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Arquetipo Materno
Arquetipo Materno
FOLHA DE APROVAÇÃO
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________________________
Professora Doutora Elódia Xavier - UFRJ
Orientadora
____________________________________________________________________
Professora Doutora Rosa Maria de Carvalho Gens - UFRJ
____________________________________________________________________
Professor Doutor Sérgio Martagão Gesteira - UFRJ
____________________________________________________________________
Professora Doutora Angélica Soares - UFRJ
____________________________________________________________________
Professora Doutora Helena Parente Cunha - UFRJ
____________________________________________________________________
Professor Doutor Wellington de Almeida Santos – UFRJ
____________________________________________________________________
Professor Doutor Luiz Edmundo Bouças Coutinho - UFRJ
Examinada a Tese
Conceito:
Em: / / 2006.
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DEDICATÓRIA
AGRADECIMENTOS
*Além da Imagem
SINOPSE
SUMÁRIO
V – ANEXOS 216
Anexo 1 – A imagem do andrógino 216
Anexo 2 – Representações pré-históricas da Mãe 217
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1 INTRODUÇÃO
Porém é um trecho anterior do mesmo prefácio que parece antecipar, com muita
precisão, o ponto de vista desenvolvido neste estudo, o que valida sua transcrição:
2 FUNDAMENTOS TEÓRICOS
A apreciação que aqui se define pretende aplicar os conceitos do estudioso suíço Carl
G. Jung, nascido em 1875 e falecido em 1961, o qual fundou a psicologia analítica, teoria
psíquica de base arquetípica. Colaborador de S. Freud durante alguns anos, dele se separou na
amizade e, principalmente, na linha de pensamento, o que motivou, na verdade, o
rompimento.
Seus conceitos e de outros estudiosos que com ele mantenham afinidade – a visão de
que o inconsciente humano, a par de uma parte pessoal, possui uma outra de base coletiva e
que liga cada ser a sua espécie e a suas raízes; a concepção de que tal inconsciente tem como
conteúdo os arquétipos, dados permanentes que são a base para os complexos que se formam
ao longo da vida particular; a noção de um organizador psíquico, o si-mesmo, que conduz as
experiências individuais sempre em direção ao equilíbrio – conceitos que se viram
convocados pela obra ficcional, desde que, no contato inicial, o sofrimento motivado pelo
vazio onde caberia a satisfação do arquétipo materno ficou evidente, foram solidamente
examinados antes do início da execução do plano deste estudo. Esclareceram aspectos
manipulados artisticamente na ficção de Lya Luft para comporem a estrutura de suas várias
tramas e apontaram um caminho seguro para seu entendimento, visto que ajudaram a
descobrir a natureza que possuíam muitas personagens, a decifrar a verdade de suas funções.
Em virtude desse fato, tais conceitos vão sendo utilizados como material
metodológico, ao longo do desenvolvimento, com maior ampliação, a cada passo e, à medida
que o processo analítico vai acontecendo, comprovando sua eficiência interpretativa, como
dar conta dos aspectos específicos de cada romance, mas acima de tudo, de esclarecer a obra
em seu conjunto.
Dentre os mais requisitados teóricos aqui utilizados, além do próprio Jung, podem ser
mencionados Erich Neumann e os esclarecimentos profundos sobre o arquétipo materno e
suas origens; Mircea Eliade, no que tem de iluminador das manifestações psico-simbólicas da
humanidade, de forma geral, e, particularmente, em relação à Terra – mãe primeira – e ao
andrógino, enfaticamente visualizado no texto luftiano; M. Esther Harding, em seu estudo das
ligações simbólicas materno-femininas com a natureza no imaginário humano; Sylvia B.
Perera no estudado que faz, sob uma perspectiva junguiana, dos mitos que focalizam a mulher
e, finalmente, Marie-Louise von Franz na aplicabilidade das mesmas teorias ao texto literário.
Estes apresentaram-se como fundamentais, sem prejuízo de outros escritores, cujas
obras vêm enumeradas no item das Referências, e que, pelo estudo de algumas questões mais
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específicas, também têm enorme validade para o desvendamento dos procedimentos de uma
obra essencialmente simbólica como é a da escritora gaúcha.
Tanto na aplicação da teoria que foi apreendida através da bibliografia lida quanto no
aproveitamento das definições simbólicas dos verbetes dos dicionários específicos
consultados, a primeira regra estabelecida na composição da análise ora em curso é que o
escritor é uma individualidade e que ele adapta, por conseguinte, as concepções coletivas a
seu propósito artístico e que só deve ser levado em consideração o material que atenda,
rigorosamente, ao desejo de desvendamento do próprio texto.
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Seguindo a proposta deste trabalho, dos romances que compõem o corpus narrativo
estudado – As parceiras (1980), A asa esquerda do anjo (1981), Reunião de família (1982), O
quarto fechado (1984), Exílio (1987), A sentinela (1994), O ponto cego (1999) – são
ressaltados aqueles elementos de relevância significativa e que permeiam toda a obra,
algumas vezes, com aparentes modificações formais e funcionais.
A obstinação com que muitos desses fatores voltam aos textos, mesmo de um romance
para outro, ainda que as realizações narrativas se apresentem sob as mais variadas roupagens,
pode-se já adiantar, revela um elo que os liga fortemente: a ausência de realização pessoal do
arquétipo materno: “Não me despedi dela: estamos tão distanciadas que nenhum adeus se
ouviria por cima dessa fenda.” (AS, p.27). Assim, a variabilidade que assume essa omissão
nos diversos enredos só faz aumentar a importância desse elemento psíquico, apropriado pela
obra e tornado ficcional, o qual, por si só, já se caracteriza, como foi afirmado anteriormente,
pela forma metamorfoseada com que normalmente se apresenta. “Sombras encaixotadas,
vermes aflitos no sótão, vultos na memória. Tudo o que dizemos: metáfora da mesma coisa.”
(p.95), como diria a própria protagonista de As parceiras.
Para o leitor, porém, chegar à compreensão da transformação desse fecundo tesouro
psíquico, que, então, se apresenta como obra de arte, dessa aventura particular, cujas raízes se
aprofundam, também, no terreno coletivo do inconsciente humano, tornam-se necessárias, ao
longo do estudo, uma ou outra citação de alguns conceitos junguianos. Utilizados doravante
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como material metodológico, sua enunciação, porém, se caracteriza por ser superficial e
resumida, pois a análise, objetivou, isso sim, uma segura interpretação do fazer literário da
escritora e o alcance artístico dessa sua criativa produção.
Segundo os conceitos emitidos pelo eminente estudioso, principalmente, em Aion –
estudos sobre o simbolismo do si-mesmo (JUNG, 2000a) e Os arquétipos e o inconsciente
coletivo (JUNG, 2000b), o ser humano possui dois sistemas psíquicos, evidentemente,
interligados.
O primeiro diz respeito à psique pessoal. Nessa se insere o campo da consciência, cujo
centro é o “eu”, agente de todos os atos conscientes da pessoa, o qual possui livre-arbítrio,
ainda que restrito a esses limites.
Para o entendimento da obra ora examinada é importante ser ressaltado o fato de que,
segundo o fundador da psicologia analítica, o ego, centro da consciência, se relaciona com o
inconsciente através de uma “gravitação psíquica”: se, normalmente, ele é vontade e interesse,
que podem ser traduzidos em ação, quando ocorre uma diminuição causada por motivo de
desequilíbrio psíquico, condição em que se encontram todas as protagonistas – “Nazaré me
ronda, insinua, acha que ando sozinha demais, que me deito demais, na rede ou na cama, que
penso demais. Pensar tanto faz mal. Ela tem razão.” (AP, p.94) –, seus conteúdos são atraídos
pelos componentes energeticamente mais carregados do inconsciente, tornando-se
inconscientes outra vez:
Choro por tudo e por todos. Se não sair dessa depressão, não vou nem
poder ser mulher de Antônio, nem mãe daquele seu filho
problemático.
Choro como criança, rosto escondido. (E, p.31-32)
sempre na fantasia humana – “Frau Wolf tiranizava a família toda...” (AAEA, p.18) – com
maior força energética que a do ego, cuja carga se vê, desse modo, sorvida.
Evidente em narrativas de alcance de grandes grupos humanos, a recriação desse
fenômeno, mesmo que de modo não intencional, também pode ser reconhecida na obra
examinada, como se verá, cabalmente, neste capítulo e no sexto, fato que, aqui posto de forma
sucinta, principia a revelar, na verdade, elementos marcadores dos enredos da obra, como se
comprova daqui por diante.
Prosseguindo com a teoria utilizada, deve-se acrescentar que esse sujeito consciente
atinge seu limite todas as vezes que alcança o âmbito do “desconhecido”, ou seja, tudo quanto
se ignora psiquicamente: “Apenas um encontro de família: mas sinto-me como se estivesse à
beira de um lago, um rio, mirando a superfície calma. Nas profundezas, movem-se criaturas
estranhas. Se as contemplar, ainda serei a mesma pessoa? (RF, p.15).
Uma das partes desse desconhecido é o inconsciente pessoal, cujos conteúdos são
dependentes das experiências individuais, de causas recentes, e, mais ou menos superficiais, e
aos quais Jung denominou “complexos”. Murray Stein, analista junguiano, em sua obra Jung:
O mapa da alma, cita-lhe a definição da estrutura desses complexos como “sendo composta
de imagens associadas e memórias congeladas de momentos traumáticos” (STEIN, /s.d./,
p.55). Chama a atenção, além disso, o que é bastante significativo para a obra ora examinada,
para o fato de que é a emoção que une os vários elementos associados dos complexos.
Como se pode acrescentar, os conteúdos armazenados nessa camada da psique, tendo
sido vivenciados, apesar de esquecidos, têm possibilidade de se tornar conscientes: “Tudo
nasce da minha fantasia, da memória; da funda garganta do pensamento, onde nem eu
penetro, mas de onde sou parida todos os dias, dormindo e acordada: é de lá que venho, dedos
enredados nos fios que transformo em tapetes.” (AS, p.14)
Torna-se de fundamental importância, então, a observação de que a trama
desenvolvida pela escritora gaúcha em cada romance caracterizaria, a princípio, lesões em
suas criaturas ficcionais nesse nível do psiquismo, o que é, mais adiante rediscutido. As
deficiências afetivas reconhecidas em toda personagem central, em especial, no que diz
respeito a sua mãe pessoal, alimentaria os complexos que as acompanham e aparecem como
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Esses elementos, que afloram das profundezas, vão indicando os aspectos encobertos
da face mais externa voltada para o leitor e que, muitas vezes, podem não corresponder à
verdade ou ser uma avaliação desfigurada pela fantasia da protagonista. É o próprio texto
luftiano, portanto, que vem demonstrar a justeza e comprovar a aplicabilidade da definição
anterior:
Ou sempre fui injusta com ela, que hoje vegeta na aridez de sua mente
obscurecida? Uma coisa é o que somos, outra o que vêem de nós: sei disso,
porque, apesar de todo o nosso amor, meu filho e eu habitamos zonas
diferentes. O que é bom ou ruim? Quem decide? (AS, p. 16)
realmente um valor fortemente emocional e afetivo para o indivíduo para que tenha vida e
significação. São exatamente essas condições em relação à vivência ficcional das
personagens, a intensa comoção que despertam, que possibilitam a discriminação de tais
imagens.
Todos os arquétipos têm um caráter positivo, favorável, luminoso, que aponta para o
alto e outro que aponta para baixo, em parte negativo e desfavorável, como se vê por toda a
obra que é objeto desta análise.
Como o sempre repetido em estudos feitos por Jung e pelos que levaram adiante sua
obra, a presença dos arquétipos pode ser comprovada nos contos de fada, bem como nos
sonhos e fantasias modernos, os quais, também, apresentam esse material coletivo, que surge
praticamente por toda parte, tratando-se, então, de fantasias normais.
Assim como os demais arquétipos, as características do elemento que Jung define
como o materno podem ser encontradas, de forma apreensível, em todas as épocas, nos mais
imprevisíveis setores da vida cultural humana, metamorfoseado tal elemento em uma
variedade incalculável de aspectos: é a mãe propriamente dita, estendendo-se até a avó (é com
essa funcionalidade que se pode encarar Frau Wolf, de A asa esquerda do anjo, Catarina de
As parceiras, Ana, de A sentinela), a sogra, a madrasta etc –; a meta da salvação – o paraíso, o
Reino de Deus –; a Igreja; a Universidade; a cidade ou país (mesmo recebendo o nome
inadequado de pátria e neste sentido, é relevante a dupla rejeição sofrida por Gisela, em A asa
esquerda do anjo, por parte de dois símbolos maternos: de um lado a pátria dos brasileiros, de
outro, sua família alemã); o Céu; a Terra (deve-se, já, atentar para a enorme importância de tal
simbologia, tendo em vista os comentários posteriores que serão feitos a respeito de Olga em
A sentinela, por exemplo.); a floresta (fundamental para o enredo de Exílio e que se configura,
claramente, em suas ligações com o arquétipo); o jardim, a gruta (esse elemento de extrema
relevância em A sentinela); a árvore (é um símbolo recorrente em Lya Luft, desde As
parceiras e como símbolo materno em Reunião de família); o mar (em As parceiras e Exílio)
e as águas quietas; a matéria (com a mesma raiz de mater); o mundo subterrâneo (tal aspecto
mostrar-se-á importante em Reunião de família e Exílio) e a Lua (tão simbolicamente
surpreendida em Exílio, A sentinela e O ponto cego), dentre outros. A natureza, desse modo,
englobando todos os elementos citados acima, como se vê no capítulo 4, é associativamente
vivenciada como maternal na imaginação humana, por ser aquela que contém, que gera e
nutre, acolhe e protege.
Vale a pena insistir no argumento de que, nas tramas em exame, as protagonistas têm
extremado seu sofrimento em face de uma relação insatisfatória com a mãe, dado que,
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avaliado na superfície, se ligaria à sua psique pessoal. No entender deste trabalho, porém, o
aumento desgovernado desse sentimento se daria, verdadeiramente, pela ativação involuntária
do componente que parte daquela camada inconsciente pertencente à espécie humana e sobre
a qual o indivíduo não tem controle. Presos a tal origem estão o farfalhar dos galhos da árvore
cortada em Reunião de família, o espectro que surge ao espelho em Exílio, a veranista de As
parceiras, todos os rostos de personagens mortas, mais pressentidos que vistos, nas diversas
narrativas: “Sinto os olhos úmidos, fitando a janela. De repente, levo um susto: por trás da
vidraça, um rosto. Nitidamente um rosto que me encara. Não pode ser Evelyn: é um rosto
pequeno demais. E me observa.” (RF, p.22)
Para que o caminho dos processos pelos quais passam as personagens seja melhor
acompanhado é necessário acrescentar à discussão, ainda, certos conceitos veiculados pelo
psicólogo analista Erich Neumann em seu livro A grande mãe (/s.d./), mesmo que de forma
sintética.
Explica ele que, tal qual o ser humano primitivo, a criança recém-nascida, dominada
pelos instintos, é quase que somente parte da espécie, e encontra-se sob o domínio daquilo
que, por suas características fundamentais, se pode entender e nomear, apelando-se para a
grande cultura humana, como a Grande Mãe. Tal situação original da psique pode ser vista,
ainda sob o mesmo direcionamento, como matriarcal, relacionada à função de conter, ou seja,
bastante presa à necessidade de alimento, proteção e calor, situações explícitas ou
literariamente simbólicas, como fica evidente até em uma observação superficial, no que diz
respeito às carentes personagens centrais das obras ora examinadas: “Penso infantilmente, que
bom que Irmã Cândida está viva. Se tudo der errado, a gente corre para o colo da mãe.” (E,
p.145).
Entretanto, à medida que ocorre um crescimento no ser humano, individual ou
historicamente falando, devem ser desenvolvidas as funções do gerar e do libertar. Se uma
pessoa, não se encontra mais na situação original da criança e não consegue, sadiamente,
chegar ao desenvolvimento de tais funções, o conter, como conseqüência, acaba sendo
experienciado, negativamente, como reter e fixar, podendo chegar ao letal do Grande
Maternal, o de aprisionar: “- Você está botando fora um homem incrivelmente bom, paciente,
e amoroso. Nora, quando é que você vai crescer?” (AS, p.102). Pode-se, facilmente,
reconhecer, em todos os romances doravante apreciados, para as protagonistas, essa condição
de congelamento dentro do passado, de encarceramento no interior da própria infância. “-
Esse amor de criança carente na sua idade é coisa de psiquiatra.” (p.28) diz, exemplarmente, a
personagem Olga para Nora, em A sentinela.
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É possível surgirem, daí, símbolos de retenção, como nos mitos, o que, também, é
reconhecível nos sonhos de Alice, em Reunião de família ou nos sentimentos de Nora, filha,
em A sentinela: “Ainda quero extrair-lhe do coração esse parto que ela não me deu, essa
maternidade verdadeira; mas isso, nada pode lhe arrancar.” (p. 26)
O arquétipo materno, esse conteúdo do inconsciente coletivo, segundo Jung, por ter
presença basilar no psiquismo humano, revelar-se-ia como uma força irrefreável e
transbordaria, portanto, até para obras de arte como a aqui apreciada, pois, como confirma
Neumann (/s.d./, p.29), “As imagens simbólicas do inconsciente são a fonte criativa do
espírito humano em todas as suas realizações.”
Não é à toa, portanto, que o primeiro romance estudado se intitula As parceiras: de
todas as ligações possíveis que justificam o título – e elas são inúmeras, como logo se verá – e
das ligações que unem todas as personagens femininas, o elo materno, que reforçaria a
cumplicidade mulher/mulher, traduzida na relação mãe/filha, passa a ser focalizado em sua
necessidade de realização e como fundamental na estrutura narrativa.
Parece muito ilustrativo citar o que diz, ainda, o mesmo Neumann, na mesma obra
anteriormente citada: “O grande motivo essencial dos Mistérios de Elêusis e, portanto, de
todos os mistérios matriarcais é a heuresis, a redescoberta de Core por Deméter, a reunião de
mãe e filha.” (p.268.)
E na página seguinte, a complementação do comentário parece justificar com
perfeição o surgimento dessas figuras femininas desequilibradas, alheias à vida e cujos
destinos se caracterizam pela impotência de conduzirem para adiante esse elo materno
interrompido. “Entretanto, o verdadeiro mistério através do qual se restabelece, enfim, a
relação primordial mas em um novo plano consiste na filha que se torna idêntica à mãe, ela se
torna a mãe transformando-se, assim, em Deméter.”
Neste capítulo, é feito o estudo dos vários elementos simbólicos, os quais, até em
pequenos detalhes do texto, reafirmam essa referida causa – ausência/ presença do arquétipo
materno –, linha que conduz os textos em questão e a leitura crítica aqui efetuada. Tais
elementos penetram em todos os recursos artísticos postos em ação pela escritora, tanto em
relação às personagens trazidas à arena narrativa, quanto aos elementos de um suposto cenário
que se descaracteriza como puramente ambiental, para ser utilizado em proveito do desenrolar
da trama, como expressão de sua causa motriz.
Vale chamar a atenção, então, da perfeita afinidade do tema com sua realização nas
obras. A cada romance, através das mais variadas manifestações, reafirma-se aquela
impreenchível lacuna. A obra se gesta, desse modo, dentro de uma absoluta coerência, como
24
3.1 O colo
Recorrência, nos textos apreciados, de alta relevância por todo o significado que
encerra, é o colo materno – “O que vai ser de mim? Quem vai me dar colo de mãe, quem vai
me confortar e manter afastados os horrores todos?” (OPC, p.151). Como metonímia, na obra
em questão, aponta, sintomaticamente, para o aprisionamento na função de conter daquela
situação original matriarcal, citada por Neumann, perfeita tradução artística da teoria que ali
desenvolve e, portanto, revela-se um recurso não acidental em um texto que tem suas bases,
precisamente, nessa questão.
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A representação ideal do elemento aqui estudado está naquela avó paterna de Exílio,
em cujo retrato a personagem central se reconhece – “Estou no colo dela, com aquele ar de
órfã com que devo ter nascido.” (p.165) –, avó que, como se vê mais adiante, traz em si a
representação primordial, arcaica, do colo relacionado à Mãe-Terra: “Tudo em casa deles era
diferente da nossa: menos sofisticado, menos misterioso, mais vital. Pão feito no forno;
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verdura da horta; lençóis ásperos; mãos nodosas mas firmes, que gostavam de botar a gente
no colo.” (p.166)
Na obra da qual este estudo tem extraído conceitos fundamentais para o entendimento
das narrativas analisadas, Neumann, diz que "No ritual e nos costumes, sentar-se sobre
alguma coisa tem o significado de 'tomar posse' daquilo." (p.92), como introdução para o que
acrescenta na mesma página:
Não é por acaso que o nome da maior deusa-mãe dos cultos antigos seja
“Ísis”, o assento, o trono, cujo símbolo ela trazia sobre a cabeça; e o rei ao
“tomar posse” da terra, da deusa-mãe, age de acordo com o sentido da
palavra, posto que senta-se no colo daquela (sobre o seu útero).
Há, como se pode perceber, um vínculo estreitamente estabelecido por Nora entre a
preferência de Elsa pela filha primogênita e o domínio, por aquela, do trono da gruta, o que
produz, como conseqüência, todo o seu sofrimento.
Ainda haverá, no fundo da nossa gruta uma pedra redonda? Que servia de
trono para Lilith, a rainha , em nossas brincadeiras, quando eu era a escrava
e Lino o bobo da corte; e tínhamos de prestar homenagem a Lilith
entronizada na pedra... (AS, p.37)
Mas parece ser o trecho relacionado à tão significativa Mamãe, o que apresenta a mais
perfeita definição artística para esse sonhado objeto materno, de tão profunda raiz no
imaginário humano. O título do romance no qual a personagem se insere – O quarto fechado
– pode ter, desta maneira, um dos possíveis significados desvendados, no que diz respeito à
protagonista e seus filhos, o que acolheria de vez as conclusões aqui desenvolvidas, ao
anexar-se, tal qual sinônimo, à cadeia dos termos ora citados: “Mamãe acolhera Renata
calidamente: seu peito, roído, era um aposento arejado onde caberiam Renata e seus dilemas,
os futuros filhos. As dores e medos de todo o mundo pareciam caber folgadamente nele.”
(p.58)
A interdição, então, desse “aposento arejado” tem valor de chave significativa no livro
editado posteriormente – “Dorme muito durante o dia; ao menos, fica trancada no quarto, para
mim o mais delicioso lugar da casa; mas onde só entro escondida, quando ela não está. Porque
minha mãe detesta que lhe invadam a privacidade.” (p.18) –, pois funciona, textualmente,
como um reforço qualificativo da inacessível mãe de Exílio: “De nossa mãe, lembro o abraço
negado, o olhar fugidio, o sorriso ausente...” (p.74) .
A tentativa do apossar-se da mãe, por seu quarto, através do “entro escondida, quando
ela não está”, pode ser equiparada, no alcance expressivo, à entrada na gruta, em A sentinela,
quando da ausência de Lilith, guardiã e dona, enfim, da figura genitora. “O retorno ao útero é
expresso quer pela reclusão do neófito numa choça, quer pelo fato de ser simbolicamente
tragado por um monstro, quer pela penetração num terreno sagrado identificado ao útero da
Mãe-Terra.”, diz Mircea Eliade, em seu estudo sobre o retorno coletivo ou individual às
origens.(ELIADE, 2000, p.75)
devaneios do repouso, a citação seguinte: “A intimidade da casa bem fechada, bem protegida,
reclama naturalmente as intimidades maiores, em particular a do regaço materno, e depois a
do ventre materno.”(Ibid., p.94-95).
Um último elemento vem compor a prolongada lista que, a cada nova inserção, aponta
para o mesmo símbolo: a cadeira, ainda da avó, de A sentinela – “É minha; gosto de me
embalar nela; é o colo de mãe que posso ter.” (p.95). Dos vários citados anteriormente, é,
talvez, o que melhor complete, enfim a questão, retomando e sintetizando todos os elementos
anteriores.
São as definidoras palavras de Neumann, mais uma vez, unindo a proteção do colo à
afetiva conquista do trono, objeto que intensifica o valor da união aqui examinada, que vêm
concorrer para a compreensão definitiva do ponto ora discutido, ao encadear esse último
elemento, numa síntese, aos demais:
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Naquele tempo, mais que nunca, me senti próxima de minha avó: também
Catarina tivera uma realidade insuportável a enfrentar, e assumira aquilo a
seu modo. (p.124)
1
O uróboro ou uroboros é um símbolo alquímico representado pela serpente ou dragão que engole a própria
cauda.
32
si o amor filial tão solicitado pela protagonista: “É ela o que me resta, sombra de mãe: velha,
cansada, talvez doente. Tem olheiras roxas, respiração difícil? Põe a mão no peito às vezes, ao
subir escadas? Não quero saber: para mim, é eterna.” (p180).
No que concerne a ela, é justo que se acrescente, vislumbra-se um outro tipo de
sentimento menos delimitado, que, por esse motivo, pode ser interpretado, ainda, como uma
adulteração oblíqua dessa vinculação mãe-filha:
Afeição não esclarecida de ambas as partes – “O que realmente sentiu pela perturbada
adolescente que fui?” (p.187), a religiosa chega a ser afastada do colégio pela inconveniência
da intimidade sentimental estabelecida entre elas: “Fui pensando na minha Freira. Tive por ela
essa paixão difusa e confusa das adolescentes por uma mulher idealizada. É possível que,
alma ardente, ela alimentasse por mim afetos que de hábito controlava severamente.” (p.135).
Quando morre a amiga religiosa, como nas demais narrativas, a personagem nuclear,
sem lenitivo possível, vai até o fundo do poço e, eliminada a falsa mãe, vê-se invadida,
incontrolavelmente, ainda pela face verdadeira do arquétipo: “Pesada de luto, subo a escada e
me preparo para mais um velório de minha mãe.” (p.186).
Paroxismo dessa privação, em Reunião de família, são expostos os mais sofridos
momentos da tentativa de Alice, sujeito da enunciação, de preenchimento da figura materna
desejada pela irmã Evelyn – “Olho para Evelyn e recordo aquele brinquedo da infância, foi
raro mais singular: ela subia para minha cama, quando era bem pequena, e pedia para
brincarmos de ‘mãe e filha’.Então eu a tomava nos braços, embalava. Um brinquedo
melancólico e doce.” (p.60).
Mas é o comentário posterior sobre o desejo de afeição por parte da pequena irmã que
encaminha o entendimento da inadequação da própria narradora para a vida: “Olhando para
ela agora, meu coração se confrange: eu podia ter tentado ser sua mãe, embora não soubesse
como.” (p.60).
A mesma experiência dilacerante, descoberta tardiamente e adiante contada, agora
sobre seu outro irmão Renato, na época, homem de quase vinte anos, aumenta a crueza da
narrativa e desnuda emoções insatisfeitas e cristalizadas que mantêm as personagens
prisioneiras em uma eterna infância:
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- É. Ele ia para o quarto dela de noite, ficava conversando assim como quem
não quer nada, depois pedia para Berta fazer de conta que era mãe dele.
Implorava como se fosse um menino pequeno. Então deitava a cabeça no
colo dela, Berta ficava embalando-o e falando bobagens um tempo enorme.
Depois ele levantava e ia embora...Só isso. (p.96)
3.3 O palhaço
Quando eu era pequena e não queria comer, meu pai fazia desenhos no
prato: uma cara de palhaço, nariz de tomate, olhos de feijão, boca de
pimentão, cabelo de cenoura. Eu comia, desfigurando a carantonha. Mais
tarde fiz isso com Lucas. (p.192)
Uma observação mais aprofundada do trecho acima transcrito, não obstante, começa a
esvaziar a positividade desse elemento sempre presente na imaginação da criança. O emprego
desse “Mais tarde fiz isso com Lucas”, enunciado em um tempo de adulta, admite o encontro
com uma bifurcação interpretativa: o da repetição, pela narradora mãe, para sua criança, do
gesto brincalhão e amoroso de incentivo do pai ou a repetição somente desse ato de
“desfiguração”, ainda por ela, agora com o próprio filho, entendimento cuja possibilidade se
fundamenta no abandono do menino pela protagonista. Essa segunda leitura se prende
inteiramente ao eixo palhaço/insatisfação filial que é perseguido, em seus aspectos funcionais,
daqui para a frente, neste segmento.
