Você está na página 1de 14

A MODERNIDADE E O SURGIMENTO DO INDIVÍDUO

1.APRESENTAÇÃO

Este texto reflete sobre três categorias fundamentais do pensamento social moderno:
indivíduo, trabalho e sociedade. O raciocínio desenvolvido parte do pressuposto de que a
emergência do agente individual é um dos fatores decisivos para elaboração do próprio
conceito de sociedade, pois, antes do século XVI, as pessoas viviam em comunidades
(TÔNNIES), em coletividades onde a solidariedade era mecânica (DURKHEIM) ou em
grupos sociais fundados em valores ou no sentimento subjetivo dos participantes
(WEBER). O conceito de indivíduo somente é pensado na e pela sociedade, pois, antes, na
comunidade, apesar da separação espacial, as pessoas permaneciam ligadas por laços de
valores e de sentimentos ou por uma “consciência coletiva” que anulava as consciências
individuais e inviabilizava a liberdade e a autonomia dos sujeitos individuais.

O processo de complexização das coletividades sociais é que faz emergir o problema


fundamental da Sociologia: o que faz com que uma coleção de indivíduos viva em
sociedade? A resposta a esta pergunta, via de regra, enfatizava que o trabalho seria o
elemento gerador dos novos vínculos sociais. O fenômeno da especialização criaria um
novo tipo de vínculo entre os indivíduos, um vínculo orgânico e não mais mecânico. É por
isso que o trabalho, ao lado das categorias de indivíduo e sociedade, é peça-chave do
pensamento social moderno.

De posse dessas referências, o texto reflete sobre o sentido das transformações sociais,
econômicas e culturais que ocorrem de forma mais intensa nos últimos 30 anos e sobre as
conseqüências que elas apresentam para a sociedade do trabalho e para a vida do indivíduo.

Além das categorias já mencionadas, a análise desenvolvida apóia-se nas noções de


modernidade, crise da modernidade e pós-modernidade. Fundamenta-se, também, numa
divisão trifásica da modernidade: a primeira vai dos séculos XVI ao XVIII, quando a
sociedade se torna complexa e o indivíduo emancipa-se; a segunda é o século XIX, quando
a sociedade torna-se industrial e urbana e quando o indivíduo se expande e consolida-se; a
terceira é representada pelos últimos 30 anos do século XX, quando as mudanças no regime
de acumulação fordista e as transformações no trabalho fazem emergir um novo estilo de
vida, trazendo como conseqüências a fragilização do sujeito individual e a emergência de
um individualismo negativo.

2. MODERNIDADE E MODERNIZAÇÃO

Existem várias definições sobre o significado de modernidade. Aqui nesta abordagem o


conceito é trabalhado em três sentidos complementares.

O primeiro sentido sugere que a modernidade equivale a um tempo histórico, a uma época,
a um período na trajetória social, cultural, política e econômica. Acentuar traço temporal no
conceito de modernidade significa apenas delimitar a sua origem e não o seu fim. Parece
relativamente fácil captar o momento em que o mundo começou a tornar-se moderno, mas
é difícil pensar no seu fim ou mesmo no seu declinamento: é difícil pensar o
1
envelhecimento do moderno. O tempo histórico do conceito de modernidade é posterior ao
século XVI.

O segundo sentido sugere que este tempo histórico tem uma base geográfica também
definida: o mundo ocidental. Ainda que a radicalização dos processos de globalização
esteja tornando mais ou menos mundial a modernidade, em sua influência, é igualmente
difícil pensá-la fora do mundo ocidental. Entender a situação de culturas ou de
configurações sociais milenares e tradicionais, como a japonesa, a chinesa ou a russa,
implica pensar em um outro conceito, que embora correlato, é diferente: o de
modernização. Para que se entenda esta diferença é necessário que se acentue o terceiro
sentido que o conceito de modernidade aqui adquire. Modernidade, como enfatiza
GIDDENS (1990), é, fundamentalmente, um estilo, um costume de vida, uma forma de
organização social fundada num tipo bem específico de relação entre o indivíduo e a
coletividade.

Por outro lado, este estilo de vida que se expande no mundo ocidental a partir do século
XVI tem traços bem definidos. Um desses traços é o processo de individuação e a
conseqüente situação de liberdade, autonomia e historicidade dos indivíduos. Outros traços
centrais neste estilo de vida são a dessacralização das visões de mundo, a materialização
dos valores, o sentido adquirido pelo trabalho e a expansão da razão, da ciência e da técnica
como instrumentos da afirmação da onipotência do homem sobre a natureza, sobre a
história e sobre si próprio. Como afirma Foucault, é somente na modernidade que se tornam
possíveis as Ciências Humanas, pois antes, “o homem não existia” e elas “só apareceram no
dia em que o homem se constitui na cultura ocidental.” (FOUCAULT, 1962:362).

