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INSTITUTO SEDES SAPIENTIAE

UM LUTO, 21 ESTAÇÕES:
UMA JORNADA DE CURA ATRAVÉS DA ARTETERAPIA

Verónica Aravena Cortes

São Paulo
2021
VERÓNICA ARAVENA CORTES

UM LUTO, 21 ESTAÇÕES:
UMA JORNADA DE CURA ATRAVÉS DA ARTETERAPIA
,

Monografia apresentada como requisito parcial


para obtenção do certificado de conclusão do
curso de Especialização em Arteterapia.
:
Orientadora Orientação: Profa. Iraci Saviani
Coleitora: Profa. Eloisa Fagali

São Paulo
2021
Dedico este trabalho a Valério Igor Príncipe Victorino (in
memorian), por tudo o que vivemos juntos, e a Renata
Aravena Victorino, nossa florzinha, que chegou para
renovar as esperanças e o amor.
AGRADECIMENTOS

Não fazemos nada sozinhos, as coisas boas são sempre feitas com muitas trocas e
parcerias, por isso, há muito a agradecer.
Agradeço à minha irmã e parceira eterna, Claudia Aravena Cortes e a minha mãe,
Patrícia Cortes, que me iniciou no universo das artes, a meu pai Luis Alfredo Aravena Medel
(in memorian), que embora discordando, sempre curtiu tudo o que fiz.
Ao clã Victorino, minha família no Brasil, D. Célia, a matriarca, às tias Cibele, Bi e
Thais Victorino e aos tios Alfeu e Laércio, por todo o apoio e pela amorosa acolhida.
A todas as professoras do curso de Arteterapia do Instituto Sedes Sapientiae, pelo saber
compartilhado, principalmente à Iraci Saviani, orientadora deste trabalho, pelas suas
contagiantes risadas e preciosas dicas. Dedico também um agradecimento especial à professora
a Eloisa Fagali, coleitora deste estudo e minha supervisora de estágio, por sua leitura atenta,
mas sobretudo, pelas saborosas trocas ao longo do curso e do estágio.
Às minhas amigas do curso de Arteterapia, Tatiana, Viviane, Márcia, Cristina, Ana
Letícia, Marília, Mariana, Carolina (de Natal), Adriane, Roberta, Aninha (de Goiás) e Lais, com
as quais, entre risos e lágrimas, compartilhei tantos saberes e conformamos uma valorosa teia,
que me permitiu atravessar a desafiadora pandemia.
A amigas eternar, que viabilizaram o estágio em plena pandemia, Zildete Araújo e
Miriam Lozano, bem como a todas as adolescentes que participaram Oficinas
Arteterapêuticas Heróis e Deuses para pandemia.
Aos amigos do Mipa, Mitologia e Psicologia Analítica, da SBPA, com os quais partilhei,
em 2018, o estudo de Os Perfumes, de Orfeu, e pude encontrar um precioso conforto e a
delicada nutrição para atravessar o período mais doloroso da minha visita ao Hades.
A Sueli Mizumoto, querida amiga/irmã de tantas baladas, te agradeço pelo teu ombro
amigo para todas as horas.
Às Benzadeusas, amigas/irmãs de tantos caminhos, por me ajudarem a reunir meus
caquinhos e me fortalecer, pelas risadas, pelos sonhos, pelos saberes, pela união no feminino,
pela esperança.
Para finalizar esta parte, um agradecimento a todos os amigos do Estrela do Alvorada
pela rede que formamos nestes desafiadores momentos pandêmicos e pelo espaço para o
desenvolvimento dos meus estudos alquímicos e arteterapêuticos, em especial, a querida irmã
de tantas jornadas, Alacanje Salles Marcondes.
RESUMO

A morte é desse tipo de experiência da qual pouco se fala, como se o silêncio pudesse evitá-la,
podemos não gostar, mas ela marca o nosso existir e este é o ponto de partida desta monografia.
O trabalho apresenta aquilo que segue a morte de uma pessoa querida, o luto, e o longo exercício
de sua elaboração. A vivência deste luto é apresentada aqui com todas as cores, percepções e
atitudes -a dor, a raiva, o silêncio, a depressão-, buscando aproximar o leitor desta vivência,
devido à perda de uma forte relação de apego. Para fundamentar as discussões, inicialmente,
apresentamos as ideias de Kübler-Ross e Bowlby referentes ao luto, em seguida, os referenciais
da Gestalterapia, que discorrem acerca a importância da experiência para a criação do ser, e da
Psicologia Analítica, para debater o valor do trabalho com imaginação e as imagens para a vida
psíquica e para a alma. Para encerrar apresentamos os trabalhos desenvolvido ao longo do curso
de Arteterapia no Instituto Sedes Sapientiae, que compõem as 21 estações de uma jornada de
elaboração e cura deste luto. As coisas se transformam, para viver é preciso saber morrer e, com
este saber, fecho um ciclo.
Palavras-chave:
Arteterapia, Gestalterapia, Psicologia Analítica, luto, depressão.

ABSTRACT

GRIVING, 21 SEASONS.
A HEALING JOURNEY THROUGH ARTETHERAPY

Death is an experience that is little talked about as if silence could avoid it. However, death
marks out our existence even when we do not like it. This work is about what comes after the
death of a loved one: the grieving process and its phases. The experience of this grief is
approached in this work with all the shades, perceptions, and attitudes -pain, anger, silence,
depression-, aiming to bring the readers closer to their experience, due to the loss of a strong
attachment relationship. To support the discussions, initially, we present the ideas of Kübler-
Ross and Bowlby regarding grief, followed by the references of Gestalt Therapy, which discuss
the importance of experience for the construction of the being. Additionally, reference about
Analytical Psychology is examined, to debate the value from working with imagination and
images to psychic life and the soul. To conclude, we present the works developed during the
Art Therapy course at Instituto Sedes Sapientiae, which make up the 21 seasons of a journey of
development and healing of this grief. Things change; to live it is necessary to know how to die
and, with this knowledge, I close a cycle.
Key-Words: Gestalt Therapy, Art Therapy, Grief, Analytical Psychology, depression
Aquele que não ‘morre’ várias vezes, não ‘nasce’ para novas vidas e,
portanto, fica morto. Aquele que não ‘morrer’ várias vezes em sua vida,
seguramente não a viveu (VARGAS, 1987, p.68)
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 8
1 A VIDA SOB O SIGNO DO LUTO 10
1.1 De repente, a morte 10
1.2 A vivência do luto 12
1.3 A luto na teoria 14
1.4 Nas águas da depressão 17

2 A ARTE DA RECRIAÇÃO SOB A ÓTICA GESTÁLTICA 19


2.1 O mistério da Criação 19
2.2 Arteterapia: aproximações 21
2.3 Psicologia da Gestalt e arteterapia 22
2.4 Elementos da arteterapia gestáltica 23

3 NA TRILHA DA RECONEXÃO – MARCO ZERO 25


3.1 No início, o ponto 25
3.2 Imagens da noite escura 27

4 IMAGINAÇÃO - ELEMENTOS DA PSICOLOGIA ANALÍTICA 31


4.1 O que pode superar um trauma? 31
4.2 Os arquétipos e o inconsciente coletivo 32
4.3 Alma e imagem 33
4.4 A vida simbólica 35

5 21 ESTAÇÕES E UM EPÍLOGO 37
CONSIDERAÇÕES FINAIS 56
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 58
INTRODUÇÃO
Do tecido da minha vida

Há coisas que precisam ser feitas, é preciso e pronto. Eu já sabia há quase 10 anos que
precisaria entrar neste clã, o clã dos que utilizam a arte como terapia, mas foi um longo percurso
até chegar aqui.
Quando buscava um lugar para atuar no mundo, ainda jovem, acreditava com toda
convicção que boa parte das mazelas da humanidade se devia ao desconhecimento do
sofrimento e à falta de consciência. Assim cursei jornalismo para trabalhar levando a
informação a quem não possuía; quase ao mesmo tempo, buscando entender o que faz desse
Homo sapiens um humano, estudei filosofia. Era uma tentativa de buscar sentido a este mundo
tão caótico, desigual e, não raro, cruel, acreditando ingenuamente no poder da consciência.
Estudei na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, um curso voltado ao
pensamento ocidental, pautado pelo paradigma cartesiano; Descartes apresenta-se como uma
herança inescapável pela sua divisão corpo e alma, mas sobretudo, ao ancorar a existência
humana no pensamento. Nunca fui filósofa, mas o longo tempo passado junto a Aristóteles,
Kant, Maquiavel, Adorno e Hanna Arendt, entre outros, levaram-me a conhecer uma
multiplicidade de perspectivas para o “Conhece-te a ti mesmo”, a inscrição do Oráculo de
Delfos.
Com o passar dos anos, rumei para a Sociologia e os Estudos Culturais, para a cidade
e seus grupos, buscando compreender o papel da cultura e a dinâmica da conformação da
identidade, que, por sua vez, me levaram à importância do poder simbólico. Nesse interim
passei a me dedicar aos estudos do feminino, que divulgava semanalmente em meu blog, O Clã
das Lobas, e participei do MIPA, Mitologia e Psicologia Analítica, na Sociedade Brasileira de
Psicologia Analítica, este último, levou-me a perceber a necessidade de me juntar a uma nova
turma.
Depois de duas décadas de vida acadêmica, navegando pelos cursos de Comunicação
e Sociologia, começariam os estudos de psicologia. Já sabendo que eles forneceriam formação
para trabalhar nessa área, mas que precisaria completá-la, porque já havia identificado a
importância da arte como ferramentas para mediar o processo de cura, principalmente, no
contato com as dimensões criadoras da existência, pois nossa própria vida talvez seja a nossa
maior criação.
O curso de Arteterapia possibilitou muitos belos encontros, os mais preciosos talvez
sejam com a Gestalt e com os recursos expressivos para fazer alma.
*
Em 2019, ingresso no curso de Arteterapia do Sedes Sapietiae, com sentimentos
ambíguos, pois era um curso há muito desejado, contudo vivenciava uma profunda dor. Estava
em pleno luto pela passagem do meu marido, meu amor e companheiro de vida; naquele
momento nada daquilo que havia construído fazia sentido para mim. Esta perda havia me
causado um trauma profundo, minha vida havia desmoronado, estava sem chão, fé, nem
esperança, uma sombra do que havia sido.
Este trabalho discorre sobre um processo arteterapêutico na elaboração de um luto,
meu luto. Nele, o leitor acompanha não apenas um aprendizado da utilização dos recursos
expressivos, mas também uma jornada de cura. Ao colocar a mão na massa, nas tintas, no papel,
na argila, cortando, misturando, amassando, lapidando fui elaborando uma profunda dor,
ressignificando uma perda e, a partir das novas imagens, surgiram novas possibilidades. Para
fundamentá-lo utilizamos o referencial da Gestalterapia e a Psicologia Analítica, de um lado, a
experiência no aqui e agora, de outro, o trabalho com a imaginação e as imagens para produzir
o novo.
Este relato busca contribuir à bibliografia sobre a elaboração do luto, mas também
sobre a depressão e a superação de traumas psíquicos, pois um trauma não é superado pela
tomada ou ampliação da consciência, mas pela substituição das antigas imagens por novas. Eis
a potência da arteterapia.
1 A VIDA SOB O SIGNO DO LUTO

Como la cigarra
Tantas veces me mataron,
Tantas veces me morí,
Sin embargo estoy aquí
Resucitando.
Gracias doy a la desgracia
Y a la mano con puñal,
Porque me mató tan mal,
Y seguí cantando.

Maria Helena Walsh (cantada por Mercedes Sosa)

1.1 De repente, a morte

Júlio de 2017
Sonhei que estava sozinha numa praia observando no
horizonte um enorme tsunami se aproximando.