Da mesma forma que a constância com que são empregados outros recursos
expressivos aponta a presença de um campo metafórico especial, tal qual, em última análise,
em qualquer manifestação artística, a freqüência com que o palhaço aparece em toda a obra
solicita um cuidado e uma reflexão redobrados em relação a ele no sentido de apreender todo
o conjunto significativo do qual faz parte ou para o qual aponta como força indicial, ensejo
que começa a se apresentar ao atento leitor desde o primeiro romance em que aparece.
Dentro da coerência que permeia toda a obra – “Martim contava que, quando
pequenos, ele e a irmã eram os preferidos de Mamãe, que rejeitava a filha verdadeira.” (p.61),
recria-se em Mamãe de O quarto fechado, pelos mesmos motivos que em outras personagens,
a figura zombeteira, aqui descrita. O surgimento desse atributo, que adere como uma segunda
pele, distingue-se, assim, como um mecanismo valorativo e deve ser entendido, no caso, não
como uma dessacralização do mito materno em si, valendo, estritamente, como uma imagem
desse vazio ora estudado : – “Mamãe gemeu; deixara um resto de pintura no rosto, a cara de
um velho palhaço infeliz.” (p.120) . Assim apreendida, a personagem vale menos como peça
da engrenagem de seu próprio texto do que como representação ideológica do conjunto da
obra.
No entanto são os tão pouco amados gêmeos desse mesmo texto que se afiguram,
nesse sentido, como um rascunho antecipatório dessa solução expressiva que surgiria com
virulência total no livro seguinte: “Ela gostava de fantasiá-los com roupas de antigas festas,
carnavais remotos: maquiava-os com capricho e fazia com que desfilassem para Mamãe na
sala: duas sensuais odaliscas, dois melancólicos pierrôs. Renata desviava o olhar.” (p.84)
Em Exílio, o vocábulo “órfão” e seus derivados, como foi salientado anteriormente,
aparecem, pelo menos, seis vezes ao longo do texto como índice do sentimento de uma
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protagonista que chora em todas as suas páginas pelo afeto de uma mãe alheada e por sua
perda, então abertamente caracterizada, através do suicídio. É sem surpresa, nesse caso,
seguindo uma tendência expressiva da escritora, que quem acompanha a narrativa vê o objeto
em estudo reaparecer na estrutura do romance, obsessivamente, em vários desenhos de
Gabriel, revigorado na significação emblemática já introduzida nos dois romances anteriores,
imbuído do papel de assinalador, pelos mesmos motivos, da causa da doença mental do irmão
– “Um louco pintaria aqueles palhaços tão reais? Ou só um louco os pintaria, todos com suas
próprias feições?” (p.113).
A origem desse aspecto restritivo do arquétipo pode ser detectada nas palavras
seguintes, origem que, tendo seu alcance facilmente ampliado para o próprio contexto
luftiano, ajuda a acompanhar e entender o destino e sofrimento de suas personagens:
Crescendo com um sentimento forte de ter sido sempre negligenciada pela mãe –
“Henrique preenchia um extraordinário vazio em mim. Para alguém eu finalmente era
especial, esse alguém não me rejeitaria nunca. Essa pessoa me amaria acima de tudo, sem
traições.” (p.103) –, não consegue encontrar em si o equilíbrio necessário para conduzir para a
frente seu próprio projeto materno: “Talvez eu simplesmente não tivesse estrutura interna para
ser diferente, exigia um amor sem tréguas e sem limites, e isso só poderia ter com meu filho.
Mas Henrique crescia e cada vez parecia mais ansioso por se afastar de mim.” (p.105).
Desenvolve, em tais condições, um sentimento neurótico de insegurança: “A experiência da
maternidade era doce e aterrorizante. Ele podia cair, se machucar, engasgar-se, perder-se na
rua se Jaime o largasse, morrer.” (p.101). É ela mesma, em seu momento final de revisão,
quem afirma: “Talvez minha ansiedade fosse o inconsciente terror de perder mais uma vez
uma pessoa muito amada, e eu não amara nada, nem ninguém, como àquele filho.” (p.101)
que lhe restou na vida, eu sei, eu sei! Mas me deixe em paz, por amor de Deus.” (p.111).
Assim, o estático estado psico-afetivo em que se encontra a personagem principal termina se
perpetuando incontrolavelmente.
Dando-se continuidade ao exame abordado neste item deve-se acrescentar que os
aspectos nefastos com que se apresenta esse face do arquétipo – a Mãe Terrível –, nos
romances investigados, são a bruxa (aquela presença impalpável de mulher, voz que chama ao
telefone, rosto que surge ao espelho, em Exílio) e que se constitui, na verdade, em elemento
recorrente no corpus analisado; o túmulo como útero devorador, bastante significativo em A
asa esquerda do anjo; o caixão; o buraco sombrio das profundezas – do mar devorador, como
se encontra em As parceiras ou do abismo (de novo, o sonho reiteradamente presente em
Reunião de família, pode ser um bom exemplo); a morte, presente em quase todos os textos
da autora, sobremaneira em As parceiras, em A asa esquerda do anjo e, em O quarto fechado,
ali revestida de essencialidade para a trama.
Se, como se vê, traços essenciais desse arquétipo são o bondoso, o que gera, cuida e
proporciona condições de crescimento, os aspectos negativos podem, igualmente, surgir,
dependendo do estado psíquico em que o arquétipo é ativado, condição preponderante nas
histórias analisadas, constituindo-se o que se denomina a Mãe Terrível, como se constata
neste segmento. A figura assustadora das Górgonas, cuja cabeça é coberta de serpentes –
analogia feita com a personagem Aretusa, em Reunião de família –, com seu olhar
petrificador, é uma projeção exterior desse aspecto do arquétipo na cultura ocidental.
Monique Augras, em A dimensão simbólica, diz que “Nos mitos da Iara, pelo contrário, é o
filho que morre por ter-se unido à Mãe-d’Água.”, acrescentando que o mito indígena
brasileiro “aparece aliás mais como um símbolo da mãe terrível...”. (1967, p.132),
comprovando a hipótese junguiana de que o inconsciente coletivo humano, nos mais variados
lugares, produz sempre os mesmos símbolos.
Nos romances da escritora gaúcha, dado o constante não atendimento da satisfação
da necessidade psíquica ainda primitiva, é de se esperar que a faceta negativa conduza, como
de fato ocorre, toda a urdidura narrativa em questão, sendo sua configuração dominante em
Exílio.
Ressalte-se que os símbolos que representam o lado arquetípico negativo, como ensina
Jung, não resultam do relacionamento real entre mãe e filha ou de características imanentes ao
feminino. Geradas por fontes psíquicas fantásticas e profundas e não tendo sua
correspondência no mundo exterior, essas representações se metamorfoseiam em imagens
possíveis a partir das vivências da consciência. A experiência do horror, sob o lado escuro do
41
(p.43) – e que se agiganta diante da pequenez adotada por Maria da Graça em seu papel
materno: “Falávamos à vontade na mesa, ríamos como duas meninas.” (p.45).
Esse “lugar” inatingível onde se agitam as figuras de “Mães Devoradoras”, é
apreensível, de forma denotadora, também no nível da linguagem, onde se identifica todo um
universo semântico periférico à palavra ausente, como as palavras desinteressada, distraída,
distante ou alheada, reiteradamente empregadas, ligadas à mãe, em primeiro lugar, ainda que,
também, o sejam em qualquer relação afetiva amenizadora dessa lacuna, universo que gravita
em torno de sentimentos, ações e gestos, em vários desses romances. Assumem tais palavras
uma conotação forte de relacionamento sentimental não estabelecido e envolvem algumas
personagens em uma atmosfera de exclusão, presas a uma dimensão à parte das demais, como
se pode comprovar por toda a obra:
Nossa família era isso: os pais, felizes e alheados, falavam conosco, nos
levavam para a praia nos verões. (AP, p.28)
Dizem que do jardim se via seu rosto branco e ausente. (AP, p.12).
Ninguém tem uma mãe tão bonita e majestosa. E tão remota. (E, p.18)
Por sorte, casei-me com um homem menos exigente, que não é severo;
apenas um pouco distante. (RF, p.20)
Embora Frau Wolf seja a mãe do pai, acrescida dos traços naturais de sua
personalidade, os quais fazem dela a encarnação perfeita dessa “Grande Mãe” – “Meu pai
ficava dócil diante dela, ouvia atento seus conselhos sobre nossa vida particular ou sobre
assuntos das empresas. Minha mãe assumia a atitude de uma colegial.” (p.45) –, fica mantida
sua condição hierárquica de avó, sendo perfeita para ela a definição: são os ecos de uma
memória infantil insegura em uma personagem adulta em desequilíbrio que configuram o
perfil da matriarca da família; é apenas através desse filtro que se estabelece o contato do
leitor com a personagem, impossibilitado este de verificação da real dimensão daquela, que
aparece sempre como uma grande presença, diante da qual a mãe brasileira quase se anula –
“Minha mãe pára atrás da sogra, indecisa. Meu momento de felicidade ruiu.” (p.64).
Por esse motivo, enorme significação assume a morte da insegura, embora meiga e
acessível, Maria da Graça: caindo sobre os ovos que se quebram – símbolos evidentes de
continuação de vida, de procriação e, no caso, de maternidade malograda –, morrendo com o
rosto sujo de gema, traduz definitivamente tal carência na vida da filha, preenchida, desde o
começo, pela outra imagem materna negativa, mais presente, mais forte, como se pode
comprovar em outro momento da página 64:
Minha mãe vem ao meu encalço, fala brandamente, não sabe ao certo o que
fazer, sua dúvida me aflige mais. Não me deixo convencer nem consolar,
estou encolhida, obstinada, feroz porque sei que os adultos – a avó – acabam
vencendo sempre.
3.4.1 A morte
seja, que a imagem do animal serve, normalmente, para simbolizar estados distantes da
consciência humana.
Os vários nomes por que a morte de Camilo é anunciada, mais do que simples
eufemismos, como já se vê em Exílio – “Mas confessa-me que sente a morte rondando. Diz
‘ela’, e nós duas sabemos de quem se trata” (p.102) –, são na verdade descrições,
caracterizações funcionais e valorativas dentro da trama, por se estenderem, em alguns casos,
até aquele que a designa. “Aquela” ou “Adversária” são as expressões empregadas em relação
aos sentimentos de Martim, de punhos cerrados; “Sinistra” aos de Clara, que conhecia o jogo
de morrer dos gêmeos; “Anêmona”, a actínia marítima, que se caracteriza por sugar e devorar
os peixes que dela se aproximam, relacionada aos de Carolina.
Mas nesse quarto livro, apesar de toda a carga dramática que acompanha a presença de
Thanatos, Renata, que desde criança é atraída pelo soturno quadro daquela “ilha dos mortos”,
quadro sentido, no velório do filho, como “belo e consolador”, sempre pressente no rosto do
filho um sorriso e imagina, expressando, talvez, o seu próprio anseio, que o recado enviado
por este “Talvez seja alívio, talvez libertação...”(p.48). O desejo da morte, expresso tão
diretamente em “Ansiava por ela muitas vezes, como libertação de seus tormentos.” (OQF,
46
Se um menino – que tem um Pai com olho de vidro, que se esfrega nas
moças e bate em criança – saltar do telhado, um cavalo que bebe em águas
escuras o levará consigo? (p.101)
Nunca vi a mulher afogada montada no meio daquelas asas, mas sabia: ela
está ali, o cabelo entrançado com as crinas do animal. (p.126)
3.4.2 A bruxa
Nestes dias, minha companhia mora naquele espelho sobre a cômoda. Não
olho para lá a não ser raras vezes, e minha mãe passa ali no fundo, vagarosa;
olhos de bruxa, e uma atração que me arrastaria a sei eu que abismos, se me
debruçasse para ela. (E, p.57)
Em Exílio, essa imagem especial irá se apresentar e perseguir a protagonista das mais
variadas formas, delirantemente, como se verá, com detalhes nos itens 6.3. e 6.4.
A figura da bruxa, adulteração da mãe, a qual acossa essa protagonista de forma clara,
como no romance citado, pode insinuar-se, outrossim, no discurso narrativo de todos os
outros textos, metamorfoseado nas formas mais sutis, menos esperadas, recuperando esse
fantasma alucinatório. Essa invasão da linguagem denuncia, assim, por parte das narradoras,
eternamente envolvidas em seu próprio sofrimento, uma forma quase patológica de expressão.
Em As parceiras – “Não gostava quando Adélia falava na morte, era como se a velha
bruxa estivesse à espreita para levar embora aquela que eu amava.” (p.22), se surge já como
48
atributo da animizada morte, essa qualidade passa a se estender à sua “antípoda”, recurso
que, afora sua significação potencial, se estabelece como mecanismo de interseção entre tais
aparentes elementos opostos: “Na hora do jantar o telefone toca, soa estranhamente no Chalé
e nem era Tiago pedindo para brincarmos mais um pouco de irmãozinho e irmãzinha. João e
Maria perdidos na floresta, e sempre a velha bruxa. Duas até.” (p.119). Desse modo, parece
delinear-se uma visão completamente proibitiva de felicidade e configurar-se como nulas
todas as oportunidades de salvação.
Em Reunião de família, Berta, quando vai revelar um segredo, “dá uma risadinha de
bruxa” (p.92); em O quarto fechado, é a personagem Mamãe quem lembra “uma velha bruxa
de pano, com o cabelo amarelo e um vestido vermelho, largo” (p.80). E até mesmo em Exílio,
a par da já citada dominante figura que preenche todo o espaço psíquico da protagonista, são
as duas criadas, personagens periféricas, hipóstases do absurdo que compõe a atmosfera
reinante da Casa Vermelha, que ainda reforçam a persistente presença: “As duas bruxas me
dizem que são velhos clientes de Madame...” (p.110).
Cabe, ainda neste capítulo, o comentário sobre uma estrutura psíquica – anima/
animus 2 – que ajuda o ego na adaptação às partes mais profundas da natureza interior, onde
estão os pensamentos intuitivos, sentimentos, imagens e emoções, tal qual a persona, voltada
para o mundo social, funciona como colaboradora nas adaptações externas.
A definição de anima, aspecto enfatizado neste segmento pelo fato de que o exame ora
empreendido se refere a ligações inusitadas entre personagens masculinas e femininas, tem
sido resumida de forma bastante apressada, a partir dos estudos de Jung: “O homem tem
portanto em si um lado de características femininas, isto é, ele mesmo tem uma forma
feminina inconsciente, fato de que em geral ele não tem a menor consciência. Presumo que
todos já sabem que chamei esta figura de anima.” (JUNG, 2000b, p.277).
Essa noção junguiana, sem uma reflexão mais cuidadosa, causa muita polêmica, nos
dias atuais, por parte de quem tem uma visão equalizada entre os sexos e, por esse motivo,
mereceu ser modernamente rediscutida e reinterpretada por seus seguidores, o que já pode ser
2
O animus são as características masculinas interiores da mulher projetadas em um homem, segundo Jung.
49
pressentido na conceituação do próprio analista: “Na prática porém a coisa não é tão fácil,
pois em geral o inconsciente feminino do homem é projetado em uma parceira feminina, e o
inconsciente masculino da mulher em um homem.” (JUNG, 2000b, p.177). Nesse sentido,
parece oportuna, para se precisar exatamente a visão com que este elemento psíquico foi
encarado nesta tese e, conseqüentemente, de que forma foi utilizado como ferramenta para a
interpretação da obra literária, a transcrição de alguns trechos de dois escritores junguianos,
que, por sua atualidade, conseguem reavaliá-lo nas devidas dimensões. Os primeiros são de
Murray Stein (/s.d./):
June Singer, em seu livro Androginia (/s.d./, p.198), termina por esclarecer
inteiramente esse conceito anima/animus, desfazendo toda a resistência que se possa ter em
relação a ele, quando redefine suas dimensões e características psíquicas, livrando-os de seus
incômodos vestígios históricos e culturais:
comportamentos de algumas personagens desse sexo em Lya Luft, sendo, por esse fato,
apropriadamente aplicáveis a aspectos examinados nelas:
Além das propriedades exclusivas que são examinadas ao longo deste segmento, esse
fator do psiquismo masculino possui alguns componentes, como foi dito anteriormente, que o
relacionam com o arquétipo materno, o grande tema que tem sido proposto.
3
“Personalidade supra-ordenada. Um aspecto da psique que é superior ao ego e que o transcende.
(SHARP,/s.d./, p.123, grifo do autor.)
51
pelos seres ficcionais e motivadas pelo sentimento de incompletude, fato que pode gerar uma
imagem psíquica de Mãe Terrível, o que já foi tão amplamente discutido neste capítulo:
Tal imagem surge na criação luftiana com todas as atribuições negativas do arquétipo,
nos relacionamentos com diversas personagens masculinas, misto de hostilidade e atração, por
tal forma evidentes seus atributos que, normalmente, a insensatez da opção fica nítida para as
demais personagens envolvidas:
Com o tempo fui entendendo que as preocupações de tia Dora não eram
infundadas: Mariana não ligava para o marido, e só Deus sabe que estranho
fascínio o prendia tão loucamente a ela. (AP, p.90)
Talvez Olga, que não era filha dela, tivesse razão ao me dizer, mais tarde,
que Mateus mimava a mulher, parecia bobo diante dela porque a amava;
porque, seduzido pela figura miúda e perfumada, casado, não admitiria um
fracasso, e se submetia às suas infantilidades quando estava em casa. (AS,
p.17)
O primeiro desses agentes narrativos pode ser detectado logo no romance inicial, o
qual inaugura a lista de recriações masculinas presas a suas próprias projeções psíquicas de
mulher. Muitos dos atributos que, por forças culturais, o imaginário coletivo, principalmente o
patriarcal, estabelece para a mulher – “Por que se prendera em quem não o amava, ele tão
terno, delicado? Obscuridades.” (p.92) –, podem ser identificados, ao contrário, no “interior”
dessa personagem masculina, mas que, em sentido oposto do desejável, ela mantém
encarcerados – “Ele, cada dia mais sozinho num canto do apartamento, com seu piano e seu
52
mundo no qual ninguém entrava, nem a ruiva.” (p.93) – e que só permite deixar fluir através
da música:
Tínhamos falado das nossas vidas, eu queria descobrir o que havia no meu
primo que o fazia recolher-se de vez em quando para um mundo só dele,
atrás das pálpebras meio descidas, especialmente quando tocava. Ele temia
alguma coisa: não fantasmas no sótão, como eu, mas algo intangível, mais
perigoso, mais devorador. (p.75)
Otávio, definido pela narradora por sua dubiedade, questão que se volta a discutir no
subcapítulo 6.7.2 e que se torna, portanto, um complicador em suas relações – “Comecei a
notar que ele não sabia bem o que fazer com sua mulher.” (p.91) –, por ser filho adotivo de
Dora, já permite admitir, no mínimo, um relacionamento frustrado com a mãe natural e,
incompleto, com a substituta: “Tia Dora não tivera filhos, mas adotara aquele bebê, criava
como podia, não era fácil, ela viajava muito. Mas ele parecia um rapaz independente,
arranjava-se com amigos, internatos quando era preciso.” (p.67):
E então reaparece a figura da bruxa, tão comprometida com a Mãe Terrível como
parece ser o aspecto negativo que assume a anima inadequadamente fixada no interior e, da
mesma forma, inadequadamente projetada:
Mariana e sua cara de bruxa. A única mulher com quem, talvez, ele se
sentisse a salvo? Malvada assim, e única? Ou Mariana, sabendo da sua
fraqueza, se ria dela, a explorava deixando-o humilhado e cada vez mais
preso? (p.135)
4
As duas figuras mencionadas são a anima e o animus.
53
justamente tal personagem masculina, tão sensível, que perdera mulher e filho de forma tão
trágica, que proporciona ao leitor uma segunda versão da patológica convivência
masculino/feminino – “E depois vem a continuação: a feiticeira que o chamou quando ele não
queria ir porque ainda chorava a morte da outra.” (p.115) –, cercada de adulterações
psíquicas, de As parceiras:
- Seu irmão parece enfeitiçado – disse um dia ao meu Pai –, o Nando é tão
bom, coitado, já sofreu tanto, estava na hora de ser feliz. Mas desconfio que
foi se apaixonar pela mulher errada. (p.116)
Ecoando seu mestre, Marie-Louise von Franz (2003b, p.151) explica: “É por isso que
um homem que não está em contato com sua anima é seco, embotado, intelectual e
praticamente sem vida. Houve ocasiões em que cheguei a definir a anima como o estímulo
para a vida.”. O encontro ficcional perfeito com a teoria da anima prossegue:
Talvez Renato a amasse, mas de longe, como às vezes amamos o que é mais
oposto, mais diferente de nós. Ela insistia, não saía de perto dele, usava da
sedução do seu olhar dourado, das maneiras desinibidas, da voz sensual.
Renato entregou-se: é como se ela se punisse fazendo-o sofrer. (p.62)
Nesse romance, o epíteto de bruxa, do qual a enunciação se vale repetidas vezes para
expressar essa figura emergente, é significativamente substituído pelo de Medusa, ao conferir
todas as características da entidade mitológica à personagem Aretusa, recurso artístico
carregado de dramaticidade que intensifica e dá uma feição nova à concepção ideológica
embutida no outro:
A tendência para uma justificativa que se baseie em uma causa psíquica para essa
união, sem qualquer explicação racional, ou ainda afetiva, como se comprova nos trechos
“Não sei por que Aretusa o procurou...” (p.62) e “Nunca entendi esse casamento...” (p.17),
vai sendo estimulada à medida que o laço materno-filial subentendido, estabelecido via
anima, é decodificado:
Assisti a várias brigas deles: Aretusa começa a gritar, fica vulgar e feia,
perde a compostura. Ele se encolhe, cabeça baixa, como se pensasse merecer
aquele tratamento. (p.66-67)
As palavras da própria irmã parecem não querer deixar espaço para uma dúvida quase
completamente neutralizada:
Talvez antes de dormir Renato rasteje para a cama da mulher: quer ser minha
mãe, quer? (p.124)
55
Embora seja permitida uma atenuação das cores com que é concebida, caso se entenda
que há um possível exagero valorativo motivado pela parcialidade da opinião da filha
narradora, a ligação afetiva Mateus/Elsa (A sentinela), ainda que sem a marca tão explícita
dos dois casos anteriores, também pode ser aqui referida: “Mas meu pai lhe era submisso,
diante dela perdia a força, – seu jeito imperioso se tornava dócil, fazia brincadeiras bobas,
deixava-se dominar: e eu sentia uma raiva surda, pois sabia que muitos comentavam: ‘Ela faz
dele o que quer’”. (p.15)
Ella, antiga e perfeita, esperava ainda por ele para viverem um ardente amor.
(p.58)
Martim falava e falava: sentia que cumpria assim um doloroso pacto com um
doloroso amor. (p.58)
mulher para ele. Aquele passarinho distraído podia até ser uma grande pianista, mas não
acompanharia o ritmo de Martim.” (p.60) –, passa a ser a encarnação da anima negativa:
Embora este capítulo pareça encerrar-se, é importante a ênfase no fato de que todos os
seguintes prendem-se a uma cadeia que estrutura, com perfeição, a economia textual da
escritora, de tal sorte que muitos elementos aqui investigados têm sua presença garantida em
outros capítulos, mas ressaltados, então, de aspectos diversos. Sob a luz da investigação
literária, vai sendo iluminada, aos poucos, toda a riqueza do multifacetado simbolismo de
Lya Luft.
57
animal. Aos poucos eles se unem à figura da Grande Mãe como atributos e
criam o círculo de aspectos simbólicos que cinge a figura arquetípica e se
manifesta no rito e no mito. (p. 25)
Mesmo numa designação relativamente tardia como essa, está evidente que
não é meramente conceitual a combinação das palavras “mãe” e “grande”,
mas que esta consiste na reunião de símbolos coloridos pelo emocional.
“Mãe”, neste caso, refere-se não somente a uma relação de filiação mas
também a uma complexa condição psíquica do ego, da mesma forma que o
termo “grande” expressa o caráter simbólico de superioridade que a figura
arquetípica possui em comparação com o que está presente em todos os
homens e, aliás, em todas as criaturas. (p.25).
Desse modo, a natureza que cerca, indiscutivelmente, o ser humano, em todos os seus
aspectos, como um acolhedor ventre natural, capaz de proteção e provimento, é uma das mais
fortes referências para a criação de símbolos em relação àquilo que se caracteriza, em todas as
expectativas da cultura humana, como uma imagem materna, e, como tal, de surgimento de
vida, imagem extremamente arcaica para o ser humano, mas que, ainda modernamente, torna-
se um recurso artístico: “O ambiente simples me fazia bem. Ninguém repara nos meus
defeitos, eu me sentia quase tão amada quanto Anemarie, o peixinho dourado.” (AAEA,
p.49).
Esse fato é inteiramente verdadeiro no material ora analisado, não só como figura de
expressão, mas principalmente, como elemento básico para a construção da estrutura dos
romances. A natureza é um dos itens indispensáveis na condução do enredo: floresta, árvore
ou gruta5, como se pode comprovar, são pilares da narrativa em Exílio, Reunião de família ou
A sentinela: “...eu, mesmo sem compreender, sinto que Rosa lida com todo um mundo que
desconheço, mas existe, está aí, nós mergulhamos nele: o das forças da natureza, as palpáveis
e as indizíveis, bem e mal, vida e morte.” (AS, p.133).
De forma introdutória, podemos citar as palavras de M. Esther Harding (/s.d./, p.138-
139), quando focaliza essa natureza que, por sua presença constante nas manifestações
culturais humanas, indo muito além da pura necessidade de sobrevivência, revela-se
fundamental a seu psiquismo.
Essa mãe que é provedora de tudo, mãe dos deuses, dos homens e das
criaturas dos campos, aparece várias vezes nas mitologias primitivas.
Algumas vezes é a Mãe-lua e outras vezes a criativa Mãe-terra ou Mãe-
natureza. Em muitos sistemas, esses dois conceitos estão estreitamente
entrelaçados, de maneira que é difícil dizer se algumas das antigas deusas
5
Para maior esclarecimento, consultar o capítulo “Aspectos psicológicos do arquétipo materno”, (JUNG, 2000b,
p.92).
59
6
Ver Dicionário etimológico Nova fronteira da língua portuguesa, verbetes “mãe” (p.488) e “matéria” (p.506)
(CUNHA, 1998).
7
Ver anexo 2, pág. 217 desta Tese.
60
Como ficou claro, a natureza, desdobrada em seus mais variados aspectos, sempre
surgiu nas produções do imaginário humano carregada de simbolismo materno. A obra de Lya
Luft, que confirma essa tendência, foi o caminho principal para as pesquisas e conclusões
aqui levantadas: “Eu aprendia bem, aprendia depressa, mas tinha certeza: Olga nunca
precisara aprender: nela, era instinto, era coisa de mãe-terra.” (AS, p.100). O estudo das
conseqüências da ausência materna, que é entendida como a fonte básica da arquitetura
ficcional da escritora presentemente apreciada, não poderia fugir dessa natureza
insistentemente evocada, embora funcionalmente ambígua em seu texto, que, a par de sua
carga concreta, emana de si um segundo aspecto, transcendental, esse realmente importante
para a construção do significado.
Como árvore da vida que dá frutos, ela é feminina: gera, transforma e nutre;
as folhas, os ramos e os galhos estão “contidos” nela e lhe são dependentes.
O aspecto protetor torna-se claro na copa, que abriga os ninhos e as aves.
Além disso, a árvore desempenha a função de conter, porquanto é o tronco
“dentro” do qual vive o seu espírito, assim como a alma habita no corpo.
(NEUMANN, /s.d./, p.53)
Essa tia anã era o fruto mais caprichado da árvore temida, a árvore familiar
de que eu também fazia parte. Só quando Lalo nascesse, eu entenderia como
esse medo fora grande. (p.61).
Vim para o Chalé, resolver sabe Deus o quê. Pensar, ficar sozinha. Repassar
o filme, avaliar o jogo. Tudo acidente ou predestinação? Raízes de Catarina
von Sassen, ou acaso da vida? (p.143)
62
No último exemplo, é preciso se atentar para o fato de que “raiz”, agora com um
aspecto de saudável necessidade, não é apenas uma metáfora superficial: “O que é
verdadeiramente sólido sobre a terra tem, para uma imaginação dinâmica, uma forte raiz.”, diz
o já citado Bachelard (/s.d./b, p.226). Conforme se percebe, no texto transcrito, é introduzida,
significativamente, ao lado do vocábulo casa, estabelecida uma relação através de um outro
elemento, “chão bondoso”, apontando os três, finalmente, para a idéia de terra e,
explicitamente no exemplo, para “mãe”, constatação que o próprio romance justifica.
