restaurar essa época: “Assim, reinstalada, tendo
comprado de volta esta sua casa, de alguma forma o recompensei por ter desejado que Lilith
desaparecesse, que me cedesse seu lugar. Sinto que devo isso a meu pai, esse retorno.” (p.93).
Mudar-se para outro ambiente significa, praticamente, pairar sobre o presente, com
possibilidades de se atingir o passado.

5.3 Espectros do passado

Outro traço dessa recuperação, nos cinco romances examinados, é a constância com
que uma imagem viva do passado, mediante um movimento seguidamente secundado pela
fantasia, reaparece no momento narrativo como índice inexorável da memória. Em As
parceiras, o devaneio obsessivo com a avó vai-se apossando de uma presença física, uma
mulher desconhecida e entrevista, que, aos poucos, perde seu contorno material e se
transmuda em um reflexo do interior da personagem nuclear: a veranista, cercada pelo
mistério trazido pela inacessibilidade e acompanhada de todos os signos da outra, como o tipo
e o vestido branco, o que lhe permite até mesmo a recomposição sensorial do perfume de
alfazema, deixa de ser ela mesma para torna-se Catarina.
Em A asa esquerda do anjo, é o verme, gestado na infância pelos medos e culpas, que,
além de todas as outras funções que agrega na composição do enredo, ganha vulto como
aquele que traz, para o presente enunciativo, como culminância de todos os outros períodos
anteriores, o momento realmente determinante da vida da protagonista: “A memória continua
ativa, num estertor lembro que Leo está morto e que, desde sua morte, esta coisa que estou
expelindo retornou à vida dentro de mim.” (p.131)
A Alice do espelho, a que era livre “para detestar tudo” (p.10) o que a “Santa Alice”,
segundo as palavras irônicas da cunhada, era obrigada a aceitar, é a ilusão salvadora que,
rompendo de um tempo nebuloso, em Reunião de família, convidada por uma inesperada
quebra na rotina, anula o aparente chão de tranqüilidade sobre o qual a segunda pensa
caminhar, mas que, estendido sobre ela, apenas a sufoca e imobiliza.
Um fantasma de mulher, que freqüenta o espelho, duplicata psíquica de mãe, ao lado
do Anão, acúmulo de significados narrativos, em Exílio, seguramente se sobressaem como as
104

figuras que mais marcantemente se caracterizam como elo temporal, atualização de receios e
sensações infantis, movimentando-se com independência e vivacidade pelo universo ficcional.
Em A sentinela, Henrique, o filho que desperta tão somente por sua presença, todo o
tempo perdido, é um dos responsáveis involuntários pela permanência do fantasma de Lilith,
que carrega consigo todo o sentimento de rejeição e desamor, revitalizado, pois jamais
superado, em que se debate, na idade adulta, a irmã Nora.: “Mas não era só por esse sinal que
ela continuava presente: sua vida estrangulada continuava a pulsar, a querer, a ansiar. Não
chegara ao fim: palpitava em tudo, especialmente em minha memória.” (p.63).

5.4 A construção da lembrança

Cabe ainda empreender um estudo de três mecanismos que concorrem para a


reconstrução de um passado que é inevitável reencontrar. O primeiro deles é a da
recomposição de uma época, de pessoas e acontecimentos, e até de sentimentos, por
intermédio das informações recebidas aqui e ali, procuradas ou não, testemunhos dados por
aqueles que assistiram aos fatos, muitas vezes, antes do nascimento dessa que retorna em
direção ao transcorrido, ou que explicam circunstâncias que, de outra forma, não poderiam ter
sido avaliadas por uma personagem criança. É importante se atentar para o fato de que, se em
tais condições, muito do que se comenta e conclui está notoriamente esvaziado de seu
conteúdo de lembrança, para a que refaz o percurso continua a manter o mesmo estatuto de
recordação.
Dessa maneira, a partir do “Dizem que do jardim se via seu rosto branco e ausente.”
(AP, p.12), Anelise, adulta, constrói suas próprias lembranças de adolescente – “Deitava na
grama, espiava a sacada do sótão no terceiro andar. Era o rosto de Catarina atrás do vidro, ou
era imaginação?” (p.64) – e vai, juntando pedaços, recuperando toda a vida da avó – “Sabia
da história de minha avó Catarina, a do sótão, conhecia fragmentos da loucura, das falas, das
cartas, da morte misteriosa. Quem me contava era Vânia, mas desinteressada, como se falasse
de uma pessoa desconhecida.” (p.27) –, uma vida tão sofrida quanto esgarçada, com
momentos parecidos com os seus: “Fiquei emocionada quando tia Dora me contou isso, nos
primeiros tempos em que moramos juntas. O segredo de Catarina. A intimidade violada, o que
eu adivinhara mas ninguém me contara antes.” (p.53).
105

De forma semelhante, o conceito que Gisela – A asa esquerda do anjo – tem de Frau
Wolf e que a configuram como a imagem concreta da Mãe Terrível, começa a ser construído
pelas notícias, desde um tempo não vivido, dadas sobre ela pelo resto da família:

Ele morrera há muito tempo, eu não o conhecera. Diziam-no tiranizado pela


mulher: depois do nascimento de Marta, a filha mais nova, ela o expulsara
do quarto conjugal. (p.44)

Mais tarde fiquei sabendo que o casamento de meu pai com ela trouxera
grande desgosto para a família, especialmente Frau Wolf. (p.46)

No texto de Exílio, a inocente idealização de filha a respeito de uma mãe indiferente –


“Eu armara para mim mesma uma série de fantasias em torno dela: era uma espécie de rainha
de um país distante, que só condescendera em ser minha venerada mãe com a condição de que
não lhe exigissem demais, não a incomodassem naquele seu estado de sonho.” (p.57-58) – vai
sendo arruinada pelas revelações dos adultos, que, dessa maneira, vão montando um quebra-
cabeças a ser relembrado na fase adulta e utilizado como tática de referência e causa de
sofrimento: “- Bêbada de novo, essa sua mãe. Pobre do patrão. E coitadinhos de vocês,
coitadinhos de vocês.”(p.59). Os detalhes ouvidos sobre o suicídio – “Não sei o que recordaria
um menino tão pequeno; mas, como eu, ele devia ter refeito a história mais tarde: não faltava
quem falasse no caso, dando detalhes.” (p.77-78) –, não possivelmente lembrado, visto que
não pressentido no momento por uma filha que se deita ao lado de uma mãe pretensamente
adormecida – “Eu não vira manchas; o sangue devia ter escorrido todo pelo furo das costas;
disseram que havia uma grande poça no tapete embaixo da cama.” (p.77) –, tornam-se
fundamentais para a concretização de sentimentos e a suposta tragicidade da recordação dos
fatos em um momento futuro:

Eu teria nove anos; Gabriel, três. Ela, cada vez pior; mais tarde fui
reconstruindo a história, com lembranças, comentários alheios, alguma
revelação involuntária de meu pai, que depois da morte dela raramente
pronunciava seu nome: mas via-se que estava gravado nele, em sangue e
fogo.(p.74)

A lembrança reconstitutiva de A sentinela não difere dos romances anteriores. A


infância de Olga até o nascimento de Nora, por exemplo, é refeita na mente dessa última, a
partir de informações de outros e, ali, a madrasta da irmã, sua mãe Elsa, é já delineada através
de um comportamento negativo: “Cresceu sem mãe, foi rejeitada pela minha que não aceitou
106

esse estranho dote, fruto de um namoro de juventude de Mateus...” (p.16). Mas esses dados
que chegam de uma fonte exterior são capazes de tal penetração que, mobilizando a
sensibilidade afetiva, acabam ganhado valor de verdade a ser lembrada: “Eu já era adulta
quando soube disso; e por um momento todo o contido amor por Mateus voltou a me
dominar, quase senti o seu cheiro, quase me perdi no seu abraço forte, quase ouvi sua grande
voz chamando por alguém.” (p.57)
Ainda, sob esse aspecto, Reunião de família surpreende. É o único em que, a par de
um apagamento completo da imagem materna, ferida aberta em relação ao arquétipo, a falta
de informações de terceiros – “Mesmo Berta, a empregada, não sabe grande coisa sobre a
patroa morta há anos.” (p.19) – impede a criança, sequer de um retrato possível: “Tentei
descobrir com ela alguma coisa mais sobre minha mãe, mas a resposta foi que só a vira duas,
três vezes, nada mais.” (p.59). Os poucos testemunhos que chegam à protagonista se fazem de
forma fragmentada, no fim de semana em casa do pai, quando, em plena maturidade, já estão
fundamentadas as imagens da recordação.
Essa impossibilidade de recomposição segura do passado – “Mas sua visita serviu para
enriquecer um pouco a vaga idéia que tínhamos da juventude de nosso pai.” (p.59) – ou do
perfil materno cria um largo espaço para a imaginação, o que se constitui, nesse caso, no
segundo mecanismo que, paralelo à memória, preenche os vazios ignorados ou esquecidos, ou
a substitui, ou, até, funciona como adulterador dos momentos que realmente ficaram
gravados. Brilhantemente ilustrativas são, ainda, as palavras de Marie-Louise von Franz
(2003b, p.89):

Por exemplo, falamos de uma teia de associações, em que todos os


desdobramentos de um arquétipo formam uma rede. Todos eles se conectam
um com o outro, entretecendo-se. É por isso que Jung diz que os arquétipos
estão contaminados. Em latim, contaminare significa entrelaçar, entretecer.
Assim, nossos processos mentais são como uma teia, uma rede de
associações. Também nossos processos emocionais são uma rede. Fazemos
conexões, mas principalmente com nossa fantasia. De modo geral, o tecer
tem a ver com o trabalho da fantasia, que também é uma forma de
associação e de realização de conexões. A fantasia criativa é uma rede.
Quando imaginamos ativamente, tecemos, e é por isso que a imaginação tem
a ver com a idéia de destino; as fantasias inconscientes das pessoas são seu
destino.

É a própria Lya Luft, em seu O ponto cego, utilizando os fios do discurso artístico de
sua personagem, que seguidamente pode ser tomado como definição teórica da prática
107

literária, quem complementa e recria, com igual pertinência, a definição da estudiosa


junguiana:

O tempo que rói e corrói precisa ser reinstaurado, quem conta histórias pode
sobrepor muitas camadas de imaginário e real pois sabe que os limites são
tênues e poderosa a liberdade com todos os seus perigos. (p.16)

No terceiro romance, esse fator tem uma importância marcante, visto que essa falta de
nitidez permite que, impulsionada pelas necessidades primitivas que se configuram no
arquétipo – “Mas na adolescência sofri com essa privação; imaginava que viva, minha mãe
resolveria todos os meus problemas e desmancharia todas as minhas angústias.” (p.34) –,
Alice fantasie para si um modelo de mãe que sua lembrança não é capaz de prover, um “terno
fantasma” (p.44) a que “a presença rude e primitiva” da empregada Berta não corresponde,
mas, principalmente, permite a eclosão de um símbolo materno tão inumano, mas tão forte,
como a árvore cortada que penetra, incontrolavelmente na casa, tentando recuperar seu espaço
apagado na mente dos filhos.
O alcance do poder de reconstrução desfiguradora do devaneio infantil se define na
interiorização completa das escassas palavras de Berta sobre a mãe morta: “Chegou em nossa
casa pouco antes dela morrer, minha mãe viva doente no quarto. Vinha um médico tirar água
da barriga dela com uma agulha.” (p.19). Aos poucos, através do discurso da protagonista, é
possível se entender que esses dois elementos “barriga” e “agulha” são os dois atributos
principais desse conceito construído de mãe, alimentado pela imaginação de criança e não
abandonado na idade adulta: “Imagino minha irmã transformada numa boneca com cara de
múmia, murcha, mas a barrigona enorme: carrega o filho para não perdê-lo nunca mais.”
(p.32). É a ele que Alice sempre recorre como comparação inconsciente quando aparece
envolvida a idéia de mãe, como se pode conferir, ainda, no momento em que, após o assomo
de ira incontida, reforça para a irmã a morte do filho: “Evelyn encolhe-se na cadeira, como se
eu lhe tivesse enfiado uma agulha no ventre.” (p.115)
O entrelaçamento, na maioria das vezes, difícil de ser distinguido entre imaginação e
memória, que apreende detalhes e os introduz para costurar os retalhos da lembrança, é
também instrumento fartamente utilizado nos outros romances:

Tia Dora e eu ficamos em silêncio, imaginando a queda. As mãos finas


agarrando a balaustrada de madeira, o corpo tomando impulso, voando com
as roupas compridas abrindo-se num pára-quedas insuficiente, o cheiro de
alfazema como um rastro. (AP, p.142)
108

Em As parceiras, a morte de Adélia, que se deu no final da infância de Anelise, morte


sobre a qual só foi informada mais tarde – “Será que, ao cair, Adélia não chamou nem o meu
nome?” (p.25) – é refeita no presente com detalhes precisos criados pela imaginação de
menina:

Afinal, o cansaço vence, e o peso das lembranças. Afundo no sono como


aquela flor rosada desceu até o mar quando Adélia abriu os dedos e a soltou
de cima do penhasco vertical. O lírio foi girando, girando, e finalmente as
águas devoraram tudo.(p.40)

Em A asa esquerda do anjo, o verme, que participa de vários devaneios infantis –


“Minha fantasia de criança imaginava alguém aprisionado lá dentro, gritando sem ser ouvido.
Ou algum ser monstruoso, enrodilhado na poeira, alguma coisa sem feições.” (p.57) –, ainda
que tenha a suposição de sua origem insinuada no texto – “Há três dias e três noites tento me
convencer de que é imaginação, eu não fantasiava demais quando menina?” (p.137) –,
ultrapassa toda a sensatez da madureza e, lançando-se de um período longínquo, retorna ao
discurso do presente, ainda guiado pela imaginação, invencível arma de criança, e pelas
sensações de mesma natureza do passado: “Outrora sofri uma vez desse pavor: sentir-me
invadida por alguma coisa nojenta, terrível, que me fazia acordar aos gritos, perturbando a
casa toda.” (p.59). A despeito de estar quase sempre envolto por uma névoa de dúvidas,
muitas vezes desfaz seus limites de produto do medo infantil e ressurge elevado ao patamar de
figura real do passado, substituída a idéia de “imaginação”, nesse caso, pela de “memória”, o
que significa reescrever o transcorrido. Navegando pela corrente dos sentimentos, cuja
nascente está na infância, mas que deságua no tempo de adulta, atualizado pela mesma
emoção de então, esse verme vai se fortalecendo, até atingir tal força de presença que é
passível de, finalmente, se materializar. A chegada do verme à atualidade é o entrosamento
completo da imaginação e da memória, colocada uma a serviço da outra.
E o apelo à fantasia como recurso restaurador dos vácuos da memória, já percebido no
acidente com Adélia, em As parceiras, é novamente utilizado em Exílio, sendo, nesse caso,
peça fundamental para o movimento da engrenagem narrativa. É o detalhe introduzido
posteriormente pela formuladora do discurso que justifica para ela a insanidade de Gabriel e
que subverte o real, compatibilizando-o com a atmosfera dominante no texto. O que, a
princípio, começa a ser enunciado como uma suposição – “Gabriel teria bebido veneno com o
sangue de nossa mãe, naquela tarde?” (p.79) –, termina por se intrometer como verdade
109

inteiramente em seu psiquismo, confirmando suspeitas desestabilizadoras, impulsionando


disposições emocionais.
A introdução de elementos criados livremente sobre uma base construída sobre fatos
possivelmente acontecidos é, finalmente, fixada como instrumento de ressurreição do passado
em A sentinela. A partir de uma dúvida de infância sobre o tamanho do caixão do pai,
“pequeno demais para a sua estatura” (p.14), essa recriação do episódio da morte de Mateus é
revivida de forma incontrolável – “Em minha imaginação milhares de vezes a acompanhei;
breve parada no alto dos três degraus de pedra; um saltinho e outro mais, bamboleara rápida e
silenciosa até a gruta, as folhagens farfalhando, cúmplices; depois o silêncio, reino perfeito.”
(p.37) –, a tal ponto que, correndo o risco do ridículo, a Nora adulta ainda se permite a mesma
incerteza do passado: “- Você alguma vez ouviu dizer que meu pai foi enterrado sem cabeça?
Que ela ficou esquecida naquela gruta, e ninguém procurou, nem teve coragem de...de
pegar?” (p.149).
Como se verifica, o processo de preenchimento dos hiatos não rememorados por
intermédio da invenção envolve, além de tudo, a satisfação de aspirações, ou seja, consiste em
uma maneira segura, mesmo que inconsciente, de interferir na realidade e, no caso analisado,
através de sonhos repetidos, na garantia de recomposição da antiga cumplicidade entre pai e
filha: “Era preciso vigiar, vigiar, e fazíamos isso. Ele olhava a vida, eu penteava seus cabelos
com os dedos, via como se enroscavam em folhas, galhos, subindo por líquens [sic] e pedras,
perdendo-se na sombra.” (AS, p.38).
A observação atenta desses processos subjetivos das personagens luftianas de
acréscimo de dados inexistentes demonstra que a não consciência desses passos é responsável
por uma completa fusão do anexado ao efetivamente ocorrido, sendo, assim, imputado seu
resultado à memória e isso se dá com tal intensidade que se torna bastante reconhecível em
alguns sonhos – “Às vezes, em meus sonhos, Gabriel tem sangue nos lábios.” (p.77) –,
produto psíquico que pode se apropriar por inteiro desses acréscimos e que se apresenta, nessa
condição, como o terceiro mecanismo de reconstrução do passado, prova supostamente cabal
da verdade da recordação. No item 6.3 é feito um exame mais detalhado dessa experiência
onírica.
Apesar da aliança rematada entre os passos verdadeiramente mnemônicos e os da
inserção de dados estranhos ao tecido do passado, de seu caráter inconsciente, algumas vezes
a agente dessa operação, reconhecendo a trajetória abrangente pela qual a memória se vale, se
dá conta da ilegitimidade de suas recordações ou duvida delas:
110

Talvez até a visita ao sótão, há tantos anos, fosse imaginação minha.


Fantasia de criança, a mulher alta, o cheiro de alfazema.(AP, p.84)

Quando eu era menina, cheguei a descobrir o quarto dele; uma experiência


da qual muitas vezes mais tarde duvidei, teria sido apenas sonho? As coisas
sempre se confundiam na minha memória, a infância em grande parte feita
de visões. (E, p.168)

5.5 A trégua da vida

Nesse capítulo dedicado à memória em Lya Luft é impossível não se recorrer às


palavras do filósofo egípcio neoplatônico Plotino13: “A recordação é para aqueles que
esqueceram”. Desse modo, também se faz necessária uma breve pesquisa de como se dá o
esquecimento, fator relevante, par constante da recordação.
Nas cinco obras apreciadas, pode-se reconhecer maneiras diferentes pelas quais o
olvido de acontecimentos de outrora acontece: “Dormir, cobrir a cabeça com o lençol,
esquecer.” (RF, p.89). A mais singular se dá em Reunião de família e sua motivação não é
detectada nem por Alice, permanecendo, em conseqüência disso, inacessível também ao
leitor:

Estranho esse obscurecimento na memória; quando ela morreu eu já tinha


quatro anos; conheço gente que tem recordações até mais antigas. Talvez eu
pudesse lembrar ao menos o enterro, mas não estive lá: fomos levados para a
casa de uns vizinhos, até tudo acabar.(p.19)

Entretanto, visto que o esquecimento pode ser identificado como um movimento da


vontade contra o sofrimento – “Vou enterrar esse fim-de-semana no esquecimento, na fresta
escura, tantas coisas já esqueci; não esqueci até o rosto de minha mãe?” (p.121) –, recurso que
se repete, posteriormente em Exílio – “Descemos as escadas, eu amparada no seu braço, como
se fosse aquele filho. Bebi o conhaque que você me trouxe, entendi minha mãe num relance:
esquecer, meu Deus, esquecer.” (p.150) –, surge a mesma possibilidade de explicação para
aquela cortina de fumaça que encobre a figura tão desejada em Reunião de família.
Porém a mais significativa pausa da memória em termos funcionais para o
encadeamento narrativo, com sua posterior lembrança, no romance mencionado, é o jogo do
espelho, a duplicação de Alice, detalhadamente examinado no item 6.4: “Mais tarde me

13
Apud ELIADE, 2000, p.107.
111

acomodei na vida: casada, sossegada, marido e filhos para cuidar, o serviço doméstico e a
rotina, tanto trabalho, esqueci o jogo; não precisei mais dele.” (p.38).
Como ocorre, ademais em outros textos da escritora, percebe-se que, diferentemente
do fantasma da mãe, o qual se permite apenas apresentar em sonho ou metamorfoseado no
álamo, o esquecimento é tênue, transitório, como se constata, igualmente, em A asa esquerda
do anjo – “Por muito tempo esteve esquecido. Hibernava? Pensei que morrera, ou não
passava de um daqueles medos que me atormentavam antigamente, eu era a criança mais
esquisita na família Wolf.” (p.11) – e o conteúdo apagado facilmente se vê recuperado, desde
que dentro de condições correspondentes às anteriores:

No quarto, atirei-me na cama e cobri a cabeça com o travesseiro. Queria


esquecer, mas já sabia que nunca esqueceria. (AAEA, p.61)

O cheiro de fezes mistura-se ao de desinfetante.


Bolhas de lama, poço da memória, as coisas que procurei esquecer. (E,
p.188)

Na maioria dos casos textuais, esse obscurecimento da memória – “Precisava esquecer


por amor a Tiago.” (AP, p.84) – se dá por uma intromissão passageira da felicidade: “A
explosão da vida que eu continha há mais de vinte anos, a realização do que mal se iniciara
com Otávio. Expulsei todo o medo fazendo amor delirantemente.” (AP, 101). Tal trégua da
vida, por assim dizer, que se traduz no abandono temporário do obstinado sofrimento passado,
mas que aguarda furtivamente para ressurgir ao menor desequilíbrio, faz parte da estrutura
literária de todas as histórias sondadas neste capítulo:

Os anos com tia Dora, as muitas amizades, as independências, e agora Tiago,


faziam a minha vida perfeita. Quando os fantasmas queriam voltar, acenando
a mão branca de uma solitária moradora do sótão, a figura de uma anã
rasgando minhocas, um casal esfumado sobre o mar, uma menina de cabelo
preto e liso despencando na rocha, eu sacudia de mim essas memórias como
insetos pegajosos mas inofensivos. Podia apostar tudo na vida. (AP, 83)

Com os anos, a dor da orfandade passou; vivi longos períodos sem sequer
lembrar de minha mãe; aos dezoito anos casei e fui construir a minha vida
com aquele que fora meu primeiro namorado. Um rapaz quieto e bondoso,
muito menos severo e exigente do que meu pai. Desisti dos planos de
estudar, resolvi ser uma boa dona-de-casa. (RF, p.35)

O esquecimento que possibilita a paz e a ventura, no entanto, é um fato episódico, de


curta duração nas vidas das personagens narradoras, sendo apenas um refluxo da maré do
112

passado, que não se constrange de retornar, abundante, na primeira fenda na estabilidade


vivida, retomando todo o espaço do sofrimento ocupado circunstancialmente pela felicidade.
A análise do procedimento rememorativo, então, torna-se, realmente, o ponto central deste
quinto capítulo.

5.6 Os evocadores do passado

Não se pode deixar de acompanhar, nesse caso, detidamente, por quais motivos e de
que forma se dá a emergência dos acontecimentos do passado, sob quais particularidades
retornam e se intrometem na corrente do tempo presente: “Agora, diante desse novo Renato,
vingativo, nascido da opressão e da secura, recordei a arma secreta. Neste momento ele
brandia outra: muito mais eficiente.” (RF, p.84)
Como se viu, um dos motores dessa variação temporal é a presença de um elemento
que, por sua semelhança, serve como evocação de um evento ou pessoa. Os trechos transcritos
a seguir, juntos, traduzem os episódios que, embora separados pelo tempo, mantêm uma
intensa ligação significativa e emocional:

A mulher do morro me faz pensar em minha avó. Catarina costumava ficar


horas a fio atrás do vidro da porta que se abria para a sacada. (AP, p.12)

Enquanto almoço, sem vontade, Nazaré pragueja na cozinha. A pia entupiu.


A casa é tão pouco usada ultimamente, que está caindo aos pedaços.
No casarão também havia problemas na cozinha. A caixa de gordura entupia,
transbordava, espalhava um cheiro úmido repugnante. Um dia limpei essa
nata gorda. Isso foi quando eu estava lá havia uns quatro anos, pouco antes
de morar com tia Dora. (AP, p.63)

Preparo-me para sair, pinto o rosto no banheiro. Enquanto urino, lembro um


incidente de minha infância. Muitos deles esqueci inteiramente, tanta coisa
esqueci daquele tempo que agora vou recordando, nesse período de dor e
reflexão. (E, p.133)

Por fim lembro de estar sentada no colo dela; mas não passa os braços ao
meu redor: continua rígida, apenas me suporta. Não vejo seu rosto; aninhei-
me no seu peito; mas sei que é uma máscara zangada. Então, sem poder
evitar, inesperadamente urino em profusão no colo dela. (Ibid., p.134)

Fiquei mais um pouco na varanda, imaginando como seria ter um dia no colo
um filho de Henrique. Elsa nunca mostrara interesse pelo neto. “Não me
sinto avó”, afirmava, ridícula. (AS, p.39)

Nessa fase lembrei várias vezes de minha avó Ana, mãe de Mateus. (Ibid.,
p.39)
113

Em Reunião de família, uma recordação, citada em diversas passagens, donde se pode


deduzir sua importância para a protagonista, vai regredindo, aos poucos, em direção a um
tempo transcorrido, primeiro do presente para um passado recente, e, finalmente, para a
infância, momento que, dadas as suas circunstâncias trágicas, pode se imiscuir no discurso, a
partir do nível lingüístico como recurso metafórico, até o nível narrativo como obsessão
comportamental.

Perto da árvore ficava a gaiola grande com os dois porquinhos-da-índia que


lhe dei.
Meus filhos também tiveram dois, quando pequenos; iguais ao que eu tive na
infância e que tratei com carinhos de mãe.
Berta deve ter dado sumiço nos de Cristiano.
De repente, no espelho da memória, sou uma criança sem mãe, que ganhou
seu único animal de estimação: um porquinho-da-índia. (RE, p.45)

Uma leitura atenta identifica a marca indelével deixada nessa personagem que,
embora, metonimicamente, possa dizer que suas mãos são “...ásperas de trabalhar, cheirando a
cozinha; incapazes da menor violência.” (RF, p.12), adiante, a propósito dos bichinhos de
estimação dos filhos, de forma indireta, quase formula a negativa disso, desenhando de si um
perfil, que vai se adequando à Alice do espelho e dá ensejo ao desenlace da cena familiar,
próximo ao final, onde sua persona, inconscientemente construída, é esfacelada:

E agora, pensei, e agora? Como me livraria daquilo?


Fiquei zanzando pela casa, a idéia fixa. De repente corri até o pátio,
arranquei da gaiola os bichos que esperneavam e guinchavam feito loucos.
Era o meu porquinho-da-índia que eu tinha de entregar para o suplício?
(p.71)

Procedimento equivalente a esse, qual seja, no encontro com algo atual se abre uma
porta pela qual se chega à meninice, caminho indireto, pode ser encontrado novamente no
romance referido na transformação de Alice na frente do espelho, que tem sua funcionalidade
determinada nos capítulos 6.4 e 6.6. Mobilizando uma questão fundamental para a malha que
organiza a história rememorada, mais intensamente até que o fato dos animaizinhos
anteriormente descrito, o agente aqui identificado tem um papel que o habilita como elo entre
duas épocas bem distintas:

Remexo a bolsa, atulhada de coisas, não encontro aquele espelhinho que um


dia pus aí dentro. Paciência . Devo estar com a cara de sempre.
114

Olhando no espelho do meu quarto, esta manhã, pensei que era pequeno
demais.
Então, debruçando-me para ver melhor, porque ia viajar à tarde e queria
estar bem, recordei aquele antigo jogo, de que geralmente nem me lembrava.
(p.10)

Esse retorno no tempo, quer no caso do espelho, quer no dos animaizinhos de


estimação, percebido no terceiro romance, é realizado de uma forma bastante singular em A
sentinela. Em tal texto, a escritora novamente lança mão do expediente de anular a diferença
entre tempo-espaço, anteriormente referida. A originalidade acontece por conta do fato de
que, descendo a escada que domina interiormente a casa, pela intervenção de um simbólico
movimento espacial, ainda sob a escuridão da nascente aurora, Nora vai empreendendo, em
várias etapas, acompanhada pelo leitor, um caminhar ao tempo primeiro da infância, o qual,
tocado pela mágica da evocação, passa a ser encenado, por outra vez, em sua presença:

Ainda não é luz plena o que escorre casa adentro, mas o lusco-fusco do
amanhecer. Sento-me no primeiro degrau, e contemplo embaixo uma zona
de indefinição onde, aos poucos, despontam os contornos do reino que
amanhã será inaugurado: teares, novelos, e a liberdade de inventar.
Sem muito esforço posso ver ao pé da escada o rosto de Mateus nas
madrugadas de minha infância, quando tinha de me levar para o sítio de tia
Luísa...(p.13)

Dominando inteiramente a técnica de jogar com as representações plásticas, a escritora


consegue dissolver a concretude física do cenário do presente numa abstrata imagem de
recordação. A cada nova descida e nova parada, como num calidoscópio, a imagem se
fragmenta e se transforma em outra cena do passado:

Desço apenas alguns degraus, até o meio da escada, onde me sento outra
vez, testa encostada ao corrimão frio. Quando o medo era grande demais, de
madrugada, eu vinha até aqui, também descalça, esperando que meu pai
chegasse da fazenda, do clube, ou retornando com Elsa de uma festa. (p.20)

A descida empreendida por uma personagem que, na idade adulta, compra de volta
uma casa em que viveu em uma época descrita como bastante infeliz, determinada a “rever os
filmes” desse período, pode ser entendida como revestida de uma índole essencialmente
simbólica, o que já se pudera ver em Exílio, de forma bem mais apaixonada e incontrolável:
“Ou desço como quem se atira numa funda piscina e vai, em câmara lenta, nesse túnel, até
onde permitem náusea e vertigem.” (p.14). A compreensão da importância de tais trechos
115

requisita, novamente, o texto de Sylvia B. Perera (1985) introduzido pelo comentário de que
“O motivo da descida é lugar-comum no trabalho de Jung.” (p.77):

Empreendemos descidas ou introversões a serviço da vida, para desenterrar


maiores extensões do que ficou inconsciente no mundo inferior pelo si
mesmo, até termos forças suficientes para a viagem e vontade de sacrificar
alguma parte da libido14 em favor de sua libertação. As descidas mais
difíceis são as que vão às profundezas primitivas e urobóricas, onde
sofremos algo semelhante ao esquartejamento total. Mas há outras expressas
por imagens de descidas a túneis, à barriga ou ao útero, para dentro de
montanhas ou de espelhos. Precisamos passar por algumas das mais fáceis,
para afrouxarmos endurecimentos e gerarmos energia, antes de nos
arriscarmos nas descidas fragmentadoras até as profundezas de nossas
feridas primordiais, e trabalharmos ao nível psicossomático do sofrimento
básico. (p.77-78)

A chegada ao final da escada, limite físico do tempo que acontece, ainda conserva a
permissão de um encontro com o passado:

O sol nasceu. Desço os últimos degraus, sentindo com prazer o assoalho


encerado nas plantas de meus pés, sem Elsa na casa para reclamar: “Quem
anda muito descalça fica com pés largos, de criada!” (p.30)

Mesmo de forma superficial é preciso antecipar uma questão que terá sua discussão
aprofundada no capítulo consecutivo a este: aqui, ecoando o aspecto psíquico embutido no
comentário teórico anterior de Perera, deve-se chamar a atenção para a citação da página 34,
do romance examinado, onde a presença do filho, situado acima dessa mãe que mergulha no
inconsciente, remindo de lá suas lembranças, tem um forte peso representativo de assunção da
consciência, papel que uma reflexão mais atenta pode facilmente conferir na leitura das
páginas finais:

Passos no andar de cima: Henrique vai ao banheiro, volta e os fantasmas


fogem para recantos menos claros. Henrique é o presente. Houve um tempo
em que era tudo o que eu tinha, mas descobri que era preciso mudar.

Elementos concretos são, portanto, passíveis de guardar em si a potencialidade abstrata


da reminiscência, a qual, atravessando a materialidade de suas presenças, apenas espera,
ansiosa para projetar-se em direção a um momento decorrido e buscando-os ali, mergulhados

14
Na concepção junguiana, energia psíquica.
116

na conjuntura de sofrimento daquela época, empreender sua revalorização em seu reflexo no


momento atual.

Para disfarçar o alarma, fui formando desenhos com migalhas de pão na


toalha. E lembrei o meu tesouro: o cascalho colorido que minha mãe
guardava num frasco transparente e bojudo sobre o toucador, entre perfumes,
caixinhas antigas com pinturas e grampos de cabelo. (E, p.16)

Outro recurso continuamente utilizado na obra para incitar o fluxo do pensamento da


personagem para o passado é a verbalização de um conceito ou, ainda, de uma palavra no
discurso da protagonista, o que, imediatamente, ressuscita, no presente, uma ocorrência
correspondente do pretérito, funcionando, desse modo, como um nexo da corrente evolutiva
do texto:

(Sento-me na cadeira e deixo o sabor silvestre da fruta me confortar: é uma


das sensualidades que ainda me permito.
Nem sempre foi assim: quando desabrochei, foi com todo o primitivo ímpeto
de um rio forte muito tempo represado. (AS, p.79)

- Amanhã vamos subir de noite, Bernardo. Pode ser que a gente encontre
aquela excêntrica.
Quem gostava de chamar todo mundo assim era tia Beata. Todos os que não
cabiam nos seus padrões, e isso era uma porção de gente. (AP, p. 34)

O aproveitamento de uma idéia que se apresenta no instante da enunciação leva a


efeito um raciocínio associativo pelo qual a escritora consegue traduzir fielmente os processos
anamnésicos naturais da personagem, obtendo, por um lado, a ligação entre dois tempos, o
que é o objetivo principal de uma ficção que busca em um outro momento as causas do agora
e, por outro, o encadeamento inventivo, não linear, do fio narrativo. A conseqüência é um
efeito de descontinuidade, intermitência, que produzem no leitor as mesmas sensações
experimentadas em relação à realidade de uma forma geral.

