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UM LUTO, 21 ESTAÇÕES:
UMA JORNADA DE CURA ATRAVÉS DA ARTETERAPIA
São Paulo
2021
VERÓNICA ARAVENA CORTES
UM LUTO, 21 ESTAÇÕES:
UMA JORNADA DE CURA ATRAVÉS DA ARTETERAPIA
,
São Paulo
2021
Dedico este trabalho a Valério Igor Príncipe Victorino (in
memorian), por tudo o que vivemos juntos, e a Renata
Aravena Victorino, nossa florzinha, que chegou para
renovar as esperanças e o amor.
AGRADECIMENTOS
Não fazemos nada sozinhos, as coisas boas são sempre feitas com muitas trocas e
parcerias, por isso, há muito a agradecer.
Agradeço à minha irmã e parceira eterna, Claudia Aravena Cortes e a minha mãe,
Patrícia Cortes, que me iniciou no universo das artes, a meu pai Luis Alfredo Aravena Medel
(in memorian), que embora discordando, sempre curtiu tudo o que fiz.
Ao clã Victorino, minha família no Brasil, D. Célia, a matriarca, às tias Cibele, Bi e
Thais Victorino e aos tios Alfeu e Laércio, por todo o apoio e pela amorosa acolhida.
A todas as professoras do curso de Arteterapia do Instituto Sedes Sapientiae, pelo saber
compartilhado, principalmente à Iraci Saviani, orientadora deste trabalho, pelas suas
contagiantes risadas e preciosas dicas. Dedico também um agradecimento especial à professora
a Eloisa Fagali, coleitora deste estudo e minha supervisora de estágio, por sua leitura atenta,
mas sobretudo, pelas saborosas trocas ao longo do curso e do estágio.
Às minhas amigas do curso de Arteterapia, Tatiana, Viviane, Márcia, Cristina, Ana
Letícia, Marília, Mariana, Carolina (de Natal), Adriane, Roberta, Aninha (de Goiás) e Lais, com
as quais, entre risos e lágrimas, compartilhei tantos saberes e conformamos uma valorosa teia,
que me permitiu atravessar a desafiadora pandemia.
A amigas eternar, que viabilizaram o estágio em plena pandemia, Zildete Araújo e
Miriam Lozano, bem como a todas as adolescentes que participaram Oficinas
Arteterapêuticas Heróis e Deuses para pandemia.
Aos amigos do Mipa, Mitologia e Psicologia Analítica, da SBPA, com os quais partilhei,
em 2018, o estudo de Os Perfumes, de Orfeu, e pude encontrar um precioso conforto e a
delicada nutrição para atravessar o período mais doloroso da minha visita ao Hades.
A Sueli Mizumoto, querida amiga/irmã de tantas baladas, te agradeço pelo teu ombro
amigo para todas as horas.
Às Benzadeusas, amigas/irmãs de tantos caminhos, por me ajudarem a reunir meus
caquinhos e me fortalecer, pelas risadas, pelos sonhos, pelos saberes, pela união no feminino,
pela esperança.
Para finalizar esta parte, um agradecimento a todos os amigos do Estrela do Alvorada
pela rede que formamos nestes desafiadores momentos pandêmicos e pelo espaço para o
desenvolvimento dos meus estudos alquímicos e arteterapêuticos, em especial, a querida irmã
de tantas jornadas, Alacanje Salles Marcondes.
RESUMO
A morte é desse tipo de experiência da qual pouco se fala, como se o silêncio pudesse evitá-la,
podemos não gostar, mas ela marca o nosso existir e este é o ponto de partida desta monografia.
O trabalho apresenta aquilo que segue a morte de uma pessoa querida, o luto, e o longo exercício
de sua elaboração. A vivência deste luto é apresentada aqui com todas as cores, percepções e
atitudes -a dor, a raiva, o silêncio, a depressão-, buscando aproximar o leitor desta vivência,
devido à perda de uma forte relação de apego. Para fundamentar as discussões, inicialmente,
apresentamos as ideias de Kübler-Ross e Bowlby referentes ao luto, em seguida, os referenciais
da Gestalterapia, que discorrem acerca a importância da experiência para a criação do ser, e da
Psicologia Analítica, para debater o valor do trabalho com imaginação e as imagens para a vida
psíquica e para a alma. Para encerrar apresentamos os trabalhos desenvolvido ao longo do curso
de Arteterapia no Instituto Sedes Sapientiae, que compõem as 21 estações de uma jornada de
elaboração e cura deste luto. As coisas se transformam, para viver é preciso saber morrer e, com
este saber, fecho um ciclo.
Palavras-chave:
Arteterapia, Gestalterapia, Psicologia Analítica, luto, depressão.
ABSTRACT
GRIVING, 21 SEASONS.
A HEALING JOURNEY THROUGH ARTETHERAPY
Death is an experience that is little talked about as if silence could avoid it. However, death
marks out our existence even when we do not like it. This work is about what comes after the
death of a loved one: the grieving process and its phases. The experience of this grief is
approached in this work with all the shades, perceptions, and attitudes -pain, anger, silence,
depression-, aiming to bring the readers closer to their experience, due to the loss of a strong
attachment relationship. To support the discussions, initially, we present the ideas of Kübler-
Ross and Bowlby regarding grief, followed by the references of Gestalt Therapy, which discuss
the importance of experience for the construction of the being. Additionally, reference about
Analytical Psychology is examined, to debate the value from working with imagination and
images to psychic life and the soul. To conclude, we present the works developed during the
Art Therapy course at Instituto Sedes Sapientiae, which make up the 21 seasons of a journey of
development and healing of this grief. Things change; to live it is necessary to know how to die
and, with this knowledge, I close a cycle.
Key-Words: Gestalt Therapy, Art Therapy, Grief, Analytical Psychology, depression
Aquele que não ‘morre’ várias vezes, não ‘nasce’ para novas vidas e,
portanto, fica morto. Aquele que não ‘morrer’ várias vezes em sua vida,
seguramente não a viveu (VARGAS, 1987, p.68)
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 8
1 A VIDA SOB O SIGNO DO LUTO 10
1.1 De repente, a morte 10
1.2 A vivência do luto 12
1.3 A luto na teoria 14
1.4 Nas águas da depressão 17
5 21 ESTAÇÕES E UM EPÍLOGO 37
CONSIDERAÇÕES FINAIS 56
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 58
INTRODUÇÃO
Do tecido da minha vida
Há coisas que precisam ser feitas, é preciso e pronto. Eu já sabia há quase 10 anos que
precisaria entrar neste clã, o clã dos que utilizam a arte como terapia, mas foi um longo percurso
até chegar aqui.
Quando buscava um lugar para atuar no mundo, ainda jovem, acreditava com toda
convicção que boa parte das mazelas da humanidade se devia ao desconhecimento do
sofrimento e à falta de consciência. Assim cursei jornalismo para trabalhar levando a
informação a quem não possuía; quase ao mesmo tempo, buscando entender o que faz desse
Homo sapiens um humano, estudei filosofia. Era uma tentativa de buscar sentido a este mundo
tão caótico, desigual e, não raro, cruel, acreditando ingenuamente no poder da consciência.