A morte, esta senhora, anunciou sua presença numa leitura cartas das tarô em julho de
2017. Era um estudo que fazíamos, meu marido, Igor, e eu, todo fim de semana, pois
gostávamos de receber as mensagens do nosso inconsciente. “Uma viagem pelas cartas do Tarô,
primeiro que tudo, é uma viagem às nossas próprias profundezas. O que quer que encontremos
ao longo do caminho é, au fond, um aspecto do nosso mais profundo e elevado eu” (NICHOLS,
2007, p.18). Naquele dia, não caiu bem, não era a primeira vez naqueles últimos tempos, me
apeguei ao significado da transformação, mas a transformação final é a morte física. Nunca
mais fizemos leitura de tarô juntos.
Quatro anos antes, em 2013, um nódulo no pescoço revelara-se um câncer, o Igor fez
uma cirurgia de retirada de tireoide e duas iodoterapias, ao longo de cinco anos, nunca chegou
a “zerar”, na verdade, não existe zerar, mas existem padrões considerados normais. No seu caso,
estava num nível controlado e estável, de acordo com os exames de rotina. Naquele momento,
o marcador de câncer da tireoide, não mostrava alteração, só que nas imagens apareceram umas
pequenas bolinhas no cérebro.
No dia 11 de outubro, às vésperas das celebrações dos 300 anos do encontro da imagem
de Nossa Senhora de Aparecida no rio Paraíba do Sul, visitamos a Basílica; como milhares de
peregrinos que chegavam para participar dos festejos. Na chegada, um lindo arco íris envolvia
o templo, pareceu-nos um bom augúrio para o porvir.
A cirurgia à laser no cérebro estava marcada para a semana seguinte, um procedimento
muito preciso, ele voltou para casa, naquele momento, ainda havia muita esperança, mas três
dias depois foi internado devido a um tumor de 4 cm no esôfago.
Iniciava-se um intenso convívio hospitalar; as metástases cresciam como um alien
desgovernado e nós entrávamos nessa complicada seara de lutar pela vida, em meio às
contingências do nosso sistema de saúde com suas regras kafqueanas. A cada resultado de
exames, um choque. Eu não conseguia acreditar! Entre entrada e saída de hospitais, ele
começou seu processo de despedida a tudo o que mais gostava na vida; de minha parte, eu
vivenciava duas realidades, acompanhava a seu lado esses momentos rituais e, ao mesmo
tempo, precisava encerrar o ano letivo na Universidade e estar com nossa pequena de quatro
anos que percebia a ausência de seu querido pai. Não me dei conta, mas fiquei dilacerada.
Que destino injusto! Tínhamos tantos planos, uma filha que o amava e precisava muito
dele.
Não foi uma morte abrupta, porque foi anunciada, de alguma forma estava no
horizonte quando se tem um diagnóstico de CA, só que os próprios médicos diziam que não se
morre de CA de tireoide, porque é dos menos agressivos, portanto, é mais lento, mas tampouco
houve um luto antecipatório, pois foi muito rápido.
Como ele não queria publicidade e forte que era, pouca gente ficou sabendo, quis partir
sem fazer alarde, elegante. No dia 21 de dezembro, para que as crianças não perdessem a festa
de Natal, ele partiu e, para mim, a terra se abriu e fui tragada.
- Seja forte!
A frase mais ouvida no enterro. Como a odiei, não tinha nenhuma condição, nem
vontade de estar forte. Cá estava eu, engolida no Tsunami.
1.2 A vivência do luto

Só que este TCC não é para falar da morte, mas sobre a vida sob o luto.
Quando a passagem aconteceu, eu já me sentia amortecida, vendo o que acontecia
como assistindo um filme, sem acreditar.
Tudo o que chegava do mundo externo ficou difícil, estar em nossa casa, dormir no
nosso quarto, levantar, esperar numa fila, pedir ou reter uma informação. Reconheci-me numa
imagem de um filme do Almodóvar, A pele que eu habito. Embora estivesse habitando uma
pele, não vivia em meu corpo.
Fiquei letárgica durante meses, só respirando, mas até respirar doía. Vivi como um
zumbi; via o mundo correndo lá fora, crianças brincando, jovens rindo, casais se beijando,
pessoas trabalhando e tudo tão longe, parecendo correr em outra dimensão. Eu estava em um
outro tempo e espaço, o tempo e espaço da minha dor, de ruminar uma ausência; eu só queria
estar com a memória do meu marido perdido, só isso fazia sentido.
Senti muita raiva do sistema de saúde, dos médicos indiferentes até da psicanalista
dele. Eu sugeri para o Igor fazer terapia, afinal de contas a experiência estava forte. Ele foi só
a três sessões, não prosseguiu, depois soube que, na terapia, havia entendido o câncer como
produto de sua pulsão de morte -a explicação na linha psicanalítica- e se sentia culpado por essa
pulsão havê-lo dominado a ponto de formar um câncer. Eu também passei a me sentir culpada,
pensando “Por que eu fui te indicar terapia? Poderia ter te poupado esse sofrimento.”
Não deixei de comer, por puro sentido de obrigação de sobreviver, porque nada tinha
sabor, nem os sabores que tanto eu gostava.
O som incomodava muito; sentia gralhas falando em lugar de pessoas. Ouvir música
tornou-se impossível. Nossa casa sempre tinha alguma trilha sonora de qualidade e alguns
programas no rádio, como o saudoso Boechat, pela manhã. Ficou impossível ouvir até as
propagandas.
Silenciei, algo ficou engasgado na garganta. A psicossomática aponta que o trauma
silencia, a libido se volta para dentro, não sobrando energia para as coisas do mundo. Na
perspectiva da psicologia analítica, a experiência numinosa silencia.
A cada coisa que eu encontrava em nossa casa, uma dor, seus óculos, sua máquina
fotográfica, seus CDs. Precisando reconfigurar a organização da casa, antes havia uma divisão
de tarefas, um cuidava da Renata, outro cozinhava, limpava e vice verso. De repente, eu
precisava tomar conta de tudo e eu tão sem energia.
Evitei o espelho, porque o encontro se tornava difícil, não me reconhecia, só via
amargura. Tirei todos os meus retratos na parede, pois ver os meus sorrisos me parecia um
indigesto escárnio; achei que nunca voltaria a sorrir.
Sentia-me profundamente sozinha. Por mais que houvesse pessoas próximas, ajudando
a tocar a vida, elas estavam muito longe, nem podiam imaginar o que se passava em meu
interior. Só quem passou pelo luto pode saber o que se sente.
Voltar ao trabalho, em fevereiro, me levou a vestir a máscara de professora e sair do
meu refúgio, me fez bem, mas em minutos contados, apenas dar a aula e voltar para casa, sem
conseguir ficar na sala de professores pelo perigo de ter que conversar com alguém. Havia
sempre alguém que perguntava:
- Tudo bem?
Convenhamos que tudo bem, não é uma pergunta que se faz para alguém de luto.
Tão grande como a tristeza, era a raiva, ver que meus nossos planos não se
concretizarão, você não verá nossa filha crescer. Fui a última das amigas a casar e a primeira a
ficar viúva, como assim? Injusto! Não gosto de sentir essa raiva gigantesca, mas eu sinto. Eu
dizia “você não tinha permissão de partir”. Que onipotência! Me senti levando uma terrível
rasteira.
Com a passagem do Igor, experienciei uma dor de uma intensidade que jamais pensei
que fosse viver e suportar, uma dor que não cessava e era potencializada naqueles dias que antes
eram celebrações, seu aniversário, dia do nosso casamento, Natal. Mas havia outras dores, como
a de não ter me dado conta, não haver te ajudado mais.
Nossa filhota passou meses perguntando sobre você, as estrelas do céu foram o melhor
destino que pudemos encontrar para explicar a morte a uma menina de quatro anos; ela insistiu
durante meses para construir uma pipa, um balão, um foguete, o que fosse para te buscar no lá
céu. Ela queria tanto te trazer de volta! Isso dilacerava ainda mais meu coração.
1.3 O luto na teoria

Como médico, estou convencido de que é mais higiênico- se assim posso dizer -olhar
a morte como a meta para a qual devemos sempre tender, e que voltar-se contra ela é
algo de anormal e doentio que priva a segunda metade da vida de seu objetivo e
sentido (JUNG, 1984 § 792).

Comecei a narrativa por um relato pessoal, buscando aproximar o leitor a este universo
tão distante, principalmente, em nossa sociedade, na qual a vida deixou de ser percebida em
função de seus ciclos, mas numa ascendente só de conquistas, sem perdas, na qual as
transformações são pouco entendidas e, menos ainda, ritualizadas e a própria morte, não só
adiada e evitada, mas também sentida como uma derrota:

(...) a morte deixou de ser o fenômeno natural e necessário, tornando-se um fracasso,


sinal de impotência que precisa ser esquecida. Hoje, a boa morte é aquela que não é
percebida e chega-se ao ponto de não se saber quando ela ocorre (SOUSA, 2018,
p.75).

Em muitas épocas e lugares não é sequer nomeada, para não atraí-la.


Existem diversas explicações teóricas sobre as atitudes diante da morte, o francês
Phillipe Áries (2012) tornou-se uma grande referência ao escrever A Morte no ocidente, mas há
outros autores que também enveredaram pelo tema como Kübler-Ross (2019), Bowlby (1990,
1998a, 1998b) e, no Brasil, Kovacs (1992), apenas para citar alguns; aqui apresentaremos
sucintamente algumas ideias para entender o processo do luto.
Kübler-Ross (2019) observa que quanto mais a ciência avança, parece que mais
negamos a realidade da morte. Em Sobre a morte e o morrer, um trabalho elaborado a partir de
sua experiência na área médica, a pesquisadora inovou ao apresentar a voz das próprias pessoas
que estavam no limiar da vida. Os relatos colhidos permitiram-lhe identificar diferentes estágios
e atitudes perante a própria morte:
1. Negação e isolamento. Muitos não aceitam o final da vida e imaginam-se vítimas de um
erro. Trata-se de uma defesa temporária, logo substituída por uma aceitação parcial.
2. Raiva. Não raro, aparece uma revolta;
3. Barganha. Também surge uma tentativa de negociação para se adiar o que vem pela
frente, havendo promessas até irrealizáveis.
4. Depressão. Aqui a autora faz uma diferenciação entre uma depressão reativa a uma
depressão preparatória. A primeira acontece devido às consequências que o próprio
adoecimento traz no que se refere às perdas, seja de uma parte do corpo, de padrão um social
ou do próprio controle da vida cotidiana; já a segunda é um instrumento de preparação da perda
de todos os objetos amados;
5. Aceitação. Quando há o tempo necessário, uma pessoa pode atingir um estágio que não
mais sente nem raiva, nem depressão, é como se a dor se tivesse desvanecido, a luta tivesse
cessado e fosse chegado o momento do “repouso derradeiro antes da longa viagem”.
(KÜBLER-ROSS, 2019, p. 118)
Trata-se de um esquema para se entender o complexo fenômeno, não de uma trajetória
linear. Quem morre passaria por boa parte de estas fases, assim como quem fica, em sua
vivência de luto.
O luto configura-se como um processo normal e esperado de elaboração psíquica e
enfrentamento da vivência de perdas significativas que implica a transformação e
ressignificação da relação com o que foi perdido.
Na minha experiência, as quatro primeiras fases se misturaram. Embora não houvesse
negado, nem quis barganhar, porque nunca achei que se pode negociar com os deuses, houve
tudo, isolamento, a raiva, depressão. Aceitação, com muito custo, depois de anos.
O estabelecimento do vínculo foi o grande tema de Bowlby (1990), este autor construiu
uma significativa teoria sobre o apego, o que o levou a refletir também sobre as reações diante
do rompimento de vínculos afetivos, ou seja, de perdas.
Os diferentes tipos de apegos são caracterizados por diferentes formas de segurança,
lembrando que o apego não somente se refere à confiança básica nos outros, mas também à
percepção que o indivíduo tem de seus próprios recursos e do seu sentimento de segurança
interna. Este ponto é bastante importante, uma vez que no luto a percepção dos próprios
recursos fica seriamente abalada. Em sua trilogia, Apego e Perda, Bowlby (1990, 1998a, 1998b)
identifica quatro fases do luto, que não devem ser entendidas como uma sequência cronológica,
mas como padrões de comportamento, que se entrecruzam:
1. A fase de choque. Trata-se de um momento de grande confusão. O enlutado fica perdido
diante da dor que desestrutura, não “sabe” o que sentir ou responder. Podendo haver uma
negação que, juntamente com o isolamento, funcionam como uma estratégia psíquica de
proteção.
2. A fase busca da figura perdida. Nesse momento, a incessante procura e o choro são
mecanismos adaptativos de tentativa de recuperação da vinculação com a figura perdida.
3. A fase de desorganização e desespero. Aqui, o vazio deixado pela ausência fica
perceptível. Somada à dor intensa, acontece uma apatia, dada pela perda de libido, que na
linguagem médica será entendida como depressão.
4. A fase de alguma organização. A vida vai se reorganizando (assim como o espaço
interno) e já cabem novos projetos. Trata-se da fase final do processo de elaboração, na qual o
enlutado está pronto para “reinvestir sua libido em outro objeto”, conforme a psicanálise.
Ocorre em média, dois anos após a morte, contudo varia bastante.
Eu vivi as fases do choque, busca da figura perdida, desorganização e desespero
conjuntamente. A medida que passava o choque, iniciou-se uma lentíssima fase de
reorganização, porque a inércia para permanecer na desorganização junto aos fantasmas é muito
forte, com muitas idas e vindas, que demoraria mais de dois anos em ocorrer.
Quem fica também passa pela experiência de uma morte, mas se trata de uma morte
simbólica. Não há uma morte literal, mas o que era, não é mais, morreu. Numa perspectiva da
psicologia analítica, Souza (2018) em seu livro Morte e luto explica:

Tanto quando perdemos uma pessoa significativa – seja por morte concreta ou
metafórica, isto é, ao rompermos um vínculo afetivo com a pessoa viva- como quando
precisamos revisar pontos de vista em uma situação, ideias a respeito de nós mesmos
ou em ocasiões que frustram nossas expectativas de ordens diversas, se estivermos
dispostos a deixar para atrás o elemento perdido, podendo desapegar e abrir espaço
para o novo, estaremos nos transformando e realizando o processo de luto necessário
decorrente da morte simbólica (SOUSA, 2018, p.78).