O menino brinca com meu cachorro. Eu brinco de cabra-cega com meus


fantasmas. Para mim a peça mais importante sempre fora minha avó, que eu
vira só uma vez no sótão branco recendendo a alfazema. (AP, p.49)

As antenas de luz tateiam perto de mim, passam junto de meus pés nus; calor
na pele quando se aproxima: a pele de João contra a minha, há quantos
meses? Quase um ano. (AS, p.30)

Apesar de tudo, é bondoso comigo, e me agarro a essa bondade porque


preciso dela para me salvar. As freirinhas na escola também são bondosas:
117

quando cometo erros no meu provisório trabalho, me corrigem sorrindo,


mansas.
Minha mãe não era bondosa: raramente se lembrava de mim, e era pior do
que quando me ignorava. (E, p.39)

O mecanismo a que recorre a escritora pode ser bem mais sutil e alcançar efeitos
notáveis em termos de desenvolvimento da história: ligação semântica, ligação de vidas,
ligação de capítulos, ligação de tempos. Em A sentinela, vale-se da relação entre duas
palavras distintas estabelecida por seu campo semântico – “Não sei se ainda quero uma vida a
dois, não sei.” (p.15) – para conseguir encadear o final de um segmento de capítulo ao início
de outro:“Elsa e Mateus formavam um estranho par: nada combinava, nem fisicamente.”
(p.15). Mas o resultado mais profícuo está no fato de que ata o presente ao passado de forma
surpreendente, atingindo, por essa tática polivalente, o objetivo tão variadamente perseguido.
Como foi salientado no princípio deste capítulo, a memória da personagem é o suporte
estratégico mobilizado pela escritora para viabilizar e justificar a deflagração da narrativa,
que, por esse caminho oblíquo, se mascara em acidente psíquico e, se esvaziando,
intencionalmente, de seu caráter fictício, acaba por promover uma das mais sutis ocorrências
literárias.
118

6 O PALCO DO INDECISO

*****Poesia

jardins inabitados pensamentos


pretensas palavras em
pedaços
jardins ausenta-se
a lua figura de
uma falta contemplada
jardins extremos dessa ausência
de jardins anteriores que
recuam
ausência freqüentada sem mistério
céu que recua
sem pergunta
(Ana Cristina César)

Como foi discutido desde o princípio desta apreciação, um dos aspectos de maior
importância do estudo junguiano é sua sondagem do inconsciente, no qual distinguiu uma
parte de aspecto restritivo, caracterizador de uma vivência particular, e outra que ligaria cada
ser humano a sua espécie. Na obra artística de Lya Luft, pode-se identificar o aproveitamento
ficcional de ambos os dados psíquicos, habilmente manejados para comporem os variados
enredos, o que já foi identificado nos capítulos precedentes. Neste, o exame se detém mais
pormenorizadamente em certas personagens e seus envolvimentos relacionais, entendidas tais
personagens e processos como expressões mais amplas dessas camadas específicas da mente
humana.
O capítulo atual, portanto, se caracteriza por dissecar e aprofundar, o que já tinha sido
feito nos precedentes, por arrolar, agora de forma sistemática, todos os recursos que criam
uma ambiência típica de inconsciente nos sete textos, as personagens que são a criação
artística das imagens identificadas como produto dessa camada da mente, bem como os
motivos psíquicos daí provenientes e que as fazem interagir, dando corpo, destarte, ao projeto
narrativo.
119

6.1 O Cosmos e o Caos

Visto que o assunto aqui objetivado sejam os estratos psíquicos não controláveis pelo
ser humano, é inevitável não se fazer uma avaliação da freqüente preocupação das
personagens em manter contato com a consciência, preocupação que, por surgir em toda a
obra, acaba, por outro lado, afiançando a invasão irreprimível de seu contraponto na vida das
personagens, hipótese assumida neste estudo.
Segundo a visão de Jung15, a criação do Cosmos em oposição ao Caos, dado
cosmogônico identificável em muitas civilizações, comemora, na verdade, mitologicamente a
instauração da consciência frente ao poder supremo do inconsciente no homem primitivo,
acontecimento filogenético que, também se dando ontogeneticamente, é fundamental para a
sobrevivência de cada indivíduo. Em sua lida psicanalítica, o estudioso identificou igualmente
essa ocorrência em mentes adultas, o que sublinha a importância do predomínio do racional:

Mostra-nos a experiência que os mandalas individuais são símbolos


ordenadores, razão pela qual se manifestam nos pacientes sobretudo em
épocas de desorientação ou de reorientação psíquicas. Eles exorcizam e
esconjuram, sob a forma de círculos mágicos, as potências anárquicas do
mundo obscuro, copiando ou gerando uma ordem que converte o caos em
cosmos. (JUNG, 2000a, p.30)

O texto junguiano é complementado com eficácia por outro, que, repercutindo as


idéias ali expostas, lhe associa observações de ordem histórica e cultural:

Notemos que nos nossos dias ainda são utilizadas as mesmas imagens
quando se trata de formular os perigos que ameaçam um certo tipo de
civilização: fala-se do “caos”, de “desordem”, das “trevas” onde “nosso
mundo” se afundará. Todas essas expressões significam a abolição de uma
ordem, de um Cosmos, de uma estrutura orgânica, e a reimersão num estado
fluido, amorfo, enfim, caótico. (ELIADE, 1992, p.44)

Nos dois textos, pode-se surpreender uma oposição que, se coloca de um lado
expressões como “mundo obscuro” ou “trevas”, por outro, destaca a idéia de “ordem” como
meta suprema e salvação contra um risco ameaçador das decisões humanas voluntárias. “O
mundo voltou a ser ordenado, tal qual precisamos que seja.” (RF, p.124), ecoa Alice,
igualmente, no universo ficcional.

15
“Ora, sabemos que os mitos cosmogônicos, no fundo, são símbolos do surgimento da consciência (o que aqui
não nos é possível provar com documentos). (JUNG, 2000a, p.139, grifo do autor.)
120

Essas mesmas concepções podem aparecer nas expectativas, na visão de mundo das
personagens da obra analisada, enfim, denunciadas em suas falas – “Apesar disso, era Mateus
quem me propiciava segurança: bastava ele entrar em casa e, insone em meu quarto, eu me
sentia melhor, meu mundo entrava em ordem.” (AS, p.18) – como uma condição do ser
natural – “Ele liga o aparelho, não comenta nada. Deve estar habituado a receber ordens
contraditórias, não se aborrece nem se espanta; pouca coisa há de abalar seu mundo ordenado
e simples.” (AS, p.79) – ou requisitada como uma necessidade para a inteireza humana desde
a infância: “Por mais que eu tentasse convencê-lo, lidava com uma lógica de ferro, a de sua
cabecinha de menino feliz: queria o mundo sólido, pai e mãe unidos, a casa intacta. Tudo o
que ameaçasse essa ordem era olhado como um mal incompreensível, e inadmissível.” (E,
p.51).
Esse ímpeto em direção a disposições regidas por leis pré-estabelecidas, apreensíveis e
guiadas pela consciência, esse desejo de fugir ao imprevisto pode se revelar na busca pelo
sólido, pelas formas definidas, pelo que se imagina seja, para todos, o real, escudo perfeito
contra o perigo do instável. Não se adequar a isso é correr o risco da submersão naquele
“estado fluido, amorfo, enfim caótico”.
Desde o cachorro Bernardo e tia Dora em As parceiras – “Abria-me, com seu calor,
um mundo pelo qual eu esperara tanto: sólido, verdadeiro.” (p.72) –; Leo e tia Marta, em A
asa esquerda do anjo – “Eu a invejava. Aproximei-me mais dela. Sua figura sólida, o riso
bom, as maneiras domésticas, propiciavam-me um arremedo de segurança.” (p.88); a casa
onde Alice morava com marido e filhos em Reunião de família – “Sinto-me desligada de tudo
que é sólido e real, minha vida cotidiana, alguma vez tive esse paraíso?” (p.31) –, várias
protagonistas, debatendo-se em um mar de sofrimento e desequilíbrio, sempre anseiam
penetrar um mundo aceito por todos, porque entendido como proposto pelo pensamento
lógico. A recusa à convivência pacífica com aquilo que supõe seja o resgate da harmonia leva
Renata, em O quarto fechado, ao caos total: “A única coisa sólida em minha vida talvez tenha
sido Martim, eu precisava de coisas sólidas: e sempre as rejeitei. Miguel teria sido sólido;
Martim me teria amparado”. (p.130).
Em A asa esquerda do anjo, Frau Wolf é a representante máxima dessa “ordem”
estabelecida por um mundo ocidental que, orgulhando-se de se orientar pelas regras da razão,
utiliza tal desculpa psíquica para o cumprimento rigoroso de determinações sociais, o que se
vê traduzido artisticamente em seu simbólico gesto regulador: “Minha avó verificava se tudo
estava em ordem, corria o dedo nas lápides, como nos móveis de sua casa, à procura do
mínimo grão de pó.” (p.42).
121

Gisela é a vítima principal dessa necessidade de enquadramento – “Sentia-me


vagamente injustiçada, mas carregava a culpa da falta de atenção, de interesse, de habilidade.”
(p.23) –, interiorizando como negativa essa incapacidade de seguir o paradigma, fixação
prévia dos contornos de uma realidade que deve estar em conformidade estrita com o senso
universal e que, por isso, não pode admitir medos e fantasia: “Pensava, estou trancafiada num
castelo, mas ninguém vai se arriscar para salvar pessoa tão sem graça, tão feia, tão burra.”
(p.22).
Mas é o próprio corpo da protagonista “Também sou canhota e não conseguiram me
corrigir.”(p.14) – quem conserva em si, representativamente, a principal subversão, contra um
modelo a ser seguido: “Por alguns momentos esqueciam-se de mim, e não era preciso sentar
direito, calar a boca, encolher a barriga, usar só a mão direita, a ‘mão bonita’”. (p. 59)
Se, fechando o texto, se constata o bem sucedido empenho da protagonista de se
adequar ao parâmetro social – “Fecho-me nesta casa e cumpro minhas obrigações. Não
encontrarão nada desarrumado. Servirei chá com uma torta de camadas, que faço com
perfeição.” (p.124) –, é o mesmo corpo da protagonista, que continua a enferrujar as agulhas,
aquele que vai contrariar uma das principais determinações coletivas – “Frau Wolf aprovou o
namoro, acho que jamais quereria uma neta solteirona.” (p.90) –, em sua decisão inabalável:
“Eu – eu continuo virgem: dona do meu corpo e da minha tranqüilidade. Não preciso mais
recear casamento, não serei humilhada, meu amor não será corrompido.” (p.123).
Mas são as duas presenças mais ambíguas desse texto que irão revelar a inconsistência
desse mundo imaginadamente sólido e seguro, inteiramente planejado e regido pela
consciência. Uma delas, uma figura inumana, pura concretude em bronze, relembrando a mão
de Gisela, paradoxalmente, revela-se como símbolo da incerteza não presumida, a
inadequação de não se contar com o universo do não previsível: “Na última visita ao
cemitério notei que a asa esquerda do Anjo está fendida, do ombro até o flanco, e esqueci de
avisar para que a consertassem”. (p.124).
A outra é indiscutivelmente gerada pelo inconsciente que, não conhecendo as regras
sociais e só aceitando os seus próprios ditames, a manutenção da saúde do indivíduo, mesmo
contra os dogmas exteriores, transforma a hostilidade que a protagonista mantém contra si
mesma na tentativa de corresponder ao perfil social proposto naquele verme que deseja
expelir, ente cambiante entre dois estados opostos: inimigo ou salvaguarda?
122

6.2 Espaço e inconsciente

Um dos aspectos importantes da estrutura ficcional é a construção do ambiente. Pode


ser, como nas mais tradicionais, a constituição efetiva de um palco onde se desenrola, sem
controle, a sorte das personagens, tendo, dessa forma, uma importância secundária, não
fundamental para o desabrochar da história:

Chove forte sobre a Casa Vermelha, que carrega na noite seu fardo de
sofrimento e loucura, vidas desconectadas, sem raiz...mas de certa forma
unidas entre si pela falta de um destino, de um sentido. Precário barco: quem
é o timoneiro? (E, p.153)

Nos enredos de Lya Luft, porém é impossível se encontrar algum aspecto ali utilizado
que seja gratuito ou que tenha, pelo menos, um papel inferior na hierarquia organizativa do
texto. Como os demais elementos postos em ação para fazer a história fluir, o espaço tem
funções muito mais importantes que o de ser localização, participando ativamente da
dinâmica que constrói a história. Como todos os demais elementos, esse fator também
participa da tessitura simbólica que é o principal dado constituidor de sua narrativa:

(As imagens que me rodeiam, essas sólidas coisas familiares: o que


ocultarão de mais secreto? Certa vez li que a terra é cortada por
subterrâneos e cavernas, lá no fundo escuro. Talvez tudo seja assim: pleno
das pulsações de uma vida que não se vê.
Como olhos que nos miram tranqüilamente, anos a fio; e de repente
sabemos: aí, aí está o perigo.) (RF, p.22-23)

A metáfora de um elemento instável, definição de um estado de desequilíbrio – “Em


vez de indagar se ela escutou passos diferentes, digo banalidades, procuro me livrar da
impressão de estar num barco podre, à deriva.” (p.88) –, já fora utilizado desde Reunião de
família, mas em Exílio, a designação de “velho barco ao léu” da página 80, sintagma
atributivo que imprime movimento à imagem, do mesmo modo que “precário barco”, não se
justificaria para a Casa Vermelha, a não ser por esse tortuoso entendimento. De A
interpretação dos contos de fada (FRANZ, 2003a, p.140-141), a respeito de uma das
narrativas que estão sendo analisadas ali, pode ser aproveitado o trecho que se ajusta com
perfeição para a citada metáfora como introdução da argumentação aqui desenvolvida:

Quando o herói é colocado no barril, este é como um barco que o sustém


sobre as águas, e sob este aspecto ele é maternal e protetor; e ainda mais, ele
123

o conduz para o lugar certo. Olhando de uma forma negativa, pode-se


observar aí uma regressão para o útero que o aprisiona e isola. Nesta
imagem, a confusão e o sentimento de estar perdido e incapaz de encontrar
uma saída é sugerido pelo nevoeiro intenso. No plano da realidade
psicológica isto pode ser interpretado como o estado de possessão
arquetípica – neste caso, sob o domínio do arquétipo da mãe.

Nesse caso, criar uma atmosfera incomum em volta daquela casa – “Sempre esse
nevoeiro que se enrosca nas copas da floresta, como algodão.” (p.63) –, cujas origens não são
determinadas, que situa as personagens em um local sem contornos estabelecidos e permite
um desdobramento de efeitos e, conseqüentemente, de avaliações, é um recurso não raro nos
textos avaliados.

O melhor da Casa Vermelha são as paisagens: à frente, a floresta tentacular;


atrás, o despenhadeiro bruto, abaixo, a cidade fumacenta; mais além, o mar.
Navios. (p.21)

Desde que moro na Casa Vermelha, poucos dias de céu limpo.


-Muita cerração aqui nesta época do ano – dizem as Criadas, rindo como se
fosse uma brincadeira. (p. 25)

De fortes conotações rememorativas, como se discutiu largamente no capítulo


antecedente, a trama, ao trazer de volta toda uma avalanche de emoções da infância pela perda
definitiva de uma mãe, que já então estava parcialmente perdida em termos afetivos para a
narradora, e ao desenrolar-se nesse meio insólito, coloca o leitor, intencionalmente, em um
inseguro roteiro de interpretação: “Do outro lado do beco, a floresta sobe o morro: sedutora,
inatingível. Apenas uma das árvores, mais clara que as outras, tocada por um sopro de vento.
O resto, uma paisagem de vidro.” (p.14)
E a inserção mais adiante de uma outra imagem – “Meu irmão também vive numa
redoma de vidro, bolha de sabão.” (p.66) – vai tornando cada vez mais difícil uma leitura
presa a critérios puramente realistas. Impossível, para quem tenta reconstituir essa paisagem
“de vidro”, não fazer uma analogia, ainda, com aquela “esfera de vidro” que brota,
anteriormente, na memória da personagem central: “Um dos pesos de papel de meu pai
continha um minúsculo arvoredo imóvel. A gente agitava um pouco, e de repente, tudo
começava a ondular como um bosque submerso tangido por correntes invisíveis.” (p.19).
Identicamente a essas, são também “correntes invisíveis”, declaradamente valorizadas no
próprio discurso da protagonista, que parecem “tanger” comportamentos, produzir sonhos,
misturar as recordações às fantasias, gerar personagens de natureza vacilante.
124

Mas, paulatinamente, vai-se revelando o valor significativo dessa ambiência e se


fixando o verdadeiro alcance imagético de um entorno que, privado de seu traço maior de
delimitação, estabelece-se como uma ponte para o âmago da personagem, ou, ao contrário,
caracteriza-se como um vazamento inestancável deste:

Saio até a varanda, que se debruça no despenhadeiro. A paisagem convida a


saltar, quem sabe saio voando até o remoto oceano? Os navios, sempre
parados, parecem não se mover nunca; ou serão cada dia outros navios? (p.
25)

Mas a profunda marca do especial ambiente que se pode reconhecer nessas histórias
imaginárias é a erupção do profundo inconsciente, que, contaminando, aos poucos, o meio
circundante, termina por dominá-lo inteiramente. Se o leitor é mais afeito a uma interpretação
objetiva, sua tendência não encontra um terreno seguro quando elementos impalpáveis vão
sendo anexados e um indeciso cenário se desenha, entrelaçando exterior e interior:
“Contemplo a mata, que me fascina; rastejo dentro de mim num chão igual ao dela: ramos
caídos, madeiras podres, silenciosos vermes, cogumelos; tudo tão longe das copas do sonho.”
(p.14)
E a inconsistência dessa realidade que supostamente envolve a casa se torna mais
visível a cada passo, e envolve não só a protagonista, como evidencia sua própria descrição,
mas vai se estendendo como continuação da consciência cada vez mais apagada da Velha,
personagem que, como a narradora, naufraga naquela vaga, mas trágica paisagem da Casa
Vermelha: “Contempla a bruma que hoje esconde inteiramente o mar, onde nem se vêem as
luzes dos navios, que já devem estar acesas. Que visitante ela aguarda daqueles lados? Ou é
apenas o esquecimento que a vai invadindo?” (E, p.65)
No trecho transcrito, a exatidão significativa da palavra “bruma” e de todo o restante,
que conduzia o entendimento para uma realidade material é abalada com a continuidade de “o
esquecimento que a vai invadindo”, expressão que traz para o jogo de interpretações um
estado interior. Os elementos que se interpenetram e a probabilidade de se ter um simbolismo
do inconsciente se torna cada vez mais verossímil, o que parece reforçado pela negação das
“luzes”, convencionalmente na cultura humana, um dos elementos mais fortemente
expressivos da consciência.

É esse fator comum, a escuridão da noite primordial como símbolo do


inconsciente que explica a identidade entre céu noturno, terra, mundo
inferior e água primordial anterior à luz. Com efeito, o inconsciente é a mãe
de todas as coisas, e tudo o que “surgiu” e permanece na luz da consciência
125

está numa relação filial com a escuridão, como o é a própria consciência que
também é filha das profundezas originais.(NEUMANN, /s.d./, p.188)

A água, já sinalizada naquele “bosque submerso” da página 19, aliada à floresta, ao


despenhadeiro profundo, e à cerração que convida o olhar e a certeza a se perderem, concorre
ativamente para a estruturação desse ambiente inconsciente, expressivamente requisitada para
compor o lugar ambivalente onde se insere a Casa Vermelha, como foi dito anteriormente. “O
Caos aquático que precedeu a Criação simboliza ao mesmo tempo a regressão ao amorfo
efetuado pela morte, o regresso à modalidade larvar da existência.”, já havia sido definido por
Eliade em seu O sagrado e o profano. (1992, p.38).
Embora com possibilidades de se prender a uma realidade exterior, esse segundo
emprego, faz-se ainda presente, no texto da escritora, como metáfora, o que comprova sua
atualidade e universalidade: “Minha vida não interessava: aquele rio da superfície, as
correntes subterrâneas forcejando, sobras de grandes peixes, animais afogados, plantas
podres. Aqui e ali, boiando, a flor lilás de um aguapé.” (E, p.43)
A certeza do uso simbólico da água começa a se definir na identificação de um
segundo elemento significativo em Exílio e que surge, com freqüência, completando seu
conjunto imagético, no indeciso espaço que engolfa a Casa Vermelha: os navios. Apesar de, à
primeira vista, sua alusão se justificar como composição de cenário, a insistência com que
retorna à narrativa termina por requerer uma atenção especial e uma apreciação mais
pormenorizada de seus conteúdos significativos na cultura humana como um todo:

Um outro grupamento simbólico em que o caráter materno feminino do


“estar contido” é acentuado inclui o ninho, o berço, o leito, o navio, a
carroça e o esquife. Este grupo simbólico – sem mencionar sua ligação com
a madeira, da qual iremos tratar – representa uma passagem para os símbolos
onde a função protetora sobrepuja a de conter. (NEUMANN, /s.d./, p.51)

O berço apoiado em uma armação curva, que permite embalar a criança, é


uma cópia do útero-navio, em que o embrião adormecido navega oscilante
no mar primordial, rumo à vida, como os deuses que cruzam o mar celestial
da Grande Mãe em sua barca cósmica. (Ibid., p.225)

Visualizado pela janela, esse “útero-navio”, elemento concreto de uma paisagem


apreensível, significativamente, pelos sentidos de duas mães roídas pela culpa, transcende sua
restrição de materialidade e se converte em uma forte presença estática e acusatória, tanto
para a protagonista – “Passei noites e noites torturada lembrando o quanto o negligenciara.”
(p.51) – quanto para a Velha, que também mora naquela “velha embarcação” – “Ou espia pela
126

janela. Tem certeza, mas só a mim confidenciou isso, de que seu filho ainda virá.” (p.87) –,
as quais carregam esse sentimento em relação a sua própria “função protetora” de mãe.

Depois vou até a varanda, debruço-me na amurada; se saltasse daqui morria,


arrebentada nos penhascos, ficaria enganchada numa dessas árvores finas e
altíssimas? Ou sairia voando: até um daqueles navios iluminados e imóveis.
Partir para onde não haja meninos de seis anos correndo pelas ruas, nem um
homem apaixonado que me atrai e parece agora me deixar no meio do
caminho. (p.54)

Em O quarto fechado, a tradução da culpa materna – “Ella, navio fora da rota, uivando
na noite.” (p.122) – já produzira um entrelaçamento anterior com a mesma imagem, como se
vê em “Como um pobre cão ensinado, Ella virava a cabeça e chamava...navio dentro da noite,
emitindo aqueles sinais.” (p.61), procedimento que se revela um recurso artístico que vai além
do puramente ocasional.
Mais radicalmente do que o polissêmico mar de Exílio, o aproveitamento dessa idéia
de água, anulada totalmente de qualquer possibilidade concreta, como ainda é possível se
aceitar ali, pode retornar como a manifesta irrupção desse elemento psíquico incontrolável em
dois outros textos:

Agora, cada vez que ela partia, eu ficava vagando pela casa, perturbada; era
como se minha amiga introduzisse por baixo da superfície calma da minha
vida uma vara fina e traiçoeira, e ficasse remexendo, levantando coisas lá no
fundo. (RF, p.64)

Um dia haviam descoberto o segredo, entrado nele, ali contemplavam as


águas imóveis, adivinhando o fundo: arrepios, rumores na lama. (OQF, p.97)

Portanto a construção de uma ambientação esbatida, sem limites rígidos, que deixa a
casa onde se passa a cena literária, significativamente, como que isolada do resto do mundo e,
nesse caso, do mundo palpável, sob uma atmosfera que escapa à razão, não se limita apenas a
Exílio, já tendo sido largamente explorada em O quarto fechado:

Os que saíam da casa erguiam a gola do casaco, franziam a testa, antes de


mergulharem num mundo aniquilado pelo nevoeiro. A névoa chegara
sorrateira. Grudava-se na casa, querendo entrar, enroscava-se nas plantas,
nas pessoas, insistente e desesperada. (p.14)

Não tem mundo lá fora, notou a mulher, rosto encostado na vidraça. O


nevoeiro tragara tudo, contornos e cores, a casa isolada num silêncio branco.
(p.91)
127

O grito ficara coagulado no ar depois que ela se calara, como se a voz


levasse tempo para se diluir, densa de sofrimento na atmosfera da casa que
era densa também, um leite espesso, águas, algas, medusas, lama. (p.81)

E a precisão significativa da palavra “nevoeiro”, e com ela a da palavra “brumas” e de


todos os seus correlatos, se desfaz, sendo o entendimento encaminhado, dessa forma, para o
mesmo nicho semântico onde estão o mar, o morro, a floresta, o palhaço, já avaliados, ou o
sótão, o porão, o espelho e tantos outros, adiante estudados, e que compõem, assim, a
coerência semântica que unifica todos esses textos e cuja revelação, sem sobressaltos e
dúvidas, fica evidente no “jogo de morrer” de Camilo e Carolina, em O quarto fechado:

Algumas vezes acontecia que se transfigurassem: um nevoeiro os recobria,


uma onda os queria engolir, sugava, sugava-os pelos pés. Empalideciam, a
respiração tornava-se lenta e superficial, o grande sono os tragaria para
sempre. (p.33)

Mas é em O ponto cego que o caráter concreto dos termos se anula completamente e é
francamente elemento do psiquismo daquele Menino que vive uma vida lábil, transitando
entre a realidade de todos e uma realidade profunda: “O que a gente sabe mas não diz pesa
mais do que o pronunciado, pois move-se nas brumas e assim escapa de qualquer vigilância.”
(p.95)
Os exemplos são inúmeros no texto e vão conduzindo o enredo, a cada passo, para um
ambiente imponderável, inapreensível. Nenhum estudioso do psiquismo criou uma melhor
definição para o termo “inconsciente” do que o achado artístico de “palco da amplidão do
indeciso” (p.123).

(Foi na hora do escurecimento, em que não se divisam bem os contornos, a


hora barrenta – essa é a minha hora, a minha vez é essa. É quando sai do
lado avesso o povo da penumbra que fala a minha língua e arma os meus
pensamentos.) (p.86)

Como caracterização desse mundo psíquico sem controle que invade e domina
fortemente a consciência das personagens principais, enunciadoras do discurso literário em
seis dos romances estudados, podem-se elencar, ainda aqui, as figuras monstruosas que
surgem em vários textos, o que foi anteriormente descrito, e que, como todos os demais
instrumentos artísticos postos em ação, apresentam uma condição física e outra possivelmente
imaterial, condizente com a reconstrução de fantasias inconscientes: “Fico tensa: nesse
128

momento, no quarto no fim do corredor, não haverá um monstruoso ouvido alerta, escutando
nossas palavras e gemidos, e movimentos?” (E, p.172)
Outro dado que deve ser analisado neste subcapítulo são as enormes casas e seus
andares superiores, a comporem, à primeira vista, um ingênuo cenário. Dada a persistência
com que se apresentam, o fato deve ser levado em consideração. Em As parceiras, O quarto
fechado e Exílio, mais do que nos outros textos, carregam significações especiais.
Inicialmente, utilizemos, de novo, o estudo feito por Bachelard (/s.d./b) , na obra que,
dada a propriedade com que os conceitos ali emitidos se amoldam à visão deste estudo, tem
sido inúmeras vezes requisitada, sobremaneira no capítulo sobre a casa onírica, a casa
primeira, fixada no psiquismo, pela qual se adquiriu o sentido de intimidade, presente
freqüentemente como imagem poética. Ele analisa alguns de seus compartimentos – “Uma
casa sem sótão é uma casa onde se sublima mal; uma casa sem porão é uma morada sem
arquétipos.” (p.82) – , tomados como símbolos de elementos psíquicos.

Tendo o porão como raiz, o ninho no telhado, a casa oniricamente completa


é um dos esquemas verticais da psicologia humana. Ania Teillard, estudando
a simbólica dos sonhos (Traumsymbolik, p.71), diz que o telhado representa
a cabeça do sonhador como as funções conscientes, enquanto o porão
representa o inconsciente. Teremos muitas provas da intelectualização do
sótão, do caráter racional do telhado que é um abrigo evidente. Mas o porão
é tão nitidamente a região dos símbolos do inconsciente que de imediato fica
evidente que a vida consciente cresce à medida que a casa vai saindo da
terra. (p.81-82)

A complementação desse pensamento que pode ser encontrada na página seguinte –


“Porão e sótão podem ser detectores de infelicidades imaginadas, dessas infelicidades que
muitas vezes marcam, para o resto da vida, um inconsciente” –, já conduz a reflexão para a
casa de As parceiras e A asa esquerda do anjo, cujo andar superior, no primeiro, assinalado,
enfaticamente, desde o princípio, marca toda a reflexão subseqüente e, no segundo, é o local
mais emblemático do domínio de Frau Wolf sobre toda a família, principalmente sobre o
psiquismo da neta a quem consegue transformar.
Mas o elemento que domina a trama do princípio ao fim, nesse segundo romance
publicado, repetido por diversas vezes – “Tio Ernst, porém, não está neste quarto; vive
sozinho e bêbado num hotel, desde que a sogra morreu e construíram um edifício em cima da
casa, do jardim, do porão com o quartinho, a porta trancada, ninguém possuía a chave.”
(p.139) – é o porão, localização dos “arquétipos”, “região dos símbolos do inconsciente”, tão
indevassável como o aspecto psíquico que representa, onde se gestam criaturas indefinidas,
129

como o verme, mais adiante examinado: “A conversa que acabo de ter com tio Stefan me faz
pensar em presenças sinistras movendo-se lentas no quartinho do porão. Asas aflitas – as
mesmas da música de Anemarie?” (p.76-77).
A natureza de símbolo de inconsciente que acompanha essa “raiz” da casa no segundo
romance, posteriormente explorada em O quarto fechado como energia metafórica – “As
roupas estavam imundas, no corpo magro aqueles odores: poço, porão.” (p.81) –, a qual
acompanha Gisela desde a infância, acaba sendo explicitada inteiramente depois de adulta:

O tempo passa. O pior são as noites: sonho com morcegos no antigo porão,
acordo com medo. Crânios pelados fora da janela, sapos gigantes nas pedras
do jardim, barrigas desfeitas. (p.123-124)

Mas é a parte superior, nomeada algumas vezes como sótão, demarcadora de “funções
conscientes” e, portanto, capaz de representar as descobertas que, partindo do inconsciente,
ali chegam, que dominará a cena em relação a essas casas tão marcantemente caracterizadas,
explorada de diversas maneiras e com múltiplas significações.
Em As parceiras – “Venderam o casarão, construíram um edifício sobre os meus
fantasmas e o sótão de Catarina”. (p.76), surge plenamente presente e destaca-se do resto da
casa, no romance, por ser um “quarto do terceiro piso do casarão, com um banheiro e uma
sacada.” (p.12). Na verdade, a visualização que o leitor tem é quase de uma torre. Pode-se
começar, então, o estudo, partindo-se, de suas características, porque “Fixada em um centro
(centro do mundo), a torre é um mito ascensional...” (CHEVALIER,GHEERBRANT, 1995,
p.889), ou seja, possui “o simbolismo axial terra-céu” (TRESIDDER, 2003, p.334), a partir do
qual se chega facilmente à subida em direção à consciência, fazendo coro com os aspectos
levantados pelo filósofo francês.
É, além desses significados, a inacessibilidade sexual, encontrada como um dos
atributos da torre, em O grande livro dos símbolos, que se torna perfeitamente cabível no
texto em relação à Catarina: “Na arte, a figura da Castidade aparece às vezes numa torre,
como ocorre com as donzelas em situação angustiante dos contos de fadas”. (2003, p.334).
Para aquela, o sótão é, indubitavelmente, guardião de castidade: branco, cheirando a
alfazema, com suas bonecas infantis. A tal ponto, que a imagem vai se extremando e
desfiando seus contornos concretos: ela acaba criando para si um outro sótão, uma torre mais
fechada, onde, encarcerada, perde toda a comunicação com o mundo externo.
130

No entanto, se o sótão apresenta-se, à primeira vista, com sentido contrário à


conscientização, visto que é nele que a loucura da personagem vai-se alinhavando, ele pode
também representar a única forma de defesa da integridade, se não física, pelo menos
psíquica. Foi lá que tentou se resguardar do marido e onde guarda, também, sua alma contra
as violações.
Em relação à Anelise, cujo ponto de vista, real ou imaginário, domina a narrativa, o
interesse pelo sótão, aspecto já reconhecido em obras literárias de outros autores, enfatiza, no
primeiro romance de Lya Luft, a avidez com que a protagonista busca o passado e o laço
indestrutível que ata avó e neta, se não só pelo sangue, também pela similitude de suas vidas
solitárias. “Que museu para os devaneios é um sótão atulhado de coisas! Ali as velharias se
ligam para sempre à alma da criança. Um devaneio torna vivos um passado familiar, a
juventude dos ancestrais.”, diz Bachelard (/s.d./ b, p.85).
Como se pôde perceber, no texto da escritora, o sótão pode estabelecer afinidades com
essa imagem clicherizada literariamente, indicando uma correspondência significativa no
inconsciente coletivo. E a utilização desse dado tem conotações basilares na estrutura
narrativa. Se para a avó é refúgio de pureza em todos os sentidos – “Catarina entrara numa
dimensão mais afastada ainda, remota. O sótão do sótão, onde não se precisa falar, escrever.”
(p.141) –, para a neta adquire as características, de acordo com a definição bachelardiana, de
conscientização – “Eu estava mais interessada em recompor a vida que Catarina levara ali.”
(p. 50) –, de busca da resposta para as próprias angústias e para entender aquela voz que,
talvez, emanasse de si mesma: “Mas havia alguém falando. No sótão.” (p.71)
Esse conjunto significativo psico-arquitetônico da casa, que proporcionou a essa
análise seu percurso de interpretação e do qual foi destacado, por sua pertinácia significativa
vai sendo enriquecido e reiterado, pela inclusão, em quase todos os textos, de outro fator que,
de forma idêntica, é satisfatoriamente definido em seu papel pelos comentários de Bachelard,
na página 82 da mesma obra tantas vezes citada:

E as escadas são lembranças imperecíveis.


