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UNIVERSIDADE DE UBERABA
FERNANDA DE LIMA ALMADA
UBERABA – MG
2008
1
UBERABA – MG
2008
2
Aprovado em:
BANCA EXAMINADORA:
_________________________________________________
Profa. Me. Andréia Attié França - Orientadora
Universidade de Uberaba - UNIUBE
_________________________________________________
Profa. Bárbara Calife
Universidade de Uberaba - UNIUBE
_________________________________________________
Dr. Jorge Antônio Nunes Bichuetti
3
AGRADECIMENTOS
Ao papai e „ mam•e, que partilharam a ang…stia e v†rios dos momentos que vieram a
compor este trabalho.
Aos meus irm•os, Dany e Dudu, que mesmo distantes sempre estiveram comigo de
alguma forma.
‡ minha orientadora, Prof. Me. Andrƒia Attiƒ Fran‚a, pela compreens•o, entusiasmo,
estˆmulo, paci‰ncia e dedica‚•o em t•o competente orienta‚•o; por me fazer acreditar que era
possˆvel e pelo companheirismo sempre.
‡ professora B†rbara Calife, pelos olhares e palavras confortantes, por ter respondido
“sim” ao lhe ser feito o convite para a composi‚•o da banca examinadora.
Ao professor Jorge Bichuetti, pelos ensinamentos para alƒm da forma‚•o profissional
e por ter consentido fazer parte da banca examinadora deste humilde trabalho.
Aos amigos sempre fiƒis, sobretudo Vi Gon‚alves, JŒ Souza, Heitor Dias, Michel
Luiz, Lah Lopes, Carol Zanetta, Lu Tsukamoto e Vi Varaldo pela cumplicidade, pelo
compartilhar de l†grimas e sorrisos e pelo sincero apoio.
‡ madrinha Rita, por tudo aquilo que agrade‚o alƒm do alcance das palavras.
Aos professores, pela contribui‚•o ˆmpar ao longo dessa jornada, deixando, cada um,
um pouco de si dentro de nŽs.
A Ana Cl†udia Moraes Merelles Bezz, Derivaldo dos Santos, Fabˆola Cristina Melo,
Joselita Izabel Jesus, Lˆdia de Jesus Craveiro, Maria Rita de Abreu Maia e Michelle
Vasconcelos Oliveira do Nascimento, pela cordialidade ao conceder suas pesquisas, pilares
deste trabalho.
RESUMO
Florbela Espanca versa, atravƒs de seus poemas, o Amor de maneira descentrada, arrebatadora
e funesta. No presente trabalho de natureza qualitativa visamos adentrar no tema do Amor na
poem†tica florbeliana que se apresentou como constituˆdo em fun‚•o da falta e do sofrimento,
sendo ambos tanto causa quanto conseq•‰ncia do ato de amar. O estudo foi mediado pelas
contribui‚•es teŽricas de alguns autores, dentre eles: Comte-Sponville, Carl Gustav Jung e
leitores de Jacques Lacan. Ao olharmos para o tema central - o Amor - encontramos alguns
elementos que dele se ramificaram: a melancolia, o sofrimento, a dor, a ang…stia e a morte.
Percebemos que a arte poƒtica de Florbela tenta dizer o indizˆvel, causando e sendo causada
por ecos da ang…stia, do sofrimento devastador, da melancolia e do desejo de morte. Ao
brincar com as palavras a poetiza comp•e trechos nos quais revela o amor como suposto
preencher do lugar do objeto eternamente faltante ou como algo da ordem do incognoscˆvel,
do desconhecido e do enigm†tico. Os versos refletem a ang…stia que parece advir da d…vida e
do medo diante do possˆvel perigo da experi‰ncia de perda e nadifica‚•o, ou seja, o temor
iminente de ver cair o porta-dor a quem se dedica o amoroso investimento pulsional e de
vislumbrar mais alƒm o horror do abismar-se. Tambƒm a dor ou aquilo que se sente quando o
mal est† instalado se presentifica constantemente no oceano poƒtico florbeliano, uma vez que
a poetisa canta a dor intrinsecamente ao amor e „s frustra‚•es atreladas a ele. Ainda pelos
mar-l-es, Florbela navega a respeito da condi‚•o melancŽlica - de se estar profundo
sofrimento, desprovida de interesse pelo mundo exterior, grande abatimento e arrefecimento
do amor voltado a si mesma - quando chora o estado fr†gil de des•nimo em rela‚•o „
realidade externa e quando espanca como quem rudemente se auto-deprecia. O “eu-lˆrico”,
nos poemas, sugere o anseio pela morte que tende a se representar na raiz das mais funestas
a‚•es, quando as mesmas procuram alˆvio de tens•es e conflitos no mundo externo. Ademais,
articulamos o mito de Dafne e Apolo, algumas produ‚•es da poetisa e o pensamento
junguiano; sendo que nesse interc•mbio destacamos que a poesia diz tanto quanto dizem os
mitos, principalmente em rela‚•o ao desenvolvimento por meio da consci‰ncia e compreens•o
de si e do mundo. Ao final, contemplamos que as composi‚•es florbelianas germinam
inspiradas no universo sombrio, talhadas na uni•o do amor com a morte e com o nada; por
outro lado, consideramos que os conte…dos abarcados em algumas proposi‚•es teŽricas
ressoam tambƒm em seus versos, j† que ambos clamam o humano; contudo, o formato desse
estilo invocativo se apresenta de forma distinta e com muito mais bela-arte.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1: Foto, Florbela Espanca. ESPANCA, Florbela. Sonetos Completos, 1934, p 2.. .. 29
Figura 2: Manuscrito de Florbela Espanca. Ibid., p 4........................................................ 45
Figura 3: Apolo e Dafne, de Gian Bernini. Página da Mitologia: Apolo e Dafne............ 62
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SUMÁRIO
EMBARQUEMOS!
Zarpamos! Alguns, no momento da partida, n•o puderam ir... Ficaram, mas com a
mente junto „quela viagem... tornando a dist•ncia uma mera quest•o fˆsica, mantendo a
proximidade por meio do pensamento.
Estava „ espera daquele t•o falado obst†culo monstruoso... e o temia! Eu era uma
vestibulanda!
A Universidade de Uberaba se mostrou uma op‚•o, uma vez que parte de minha
famˆlia reside na cidade de Uberaba e em suas proximidades, facilitando a resolu‚•o do
problema de moradia e gastos; j† que, sem essa facilidade, n•o seria possˆvel realizar o estudo
almejado. Relacionado „ mesma finalidade, realizei a prova buscando desconto de cinq•enta
por cento.
Venci aquela batalha e a certeza da vitŽria foi quando vi meu nome no segundo lugar
da lista de aprovados! A felicidade foi ainda maior quando me deram a notˆcia de que eu
havia ganhado bolsa integral pelo PROUNI! Ultrapassei aquele empecilho abomin†vel!
E a viagem sŽ estava come‚ando...
A Nau
Nebulosas Tempestades
O bom tempo parecia estar mudando. Tudo havia corrido muito bem atƒ ent•o. Mas as
nuvens negras pareciam correr no cƒu que, de s…bito, se abrumou. O negrume e o intenso
nevoeiro avisavam que a tempestade confusional estava prŽxima...
Quantos nomes estranhos... Matƒrias s•o “MŽdulos”... de “tal” Unidade Tem†tica?
Pontua‚•es distribuˆdas de modo t•o diferente. E eu me perguntava: Para qu‰? Confesso,
ainda me pego perguntado sobre essas quest•es, embora tenha me acostumado com essas
“complexidades”.
Tantas novas informa‚•es sobre a Psicologia! E eu achava que sabia um pouco sobre
essa ci‰ncia. Quanta pretens•o a minha...
Humanismo, SŽcio-HistŽrica, Analˆtica, Comportamental ou seria Cognitivo-
Comportamental? Ou mais ainda! As duas op‚•es?! O leque come‚a a se abrir. A princˆpio,
n•o sabia se me esclarecia ou se me confundia ainda mais com a Psicologia. Ela ia alƒm de
Freud e a Psican†lise! Como eu poderia imaginar?
Distante... de quê?
Neblinas se dissipando...
O cƒu j† n•o estava t•o l…gubre, mas eu sabia que mais cedo ou mais tarde voltaria a
parecer melancŽlico...
Quinto perˆodo. Diversos “mŽdulos”. Mas um em especial chamava mais minha
aten‚•o, preocupava-me. N•o seria muito cedo para a decis•o do tema do T.C.C.?
“Normas da ABNT”. Como se j† n•o bastasse o qu•o sufocada me sentia pela
obriga‚•o de escolha definitiva do tema, teria ainda que me preocupar com isso.
N•o sabia ainda ao certo o que pretendia pesquisar. Isso me preocupava bastante.