Estudei na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, um curso voltado ao
pensamento ocidental, pautado pelo paradigma cartesiano; Descartes apresenta-se como uma
herança inescapável pela sua divisão corpo e alma, mas sobretudo, ao ancorar a existência
humana no pensamento. Nunca fui filósofa, mas o longo tempo passado junto a Aristóteles,
Kant, Maquiavel, Adorno e Hanna Arendt, entre outros, levaram-me a conhecer uma
multiplicidade de perspectivas para o “Conhece-te a ti mesmo”, a inscrição do Oráculo de
Delfos.
Com o passar dos anos, rumei para a Sociologia e os Estudos Culturais, para a cidade
e seus grupos, buscando compreender o papel da cultura e a dinâmica da conformação da
identidade, que, por sua vez, me levaram à importância do poder simbólico. Nesse interim
passei a me dedicar aos estudos do feminino, que divulgava semanalmente em meu blog, O Clã
das Lobas, e participei do MIPA, Mitologia e Psicologia Analítica, na Sociedade Brasileira de
Psicologia Analítica, este último, levou-me a perceber a necessidade de me juntar a uma nova
turma.
Depois de duas décadas de vida acadêmica, navegando pelos cursos de Comunicação
e Sociologia, começariam os estudos de psicologia. Já sabendo que eles forneceriam formação
para trabalhar nessa área, mas que precisaria completá-la, porque já havia identificado a
importância da arte como ferramentas para mediar o processo de cura, principalmente, no
contato com as dimensões criadoras da existência, pois nossa própria vida talvez seja a nossa
maior criação.
O curso de Arteterapia possibilitou muitos belos encontros, os mais preciosos talvez
sejam com a Gestalt e com os recursos expressivos para fazer alma.
*
Em 2019, ingresso no curso de Arteterapia do Sedes Sapietiae, com sentimentos
ambíguos, pois era um curso há muito desejado, contudo vivenciava uma profunda dor. Estava
em pleno luto pela passagem do meu marido, meu amor e companheiro de vida; naquele
momento nada daquilo que havia construído fazia sentido para mim. Esta perda havia me
causado um trauma profundo, minha vida havia desmoronado, estava sem chão, fé, nem
esperança, uma sombra do que havia sido.
Este trabalho discorre sobre um processo arteterapêutico na elaboração de um luto,
meu luto. Nele, o leitor acompanha não apenas um aprendizado da utilização dos recursos
expressivos, mas também uma jornada de cura. Ao colocar a mão na massa, nas tintas, no papel,
na argila, cortando, misturando, amassando, lapidando fui elaborando uma profunda dor,
ressignificando uma perda e, a partir das novas imagens, surgiram novas possibilidades. Para
fundamentá-lo utilizamos o referencial da Gestalterapia e a Psicologia Analítica, de um lado, a
experiência no aqui e agora, de outro, o trabalho com a imaginação e as imagens para produzir
o novo.
Este relato busca contribuir à bibliografia sobre a elaboração do luto, mas também
sobre a depressão e a superação de traumas psíquicos, pois um trauma não é superado pela
tomada ou ampliação da consciência, mas pela substituição das antigas imagens por novas. Eis
a potência da arteterapia.
1 A VIDA SOB O SIGNO DO LUTO
Como la cigarra
Tantas veces me mataron,
Tantas veces me morí,
Sin embargo estoy aquí
Resucitando.
Gracias doy a la desgracia
Y a la mano con puñal,
Porque me mató tan mal,
Y seguí cantando.
Júlio de 2017
Sonhei que estava sozinha numa praia observando no
horizonte um enorme tsunami se aproximando.
A morte, esta senhora, anunciou sua presença numa leitura cartas das tarô em julho de
2017. Era um estudo que fazíamos, meu marido, Igor, e eu, todo fim de semana, pois
gostávamos de receber as mensagens do nosso inconsciente. “Uma viagem pelas cartas do Tarô,
primeiro que tudo, é uma viagem às nossas próprias profundezas. O que quer que encontremos
ao longo do caminho é, au fond, um aspecto do nosso mais profundo e elevado eu” (NICHOLS,
2007, p.18). Naquele dia, não caiu bem, não era a primeira vez naqueles últimos tempos, me
apeguei ao significado da transformação, mas a transformação final é a morte física. Nunca
mais fizemos leitura de tarô juntos.
Quatro anos antes, em 2013, um nódulo no pescoço revelara-se um câncer, o Igor fez
uma cirurgia de retirada de tireoide e duas iodoterapias, ao longo de cinco anos, nunca chegou
a “zerar”, na verdade, não existe zerar, mas existem padrões considerados normais. No seu caso,
estava num nível controlado e estável, de acordo com os exames de rotina. Naquele momento,
o marcador de câncer da tireoide, não mostrava alteração, só que nas imagens apareceram umas
pequenas bolinhas no cérebro.
No dia 11 de outubro, às vésperas das celebrações dos 300 anos do encontro da imagem
de Nossa Senhora de Aparecida no rio Paraíba do Sul, visitamos a Basílica; como milhares de
peregrinos que chegavam para participar dos festejos. Na chegada, um lindo arco íris envolvia
o templo, pareceu-nos um bom augúrio para o porvir.
A cirurgia à laser no cérebro estava marcada para a semana seguinte, um procedimento
muito preciso, ele voltou para casa, naquele momento, ainda havia muita esperança, mas três
dias depois foi internado devido a um tumor de 4 cm no esôfago.
Iniciava-se um intenso convívio hospitalar; as metástases cresciam como um alien
desgovernado e nós entrávamos nessa complicada seara de lutar pela vida, em meio às
contingências do nosso sistema de saúde com suas regras kafqueanas. A cada resultado de
exames, um choque. Eu não conseguia acreditar! Entre entrada e saída de hospitais, ele
começou seu processo de despedida a tudo o que mais gostava na vida; de minha parte, eu
vivenciava duas realidades, acompanhava a seu lado esses momentos rituais e, ao mesmo
tempo, precisava encerrar o ano letivo na Universidade e estar com nossa pequena de quatro
anos que percebia a ausência de seu querido pai. Não me dei conta, mas fiquei dilacerada.
Que destino injusto! Tínhamos tantos planos, uma filha que o amava e precisava muito
dele.
Não foi uma morte abrupta, porque foi anunciada, de alguma forma estava no
horizonte quando se tem um diagnóstico de CA, só que os próprios médicos diziam que não se
morre de CA de tireoide, porque é dos menos agressivos, portanto, é mais lento, mas tampouco
houve um luto antecipatório, pois foi muito rápido.
Como ele não queria publicidade e forte que era, pouca gente ficou sabendo, quis partir
sem fazer alarde, elegante. No dia 21 de dezembro, para que as crianças não perdessem a festa
de Natal, ele partiu e, para mim, a terra se abriu e fui tragada.
- Seja forte!