Às vezes alguns degraus bastam para escavar oniricamente uma casa, para
dar um ar de gravidade a um quarto, para convidar o inconsciente a sonhos
de profundidade.

É realmente uma topografia bem indiferente para o pensamento claro! Mas o


inconsciente não esquece esse detalhe. Sonhos de profundidade são
colocados em estado latente por tal lembrança.
131

A escada surgirá em quase todos os romances posteriores, com maior ou menor


importância para a estrutura: é o local de onde cairá o pequeno Rafael, morte suspeita e que
reforça a feição já trágica da narrativa, em O quarto fechado; em A asa esquerda do anjo é o
palco em que Frau Wolf domina toda a platéia familiar; na casa da neta, a parte especial onde
se escutam os fantasmagóricos passos – “Passos na escada: finjo não escutá-los, nunca
falamos sobre eles durante o dia. Minha mãe suspira, parando um pouco ao patamar, onde
os degraus fazem uma curva.” (p.11) –; em Reunião de família, possibilita o encontro com o
mesmo caminhar de alguém que, excedido o limite da morte, provavelmente através de
processos inconscientes da narradora, traz de volta para a luz a sua lembrança e toda a carga
de revelação a ele conferida:

Quando começo a subir, os dedos já no corrimão, ouço passos lá em cima.


Passinhos rápidos e curtos de criança correndo na ponta dos pés para
esconder-se de alguém.
São passos?
Apuro o ouvido, mas agora só escuto o sangue disparando nas minhas
têmporas, meu corpo inteiro lateja como se fosse uma ferida.
Respiro fundo. Quero rir de mim mesma. Se não tomar cuidado, eu é que
vou ficar louca. (RF, p.47)

As parceiras, porém, é o texto inaugural em que se reveste de uma importância maior,


por ter acrescidos, ainda em si, aspectos revigoradores dos traços psíquicos do sótão, ao
acompanhá-lo em toda a sua densidade expressiva:

A escuridão da escada de madeira. A escuridão da mente de Catarina. (p.50)

Lembro o aperto da mão de mamãe quando subíamos a escada em caracol,


lembro o contraste entre a sombra e a claridade do quarto... (p.12).

Há uma nítida diferenciação de sombra e luz entre os dois elementos. A visualização


de uma imagem se delineia fortemente: quem sobe por aqueles degraus por meio de uma
forma que, por si só, já impede um acesso direto, emerge das trevas da escada para a
iluminação do sótão. Sua luz ainda pode ser entendida como símbolo de consciência, mesmo
em referência a avó e talvez seja a chave para essa claridade e brancura em que ela se encerra,
além do efeito de manter a candura virginal: ao preservar os últimos traços de sua condição
humana, parece preservar, junto, o que de mais marcante ali existe, seus últimos raios de
lucidez. Era de lá que “espreitava o jardim” (p.19) e foi de lá que, impedida do derradeiro
socorro do amor, saltou para a morte.
132

Para a neta, a marcante experiência da subida ao sótão, em menina, cercada


profundamente por um apelo sensorial, e que é continuamente revivida, serve de impressão
norteadora futura para o encontro final com a avó, conseguido através da redescoberta do
perfume de alfazema, da brancura do vestido, e cujo caminho redentor tivera seus primeiros
passos dados ali: “Hoje, sei todos os detalhes que há para saber sobre sua vida, mas a verdade
perdeu-se entre aquelas paredes.”(p.13)
Desse modo, entrelaçado a outros elementos que vão se enriquecendo de uma
condição física e outra imaterial, o sótão real existente na casa – “Só tinha velharia
empoeirada no sótão. Mas de noite as coisas reviviam: as insólitas.” (p.73) irá se desdobrar
para a protagonista, como o foi para a infeliz avó, em um aspecto puramente psíquico que
passa a confirmar as tão citadas argumentações desenvolvidas por Bachelard: “Fizera um
sótão para mim mesma, com traves, madeirames, tijolos tirados das escuridões desde a minha
infância.” (p.121)
Tal compartimento da casa possui tamanha importância no organismo textual que,
além de suas funções específicas, passa a valer como mecanismo metafórico – “Uma família
triste e patética, todo mundo querendo sobrenadar – mas, e as águas? Teatro de sombras,
incógnito. O sótão.” (p.140) –, o que faz aumentar o peso de sua condição imaterial, de seu
valor psíquico: “Depois me deito no abrigo dos lençóis, só as tábuas rangem, a chuva e o mar
têm vozes familiares. Se a gente pudesse calar o pensamento, a voz do sótão.” (p.144). Tal
aspecto, porém, parece previamente resolvido, quando, ainda na página 43, é estabelecida
uma comparação com o morro, outro elemento, citado no item 4.4 em seu caráter de
conscientização: “Bernardo corre à frente, volta, segue comigo. Lá em cima, um outro mundo.
Como no sótão de uma casa, é uma nova dimensão.”
Em Exílio, essa parte especial da casa, liga-se à fantasia do anão, hipostasiado pela
protagonista, ignorado pelas demais personagens. Reforça-se, assim, seu caráter de construção
psicológica na obra, suspeita sempre reavivada para a imprecisão da resposta a cada vez que a
pergunta é feita:

-Onde você mora? – indaguei mais de uma vez.


Ele fazia um gesto impreciso: ali...E quando insistia, perguntando se morava
no sótão, ficava emburrado. (p.61)

A mesma dificultação de acesso proporcionada por aquele tipo de escada, novamente


retomado nesse romance – “Descalça no silêncio dos espelhos difusos, fui até a escadinha em
caracol no fundo de um corredor.” (p.169) –, assemelha-se ao percurso do inconsciente à
133

consciência – “Eu levava na mão uma vela...” (p.169) – , e que se percebe na procura da
personagem nuclear ao tentar descobrir a morada do estranho companheiro:

No alto da escadinha, apenas uma porta estreita, mal e mal se via a fechadura
com os restos de luz do corredor embaixo. Meti a mão na maçaneta, que
cedeu sem dificuldade. Minha respiração chiava. A porta se abriu, como se
esperassem por mim. (E, p.169)

Ao leitor é encaminhada a primeira suspeita na indeterminação daquele “como se


esperassem por mim”, que se vê ampliada e que assume proporções inusitadas no encontro do
pequeno gato morto, imagem sempre coincidente com o Anão e que tem seu estudo garantido
no item 6.8.
Na Casa Vermelha, a novamente procurada habitação do antigo companheiro de
infância, recuperado ali, adquire finalmente sua forma clara de torre, validando, de forma
cabal, a argumentação anteriormente desenvolvida: “Três andares, mais uma torrezinha onde
deve morar o Anão.” (p.32-33).
O texto desse mesmo romance possibilita, ademais, o encontro com o telhado que
“representa a cabeça do sonhador como as funções conscientes”, como definiram ainda as
palavras de Bachelard: são os episódios da velhinha solitária e das sonâmbulas, postadas
naquele local, em plena madrugada de vento forte, protagonizados pelo Anão e cuja
interpretação definitiva é estabelecida no subcapítulo acima mencionado.
O aproveitamento do espaço superior da casa, o que, colocando-o em uma posição
sobre a cabeça da protagonista, traz para a malha narrativa desdobramentos simbólicos, vai
além do sótão, da torre, do telhado. Presenças significativas em Exílio, tal qual em O quarto
fechado – “Talvez imaginassem o tempo todo o que haveria lá: animal raro, planta singular,
criatura de charco, enviando sinais pela casa a toda hora.” (OQF, p.97) – que, “subindo” do
inconsciente, forçam as outras personagens a viver situações perturbadoras e possibilitar
reflexões conscientes, podem ser encontradas, então, nesse andar que está sempre acima.

Venezianas abertas sobre a madrugada quente. Sombras imóveis, vozes


noturnas: pios, gritos, gemidos. Um súbito rumor, um pé-de-vento, depois
tudo se acalma. Os gatos estiveram miando desesperadamente, agora estão
quietos também. Tenho um vizinho de cima que caminha boa parte da noite
em seu quarto, com certeza devorado de insônia. Ou também a ele esses
ruídos na noite não deixam dormir? (E, p.55)

Parece que meu estranho companheiro do quarto de cima também não vai
comer: continua caminhando, arrasta móveis, hoje começou cedo a sua
134

errância. Passos fortes como se calçasse botas; mas outro dia olhei: usa
apenas sapatos gastos. (p.72)

A palavra “também”, que se refere às atitudes do misterioso vizinho, caminhante do


quarto de cima, parece comprometê-lo intimamente com a enunciadora. O aspecto insólito
estabelecido por esses fatores é enfatizado pelo acompanhamento da imagem do gato, cuja
significação é pressentida naquele outro morto no sótão, imagem em evidente desacordo com
a realidade, como foi aludido em comentário anterior, significação que é inteiramente
explicada adiante.
Este segmento se fecha na análise de O quarto fechado e A sentinela justamente
porque está na parte de cima da casa o impulso que soluciona e encerra suas histórias, em
ambos os livros, e que, por isso, guarda a veemência simbólica que vem sendo examinada:
“Havia estranhas coisas naquela casa, Renata começou a sentir algum tempo depois: havia a
doente do quarto fechado no andar superior.” (OQF, p.56)
No primeiro deles, o título pode ter um dos significados garantido como uma
valorização significativa do quarto da personagem Ella. Nele é possível se voltar a encontrar
a escada, sempre fazendo par em termos expressivos com o significante segundo pavimento,
elemento onde está colocado o infausto quadro da morte, personagem que não se limita ao
objeto e transborda para todo o espaço da casa, dominando-o: “Depois de alguns anos, casada,
como Martim não gostasse dele, pedira que o pendurassem ali naquela casa: no patamar da
escada, onde os degraus de madeira esperavam um pouco antes de subirem para a escuridão.”
(p.19).
É nessa parte especial da casa – “Renata vira a campainha presa no travesseiro: o
instrumento de tortura de Mamãe.” (p.65) –, que se encontra Ella, fechada ali após um
acidente, supostamente um ser inerte – “Ou, lúcida, precisava sair de si mesma, do corpo a
que estava amarrada há tantos anos?” (p.61) –, assunto silenciado por toda a família por um
acordo tácito: “Mas Ella cobrava-se, todos sabiam disso em casa: agora reclamava; dia e
noite, pedia, exigia, impunha. Toda a sua presença excretava sinais inumanos, lamentos,
ordens.” (p.61).
Confirmando a suposição formulada – “Terrível, se ela tivesse idéia da própria
condição.” (p.61), ao final, o riso de Ella funciona como uma acusação contra todas as outras
personagens que fingem ignorá-la, contra suas culpas e desencontros: “O coração doente da
casa explodia. Como um animal que reuniu em sua cova excrementos, folhas podres, vermes,
135

a dor acumulada, a consciência repugnada de si mesma e a repulsa dos outros começavam a


rebentar.” (p.132-133).
Partindo justamente de onde menos se espera, a conscientização que desce, – “O riso
arquejante de um velho demônio agachado num canto nascia do fundo do corredor lá em
cima, ricocheteava nas paredes, rolava cavernoso pelos degraus.” (p.132) –, vai inundando e
atingindo todos os locais que se mantinham, simbolicamente, inconscientes: “Por toda parte,
embaixo das camas, nos cantos onde ninguém limpava direito, atrás dos móveis e cortinas,
novelos de poeira e teias longamente tecidas agitaram-se suavemente.” (p133).
O final do romance confirma a origem da atmosfera nebulosa em que a casa se vê
submersa na maior parte em que se desenvolve o enredo, fazendo renascer no texto ficcional,
de forma sutilmente poética, a simbologia bíblica do Gênesis tão particularmente analisada
por Jung: “Depois o riso saiu pela janela e varreu as espirais de nevoeiro no jardim. Sobre as
copas das árvores negras pulsou o novo dia, abrindo na bruma uma cunha de luz que pousou
na sala, onde o morto se enlaçava em seu Amor: e atracavam no cais.” (p.133).
O mesmo teor desse fecho tão magnificamente construído e tão pleno de significados,
mas que ainda assim, como conclusão, mantém o tom trágico flagrado ao longo de todas as
páginas, é reconhecido pelo leitor no término de A sentinela. Nele, ao contrário, o final traz o
sabor de um suspiro de alívio em suas palavras cheias de positividade. A recriação que só o
engenho artístico é capaz de conseguir para o processo psíquico de fortalecimento da
consciência através de uma convivência pacífica e benéfica com o inconsciente, tão bem
descrito por Jung – o ego mantém um distanciamento do inconsciente correspondente ao do
sujeito e do objeto –, é conseguido, ainda, por uma estratégia lingüística: a mudança do ponto
de vista narrativo, de primeira para terceira pessoa, ou seja, o seqüestro da palavra
enunciadora que se fizera até então de forma intimista por um sujeito impedido de ver por
estar afogado na trama, permite um efeito de distanciamento objetivo, evidenciador de
consciência:

A mulher subiu a escada, deixando apenas uma luz acesa na sala, voltada
para rosas pálidas numa grande jarra negra. (p.163)

Então, da sua alta janela escura, a mulher pôs-se a cantar. Primeiro num
murmúrio, depois cada vez mais alto. Talvez outras janelas tenham-se
iluminado na casa e nas redondezas; a dela, permanecia escura.
Cantava sem se importar com nada mais, cantava jorrando fios de música
sobre as coisas todas, como tentáculos. (p.163)
136

6.3 Onirismo: sonho e alucinação

Todos os elementos estudados neste capítulo criam essa ambígua atmosfera de


predominância inconsciente, como já foi salientado. A intromissão constante do mundo
onírico na estrada percorrida pela trama – e, em aspectos determinantes, dos casos específicos
dos pesadelos, acontecimentos quase beirando o doentio – concorre, de forma inquestionável,
para a certeza dessa atmosfera. Como uma manifestação sem controle, na qual é permitida
qualquer situação, é capaz de possibilitar a revelação ou confirmação de avaliações apenas
suspeitadas, sem censura ou limites, liberadas as fantasias das personagens e, igualmente,
facilitar o jogo criativo da narração:

Tenho um repetido sonho assustador: estou sentado numa das enormes


poltronas de couro verde-escuro no escritório de meu Pai em casa, onde
reina o aroma de couro, cachimbo e livros. (OPC, p.89)

No sonho, perninhas curtas balançando longe do tapete, vejo meu Pai


aproximar-se com um livro aberto na mão, preparando-se para sentar na sua
poltrona. Naturalmente ele não me vê. (Ibid., p.90)

Comprovação incontestável da chegada do inconsciente da personagem à superfície


como estratégia ficcional é o surgimento constante dos sonhos em toda a obra, como se vê
naquela cabeça de pai, sendo engolfada pela natureza em A sentinela. Sempre são uma
continuação do desequilíbrio da vida diurna – “É como se as almas dos que se vão perder se
encontrassem antecipadamente no sono, chão do pensamento destravado, e ali se amassem
como ninguém nunca se amaria.” (OPC, p.128) –, formando com ela um todo, reforçando
aspectos, definindo dubiedades, como se pode ver em Reunião de família:

Em geral, tenho insônia depois daqueles pesadelos: sou tragada por um


comprido corredor, em forma de funil; um furinho minúsculo lá no fundo me
sugando. Se eu for devorada, não acordo nunca mais. Então resisto, sei que
estou sendo devorada por castigo, mereço algum castigo por um erro que não
me lembro, mas não quero ir, não quero. Em toda parte, nas paredes desse
corredor, rostos borrados me espreitam, rostos malignos num espelho
embaciado. (RF, p.18)

A revelação inegável da origem do sonho, em tal texto, chega páginas depois, no


momento de maior embate psicológico entre Alice e a família, retiradas todas as suas
máscaras. Nesse momento ressurge, ainda, a constante metáfora dos porquinhos-da-índia,
137

reduto do único possível afeto, entregues pela protagonista ao pai para o sacrifício e que a
fazem se sentir vítima e algoz:

Quero morrer. Deitar-me embaixo desta mesa e deixar que me pisem e me


esmaguem, e sangrar por todas essas feridas até morrer. Quero entrar até o
fundo nesse corredor, ser sugada, tragada por aquele furinho; meu castigo,
mereço meu castigo. (p.110)

Perfeitamente esclarecedor para o conteúdo ora analisado é o comentário que se pode


citar sobre o abaissement du niveau mental (depressão psíquica, intensidade de consciência
reduzida com ausência de concentração e atenção) que se torna visível no simbolismo já
citado:

Uma análise psicológica profunda revela, então, que se trata da irrupção de


um arquétipo, como o da Mãe Devoradora Terrível, por exemplo, cuja
atração psíquica é tão grande, em virtude de sua carga energética, que a
carga do complexo do ego, incapaz de lhe fazer frente, “sucumbe” e é
“tragada”. (NEUMANN, /s.d./., p.37)

Em Reunião de família, o sonho obsessivo de Alice com uma mãe praticamente


desconhecida e cuja imagem se apagou inteiramente e que, exatamente por isso,
involuntariamente, não preenche suas necessidades arquetípicas, segundo a hipótese levantada
por esta apreciação crítica, é inteiramente definido pelas palavras anteriores do estudioso:

Estou cansada: dormi mal; tive outro daqueles pesadelos com a boneca
estranha, cara de velha, cara de múmia, um sonho que tenho desde menina.
Dessa vez ela estava deitada num caixão de defunto, a barriga enorme.
E no sonho eu queria pegá-la no colo, chamava alto: mãe, mãe... (RF, p.19)

Exemplo flagrante desse papel de esclarecimento do sonho em relação às ânsias vígeis


é o surgimento do Anão de Exílio, possivelmente figura trazida do inconsciente, mas de
tamanha força insinuativa, que se faz notar mesmo nos acontecimentos despertos. As
verdadeiras origem e função desempenhada pelo misterioso gnomo vão sendo esclarecidas,
principalmente se houver o confronto dos sonhos coadjuvados pelo Anão, nos quais sempre
tem uma atitude de enfrentamento com um eu onírico que sempre se vê como vítima, que
precisa avocar-se suas culpas, compreender sua verdadeira condição, quando acordado, e
enfrentá-la de forma coerente:
138

(É um cortejo fúnebre, mas não há caixão. Levo pela mão meu filho,
inundada de alegria, há quanto tempo não sou feliz? Mas de repente não é
mais ele: é o Anão, sua pele áspera, um sapo entre meus dedos...)
(p.188)

É importante se observar que é freqüente, nos textos da autora, o surgimento de outro


tipo de sonho, além do francamente onírico: apresenta-se um segundo tipo de ocorrência,
apresentada como real, mas que, por se dar sempre de madrugada, ou enquanto a personagem
está na cama, ou quando ela imagina que acorda, possibilita a concepção de que ainda está
dormindo, concepção reforçada pelo fato de que imediatamente após se instaura um fato
“maravilhoso”: “Continuo estendida na cama, sonolenta, ao rumor da árvore que farfalha no
pátio. De repente, um sobressalto: a árvore foi cortada há meses.” (RF, p. 38)
Essa outra forma rotineira de acontecimento, extraordinário, embora introduzido
como realidade no texto, mas, cercado por uma série de indícios, mostra-se, potencialmente,
também, como um momento onírico:

Antes que eu adormeça cai a tempestade que se preparava. Bernardo ainda


não voltou. Onde andará nessa chuva? Deixo a porta só encostada, quando
ele vier pode entrar, na certa vai sujar tudo, deve estar enlameado e cheio de
carrapichos.
Quando fecho uma veneziana que batia aflita, um vulto passa correndo, meio
agachado na ventania, braços erguidos protegendo a cara. (AP, p.143-
144)

Às vezes com ventania, ou lua, elementos cujo caráter mágico já foi discutido em
capítulo precedente, tais fatos ocorrem sempre à noite, estando as personagens, supostamente,
prestes a dormir ou despertando na cama: “Madrugada; acordo com alguém puxando meu
braço, imediatamente fico coberta de suor frio, medo.” (E, p.119). Na seqüência transcrita, a
protagonista, guiada pelo Anão que se mantém sempre entre a latência do mundo palpável e
do domínio inconsciente, é levada para assistir à surpreendente encenação do desenho de
Gabriel, a cena das “Sonâmbulas”: “É, sem tirar nem pôr, o desenho de meu irmão doente.”
(p.120).
Esses “sonhos possíveis” têm um efeito pendular, ou seja, são introduzidos como
acontecimento de fato, mas admitindo, também, a probabilidade de pertencerem a um
universo estritamente onírico pelas circunstâncias duvidosas em que ocorrem – pré ou pós-
sono – criam uma realidade cambiante, instável. Instauram, a partir daí, uma dúvida perene
sobre todo e qualquer fato apresentado como realidade e consegue-se, por isso, um efeito
139

bastante profícuo sobre a obra, visto que, ambas as realidades – a do senso comum e a
puramente imaginada – são igualmente possíveis e hierarquicamente equivalentes na obra.
Como conceitua von Franz, (2003b, p.112), “A cama é o lugar do abaissement de
niveau mental, onde a pessoa se conecta com o inconsciente, com instintos e com o corpo.”.
Desse modo, cria-se, habilmente, uma instabilidade na trama narrativa, ao se criar uma
oscilante ponte entre a realidade e o puramente psíquico. O leitor sempre é instado a caminhar
sobre um chão duvidoso, dilatando assim, para fora da obra, a dinâmica interna.
Só em Exílio, sob essa condição, podem ser citadas várias passagens, nas quais a
figura do Anão está sempre presente, inaugurando virtualidades sobrenaturais: as sonâmbulas
e a velhinha, que se penduram no telhado, como se viu; o Anão que assobia, chamando a
narradora para a floresta ou chorando no corredor como um bebê – manifestamente uma
presença crítico-conscientizadora da relação mãe-filho, já vista antes claramente como sonho
– ou, ainda, morto, no meio do quarto: “Sento-me na cama, pisco para espantar a vertigem. E
vejo.” (p.196). A própria personagem se permite duvidar dessas ocorrências ambíguas:

À luz objetiva do sol, parece que tudo foi alucinação, sonho. Como é que as
Moças subiriam ao telhado? Ainda mais a Loura: fraca como está? Não há
escada, que eu tenha visto, nem acesso algum. (E, p.121)

Então, sem esperar por isso, ouço um riso.


Não uma risada de adulto, mas um riso de criança. Alegrezinho. Ondula tão
leve, esvoaça no pátio, pousa nas lajes tortas.
Fico gelada.
Cristiano?
Devo ter cochilado, encostada no caixilho da janela. Ou foi Aretusa quem riu
para me assustar? Ela gosta desse tipo de brincadeira comigo. (RF, p.65)

Os exemplos são abundantes em todos os romances – “É na noite, nessa hora


nenhuma, que as coisas acontecem: desabam paredes e abrem-se portas, e a fantasia senta-se
ao pé da cama desembaraçando os cabelos. Esse é o reino das palavras: tudo pode ser dito e
cada um inventa os seus significados.” (p.123) – e justificados também em outra passagem de
O ponto cego:

Depois, em certa madrugada, eu fui chamado. Fui convocado pelo que


precisava acontecer. Fui invocado. Antes mesmo de abrir as pálpebras eu
soube: vai acontecer, hoje vou encontrar o indizível, eu vou.
Desci da cama depressa, não me cobri porque não havia calor nem frio:
havia silêncio e lua.(p.124)
140

É nesse espaço/tempo não apreensível, bastante forte em O ponto cego, que se


equilibra entre a razão e a inconsciência, tempo “antes mesmo de abrir as pálpebras” ou onde
não há “calor nem frio”, só “silêncio”, que se deve procurar pelo “indizível”, o que
normalmente só é exprimível por símbolos. Os sonhos que se interpõem, nesse caso, são
apenas uma explicitação de um onirismo, no sentido de uma recordação incontrolável com
laivos de fantasia, que domina toda a narrativa, pois a fonte da enunciação do ser narrador são
as camadas profundas de um psiquismo que, se não é totalmente inconsciente, nesse aspecto,
por assim dizer, tem dali uma grande contribuição.

6.4 O espelho: reflexos do inconsciente

Outro elemento com um desdobramento gritantemente psicológico, na obra, é o


espelho, pois, além de seu corriqueiro emprego utilitário, possui a qualidade de reproduzir
esse “desconhecido” da mente humana, como caracteriza Jung, e com tal profundidade, que
tem uma enorme importância na urdidura narrativa de Reunião de família: “Havia a Alice do
espelho: também não tinha mãe, nem precisava dela; na verdade, não nascera – era eterna na
sua disponibilidade, flutuava naquele mundo polido, era um lampejo de liberdade. Alada
Alice.” (p.35).
No terceiro romance publicado, o espelho, além de outras qualidades ali identificadas,
perde todo o seu aspecto material e temporal, transportado para o texto o místico significado
que possui no imaginário humano: “(Chamar a morte, esconjurá-la: venha agora, amiga,
venha. Saia desse fundo de sombras, de onde você me espreita; estilhace o vidro, desmanche
a cena, escureça a casa, beije o rosto imundo que me reveste.)” (RF, p.110)
Mas é, em Exílio, em que se intensifica radicalmente essa propriedade e o objeto
reaparece preso a essa condição transcendente. A imagem que surge ali, insistentemente é
inelutável, porque brota através de todos os sentidos, compondo com o perfume materno (item
4.8.2) e com a misteriosa voz ao telefone (ver 6.5) uma efígie de grande apelo sensorial, a
qual, emana dos estratos mais fundos, de além das camadas, até certo ponto, superficiais da
memória autobiográfica.
Ainda que provenientes de mulher adulta, os problemas da personagem em seu
presente, de diferentes origens, sempre reencontram o trauma infantil do insuficiente amor de
mãe. A imprescindibilidade de realização do arquétipo, traduzível, normalmente, na mãe
pessoal, passa a exigir o que lhe é devido e vem para a superfície da consciência, o que, na
141

recriação artística, engenhosamente, desponta de todas as formas e em todos os meios


possíveis. Não há a menor dificuldade em se reconhecer uma presença extraordinária, que não
pode ser simplesmente equiparada à mãe pessoal, mesmo que indiferente, mesmo que
rejeitadora, ainda que alcoólatra.
Sobre esse aspecto, são perfeitas as observações de Jung, no capítulo “Aspectos
psicológicos do arquétipo materno”:

Para ir diretamente ao assunto, a minha concepção difere da teoria


psicanalítica em princípio, pelo fato de que atribuo à mãe pessoal um
significado mais limitado. Isto significa que não é apenas da mãe pessoal que
provêm todas as influências sobre a psique infantil descritas na literatura,
mas é muito mais o arquétipo projetado na mãe que outorga à mesma um
caráter mitológico e com isso lhe confere autoridade e até mesmo
numinosidade. (JUNG, 2000b, p.93)

Se em seis dos romances analisados há, efetivamente, uma mãe pessoal ou alguém
que, sendo-lhe compatível, pode ser responsabilizado pelos sofrimentos da personagem
principal, em Reunião de família uma privação completa da imagem materna anula tal
hipótese, pondo em destaque, justamente, a importância de tal privação.
É o texto de Exílio mesmo que complementa e recria com perfeição, embora
literariamente, a afirmativa do principal teórico em que se fundamenta esta análise:

Aí, minha mãe gritou alguns palavrões, subindo a escada, quase empurrada
por meu pai.
Lembro que mais tarde me esgueirei até o quarto dela; queria ver se estava
lá, se estava bem. Se era ela mesma ainda, e não alguma entidade maligna
que tomara seu lugar. (p.58)

Assim, tal deformação da realidade por uma imagem arcaica16 tem suas
representações não só no mais profundo individual, mas também, no mais antigo da espécie
humana.
A inventividade artística, ancorada nessa possibilidade inconsciente, declaradamente
presente em todos os seus textos, faz renascer, na individualidade da personagem central de
Exílio, o velho espectro psíquico humano, carregado de todas as primitivas desfigurações e

16
“A realidade simbólica da Mãe Terrível extrai suas imagens preponderantemente “de dentro”, isto é, o caráter
elementar negativo do Feminino se expressa através de imagens fantásticas e quiméricas que não são oriundas do
mundo exterior.” (NEUMANN, /s.d./,p.134)
142

todos os medos primordiais vividos pela espécie. O espelho é o objeto revelador escolhido,
objeto mágico, dado que guarda em si desde as qualidades atribuídas à água arcaica pelo
imaginário humano – é Narciso que já no mito confunde as qualidades de um e de outro – até
o dom de ser passagem para um mundo paralelo nele reproduzido, como se pode ver na tão
conhecida obra de Lewis Carroll:

Fecho os olhos. Quando os abro de novo, vejo sombras no espelho da


cômoda. Não quero olhar, não quero. Mas olho: ela aparece, cada vez mais
freqüentemente. Primeiro a barra do vestido longo, depois a mão com o
copo, a perna arqueada no passo, o rosto de perfil. Tenho vontade de pedir:
Me leva para casa. (p.165)

Se ao leitor resta ainda alguma dúvida sobre a origem daquela imagem, a hesitação se
desfaz. E a inevitabilidade daquela representação se impõe:

Passo o dia deitada sobre a cama, vendo pedacinhos de floresta. Agora,


quando fecho os olhos por algum tempo, é no fundo das pálpebras que
minha mãe passa, até já dispensa os espelhos. (p.182)

Em Reunião de família a recorrência do espelho surge, também, como expressão do


inefável inconsciente. Mas assume francamente o aspecto de sombra17, – “Ela: o contrário de
mim, meu reverso. Sempre à espera por baixo da superfície. Livre para detestar tudo o que,
aqui fora, era obrigada a aceitar.” (p.10) – uma das particularidades dessa psique inacessível,
dado que é examinado em detalhes no segmento 6.6.

6.5 O “chamado do poço”

Se a imagem de uma transmutação materna anuncia-se no espelho, mas com


possibilidades variadas de interpretação, até a da pura fantasia, um elemento de comunicação,
talvez menos romântico e com menos tradição simbólica na literatura, é utilizado, na tessitura
narrativa com ousadia, dado o fato de que, envolvendo outras personagens, amplia de forma
imponderável, a força e o alcance do inconsciente: o telefone. A própria protagonista traduz –
e nega – as várias possibilidades lógicas de interpretação, mas, ao contrário da interpretação
comumente aceita para a imagem do espelho, vai introduzindo, sutilmente, as qualidades

17
“De um modo geral, a sombra possui uma qualidade imoral, ou, pelo menos, pouco recomendável, contendo
características da natureza de uma pessoa que são contrárias aos costumes e convenções morais da sociedade.”
(STEIN, /s.d./, p.98)
143

daquela voz que chama – “Voz de bêbada.” (p.24), “Voz pastosa, voz de poço, de fosso”
(p.123) –, as quais, podem ser confrontadas com efetivas descrições da mãe: “E nessas horas,
quando se irritava, não tinha uma bela voz: era a única coisa nela que ficava feia.” (p.39);
“Sua voz, monótona mas bonita, ficava roufenha.” (p.57). Quase no final, revela ao leitor, o
que para si, supõe-se já estar suficientemente revelado: “Se for aquela Voz, me mato. Parece
que me esqueceu: eu também a esqueci, na confusão desses dias. Suicidou-se, quem sabe?”
(p.185)
Parece claro, a quem acompanha a trajetória narrativa, que a traumatizante imagem
visual da mãe alcoólatra, ainda viva, em suas crises, revigorada pelo som de sua voz, ressurge,
lá do “fosso” do inconsciente da protagonista, tal qual a realidade: “Vejo-o ainda, refletida
nos espelhos que ornamentavam a ponta de cada corredor da casa, indo do teto ao assoalho:
duas rainhas pálidas, vagando sem destino.” (p.35).
Mas indícios da imaterialidade dessa voz ao telefone são dados por sua ligação com o
Anão. E, adiante, a junção das duas figuras ajuda a descortinar a verdade de ambas, posto que
faz uma revelação não só sobre a misteriosa voz, mas sobre a natureza do próprio anão:
“Alguma mulher desesperada me escolheu ao acaso, quem sabe, para se vingar do tempo e da
vida? O Anão talvez saiba a resposta.” (p.191).
O processo se clarifica quando se torna ainda mais abrangente, já agora, envolvendo o
irmão Gabriel, indiretamente, na ciranda daqueles seres insubstanciais: “Gabriel, e a atração
do fétido poço onde se perde, onde cavouca buscando sabe Deus o quê.” (p.115).
Quase ao final do enredo, a ligação já adivinhada para os três na expressão “fétido
poço”, se intensifica na referência à ação extrema de Gabriel ao escrever na parede, com fezes
a palavra “mãe”: “ANTES DE PEGAR NO SONO, LEMBRO-ME DA VOZ. Parece ter
desistido realmente de mim: afogou-se na própria lama? Que palavra essa pessoa, mulher,
homem ou anão, escreveria na parede?” (p.191)

6.6 Sombra e persona: o eu oculto e o eu social

Neste segmento é apreciado um tipo de situação que tem um grande peso narrativo no
entendimento desta tese, principalmente, por valorizar as personagens em seus aspectos
relacionais. Uma das conseqüências dela é o surgimento da personagem com qualidades que
devem ser entendidas como tendo os mesmos atributos da sombra – “Não se vêem essas
personagens mas lá estão, cá estão ao meu lado, atrás dos bastidores, no meio dos cenários,
144

enroladas nas cortinas desse palco.” (OPC, p.84) –, elemento psíquico estudado por Jung em
diversos trabalhos e que já pode ser surpreendida em outra passagem de O ponto cego:

Esse é o meu divertimento. Eu gosto do embaixo, do debaixo, do escuro.