Torna-se oportuno relembrar, portanto, a passagem anteriormente transcrita do mesmo
Bachelard sobre essa imagem idealizada da casa, introduzida no exemplo, aquela que ressurge
nos sonhos, mas também mencionar-lhe os comentários sobre as imagens literárias da raiz,
esse elemento a que a escritora recorre com uma freqüência decisiva e que, com a outra, fecha
o círculo de significação aqui pretendido:
parece que criaram força dobrada: expelem brotinhos de álamo que passam
espremidos por qualquer fenda. (p.28)
Ninguém nos falava em nossa mãe, era como se tivéssemos nascido sem ela;
desenraizados. (p.34)
Vai se esconder nos ramos da árvore? Sei que foi cortada, mas hoje nesta
casa tudo é possível, não duvido que Renato suba pelos galhos inexistentes
para dependurar no alto a sua dor. (p.86-87)
Mas se a mãe pessoal havia morrido, o arquétipo permanece vivo. E a árvore que, a
princípio se apresentara como um elemento físico dentro da estrutura narrativa,
paradoxalmente, à medida em que cresce em força e impõe sua presença dominadora como
matéria, vai se revelando como um elemento psíquico indomável e avassalador. Ela não quer
ser esquecida. Parece ser marcante, ainda, o fato da escolha dessa árvore como álamo, se
atentarmos para a seguinte definição de Chevalier e Gheerbrant (1995):
E é o próprio texto que vai desfazendo para o leitor a materialidade desse elemento da
realidade palpável e revelando de onde vem a natureza subterrânea daquela árvore. É preciso
notar que, se Alice, misteriosamente, não se lembrava da mãe, o inconsciente tem seus
recursos e cria uma imagem à altura, a árvore que não quer morrer.
Nesse instante, todos ouvimos uma grande voz. Que voz é essa? Fora de
casa, um rumor como de ramos poderosos inunda o pátio, derrama-se pela
janela, um sopro que envolve nossos cabelos.
A essa respiração fantástica mistura-se o fervilhar da vida subterrânea, as
raízes imortais que expelem sua seiva das profundezas.
64
Uma “grande voz” para uma Grande Mãe, nos braços da qual se embala um filho, já
agora sem mãe, junto com uma mãe sem filho Uma análise do trecho identifica uma
exacerbação dos adjetivos que equivale a essa imagem – “ramos poderosos”, “respiração
fantástica” – e o emprego de verbos que a ela se adequam: “inunda”, “derrama-se”,
“envolve”. E se em um momento anterior, Alice, sonolenta, já ouvira aquele farfalhar, o qual
atribui à “voz da lembrança; ou meu desejo de que o álamo continuasse ali.” (p.38), aqui
amplia para todos o testemunho do absurdo, do impossível. Nesse momento, pode-se
compreender também a imagem do menino sem pernas como uma simbolização de Alice e
seus irmãos. Deve-se chamar a atenção para a reaparição reforçadora do boneco de pano, o
palhaço, cuja interpretação, igualmente ligada à mãe, foi esclarecida em segmento precedente.
Apesar de não se lembrar da mãe pessoal, a raiz da árvore que não se rende vai
desmentindo simbolicamente o adjetivo “desenraizados”, atribuído à Alice e seus irmãos, e
reconquistando o espaço mnemônico a que tem direito: “Já se vêem árvores diminutas
sacudindo folhas desproporcionalmente grandes rente ao chão. Um câncer vegetal, roendo as
profundezas ignoradas; logo invadirá a casa.” (p.28).
Os comentários de Bachelard (/s.d./b) são ainda ideais para estabelecerem toda a
dimensão imaginativa embutida no recurso a esse processo expressivo:
Assim, uma espécie de síntese ativa da vida e da morte aparece muitas vezes
na imaginação da raiz. A raiz não é enterrada passivamente, ela é o seu
próprio coveiro, ela se enterra, não cessa de se enterrar. (p.239)
por algum tempo a fria Evelyn. Se a morte cortara o laço com aqueles filhos ou de Evelyn
com seu menino, a mesma morte é inócua em relação à memória primordial que não se pode
apagar: “Saio da cozinha para o pequeno pátio, limitado pelos muros de outras casas antigas e
modestas. Sento num banco que oscila, o chão está todo em desnível, várias lajes levantadas
pelas raízes do álamo decepado.” (p.44).
Gabriel, meu irmão, que não vejo há alguns dias; e a quem a mata que tudo engole já
devorou.”( p.22) ou ainda em “Gabriel fita o teto, como se eu não estivesse ali: seu coração é
uma floresta na qual ninguém penetra.” (p.70)
Em outros momentos, os dois aspectos se superpõem, de tal forma entrosados, que o
leitor tem dificuldade de distinguir com qual dos dois recursos a narradora está lidando. E
essa estratégia estilística, destrói os limites entre o palpável e o imaginado, entre verdade
física e verdade psicológica, adensando a forte ambientação de inconsciente que o texto
recria, principalmente, pois a floresta é um símbolo forte, também, desse estrato psíquico8:
“Agora, Gabriel vegeta numa floresta sem saídas; e eu deparo com uma floresta para a qual
não vejo entradas.” (p.31). Se à protagonista está vedada a última fronteira possível com o tão
ansiado encontro, o irmão, em sua alienada loucura, permanece enclausurado no locus da
inconsciência.
Aos poucos, os indícios maternos da floresta vão sendo reforçados. Os atributos de
uma e de outra e suas possíveis ações vão sendo confundidos e vão relacionando as duas
imagens:
No quarto, duas grandes janelas gradeadas pelas quais a floresta abre seus
braços dia e noite para meu irmão: ele não quer que se fechem as venezianas.
(p.66)
8
“A floresta que escurece, a ponto de seu interior mergulhar na penumbra e regredir ao estado de mata virgem,
significa um transportar-se ao seio do inconsciente.” (JUNG, 2000a, p.125)
67
Mas o leitor é surpreendido, porque é na floresta que ela entra, pela primeira vez, só,
aventurando-se, em última instância, a empreender o derradeiro e único encontro, mesmo que
apenas representativo, com a mãe.
Aqui haverá enfim lugar, como nunca tive. Avanço rápido, arfando:
-Mãe, mãe... (p.200)
A gruta é uma morada. É a imagem mais clara. Mas exatamente por causa do
apelo dos sonhos terrestres, essa morada á ao mesmo tempo a primeira e a
última morada. Torna-se uma imagem da maternidade, da morte. O
sepultamento na caverna é uma volta à mãe. A gruta é o túmulo natural, o
túmulo preparado pela Mãe-Terra, a Mutter-Erde. (p.159)
Assim a gruta acolhe sonhos cada vez mais terrestres. Morar na gruta é
começar uma meditação terrestre, é participar da vida da terra, no próprio
seio da terra maternal. (p.160)
Desse modo, como ventre de uma mãe natureza, em A sentinela, a gruta traduz o
sentimento de incompletude arquetípica da protagonista, marcando-se como mãe devoradora,
predominância da característica mais primitiva, que “demonstra a tendência de conservar para
si aquilo a que deu origem e envolvê-lo como uma substância eterna”. (NEUMANN, /s.d./,
p.36).
Reduplicando uma situação de preferência – “...acho que Lilith era tudo para ela, Lilith
lhe bastava. Aí perdeu a filha amada...e sobrei eu.” (p.29) – o espaço da gruta, dominado pela
irmã mais velha, conseqüentemente, estimula a sensação de rejeição. Quando a irmã não está,
a filha preterida por Elsa, entra ali, numa tentativa clara para o leitor, embora inconsciente
para a personagem, do apossar-se de seu colo e, indiretamente, de seu legítimo direito ao
amor materno, em um “devaneio de intimidade”, para se usar uma das expressões
conceitualmente perfeitas do filósofo francês, aqui acrescidas de aspectos psicológicos
particulares.
A gruta, adjetivada por aquele pensador como a “cavidade perfeita”, instaura-se como
o “perfeito abrigo” nas coincidentes palavras da personagem, ao “assumir os valores
inconscientes” mencionados por aquele. Finalmente, ao imaginar a cabeça do pai ali alojada,
fantasia infantil vivida com tal intensidade que passa a ser o motivo dos sonhos e pesadelos
dali para a frente, é medo e desejo, mesmo que na idade adulta.
69
...mas era pior, porque eu via por toda parte os olhos de gato de Lilith, ou a
solitária cabeça de meu pai. Como teria sido? Caíra pelos degraus de pedra,
o sangue em seu rastro fumegando no ar frio? Prosseguira depois o seu
caminho para a treva, o nada, o ventre da gruta que fora meu esconderijo
algumas vezes, e, sempre o reino absoluto de Lilith? (p.70)
Nesses sonhos, a cabeça do pai é inteiramente engolfada por aquela natureza que,
como foi dito no início deste capítulo, pode ser entendida como a vitória definitiva daquele
sentir arquetípico que domina a protagonista. A vegetação que cerca a gruta, útero onde
reinava Lilith, reproduz a vida real ficcional e, como mãe e filha, submete a cabeça do pai,
envolvida inteiramente e da qual não se pode mais separar.
Nunca mais tive coragem de perguntar sobre a morte dele por muito tempo,
acreditei que sua cabeça estava na gruta, ele continuava lá, cuidando das
coisas que tivera de deixar cedo demais, fazendo companhia a Lilith. (p.71)
Em meus pesadelos descia até ela, cada vez mais oculta porque minha mãe
se desinteressara de tudo, especialmente do jardim. E eu via: via a cabeça de
meu pai, cabelos ainda crescendo, agora brancos como os musgos em que se
enredavam; boca e ouvidos cheios de terra e folhas, insetos entrando e
saindo pelo nariz, e vermes. Mas ele parecia não se importar: agora, Mateus
era a natureza. (p.37-38)
Nos momentos finais do romance, já superando suas angústias como mãe em relação a
Henrique, outra ponta da mesma doença afetiva que ela começa a superar, desenhando-se,
sutilmente, um início de estabilidade emocional, o arquétipo vai sendo apaziguado:
Num tom baixo para que ninguém da casa me escute, mas sabendo que
talvez na gruta eu seja ouvida, chamo, duas vezes:
- Mateus. Mateus.
E talvez seja finalmente uma despedida. (p.161-162)
A presença do mar é bastante forte em Lya Luft. Como todos os outros elementos da
natureza, compor o ambiente é a atribuição menos valorizada na obra.
Dentre as várias manipulações artísticas feitas pela escritora, uma delas é o puro
emprego metafórico dada ao mar em estados de alma, mesmo processo anteriormente
identificado em relação à floresta. Tal fato pode ser verificado, aqui e ali, em alguns de seus
romances, sempre como mecanismo expressivo: “Nunca fui mãe dele, admitiu Renata, um
mar represado no coração, um mar tão amargo.” (OQF, p.26) ou “Atirei-me nesse mar
sombrio: Antônio, minha tábua.” (E, p.52).
E, enfatizando esse reaparecimento estilístico em relação ao mar, podemos
surpreendê-lo como recurso especificamente significativo também com Otávio, que será
adiante analisado com mais profundidade em sua marca de “dúbio”. É importante perceber
que a conexão Otávio/mar, torna-os unidades polissêmicas, ao anexar a ambos uma segunda
propriedade, não clicherizada, que os transporta para uma região além daquela na qual
parecem superficialmente inseridos: com a ligação, ganha a figura humana, que, como
71
Gabriel, de Exílio transita entre uma condição concreta e outra imaterial, mas, além disso, o
próprio elemento da natureza, que aparece, assim, resgatado para um indefinido espaço,
passível de ilimitadas interpretações, para ajudar a compor um caminho narrativo, de outra
forma, inefável.
9
“Em análise do discurso, isotopia é a recorrência do mesmo traço semântico ao longo de um texto. Para o leitor,
a isotopia oferece um plano de leitura, determina um modo de ler o texto.” (FIORIN, 2001, p.81)
72
Neste segmento, contudo, além das qualidades significativas que tal fator natural traz
por si só, deve-se encetar a análise da importância emblemática que se manifesta quando a ele
se anexa um segundo: o morro. No trecho seguinte, Neumann (/s.d.) estabelece a ligação
psicológica entre os dois elementos, enriquecidos mutuamente por esse entrelaçar:
Parece, ainda, interessante citar outras duas definições, a respeito desse elemento
representativo “montanha”, o que não invalida a analogia, pois tem íntima ligação
significativa com o morro insistentemente galgado de As parceiras e adquire, portanto,
relevância como subsídio para a elucidação dos meandros narrativos:
tentativa de “descobrir” quem é a outra: “De que estará tentando se livrar? Ou o que espera
encontrar ali em cima?” (p.126).
Significativo, entretanto, é o fato de que no primeiro parágrafo, o que abre,
literalmente, a narrativa, portanto, morro e mar já vinculem a avó e aquela enigmática
aparição, sem nenhuma marca de intencionalidade aparente. Estruturalmente, então, da
mesma forma, princípio e final do romance, enlaçados, reproduzem o mesmo movimento pelo
qual se reúnem progenitora e neta:
Uma rajada mais forte ergue suas roupas, que roçam em mim.
Alfazema! (AP, p.149)
É importante ser lembrada, também, a figura do cão, Bernardo, que no texto já fora
construída como um elemento concreto dentro do clima de imaterialidade a que se entregara a
personagem principal – “Meu cachorrão de bochechas caídas: isso também é algo sólido. Não
preciso mais realidade do que isso.”(p.21). Apropriadamente, esse símbolo da vida física
cotidiana havia desaparecido, desligando-a de uma condição menor que a amarrava ainda,
possibilitando, deste modo, uma iluminação transcendental.
10
É importante citar o que a autora acrescenta, na mesma página: “O submundo dos antigos representa, como
vimos acima, as profundezas escondidas e desconhecidas que chamamos de inconsciente.”
11
Hécate, conforme informado na página 87 da já citada obra, é a deusa da lua escura.
75
Mas essa lua, inocentemente presente, vai, a cada novo romance sendo
metamorfoseada em propulsora ou, pelo menos, presença explícita de elementos surreais:
...lá estava minha irmã, como uma aparição branca de lua. Não tinha medo
de ficar sonâmbula, achava lindo.
- Eu ficar sonâmbula? Quero ser lunática.
-O que é isso? – eu sussurrava, debruçada no meu peitoril.
- Alguém hipnotizado pela lua. (AS, p.50)
Ele dorme com luar batendo na cara – disse o Enfermeiro certa vez, mas
achei graça: que diferença faria para Gabriel, banhar-se de sol ou de lua?
Imaginei-o feliz, lunático e enluarado. Gabriel estava além de todos os
esconjuros. (p.66)
Será a sua própria voz que, profetizando as palavras de Lilith naquele romance
posterior, reafirmará o encadeamento da lua com o sonâmbulo – “- Porque nas noites de lua
cheia os sonâmbulos sobem para os telhados e ficam balançando na beiradinha...”(E, p.114) –,
figura já tão carregada de mistério no imaginário popular, carga significativa recuperada na
obra, pelo que se percebe, não só na angústia da mística Rosa e da ansiosa Nora de A
sentinela, sobre o possível sonambulismo de Henrique, mas, também, no comentário da irmã
médica: “- Você já deu muito susto na gente com isso. Pode parar por aí.” (p.133).
Novamente presente em O ponto cego, a transcendência da lua cheia então
identificada, também acrescida de evidências mágicas, permite a um analista atento enxergar,
76
A lua, elemento do mundo físico, mas de largo poder de mostrar-se como reflexo de
um estado psíquico especial e de clara força imaginária na personagem protagonista é
chamada como testemunha dessa região que invade, embora dissimulada em uma presença
animal irrefreável: “E na lua por cima do campo calado, ele começa a existir: estica o dorso,
move os flancos, levanta a cabeça, a cauda balança no vento apenas anunciado. A crina de
leite reflete-se nas águas soturnas.” (p.125)
Na madrugada, o poder evocador daquela lua consegue desenovelar das camadas mais
profundas do psiquismo da personagem o fio do símbolo que está preso ao grande tema
luftiano, visto que é a mãe do menino que ensina: “Podemos inventar qualquer coisa que nos
dê alegria, que nos ajude a escapar. Um amigo, um cavalo, um caminho.” (p.32), o que lhe
permite adiante acrescentar: “As histórias de minha Mãe eram o meu conforto.” (p.33).
Torna-se bastante oportuno voltar-se a atenção para aquela “rajada mais forte”, sopro
de vento, no final de As parceiras, o possível pneuma bíblico, tantas vezes citado por Jung,
que algumas vezes, na escritora, acompanha um momento de conscientização das personagens
ou um princípio de revelação: “De repente, sei quem é.”(p.149). A definição de Franz, em seu
A interpretação dos contos de fada (2003a, p.82) parecer ser adequada ao citado trecho, por
ser esclarecedora: “...e o vento é um símbolo bem conhecido da inspiração espiritual do
inconsciente.”
Em Exílio, se verá novamente o surgimento do vento – “Então vejo, rolando no vento
de Deus pela calçada, o chapeuzinho do Anão.” (p.179) –, como fim de busca, como encontro,
conscientização, quando da primeira entrada na floresta/mãe da sofrida personagem central:
“...o vento era Deus andando na floresta e abrindo caminhos para o implacável destino”
(p.163). Assim, revelador, é nomeado, finalmente, sem qualquer disfarce.
77
Sobre esse vento, entendido biblicamente como um índice divino, vale lembrar a
advertência feita por Jung que as imagens com que o Self – ou Si-mesmo, centro regulador da
psique humana total12 – se revela, por sua presença numinosa e causadora de extrema
perturbação, podem ser assimiladas e entendidas – e provavelmente sempre assim o foram –
como uma imagem de Deus.
Em Reunião de família, terceiro romance, o leitor já tinha se deparado com “um sopro
que revolve nossos cabelos.” (119) e que assume proporções bastante reveladoras adiante, em
momento de extrema tensão e irrealidade: “A essa respiração fantástica mistura-se o fervilhar
da vida subterrânea, as raízes imortais que expelem sua seiva das profundezas.”( p.119). Visto
que acompanha o farfalhar das “ramadas inexistentes” de uma árvore decepada, composição
inegável de um símbolo da carência materna, é possível se atribuir à “vida subterrânea”, à
“raízes imortais” e à “seiva das profundezas” conotações psíquicas.
Digna de nota, além disso, é o fato de que há uma oscilação, nesse mesmo texto, entre
a idéia de Deus, do qual o vento é uma das manifestações, e a de mãe, dúvida colocada pelas
personagens Alice e Aretusa (p.97) para o impreciso grito de Renato. Reforçada pela analogia
que o leitor pode identificar entre os dois, validada pelas duas passagens a seguir transcritas,
tal oscilação termina por contaminar, finalmente, a idéia de vento:
(Renato terá realmente chamado por Deus? Essa palavra terrível, que deve
ter ficado reboando de galeria em galeria, um eco respondendo ao outro,
interminavelmente, no vazio.) (p.98)
Seguidamente, a imagem do vento vem reforçada pela presença mágica da lua, e essa
fator, como foi largamente abordado no item 4.5, ajuda a instaurar uma ambientação ainda
mais inquietante do que a normalmente estabelecida por um só dos dois elementos: “Pela
janela entram lua e ventania. Levanto-me com muita dificuldade, arrasto-me até lá. Tenho
vontade de vomitar.” (E, p.177)
Em O ponto cego surge aquele vento insólito, impossível, que já se anunciara em
romances anteriores:
12
Ver aprofundamento do conceito a partir da página 165 desta Tese.
78
No sétimo romance, a aparição desse vento não se dá de forma ocasional, mas ora
como um “vento antiqüíssimo”, o vento do mar, que passa a ter uma posição marcante e
fantástica junto ao cavalo de mel, de indiscutível simbolismo nessa obra – “O vento do mar o
leva, caravela no mar perdido que há milhões de anos varria este lugar.” (p.125) – ora como
um outro tipo, pejado de fatalismo, de origem desconhecida: “Procuro embaixo de sua cama o
que ali vejo ela nem imagina. O que se mexe, remexe, suspira como se fosse vento trazendo a
desgraça.” (p.127).
De gênero equivalente, é aquele “riso arquejante de um velho demônio agachado num
canto” ( p.132), o hálito que agita novelos de poeira e teias embaixo dos móveis em O quarto
fechado. E é, mais uma vez, a já referida psicanalista quem traduz com extrema justeza o
momento ficcional:
Mas, ao mesmo tempo em que é descrito como “bafo dos infernos”, causando surpresa
e inquietação nos presentes ao velório, é ele que, como riso, sai pela janela e consegue varrer
a cerração que mantém as cercanias da casa imersas em uma atmosfera flagrantemente
inconsciente, como será discutido no capítulo 6, denunciando um início de conscientização:
“O frio vinha de dentro da casa, o hálito: a Palavra, o Nome?” (p.133).
Nos segmentos anteriores, toda a natureza literária foi abordada em seu emprego
materno. Mostrou-se símbolo do sofrimento das protagonistas: é uma mãe psíquica que se
transmuta, visualmente para as personagens nucleares, em natureza para indicar, para cobrar
sua realização. Neste item, ao contrário, é feito o estudo de uma natureza que se apresenta
agora como mãe, marcando, assim, quão fundamentais são as duas presenças e quão inerentes,
uma à outra são as suas concepções, no inconsciente humano: “Alguma coisa nele, sua
inocência, me comove; muitas vezes eu quis ser uma mulher do povo, simples, forte, ligada à
vida e à terra...”(AS, p.78). Cabe aqui complementar com as palavras de Mircea Eliade, em
79
seu O sagrado e o profano: “Esta experiência fundamental – de que a mãe humana é apenas a
representante da Grande Mãe telúrica – deu lugar a inúmeros costumes.” (1992, p.115).
Revela-se importante, ainda, reforçar as ligações já feitas no início deste capítulo,
informações histórico-culturais, que têm sua base no inconsciente coletivo:
Tudo exatamente como foi nos longos anos de seu casamento, tudo ao gosto
de Olga, que no fundo tem alma de fazendeira, de mulher da terra, do
campo. (p.146)
Essa era uma mulher simples: lidava com terra, plantas e bichos e pessoas
com a mesma generosa disposição. Um sorriso bom na cara larga. Ela e meu
avô foram as pessoas mais reais da minha infância. (E, p.165)
Como se viu, o envolvimento com a terra não é uma relação gratuita, ele vem sempre
ligado a todos os qualificativos positivos tão bem descritos por Neumann como as
características principais do arquétipo do Grande Maternal. Essas figuras femininas telúricas –
é importante se atentar para o adjetivo “vital” que sempre se refere a tais personagens – são o
outro prato da balança do desejado equilíbrio das personagens, mas que, dado o enorme peso
dos sofrimentos de uma vida construída na deficiência de amor de mãe, revestem-se de uma
coloração de leve lenitivo. Funcionalmente, no texto, servem de aprofundamento contrastante.
81
Neste segmento, ligado ainda à simbólica da natureza, faz-se o estudo do animal como
elemento também repetidamente emergente, como o gato: é caracterizador físico de Henrique,
de A sentinela, como um “Um grande gato louro, ágil.” (p.43) e dos olhos de Gabriel, de
Exílio, aquelas “vidraças foscas”, ou numa radicalização da descrição: “os olhos de um tigre à
espreita” (p.68). Por ser, entretanto, de importância extrema, dada sua significação e
envolvimento com outras personagens, ou seja, sua ambigüidade de significados, o gato é
estudado, mais detalhadamente, em capítulo próprio.
O mais superficial dos empregos, como visto acima, é o do animal como elemento de
comparação. Os exemplos abundam: “...enfio-me na banheira onde sou uma medusa amorfa.”
(E,108) sobre a protagonista; “...aves de mau agouro nos seus aventais pretos e
puídos.”(E,138), para as duas empregadas da Casa Vermelha, ou ainda “uma ninhada de
cachorrinhos” (p.106), quando se refere aos filhos daquele “Bicho-Papão” (p.63) de Reunião
de família, o pai, para quem as metáforas são uma constante: “olhar de velha águia” (p.79),
“velho pássaro solitário.” (p.55), “um pássaro louco de bico torto”(p.121).
As similaridades, no entanto, são sempre mais fundas do que as sugeridas pelo físico.
Elas invadem o psíquico e vão buscar os elementos comuns mais inatingíveis da relação
humano/animal. Embora já faça parte do senso comum o relacionamento do instinto humano
e de sua parte inconsciente, parece oportuna a transcrição do conceito, emitido por Jung
(2000b, p.241): “O animal, devido à sua quase completa inconsciência, sempre foi o símbolo
da esfera psíquica humana, oculta na obscuridade da vida corporal instintiva.”
Pelos motivos enunciados pelo eminente estudioso, uma avaliação das manifestações
menos racionais e mais primárias do ser humano, expressas nas imagens que, então, são
produzidas, sempre se confrontará com o simbolismo do animal.
Além da intenção exclusiva a que se destina, a teoria aludida apresenta uma completa
precisão no que diz respeito ao texto luftiano, questão que se evidencia, facilmente, mesmo
nos trechos mais simples: “Sinto um prazer animal, primitivo, ao mexer no proibido, sempre
me proibiam de pegar em coisas sujas, terra, areia, capim, bichos.” (AAEA, p.60)
No entanto são as diversas tonalidades com que esse animal aparece nos textos
artísticos ora analisados, num acréscimo de significados que se sobrepõem, que se
complementam, que devem ser aqui ressaltadas. Sua utilização, quase sempre, tem como
finalidade propiciar um entrosamento completo com a natureza humana, denunciando-lhe a
tão negada, mas verdadeira, procedência. É muito revelador o que é dito sobre Renata, de O
quarto fechado, mãe fria e distante, quando, inesperadamente, em momento extremo,
desfeitas as armaduras sociais, recebe o corpo do filho morto tragicamente: “De súbito a
torrente do amor se desatava nela, um amor desesperado, animal, sem esperança alguma.”
(p.80)
São expressões bastante significativas dessa recuperação da essencialidade primeira,
além da já citada Olga, de A sentinela, no mesmo romance, seu pai Mateus e seu filho Pedro,
em uma continuação quase hereditária, ligados pelo viés do instinto, do animal:
Ainda bem que eu tinha Olga, embora raramente aparecesse em casa; era a
cara de Mateus, ria do mesmo jeito, gostava das mesmas coisas. Nas férias ia
com ele para a fazenda, e eu os via cavalgando lado a lado: eram da mesma
raça, centauros de cabelos desgrenhados ao vento: nessa hora, eram livres.
(p.22)
Eu gostaria, por exemplo, que ele tivesse feito um curso superior, mas
resolveu usar apenas da prática, desse instinto, coisa que deve ter herdado de
Mateus – ela falava com orgulho. – Está lá, criando cavalos, vai montar um
haras, e vai ter sucesso, esse meu filho. (p.108-109)
homem do campo, não se engane.” (p.17) –, em todos os momentos, o que o distancia cada
vez mais do delicado filho:
Nosso pai não devia ter-se dado conta de que estava criando filhos solitários
e tristes, que passavam perto dele encolhidos como cães escorraçados e
ficavam por ali, na esperança de um carinho, mesmo distraído. (p.58),
Talvez seja esse o texto em que mais cruamente a condição basilar humana seja
retratada, sem sutilezas. Filhos sem mãe, desamparados e infelizes, são retirados, um a um,
todos os véus culturais com que a sociedade esconde sua verdadeira natureza animal: “Sinto
que não podemos arriscar nem um movimento impensado; a redoma é frágil demais, pode
romper-se o encanto e todos viramos bichos. Sapos?” (p.61)
Entretanto o recurso pode ser surpreendido, além disso, nos textos posteriores,
acrescido de um recrudescimento desse processo artístico. Exemplo quase perfeito de alusão
teratológica, tão ao gosto da escritora e que espreita desde o primeiro romance através de Bila
e Lalo – “Pouco mais que um vegetal” (p.123) –, passando por Corália, de Reunião de família
e indo até o filho de Antônio, em Exílio – “O monstruoso bebê soltou uma espécie de miado
débil, e outro ruído repugnante; um cheiro fétido espalhou-se no quarto.” (p.149), é a
caracterização da personagem Ella – O quarto fechado –, personagem de força significativa,
imagem viva da crítica ao caos humano:
Talvez imaginassem o tempo todo o que haveria lá: animal raro, planta
singular, criatura de charco, enviando sinais pela casa a toda hora. Medo.
Medo? (p.97)
Vou ser igual àquela que cheira a caverna e podridão, como um bicho.