Cada transformação implica uma perda ou cada escolha, em algo a ser sacrificado. No
luto, não se trata apenas da perda concreta da pessoa, mas também de sonhos, projetos, ideias,
sentimentos -inclusive a tristeza- que precisam ser enterrados, pois do contrário viram
fantasmas a assombrar com sua fantasmagórica presença, sendo necessário buscar novas
imagens, imaginar novas possibilidades e escolher novas rotas.
O sentido último do aprendizado maior ao longo de nossa existência talvez seja a
vivência da morte simbólica, sendo esta entendida aqui como transformação, mudança de um
estado a outro, que obrigatoriamente implica saber viver o desapego (SOUSA, 2018, p.78).
Desafiadora, mas valorosa missão.
1.4 Nas águas da depressão

Sonho setembro 2018


É noite, conduzia por uma avenida, no Butantan, na direção do
centro, meu carro morre, é bem perigoso ficar no carro, saio dele,
titubeio em abandonar meu querido carro, então começo a caminhar
para voltar à casa, parece que é logo ali, mas caminho muito e não
chego.

A literatura sempre me acompanhou nos melhores e nos piores momentos da minha


vida; logo no início do luto, quando não dormia, lia, só para sair de mim, nisso chegou às minhas
mãos um título da Isabel Allende (2015), O amante Japonês, no qual, após uma desilusão
amorosa, o personagem é enviado ao Japão com a missão de espalhar as cinzas do pai falecido
em 100 templos. Na volta, ele já estava curado. Ao ler isso, percebi que precisaria trilhar uma
longa jornada para me curar e iniciei o meu caderno dos 100 templos. Dele retirei o relato
anteriormente descrito.
O luto me levou a uma profunda depressão com todos os seus sintomas, embotamento,
letargia, insônia, hipersonia, falta de apetite, de concentração, entre tantos outros, e, ainda
demoraria um bom tempo para sair desse lugar, contudo nunca me percebi doente, por isso nem
cogitei qualquer medicação.
Luto não é doença, mas a alma precisa de tempo.
Segundo Kovacs (1992), o traço mais permanente no luto é um sentimento de solidão,
provavelmente, porque o sujeito sai desta dimensão cotidiana regida pelas coordenadas de
tempo e espaço, vai para um universo particular mas também ligado à transcendência e ao
eterno, coordenadas que nos escapam, enquanto o mundo permanece no espaço e tempo do
cotidiano, além disso, trata-se de uma experiência que não cabe em palavras, não podendo ser
compartilhada.
Sempre senti que estava passando por tudo o que precisava passar, pois a perda havia
sido avassaladora. Meu mundo desmoronara e eu precisava elaborar essa perda. Havia ruído
minha confiança no mundo e em mim.
Tal como Bowlby aponta, a dor desestrutura, a confiança do sujeito, nele próprio e na
vida, se esvai, sendo por outro lado, uma experiência incomunicável, solitária, enquanto o
mundo demanda que você esteja “bem”, na verdade, como se nada houvesse ocorrido.
Eu sabia a origem da minha depressão e a considerava legítima, por isso não me sentia
adoecida, contudo, há pessoas que não sabem, nem entendem o que lhes ocorre, só percebem a
depressão, quando ela já está inviabilizando a vida cotidiana, sem entender que há alguma coisa
demandando sua elaboração.
Eu estava no Hades, no reino dos mortos da mítica grega, mas agora precisava voltar,
porque não era onde devia ficar. Foi uma decisão sair daí.
Em certo momento, afirmar a vida torna-se uma escolha consciente. Existem muitas
razões para sentir tristeza, dor, raiva, mas e aí? É onde você quer estar? Vou deixar as mágoas
(más águas) tomarem conta até o afogamento, ou nadar até encontrar um porto, ou pelo menos,
uma prancha. É sempre uma escolha subir ou não na prancha, ou abandonar o carro que já não
serve mais.
Buscando me revigorar, decidi me reestabelecer com tudo aquilo que me fazia bem:
ginástica, tomar sol, voltar a escrever. Passados quatro meses, não me sentia nem um pingo
melhor, percebendo na pele a dificuldade de se voltar da visita ao reino dos mortos, ou seja, de
uma depressão. Na física, há uma lei que descreve a dinâmica do movimento: trata-se da
segunda lei de Newton, quando um objeto anda em certa direção, a força necessária para
inverter o rumo precisa ser maior. Tomo esta metáfora da mecânica para pensar a depressão,
uma vez que uma pessoa nesse quadro não possui energia disponível para mudar o curso ou
qualquer ação.
Neste estado, entrei no curso de arteterapia, seria minha prancha?
2 A ARTE DA RECRIAÇÃO SOB A ÓTICA GESTÁLTICA

Tanto na arte quanto na terapia manifesta-se a capacidade humana de perceber, figurar


e reconfigurar suas relações consigo, com os outros e com o mundo, retirando a
experiência humana da corrente rotineira e por vezes automática do cotidiano,
colocando-a sob luzes novas e estabelecendo novas relações entre seus elementos,
misturando o velho com o novo, o conhecido com o sonhado, o temido com o
vislumbrado, trazendo assim novas integrações, possibilidades e crescimento. Essa
afirmação da centelha de divino em cada um de nós, ou, nas palavras de Paulo Coelho
“o alquimista da própria vida”, está entranhada no pensamento gestáltico (CIORNAI,
2004, p.36).

2.1 O mistério da criação

O primeiro fator que notamos no ato criativo é sua natureza de encontro (MAY, 1982,
p. 39).

Rollo May identifica um ponto chave, a questão do encontro, a criação começa pelo
encontro, os artistas encontram as paisagens que querem pintar ou uma visão interior, um som,
uma letra, uma melodia, uma história que reverbera. Este encontro requer uma qualidade
específica de engajamento para produzir uma arte genuína. No labirinto uma saída, na porta a
chave, um conto que cura, os encontros são como portais na nossa existência.
No curso, encontrei a Gestalterapia. Estudei um pouco de fenomenologia na
universidade quando cursava filosofia na USP, mas no Sedes Sapientiae, a teoria ganhou
substância, conceitos como campo, ou melhor, a relação do organismo com seu campo e o
limite de contato, figura-fundo, homeostase e até mesmo a própria ideia de Gestalt, posso dizer,
tornaram-se figura.
Percebo que cursar arteterapia foi como entrar numa experiência gestáltica de um
continuum figura-fundo-figura, possibilitada pelas diferentes propostas e no trabalho com
diferentes materiais e técnicas, delicados e profundos encontros que foram abrindo portas ou
portais da minha criatividade. Um encontro que paulatinamente deu “forma a algo novo”,
Ostrower uma autora que discorre acerca da criatividade observa que:

Criar é, basicamente, formar. É poder dar uma forma a algo novo. Em qualquer que
seja o campo de atividade, trata-se, nesse "novo", de novas coerências que se
estabelecem para a mente humana, fenômenos relacionados de modo novo e
compreendidos em termos novos. O ato criador abrange, portanto, a capacidade de
compreender; e esta, por sua vez, a de relacionar, ordenar, configurar, significar
(OSTROWER, 1977, p. 5).
A autora observa que desde a mais remota antiguidade, o ser humano, mais do que
homo faber, é um “ser informador”, uma vez que ele se relaciona com os eventos, dando-lhe
significado:
Ele é capaz de estabelecer relacionamentos entre os múltiplos eventos que ocorrem ao
redor e dentro dele. Relacionando os eventos, ele se configura em sua experiência de
viver e lhes dá um significado. Nas perguntas que o homem faz ou nas soluções que
encontra, ao agir, ao imaginar, ao sonhar, sempre o homem relaciona e forma
(OSTROWER, 1977, p. 5).

Nesse sentido, o potencial criativo não se restringe à arte, está presente em todos os
aspectos da vida. O potencial criador elabora-se nos múltiplos níveis do ser sensível-cultural-
consciente do homem, e se faz presente nos múltiplos caminhos nos quais o sujeito procura
captar e configurar as realidades da vida. O homem não somente percebe as transformações
como, sobretudo, nelas se percebe, escreve a autora:
Os caminhos podem cristalizar-se e as vivências podem integrar-se em formas
de comunicação, em ordenações concluídas, mas a criatividade como potência
se refaz sempre. A produtividade do homem, em vez de se esgotar, liberando-
se, se amplia (OSTROWER, 1977, p. 10).

Destaco este ponto, a criatividade, “em vez de se esgotar, liberando-se se amplia”, mas
em lugar do estímulo à criatividade, somos recompensados, quando reproduzimos o que dita o
manual ou a resposta certa na prova.
A criação da vida pertence ao plano dos eventos numinosos, um segredo guardado a
sete chaves, no qual a humanidade frequentemente prefere não pensar, tal como a morte na
outra ponta, mas nossa existência certamente apresenta-se marcada por esses dois eventos. Por
sua vez, cada ato de criação nos conecta a este numinoso. Pensar neste enigma é refletir a
respeito de uma parte enigmática do humano, naquilo que nos aproxima ao divino, no plano da
matéria.
A criatividade nasce da revolta contra a morte e da luta contra a nossa mortalidade e
contra a mesmice, o desespero e a opressão. A coragem criativa, segundo May “é a descoberta
de novas formas, novos símbolos, novos padrões segundos os quais uma nova sociedade pode
ser construída” (1982, p.20).
E são os artistas que apresentam as novas formas e símbolos. Os artistas possuem essa
capacidade de se insurgir, coloca May, permitem-se mergulhar no caos e criar forma, do mesmo
modo que Deus criou o mundo. Eternamente insatisfeitos com tudo o que é mundano, apático
e convencional, estão sempre nos conduzindo a mundos novos. São os criadores da
“consciência não-criada da raça”. Criando a partir da fúria, a rebeldia reverbera a emoção, uma
força suprema de vitalidade, algo na trilha oposta da morte, no entender de May.
Qualquer pessoa pode ser artista, não se nasce artista, porque a abertura para a criação
está disponível para todos aqueles que impregnados por uma eterna insatisfação, ungidos por
uma poderosa rebeldia e com os brios da coragem, permitem-se o novo, sem puder, nem
vaidade. A criatividade configura-se como uma prática e compromisso para com a própria vida:
quando mergulhar no caos e criar formas torna-se uma necessidade.

2.2 Arteterapia: aproximações

Na região do Mediterrâneo, onde hoje vemos o sul da Itália, há mais de dois mil anos,
meninas e jovens, muitas vezes “enlouquecidas” repentinamente eram vistas pelo clã como
picadas pela tarântula. Na verdade, a loucura aparecia após terem sofrido alguma violência,
como o abuso sexual, cometido por membros mais velhos do próprio clã, que não podia ser
comunicada.1 A irmandade feminina se reunia para a cerimônia ritual da tarântula, que incluía
uma dança de cura para sanar o estado “atarantado”, ou seja, em desordem mental. Eis a origem
da tarantela, afirma a percussionista e pesquisadora italiana, Alessandra Belloni (2015). Os
antigos e, até hoje, os povos nativos sabem que a dança e outras formas expressivas que nós,
ocidentais, chamamos de arte são terapêuticas. Trazemos esta lembrança deste ritual criado e
configurado para curar, pois a arteterapia remete a uma das mais antigas formas de se pensar o
humano, sua vida e sua saúde.
Ostrower explica que “O homem cria, não apenas porque quer, ou porque gosta, e sim
porque precisa; e ele só pode crescer, enquanto ser humano, coerentemente, ordenando, dando
forma, criando” (OSTROWER, 1977, p. 7).
O processo expressivo constitui um processo terapêutico, no qual o produto é um
mediador e neste fazer expressivo, o sujeito poderá se olhar, se descobrir e se entender melhor,
trabalhando sua autoconfiança, identificando e desenvolvendo habilidades e potencialidades.
Este fazer, mediado pela arte, facilita a comunicação do mundo interno para o mundo externo,
do inconsciente para a consciência, mas também no plano social, possibilitando a compreensão
das dificuldades e, inclusive, a resolução de situações de conflitos.
O contato com os materiais no processo, auxilia o contato com o mundo interno de
cada um, com as angústias e dores, mas também com as potencialidades, integrando aspectos
desconhecidos, porque inconscientes, reduzindo a distância entre as polaridades, ampliando o
contato com os recursos disponíveis na experiência da vida.