É este conceito de modernidade que permite afirmar tal experiência como exclusiva do
mundo ocidental. Tal como afirma WEBER (1992), a modernidade é um estilo de vida que
emerge em conseqüência tanto de determinados antecedentes históricos como da
combinação de eventos exclusivos na cultura ocidental. A modernidade é um processo
amplo, gradativo e que abrange toas as esferas da vida social. Outro sentido tem o conceito
de modernização, que serve, por exemplo, para entender as recentes experiências vividas
por nações não ocidentais. Os processos de modernização resultam da perspectiva de
universalização da experiência vivida pelo Ocidente. A modernização não tem a amplitude
nem a radicalidade da modernidade e, em boa parte, tem implicado na permanência de
traços significativos das sociedades tradicionais, caracterizando processos parciais e,
portanto, dando outra configuração ao estilo de vida viabilizado no Ocidente.

3. UMA PERIODIZAÇÃO DA MODERNIDADE

Do ponto de vista metodológico, é quase inevitável subdividir a modernidade em


determinadas fases com o objetivo de buscar algum controle analítico sobre algo tão vasto e
complexo. Como afirma HARVEY, “é odioso, mas mesmo assim útil, impor a essa
complexa história algumas periodizações relativamente simples.” (HARVEY, 1992:35).

Todavia, antes que se estabeleça mais uma alternativa de periodização entre tantas já
existentes, talvez seja interessante estabelecer o sentido da utilização deste recurso
metodológico.
2
Antes de mais nada é preciso enfatizar que há uma estreita sintonia entre a maneira de
periodizar e o tipo de análise pretendida. Uma forma mais radical de fazer esta mesma
afirmação seria dizer que as periodizações são recursos analíticos elaborados
posteriormente às conclusões hipotéticas, ou à maneira como se concebe o problema. Como
adverte Bachelard, “... na vida científica os problemas não se formulam de modo
espontâneo.(...) Nada é evidente. Nada é gratuito. Tudo é construído.” (BACHELARD,
1996:18).

Em decorrência, nas ciências humanas a construção ou a escolha dos recursos analíticos e


do repertório conceitual dependem do modo como os problemas são elaborados e a
elaboração destes depende de escolhas subjetivas. Este, aliás, é o sentido dos conceitos em
qualquer processo de investigação científica. Conceitos nunca substituem a realidade.
Qualquer objeto é sempre mais complexo que os modelos teóricos, mas sem estes não se
realiza a investigação, ou melhor, a investigação não passa de mera curiosidade
indeterminada. Afinal,
“...teorias são redes, lançadas para capturar aquilo que denominamos “o mundo”:
para racionalizá-lo, explicá-lo, dominá-lo. Nossos esforços são no sentido de tornar
as malhas da rede cada vez mais estreitas.” (POPPER, s/d: 62).

É este, portanto, o sentido de periodizar a modernidade: construir um recurso analítico


adequado à análise de um tipo específico de problema. Talvez por isso existam tantas
periodizações da modernidade.

Um exemplo de subordinação dos critérios de periodização ao conceito que se tem de


modernidade está nos próximos termos que têm sido utilizados para caracterizar a fase atual
da experiência moderna: Neomodernidade, Alta modernidade, Radicalização da
modernidade, Crise da modernidade ou Pós-Modernidade. As diferentes periodizações
estão subordinadas, principalmente, à leitura que se faz da fase atual da modernidade.

Todavia, por mais diversas que sejam as periodizações e por mais desencontrados que
sejam os critérios utilizados na identificação das diferentes fases, algumas regularidades são
observáveis nestes recursos analíticos. Uma destas regularidades é aquilo que se pode
chamar de esquema trifásico. Há um período de surgimento da experiência moderna, que
em geral, situa-se por volta dos séculos XVI e XVII e se estende até o final do século
XVIII. O Renascimento, a Reforma Protestante, o Mercantilismo, as Grandes Navegações e
o Absolutismo são os eventos mais marcantes desta fase. Na expressão de NIETZCHE, a
marca deste tempo lê “a morte de Deus” e o nascimento do homem. Nesta época, as
pessoas estão apenas começando a experimentar a vida moderna e mal fazem idéia do que
as atingiu. (BERMAN, 1992).

Outra regularidade que se observa é o reconhecimento de uma segunda fase na trajetória da


modernidade, cuja referência histórica seria no final do século XVIII, com a revolução
francesa, até o início do século XX, com a eclosão da primeira grande guerra. As marcas
deste tempo são o Iluminismo, a Revolução Francesa e a primeira e segunda revoluções
industriais. Este é um período controvertido: a indústria e o capitalismo se expandem mas
começam a enfrentar a sua contrapartida, ou seja, a resistência operária, o surgimento do
3
sindicalismo e do movimento socialista, esse “fantasma que rondou a Europa” a partir de
meados do século XIX. Segundo BERMAN, esta foi uma era de “explosivas convulsões em
todos os níveis de vida pessoal”, mas, nesta fase, o mundo ainda não chega a ser moderno
por inteiro.

A terceira fase equivale ao próprio século XX, de maneira mais acentuada a partir dos anos
50, quando a modernidade se expande e, ao mesmo tempo, “... se multiplica em uma
multidão de fragmentos, que falam linguagens incomensuravelmente confidenciais...”
(BERMAN, 1992:17).