Ali†s, consideravelmente! Talvez tamanha preocupa‚•o tenha sido o motivo do adiamento da
realiza‚•o do projeto solicitado. Uma defesa. Quem sabe?
15
1
Alus•o ao livro “As M†scaras do Destino”, de Florbela Espanca.
16
O desespero tomou conta. Como andar sobre a rampa rumo aos tubar•es?
Tentei continuar, mas n•o podia mais suportar aquilo. Navegava em cˆrculos, fugindo
de mim mesma...
N•o queria pensar sobre o que deveria ser feito e me refugiava em outras leituras:
poesias, sobretudo aquelas que condensam o sofrimento, o amor, a desesperan‚a, a morte,
como em ’lvares de Azevedo, Augusto dos Anjos, Lord Byron, H. P. Lovecraft e a belˆssima
Florbela Espanca.
O que eu n•o sabia era que quanto mais me aconchegava nestes ref…gios, mais
prŽxima estava do meu mais nobre tesouro.
LEVANTAR “NCORA!!!
Um Novo Destino
N•o podia mais me esconder de mim mesma, de meu destino atƒ ent•o mascarado.
Os versos de Florbela Espanca cada vez mais me encantavam. Eles estavam cada dia
mais em mim. E foi em um dia aparentemente normal, enquanto fazia uso do “escape
Poesia”, que, quase sem querer, fiz a grande descoberta!
O entusiasmo diante dessa descoberta foi indescritˆvel! As palavras, versos, poesias de
Florbelíssima s•o partes constituintes do mapa que me conduzir† ao meu tesouro maior!
Ent•o, foi pensada a uni•o entre Florbela e os ditos de C.G.Jung. Essa alquimia pŒde
ser realizada parcialmente devido „ uni•o com uma tripulante lacaniana fundamental - maruja
- a qual foi escolhida a dedo por conta de sua gra‚a, afabilidade e compet‰ncia; para quem
quase implorei a honra de t‰-la na embarca‚•o como minha nova orientadora.
Enfim... Levantar •ncora!
Tal maruja trouxe consigo novos tripulantes para a embarca‚•o! Esses, membros do
grupo de pesquisa.
Todos no mesmo barco! Cada um procurando por seu maior tesouro.
Fui feliz ao me deparar com tais embarcadi‚os. Fui acolhida como se j† fizesse parte
do grupo e ali j† sentia todos como conhecidos de antigas viagens marˆtimas.
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SEGUIR VIAGEM
Antes de tudo, devo confessar que sinto essa, uma viagem diferente de todas que já
realizei. É como me desprender daquilo que me aflige deixando parte dessa aflição ser sugada
pela água salgada do oceano no qual navego ou pelas teclas do computador.
Saliento agora, que desde a primeira palavra dita, sinto a necessidade de anunciar algo
que ainda não sabia onde melhor caberia, deixei-o para o final.
Tanto mistério para dizer coisa tão óbvia quando vinda de mim:
A inquietação provocada pela busca da realização desse trabalho fez-me experienciar
sentimentos bastante suntuosos. A presença foi tão significativa que chegou a se mostrar
presente em minha mente, digo sem exagero, durante muitos momentos, em todos os dias,
considerando os últimos meses da minha vida. Esteve presente, nas noites agitadas, até
mesmo em meu mundo onírico.
Agora? Agora estou pensando nas primeiras linhas de tudo isso.
Algumas perguntas ainda não têm respostas. Mas posso dizer que nada se compara aos
momentos nos quais voltamos à reflexão interna, obtendo a satisfação de poder nos esclarecer
sobre nós mesmos e adquirir o ânimo necessário para não fraquejar, não sucumbir frente ao
que ainda pode estar por vir... E ainda há muito por vir!
Mulheres a bordo trazem azar? Oras, esse é o tipo de fala proveniente de piratas
inexperientes e covardes.
Portanto... Todos a bordo!
Estender velas! O tesouro está cada vez mais próximo!
18
Sendo assim, a mesma autora ressalta que em pesquisa qualitativa n•o s•o utilizados
procedimentos estatˆsticos ou equacionais para se chegar a resultados reduzidos aos n…meros
como se faz em pesquisa quantitativa; ao invƒs disso, como instrumentos, a pesquisa
qualitativa utiliza a interpreta‚•o dos dados, sendo eles n…meros ou n•o, bem como da
significa‚•o desses, permitindo assim o trabalho com an†lise de textos e possibilitando,
consequentemente, a reuni•o de dados que, ao fim do processo, tendem a resultar num
entendimento com um mˆnimo de diferencia‚•o sobre o que ƒ investigado.
De acordo com a mesma autora, a palavra, em qualquer tipo de discurso, ƒ o material
utilizado pela pesquisa qualitativa, atravƒs das falas, busca-se explanar os conte…dos nela
imersos.
Para a aquisi‚•o de material que tomamos como norte de nossa viagem, utilizamos o
levantamento bibliogr†fico ou referencial: materiais j† organizados e formalizados, como
livros, artigos cientˆficos, teses e disserta‚•es foram nossas estrelas-guias.
20
viv‰ncias de Florbela por meio de sua obra poƒtica. Inclusive, Rƒgio (apud BEZZ, 2004, p.51)
elucida que seria
2
Em refer‰ncia ao livro da autora, As M†scaras do Destino.
3
Regi•o ao sul de Portugal.
25
vez sua habilidade para a escrita poƒtica compondo seu primeiro poema: A Vida e a Morte,
datado de 11 de novembro de 1903.
A Vida e a Morte
De acordo com o livro Sonetos (2000), no ano de 1908, AntŒnia Concei‚•o Lobo, m•e
de Florbela, faleceu aos 29 anos.
Ainda conforme o mesmo livro, Florbela e toda famˆlia se mudaram para ‘vora, a fim
de que Florbela pudesse dar continuidade aos estudos, ingressando no Liceu, onde
permaneceu atƒ 1912.
Segundo escritos do livro supracitado, no dia oito de dezembro de 1913, dia de seu
anivers†rio de 19 anos, Florbela se casou com Alberto de Jesus Silva Moutinho, colega de
classe desde o tempo dos estudos prim†rios. O casal se mudou para Redondo e passou por um
perˆodo de dificuldades financeiras. A situa‚•o os obrigou a retornar a ‘vora e morar na casa
de Jo•o Espanca, o que ocorreu em setembro de 1915, porƒm, no ano seguinte, o casal
regressou a Redondo e Florbela deu inˆcio „ obra Trocando Olhares, constituˆda de oitenta e
oito poemas e tr‰s contos.
Cabe ressaltar que, em 1916, dentre 347 alunos, Florbela foi uma das 14 mulheres
matriculadas na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, curso que abandonou em
meados de 1920.
A premedita‚•o do ato fica clara quando a mesma autora relata que Florbela deixou
uma carta destinada „ amiga Helena Cal†s Lopes, que a visitaria no dia de seu anivers†rio. Na
referida carta, a poetisa colocou duas instru‚•es especiais para serem realizadas em seu
enterro: que fossem colocados no caix•o as partes do avi•o de Apeles e que seu corpo fosse
coberto por flores.
A partir da histŽria da vida de Florbela, paralelamente „ sua escrita, muitas vezes, tem-
se a impress•o de que ambas se imbricam: dotadas de emo‚•es intensas, sentimentos fortes,
tristeza e sofrimento profundo. No entanto, deve ser lembrado que o presente trabalho n•o
tem como objetivo realizar uma an†lise da vida da poetisa, e sim, apenas uma discuss•o sobre
o que reflete sua poesia.
Faraco e Moura (1999) destacam a import•ncia de dois nomes que, apesar de terem
produzido grandes obras neste perˆodo modernista, n•o participaram, nem tiveram liga‚•o ou
sofreram influ‰ncias do grupo da revista Orpheu: Aquilino Ribeiro e Florbela Espanca. Os
mesmos autores tratam Florbela como “a mais importante voz feminina da poesia portuguesa
da ƒpoca e, talvez, de todo o Modernismo”.
Se Florbela n•o foi influenciada pelo Modernismo, qual ent•o, ƒ o seu ambiente na
literatura?
Esta ƒ, de fato, uma resposta difˆcil de ser elaborada, uma vez que Florbela parece ter
buscado caracterˆsticas particulares de v†rias escolas que n•o a de sua ƒpoca.
De acordo com Junqueira (2003) no caso de Florbela, a tese do anacronismo4 ƒ, na
verdade, quase consensual, pois na obra da poetisa est•o imbricados valores rom•nticos5,
parnasianos6 e decadentistas7 que formaram sua singularidade.
4
Anacronismo: confus•o de data quanto a acontecimentos, pessoas, fatos ou atitudes que est•o em desacordo
com a moda, o uso, constituindo atraso em rela‚•o a eles ou simplesmente que s•o avessos aos costumes atuais.