A frase mais ouvida no enterro. Como a odiei, não tinha nenhuma condição, nem
vontade de estar forte. Cá estava eu, engolida no Tsunami.
1.2 A vivência do luto
Só que este TCC não é para falar da morte, mas sobre a vida sob o luto.
Quando a passagem aconteceu, eu já me sentia amortecida, vendo o que acontecia
como assistindo um filme, sem acreditar.
Tudo o que chegava do mundo externo ficou difícil, estar em nossa casa, dormir no
nosso quarto, levantar, esperar numa fila, pedir ou reter uma informação. Reconheci-me numa
imagem de um filme do Almodóvar, A pele que eu habito. Embora estivesse habitando uma
pele, não vivia em meu corpo.
Fiquei letárgica durante meses, só respirando, mas até respirar doía. Vivi como um
zumbi; via o mundo correndo lá fora, crianças brincando, jovens rindo, casais se beijando,
pessoas trabalhando e tudo tão longe, parecendo correr em outra dimensão. Eu estava em um
outro tempo e espaço, o tempo e espaço da minha dor, de ruminar uma ausência; eu só queria
estar com a memória do meu marido perdido, só isso fazia sentido.
Senti muita raiva do sistema de saúde, dos médicos indiferentes até da psicanalista
dele. Eu sugeri para o Igor fazer terapia, afinal de contas a experiência estava forte. Ele foi só
a três sessões, não prosseguiu, depois soube que, na terapia, havia entendido o câncer como
produto de sua pulsão de morte -a explicação na linha psicanalítica- e se sentia culpado por essa
pulsão havê-lo dominado a ponto de formar um câncer. Eu também passei a me sentir culpada,
pensando “Por que eu fui te indicar terapia? Poderia ter te poupado esse sofrimento.”
Não deixei de comer, por puro sentido de obrigação de sobreviver, porque nada tinha
sabor, nem os sabores que tanto eu gostava.
O som incomodava muito; sentia gralhas falando em lugar de pessoas. Ouvir música
tornou-se impossível. Nossa casa sempre tinha alguma trilha sonora de qualidade e alguns
programas no rádio, como o saudoso Boechat, pela manhã. Ficou impossível ouvir até as
propagandas.
Silenciei, algo ficou engasgado na garganta. A psicossomática aponta que o trauma
silencia, a libido se volta para dentro, não sobrando energia para as coisas do mundo. Na
perspectiva da psicologia analítica, a experiência numinosa silencia.
A cada coisa que eu encontrava em nossa casa, uma dor, seus óculos, sua máquina
fotográfica, seus CDs. Precisando reconfigurar a organização da casa, antes havia uma divisão
de tarefas, um cuidava da Renata, outro cozinhava, limpava e vice verso. De repente, eu
precisava tomar conta de tudo e eu tão sem energia.
Evitei o espelho, porque o encontro se tornava difícil, não me reconhecia, só via
amargura. Tirei todos os meus retratos na parede, pois ver os meus sorrisos me parecia um
indigesto escárnio; achei que nunca voltaria a sorrir.
Sentia-me profundamente sozinha. Por mais que houvesse pessoas próximas, ajudando
a tocar a vida, elas estavam muito longe, nem podiam imaginar o que se passava em meu
interior. Só quem passou pelo luto pode saber o que se sente.
Voltar ao trabalho, em fevereiro, me levou a vestir a máscara de professora e sair do
meu refúgio, me fez bem, mas em minutos contados, apenas dar a aula e voltar para casa, sem
conseguir ficar na sala de professores pelo perigo de ter que conversar com alguém. Havia
sempre alguém que perguntava:
- Tudo bem?
Convenhamos que tudo bem, não é uma pergunta que se faz para alguém de luto.
Tão grande como a tristeza, era a raiva, ver que meus nossos planos não se
concretizarão, você não verá nossa filha crescer. Fui a última das amigas a casar e a primeira a
ficar viúva, como assim? Injusto! Não gosto de sentir essa raiva gigantesca, mas eu sinto. Eu
dizia “você não tinha permissão de partir”. Que onipotência! Me senti levando uma terrível
rasteira.
Com a passagem do Igor, experienciei uma dor de uma intensidade que jamais pensei
que fosse viver e suportar, uma dor que não cessava e era potencializada naqueles dias que antes
eram celebrações, seu aniversário, dia do nosso casamento, Natal. Mas havia outras dores, como
a de não ter me dado conta, não haver te ajudado mais.
Nossa filhota passou meses perguntando sobre você, as estrelas do céu foram o melhor
destino que pudemos encontrar para explicar a morte a uma menina de quatro anos; ela insistiu
durante meses para construir uma pipa, um balão, um foguete, o que fosse para te buscar no lá
céu. Ela queria tanto te trazer de volta! Isso dilacerava ainda mais meu coração.
1.3 O luto na teoria
Como médico, estou convencido de que é mais higiênico- se assim posso dizer -olhar
a morte como a meta para a qual devemos sempre tender, e que voltar-se contra ela é
algo de anormal e doentio que priva a segunda metade da vida de seu objetivo e
sentido (JUNG, 1984 § 792).
Comecei a narrativa por um relato pessoal, buscando aproximar o leitor a este universo
tão distante, principalmente, em nossa sociedade, na qual a vida deixou de ser percebida em
função de seus ciclos, mas numa ascendente só de conquistas, sem perdas, na qual as
transformações são pouco entendidas e, menos ainda, ritualizadas e a própria morte, não só
adiada e evitada, mas também sentida como uma derrota:
Tanto quando perdemos uma pessoa significativa – seja por morte concreta ou
metafórica, isto é, ao rompermos um vínculo afetivo com a pessoa viva- como quando
precisamos revisar pontos de vista em uma situação, ideias a respeito de nós mesmos
ou em ocasiões que frustram nossas expectativas de ordens diversas, se estivermos
dispostos a deixar para atrás o elemento perdido, podendo desapegar e abrir espaço
para o novo, estaremos nos transformando e realizando o processo de luto necessário
decorrente da morte simbólica (SOUSA, 2018, p.78).
Cada transformação implica uma perda ou cada escolha, em algo a ser sacrificado. No
luto, não se trata apenas da perda concreta da pessoa, mas também de sonhos, projetos, ideias,
sentimentos -inclusive a tristeza- que precisam ser enterrados, pois do contrário viram
fantasmas a assombrar com sua fantasmagórica presença, sendo necessário buscar novas
imagens, imaginar novas possibilidades e escolher novas rotas.
O sentido último do aprendizado maior ao longo de nossa existência talvez seja a
vivência da morte simbólica, sendo esta entendida aqui como transformação, mudança de um
estado a outro, que obrigatoriamente implica saber viver o desapego (SOUSA, 2018, p.78).
Desafiadora, mas valorosa missão.
1.4 Nas águas da depressão
O primeiro fator que notamos no ato criativo é sua natureza de encontro (MAY, 1982,
p. 39).