Nesta terceira fase, a era moderna perde contato com as

“...raízes de sua própria modernidade” e passa a ser concebida em inúmeros e fragmentários


caminhos perdendo muito de sua nitidez e a própria capacidade de organizar e dar sentido à
vida das pessoas.” (BERMAN, 1992).

É neste ponto que situa-se o problema que se pretende aqui analisar. O ponto de partida é a
noção de que o projeto da modernidade perdeu contato com suas raízes e que enfrenta neste
final do século XX uma crise. Alguns indicativos desta “crise da modernidade” relacionam-
se ao mundo do trabalho, às relações entre a esfera pública e a privada, à predominância da
razão instrumental e ao problema da liberdade. Nesta fase atual, a modernidade “...despeja
a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de
ambigüidade e angústia.” (BERMAN, 1992:15).

Um dos resultados desta crise é a vulnerabilização de um sujeito que só se encontra na


modernidade, que emergiu como potência mas que se encontra aturdido e fragilizado: o
indivíduo.

4. O MUNDO OCIDENTAL COMEÇA A EXPERIMENTAR A MODERNIDADE E O


INDIVÍDUO EMANCIPA-SE

É difícil pensar o conceito de indivíduo fora da sociedade moderna e é, ao mesmo tempo,


fácil perceber quanto este sujeito começa a se constituir já no início do século XVI,
particularmente no ano de 1513. A dificuldade de pensar este conceito fora da modernidade
decorre da circunstância de que somente no mundo moderno é possível pensar a
combinação de três noções, sem as quais a existência real do sujeito individual não seria
assegurada: liberdade, autonomia e historicidade. É somente no mundo moderno que se
pode pensar a liberdade e por liberdade, conforme a própria significação da palavra,
entende-se “... a ausência de impedimentos externos, impedimentos que muitas vezes tiram
parte do poder que cada um tem de fazer o que quer...” (HOBBES, 1983:77).

Antes da era moderna o indivíduo tem uma vida cercada de “impedimentos externos”.
Preso a estes “impedimentos externos” o indivíduo perde a sua condição de agente, capaz
de definir o sentido de suas ações, assemelhando-se mais a um ator que interpreta papéis
não definidos por ele próprio.O que caracteriza o processo de individuação é exatamente o
afrouxamento de tais mecanismos de controle e o surgimento de condições favoráveis à
expansão da consciência individual.
4
No mundo grego, por exemplo, a falta de autonomia do indivíduo poder ser captada no
pensamento de dois dos mais ilustres homens deste tempo: Platão e Aristóteles. Uma das
premissas centrais do pensamento de Platão refere-se à preexistência da alma em relação ao
corpo. Isso significa que a alma humana, antes de submeter-se ao cárcere do corpo,
experimentara um contato com os deuses, quando teria adquirido certos dons. Conhecer
seria então lembrar, reconhecer, tomar consciência daquilo que já está pré-determinado.
Mas a negação mais enfática de Platão à individuação talvez esteja na maneira como ele
concebe o seu ideal de sociedade, “A República”, que é essencialmente coletivista e
harmônica, dado o grau de absorção do indivíduo pelo corpo social. Tudo na comunidade
imaginada por Platão era coletivizado e tudo aquilo que pudesse despertar outro sentimento
deveria ser erradicado: Platão era pela dissolução da família, da propriedade privada e até
mesmo da amizade. Por outro lado, no pensamento de Aristóteles, as capacidades
individuais nunca eram construídas pelo próprio indivíduo em relação com os outros no
mundo, mas uma dádiva da natureza. Assim, por exemplo, é que se justificava a escravidão.

“Não é apenas necessário, mas também vantajoso que haja mando por um lado e
obediência por outro; e todos os seres, desde o primeiro instante do nascimento, são,
por assim dizer, marcados pela natureza, uns para comandar, outros para obedecer.”
(ARISTÒTELES, 1991:11/12).

Afirmação semelhante pode ser feita em relação ao período medieval. Num contexto
teocêntrico, onde a população vivia dispersa nos campos, dominada pelo medo, pela
ignorância e pelas noções de pecado e de destino, o indivíduo era uma presa fácil dos
“condicionamentos externos”, particularmente de uma concepção que prometia a salvação e
a vida eterna aos abnegados, fora deste mundo evidentemente. Neste período, a falta de
autonomia do indivíduo era tão evidente que até mesmo determinadas formas de
pensamento podiam ser condenadas e punidas.

É somente por volta do século XVI que o conceito de indivíduo começa a aparecer no
pensamento social. E se o conceito começa a ser pensado é porque a existência real do
agente individual começa a se tornar evidente. Afinal, como sugere Hegel, “a coruja de
Minerva só voa ao entardecer”. É por isso que se pôde afirmar que o ano de 1513 é
fundamental para se compreender o processo de individuação. Foi neste ano que Maquiavel
escreveu um manual para governantes e é nele que se reconheceu, pela primeira vez, a
existência de uma outra fonte de poder: o público. A política perde o seu manto sagrado e o
poder passa a ter outra fonte de legitimidade, a vontade dos indivíduos.