(FERREIRA, 2000, p.41).
5
Relativo ao movimento liter†rio Romantismo, que predominou em Portugal entre 1825 e 1965, e tinha como
principais caracterˆsticas a liberdade de cria‚•o, o sentimentalismo exacerbado e a supervaloriza‚•o do amor.
(FARACO; MOURA, 1999, p.186).
6
Relativo ao movimento liter†rio Parnasianismo, anterior ao Simbolismo e Modernismo, que tinha como
principais caracterˆsticas a objetividade, o gosto por coisas e fatos exŽticos, uma vis•o mais carnal que espiritual
do amor e inspira‚•o na Antiguidade cl†ssica ou no Renascimento. (Ibid, p.351).
7
Relativo „ caracterˆstica decadentista, que delineia certo tipo de sensibilidade ocorrida nas artes escritas e
visuais europƒias por volta do fim do sƒculo XIX. Voltava sua ess‰ncia para a percep‚•o pessimista e negativista
do mundo, valorizando a subjetividade e apoiada no mundo do inconsciente, recƒm descoberto, incitando
tambƒm a atra‚•o pelos mistƒrios e enigmas que permeiam a exist‰ncia humana e de todo mundo. (Ibid, p.188).
29
Portanto, vê-se que Florbela se destaca em meio à literatura portuguesa com uma
legitimidade particular. Mesmo atenta às inovações de sua época, mostrou o reflexo de
valores culturais vindos de outrora, realizando uma espécie de alquimia entre intenções,
propensões e tendências que resultaram no seu estilo próprio e autêntico de fazer arte. Tal arte
foi elaborada com palavras dotadas de sentimentos intensos, desejo e apreciação pelo amor e
pela morte, que para se encontrarem em versos e estrofes, passavam pela dor e pela
melancolia com tamanha beleza e genialidade que tocam a nós, leitores, de maneira
peculiarmente profunda.
De acordo com Faraco e Moura (1999), o poeta recria uma realidade externa ou
expressa uma realidade interior prŽpria, seja esta realidade verdadeira ou n•o. Por
conseguinte, o artista da escrita traduz e estampa sentimentos, emo‚•es ou situa‚•es que ele
viveu ou n•o em sua particularidade, mas que, de alguma forma, conseguiu apreender e
expressar.
Ser poeta
Na composi‚•o acima, v‰-se o reflexo da percep‚•o sobre o Ser Poeta expresso por
meio do olhar do eu-lˆrico9, no que se refere „ sua apreens•o em rela‚•o „ intensidade dos
8
Alus•o „ poesia “Os versos que te fiz” (ESPANCA, 2000, p.47).
9
Eu-lˆrico: A palavra lˆrico origina-se de lira, instrumento musical muito utilizado pelos gregos a partir do
sƒculo XII a.C. Chamava-se lˆrica a can‚•o que se entoava ao som da lira. Havia, portanto, entre o som e a
palavra uma jun‚•o, que perdurou atƒ o sƒculo XV, quando os poemas se distanciaram da m…sica e passaram a
ser lidos ou declamados. Pode-se dizer que o eu-lˆrico ƒ a voz que fala no poema e nem sempre corresponde „ do
autor. (ARDER, 200-?).
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sentimentos e sensa‚•es que perpassam por estes seres “maiores que os homens”. Como se
pode ver, Florbela se expressou por meio da poesia em forma de soneto.
Apenas a tˆtulo de esclarecimento, “na poesia, as linhas n•o ocupam a extens•o
horizontal da p†gina; o texto divide-se em blocos chamados estrofes; cada linha do texto ƒ
denominada verso”. (FARACO; MOURA, 1999, p.45)
Vasta ƒ a obra de Florbela Espanca, e para nossa pesquisa nos atentaremos „ poesia
que brotou de Florbela, sobretudo os Sonetos, tipo de poesia mais produzida pela poetisa. O
soneto ƒ um poema de estrutura fixa: tem sempre, primeiramente, duas estrofes de quatro
versos seguidos por outras duas estrofes de tr‰s versos, como se pode ver na …ltima poesia.
Dentre toda obra florbeliana, encontramos n•o apenas poesias. ‘ bem verdade que a
escritora dedicou parte de seu talento „ escrita para alƒm das estrofes e versos, produzindo
tambƒm contos, como O Dominó Preto.
Em suas poesias, Florbela aborda, essencialmente, o Amor e aquilo que pode dele
derivar, como a lamenta‚•o pelo Amor perdido, a tristeza pela aus‰ncia do objeto amado
retratada por meio de uma dor que parece insuport†vel. De maneira funesta toma a uni•o
Amor e Morte como uma fatalidade que comp•e o drama maior chamado Vida.
Florbela transp•e em seus versos certo tom de avers•o e atƒ rebeldia diante das
determina‚•es morais, com um toque de sensualidade, ansiando algo de infinito, intoc†vel,
parecendo querer sempre o que est† para alƒm do possˆvel.
A ang…stia, sobre a qual falaremos adiante, causa e conseq•‰ncia da aus‰ncia do
Amor, ƒ expressa em versos dotados de cŽlera tamanha que chega a soar inef†vel, por vezes,
mostrando uma agress•o voltada a si mesma.
O car†ter de impossibilidade de tudo dizer, produz algo que se assemelha „ sensa‚•o
de um buraco que tem que ser tapado de alguma forma, forma esta que se v‰ talvez possˆvel
por meio da arte da poesia, como um ciclo. Em psican†lise, o movimento descrito leva o
nome de Sublima‚•o10.
10
Sublima‚•o: substitui‚•o do objetivo sexual ideal por outro objetivo, n•o sexual, de valor social. As
realiza‚•es culturais e artˆsticas, as rela‚•es de ternura entre pais e filhos, os sentimentos de amizade e os la‚os
sentimentais do casal s•o, todos eles, express•es sociais das puls•es sexuais desviadas de seu objetivo virtual.
(NASIO, 1999, p.55).
33
significante11 que ƒ “aquilo que, na ordem das artes, confere sua primazia „
poesia.” (LEAL, 1992, p.2).
Plat•o (apud ALMEIDA, 2005, p.15), n’O Banquete, atravƒs de Diotima, diz que
“Chama-se poesia, „ causa que torna possˆvel a passagem de qualquer coisa do n•o-ser, de
maneira que a cria‚•o de todas as artes s•o poesia, e que os criadores s•o poetas”.
O resultado da uni•o poƒtica das palavras ao modo de Florbela, expressando
sentimentos de maneira t•o aguda, ser†, a partir de agora, tratado nesse trabalho com o intuito
de discorrer sobre o que incita a poesia florbeliana quanto aos temas: Amor, Melancolia, Dor,
Ang…stia e Morte.
(...)
...Existiríamos sem o amor?
Haveria vida longe desta dor?
Amar, querer, estrelas e encantos...
O céu pinta-se de estrelas,
Nos jardins, o encanto das flores...
E na vida, esta escola, esta fábrica:
Viver é aprender, perigosamente;
Viver é produzir, artesanalmente;
Viver é esperar a hora,
O minuto, o instante do amor.
(...)
(BICHUETTI, 2000, p.101)
11
Significante: ƒ uma categoria formal e n•o descritiva. Pouco importa o que ele designa, por exemplo,
tomamos [...] a figura do sintoma, mas o significante pode, da mesma forma, ser um lapso, um sonho, o relato do
sonho, um detalhe desse relato, ou mesmo um gesto, um som, ou atƒ um sil‰ncio ou uma interpreta‚•o do
psicanalista. (NASIO, 1993, p.17)
12
Em alus•o ao verso “Amar! Amar! E n•o amar ninguƒm!” da poesia Amar!.
34
Comte-Sponville (1999, p.241), para tratar o tema Amor, afirma que ele n•o pode ser
um dever, e sim, por ser uma virtude, deve ter como ess‰ncia a liberdade. Para este autor, se
todos am†ssemos verdadeiramente a todas as causas e pessoas, n•o necessitarˆamos de moral.
Neste caso, a moral seria um simulacro pelo qual o Amor se tornaria possˆvel. O Amor, para
tornar o conceito mais esclarecedor, ƒ o alfa e Œmega de toda virtude.
O autor supracitado propŒs tr‰s respostas para tentar significar o que pode ser o Amor:
Eros, Philia e Agapƒ.
Eros ƒ a face do Amor que, geralmente, recebe outro nome: paix•o. A palavra paix•o
denota a conex•o inevit†vel entre o Amor e o sofrimento: sofrer por Amor. Para se poder
fazer Amor ƒ necess†rio dois, assim, surge o fracasso e a tristeza, pois os amantes sonham em
ser um sŽ e ei-los mais dois do que nunca.
Sil‰ncio!...