Rollo May identifica um ponto chave, a questão do encontro, a criação começa pelo
encontro, os artistas encontram as paisagens que querem pintar ou uma visão interior, um som,
uma letra, uma melodia, uma história que reverbera. Este encontro requer uma qualidade
específica de engajamento para produzir uma arte genuína. No labirinto uma saída, na porta a
chave, um conto que cura, os encontros são como portais na nossa existência.
No curso, encontrei a Gestalterapia. Estudei um pouco de fenomenologia na
universidade quando cursava filosofia na USP, mas no Sedes Sapientiae, a teoria ganhou
substância, conceitos como campo, ou melhor, a relação do organismo com seu campo e o
limite de contato, figura-fundo, homeostase e até mesmo a própria ideia de Gestalt, posso dizer,
tornaram-se figura.
Percebo que cursar arteterapia foi como entrar numa experiência gestáltica de um
continuum figura-fundo-figura, possibilitada pelas diferentes propostas e no trabalho com
diferentes materiais e técnicas, delicados e profundos encontros que foram abrindo portas ou
portais da minha criatividade. Um encontro que paulatinamente deu “forma a algo novo”,
Ostrower uma autora que discorre acerca da criatividade observa que:
Criar é, basicamente, formar. É poder dar uma forma a algo novo. Em qualquer que
seja o campo de atividade, trata-se, nesse "novo", de novas coerências que se
estabelecem para a mente humana, fenômenos relacionados de modo novo e
compreendidos em termos novos. O ato criador abrange, portanto, a capacidade de
compreender; e esta, por sua vez, a de relacionar, ordenar, configurar, significar
(OSTROWER, 1977, p. 5).
A autora observa que desde a mais remota antiguidade, o ser humano, mais do que
homo faber, é um “ser informador”, uma vez que ele se relaciona com os eventos, dando-lhe
significado:
Ele é capaz de estabelecer relacionamentos entre os múltiplos eventos que ocorrem ao
redor e dentro dele. Relacionando os eventos, ele se configura em sua experiência de
viver e lhes dá um significado. Nas perguntas que o homem faz ou nas soluções que
encontra, ao agir, ao imaginar, ao sonhar, sempre o homem relaciona e forma
(OSTROWER, 1977, p. 5).
Nesse sentido, o potencial criativo não se restringe à arte, está presente em todos os
aspectos da vida. O potencial criador elabora-se nos múltiplos níveis do ser sensível-cultural-
consciente do homem, e se faz presente nos múltiplos caminhos nos quais o sujeito procura
captar e configurar as realidades da vida. O homem não somente percebe as transformações
como, sobretudo, nelas se percebe, escreve a autora:
Os caminhos podem cristalizar-se e as vivências podem integrar-se em formas
de comunicação, em ordenações concluídas, mas a criatividade como potência
se refaz sempre. A produtividade do homem, em vez de se esgotar, liberando-
se, se amplia (OSTROWER, 1977, p. 10).
Destaco este ponto, a criatividade, “em vez de se esgotar, liberando-se se amplia”, mas
em lugar do estímulo à criatividade, somos recompensados, quando reproduzimos o que dita o
manual ou a resposta certa na prova.
A criação da vida pertence ao plano dos eventos numinosos, um segredo guardado a
sete chaves, no qual a humanidade frequentemente prefere não pensar, tal como a morte na
outra ponta, mas nossa existência certamente apresenta-se marcada por esses dois eventos. Por
sua vez, cada ato de criação nos conecta a este numinoso. Pensar neste enigma é refletir a
respeito de uma parte enigmática do humano, naquilo que nos aproxima ao divino, no plano da
matéria.
A criatividade nasce da revolta contra a morte e da luta contra a nossa mortalidade e
contra a mesmice, o desespero e a opressão. A coragem criativa, segundo May “é a descoberta
de novas formas, novos símbolos, novos padrões segundos os quais uma nova sociedade pode
ser construída” (1982, p.20).
E são os artistas que apresentam as novas formas e símbolos. Os artistas possuem essa
capacidade de se insurgir, coloca May, permitem-se mergulhar no caos e criar forma, do mesmo
modo que Deus criou o mundo. Eternamente insatisfeitos com tudo o que é mundano, apático
e convencional, estão sempre nos conduzindo a mundos novos. São os criadores da
“consciência não-criada da raça”. Criando a partir da fúria, a rebeldia reverbera a emoção, uma
força suprema de vitalidade, algo na trilha oposta da morte, no entender de May.
Qualquer pessoa pode ser artista, não se nasce artista, porque a abertura para a criação
está disponível para todos aqueles que impregnados por uma eterna insatisfação, ungidos por
uma poderosa rebeldia e com os brios da coragem, permitem-se o novo, sem puder, nem
vaidade. A criatividade configura-se como uma prática e compromisso para com a própria vida:
quando mergulhar no caos e criar formas torna-se uma necessidade.
Na região do Mediterrâneo, onde hoje vemos o sul da Itália, há mais de dois mil anos,
meninas e jovens, muitas vezes “enlouquecidas” repentinamente eram vistas pelo clã como
picadas pela tarântula. Na verdade, a loucura aparecia após terem sofrido alguma violência,
como o abuso sexual, cometido por membros mais velhos do próprio clã, que não podia ser
comunicada.1 A irmandade feminina se reunia para a cerimônia ritual da tarântula, que incluía
uma dança de cura para sanar o estado “atarantado”, ou seja, em desordem mental. Eis a origem
da tarantela, afirma a percussionista e pesquisadora italiana, Alessandra Belloni (2015). Os
antigos e, até hoje, os povos nativos sabem que a dança e outras formas expressivas que nós,
ocidentais, chamamos de arte são terapêuticas. Trazemos esta lembrança deste ritual criado e
configurado para curar, pois a arteterapia remete a uma das mais antigas formas de se pensar o
humano, sua vida e sua saúde.
Ostrower explica que “O homem cria, não apenas porque quer, ou porque gosta, e sim
porque precisa; e ele só pode crescer, enquanto ser humano, coerentemente, ordenando, dando
forma, criando” (OSTROWER, 1977, p. 7).
O processo expressivo constitui um processo terapêutico, no qual o produto é um
mediador e neste fazer expressivo, o sujeito poderá se olhar, se descobrir e se entender melhor,
trabalhando sua autoconfiança, identificando e desenvolvendo habilidades e potencialidades.
Este fazer, mediado pela arte, facilita a comunicação do mundo interno para o mundo externo,
do inconsciente para a consciência, mas também no plano social, possibilitando a compreensão
das dificuldades e, inclusive, a resolução de situações de conflitos.
O contato com os materiais no processo, auxilia o contato com o mundo interno de
cada um, com as angústias e dores, mas também com as potencialidades, integrando aspectos
desconhecidos, porque inconscientes, reduzindo a distância entre as polaridades, ampliando o
contato com os recursos disponíveis na experiência da vida.
