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As três operações do espírito.

A lógica, como se viu, é a ciência e a arte da atividade racional do espírito. O ato


próprio dessa atividade é o raciocínio, quer dizer, o "discurso" organizado pelo qual se
avança no conhecimento da verdade. Porém, há outros atos ou outras operações que
entram como elementos na estrutura do raciocínio. A primeira tarefa que se impõe é a
de distinguir e de definir essas diversas atividades, o que nos assegurará um primeiro
princípio de divisão de nossa ciência. Uma análise elementar permite distinguir três
operações do espírito.
A simples apreensão, ato simples do espírito, dirigida para um objeto simples ou
concebido como tal. É a atividade elementar da vida do pensamento, aquela pela qual se
apreendem noções simples tais como: "homem", "quadrúpede", "branco".
O julgamento, ato igualmente indiviso, mas aplicado sobre um objeto complexo:
nome-verbo, ou sujeito-cópula-predicado. Ex.: "a chuva cai", "este muro é branco". Não
há julgamento sem que haja pelo menos dois termos presentes, mas o julgamento nem
por isto deixa de ser uma atividade simples, uma vez que ele é a afirmação ou a negação
da própria unidade desses dois termos. S. Tomás designa habitualmente essa operação
pelas significativas expressões de "compositio" e de "divisio", segundo o julgamento
seja afirmativo ou negativo.
O raciocínio, principal objeto da lógica, é um ato complexo, aplicado sobre uma
matéria complexa. É essencialmente, uma marcha, um progresso do espírito, a partir de
verdades reconhecidas, para a aquisição de novas verdades. Vejamos, por exemplo, este
raciocínio disposto em silogismo:
Todo ser que se dirige pela razão é livre. Ora, o homem se dirige pela razão.
Logo o homem é livre.
É visível que de duas verdades reconhecidas nas duas primeiras proposições eu
passo à aquisição de uma terceira verdade, que se acha expressa na conclusão. Tais são
as três operações do espírito. É fácil reconhecer que o raciocínio, terceira operação do
espírito, é constituído essencialmente de julgamentos, segunda operação do espírito, e
que estes, por sua vez, têm como elementos simples apreensões, a primeira operação do
espírito.
Alguns lógicos modernos, impressionados pelo lugar excepcionalmente
importante que o julgamento tem na vida do espírito, pretenderam fazer dele a atividade
elementar e primeira do pensamento. Segundo essa concepção, a primeira operação do
espírito desaparece, ou pelo menos aparece somente como uma divisão abstrata do
julgamento, que fica somente ele, como um ato real e completo. - Temos de reconhecer,
com esses lógicos que o julgamento constitui, sob um certo ponto de vista, a atividade
mais perfeita do espírito. O próprio raciocínio tem como termo um julgamento-
conclusão. Porém não é menos verdade que, anteriormente ao julgamento, a simples
apreensão permanece a atividade elementar do pensamento, e uma atividade
psicologicamente discernível. O julgamento, com efeito, é essencialmente uma síntese
de dois termos preexistentes. Como é que essa síntese poderia ter uma realidade se os
termos que ela pressupõe não foram apreendidos anteriormente? Se se levam em conta
as distinções que acabamos de estabelecer, poder-se-á dividir a lógica em três partes,
correspondendo cada uma delas a uma das três operações do espírito, e das quais as
duas primeiras serão como uma introdução à terceira:
Lógica da simples apreensão
Lógica do julgamento
Lógica do raciocínio
Essa divisão corresponde à própria ordem do Organon de Aristóteles que trata:
nas Categorias, da simples apreensão; no Perihermeneias, do julgamento; e nos
Analíticos e livros seguintes, do raciocínio (cf. S. Tomás, II Analíticos, I, 1. 3, nºs 4-6, e
Perihermeneias, I, 1. 1, n.os 1-2). Eis aqui este último texto, que traz um bom resumo do
que acabamos de dizer:
" ... existe uma dupla operação da inteligência: por uma, denominada "intelecção
dos indivisíveis" (indivisibilium inteligentia), essa faculdade percebe a essência de cada
coisa, nela mesma.
A outra operação é a da inteligência que compõe e que divide.
Deve-se acrescentar uma terceira operação, a do raciocínio, pela qual a razão,
partindo do que é conhecido, vai à procura do que é desconhecido.
Dessas operações, a primeira é ordenada para a segunda, visto que não pode
haver composição e divisão senão entre objetos de simples apreensão. A segunda, por
sua vez, é ordenada para a terceira visto que é necessário que se parta de uma certa
verdade conhecida, à qual a inteligência dá seu assentimento, para atingir-se a certeza
sobre coisas ignoradas. Sendo a lógica chamada a ciência racional, segue-se
necessariamente que suas considerações devem tomar como objeto aquilo que tem
relação com essas três operações da razão.
O que concerne à primeira operação da inteligência, a saber, do que é concebido
em uma simples percepção dessa faculdade Aristóteles trata nos livros dos
Predicamentos.
O de que se relaciona com a segunda operação, quer dizer a enunciação
afirmativa e negativa, ele trata no livro do Perihermeneias.
Das coisas, finalmente, que são relativas à terceira operação, ele trata no livro
dos Primeiros Analíticos e nos livros seguintes, onde se analisa o silogismo considerado
em si mesmo e as diversas espécies de silogismos e de argumentações das quais se serve
a razão para ir de uma coisa à outra."
A tradição aristotélica e mesmo, em larga escala, a lógica moderna retomaram
essa divisão da "ars logica" segundo as três operações do espírito. Porém Aristóteles,
sob um outro ponto de vista, propôs uma outra distinção - a da forma e da matéria do
raciocínio - que, vindo interferir com a precedente, não se deu sem complicar as coisas,
sobretudo pelo fato de que a escolástica posterior estendeu o seu uso a toda a lógica.

Retirado do livro Iniciação à Filosofia de São Tomás de Aquino Introdução, Lógica,


Cosmologia - Volume 1

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