(p.124)
Sofro de insônia, isso sim: nessas horas não consigo ficar deitada, o coração
parece saltar pela garganta. Uma angústia o aperta como um bicho que,
esmagado entre os dedos, começasse a se debater, esperneando
enlouquecido...Então saio da cama, com cuidado para não acordar ninguém,
e vou sentar na sala; leio ou penso. (p.18)
Não era pequena a relevância psicológica que o animalzinho tinha assumido para a
personagem sem mãe – “Mas cada vez mais difícil era abandonar uma postura rígida. Éramos
destreinados na ternura...” –, emotiva e profundamente revelada no próprio romance,
relevância que, com sua morte, metamorfoseia-o em um símbolo forte de insegurança e
comprometimento afetivo:
Nele eu queria soltar toda a minha ternura retida, que não se saciava no seco
beijo no aniversário de meu pai, nos desajeitados abraços de Berta, ou mais
tarde, nos agarramentos de Aretusa. (p.45)
Às vezes trazem rapazes, quando meus pais saem para alguma festa. Quando
todos vão embora e minha irmã se tranca no quarto, paira na casa um cheiro
animal, enjoativo e assustador. Eu me enfio em minha cama, tapo a cabeça
com o lençol e chamo os meus fantasmas. (OPC, p.71-72)
obsessiva:
Nem retratos dela existem mais pela casa, alguém recolheu tudo. Só eu tenho
alguns escondidos no quarto, mas sei que um dia não vou mais lembrar
direito do cheiro dela, da voz, das mãos, do jeito de andar, nada. (OPC,
p.148)
Cresci sem mãe; sem avós, sem tias nem primas; nosso pai não era ligado à
família, falava como se fosse sozinho no mundo. Nunca tive alguém
perfumado e doce para me abraçar; para ajeitar meu cobertor na hora de
dormir, ou contar histórias; para me dar conselhos. (RF, p.20)
Convém observar, como especificidade desse, por assim dizer, “cheiro de mãe”, a
anexação caracterizadora, que contribui como reforço da representação gerada pelo
imaginário coletivo:
Da mesma forma, em Exílio, outra solitária moradora da Casa Vermelha que é “uma
doce velhinha” (p.28), inspira na protagonista, que se caracteriza por um constante
comportamento arredio, um desejo de aproximação, porque traz do passado o anseio de mãe,
o desejo de colo.
E o perfume, então, reforçada sua condição pela íntima ligação ao adjetivo “doce”,
com ele instaura o ideal materno, qualidade que também surge, já ali sem nenhuma dúvida
88
aceitável, como uma das propriedades do amor de mãe na avaliação do Menino de O ponto
cego – “Seu amor se derramou sobre mim forte e grudento, e doce também. Era tudo o que eu
tinha, eu que não possuía nada.” (p.29). Por esse motivo, é impossível não retornar com igual
valor como garantia de composição do simulacro de relacionamento materno-filial, já citado
no item 4.2, em outro momento da infância de Alice e sua irmã, quando o cita como um
“brinquedo melancólico e doce.” (p.60).
É ainda o caráter considerado como essencial à condição materna – “Doce como nunca
fora com meu marido...” (p.118) – que ajuda a entrever a verdadeira categoria a que pertence
a fantasia criadora do suposto amante de Alice, corporificação da carência afetiva, e
assegurar, junto ao leitor, sua absolvição moral: “Naquela noite com Evelyn falei; contei
detalhes; perdi a vergonha, insisti, revelei...como era doce com Matias, eu disse isso, como
era doce!” (p.117)
Mas, como se disse no início deste segmento em relação ao perfume de mãe, desde o
primeiro romance editado aquele “cheiro forte de alfazema”, em As parceiras, reveste-se,
como marca sensorial, de vital importância para a estrutura da obra, pois, como o branco do
vestido, torna-se indicador da presença de Catarina, e, ao final do romance, induz em Anelise,
e no leitor, uma identidade para a veranista, satisfação final do arquétipo.
Se até então foram ressaltadas as características afirmativas que encaminham o
desabrochar do sentido olfativo, mesmo que se constitua em uma busca doída da presença
materna – “Minha mãe aparece no umbral, precedida de seu perfume e do farfalhar do vestido
de seda clara com grandes orquídeas roxas e lilases.” (p.17) –, esse odor desperta a lembrança
de cria abandonada, condição primeira das personagens principais, em Exílio, e se vê
circunscrito a uma intransponível cadeia negativa de odores que vão marcando,
sensitivamente, um caminho de dor iniciado na infância. Ultrapassando o puro limite de
solução expressiva, essa ferramenta compõe a trama projetada.
Fica comigo esse mesmo perfume que há pouco entrou aqui no quarto da
Casa Vermelha e me levou até a janela para ver o que havia. Só que minha
mãe deixava um rastro onde se mesclava um discreto odor de bebida, que
mais tarde aprendi a identificar. (p.19)
Nesse texto, não obstante, a fragrância maternal vem misturada a outros cheiros que
compõem um quadro de decadência, os quais são, expressivamente, prenunciadores dessa
mãe alcoólatra. Reaparecem, inclusive, sob o miasma de podridão da Casa Vermelha – “No
andar térreo, o bafo de umidade, azeite rançoso, cozinha suja. Meu estômago me incomoda.”
89
(p.24) –, que, também por outros indícios, pode ser entendida como uma representação da
suicida:
...mas a maioria a conhece como Casa Vermelha; pois esta é a cor desbotada
de suas paredes, dentro e fora, lascas de tinta saindo por toda parte como
pele velha revelando feridas mais velhas ainda, em tom alaranjado. (p.32)
Mas meu inquilino reviveu. Fênix monstruosa, assoma na noite, enche meu
estômago, rasteja até a garganta, como se do lado de fora dos meus lábios
alguém chamasse, vem,vem,vem. (p.11-12)
Mas, tendo em vista o inusitado comportamento daquele Menino que não quer crescer
– “(Eu armei os emaranhados tremendos e dei os nós, eu finalmente disse sim aos meus
91
perversos desejos.)” (p.145) –, o aspecto positivo anunciado no mito da Fênix se desfaz e uma
leitura polivalente de suas palavras pode ser feita sempre: “Isso me consolava: o levíssimo
rumor dos vermes pelados e moles devorando folhas e secretando o que seria amarrado em
tramas e nós.” (p.114)
Como os demais bichinhos de estimação, aqueles têm um final trágico. Entretanto
deve-se observar o fato de que, se até então a morte desses pequenos elementos de
consolação, à revelia de seus sofridos donos, se constituía em aumento da carência afetiva,
aqui, é o surpreendente desfecho da situação o que permite pressentir a intensidade do
desequilíbrio vivido pela personagem central:
Tanto me doeu o que acontecia e tanto me atormentou o que estava por vir,
que um dia tirei de baixo da cama os meus confidentes famintos e insidiosos,
derramei tudo no assoalho e esmaguei um a um com os pés. (p.144)
Noite de pesadelos: uma anã de trança escava numa sepultura, retira ossos,
desmonta esqueletos. Um fêmur pequeno e branco. Vermes verdes, bichos-
da-seda. Era uma caixa de sapato ou um caixãozinho de criança?
92
Sonho que estou cheia daqueles nojentos vermes pelados, grudam em mim
as perninhas inquietas, viram as cabeças aflitas, querem entrar na minha
boca, em todos os meus orifícios. (AP, p.111).
Deve ser como um parto, a gente agüenta porque não tem volta, não se pode
fingir que não houve casamento, não se pode desfazer o filho, voltar tudo às
tranqüilas inocências. (AP, p.102)
Uma existência segura: Aretusa odiaria isso. Nem filhos ela quis, dizia que
só davam problemas. (RF, p.17)
Por que não gostam de homens? tenho vontade de perguntar. Por que não
casam e têm filhos? Mas depois eu diria: Não, não façam isso. Vivam o seu
estéril amor, abençoadas e eximidas dos meus padecimentos de agora. (E,
p.107)
É sob uma ótica sexual, ainda, que se surpreende uma das probabilidades
interpretativas da portinha secreta, de tanta dúvida para a protagonista e em tantos momentos
introduzida:
Mas é esse sentimento pendular – “Fogo ou gelo” – que engendra, finalmente, aquele
ser, que em alguns momentos pode ser percebido como uma imagem de contornos
inteiramente fálicos:
**** Aquarela
Da minha infância
retiro as fotografias da família
no luto diário,
os olhos invisíveis
condenando curiosidades,
o baú de preciosidades
(e traças devassas),
trancadas a cadeado,
os sonhos desenfreados,
a mística do susto,
os flagrantes,
evitados a custo,
e por fim retiro-me do porão
com tudo o que continha minha imaginação
delirante.
Fica a vida.
Que nem parecia importante.
(Leila Míccolis)
Ao se adotar a perspectiva proposta neste estudo para se analisar a obra de Lya Luft, e
como um primeiro passo para os aspectos focalizados no último capítulo, é impossível não se
examinar a questão da memória, fundo norteador dos discursos das personagens principais e
motivo condutor da trama que se desenvolve a partir daí: “Minha vida no internato em breve
seria uma recordação, um entrecho de existência guardado num limbo.”(E, p.137)
A primeira observação a ser colocada é a de que a ficção enfocada se apresenta, no
enunciado, não como uma narrativa, mas como o simulacro de um processo rememorativo: no
nível superficial, há um impulso de memória voluntária, quando cada protagonista, numa
avaliação de vida, tenta voltar ao passado para entender, recompor o presente, conviver, de
uma forma minimamente saudável, com ele: “Mas esse é um ninho fofo, macio, consolador:
deitar-se para sofrer menos, refugiada nas lembranças para não ter que decidir a vida,
mergulhar no passado para não enfrentar o futuro. Ou para entender o presente? Tão vazio o
meu presente.” (AP, p.94).
97
No entanto a tentativa de viajar em direção a uma época que se acredita haver escoado
mostra que ela não findou e o continuum temporal não se rompeu.
Se, à primeira vista, se supõe um retroceder, por vontade própria, do presente para o
passado – “Pois eu queria viver como toda gente, parar de remexer nos baús.” (AP, p.117) –,
verifica-se logo que é este último que teima em voltar continuamente, convocado pelas
mesmas emoções: “Sinto frio. Apesar da tarde quente, do mormaço, tenho calafrios. Deve ser
começo de gripe, por isso me sinto esquisita, aérea.” (RF, p.46).
Por causa disso, uma imagem recorrente em vários de seus romances é o da figura
pretérita que, no momento atual, requisita a atenção para a fase que realmente comanda a vida
da personagem enunciadora. Dessa maneira, como se vê, não é a protagonista que empreende,
na maioria das vezes, o ato de lembrar, mas é a reminiscência que se faz sujeito da ação.
Mudei de assunto, mas depois dessa conversa mais de uma vez me virei, de
súbito, caminhando no corredor: Lilith estaria no meu encalço? E aquele
movimento atrás da vidraça, era ela me chamando? (AS, p.63)
Portanto parece imprescindível uma pesquisa detalhada do modo pelo qual se realiza
esse percurso rememorativo – voluntário ou predominantemente involuntário –, por ser a
pedra de toque da composição de pelo menos cinco dos livros examinados, com exceção, mas
não inteiramente excluído, em O quarto fechado e O ponto cego, o primeiro por não ser
construído sob o ponto de vista interno e o último por se caracterizar pelo discurso de uma
criança que não possui ainda um passado, em sentido literal, suficientemente rico e, por isso,
com possibilidades de intervenção no presente.
Por esse caminho, pode-se reconhecer um movimento que, se consciente, imagina
olhar para trás, inconscientemente, é apenas o submeter-se a uma força que, qual a erupção de
um vulcão aparentemente adormecido, lança, do mais profundo interior, em vários momentos,
das mais variadas formas, sua lava de sentimentos, desde que estimulado por condições
traumáticas semelhantes: “A vida nos separaria; tantos anos depois, na minha grande crise, eu
98
lembraria dela; e apesar de um natural estranhamento trazido pela passagem do tempo, ela
haveria de me ajudar.” (E, p.38)
Papai indagava da escola, mas não éramos nós sua verdadeira preocupação:
era mamãe. Pensei que se amavam demais, o resto do mundo não
interessava: e me senti mais só ainda. Cada vez mais só. (AP, p.28)
Embora tenham passado tantos anos, ainda sinto a solidão de menina: mas
me pesa muito mais. (E, p.17)
99
Em Exílio, esse sentir estratificado no tempo de criança e que foi adquirido em dadas
condições pode ser reconhecido em uma constante insegurança da protagonista manifestada
no pressentimento de estar sempre excluída do círculo afetivo de outro – “Poderei me
reconstruir ou terei sempre essa sensação de estar mutilada, fora do mundo, dos segredos e do
afeto alheio?” (p.56) –, reproduzindo aquela impressão em relação à mãe, aprendida em um
tempo muito remoto, estendida às demais personagens sempre que se apresentam situações
relacionais conflitantes:
Era Marcos quem, com um trabalho menos absorvente, lhe dava banho
quando a babá não estava; era Marcos quem lhe contava histórias para
dormir; era Marcos quem o levava a passear quando eu estava cansada
demais. Havia laços especiais entre eles: eu ficava de fora. (p.51)
Tanto afeto nessas palavras, uma expressão tão patética. Nesse círculo eu
não conseguiria entrar. Você abaixou-se, beijou-o na testa.
Eu ficaria de fora, como sempre. (p.149)
Mas nunca deixei de ter medo de meu pai. Acho que todos temos. (RF, p.35)
de culpa, porque eu desejara tanto remover Lilith do seu reinado; só que não
daquele jeito. (AS, p.58)
Nunca tive outra amiga como Adélia. A morte entrou em mim num
ferimento que jamais sarava, pois logo outra pessoa morria, e eu a enterrava
naquele lugar. Até Catarina emergiu da minha memória, e aninhou-se ali,
sempre murmurando. Bila postou-se num canto, fazendo caretas e me dando
remorso. Um buraco enorme aquele. (AP, p.24)
E a mesma condição enfrentada pela neta em tal romance – “Lembro de minha avó, as
roupas brancas, alfazema, solidão. E medo.” (p.13) – traz Catarina, do período em que vivia,
como signo máximo de uma determinada classe de emoções experimentadas: “Desde que
estou no chalé ainda não chorei por mim, mas hoje chorei por Catarina, cuja sorte, embora
diversa da minha, nos aproxima tanto.” (p.55)
De igual natureza, a ligação continuamente estabelecida, ao longo do caminhar da
trama de Exílio, entre os sentimentos suscitados pela frustração com Antônio e os enlaçados à
mãe, na meninice, apontam, definitivamente, para um núcleo comum, que se faz recuperado a
cada novo estado de instabilidade afetiva:
Não vou encontrar Antônio, há dias ele só me fala ao telefone. Comenta seu
desejo de me ver, diz palavras apaixonadas, mas está ocupado demais; de
modo que também ele de repente parece fora do meu mundo, ou eu do
mundo dele, como estive fora do segredo de minha mãe; quem era ela
afinal? (p.62)
atual, o que ocorre em vários de seus capítulos, recurso empregado, ainda, em outros
romances. O trecho seguinte parece dirimir qualquer dúvida possível: “O grupo que
contempla Anemarie continua fixado, fotografado na minha lembrança.” (p.77).
5.2 O nó do destino
Todavia o mais direto registro desse retorno diz respeito à memória voluntária,
marcada como um exercício de relembrar. “Enquanto isso lembro.”(p.13), diz Gisela, no
segundo romance, e Anelise, de As parceiras – “Vim ao Chalé resolver minha vida, se é que
ainda há o que resolver.” (p.16) –, quando se verifica que “resolver a vida” é revolver o que já
foi: “Tenho bastante tempo para repassar o filme todo mais uma vez.”(p.18). Com elas, fazem
coro os seres ficcionais dos outros romances:
Não desço para me despedir das tapeceiras; ainda há coisas a fazer neste
quarto, filmes a rever. (AS, p.94)
Um dedo cálido toca meu ombro, clareia tudo abaixo de mim: teares
lustrosos, novelos coloridos, prontos para desenrolar minhas histórias e
produzir os objetos dos meus sonhos. (Ibid.,p.30)
subserviência, anulação e medo, mas para o qual termina por fixar um novo significado, o
qual se estabelece em referência às suas novas atividade e postura diante da vida: “Levanto-
me, inquieta, ando pela sala como numa gruta mal iluminada: amanhã, vou brincar de rainha,
aqui será meu reino, mas não haverá escravos nem bobo da corte.” (p.35).
Características peculiares desse reviver, no entanto, podem ser observadas em Reunião
de família. Nesse romance, essa tendência consciente de buscar o que se viveu para se decidir
o que se vive não acontece. Em sentido inverso, e apenas de forma acidental, o encontro com
esse tempo é temido e enche a personagem de insegurança: “Essas lembranças deixam meu
coração apertado, enquanto o táxi estaciona junto da casa.” (p.20)
Em uma arguta dinâmica narrativa por parte da escritora, a inadiável viagem para a
casa do pai – “É só uma velha casa, digo a mim mesma, aborrecida por me sentir tão inquieta
e triste aqui.” (p. 45) –, trazendo de volta indesejadas situações passadas à lembrança,
constitui-se em um sofrido movimento psíquico, rompida, assim, a diferenciação entre as
dimensões espaço/tempo: “Agora, pensando em minha casa, de que não devia ter-me
afastado, sinto-me tão alheia a eles como se fossem irreais; não passam de figurinhas correndo
longe; tento chamar, mas já não me ouvem.” (p.22).
A questão fica inteiramente clara quando se constata que a casa onde Alice mora
funciona para ela não como delimitador físico, mas como uma fortaleza em que, resguardada
por marido e filhos, em seu restrito e estéril cotidiano, se defende contra os riscos da vida,
contra os perigosos vôos da imaginação, mas, também, contra desestabilizadoras invasões da
memória:
Mas hoje sou obrigada a sair dessa concha: por um fim-de-semana, estarei na
casa onde meu pai mora faz alguns anos, com minha irmã mais moça,
Evelyn, e seu marido. (p.11)
Esse relacionamento entre espaço e tempo, que na autora parece conjugar mais
afinidades que afastamentos – “Tão distante o meu universo familiar, esfumado como se eu
estivesse fora dele há muitos anos. E estou vagando por um presente igualmente irreal.” (RF,
p.103), já vinha sendo explorado desde o primeiro livro, quando Anelise, no chalé, ou seja,
longe da restrição de seu ambiente tradicional, pode locomover-se também na dimensão
103
temporal. O mesmo se dá para a Casa Vermelha – “Outras vezes, parece que estou num
pesadelo: o que faço neste lugar decadente, com essas pessoas com as quais nada me liga
senão tristeza e solidão, longe do meu mundo arrumado e certo?” (p.48) –, em Exílio, e, em A
sentinela, morar na casa da infância é restaurar essa época: “Assim, reinstalada, tendo
comprado de volta esta sua casa, de alguma forma o recompensei por ter desejado que Lilith
desaparecesse, que me cedesse seu lugar. Sinto que devo isso a meu pai, esse retorno.” (p.93).
Mudar-se para outro ambiente significa, praticamente, pairar sobre o presente, com
possibilidades de se atingir o passado.
Outro traço dessa recuperação, nos cinco romances examinados, é a constância com
que uma imagem viva do passado, mediante um movimento seguidamente secundado pela
fantasia, reaparece no momento narrativo como índice inexorável da memória. Em As
parceiras, o devaneio obsessivo com a avó vai-se apossando de uma presença física, uma
mulher desconhecida e entrevista, que, aos poucos, perde seu contorno material e se
transmuda em um reflexo do interior da personagem nuclear: a veranista, cercada pelo
mistério trazido pela inacessibilidade e acompanhada de todos os signos da outra, como o tipo
e o vestido branco, o que lhe permite até mesmo a recomposição sensorial do perfume de
alfazema, deixa de ser ela mesma para torna-se Catarina.
Em A asa esquerda do anjo, é o verme, gestado na infância pelos medos e culpas, que,
além de todas as outras funções que agrega na composição do enredo, ganha vulto como
aquele que traz, para o presente enunciativo, como culminância de todos os outros períodos
anteriores, o momento realmente determinante da vida da protagonista: “A memória continua
ativa, num estertor lembro que Leo está morto e que, desde sua morte, esta coisa que estou
expelindo retornou à vida dentro de mim.” (p.131)
A Alice do espelho, a que era livre “para detestar tudo” (p.10) o que a “Santa Alice”,
segundo as palavras irônicas da cunhada, era obrigada a aceitar, é a ilusão salvadora que,
rompendo de um tempo nebuloso, em Reunião de família, convidada por uma inesperada
quebra na rotina, anula o aparente chão de tranqüilidade sobre o qual a segunda pensa
caminhar, mas que, estendido sobre ela, apenas a sufoca e imobiliza.
Um fantasma de mulher, que freqüenta o espelho, duplicata psíquica de mãe, ao lado
do Anão, acúmulo de significados narrativos, em Exílio, seguramente se sobressaem como as
104
figuras que mais marcantemente se caracterizam como elo temporal, atualização de receios e
sensações infantis, movimentando-se com independência e vivacidade pelo universo ficcional.
Em A sentinela, Henrique, o filho que desperta tão somente por sua presença, todo o
tempo perdido, é um dos responsáveis involuntários pela permanência do fantasma de Lilith,
que carrega consigo todo o sentimento de rejeição e desamor, revitalizado, pois jamais
superado, em que se debate, na idade adulta, a irmã Nora.: “Mas não era só por esse sinal que
ela continuava presente: sua vida estrangulada continuava a pulsar, a querer, a ansiar. Não
chegara ao fim: palpitava em tudo, especialmente em minha memória.” (p.63).
De forma semelhante, o conceito que Gisela – A asa esquerda do anjo – tem de Frau
Wolf e que a configuram como a imagem concreta da Mãe Terrível, começa a ser construído
pelas notícias, desde um tempo não vivido, dadas sobre ela pelo resto da família:
Mais tarde fiquei sabendo que o casamento de meu pai com ela trouxera
grande desgosto para a família, especialmente Frau Wolf. (p.46)
Eu teria nove anos; Gabriel, três. Ela, cada vez pior; mais tarde fui
reconstruindo a história, com lembranças, comentários alheios, alguma
revelação involuntária de meu pai, que depois da morte dela raramente
pronunciava seu nome: mas via-se que estava gravado nele, em sangue e
fogo.(p.74)
esse estranho dote, fruto de um namoro de juventude de Mateus...” (p.16). Mas esses dados
que chegam de uma fonte exterior são capazes de tal penetração que, mobilizando a
sensibilidade afetiva, acabam ganhado valor de verdade a ser lembrada: “Eu já era adulta
quando soube disso; e por um momento todo o contido amor por Mateus voltou a me
dominar, quase senti o seu cheiro, quase me perdi no seu abraço forte, quase ouvi sua grande
voz chamando por alguém.” (p.57)
Ainda, sob esse aspecto, Reunião de família surpreende. É o único em que, a par de
um apagamento completo da imagem materna, ferida aberta em relação ao arquétipo, a falta
de informações de terceiros – “Mesmo Berta, a empregada, não sabe grande coisa sobre a
patroa morta há anos.” (p.19) – impede a criança, sequer de um retrato possível: “Tentei
descobrir com ela alguma coisa mais sobre minha mãe, mas a resposta foi que só a vira duas,
três vezes, nada mais.” (p.59). Os poucos testemunhos que chegam à protagonista se fazem de
forma fragmentada, no fim de semana em casa do pai, quando, em plena maturidade, já estão
fundamentadas as imagens da recordação.
Essa impossibilidade de recomposição segura do passado – “Mas sua visita serviu para
enriquecer um pouco a vaga idéia que tínhamos da juventude de nosso pai.” (p.59) – ou do
perfil materno cria um largo espaço para a imaginação, o que se constitui, nesse caso, no
segundo mecanismo que, paralelo à memória, preenche os vazios ignorados ou esquecidos, ou
a substitui, ou, até, funciona como adulterador dos momentos que realmente ficaram
gravados. Brilhantemente ilustrativas são, ainda, as palavras de Marie-Louise von Franz
(2003b, p.89):
É a própria Lya Luft, em seu O ponto cego, utilizando os fios do discurso artístico de
sua personagem, que seguidamente pode ser tomado como definição teórica da prática
107
O tempo que rói e corrói precisa ser reinstaurado, quem conta histórias pode
sobrepor muitas camadas de imaginário e real pois sabe que os limites são
tênues e poderosa a liberdade com todos os seus perigos. (p.16)
No terceiro romance, esse fator tem uma importância marcante, visto que essa falta de
nitidez permite que, impulsionada pelas necessidades primitivas que se configuram no
arquétipo – “Mas na adolescência sofri com essa privação; imaginava que viva, minha mãe
resolveria todos os meus problemas e desmancharia todas as minhas angústias.” (p.34) –,
Alice fantasie para si um modelo de mãe que sua lembrança não é capaz de prover, um “terno
fantasma” (p.44) a que “a presença rude e primitiva” da empregada Berta não corresponde,
mas, principalmente, permite a eclosão de um símbolo materno tão inumano, mas tão forte,
como a árvore cortada que penetra, incontrolavelmente na casa, tentando recuperar seu espaço
apagado na mente dos filhos.
O alcance do poder de reconstrução desfiguradora do devaneio infantil se define na
interiorização completa das escassas palavras de Berta sobre a mãe morta: “Chegou em nossa
casa pouco antes dela morrer, minha mãe viva doente no quarto. Vinha um médico tirar água
da barriga dela com uma agulha.” (p.19). Aos poucos, através do discurso da protagonista, é
possível se entender que esses dois elementos “barriga” e “agulha” são os dois atributos
principais desse conceito construído de mãe, alimentado pela imaginação de criança e não
abandonado na idade adulta: “Imagino minha irmã transformada numa boneca com cara de
múmia, murcha, mas a barrigona enorme: carrega o filho para não perdê-lo nunca mais.”
(p.32). É a ele que Alice sempre recorre como comparação inconsciente quando aparece
envolvida a idéia de mãe, como se pode conferir, ainda, no momento em que, após o assomo
de ira incontida, reforça para a irmã a morte do filho: “Evelyn encolhe-se na cadeira, como se
eu lhe tivesse enfiado uma agulha no ventre.” (p.115)
O entrelaçamento, na maioria das vezes, difícil de ser distinguido entre imaginação e
memória, que apreende detalhes e os introduz para costurar os retalhos da lembrança, é
também instrumento fartamente utilizado nos outros romances:
13
Apud ELIADE, 2000, p.107.
111
acomodei na vida: casada, sossegada, marido e filhos para cuidar, o serviço doméstico e a
rotina, tanto trabalho, esqueci o jogo; não precisei mais dele.” (p.38).
Como ocorre, ademais em outros textos da escritora, percebe-se que, diferentemente
do fantasma da mãe, o qual se permite apenas apresentar em sonho ou metamorfoseado no
álamo, o esquecimento é tênue, transitório, como se constata, igualmente, em A asa esquerda
do anjo – “Por muito tempo esteve esquecido. Hibernava? Pensei que morrera, ou não
passava de um daqueles medos que me atormentavam antigamente, eu era a criança mais
esquisita na família Wolf.” (p.11) – e o conteúdo apagado facilmente se vê recuperado, desde
que dentro de condições correspondentes às anteriores:
Com os anos, a dor da orfandade passou; vivi longos períodos sem sequer
lembrar de minha mãe; aos dezoito anos casei e fui construir a minha vida
com aquele que fora meu primeiro namorado. Um rapaz quieto e bondoso,
muito menos severo e exigente do que meu pai. Desisti dos planos de
estudar, resolvi ser uma boa dona-de-casa. (RF, p.35)
Não se pode deixar de acompanhar, nesse caso, detidamente, por quais motivos e de
que forma se dá a emergência dos acontecimentos do passado, sob quais particularidades
retornam e se intrometem na corrente do tempo presente: “Agora, diante desse novo Renato,
vingativo, nascido da opressão e da secura, recordei a arma secreta. Neste momento ele
brandia outra: muito mais eficiente.” (RF, p.84)
Como se viu, um dos motores dessa variação temporal é a presença de um elemento
que, por sua semelhança, serve como evocação de um evento ou pessoa. Os trechos transcritos
a seguir, juntos, traduzem os episódios que, embora separados pelo tempo, mantêm uma
intensa ligação significativa e emocional:
Por fim lembro de estar sentada no colo dela; mas não passa os braços ao
meu redor: continua rígida, apenas me suporta. Não vejo seu rosto; aninhei-
me no seu peito; mas sei que é uma máscara zangada. Então, sem poder
evitar, inesperadamente urino em profusão no colo dela. (Ibid., p.134)
Fiquei mais um pouco na varanda, imaginando como seria ter um dia no colo
um filho de Henrique. Elsa nunca mostrara interesse pelo neto. “Não me
sinto avó”, afirmava, ridícula. (AS, p.39)
Nessa fase lembrei várias vezes de minha avó Ana, mãe de Mateus. (Ibid.,
p.39)
113
Uma leitura atenta identifica a marca indelével deixada nessa personagem que,
embora, metonimicamente, possa dizer que suas mãos são “...ásperas de trabalhar, cheirando a
cozinha; incapazes da menor violência.” (RF, p.12), adiante, a propósito dos bichinhos de
estimação dos filhos, de forma indireta, quase formula a negativa disso, desenhando de si um
perfil, que vai se adequando à Alice do espelho e dá ensejo ao desenlace da cena familiar,
próximo ao final, onde sua persona, inconscientemente construída, é esfacelada:
Procedimento equivalente a esse, qual seja, no encontro com algo atual se abre uma
porta pela qual se chega à meninice, caminho indireto, pode ser encontrado novamente no
romance referido na transformação de Alice na frente do espelho, que tem sua funcionalidade
determinada nos capítulos 6.4 e 6.6. Mobilizando uma questão fundamental para a malha que
organiza a história rememorada, mais intensamente até que o fato dos animaizinhos
anteriormente descrito, o agente aqui identificado tem um papel que o habilita como elo entre
duas épocas bem distintas:
Olhando no espelho do meu quarto, esta manhã, pensei que era pequeno
demais.