Dando continuidade „ trˆade, o Amor Philia seria aquele que se coloca contr†rio a
Eros, pois denuncia que se o Amor ƒ sŽ falta, ele seria apenas imagin†rio e amarˆamos apenas
fantasmas. Segundo Sartre (apud COMTE-SPONVILLE, 1999, p.262), “o homem ƒ
fundamentalmente desejo de ser”, portanto, a falta se mistura ao prazer; ela n•o seria
suficiente nem para satisfaz‰-lo, nem para explic†-lo totalmente. Podemos ent•o amar o que
temos e n•o necessariamente desejar apenas aquilo que falta; desejar o que fazemos, o que
temos ou o que existe, chama-se querer, chama-se agir, chama-se gozar ou regozijar-se, e ƒ
nisso que a menor de nossas a‚•es, o menor de nossos prazeres ƒ uma refuta‚•o a forma Eros
de amar.
Ainda segundo o autor supracitado, h† uma tens•o no Amor que n•o ƒ a de uma for‚a
do que falta, mas sim de uma alegria, de uma experi‰ncia de pot‰ncia e plenitude. Para
Spinoza (apud Comte-Sponville, 1999, p.268), “todo desejo ƒ pot‰ncia de agir ou for‚a de
existir, pot‰ncia de viver, pois, ƒ a prŽpria vida como pot‰ncia”.
Agapƒ ƒ um amor espont•neo e gratuito, sem motivo, sem interesse, atƒ mesmo sem
justifica‚•o.
Eros ƒ o que mais se destaca nas poesias florbelianas, sobretudo aparente no car†ter
dilacerador e voluptuoso.
Tendo em vista essas caracterˆsticas marcantes, grifamos em negrito os fragmentos em
que mais se demonstram:
III
Para o autor supracitado, o Amor Rom•ntico est† para alƒm de simplesmente Amar. ‘
algo da ordem da jun‚•o entre Amar e estar apaixonado, pois somente a partir desta
imbrica‚•o que se pode acreditar ser possˆvel encontrar em outra pessoa, dentre tantas op‚•es,
o significado de valor real da vida.
37
Amar!
13
Transfer‰ncia: em lugar de rememorar o passado, o analisando o repete como uma experi‰ncia vivida, no
presente do tratamento analˆtico. O paciente transfere suas emo‚•es infantis, do passado para o presente e de
seus pais para o analista. A transfer‰ncia ƒ a atualiza‚•o no presente das fantasias que outrora alimentam os
primeiros la‚os afetivos. (NASIO, 1999, p.85).
39
como “tapa-buraco”, recusava-se a ser objeto a ser amado, porƒm, n•o se recusava a amar.
Finalmente, SŽcrates tinha como saber que tudo o que pretende preencher o vazio que parece
impreenchˆvel ƒ uma armadilha do Amor, sendo esta a verdadeira causa do Amor e de todo
discurso que dele brota.
A mesma autora (2004, p.63) relata o mito do nascimento do Amor:
Era uma festa para muitos convidados. O que se festejava ent•o era o
nascimento de Afrodite, deusa da beleza. Entre os convidados, encontrava-se
Poros, o Recurso, conhecido tambƒm como Ast…cia. Penia, a sem recursos,
tambƒm viera para os festejos de Afrodite, e, por se tratar da misƒria, n•o
pŒde entrar no local, permanecendo nos degraus, prŽximo „ porta de entrada.
Por ser Aporia, isto ƒ, por nada ter a oferecer, n•o entrou na sala do festim.
Mas, eis que surge algo que subverte a ordem do comum: Poros,
embriagado, adormece. Isso permite a Aporia, de olhos bem abertos, fazer-
se emprenhar por ele e conceber um filho que se chamar† Amor.
A partir do mito do nascimento do Amor, Lacan (apud BEZZ, 2004, p.63) revelou a
falta e a ignorância, o não-saber, dois alvos de suma relev•ncia em se tratando de Amor.
Aporia, como foi caracterizada no mito, “nada tinha a oferecer”, ou seja, podia oferecer
apenas a “falta”, e Poros, adormecido e ignorante, fez do “n•o-saber” sua parcela durante a
concep‚•o do Amor.
Quando o sujeito ama, o faz com a finalidade de saber sobre o que lhe ƒ faltante, o
objeto a de Lacan14, contudo, o ato de amar j† o faz refƒm do amor, j† que “aquele que ama
descobre fatalmente que n•o h† coincid‰ncia entre o amante e o amado: o que falta a um n•o ƒ
o que existe escondido no outro” (BEZZ, 2004, p.64).
A busca incessante por encontrar o que ir† preencher esse triste e inaceit†vel vazio,
tambƒm confere ao Amor o ato de amar e idealizar, uma vez que “no amor, se ama a um
semelhante, mas tem algo mais que isso: uma idealiza‚•o do objeto de amor, a quem se sup•e
tra‚os ideais, significantes do meu prŽprio ideal do eu, para que amando esse objeto eu possa
parecer am†vel pelo meu prŽprio ideal de eu” (PEREIRA, 199-?, p.4).
Em meio „ procura insistente pelo Amor, Florbela expressa de forma
inquestionavelmente intensa a idealiza‚•o desse objeto de amor comparado a Deus, que ƒ
tomado como uma realidade incondicional, n•o sendo importante a express•o do que esse
outro sente. Na poesia Fanatismo, muito se encontra sobre esses aspectos, n•o obstante,
grifamos em negrito aqueles que mais se destacam:
14
Objeto a: ƒ um conceito lacaniano que indica que o objeto absoluto falta e, uma vez faltoso, ele n•o ƒ mais do
que objeto causa de desejo, causa das cria‚•es e edifica‚•es humanas. (BEZZ, 2004, p.37).
40
Fanatismo
Inconst•ncia
A …ltima estrofe, em especial, lembra o dito de Plat•o (apud FISHER, 2008, p.41)
sobre o Deus do Amor: “por natureza, ele n•o ƒ imortal nem mortal. ‡s vezes em um sŽ dia
ele se lan‚a „ vida [...] depois morre, e em seguida [...] volta novamente „ vida”.
“O amor em Florbela Espanca ƒ um delˆrio de discord•ncia”, diz Agustina Bessa-Luˆs
(1976, p.37 apud BEZZ, 2004, p.70), parecer ser, tambƒm, da ordem da descren‚a no Amor,
soando a credulidade maior na impossibilidade de se encontrar satisfa‚•o a partir desse
sentimento. Mesmo inundada pela descren‚a e pelo pessimismo amoroso, a obra poƒtica de
Florbela se caracteriza primordialmente pela discord•ncia do encontrar, constatado a partir da
alta excentricidade em rela‚•o „ busca incessante que sempre se reinicia quando se tem o n•o-
encontro do objeto idealizado. Florbela, contudo, mostra em seus versos que continua a ter
esperan‚a, e mesmo quando canta a m† sorte a cada vez que lan‚a um dado no jogo do Amor,
logo reaparece apontando a n•o desist‰ncia, como quando diz: “E este amor que assim me vai
fugindo/ ‘ igual a outro amor que vai surgindo/ Que h† de partir tambƒm... nem eu sei
quando...” (ESPANCA, 2000, p.50).
O conceito de Melancolia foi criado por HipŽcrates, que a definiu, em uma de suas
m†ximas, como um estado de tristeza e medo de longa dura‚•o, referindo-se aos melancŽlicos
como seres de estado mental perturbado (PIGEAUD apud GINZBURG, 2001).
15
Em alus•o „ poesia Castelã da Tristeza. (ESPANCA, 2000, p.44)
42
A melancolia e a dor nos escritos de Florbela s•o alguns dos elementos mais
destacados, mais ˆntimos „ poesia e, sem d…vidas, uma repeti‚•o bastante enƒrgica.
Conseq•‰ncias do amor n•o correspondido, da perda do objeto destinat†rio de seu sentimento,
da busca sem sucesso pela completude sublime, enfim, dor e melancolia s•o exprimidas pela
poetisa de maneira ilustre, altivamente clara, sendo-nos possˆvel, quando em contato profundo
com as poesias, sentir quase fisicamente o sopro c†ustico da agonia e melancolia causada pela
dor.
Florbela, portanto, canta a dor intrinsecamente ao Amor e „s frustra‚•es diversas
ligadas a ele. Na poesia Castelã da Tristeza nota-se algo de acordo com a acep‚•o.
Castel• da Tristeza
Loucura
Em Loucura, a dor parece ser conseq•‰ncia do vazio n•o preenchido pelo objeto de
desejo, da incompreens•o desse “nada” que lhe restou. Portanto, mais uma vez Florbela
coloca aspectos do isolamento que a vida for‚osamente a imp•e como condi‚•o, esse viver
sozinha, condenada ao fad†rio de tornar negro seu cora‚•o inundado de Amor.