Meu lugar é onde se represa o tempo e a minha vontade se exerce.
Ali todos estão para sempre, e me olham e se olham, partes da mesma
interminável história de cada pessoa, na qual importa o sonho e a vigília é
nada. (p.33)

Estão em Ao encontro da sombra (ZWEIG,ABRAMS, /s.d./) comentários perfeitos a


respeito desse elemento psíquico, que se constrói a partir do relacionamento de uma pessoa
com as que a cercam:

Emoções e comportamentos negativos – raiva, inveja, vergonha, falsidade,


ressentimento, lascívia, cobiça, tendências suicidas e homicidas – ficam
escondidos logo abaixo da superfície, mascarados pelo nosso eu mais
apropriado às conveniências. Em seu conjunto, são conhecidos na psicologia
como a sombra pessoal, que continua a ser um território indomado e
inexplorado para a maioria de nós. (p.15)

Ao mesmo tempo, vamos enterrando na sombra aquelas qualidades que não


são adequadas à nossa auto-imagem, como a rudeza e o egoísmo. O ego e a
sombra, portanto, desenvolvem-se aos pares, criando-se mutuamente a partir
da mesma experiência de vida. (p.15-16)

A sombra pessoal contém, portanto, todos os tipos de potencialidades não-


desenvolvidas e não-expressas. Ela é aquela parte do inconsciente que
complementa o ego e representa as características que a personalidade
consciente recusa-se a admitir e, portanto, negligencia, esquece e
enterra...até redescobri-las em confrontos desagradáveis com os outros.
(p.17)

No citado romance O ponto cego, podem ser reconhecidas diversas passagens que se
identificam com a caracterização de tal parte rejeitada da personalidade humana, que vem à
tona com freqüência e que dá o tom dominante em todo o texto: “Esta é a história de um
Menino e da Mãe do Menino: uma história de muita sombra. História de desvãos, do embaixo
do debaixo, do secreto.”(p.17). Pode-se afirmar que a presença da sombra invade o ambiente
narrativo – “Neste grupo de minha família eu sou o mais estranho. Se não fosse por minha
Mãe eu nem existiria: seria sombra, bicho, boneco.” (p.82) –, preenchendo-o totalmente.
A construção da personagem central, o Menino, se assemelha ao mecanismo que gesta
a sombra psíquica humana, revelação ficcional da sombra junguiana: ignorado por toda a
família – “Eu nem entrava em jogo nenhum: eu era o sapo na beira do poço. Nisso residia a
145

minha liberdade?” (p.29) –, visto como alguma coisa reprovável que se deve relegar para o
escondido e mantida lá, começa a desenvolver, até na aparência, seu lado negativo, e que se
agrava após o abandono da mãe – “(Mas não fui uma escolha: fui o que sobrou depois do
nada.)” (p.29). Nele, ao contrário do desejo dos demais, a face normalmente negada é a que se
apresenta socialmente:

Sempre há quem se exponha àquele que finge não escutar nada atrás das
portas, e não enxergar muita coisa da sua perspectiva. Personagens arrastam-
se de longe: nunca acabaram de ser narradas por isso não conseguem morrer,
e querem que eu as convoque.
Não cessam; murmuram nas dobras da cortina; querem voltar, querem viver.
Sabem que posso desatar os nós que as prendem e as soltar na sombra –
como balões iluminados. (p.18)

Pode ser reconhecido como encarnação da sombra de toda a sua família: da irmã -
“Quando essa minha irmã substituta era muito pequena, ele a ignorava ou lhe batia.” (p.65) –,
do pai – “Até que a filha amada, a alegria, morreu: só lhe restou essa, e todo amor e a culpa se
concentraram nela, para seu bem, para seu mal.” (p.65) e até da própria mãe – “Se eu era o
definido precário, minha Mãe era a força negada: trazia entalada na garganta a pedra de sua
própria anulação.” (p.18-19).
Mas esse papel de encarnação do negado lado humano se desdobra para além do
próprio texto, tornando-se o Menino do último romance publicado, praticamente, a forma
figurada dessa faceta apontada em todos os outros romances:

Uma família inteira foi morar em meu quarto, numa casinha de papelão que
construí e botei num canto da prateleira. Escuto sua voz, seus passinhos em
cima da cômoda. Para lá, para cá. A mulher, os gêmeos, o padre, o pai
doloroso, a mãe morta, a beata, a menina debilóide, todos. Por que tantas
criancinhas mortas nas minhas histórias? (p.90)

Reunião de família é outro texto de Lya Luft que assume grande importância nesse
aspecto, já levemente mencionado no item anterior, mas que neste segmento aparece
investigado em toda a sua amplidão. Em um brilhante processo de intertextualidade, traz do
famoso livro infantil a figura de Alice e seu espelho, já comentado em outra passagem,
aproveitadas daquela obra a atmosfera de fantasia, a licença de trânsito livre entre a dimensão
do supostamente real e o da imaginação, capturando para o novo texto o nonsense de um
mundo invertido que vive paralelo ao outro e, outrossim, reinventando artisticamente em toda
a sua plenitude, dessa forma, a noção psíquica de sombra.
146

É essa Alice, “a coitada”, vivendo “a dor da orfandade” em relação à mãe,


amedrontada pelo pai, a que se encontra e se revigora diante do espelho, onde parece
encontrar a imagem de uma parte perdida de sua personalidade, uma parte de seu eu sufocada
pela vida nos sentimentos dissimulados:

E eu?
Olho o espelho: onde a outra? Não esta, acomodada e cotidiana, de mãos
ásperas e corpo envelhecido, mas a outra, que flutua, livre e eterna, em seu
labirinto de cristal.
Ela quer aparecer, eu sinto: quer aparecer; em qualquer moldura onde eu lhe
der espaço, começará a delinear-se e vibrar, dominando-me com a sua densa
realidade. (p.57)

Aos poucos, vai se desconstruindo uma realidade supostamente desejada – “Preciso de


tudo ordenado e calmo.” (p.17) – em que “tarefas sensatas e úteis”, “um homem quieto e
pacato” e os dois filhos que a “beijarão na testa, distraídos, dizendo: ‘Boa noite, velha.’” são
ideais adotados na superfície:

Quis morrer dezenas de vezes, lidando na cozinha, carregando a sacola de


compras, lendo sozinha na sala, vagando pela casa de madrugada quando
tinha insônia, escutando meu marido roncar, ouvindo o ruído de sua
mastigação, agüentando as brigas de meus filhos e disfarçando a dor quando
me chamavam de velha. (p.109).

Elucidativas e oportunas para a compreensão da dinâmica estabelecida entre


protagonista e o objeto ora focalizado são as palavras de Jung:

O espelho não lisonjeia, mostrando fielmente o que quer que nele se olhe; ou
seja, aquela face que nunca mostramos ao mundo, porque a encobrimos com
a persona, a máscara do ator. Mas o espelho está por detrás da máscara e
mostra a face verdadeira. Esta é a primeira prova de coragem no caminho
interior, uma prova que basta para afugentar a maioria, pois o encontro
consigo mesmo pertence às coisas desagradáveis que evitamos, enquanto
pudermos projetar o negativo à nossa volta. Se formos capazes de ver nossa
própria sombra, e suportá-la, sabendo que existe, só teríamos resolvido uma
pequena parte do problema. Teríamos, pelo menos, trazido à tona o
inconsciente pessoal. A sombra, porém, é uma parte viva de nossa
personalidade e por isso quer comparecer de alguma forma. (JUNG, 2000b,
p.30-31)

Embora haja uma participação da personagem, até certo ponto consciente – “Eu
brincava assim na meninice: de não ser eu. Não a coitada, filha daquele Professor a quem
147

ninguém apreciava; mas outra Alice – poderosa, inconquistável.” (p.15) – precisa ser chamada
a atenção para a relação de seduzida/sedutora que existe entre a Alice externa e a do espelho,
o que já aponta para uma possibilidade de interpretação para o relacionamento de Nora e
Lilith, de A sentinela, adiante analisado. A personagem que surge no espelho, cuja invocação
inicial sempre parte de uma ação voluntária – “A gente sentava na frente da outra menina e
encarava: tão intensamente, com tamanho fervor e tanta vontade de a ver mudar, que a
imagem aos poucos perdia seus contornos; ficava um borrão.” (p.10), tem todas as qualidades
das quais a protagonista necessitaria para uma vida saudável, não submetida, verdadeira,
enfim.

Aos poucos ela se transformava, espantoso como se transformava: arqueava


de outro modo o sorriso, o olhar destilava malícia e ousadia, o rosto assumia
beleza, era um desafio.
Eu era ela. Era a outra, que irresistivelmente me puxava para seu mundo de
lampejos dourados. (RF, p.37)

O espelho converte-se, assim, em significante para “insatisfação”, no texto, quando


aparentemente adequada a uma vida cotidiana e doméstica, paradoxalmente, deseja colocar
em sua sala de mulher “feliz” o transgressivo objeto. Mas, como sempre acontece quando a
sombra é defrontada, um sentimento de medo e negação domina a personagem, como se vê
em “Falo e já me arrependo. Espio rapidamente meu reflexo no espelho, aquela não é a pacata
dona-de-casa, é uma mulher má, cara cortada ao meio pela rachadura do vidro.” (p.104).
Mas não só a sombra individual pode se revelar naquele simbólico espelho: também a
coletiva se desnuda: “Nada temos a ver com as criaturas que ontem se desnudaram
mutuamente, arrancando máscaras, rasgando carnes, lascando unhas.” (p.123). E, assim, a
imagem torna-se, além de uma duplicação, uma tradução de todos os caracteres em ação, a
verdade de todas as cenas que se desencadeiam do lado de fora.

Uma segunda família janta no espelho, que vai do aparador até o teto. Uma
feia rachadura sobe do canto esquerdo até o meio e divide meu rosto
obliquamente em duas partes. (p.55)

Estamos decadentes; estamos podres. Novamente tenho vontade de chorar.


Apenas a família do espelho, em sua existência de sombras, não liga para
essas coisas. (p.56).

Torna-se relevante também ser analisada, quanto a este aspecto, a personagem


Aretusa. Ao contrário de Alice, é delineada, a partir da rima com o próprio nome, com
características que, sob a perspectiva de realce com a personagem principal, se configuram
148

como negativas: “Tive muita pena. Medusa, transformando em pedras os que a amam?”
(p.31). Compõe, junto com o espelho, uma das partes de uma dicotomia que as palavras
seguintes, retiradas de Jung – o mapa da alma (STEIN, /s.d./, p. 100) vão desvendar:

O que a consciência do ego rejeita torna-se sombra; o que ela positivamente


aceita, aquilo com que se identifica e absorve em si, torna-se parte integrante
de si mesma e da persona.

Há a “pessoa pública” e oficial a que Jung chamou a persona, a qual está


mais ou menos identificada com a consciência do ego e forma a identidade
psicossocial do indivíduo. E, no entanto, é também, tal como a sombra,
alheia ao ego, embora o ego se sinta mais à vontade com a persona pelo fato
de ela ser compatível com normas e costumes sociais.

Sombra e persona são como dois irmãos (para um homem) ou duas irmãs
(para uma mulher); uma está à vista do público, a outra está escondida e é
solitária. São um estudo em contrastes.

Persona e sombra são usualmente o oposto mais ou menos exato uma da


outra e, no entanto, são tão chegadas quanto o podem ser dois gêmeos.

Ao longo de todo o desenvolvimento do enredo, Alice vai sendo caracterizada em sua


persona – “Sou uma mulher comum; dessas que lidam na cozinha, tiram poeira dos móveis,
andam na rua com uma sacola de verduras, sofrem de varizes e às vezes de insônia.” (p13) –,
ao contrário da outra – “Aretusa-Medusa: a menina levada, a adolescente desinibida, de quem
falavam mal na cidade onde moramos juntas bastante tempo.” (p.25). Esta tem, em relação à
protagonista, sempre uma atitude desafiadora e de crítica – “Aretusa, mulher de meu irmão,
sempre me censura por ser tão acomodada, tão tímida, parece até que tenho medo de sair de
casa, por isso visito tão pouco minha família” (p.11) –, embora haja entre elas, desde a
infância uma relação de cumplicidade ou de mútua dependência em relação ao eu de Alice,
real, mas desconhecido, que as une como persona e sombra: “Aretusa-Medusa, que inventava
brinquedos malucos; não tinha medo de ninguém, nem de meu pai...” (p.25)
No entanto tornar viva a presença da sombra de Alice ainda é pouco e duplica-se,
refletido também no espelho, o lado oculto daquela “que inventava o jogo do espelho para ser
menos infeliz.” (p.10):

Ela: o contrário de mim, meu reverso. Sempre à espera por baixo da


superfície. Livre para detestar tudo o que, aqui fora, eu era obrigada a
aceitar. (p.10)

Eu era ela. Era a outra, que irresistivelmente me puxava para seu mundo de
lampejos dourados.
149

Como nos livros: a assustadora e deliciosa passagem de uma realidade a


outra, sem saber onde o concreto, onde a fantasia. Era a liberdade, essa
transparência. Era o poder. Meu lado avesso, esconjurado, começava a ser
legítimo. (p.37)

É o próprio andamento textual que desnuda, aqui e ali, de forma sutil, a estreita
afinidade da cunhada com aquele reflexo: “Estar com Aretusa também é um jogo: o jogo dos
contrastes. Eu cheiro a cozinha; ela, a cigarro e jasmim. Somos amigas de infância, mas pouco
temos em comum.” (p.17)
No final de semana em que a família se reúne e todos se dilaceram em um confronto
de verdades, um dos embates mais fortes se dá entre as duas, não uma disputa entre duas
cunhadas, mas flagrantemente entre dois aspectos do ego de Alice – “Sentada na beira da
minha poltrona, componho a máscara adequada.” (p.42) – , quando sua fraudulenta persona
vai sendo despedaçada por todos, mas, principalmente, por sua sombra, ansiosa por
comparecer, como diz Jung: “Acho que todos espreitam debaixo dos cílios para ver quem dará
o próximo salto, Aretusa ou Alice?” (p.108). Nesse momento, a destruição de sua persona
está quase completa:

Minha cunhada não nega; não se defende como eu esperava. Em vez disso,
ataca de volta:
- E você, Alice? A doméstica, a patetinha. Enganou a todos, até o marido,
com essa história de que só faz o que ele quer, o marido não quer isso, não
deixa aquilo...Ele só come a comida que eu mesma faço...Que ridículo!
(p.108)

Ainda nesse mesmo momento de extrema tensão, a utilidade narrativa de Aretusa se


esclarece de forma concludente, despontando, no mesmo contexto, as duas faces com que esse
elemento psíquico espreita no texto, o que se comprova, do mesmo jeito, adiante:

Ela solta outra risada aguda:


- Você? Como é hipócrita! – O fel escorre entre seus dentes, se eu olhar bem
verei a gosma verde, mas olho para o espelho. Vejo Alice feia, desgrenhada,
cruel, e por trás dela outro rosto, borrado, mas está lá, no nevoeiro, um rosto
que ri ironicamente. (108)

Adiante, o tênue limite ainda mantido entre esses dois elementos narrativos tão
afastados semanticamente fora da obra – espelho/cunhada – finalmente se anula, confundidos
ambos em uma só construção significativa: “Começo a chorar em grandes soluços. Aretusa
refletiu a imagem de uma Alice que ninguém conhecia.” (p.113).
150

A intriga de Reunião de família se encerra com o estreitamento da união entre as duas


personagens, o que vinha sendo desenvolvido no encadeamento dos fatos e que se evidencia,
nesse caso, como um recurso significativo de peso:

Ela sacode para trás o cabelo de Medusa; despeja o leite na xícara.


Sorrindo, volta para mim os olhos dourados – que refletem duas pequenas
Alices. (p.125)

A asa esquerda do anjo é a outra obra em que a relação persona/sombra se estabelece


de forma bastante profunda. Mas, em um mecanismo inverso ao do romance anteriormente
comentado, a personagem nuclear, Gisela, como ocorre com freqüência nos outros textos aqui
analisados, apresenta-se na avaliação social, o que equivaleria à persona, de forma negativa,
ou seja, é vista pelo círculo com que interage apenas como caracterização do segundo
elemento dessa díade – “Eu me sentia exposta, avaliada, reprovada. Os exercícios de piano
iam mal; a letra gótica saía mole da mão canhota; as orelhas de abano, e minha avó sempre
sugerindo que dormisse com uma touca apertada, para corrigi-las.” (p.52) –, o que abre para
quem analisa, mais de uma possibilidade. “Minha revolta mistura-se com dúvida e
insegurança: será que eles têm razão? Por que ninguém me ajuda?” (RF, p.106), dizia a
própria Alice mesmo no romance em que tenta sempre compor uma imagem positiva.
No romance ora analisado, fica marcada no enredo uma acirrada e injusta disputa entre
verdade pessoal e coletiva, o que, em face dos problemas já vividos pela personagem em seus
descompassos com o maternal, aumenta seu sofrimento – “Longe de tudo que me afligia:
minha avó, minha solidão, meus defeitos, incertezas, pesadelos.” (p.30) – , acrescido o fato de
que, tendo como oponente principal a avó, figura acabada de Mãe Terrível, como foi
largamente patenteado em capítulo precedente, acaba sendo derrotada, aceitando,
exteriormente pelo menos, a persona imposta por aquela: “Não se permitia fraquezas e
desprezava as alheias. Penso que, talvez sem ela mesma saber, também me desprezava, pois
eu era feia, sem graça, e comigo o sangue da família Wolf deixara de ser absolutamente
‘puro.’” (p.17)
Na obra em questão, a personagem que estabelece com Gisela o outro pólo da
oposição é a prima adolescente:

Uma artista, sentenciava minha avó quando a neta preferida tocava na sala
de música; um exemplo, citava meu pai, referindo-se às suas excelentes
notas na escola; um anjo, sussurrava tia Helga, começando a mostrar sinais
151

de sua estranha enfermidade: a cabeça balouçava, de início mansa, depois


frenética, negando, negando mesmo quando queria afirmar. (p.39)

Mas, definindo o mesmo processo já pressentido na relação Alice/Aretusa – “Por que


não era como Anemarie? Nunca a censuravam. Como conseguia ser sempre assim, plácida,
harmoniosa, agradando a todo mundo, até nossa avó, aparentemente sem esforço?” (p.23) –, a
opinião unânime que domina toda a família pode ser reafirmada no sentimento de atração da
própria preterida:

Quase sempre distante, continua sendo, para mim, uma figura de perfeição.
Não posso imaginar Anemarie fazendo travessuras em criança, tirando notas
baixas na escola, mostrando a língua para a avó quando esta não vê, levando
sermões de tio Ernst, relaxando nos estudos de violoncelo.” (p.71)

Já adulta, Gisela, em um forçado processo de mudança, consegue atingir o ideal


construído pela avó – “O nome de minha prima, a quem nunca me igualaria. Anemarie, a
predileta da família, cabelo dourado caindo até os quadris quando os destrançava.” (p.16) – ,
perseguido por toda a família e sempre vislumbrado na prima mais velha:

Sem perceber, tornei-me afinal boa dona de casa. Embora as agulhas ainda
enferrugem, meus bordados saem quase perfeitos; consigo fazer uma torta
de várias camadas, quase tão boa quanto as de tia Marta, e acho que minha
avó hoje se orgulharia de mim.(p.83)

Em um movimento de alternância, as duas primas trocam, afinal, de papel. É no


enterro de Anemarie que Frau Wolf desce e cospe sobre o caixão, manifestando agora seu
desprezo pela neta a quem tanto amara. Transformada e aceita, as palavras da protagonista
dão o testemunho sobre aquela que, no texto, representa a verdadeira figura do arquétipo
materno: “Agora ela me elogia: afinal me tornei boa dona de casa.” (p.111).
Entretanto só em um nível superficial ocorre a transformação da personagem
condutora da narrativa. Se conscientemente renuncia ao amor e a qualquer contato que a
tornassem suja, em uma busca obcecada por se limpar de todas as qualidades que lhe foram
imputadas como “negativas”, sendo obrigada a sufocar todos os seus impulsos mais naturais,
levando dentro de si o sangue “impuro” da mãe – “Alguma coisa em mim estava errada, mas
eu não sabia dizer o quê.” (p.17) –, apenas consegue empurrá-las para o fundo de si, quando
voltam, mais revigoradas e aterrorizantes, sob a forma daquele indefinível verme, estudado
152

também em outro capítulo, admitidas várias possibilidades de interpretação anteriores que se


rematam de uma forma acabada na idéia de sombra pessoal: “Como coube em mim essa coisa
imensa? Que comunhão foi a nossa?”(p.139). Na introdução à primeira parte dos estudos de
Ao encontro da sombra, a definição desse mecanismo psíquico vem ao encontro da
extraordinária imagem presentemente analisada:

Por ser contrária à atitude consciente que escolhemos, não permitimos que a
sombra encontre expressão na nossa vida: assim ela se organiza em uma
personalidade relativamente autônoma no inconsciente, onde fica protegida e
oculta. Esse processo compensa a identificação unilateral que fazemos com
aquilo que é aceitável à nossa mente consciente. (ZWEIG, ABRAMS, /s.d./,
p.28)

São ainda as palavras de tais psicoterapeutas junguianos que vão elucidar com
perfeição a natureza dessa tão surpreendente e expressiva ferramenta artística posta em
atividade para imprimir ao enredo propriedades do fantástico e que, desse modo, consegue
exceder a simples representação da referida figura psíquica:

Ao longo da história, a sombra tem surgido (através da imaginação humana)


como um monstro, um dragão, um Frankenstein, uma baleia branca, um
extraterrrestre ou um homem tão vil que não podemos nos espelhar nele –
ele está tão distante de nós como uma górgona. (p.19).

O verme materializa todos os medos – “Somos como dois bichos acuados. Um


embutido no outro.” (p.138) – e a rejeição que sentia por si mesma – “Num espasmo de
vômito consigo expelir o resto de uma só vez.” (p.139) – e que, “parido” pela boca, principal
veículo manifestador da razão, parece querer devorá-la, reintegrar-se como sombra, com
todas as suas características recusadas, como atitude inconsciente oposta a que adota na
consciência: “Meu habitante e eu somos a única criatura viva neste quarto.” (p.141)
Expressão perfeita do sentimento que a domina no que se refere a tais qualidades
negativas reprimidas, ou seja, à sua sombra configurada no verme, é o trecho a seguir
transcrito, que institui uma vinculação entre duas situações sem um relacionamento aparente,
só estabelecida pelo significado aqui reconhecido: “Levanto-me com dificuldade, estou
pesada, se baixar os olhos verei meu estômago inchado, como grávido.Tenho a boca cheia de
saliva, de nojo. Minha avó cuspiu no caixão de Anemarie.” (p.130).
153

Como se pode constatar, a gestação daquela misteriosa criatura – particularidades a


custo refreadas –, requer um dispendioso processo de censura, o que implica muito
sofrimento:

Para Jung e seus seguidores, a psicoterapia oferece um ritual de renovação


pelo qual a personalidade da sombra pode ser percebida e assimilada,
reduzindo assim seus potenciais inibidores ou destrutivos e liberando a
energia vital positiva que estava aprisionada. (ZWEIG, ABRAMS, /s.d./,
p.28)

É sob essa perspectiva, ou seja, motivada pelo ignorar dessa cobrança da parte
inconsciente inadequadamente recalcada – “A colaboração do inconsciente é sabia e orientada
para a meta, e mesmo quando se comporta em oposição à consciência, sua expressão é sempre
compensatória de um modo inteligente, como se estivesse tentando recuperar o equilíbrio
perdido.” (JUNG, 2000b, p.275) – que se pode entender muito das circunstâncias finais do
texto: “Devagar, meu habitante se vira, o leite acabou mas ele ainda está faminto, vira-se na
minha direção, balançando pesadamente a parte erguida do corpo.” (p.141).
Cabe, ainda, voltar ao Menino de O ponto cego, elemento a inaugurar esse segmento e
que mais uma vez surpreende como materialização ficcional da sombra, surpreendida uma
vez mais na mesma engenhosa metamorfose teriomórfica que se estabelece, agregando,
mutuamente, qualidades: “Meus cílios devem estar caindo porque meu olhar já não é o
mesmo, os vermes não têm cílios, vou me parecendo com eles; meu cabelo também anda mais
ralo.” (p.97)
A ambígua Lilith, de A sentinela, é a quarta personagem deste segmento de capítulo
que traz para o texto de Lya Luft a questão do eu social e do eu oculto. A ambigüidade se
estabelece pelo fato de que ostenta qualidades positivas e sedutoras para pais, amigos e na
escola, e tem reconhecido seus atributos negativos por muito poucos, principalmente pela
irmã mais nova, que, apesar de tudo – e é justamente sobre esse aspecto que a avaliação deve
ser focada –, desenvolve sobre ela sentimentos, seja de medo, inveja ou de profunda
admiração, mas que funcionam, em todo o transcurso textual, como um constante elemento
adulterador sobre os fatos trazidos do passado:

Sentia-me um pouco vingada, vendo Lilith infeliz: então, ela também era
vulnerável. Mas quando morreu, dias depois, o remorso bafejou minhas
costas.
Assim, eu a tornei imortal. (p.51)
154

Do mesmo modo que a personagem principal de A asa esquerda do anjo, a narradora


Nora se autodefine como rejeitada por sua família, principalmente por sua própria mãe:
visualizada por elas em suas propriedades indesejáveis traça para si uma trajetória narrativa de
vítima sem defesa. Ao contrário, sua irmã, para quem a narradora desenha um perfil pouco
lisonjeiro, é o modelo ideal de pessoa para os demais olhos sociais. Desse modo, ambas
apresentam uma dupla face, uma vista pela maioria das pessoas e outra quase sempre avaliada
em uma radicalizada tendência subjetiva por essa voz enunciadora. É a respeito dessa
ambivalência que se deve refletir.

A conseqüência da projeção é um isolamento do sujeito em relação ao


mundo exterior, pois em vez de uma relação real o que existe é uma relação
ilusória. As projeções transformam o mundo externo na concepção própria,
mas desconhecida. Por isso, no fundo, as projeções levam a um estado de
auto-erotismo ou autismo, em que se sonha com um mundo cuja realidade é
inatingível. O “sentiment d’incomplétude”[sentimento de incompletude] que
daí resulta, bem como a sensação mais incômoda ainda de esterilidade são
explicados de novo, como maldade do mundo ambiente e, com este círculo
vicioso, se acentua ainda mais o isolamento. (JUNG, 2000a, p.7-8)

Novamente pode-se citar a protagonista de A asa esquerda do anjo, que, embora tenha
como seu oposto um ideal de positividade encarnado na prima, como Nora, cria para si uma
sensação de insulamento em relação ao mundo exterior : “Um universo lírico, amores apenas
aludidos, tudo limpo, majestoso. Um mundo onde cabia alguém como Anemarie, que eu
ficava namorando de longe.” (p.69)
Murray Stein (/s.d./, p.100) define com exatidão esse comportamento tão bem recriado
na ficção, o que confere à obra uma tão sólida coerência interna:

Essa estratégia defensiva, é claro, exclui a possibilidade de usar a


experiência para adquirir o conhecimento consciente de características da
sombra e lograr uma integração dessas. Em vez disso, o ego defensivo
insiste em adotar uma postura farisaica de satisfação consigo mesmo,
colocando-se no papel de vítima inocente ou simples observador. A outra
pessoa é o monstro cruel, enquanto que o ego se sente como um inocente
cordeiro. É de tal dinâmica que são feitos os bodes expiatórios.

Se há personagens cuja opinião sempre é colocada sob suspeita – “Eu sabia que meu
pai nunca voltava atrás quando Elsa o persuadia a fazer qualquer coisa, insistindo com sua
voz pipilante; e ela estava sempre cansada de mim, de minha rebeldia, meu relaxamento.”
(p.14) – , aos poucos, sob as palavras de outras mais valorizadas, como o amado João, ou
155

através de sua própria avaliação, começam a vir à tona características que esse eu hesita em
revelar:

Mateus continuava recitando meus males:


- ...é uma menina rebelde, desorganizada, tem poucas amizades, é péssima
aluna. (p.60)

- Mas que bobagem, Nora. Vocês eram meninas, que mulher qual nada.
Aliás, ela tinha alguma coisa de rapazinho...não sei. Você, sim, era uma
menininha mal-comportada, pensa que eu não via? (p.80)

Meu boletim era sempre ruim. Meus cadernos traziam à margem, em tinta
vermelha: “letra horrível”, e Mateus me fazia praticar caligrafia na
escrivaninha de tampo verde-escuro, de vidro, em seu escritório. (p.19)

Não me adaptei; não me deixei disciplinar; sonhava em ser expulsa da


escola. Mas foram mais obstinados que eu, mais pacientes. Minhas notas
continuaram péssimas; nem autoridade nem bondade me comoviam.(p.62)

Adulta, a protagonista mantém tal rotina de indisciplina e irresponsabilidade – “- Você


não cansa de viver em casa, lendo, vendo televisão, desenhando, ou saindo com amigas?”
(p.81) –, que gera as advertências daqueles que mais a amam, João e Olga, o que permite
lançar a dúvida sobre a imagem de vítima construída ao longo de todo o desenrolar do enredo:

-E que você quer que eu faça? Trabalhe numa loja? Num banco?
-Não sei. Faça algo de que goste...E se voltasse a estudar? Faça uma
faculdade. (p.83)

Em contrapartida, sob igual julgamento favorável feito por muitas das demais
personagens sobre a irmã – “Lilith não parecia ter problemas: era excelente aluna, embora eu
nunca a visse estudar; seu quarto estava sempre arrumado; nunca discutia com nossa mãe, e,
embora desobedecesse sempre, não levava castigo.” (p.19) –, pode-se surpreender ainda a
mesma opinião em Nora, a parte infeliz: “A mente brilhante, muito acima de sua idade, dava-
lhe um ar de adulto escondido num corpo miúdo; sem ser bonita, era atraente, todos a elegiam
a mais bonita da aula ou da escola; e não havia explicação para isso. Pois eu também a
considerava inigualável.”(p.19)
Equacionada sempre dentro de uma dimensão supervalorizadora – “Continuava em
nossa vida como num pedestal, Serafim nos braços, meus pais, arrasados, prestando-lhe a
homenagem de sua dor. Eu a um canto, espiando, solitária.” (p.58) – , o que, como preferida
da mãe, possibilita estender até Lilith a visão desfiguradora do arquétipo, em alguns
momentos é reduzida à sua proporção de menina adolescente:
156

Em algumas coisas, porém, era uma menina como as outras; colecionava


vidrinhos de perfumes vazios, de Elsa; pedras coloridas; uma rã num vidro
tapado com tecido fino “para poder respirar”; adorava uma bola de cristal
que dizia ser presente de uma professora, mas sempre desconfiei que era
roubada; e um dia me mostrou um retrato de João, naquele tempo já rapaz,
magro e alto, que nos devia julgar um bando de meninas bobas. (p.49)

É ainda Olga, a saudável e equilibrada irmã, que, apesar de não ter também sobre
Lilith uma apreciação isenta, mantém, normalmente, sua opinião sobre ela restrita às devidas
proporções:

Olga não dava muita importância a Lilith:


- Eu a achava uma menina sempre presa na saia da mãe, magrela, doentia.
Ela era chata? Esqueça. Pense em você hoje. Livre-se dessas fumaças do
passado, da infância, Nora. Elsa era histérica, sua irmã meio maluca,
esqueça. (p.20)

Mas é através da convivência de Lilith e Nora que se descortina a fonte dos


sentimentos avaliativos da segunda sobre a irmã, mais velha e “estranhamente auto-
suficiente” (p.46): é possível se compreender que a outra funcione para a narradora como a
encarnação de sua verdadeira sombra repelida, oculta para si e divisada pelos demais, que, tal
qual a Alice do espelho – “Mas tudo o que eu queria era ser notada; era ser sua igual; que me
fizesse cúmplice, até mesmo de suas maldades.” (p.48) –, a convoca e seduz. Com um ego
fraco, como se percebe no anseio sobre João – “Tudo o que eu queria era alguém que fosse o
centro de minha vida, e que por sua vez girasse em torno de mim.” (p.82) –, ela é facilmente
atraída por esse componente da personalidade que a convivência social ajudou a empurrar
para o oculto psíquico e que enxerga, justificadamente ou não, nas atitudes da outra:
“Ninguém parecia entender minha fascinação por Lilith, meu desejo de falar nela, de ser
Lilith: temida, não ignorada; indefinida talvez, mas não boba; astuta, não rejeitada. Lilith
sabia instilar veneno nas pessoas.” (p.21).
As palavras de Jung (2000a, p.7) são sempre o depoimento a que se deve recorrer para
se chegar ao esclarecimento seguro desse profundo relacionamento entre as duas personagens,
que vai além do fraterno em A sentinela:

Os traços característicos da sombra podem ser reconhecidos, sem maior


dificuldade, como qualidades pertinentes à personalidade, mas tanto a
compreensão como a vontade falham, pois a causa da emoção parece provir,
sem duvida alguma, de outra pessoa. Talvez o observador objetivo perceba
claramente que se trata de projeções. Mas há pouca esperança de que o
sujeito delas tome consciência.
157

Christine Downing, em seu artigo “Irmãs e irmãos lançando sombras” (in ZWEIG,
ABRAMS, /s.d./, p.90), comentando o estudo do articulador da psicologia analítica,
complementa de forma definitiva o entendimento da vivência entrelaçada das duas
personagens:

A sombra é relevante ao nosso interesse nos irmãos/ irmãs porque Jung diz
que nos mitos, na literatura e nos sonhos, a sombra é geralmente
representada como um “irmão”. Jung sentia um fascínio especial pelo que
chamava “o tema dos dois irmãos hostis”; um tema que, para ele,
simbolizava todas as antíteses e, de modo especial, as duas abordagens
opostas no trato com a influência poderosa do inconsciente: negação ou
aceitação, realismo ou misticismo.