Então, debruçando-me para ver melhor, porque ia viajar à tarde e queria
estar bem, recordei aquele antigo jogo, de que geralmente nem me lembrava.
(p.10)
Ainda não é luz plena o que escorre casa adentro, mas o lusco-fusco do
amanhecer. Sento-me no primeiro degrau, e contemplo embaixo uma zona
de indefinição onde, aos poucos, despontam os contornos do reino que
amanhã será inaugurado: teares, novelos, e a liberdade de inventar.
Sem muito esforço posso ver ao pé da escada o rosto de Mateus nas
madrugadas de minha infância, quando tinha de me levar para o sítio de tia
Luísa...(p.13)
Desço apenas alguns degraus, até o meio da escada, onde me sento outra
vez, testa encostada ao corrimão frio. Quando o medo era grande demais, de
madrugada, eu vinha até aqui, também descalça, esperando que meu pai
chegasse da fazenda, do clube, ou retornando com Elsa de uma festa. (p.20)
A descida empreendida por uma personagem que, na idade adulta, compra de volta
uma casa em que viveu em uma época descrita como bastante infeliz, determinada a “rever os
filmes” desse período, pode ser entendida como revestida de uma índole essencialmente
simbólica, o que já se pudera ver em Exílio, de forma bem mais apaixonada e incontrolável:
“Ou desço como quem se atira numa funda piscina e vai, em câmara lenta, nesse túnel, até
onde permitem náusea e vertigem.” (p.14). A compreensão da importância de tais trechos
115
requisita, novamente, o texto de Sylvia B. Perera (1985) introduzido pelo comentário de que
“O motivo da descida é lugar-comum no trabalho de Jung.” (p.77):
A chegada ao final da escada, limite físico do tempo que acontece, ainda conserva a
permissão de um encontro com o passado:
Mesmo de forma superficial é preciso antecipar uma questão que terá sua discussão
aprofundada no capítulo consecutivo a este: aqui, ecoando o aspecto psíquico embutido no
comentário teórico anterior de Perera, deve-se chamar a atenção para a citação da página 34,
do romance examinado, onde a presença do filho, situado acima dessa mãe que mergulha no
inconsciente, remindo de lá suas lembranças, tem um forte peso representativo de assunção da
consciência, papel que uma reflexão mais atenta pode facilmente conferir na leitura das
páginas finais:
14
Na concepção junguiana, energia psíquica.
116
- Amanhã vamos subir de noite, Bernardo. Pode ser que a gente encontre
aquela excêntrica.
Quem gostava de chamar todo mundo assim era tia Beata. Todos os que não
cabiam nos seus padrões, e isso era uma porção de gente. (AP, p. 34)
As antenas de luz tateiam perto de mim, passam junto de meus pés nus; calor
na pele quando se aproxima: a pele de João contra a minha, há quantos
meses? Quase um ano. (AS, p.30)
O mecanismo a que recorre a escritora pode ser bem mais sutil e alcançar efeitos
notáveis em termos de desenvolvimento da história: ligação semântica, ligação de vidas,
ligação de capítulos, ligação de tempos. Em A sentinela, vale-se da relação entre duas
palavras distintas estabelecida por seu campo semântico – “Não sei se ainda quero uma vida a
dois, não sei.” (p.15) – para conseguir encadear o final de um segmento de capítulo ao início
de outro:“Elsa e Mateus formavam um estranho par: nada combinava, nem fisicamente.”
(p.15). Mas o resultado mais profícuo está no fato de que ata o presente ao passado de forma
surpreendente, atingindo, por essa tática polivalente, o objetivo tão variadamente perseguido.
Como foi salientado no princípio deste capítulo, a memória da personagem é o suporte
estratégico mobilizado pela escritora para viabilizar e justificar a deflagração da narrativa,
que, por esse caminho oblíquo, se mascara em acidente psíquico e, se esvaziando,
intencionalmente, de seu caráter fictício, acaba por promover uma das mais sutis ocorrências
literárias.
118
6 O PALCO DO INDECISO
*****Poesia
Como foi discutido desde o princípio desta apreciação, um dos aspectos de maior
importância do estudo junguiano é sua sondagem do inconsciente, no qual distinguiu uma
parte de aspecto restritivo, caracterizador de uma vivência particular, e outra que ligaria cada
ser humano a sua espécie. Na obra artística de Lya Luft, pode-se identificar o aproveitamento
ficcional de ambos os dados psíquicos, habilmente manejados para comporem os variados
enredos, o que já foi identificado nos capítulos precedentes. Neste, o exame se detém mais
pormenorizadamente em certas personagens e seus envolvimentos relacionais, entendidas tais
personagens e processos como expressões mais amplas dessas camadas específicas da mente
humana.
O capítulo atual, portanto, se caracteriza por dissecar e aprofundar, o que já tinha sido
feito nos precedentes, por arrolar, agora de forma sistemática, todos os recursos que criam
uma ambiência típica de inconsciente nos sete textos, as personagens que são a criação
artística das imagens identificadas como produto dessa camada da mente, bem como os
motivos psíquicos daí provenientes e que as fazem interagir, dando corpo, destarte, ao projeto
narrativo.
119
Visto que o assunto aqui objetivado sejam os estratos psíquicos não controláveis pelo
ser humano, é inevitável não se fazer uma avaliação da freqüente preocupação das
personagens em manter contato com a consciência, preocupação que, por surgir em toda a
obra, acaba, por outro lado, afiançando a invasão irreprimível de seu contraponto na vida das
personagens, hipótese assumida neste estudo.
Segundo a visão de Jung15, a criação do Cosmos em oposição ao Caos, dado
cosmogônico identificável em muitas civilizações, comemora, na verdade, mitologicamente a
instauração da consciência frente ao poder supremo do inconsciente no homem primitivo,
acontecimento filogenético que, também se dando ontogeneticamente, é fundamental para a
sobrevivência de cada indivíduo. Em sua lida psicanalítica, o estudioso identificou igualmente
essa ocorrência em mentes adultas, o que sublinha a importância do predomínio do racional:
Notemos que nos nossos dias ainda são utilizadas as mesmas imagens
quando se trata de formular os perigos que ameaçam um certo tipo de
civilização: fala-se do “caos”, de “desordem”, das “trevas” onde “nosso
mundo” se afundará. Todas essas expressões significam a abolição de uma
ordem, de um Cosmos, de uma estrutura orgânica, e a reimersão num estado
fluido, amorfo, enfim, caótico. (ELIADE, 1992, p.44)
Nos dois textos, pode-se surpreender uma oposição que, se coloca de um lado
expressões como “mundo obscuro” ou “trevas”, por outro, destaca a idéia de “ordem” como
meta suprema e salvação contra um risco ameaçador das decisões humanas voluntárias. “O
mundo voltou a ser ordenado, tal qual precisamos que seja.” (RF, p.124), ecoa Alice,
igualmente, no universo ficcional.
15
“Ora, sabemos que os mitos cosmogônicos, no fundo, são símbolos do surgimento da consciência (o que aqui
não nos é possível provar com documentos). (JUNG, 2000a, p.139, grifo do autor.)
120
Essas mesmas concepções podem aparecer nas expectativas, na visão de mundo das
personagens da obra analisada, enfim, denunciadas em suas falas – “Apesar disso, era Mateus
quem me propiciava segurança: bastava ele entrar em casa e, insone em meu quarto, eu me
sentia melhor, meu mundo entrava em ordem.” (AS, p.18) – como uma condição do ser
natural – “Ele liga o aparelho, não comenta nada. Deve estar habituado a receber ordens
contraditórias, não se aborrece nem se espanta; pouca coisa há de abalar seu mundo ordenado
e simples.” (AS, p.79) – ou requisitada como uma necessidade para a inteireza humana desde
a infância: “Por mais que eu tentasse convencê-lo, lidava com uma lógica de ferro, a de sua
cabecinha de menino feliz: queria o mundo sólido, pai e mãe unidos, a casa intacta. Tudo o
que ameaçasse essa ordem era olhado como um mal incompreensível, e inadmissível.” (E,
p.51).
Esse ímpeto em direção a disposições regidas por leis pré-estabelecidas, apreensíveis e
guiadas pela consciência, esse desejo de fugir ao imprevisto pode se revelar na busca pelo
sólido, pelas formas definidas, pelo que se imagina seja, para todos, o real, escudo perfeito
contra o perigo do instável. Não se adequar a isso é correr o risco da submersão naquele
“estado fluido, amorfo, enfim caótico”.
Desde o cachorro Bernardo e tia Dora em As parceiras – “Abria-me, com seu calor,
um mundo pelo qual eu esperara tanto: sólido, verdadeiro.” (p.72) –; Leo e tia Marta, em A
asa esquerda do anjo – “Eu a invejava. Aproximei-me mais dela. Sua figura sólida, o riso
bom, as maneiras domésticas, propiciavam-me um arremedo de segurança.” (p.88); a casa
onde Alice morava com marido e filhos em Reunião de família – “Sinto-me desligada de tudo
que é sólido e real, minha vida cotidiana, alguma vez tive esse paraíso?” (p.31) –, várias
protagonistas, debatendo-se em um mar de sofrimento e desequilíbrio, sempre anseiam
penetrar um mundo aceito por todos, porque entendido como proposto pelo pensamento
lógico. A recusa à convivência pacífica com aquilo que supõe seja o resgate da harmonia leva
Renata, em O quarto fechado, ao caos total: “A única coisa sólida em minha vida talvez tenha
sido Martim, eu precisava de coisas sólidas: e sempre as rejeitei. Miguel teria sido sólido;
Martim me teria amparado”. (p.130).
Em A asa esquerda do anjo, Frau Wolf é a representante máxima dessa “ordem”
estabelecida por um mundo ocidental que, orgulhando-se de se orientar pelas regras da razão,
utiliza tal desculpa psíquica para o cumprimento rigoroso de determinações sociais, o que se
vê traduzido artisticamente em seu simbólico gesto regulador: “Minha avó verificava se tudo
estava em ordem, corria o dedo nas lápides, como nos móveis de sua casa, à procura do
mínimo grão de pó.” (p.42).
121
Chove forte sobre a Casa Vermelha, que carrega na noite seu fardo de
sofrimento e loucura, vidas desconectadas, sem raiz...mas de certa forma
unidas entre si pela falta de um destino, de um sentido. Precário barco: quem
é o timoneiro? (E, p.153)
Nos enredos de Lya Luft, porém é impossível se encontrar algum aspecto ali utilizado
que seja gratuito ou que tenha, pelo menos, um papel inferior na hierarquia organizativa do
texto. Como os demais elementos postos em ação para fazer a história fluir, o espaço tem
funções muito mais importantes que o de ser localização, participando ativamente da
dinâmica que constrói a história. Como todos os demais elementos, esse fator também
participa da tessitura simbólica que é o principal dado constituidor de sua narrativa:
Nesse caso, criar uma atmosfera incomum em volta daquela casa – “Sempre esse
nevoeiro que se enrosca nas copas da floresta, como algodão.” (p.63) –, cujas origens não são
determinadas, que situa as personagens em um local sem contornos estabelecidos e permite
um desdobramento de efeitos e, conseqüentemente, de avaliações, é um recurso não raro nos
textos avaliados.
Mas a profunda marca do especial ambiente que se pode reconhecer nessas histórias
imaginárias é a erupção do profundo inconsciente, que, contaminando, aos poucos, o meio
circundante, termina por dominá-lo inteiramente. Se o leitor é mais afeito a uma interpretação
objetiva, sua tendência não encontra um terreno seguro quando elementos impalpáveis vão
sendo anexados e um indeciso cenário se desenha, entrelaçando exterior e interior:
“Contemplo a mata, que me fascina; rastejo dentro de mim num chão igual ao dela: ramos
caídos, madeiras podres, silenciosos vermes, cogumelos; tudo tão longe das copas do sonho.”
(p.14)
E a inconsistência dessa realidade que supostamente envolve a casa se torna mais
visível a cada passo, e envolve não só a protagonista, como evidencia sua própria descrição,
mas vai se estendendo como continuação da consciência cada vez mais apagada da Velha,
personagem que, como a narradora, naufraga naquela vaga, mas trágica paisagem da Casa
Vermelha: “Contempla a bruma que hoje esconde inteiramente o mar, onde nem se vêem as
luzes dos navios, que já devem estar acesas. Que visitante ela aguarda daqueles lados? Ou é
apenas o esquecimento que a vai invadindo?” (E, p.65)
No trecho transcrito, a exatidão significativa da palavra “bruma” e de todo o restante,
que conduzia o entendimento para uma realidade material é abalada com a continuidade de “o
esquecimento que a vai invadindo”, expressão que traz para o jogo de interpretações um
estado interior. Os elementos que se interpenetram e a probabilidade de se ter um simbolismo
do inconsciente se torna cada vez mais verossímil, o que parece reforçado pela negação das
“luzes”, convencionalmente na cultura humana, um dos elementos mais fortemente
expressivos da consciência.
está numa relação filial com a escuridão, como o é a própria consciência que
também é filha das profundezas originais.(NEUMANN, /s.d./, p.188)
janela. Tem certeza, mas só a mim confidenciou isso, de que seu filho ainda virá.” (p.87) –,
as quais carregam esse sentimento em relação a sua própria “função protetora” de mãe.
Em O quarto fechado, a tradução da culpa materna – “Ella, navio fora da rota, uivando
na noite.” (p.122) – já produzira um entrelaçamento anterior com a mesma imagem, como se
vê em “Como um pobre cão ensinado, Ella virava a cabeça e chamava...navio dentro da noite,
emitindo aqueles sinais.” (p.61), procedimento que se revela um recurso artístico que vai além
do puramente ocasional.
Mais radicalmente do que o polissêmico mar de Exílio, o aproveitamento dessa idéia
de água, anulada totalmente de qualquer possibilidade concreta, como ainda é possível se
aceitar ali, pode retornar como a manifesta irrupção desse elemento psíquico incontrolável em
dois outros textos:
Agora, cada vez que ela partia, eu ficava vagando pela casa, perturbada; era
como se minha amiga introduzisse por baixo da superfície calma da minha
vida uma vara fina e traiçoeira, e ficasse remexendo, levantando coisas lá no
fundo. (RF, p.64)
Portanto a construção de uma ambientação esbatida, sem limites rígidos, que deixa a
casa onde se passa a cena literária, significativamente, como que isolada do resto do mundo e,
nesse caso, do mundo palpável, sob uma atmosfera que escapa à razão, não se limita apenas a
Exílio, já tendo sido largamente explorada em O quarto fechado:
Mas é em O ponto cego que o caráter concreto dos termos se anula completamente e é
francamente elemento do psiquismo daquele Menino que vive uma vida lábil, transitando
entre a realidade de todos e uma realidade profunda: “O que a gente sabe mas não diz pesa
mais do que o pronunciado, pois move-se nas brumas e assim escapa de qualquer vigilância.”
(p.95)
Os exemplos são inúmeros no texto e vão conduzindo o enredo, a cada passo, para um
ambiente imponderável, inapreensível. Nenhum estudioso do psiquismo criou uma melhor
definição para o termo “inconsciente” do que o achado artístico de “palco da amplidão do
indeciso” (p.123).
Como caracterização desse mundo psíquico sem controle que invade e domina
fortemente a consciência das personagens principais, enunciadoras do discurso literário em
seis dos romances estudados, podem-se elencar, ainda aqui, as figuras monstruosas que
surgem em vários textos, o que foi anteriormente descrito, e que, como todos os demais
instrumentos artísticos postos em ação, apresentam uma condição física e outra possivelmente
imaterial, condizente com a reconstrução de fantasias inconscientes: “Fico tensa: nesse
128
momento, no quarto no fim do corredor, não haverá um monstruoso ouvido alerta, escutando
nossas palavras e gemidos, e movimentos?” (E, p.172)
Outro dado que deve ser analisado neste subcapítulo são as enormes casas e seus
andares superiores, a comporem, à primeira vista, um ingênuo cenário. Dada a persistência
com que se apresentam, o fato deve ser levado em consideração. Em As parceiras, O quarto
fechado e Exílio, mais do que nos outros textos, carregam significações especiais.
Inicialmente, utilizemos, de novo, o estudo feito por Bachelard (/s.d./b) , na obra que,
dada a propriedade com que os conceitos ali emitidos se amoldam à visão deste estudo, tem
sido inúmeras vezes requisitada, sobremaneira no capítulo sobre a casa onírica, a casa
primeira, fixada no psiquismo, pela qual se adquiriu o sentido de intimidade, presente
freqüentemente como imagem poética. Ele analisa alguns de seus compartimentos – “Uma
casa sem sótão é uma casa onde se sublima mal; uma casa sem porão é uma morada sem
arquétipos.” (p.82) – , tomados como símbolos de elementos psíquicos.
como o verme, mais adiante examinado: “A conversa que acabo de ter com tio Stefan me faz
pensar em presenças sinistras movendo-se lentas no quartinho do porão. Asas aflitas – as
mesmas da música de Anemarie?” (p.76-77).
A natureza de símbolo de inconsciente que acompanha essa “raiz” da casa no segundo
romance, posteriormente explorada em O quarto fechado como energia metafórica – “As
roupas estavam imundas, no corpo magro aqueles odores: poço, porão.” (p.81) –, a qual
acompanha Gisela desde a infância, acaba sendo explicitada inteiramente depois de adulta:
O tempo passa. O pior são as noites: sonho com morcegos no antigo porão,
acordo com medo. Crânios pelados fora da janela, sapos gigantes nas pedras
do jardim, barrigas desfeitas. (p.123-124)
Mas é a parte superior, nomeada algumas vezes como sótão, demarcadora de “funções
conscientes” e, portanto, capaz de representar as descobertas que, partindo do inconsciente,
ali chegam, que dominará a cena em relação a essas casas tão marcantemente caracterizadas,
explorada de diversas maneiras e com múltiplas significações.
Em As parceiras – “Venderam o casarão, construíram um edifício sobre os meus
fantasmas e o sótão de Catarina”. (p.76), surge plenamente presente e destaca-se do resto da
casa, no romance, por ser um “quarto do terceiro piso do casarão, com um banheiro e uma
sacada.” (p.12). Na verdade, a visualização que o leitor tem é quase de uma torre. Pode-se
começar, então, o estudo, partindo-se, de suas características, porque “Fixada em um centro
(centro do mundo), a torre é um mito ascensional...” (CHEVALIER,GHEERBRANT, 1995,
p.889), ou seja, possui “o simbolismo axial terra-céu” (TRESIDDER, 2003, p.334), a partir do
qual se chega facilmente à subida em direção à consciência, fazendo coro com os aspectos
levantados pelo filósofo francês.
É, além desses significados, a inacessibilidade sexual, encontrada como um dos
atributos da torre, em O grande livro dos símbolos, que se torna perfeitamente cabível no
texto em relação à Catarina: “Na arte, a figura da Castidade aparece às vezes numa torre,
como ocorre com as donzelas em situação angustiante dos contos de fadas”. (2003, p.334).
Para aquela, o sótão é, indubitavelmente, guardião de castidade: branco, cheirando a
alfazema, com suas bonecas infantis. A tal ponto, que a imagem vai se extremando e
desfiando seus contornos concretos: ela acaba criando para si um outro sótão, uma torre mais
fechada, onde, encarcerada, perde toda a comunicação com o mundo externo.
130
consciência – “Eu levava na mão uma vela...” (p.169) – , e que se percebe na procura da
personagem nuclear ao tentar descobrir a morada do estranho companheiro:
No alto da escadinha, apenas uma porta estreita, mal e mal se via a fechadura
com os restos de luz do corredor embaixo. Meti a mão na maçaneta, que
cedeu sem dificuldade. Minha respiração chiava. A porta se abriu, como se
esperassem por mim. (E, p.169)
Parece que meu estranho companheiro do quarto de cima também não vai
comer: continua caminhando, arrasta móveis, hoje começou cedo a sua
134
errância. Passos fortes como se calçasse botas; mas outro dia olhei: usa
apenas sapatos gastos. (p.72)
A mulher subiu a escada, deixando apenas uma luz acesa na sala, voltada
para rosas pálidas numa grande jarra negra. (p.163)
Então, da sua alta janela escura, a mulher pôs-se a cantar. Primeiro num
murmúrio, depois cada vez mais alto. Talvez outras janelas tenham-se
iluminado na casa e nas redondezas; a dela, permanecia escura.
Cantava sem se importar com nada mais, cantava jorrando fios de música
sobre as coisas todas, como tentáculos. (p.163)
136
reduto do único possível afeto, entregues pela protagonista ao pai para o sacrifício e que a
fazem se sentir vítima e algoz:
Estou cansada: dormi mal; tive outro daqueles pesadelos com a boneca
estranha, cara de velha, cara de múmia, um sonho que tenho desde menina.
Dessa vez ela estava deitada num caixão de defunto, a barriga enorme.
E no sonho eu queria pegá-la no colo, chamava alto: mãe, mãe... (RF, p.19)
(É um cortejo fúnebre, mas não há caixão. Levo pela mão meu filho,
inundada de alegria, há quanto tempo não sou feliz? Mas de repente não é
mais ele: é o Anão, sua pele áspera, um sapo entre meus dedos...)
(p.188)
Às vezes com ventania, ou lua, elementos cujo caráter mágico já foi discutido em
capítulo precedente, tais fatos ocorrem sempre à noite, estando as personagens, supostamente,
prestes a dormir ou despertando na cama: “Madrugada; acordo com alguém puxando meu
braço, imediatamente fico coberta de suor frio, medo.” (E, p.119). Na seqüência transcrita, a
protagonista, guiada pelo Anão que se mantém sempre entre a latência do mundo palpável e
do domínio inconsciente, é levada para assistir à surpreendente encenação do desenho de
Gabriel, a cena das “Sonâmbulas”: “É, sem tirar nem pôr, o desenho de meu irmão doente.”
(p.120).
Esses “sonhos possíveis” têm um efeito pendular, ou seja, são introduzidos como
acontecimento de fato, mas admitindo, também, a probabilidade de pertencerem a um
universo estritamente onírico pelas circunstâncias duvidosas em que ocorrem – pré ou pós-
sono – criam uma realidade cambiante, instável. Instauram, a partir daí, uma dúvida perene
sobre todo e qualquer fato apresentado como realidade e consegue-se, por isso, um efeito
139
bastante profícuo sobre a obra, visto que, ambas as realidades – a do senso comum e a
puramente imaginada – são igualmente possíveis e hierarquicamente equivalentes na obra.
Como conceitua von Franz, (2003b, p.112), “A cama é o lugar do abaissement de
niveau mental, onde a pessoa se conecta com o inconsciente, com instintos e com o corpo.”.
Desse modo, cria-se, habilmente, uma instabilidade na trama narrativa, ao se criar uma
oscilante ponte entre a realidade e o puramente psíquico. O leitor sempre é instado a caminhar
sobre um chão duvidoso, dilatando assim, para fora da obra, a dinâmica interna.
Só em Exílio, sob essa condição, podem ser citadas várias passagens, nas quais a
figura do Anão está sempre presente, inaugurando virtualidades sobrenaturais: as sonâmbulas
e a velhinha, que se penduram no telhado, como se viu; o Anão que assobia, chamando a
narradora para a floresta ou chorando no corredor como um bebê – manifestamente uma
presença crítico-conscientizadora da relação mãe-filho, já vista antes claramente como sonho
– ou, ainda, morto, no meio do quarto: “Sento-me na cama, pisco para espantar a vertigem. E
vejo.” (p.196). A própria personagem se permite duvidar dessas ocorrências ambíguas:
À luz objetiva do sol, parece que tudo foi alucinação, sonho. Como é que as
Moças subiriam ao telhado? Ainda mais a Loura: fraca como está? Não há
escada, que eu tenha visto, nem acesso algum. (E, p.121)
Se em seis dos romances analisados há, efetivamente, uma mãe pessoal ou alguém
que, sendo-lhe compatível, pode ser responsabilizado pelos sofrimentos da personagem
principal, em Reunião de família uma privação completa da imagem materna anula tal
hipótese, pondo em destaque, justamente, a importância de tal privação.
É o texto de Exílio mesmo que complementa e recria com perfeição, embora
literariamente, a afirmativa do principal teórico em que se fundamenta esta análise:
Aí, minha mãe gritou alguns palavrões, subindo a escada, quase empurrada
por meu pai.
Lembro que mais tarde me esgueirei até o quarto dela; queria ver se estava
lá, se estava bem. Se era ela mesma ainda, e não alguma entidade maligna
que tomara seu lugar. (p.58)
Assim, tal deformação da realidade por uma imagem arcaica16 tem suas
representações não só no mais profundo individual, mas também, no mais antigo da espécie
humana.
A inventividade artística, ancorada nessa possibilidade inconsciente, declaradamente
presente em todos os seus textos, faz renascer, na individualidade da personagem central de
Exílio, o velho espectro psíquico humano, carregado de todas as primitivas desfigurações e
16
“A realidade simbólica da Mãe Terrível extrai suas imagens preponderantemente “de dentro”, isto é, o caráter
elementar negativo do Feminino se expressa através de imagens fantásticas e quiméricas que não são oriundas do
mundo exterior.” (NEUMANN, /s.d./,p.134)
142
todos os medos primordiais vividos pela espécie. O espelho é o objeto revelador escolhido,
objeto mágico, dado que guarda em si desde as qualidades atribuídas à água arcaica pelo
imaginário humano – é Narciso que já no mito confunde as qualidades de um e de outro – até
o dom de ser passagem para um mundo paralelo nele reproduzido, como se pode ver na tão
conhecida obra de Lewis Carroll:
Se ao leitor resta ainda alguma dúvida sobre a origem daquela imagem, a hesitação se
desfaz. E a inevitabilidade daquela representação se impõe:
17
“De um modo geral, a sombra possui uma qualidade imoral, ou, pelo menos, pouco recomendável, contendo
características da natureza de uma pessoa que são contrárias aos costumes e convenções morais da sociedade.”
(STEIN, /s.d./, p.98)
143
daquela voz que chama – “Voz de bêbada.” (p.24), “Voz pastosa, voz de poço, de fosso”
(p.123) –, as quais, podem ser confrontadas com efetivas descrições da mãe: “E nessas horas,
quando se irritava, não tinha uma bela voz: era a única coisa nela que ficava feia.” (p.39);
“Sua voz, monótona mas bonita, ficava roufenha.” (p.57). Quase no final, revela ao leitor, o
que para si, supõe-se já estar suficientemente revelado: “Se for aquela Voz, me mato. Parece
que me esqueceu: eu também a esqueci, na confusão desses dias. Suicidou-se, quem sabe?”
(p.185)
Parece claro, a quem acompanha a trajetória narrativa, que a traumatizante imagem
visual da mãe alcoólatra, ainda viva, em suas crises, revigorada pelo som de sua voz, ressurge,
lá do “fosso” do inconsciente da protagonista, tal qual a realidade: “Vejo-o ainda, refletida
nos espelhos que ornamentavam a ponta de cada corredor da casa, indo do teto ao assoalho:
duas rainhas pálidas, vagando sem destino.” (p.35).