1
Fonte Alessandra Belloni, informação oral https://www.youtube.com/watch?v=JKubWl5YLj8
A transformação dos materiais abre o campo de possibilidades para a transformação
do próprio sujeito, na medida em que adquire novas awareness, e sua autoconsciência amplia
o seu autoconhecimento, algo que nunca tem fim, mas configura um processo; na experiência
de dar forma à argila, ao papel, ao cimento ou barbante, entre tantos outros materiais, vão se
configurando novas possibilidades. Dando forma a materiais, homens e mulheres, com a sua
bagagem de emoções e conhecimentos dão “[...]forma à fluidez fugidia de seu próprio existir,
captou-o e configurou-o. Estruturando a matéria, também dentro de si ele se estruturou; criando
ele se recriou” (OSTROWER, 1977, p.51).

2.3 Psicologia da Gestalt e arteterapia

Selma Ciornai, uma pioneira na arteterapia no Brasil, aponta que os princípios da


Psicologia da Gestalt estão permeados por uma visão existencial do humano. Esta filosofia da
virada do século XIX para o século XX, postula a prevalência da existência sobre a essência,
isto é, afirma que não há essência definitiva sobre o ser humano a ser descoberta, nem conceitos
sobre a natureza última do ser humano a ser formulados. Cabe observar que a fundamentação
fenomenológica nega a separação sujeito objeto da perspectiva cartesiana.
“A visão existencial afirma (...) a capacidade humana de escolher e criar o próprio
destino, transcendendo limites e condicionamentos, mesmo face às condições mais inóspitas e
de suas manifestações mais tenebrosas, medíocres e virulentas” (CIORNAI, 2004, p. 35), a
partir dela, o ser humano é visto sempre em possível estado de refazer-se, de escolher e
organizar a própria existência criativamente, sendo sujeito da própria história, artista da própria
vida.
A Psicologia da Gestalt tem em Perls uma figura de destaque. Este psicanalista
experiente e irrequieto, percebendo certas limitações da psicanálise, passa a buscar a
autenticidade e a experiência, juntando-se a um grupo na costa oeste dos estados Unidos, o
grupo dos sete que vai dar origem um campo novo na psicologia que ficará conhecido como
Gestalt-Terapia.
Perls (1988) iniciou um trabalho fundamentado na premissa de que a organização dos
fatos, percepções ou fenômenos torna-se central para o significado específico e particular que
os eventos irão apresentar. De acordo com a psicologia da Gestalt, a natureza humana é
organizada em partes ou todos, que é vivenciada pelo indivíduo nestes termos e que só pode ser
entendida como uma função das partes ou dos todos, dos quais é feita. Por sua vez, uma Gestalt
é uma forma, uma configuração, um modo particular de organização das partes individuais, que
entram em sua composição.
Ciornai aponta que “na abordagem gestáltica em arteterapia, a visão existencial se
manifestará na atitude do terapeuta, que vai estimular e facilitar o movimento de criatividade e
expressão artística do cliente, sugerindo experimentos, técnicas e facilitando elaborações e
buscas de significado” (CIORNAI, 2004, p. 37). A terapia, ao retirar a experiência humana da
inércia do cotidiano, colocando-a sob novas luzes e estabelecendo novas relações entre seus
elementos, misturando o velho com o novo, o conhecido com o sonhado, o temido com o
vislumbrado, permite configurar novas integrações e possibilidades (CIORNAI, 2004).
O objetivo de uma terapia de base existencial será trabalhar em direção à constante
expansão da consciência, a fim de facilitar que as pessoas venham a se tornam agentes das
próprias transformações na vida.

2.4 Elementos da arteterapia gestáltica

Desta visão existencial do humano decorre uma visão sobre o estar no mundo, da saúde
e do adoecimento, na qual as formas de contato, que se estabelecem com o mundo,
desempenham um papel central. Neste sentido, Ciornai observa que “as funções de contato do
organismo, como olhar, escutar, tocar, falar, mover, sentir, cheirar, são o instrumental que o
indivíduo dispõe para ir ao encontro de sentir, avaliar e selecionar o que está à sua volta”
(CIORNAI, 2004, p. 53).
Por sua vez, a awareness, a desejada expansão de consciência, caracteriza-se pelo
contato, pelo sentir (sensação/percepção). É possível existir contato sem awareness, mas para
a awareness, o contato é indispensável (PERLS, HELLERLINE e GOODMAN, 1997). Os
autores explicam:
A formação de gestalten sempre acompanha a awareness. Não enxergamos três
pontos isolados; fazemos um triângulo com eles. A formação de gestalten completas
e abrangentes é a condição da saúde mental e do crescimento. Só a Gestalt completada
pode ser organizada como uma unidade de funcionamento automático no organismo
total. Toda Gestalt incompleta representa uma “situação inacabada” que clama por
atenção e interfere na formação de qualquer Gestalt nova, vital. Em vez de
crescimento e desenvolvimento encontramos estagnação e regressão (PERLS,
HELLERLINE e GOODMAN, 1997, p. 33).

A mesma pedra no caminho, um eterno retorno do mesmo filme com outras


personagens, porque a gestalt ficou aberta. Por outro lado, os processos contínuos de awareness
são sempre acompanhados de novas informações, ou seja, a formação de figuras que criam um
novo saber.
Cabe aqui lembrarmos da relação entre figura e fundo para a Gestalterapia; na saúde,
ela se apresenta como um processo de emergência e recuo permanentes, mas significativos.
Assim a interação entre figura e fundo torna-se o centro da teoria: atenção, concentração,
interesse, preocupação, excitamento e graça são característicos da formação saudável de
figura/fundo: enquanto confusão, tédio, compulsões, fixações, ansiedade, amnésias, estagnação
e acanhamento são indicadores de uma formação figura/fundo perturbada.
A terapia permite facilitar, por meio do suporte da relação terapêutica, a elaboração
interna do que antes não pôde ser bem elaborado, facilitando a expansão de awareness e a
liberação da energia retida em situações antigas e inacabadas, trazendo-a para o aqui-e-agora
da relação terapêutica (PERLS, HELLERLINE e GOODMAN, 1997).
Objetivo da Gestalt-terapia, a partir de Perls torna-se a própria integração criativa da
experiência. Ciornai pontua que o ajustamento criativo e contato são conceitos-chave na
Gestalt-terapia, pois implicam não apenas no ajustamento, mas no ajustamento criativo “e não
só contato”, mas “contato criativo”.
Perls afirma que o processo de ajustamento criativo a novos materiais e circunstâncias
comporta uma destruição que, não raro, pode ser assustadora:
O ajustamento criativo (...) compreende sempre uma fase de agressão e destruição porque é
abordando, apoderando-se de velhas estruturas e alterando-as que o dessemelhante torna-se
semelhante. Quando uma nova configuração passa a existir, tanto o antigo hábito consumado
do organismo contactante como o estado anterior do que é abordado e contatado são
destruídos no interesse do novo contato. Semelhante destruição do status quo pode provocar
medo, interrupção ansiedade, proporcionalmente maiores à medida que sejamos
neuroticamente inflexíveis, mas o processo vem acompanhado da segurança da nova
invenção que passa a existir experimentalmente. Aqui como em qualquer outra situação, a
única solução de um problema humano é a invenção experimental (PERLS, HELLERLINE
e GOODMAN, 1997, p. 47).

Se a destruição causa temor, principalmente quando há rigidez na psique, há um


considerável ganho com a conquista de uma nova experiência que vai ficar na memória, a
repetição do antigo padrão não resolve, apenas o novo abre a vida para o encontro de outras
possibilidades.
Nessa linha, Cláudia Nogueira (2004) afirma, trabalhar com técnicas expressivas é o
que chamamos experimento. O experimento permite que a pessoa participe ativamente,
ensaiando, executando, pondo em prática, sentido, ou seja, conhecendo e explorando a si mesma
e avaliando sua relação com o mundo por meio da ação. Há uma mobilização da emoção porque
não é um “falar sobre”, mas viver o conflito. Vivenciar o conteúdo facilita a compreensão, o
reconhecimento e a tomada de posse; portanto a possibilidade de transformação. (NOGUEIRA,
2004, p. 219)
3 MARCO ZERO

Presentemente eu posso me considerar um sujeito de sorte


Porque apesar de muito moço, me sinto são e salvo e forte
E tenho comigo pensado, Deus é brasileiro e anda do meu lado
E assim já não posso sofrer no ano passado
(Belchior, Sujeito de Sorte)

3.1 No início, o ponto

No mundo da pintura, o ponto, arrancado de sua posição habitual na


escrita, liberta-se de sua submissão ao prático-utilitário.
O ponto sai dos seus limites e dá origem a todas as formas
(KANDINSKY, 1997, p. 19)

Um ponto. Tudo começou com um ponto. O ponto foi a atividade inaugural do curso
de arteterapia em março de 2019. O ponto, concentração máxima, se expandiu e contou uma
história, mas voltemos ao ponto. (ver Imagem 1)
Nessa concisão absoluta que, no entanto, fala, Kandisnky escreve poeticamente a este
respeito “o ponto geométrico é (...) a verdadeira e única união do silêncio e da palavra”. O
pintor discorre sobre as diferentes propriedades do ponto, identificando nele inúmeras
propriedades e qualidades:
o ponto geométrico é um ser invisível. Portanto deve ser definido como imaterial. Do
ponto de vista material, o ponto é igual a Zero e, do ponto de vista humano, aparece
como concisão absoluta. Há uma evidência espiritual no início da aventura gráfica, e
essa evidência é importante, pois é a de uma passagem como se o zero material fosse
a condição de um ponto de passagem obrigatório para o início da escrita, para o início
da palavra (KANDISNKY, 1997, p.17).

No espaço livre de qualquer utilidade, isolado, emanando seu silêncio, o ponto sozinho
pode afirmar sua ressonância. O ponto começa a viver como um ser autônomo, evoluindo de
acordo com sua necessidade interior e, assim, o ponto morto torna-se um ser vivo, então, surge
a linha:
A linha geométrica é um ser invisível. É o rastro do ponto em movimento, logo seu
produto. Ela nasceu do movimento – e isso pela aniquilação da imobilidade suprema
do ponto. Produz-se aqui o salto do estático para o dinâmico (KANDISNKY, 1997,
p.49).
Na linha, o ponto, elemento originário da pintura, encontra seu maior contraste. As
forças externas, que transformam o ponto em linha, evocam diferentes naturezas, cujas
combinações reverberam na diversidade das linhas. Por sua vez, a linha apresenta tensão e
direção. A tensão é a força viva do elemento. Nesse sentido, a linha reta apresenta em sua tensão
a forma mais concisa das infinitas possibilidades do movimento, na outra ponta, as linhas
onduladas abrem mão da concisão.

Figura 1

“O ponto se expande” escrevi. A continuidade conduziu à linha. Desenhei algumas


linhas finas, levemente onduladas, em diferentes cores, que caminham em diferentes direções,
em uma organização geométrica fraca, apenas evocando uma pequena vibração, foi um registro
de um leve pulsar.

Figura 2

Em seguida, o ponto começa a contar uma história, a história da minha vida, caminha
bastante, mas sem intensidade, tudo está desbotado, inclusive o ponto crítico, nenhum registro
da tensão, nem da dimensão do evento. “Onde está a força desse evento?”, me perguntam. Esse
questionamento inquietou-me e levou-me a buscar a intensidade das emoções vividas.
A awareness desse trabalho foi que até o pulsar estava desvitalizado, em plena
depressão, meu trabalho não conseguia registrar a intensidade do meu furacão vivido, nem da
dor.