Como fica claro, toda a caracterização de Lilith é dada ao leitor através do filtro usado
pela protagonista, como já observara o namorado João – “- Lilith não tem nada a ver com
isso. Não bote sempre nos outros a culpa pelo que lhe acontece.” (p.87) –, guardando a
personagem luftiana as características atribuídas normalmente à sombra: “Todos os
sentimentos e capacidades que são rejeitados pelo ego e exilados na sombra contribuem para
o poder oculto do lado escuro da natureza humana” (ZWEIG, ABRAMS, /s.d./, p.16).
E não é por acaso que a Lilith mítica, com quem reparte o nome, tem as mesmas
qualidades noturnas de sombra, em quaisquer de suas versões, como se vê, explicitado por
Bárbara Black Koltuv (/s.d./, p.23), em seu O livro de Lilith:

Desse modo, Lilith, proveniente da diminuição da Lua, expulsa do céu, a


qualidade feminina negligenciada e rejeitada, torna-se a Noiva do Diabo, a
sombra feminina transpessoal. Lilith é como um instinto renegado enviado
por Deus para viver nas regiões inferiores, isto é, em convívio com a
humanidade.

Uma outra versão, que pode ser encontrada não só no livro anteriormente citado, mas
também em A deusa tríplice (MCLEAN, 1998) diz que Lilith foi a primeira esposa de Adão,
feita como ele do pó da Terra e está presente nas lendas patriarcais do Talmud como uma
figura malévola que buscou igualar-se a ele, querendo participação nos prazeres sexuais.
Quando Adão a quer subjugar, profere o inefável nome de Deus, indo habitar uma caverna no
deserto, unindo-se a demônios lascivos. Como resquício da antiga tradição da deusa pré-
patriarcal, foi invertida e transformada em figura do mal, patrona de maléficos íncubos e
súcubos.
158

O conceito que cerca a figura de Lilith, representação coletiva da sombra individual


também está profundamente entranhado no próprio psiquismo da protagonista: “Uma vez
perguntei a Elsa, muito mais tarde, onde achara este nome: Lilith. – Respondeu depressa que
era nome de princesa, um romance que lera durante a gravidez. Mas eu sabia que era nome
trevoso.” (p.46). Valendo-se de tal conceito, em todos os detalhes, compõe para aquela um
oposto de si, carente de atenção e afeto. Deve-se relembrar que as principais opiniões
valorativas a respeito da irmã, ou seja, demoníaca, sedutora, dissimulada, inteiramente
correspondentes à Lilith primordial – “Nunca entendi essa devoção canina que alguns de nós
tínhamos por ela, essa complacência com seu lado perverso, o lado noturno que toda criança
tem, mas nela dominava.” (p.47) –, são emitidas por ela, que desse modo, pode estar
dividindo com a outra atributos próprios ignorados, que são, porém, verdadeiramente seus:

E, quando cresci um pouco, começou a me castigar por coisas que eu não


tinha feito; que Elsa inventava ou exagerava, para me ver punida. Eu não
podia escapar do seu controle, mas simplesmente me recusava a obedecer.
Em vez de ficar disciplinada, relaxava cada vez mais; em lugar de arrumar
minhas coisas, deixava tudo jogado; e quando ela vinha, com seu passinho
enérgico, de longe reclamando, criticando, eu ficava tesa, e quieta, olhando
para ela, dura como se fosse pedra. Eu queria ser uma estátua de pedra, para
que nada mais me atingisse. Teria um punho enorme, com o qual a poderia
esmagar. (p.66-67)

Em alguns poucos momentos, mas que instauram a perplexidade do leitor sobre todo o
conjunto de circunstâncias narradas por Nora, desponta sua verdadeira auto-avaliação, suas
atitudes reais e a possibilidade de se detectar um caráter que tenta se esconder atrás da figura
da irmã mais velha:

-Você acha que foi uma filha ingrata?


-Não sei. Nem sei se ela era tão ruim quanto me parecia. Talvez
simplesmente não soubesse o que fazer comigo; eu era feia, tímida e
revoltada. Rebelde, vivia de castigo. (p.29)

Sempre dominada por sentimentos afetivos incontrolados quando se trata da irmã, o


que em si já denota subentendidos que vão além da superfície da consciência – “Lino era
amigo de Lilith; é um homúnculo sinistro e mal-educado, porque nunca fala comigo, nem
respondeu às perguntas que lhe fiz. Lino me dá raiva; e medo.” (p.150) –, é, mais uma vez, o
depoimento esclarecedor de Jung (2000a, p.7) que pode renovar a incerteza sobre a
imparcialidade de Nora e de sua verdade particular: “Nesta faixa mais profunda o indivíduo
se comporta, relativamente às suas emoções quase ou inteiramente descontroladas, mais ou
159

menos como o primitivo que não só é vítima abúlica de seus afetos, mas principalmente
revela uma incapacidade considerável de julgamento moral.”
A dificuldade de se avaliar, de forma definitiva, Lilith ou Nora vai se tornando mais
vigorosa quando se atenta para o fato de que semelhante indecisão se imiscui no discurso
enunciativo, o que faculta ao leitor o mesmo tipo de disposição:

Ele me olha de baixo, rapidamente, uma ratazana encolhida, um brilho


maléfico (ou é sempre a minha imaginação agindo quando se trata de
Lilith?)... (p.149)

Não raro imagino se a Lilith que eu via não era fruto dos meus medos, mito
criado pela minha timidez. (p.21)

O trecho de Jung a seguir transcrito, selecionado de sua obra já citada, permite avaliar
a fonte de onde provém o severo julgamento enunciado pela personagem central – “Mas
ninguém amava Lilith: ficava-se hipnotizado.” (p.50):

Uma pesquisa mais acurada dos traços obscuros do caráter, isto é, das
inferioridades do indivíduo que constituem a sombra, mostra-nos que esses
traços possuem uma natureza emocional, uma certa autonomia e,
conseqüentemente, são de tipo obsessivo, ou melhor, possessivo. (2000a,
p.6-7)

A justeza do comentário no que diz respeito à construção das personagens analisadas,


encaminha a controvertida Lilith, como se comprova nos exemplos subseqüentes, ao encontro
do verme de A asa esquerda do anjo, aquela figura que, ao final, parece desejar devorar,
igualmente, aquela que conduz, ali, por seu turno, o discurso narrativo:

Então, ela está aí: a sombra; vem lá de trás, desenrola-se, enrosca-se nos
meus calcanhares. (p.35)

Assim, mesmo morta, decomposta e esquecida por quase todos, Lilith


continuou a me perseguir. (p,13)

Volto ao meu quarto, quase correndo; instintivamente, como quando eu era


menina, viro-me uma vez, na escada, não há nada atrás de mim, ali? (p.116)
160

As implicações psicológicas profundas desse embate com o exterior que desenvolvem


a persona e a sombra e que vêm sendo discutidas neste segmento devem ser observadas em
uma outra forma que adquirem e constituindo um dos aspectos significativos mais sutis na
obra, e cujo manuseio ficcional, portanto, é responsável pelos efeitos narrativos mais
criativos: a homo-afetividade.
Fora do aproveitamento artístico, os especialistas no campo específico da investigação
da mente humana já haviam surpreendido esses dois aspectos psíquicos que o convívio social
do eu assume na particularidade que ora começa a ser discutida. Para se iniciar o estudo
adequado de uma das várias possibilidades de interpretação psíquica para as relações entre
iguais, explícitas ou subentendidas, reiteradamente presentes em quase todos os romances
analisados, é pertinente se atentar para a interpretação dada pela terapeuta junguiana Sylvia B.
Perera (1985, p.72):

A ligação erótica pode permitir uma conexão íntima com qualidades


positivas da sombra às quais a mulher nunca teve acesso dentro de si mesma.
É também o retorno à possibilidade de estar intimamente religada a outrem
igual a si mesma, e que pode ratificar plenamente o feminino.
Neste domínio está incluído o mistério do amor entre mãe e filha e entre
mulheres iguais.

No entender deste estudo, este elemento literário emergente, então, assume


francamente um caráter de incesto, pelos motivos tão bem definidos nos comentários citados,
mas submetido estritamente às proporções simbólicas propugnadas pelo fundador da
psicologia analítica e que dão uma base bastante sólida de verossimilhança às intrigas
examinadas, cujo eixo é a incompletude do arquétipo materno :

Jung, por outro lado, interpretou simbolicamente o incesto como um anseio


geral de permanência no paraíso da infância. Tal anseio torna-se mais
pronunciado quando uma pessoa enfrenta um assustador desafio na vida,
crescer, adaptar-se a um meio propício ao estresse. (STEIN, /s.d./, p.66)

A prática do incesto literal entre alguns povos antigos, como os faraós


egípcios, foi entendida por Jung como sendo religiosamente simbólica,
anunciando um status privilegiado e indicando a união com uma fonte divina
de energia. Era o casamento da Mãe-como-origem da vida, não como a
realização literal de um desejo sexual. Na verdade, argumentou Jung, a
sexualidade tem muito pouco a ver com incesto. O incesto é simbolicamente
significante, não biologicamente desejado. (Ibid., p.67)
161

Na obra luftiana, o homo-relacionamento tem, além de outros aspectos menores,


caráter simbólico de preenchimento de lacuna afetiva, como se vê na Catarina de As
parceiras, para quem a presença masculina é marcada como violação. Essa noção se vê
plenamente reforçada pelo título do romance, justificando-o:

Podia ser que aquela simples enfermeira, jovem e ingênua, não tivesse
assustado Catarina, e que ela precisasse disso mais que de remédios ou
massagens: alguém que se aproximasse sem meter medo sem ditar regras,
sem espreitar ou desconfiar. Alguém simplesmente para amar, e não
importava o sexo, a condição. (p.54)

Em um momento de seu estudo, a citada terapeuta, faz alusão a sua prática médica,
narra, comentário que se mostra exemplar para a ficção:

Uma paciente sempre pintava duas irmãs se abraçando e “os dois corpos
apertados um ao outro pareciam uma só pessoa.” E ela explicava: “Duas
irmãs abraçadas fazem uma pessoa forte. E é a maneira pela qual consigo
abraçar-me quando preciso de uma mãe e não há ninguém que me ajude. Eu
a mim, como a irmã a sua irmã.” (p.73)

Para o apreciador atento é impossível não refazer a imagem visualizada na passagem


de Exílio:

Lá, bem na quina, estão elas: as Sonâmbulas de Gabriel. Abraçadas, na ponta


das velhas telhas limosas, ao mais leve descuido despencam lá embaixo.
Sustenho a respiração: deslumbramento e terror. Elas balançam, unidas,
fundidas, como um casal fazendo amor em pé, delicadamente.(p.120)

Ao levar em consideração o fato de que, como foi explicitado no item 6.3, o


acontecimento transcorre dentro de uma atmosfera de forte ambigüidade – é madrugada; a
personagem, dormindo, “acorda” em meio à experiência; o fato é encaminhado pelo equívoco
Anão; é a reprodução de um desenho visto anteriormente e que lhe causa forte comoção –, tal
leitor tem direito de imaginar que a representação parte, na verdade, de um processo psíquico
inconsciente da própria narradora que, levada pela vivência constante com o modelo
apresentado pela Moça Morena e pela Moça Loura, retira dali seu símbolo onírico
inconsciente, motivada pelo mesmo “preciso de uma mãe e não há ninguém que me ajude”,
sempre tão claramente exposto no romance, tema que já fora aproveitado em um sonho
anterior e que se caracteriza pela sensação de calma que transmite:
162

(Um céu azul claríssimo na janela; bolas translúcidas imensas, flutuam


como bolhas de sabão; alvas, feitas de uma espécie de tule engomado. A
visão me enche de doçura e paz.
Uma delas chega bem perto: inclino-me na janela para tocá-la. Dentro,
como numa gaiola, duas mulheres abraçadas, também transparentes, feitas
do mesmo material da bolha em que viajam.
Não há pressa, nem ruído algum. Tudo suspenso como se fosse eterno: as
bolas vão, voltam, giram, lentamente...) (p.71)

Mas é o excelente estudo feito em Caminho para a iniciação feminina


(PERERA,1985), a respeito do mito sumério da descida de Inana, rainha do céu e da terra, ao
mundo subterrâneo dos mortos, onde é sacrificada por sua rainha Ereshkigal, cujo nome
significa “Senhora da Grande Habitação Inferior” (p.35), que se ajusta com precisão ao
desenvolvimento, nos romances abordados, da marca persona/sombra que as ligações entre
mulheres apresentam no corpus verificado.
O motivo da descida foi largamente estudado por Jung. Psicologicamente, como
ressalta a estudiosa, há necessidade de se relacionar o mundo superior, quer saudável quer
reprimido, à sombra do mundo inferior – “Quero levantar o tema do incesto com a mãe ou a
irmã porque ele está claramente implícito na bipolaridade da deusa. Isso tem muitas
conotações para a mulher.” (Ibid., p.72) –, como um ideal de reunião do eu e sua sombra: “O
poema mostra Inana chamando Ereshkigal de irmã. Ela é sua sombra ou complemento; juntas,
as duas deusas formam o núcleo de inteireza bipolar do arquétipo feminino, a biunicidade mãe
– filha da Grande Deusa.” (Ibid., p.69).
Ainda através dos conceitos veiculados na obra mencionada (Ibid., p.78) pode-se, com
facilidade, identificar traços desse percurso psíquico descrito, utilizados com eficiência na
composição e detectáveis nas narrativas

As descidas mais profundas levam à reorganização e transformação radicais


da personalidade consciente.

Todas elas, entretanto, dão entrada a níveis diferentes de consciência e


podem, criativamente, liberar a vida. Todas implicam sofrimento. Todas
servem como iniciação. A meditação, o sonho e a imaginação ativa são
modos de descer.

É ainda o texto da analista de Nova Iorque, que continua apontando para a necessidade
de se chegar ao processo de junção do aspecto positivo e negativo, o elemento cuja gestação,
na obra de Lya Luft, está tão comprometido com o relacionamento incompleto e
inconveniente com a mãe pessoal, forjado, verdadeiramente, pela imagem da Mãe Terrível
163

que excede os limites daquela: “Não é apenas um formalismo lingüístico que faz Inana
chamar Ereshkigal de irmã” (p.73).
Observe-se aqui a profunda adequação dos comentários ao conjunto narrativo
estudado. As ligações femininas constantes – Catarina e a enfermeira, Alice e Aretusa,
Aretusa e Corália, Gisela e Anemarie – , mesmo sem desdobramentos eróticos, como é o caso
de Nora/Lilith ou Anelise e Adélia, devem ser, pois, interpretadas, não em seu aspecto sexual,
mas como incorporação dos aspectos percebidos na outra mulher, entendida como “irmã”,
como “a outra deusa da bipolaridade” psíquica que conduz à completude:

Era ela, os seios pontudos e o sexo pintado de louro, que me perturbava


assim; suas histórias, seus gestos inquietantes; ela invadia a solidão da minha
vida seca e miserável e esconjurava outra Alice. Não eu, a filha do Professor,
criada com tanta severidade, não eu! Uma Alice suja, louca, pervertida, má.
Uma cadela, seios balouçantes e sexo quente. (RF, p.113)

Contemplo-a embevecida, saboreio sua presença. De repente, uma vontade


intensa e terna de me aproximar, de encostar minha boca nos lábios cheios e
macios. Apenas encostar as bocas – o que naturalmente não farei. Mas a
vontade me perturba, por um momento me deixo embalar. (AAEA, p.71)

Seguindo seu destino artístico, a criação literária em Lya Luft transpõe os limites que à
realidade são impostos e consegue relacionar significativamente, embora com efeitos muito
diversos, ações humanas de conexões inimagináveis, eficácia que só a linguagem que se vale
de símbolos logra conseguir, como a utilizada normalmente pelo inconsciente:

Este incesto sugere cuidados e proteção a nível urobórico, ao nível dos laços
simbióticos que firmam a mulher em sua auto-estima, permitindo-lhe ir em
frente com sua alma feminina, livre das amarras do coletivo exterior. Isso
freqüentemente emerge junto com imagens referentes a comer alguma coisa,
incidentalmente a própria terapeuta, para absorver fragmentos da alma que
ainda são vistos apenas no espelho da outra componente da díade.
(PERERA, 1985, p.73)

Levando-se em consideração o fato de que a terapeuta citada, como representação


hierárquica de superioridade, pode equivaler arquetipicamente à mãe, chega-se, com
facilidade, à cena de A sentinela:

Uma vez, uma única, nos primeiros meses, mandou-me, por uma colega que
fora passar uns dias em nossa cidade, um bolo de chocolate. Era um bolo
escuro, úmido e muito doce. Foi um dos meus momentos de fraqueza: eu,
que vivia encarniçada, fechada e dura, devorei o bolo sozinha, sentada sobre
a cama na minha pequena cela separada de dezenas de outras, no dormitório,
164

por biombos de pano branco. Comia e chorava, engolia enormes bocados


daquele doce como se quisesse enfiar minha mãe dentro de mim, para que
fosse minha, e me amasse, e me conhecesse. (p.62)

É nesse aspecto que se surpreendem as probabilidades abertas pelo símbolo: reunir, de


forma verdadeira, mas em que a emoção provocada anula qualquer possibilidade racional,
aspectos tão díspares como homo-afetividade e a devoração do bolo materno, organizando
estreitas afinidades no texto.
No entanto o “enfiar minha mãe dentro de mim” passa a funcionar para olhos
cuidadosos como a chave para um possível código que já começara a ser proposto a partir de
Gabriel de Exílio, o bebê rejeitado pela mãe, que, após o seu suicídio, aos poucos, enlouquece.
Como a personagem de A sentinela, também teria tentado, ao mamar no “...seio de que tanto
precisara e que lhe fora recusado.” (p.77), “enfiar” a mãe já morta dentro de si? É assim,
como a irmã que urina na mãe, num misto de “alegria e humilhação profunda”, num ato
característico de “descomer a mãe” que, com o tempo, Gabriel passa a desenvolver a mania
de se envolver nos próprios excrementos. Até o momento em que isso se traduz de forma
nítida no vocábulo “mãe” escrito com fezes na parede, desdém e apelo. Reforçadora desse
aspecto é a pergunta do Menino de O ponto cego, igualmente abandonado pela mãe: “(O que
eu escreveria com fezes na parede, se fosse um anjo doente?)” (p.146).

6.7 O ser esfacelado

São ainda as palavras esclarecedoras de Jung que introduzem este subcapítulo, quando
analisa o mandala18 tântrico, diagrama composto de círculos e quadrados, muito usado em sua
terapêutica, como mecanismo ordenador de caos interior, o qual o analista identifica como
uma manifestação simbólica de conteúdos psíquicos:

Seu tema básico é o pressentimento de um centro da personalidade, por


assim dizer um lugar central no interior da alma, com o qual tudo se
relaciona e que ordena todas as coisas, representando ao mesmo tempo uma
fonte de energia. A energia do ponto central manifesta-se na compulsão e
ímpeto irresistíveis de tornar-se o que se é, tal como todo organismo é
compelido a assumir aproximadamente a forma que lhe é essencialmente
própria. Este centro não é pensado como sendo o eu, mas se assim se pode
dizer, como o si-mesmo. Embora o centro represente, por um lado, um ponto
mais interior, a ele pertence também, por outro lado, uma periferia ou área
circundante, que contém tudo quanto pertence ao si-mesmo, isto é, os pares

18
Em sânscrito, significa círculo.
165

de opostos que constituem o todo da personalidade. A isso pertence a


consciência, depois o assim chamado inconsciente pessoal, e finalmente um
segmento de tamanho indefinido do inconsciente coletivo, cujos arquétipos
são comuns a toda a humanidade. (JUNG, 2000b, p.353)

O si-mesmo mencionado é, na verdade, o “todo da personalidade”, o centro regulador


da psique total, onde se inclui, além da parte consciente, a inconsciente. Jung caracteriza-o
como “personalidade supra-ordenada”, visto que é o ser humano total e não deve ser
confundido com o eu, porque este, como se sabe, só vai até onde chega a consciência. O eu,
então, está para o si-mesmo assim como a parte está para o todo.
O si-mesmo não é sentido como sujeito pelo eu, mas como objeto e isto devido à sua
parte inconsciente, que só pode chegar indiretamente à consciência, via projeção.
Como todos os arquétipos, o si-mesmo também tem um caráter paradoxal. É ao
mesmo tampo masculino e feminino, velho e criança, poderoso e indefeso, grande e pequeno,
ou seja, é uma perfeita convivência dos opostos, representando a totalidade, que compreende
também o inconsciente, o qual, como a consciência, tem suas exigências e necessidades
vitais.
Jung, que estudou profundamente os processos alquímicos, viu neles uma verdadeira
simbologia da dinâmica psicoterápica em direção à totalidade, objeto principal de sua própria
prática e, dessa maneira, confirmação para suas conclusões e, aproveitando muito daquela
terminologia em sua teoria analítica, diz que “Como revela a alquimia, o si-mesmo é um
andrógino, constituído de um princípio masculino e um feminino.” (JUNG, 2000b, p.359),
valendo-se, do mesmo modo que aquela filosofia alquímica, do hermafrodita platônico, ser
completo e, portanto símbolo da totalidade.
A unidade conseguida por intermédio da anexação do inconsciente, a qual se tornou a
meta de seus estudos e terapia, foi reconhecida, empiricamente, em um simbolismo circular e
quaternário, que se faz presente, não só na filosofia em que aparece inicialmente, mas também
em sonhos ou desenhos de seus pacientes, produzidos em determinadas circunstâncias, de
forma espontânea ou autônoma, sob a forma de um princípio ordenador compensatório, os
mandalas, tal qual se observou antes.
Essa união perfeita dos opostos, equivalente a um estado de inconsciência, era a
característica dominante na mente primitiva. Porém, à medida que o processo da consciência
foi se desenvolvendo no ser humano, a diferenciação entre tais pares, e até entre
sujeito/objeto, foi se estabelecendo. Se a emergência da consciência torna-se a condição sine
qua non para a sobrevivência em um mundo hostil, advém daí, por outro lado, uma
166

unilateralidade do ego que se afasta de sua condição instintiva animal e o induz, muitas vezes,
a uma racionalidade excessiva e indesejável, tanto individualmente como em termos de
condição coletiva da espécie. “Eu não queria ser como meu Pai, que pensa que tudo controla
mas deixa escapar o essencial.” (p.16), revela, com a sabedoria instintiva de uma criança, o
Menino de O ponto cego.
Grande parte dos estudos junguianos e de sua prática analista foi dedicada a reconduzir
seus pacientes de meia-idade ao encontro dessa humanidade arcaica perdida, à unidade
necessária, à síntese de dados conscientes e inconscientes: “Uso o termo ‘individuação’ no
sentido do processo que gera um ‘individuum’ psicológico, ou seja, uma unidade indivisível,
um todo.” (JUNG, 2000b, p.269).
É citando ainda, talvez, a principal das inúmeras fontes a que recorreu que completa:

É também nesta fase que se relembram e se compreendem os símbolos


originais da infância.19 Os alquimistas que, a seu modo, sabiam muito mais
a respeito da natureza do processo de individuação do que nós, da Idade
Moderna, expressaram esta situação paradoxal, desde épocas remotas,
mediante a figura da serpente que morde a própria cauda. (JUNG, 2000a,
p.180-181)

O processo a que Jung chamou de individuação, assim, consiste na integração do si-


mesmo, em se fazer o ego se relacionar com as forças arquetípicas, conduzindo a
personalidade em direção à totalidade através das sizígias, isto é, da conjugação simbólica dos
pares de opostos, como a união feminino-masculino (anima-animus), a qual, tendo muitas
relações com outras oposições, é uma das representações mais importantes e freqüentes desse
processo: ego e si-mesmo; persona e sombra; consciente e inconsciente.

6.7.1 Os gêmeos: as metades da unidade

Para se fazer uma sondagem completa do tema proposto neste capítulo, ou seja, o
estudo do esfacelamento interior da unidade do ser, é indispensável a visita a O quarto
fechado, dado seu caráter de texto indiscutivelmente comprovador das conclusões até então
desenvolvidas sob o aspecto ora discutido. Quarto romance da autora, encaminha o leitor e o
estudioso para trás e para adiante no conjunto de sua obra, pelo fato de que ali se vê
explicitada a desagregação a que um psiquismo pode chegar, o que já vinha sendo apontado
nos outros textos, como se viu anteriormente: “Então embriagava-se de música, e de solidão,

19
Os símbolos surgidos nos sonhos iniciais da infância: circulares e quaternários.
167

quando conseguia: deteriorava-se, lentamente, debatia-se, estou caindo aos pedaços, percebia,
estou me desmanchando como coisa que cai na água e fica empapada, pesada, mole.
Repulsiva.”(p.29).
Por esse caminho, chega-se a um símbolo, resistente no tempo, dessa totalidade, cuja
perda vale como um subtema das narrativas enfocadas, o uróboro ou uroboros, da alquimia
grega, assim conceituado:

O uroboros, a imagem da serpente circular que morde a própria cauda –


como foi minuciosamente apresentado em outra ocasião –, é o símbolo do
estado psíquico inicial e da situação primordial, em que a consciência e o
ego do ser humano ainda são infantis e não-desenvolvidos. O símbolo da
origem e dos opostos nela contidos é o “Grande Círculo” no qual se fundem
e interpenetram o positivo e o negativo, o masculino e o feminino, os
elementos pertinentes à consciência – e os hostis a ela – e os elementos
inconscientes. Nesse sentido o uroboros também é um símbolo da ausência
de diferenciação entre o caos, o inconsciente e a totalidade psíquica, a qual
será vivenciada pelo ego como estado limítrofe.
A totalidade urobórica, que também surge como símbolo dos pais
primordiais unidos, os quais se dividem posteriormente na figura do Grande
Pai e da Grande Mãe, é assim o exemplo mais perfeito do “arquétipo
primordial” indiferenciado. (NEUMANN, /s.d./, p.31).

A idéia de uma ponta – de um ser ou de uma situação – que se liga a outra gera a
imagem aqui caracterizada, fazendo com que essa, na verdade, ultrapasse as fronteiras do
símbolo e virtualize em si, mil possibilidades narrativas, o que tem seu significado
amplamente aproveitado na montagem estrutural de praticamente todos os textos luftianos: “O
meu homenzinho mutilado tomou a minha morte; usurpou a minha liberdade, me obriga a
completar o círculo da minha procura aflita.” (E p.197). É sobre tal recurso que se definem
praticamente todos os enredos: sempre uma volta ao passado na tentativa de, decodificando os
processos pelos quais uma vida de sofrimento se estabelece, unir dois pólos temporais.

A sensação de conforto move-se nas minhas entranhas, torna meu corpo


leve, arrepiada a pele: é a sensação de ter voltado para casa, fechado um
ciclo, concluído uma fase importante de uma complicada tapeçaria. (AS,
p.12)

Sob os aspectos que ora se examinam, é nesse marco, o qual O quarto fechado se
torna, então, que tal símbolo, acrescido, dessa forma, da capacidade de ser mecanismo
estrutural do encaminhamento narrativo e que seria utilizado como uma constante, aparece
168

como uma revelação inevitável em duas passagens, nomeando aquilo que já se entrevia de
forma indireta:

No fundo do poço encontrei o enlace, a Vida e a Morte, masculino e


feminino, o Eu e o Outro, entredevorando-se como uma serpente que engole
a própria cauda. (p.118).

A vida: serpente voltando para dentro de si mesma, começo e fim, masculino


e feminino, prazer e destruição. (p.125).

O uróboro alquímico, reabilitado pela literatura, em tempo e local tão diversos de sua
origem, prova, como salientou Neumann, seu arcaico vínculo com o psiquismo humano e sua
não comensurável força de representação.

O Uróboro, que devora sua própria cauda, é um símbolo drástico para a


assimilação e a integração do oposto, isto é, da sua sombra.
Simultaneamente esse processo circular é explicado como um símbolo da
imortalidade, isto é, da renovação constante de si próprio, pois se diz do
Uróboro que ele a si mesmo mata, vivifica, fecunda e pare. Desde muito
antigamente ele representa o Um que provém da união daquilo que luta
contra si mesmo e que por isso constitui o mistério da prima matéria, a qual
como projeção, provém indubitavelmente do inconsciente humano. (JUNG,
1990, p.117)

Utilizando-se as palavras do analista ainda como guia de entendimento, torna-se


possível perceber como o perfeito domínio criativo da escritora é capaz de explorar,
magistralmente, todo esse poder expressivo potencial na montagem da organização de seus
textos:

Estou tendo que renascer mais uma vez. Mais uma tormenta, um parto: a
dor, o medo o que virá agora? (OQF, p.132)

Já chorei assim alguma vez, eu, que tenho chorado tanto? O choro de quem
dá a luz a si mesma, abre as pernas dolorosamente e sai dali entre gemidos
fundos, sangue e gosma. (E, 198)

Voltei, sentindo-me estrangeira. Voltei mais velha, como se tivessem


passado anos. Nesse parto de mim mesma, sempre incompleto porque só
morrendo se termina de nascer, eu não distinguia a dor física da psíquica.
(AS, p. 117)
169

O quarto fechado é também o romance onde se nomeia pela primeira vez uma
característica que já marcava várias personagens e que sinaliza o caminho o qual conduz a
uma leitura descompromissada com o rígido percurso realista, permitindo um flexível
encontro com a recriação das camadas mais profundas da psique e suas manifestações
intangíveis: “‘Ela tem um dom’, haviam comentado em família quando revelara uma precoce
vocação musical. Tratavam-na como a uma pessoa especial e, sem falsa vaidade, ela pensava:
Não sou uma pessoa como as outras. Sou uma artista.” (OQF, p.21)
O alcance dessa citada virtude, como já se viu anteriormente, ultrapassa o espaço
delimitado do musical. Ao contrário, a posse dessa “vocação” revela-se, em Lya Luft, como
já se vira desde Otávio de As parceiras, como um outro poder bem menos entendido e aceito
socialmente. As palavras de Rosa, a que “conhece coisas que poucos percebem” (p.34), sobre
a nebulosa irmã de Nora, em A sentinela, cujo comportamento, em seu texto, pauta-se por
uma completa instabilidade e por uma impossibilidade de apreensão, conduzem o julgamento
do leitor por essa mesma estrada movediça: “Rosa, que entende dessas coisas, viu fotografias
e conhece o quadro de Lilith com seu gato na sala de minha mãe, me disse que Lilith ‘tinha
um dom’; quando tentou me explicar, desistiu, e eu não quis ouvir.” (p.20).
O Menino de O ponto cego – “Mas a verdade é que em algum momento meu passo
falhou; se tive dons eu os confundi, apertei botões errados, desestruturei o que pretendia
construir.” (p.150) –, finalmente, é a personagem que termina por indicar com exatidão o
significado com que esse termo é empregado, confirmando, de forma inquestionável, a
reconstrução, na obra, de um lugar que vai além do puramente físico. Deve-se, inclusive,
ressaltar que o comentário feito por intermédio do enunciado e sobre ele, se torna um discurso
metalingüístico, devido ao fato de parecer ocultar o pensamento do ser criador, que,
apropriando-se também desse espaço não apreensível pelas leis naturais e onde se movimenta
com desenvoltura, se vê assimilado, assim, à sua criatura: “(O inventado é o dom dos que não
acreditam demais no comprovado. Sete pode ser um número par: basta que a gente
acredite.)” (p.53)
Se o “dom” arrogado à personagem central do último romance anula a pura vinculação
artística ao termo, igual comentário se pode fazer relativamente aos filhos de Renata no
mesmo O quarto fechado: “Eles tinham um dom, pensou Renata, lutando para não chorar
mais. E o desenvolveram muito melhor do que o meu.” (p.36)
São essas duas personagens, Carolina e Camilo – “A primeira abertura, possibilidade
de outro contato, fora daquele círculo onde girava com sua outra metade desde antes do
nascimento.” (p.23) –, que se tornam o objeto da reflexão que aqui se inicia, embora esta se
170

prolongue, na verdade, em todas as considerações feitas em 6.7.2 sobre o dúbio, personagem


recorrente na obra, síntese de uma natureza dúplice que se desdobra, analiticamente, nesse
quarto romance aqui estudado, o qual vale, afinal, como atestado irrefutável das conclusões
colocadas adiante:

Tinham sido uma unidade, nada fora deles mesmos parecia interessar-lhes
grandemente, empenhados numa encarniçada, silenciosa busca de unidade.
Mas agora a Morte desferira seu bote, rompera esse círculo ao meio, e
ninguém sabia o que seria de Carolina. (p.25)

Algum dia, alguma coisa ia acontecer: previam isso, embora não soubessem
dizer. Iam fundir-se num só? A vida repartida em dois era transitória,
impossível de se manter para sempre. (p.114)

Bastante ilustrativo é o comentário feito por Luc Bernoist em seu Signos, símbolos e
mitos (1976, p.59), a propósito dos números e que vem esclarecer essa impossível presença
– “Camilo e Carolina, fruto que nascera partido em dois, dedicados a refazer essa
fragmentação que talvez lhes fosse um sofrimento: por isso teriam aqueles corpos exauridos,
os grandes olhos de quem sente dor mas nada pode dizer?” (p.26):

Primeiro será necessário assinalar a dupla natureza dos números, que se


encerra na sua ambivalência e na sua complementaridade. É preciso
distinguir sua função de cardinais, indicadores de quantidades, e ordinais,
indicadores de qualidades, distinção aparentemente elementar mas que vai
bem longe nas suas conseqüências (p.58).