É particularmente na lição XXV de “O Príncipe” que Maquiavel busca resposta para uma
inédita e ousada indignação: o quanto podem, por um lado, o destino, a sorte, as
contingências ou a fortuna e, por outro lado, a vontade individual, as escolhas ou a “virtú”,
na vida das pessoas e na história das sociedades? A resposta, inicialmente, é hesitante:

“Não ignoro que muitos homens têm sido e são de opinião que as coisas do mundo
são de tal maneira dirigidas pela sorte e por Deus, que os homens não podem com
sua prudência corrigi-las, e nem mesmo têm recursos para fazê-lo; e que, por isso,

5
julgarão que não convém afadigar-se muito em relação às coisas, mas deixar-se
conduzir pela sorte.” (MAQUIAVEL, MCMLXXVI: 143)

Na segunda parte da resposta, no entanto, a hesitação é substituída pela ênfase:

“Não obstante, desde que o nosso livre arbítrio não se extinguiu, julgo poder ser
verdade que a sorte seja árbitro da metade das nossas ações, mas que certamente nos
deixe governar a outra metade ou quase.” (MAQUIAVEL, MCMLXXVI: 143).

Já no início do século XVI, num contexto ainda fortemente teocêntrico, Maquiavel começa
a substituir o destino pela história, o controle pela autonomia e o “pecado” pela liberdade.
Pelo menos passa a reconhecer que ao lado dos “condicionamentos externos” existe aquilo
que ele próprio chamou de “livre arbítrio”. Daí em diante o agente individual ganha cada
vez mais espaço em todas as reflexões sobre a vida, a sociedade e a história humana.

Mas é cerca de cem anos depois que surge a reflexão mais enfática até então produzida
sobre a relação entre o agente individual e os “condicionamentos externos” e,
conseqüentemente, sobre o próprio conceito de liberdade. É em “O LEVIATÔ, do inglês
Thomas Hobbes, que o sujeito individual configura-se literalmente como potência, como
uma máquina de desejar e capaz de mover-se de forma incessante e obstinada em busca do
prazer e da felicidade.

Intrigante, mas igualmente elucidativo para compreender a emersão do agente individual, é


a maneira como Thomas Hobbes constrói seu estatuto teórico. Hobbes viveu numa época
de transição e de turbulência social. Uma época em que a Inglaterra experimentava a
desagregação da sociedade feudal, um fenômeno que ficou historicamente conhecido como
“cercamento” e a conseqüente expropriação dos servos e sua expulsão dos feudos. Foi um
período de crescimento populacional das cidades. Foi a época do Absolutismo e da
“legislação sanguinária”, quando, somente no reinado de Henrique VIII, 72.000 pessoas
foram enforcadas, após terem suas testas marcadas, a ferro em brasa, com a letra “V” de
vadio e de terem suas orelhas cortadas, em nome da construção da nova ordem social
(MORUS apud MARX, 1982:853).

A necessidade histórica de Hobbes era a de justificar o Estado Absolutista. Contudo,


forçado a equacionar um problema num contexto de dessacralização das visões de mundo e
em que o novo repertório conceitual ainda não estava amadurecido, Hobbes percorre um
caminho que chega a ser paradoxal. Recorre ao inatismo para afirmar a liberdade, a
potência individual ou a condição do homem como “lobo do próprio homem” e não para
assegurar os “condicionamentos externos”. Afirma a natureza anti-social do indivíduo
humano como condição que o leva a viver em sociedade e assegura que a vida em
sociedade é precedida pela vida num “estado de natureza”. Enfim, é absolutista sem ser
teológico.

Igualmente elucidativa é a centralidade atribuída ao indivíduo no pensamento de Thomas


Hobbes. É este o primeiro pilar que Hobbes busca estabelecer como base de seu edifício
teórico e é dele que se derivam os conceitos de sociedade e de Estado.

6
“... o homem é uma máquina natural (...) que tem como propriedades desejar e agir,
ou seja, deliberar e se mover em função desse dado primeiro que é o desejo. O
homem, individualmente corporal, é fundamentalmente potência. (...) ele
experimenta enquanto máquina sensível, sentimentos entre os quais predominam a
inveja e o medo, em particular o medo de sofrer e de morrer.” (CHATELET,
1990:50/51).

De maneira enfática Hobbes adota a premissa de que o indivíduo é anterior à sociedade.


Antes de experimentar a vida coletiva e regulada por convenções sociais, os homens,
“naturalmente egoístas”, teriam vivido um “estado de natureza”, em plena liberdade. Como
todos os homens são “naturalmente iguais”, no desejo e na razão, este “estado natural”
torna-se uma guerra de todos contra todos, onde a violência se generaliza, passando cada
qual a elaborar novos meios de destruição do próximo. A vida então complica-se, tornando-
se cada vez mais solitária, triste, embrutecida, e, principalmente, curta. Nesta circunstância,
os agentes individuais, sempre racionais, estabelecem entre si um pacto, surgindo assim a
sociedade.

Sendo resultado de um pacto firmado entre os próprios sujeitos individuais, que, por força
da natureza, continuam egoístas e desejosos do poder, da honra, da glória e da riqueza, a
sociedade seria artificial e frágil, necessitando pois de ter sua existência assegurada por um
Estado Absoluto. Com isso Hobbes justifica o absolutismo do Estado sem se apoiar no
teologismo medieval, adotando o próprio indivíduo como fonte legitimadora deste poder.