Nasio (2007, p.85) esclarece que “a dor psˆquica pode se resumir em uma simples
equa‚•o: um amor grande demais dentro de nŽs por um ser que n•o existe mais fora”. Talvez
o dito de Nasio venha resumir grande parte do que Florbela versou. O turbilh•o de
sentimentos impressos nas poesias de Bela parecem n•o caber em si, um amor grande demais
destinado a um alguƒm que j† n•o se encontra presente ou que talvez nunca tenha sido
encontrado.
Na poesia Sombra, Florbela traz, mais uma vez, a dor da perda, transcrevendo-a como
se estivesse usando finos pincƒis de penugens macias e suaves, alƒm de tintas negras
acinzentadas em uma tela com figuras detalhadamente explanadas, fazendo-nos enxergar sua
dor. Pincelamos em negrito tais vari†veis:
44
Sombra
O eu-lˆrico que antes era o rosal e suas rosas, a Idolatrada, partilhando da felicidade
do Amor, passou a se encontrar inconsolavelmente triste, agora como cinza morta, sombra
daquele que a deixou.
Para Freud (apud NASCIMENTO, 2005, p.90) “nunca estamos t•o mal protegidos
contra o sofrimento como quando amamos, nunca estamos t•o irremediavelmente infelizes
como quando perdemos a pessoa amada ou seu amor.”.
A dor de perder o objeto de Amor, a falta de prote‚•o em rela‚•o a essa perda, na
poesia de Florbela soa como a escurid•o da noite a perseguir o eu-lˆrico e a …nica estrela que
ele encontra como norte parece t•o opaca e solit†ria quanto ele prŽprio – a efemeridade do
objeto.
Azevedo (2003) mostra que o sujeito, quando na condi‚•o de melancŽlico, se
relaciona muito proximamente com a transitoriedade e a fugacidade do objeto de desejo,
porƒm, n•o reconhece essa proximidade, consequentemente n•o se permitindo abandonar o
objeto que foi perdido.
Uma vez que a qualidade de ser substituˆvel ƒ caracterˆstica do objeto do desejo,
encontra-se um embate entre o melancŽlico e a substitui‚•o desse objeto de desejo perdido,
que ele tem como …nico. O sujeito melancŽlico parece tentar tamponar a falta, atribuindo ao
objeto perdido o valor maior e a condi‚•o de insubstituˆvel, como se pode notar nos versos:
“Amor! Teu cora‚•o trago-o no peito... / Pulsa dentro de mim como este mar / Num beijo
eterno, assim, nunca desfeito!...” (ESPANCA, 2000, p.61).
45
Florbela mostra em suas poesias a insatisfa‚•o por conta de sua m† sorte no campo
amoroso e, diversas vezes, questiona essa desventura. A falta de tranq•ilidade em rela‚•o ao
passado ƒ vista, como no manuscrito de Florbela (vide Figura 2):
O eu-lˆrico se queixa que foi feliz por alguns instantes e que isso se perdeu, tornando o
presente o maior sinŒnimo de tristeza e tendo o futuro como mero reflexo desse presente
fadado ao desgosto e ao sofrimento por um Amor longˆnquo e solit†rio.
Azevedo (2003) elucida que o melancŽlico conserva e mantƒm a demanda16, a
exig‰ncia de um amor ilimitado, contudo, paralelamente „ conserva‚•o da demanda, o
melancŽlico tambƒm odeia o objeto. Tal sentimento de Ždio faz brotar outro sentimento – o de
culpabilidade – que o impulsiona a buscar algo da ordem da puni‚•o e deprecia‚•o de si
mesmo.
Florbela, com arte maior, diz o mesmo de outro modo. Seguem em negrito, grifos
nossos no cerne do verso:
A Maior Tortura
A poesia A Maior Tortura ƒ apenas uma entre tantas de Florbela que mostra algo do
sentimento de mediocridade, menosprezo e deprecia‚•o voltados a si mesmo, a auto
deprecia‚•o em rela‚•o a n•o conseguir fazer de seus versos o espelho lˆmpido e perfeito de
seus sentimentos. Outro exemplo ƒ a poesia Minha culpa, em que podemos destacar o tom de
16
Demanda: Lacan constrŽi a no‚•o de demanda para poder [...] estabelecer, a liga‚•o entre o desejo do
reconhecimento e o desejo da realiza‚•o inconsciente, explicando portanto que, ao demandar, o sujeito endere‚a
ao outro demanda de amor, ou seja, desejo do desejo do outro, na medida em que busca ser reconhecido em
car†ter absoluto por ele. (CAMARGO, 2008, p.2)
47
auto-flagelo decorrente da culpa pelo objeto perdido. Marcamos em negrito esse ato de
espancar a si mesma com as palavras:
Minha culpa
A Artur Ledesma
Sem Remƒdio
Nas poesias de Florbela v‰-se diversas vezes um eu-lˆrico que se mostra apegado de tal
forma ao objeto de amor que se recusa a admitir a imin‰ncia de sua aus‰ncia. A partir da
nega‚•o, surge a tentativa de manter viva uma rela‚•o que existe apenas no plano de seus
sonhos e divaga‚•es.
Reiteramos que a ang…stia passa a fazer parte da realidade do sujeito justamente
porque ela consiste neste modo último e radical de sustentar a rela‚•o com o objeto de Amor.
Realidade
19
Produto do Recalque: Recalcar ƒ negar e manter o que foi negado afastado da consci‰ncia. O recalcado sempre
retorna para a consci‰ncia de maneira “disfar‚ada”, ƒ o produto do recalque. (NASIO, 1999, p.35)
50
Na poesia acima, apŽs enaltecer a situa‚•o positiva em que o Amor predomina forte e
glorioso, como grifamos em negrito, termina de maneira angustiante, com a d…vida, um n•o-
saber justamente sobre o que tanto deseja.
Para Besset (2002, p.205) “a ang…stia ƒ uma presen‚a que escapa a qualquer saber”. A
qualquer saber conjecturado, j† que n•o se trata de algo da ordem de uma certeza, mas de uma
verdade. ‘ o que Lacan, segundo o mesmo autor, busca demonstrar em todo seu ensino: “A
ang…stia, concebida como o …nico afeto que n•o engana, ƒ o [...]‘impossˆvel de se escrever’”.
Florbela Espanca e os poetas em geral, atravƒs do simbŽlico20, de suas cria‚•es
artˆsticas, tentam contornar, construir uma borda em torno do vazio, do indizˆvel. Esse vazio
que n•o se consegue dizer, tambƒm ƒ o que Lacan denomina de ang…stia.
Pode-se entender, portanto, a cria‚•o artˆstica, nesse caso a liter†ria poƒtica, como algo
que tem como cƒlula inicial o vazio, o impossˆvel de ser dito. O fascˆnio ƒ revelado quando, a
partir do indizˆvel, s•o promovidas novas tentativas de ditos sobre o que n•o se consegue
dizer.
“O artista canaliza a sua ang…stia, consegue abaf†-la e, em certos casos, minimiz†-la
ou disfar‚†-la, mas ela jamais se deixar† domar, por ser justamente corpo e espˆrito da
fragilidade do ser”. (POLVORA apud FREITAS, 2006, p.10). Vejamos na poesia abaixo, a
representa‚•o dessa conjectura, sobretudo nos nossos grifos em negrito:
Tortura
20
SimbŽlico: tem a ver com o saber em jogo na prŽpria experi‰ncia psicanalˆtica, ele ƒ respons†vel pelas
“transforma‚•es t•o profundas para o sujeito”. A partir da constata‚•o de que a an†lise retira sua efic†cia do fato
de que se “desenvolve integralmente em palavras”, Lacan questiona o que ƒ a palavra, o que ƒ o sˆmbolo. Para
ele, ƒ por conceber a an†lise como irracional. (JORGE, 2002, p.94)
51
3.4 … MORTE21
21
Alus•o „ poesia … Morte. (ESPANCA, 2000, p.115)
52
Amor que causa a tristeza, que remete „ melancolia, „ dor e „ ang…stia. Observemos a poesia
abaixo e os destaques em negrito por nŽs realizados:
A poesia Amor que morre soa como um ciclo intermin†vel de amores, como se o sol
da manh• de ontem padecesse dando lugar a um novo nesta manh• que n•o seria o mesmo
que raiar† no prŽximo dia, mas que certamente vir† algum, de alguma forma. Bezz (2004,
p.73) diz que Amor que morre “institui um circuito, incluindo o amor e a morte, o qual pode
ser renovado a partir de algo que se finda. Destruir para construir, movimento da poesia,
movimento da vida. ‘ aˆ que se articulam vida e morte”.