1
Fonte Alessandra Belloni, informação oral https://www.youtube.com/watch?v=JKubWl5YLj8
A transformação dos materiais abre o campo de possibilidades para a transformação
do próprio sujeito, na medida em que adquire novas awareness, e sua autoconsciência amplia
o seu autoconhecimento, algo que nunca tem fim, mas configura um processo; na experiência
de dar forma à argila, ao papel, ao cimento ou barbante, entre tantos outros materiais, vão se
configurando novas possibilidades. Dando forma a materiais, homens e mulheres, com a sua
bagagem de emoções e conhecimentos dão “[...]forma à fluidez fugidia de seu próprio existir,
captou-o e configurou-o. Estruturando a matéria, também dentro de si ele se estruturou; criando
ele se recriou” (OSTROWER, 1977, p.51).
Desta visão existencial do humano decorre uma visão sobre o estar no mundo, da saúde
e do adoecimento, na qual as formas de contato, que se estabelecem com o mundo,
desempenham um papel central. Neste sentido, Ciornai observa que “as funções de contato do
organismo, como olhar, escutar, tocar, falar, mover, sentir, cheirar, são o instrumental que o
indivíduo dispõe para ir ao encontro de sentir, avaliar e selecionar o que está à sua volta”
(CIORNAI, 2004, p. 53).
Por sua vez, a awareness, a desejada expansão de consciência, caracteriza-se pelo
contato, pelo sentir (sensação/percepção). É possível existir contato sem awareness, mas para
a awareness, o contato é indispensável (PERLS, HELLERLINE e GOODMAN, 1997). Os
autores explicam:
A formação de gestalten sempre acompanha a awareness. Não enxergamos três
pontos isolados; fazemos um triângulo com eles. A formação de gestalten completas
e abrangentes é a condição da saúde mental e do crescimento. Só a Gestalt completada
pode ser organizada como uma unidade de funcionamento automático no organismo
total. Toda Gestalt incompleta representa uma “situação inacabada” que clama por
atenção e interfere na formação de qualquer Gestalt nova, vital. Em vez de
crescimento e desenvolvimento encontramos estagnação e regressão (PERLS,
HELLERLINE e GOODMAN, 1997, p. 33).
Um ponto. Tudo começou com um ponto. O ponto foi a atividade inaugural do curso
de arteterapia em março de 2019. O ponto, concentração máxima, se expandiu e contou uma
história, mas voltemos ao ponto. (ver Imagem 1)
Nessa concisão absoluta que, no entanto, fala, Kandisnky escreve poeticamente a este
respeito “o ponto geométrico é (...) a verdadeira e única união do silêncio e da palavra”. O
pintor discorre sobre as diferentes propriedades do ponto, identificando nele inúmeras
propriedades e qualidades:
o ponto geométrico é um ser invisível. Portanto deve ser definido como imaterial. Do
ponto de vista material, o ponto é igual a Zero e, do ponto de vista humano, aparece
como concisão absoluta. Há uma evidência espiritual no início da aventura gráfica, e
essa evidência é importante, pois é a de uma passagem como se o zero material fosse
a condição de um ponto de passagem obrigatório para o início da escrita, para o início
da palavra (KANDISNKY, 1997, p.17).
No espaço livre de qualquer utilidade, isolado, emanando seu silêncio, o ponto sozinho
pode afirmar sua ressonância. O ponto começa a viver como um ser autônomo, evoluindo de
acordo com sua necessidade interior e, assim, o ponto morto torna-se um ser vivo, então, surge
a linha:
A linha geométrica é um ser invisível. É o rastro do ponto em movimento, logo seu
produto. Ela nasceu do movimento – e isso pela aniquilação da imobilidade suprema
do ponto. Produz-se aqui o salto do estático para o dinâmico (KANDISNKY, 1997,
p.49).
Na linha, o ponto, elemento originário da pintura, encontra seu maior contraste. As
forças externas, que transformam o ponto em linha, evocam diferentes naturezas, cujas
combinações reverberam na diversidade das linhas. Por sua vez, a linha apresenta tensão e
direção. A tensão é a força viva do elemento. Nesse sentido, a linha reta apresenta em sua tensão
a forma mais concisa das infinitas possibilidades do movimento, na outra ponta, as linhas
onduladas abrem mão da concisão.
Figura 1
Figura 2
Em seguida, o ponto começa a contar uma história, a história da minha vida, caminha
bastante, mas sem intensidade, tudo está desbotado, inclusive o ponto crítico, nenhum registro
da tensão, nem da dimensão do evento. “Onde está a força desse evento?”, me perguntam. Esse
questionamento inquietou-me e levou-me a buscar a intensidade das emoções vividas.
A awareness desse trabalho foi que até o pulsar estava desvitalizado, em plena
depressão, meu trabalho não conseguia registrar a intensidade do meu furacão vivido, nem da
dor.
Figura 3 NE1
Figura 6 NE4
Figura 7 N E5
Figura 8 NE6
Figura 11
A arte em qualquer de suas formas, contanto que seja verdadeira, alcança seu objetivo
e constitui alimento para o espírito (KANDISNKY, 1997, p. 29).
A experiência inaugural reafirmou que estava onde deveria estar. Por todo o ano de
2019, uma vez por mês, durante um fim de semana, eu penetrava em um espaço sagrado e dali
saia, não apenas mais consciente, mas também mais vitalizada. Foram ricas experiências que
me propiciaram vivenciar o aqui e o agora, fundos tornaram-se figuras e, nessa vivência,
retomar contato com o profundo da minha alma e buscar a sua cura.
Na realização dos trabalhos, não tinha nenhuma preocupação estética, apenas contava
com as possibilidades na arte da criação e da recriação. Como a criança, descobrindo as formas,
os materiais e as cores, sem medo de errar, encontrando no processo com os materiais, novas
possibilidades, ou seja, me percebia iniciando uma jornada na arte da criação e da recriação.
No contato com o material, sobreveio o prazer na experiência sensório-motora, mas
também perceptual afetivo e cognitivo simbólico, previsto no ETC, Continuum das Terapias
Expressivas (KAGIN, LUSEBRINK, 1995/ 2000)., e assim fui redescobrindo o prazer do
contato comigo e com o mundo.
4 IMAGINAÇÃO E PSICOLOGIA ANALÍTICA
Cada imagem é seu próprio começo, seu próprio fim, curada em si. Então, o
“Conhece-te a ti mesmo” termina sempre que deixa o tempo linear e se torna
ato de imaginação. Um insight parcial, essa canção agora, essa imagem aqui;
ver parcialmente é o todo (HILLMAN, 2010, p. 127).
“Já passou! Supere!”, sempre sabemos o que o outro precisa fazer, principalmente,
quando ele está num buraco ou numa canoa furada, só não entendemos porquê a própria pessoa
não vê a saída, insistindo em ficar como o capitão do navio que afunda com ele, quem olha de
fora não entende por que o sujeito fica imóvel, não faz alguma coisa para sair do lugar, nem
que seja pedir ajuda.