Vale lembrar que é exatamente nesta fase da modernidade, particularmente em 1719 e não
por mera coincidência, na Inglaterra, que Daniel Defoe escreveria “Robson Crusoé: a
conquista do mundo numa ilha” (1986). Fora da modernidade seria difícil imaginar que um
homem, abandonado à sua própria individualidade, conseguisse viver 23 anos isolado numa
ilha do Caribe e, mais que isso, racionalizar, instrumentalizar e dominar o seu entorno.
Seria igualmente inimaginável, em outra época, um sujeito despojado como Robson
Crusoé, movido apenas pelo desejo de aventura.

Todavia, é o acesso a um outro repertório conceitual, o do francês Émile Durkheim, que


permite um entendimento mais claro do processo de emancipação da consciência individual
que estaria ocorrendo nesta primeira fase do desenvolvimento da modernidade.

Durkheim adota como ponto de partida o seguinte problema: o que faz com que uma
coleção de indivíduos diferentes vivam em sociedade? Interessante é notar que a própria
maneira de colocar o problema já evidencia o grau de preocupação que o autor, em sua
análise sociológica, dispensará ao agente individual, ou melhor, ao problema de garantir a
existência estável das coletividades sociais num contexto de crescente individuação. A
resposta de Durkheim à questão – que também não era sua, mas de seu tempo – o conduz à
diferenciação entre dois tipos de sociedade, as simples e as complexas, sendo que a
especificação fundamental está no tipo de relação que, nelas, se estabelece entre o
indivíduo e a coletividade, ou, para utilizar termos mais precisos, entre a “consciência
coletiva” e as “consciências individuais”.

7
No estatuto teórico de Durkheim, sociedades simples são microssociedades, são
comunidades ou pequenas coletividades sociais que se diferenciam pela natureza do
vínculo recíproco, ou seja, de solidariedade, que prevalece entre seus integrantes. Nas
sociedades simples, que são também as sociedades pré-modernas, o fundamento da
solidariedade ou do vínculo recíproco é a semelhança entre os integrantes da coletividade
social. Nestas coletividades sociais a consciência coletiva prepondera sobre as consciências
individuais e, por isso, a solidariedade é mecânica. De forma enfática, Durkheim sustenta
que, nestas sociedades, a consciência coletiva é, simultaneamente anterior e posterior,
exterior e interior às consciências individuais. Neste caso, a consciência individual é apenas
depositária da consciência coletiva, da tradição e dos costumes.

Durkheim chama de complexas as sociedades industriais e urbanas, ou as grandes


coletividades sociais da era moderna. Nestas sociedades, ao contrário, o que prevalece é a
diferença e não a semelhança entre os indivíduos; é a consciência individual que
prepondera sobre os valores coletivos. Por outro lado, Durkheim sustenta que a
diversificação do corpo social é decorrente de dois fatores. O primeiro fator é o que ele
caracterizou como processo de complexificação da sociedade, ou seja, de transição das
sociedades simples para as complexas: volume e densidade, sendo que esta segunda é tanto
material como moral. O avolumamento e o adensamento do corpo social fazem com que a
consciência coletiva perca controle sobre as consciências individuais, possibilitando a
liberdade e a autonomia dos indivíduos. Portanto, o indivíduo seria historicamente posterior
à sociedade. O segundo fator é o que Durkheim chamou de “fenômeno da especialização”
ou de “divisão do trabalho social”. Na abordagem de Durkheim a divisão do trabalho é um
fenômeno remoto, mas que, na sociedade industrial, adquire proporções muito mais
acentuadas.

Durkheim segue, portanto, na contramão de Hobbes. Para o inglês o indivíduo é anterior à


sociedade e o que precede a vida coletiva é um “estado de natureza” onde o homem vivia
em plena liberdade. O homem abre mão de sua liberdade quando associa-se a outros para
viver coletivamente. Para Hobbes a vida em sociedade é um sacrifício que o homem só faz
quando a vida encontra-se ameaçada. Em Durkheim, ao contrário, a sociedade é que é
anterior ao indivíduo, sendo este sujeito o resultado da complexificação das coletividades
sociais. Além disso, o que precede a sociedade complexa é outro tipo de sociedade, as
simples, que são historicamente verificáveis e não um “estado de natureza”. Da mesma
forma, é associando-se a outros indivíduos que o indivíduo histórico adquire possibilidades
de dominar os “condicionantes externos” ou as “forças físicas” e, assim, diferenciar-se dos
demais animais pela liberdade, construindo, para isso, uma força sui generis: a força
coletiva.

De qualquer forma, para o raciocínio que aqui está sendo desenvolvido, pouco significado
têm as divergências entre o contratualista Thomas Hobbes e o sociocrata Emile Durkheim:
mais significativa é a centralidade que o agente individual ocupa em ambos os estatutos
teóricos.

Entretanto, para ser fiel à periodização sugerida, nesta fase da modernidade que vai dos
séculos XVI ao XVIII, o mundo social está apenas começando a experimentar a

8
emancipação das consciências individuais e mal faz idéia das conseqüências que este fato
desencadeia nos séculos seguintes: o individualismo como estilo de vida.