Ao tratar da simbólica dos números, deve-se em conseqüência distinguir


antes essas duas linguagens opostas e muitas vezes confundidas. Assim, por
exemplo, o 2, que quantitativamente aparecia como o dobro da unidade,
qualitativamente não passa de uma de suas metades, que é necessário reunir
para reencontrar, como expressa a equação 2 x ½ = 1. (p.59).

É dentro dessa relação, unidade e metade, que se deve focalizar a personagem


protagonista e seus filhos: essas duas idéias são a base da urdidura do texto que se coloca
desde o título, metáfora de solidez e solidão, que, como uma possível referência à personagem
principal, já aponta para o perfil de Renata, suas virtualidades e fracassos posteriores:

O quadro era uma das recordações da vida antiga de Renata, uma existência
sossegada, fechada no grande aposento claro da sua música. Fora uma
menina solitária, uma adolescente quieta; não que fosse triste; apenas
disciplina e solidão isolavam sua vida. (p.19).
171

O exemplo antecipa a emergência do agente propulsor de camadas emocionais do


inconsciente, o gênio musical, questão que, se identificada nos dúbios luftianos, que parecem
guardar em si a capacidade de unidade de opostos, como se discute no próximo subcapítulo, a
eles termina por ligar Renata – “Não, ela não mentira: só o piano conseguia impor ritmo e
ordem ao caos interior que a dominaria se parasse. Talvez fosse isso mesmo, a arte:
compulsão de abismo, para manter a alma inteira.” (p.20) –, devendo ser levado em conta
todo o processo interno sofrido por ela, de tanta influência sobre o casamento, sobre o marido
– “Martim sabia que amava Renata sem esperança, sem doçura alguma: ela seria cada vez
mais tragada pelo fracasso, pela ambigüidade, pela compulsão que a impedia de ser feliz.”
(p.131) – , sobre o sofrimento dos filhos – “Morto, ele seria mais abordável? Num singular
retorno, poderia ser enfim o filho de sua mãe? Como estaria, sozinho, apartado da sua outra
metade?” (p.26), lançados, por igual modo, no mesmo vazio do arquétipo materno das
protagonistas dos outros romances, porém, mais do que essas outras personagens, seu
nascimento assinalado como um desligamento indevido com aquele primitivo círculo do
conter.
Na tentativa de se adaptar ao cotidiano ordenado e prático do marido, ao abandonar
sua arte, força de coesão psíquica, a personagem principal termina por perder sua unidade
interna: “Tentara trocar a arte pela vida doméstica, mas cedo o novo ambiente lhe pareceu
vulgar. Até ali concentrada em si mesma, não conseguia se repartir: muita solicitação agora, e
ela impotente.” (p.15).
O resultado do esfacelamento interior já vinha sendo apontado desde o primeiro
romance – “Não tenho mais força, preciso me encolher toda, respirar devagarinho, pensar
com cautela. Ao menor esforço, vou me desfazer em mil pedacinhos de um quebra-cabeça
insolúvel.” (AP, p.76) –, mas tem nos dois irmãos de O quarto fechado sua completa
materialização: “Nem a maternidade resolvera: ao contrário, desdobrando-se em mais dois,
era como se Renata se desagregasse.” (p.72). Reiteradamente qualificados como duas
metades, é a mãe, origem que se nega à atenção e ao amor e, por isso mesmo, responsável
pelo agravamento de sua infelicidade, a unidade da qual faziam parte e que buscam
desesperadamente: “Camilo e Carolina, um estranho ser saído do seu ventre, duplo por
engano, falha dela. Mas Renata não sabia como intervir, corrigir.” (p.84)
A verdade da transposição daquela vida em pedaços para os gêmeos fica clara para o
leitor, mas pôde ser percebida, no nível do próprio enunciado, por Martim – “Devia era ter
fugido dela: Renata transmitira aos filhos muito de sua inadaptação, vinham da sua alma
aqueles dois espectros.” (p.50) – e compreendida por sua principal vítima: “Renata teria
172

legado aos filhos a sua própria desestruturação? Largando a carreira, parecia ter perdido a
capacidade de se manter íntegra.” (p.27)
A música, com seu efeito salutar sobre a sensível pianista e que revolve, através de
desencadeamentos emocionais, suas camadas interiores mais profundas – “Sentada na beira
da poltrona, tensa, concentrada, parecia retornar a uma dimensão onde conseguia ser ela
mesma, e da qual, saindo, voltaria a se fragmentar.” (p.43) –, é uma moeda de duas faces, a
positiva voltada para ela:

Algumas vezes, Renata se sentira mais próxima de Camilo, quando era


pequeno. Lembrava-se de que gostava de ouvi-la tocar. Não era incomum
ver seus olhos brilhantes de lágrimas, escutando-a num canto, quietinho, e
ela se comovia; mas logo esquecia, enredada nos próprios problemas. (p.84)

Mas exatamente ao pôr em movimento mecanismos não compreendidos e inatingíveis


por uma mente restringente – “Martim ficara preocupado: e se o filho quisesse ser artista
também?” (p.87), a arte da mulher é temida pelo marido, que lhe enxerga apenas a face
negativa:

Tudo aquilo irritava, alimentava suspeitas, preocupações. Crescendo, Camilo


intimidava o pai: tão quieto, frio. Fraco, como a mãe, nas coisas práticas;
mergulhado nos livros e conversando com a irmã; ouvindo discos, música
clássica, a mesma que Renata escutava, apartada de tudo. (p.87)

A busca da unidade perdida – “Precisavam ser parecidos, precisavam tornar-se um só,


não tinham outra escolha.” (p.26) –, principal aspiração das personagens protagonistas dos
outros romances, lançadas em um processo de desunião psíquica desde a infância,
narrativamente explicitada nesse quarto romance, torna-se, por esse modo, a grande meta
daqueles irmãos:

Renata sabia, todos sabiam sem coragem de dizer: eles treinavam para ser
iguais. (p.34)

Ele precisava saber: mais inquieto do que Carolina, mais tenso, e intenso,
precisava alcançar o estado de perfeição, de união, chegar ao paraíso que
desafiava, e chamava, e se abria lentamente para o devorar. (p.113).

Essa procura vê sua culminância em dois processos especiais, o primeiro no


relacionamento sexual de Carolina com um estranho, o que, indiretamente, engolfa o irmão:
173

Se o Convidado se apaixonasse por Camilo e por Carolina, seria mais uma


prova de que eram um só? E se eles dois, ao mesmo tempo...Mas não podia
enunciar essas fantasias.
Pelos caminhos do Outro, da sua loucura e prazer, poderiam finalmente
integrar-se em definitivo, ou viria, afinal, alguma libertação? (p.115)

O segundo momento, que ocorre de forma definitiva e inexorável, se realiza no


encontro com a morte, que, como conclui Renata, é feminina: “Não era um barqueiro: era
uma mulher. O vulto da proa era ela, a Amada de Camilo: Thanatos. E se daria a ele, por
baixo do sudário.” (p.130). Na conjunção total com sua anima, aspecto psíquico masculino
extremamente comprometido com o arquétipo materno, como conceituado em outros
momentos deste estudo, Camilo consegue realizar todas as cruciais questões em que se
debatia.

Vou acabar amando a Morte como ele a amava, pensou Renata. Vou
descobrir que afinal só ela é verdadeira, só ela existe, sempre à espera,
imóvel: nós somos apenas sopro no escuro, vôo que vai desembocar no
ventre dela: única realidade. (p.78).

Jung, em seus diversos escritos, aponta a capacidade que o inconsciente tem em reunir,
simbolicamente, os opostos através de um terceiro elemento, chamada de função
transcendente, devido ao fato de que pode transcender a tensão consciente daqueles, como se
poderia novamente vislumbrar em Henrique, do sexto romance, que realiza em si, ao unir
qualidades da tia e do avô, segundo a visão de sua mãe, a coniunctio oppositorum, o
casamento alquímico dos opostos, tão freqüentemente estudada e assumida pelo analista em
sua teoria de individuação.
A representação de tal operação já tinha sido sugerida no desejo de Carolina e
Camilo, como foi salientado, por aquele “outro”, por quem são desejados igualmente como se
fossem um único ser, o estranho que se tornaria o vértice unificador do triângulo, portanto.
Ainda que não realizada naquela ocasião, em relação a Camilo, o processo cabal rumo a essa
totalidade se satisfaz na recomposição da unidade do masculino, por ele representado, com a
Morte, então dita feminina: “Agora, quem possuía Camilo era a fria Dama que começava a
corrompê-lo com seu toque obsceno, atingindo Carolina também, na última fibra que a
prendia à sua outra parte.” (p.125). A reunião dos dois passa a ser vislumbrada pelo leitor
através desse terceiro elemento – “Se Camilo estiver morto, eu já comecei a morrer.” (p.34) –,
ponto de interseção que possui a mesma função de “conter” – O quarto fechado – bem
descrita por Neumann em sua tantas vezes citada obra a propósito da situação original da
174

psique – provimento e proteção – que, em última análise, é uma condição matriarcal,


independente de sua vinculação à mulher: aqui a provedora é a própria morte, Mãe Terrível.
É interessante ser observado que o título do romance, que já fora remetido, nesta
análise, à personagem Ella (Tese, p.134) e à protagonista Renata (Ibid., p.170), por
polissêmico, aliás como toda a obra em questão, amplia-se em duas passagens,
respectivamente, a Camilo e a Carolina, anexado a ele esse caráter de ventre materno,
representando, assim, como terceiro elemento, a unidade pretendida:

Também em relação ao filho morto, a impotência: se o quisessem amar


agora, como antes não tinham conseguido, se o quisessem compreender, por
mais que estivesse quieto e indefeso, seria bater num aposento trancado do
qual ninguém tem a chave; nem mesmo seu novo morador. (p.17)

Abriu os braços, passou-os pelo próprio corpo, agarrou-se com sofreguidão:


a partir de agora, prazer e amor vinham de dentro dela: emparedada, sem
janelas nem portas, sozinha. (p.127)

O pressentimento da morte – “Não posso carregar esta parte por muito tempo, isso
contagia, os vermes dele vão comer meus olhos, entupir minhas veias. A alma dele vai me
arrastar consigo. E eu vou ser igual a Ella.” (p.124) –, que se mostra como a facilitadora da
integração das duas partes erroneamente separadas, permite à Carolina identificar em si a
fração masculina de um ser, emblema de unidade, conceituado no subcapítulo seguinte:

Parada no quarto, tesoura nas mãos como se fosse uma flor, procurava
dentro de si mesma: ia descobrir onde Camilo estava. Precisava da sua ajuda,
para viver ou morrer. (p.126)

- Você tem de estar aqui, meu querido – sussurrou. Essa idéia a embriagou
como champanhe bebido em altos cálices dourados, como encostar-se ao
corpo amado e, boca a boca, deixar borbulhas bêbadas passarem de uma para
outra, sangue gelado e puro, um corpo só. (p.128)

Mas, no que diz respeito à Renata, elemento centralizador e causa primeira dessa
desagregação, tal conquista se vê frustrada, passagem narrativa na qual a teorização junguiana
se apresenta plenamente justificada, comprovando a verdade que há em se conferir ao símbolo
uma eficiência expressiva e realizadora no campo de ação psíquica não conseguida por outros
mecanismos: “Os pais o amaram com um amor desmedido, crispado. Amavam nele a
possibilidade de consertarem a vida.” (p.77)
175

É assim que surge o terceiro filho, que se apresenta, virtualmente, como portador da
citada função transcendente – “De repente, Renata sentia-se mãe. Era dela o filho tardio, que
despertava em suas entranhas, em seu coração, ondas de ternura” (p.77) –, que será, desse
modo, como anteriormente foi dito, sempre o vértice a unir dois outros elementos dos mais
variados aspectos: “Por ser tão alegre, e louro, todos o chamavam: Anjo Rafael.” (p.77). Não
por um mero acaso, reaparece novamente o Anjo, tão simbolicamente presente como o do
segundo romance, anexando à outra personagem todos os seus atributos e funções: “Mas
punha nele a esperança de refazer sua vida, de reconstruir-se interiormente, de ser enfim
capaz de amar, generosa, e se libertar.” (p.110). Com aptidão para construir em Renata o
sentimento de maternidade, para anular uma oposição ferrenha entre a praticidade do pai e a
arte da mãe – “A convivência com Martim estava melhor, ambos tratavam a nova felicidade
como se fosse uma flor de vidro.” (p.110) –, o pequeno passa a ser, além de uma criança, uma
promessa: “A vida parecia organizar-se lentamente: a possibilidade de ser feliz.” (p.110).
Sua morte em uma queda da escada é o aborto de todos os projetos, como realização
da inteireza da protagonista, união de marido e mulher, marcando-se como um afastamento,
sem possibilidade de volta, entre Martim e os gêmeos que, “mais arredios ainda depois do
nascimento do irmão” (p.110), tornam-se os principais suspeitos de sua morte. A mãe,
entretanto, é aquela que recebe o mais fundo golpe, atingida, inclusive, no refúgio ainda
intocado de sua alma: “A ânsia que a castigava duplamente desde que, morto o Anjo, não
tocara mais, o impulso que a fazia gemer e correr como uma alma penada, também estava
morto dentro dela. Acabado.” (p.132). Morto Rafael, silencia-se pela segunda vez, também
aqui, a “voz do Anjo”, emissária das mensagens emitidas pela totalidade psíquica, o si-mesmo
de Renata: “No círculo de luz do palco, a pianista lhe lembrara figura de museus, visitados
também por conveniência: anjos tocando alaúdes, pensara nisso ao vê-la.” (p.41)

6.7.2 Os dúbios: o modelo da inteireza

Não é apenas a rotina psicanalítica, no entanto, que identifica como desvantajoso o


parcial apego à racionalidade unilateral e aos valores da consciência e que arrasta a psique
para um afastamento inadequado de suas raízes e para uma perda de unidade: “Sentia
compaixão dela muitas vezes, percebia que o casamento fora um erro; na tentativa de
176

transplantar-se para o universo dele Renata se desorganizara por dentro, o amor dele não a
conseguia manter inteira.” (OQF, p.72)
Entretanto no percurso que se pode fazer por toda a obra luftiana vão surgindo
situações em que personagens de peso especial para o organismo ficcional vivem e defendem,
literariamente, essas convicções próprias da razão, como se discutiu em 6.1. Pode-se
reconhecer na fantasia criativa do trecho “Meu Pai é controlador. Sabe e vê tudo, pesa, corta e
divide.” (OPC, p.47), o depoimento de base científica do criador da psicologia analítica: “A
consciência, porém, parece ser essencialmente uma questão de cérebro, o qual vê tudo, separa
e vê isoladamente, inclusive o inconsciente, encarado sempre como meu inconsciente.”
(JUNG, 2000b, p.275)
Ligada a esse mundo essencialmente racional está Beata de As parceiras, como se vê
em “Por um momento ela pareceu insegura, onde ia parar seu mundo certo e medido? Mas
logo se recuperou: a Igreja tinha regras. Ou se pertencia, ou não se pertencia.” (p.66) ou em
“Tocava de olho meio fechado, bonito demais para um homem, tia Beata dizia. Mas para ela o
mundo se dividia nos corretos e nos maus, não dava lugar para os dúbios.” (p.88); igualmente
em A asa esquerda do anjo – “Um ritual a ser cumprido, como tantos numa família
organizada: tudo é bem organizado na família Wolf, ao compasso da voz seca da matriarca,
minha avó.” (p.14) –; característica ainda identificável em Martim, de O quarto fechado
“Desde que a conhecera, Martim não pudera mais ter a vida ordenada e simples a que estava
habituado, que lhe servia.” (35) – e no pai de O ponto cego: “Meu Pai tinha direito ao espaço:
o melhor lugar à mesa, a maior poltrona na sala, a força e a ordenação.” (OPC, p.19).
Através do contato com os variados enredos, a definição dos parâmetros que se
submetem, sobremaneira, à consciência unilateral e que forjam as condutas sociais,
estabelecendo o que se deve compreender como “normalidade” – “Talvez Martim pensasse
consertar tudo à força; era a sua maneira. Queria obrigá-lo a gostar de tudo o que para seu pai
era importante; provar aos amigos que o filho não era um maricas.” (OPC, p.88) –, pode ser
surpreendida nas palavras sofridas de personagens como Anelise, do angustiado Menino de O
quarto fechado, cujo “ponto de vista”, conforme se pode depreender, prende-se muito mais a
seus processos inconscientes ou até de Norma, insegura protagonista que pretende aprisionar
seu filho dentro de sua visão limitadora:

Choro pelos acossados, os desamados, os dúbios, que não conseguem amar


dentro do esquadro alheio. (AP, p.55)
177

...sei que meus receios são fruto de ansiedade natural, talvez um pouco de
preconceito, Olga diz que quero enfiar meu filho numa moldura
convencional, imaginando que assim não sofrerá...pode ser. (AS, p.35)

Meu Pai não sabe o que fazer comigo nem onde me enquadrar – nessa
medida eu escapo ao seu controle. Não fecho com seus cálculos, não entro
na sua perspectiva. (OPC, p.47)

Portanto a ficção acaba confirmando também as palavras de Jung, como se pode


perceber sobre o hermafrodita simbólico, ser completo e perfeito por ser a representação da
unidade de todas as oposições, nas mais variadas culturas e religiões, desde os tempos mais
primitivos:

Assim, se o hermafrodita fosse apenas um produto da indiferenciação


primitiva, seria de esperar-se sua eliminação com o desenvolvimento da
cultura. Isto não acontece de forma alguma; pelo contrário, esta
representação ocupou também a fantasia em níveis culturais elevados e
máximos, sempre de novo, tal como podemos observar na filosofia do
gnosticismo do helenismo tardio e sincrético. (JUNG, 2000b, p.174).

Processo posteriormente recusado pela consciência, essa figura representa o si-mesmo,


o centro regulador do psiquismo humano, que contém em si todos os opostos, em uma
saudável convivência, e sem unilateralidade, sem conflito, sem desenraizamento. É preciso ser
relembrado o fato de que o “desenraizamento”, índice de sofrimento, aparece a cada passo nos
textos avaliados, como foi dito anteriormente.
Norteando-se pelos estudos dessa ruptura na unidade da mente, a análise ora
empreendida credita a esse aspecto a presença dos gêmeos de O quarto fechado, como se
examina adiante, e a força de emblema contida em todos os dúbios luftianos, modernização
da figura clássica focalizada pelo analista, que ressurge, mais modernamente, no romance
Serafita, de Balzac. Comprova-se a eficácia do citado símbolo de todos os tempos em seu
despontar no texto da escritora ora apreciada através dessas personagens ambíguas, apontando
para a mesma tentativa de composição de unidade: “Anemarie, sua música, seu segredo. Hoje
guardada para sempre pelo Anjo de sexo indefinido, apaziguador.” (AAEA, p.57-58). São
sempre aludidas e defendidas nos textos da escritora, criadas, justificadamente, ligadas à
música, como Otávio e Henrique, que conseguem reunir em si, segundo o modo de entender
das outras personagens, aspectos aparentemente conflitantes, o que se pretende discutir:
“Talvez Otávio achasse em Mariana cura para a sua perplexidade. Mas eu não queria que se
178

curasse de nada, não havia o que curar, ele era Otávio, alguém muito especial, precisando de
um amor especial.” (AP, p. 134-135).
A presença dessas personagens marcadas pela duplicidade, que já vêm pressagiadas
pelo medo que despertam, como na racional figura masculina em O quarto fechado – “E o
filho: não conseguira fazer dele um rapaz saudável. A inclinação para o mundo feminino, a
ligação com Carolina eram coisas perigosas aos olhos de Martim.” (p.87) – e no Pai em O
ponto cego – “Mas o meu sempre mandam cortar curtinho: meu Pai não quer saber de filho
com cara de menina, além do mais essa semelhança o assusta.” (p.27), surge desde o primeiro
romance na figura de Otávio, desenhando, do início, essa ligação com camadas interiores da
psique: “E havia Otávio, meu primo tocando piano, na sua dimensão particular para onde eu
queria ser levada junto, esquecendo Bila, Catarina, e todas aquelas histórias.” (p.72-73). Com
ele, da mesma forma que com Henrique, de A sentinela, o termo funda ambivalências, nas
quais o conteúdo sexual pode ser identificado, apenas, como uma das menores significações:
“Quanto mais eu ouvia Otávio tocar piano no canto da sala, mais ele se transfigurava para
mim, de um adolescente tímido ou malcriado, passava a um menestrel, efebo, criatura
andrógina de um mundo submarino.” (AP, p.68)
A controvertida personagem narradora de O ponto cego, figura inapreensível e que se
movimenta dentro de planos, dentro da obra, que se indefinem entre a fantasia e a realidade,
como seu representante, caminha, coerentemente, portanto, dentro da narrativa, em direção a
uma dubiedade crescente: “Meu pai diz que pareço maricas e não gosto de esporte e prefiro
brincar com bonecas, mas esse é um dos meus heróis, e não é para meninas, não.” (p.66).
Pressionado pelo desamor de um pai de comportamento doentio, abandonado até pela
mãe que, ao final, não consegue preencher a urgência do arquétipo, o menino tem despertadas
a sensibilidade e a capacidade emocional, como se confere na exaltação ao descobrir e
manipular as roupas da mãe mocinha: “As roupas são grandes demais, não as posso vestir,
mas mesmo assim estou feliz: não são apenas velhas fantasias, são toda a festa da vida que se
oferece aos meus olhos, à minha pele, à minha imaginação para sempre ferida.”(p.74).
Prende-se, dessa maneira, cada vez mais, à infância, procurando, em si, do mesmo modo,
aqueles componentes ditos “femininos”, o que é permitido na criança e na mulher por uma
sociedade que se orienta por critérios supostamente racionais e basicamente diferenciadores.

Eu preferia era ser menina, porque aí, quando fosse adulto, virava mulher e
não homem, não essa criatura estranha, peluda, resfolegante e suja mesmo
quando limpa, como meu Pai. (p.100)
179

Desço pelo corredor com todo o meu cortejo, e entro no quarto de hóspedes.
Um dia beijarei na boca um belo Moço que não dorme sozinho. (p.127)

Completamente sem esperança – (Minha Mãe, a que mais me interessava, a que


realmente algum dia me amou e me foi tirada, a que procurava por mim mas se perdeu na
voragem...) (p.153) –, imaginando que seu corpo se desmancha, esgotada sua condição
humana, passa a se ver apenas como uma personagem de história infantil, mas identificado
com a parte feminina, a ser resgatada pelo animus idealizado, fora dos padrões masculinos do
mundo exterior: “Transformado, serei mais um personagem atrás das portas à espera de que
alguém – um gato dourado? um príncipe? – me descubra e me invoque e me reconduza.”
(p.153)
É o dúbio primo de As parceiras a primeira personagem a introduzir na imagética da
escritora uma metáfora que emergirá, insistentemente em toda a sua obra, a figura do anjo,
marcado fortemente por essa androginia, mas, principalmente, como um ser que se sustenta
acima de todas as particularidades da vida consciente, como se pode depreender naquele
“Seres vagos, menos que anjos” (p.135): “O anjo do piano transformava-se num rapaz
sedutor, de sorriso tímido e sensual, quando parava de tocar e se voltava para mim, como se
só então se desse conta da minha presença. Havia nisso uma cumplicidade que me aquecia a
alma.” (p.67). Esse primeiro texto prepara a entrada desse ser imparcial de A asa esquerda do
anjo:

O Anjo de bronze que guarda nosso Jazigo indica o difícil caminho do céu e
finge não escutar nada. (p.13)

O anjo tem algo da plácida beleza de Anemarie. Nada de sexo e violência.


(p.38)

O Anjo do jazigo também tinha belos seios. Mas não era mulher: pairava
acima dessas diferenças, era a criatura alada que guardava a nossa morte,
atada ao pedestal de bronze. (p.69)

Contendo em si uma série de significados, tais quais representante da morte –


“Acordava na cama, suando frio: a ponta da asa do belo Anjo, subitamente traidor, podia
mover-se, tocar o coração de minha mãe, e ela estaria morta.” (p.92) – ou reflexo da
subjetividade da própria protagonista – “(No cemitério, na entrada do Jazigo, a asa esquerda
do Anjo se fende um pouco mais.)” (p.141) –, a idéia de totalidade, que se prende, a princípio,
à ambigüidade sexual, vai-se ampliando para outros pares de opostos, que parecem apontar
180

para o mesmo “caráter paradoxal e antinômico” que o tornam, enfim, um símbolo do si-
mesmo.

Moça ou rapaz? O rosto era de um belo adolescente, mas os cabelos desciam


até os ombros, e debaixo dos panejamentos de bronze entreviam-se seios
redondos. Eu tinha vergonha de olhar, mas eram seios.
Um Anjo misterioso, concentrando na pesada matéria em que se imobilizava
a eternidade de seu gesto e expressão, os enigmas da vida e da morte. (p.41)

Rostos atentos, como se escutassem uma melodia ignorada pelos vivos.


Talvez a voz do Anjo, que eu imaginava traduzida no lamento do violoncelo
de Anemarie: agonia suave de quem educadamente se dilacera no limite
entre a dor e a felicidade. (p.42)

Em duas passagens da página 85 de O ponto cego, última obra ficcional publicada,


pode-se ter a chave para o entendimento inequívoco do locus de onde parte essa voz de
“anjo” que, como uma duplicação do anterior, ali aparece novamente, descrito artisticamente,
com a mesma força psicológica prevista por Jung para o si-mesmo:

O estranho é que sei sem ter conhecido, penso o que ainda nem foi posto em
palavras; mais estranho ainda, o que invento pode mais tarde acontecer:
quem verdadeiramente dita as falas, quem comanda esse palco?

Mas às minhas costas sopra essa voz mais forte do que eu: o anjo que fia e
tece e borda, e me prende nesse enredo. Não calculei bem os seus poderes,
nisso me perdi.

Complementadas pelos comentários do mesmo analista a seguir transcritos, os trechos


selecionados do último romance estabelecem-se como a prova indiscutível da natureza do
Anjo e sua “voz” no segundo romance publicado:

É inclusive notório que o eu não é somente incapaz de qualquer coisa contra


o si-mesmo, como também é assimilado e modificado, eventualmente, em
grande proporção, pelas parcelas inconscientes da personalidade que se
acham em vias de desenvolvimento. (JUNG, 2000a, p.4)

A colaboração do inconsciente é sabia e orientada para a meta, e mesmo


quando se comporta em oposição à consciência, sua expressão é sempre
compensatória de um modo inteligente, como se estivesse tentando recuperar
o equilíbrio perdido. (JUNG, 2000b, p.275)

De volta a A asa esquerda do anjo, de fundamental importância se torna o fato de que


a prima da narradora, personagem já apontada como representação da persona para esta –
181

“Penso em Anemarie, que bom você não me ver assim, Anemarie, meu anjo.” (p.131) – se
apresenta sempre no texto extremamente envolvida com a personagem aqui focalizada:

Abraçava o violoncelo, colocava-o entre as pernas, aquilo me parecia um


pouco indecente, mas a música gerada no abraço era melancólica, pesada:
fazia-me pensar no Anjo do Jazigo. A voz dele, o tatalar de suas asas de
bronze produziriam som igual. Majestoso e sensual. O Anjo – moça ou
rapaz? O Anjo – o que haveria sob as vestes de metal? (p.23-24)

Presença de Anemarie: roupas um pouco fora de moda, cabelos como nunca


vi iguais; música lembrando o Anjo de bronze, nossos olhares pousados nela
sem a perturbarem, como se estivéssemos fora da sua redoma. (p.70)

Principalmente por sua música, que é a voz do Anjo, ela se mostra, segundo a visão da
protagonista, sob a mesma imparcialidade, inclusive sexual, – “Só Anemarie parecia
preservada de tudo.” (p.74) –, a mesma numinosidade que os enlaça com o arquétipo do si-
mesmo – “Anemarie toca violoncelo num círculo de luz.” (p.123) – e, em alguns trechos, a
duplicidade da frase remete, funcionalmente, a ambos: “Nosso Anjo será tão plácido como
parece?” (p.79).
A música, pela importância com que se dimensiona nesse romance, ao apresentar-se
como um portal pelo qual se manifesta a figura andrógina de possibilidades psíquicas –
“Anemarie toca com o corpo unido ao violoncelo, de onde brota a voz do Anjo.” (p.140) –,
passa a ser considerada, neste estudo, nos aspectos significativos que se estendem às demais
obras, devido à qualidade que possui de ir muito além do plano intelectual, mobilizando,
através da emoção, toda a parte inconsciente de alguns agentes narrativos especiais, passando
a ser um traço expressivo de interseção entre todos os que se caracterizam por essa dubiedade.
É a música que encaminha Otávio, de As parceiras, para aquela “dimensão particular”,
“mundo submarino”, espaço tão incerto quanto ele:

Muitas vezes, enquanto ele tocava, eu ficava a imaginar qual seria o seu
segredo, para onde fugia quando se entregava assim à música, que dúvidas e
ânsias expressava nas teclas. Havia uma fenda, eu sabia, uma falha qualquer,
mas tão vaga que logo se perdia. O efebo tocava, sem me ver. (p.69)

Em A sentinela surge novamente “A música de Henrique”, que, do mesmo jeito que


acontece com Otávio, arroja quem a ouve para esse “destino” ilocalizável. Não é sem motivo
que suscita sentimentos de insegurança – “Mas alguma coisa ali me assustara: eram sombras,
182

não luz, que se moviam no fundo do leito dessa música.” (p.108) –, pois “O mesmo20 se pode
dizer do inconsciente em geral, uma vez que as formas apavorantes deste último podem ser
provocadas pelo medo do consciente em relação ao inconsciente.”, como escreveu Jung
(2000a, p.216).

A música de Henrique é uma das coisas inquietantes nele. Não acho que seja
apenas um rapaz animado com sua banda. Quando toca em seu quarto, sem
que eu o veja, a música me arrasta para um território que punge, assusta e
atrai. Há nela algo de lamentoso, como de um animal atocaiado; de sensual,
como um corpo chamando; de sombrio, como alguém inaugurando a própria
morte, ou querendo voltar nela, desassossegado. (p.65)

Então, um som de ouro e mel, de dolorida sensualidade, escorre pelo ar:


Henrique está tocando, a voz do instrumento avança, cambaleia, gira. É seu
jeito de lançar as antenas para o mundo, identificar-se com o mistério,
entregar-se, inteiro, às coisas todas, as coisas palpáveis e as insondáveis:
essa é sua tela, seu fio, sua cor: meu filho constrói seus rumos. (p.162)

Henrique, de forma semelhante a Otávio com quem compartilha esse dom musical,
também possui as mesmas indefinições sexuais, segundo os padrões estreitos de sua mãe:
“Ele voltou diferente. Queimado de sol; cabelo mais comprido ainda; parecia cansado, mas
feliz. Diferente como, perguntaria minha irmã, e eu nem saberia dizer, mas era como se
alguma coisa nele tivesse sido decidida.” (p.110). Mas, diversamente do outro, não se
apresenta envolvido por uma atmosfera de dramas “sutis e cruéis” e por “tormentos não
confessados”, indo no sentido inverso:

Não há garantias, não existe segurança: alguma vez é preciso audácia de se


jogar; de delirar, como Henrique, neste momento, jogando alto sua música
pela noite, com pedaços de entranhas, de pensamento, de coração, meu filho
parindo a si mesmo como mãe alguma é capaz de fazer.(AP, p.163).