É muito difícil superar um trauma ou qualquer adoecimento psíquico sozinho, seja
uma depressão, uma relação abusiva, o abuso de drogas ou qualquer outro. O trauma corrói a
confiança da própria pessoa em si própria e, por conseguinte, na vida, tal como vimos no
capítulo 1 quando debatíamos a questão da perda das relações de apego. Este tipo de
adoecimento desestabiliza de uma forma que supera o entendimento da própria pessoa, porque,
de repente, ela não mais se reconhece, por outro lado tão pouco é entendido pelo meio que cobra
sua rápida superação, um funcionamento e uma vitalidade presentes em momentos anteriores.
O luto me desintegrara, o que poderia me recuperar? Eu tinha bastante consciência do
que havia ocorrido e das minhas potencialidades, por isso não se tratava de uma questão de
ampliação de consciência, precisava de alguma outra coisa, contudo não sabia o que era, embora
intuísse que a arteterapia poderia mostrar-se um caminho.
Hoje, no momento em que escrevo, quase três anos depois, sei que precisava de novas
imagens. Estava fixada na imagem de uma grande perda. Um trauma não é superado no nível
da consciência, apenas novas imagens permitiriam a criação de novas possibilidades. Minha
alma precisava de alimento e a arte é uma espécie de alimento para a alma.
Um trabalho arteterapêutico é um trabalho com imagens, mesmo o movimento e o som
trazem imagens, a própria Gestalt se fecha em imagens. E esta capacidade de criar imagens e
de simbolizar -pontos essenciais para a arteterapia- têm grande potencial de transformação e
cura. Esta visão nos leva a Carl Jung, um psiquiatra, fundador da Psicologia Analítica. O seu
pensamento reconhece a importância da imaginação não apenas para a vida psíquica, mas para
a alma, uma vez que, a seu ver “todo o processo psíquico é uma imagem e um imaginar”.
Este capítulo inicia apresentando alguns elementos da Psicologia Analítica para, em
seguida, discorrer acerca do papel da imaginação e da simbolização para a psique humana,
ideias que fundamentarão o nosso olhar para as estações que serão apresentadas no capítulo 5.
A vida psíquica é um mistério, toda pessoa já se surpreendeu com seus sonhos, suas
fantasias, atos falhos, com as próprias derrapadas éticas, o branco numa prova, mas não só,
também com a doença que instala no corpo e na alma e até mesmo, em outro campo, com as
sincronicidades e as curas que parecem mágicas.
Há milênios, a filosofia ocidental, concentra-se no logos para pensar o humano, a
racionalidade, que possibilita o conhecimento; uma visão limitada, por certo, porque o ser
humano é muito mais do que sua racionalidade, ele não apenas sente, se emociona, mas também
imagina e cria mundos e moradas, relacionamentos, viagens e sua própria vida.
No início do século XX, contrariando a ideia corrente a partir do Iluminismo de que o
humano tudo pode conhecer, Freud lançou as bases da psicanálise, ao postular a ideia da
existência do inconsciente, como uma parte submersa de um iceberg, um lugar onde ficariam
armazenadas as memórias reprimidas, que escapariam para a consciência, sorrateiramente,
através de atos falhos, chistes e/ou sonhos. Assim, toda a psicologia da profundidade vai se
estruturar nessa distinção, entre consciente e inconsciente.
Jung, um médico de formação, que participou do círculo freudiano, com o qual rompe,
identifica que, em nossa vida psíquica, participam imagens de um repertório comum à
humanidade; esta ideia surge a partir da observação das imagens de seus pacientes, mas também
ao incorporar as suas próprias. Profundo estudioso, leitor de filosofia desde a adolescência,
assentou sua teoria no material imagético, que congrega mitos do ocidente e do oriente, a
alquimia e o I Ching, entre outros.
Jung vislumbrou a existência de estruturas universais na mente humana, tal como as
existentes no corpo humano que nos levariam a compartilhar imagens, não só com todos os
povos do mundo, mas também com os homens e as mulheres das cavernas, pois elas teriam
uma dimensão arquetípica. A perspectiva desta partilha imagética permitiu-lhe formular a
hipótese da existência de um inconsciente coletivo.
Hillman, o primeiro diretor do Instituto Junguiano de Zurich, aponta que Jung deu uma
resposta diferente ao “Conhece-te a ti mesmo”. Nesse sentido, com Jung, a necessidade
psicológica mais persistente de nossa cultura, ampliou-se passando a significar um
conhecimento arquetípico (2010).
Os elementos estruturais do inconsciente coletivo recebem de Jung a denominação de
“arquétipos” ou “imagens primordiais”; os arquétipos habitariam o inconsciente coletivo, ao
passo que a memória pessoal estaria alojada no inconsciente pessoal de cada sujeito
(NEUMANN, 2006).
2
Informação oral Ginette Paris (traduzido) - Basta de teoria! Vamos falar sobre a prática da Psicologia
Arquetípica https://www.youtube.com/watch?v=5spmDucRPwg&t=2515s
4.4 A vida simbólica
3
Rudolf Otto (2007) em seu livro O Sagrado propõe o termo numinoso para se referir ao conjunto de experiências,
cuja manifestação seria a expressão de que algo não pode ser observado ou apreendido diretamente, escapando ao
raciocínio lógico, muito embora sua presença pode ser arrebatadora, ligando-as ao sagrado. Jung se apropria deste
termo, contudo identifica o numinoso como uma experiência para além do sagrado. “Em Jung, a experiência do
numinoso abrange também a vida cotidiana e natural, expressando-se não apenas no que é comumente chamado
de religião, mas também nos movimentos sociais e na experiência individual como, por exemplo, num transtorno
mental ou numa inspiração criativa” (CECCON e HOLANDA, 2012, p. 75).
potencialidades, bem como nossas dívidas e até autoenganos, aspectos que frequentemente
reclamam a nossa atenção e não lhe damos ouvidos, mantendo-os distante de nossa consciência.
Jacoby lembra que Jung chamava a o símbolo de “transformador psíquico de energia”,
enfatizando seu caráter eminentemente “de cura”, sua potencialidade de restaurar a inteireza,
bem como a saúde (2016, 119).
Para finalizar esta parte, apenas gostaria de destacar que novos símbolos precisam
cultivo, ou seja, mais do que nosso olhar simpático quando emergem, eles são exigentes,
requisitam nossa dedicação e nosso compromisso com aquilo que emerge. Ao iniciarmos uma
relação com as nossas imagens psíquicas, passa a existir a possibilidade de transformação e
cura, na medida em que ocorre uma relação mais viva e verdadeira com a nossa alma.
Nesse sentido, como poderá ser observado no capítulo seguinte, acessar as minhas
imagens interiores permitiu-me substituir a ruína pela ideia da criação, a dor pela cor, a
estagnação pela manifestação e assim, paulatinamente, neste cultivo da alma, sair do luto e
vislumbrar uma perspectiva mais ampla da saúde e da própria vida.
5 21 ESTAÇÕES E UM EPÍLOGO
...quando pergunto “Onde está minha alma?” “Como a encontro? O que quer
ela agora?”, a resposta é “volte-se para suas imagens” (HILLMAN, 2010, p.
118).