5. O MUNDO MODERNO SE CONSOLIDA E O INDIVÍDUO POTENCIALIZA-SE

Se esta primeira fase da modernidade marca o processo de emancipação do sujeito


individual, é a partir do final do século XVIII e ao longo de todo o século XIX que este
agente potencializa-se. Nesta segunda fase da modernidade, o agente individual tem a sua
expansão assegurada nos modelos teóricos das ciências humanas e torna-se cada vez mais
presente e radical, num mundo em crescente racionalização.

No século XIX o mundo ocidental presencia de forma intensa aquilo que Durkheim
conceituou como processo de complexificação das coletividades sociais. As sociedades
passam a experimentar um avolumamento e um adensamento. Trata-se da expansão dos
centros urbanos e da formação das grandes cidades: o principal cenário da vida moderna.

Nas cidades, como afirma HARVEY, demasiadas pessoas “perdem o rumo no labirinto”,
tornando-se fácil demais “nos perder uns dos outros e de nós mesmos”. Isso significa que
há, nos centros urbanos, algo de estressante e desestabilizador, mas há, também, algo de
libertador na medida em que o indivíduo passa a conviver com a possibilidade de
desempenhar muitos e distintos papéis.

Foi neste cenário que Max Weber concebeu um novo estatuto para o agente individual no
campo das ciências sociais, atribuindo-lhe o status de única entidade capaz de conferir
sentido às suas ações. Foi também neste ambiente que o sociólogo alemão pensou um novo
conceito de sociedade, não mais como uma entidade distinta e transcendente aos
indivíduos, mas como uma trama constituída pelas ações de sujeitos racionais capazes de
prever, avaliar e situar-se uns em relação aos outros. Neste quadro, a sociedade deixa de
aparecer como um dado da natureza, para ser o resultado de uma reconciliação e de um
equilíbrio de interesses individuais motivados por juízos racionais.

Esta expansão das cidades e a formação dos grandes centros urbanos estava diretamente
relacionada a um outro evento significativo do século passado: a transformação da ciência
em tecnologia e a eclosão da primeira e da segunda revoluções industriais. Ao se expandir
para atender a um mercado cada vez mais massificado, a indústria arrastou para as cidades
grandes contingentes populacionais antes dispersos nos campos ou em vilas isoladas.
Desenraizados e deslocados da tradição e do mundo rural, esses novos habitantes são
lançados ao anonimato das grandes cidades.

Outro movimento que assegura a consolidação do agente individual nesta fase da


modernidade é o Iluminismo, que retoma a concepção antropocêntrica renascentista,
agregando-lhe radicalidade, amplitude e penetração nas bases da sociedade. Esta talvez seja
a principal diferença entre o Renascimento e o Iluminismo: discurso mobilizador das forças
sociais emergentes que tornou-se ação em defesa das liberdades individuais, o Iluminismo
foi muito mais que um movimento filosófico, expandindo-se também no espaço da
literatura, das artes e da política. E é na dimensão política que talvez se evidencie uma de
suas mais significativas contribuições ao processo de expansão das liberdades individuais:
9
nesta dimensão o Iluminismo foi efetivamente capaz de sensibilizar as forças sociais
modernas e colocá-las em movimento numa luta sem tréguas contra o absolutismo
monárquico e eclesiástico.

A modernidade é herdeira do Iluminismo e o mais fundamental desta herança é um estilo


de vida.No ideário iluminista algumas ênfases são definitivas em sua influência sobre a
vida dos homens modernos.

Uma dessas ênfases é aquilo que se pode chamar de “intelectualismo”: os iluministas


acreditavam que o homem, fazendo uso da razão e da experiência, poderia conhecer a
natureza, a sociedade e a si próprio, emancipando-se das trevas da ignorância e adquirindo
cada vez maior capacidade de controle sobre a vida. Isso significa que saber é poder. O
esclarecimento significaria a possibilidade de controlar o mundo e, por isso, todos deveriam
ter livre acesso ao conhecimento. Daí decorre a enfática defesa da educação pública e
obrigatória para todos, uma idéia que se tornaria realidade a partir de meados do século
passado.

Outra ênfase do Iluminismo, decisiva na configuração de um estilo de vida, é o que se pode


chamar de “voluntarismo”, ou seja, a perspectiva de que a vontade humana, desde que
esclarecida, é capaz de transformar o mundo, moldando-o à sua imagem. Literalmente, na
perspectiva iluminista, “querer é poder”. Relacionada a esta concepção, outra ênfase
marcante é o “historicismo” ou a idéia de que o curso da história não está condicionado por
um destino inexorável ou por leis invariáveis e que, portanto, pode ser conduzido pela
vontade dos agentes sociais. Em decorrência disso, como afirma BERMAN, estavam
criadas as condições favoráveis para a configuração de um ambiente de aventura, poder,
alegria, crescimento: autotransformação e transformação das coisas em redor.

Captadas essas influências, o mundo nunca mais foi o mesmo e nenhuma outra era ousou
tanto fazer história como os modernos: a era moderna é a própria era das revoluções e das
permanentes rupturas, sociais e pessoais.