3.2 Imagens da Noite Escura

Em casa, no final do dia, retomo o exercício e vou expandindo com diferentes


materiais, uso lápis colorido, canetão preto, giz e guache. O conjunto, do qual apresento
algumas imagens, recebeu o título Imagens da noite escura e a sigla NE.
NE 1. Com lápis, nas cores vermelho, marrom e preto, faço garatujas dentro de um círculo. O
preto não registrava a intensidade necessária, busquei outro material.
NE 2. Título: O dia em que fui engolida pela baleia. Com o giz, coloquei minha dor em
vermelho, no resultado, vejo minha boca gritando. O trabalho começa a expressar minhas
emoções.
NE 3. Preencho o papel em giz preto, usando a técnica do giz deitado, este preto recobre o
traçado de uma figura humana em azul desbotada, mostra como estou, desbotada e coberta de
preto.
NE4. Título: Era uma vez. Duas linhas, uma verde e outra azul, levemente onduladas foram
cobertas por garatujas nas cores vermelha e preta, num movimento similar ao movimento
primitivo da criança. Intenso e sem direção.
NE5. Reduzida a um ponto, o mundo por fora é tão longe.
NE 6. Superfície verde de giz pintada totalmente pelo vermelho do guache com preto na parte
inferior, na forma primitiva, garatuja.
NE 7. Borrão preto com ponta vermelha em superfície branca.
NE 8. Despedida em meio à dor. Folha do hospital pintada de gotas, traços vermelhos,
lágrimas vermelhas. É o último da série.
A garatuja foi a principal forma de expressão. A forma de encontro da criança com o
traço e o desenho é a garatuja. Trata-se de uma atividade que começa sem intencionalidade
proporcionando um prazer sinestésico, a intencionalidade surge com o amadurecimento da
criança.
Este traço primitivo permitiu dar forma a emoções, que estavam perdidas em algum
lugar dentro da minha alma. Assim, na expressão, pude reconhecer a raiva, a dor e a minha a
minha pulsão de morte, como se essas emoções tão viscerais só pudessem ser expressas de uma
forma primitiva.
A mudança de materiais permitia a expansão da experiência e satisfação de uma
necessidade de expressão. Já havia preenchido quase um caderno narrando a minha dor, mas
esta atividade expressiva, uma experiência sensório-motora, sinestésica, visual, permitiu um
encontro em dimensões emocional e física com a minha dilaceração e com a minha depressão.
A expansão permitiu não só dar vazão à emoção, mas colocá-la em um papel, olhá-la
e me encontrar nela, entendendo onde estava, vendo os símbolos. Essa experiência tornou-se
um marco, voltaria ainda diversas vezes à dor, mas algo se apaziguou nesse encontro com a dor
através dos materiais, permitindo assim começar sua elaboração numa outra dimensão. As cores
começaram a voltar.

Série Imagens da Noite Escura (NE)

Figura 3 NE1

Figura 4 NE2 Figura 5 NE3

Figura 6 NE4
Figura 7 N E5

Figura 8 NE6

Figura 9 NE7 Figura 10 NE8

Figura 11
A arte em qualquer de suas formas, contanto que seja verdadeira, alcança seu objetivo
e constitui alimento para o espírito (KANDISNKY, 1997, p. 29).
A experiência inaugural reafirmou que estava onde deveria estar. Por todo o ano de
2019, uma vez por mês, durante um fim de semana, eu penetrava em um espaço sagrado e dali
saia, não apenas mais consciente, mas também mais vitalizada. Foram ricas experiências que
me propiciaram vivenciar o aqui e o agora, fundos tornaram-se figuras e, nessa vivência,
retomar contato com o profundo da minha alma e buscar a sua cura.
Na realização dos trabalhos, não tinha nenhuma preocupação estética, apenas contava
com as possibilidades na arte da criação e da recriação. Como a criança, descobrindo as formas,
os materiais e as cores, sem medo de errar, encontrando no processo com os materiais, novas
possibilidades, ou seja, me percebia iniciando uma jornada na arte da criação e da recriação.
No contato com o material, sobreveio o prazer na experiência sensório-motora, mas
também perceptual afetivo e cognitivo simbólico, previsto no ETC, Continuum das Terapias
Expressivas (KAGIN, LUSEBRINK, 1995/ 2000)., e assim fui redescobrindo o prazer do
contato comigo e com o mundo.
4 IMAGINAÇÃO E PSICOLOGIA ANALÍTICA

Cada imagem é seu próprio começo, seu próprio fim, curada em si. Então, o
“Conhece-te a ti mesmo” termina sempre que deixa o tempo linear e se torna
ato de imaginação. Um insight parcial, essa canção agora, essa imagem aqui;
ver parcialmente é o todo (HILLMAN, 2010, p. 127).

4.1 O que pode superar um trauma?

“Já passou! Supere!”, sempre sabemos o que o outro precisa fazer, principalmente,
quando ele está num buraco ou numa canoa furada, só não entendemos porquê a própria pessoa
não vê a saída, insistindo em ficar como o capitão do navio que afunda com ele, quem olha de
fora não entende por que o sujeito fica imóvel, não faz alguma coisa para sair do lugar, nem
que seja pedir ajuda.
É muito difícil superar um trauma ou qualquer adoecimento psíquico sozinho, seja
uma depressão, uma relação abusiva, o abuso de drogas ou qualquer outro. O trauma corrói a
confiança da própria pessoa em si própria e, por conseguinte, na vida, tal como vimos no
capítulo 1 quando debatíamos a questão da perda das relações de apego. Este tipo de
adoecimento desestabiliza de uma forma que supera o entendimento da própria pessoa, porque,
de repente, ela não mais se reconhece, por outro lado tão pouco é entendido pelo meio que cobra
sua rápida superação, um funcionamento e uma vitalidade presentes em momentos anteriores.
O luto me desintegrara, o que poderia me recuperar? Eu tinha bastante consciência do
que havia ocorrido e das minhas potencialidades, por isso não se tratava de uma questão de
ampliação de consciência, precisava de alguma outra coisa, contudo não sabia o que era, embora
intuísse que a arteterapia poderia mostrar-se um caminho.
Hoje, no momento em que escrevo, quase três anos depois, sei que precisava de novas
imagens. Estava fixada na imagem de uma grande perda. Um trauma não é superado no nível
da consciência, apenas novas imagens permitiriam a criação de novas possibilidades. Minha
alma precisava de alimento e a arte é uma espécie de alimento para a alma.
Um trabalho arteterapêutico é um trabalho com imagens, mesmo o movimento e o som
trazem imagens, a própria Gestalt se fecha em imagens. E esta capacidade de criar imagens e
de simbolizar -pontos essenciais para a arteterapia- têm grande potencial de transformação e
cura. Esta visão nos leva a Carl Jung, um psiquiatra, fundador da Psicologia Analítica. O seu
pensamento reconhece a importância da imaginação não apenas para a vida psíquica, mas para
a alma, uma vez que, a seu ver “todo o processo psíquico é uma imagem e um imaginar”.
Este capítulo inicia apresentando alguns elementos da Psicologia Analítica para, em
seguida, discorrer acerca do papel da imaginação e da simbolização para a psique humana,
ideias que fundamentarão o nosso olhar para as estações que serão apresentadas no capítulo 5.

4.2 Os arquétipos e o inconsciente coletivo

A vida psíquica é um mistério, toda pessoa já se surpreendeu com seus sonhos, suas
fantasias, atos falhos, com as próprias derrapadas éticas, o branco numa prova, mas não só,
também com a doença que instala no corpo e na alma e até mesmo, em outro campo, com as
sincronicidades e as curas que parecem mágicas.
Há milênios, a filosofia ocidental, concentra-se no logos para pensar o humano, a
racionalidade, que possibilita o conhecimento; uma visão limitada, por certo, porque o ser
humano é muito mais do que sua racionalidade, ele não apenas sente, se emociona, mas também
imagina e cria mundos e moradas, relacionamentos, viagens e sua própria vida.
No início do século XX, contrariando a ideia corrente a partir do Iluminismo de que o
humano tudo pode conhecer, Freud lançou as bases da psicanálise, ao postular a ideia da
existência do inconsciente, como uma parte submersa de um iceberg, um lugar onde ficariam
armazenadas as memórias reprimidas, que escapariam para a consciência, sorrateiramente,
através de atos falhos, chistes e/ou sonhos. Assim, toda a psicologia da profundidade vai se
estruturar nessa distinção, entre consciente e inconsciente.
Jung, um médico de formação, que participou do círculo freudiano, com o qual rompe,
identifica que, em nossa vida psíquica, participam imagens de um repertório comum à
humanidade; esta ideia surge a partir da observação das imagens de seus pacientes, mas também
ao incorporar as suas próprias. Profundo estudioso, leitor de filosofia desde a adolescência,
assentou sua teoria no material imagético, que congrega mitos do ocidente e do oriente, a
alquimia e o I Ching, entre outros.
Jung vislumbrou a existência de estruturas universais na mente humana, tal como as
existentes no corpo humano que nos levariam a compartilhar imagens, não só com todos os
povos do mundo, mas também com os homens e as mulheres das cavernas, pois elas teriam
uma dimensão arquetípica. A perspectiva desta partilha imagética permitiu-lhe formular a
hipótese da existência de um inconsciente coletivo.
Hillman, o primeiro diretor do Instituto Junguiano de Zurich, aponta que Jung deu uma
resposta diferente ao “Conhece-te a ti mesmo”. Nesse sentido, com Jung, a necessidade
psicológica mais persistente de nossa cultura, ampliou-se passando a significar um
conhecimento arquetípico (2010).
Os elementos estruturais do inconsciente coletivo recebem de Jung a denominação de
“arquétipos” ou “imagens primordiais”; os arquétipos habitariam o inconsciente coletivo, ao
passo que a memória pessoal estaria alojada no inconsciente pessoal de cada sujeito
(NEUMANN, 2006).

4.3 Alma e imagem

O trabalho com as imagens psíquicas remete a uma tradição de “exploradores”, tais


como, alquimistas como Paracelso e filósofos como Bachelard.
Para iniciar uma aproximação à imagem, é preciso desliteralizar a própria ideia de
imagem, compreendendo-a não somente como um elemento audiovisual, alguma coisa vista,
mas algo para além disso, “uma imagem psíquica não é algo que vejo, é antes um modo de ver,
uma perspectiva sobre as coisas. Pode ser sonora, tátil, pode ser uma emoção, pode estar no
corpo” (BARCELLOS, 2019, p. 110).
A imagem não é o subproduto da percepção, da sensação ou da memória, como um
reflexo psíquico de um objeto externo; nem é a construção mental, que representa de forma
simbólica ideias e sentimentos; a imagem também não se apresenta ao ego, meu “eu”
consciente, quando este dispõe por vontade ou por algum estímulo.
Pensar e escrever sobre a imaginação e a imagem comporta desafios, pois qualquer
aproximação longe está da imagem. Nessa linha, Patrícia Berry observa:
A imagem é uma complexidade de relações, uma inerência de tensões, justaposições
e interconexões. Uma imagem não é apenas significado, nem apenas relações, nem
apenas percepção. Ela não é nem mesmo apenas reflexão, porque nunca se pode dizer
com certeza que isto é “a coisa” e aquilo é uma reflexão da coisa. Nem podemos dizer
que a imagem é isto literalmente e aquilo metaforicamente. Essas dualidades – coisa
versus reflexão, literal versus metafórico – não são imagens, mas, antes, maneiras de
estruturar imagens (2014, p. 119, in BARCELLOS, 2019, p. 12).

A imagem é espontânea, autônoma e primordial, a alma se apresenta diretamente em


imagem e essas imagens que surgem “são tão reais quanto você é real”, escreve Hillman, mas
mais do que realidade, a imaginação desperta, escreve o autor citando o poeta americano,
Wallace Stevens: “Assim nas imagens despertamos [...]. Ela é, nós somos” (HILLMAN, 2010,
p. 118).
A grande questão é: como se chega a essa imagem interior? Como viver acordada/o,
fazendo jus ao que a alma solicita?
Todas as coisas imaginárias estão na mesma categoria, estão no inconsciente. O
conteúdo arquetípico se apresenta primeiro através da metáfora e certamente no sonho, onde se
evidencia a capacidade humana para criar imagens de forma autônoma, ou seja, sem a
intervenção da subjetividade de um ego consciente.
Criar, ver e conversar com nossas imagens tem um poder transformador e até mesmo
curativo. Hillman no livro Ficções que curam (2010) coloca que:
O trabalho com imagem é dirigido à imaginação e pela imaginação, de forma que, se
a cura vem, vem por meio do reino intermediário da psique, uma cura do corpo
imaginal (...). A própria imaginação deve ser cuidada, pois pode muito bem ser ela
mesma a origem de nosso ferimento (2010, p. 216) .

Nos sonhos e, certamente, na arte, diversas figuras se apresentam, na forma de cenas,


animais ou personagens, que, não raro, causam-nos perturbação ou assombro pela carga
simbólica a eles associada, mas frequentemente, são uma parte de nós mesmos que foi relegada
e, quando se aproximam, buscam um olhar, uma escuta ou uma conversa. Algumas pessoas
logo procuram interpretar essas imagens, contudo ao fazer isso, perde-se a força da própria
imagem.
Ginnete Paris (2021) observa que as imagens funcionam como mapas, fornecem
informações proveitosas para nos mostrar nossa posição, onde estamos e como estamos. A
autora, seguindo a linha da Psicologia Arquetípica, coloca que a imagem, primeiramente,
localiza, contudo, as imagens simbólicas, como os sonhos, por si só, não fazem nada, precisa
existir uma consciência daquilo que se busca, porque “um mapa é útil somente se o sujeito é
capaz de localizar sua posição e se tem uma noção de onde quer chegar. Do contrário ele é
inútil”2, diz ela.
A autora destaca o poder curativo da imaginação, constatando que não é a consciência
que permite superar um trauma, assim para se desfazer de uma metáfora (ou mito destrutivo) e
superá-lo não adianta argumentar com fatos objetivos: apenas uma nova metáfora ou construir
um novo mito pode eliminar o antigo (PARIS, 2021). Este ponto é bastante significativo, pois
permite visualizar onde se deve atuar nos casos de traumas.