‡ Morte
Em À Morte, Florbela d† vida „quilo que se mostra cansado de uma vida que sugere
ser repleta de desilus•o. Mostra uma espera ansiosa pela Senhora Dona Morte, aparentemente
t•o af†vel e acolhedora, alƒm de desprovida de qualquer coisa que seja da ordem da tristeza
ou da má sorte.
O eu-lˆrico implora pela morte, julgando-se amaldi‚oado e preso num mundo que j†
explorou por completo com seus olhos que já viram tudo e suas asas que voaram tanto. Um
pedido ƒ feito:
22
Moirama: Terra dos mouros.
Mouro: 1.Indivˆduo dos mouros, povos que habitavam a Maurit•nia, mauritano, mauro, sarraceno. 2. Aquele
que n•o ƒ batizado, que n•o tem a fƒ crist•; infiel. 3. Indivˆduo que trabalha muito (AUR‘LIO, 1996, p.1165
apud MELO, 2004, p.77).
54
Desejo
O olhar para a morte como esta sendo, de maneira inflexˆvel, imut†vel, a esperan‚a
…ltima e desejo de paz, sugere a desist‰ncia da vida a tal ponto que se deseja algo em rela‚•o
ao desejo da morte, como se v‰ nos grifos em negrito na poesia Desejo.
Bezz (2004, p.74), referindo-se aos sujeitos sofredores por Amor que se apresentam
em sua clˆnica, diz que:
O amor tem a ver com a demanda: o que o sujeito demanda de fato ƒ que seja
amado, portanto reconhecido pelo Outro. A morte [...] ƒ ruptura, corte, perda
radical. Neste movimento, o sujeito, fatalmente, h† que se deparar com a
morte, [...], com o fato de ser finito, e que se ‘isso’ n•o vai durar para
sempre, ƒ urgente viver.
Mas a vontade de n•o enxergar a urg‰ncia de viver parece ser maior nas poesias
florbelianas.
55
Schšffƒl (199-?, p.9) destaca que o “desejo de reafirmar a vida atravƒs da fus•o com o
outro implica um aniquilamento de si mesmo”. Tento em vista esta afirma‚•o, pode-se dizer
que com a aus‰ncia do objeto de Amor e a impossibilidade de se fundir ao outro, deixando,
cada um, de serem si mesmos e se tornarem outros, na corrida da vida sŽ ƒ encontrada a op‚•o
pela via da morte, da aniquila‚•o de si.
A poesia Desejo tambƒm traz uma carga de sensualidade e erotismo, como analisou
Melo (2004, p.84) em sua pesquisa. O eu-lˆrico exp•e para seu objeto de desejo o seu “…ltimo
desejo” que permitir† que morra feliz. O Amor Eros se mostra nesse am†lgama, contendo a
pureza do Amor e a lascˆvia decorrente do mesmo.
Os paradoxos, essencialmente de partes complementares, s•o outros elementos sempre
presentes na poesia de Florbela. A partir deles pode-se tambƒm pensar sobre os conceitos
psicanalˆticos de Puls•o de vida23 e Puls•o de Morte24, inteiramente cabˆveis quando se fala de
morte na poesia florbeliana. Comumente a composi‚•o principia exaltando a Puls•o de vida,
isto ƒ, tudo de belo, no entanto, terminando com a perturba‚•o, a tragicidade, a destrutividade,
ou seja, a clareza da Puls•o de morte.
Em Florbela, pode-se notar um conflito constante dessas for‚as contrastantes, porƒm
complementares. Vale esclarecer que, “para alƒm de sua diferen‚a, tanto a puls•o de vida
quanto a puls•o de morte visam restabelecer um estado anterior no tempo [...] ambas agem
conjuntamente a fim de encontrar o passado e encontrar o prazer” (NASIO, 1999, p.72).
A puls•o de morte, de acordo com o mesmo autor, se t•o solit†ria quanto se mostra o
eu-lˆrico nas poesias florbelianas, tende a se representar na raiz das mais funestas a‚•es; isto
quando a tens•o procura o alˆvio no mundo externo. O que dessa ordem podemos perceber na
poesia de Florbela ƒ a inspira‚•o de um universo sombrio a sua volta, talhado pela uni•o do
Amor, da morte e do nada que deles germinam.
A morte, como pudemos ver em Florbela atƒ agora, ƒ tema recorrente n•o sŽ nas
poesias e can‚•es, mas est† presente tambƒm nas antigas e contempor•neas estŽrias tr†gicas
de Amor. V†rios s•o os cl†ssicos que representam esses atributos; podemos citar o romance
Romeu e Julieta, de Shakespeare e v†rios mitos, como o de Trist•o e Isolda e, de certa forma,
23
Puls•o de Vida: seu objetivo ƒ a liga‚•o libidinal, isto ƒ, o atamento dos la‚os, por intermƒdio da libido, entre
nosso psiquismo, nosso corpo, os seres e as coisas, garantindo a coes•o das diferentes partes do mundo vivo
(NASIO, 1999, p.69).
24
Puls•o de Morte: representa a tend‰ncia do ser vivo a encontrar a calma da morte, o repouso, o sil‰ncio, o
retorno ao zero. Tambƒm pode estar na origem das mais mortˆferas a‚•es, quando a tens•o busca aliviar-se no
mundo externo. A puls•o de Morte ƒ profundamente benƒfica quando permanece dentro de nŽs (Ibid., p.70).
56
o de Dafne e Apolo, mito este que tomaremos como íris de nosso olhar para a poesia
Florbeliana, procurando articular com conceitos Junguianos.
57
Em acordo com Johnson (1997, p.19), Jung conseguiu evidenciar que os mitos s•o
express•es simbŽlicas do inconsciente, assim como os sonhos tambƒm o s•o. A diferen‚a
b†sica e espantosa se d† pelo fato de que os sonhos expressam algo sobre o inconsciente de
um …nico indivˆduo, j† o mito vem expressar alguma coisa da ordem do inconsciente
coletivo25.
Campbell (1990 apud SAVARIS, 1999, p.1) define a mitologia, de maneira sensˆvel e
poƒtica, como “a can‚•o do universo – m…sica que nŽs dan‚amos mesmo quando n•o somos
capazes de reconhecer a melodia”. Segundo o mesmo autor (Ibid., p.1), “mitos s•o aquilo que
os seres humanos t‰m em comum, s•o histŽrias de nossa busca da verdade, de sentido, de
significa‚•o, atravƒs dos tempos”. Campbell (Ibid., p.1) diz ainda que os mitos “s•o met†foras
da potencialidade espiritual do ser humano, e os mesmos poderes que animam nossa vida
animam a vida do mundo”.
Na vis•o junguiana, os mitos s•o representa‚•es simbŽlicas de problemas gerais
humanos e suas solu‚•es possˆveis. S•o vistos, tambƒm, como as reprodu‚•es da fantasia, t•o
prim†rias e originais quanto os desejos e instintos humanos. O prŽprio Jung (apud
SILVEIRA, 1968, p.128) articula que “os mitos s•o principalmente fenŒmenos psˆquicos que
revelam a prŽpria natureza da psique”.
25
Inconsciente coletivo: est† em correla‚•o com as camadas mais profundas do inconsciente, com os alicerces da
estrutura psˆquica que s•o comuns a todos os seres humanos. “Os conte…dos do inconsciente coletivo constituem
como que uma condi‚•o ou base da psique em si mesma, condi‚•o onipresente, imut†vel, id‰ntica a si prŽpria
em toda parte” (JUNG, 2006, p.489).
59
Assim, nos conte…dos dos mitos ƒ possˆvel ver uma proje‚•o dos est†gios originais e
arquetˆpicos26 do desenvolvimento da consci‰ncia humana. Nos sˆmbolos inconscientes,
expressos em sonhos e fantasias, encontram-se os mesmos princˆpios dos mitos, ou seja, estes
representam tambƒm recursos fundamentais no processo do desenvolvimento humano.
26
Arquƒtipo: “O conceito de arquƒtipo deriva da observa‚•o reiterada de que os mitos e os contos da literatura
universal encerram temas bem definidos que reaparecem sempre e por toda parte. Encontramos esses mesmo
temas nas fantasias, nos sonhos, nas idƒias delirantes e ilus•es dos indivˆduos que vivem atualmente. A essas
imagens e correspond‰ncias tˆpicas, denomino representa‚•es arquetˆpicas” (JUNG, 2006, p.484).
27
O termo “desenvolvimento humano” ƒ tomado de maneira muito ampla, uma vez que o Processo de
Individua‚•o consiste em, basicamente, “uma tend‰ncia instintiva a realizar plenamente potencialidades inatas”
(SILVEIRA, 1968, p.88).