6. A MODERNIDADE EXPERIMENTA SUA CRISE E O INDIVÍDUO SE FRAGILIZA.

Pretende-se aqui sustentar a idéia de que a modernidade perdeu contato com suas raízes e
com os ideais de liberdade construídos nas eras renascentista e iluminista. Como
conseqüência dessa crise, a liberdade e a razão emancipadora revelam suas outras faces: a
dominação, a instrumentalização e a opressão.

Em relação ao indivíduo, este sujeito genuinamente moderno, as conseqüências da “crise da


modernidade” se revelam de forma muito peculiar: a individualidade se transforma em
individualismo, fazendo a potência perder sua capacidade de expansão e revelar o seu
contraponto, a vulnerabilidade e a fragilidade. Esse é um dos sentidos desenvolvidos por
BERMAN, ao afirmar que a unidade proporcionada pela modernidade é paradoxal, ou seja,
é
“...uma unidade de desunidade: ela nos despeja a todos num turbilhão de
permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambigüidade e

10
angústia. Ser moderno é fazer parte de um universo no qual, como disse Marx,
“tudo que é sólido desmancha no ar”. (BERMAN, 1992:15).

Na análise aqui desenvolvida, tanto a idéia de “crise da modernidade” quanto a noção de


que neste ambiente, o sujeito individual se revela frágil e vulnerável fundamentam-se no
argumento de que as metamorfoses no mundo do trabalho, particularmente os processos de
redução de postos, informalização, desregulação e de precarizaçãoafetam aquilo que ainda
é fundamental na vida social e individual.

6.1. A CRISE NO MUNDO DOTRABALHO E A EMERGÊNCIA NO


INDIVIDUALISMO NEGATIVO

O acelerado progresso da ciência e da técnica num contexto de universalização da forma


mercadoria conduziu as sociedades de mercado, pela primeira vez na história, a
experimentarem uma situação de superioridade da oferta em relação às capacidades de
consumo instaladas. As conseqüências mais imediatas desta inédita situação são as
profundas mudanças nas regras concorrenciais. Num contexto de acirrada competitividade,
as empresas são forçadas a colocarem no mercado cada vez mais exigente produtos de
elevada qualidade por preços reduzidos. É a era da flexibilização e da instabilidade. O
mercado massificado tem sido substituído por nichos cada vez mais específicos, exigindo
mudanças significativas nas plantas produtivas das empresas. Para responder a essas novas
regras e exigências, as empresas têm sido forçadas, sob pena de exclusão, a inovarem
cotidianamente. Neste processo de inovações algumas tendências se destacam:
enxugamento das estruturas, terceirização, inovações tecnológicas e inovações gerenciais.

Como resultado deste processo, algumas conseqüências se evidenciam para o mundo do


trabalho. Uma delas refere-se à composição e à relação que a “classe-que-vive-do-trabalho”
estabelece consigo mesma, com outros atores sociais e com a sociedade. ANTUNES (1998)
chama a atenção para uma múltipla processualidade ou para uma processualidade
contraditória que acontece no mundo do trabalho no capitalismo contemporâneo, com
ênfase para uma “desproletarização do trabalho industrial”, para uma “diminuição da classe
operária tradicional” e para uma “subproletarização”. Mas, paralelamente, nota-se uma
“...expressiva expansão do trabalho assalariado, a partir da enorme ampliação do
assalariamento no setor serviços”. (ANTUNES, 199841), o que provoca, por sua vez, uma
“significativa heterogeneização do trabalho”.

Outra conseqüência é o que se pode chamar de reprofissionalização, redefinição das


competências ou movimento de desqualificação/qualificação das situações de trabalho.
Num ritmo frenético, o mundo do trabalho tanto extingue quanto cria novas profissões,
levando os trabalhadores a sentirem a outra face da modernidade: segundo Berman, a
ameaça de destruição de tudo o que sabemos e de tudo o que somos.

Uma terceira conseqüência deste processo é a própria redução dos postos de trabalho e os
crescentes índices de desemprego, sub-emprego e informalização da economia. E é neste
ponto que a crise do mundo do trabalho relaciona-se diretamente à própria “crise da
modernidade”. O desemprego estrutural afeta o moderno estilo de vida de duas formas.
Uma delas é a retirada ou afastamento do mercado de consumo de um número crescente de
11
indivíduos. Vale dizer que, num estilo de vida em que o consumismo e a exacerbação dos
valores materiais são características marcantes, o afastamento do mercado de consumo não
é um fenômeno de importância secundária. A outra forma refere-se ao fato de que esta crise
abala um dos valores estruturantes da modernidade: a ética do trabalho. Como sugere
CAPISTRANO FILHO (s/d), foram necessários séculos e séculos antes que a civilização
burguesa suprimisse a imagem maldita de que o trabalho é algo negativo e semelhante a um
castigo. Isso aconteceu
“... não por um mero exercício do pensamento, mas porque uma série de mudanças nas
condições materiais de nossa existência tornou isso possível. No campo das idéias, o
Renascimento provocou uma valorização da condição humana que, amplificada pela
Reforma, o Iluminismo e a tradição socialista clássica, deu ao trabalho uma dimensão ético-
moral: não só criou valor como integrou o indivíduo ao mundo de seus semelhantes.”
(CAPISTRANO FILHO, s/d).

