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Marcia Moraes
A tarefa de apresentar meu trabalho de tese de doutorado aqui nesse evento fez com que eu me
deparasse com uma folha (ou tela) em branco que me levava a uma interrogação insistente: o que
dizer da minha tese, como apresentá-la mais de um ano depois de tê-la defendido? Passei alguns
dias inquieta, perturbada com a folha em branco e a pergunta que ela me fazia formular. Mas essa
inquietude não foi em vão. Eu fui levada a perceber que a questão que eu tratei de discutir no meu
doutorado - uma questão que diz respeito à epistemologia da psicologia - estava, de um modo ou
de outro, presente na minha dissertação de mestrado. Nesta última eu pesquisei as relações entre
gestaltismo e fenomenologia e concluí o trabalho afirmando a necessidade de uma filosofia da
ciência que estivesse "alerta às transformações conceituais na episteme contemporânea [e que
pudesse abrir] novos espaços de reflexão à psicologia cognitiva." Esse foi o ponto de partida da
minha tese de doutorado.
A tese parte de duas questões correlacionadas: a primeira diz respeito aos debates em torno da
cientificidade da psicologia e a segunda se refere à insistência do problema do erro no terreno das
pesquisas psicológicas.
O problema do erro produzido no exercício do conhecimento foi considerado pela psicologia dos
processos cognitivos como algo a ser justificado e corrigido numa lei geral. O objetivo da
psicologia no século XIX era considerar o erro como um atributo do sujeito do conhecimento, algo
que deveria ser corrigido e equacionado numa lei geral. A psicologia como ciência experimental da
cognição tinha como alvo postular uma equação que explicasse a origem dos erros produzidos
pelos sujeitos. A experimentação controlada era utilizada como meio para alcançar a correção do
erro e, com isso, fazer da psicologia uma ciência rigorosa, objetiva, experimental. No século
passado, falar de ciência era sinônimo de ciência experimental pautada na afirmação de leis
gerais, na verificação e no rigor matemático.
A psicologia foi marcada por inúmeras dificuldades para se definir como ciência experimental dos
processos cognitivos. Oscilando entre filosofia e ciência natural, a psicologia se caracterizou pelas
contradições entre o projeto de reconhecer no homem as mesmas leis que regem a natureza e os
postulados que baseiam a construção de uma ciência experimental. O que importa nesse caso
não é retomar o tema da inserção ou não do homem no domínio da natureza, mas sim, considerar
tais contradições como ponto de partida para a invenção de um estilo de ciência para a psicologia,
um que faça do erro uma positividade, um ponto de diferenciação dos processos cognitivos. Aqui é
toda uma postura filosófica e epistemológica que está em causa.
A epistemologia de língua francesa, particularmente representada por Canguilhem, é uma
referência importante quando se trata de discutir a cientificidade da psicologia. A perspectiva de
Canguilhem é interessante porque se apresenta distante do sentido forte do termo epistemologia,
isto é, uma postura epistemológica que funciona como uma espécie de julgamento do
conhecimento delimitando que tipo de conhecimento deve ser considerado como válido. A primeira
vista, a perspectiva de Canguilhem não se coaduna com a epistemologia nesse sentido forte uma
vez que, alinhando o conhecimento sobre a deriva própria da vida, o autor estabelece uma aliança
peculiar entre razão e errância. Nessa linha de argumentação, a tarefa da epistemologia não se
esgota num julgamento da ciência e do conhecimento. Trata-se antes de acompanhar o modo
como uma ciência se constrói a partir de uma articulação muito singular entre erros e acertos.
Para Canguilhem a vida, assim como o conhecimento se caracteriza como uma atividade
normativa, isto é, como instituição de normas instáveis, locais e provisórias. A vida, do mesmo
modo que o conhecimento é o que se define como improvisação, utilização de ocorrências, numa
palavra a vida tolera monstruosidades. O conhecimento, ele próprio enraizado na vida, define-se
pela articulação entre erro e errância.
Assim, se por um lado, a epistemologia de Canguilhem parece lidar com uma possibilidade de
errância própria do pensamento, por outro lado, ela reconduz tal errância a uma normatividade.