Sua androginia, sempre de acordo com a palavra avaliativa de Nora, é estabelecida


pela mistura de sua tia e de seu avô: “O rosto de Henrique é Lilith; os olhos, Mateus: a vida
trança seus fios arcaicos, o que é belo mas assusta.” (p.16). Porém tal androginia revela toda a
simbologia exemplar que o modelo carrega através dos tempos, visto que o jovem consegue
reunir em si, como testemunha o final da história, sendo terceiro elemento, dois outros
aspectos, além do feminino e do masculino – o mal, sempre enxergado na mãe e na irmã, e o

20
Explicava, anteriormente, que provavelmente as mudanças na disposição da consciência provoquem a visão de
caráter paradoxal do inconsciente.
183

bem admirado no pai –, que perseguem a protagonista, em sua vida, até então e cuja
antinomia, evidente nesse processo de revisão, parece apaziguada pelo filho: “Neste
momento, a noite não me ameaça; a gruta não me atrai; tudo tem seu tempo. E há coisas que
estão fora de todo o tempo humano.” (p.163).
No quinto livro de ficção publicado, torna a ser reabilitada a representatividade da
figura hermafrodita: “Gabriel está deitado sobre um plástico, na cama, inteiramente nu, o
corpo branco e liso como o de uma moça.” (E, p.189). Novamente, aparece comprometida,
desde o nome, com a figura do Anjo, que já anunciara essa relação no romance a que dá título,
não só com essa enigmática personagem de Exílio, mas com duas outras que se vêem
investigadas adiante: “Minha avó explicava que era um dos arcanjos que guardam o Paraíso,
mas como não sabia se era Miguel, Gabriel ou Rafael, para mim ficou sendo apenas o Anjo, e
pertencia à nossa família.” (AAEA, p.41).
Embora seja caracterizado, em diversas passagens, através da metáfora de neutralidade
do Anjo – “Seria bonito se não fosse sinistro: o rosto vazio onde não passa luz nem sombra,
um grande anjo apalermado.” (E, p.68) –, Gabriel, como Henrique, guarda outros opostos em
si – “Olha o teto. Um anjo aparvalhado. Ou maligno.” (p.189), pois a idéia do disfarçado mal
também surge a cada passo “Ele sorri alheado; mas quem olhar melhor talvez veja atrás
dessas vidraças foscas os olhos de um tigre à espreita.” (p.68).
A figura dúbia do andrógino – “Então, começa a falar; o que é inusitado, porque em
geral fica nesse mutismo; levo um sobressalto sempre que o escuto, pois sua voz é de
menina.” (p.68) –, também nesse texto de Lya Luft, segue seu destino cultural e continua
sendo a imagem não só da união dos dois sexos, mas, por intermédio dela, aponta para outras
ambigüidades comportamentais, como o fato de ser apenas um jovem louco e de ter, além
disso, a capacidade de adivinhar assuntos ignorados. Esse dom para ultrapassar as fronteiras
da lógica é uma das qualidades inscritas sobre ele no texto que o aproximam do Anão,
personagem de igual duvidoso limite.
Como em outras de suas criações, a escritora, em Gabriel se prevalece do recurso de
sobrepor várias outras personagens do mesmo texto sobre uma, bem como seus atributos e
funções, criando, assim, engenhosamente, um efeito discursivo só conseguido, plasticamente,
pelo recorte do desenho de uma figura, o qual, tem a possibilidade de se abrir, revelando, na
verdade, ser uma ciranda de várias outras ligadas por um ponto comum. Nele, através de tal
mecanismo, se manifesta não só o Anão, referido anteriormente, mas também o gato como
atributo físico, sobre o qual são feitas algumas observações no item 6.8, mostrando que tal
nexo, à primeira vista, puramente visual, lugar-comum, tem conexões mais profundas, o que é
184

confirmado quase ao final do texto e o que pareceria apenas uma metáfora de caracterização
física, perde a superficialidade: a personagem, ligada, então, a gato e anão, deixa de pertencer
apenas ao real, prendendo-se por um fio tênue ao mundo do não-palpável. E, encadeado a sua
ciranda, Gabriel, torna-se uma figura polissêmica, apresentando, em paralelo, uma presença
material e uma segunda, que se lhe sobrepõe e é, por assim dizer, transcendente, com
possibilidade de metamorfose, relacionada aos mecanismos psíquicos da detentora de um
discurso rememorador.
Contudo há, ainda, o palhaço, cujo estudo pormenorizado se deu no terceiro capítulo,
que, ligado a ele de forma inerente, qualifica-o como representante principal da privação que
torna impraticável a realização do saudável arquétipo materno:

Na parede junto da cama de Gabriel, o quadro maior de todos: em tamanho


natural, o retrato do próprio Gabriel, vestido e maquiado de palhaço.Trejeito
feminino do corpo, apoiado numa perna, quadril arqueado, uma das mãos na
cintura, na outra uma flor lilás. Fecho os olhos: esse quadro sempre me dá
vontade de morrer. (p.70)

Manifestação evocativa da unidade perdida e que se evidencia, particularmente, nas


personagens do universo narrativo luftiano, o andrógino é uma de suas imagens mais fortes,
tendo uma participação coadjuvante e simbólica, em alguns enredos, mas pode ser presença
central, como Henrique de A sentinela, um dos elementos responsáveis pela transformação de
sua mãe Nora, auxiliando a reestabelecer a dinâmica indispensável ao arquétipo materno.

6.8 O guia da alma

Ao se focalizar o tema do inconsciente tão competentemente manipulado na obra da


escritora para compor, sob uma atmosfera sem limites, indefinida, suas tramas, as quais
caminham entre a realidade material e o insondável, deve-se chegar à investigação minuciosa
daquele Anão de Exílio, representante mais evidente de tal duplicidade. A carga simbólica que
apresenta nesse texto, mais fortemente, e nos outros, com menos relevância, se confirma em
concepções extratextuais e gerais sobre tal figura. Os dicionários específicos são a
comprovação de como o imaginário humano lida com tal questão – “Foi assim que
reencontrei o Anão; que morara em nossa casa quando eu era menina, todo mundo vagamente
185

ignorando sua existência, talvez ninguém goste de hospedar um anão.” (E, p.41) – o que se
pode comprovar nas transcrições escolhidas a partir do grande material sobre ele:

Símbolo de proteção, tanto na mitologia (o protetor Bes, do Egito) quanto no


folclore, no qual atribuem-se aos anões quase universalmente poderes
sobrenaturais. (TRESIDDER, 2003, p.24)

Os anões estão amplamente associados à vida subterrânea (e, por extensão, à


mente inconsciente) ou, na América do Sul, à chuva, às florestas e às
cavernas. (Ibid., p.24)

Vindos do mundo subterrâneo ao qual permanecem ligados, simbolizam as


forças obscuras que existem em nós e em geral têm aparências
monstruosas. (CHEVALIER, GHEERBRANT, 1995, p. 49, grifo do autor)

Já tendo surgido com outros matizes, em As parceiras, tal qual diversos outros
elementos de seu texto, tal figura aparece concreta ou simbolicamente utilizada: “E ainda
havia as caixas de sapato, o mundo torto onde Bila estava iniciada, e eu não.” (p.73). Embora
seja uma figura evidentemente ligada à realidade exterior do senso comum, a anã desse texto
nasce como um protesto materno contra a violência, como a prefiguração, de um destino
coletivo das mulheres da família e, nesse caso, traz em si elementos que podem ligá-la a um
mundo também metafísico: “Até as empregadas tinham medo da anã: diziam que dava azar,
tinha mau olhado, previa desgraças, via ‘coisas’ ” (p.62). Esse reflexo de um sentimento
inconsciente surge, aqui e ali, como uma forma de revelação: “Eu ficava sozinha, com meus
duendes e medos.” (p.27). Observe-se que Bila, os duendes ou “os anõezinhos engraçados e
espertos” (p.27), todos do primeiro romance, são a primeira gestação do ambíguo e
fundamental anão de Exílio.
À primeira vista, anões – bem como palhaços, como se investigou em 3.3 –, revestidos
de uma aura positiva e alijados de sua condição realmente humana, estão, quase sempre
ligados a um momento determinado da vida – “Companheiro de infância, engraçado e
sinistro, que perdi por tantos anos e vim reencontrar na Casa Vermelha.” (E, p.14) – e podem
ser companheiros inventados, tema e recurso tão caros à ficção em geral, lugar-comum. Deve-
se chamar atenção para o fato de que essa concepção superficial, que freqüenta o universo
infantil, reforça a caracterização do estado emocional que domina a personagem principal, a
qual segue pela vida afora atrás do espectro materno, carência infantil que acentua cada vez
mais as outras desilusões que a vida lhe dá. É sempre esse vácuo materno que se projeta por
trás de cada novo infortúnio, como um ser abandonado que procura o refúgio primeiro de seus
186

medos de criança, e não encontra. Como sempre acontece no romance luftiano, e sempre pela
mesma razão, a personagem principal se congela, psicologicamente, na meninice:

Choro como uma criança, rosto escondido. (p.14)

Estou infantilizada, dependente; não pareço a mulher segura, a profissional


eficiente, que sempre fui. (p.94 )

Assim, esse truísmo primeiro em que se configura o anão, sem nenhum


aprofundamento psíquico especial, tem sua fonte no consciente coletivo. Esse aspecto,
também utilizado na urdidura da escritora, significamente servirá de contraponto ao
verdadeiro papel do Anão de Exílio, o qual, ligado intimamente à palavra circo – “Sairei deste
circo com seu anão, o torturador, as lésbicas, a Madame invisível, a velhinha caduca, as
criadas idiotas, a mulher coberta de vitiligo...” (p.109) –, começa a ter, pelo segundo emprego
desse vocábulo, demarcada sua nova e fundamental isotopia21: “Eu estava mesmo pensando: o
que é que estou fazendo neste circo? Quando avistei, ao lado do Enfermeiro, o alto da
cabeçona do Anão.” (p.41). Jogando com os dois aspectos, o primeiro, usado
metaforicamente, ilustra e intensifica o segundo: “Ele continua gesticulando. Nervoso, não diz
nada. Como nunca o vi assim, levanto-me atordoada, branca-de-neve desgrenhada, de
combinação, que um anãozinho leva até a janela. O que é que ele precisa tanto me mostrar?”
(p.119).
Apesar de, ao longo de toda a narrativa que entremeia os momentos de lembrança, a
enunciadora manter um jogo de esconde-esconde no que diz respeito ao obscuro Anão, pode-
se constatar nela o sutil pressentimento da verdadeira fonte geradora daquele que, à primeira
vista, seria somente um amigo imaginário dos primeiros anos.
Nunca tratado como um participante da realidade palpável – senta-se sobre seu
travesseiro, sobe nas janelas, é ignorado por todos –, sublinha sempre a desconfiança de sua
imaterialidade, perguntando, em diversas passagens, quase de forma compulsiva, inclusive na
idade adulta, pelo local onde ele mora. Caminhando, então, por algumas conjecturas feitas a
propósito da moradia da misteriosa personagem, as quais apontam em sentido contrário ao
bom senso, mesmo em um tempo de maturidade, o que é possível concluir de “(Também é
possível que more num dos antiqüíssimos armários pretos que atravancam todos os

21
“Ao elaborar uma hipótese interpretativa para reduzir a proliferação semântica virtual do texto, portanto ao
determinar uma isotopia, o leitor opera uma filtragem que vai condicionar não apenas o que já leu, mas o que
lerá.” (MAINGUENEAU, 1996, p.54).
187

corredores, aparentemente vazios.)” (p.33) ou de “O Anão poderia até morar numa mala
grande, penso, enquanto puxo o zíper fechando a tampa.” (p.168), chega-se à revelação da
verdadeira natureza do gnomo.
Em outras hipóteses levantadas para o lugar onde vive, como o sótão, na infância, a
torre, na Casa Vermelha – “Perguntei às Criadas se ele morava lá, mas não me responderam;
deram risadinhas, acotovelaram-se, me olharam como se eu fosse louca.” (p.33) –, cômodos
superiores das construções, como foi verificado em 6.2, adivinha-se sua função de elemento
conscientizador.
Mas é a pergunta sobre “O que se faz com um anão morto?” (p.198) e a solução
apresentada – “Ergo-o até o peitoril, ofegante. Estendo os dois braços: deixo que role e tombe
na calçada, com uma batida cava.” (p.199) –, que o desqualificam como uma das pessoas da
ordem racional dos estudantes da Casa Vermelha ou de Lucas, e que o mantêm “longe do meu
mundo arrumado e certo” (p.48), alusão à casa do marido Marcos, índice perfeito do sólido
real.
A exclusão de tal controvertida companhia do campo de influência da consciência já
vinha sendo apontada desde a página 14 naquele “Dorme ou me espreita; com ele, nunca se
sabe.” E, após a confissão de “O Gnomo lê meus pensamentos, sempre desconfiei disso.”
(p.22), um segundo comentário adicionado entre parênteses, como a cumplicidade de um
segredo, começam a tomar corpo significações não previstas, o que confirma as
argumentações anteriores: “Ninguém sabe do que são capazes os anões.” (p.22). Guiando-se
por tal afirmativa, parece impossível a quem analisa a obra, não retornar ao texto de Reunião
de família (p.122), publicado cinco anos antes, quando, perguntando sobre quem teria feito a
rachadura no espelho da sala do pai, a própria Alice levanta a hipótese de ter sido Cristiano, o
sobrinho, concluindo: “Ele não fazia dessas artes quando vivo. Mas nunca se sabe do que um
menino morto é capaz.”. Desse jeito, percebe-se que “ser capaz”, na ficção luftiana, vai muito
além das potências e aptidões humanas, pelo menos, pelos parâmetros de julgamento de um
mundo racional.
A reflexão destacada anteriormente espraia as propriedades do Anão, do mesmo modo,
até Gabriel – “Com ele, e com o Anão, tudo é possível.” (p.113) – e, de forma semelhante,
para um texto futuro em relação a Exílio, O ponto cego, onde, aparecendo como epígrafe para
o Menino, anela os três através de suas afinidades.
Fundamental se torna, então, a sondagem de um procedimento referido em outros
capítulos, mas que deve ser detalhado em relação ao objeto deste: a justaposição de
personagens através de características comuns, o que as faz participar do mesmo círculo
188

significativo. Dessa forma, Anão e mãe, como foi salientado antecipadamente, mas, dada sua
importância na obra, parece interessante repetir, estão sob a mesmo área representativa, tendo
ele o compromisso de mudar os sentimentos da personagem central, fazendo-a entender e
aceitar os limites vividos por aquela:

Eu ainda chorava, deitada na cama, quando escutei pela primeira vez a


vozinha cacarejante de meu futuro amigo:
Pare com isso, bobona. Deixe sua mãe em paz. (p.59)

- Ela não gostava da gente? – perguntei também ao Anão, mas desde a morte
dela ele parecia doente; estava taciturno; logo depois desapareceria também
(p.90)

O Anão chegou perto, começou a tirar dos meus cabelos as folhas secas, o
nó da nuca soltara-se na caminhada. Ele com gestos de mãe, eu soluçando
cada vez mais.(p.163)

Pelo mesmo motivo, sua participação como representação do arquétipo materno, uma
de suas manifestações acaba sendo a de filho, cuja imagem procura reproduzir em ações
inesperadas e inserções em sonhos. Ao final do romance, morto, sua intenção parece tocar a
sensibilidade da personagem: “Então apenas o sustento num braço, como a uma criancinha
que se vai amamentar.” (p.198)
Em sua atuação ambígua, esse ser do inconsciente parece funcionar, ao mesmo tempo,
como Deméter e Core e, nesse aspecto, continua a ser uma figura exemplar para a
protagonista, a qual, insegura pela vida em fora, não consegue reunir em si nem o papel de
filha nem o de mãe:

Ele com gestos de mãe, eu soluçando cada vez mais. Então ele começou a
gemer numa espécie de melopéia:
-Aiaiai, aiaiai, aiaiai... (p.163)

-Afinal, quem é você? – perguntei de repente, levantando-me e olhando para


ele, como quem interroga uma criança.
Mas ele só gania:
-Aiaiai, aiaiai, aiaiai. (p.163)

É, analogamente, a caracterização física desse Anão, que vai confirmando o


esvaziamento daquela alegre concepção estereotipada, o que serve como clareamento de sua
função real: “Eu conhecia anões de livros, mas não se vestiam daquele jeito; também não era
um anão de circo: esse aí usava roupa preta, séria, um chapeuzinho antiquado, na mesma cor.”
(p.59-60). Mas é adiante que sua relação com a mãe morta, que já vinha sendo estabelecida
189

sutilmente, começa a ser pontuada mais claramente através da aparência dessa expressiva
personagem: “O Anão sai para a varanda; encostado ao umbral, mão na cintura, olha a
paisagem. Parece, entre aqueles verdes, um anão de jardim vestido de luto.” (p.141).
A correspondência com a mãe continua a se estreitar. Em duas passagens diferentes, a
cadeia mãe/floresta, agora, inclui o Anão: “Tinha uma cara de velho gnomo da floresta.”
(p.88). Comparativamente aos sintagmas “anões de livros” e “anão de circo” ou, ainda, “anão
de jardim”, com emprego somente da preposição e, portanto, ligando-os a uma tipologia –
qualquer livro, qualquer circo, qualquer jardim –, a importância do artigo definido na
expressão “da floresta” – e não “de floresta” – determina o substantivo como uma floresta
específica, aquela onde entra levada pelo próprio Anão, e para onde vai, ao final: a mãe.
Em alguns momentos, um lampejo de consciência faz a personagem principal perceber
o relacionamento possível que se estabelece com o velho gnomo: “O Anão chega por trás,
sem ruído. Faz sinal de que me abaixe, sussurra no meu ouvido com sua voz de sapo, de
repente acho parecida com a voz do telefone:...” (p.92). Por tal mecanismo, o Anão participa,
igualmente, da visão da protagonista no que diz respeito à presença delirante que freqüenta o
espelho: “(O Anão lê, e finge que não a enxerga.)” (p.47).
Instilado, como foi visto, de uma forma indireta, o sutil compromisso simbólico entre
o arquétipo e o anão, do qual é, provavelmente uma das manifestações, pode ser reconhecido
a partir de seu surgimento inicial: “Desde a primeira aparição, no dia em que compreendi o
que havia com minha mãe, até pouco depois da morte dela, ele foi nosso hóspede quase
constante, e era o tema que nunca se abordava em casa.” (p.87-88).
A natureza psíquica do Anão, finalmente, confirmada nas páginas finais do romance –
“Meu homenzinho, parte de mim, fruto das minhas trevas e nostalgias, companheiro de
exílio.” (p.198) – é sutilmente contatada, quando o leitor começa a concluir o papel de
elemento conscientizador embutido na personagem – “O Anão deixou a porta aberta; sempre
faz isso; também deixa abertas minhas gavetas e armários, onde costuma se meter; e deixa
frases pela metade, mania que me leva à exasperação.” (p.23) –, psicopompo no conceito
junguiano22, produto de seu interior – “- E o seu irmão? – indaga de repente, quando começo a
pensar que é preciso visitar Gabriel de uma vez..” (p.45) –, o que vem ao encontro da
definição seguinte:

Mas o anão é sobretudo um guardião tagarela, segundo as tradições; um


tagarela, é verdade, que se exprime de preferência por enigmas. Se ele

22
“Assim o animus é também um ‘psychopompos’, isto é, um intermediário entra a consciência e o inconsciente,
e uma personificação do inconsciente.” (JUNG, 2000a, p.14).
190

parece ter renunciado ao amor, continua, entretanto, ligado à natureza da


qual conhece os segredos. Por isso pode servir de guia, de conselheiro.
Participa das forças telúricas e é considerado como um velho deus da
natureza. (CHEVALIER, GHEERBRANT, 1995, p.49-50)

Cínico, obsceno, porém detentor de uma sabedoria aceita com ingenuidade infantil –
“Meu Anão deve saber, vou indagar dele. E quem sabe ele conhece algum modo de entrar?
Sempre foi mestre em descobrir passagens secretas.” (p.64) –, além de marcado por uma
inexplicável clarividência – “Esse aborto tem parte com o diabo: tenho pensado em entrar na
floresta, e em lhe pedir que procure uma entrada, pois já vi que as trilhas, que em algum
tempo devem ter dado acesso à mata, estão fechadas com arames farpados.” (p.118) –, é capaz
de antecipar muitos acontecimentos e saber respostas impossíveis, ser crítico e incisivo nos
momentos mais necessários:

- A velha bateu as botas – diz o Anão sentado na cômoda, balançando as


pernas. Nenhum de nós falou no seu pranto da outra noite; nem naquela
ocasião em que ele chegou perto da Velha no telhado. Não tocamos em tais
assuntos. (p.185)

-Perdeu, não. Deixou! – diz ele cruelmente, e sua cara é velha e má. (p.45).

Tendo se revelado ao mesmo tempo em que o alcoolismo da mãe se tornou conhecido,


desaparecido por ocasião de sua morte, torna a surgir exatamente na ocasião em que, findo o
casamento, suspenso o novo caso de amor, abandonado o filho, a personagem que relembra se
descobre na mesma instabilidade emocional de menina, atmosfera afetiva de incerteza que
retorna com força redobrada pelos sofrimentos acrescentados:

São notáveis esses reencontros, as coincidências. Na mesma cidade onde


espero que minha vida se resolva, reencontro minha velha Freira e o meu
Anão.
Fiquei surpreendidíssima quando o vi.
Foi num desses dias em que eu decidira não jantar. Triste demais, fechara-
me no quarto. (p.40)

Se o encontro com a religiosa, sucedâneo de mãe, pode ser imputado ao acaso, o motor
da volta daquele ser ignorado por todos, pode ser, exatamente, o contexto inseguro em que se
encontra e a configuração da bela suicida na velha amiga. O “amigo de infância”, que sempre
a introduzia nos aspectos menos suaves da vida, levando-a ao confronto com a realidade, já se
revelara ali extremamente crítico. Na idade adulta, quando ressurge – “- Quantos dias faz que
191

não visita seu belo irmão? – pergunta numa voz de taquara rachada.” (p.22) –, suas ações
aparentemente irreverentes e insensatas têm sempre uma intenção que pode ser surpreendida
por uma leitura atenta.
Como o comentado de forma pouco aprofundada, ainda, em 6.3, os sonhos são um dos
principais estratagemas escolhidos por essa figura psíquica para encaminhar a personagem em
direção ao autoconhecimento. Em um deles, vem caminhando de mãos dadas com a
protagonista, visivelmente “a mãe com seu filho”. Inesperadamente, sua ação devolve,
invertido, como conscientização de culpa, agora contra ela, aquele “Mijo em minha mãe”
(p.134), narrado algumas páginas antes sob um sentimento de tortura filial da protagonista:
“(...De repente ele solta a minha mão, posta-se à minha frente, abre a braguilha. Olho,
curiosa e enojada, mas não vejo seu membro: embora ele urine em minha direção, num
grande jato continuado.)” (E, p.138).
Esses acontecimentos noturnos, os quais sempre traduzem essa sensação de
julgamento, se confrontados com as opiniões emitidas pela personagem principal sobre si, ao
longo de sua narrativa, revelam a origem de descobertas sempre sufocadas. Tem esse mesmo
sentimento o comentário que ela faz sobre a expressão “Deus é grande”, dita pela freira e
confessora: “Espero que seja. Se não for, como vai me perdoar por deixar meu filho e por me
interessar tão pouco por Gabriel?” (p.143). Ou daquele enunciado anteriormente: “...ficarei
fria e ausente; porque não posso me permitir ser feliz como mulher se, como mãe, abandonei
meu filho.” (p.63). Ao perceber suas próprias ações, sua característica de ser também falível, a
atuação de sua mãe pode ser compreendida dentro de suas verdadeiras dimensões, anulada a
fantasia e a expectativa infantis.
A comprovação dessa possibilidade de mudança, o acolhimento da censura do Anão, é
verificada em duas passagens contínuas e que se complementam:

- Como foi que minha mãe pôde me deixar? – indaguei ao Gnomo.


- E você, como pôde deixar seu filho? (p.101)

Alguém já teve um filho e o perdeu?


Um lindo menino de seis anos, esperto e alegre, alguém já o teve e o deixou?
Num momento de loucura, numa crise de perplexidade e raiva, num arroubo
de insensatez, alguém já o teve, cheio de confiança e a destruiu? (p.104)

Como o apontado no subcapítulo “Onirismo: sonho e alucinação”, em uma situação


não de todo determinada, como outras que acontecem entre ilusão e realidade – “Madrugada
diabólica: ventania, venezianas batendo, portas fechando com estrondo, chuva fortíssima. De
192

repente, alguém chora. Quem chora tão alto, nesta velha barcaça?”(p.183) –, o enigmático
amigo, novamente, causa perplexidade:

É o Anão que caminha no corredor. Chora alto, arrastando atrás de si um


travesseiro, como um bebê que, acordando assustado, sai pela casa à procura
da mãe e leva seu travesseirinho.
Estou incrédula. É ele, ele quem chora. (p.183)

E é logo adiante, por intermédio do discernimento produzido na culpada mãe, que a


chave para compreensão da atitude assombrosa da personagem é dada àquele que acompanha
a narrativa:

Fecho a janela, deito-me, e penso que também amanhece na minha antiga


casa, onde Marcos dorme abraçado à nova namorada, e meu filho segura o
seu ursinho de pano. (p.184)

É possível se reconhecer na atuação sarcástica daquele perspicaz “homenzinho” do


inconsciente, cuja agudeza de visão penetra tão longe, a tradução artística das observações
feitas em 6.6 sobre homo-afetividade entre mulheres, estendível ao texto luftiano, símbolo e
compensação para as protagonistas da privação do sadio elo entre mãe e filha. De seu lugar
privilegiado, das camadas mais inatingíveis, sabendo de toda a sua significação e alcance,
observa o olhar perscrutador de sua discípula:

Quando volto pelo refeitório para subir ao quarto, não há mais ninguém lá
senão as duas mulheres apaixonadas. Sentam-se na sua mesa vazia, uma
diante da outra; sem se tocar nem com as pontas dos dedos; imersas na
mútua contemplação.
E seu amor crepita como fogo de lareira.
(No último degrau, sentado no escuro, o Anão ri baixinho.) (p.54-55)

Elemento não percebido pelas demais personagens como se patenteia em diversas


passagens, vai sendo revelada, aos poucos, sua origem a partir do interior da protagonista. É
com naturalidade que o leitor acaba se deparando com a assunção completa da criação
psíquica, embora inconsciente, como já ocorrera com Anelise, em As parceiras – “A minha
veranista. Companheira de solidão, até que enfim.” (p.149) –, o que se pode constatar, de
forma clara, em “Era o meu Anão, tenho certeza.” (p.135), o termo possessivo se tornando
constante nas últimas páginas.
193

Em uma leitura atenta, descobrem-se evidências da própria protagonista no Anão,


como o conceito ora idealizado ora crítico que sempre manteve da mãe – “Nunca se sabia
quando a Rainha Bêbada chegaria na porta, apoiando-se no umbral para não desabar, falando
com a língua pesada;...” (p.88) –, inconscientemente, atribuído ao outro – “O Anão estava
certo: uma rainha exilada.” (p.164) –; como a malignidade que se faz presente, ora em um, ora
em outra:

Na cozinha, alguém deixa cair louça, pilhas que se quebram com fragor.
Sinto uma alegria maligna: a Madame me dá lençóis remendados, mas vai
ter de pagar essa louça. (p.140)

- Sua fala foi cortada por um soluço seco. Eu não tinha coragem de olhar. –
Mas não há outro jeito.
- Não há mesmo? – perguntei, mesquinha e cruel. (p.151)

-Ele vai viver muito tempo? – indaguei com uma malignidade que parecia do
Anão. (p.152)

Por tal comportamento não intencional, vai alternando com sua criatura psíquica suas
ações, principalmente as menos razoáveis e comedidas:

Enfiava-me no quarto ou saía para o jardim com o Anão, que viveu um bom
tempo conosco; estranho companheiro: contava histórias fantásticas que a
um tempo me deliciavam e me davam medo. (p.39)

Os velhos moravam num sítio onde Gabriel se divertia com plantas e bichos,
enquanto eu me encolhia com meus livros de história, minha fantasias e
medos. Onde andaria minha mãe? (E, p.78)

Já adulta, termina denunciando esse processo de forma involuntária, confundindo-se


com o outro, baralhadas suas fantasias e seus discursos.

Também passei a me divertir com o meu Anão: ele inventava histórias


macabras, me mostrava esconderijos na casa e no jardim, trazia insetos
estranhos e pedras diferentes, tinham cara de macaco, de porquinho. (p.60)

Quem sabe esses miados na noite são os perseguidores dele? Se eu fosse


menina, certamente o Anão inventaria esse tipo de história para me contar.
(p.93)

Marcado por um manifesto simbolismo que o manipula até convertê-lo nas diversas
formas com que penetra na narrativa, é com o sujeito enunciador que a extraordinária figura
194

mantém a única e verdadeira relação, da qual emanam todas as outras, projetada por um
inconsciente determinado a atingir seus objetivos através de seus símbolos.
Apenas a partir da convocação feita – “Quem sabe uma boa caminhada ajuda a pôr as
idéias em ordem?” (p.160) –, uma série de questões começam a ser postas pela indecisa
mulher, o que justifica inteiramente a presença do companheiro, culminando no refletir da
personagem sobre sua insólita condição. Dentro da densa floresta, levada aos meandros do
inconsciente pelo sábio guia – “De repente toda a tragédia da vida bateu-se sobre mim: eu
brincando de passear na floresta com aquele anão amalucado, meu filho sozinho, e Antônio
cruelmente ferido.” (p.162), finalmente, começa a se concretizar o objetivo do anão naquele
“Lucas, um órfão a mais” (p.162) finalmente admitido por ela.
Por todas e sob todas as formas possíveis, conforme se deve comentar, o Anão parece
conduzir o despertar daquela a partir de quem surge e a quem acompanha: “Tenho pena de
nós, de Gabriel, de mim, de meu filho Lucas, que tem seis anos e não sabe porque sua mãe foi
embora; alguns traços dele aparecem nos dois rostos daquele melancólico retrato.” (p.31)
Tentando, ainda, levar esse processo a um bom desfecho, a ilusória personagem reveza
sua forma tradicional com a de um cego – “Apenas o Cego está ali, firme debaixo do sol. Seus
óculos pretos parecem me fitar; sempre que o vejo sinto desconforto.” (p.133) – que, qual um
espelho a refletir a cópia dela mesma, aponta-lhe, através de sua desagradável imagem, como
alegoria, a inadequação de sua eterna acusação contra o desinteresse da mãe alcoólatra, não
reconhecido em si no abandono de seu próprio filho.
É, ainda, no irresoluto episódio do choro do Anão – “Mas ele prossegue; e nem me
notou. Anda em ziguezague como se estivesse bêbado, ou cego de pranto.” (p.183) –, premida
a entender sua equivalente conduta, que essa possibilidade simbólica do Cego de mensurar-se
como espelho penetra uma outra imagem, a qual antecipa essa ligação – “Nisso, ela se vira e
me encara; suas desmesuradas órbitas não estão verdes; cobriram-se de um véu de escamas.
Hão de ser assim os olhos do Cego.” (p.165) –, enredando, por intermédio do Cego-Anão,
pela mesma característica de Mãe Terrível, mãe e filha: “O Cego está no seu posto: faz dias
que não o vejo. Para meu espanto, além de madrugar, veio sem óculos. No primeiro fulgor da
manhã, suas pupilas rebrilham como escamas. Tenho certeza: é em mim que se grudam.”
(p.184).
Aquela nova e inquietante figura, que conserva características da primitiva – “- Uns
retratinhos bem indecentes, não? – diz de repente, e seu olhar é matreiro e obsceno.” (p.45) –,
faz todas as tentativas para chamar a atenção daquela a quem pretende conduzir: “Levanto-me
195

para fechar a janela. A toalha cai, e quando vou fechar a vidraça, o Cego, rosto voltado para
mim, masturba-se convulsivamente.” (p.195)
Se para o leitor ainda não ficou esclarecido o envolvimento entre as duas estranhas
peças ficcionais, ao prosseguir sua função de iluminador de consciência, o Anão convida-a
para a entrada na floresta, representação já esclarecida no texto em 4.2, em um momento de
duvidosa realidade, entre o sono e o despertar, quando esse aspecto parece inteiramente
revelado: “Era o Anão assobiando naquela insistência. Postado bem no lugar onde
normalmente fica o Cego. Só aí percebi que o Gnomo andou sumido nos últimos dias. Fazia
veementes sinais com os bracinhos.” (p.160)
Outra personagem a que o elemento ora investigado se enlaça de forma bastante sutil,
criando efeitos especiais, ao incluí-la, por esse mecanismo, na mesma atmosfera de fantástico,
cujo principal emissário é o Anão, é Gabriel, o irmão louco, assim apagados seus limites de
participante do universo real, precipitado o leitor na incerteza narrativa que se instaura.
É impossível não se perceber, através das palavras avaliativas da protagonista sobre o
gnomo, ao longo de todo o texto – “Se o encarar, verei nesse enrugado rosto lampejos de
malignidade, ou apenas a ternura de um pobre anãozinho da floresta?” (p.32) – a mesma
negatividade que, segundo ela, envolve o irmão: “Em criança era louro, depois escureceu; o
menino gordinho e sossegado virou essa criatura imensamente triste, rápidos lampejos
malignos no olhar.” (p.67-68)
O sentimento de ódio em relação ao “amigo de infância”, que pode ser
contrabalançado com uma grande ternura, se deve a uma rascante crítica ostentada por este –
“É o Anão, erguendo a cara interrogativa e maliciosa; parece estar sempre rindo de mim.”
(p.22) –, o que, algumas vezes, parece contaminar Gabriel: “Passo a mão pelo cabelo macio
de Gabriel; sinto a dolorosa inutilidade de minha presença: ele está longe. Ou mais perto do
que penso? Por que perguntou por Lucas?” (p.69-70).
A capacidade de falar de coisas desconhecidas – “Sinto uma pontinha de gelo
percorrer minhas costas de cima a baixo. Gabriel não há de saber que tenho um filho.” (p.69)
–, vai aproximando o doente e o Anão, até desembocar no desenho das sonâmbulas, episódio
largamente citado e, finalmente, avaliado na página 161 deste trabalho:

A pele dos meus braços se arrepia: essa era uma das histórias malucas que o
Anão contava na minha infância. Gabriel era pequeno demais para ter sabido
delas, não creio nem que se desse conta da presença do Anão. (p.114)
196

A certeza da intensa contigüidade dos dois, pelo menos nas produções psíquicas da
personagem principal, se confirma nos momentos finais da trama, mas se complica, ainda,
pela introdução de um terceiro elemento, o gato, recurso empregado como caracterizador de
Gabriel – “Aí, encolhe-se e começa a dar risadinhas histéricas, entremeadas com aquela
algaravia já incompreensível. Não existo para ele: embora às vezes me espreite com aqueles
olhos de gato, apertados e oblíquos.” (p.115) –, o qual, impregnado de todas as implicações
místicas que carrega desde o imaginário coletivo, arrasta-as para a cena literária onde se vêem
atualizadas, adaptadas, ampliadas.