Mas indícios da imaterialidade dessa voz ao telefone são dados por sua ligação com o
Anão. E, adiante, a junção das duas figuras ajuda a descortinar a verdade de ambas, posto que
faz uma revelação não só sobre a misteriosa voz, mas sobre a natureza do próprio anão:
“Alguma mulher desesperada me escolheu ao acaso, quem sabe, para se vingar do tempo e da
vida? O Anão talvez saiba a resposta.” (p.191).
O processo se clarifica quando se torna ainda mais abrangente, já agora, envolvendo o
irmão Gabriel, indiretamente, na ciranda daqueles seres insubstanciais: “Gabriel, e a atração
do fétido poço onde se perde, onde cavouca buscando sabe Deus o quê.” (p.115).
Quase ao final do enredo, a ligação já adivinhada para os três na expressão “fétido
poço”, se intensifica na referência à ação extrema de Gabriel ao escrever na parede, com fezes
a palavra “mãe”: “ANTES DE PEGAR NO SONO, LEMBRO-ME DA VOZ. Parece ter
desistido realmente de mim: afogou-se na própria lama? Que palavra essa pessoa, mulher,
homem ou anão, escreveria na parede?” (p.191)
Neste segmento é apreciado um tipo de situação que tem um grande peso narrativo no
entendimento desta tese, principalmente, por valorizar as personagens em seus aspectos
relacionais. Uma das conseqüências dela é o surgimento da personagem com qualidades que
devem ser entendidas como tendo os mesmos atributos da sombra – “Não se vêem essas
personagens mas lá estão, cá estão ao meu lado, atrás dos bastidores, no meio dos cenários,
144
enroladas nas cortinas desse palco.” (OPC, p.84) –, elemento psíquico estudado por Jung em
diversos trabalhos e que já pode ser surpreendida em outra passagem de O ponto cego:
No citado romance O ponto cego, podem ser reconhecidas diversas passagens que se
identificam com a caracterização de tal parte rejeitada da personalidade humana, que vem à
tona com freqüência e que dá o tom dominante em todo o texto: “Esta é a história de um
Menino e da Mãe do Menino: uma história de muita sombra. História de desvãos, do embaixo
do debaixo, do secreto.”(p.17). Pode-se afirmar que a presença da sombra invade o ambiente
narrativo – “Neste grupo de minha família eu sou o mais estranho. Se não fosse por minha
Mãe eu nem existiria: seria sombra, bicho, boneco.” (p.82) –, preenchendo-o totalmente.
A construção da personagem central, o Menino, se assemelha ao mecanismo que gesta
a sombra psíquica humana, revelação ficcional da sombra junguiana: ignorado por toda a
família – “Eu nem entrava em jogo nenhum: eu era o sapo na beira do poço. Nisso residia a
145
minha liberdade?” (p.29) –, visto como alguma coisa reprovável que se deve relegar para o
escondido e mantida lá, começa a desenvolver, até na aparência, seu lado negativo, e que se
agrava após o abandono da mãe – “(Mas não fui uma escolha: fui o que sobrou depois do
nada.)” (p.29). Nele, ao contrário do desejo dos demais, a face normalmente negada é a que se
apresenta socialmente:
Sempre há quem se exponha àquele que finge não escutar nada atrás das
portas, e não enxergar muita coisa da sua perspectiva. Personagens arrastam-
se de longe: nunca acabaram de ser narradas por isso não conseguem morrer,
e querem que eu as convoque.
Não cessam; murmuram nas dobras da cortina; querem voltar, querem viver.
Sabem que posso desatar os nós que as prendem e as soltar na sombra –
como balões iluminados. (p.18)
Pode ser reconhecido como encarnação da sombra de toda a sua família: da irmã -
“Quando essa minha irmã substituta era muito pequena, ele a ignorava ou lhe batia.” (p.65) –,
do pai – “Até que a filha amada, a alegria, morreu: só lhe restou essa, e todo amor e a culpa se
concentraram nela, para seu bem, para seu mal.” (p.65) e até da própria mãe – “Se eu era o
definido precário, minha Mãe era a força negada: trazia entalada na garganta a pedra de sua
própria anulação.” (p.18-19).
Mas esse papel de encarnação do negado lado humano se desdobra para além do
próprio texto, tornando-se o Menino do último romance publicado, praticamente, a forma
figurada dessa faceta apontada em todos os outros romances:
Uma família inteira foi morar em meu quarto, numa casinha de papelão que
construí e botei num canto da prateleira. Escuto sua voz, seus passinhos em
cima da cômoda. Para lá, para cá. A mulher, os gêmeos, o padre, o pai
doloroso, a mãe morta, a beata, a menina debilóide, todos. Por que tantas
criancinhas mortas nas minhas histórias? (p.90)
Reunião de família é outro texto de Lya Luft que assume grande importância nesse
aspecto, já levemente mencionado no item anterior, mas que neste segmento aparece
investigado em toda a sua amplidão. Em um brilhante processo de intertextualidade, traz do
famoso livro infantil a figura de Alice e seu espelho, já comentado em outra passagem,
aproveitadas daquela obra a atmosfera de fantasia, a licença de trânsito livre entre a dimensão
do supostamente real e o da imaginação, capturando para o novo texto o nonsense de um
mundo invertido que vive paralelo ao outro e, outrossim, reinventando artisticamente em toda
a sua plenitude, dessa forma, a noção psíquica de sombra.
146
E eu?
Olho o espelho: onde a outra? Não esta, acomodada e cotidiana, de mãos
ásperas e corpo envelhecido, mas a outra, que flutua, livre e eterna, em seu
labirinto de cristal.
Ela quer aparecer, eu sinto: quer aparecer; em qualquer moldura onde eu lhe
der espaço, começará a delinear-se e vibrar, dominando-me com a sua densa
realidade. (p.57)
O espelho não lisonjeia, mostrando fielmente o que quer que nele se olhe; ou
seja, aquela face que nunca mostramos ao mundo, porque a encobrimos com
a persona, a máscara do ator. Mas o espelho está por detrás da máscara e
mostra a face verdadeira. Esta é a primeira prova de coragem no caminho
interior, uma prova que basta para afugentar a maioria, pois o encontro
consigo mesmo pertence às coisas desagradáveis que evitamos, enquanto
pudermos projetar o negativo à nossa volta. Se formos capazes de ver nossa
própria sombra, e suportá-la, sabendo que existe, só teríamos resolvido uma
pequena parte do problema. Teríamos, pelo menos, trazido à tona o
inconsciente pessoal. A sombra, porém, é uma parte viva de nossa
personalidade e por isso quer comparecer de alguma forma. (JUNG, 2000b,
p.30-31)
Embora haja uma participação da personagem, até certo ponto consciente – “Eu
brincava assim na meninice: de não ser eu. Não a coitada, filha daquele Professor a quem
147
ninguém apreciava; mas outra Alice – poderosa, inconquistável.” (p.15) – precisa ser chamada
a atenção para a relação de seduzida/sedutora que existe entre a Alice externa e a do espelho,
o que já aponta para uma possibilidade de interpretação para o relacionamento de Nora e
Lilith, de A sentinela, adiante analisado. A personagem que surge no espelho, cuja invocação
inicial sempre parte de uma ação voluntária – “A gente sentava na frente da outra menina e
encarava: tão intensamente, com tamanho fervor e tanta vontade de a ver mudar, que a
imagem aos poucos perdia seus contornos; ficava um borrão.” (p.10), tem todas as qualidades
das quais a protagonista necessitaria para uma vida saudável, não submetida, verdadeira,
enfim.
Uma segunda família janta no espelho, que vai do aparador até o teto. Uma
feia rachadura sobe do canto esquerdo até o meio e divide meu rosto
obliquamente em duas partes. (p.55)
como negativas: “Tive muita pena. Medusa, transformando em pedras os que a amam?”
(p.31). Compõe, junto com o espelho, uma das partes de uma dicotomia que as palavras
seguintes, retiradas de Jung – o mapa da alma (STEIN, /s.d./, p. 100) vão desvendar:
Sombra e persona são como dois irmãos (para um homem) ou duas irmãs
(para uma mulher); uma está à vista do público, a outra está escondida e é
solitária. São um estudo em contrastes.
Eu era ela. Era a outra, que irresistivelmente me puxava para seu mundo de
lampejos dourados.
149
É o próprio andamento textual que desnuda, aqui e ali, de forma sutil, a estreita
afinidade da cunhada com aquele reflexo: “Estar com Aretusa também é um jogo: o jogo dos
contrastes. Eu cheiro a cozinha; ela, a cigarro e jasmim. Somos amigas de infância, mas pouco
temos em comum.” (p.17)
No final de semana em que a família se reúne e todos se dilaceram em um confronto
de verdades, um dos embates mais fortes se dá entre as duas, não uma disputa entre duas
cunhadas, mas flagrantemente entre dois aspectos do ego de Alice – “Sentada na beira da
minha poltrona, componho a máscara adequada.” (p.42) – , quando sua fraudulenta persona
vai sendo despedaçada por todos, mas, principalmente, por sua sombra, ansiosa por
comparecer, como diz Jung: “Acho que todos espreitam debaixo dos cílios para ver quem dará
o próximo salto, Aretusa ou Alice?” (p.108). Nesse momento, a destruição de sua persona
está quase completa:
Minha cunhada não nega; não se defende como eu esperava. Em vez disso,
ataca de volta:
- E você, Alice? A doméstica, a patetinha. Enganou a todos, até o marido,
com essa história de que só faz o que ele quer, o marido não quer isso, não
deixa aquilo...Ele só come a comida que eu mesma faço...Que ridículo!
(p.108)
Adiante, o tênue limite ainda mantido entre esses dois elementos narrativos tão
afastados semanticamente fora da obra – espelho/cunhada – finalmente se anula, confundidos
ambos em uma só construção significativa: “Começo a chorar em grandes soluços. Aretusa
refletiu a imagem de uma Alice que ninguém conhecia.” (p.113).
150
Uma artista, sentenciava minha avó quando a neta preferida tocava na sala
de música; um exemplo, citava meu pai, referindo-se às suas excelentes
notas na escola; um anjo, sussurrava tia Helga, começando a mostrar sinais
151
Quase sempre distante, continua sendo, para mim, uma figura de perfeição.
Não posso imaginar Anemarie fazendo travessuras em criança, tirando notas
baixas na escola, mostrando a língua para a avó quando esta não vê, levando
sermões de tio Ernst, relaxando nos estudos de violoncelo.” (p.71)
Sem perceber, tornei-me afinal boa dona de casa. Embora as agulhas ainda
enferrugem, meus bordados saem quase perfeitos; consigo fazer uma torta
de várias camadas, quase tão boa quanto as de tia Marta, e acho que minha
avó hoje se orgulharia de mim.(p.83)
Por ser contrária à atitude consciente que escolhemos, não permitimos que a
sombra encontre expressão na nossa vida: assim ela se organiza em uma
personalidade relativamente autônoma no inconsciente, onde fica protegida e
oculta. Esse processo compensa a identificação unilateral que fazemos com
aquilo que é aceitável à nossa mente consciente. (ZWEIG, ABRAMS, /s.d./,
p.28)
São ainda as palavras de tais psicoterapeutas junguianos que vão elucidar com
perfeição a natureza dessa tão surpreendente e expressiva ferramenta artística posta em
atividade para imprimir ao enredo propriedades do fantástico e que, desse modo, consegue
exceder a simples representação da referida figura psíquica:
É sob essa perspectiva, ou seja, motivada pelo ignorar dessa cobrança da parte
inconsciente inadequadamente recalcada – “A colaboração do inconsciente é sabia e orientada
para a meta, e mesmo quando se comporta em oposição à consciência, sua expressão é sempre
compensatória de um modo inteligente, como se estivesse tentando recuperar o equilíbrio
perdido.” (JUNG, 2000b, p.275) – que se pode entender muito das circunstâncias finais do
texto: “Devagar, meu habitante se vira, o leite acabou mas ele ainda está faminto, vira-se na
minha direção, balançando pesadamente a parte erguida do corpo.” (p.141).
Cabe, ainda, voltar ao Menino de O ponto cego, elemento a inaugurar esse segmento e
que mais uma vez surpreende como materialização ficcional da sombra, surpreendida uma
vez mais na mesma engenhosa metamorfose teriomórfica que se estabelece, agregando,
mutuamente, qualidades: “Meus cílios devem estar caindo porque meu olhar já não é o
mesmo, os vermes não têm cílios, vou me parecendo com eles; meu cabelo também anda mais
ralo.” (p.97)
A ambígua Lilith, de A sentinela, é a quarta personagem deste segmento de capítulo
que traz para o texto de Lya Luft a questão do eu social e do eu oculto. A ambigüidade se
estabelece pelo fato de que ostenta qualidades positivas e sedutoras para pais, amigos e na
escola, e tem reconhecido seus atributos negativos por muito poucos, principalmente pela
irmã mais nova, que, apesar de tudo – e é justamente sobre esse aspecto que a avaliação deve
ser focada –, desenvolve sobre ela sentimentos, seja de medo, inveja ou de profunda
admiração, mas que funcionam, em todo o transcurso textual, como um constante elemento
adulterador sobre os fatos trazidos do passado:
Sentia-me um pouco vingada, vendo Lilith infeliz: então, ela também era
vulnerável. Mas quando morreu, dias depois, o remorso bafejou minhas
costas.
Assim, eu a tornei imortal. (p.51)
154
Novamente pode-se citar a protagonista de A asa esquerda do anjo, que, embora tenha
como seu oposto um ideal de positividade encarnado na prima, como Nora, cria para si uma
sensação de insulamento em relação ao mundo exterior : “Um universo lírico, amores apenas
aludidos, tudo limpo, majestoso. Um mundo onde cabia alguém como Anemarie, que eu
ficava namorando de longe.” (p.69)
Murray Stein (/s.d./, p.100) define com exatidão esse comportamento tão bem recriado
na ficção, o que confere à obra uma tão sólida coerência interna:
Se há personagens cuja opinião sempre é colocada sob suspeita – “Eu sabia que meu
pai nunca voltava atrás quando Elsa o persuadia a fazer qualquer coisa, insistindo com sua
voz pipilante; e ela estava sempre cansada de mim, de minha rebeldia, meu relaxamento.”
(p.14) – , aos poucos, sob as palavras de outras mais valorizadas, como o amado João, ou
155
através de sua própria avaliação, começam a vir à tona características que esse eu hesita em
revelar:
- Mas que bobagem, Nora. Vocês eram meninas, que mulher qual nada.
Aliás, ela tinha alguma coisa de rapazinho...não sei. Você, sim, era uma
menininha mal-comportada, pensa que eu não via? (p.80)
Meu boletim era sempre ruim. Meus cadernos traziam à margem, em tinta
vermelha: “letra horrível”, e Mateus me fazia praticar caligrafia na
escrivaninha de tampo verde-escuro, de vidro, em seu escritório. (p.19)
-E que você quer que eu faça? Trabalhe numa loja? Num banco?
-Não sei. Faça algo de que goste...E se voltasse a estudar? Faça uma
faculdade. (p.83)
Em contrapartida, sob igual julgamento favorável feito por muitas das demais
personagens sobre a irmã – “Lilith não parecia ter problemas: era excelente aluna, embora eu
nunca a visse estudar; seu quarto estava sempre arrumado; nunca discutia com nossa mãe, e,
embora desobedecesse sempre, não levava castigo.” (p.19) –, pode-se surpreender ainda a
mesma opinião em Nora, a parte infeliz: “A mente brilhante, muito acima de sua idade, dava-
lhe um ar de adulto escondido num corpo miúdo; sem ser bonita, era atraente, todos a elegiam
a mais bonita da aula ou da escola; e não havia explicação para isso. Pois eu também a
considerava inigualável.”(p.19)
Equacionada sempre dentro de uma dimensão supervalorizadora – “Continuava em
nossa vida como num pedestal, Serafim nos braços, meus pais, arrasados, prestando-lhe a
homenagem de sua dor. Eu a um canto, espiando, solitária.” (p.58) – , o que, como preferida
da mãe, possibilita estender até Lilith a visão desfiguradora do arquétipo, em alguns
momentos é reduzida à sua proporção de menina adolescente:
156
É ainda Olga, a saudável e equilibrada irmã, que, apesar de não ter também sobre
Lilith uma apreciação isenta, mantém, normalmente, sua opinião sobre ela restrita às devidas
proporções:
Christine Downing, em seu artigo “Irmãs e irmãos lançando sombras” (in ZWEIG,
ABRAMS, /s.d./, p.90), comentando o estudo do articulador da psicologia analítica,
complementa de forma definitiva o entendimento da vivência entrelaçada das duas
personagens:
A sombra é relevante ao nosso interesse nos irmãos/ irmãs porque Jung diz
que nos mitos, na literatura e nos sonhos, a sombra é geralmente
representada como um “irmão”. Jung sentia um fascínio especial pelo que
chamava “o tema dos dois irmãos hostis”; um tema que, para ele,
simbolizava todas as antíteses e, de modo especial, as duas abordagens
opostas no trato com a influência poderosa do inconsciente: negação ou
aceitação, realismo ou misticismo.
Como fica claro, toda a caracterização de Lilith é dada ao leitor através do filtro usado
pela protagonista, como já observara o namorado João – “- Lilith não tem nada a ver com
isso. Não bote sempre nos outros a culpa pelo que lhe acontece.” (p.87) –, guardando a
personagem luftiana as características atribuídas normalmente à sombra: “Todos os
sentimentos e capacidades que são rejeitados pelo ego e exilados na sombra contribuem para
o poder oculto do lado escuro da natureza humana” (ZWEIG, ABRAMS, /s.d./, p.16).
E não é por acaso que a Lilith mítica, com quem reparte o nome, tem as mesmas
qualidades noturnas de sombra, em quaisquer de suas versões, como se vê, explicitado por
Bárbara Black Koltuv (/s.d./, p.23), em seu O livro de Lilith:
Uma outra versão, que pode ser encontrada não só no livro anteriormente citado, mas
também em A deusa tríplice (MCLEAN, 1998) diz que Lilith foi a primeira esposa de Adão,
feita como ele do pó da Terra e está presente nas lendas patriarcais do Talmud como uma
figura malévola que buscou igualar-se a ele, querendo participação nos prazeres sexuais.
Quando Adão a quer subjugar, profere o inefável nome de Deus, indo habitar uma caverna no
deserto, unindo-se a demônios lascivos. Como resquício da antiga tradição da deusa pré-
patriarcal, foi invertida e transformada em figura do mal, patrona de maléficos íncubos e
súcubos.
158
Em alguns poucos momentos, mas que instauram a perplexidade do leitor sobre todo o
conjunto de circunstâncias narradas por Nora, desponta sua verdadeira auto-avaliação, suas
atitudes reais e a possibilidade de se detectar um caráter que tenta se esconder atrás da figura
da irmã mais velha:
menos como o primitivo que não só é vítima abúlica de seus afetos, mas principalmente
revela uma incapacidade considerável de julgamento moral.”
A dificuldade de se avaliar, de forma definitiva, Lilith ou Nora vai se tornando mais
vigorosa quando se atenta para o fato de que semelhante indecisão se imiscui no discurso
enunciativo, o que faculta ao leitor o mesmo tipo de disposição:
Não raro imagino se a Lilith que eu via não era fruto dos meus medos, mito
criado pela minha timidez. (p.21)
O trecho de Jung a seguir transcrito, selecionado de sua obra já citada, permite avaliar
a fonte de onde provém o severo julgamento enunciado pela personagem central – “Mas
ninguém amava Lilith: ficava-se hipnotizado.” (p.50):
Uma pesquisa mais acurada dos traços obscuros do caráter, isto é, das
inferioridades do indivíduo que constituem a sombra, mostra-nos que esses
traços possuem uma natureza emocional, uma certa autonomia e,
conseqüentemente, são de tipo obsessivo, ou melhor, possessivo. (2000a,
p.6-7)
Então, ela está aí: a sombra; vem lá de trás, desenrola-se, enrosca-se nos
meus calcanhares. (p.35)
Podia ser que aquela simples enfermeira, jovem e ingênua, não tivesse
assustado Catarina, e que ela precisasse disso mais que de remédios ou
massagens: alguém que se aproximasse sem meter medo sem ditar regras,
sem espreitar ou desconfiar. Alguém simplesmente para amar, e não
importava o sexo, a condição. (p.54)
Em um momento de seu estudo, a citada terapeuta, faz alusão a sua prática médica,
narra, comentário que se mostra exemplar para a ficção:
Uma paciente sempre pintava duas irmãs se abraçando e “os dois corpos
apertados um ao outro pareciam uma só pessoa.” E ela explicava: “Duas
irmãs abraçadas fazem uma pessoa forte. E é a maneira pela qual consigo
abraçar-me quando preciso de uma mãe e não há ninguém que me ajude. Eu
a mim, como a irmã a sua irmã.” (p.73)
É ainda o texto da analista de Nova Iorque, que continua apontando para a necessidade
de se chegar ao processo de junção do aspecto positivo e negativo, o elemento cuja gestação,
na obra de Lya Luft, está tão comprometido com o relacionamento incompleto e
inconveniente com a mãe pessoal, forjado, verdadeiramente, pela imagem da Mãe Terrível
163
que excede os limites daquela: “Não é apenas um formalismo lingüístico que faz Inana
chamar Ereshkigal de irmã” (p.73).
Observe-se aqui a profunda adequação dos comentários ao conjunto narrativo
estudado. As ligações femininas constantes – Catarina e a enfermeira, Alice e Aretusa,
Aretusa e Corália, Gisela e Anemarie – , mesmo sem desdobramentos eróticos, como é o caso
de Nora/Lilith ou Anelise e Adélia, devem ser, pois, interpretadas, não em seu aspecto sexual,
mas como incorporação dos aspectos percebidos na outra mulher, entendida como “irmã”,
como “a outra deusa da bipolaridade” psíquica que conduz à completude:
Seguindo seu destino artístico, a criação literária em Lya Luft transpõe os limites que à
realidade são impostos e consegue relacionar significativamente, embora com efeitos muito
diversos, ações humanas de conexões inimagináveis, eficácia que só a linguagem que se vale
de símbolos logra conseguir, como a utilizada normalmente pelo inconsciente:
Este incesto sugere cuidados e proteção a nível urobórico, ao nível dos laços
simbióticos que firmam a mulher em sua auto-estima, permitindo-lhe ir em
frente com sua alma feminina, livre das amarras do coletivo exterior. Isso
freqüentemente emerge junto com imagens referentes a comer alguma coisa,
incidentalmente a própria terapeuta, para absorver fragmentos da alma que
ainda são vistos apenas no espelho da outra componente da díade.
(PERERA, 1985, p.73)
Uma vez, uma única, nos primeiros meses, mandou-me, por uma colega que
fora passar uns dias em nossa cidade, um bolo de chocolate. Era um bolo
escuro, úmido e muito doce. Foi um dos meus momentos de fraqueza: eu,
que vivia encarniçada, fechada e dura, devorei o bolo sozinha, sentada sobre
a cama na minha pequena cela separada de dezenas de outras, no dormitório,
164
São ainda as palavras esclarecedoras de Jung que introduzem este subcapítulo, quando
analisa o mandala18 tântrico, diagrama composto de círculos e quadrados, muito usado em sua
terapêutica, como mecanismo ordenador de caos interior, o qual o analista identifica como
uma manifestação simbólica de conteúdos psíquicos:
18
Em sânscrito, significa círculo.
165
unilateralidade do ego que se afasta de sua condição instintiva animal e o induz, muitas vezes,
a uma racionalidade excessiva e indesejável, tanto individualmente como em termos de
condição coletiva da espécie. “Eu não queria ser como meu Pai, que pensa que tudo controla
mas deixa escapar o essencial.” (p.16), revela, com a sabedoria instintiva de uma criança, o
Menino de O ponto cego.
Grande parte dos estudos junguianos e de sua prática analista foi dedicada a reconduzir
seus pacientes de meia-idade ao encontro dessa humanidade arcaica perdida, à unidade
necessária, à síntese de dados conscientes e inconscientes: “Uso o termo ‘individuação’ no
sentido do processo que gera um ‘individuum’ psicológico, ou seja, uma unidade indivisível,
um todo.” (JUNG, 2000b, p.269).
É citando ainda, talvez, a principal das inúmeras fontes a que recorreu que completa:
Para se fazer uma sondagem completa do tema proposto neste capítulo, ou seja, o
estudo do esfacelamento interior da unidade do ser, é indispensável a visita a O quarto
fechado, dado seu caráter de texto indiscutivelmente comprovador das conclusões até então
desenvolvidas sob o aspecto ora discutido. Quarto romance da autora, encaminha o leitor e o
estudioso para trás e para adiante no conjunto de sua obra, pelo fato de que ali se vê
explicitada a desagregação a que um psiquismo pode chegar, o que já vinha sendo apontado
nos outros textos, como se viu anteriormente: “Então embriagava-se de música, e de solidão,
19
Os símbolos surgidos nos sonhos iniciais da infância: circulares e quaternários.
167
quando conseguia: deteriorava-se, lentamente, debatia-se, estou caindo aos pedaços, percebia,
estou me desmanchando como coisa que cai na água e fica empapada, pesada, mole.
Repulsiva.”(p.29).
Por esse caminho, chega-se a um símbolo, resistente no tempo, dessa totalidade, cuja
perda vale como um subtema das narrativas enfocadas, o uróboro ou uroboros, da alquimia
grega, assim conceituado:
A idéia de uma ponta – de um ser ou de uma situação – que se liga a outra gera a
imagem aqui caracterizada, fazendo com que essa, na verdade, ultrapasse as fronteiras do
símbolo e virtualize em si, mil possibilidades narrativas, o que tem seu significado
amplamente aproveitado na montagem estrutural de praticamente todos os textos luftianos: “O
meu homenzinho mutilado tomou a minha morte; usurpou a minha liberdade, me obriga a
completar o círculo da minha procura aflita.” (E p.197). É sobre tal recurso que se definem
praticamente todos os enredos: sempre uma volta ao passado na tentativa de, decodificando os
processos pelos quais uma vida de sofrimento se estabelece, unir dois pólos temporais.
Sob os aspectos que ora se examinam, é nesse marco, o qual O quarto fechado se
torna, então, que tal símbolo, acrescido, dessa forma, da capacidade de ser mecanismo
estrutural do encaminhamento narrativo e que seria utilizado como uma constante, aparece
168
como uma revelação inevitável em duas passagens, nomeando aquilo que já se entrevia de
forma indireta:
O uróboro alquímico, reabilitado pela literatura, em tempo e local tão diversos de sua
origem, prova, como salientou Neumann, seu arcaico vínculo com o psiquismo humano e sua
não comensurável força de representação.
Estou tendo que renascer mais uma vez. Mais uma tormenta, um parto: a
dor, o medo o que virá agora? (OQF, p.132)
Já chorei assim alguma vez, eu, que tenho chorado tanto? O choro de quem
dá a luz a si mesma, abre as pernas dolorosamente e sai dali entre gemidos
fundos, sangue e gosma. (E, 198)
O quarto fechado é também o romance onde se nomeia pela primeira vez uma
característica que já marcava várias personagens e que sinaliza o caminho o qual conduz a
uma leitura descompromissada com o rígido percurso realista, permitindo um flexível
encontro com a recriação das camadas mais profundas da psique e suas manifestações
intangíveis: “‘Ela tem um dom’, haviam comentado em família quando revelara uma precoce
vocação musical. Tratavam-na como a uma pessoa especial e, sem falsa vaidade, ela pensava:
Não sou uma pessoa como as outras. Sou uma artista.” (OQF, p.21)
O alcance dessa citada virtude, como já se viu anteriormente, ultrapassa o espaço
delimitado do musical. Ao contrário, a posse dessa “vocação” revela-se, em Lya Luft, como
já se vira desde Otávio de As parceiras, como um outro poder bem menos entendido e aceito
socialmente. As palavras de Rosa, a que “conhece coisas que poucos percebem” (p.34), sobre
a nebulosa irmã de Nora, em A sentinela, cujo comportamento, em seu texto, pauta-se por
uma completa instabilidade e por uma impossibilidade de apreensão, conduzem o julgamento
do leitor por essa mesma estrada movediça: “Rosa, que entende dessas coisas, viu fotografias
e conhece o quadro de Lilith com seu gato na sala de minha mãe, me disse que Lilith ‘tinha
um dom’; quando tentou me explicar, desistiu, e eu não quis ouvir.” (p.20).