Desse modo, epistemologia e psicologia se apresentam como duas pontas articuladas de uma
mesma questão: encontrar constantes ou universais seja como elementos constitutivos do sujeito,
seja como elementos constitutivos da ciência. Tanto uma quanto outra estão comprometidas com
os pressupostos daquilo que Deleuze chama imagem dogmática do pensamento. Pressupostos,
que num sentido geral, entendem o pensamento por meio de sua afinidade com o verdadeiro,
como se o pensar tivesse uma direção orientada para o verdadeiro. Trata-se nesse caso, de
identificar o pensamento a uma recognição do verdadeiro. O erro é um atributo do sujeito que
conhece e funciona como uma testemunha disso de que ele se desvia. Se o pensar é identificado
à recognição então tudo aquilo que se diferencia dessa recognição é tomado como um erro, algo a
ser corrigido e orientado para o verdadeiro. Psicologia e epistemologia estão ambas amarradas a
esses pressupostos da imagem dogmática do pensamento. Embora a epistemologia de
Canguilhem opere um deslocamento nas discussões acerca da ciência, deslocamento que se
deixa entrever pela aliança entre o conhecimento e as instabilidades da vida, ela reconduz a
aventura da razão a um processo de instituição de normas. Com isso é todo um campo de
investigação que fica em aberto e nos leva a perguntar o que significaria pensar a ciência e a
psicologia, fora dos moldes epistemológicos. Ou dito de outro modo, como pensar a cientificidade
da psicologia fora do eixo epistemológico, distante portando dos pressupostos que constituem
uma ortodoxia para o pensamento? A epistemologia não esgota o campo possível de discussões
em torno das práticas científicas.
É nesse contexto que se faz presente a noção de rede tal como foi proposta por Bruno Latour,
Michel Callon, John Law dentre outros. A noção de rede é importante para lidarmos com um modo
singular de tratar de ciência: ela situa as discussões em torno das ciências num cruzamento com a
filosofia da diferença proposta por Deleuze & Guattari e por Serres. Isso significa retomar a
discussão em torno das práticas científicas, de suas metas e limites, fora do terreno
epistemológico. Por esse motivo, parece-me que a noção de rede pode ser a pedra de toque para
reativar o campo problemático constitutivo do saber psicológico: a polêmica em torno de sua
cientificidade e a insistência do problema do erro.
A teoria ator-rede tem como proposta básica estudar a ciência em ação, a ciência praticada pelos
cientistas nas bancadas dos seus laboratórios. O objetivo é submeter a escrutínio o conteúdo das
ciências - terreno até então inexplorado pelas pesquisas epistemológicas. Trata-se de enfocar a
ciência como um domínio de ação composto de elementos díspares e heterogêneos. Porque se
teoricamente os cientistas falam do rigor e da objetividade dos seus métodos, da exatidão de seus
instrumentos de análise, na prática eles não cessam de misturar dados à rivalidades,
experimentos à financiamentos, laboratórios à imprensa. Do ponto de vista de sua prática uma
ciência não se define pelo exercício de uma razão ascética, purificada de qualquer elemento
perturbador, ela se apresenta antes como um processo de bricolage, como uma hibridação de
elementos tão heterogêneos quanto a determinação de um cientista, um prêmio Nobel, um
experimento. Isso significa ver a ciência não como uma representação da natureza, mas como
uma fabricação ao mesmo tempo do mundo natural ao qual nos referimos e do mundo social em
que vivemos.
Uma ciência se define portanto por meio de conexões entre atores díspares e heterogêneos.
Racionalidade, veracidade, objetividade são efeitos de tais alianças, são efeitos negociados em
rede. Não há de saída um princípio transcendente que possa prever e explicar os resultados de
uma prática científica. Para fazer existir um fato, um cientista precisa interessar isto é, mobilizar
aliados humanos e não-humanos. Ele precisa operar uma série de desvios e deslocamentos para
que um fato possa interessar a mídia, ao mercado consumidor, aos outros cientistas - seus caros
colegas - aos periódicos de divulgação científica. Numa palavra, um fato científico é impuro por
natureza e destino e é justamente dessa impureza que depende sua existência.