2
Informação oral Ginette Paris (traduzido) - Basta de teoria! Vamos falar sobre a prática da Psicologia
Arquetípica https://www.youtube.com/watch?v=5spmDucRPwg&t=2515s
4.4 A vida simbólica

Os símbolos estão no centro, são o coração da própria vida imaginativa. De dia ou de


noite, na linguagem, nos gestos ou nos sonhos, cada um de nós, percebendo ou não, utiliza os
símbolos. Eles revelam os segredos do inconsciente, conduzem aos motores mais ocultos da
ação, abrem a mente ao desconhecido e ao numinoso3.
Um conceito ou uma figura torna-se simbólica quando significa mais do que expressa.
A capacidade simbólica é eminentemente humana, os animais têm sinais e signos, mas nenhum
símbolo. Não raro, o símbolo é confundido com o signo, mas o signo apresenta-se como uma
convenção arbitrária, reduz. Por sua vez, o símbolo amplia, leva para além da significação,
tornando-se como uma passagem para outra dimensão. A arte foge do signo, nutre o símbolo.
Em comparação com o animal, o homem não só vive numa realidade mais ampla, mas
também numa nova dimensão da realidade, uma que lhe fornece significado, o da realidade
simbólica, dimensão na qual ele deve adentrar, caso queira se alçar acima da pura instintividade
animal, acedendo ao ser criativo do plano humano-divino (JACOBY, 2016, p. 113).
A espontaneidade marca o simbólico. Onde quer que os símbolos apareçam, nunca
ocorrem pela intenção consciente ou por vontade do sujeito, tal como os sonhos, são produtos
da natureza, mas podem surgir em qualquer forma de manifestação psíquica, dado que existem
pensamentos, ações e situações simbólicos, inclusive, até animais ou objetos inanimados, não
raro, ganham conotações simbólicas.
O símbolo se apresenta quando ele encontra ressonância no sujeito; sua apropriação é
sempre individual, ou seja, depende de saber se uma pessoa tem a possibilidade e a capacidade
de ver determinado fato, por exemplo, um pássaro ou uma flor, para além de sua manifestação
concreta, mas também como expressão, como imagem sensível de algo desconhecido
(JACOBY, 2016). Ser tocado pelos símbolos é envolver-se em um mundo de realidades
invisíveis por trás de algo visível, buscando estabelecer um sentido.
Como uma chave para abrir o inconsciente, a formação de símbolos é uma ferramenta
preciosa, pois o inconsciente é aquele lugar que, como uma mina, pode revelar pepitas de ouro.
O teatro de nossa psique se encontra no inconsciente; nele se encontram as nossas

3
Rudolf Otto (2007) em seu livro O Sagrado propõe o termo numinoso para se referir ao conjunto de experiências,
cuja manifestação seria a expressão de que algo não pode ser observado ou apreendido diretamente, escapando ao
raciocínio lógico, muito embora sua presença pode ser arrebatadora, ligando-as ao sagrado. Jung se apropria deste
termo, contudo identifica o numinoso como uma experiência para além do sagrado. “Em Jung, a experiência do
numinoso abrange também a vida cotidiana e natural, expressando-se não apenas no que é comumente chamado
de religião, mas também nos movimentos sociais e na experiência individual como, por exemplo, num transtorno
mental ou numa inspiração criativa” (CECCON e HOLANDA, 2012, p. 75).
potencialidades, bem como nossas dívidas e até autoenganos, aspectos que frequentemente
reclamam a nossa atenção e não lhe damos ouvidos, mantendo-os distante de nossa consciência.
Jacoby lembra que Jung chamava a o símbolo de “transformador psíquico de energia”,
enfatizando seu caráter eminentemente “de cura”, sua potencialidade de restaurar a inteireza,
bem como a saúde (2016, 119).
Para finalizar esta parte, apenas gostaria de destacar que novos símbolos precisam
cultivo, ou seja, mais do que nosso olhar simpático quando emergem, eles são exigentes,
requisitam nossa dedicação e nosso compromisso com aquilo que emerge. Ao iniciarmos uma
relação com as nossas imagens psíquicas, passa a existir a possibilidade de transformação e
cura, na medida em que ocorre uma relação mais viva e verdadeira com a nossa alma.
Nesse sentido, como poderá ser observado no capítulo seguinte, acessar as minhas
imagens interiores permitiu-me substituir a ruína pela ideia da criação, a dor pela cor, a
estagnação pela manifestação e assim, paulatinamente, neste cultivo da alma, sair do luto e
vislumbrar uma perspectiva mais ampla da saúde e da própria vida.
5 21 ESTAÇÕES E UM EPÍLOGO

...quando pergunto “Onde está minha alma?” “Como a encontro? O que quer
ela agora?”, a resposta é “volte-se para suas imagens” (HILLMAN, 2010, p.
118).

Estação 1 - O material da criação


Material: argila
Proposta: experiência sensório-motora com argila.
Título: Nave alada

Figura 12

Na experiência de contato com a argila, durante alguns minutos, inicialmente, surge um


vaso; o vaso se alarga como uma canoa, ganhando asas, no finalzinho, desponta a cabeça de um
pássaro, bem desajeitado como um pássaro que está nascendo. Esta nova figura me surpreende.
A prática parte do nível sensório-motor, chegando ao nível criativo, aparece uma nova
imagem. No plano simbólico, o barro é um símbolo da matéria primordial, de onde o homem
foi retirado, de acordo com a tradição bíblica. Mistura de terra e água, une o princípio receptivo
e matricial: a terra ao princípio dinamizante da mudança e das transformações, a água.
Tomando-se a terra como ponto de partida, o barro simboliza o nascimento de uma evolução, é
a terra que se move, fermenta, torna-se plástica.
A característica de voar torna os pássaros um símbolo das relações entre o céu e a terra.
A ave é o símbolo da alma. Por sua vez, o vaso alquímico significa sempre o lugar no qual
ocorrem as maravilhas; seio maternal, útero onde se forma um novo nascimento.
(CHEVALIER, 1986)

Estação 2 - Memória e escolhas


Material: um saquinho contendo diversos materiais com diferentes texturas e aromas, tais como
lã e especiarias, e papeis coloridos.
Proposta: a partir de uma experiencia sensório-motora para aproximar-nos dos materiais
contidos na sacolinha e realizar uma obra em uma base de papel colorido.
A prática solicitava que estivéssemos com os olhos fechados para manusear e entrar em
contato com o som, os aromas e as texturas do material. A atenção se concentra, inicialmente,
no som, então entra o olfato que percebe o perfume da canela e outras especiarias. Ao abrir o
saquinho, a experiência tátil de sentir as texturas, como a lã e os veios das folhas; segue-se então
a deliciosa experiência da cor e da forma ao ver as folhas, os grãos, anis, entre outros. Essa
atividade trouxe muitas memórias afetivas, me remeteu a épocas de outrora que incluíam bolos
da vovó, trabalhos manuais e mercados visitados. Foi uma experiência muito forte.
A experiência levou a um doloroso contato com momentos felizes do passado, que já
não se repetirão, mas a proposta também pedia uma criação com esses elementos.

Figura 13

A atividade requeria selecionar e deixar alguns objetos de fora, ou seja, fazer escolhas,
o que é bem saudável, pois não é tudo que nos faz bem. Perls observa que nem toda fuga é
doentia, pois algumas formas de contato não são saudáveis.
Vejo que encontro o belo na irregularidade, na incerteza, da forma que se forma sem
previsão ou controle, aceitando o que sai.

Estação 3 Corte e costura


Materiais: tecidos.
Proposta: fazer um avental com um tecido branco e retalhos trazidos de casa.
Tendo um tecido branco como base, a prática idealizar e costurar um avental em uma
hora. Cortei um vestido meu e me permiti colocar um coração no avental. Meu lado pensamento
julgou que era um tanto piegas, mas outro decidiu que não estava nem aí. Um lado triste cortava,
outro lado costurava se lembrando de que existia um coração e muita vida palpitando no meu
ser.
Foi muito bom cortar e começar a ressignificar, mas também ouvir meu lado crítico sem
atendê-lo.
No plano simbólico, as linhas nos remetem ao tecido da vida e às Moiras, tecelãs deusas
do destino; por sua vez, o coração é o órgão central do indivíduo. De uma forma geral,
corresponde à noção de centro, mas também da vitalidade. O ocidente coloca o coração como
sede dos sentimentos, contudo culturas tradicionais localizam nele a inteligência e a intuição.
Pode-se dizer que nas culturas tradicionais, o conhecimento se entende em um sentido muito
amplo, que não exclui os afetos. (CHEVALIER, 1986)

Figura 14

Estação 4 –As linhas das mãos

Materiais: bandejas de isopor, guache, papeis coloridos.


Proposta: O que dizem as linhas de nossas mãos sobre a nossa vida? Após uma meditação sobre
as mãos, deveríamos fazer carimbos nas bandejas de isopor, repetidas vezes, mudando a cor do
papel e/ou a tinta.
Foi feito o desafio de usar cores que não usamos regularmente: experimentei o preto e
o vermelho, na repetição da experiência, surgiram novas possibilidades. Surpreendi-me com o
resultado, pois gostei bastante do contraste do preto com os sulcos no papel colorido.

Figura 15

As nossas mãos nos ligam diretamente ao nosso ser e à nossa história, às nossas marcas,
aquelas inscritas no nosso DNA e as que deixamos em tudo o que tocamos. Eu fiz muitos
carimbos em diferentes papeis que, por sua vez, foram utilizados como capas de caderno ou
ficaram expostos, como uma forma de me recordar quem eu era.
A mão, numa perspectiva simbólica, representa a ideia de atividade, potência e domínio.
Expressões como “tomar as rédeas nas mãos” e “abrir mão de” têm o sentido corrente de
começar ou abandonar alguma coisa. Convém se lembrar de que a palavra manifestação tem a
mesma raiz da palavra mão (CHEVALIER, 1986).

Estação 5- Reconfigurar

Materiais: revistas e fotos pessoais de diversos tamanhos.


Proposta: escolher uma fotografia individual e identificar onde se deseja estar. Na continuidade,
outra construção de com quem gostaria de se estar e o que se deseja fazer.
Imaginei-me viajando e passeando por lugares incríveis com a minha filhota.
Gestalt: Sigo neste mundo, sigo na viagem, nossa vida agora é esta, mas vamos continuar a
fazer o que gostamos, desfrutando os prazeres da vida, neste planeta iluminado pelo sol.

Figuras 16, 17, 18

Para me lembrar quem sou e o que gosto. Ficou assim no mural do meu quarto por muito
tempo.

Figura 19

Estação 6 - Travas na vida

Em muitas vilas, na África, quando uma pessoa adoece, perde seu rumo ou entra em
confusão, ela vai ser colocada sob sua árvore, todos têm uma, e toda a comunidade
para o que está fazendo para cantar a música daquela pessoa, aquela que lhe foi
entregue no momento de seu nascimento. Isto até que ela se reestabeleça.
Figura 20

Materiais: flores.
Proposta: confeccionar um arranjo floral.
A prática consistia em identificar as travas em nossa vida e propor uma prática para lidar
com este desafio. A experiência foi realizada em dupla com uma amiga da turma que fez a
proposta.
Após terminado, desenhar num papel as emoções despertadas na confecção do arranjo.
Eu desenhei pequenas explosões multicoloridas que havia sentido. Frustrei-me com o resultado,
mas, me percebi sem vontade, nem energia para continuar ou mesmo refazê-lo.
Ao contar a história africana do começo para minha parceira, percebi que preciso ouvir
o meu som para me reconectar com a minha alma. A prática me permitiu uma reconexão com
as flores, algo que sempre gostei e havia esquecido, e ver que minha energia já brotava, contudo,
estava longe de ser um fluxo vigoroso e contínuo.

Estação 7 - Espelho meu

Materiais: papel canson e lápis coloridos aquareláveis.


Proposta: realizar um autorretrato sem olhar no papel, só olhando a nossa imagem no celular,
que funcionava como espelho.
O autorretrato é um espelho. Realizá-lo foi uma experiência profunda de me olhar, depois de
meses evitando o espelho. No jogo de luz e sombra, embora o lado sombra domine, a sombra
destaca o lado luminoso: a luz.

Figura 21
Estação 8- A travessia do deserto ou ano em que eu renasci

Materiais: papel canson e lápis coloridos aquareláveis.