Figura 12
Figura 13
A atividade requeria selecionar e deixar alguns objetos de fora, ou seja, fazer escolhas,
o que é bem saudável, pois não é tudo que nos faz bem. Perls observa que nem toda fuga é
doentia, pois algumas formas de contato não são saudáveis.
Vejo que encontro o belo na irregularidade, na incerteza, da forma que se forma sem
previsão ou controle, aceitando o que sai.
Figura 14
Figura 15
As nossas mãos nos ligam diretamente ao nosso ser e à nossa história, às nossas marcas,
aquelas inscritas no nosso DNA e as que deixamos em tudo o que tocamos. Eu fiz muitos
carimbos em diferentes papeis que, por sua vez, foram utilizados como capas de caderno ou
ficaram expostos, como uma forma de me recordar quem eu era.
A mão, numa perspectiva simbólica, representa a ideia de atividade, potência e domínio.
Expressões como “tomar as rédeas nas mãos” e “abrir mão de” têm o sentido corrente de
começar ou abandonar alguma coisa. Convém se lembrar de que a palavra manifestação tem a
mesma raiz da palavra mão (CHEVALIER, 1986).
Estação 5- Reconfigurar
Para me lembrar quem sou e o que gosto. Ficou assim no mural do meu quarto por muito
tempo.
Figura 19
Em muitas vilas, na África, quando uma pessoa adoece, perde seu rumo ou entra em
confusão, ela vai ser colocada sob sua árvore, todos têm uma, e toda a comunidade
para o que está fazendo para cantar a música daquela pessoa, aquela que lhe foi
entregue no momento de seu nascimento. Isto até que ela se reestabeleça.
Figura 20
Materiais: flores.
Proposta: confeccionar um arranjo floral.
A prática consistia em identificar as travas em nossa vida e propor uma prática para lidar
com este desafio. A experiência foi realizada em dupla com uma amiga da turma que fez a
proposta.
Após terminado, desenhar num papel as emoções despertadas na confecção do arranjo.
Eu desenhei pequenas explosões multicoloridas que havia sentido. Frustrei-me com o resultado,
mas, me percebi sem vontade, nem energia para continuar ou mesmo refazê-lo.
Ao contar a história africana do começo para minha parceira, percebi que preciso ouvir
o meu som para me reconectar com a minha alma. A prática me permitiu uma reconexão com
as flores, algo que sempre gostei e havia esquecido, e ver que minha energia já brotava, contudo,
estava longe de ser um fluxo vigoroso e contínuo.
Figura 21
Estação 8- A travessia do deserto ou ano em que eu renasci
Proposta:
1. Revisitar como foi o ano de 2019.
2. O que se espera para 2020?
3. Escrever uma mensagem com desejos para o ano novo
4. Cada colega deixou suas mensagens nos cartões das amigas da turma.
.
Para representar 2019, desenhei um deserto e uma árvore azul brilhante, que havia visto
em uma meditação naquela semana, uma fogueira muito sem graça, montanhas, céu azul e aves
voando. Representei a minha dor, o deserto, a paralização, o nada, a falta de fé, mas também
uma imagem do ano que voltei a ter sensações. Recebeu o título A travessia do deserto ou ano
em que eu renasci.
O refrão da música do Belchior “Presentemente posso me considerar um sujeito de sorte
(...), Deus é brasileiro e anda do meu lado, assim já não posso sofrer do ano passado, tenho
sangrado demais, tenho chorado pra cachorro, no ano passado eu morri, mas este ano eu não
morro ...”, ressoava em meus ouvidos.
As lindas mensagens deixadas no cartão falam de força, brilho, sabedoria, inteligência,
sagacidade, energia. Na leitura sinto certo estranhamento, pois sei que isto me pertence, mas
não sei onde está, não consigo acessá-las. Eu ainda estava na travessia daquele deserto, deserto,
porque a dor seca tudo; na depressão, a vida fica desvitalizada e o mundo vira um deserto.
Figuras 23,24 e 25
Proposta 6: exposição.
Título: Tudo isso sou Eu!
Forte me ver nisso tudo!
Forte me ver de muitos ângulos!
Forte ver também todos eles me olhando!
Legal dizer:
Eu que fiz!
Eu que abri essas portas!
Eu que construí esses caminhos!
Eu que cortei essas grades e caminhei por cima disso tudo!
Eu que me recriei.
Figura 26
Dentro da máscara, meu lado sombra me surpreende, pensei que encontraria dor e
melancolia, mas percebo tranquilidade e delicadeza, identifico poesia e beleza.
Esta prática remete a dois conceitos da psicologia analítica, sombra e persona, conceitos que
são como dois irmãos, um estudo em contrastes observa Stein (2006).
O que a consciência do ego rejeita torna-se sombra; o que ela positivamente aceita,
aquilo com que se identifica e absorve em si, torna-se parte integrante de si mesma e da persona.
A personalidade da sombra não está visível e só aparece em ocasiões especiais. O mundo
ignora, em maior ou menor grau, a existência dessa pessoa. A persona está em muito mais
evidência. Ela desempenha um papel oficial, cotidiano de adaptação ao mundo social.
Um dos fatores psíquicos inconscientes que o ego não pode controlar é a sombra. De
fato, o ego, usualmente, não possui sequer consciência de que projeta uma sombra. Sendo
inconsciente, a sombra aparece ao ser projetada em outros. Se uma pessoa rechaça
completamente a sombra, sua vida pode parecer correta, mas está terrivelmente incompleta.
Figura 27
Representei a minha vida dentro de quatro paredes, com a sensação de que a vida estava
correndo fora.
Na sequência, representar nossos recursos para atravessar o momento.
Figura 28 Cozinhando
Figura 34
Um anis estrelado foi o ponto de partida. Eu havia planejado uma proposta, contudo o
guache aguado não obedeceu, ele fluiu. Trabalhar com os materiais fluidos leva a perceber
como lidamos com o imprevisto, o que não se controla.
O meu trabalho falava sobre a transformação. Uma estrela do mar solitária que
caminhou e se transformou. Fico bem satisfeita com o resultado.
O exercício levou-me a pensar que precisava aceitar e trabalhar com o material que a
vida me dá e me abrir para o novo.
Estação 13 - transtornos
Proposta: expressar plasticamente alguns transtornos psíquicos.
Nesse momento eu registrei a depressão. Pude criar uma expressão para o que havia
vivido.
Figuras 35 e 36 - Depressão
O jovem está descascado, podado, sem braços, sem mãos e sua cabeça tem forma de
capacete. Qual estratégia de enfrentamento? Na reconfiguração, a escultura ganhou braços.
Mãos à obra e asas à imaginação, para tirar o peso da cabeça.
Gostei da escultura e da foto, que retrata o “novo normal”, a vida por trás das telas,
devido à pandemia.
Vi muitas águas, vi areia, um rio, uma cachoeira descendo, uma ponte e um sujeito
atravessando, já quase chegando ao outro lado.
Estação 17 - movimento
Material: argila
Proposta: A partir das dançarinas de Degas, escolher duas imagens, vivê-las no corpo e depois
expressar a nossa própria bailarina na argila.