Fazendo da atividade científica uma prática de hibridação, a noção de rede situa a ciência numa
relação de ressonância com a filosofia da diferença de Serres e de Deleuze & Guattari. Num
sentido amplo, tais filosofias afirmam o real como uma multiplicidade. A novidade da teoria ator-
rede é, a meu ver, fazer operar noções filosóficas no domínio da ciência. Trata-se de entender as
ciências por meio de outras alianças, diferentes daquelas que estiveram na base do pensar
epistemológico. Porque se a epistemologia é uma das pontas do pensamento moderno, implicado
conforme Latour, numa filosofia de fundo kantiano, preocupada com as condições a priori do
conhecimento, a teoria ator-rede encontra implicações com a filosofia da diferença, tanto aquela
proposta por Serres quanto aquela proposta por Deleuze e Guattari. A própria noção de rede é
afirmada por Serres como um domínio de fluxos, circulações e alianças entre elementos díspares:
domínio ontológico que atravessa todas as nossas práticas. Não há nesse campo nenhuma
referência a priori a uma entidade fixa que funcionasse como parâmetro de verdade ou
objetividade. A noção de rede faz valer na ciência um princípio de multiplicidade. A ciência
entendida como rede de atores é, a meu ver, um outro modo de afirmar aquilo que Deleuze e
Guattari chamam de ciência nômade, isto é, uma ciência que considera as coisas como
multiplicidade e cujo modelo é de devir e heterogeneidade. A teoria de rede de atores se instala no
coração das práticas científicas, nos laboratórios de P&D, na cozinha da ciência para mostrar até
que ponto os fatos científicos são tramados e tecidos numa rede em contínua transformação, rede
que agencia elementos díspares.
É certo que falar em rede de atores não implica descartar a epistemologia. Não está em questão
estabelecer um dualismo do tipo teoria ator-rede ou epistemologia. Não está em cena uma relação
de superação. Importa mostrar que a noção de rede articula diferentemente psicologia e
epistemologia.
A epistemologia proposta por Canguilhem, apesar de supor uma dispersão das ciências, apesar
ainda de lidar com uma certa deriva na formação dos conceitos científicos, acaba por funcionar
como um saber integrado as ordens de razão de cada ciência definidas por Canguilhem como
normatividade, instituição de normas. Nesse enfoque, a epistemologia, embora acompanhe as
ciências em sua facticidade, em sua dispersão empírica, acaba por reconduzir a dispersão à
instituição de normas. Por outras palavras, tais epistemologias funcionam como linhas auxiliares e
integradas a cada linha científica. No entanto, a multiplicidade que define o real faz referência a
um outro estilo epistemológico, porque, nesse caso, uma ciência é afirmada como uma rede de
ação, isto é, como multiplicidade-agenciamento, atravessada por linhas de fuga, por derivas que
cabem à epistemologia acompanhar. Trata-se, assim, de linhas epistemológicas sensíveis à
variação científica, são linhas que não se põem a julgar ou a normatizar a investigação científica
em nome de uma verdade de Razão, mas que, ao mesmo tempo, por força de sua inspiração
numa ontologia da diferença e do problemático, deixam de ficar a reboque tão somente das
seqüências teoremáticas das linhas de ciência. As aventuras epistemológicas podem ocorrer
como explicitação de redes de ação constitutivas das ciências. Ao definir as categorias científicas
como um engajamento prático, como redes de ação, Stengers propõe uma epistemologia cuja
preocupação não é estabelecer um princípio da verdade “em nome da ciência”. Ela propõe, ao
contrário, um enfoque das ciências por sua multiplicidade, seus agenciamentos e seus riscos.
Resta estabelecer em que medida uma ontologia em rede faz derivar a psicologia no estudo dos
processos cognitivos.