28
“O [self] si-mesmo ƒ o centro e tambƒm a circunfer‰ncia completa que compreende ao mesmo tempo o
consciente e o inconsciente: ƒ o centro dessa totalidade, como o eu ƒ o centro da consci‰ncia. [...] ‘ tambƒm a
meta da vida, pois ƒ a express•o mais completa dessas combina‚•es do destino que se chama: indivˆduo”. (Ibid.,
p.494).
60
Silveira (1968, p.156) diz que por meio das obras de arte, ƒ possˆvel adentrar-se
intensamente na alma humana, conscientizar-se de sentimentos e possibilidades obscuras que
perambulam neste local. Revela que “no mistƒrio do ato criador, o artista mergulha atƒ as
funduras imensas do inconsciente. Ele d† forma e traduz na linguagem de seu tempo as
intui‚•es primordiais e, assim fazendo, torna acessˆveis a todos as fontes profundas da vida”.
(SILVEIRA, 1968, p.161)
Bachelard (1991 apud S’, 200-?, p.2), aponta que “ƒ necess†rio uma poƒtica do
devaneio, um devaneio da profundidade”.
29
Persona: Para estabelecer contactos com o mundo exterior, para adaptar-se „s exig‰ncias do meio onde vive, o
homem assume uma apar‰ncia que geralmente n•o corresponde ao seu modo de ser aut‰ntico. Apresenta-se mais
como os outros esperam que ele seja ou ele desejaria ser, do que realmente como ƒ. A esta apar‰ncia artificial,
Jung chama persona. (SILVEIRA, 1968, p.90)
30
Sombra: O lado escuro onde moram todas as coisas que nos desagradam em nŽs, ou mesmo que nos assustam.
[...] uma espessa massa de componentes diversos, aglomerando desde pequenas fraquezas, aspectos imaturos ou
inferiores [...] [a] qualidades valiosas que n•o se desenvolveram devido a condi‚•es externas desfavor†veis ou
porque o indivˆduo n•o dispŒs de energia suficiente para lev†-las adiante, quando isso exigisse ultrapassar
conven‚•es vulgares. (Ibid., p.91)
31
Anima: ƒ a feminilidade inconsciente no homem. [...] Esta feminilidade indiferenciada, inferior, manifesta-se,
no dia-a-dia, [sobretudo] por despropositadas mudan‚as de humor e caprichos. (Ibid., p.94)
32
Animus: a masculinidade existente no psiquismo da mulher. [...] Op•e-se „ prŽpria ess‰ncia da natureza
feminina que busca, antes de tudo, relacionamento afetivo. Sua hipertrofia resultar† em humor querelante, em
quebra de la‚o de amor. (Ibid., p.97)
61
A necessidade a que Bachelard se refere pode ser entendida a partir de Johnson (1997,
p.201), quando este fala que temos muito que nos instruir a partir das composi‚•es poƒticas e
romanescas, devido a elas constituˆrem a aguda condi‚•o de demonstrar “as verdades que n•o
queremos encarar”.
Sobre o alcance marcante das obras de arte, Moura (200-?, p.2) diz que “alguma coisa
que sai da memŽria da coletividade, chega ao indivˆduo atravƒs de formas prŽprias.
Transcende a consci‰ncia, mas registra, influencia seu mundo”.
A arte, para a Psicologia Junguiana, portanto, n•o ƒ vista como sublima‚•o ou como
um escape para conte…dos psˆquicos condenados a n•o visitarem o mundo da consci‰ncia. A
arte, em qualquer que seja seu •mbito, funciona como meio para a auto-realiza‚•o.
Franz (1992, p.225) diz que
A arte poƒtica representava muito para Jung, que atƒ foi - podemos diz‰-lo
sem distor‚•o - um poeta “oculto”. Ele tinha especial fascˆnio pelas obras de
arte que considerava “vision†rias” - porque, nelas, o poeta d† voz a coisas
vindas do inconsciente coletivo, como um vidente ou profeta. Ele percebia o
curioso estranhamento tˆpico da arte moderna que parte dessa Žtica. Perˆodos
dessa espƒcie significam uma ƒpoca de incuba‚•o, em que ocorre uma
transforma‚•o inconsciente.
Dafne foi o primeiro amor de Apolo. N•o surgiu por acaso, mas pela
malˆcia de Cupido. Apolo viu o menino brincando com seu arco e suas setas
e, estando ele prŽprio muito envaidecido com sua recente vitŽria sobre Pˆton,
disse-lhe:
-Que tens a fazer com armas mortˆferas, menino insolente? Deixe-as
para as m•os de quem delas sejam dignos. V‰ a vitŽria que com elas
alcancei, contra a vasta serpente que estendia o corpo venenoso por grande
extens•o da planˆcie! Contenta-te com tua tocha, crian‚a, e ati‚a tua chama,
como costumas dizer, mas n•o te atrevas a intrometer-te com minhas armas.
O filho de V‰nus ouviu essas palavras e retrucou:
-Tuas setas podem ferir todas as outras coisas, Apolo, mas as minhas
podem ferir-te.
62
33
Aljava: Estojo para guardar setas, e que se trazia pendente no ombro. (FERREIRA, 2000, p.32).
34
Himeneu: filho de Vênus, presidia aos casamentos e às festas nupciais. (JUNIOR, 200-?).
63
Sobre os mitos, Johnson (1997, p.22) diz que est•o fortemente imbuˆdos de paradoxos,
e explica que eles apresentam tal caracterˆstica, “porque a realidade ƒ, em si, paradoxal”.
Acrescenta que “a palavra parádoxon significa literalmente ‘contra-senso’, ou seja, um
paradoxo vai contra o senso comum da realidade. Gostamos de acreditar que j† sabemos tudo,
64
que j† conseguimos imaginar tudo, e ƒ por isso que o verdadeiro paradoxo ƒ sempre doloroso”
(Ibid., p.84).
O paradoxo ƒ uma caracterˆstica em comum entre a poesia de Florbela, como
poderemos observar na poesia abaixo, e o nosso mito, que como vimos, j† se inicia com as
“flechadas paradoxais” do Amor e desamor de Cupido.
Esquecimento
Jung (2005, p.13) descreve sobre a viv‰ncia do Amor conjugal, que o campo espiritual
ƒ posto de lado e nos adentramos no domˆnio que se situa “entre o espˆrito e o instinto”; nesse
lugar, o mesmo autor diz ainda que “arde a chama pura do Eros que acende a sexualidade, e
[...] [tambƒm] algumas formas ideais de amor, como amor paterno, amor „ p†tria, amor ao
prŽximo, que se misturam „ ambi‚•o pelo poder pessoal, „ vontade de possuir e dominar”.
“Sabemos que existe algo de inexplic†vel no romance”, diz Johnson (1997, p.79). O
mesmo autor coloca tambƒm que no momento em que somos acometidos pelo Amor e pela
Paix•o, passamos a nos sentir completos, como se houvesse sido devolvido algo de nŽs que
nos haviam retirado. “A vida torna-se emocionante, ganha uma impress•o de glŽria, ‰xtase e
transcend‰ncia” (Ibid., p.79), como podemos notar tanto na poesia acima quanto no turbilh•o
de palavras que Apolo utilizou ao tentar conquistar Dafne.
Johnson (1997, p.22) pronuncia que “o amor rom•ntico ƒ a m†scara atr†s da qual se
oculta uma gama incrˆvel de novas possibilidades, „ espera de serem integradas ao
consciente”. Acrescenta que aquilo que se iniciou por meio da energia psˆquica proveniente
65
do inconsciente coletivo deve ser aprimorado no •mbito individual, portanto, ƒ tarefa de cada
um levar a energia inconsciente relacionada ao amor rom•ntico „ integra‚•o, tornando-a parte
da consci‰ncia.
Alƒm do claro e evidente paradoxo, podemos ver que tanto a poesia de Florbela
quanto o mito de Dafne e Apolo t‰m como alicerce a busca pelo Amor que se mostra como
algo inatingˆvel, inalcan‚†vel.
O sofrimento frente „ impossibilidade de ter o Amor do outro, aparece, tanto em
Florbela quanto no mito, como componente do sentimento de Amor e do romantismo,
inclusive, Johnson (1997, p.200) diz que “a palavra paixão originalmente significava
‘sofrer’35”.
Surge tambƒm em ambos a idƒia de que h† a tentativa de escapar do amor, parecendo
atƒ haver o alcance da fuga, mas, no fim, o sentimento se mostra presente, mesmo o objeto de
Amor permanecendo ausente.
O autor supracitado articula tambƒm, aludindo ao inconsciente coletivo, que
35
Sofrer: v.t.d. [...] 4. Passar por, experimentar (coisa desagrad†vel ou trabalhosa). 5 P. ext. Passar por. Int. [...]
(FERREIRA, 2000, p.643).
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de trazer consigo apenas a imagem da recorda‚•o, j† que n•o se mostrou possˆvel a viv‰ncia
infind†vel do Amor com o ser amado.