Figura 22 A travessia do deserto ou ano em que eu renasci

Proposta:
1. Revisitar como foi o ano de 2019.
2. O que se espera para 2020?
3. Escrever uma mensagem com desejos para o ano novo
4. Cada colega deixou suas mensagens nos cartões das amigas da turma.
.
Para representar 2019, desenhei um deserto e uma árvore azul brilhante, que havia visto
em uma meditação naquela semana, uma fogueira muito sem graça, montanhas, céu azul e aves
voando. Representei a minha dor, o deserto, a paralização, o nada, a falta de fé, mas também
uma imagem do ano que voltei a ter sensações. Recebeu o título A travessia do deserto ou ano
em que eu renasci.
O refrão da música do Belchior “Presentemente posso me considerar um sujeito de sorte
(...), Deus é brasileiro e anda do meu lado, assim já não posso sofrer do ano passado, tenho
sangrado demais, tenho chorado pra cachorro, no ano passado eu morri, mas este ano eu não
morro ...”, ressoava em meus ouvidos.
As lindas mensagens deixadas no cartão falam de força, brilho, sabedoria, inteligência,
sagacidade, energia. Na leitura sinto certo estranhamento, pois sei que isto me pertence, mas
não sei onde está, não consigo acessá-las. Eu ainda estava na travessia daquele deserto, deserto,
porque a dor seca tudo; na depressão, a vida fica desvitalizada e o mundo vira um deserto.

Quero deixar para atrás as lágrimas e as dores.


Quero vigor para 2020!
Quero concretizar novos projetos!
Quero acreditar em mim, na vida, no amor!
Quero ser essa árvore frondosa com boa raiz, muitos frutos e boa
sombra!
Quero voar com a mina nave/vaso alada
Verónica
Bem-vinda a 2020!
Estação 9 – Ensaios de mim mesma

Proposta 1: Realizar autorretratos cubistas


Fiz um estudo para compor minha identidade. Em um dos projetos, recortei e montei
cada pedacinho do meu ser. A psicóloga, a professora, a mãe, a filha, a esposa, a irmã, a amiga,
entre outras. O corpo de água, coração vermelho, quatro pernas (um par para a terras e outro
para o mar, foi o que pensei, muito embora no mar não precise delas), braços abertos, um olhão
grande, com um basta! Tudo se movimenta, até o cabelo. O fundo verde e azul, terra e água.
Em outro projeto, inspirei-me nas mulheres de Picasso e fiz um perfil só de traços, dois
lados de mim no espelho. O que olha parece mais severo do que o que está dentro.

Proposta 2: produzirmos papel machê e representarmos uma dualidade com a massa.


Materiais: água e papel higiênico
Eu fiz um bolo amorfo, com muitas pontas, nós, energia concentrada e o oposto, um
caminho que imaginei como uma serpente a caminhar. Na experiência, ao tirar a cola das mãos,
me vi soltando a pele como a serpente. No dia seguinte, peguei para trabalhar uma revista com
uma serpente na capa. Na linguagem da psicologia analítica, uma sincronicidade.
O aspecto simbólico da serpente está ligado à própria vida. Tanto como o homem, a
serpente se distingue de todas as espécies de animais. A serpente, símbolo da medicina, aparece
como a grande regeneradora. Ser que desliza entre os dedos como se desliza através do tempo,
do espaço e das regras, daquilo que é razoável, para se refugiar no mundo subterrâneo do qual
provém, e onde se imagina, intemporal, permanente e imóvel em sua plenitude. Todas as
grandes deusas da natureza, têm a serpente como atributo. O símbolo também remete ao
Ouroboros, uma serpente que morde a própria cauda. O círculo também costuma estar associado
ao Ouroboros, o que parece indicar, além do eterno retorno, a espiral da evolução, a dança
sagrada de morte e reconstrução (CHEVALIER, 1986).

Proposta 3: o que aprisiona?


Material: Tela de galinheiro
A tela de galinheiro é um material maleável que pode ferir. Seu manuseio requer atenção
e cuidado, nada esconde, contendo alto valor simbólico, pois é utilizado como prisão de
galinhas.
Eu fui na literalidade, construí uma gaiola, depois abri janelas e fiz vários caminhos por
fora com o arame. Essa prática me levou a revisitar a minha prisão interna, mas agora com um
novo entendimento, o caminho era do mesmo material da prisão, ou seja, somente a segurança
que experimentara me possibilitou sair da redoma/prisão e caminhar para novas possibilidades.
O que estrutura também dá segurança.

Proposta 4: construirmos uma máscara de gesso.


Material: gesso.
Ao ter o rosto coberto de camadas de gesso, parecia estar sendo erguida uma muralha
separando o mundo externo do interno. Ao abrir os olhos me vi habitando uma pele que não era
a minha, habitava naquele instante, um espaço interior. Depois de alguns minutos, que
pareceram eternos, quando o gesso secou, sobreveio a experiência de retirar essa máscara/pele
e vê-la, ou seja, me ver, ver um eu fora de mim. Nesse dia, revisitei um lugar vivenciado durante
o luto, apresentado por Pedro Almodóvar em seu filme, A pele que habito.

Proposta 5: esculpir o cimento, identificando o que se quer retirar.


Material: um paralelepípedo de cimento airado.
Vi que a camada (ou pele?) que mais me incomoda é a que me diz que eu não sou boa
o suficiente para tanta coisa... Peguei o cinzel e tentei furar o bloco porque queria que a prisão
tivesse saída, depois de brigar com o material, sem muito resultado, vi que seria mais prazeroso
abrir caminhos no cimento. No fim, me vi retirando camadas para que a própria pedra se
revelasse, abrindo mão do controle e aceitando o que vinha e o prazer da nova experiência,
conversar com a vontade do material.
Percebo que a minha vida hoje tem caminhos e tem cores.

Figuras 23,24 e 25

Proposta 6: exposição.
Título: Tudo isso sou Eu!
Forte me ver nisso tudo!
Forte me ver de muitos ângulos!
Forte ver também todos eles me olhando!
Legal dizer:
Eu que fiz!
Eu que abri essas portas!
Eu que construí esses caminhos!
Eu que cortei essas grades e caminhei por cima disso tudo!
Eu que me recriei.

Figura 26

Dentro da máscara, meu lado sombra me surpreende, pensei que encontraria dor e
melancolia, mas percebo tranquilidade e delicadeza, identifico poesia e beleza.
Esta prática remete a dois conceitos da psicologia analítica, sombra e persona, conceitos que
são como dois irmãos, um estudo em contrastes observa Stein (2006).
O que a consciência do ego rejeita torna-se sombra; o que ela positivamente aceita,
aquilo com que se identifica e absorve em si, torna-se parte integrante de si mesma e da persona.
A personalidade da sombra não está visível e só aparece em ocasiões especiais. O mundo
ignora, em maior ou menor grau, a existência dessa pessoa. A persona está em muito mais
evidência. Ela desempenha um papel oficial, cotidiano de adaptação ao mundo social.
Um dos fatores psíquicos inconscientes que o ego não pode controlar é a sombra. De
fato, o ego, usualmente, não possui sequer consciência de que projeta uma sombra. Sendo
inconsciente, a sombra aparece ao ser projetada em outros. Se uma pessoa rechaça
completamente a sombra, sua vida pode parecer correta, mas está terrivelmente incompleta.

A PANDEMIA NOS ENCONTRA


1º aula online – 23 de maio 2020
Nos primeiros meses de 2020 fomos atropelados pela Covid-19. Tudo parou em março,
iniciava-se uma quarentena que duraria mais de um ano. Naquele momento, recolhemo-nos
para o interior de nossas casas, enquanto acompanhávamos a letalidade do vírus pelas notícias.
Escrevo em novembro de 2021, já vacinada, mas é preciso lembrar que pandemia colocou-nos
frente a possibilidade da morte na virada da esquina, mas eu já conhecia esse lugar.
Naquele momento, iniciamos uma migração e também adaptação das aulas do curso de
Arteterapia ao novo formato, o online.

Estação 10 - Recursos na pandemia


Atividade – A vida sob a pandemia
Proposta: Responder a pergunta “Como vocês estão?” em imagens.

Figura 27

Representei a minha vida dentro de quatro paredes, com a sensação de que a vida estava
correndo fora.
Na sequência, representar nossos recursos para atravessar o momento.

Figura 28 Cozinhando

Representei um caldeirão no fogo, pois estivera cozinhando bastante, minha estante de


ferramentas e temperos, uma tartaruga, para me lembrar de que é preciso entender o tempo;
pela janela, vejo o fogo lá fora. Estivera estudando, pela primeira vez na vida, a transformação
dos alimentos, em busca de um equilíbrio interior em meio ao conturbado cenário
Esse caldeirão também me remete à ideia de passar pelo fogo. Os alquimistas eram
conhecidos como mestres do fogo, seu paciente trabalho de transformação dos materiais para
chegar ao ouro alquímico foi recuperado por Jung, que identificou que eles trabalhavam a
matéria, mas a verdadeira transformação ocorria no plano interno.
Estação 11- Teia da confiança
Julho 2020 - Prática trabalho com grupos
Em meio à pandemia, a turma se articulou e passamos a nos reunir no modo online, os
encontros semanais duraram até julho de 2020. Realizamos diversas vivências arteterapêuticas
de grupo; este trabalho configurou uma rede fraterna de fortalecimento mútuo para atravessar
aquele momento desafiador do isolamento. Destacarei apenas uma das dinâmicas.
Materiais: papel sulfite A4 e lápis coloridos.
Proposta: a partir de uma meditação guiada, que passeava pelas emoções que a pandemia havia
produzido colocando-as no papel. Depois, colori-lo e descobrir figuras.
Eu vi caminhos, montanhas, rios. Num insight, vislumbrei uma teia; percebi que as
inúmeras trilhas percorridas já formavam uma teia que me permitiria sentir confiança. A Teia
de confiança foi um divisor de águas, ao permitir uma awareness, a consciência de que nada
havia sido em vão, com esta imagem havia fechado uma grande Gestalt.

Figura 29 Teia de confiança

Estação 12 – Hércules para a pandemia


Buscando lidar com os desafios da pandemia, encontrei um herói da mítica grega para
companhia. Dediquei-me ao estudo de Hércules, Héracles em grego, o memorável filho de
Zeus, o senhor do Olimpo, e da mortal Alcmen. Muito humano em suas paixões, Hércules é
também detentor de uma determinação inquebrantável, cumpre suas inúmeras e desafiadoras
tarefas, conquistando a imortalidade. Não apenas estudei toda a simbologia de seus 12
trabalhos, mas também desenvolvi e realizei diversas atividades arteterapêuticas para eles.
Este estudo levou-me a planejar uma proposta de estágio com adolescentes Heróis para
pandemia. Esta proposta foi feita em agosto e em setembro começou a ser implementada com
jovens de duas escolas públicas do município de São Paulo sob a supervisão da professora
Eloisa Fagali.
Figuras 30, 31, 33

Estação 12 - A estrela do mar que saiu pra passear


Materiais: elementos da casa, temperos e guaches e 5 quadrados de papel que vão aumentando
de tamanho.
Proposta: Expansão e contar uma história. Começando com um quadrado de 3,5x 3,5 cm,
continuando em outro de 7cmx 7cm, até chegar a 56x56cm, a cada novo quadrado trabalhar a
imagem.

História -A estrela do mar que saiu pra passear


A estrela do mar, estava dentro d’água, chegou na areia,
depois se juntou aos pássaros revoando. Vermelho
sangue se transformando.

Figura 34

Um anis estrelado foi o ponto de partida. Eu havia planejado uma proposta, contudo o
guache aguado não obedeceu, ele fluiu. Trabalhar com os materiais fluidos leva a perceber
como lidamos com o imprevisto, o que não se controla.
O meu trabalho falava sobre a transformação. Uma estrela do mar solitária que
caminhou e se transformou. Fico bem satisfeita com o resultado.
O exercício levou-me a pensar que precisava aceitar e trabalhar com o material que a
vida me dá e me abrir para o novo.
Estação 13 - transtornos
Proposta: expressar plasticamente alguns transtornos psíquicos.
Nesse momento eu registrei a depressão. Pude criar uma expressão para o que havia
vivido.

Figuras 35 e 36 - Depressão

Estação 14 – um ano de pandemia


Material: Sabonete
Proposta: representar plasticamente o jovem nesta pandemia.

Figura 37 O jovem na pandemia

O jovem está descascado, podado, sem braços, sem mãos e sua cabeça tem forma de
capacete. Qual estratégia de enfrentamento? Na reconfiguração, a escultura ganhou braços.
Mãos à obra e asas à imaginação, para tirar o peso da cabeça.
Gostei da escultura e da foto, que retrata o “novo normal”, a vida por trás das telas,
devido à pandemia.