O Anão entra no quarto, pára junto de mim. Traz consigo um indisfarçável


odor de fezes. Será que ele visita Gabriel?
Senta no chão, e de repente diz:
- Você lembra o dia em que Gabriel matou seu gato? (p.192)

A constatação da personagem de que “...naquela época, ele há muito não morava na


casa de meu pai.” (193) permite ao leitor inferir uma alternância de presença, ou seja, ora
como Anão, ora como gato, o que vai sendo reafirmado, como pistas a ser seguidas, em todas
as comparações semeadas ao longo do texto – “esteja enrodilhado junto do pé da minha cama
feito um gato” (p.14); “enrosca-se como um gato.” (p.30); “fica agachado como um gato
(p.119) –; no ratinho morto no chão do refeitório após sua saída; naquele “pequeno gato
esticado” (p.170) e morto, encontrado no suposto quartinho do Anão, na época de menina e
que já indicava seu imenso poder de transformação; no sentimento de ofendido que deixa
transparecer pelo comentário ouvido:

- Quer fazer o favor de me deixar sozinha e meter-se na sua toca de rato?


Ele sai indignado, carregando o livro sem pedir licença. (p.118)

Mas não se constitui, apenas, em uma variação pura e simples. Primeiro, a capacidade
de metamorfismo reforça o aspecto inconsistente e irreal do Anão, sua origem na
profundidade não mensurável da mente humana. Depois, apresentar-se como animal, tem um
peso forte, pois, como afirma Jung (2000b, p.362), “Os animais significam em geral as forças
instintivas do inconsciente que se concentram numa unidade na mandala. Essa integração dos
instintos constitui uma condição prévia da individuação.” e, na mesma obra, analisando
psicologicamente a figura feminina inconsciente no mito de Deméter e Core diz que “Muitas
vezes tanto a figura de Core como a da mãe resvalam para o reino animal, cujo representante
favorito é o gato, a serpente, o urso, o monstro negro subterrâneo como o crocodilo, ou seres
197

da espécie da salamandra e do sáurio.” (p.185), o que parece estar de acordo com o enfoque
dado neste estudo: o inconsciente se vale de todas as oportunidades para tentar atingir a
consciência.
Entretanto a presença representativa desse animal não se prende especificamente ao
Anão, ela se amiúda: aparecem vários no telhado, seus miados perturbam a protagonista,
sempre à noite – realidade ou sonho? – e são ligados por ela à figura do homem do quarto de
cima que caminha sem dormir, torturador no passado. Quando o homem some da casa,
segundo ela, os gatos param de miar. Mas é sempre ela o crivo de avaliação dessa relação.
Tais felinos assumem, assim, uma carga emocional forte, psicológica, de juízes, de
acusadores, no mínimo, de presença forte de despertar da consciência, como o anão. É ela
mesma quem diz: “Os gatos deixaram de miar: então, vai ver nem eram gatos.” (p.181). E
mais adiante, quando da agonia e morte do anão: “Os miados se repetem. Estertores que
povoaram meu sono?” (p.196).
Dada a importância que tem, aparecendo novamente em A sentinela e O ponto cego,
essa imagem merece um comentário mais detalhado neste segmento dedicado ao Anão,
dividindo ou promovendo com ele o estabelecimento de um universo da ordem do
extraordinário. Nesses três textos, em situação alguma, tem um papel puramente decorativo,
correspondente às condições comuns do mundo material, o que se ajusta à dinâmica do
imaginário humano em relação a ele. “O simbolismo do gato é muito heterogêneo, pois oscila
entre as tendências benéficas e as maléficas, o que se pode explicar pela atitude a um só
tempo terna e dissimulada do animal.”, diz o dicionário de Chevalier e Gheerbrant (1995,
p.461), o que pode ser complementado, de forma perfeita, tanto para ele quanto para o Anão,
na obra de Tresidder (2003, p.158): “Habilidade para a atuação furtiva, poder de
transformação e clarividência, agilidade, vigilância, beleza sensual e malícia feminina.”.
Sempre relacionados às bruxas medievais, os gatos, se pretos, também participam de crenças
populares que os ligam à má sorte ou infortúnio. Esse simbolismo vem ao encontro dos
conceitos que podem ser destacados no discurso das personagens no próprio texto da
escritora, o que descortina sua atuação ali:

- Gato fica em qualquer lugar onde dão comida – disse a velha cozinheira. –
É bicho sem afeição. (E, p.193)

- Pois eu não gosto de gato. É bicho do Diabo. (AS, p.21)

Eu tinha dele um vago horror:


- Gato não é fiel, não é companheiro. (Ibid., p.46)
198

Em A sentinela, o gato Serafim, animal cujo nome de anjo já permite um vôo


imaginativo até aquela figura de A asa esquerda do anjo e suas possibilidades, discutidas em
6.7.2, participa de toda a atmosfera de improvável dominada pela inalcançável Lilith, viva ou
morta: “Lembro tudo, enquanto aguardo que isso que está lá fora execute o seu ritual. Quando
abro a porta e vou até o patamar da escada, um miado lamentoso vara a madrugada e se perde
ao longe.” (p.13).
Muito do poder simbólico desse animal, resumido em seus olhos – “Só quando chego
bem perto, ela desvia os olhos da televisão, ou da parede, ou do enorme retrato de Lilith com
seu gato Serafim, ambos de olhos quase iguais.” (p.26), compartilhado com a estranha
menina, com “seus olhos de gata” (p.58), e enfatizado naqueles “seus olhos amarelos” (p.12),
já vinha sendo esboçado, de uma forma ainda bastante indireta e nebulosa, em Renata de O
quarto fechado – “Os olhos, de cor amarela, pareciam entretidos em si mesmos: coisas
inefáveis que ele não conseguia divisar e o intrigavam.” (p.41) – e um pouco mais
marcantemente nos gêmeos, na mesma obra: “Por muitos dias lutara entre o desejo de
interrogar os filhos e o medo da sua reação: que brilho malicioso teriam seus olhos
amarelos?” (p.64).
No último romance publicado, tal elemento místico volta a aparecer. Se ao final da
urdidura, presente do Pai, retorna envolto em uma aparência de ingênua normalidade, embora
seu pêlo ruivo e seu andar “sempre junto dos calcanhares” de sua dona ainda arrepie o leitor,
lembrança da Lilith e seu gato do romance anterior, é o desenho do Menino quem faz renascer
a eterna imponderabilidade característica dessa personagem em Lya Luft:

Aos poucos acrescentei as orelhas pequenas, firmei a posição desdenhosa


assim de costas, conferi a sua verdade de gato.
Ali eu invocava quem assumiu sua realidade fora do papel e dentro de meu
sonho, e existe e é concreto e me faz companhia – pois não depende de hora
ou lugar. (OPC, p.39)

É triste, esse gato. Solitário, esse gato. Cheio de alegrias contidas, esse gato.
Fita algum mistério que eu persigo fascinado, pois tem a ver com minhas
histórias. (p.39)

Reconhecidas as qualidades excepcionais de tal companheiro – “Não nos devemos


nada, esse meu gato e eu. Entendemos o calado, sentamos na beirada e ninguém mais vê o que
nós vemos.” (p.39) –, que parecem partir, na verdade, do sofrido Menino, é esse
envolvimento, que prepara quem percorre a narrativa de O ponto cego, então, para aceitar
nele, igualmente, a outra face dessa personagem que surgira ambiguamente em Exílio: “- Eu
199

quero ser anão.” (p.40). O anão arquetípico, como o gato, é convocado pelo próprio Menino –
“E a minha vida, o que é? Perigosas possibilidades lá na frente, por isso não quero crescer.”
(p.94) –, criança infeliz, suplicante pelo amor da Mãe, finalmente abandonado por ela, que, tal
qual o romance precedente, mas agora sob a perspectiva do filho, mantém um discurso
iludido: “Eu, eu Menino doente, fora perdido de minha Mãe. E aquilo me doeu como se me
furassem as tripas com uma faca de castrar, sete facas varando o meu peito ineficiente.”
(p.136).
Sob as mesmas alternativas de Exílio – “...quem sabe de repente ele começava a
rachar, a pele abrindo toda, a cabeçona partindo ao meio...” (p.102), o Menino do novo
romance – “A pele muda de textura, tudo me dói. Se eu continuar crescendo, ao contrário do
que projetei, mas minha pele não se esticar? Se ela rachar e se fender... se eu explodir?”
(OPC, p.16) – enumera suas características físicas – “corpo mirrado”, “quase calvo” (p.150);
“voz de taquara rachada” (p.97); cabelo “ralo” (p.97), como o de Bila, de As parceiras – as
quais o vão habilitando como representação final, mesmo que com aparentes raízes na
realidade externa dominada por todos, do anão psíquico anteriormente construído.
Se, a princípio, define a si mesmo através de uma metáfora impessoal – “Eu sempre
estive lá: sei muito a respeito de todos eles, sei quase tudo. Menino, anão, duende ou gnomo:
um ouvido, uma grande orelha, um olho enorme de pálpebra semicerrada como quem não
quer nada, como quem não quer ver.” (p.31) – a nomeação final, em letras maiúsculas, o
contamina, de modo inquestionável, com a personagem de Exílio: “Eu, o Anão, eu o Duende,
eu o que persegue as possibilidades e ouve até mesmo o roçar das peles na noite, eu que
assino com minha caneta dourada as minhas escolhas: eu decidi.” (OPC, p.144).
Relacionado de forma subliminar por aquele “é capaz” (ver página 187 desta Tese), o
qual marca os seres ficcionais predispostos ao inaudito, o discurso do Menino abarca-os todos
em sua própria natureza, como uma culminância final:

Eu sou o que deixaram sob o tapete, o que à noite se esgueira pelos


corredores, chorando. Sou o riso no andar de cima muito depois que uma
criança já morreu. Sou o anjo no alto da escada de onde alguém acaba de
rolar. Sou todos os que chegam quando ninguém suspeita: saem de trás das
portas, das entrelinhas, do desvão. (p.31)

Mas são os acontecimentos derradeiros do texto de Exílio, culminância do que vinha


sendo revelado desde o princípio – “Ficou sendo o meu talismã. Algumas pedrinhas eram
verdes como os olhos daquela a quem, ora cínico ora admirado, o Anão chamava: Rainha.”
200

(p.16-17) –, os que promovem definitivamente o encontro entre Anão, gato, Gabriel e imagem
materna, tornando a reafirmar o vigoroso pacto que se identifica entre os quatro, intermediado
por um atributo dos olhos da mãe, que se repete nos “olhos de gato” do irmão – “Olhos
arregalados, são os de nossa mãe: sombras passam no fundo tão verde.”(p.68). Dessa forma, a
cor passa a ser uma marca da “ausência ou agitação da mãe retirada atrás dos vitrais de seus
olhos raros” (p.35), simbolismo que inclui em seu raio de ação as pedrinhas coloridas da mãe
morta, guardadas pela filha. Tangida por um sofrimento intenso – “Café, banho e decisão
tomados. Alívio e sonolência. Aperto os dentes: sei qual a casa para onde preciso ir. Minha
mãe foi uma floresta de enigmas: descobrirei uma entrada e uma clareira, para saciar minha
sede.” (p.194) e empurrada por essa “sede” que, no caso da filha, reveste-se de um significado
muito mais metafórico, a protagonista repete o impulso que levou a primeira ao suicídio –
“Talvez só morrendo entrasse no seu reino. E saciasse a sua grande sede.” (p.164) – e
caminha para a morte: “Seguro nas duas mãos o frasco de bolinhas coloridas, como quem
agarra uma vela para morrer.” (p.195).
Nesse desejo de penetrar a floresta, quer seja na que se vê da Casa Vermelha – “Tenho
desejos de entrar nesses túneis verdes; descobrir os macaquinhos; os gatos selvagens que
atormentam meu sono à noite.” (p.118) –, quer seja na da morte, a qualidade do verde pode
apontar apenas um traço natural, ou, ainda, como se viu detidamente em 4.2, incluí-la nesse
círculo materno, ampliando-o. Em dois momentos inusitados, essa característica desponta:
quando, visitando Gabriel no quarto, abstraída do momento presente, aguarda que ele
complete o gesto de escrever com fezes na parede – “Perco a noção do tempo: a floresta, seus
veludos cinzentos e verdes, o crepúsculo.” (p.189) – e, ao entrar ao final, instaurando
probabilidades maternas: “Depois, meu passo se firma. Aqui e ali, reflexos verdes: ratazanas
não têm olhos assim.” (p.200).
Contudo é o Anão, o qual já denunciara o poder mortal daquelas “pedrinhas da
Mamãe” (p.192), quem, antecipando as intenções de sua companheira – “- Vai engolir tudo
isso? – espia sobre meu ombro, plantado na ponta dos pés.” (p.164) –, parece evitar o final
indesejado: “É noite lá fora; parou de chover. O Anão deve ter roubado as bolinhas verdes,
porque só estão aqui as vermelhas e as brancas.” (p.164). Colocadas junto às outras – “Certa
vez meu pai disse à minha mãe, é preciso tampar esse frasco, as crianças podem meter isso aí
na boca.” (p.192) –, a fatalidade das verdes parece não estar presa às suas propriedades
químicas, mas à sua forte ligação com a eterna ausência transmitida nos olhos da suicida.
Morto o Anão, confirma, mais uma vez, seus laços com o irmão louco – “...Gabriel
tem de ser removido, como um gato esquartejado ou um anãozinho morto.” (p.200) –, ao
201

reassumir sua forma inconsciente mais primitiva, a mesma do bicho de estimação morto pelo
ainda menino – “Mas ele está quieto; e frio. Pobre gato preto que Gabriel esquartejou nos
começos de sua doença. Os sapatos rombudos.” (p.197) –, o que vem explicar suas
vestimentas, sempre enfaticamente descritas, como um aviso de interpretação para o leitor.
Percebe-se, pela tranqüila aceitação da protagonista, por seu imediato acolhimento à nova
forma, que a inverossimilhança daquele anão era uma condição aceita tacitamente por ela em
toda a narrativa:

Deitado no meio do quarto, na sua roupinha preta, chapéu tombado de lado,


o meu Anão. Encolhido, imóvel e preto. Mas não há sangue, de novo não há
sangue. (p.196)

No alto do caminhão de lixo, em cima do último saco de plástico azul, um


gato preto, morto, que acharam na calçada. (p.199)

Se o Anão se adianta e rouba essa morte, ela não tem, no texto, o caráter de
autodestruição, mas de percepção do fim de sua utilidade: “Matou-se por mim, o meu Anão,
humilde como um bicho no chão do quarto.” (p.199). Seu suicídio simbólico representa, na
verdade, um assassinato psíquico, empreendido pela própria protagonista, de uma fantasia
engendrada por seu inconsciente, agora desnecessária, cumprida sua missão. Ela descobre que
não é preciso mais morrer fisicamente e a ação de dirigir-se para a floresta permite uma
variedade de desdobramentos interpretativos a ser concluídos. De qualquer forma, ao buscar o
filho e a mãe, mesmo inconscientemente, consegue reunir em si, por ambos os aspectos, os
dois extremos do irrealizado arquétipo. Livre da morte, Mãe Terrível, triunfa o aspecto
positivo desse conteúdo psíquico: “Não me quis a morte: o Anão assumiu todo o meu espaço
dentro ela.” (p.200).
202

7 CONCLUSÃO

É indiscutível que, nos textos analisados, a infelicidade está invariavelmente presa à


relação insatisfatória com a mãe. Em Reunião de família, Alice diz sobre si e os irmãos que
são “Crias sem mãe, num terreno baldio” (p.107) e em As parceiras, com um visível
sentimento de inveja, a protagonista declara que “Até mãe Nazaré tem.” (p.95) ou, como já
fizera anteriormente, ao descrevê-la, dizendo que era “Mulher de pescador, uma porção de
filhos.” (p.20), quando da avaliação do mundo sólido e perfeito daquela personagem. Em
outro momento, ao referir-se a “um ninho fofo, macio, consolador...” é impossível não se
entender esse relacionamento específico nas palavras da personagem ou ainda, no
questionamento aflito do Menino, em O ponto cego: “Por que ser importante para meu Pai é
mais importante do que ser importante para minha Mãe, se, afinal de contas, quem realmente
importa na casa, na vida, é minha Mãe?” (p.71).
Ao se proceder, porém, a uma leitura dos sete romances, o que pareceria ser um
problema restritivo de cada personagem em caso particular, ou seja, os sofrimentos estariam
no nível psíquico pessoal, ultrapassa esse dado individual, quando revela uma constante em
todos os textos, apontando para um conteúdo do inconsciente coletivo – o arquétipo materno –
que uniria em uma só rede significativa todas as protagonistas.
Desse modo, há uma possibilidade de duas leituras: uma encaminha a interação com a
trama de uma maneira privativa e faz o leitor entrar em contato com situações pessoais; uma
segunda, dimensiona cada texto dentro de um aspecto mais abrangente, como parte de uma
macro-história, com feições específicas, contada pela totalidade da obra ficcional.
Sob uma visão de conjunto, as mães pessoais se apequenam, diante de um fato maior
que parece subjazer em toda a situação relacional que as envolve ou que a elas se refere.
Seguindo o mesmo encaminhamento do pensamento de Jung, teórico a que este trabalho
credita a linha de pesquisa adotada, pode-se acreditar que foi o psiquismo infantil que,
tentando reencontrar a satisfação completa de todas as necessidades, procurou a
correspondência de uma figura inconsciente, de base coletiva, que se apresenta como um ser
ideal, imenso e protetor, no mundo externo, onde se reflete numa figura de mãe-mulher,
culturalmente construída “à sua imagem e semelhança” e que, pelo que se vê nas diversas
tessituras, não corresponde à natureza das mães verdadeiras, seres falíveis e carregados de
imperfeições humanas.
Este estudo identifica, dessa maneira, a presença de um elemento psíquico único, o
arquétipo materno, que aglutinaria todas as situações de instabilidade emocional, motivadas
203

pela frustração da possibilidade da realização perfeita da imagem idealizada, elemento esse


que, sob uma figura mutante, lança mão dos mais variados recursos simbólicos para contatar a
consciência.
Como se deve assinalar, essa eterna ligação com um dado psíquico não satisfeito
acorrenta cada protagonista a seu inconsciente, o qual, invasor, preenche até os espaços
peculiares da consciência, impedindo-a de desempenhar seu indispensável papel condutor de
vida.
Por esse dado se pode concluir que a expectativa da criança é co-responsável pela
visão que as enunciadoras do discurso têm da negatividade da mãe e das demais pessoas que
participam desse universo materno desde a meninice, aumentando-lhes os defeitos, ações e
intenções, na medida em que, abrandando os próprios, assumem um papel de vítima que
mantêm durante toda a narrativa, nos diversos romances. Em A sentinela, por exemplo, o
testemunho de algumas personagens isentas ajuda o leitor a descobrir traços ocultos do perfil
não revelado da protagonista Nora. Em Exílio, o Anão insiste em patentear, indiretamente – a
imaginação ativa da narradora, os sonhos que recuperam dúvidas e ânsias da vida vígil, mas
que reelaboram, de forma crítica, situações levadas, assim, às suas reais dimensões –, por
todos os mecanismos representativos à sua disposição, a severidade de um julgamento sobre
uma mãe alcoólatra, cuja infelicidade a conduz ao suicídio, em comparação com a
responsabilidade não reconhecida totalmente pela protagonista no abandono do próprio filho.
Estando cinco das intrigas estruturadas sob a forma de um discurso memorialista, a
organização narrativa se beneficia sempre desse elemento condutor: não é linear, podendo
saltar etapas, ir e voltar pela linha temporal, ligar fatos presentes a fatos passados, reabilitar
situações transcorridas, o que cria efeitos narrativos singulares e sedutores; pode conter
indeterminações, possibilitando a criação de uma atmosfera de incerteza; permite dar asas à
imaginação pela distância temporal com o fato lembrado; é passível de incluir dados apenas
ouvidos, justificando assim uma volubilidade que, embora intencional, repassa ao psiquismo
da personagem que lembra a responsabilidade pela instabilidade ficcional. Através da
memória, a emotividade que emerge, principal dado recuperado, dá o tom que impressiona o
leitor e o coopta como testemunha da verdade sugerida.
Essa urgência em recriar as condições satisfatórias exigidas pelo arquétipo materno,
ansiedade que se estende até a idade adulta e enfatiza, assim, o estado de enclausuramento
emocional infantil em que as protagonistas se encontram, faz com que diversas personagens
encarnem essa projeção e funcionem como sucedâneos de mães, papel veementemente
assumido por Olga de A sentinela, mas que pode se verificar, igualmente, pela tia Dora, em
204

As parceiras, Irmã Cândida, em Exílio, e, eventualmente, pelas avós, no primeiro e terceiro


romances aqui citados, o que se vê, ainda sugerido, no comportamento das tias de O ponto
cego.
Entretanto no romance O quarto fechado se encontra a figura maior de personagem
marcada por essa função, Mamãe, pelo fato de que se constitui em uma verdadeira alegoria,
embora conjugue em si, de forma antitética, a idealização materna e a culpa pelo mal causado
à própria filha.
Reunião de família centraliza, no entanto, as cenas mais dramáticas protagonizadas
pelo sofrimento de filhos infelizes suplicantes pela proteção materna: a afetividade de mãe
para a pequenina Evelyn por uma embaraçada Alice, criança carente de afeto; o inimaginável
desejo de Renato, adulto, em viver uma situação materna no colo de Berta, a empregada.
Esse alicerce narrativo representado pela privação de uma necessidade inconsciente
fundamental se estabelece como um fecundo conteúdo ficcional. Contudo, a par da virtude de
conduzir enredos atraentes e originais, mesmo que marcados por uma angustiante postura
diante da vida, acaba se constituindo, fundamentalmente, ainda, em um elemento
determinador de certos aspectos formais. A tradução artística, nesse caso, revela-se tão
importante quanto o fio condutor proposto e é a confirmação, tão discutida em teoria, de que
aquilo que se pode imaginar serem duas faces de um construto literário, não pode ser
separado. Nas obras aqui analisadas, há apenas uma unidade indivisível que se fortalece em
todos os instrumentos mobilizados: a forma é ainda uma voz que denuncia, nos textos, a
lacuna não preenchida.
Como conseqüência desse procedimento percebido, o exame ampliou-se em direção a
uma busca minuciosa das ferramentas artísticas que concorrem para compor esse todo, essa
abrangente malha de interconexões que confirma o tema e o realiza, desde a linguagem.
Em razão disso, a análise das imagens e símbolos também evidenciou sua
importância como veículo para tornar real a cobrança do arquétipo materno, sua efetivação
dentro da estrutura da obra. A perícia da escritora em pôr em ação muitos desses meios parte,
provavelmente, do mesmo princípio de onde se origina o elemento, o qual ela aproveita como
seu objeto literário, processo que se comprova na afirmativa de Walter Boechat (1997, p.24),
em seu artigo Arquétipos e mitos do masculino: “Na verdade, o tecido do qual são feitos os
sonhos, as fantasias e a imaginação é o mesmo, pois é constituído pelos arquétipos.”
Então foram examinados todos os elementos que, como o colo, metonímia de proteção
materna, traziam aquela marca dada pelo inconsciente. Por essa qualidade se destacou a
cadeira de Ana, em A sentinela, o quarto interditado da mãe de Exílio, a casa, principalmente
205

em Reunião de família, o trono simbólico de Lilith, em A sentinela, que, se alternando com a


gruta, representa o domínio seguro daquela sobre o afeto da mãe Elsa.
A gruta de A sentinela, por conseguinte, aconchego uterino, foi um dos primeiros
elementos dessa natureza, à qual a ilusão coletiva humana atribuiu, ao longo do tempo e em
todas as culturas, atributos maternos, a ser estudado na obra. A árvore de Reunião de família,
que já se vira utilizada, em todas as suas partes componentes, como metáfora em As
parceiras, bem como a floresta de Exílio são, todavia, os dois elementos naturais mais
manifestamente aproveitados por tal simbolismo.
Outros elementos participantes de um entorno natural, com o qual a mente humana
entra em contato e aos quais a parte inconsciente atribui qualidades significativas suas – o
morro e o mar simbólicos, a presença mágica da lua, o perturbador vento –, também têm um
uso artístico efetivo e uma participação forte na desconstrução das fronteiras de uma realidade
do senso comum, que se vê invadida, sob essa tática, pelas possibilidades inimaginadas do
inconsciente. A manipulação dessas possibilidades pode produzir uma mulher como Olga, em
A sentinela, capaz de conter em si a maternidade real e uma telúrica maternidade mitológica e
de fazer brotar, nas várias personagens, em diversificadas circunstâncias, uma primitividade
animal, seus instintos, sua arcaica natureza sensorial.
Como se vê, forma e conteúdo se entrelaçam com um tal entrosamento para exprimir
os aspectos significativos dos textos que ao analista é impossível traçar limites entre as duas
categorias ou até mesmo distingui-las.
A evidente persistência de tais elementos, bem como de suas variações e de alguns
outros procedimentos específicos, propiciou o deciframento deles mesmos, mas,
principalmente, das relações significativas onde se inserem, indicando, além disso, a presença
de vários campos metafóricos interseccionais, o que acabou se revelando bastante
esclarecedor de todo o cosmo semântico da obra.
Também ficou claro que os aspectos negativos que advêm da incompletude filial
diante do conteúdo inconsciente focalizado forjam, pelas mesmas causas e pelo mesmo
processo, suas imagens. Assim uma figura de Mãe Terrível, nome dado à apavorante faceta
com que a parte insatisfeita do arquétipo se apresenta à consciência, quer na fantasia –
devaneio ou delírio – quer em sonhos, quer na visão projetada em outras pessoas, surge
também em Lya Luft. Inscrita em algumas personagens femininas, escondida atrás de uma
capa de realidade concreta, reflexo da confusão entre mãe e anima na mente masculina, a
fantasia da bruxa, que freqüenta com desenvoltura o universo infantil, mas também o dos
206

adultos, assombra, trazendo os mesmos atributos intimidadores, as páginas da escritora:


caracteriza personagens, apresenta-se em espelhos, chama ao telefone.
Pode revestir-se de uma forma mais intensa e se apresentar como Morte, personagem
que tem sua presença garantida em todos os sete textos, convidada a comparecer de uma
forma realista ou alegorizada como inimiga fiel, nomeada por todos os eufemismos que a
criatividade luftiana permite, mas, reafirmando o grande tema de suas obras, como Mãe
Terrível, afinal.
É esse mundo infantil, espaço e tempo de onde as protagonistas não conseguem fugir,
portanto, o grande fecundador e nutridor da simbologia dos textos, coerência criativa que
enleia o escritor e seu objeto. É dele que saltam para as páginas narrativas o palhaço,
emblema que traduz, através de seu surgimento, a certeza da privação filial – Renato, em
Reunião de família, Gabriel, em Exílio – e o Anão, que carregando possibilidades críticas
significativas – mãe, filho – e possuindo um poder de metamorfose privativo das criaturas
geradas pelas camadas profundas da mente humana – gato, Cego –, marca, de forma
definitiva, sua procedência e o domínio incontido do inconsciente, que age sobre a razão da
personagem principal, na tentativa de favorecer seu equilíbrio.
A predominância desse inconsciente, percebido como indeciso e ameaçador pela
consciência, pode ser visualizada no espaço desfigurado e nebuloso onde se insere a Casa
Vermelha, em Exílio, mas principalmente na atmosfera densa e opaca em que está mergulhada
a casa onde Camilo é velado, em O quarto fechado. O mesmo tom hesitante pode ser sentido
em todos os textos, o que reproduz de forma figurada a atmosfera irresoluta de inconsciente.
Tal aspecto é predominante no discurso essencialmente simbólico do Menino de O ponto
cego, corporificado na bela imagem plástica do cavalo alado, cavalo cor-de-mel, cavalo-anjo.
A utilização dos mesmos recursos manipulados pelos estratos obscuros do psiquismo,
que são compreendidos pela razão como incerteza, dá margem à presença das figuras
andróginas – Otávio, Henrique, o Anjo –, segundo as palavras dos próprios textos e que, de
acordo com os esclarecimentos teóricos seguidos pela presente Tese, são símbolos do
inconsciente e, sempre requisitados, como padrão de perfeição, de conjugação de opostos, de
união completa de sentimentos ambíguos e conflituosos, portanto, de unidade, modelo ideal
de procedimento para as protagonistas.
A expressão máxima do combate de sentimentos acontece em Renata de O quarto
fechado, e sua desagregação se traduz nessa quebra de unidade psíquica, a separação
inadequada de opostos – representados, simbolicamente, por feminino/masculino –, que o
texto do quarto romance concretiza no nascimento dos gêmeos, os quais, ansiando em toda a
207

urdidura da narrativa pela reunião, demonstram a incorreção de um movimento que caminhou


em sentido contrário ao apontado pelo inconsciente nos demais romances.
A obra ficcional de Lya Luft consegue explorar todas as potencialidades que a arte lhe
permite: tomar como referente tanto o real como o apenas possível, manipulá-los
artisticamente de uma forma segura e determinada, ao construir pontes até as profundezas do
psiquismo e trazer de lá resultados incomuns no mundo da consciência, seus significados
expressivos e simbólicos, anexar-lhes cores e valores insuspeitos, mas, principalmente,
conseguir um efeito de impossibilidade sobre o real e de realidade sobre o improvável.
208

I– REFERÊNCIAS

Epígrafes

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31. LÉVÊQUE, Pierre. Animais, deuses e homens: o imaginário das primeiras religiões.
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211

32. LÓPEZ – PEDRAZA, Rafael. Hermes e seus filhos. São Paulo: Paulus, 1999.

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213

II – RESUMO

LIMA, Eliane Ferreira de Cerqueira. O encontro com o arquétipo materno: imaginário e


simbologia em Lya Luft. Rio de Janeiro. 2006. Tese de Doutorado em Literatura Brasileira.
Departamento de Letras Vernáculas. Faculdade de Letras. Universidade Federal do Rio de
Janeiro

O presente trabalho teve como objetivo a análise do sofrimento das personagens


principais motivado pelo vazio afetivo em relação às mães nos sete romances de Lya Luft, o
que indicou um tema único subjacente a todos: a insatisfação das necessidades previstas pelo
arquétipo materno. O estudo minucioso de cada romance e o cotejo final entre eles evidenciou
a predominância de aspectos simbólicos e o aproveitamento de traços característicos do
inconsciente no andamento da narrativa, levando à adoção do pensamento de C.G. Jung e de
seus seguidores a respeito do psiquismo humano e, em especial, de seu conceito de arquétipo
e inconsciente coletivo, teoria que possibilitou uma ampla interpretação dos seres narrativos,
as relações entre eles, suas funções. Também permitiu a revelação do poder expressivo desses
símbolos e demais soluções artísticas de maior alcance e, portanto de maior imprecisão,
largamente presentes na organização dos textos, recursos que se mostraram de fundamental
importância na evolução ficcional e para a apreensão do significado de cada texto dentro da
economia geral da obra.
214

III – RESUMEN

LIMA, Eliane Ferreira de Cerqueira. O encontro com o arquétipo materno: imaginário e


simbologia em Lya Luft. Rio de Janeiro. 2006. Tese de Doutorado em Literatura Brasileira.
Departamento de Letras Vernáculas. Faculdade de Letras. Universidade Federal do Rio de
Janeiro

El actual trabajo tuvo como objetivo el análisis del sufrimiento de los personajes
principales motivado por el vacio afectivo en lo referente a las madres en los siete romances
de Lya Luft, procedimiento que indicó un solo tema subyacente a todos: la insatisfacción de
las necesidades previstas para arquétipo materno. El estudio minucioso de cada romance y el
cotejo entre ellos evidenció el predominio de aspectos simbólicos y la explotación de trazos
característicos de el inconsciente en el curso de la narrativa, conduciendo a la adopción del
pensamiento de C.G. Jung y de sus seguidores respecto a la porción psíquica humana y, en
especial, de su concepto de arquétipo e inconsciente colectivo, teoría que hizo posible una
interpretación amplia de los seres narrativos, las relaciones entre ellos, sus funciones.
También permitió la revelación del poder expresivo de estos símbolos y otras soluciones
artísticas de mayor amplitud y, por conseguiente, de mayor imprecisión, las cuales son usados
com anchura en la organización de los textos, recursos que se habían demostrado de
importancia básica para la evolución ficcional y para la aprehensión del significado de cada
texto dentro de la economia general de la composición.
215

IV – ABSTRACT

LIMA, Eliane Ferreira de Cerqueira. O encontro com o arquétipo materno: imaginário e


simbologia em Lya Luft. Rio de Janeiro. 2006. Tese de Doutorado em Literatura Brasileira.
Departamento de Letras Vernáculas. Faculdade de Letras. Universidade Federal do Rio de
Janeiro

The present work had as objective the analysis of the suffering of the main characters
motivated by emptiness of the affectivity in relation to the mothers in the seven romances of
Lya Luft, what it indicated an underlying only subject to all: the incomplet necessities
foreseen by the motherly archetype. The meticulous study of each romance and the last
comparision between them has evidenced the predominance of symbolic aspects and the
exploitation of the characteristic traces of inconscious in the course of the narrative, leading to
the adoption of thought of C.G. Jung and his followers regarding human psyche and, in
special, of his concept of archetype and collective inconscious, theory that made possible an
ample interpretation of narrative beings, the relations between them, its functions. Also it
allowed the revelation of the expressive power of these symbols and of other artistic solutions
of less superficial and defined reaching, wide present in organizing each text, resources that
they had shown of the basic importance in the fictional evolution and the apprehension of
each text into the general economy of her workmanship.
216

V – ANEXOS

Anexo 1 – A imagem do andrógino

Adão e Eva – Lorenzo Quinn

Adão e Eva – Lorenzo Quinn (escultor nascido em Roma em 1966)


217

Anexo 2 – Representações pré-históricas da Mãe

Vênus de Willendorf – cerca de


25000 anos - Áustria

Vênus de Gagarino – cerca de 22000 anos - Ucrânia

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