A meu ver, as condições de formulação de uma psicologia nômade remetem a dois pontos
cruciais: o primeiro diz respeito ao problema do erro; o segundo, ao estilo de ciência que define a
psicologia. Quanto ao primeiro ponto, parece-me que, para seguir a multiplicidade que define o
real, cabe à psicologia tomar o problema do erro como distribuição nômade, como deriva, e não
como algo a ser corrigido e superado numa lei geral. Numa palavra, cabe à psicologia seguir as
linhas do seu campo problemático, isto é, o erro como errância. Para isso, a cognição não deve
ser considerada como um processo representativo, como alguma coisa mais ou menos fiel a um
real dado de antemão. Ao contrário, a cognição deve ser considerada por seus agenciamentos,
como um processo heterogenético cujos elementos são díspares. A cognição nesse caso, não se
define como um atributo do sujeito cognoscente, mas como uma cognição em rede, uma cognição
aberta, distribuída pelos atores que compõem uma rede, sejam eles humanos, sejam não-
humanos. Os estudos sobre a técnica, na perspectiva das redes, fazem valer essa cognição
aberta, móvel, instável. Latour indica que um dispositivo técnico se define como um emaranhado
de instruções, ações que são desviadas e traduzidas para materiais os mais díspares. No caso
simples de um quebra-molas, há uma série de deslocamentos de ação, de interesses: controlar a
velocidade dos carros, garantir a segurança das crianças na saída da escola são deslocados e
aliados ao cimento, à tinta, ao asfalto que formam o quebra-molas. Um dispositivo técnico está
implicado numa rede de ação, num processo de distribuição de agência, de competência, de
cognição. Na teoria de rede, a cognição é uma dentre outras atividades ontológicas deslocadas,
distribuídas entre os atores que compõem uma rede. Longe de ser um atributo de um sujeito, a
cognição passa a ser um efeito de um enlace entre humanos e não humanos. Dito de outro modo,
se os dispositivos técnicos implicam uma redefinição dos nossos valores, da nossa moral eles
implicam também uma redefinição da própria cognição.
A psicologia dos processos cognitivos se situa num campo de fabricação da cognição, isto é, no
domínio dos seus agenciamentos com os dispositivos técnicos. Os estudos em cognição se
deslocam, portanto, do eixo da representação para o domínio de sua fabricação nas redes.
Quanto ao segundo ponto, é certo que somente uma psicologia em ação pode dar conta da
cognição produzida nas redes. Ação, nesse caso, não deve ser confundida com a conduta nos
termos behavioristas. Conduta diz respeito a padrões mais ou menos fixos de comportamento.
Uma psicologia em ação deve ser entendida em termos de composição de alianças perfomativas.
Uma psicologia atravessada ela também por um nomadismo, por linhas de fuga e por
instabilidades. A noção de rede é, a meu ver, a realização desse estilo de ciência. A uma cognição
híbrida é necessária uma psicologia em ação.
Entender a psicologia como rede é também afirmar a sua relação horizontalizada com domínios
dispares. Horizontalizadas porque não importa tomar uma ciência qualquer como exemplo e
modelo de cientificidade a ser reproduzido. Cada linha científica se caracteriza por suas práticas,
suas redes, havendo, no entanto, entre elas um campo de ressonância, de interferências
cruzadas. Há entre as diferentes linhas científicas relações de devir de tal modo, que os
problemas que afetam uma linha científica podem ressoar em outro domínio sem que isso
implique a formação de um ideal transcendente a ser repetido. É o sentido do parlamento das
coisas no qual o cientista não é o único representante de um fato. Nesse sentido, a psicologia
convive com a antropologia, com a informática, a sociologia, a física num relação horizontalizada e
de interferências cruzadas. A singularidade do saber psicológico é referida a seu ponto de
inserção nos estudos em cognição: seguir a sua fabricação nas redes.
Bibliografia:
___________. Ideologia e Racionalidade nas Ciências da Vida. Portugal, Edições 70, 1977.
Guattari, F. Caosmose. Um Novo Paradigma Estético. Rio de Janeiro, Ed. 34, 1992.
___________. Petite Réflexion sur le Culte Moderne des Dieux Faitiches. Paris, Les Empêcheurs
de Penser en Rond, 1996.