Estação 16 - expressão sonora


Proposta: sentir uma música e transpô-la em cores e formas. Depois identificar as imagens que
aparecem .
Figura 38 Cruzando o rio

Vi muitas águas, vi areia, um rio, uma cachoeira descendo, uma ponte e um sujeito
atravessando, já quase chegando ao outro lado.

Estação 17 - movimento
Material: argila
Proposta: A partir das dançarinas de Degas, escolher duas imagens, vivê-las no corpo e depois
expressar a nossa própria bailarina na argila.

Figura 39 Minha dançarina

Minha bailarina queria rodopiar, não queria ficar em nenhuma posição estática. A argila
dançou nas minhas mãos e meu ser também. Vivenciei a dança e com a argila formamos uma
união. Foi uma delícia, até que o movimento parou e a dançarina descansou. Senti aquilo que
os escultores contam; muitos dizem que eles não criam, mas revelam o que o material contém.
Eu fazia a vontade da argila.

Estação 18 - Renovação
Proposta: escolher uma roupa pessoal e transformá-la.
Saiu do fundo do baú um vestido carregado de lembranças, foi bem dolorido olhá-lo,
mas senti que estava na hora de fazer alguma coisa com ele, nem que fosse picotá-lo. O tecido
ficou semanas parado em um sofá; em certo momento, comecei a descosturá-lo, separando a
blusa da saia, passei dias cortando ponto a ponto, porque as duas partes estavam bem presas.
Acredito que nesse cortar, cortei um tanto da minha dor. Gostei bastante do resultado.
Percebo o trabalho de transformação interna na transformação de nossas roupas.
Figura 40 Renovada

Estação 19 – Meu som

Proposta: fabricar um instrumento com materiais inusitados.

Figura 41

Esta prática permitiu pensar no meu som.

Estação 20 - Renascimento
Proposta: trazer uma música que evocasse as perdas sofridas e criar um travesseiro.
Eu ouço Como la cigarra, na voz de Mercedes Sosa.
Despues de um año bajo la tierra,
a mi própio entierro fui sola y llorando.
Igual que sobreviviente que vuelve de la guerra…

Figura 42 Travesseiro verde

Reuni retalhos de vestidos queridos, meias que só restava um pé, alguns bichos de
pelúcia desconjuntados, igual a como eu fiquei, me vi em cada pedaço. Foi bom olhar e reunir
essas partes. Para fechá-lo coloquei fitas de cetim colorido. Ficou gostoso de me apoiar!
No compartilhamento, uma colega colocou, “Eu fui criada para ser forte!” Me reconheci
nesta fala. Eu também fui criada para ser forte, contudo, há um tempo, descobri que há grande
força em poder sentir esses sentimentos dolorosos; ser forte não é não sentir, encapsular a
sensibilidade, mas poder sentir.
Foi das experiências mais fortes.

Atividade 2: com a flores e folhas secas fazer uma criação que remeta à minha música.

Figura 43 Algo cresce a partir do caos

Ao som de diversas músicas da trilha sonora de minha vida, como Andares, um poema
de Antonio Machado, musicado por Joan Manuel Serrat, Amarelo de Belchior na versão
remoçada do Emicida, Quereres de Caetano Veloso, entre outras.
Peguei no jardim flores, raízes e galhos secos. Usei o verso uma folha usada, vejo que
lhe falta um pedaço. Escolhi esse papel para reciclar mesmo, “falta um pedaço em mim
também”, pensei. A raiz seca da orquídea subiu, tornou-se tronco, uma folha transformou-se
em barco, a cor vermelha me lembrava que “tenho sangrado demais”; o sangue quis fluir,
navegar e tornar-se flor. Dancei muito ao fazer o trabalho, fiz cair uma chuva de folhas secas,
me remeteram à chuva fertilizante.
Vejo uma planta nascendo num jardim e um banco para as pessoas se sentarem.

A dor que já foi alegria


Hoje não quer mais doer
Quer sair pra passear
e voltar a viver

Penso que os pés de meia entraram no travesseiro porque já não queriam serem tão
sozinhos. Ao ver a minha representação do ciclo, senti a vitória da semente, um reconhecimento
do mistério morte-vida. Reconhecer o mistério morte-vida, foi uma das últimas tarefas de
Hércules na mítica. Agora estou viva.
Estação 21 –Conversa entre duas Senhoras

Figuras 44 e 45

Senhora Morte e Senhora Vida


Material: papel manteiga, creme de rosto e lápis colorido.
Proposta: criar uma máscara a partir do nosso rosto para a morte e depois outra para a vida. No
final fazer um diálogo entre as duas.
Pintei a máscara utilizando as imagens mexicanas para o dia dos mortos. Honrando a
Senhora Morte, vi percursos, montanhas e sabedoria. A minha máscara da morte, pode ser
escura, mas é simpática e tem coração. Traz um livro na testa, meus lábios vermelhos e muito
cabelo.
Depois foi a vez de criar a máscara da Senhora Vida. A vida vem das águas que correm
dentro e fora de mim, afinal viemos das águas, há borboletas voando acima do mar. Há terra,
material do qual somos feitos, solo fértil para crescer. Há muita vida que corre! Há muito que
plantar e colher!

Diálogo entre as Senhoras da Vida e da Morte


Depois de um intenso mútuo fitar:
M: Eu sou você de uma outra forma, mas acorde, aproveite!
V: Eu vou me preparar para chegar até você, vou realizar por todos os meios a beleza da vida,
o amor...
M: Você tem muita vida!
V: Você tem mistério! Você tem sabedoria! E tem o meu amor...
M: Você me tem também!

Epílogo - A vida em seus ciclos. Um ponto, muitas linhas


Não é sobre ter todas as pessoas do mundo pra si
É sobre saber que em algum lugar alguém zela por ti
É sobre cantar e poder escutar mais do que a própria voz
É sobre dançar na chuva de vida que cai sobre nós
É saber se sentir infinito num universo tão vasto e bonito
É saber sonhar
E então fazer valer a pena
Cada verso daquele poema sobre acreditar
(Ana Vilela, Trem bala)

Proposta: Cada aluna da turma ficou responsável por produzir um vídeo abordando alguns
elementos do conteúdo do curso de Arteterapia, que contribuíram para a sua formação com
vistas a apresentá-lo à turma no módulo final que ocorreria no último final de semana de outubro
de 2021.
A partir de fotos da minha produção e das minhas colegas ao longo do curso, tanto
presenciais como online, produzi um vídeo “A vida em seus ciclos. Um ponto, muitas linhas”.
Em 3 minutos e 20 segundos, recuperei ao começo de nossa trajetória no Sedes, o ponto, o
nosso Marco Zero, abordei os ciclos da vida, com sua beleza e seus desafios, apresentando no
final, todas as conversas da Vida com a Morte. As imagens se sucedem ao som da música Trem
Bala de Ana Vilela, na voz de Luiza Possi, lembrando que a vida se cria e recria sempre de
múltiplas e, por vezes, inusitadas formas.
Esta produção trabalha a consciência da preciosidade da vida, afinal “somos todos
passageiros de um trem prestes a partir”. Uma consciência de uma mulher que ao longo de sus
53 anos já andou por diferentes caminhos, viu muita escuridão e muitos amanheceres e muita
água passar por baixo da ponte.

Escolhi o tema dos ciclos da vida para marcar o fechamento de um ciclo, o de aluna do
curso de Arteterapia, e para iniciar outro, o de profissinal, para assim me dedicar às artes dos
guardiões do templo.
Os ciclos como aquela serpente que serpenteia, volta ao ponto inicial, mas já não é mais
o ponto inicial. Toda chegada inaugura uma despedida, porque todo final é também um começo.
Nesta jornada, adquiri muita consciência da vida, de seus ciclos e das artes da
transformação, espontânea tal como a que ocorre na natureza, ou guiada por objetivos
terapêuticos.
Me despeço deste ciclo bem diferente do que comecei, sinto gratidão por ter vivido tudo
o que vivi, sigo com a alma desperta para seguir na jornada com vigor e alegria, levando a quem
precisar a grande ferramenta da arte como terapia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A experiência do Eu traz um sentimento de estarmos em terra firme dentro de


nós mesmos, num trecho de eternidade interior que nem mesmo a morte física
pode tocar”. (VON FRANZ, 1975, p. 74 in NICHOLS, 207, p. 342)

Foram 21 estações. 21 é a carta do mundo no Tarô. Comecei falando sobre a carta da


morte e termino com a carta do mundo. No plano simbólico, 21 é o número da maioridade;
trata-se de um número que indica uma longa jornada, com muitas etapas, após as quais se
alcança meta.
Na carta 21 do tarô de Marselha, uma bailarina dança desnuda, se expõe livremente,
sem recato exagerado e sem pudor; neste trabalho a bailarina que habita em mim dançou e me
permiti expor diferentes aspectos da minha psique e da minha alma, sem recato e sem pudor,
procurando mostrar algumas nuances daquilo que foge às palavras. Trata-se de uma exposição
para aproximar o leitor da discussão, buscando promover um contato com esta dimensão da
vida que fica sendo evitada, quando não medicada e o sujeito, sem condições de elaborar o seu
sofrimento. Não raro, ele se sente inadequado, por não conseguir fazer coisas triviais como sair
e conversar com amigos, como se ele estivesse errado por sentir o que sente, por não reagir, não
dar a volta por cima.
O luto é parte da vida; para viver é preciso passar por muitas mortes, pelo menos
simbólicas, ao evitá-las é que se corre o risco de perdermos a vida e a nossa alma. Em certos
momentos, a alma precisa recolhimento, eis o sentido da depressão.
O silêncio sobre o luto e a depressão não ajuda, pelo contrário, nos deixa sem
referenciais para entender o que ocorre no mundo interno, além de que não vamos escapar da
morte de pessoas queridas, nem da nossa própria morte, alguma hora ela chega. Este dado de
realidade ficou evidente nesta inusitada pandemia devido à COVID-19, a qual, só no Brasil,
tirou mais de 610 mil vidas e ainda não vivenciamos o devidamente o seu luto.
No tarô 21 é um fim, mas também um começo, uma vez que um novo ciclo se inicia,
apontando ao mistério da transformação.
A vida precisa da morte, o apego a antigas formas é uma das formas da morte: a
cristalização em um passado que não existe mais. Contudo, nossa relação com as mudanças é
conflituosa, frequentemente lhes resistimos, não raro, elas nos encontram, causando dor ou
alegria, ensinando que nos toca vivenciarmos o mistério da transformação. Se até a matéria está
sempre transformação, por que o humano seria diferente?
A natureza com seus ciclos dá pistas sobre o mistério da transformação, mas certamente
a arte permite a nós humanos, realizarmos esse mistério.
Ao longo do curso, foram muitos trabalhos, toda escolha é parcial, deixa muita coisa
relevante de fora, mas acredito que as obras apresentadas revelam um percurso. Sempre é
preciso fazer escolhas. Não escolher, já é uma escolha. Em meio ao luto, escolher a vida deu
um trabalho insano, na verdade, foi um trabalho salutar, mas verdadeiramente árduo, com
muitos momentos desesperançados, ao ver que se rema, rema e não se sai do lugar; nesses
momentos, nos quais se quer desistir, chega a compreensão do porquê muitos tratamentos para
depressão e/ou outros transtornos psíquicos fracassam. Vencer uma inércia requer uma energia
e uma determinação que o sujeito, naquele momento, raramente consegue ter sozinho. É
necessária a presença de um Guardião do Templo que acompanhe a travessia que permita o
sujeito reencontrar as imagens de sua alma e voltar à vida.
No curso, ao lado de colegas e professoras queridas, a cada nova experiência, bem como
a cada nova Gestalt fui sendo fortalecida; ao reencontrar a minha cor, a minha expressão, o meu
som, novas imagens passaram a habitar minha alma, tornando possível a recuperação da
confiança na vida e nesse percurso me tornar uma arteterapeuta.
A arteterapia alimentou a minha alma, sem ela estaria talvez patinando em meio ao luto.
Sem dúvida, a criatividade é uma necessidade, hoje, entendo as palavras de Fayga Ostrower:
nossa vida precisa desta experiência para se renovar.
Nunca participei de nenhuma colação de grau de nenhuma das minhas três graduações,
mas ao finalizar os módulos do curso de arteterapia percebi que este curso foi especial, senti
como se tudo o que tivesse estudado e o que tivesse passado, ocorrera para chegar aqui neste
lugar e com esta experiência.
A antiga máxima “Conhece-te a ti mesmo” ganhou outra dimensão com a arteterapia.
Hoje, me percebo arteterapeuta, como se a trilha percorrida no profissional e no pessoal me
tivesse graduado como uma Guardiã do Templo. Renovada e revigorada, parto para um novo
ciclo.
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