O Menino de O ponto cego – “Mas a verdade é que em algum momento meu passo
falhou; se tive dons eu os confundi, apertei botões errados, desestruturei o que pretendia
construir.” (p.150) –, finalmente, é a personagem que termina por indicar com exatidão o
significado com que esse termo é empregado, confirmando, de forma inquestionável, a
reconstrução, na obra, de um lugar que vai além do puramente físico. Deve-se, inclusive,
ressaltar que o comentário feito por intermédio do enunciado e sobre ele, se torna um discurso
metalingüístico, devido ao fato de parecer ocultar o pensamento do ser criador, que,
apropriando-se também desse espaço não apreensível pelas leis naturais e onde se movimenta
com desenvoltura, se vê assimilado, assim, à sua criatura: “(O inventado é o dom dos que não
acreditam demais no comprovado. Sete pode ser um número par: basta que a gente
acredite.)” (p.53)
Se o “dom” arrogado à personagem central do último romance anula a pura vinculação
artística ao termo, igual comentário se pode fazer relativamente aos filhos de Renata no
mesmo O quarto fechado: “Eles tinham um dom, pensou Renata, lutando para não chorar
mais. E o desenvolveram muito melhor do que o meu.” (p.36)
São essas duas personagens, Carolina e Camilo – “A primeira abertura, possibilidade
de outro contato, fora daquele círculo onde girava com sua outra metade desde antes do
nascimento.” (p.23) –, que se tornam o objeto da reflexão que aqui se inicia, embora esta se
170
Tinham sido uma unidade, nada fora deles mesmos parecia interessar-lhes
grandemente, empenhados numa encarniçada, silenciosa busca de unidade.
Mas agora a Morte desferira seu bote, rompera esse círculo ao meio, e
ninguém sabia o que seria de Carolina. (p.25)
Algum dia, alguma coisa ia acontecer: previam isso, embora não soubessem
dizer. Iam fundir-se num só? A vida repartida em dois era transitória,
impossível de se manter para sempre. (p.114)
Bastante ilustrativo é o comentário feito por Luc Bernoist em seu Signos, símbolos e
mitos (1976, p.59), a propósito dos números e que vem esclarecer essa impossível presença
– “Camilo e Carolina, fruto que nascera partido em dois, dedicados a refazer essa
fragmentação que talvez lhes fosse um sofrimento: por isso teriam aqueles corpos exauridos,
os grandes olhos de quem sente dor mas nada pode dizer?” (p.26):
O quadro era uma das recordações da vida antiga de Renata, uma existência
sossegada, fechada no grande aposento claro da sua música. Fora uma
menina solitária, uma adolescente quieta; não que fosse triste; apenas
disciplina e solidão isolavam sua vida. (p.19).
171
legado aos filhos a sua própria desestruturação? Largando a carreira, parecia ter perdido a
capacidade de se manter íntegra.” (p.27)
A música, com seu efeito salutar sobre a sensível pianista e que revolve, através de
desencadeamentos emocionais, suas camadas interiores mais profundas – “Sentada na beira
da poltrona, tensa, concentrada, parecia retornar a uma dimensão onde conseguia ser ela
mesma, e da qual, saindo, voltaria a se fragmentar.” (p.43) –, é uma moeda de duas faces, a
positiva voltada para ela:
Renata sabia, todos sabiam sem coragem de dizer: eles treinavam para ser
iguais. (p.34)
Ele precisava saber: mais inquieto do que Carolina, mais tenso, e intenso,
precisava alcançar o estado de perfeição, de união, chegar ao paraíso que
desafiava, e chamava, e se abria lentamente para o devorar. (p.113).
Vou acabar amando a Morte como ele a amava, pensou Renata. Vou
descobrir que afinal só ela é verdadeira, só ela existe, sempre à espera,
imóvel: nós somos apenas sopro no escuro, vôo que vai desembocar no
ventre dela: única realidade. (p.78).
Jung, em seus diversos escritos, aponta a capacidade que o inconsciente tem em reunir,
simbolicamente, os opostos através de um terceiro elemento, chamada de função
transcendente, devido ao fato de que pode transcender a tensão consciente daqueles, como se
poderia novamente vislumbrar em Henrique, do sexto romance, que realiza em si, ao unir
qualidades da tia e do avô, segundo a visão de sua mãe, a coniunctio oppositorum, o
casamento alquímico dos opostos, tão freqüentemente estudada e assumida pelo analista em
sua teoria de individuação.
A representação de tal operação já tinha sido sugerida no desejo de Carolina e
Camilo, como foi salientado, por aquele “outro”, por quem são desejados igualmente como se
fossem um único ser, o estranho que se tornaria o vértice unificador do triângulo, portanto.
Ainda que não realizada naquela ocasião, em relação a Camilo, o processo cabal rumo a essa
totalidade se satisfaz na recomposição da unidade do masculino, por ele representado, com a
Morte, então dita feminina: “Agora, quem possuía Camilo era a fria Dama que começava a
corrompê-lo com seu toque obsceno, atingindo Carolina também, na última fibra que a
prendia à sua outra parte.” (p.125). A reunião dos dois passa a ser vislumbrada pelo leitor
através desse terceiro elemento – “Se Camilo estiver morto, eu já comecei a morrer.” (p.34) –,
ponto de interseção que possui a mesma função de “conter” – O quarto fechado – bem
descrita por Neumann em sua tantas vezes citada obra a propósito da situação original da
174
O pressentimento da morte – “Não posso carregar esta parte por muito tempo, isso
contagia, os vermes dele vão comer meus olhos, entupir minhas veias. A alma dele vai me
arrastar consigo. E eu vou ser igual a Ella.” (p.124) –, que se mostra como a facilitadora da
integração das duas partes erroneamente separadas, permite à Carolina identificar em si a
fração masculina de um ser, emblema de unidade, conceituado no subcapítulo seguinte:
Parada no quarto, tesoura nas mãos como se fosse uma flor, procurava
dentro de si mesma: ia descobrir onde Camilo estava. Precisava da sua ajuda,
para viver ou morrer. (p.126)
- Você tem de estar aqui, meu querido – sussurrou. Essa idéia a embriagou
como champanhe bebido em altos cálices dourados, como encostar-se ao
corpo amado e, boca a boca, deixar borbulhas bêbadas passarem de uma para
outra, sangue gelado e puro, um corpo só. (p.128)
Mas, no que diz respeito à Renata, elemento centralizador e causa primeira dessa
desagregação, tal conquista se vê frustrada, passagem narrativa na qual a teorização junguiana
se apresenta plenamente justificada, comprovando a verdade que há em se conferir ao símbolo
uma eficiência expressiva e realizadora no campo de ação psíquica não conseguida por outros
mecanismos: “Os pais o amaram com um amor desmedido, crispado. Amavam nele a
possibilidade de consertarem a vida.” (p.77)
175
É assim que surge o terceiro filho, que se apresenta, virtualmente, como portador da
citada função transcendente – “De repente, Renata sentia-se mãe. Era dela o filho tardio, que
despertava em suas entranhas, em seu coração, ondas de ternura” (p.77) –, que será, desse
modo, como anteriormente foi dito, sempre o vértice a unir dois outros elementos dos mais
variados aspectos: “Por ser tão alegre, e louro, todos o chamavam: Anjo Rafael.” (p.77). Não
por um mero acaso, reaparece novamente o Anjo, tão simbolicamente presente como o do
segundo romance, anexando à outra personagem todos os seus atributos e funções: “Mas
punha nele a esperança de refazer sua vida, de reconstruir-se interiormente, de ser enfim
capaz de amar, generosa, e se libertar.” (p.110). Com aptidão para construir em Renata o
sentimento de maternidade, para anular uma oposição ferrenha entre a praticidade do pai e a
arte da mãe – “A convivência com Martim estava melhor, ambos tratavam a nova felicidade
como se fosse uma flor de vidro.” (p.110) –, o pequeno passa a ser, além de uma criança, uma
promessa: “A vida parecia organizar-se lentamente: a possibilidade de ser feliz.” (p.110).
Sua morte em uma queda da escada é o aborto de todos os projetos, como realização
da inteireza da protagonista, união de marido e mulher, marcando-se como um afastamento,
sem possibilidade de volta, entre Martim e os gêmeos que, “mais arredios ainda depois do
nascimento do irmão” (p.110), tornam-se os principais suspeitos de sua morte. A mãe,
entretanto, é aquela que recebe o mais fundo golpe, atingida, inclusive, no refúgio ainda
intocado de sua alma: “A ânsia que a castigava duplamente desde que, morto o Anjo, não
tocara mais, o impulso que a fazia gemer e correr como uma alma penada, também estava
morto dentro dela. Acabado.” (p.132). Morto Rafael, silencia-se pela segunda vez, também
aqui, a “voz do Anjo”, emissária das mensagens emitidas pela totalidade psíquica, o si-mesmo
de Renata: “No círculo de luz do palco, a pianista lhe lembrara figura de museus, visitados
também por conveniência: anjos tocando alaúdes, pensara nisso ao vê-la.” (p.41)
transplantar-se para o universo dele Renata se desorganizara por dentro, o amor dele não a
conseguia manter inteira.” (OQF, p.72)
Entretanto no percurso que se pode fazer por toda a obra luftiana vão surgindo
situações em que personagens de peso especial para o organismo ficcional vivem e defendem,
literariamente, essas convicções próprias da razão, como se discutiu em 6.1. Pode-se
reconhecer na fantasia criativa do trecho “Meu Pai é controlador. Sabe e vê tudo, pesa, corta e
divide.” (OPC, p.47), o depoimento de base científica do criador da psicologia analítica: “A
consciência, porém, parece ser essencialmente uma questão de cérebro, o qual vê tudo, separa
e vê isoladamente, inclusive o inconsciente, encarado sempre como meu inconsciente.”
(JUNG, 2000b, p.275)
Ligada a esse mundo essencialmente racional está Beata de As parceiras, como se vê
em “Por um momento ela pareceu insegura, onde ia parar seu mundo certo e medido? Mas
logo se recuperou: a Igreja tinha regras. Ou se pertencia, ou não se pertencia.” (p.66) ou em
“Tocava de olho meio fechado, bonito demais para um homem, tia Beata dizia. Mas para ela o
mundo se dividia nos corretos e nos maus, não dava lugar para os dúbios.” (p.88); igualmente
em A asa esquerda do anjo – “Um ritual a ser cumprido, como tantos numa família
organizada: tudo é bem organizado na família Wolf, ao compasso da voz seca da matriarca,
minha avó.” (p.14) –; característica ainda identificável em Martim, de O quarto fechado
“Desde que a conhecera, Martim não pudera mais ter a vida ordenada e simples a que estava
habituado, que lhe servia.” (35) – e no pai de O ponto cego: “Meu Pai tinha direito ao espaço:
o melhor lugar à mesa, a maior poltrona na sala, a força e a ordenação.” (OPC, p.19).
Através do contato com os variados enredos, a definição dos parâmetros que se
submetem, sobremaneira, à consciência unilateral e que forjam as condutas sociais,
estabelecendo o que se deve compreender como “normalidade” – “Talvez Martim pensasse
consertar tudo à força; era a sua maneira. Queria obrigá-lo a gostar de tudo o que para seu pai
era importante; provar aos amigos que o filho não era um maricas.” (OPC, p.88) –, pode ser
surpreendida nas palavras sofridas de personagens como Anelise, do angustiado Menino de O
quarto fechado, cujo “ponto de vista”, conforme se pode depreender, prende-se muito mais a
seus processos inconscientes ou até de Norma, insegura protagonista que pretende aprisionar
seu filho dentro de sua visão limitadora:
...sei que meus receios são fruto de ansiedade natural, talvez um pouco de
preconceito, Olga diz que quero enfiar meu filho numa moldura
convencional, imaginando que assim não sofrerá...pode ser. (AS, p.35)
Meu Pai não sabe o que fazer comigo nem onde me enquadrar – nessa
medida eu escapo ao seu controle. Não fecho com seus cálculos, não entro
na sua perspectiva. (OPC, p.47)
curasse de nada, não havia o que curar, ele era Otávio, alguém muito especial, precisando de
um amor especial.” (AP, p. 134-135).
A presença dessas personagens marcadas pela duplicidade, que já vêm pressagiadas
pelo medo que despertam, como na racional figura masculina em O quarto fechado – “E o
filho: não conseguira fazer dele um rapaz saudável. A inclinação para o mundo feminino, a
ligação com Carolina eram coisas perigosas aos olhos de Martim.” (p.87) – e no Pai em O
ponto cego – “Mas o meu sempre mandam cortar curtinho: meu Pai não quer saber de filho
com cara de menina, além do mais essa semelhança o assusta.” (p.27), surge desde o primeiro
romance na figura de Otávio, desenhando, do início, essa ligação com camadas interiores da
psique: “E havia Otávio, meu primo tocando piano, na sua dimensão particular para onde eu
queria ser levada junto, esquecendo Bila, Catarina, e todas aquelas histórias.” (p.72-73). Com
ele, da mesma forma que com Henrique, de A sentinela, o termo funda ambivalências, nas
quais o conteúdo sexual pode ser identificado, apenas, como uma das menores significações:
“Quanto mais eu ouvia Otávio tocar piano no canto da sala, mais ele se transfigurava para
mim, de um adolescente tímido ou malcriado, passava a um menestrel, efebo, criatura
andrógina de um mundo submarino.” (AP, p.68)
A controvertida personagem narradora de O ponto cego, figura inapreensível e que se
movimenta dentro de planos, dentro da obra, que se indefinem entre a fantasia e a realidade,
como seu representante, caminha, coerentemente, portanto, dentro da narrativa, em direção a
uma dubiedade crescente: “Meu pai diz que pareço maricas e não gosto de esporte e prefiro
brincar com bonecas, mas esse é um dos meus heróis, e não é para meninas, não.” (p.66).
Pressionado pelo desamor de um pai de comportamento doentio, abandonado até pela
mãe que, ao final, não consegue preencher a urgência do arquétipo, o menino tem despertadas
a sensibilidade e a capacidade emocional, como se confere na exaltação ao descobrir e
manipular as roupas da mãe mocinha: “As roupas são grandes demais, não as posso vestir,
mas mesmo assim estou feliz: não são apenas velhas fantasias, são toda a festa da vida que se
oferece aos meus olhos, à minha pele, à minha imaginação para sempre ferida.”(p.74).
Prende-se, dessa maneira, cada vez mais, à infância, procurando, em si, do mesmo modo,
aqueles componentes ditos “femininos”, o que é permitido na criança e na mulher por uma
sociedade que se orienta por critérios supostamente racionais e basicamente diferenciadores.
Eu preferia era ser menina, porque aí, quando fosse adulto, virava mulher e
não homem, não essa criatura estranha, peluda, resfolegante e suja mesmo
quando limpa, como meu Pai. (p.100)
179
Desço pelo corredor com todo o meu cortejo, e entro no quarto de hóspedes.
Um dia beijarei na boca um belo Moço que não dorme sozinho. (p.127)
O Anjo de bronze que guarda nosso Jazigo indica o difícil caminho do céu e
finge não escutar nada. (p.13)
O Anjo do jazigo também tinha belos seios. Mas não era mulher: pairava
acima dessas diferenças, era a criatura alada que guardava a nossa morte,
atada ao pedestal de bronze. (p.69)
para o mesmo “caráter paradoxal e antinômico” que o tornam, enfim, um símbolo do si-
mesmo.
O estranho é que sei sem ter conhecido, penso o que ainda nem foi posto em
palavras; mais estranho ainda, o que invento pode mais tarde acontecer:
quem verdadeiramente dita as falas, quem comanda esse palco?
Mas às minhas costas sopra essa voz mais forte do que eu: o anjo que fia e
tece e borda, e me prende nesse enredo. Não calculei bem os seus poderes,
nisso me perdi.
“Penso em Anemarie, que bom você não me ver assim, Anemarie, meu anjo.” (p.131) – se
apresenta sempre no texto extremamente envolvida com a personagem aqui focalizada:
Principalmente por sua música, que é a voz do Anjo, ela se mostra, segundo a visão da
protagonista, sob a mesma imparcialidade, inclusive sexual, – “Só Anemarie parecia
preservada de tudo.” (p.74) –, a mesma numinosidade que os enlaça com o arquétipo do si-
mesmo – “Anemarie toca violoncelo num círculo de luz.” (p.123) – e, em alguns trechos, a
duplicidade da frase remete, funcionalmente, a ambos: “Nosso Anjo será tão plácido como
parece?” (p.79).
A música, pela importância com que se dimensiona nesse romance, ao apresentar-se
como um portal pelo qual se manifesta a figura andrógina de possibilidades psíquicas –
“Anemarie toca com o corpo unido ao violoncelo, de onde brota a voz do Anjo.” (p.140) –,
passa a ser considerada, neste estudo, nos aspectos significativos que se estendem às demais
obras, devido à qualidade que possui de ir muito além do plano intelectual, mobilizando,
através da emoção, toda a parte inconsciente de alguns agentes narrativos especiais, passando
a ser um traço expressivo de interseção entre todos os que se caracterizam por essa dubiedade.
É a música que encaminha Otávio, de As parceiras, para aquela “dimensão particular”,
“mundo submarino”, espaço tão incerto quanto ele:
Muitas vezes, enquanto ele tocava, eu ficava a imaginar qual seria o seu
segredo, para onde fugia quando se entregava assim à música, que dúvidas e
ânsias expressava nas teclas. Havia uma fenda, eu sabia, uma falha qualquer,
mas tão vaga que logo se perdia. O efebo tocava, sem me ver. (p.69)
não luz, que se moviam no fundo do leito dessa música.” (p.108) –, pois “O mesmo20 se pode
dizer do inconsciente em geral, uma vez que as formas apavorantes deste último podem ser
provocadas pelo medo do consciente em relação ao inconsciente.”, como escreveu Jung
(2000a, p.216).
A música de Henrique é uma das coisas inquietantes nele. Não acho que seja
apenas um rapaz animado com sua banda. Quando toca em seu quarto, sem
que eu o veja, a música me arrasta para um território que punge, assusta e
atrai. Há nela algo de lamentoso, como de um animal atocaiado; de sensual,
como um corpo chamando; de sombrio, como alguém inaugurando a própria
morte, ou querendo voltar nela, desassossegado. (p.65)
Henrique, de forma semelhante a Otávio com quem compartilha esse dom musical,
também possui as mesmas indefinições sexuais, segundo os padrões estreitos de sua mãe:
“Ele voltou diferente. Queimado de sol; cabelo mais comprido ainda; parecia cansado, mas
feliz. Diferente como, perguntaria minha irmã, e eu nem saberia dizer, mas era como se
alguma coisa nele tivesse sido decidida.” (p.110). Mas, diversamente do outro, não se
apresenta envolvido por uma atmosfera de dramas “sutis e cruéis” e por “tormentos não
confessados”, indo no sentido inverso:
20
Explicava, anteriormente, que provavelmente as mudanças na disposição da consciência provoquem a visão de
caráter paradoxal do inconsciente.
183
bem admirado no pai –, que perseguem a protagonista, em sua vida, até então e cuja
antinomia, evidente nesse processo de revisão, parece apaziguada pelo filho: “Neste
momento, a noite não me ameaça; a gruta não me atrai; tudo tem seu tempo. E há coisas que
estão fora de todo o tempo humano.” (p.163).
No quinto livro de ficção publicado, torna a ser reabilitada a representatividade da
figura hermafrodita: “Gabriel está deitado sobre um plástico, na cama, inteiramente nu, o
corpo branco e liso como o de uma moça.” (E, p.189). Novamente, aparece comprometida,
desde o nome, com a figura do Anjo, que já anunciara essa relação no romance a que dá título,
não só com essa enigmática personagem de Exílio, mas com duas outras que se vêem
investigadas adiante: “Minha avó explicava que era um dos arcanjos que guardam o Paraíso,
mas como não sabia se era Miguel, Gabriel ou Rafael, para mim ficou sendo apenas o Anjo, e
pertencia à nossa família.” (AAEA, p.41).
Embora seja caracterizado, em diversas passagens, através da metáfora de neutralidade
do Anjo – “Seria bonito se não fosse sinistro: o rosto vazio onde não passa luz nem sombra,
um grande anjo apalermado.” (E, p.68) –, Gabriel, como Henrique, guarda outros opostos em
si – “Olha o teto. Um anjo aparvalhado. Ou maligno.” (p.189), pois a idéia do disfarçado mal
também surge a cada passo “Ele sorri alheado; mas quem olhar melhor talvez veja atrás
dessas vidraças foscas os olhos de um tigre à espreita.” (p.68).
A figura dúbia do andrógino – “Então, começa a falar; o que é inusitado, porque em
geral fica nesse mutismo; levo um sobressalto sempre que o escuto, pois sua voz é de
menina.” (p.68) –, também nesse texto de Lya Luft, segue seu destino cultural e continua
sendo a imagem não só da união dos dois sexos, mas, por intermédio dela, aponta para outras
ambigüidades comportamentais, como o fato de ser apenas um jovem louco e de ter, além
disso, a capacidade de adivinhar assuntos ignorados. Esse dom para ultrapassar as fronteiras
da lógica é uma das qualidades inscritas sobre ele no texto que o aproximam do Anão,
personagem de igual duvidoso limite.
Como em outras de suas criações, a escritora, em Gabriel se prevalece do recurso de
sobrepor várias outras personagens do mesmo texto sobre uma, bem como seus atributos e
funções, criando, assim, engenhosamente, um efeito discursivo só conseguido, plasticamente,
pelo recorte do desenho de uma figura, o qual, tem a possibilidade de se abrir, revelando, na
verdade, ser uma ciranda de várias outras ligadas por um ponto comum. Nele, através de tal
mecanismo, se manifesta não só o Anão, referido anteriormente, mas também o gato como
atributo físico, sobre o qual são feitas algumas observações no item 6.8, mostrando que tal
nexo, à primeira vista, puramente visual, lugar-comum, tem conexões mais profundas, o que é
184
confirmado quase ao final do texto e o que pareceria apenas uma metáfora de caracterização
física, perde a superficialidade: a personagem, ligada, então, a gato e anão, deixa de pertencer
apenas ao real, prendendo-se por um fio tênue ao mundo do não-palpável. E, encadeado a sua
ciranda, Gabriel, torna-se uma figura polissêmica, apresentando, em paralelo, uma presença
material e uma segunda, que se lhe sobrepõe e é, por assim dizer, transcendente, com
possibilidade de metamorfose, relacionada aos mecanismos psíquicos da detentora de um
discurso rememorador.
Contudo há, ainda, o palhaço, cujo estudo pormenorizado se deu no terceiro capítulo,
que, ligado a ele de forma inerente, qualifica-o como representante principal da privação que
torna impraticável a realização do saudável arquétipo materno:
ignorando sua existência, talvez ninguém goste de hospedar um anão.” (E, p.41) – o que se
pode comprovar nas transcrições escolhidas a partir do grande material sobre ele:
Já tendo surgido com outros matizes, em As parceiras, tal qual diversos outros
elementos de seu texto, tal figura aparece concreta ou simbolicamente utilizada: “E ainda
havia as caixas de sapato, o mundo torto onde Bila estava iniciada, e eu não.” (p.73). Embora
seja uma figura evidentemente ligada à realidade exterior do senso comum, a anã desse texto
nasce como um protesto materno contra a violência, como a prefiguração, de um destino
coletivo das mulheres da família e, nesse caso, traz em si elementos que podem ligá-la a um
mundo também metafísico: “Até as empregadas tinham medo da anã: diziam que dava azar,
tinha mau olhado, previa desgraças, via ‘coisas’ ” (p.62). Esse reflexo de um sentimento
inconsciente surge, aqui e ali, como uma forma de revelação: “Eu ficava sozinha, com meus
duendes e medos.” (p.27). Observe-se que Bila, os duendes ou “os anõezinhos engraçados e
espertos” (p.27), todos do primeiro romance, são a primeira gestação do ambíguo e
fundamental anão de Exílio.
À primeira vista, anões – bem como palhaços, como se investigou em 3.3 –, revestidos
de uma aura positiva e alijados de sua condição realmente humana, estão, quase sempre
ligados a um momento determinado da vida – “Companheiro de infância, engraçado e
sinistro, que perdi por tantos anos e vim reencontrar na Casa Vermelha.” (E, p.14) – e podem
ser companheiros inventados, tema e recurso tão caros à ficção em geral, lugar-comum. Deve-
se chamar atenção para o fato de que essa concepção superficial, que freqüenta o universo
infantil, reforça a caracterização do estado emocional que domina a personagem principal, a
qual segue pela vida afora atrás do espectro materno, carência infantil que acentua cada vez
mais as outras desilusões que a vida lhe dá. É sempre esse vácuo materno que se projeta por
trás de cada novo infortúnio, como um ser abandonado que procura o refúgio primeiro de seus
186
medos de criança, e não encontra. Como sempre acontece no romance luftiano, e sempre pela
mesma razão, a personagem principal se congela, psicologicamente, na meninice:
21
“Ao elaborar uma hipótese interpretativa para reduzir a proliferação semântica virtual do texto, portanto ao
determinar uma isotopia, o leitor opera uma filtragem que vai condicionar não apenas o que já leu, mas o que
lerá.” (MAINGUENEAU, 1996, p.54).
187
corredores, aparentemente vazios.)” (p.33) ou de “O Anão poderia até morar numa mala
grande, penso, enquanto puxo o zíper fechando a tampa.” (p.168), chega-se à revelação da
verdadeira natureza do gnomo.
Em outras hipóteses levantadas para o lugar onde vive, como o sótão, na infância, a
torre, na Casa Vermelha – “Perguntei às Criadas se ele morava lá, mas não me responderam;
deram risadinhas, acotovelaram-se, me olharam como se eu fosse louca.” (p.33) –, cômodos
superiores das construções, como foi verificado em 6.2, adivinha-se sua função de elemento
conscientizador.
Mas é a pergunta sobre “O que se faz com um anão morto?” (p.198) e a solução
apresentada – “Ergo-o até o peitoril, ofegante. Estendo os dois braços: deixo que role e tombe
na calçada, com uma batida cava.” (p.199) –, que o desqualificam como uma das pessoas da
ordem racional dos estudantes da Casa Vermelha ou de Lucas, e que o mantêm “longe do meu
mundo arrumado e certo” (p.48), alusão à casa do marido Marcos, índice perfeito do sólido
real.
A exclusão de tal controvertida companhia do campo de influência da consciência já
vinha sendo apontada desde a página 14 naquele “Dorme ou me espreita; com ele, nunca se
sabe.” E, após a confissão de “O Gnomo lê meus pensamentos, sempre desconfiei disso.”
(p.22), um segundo comentário adicionado entre parênteses, como a cumplicidade de um
segredo, começam a tomar corpo significações não previstas, o que confirma as
argumentações anteriores: “Ninguém sabe do que são capazes os anões.” (p.22). Guiando-se
por tal afirmativa, parece impossível a quem analisa a obra, não retornar ao texto de Reunião
de família (p.122), publicado cinco anos antes, quando, perguntando sobre quem teria feito a
rachadura no espelho da sala do pai, a própria Alice levanta a hipótese de ter sido Cristiano, o
sobrinho, concluindo: “Ele não fazia dessas artes quando vivo. Mas nunca se sabe do que um
menino morto é capaz.”. Desse jeito, percebe-se que “ser capaz”, na ficção luftiana, vai muito
além das potências e aptidões humanas, pelo menos, pelos parâmetros de julgamento de um
mundo racional.
A reflexão destacada anteriormente espraia as propriedades do Anão, do mesmo modo,
até Gabriel – “Com ele, e com o Anão, tudo é possível.” (p.113) – e, de forma semelhante,
para um texto futuro em relação a Exílio, O ponto cego, onde, aparecendo como epígrafe para
o Menino, anela os três através de suas afinidades.
Fundamental se torna, então, a sondagem de um procedimento referido em outros
capítulos, mas que deve ser detalhado em relação ao objeto deste: a justaposição de
personagens através de características comuns, o que as faz participar do mesmo círculo
188
significativo. Dessa forma, Anão e mãe, como foi salientado antecipadamente, mas, dada sua
importância na obra, parece interessante repetir, estão sob a mesmo área representativa, tendo
ele o compromisso de mudar os sentimentos da personagem central, fazendo-a entender e
aceitar os limites vividos por aquela:
- Ela não gostava da gente? – perguntei também ao Anão, mas desde a morte
dela ele parecia doente; estava taciturno; logo depois desapareceria também
(p.90)
O Anão chegou perto, começou a tirar dos meus cabelos as folhas secas, o
nó da nuca soltara-se na caminhada. Ele com gestos de mãe, eu soluçando
cada vez mais.(p.163)
Pelo mesmo motivo, sua participação como representação do arquétipo materno, uma
de suas manifestações acaba sendo a de filho, cuja imagem procura reproduzir em ações
inesperadas e inserções em sonhos. Ao final do romance, morto, sua intenção parece tocar a
sensibilidade da personagem: “Então apenas o sustento num braço, como a uma criancinha
que se vai amamentar.” (p.198)
Em sua atuação ambígua, esse ser do inconsciente parece funcionar, ao mesmo tempo,
como Deméter e Core e, nesse aspecto, continua a ser uma figura exemplar para a
protagonista, a qual, insegura pela vida em fora, não consegue reunir em si nem o papel de
filha nem o de mãe:
Ele com gestos de mãe, eu soluçando cada vez mais. Então ele começou a
gemer numa espécie de melopéia:
-Aiaiai, aiaiai, aiaiai... (p.163)
sutilmente, começa a ser pontuada mais claramente através da aparência dessa expressiva
personagem: “O Anão sai para a varanda; encostado ao umbral, mão na cintura, olha a
paisagem. Parece, entre aqueles verdes, um anão de jardim vestido de luto.” (p.141).