Os desejos em ambos os casos se mostram extravagantes e impossˆveis, mas ainda
assim, parecem proporcionar, alƒm da dor do sofrimento, tambƒm prazer.
Pobrezinha
Apolo foi rejeitado por Dafne em forma humana e, depois, “os ramos afastaram-se de
seus l†bios”. Florbela, como j† foi dito ao longo deste trabalho, traz a dor de Amar e n•o ser
amada e a melancolia conseq•ente desse Amor em v•o em suas poesias.
Sobre a melancolia, Jung (1985, p.27) diz:
(...) poderia ser tomada como condi‚•o introvertida36, o que n•o significa
uma atitude de prefer‰ncia. Quando se diz que uma determinada pessoa ƒ
introvertida, normalmente se pensa que ela prefere um comportamento ou
h†bitos introvertidos, o que n•o exclui, entretanto, a exist‰ncia de um lado
extrovertido; todos somos dotados dessa ambig•idade, caso contr†rio n•o nos
adaptarˆamos, n•o terˆamos influencia, ficarˆamos desintegrados. Os
melancŽlicos mergulham numa espƒcie de condi‚•o embrion†ria; eis por que
eles apresentam ac…mulo de sintomas fˆsicos introvertidos.
Johnson (1997, p.45) reflete que “a maior for‚a no universo psˆquico ƒ a busca da
complementa‚•o, da integridade, do equilˆbrio”. Sendo assim, quando um elemento da
natureza humana caminha a passos largos sem conson•ncia com seu oposto, h† distor‚•es
36
Introvers•o: atitude tˆpica que se caracteriza por uma concentra‚•o do interesse nos conte…dos intrapsˆquicos.
Seu contr†rio ƒ a extrovers•o. (JUNG, 2006, p.490)
67
grandiosas, uma vez que este componente mais evidente se torna, facilmente, o senhor
mandante da psique.
A morte ƒ tambƒm algo constante na poesia de Florbela e, indiretamente, com a morte
do corpo humano de Dafne, aparece no mito.
Franz (1992, p.227), sobre esta quest•o, esclarece que
Em suma, a morte, enquanto representa‚•o para a psique, pode aludir a uma tentativa
de renova‚•o, para algum tipo de transforma‚•o necess†ria, o fim de um ciclo e o come‚o de
outro, um novo caminho.
68
Chegamos. Longa foi nossa viagem ao lado da poesia de Florbela, mas olhando agora,
daqui de onde e quando estamos, tudo parece ef‰mero. Tanto quanto de fato ƒ.
Nosso tesouro est† bem „ nossa frente. SŽ mais um pouco... Mais alguns passos atƒ
alcan‚armos o “X”.
As palavras parecem ter ficado de rastro, dan‚ando nas ondas dos mares cruzados e
nossa afli‚•o clama pelos termos, versos e letras.
Voltemos nossa concentra‚•o „s †guas nas quais navegamos.
No primeiro mar, conhecemos um pouco sobre como e o que viveu a porta-voz do
Amor que contemplamos.
Seguimos, ent•o, pelo Oceano de sua poesia e pudemos perceber que Florbela “tece
sonetos espantada com os desencontros da vida.” (MAIA, 2001, p.26). A poetisa parece
converter em dor e sofrimento o Amor desencontrado. Alƒm disso, ƒ como se Florbela
estivesse sugerindo trazer o leitor para sua poesia, deixando transparecer uma espƒcie de
convite ao di†logo com seus escritos. Santos (2006, p.102) diz, inclusive, que “a obra de
Florbela se inscreve como uma poƒtica de rela‚•es dialŽgicas entre a voz da poeta e o
movimento interpretativo do leitor imagin†rio”.
Florbela vem transformar em poesia o que assinala Lacan (apud MAIA, 2001, p.171),
quando diz que “toda palavra possui sempre um mais-alƒm, porque sustenta muitas fun‚•es e
envolve muitos sentidos”:
No mar Amor, pudemos encontrar Florbela poetizando com esmero o Amor que tantos
teorizam e tentam explicar. Ela fala “dos Amores” de Comte-Sponville (1999), destacando o
arrebatador, egoˆsta, inconseq•ente e incondicional Amor Eros, dos “olhos [que] andam cegos
de te ver”. (ESPANCA, 2000, p.45). A efemeridade do Amor Eros tambƒm ƒ mostrada por
70
Florbela quando ela denuncia que “quem disser que se pode amar alguƒm / Durante a vida
inteira ƒ porque mente!” (Ibid., p.77). Comte-Sponville (1999) tambƒm fala do car†ter ilusŽrio
que comp•e o Amor Eros e Florbela, de sua maneira artˆstica, tambƒm diz o mesmo ao revelar
que quando se olha a vida do lado de seu amado, “o mundo n•o ƒ mundo: ƒ um jardim! / Um
cƒu aberto: longes, os espa‚os!” (ESPANCA, 2000, p.94).
Florbela poetisa de maneira brilhante o car†ter agressivo do qual Comte-Sponville
tambƒm fala em rela‚•o ao Amor-Eros: “Eu andarei por ti os maus caminhos / E as minhas
m•os, abertas a diamante / H•o de crucificar-se nos espinhos / Quando o meu peito for o teu
mirante!” (Ibid., p.80).
Mas, talvez a disciplina maior de Florbela tenha sido a capacidade triunfal de
transformar em arte o sofrimento, como nos tercetos:
que a poetisa canta a dor intrinsecamente ao Amor e „s frustra‚•es atreladas a ele. Florbela
fala de seu estado fr†gil e de seu des•nimo em rela‚•o ao restante do mundo; fala, inclusive,
como quem, rudemente, se auto-deprecia. Dessa forma, Florbela diz de modo diferente a
melancolia descrita por Azevedo (2003), como condi‚•o de estar em profundo sofrimento,
desprovido de interesse pelo mundo exterior, grande abatimento e arrefecimento do amor
voltado a si mesmo.
Ainda nesse mar, vimos Florbela chorar “numa concha vazia, choro errante”
(ESPANCA, 2000, p.80), ao mostrar sentimentos estampados como se n•o coubessem em si,
sentimentos direcionados ao objeto que n•o se encontra mais l†, protagonista do “sonho [em
que] eu j† nem sei quem sou... / O brando marulhar dum longo beijo / Que n•o chegou a dar-
se e que passou...” (Ibid., p.104). Assim, a poetisa coloca de sua maneira artˆstica o que Nasio
(2007, p.85) diz quando exp•e que a dor psˆquica, resumidamente, consiste em um Amor t•o
grande dentro de nŽs destinado a alguƒm que n•o mais existe.
Conseguimos sair desse doloroso mar, mas nos adentramos no Mar da Ang…stia.
Neste, vimos Florbela mostrar o medo, medo de haver outra perda daquele a quem dedicou
seu Amor. Com o medo, Florbela faz arte da arte de denominar ou expressar diferentemente
aquilo que os conceitos tambƒm dizem, como o de Nasio (1997, p.62 apud NASCIMENTO,
2005, p.95), que ao seu modo diz que a ang…stia vem da d…vida de um possˆvel perigo que se
teme, enquanto a dor ƒ o que se sente quando j† est† instalado o mal.
Florbela empresta sua voz „ ang…stia, tambƒm, quando tenta dizer o que n•o ƒ passˆvel
de ser expresso; enxergando por essa Žtica, vemos claramente Florbela em Lacan (apud
BESSET, 2002, p.205) quando ele coloca que a ang…stia “ƒ impossˆvel de se descrever”,
enquanto ela (2000, p.25) diz: “— chuva! — vento! Que tortura! / Gritem ao mundo inteiro
esta amargura, / Digam isto que sinto que eu n•o posso!...”.
Ao atravessarmos o Mar da Ang…stia, chegando cada vez mais perto de nosso tesouro,
enfrentamos as bravas ondas do Mar da Morte. Nele, vimos, primordialmente, que a poesia de
Florbela, v†rias vezes, d† a sensa‚•o de come‚ar denotando vida e finalizar com o tom
extraordin†rio da morte. Florbela, desse modo, demonstra artisticamente o que articula Lacan
(apud Nasio, 2007) ao dizer que puls•o de vida e puls•o de morte sempre navegam lado a
lado, ou seja, uma delas n•o est† num barco sem que a outra tambƒm esteja.
Nessa longa parada estratƒgica, vimos que houve um di†logo entre o que e como se
percebe Florbela e o que e como se percebe o discurso dos teŽricos por onde perpassamos.
Mas ainda faltava uma conversa importante.
72
No fundo de nosso baú, nascimento e retomada de algo que talvez seja o mais precioso
de todo o tesouro, algo que também se desenvolveu no ventre dessa viagem que acaba de
terminar:
Agonia
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