Minha bailarina queria rodopiar, não queria ficar em nenhuma posição estática. A argila
dançou nas minhas mãos e meu ser também. Vivenciei a dança e com a argila formamos uma
união. Foi uma delícia, até que o movimento parou e a dançarina descansou. Senti aquilo que
os escultores contam; muitos dizem que eles não criam, mas revelam o que o material contém.
Eu fazia a vontade da argila.
Estação 18 - Renovação
Proposta: escolher uma roupa pessoal e transformá-la.
Saiu do fundo do baú um vestido carregado de lembranças, foi bem dolorido olhá-lo,
mas senti que estava na hora de fazer alguma coisa com ele, nem que fosse picotá-lo. O tecido
ficou semanas parado em um sofá; em certo momento, comecei a descosturá-lo, separando a
blusa da saia, passei dias cortando ponto a ponto, porque as duas partes estavam bem presas.
Acredito que nesse cortar, cortei um tanto da minha dor. Gostei bastante do resultado.
Percebo o trabalho de transformação interna na transformação de nossas roupas.
Figura 40 Renovada
Figura 41
Estação 20 - Renascimento
Proposta: trazer uma música que evocasse as perdas sofridas e criar um travesseiro.
Eu ouço Como la cigarra, na voz de Mercedes Sosa.
Despues de um año bajo la tierra,
a mi própio entierro fui sola y llorando.
Igual que sobreviviente que vuelve de la guerra…
Reuni retalhos de vestidos queridos, meias que só restava um pé, alguns bichos de
pelúcia desconjuntados, igual a como eu fiquei, me vi em cada pedaço. Foi bom olhar e reunir
essas partes. Para fechá-lo coloquei fitas de cetim colorido. Ficou gostoso de me apoiar!
No compartilhamento, uma colega colocou, “Eu fui criada para ser forte!” Me reconheci
nesta fala. Eu também fui criada para ser forte, contudo, há um tempo, descobri que há grande
força em poder sentir esses sentimentos dolorosos; ser forte não é não sentir, encapsular a
sensibilidade, mas poder sentir.
Foi das experiências mais fortes.
Atividade 2: com a flores e folhas secas fazer uma criação que remeta à minha música.
Ao som de diversas músicas da trilha sonora de minha vida, como Andares, um poema
de Antonio Machado, musicado por Joan Manuel Serrat, Amarelo de Belchior na versão
remoçada do Emicida, Quereres de Caetano Veloso, entre outras.
Peguei no jardim flores, raízes e galhos secos. Usei o verso uma folha usada, vejo que
lhe falta um pedaço. Escolhi esse papel para reciclar mesmo, “falta um pedaço em mim
também”, pensei. A raiz seca da orquídea subiu, tornou-se tronco, uma folha transformou-se
em barco, a cor vermelha me lembrava que “tenho sangrado demais”; o sangue quis fluir,
navegar e tornar-se flor. Dancei muito ao fazer o trabalho, fiz cair uma chuva de folhas secas,
me remeteram à chuva fertilizante.
Vejo uma planta nascendo num jardim e um banco para as pessoas se sentarem.
Penso que os pés de meia entraram no travesseiro porque já não queriam serem tão
sozinhos. Ao ver a minha representação do ciclo, senti a vitória da semente, um reconhecimento
do mistério morte-vida. Reconhecer o mistério morte-vida, foi uma das últimas tarefas de
Hércules na mítica. Agora estou viva.
Estação 21 –Conversa entre duas Senhoras
Figuras 44 e 45
Proposta: Cada aluna da turma ficou responsável por produzir um vídeo abordando alguns
elementos do conteúdo do curso de Arteterapia, que contribuíram para a sua formação com
vistas a apresentá-lo à turma no módulo final que ocorreria no último final de semana de outubro
de 2021.
A partir de fotos da minha produção e das minhas colegas ao longo do curso, tanto
presenciais como online, produzi um vídeo “A vida em seus ciclos. Um ponto, muitas linhas”.
Em 3 minutos e 20 segundos, recuperei ao começo de nossa trajetória no Sedes, o ponto, o
nosso Marco Zero, abordei os ciclos da vida, com sua beleza e seus desafios, apresentando no
final, todas as conversas da Vida com a Morte. As imagens se sucedem ao som da música Trem
Bala de Ana Vilela, na voz de Luiza Possi, lembrando que a vida se cria e recria sempre de
múltiplas e, por vezes, inusitadas formas.
Esta produção trabalha a consciência da preciosidade da vida, afinal “somos todos
passageiros de um trem prestes a partir”. Uma consciência de uma mulher que ao longo de sus
53 anos já andou por diferentes caminhos, viu muita escuridão e muitos amanheceres e muita
água passar por baixo da ponte.
Escolhi o tema dos ciclos da vida para marcar o fechamento de um ciclo, o de aluna do
curso de Arteterapia, e para iniciar outro, o de profissinal, para assim me dedicar às artes dos
guardiões do templo.
Os ciclos como aquela serpente que serpenteia, volta ao ponto inicial, mas já não é mais
o ponto inicial. Toda chegada inaugura uma despedida, porque todo final é também um começo.
Nesta jornada, adquiri muita consciência da vida, de seus ciclos e das artes da
transformação, espontânea tal como a que ocorre na natureza, ou guiada por objetivos
terapêuticos.
Me despeço deste ciclo bem diferente do que comecei, sinto gratidão por ter vivido tudo
o que vivi, sigo com a alma desperta para seguir na jornada com vigor e alegria, levando a quem
precisar a grande ferramenta da arte como terapia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
BOWLBY, John. Apego e perda, Vol 1. Apego: a natureza do vínculo (2a ed). São Paulo:
Martins Fontes, 1990.
_____ Apego e perda, Vol. 2. Separação: angústia e raiva . São Paulo: Martins Fontes 1998a.
_____. Apego e Perda, Vol 3. Perda: tristeza e depressão. São Paulo: Martins Fontes, 1998b.
CECCON, R, HOLANDA, A.F. Interlocução entre Rudolf Otto, Carl Gustav Jung e Victor,
White, Arquivos Brasileiros de Psicologia, Rio de Janeiro, v. 64, n. 1, p. 63-77, abr. 2012.
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CIORNAI, S. (Org.). Percursos em Arteterapia, São Paulo, Summus Editorial, 2004 (vol. 1).
JACOBI, Jolande. Complexo, Arquétipo e Símbolo na Psicologia de C.G. Jung. São Paulo:
Editora Vozes,2016
KANDINSKY, Wassily. Do espiritual na arte. São Paulo, Martins Fontes Editora, 1996.
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KÜBLER-ROSS, E. Sobre a morte e o morrer. São Paulo, Martins Fontes Editora, 2019.
KAGIN, SANDRA, LUSEBRINK Vija, The Arts in Psychotherapy. vol. 5, pp.171-180,
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PARIS, Ginnete. Ginette Paris (traduzido) - Basta de teoria! Vamos falar sobre a prática
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SOUZA, Ana Célia Rodrigues de. Morte e Luto. Curitiba: Appris editora, 2018.