A correspondência com a mãe continua a se estreitar. Em duas passagens diferentes, a
cadeia mãe/floresta, agora, inclui o Anão: “Tinha uma cara de velho gnomo da floresta.”
(p.88). Comparativamente aos sintagmas “anões de livros” e “anão de circo” ou, ainda, “anão
de jardim”, com emprego somente da preposição e, portanto, ligando-os a uma tipologia –
qualquer livro, qualquer circo, qualquer jardim –, a importância do artigo definido na
expressão “da floresta” – e não “de floresta” – determina o substantivo como uma floresta
específica, aquela onde entra levada pelo próprio Anão, e para onde vai, ao final: a mãe.
Em alguns momentos, um lampejo de consciência faz a personagem principal perceber
o relacionamento possível que se estabelece com o velho gnomo: “O Anão chega por trás,
sem ruído. Faz sinal de que me abaixe, sussurra no meu ouvido com sua voz de sapo, de
repente acho parecida com a voz do telefone:...” (p.92). Por tal mecanismo, o Anão participa,
igualmente, da visão da protagonista no que diz respeito à presença delirante que freqüenta o
espelho: “(O Anão lê, e finge que não a enxerga.)” (p.47).
Instilado, como foi visto, de uma forma indireta, o sutil compromisso simbólico entre
o arquétipo e o anão, do qual é, provavelmente uma das manifestações, pode ser reconhecido
a partir de seu surgimento inicial: “Desde a primeira aparição, no dia em que compreendi o
que havia com minha mãe, até pouco depois da morte dela, ele foi nosso hóspede quase
constante, e era o tema que nunca se abordava em casa.” (p.87-88).
A natureza psíquica do Anão, finalmente, confirmada nas páginas finais do romance –
“Meu homenzinho, parte de mim, fruto das minhas trevas e nostalgias, companheiro de
exílio.” (p.198) – é sutilmente contatada, quando o leitor começa a concluir o papel de
elemento conscientizador embutido na personagem – “O Anão deixou a porta aberta; sempre
faz isso; também deixa abertas minhas gavetas e armários, onde costuma se meter; e deixa
frases pela metade, mania que me leva à exasperação.” (p.23) –, psicopompo no conceito
junguiano22, produto de seu interior – “- E o seu irmão? – indaga de repente, quando começo a
pensar que é preciso visitar Gabriel de uma vez..” (p.45) –, o que vem ao encontro da
definição seguinte:
22
“Assim o animus é também um ‘psychopompos’, isto é, um intermediário entra a consciência e o inconsciente,
e uma personificação do inconsciente.” (JUNG, 2000a, p.14).
190
Cínico, obsceno, porém detentor de uma sabedoria aceita com ingenuidade infantil –
“Meu Anão deve saber, vou indagar dele. E quem sabe ele conhece algum modo de entrar?
Sempre foi mestre em descobrir passagens secretas.” (p.64) –, além de marcado por uma
inexplicável clarividência – “Esse aborto tem parte com o diabo: tenho pensado em entrar na
floresta, e em lhe pedir que procure uma entrada, pois já vi que as trilhas, que em algum
tempo devem ter dado acesso à mata, estão fechadas com arames farpados.” (p.118) –, é capaz
de antecipar muitos acontecimentos e saber respostas impossíveis, ser crítico e incisivo nos
momentos mais necessários:
-Perdeu, não. Deixou! – diz ele cruelmente, e sua cara é velha e má. (p.45).
Se o encontro com a religiosa, sucedâneo de mãe, pode ser imputado ao acaso, o motor
da volta daquele ser ignorado por todos, pode ser, exatamente, o contexto inseguro em que se
encontra e a configuração da bela suicida na velha amiga. O “amigo de infância”, que sempre
a introduzia nos aspectos menos suaves da vida, levando-a ao confronto com a realidade, já se
revelara ali extremamente crítico. Na idade adulta, quando ressurge – “- Quantos dias faz que
191
não visita seu belo irmão? – pergunta numa voz de taquara rachada.” (p.22) –, suas ações
aparentemente irreverentes e insensatas têm sempre uma intenção que pode ser surpreendida
por uma leitura atenta.
Como o comentado de forma pouco aprofundada, ainda, em 6.3, os sonhos são um dos
principais estratagemas escolhidos por essa figura psíquica para encaminhar a personagem em
direção ao autoconhecimento. Em um deles, vem caminhando de mãos dadas com a
protagonista, visivelmente “a mãe com seu filho”. Inesperadamente, sua ação devolve,
invertido, como conscientização de culpa, agora contra ela, aquele “Mijo em minha mãe”
(p.134), narrado algumas páginas antes sob um sentimento de tortura filial da protagonista:
“(...De repente ele solta a minha mão, posta-se à minha frente, abre a braguilha. Olho,
curiosa e enojada, mas não vejo seu membro: embora ele urine em minha direção, num
grande jato continuado.)” (E, p.138).
Esses acontecimentos noturnos, os quais sempre traduzem essa sensação de
julgamento, se confrontados com as opiniões emitidas pela personagem principal sobre si, ao
longo de sua narrativa, revelam a origem de descobertas sempre sufocadas. Tem esse mesmo
sentimento o comentário que ela faz sobre a expressão “Deus é grande”, dita pela freira e
confessora: “Espero que seja. Se não for, como vai me perdoar por deixar meu filho e por me
interessar tão pouco por Gabriel?” (p.143). Ou daquele enunciado anteriormente: “...ficarei
fria e ausente; porque não posso me permitir ser feliz como mulher se, como mãe, abandonei
meu filho.” (p.63). Ao perceber suas próprias ações, sua característica de ser também falível, a
atuação de sua mãe pode ser compreendida dentro de suas verdadeiras dimensões, anulada a
fantasia e a expectativa infantis.
A comprovação dessa possibilidade de mudança, o acolhimento da censura do Anão, é
verificada em duas passagens contínuas e que se complementam:
repente, alguém chora. Quem chora tão alto, nesta velha barcaça?”(p.183) –, o enigmático
amigo, novamente, causa perplexidade:
Quando volto pelo refeitório para subir ao quarto, não há mais ninguém lá
senão as duas mulheres apaixonadas. Sentam-se na sua mesa vazia, uma
diante da outra; sem se tocar nem com as pontas dos dedos; imersas na
mútua contemplação.
E seu amor crepita como fogo de lareira.
(No último degrau, sentado no escuro, o Anão ri baixinho.) (p.54-55)
Na cozinha, alguém deixa cair louça, pilhas que se quebram com fragor.
Sinto uma alegria maligna: a Madame me dá lençóis remendados, mas vai
ter de pagar essa louça. (p.140)
- Sua fala foi cortada por um soluço seco. Eu não tinha coragem de olhar. –
Mas não há outro jeito.
- Não há mesmo? – perguntei, mesquinha e cruel. (p.151)
-Ele vai viver muito tempo? – indaguei com uma malignidade que parecia do
Anão. (p.152)
Por tal comportamento não intencional, vai alternando com sua criatura psíquica suas
ações, principalmente as menos razoáveis e comedidas:
Enfiava-me no quarto ou saía para o jardim com o Anão, que viveu um bom
tempo conosco; estranho companheiro: contava histórias fantásticas que a
um tempo me deliciavam e me davam medo. (p.39)
Os velhos moravam num sítio onde Gabriel se divertia com plantas e bichos,
enquanto eu me encolhia com meus livros de história, minha fantasias e
medos. Onde andaria minha mãe? (E, p.78)
Marcado por um manifesto simbolismo que o manipula até convertê-lo nas diversas
formas com que penetra na narrativa, é com o sujeito enunciador que a extraordinária figura
194
mantém a única e verdadeira relação, da qual emanam todas as outras, projetada por um
inconsciente determinado a atingir seus objetivos através de seus símbolos.
Apenas a partir da convocação feita – “Quem sabe uma boa caminhada ajuda a pôr as
idéias em ordem?” (p.160) –, uma série de questões começam a ser postas pela indecisa
mulher, o que justifica inteiramente a presença do companheiro, culminando no refletir da
personagem sobre sua insólita condição. Dentro da densa floresta, levada aos meandros do
inconsciente pelo sábio guia – “De repente toda a tragédia da vida bateu-se sobre mim: eu
brincando de passear na floresta com aquele anão amalucado, meu filho sozinho, e Antônio
cruelmente ferido.” (p.162), finalmente, começa a se concretizar o objetivo do anão naquele
“Lucas, um órfão a mais” (p.162) finalmente admitido por ela.
Por todas e sob todas as formas possíveis, conforme se deve comentar, o Anão parece
conduzir o despertar daquela a partir de quem surge e a quem acompanha: “Tenho pena de
nós, de Gabriel, de mim, de meu filho Lucas, que tem seis anos e não sabe porque sua mãe foi
embora; alguns traços dele aparecem nos dois rostos daquele melancólico retrato.” (p.31)
Tentando, ainda, levar esse processo a um bom desfecho, a ilusória personagem reveza
sua forma tradicional com a de um cego – “Apenas o Cego está ali, firme debaixo do sol. Seus
óculos pretos parecem me fitar; sempre que o vejo sinto desconforto.” (p.133) – que, qual um
espelho a refletir a cópia dela mesma, aponta-lhe, através de sua desagradável imagem, como
alegoria, a inadequação de sua eterna acusação contra o desinteresse da mãe alcoólatra, não
reconhecido em si no abandono de seu próprio filho.
É, ainda, no irresoluto episódio do choro do Anão – “Mas ele prossegue; e nem me
notou. Anda em ziguezague como se estivesse bêbado, ou cego de pranto.” (p.183) –, premida
a entender sua equivalente conduta, que essa possibilidade simbólica do Cego de mensurar-se
como espelho penetra uma outra imagem, a qual antecipa essa ligação – “Nisso, ela se vira e
me encara; suas desmesuradas órbitas não estão verdes; cobriram-se de um véu de escamas.
Hão de ser assim os olhos do Cego.” (p.165) –, enredando, por intermédio do Cego-Anão,
pela mesma característica de Mãe Terrível, mãe e filha: “O Cego está no seu posto: faz dias
que não o vejo. Para meu espanto, além de madrugar, veio sem óculos. No primeiro fulgor da
manhã, suas pupilas rebrilham como escamas. Tenho certeza: é em mim que se grudam.”
(p.184).
Aquela nova e inquietante figura, que conserva características da primitiva – “- Uns
retratinhos bem indecentes, não? – diz de repente, e seu olhar é matreiro e obsceno.” (p.45) –,
faz todas as tentativas para chamar a atenção daquela a quem pretende conduzir: “Levanto-me
195
para fechar a janela. A toalha cai, e quando vou fechar a vidraça, o Cego, rosto voltado para
mim, masturba-se convulsivamente.” (p.195)
Se para o leitor ainda não ficou esclarecido o envolvimento entre as duas estranhas
peças ficcionais, ao prosseguir sua função de iluminador de consciência, o Anão convida-a
para a entrada na floresta, representação já esclarecida no texto em 4.2, em um momento de
duvidosa realidade, entre o sono e o despertar, quando esse aspecto parece inteiramente
revelado: “Era o Anão assobiando naquela insistência. Postado bem no lugar onde
normalmente fica o Cego. Só aí percebi que o Gnomo andou sumido nos últimos dias. Fazia
veementes sinais com os bracinhos.” (p.160)
Outra personagem a que o elemento ora investigado se enlaça de forma bastante sutil,
criando efeitos especiais, ao incluí-la, por esse mecanismo, na mesma atmosfera de fantástico,
cujo principal emissário é o Anão, é Gabriel, o irmão louco, assim apagados seus limites de
participante do universo real, precipitado o leitor na incerteza narrativa que se instaura.
É impossível não se perceber, através das palavras avaliativas da protagonista sobre o
gnomo, ao longo de todo o texto – “Se o encarar, verei nesse enrugado rosto lampejos de
malignidade, ou apenas a ternura de um pobre anãozinho da floresta?” (p.32) – a mesma
negatividade que, segundo ela, envolve o irmão: “Em criança era louro, depois escureceu; o
menino gordinho e sossegado virou essa criatura imensamente triste, rápidos lampejos
malignos no olhar.” (p.67-68)
O sentimento de ódio em relação ao “amigo de infância”, que pode ser
contrabalançado com uma grande ternura, se deve a uma rascante crítica ostentada por este –
“É o Anão, erguendo a cara interrogativa e maliciosa; parece estar sempre rindo de mim.”
(p.22) –, o que, algumas vezes, parece contaminar Gabriel: “Passo a mão pelo cabelo macio
de Gabriel; sinto a dolorosa inutilidade de minha presença: ele está longe. Ou mais perto do
que penso? Por que perguntou por Lucas?” (p.69-70).
A capacidade de falar de coisas desconhecidas – “Sinto uma pontinha de gelo
percorrer minhas costas de cima a baixo. Gabriel não há de saber que tenho um filho.” (p.69)
–, vai aproximando o doente e o Anão, até desembocar no desenho das sonâmbulas, episódio
largamente citado e, finalmente, avaliado na página 161 deste trabalho:
A pele dos meus braços se arrepia: essa era uma das histórias malucas que o
Anão contava na minha infância. Gabriel era pequeno demais para ter sabido
delas, não creio nem que se desse conta da presença do Anão. (p.114)
196
A certeza da intensa contigüidade dos dois, pelo menos nas produções psíquicas da
personagem principal, se confirma nos momentos finais da trama, mas se complica, ainda,
pela introdução de um terceiro elemento, o gato, recurso empregado como caracterizador de
Gabriel – “Aí, encolhe-se e começa a dar risadinhas histéricas, entremeadas com aquela
algaravia já incompreensível. Não existo para ele: embora às vezes me espreite com aqueles
olhos de gato, apertados e oblíquos.” (p.115) –, o qual, impregnado de todas as implicações
místicas que carrega desde o imaginário coletivo, arrasta-as para a cena literária onde se vêem
atualizadas, adaptadas, ampliadas.
Mas não se constitui, apenas, em uma variação pura e simples. Primeiro, a capacidade
de metamorfismo reforça o aspecto inconsistente e irreal do Anão, sua origem na
profundidade não mensurável da mente humana. Depois, apresentar-se como animal, tem um
peso forte, pois, como afirma Jung (2000b, p.362), “Os animais significam em geral as forças
instintivas do inconsciente que se concentram numa unidade na mandala. Essa integração dos
instintos constitui uma condição prévia da individuação.” e, na mesma obra, analisando
psicologicamente a figura feminina inconsciente no mito de Deméter e Core diz que “Muitas
vezes tanto a figura de Core como a da mãe resvalam para o reino animal, cujo representante
favorito é o gato, a serpente, o urso, o monstro negro subterrâneo como o crocodilo, ou seres
197
da espécie da salamandra e do sáurio.” (p.185), o que parece estar de acordo com o enfoque
dado neste estudo: o inconsciente se vale de todas as oportunidades para tentar atingir a
consciência.
Entretanto a presença representativa desse animal não se prende especificamente ao
Anão, ela se amiúda: aparecem vários no telhado, seus miados perturbam a protagonista,
sempre à noite – realidade ou sonho? – e são ligados por ela à figura do homem do quarto de
cima que caminha sem dormir, torturador no passado. Quando o homem some da casa,
segundo ela, os gatos param de miar. Mas é sempre ela o crivo de avaliação dessa relação.
Tais felinos assumem, assim, uma carga emocional forte, psicológica, de juízes, de
acusadores, no mínimo, de presença forte de despertar da consciência, como o anão. É ela
mesma quem diz: “Os gatos deixaram de miar: então, vai ver nem eram gatos.” (p.181). E
mais adiante, quando da agonia e morte do anão: “Os miados se repetem. Estertores que
povoaram meu sono?” (p.196).
Dada a importância que tem, aparecendo novamente em A sentinela e O ponto cego,
essa imagem merece um comentário mais detalhado neste segmento dedicado ao Anão,
dividindo ou promovendo com ele o estabelecimento de um universo da ordem do
extraordinário. Nesses três textos, em situação alguma, tem um papel puramente decorativo,
correspondente às condições comuns do mundo material, o que se ajusta à dinâmica do
imaginário humano em relação a ele. “O simbolismo do gato é muito heterogêneo, pois oscila
entre as tendências benéficas e as maléficas, o que se pode explicar pela atitude a um só
tempo terna e dissimulada do animal.”, diz o dicionário de Chevalier e Gheerbrant (1995,
p.461), o que pode ser complementado, de forma perfeita, tanto para ele quanto para o Anão,
na obra de Tresidder (2003, p.158): “Habilidade para a atuação furtiva, poder de
transformação e clarividência, agilidade, vigilância, beleza sensual e malícia feminina.”.
Sempre relacionados às bruxas medievais, os gatos, se pretos, também participam de crenças
populares que os ligam à má sorte ou infortúnio. Esse simbolismo vem ao encontro dos
conceitos que podem ser destacados no discurso das personagens no próprio texto da
escritora, o que descortina sua atuação ali:
- Gato fica em qualquer lugar onde dão comida – disse a velha cozinheira. –
É bicho sem afeição. (E, p.193)
É triste, esse gato. Solitário, esse gato. Cheio de alegrias contidas, esse gato.
Fita algum mistério que eu persigo fascinado, pois tem a ver com minhas
histórias. (p.39)
quero ser anão.” (p.40). O anão arquetípico, como o gato, é convocado pelo próprio Menino –
“E a minha vida, o que é? Perigosas possibilidades lá na frente, por isso não quero crescer.”
(p.94) –, criança infeliz, suplicante pelo amor da Mãe, finalmente abandonado por ela, que, tal
qual o romance precedente, mas agora sob a perspectiva do filho, mantém um discurso
iludido: “Eu, eu Menino doente, fora perdido de minha Mãe. E aquilo me doeu como se me
furassem as tripas com uma faca de castrar, sete facas varando o meu peito ineficiente.”
(p.136).
Sob as mesmas alternativas de Exílio – “...quem sabe de repente ele começava a
rachar, a pele abrindo toda, a cabeçona partindo ao meio...” (p.102), o Menino do novo
romance – “A pele muda de textura, tudo me dói. Se eu continuar crescendo, ao contrário do
que projetei, mas minha pele não se esticar? Se ela rachar e se fender... se eu explodir?”
(OPC, p.16) – enumera suas características físicas – “corpo mirrado”, “quase calvo” (p.150);
“voz de taquara rachada” (p.97); cabelo “ralo” (p.97), como o de Bila, de As parceiras – as
quais o vão habilitando como representação final, mesmo que com aparentes raízes na
realidade externa dominada por todos, do anão psíquico anteriormente construído.
Se, a princípio, define a si mesmo através de uma metáfora impessoal – “Eu sempre
estive lá: sei muito a respeito de todos eles, sei quase tudo. Menino, anão, duende ou gnomo:
um ouvido, uma grande orelha, um olho enorme de pálpebra semicerrada como quem não
quer nada, como quem não quer ver.” (p.31) – a nomeação final, em letras maiúsculas, o
contamina, de modo inquestionável, com a personagem de Exílio: “Eu, o Anão, eu o Duende,
eu o que persegue as possibilidades e ouve até mesmo o roçar das peles na noite, eu que
assino com minha caneta dourada as minhas escolhas: eu decidi.” (OPC, p.144).
Relacionado de forma subliminar por aquele “é capaz” (ver página 187 desta Tese), o
qual marca os seres ficcionais predispostos ao inaudito, o discurso do Menino abarca-os todos
em sua própria natureza, como uma culminância final:
(p.16-17) –, os que promovem definitivamente o encontro entre Anão, gato, Gabriel e imagem
materna, tornando a reafirmar o vigoroso pacto que se identifica entre os quatro, intermediado
por um atributo dos olhos da mãe, que se repete nos “olhos de gato” do irmão – “Olhos
arregalados, são os de nossa mãe: sombras passam no fundo tão verde.”(p.68). Dessa forma, a
cor passa a ser uma marca da “ausência ou agitação da mãe retirada atrás dos vitrais de seus
olhos raros” (p.35), simbolismo que inclui em seu raio de ação as pedrinhas coloridas da mãe
morta, guardadas pela filha. Tangida por um sofrimento intenso – “Café, banho e decisão
tomados. Alívio e sonolência. Aperto os dentes: sei qual a casa para onde preciso ir. Minha
mãe foi uma floresta de enigmas: descobrirei uma entrada e uma clareira, para saciar minha
sede.” (p.194) e empurrada por essa “sede” que, no caso da filha, reveste-se de um significado
muito mais metafórico, a protagonista repete o impulso que levou a primeira ao suicídio –
“Talvez só morrendo entrasse no seu reino. E saciasse a sua grande sede.” (p.164) – e
caminha para a morte: “Seguro nas duas mãos o frasco de bolinhas coloridas, como quem
agarra uma vela para morrer.” (p.195).
Nesse desejo de penetrar a floresta, quer seja na que se vê da Casa Vermelha – “Tenho
desejos de entrar nesses túneis verdes; descobrir os macaquinhos; os gatos selvagens que
atormentam meu sono à noite.” (p.118) –, quer seja na da morte, a qualidade do verde pode
apontar apenas um traço natural, ou, ainda, como se viu detidamente em 4.2, incluí-la nesse
círculo materno, ampliando-o. Em dois momentos inusitados, essa característica desponta:
quando, visitando Gabriel no quarto, abstraída do momento presente, aguarda que ele
complete o gesto de escrever com fezes na parede – “Perco a noção do tempo: a floresta, seus
veludos cinzentos e verdes, o crepúsculo.” (p.189) – e, ao entrar ao final, instaurando
probabilidades maternas: “Depois, meu passo se firma. Aqui e ali, reflexos verdes: ratazanas
não têm olhos assim.” (p.200).
Contudo é o Anão, o qual já denunciara o poder mortal daquelas “pedrinhas da
Mamãe” (p.192), quem, antecipando as intenções de sua companheira – “- Vai engolir tudo
isso? – espia sobre meu ombro, plantado na ponta dos pés.” (p.164) –, parece evitar o final
indesejado: “É noite lá fora; parou de chover. O Anão deve ter roubado as bolinhas verdes,
porque só estão aqui as vermelhas e as brancas.” (p.164). Colocadas junto às outras – “Certa
vez meu pai disse à minha mãe, é preciso tampar esse frasco, as crianças podem meter isso aí
na boca.” (p.192) –, a fatalidade das verdes parece não estar presa às suas propriedades
químicas, mas à sua forte ligação com a eterna ausência transmitida nos olhos da suicida.
Morto o Anão, confirma, mais uma vez, seus laços com o irmão louco – “...Gabriel
tem de ser removido, como um gato esquartejado ou um anãozinho morto.” (p.200) –, ao
201
reassumir sua forma inconsciente mais primitiva, a mesma do bicho de estimação morto pelo
ainda menino – “Mas ele está quieto; e frio. Pobre gato preto que Gabriel esquartejou nos
começos de sua doença. Os sapatos rombudos.” (p.197) –, o que vem explicar suas
vestimentas, sempre enfaticamente descritas, como um aviso de interpretação para o leitor.
Percebe-se, pela tranqüila aceitação da protagonista, por seu imediato acolhimento à nova
forma, que a inverossimilhança daquele anão era uma condição aceita tacitamente por ela em
toda a narrativa:
Se o Anão se adianta e rouba essa morte, ela não tem, no texto, o caráter de
autodestruição, mas de percepção do fim de sua utilidade: “Matou-se por mim, o meu Anão,
humilde como um bicho no chão do quarto.” (p.199). Seu suicídio simbólico representa, na
verdade, um assassinato psíquico, empreendido pela própria protagonista, de uma fantasia
engendrada por seu inconsciente, agora desnecessária, cumprida sua missão. Ela descobre que
não é preciso mais morrer fisicamente e a ação de dirigir-se para a floresta permite uma
variedade de desdobramentos interpretativos a ser concluídos. De qualquer forma, ao buscar o
filho e a mãe, mesmo inconscientemente, consegue reunir em si, por ambos os aspectos, os
dois extremos do irrealizado arquétipo. Livre da morte, Mãe Terrível, triunfa o aspecto
positivo desse conteúdo psíquico: “Não me quis a morte: o Anão assumiu todo o meu espaço
dentro ela.” (p.200).
202
7 CONCLUSÃO
I– REFERÊNCIAS
Epígrafes
Gerais
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SiBI/UFRJ, 2004. Disponível em: http://www.sibi.ufrj.br/manual_teses.doc.
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Específicas
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Rio de janeiro: Forense-Universitária, 1987.
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Paulo: Paulus, 2003.
18. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, Editora Revista dos
Tribunais, 1990 (Biblioteca Vértice Sociologia e política).
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da Silva. 22. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, /s.d./.
26. ______, Mysterium coniunctionis. Petrópolis, RJ: Vozes,1990. (Obras completas de C.G.
Jung, v. XIV/2)
27. _______, Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Trad. Maria Luíza Appy e Dora M.R.F.
da Silva. Petrópolis: Vozes, 2000 (Obras completas de C.G.Jung, v.IX/1).
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31. LÉVÊQUE, Pierre. Animais, deuses e homens: o imaginário das primeiras religiões.
Lisboa, Portugal: Edições 70. /s.d./
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32. LÓPEZ – PEDRAZA, Rafael. Hermes e seus filhos. São Paulo: Paulus, 1999.
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43. MCGUIRE, William,HULL, R.F.C. (coord.). C.G. Jung: entrevistas e encontros. Trad.
Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix,1982.
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Paulo: Cultrix, /s.d./
50. STORR, Anthony. As idéias de Jung. São Paulo: Cultrix,1977. (Mestres da Modernidade).
51.TRESIDDER, Jack. O grande livro dos símbolos. Trad. Ricardo Inojosa. Rio de Janeiro:
Ediouro, 2003.
212
II – RESUMO
III – RESUMEN
El actual trabajo tuvo como objetivo el análisis del sufrimiento de los personajes
principales motivado por el vacio afectivo en lo referente a las madres en los siete romances
de Lya Luft, procedimiento que indicó un solo tema subyacente a todos: la insatisfacción de
las necesidades previstas para arquétipo materno. El estudio minucioso de cada romance y el
cotejo entre ellos evidenció el predominio de aspectos simbólicos y la explotación de trazos
característicos de el inconsciente en el curso de la narrativa, conduciendo a la adopción del
pensamiento de C.G. Jung y de sus seguidores respecto a la porción psíquica humana y, en
especial, de su concepto de arquétipo e inconsciente colectivo, teoría que hizo posible una
interpretación amplia de los seres narrativos, las relaciones entre ellos, sus funciones.
También permitió la revelación del poder expresivo de estos símbolos y otras soluciones
artísticas de mayor amplitud y, por conseguiente, de mayor imprecisión, las cuales son usados
com anchura en la organización de los textos, recursos que se habían demostrado de
importancia básica para la evolución ficcional y para la aprehensión del significado de cada
texto dentro de la economia general de la composición.
215
IV – ABSTRACT
The present work had as objective the analysis of the suffering of the main characters
motivated by emptiness of the affectivity in relation to the mothers in the seven romances of
Lya Luft, what it indicated an underlying only subject to all: the incomplet necessities
foreseen by the motherly archetype. The meticulous study of each romance and the last
comparision between them has evidenced the predominance of symbolic aspects and the
exploitation of the characteristic traces of inconscious in the course of the narrative, leading to
the adoption of thought of C.G. Jung and his followers regarding human psyche and, in
special, of his concept of archetype and collective inconscious, theory that made possible an
ample interpretation of narrative beings, the relations between them, its functions. Also it
allowed the revelation of the expressive power of these symbols and of other artistic solutions
of less superficial and defined reaching, wide present in organizing each text, resources that
they had shown of the basic importance in the fictional evolution and the apprehension of
each text into the general economy of her workmanship.
216
V – ANEXOS