Desde que a Reforma Protestante removeu os obstáculos espirituais que condenavam o


enriquecimento, o homem moderno tornou-se um empreendedor e um disciplinado e
metódico trabalhador.

Todavia, ao final do milênio, “... somos surpreendidos por uma nova maldição que começa
a oprimir nossos cérebros: a crescente escassez do próprio trabalho”. (CAPISTRANO
FILHO, s/d).

Sem trabalho o indivíduo não apenas é afastado do mercado de consumo, mas levado a
experimentar a sensação de vazio existencial. Como sugere Albert Camus, “sem trabalho
toda uma vida apodrece”.

Neste sentido, a terceira revolução industrial e, particularmente, o fenômeno da automação,


que poderiam estar conduzindo à realização do remoto desejo de libertação das fadigas do
trabalho físico, acabam por constituir-se num fator de desestabilização de um estilo de vida.
Como afirma ARENDT, a sociedade
“... que está para ser libertada dos grilhões do trabalho é uma sociedade de
trabalhadores, uma sociedade que já não conhece aquelas outras atividades
superiores e mais importantes em benefício das quais valeria a pena conquistar essa
liberdade.” (ARENDT, 1983: 12).

Não se sugere com isso que o trabalho esteja perdendo a centralidade, afinal,
“... a posição social do indivíduo, sua chance de participação na configuração da
política e sua cultura, permanecem essencialmente determinadas por sua posição no
sistema produtivo. (...) o trabalho permanece, ainda, (...) como força motivadora
central na vida dos indivíduos.” (DELUIZ, 1993: 129).

Além disso, por mais radicais que sejam as transformações na esfera produtiva, decorrentes
das inovações tecnológicas, organizacionais e gerenciais, elas não “... permitem concluir
pela perda dessa centralidade no universo de uma sociedade produtora de mercadorias.”
(ANTUNES, 1998: 75), pois, “... o aumento crescente do capital constante em relação ao

12
variável reduz relativamente, mas não elimina, o papel do trabalho coletivo na produção de
valores de troca.” (ANTUNES, 1998:75).

Além disso, o “postismo” revela apenas uma consciência de ruptura e não uma ruptura real,
pois a
“A racionalização crescente da produção industrial pela aplicação da tecnologia de
ponta, e especialmente da informática, tem como efeito evidente reduzir o número
de trabalhadores empregados no setor secundário, mas não o de debilitar o sistema
industrial como tal pois pertence à lógica desse sistema o contínuo aumento de
produtividade, pela constante redução da mão-de-obra assalariada. A informatização
da sociedade torna mais eficiente o sistema industrial, em vez de aboli-lo.”
(ROUANET, 1986: 88).

Contudo, se as atuais transformações não abalam a estrutura do capitalismo, elas também


não podem ser entendidas como meros reparos temporários. SANTOS (1997), por exemplo,
se refere a esta época como um tempo de profundas transformações no campo da regulação.
Um tempo em que

“O princípio do mercado adquiriu pujança sem precedentes, e tanto que extravasou


do econômico e procurou colonizar tanto o princípio do Estado, como o princípio da
comunidade – um processo levado ao extremo pelo credo neoliberal.” (SANTOS,
1997: 87).

Para este autor, um dos traços mais evidentes dessas transformações é que elas apontam
para uma desregulação da vida econômica, social e política, o que traz, como
conseqüências inevitáveis,

“... o agravamento da injustiça social através do crescimento imparável e recíproco


da concentração da riqueza e da exclusão social, tanto a nível nacional como a nível
mundial; a devastação ecológica e com ela a destruição da qualidade e mesmo da
sustentabilidade da vida no planeta.” (SANTOS, 1997:91).

Mas é CASTEL que adverte para uma particularidade das atuais metamorfoses sociais. Para
este autor, é

“... no momento em que a civilização do trabalho parece impor-se definitivamente


sob a hegemonia da condição de assalariado que o edifício racha, repondo na ordem
do dia a velha obsessão popular de ter que viver “com o que ganha cada dia”.
(CASTEL, 1998: 593).

CASTEL também recusa o “postismo”, pois a sociedade atual é ainda maciçamente uma
“sociedade salarial”. Todavia, ele chama a atenção para a emergência de um novo tipo de
individualismo; não mais do individualismo positivo e conquistador, presente nos
contratualismos dos séculos XVI, XVII e XVIII, mas de um individualismo negativo que
reúne a “independência completa do indivíduo e sua completa ausência de consistência”.
Esse individualismo negativo resulta da crescente produção de “inúteis para o mundo”.

13
“O vagabundo representa-lhe o paradigma. O vagabundo é um ser absolutamente
desengatado (desfiliado). Só pertence a si mesmo e não é “homem” de ninguém, nem pode
se inserir em nenhum coletivo. É um puro indivíduo e, por isso, completamente
despossuído. É individualizado a tal ponto, que está superexposto: desprende-se do tecido
encorpado das relações de dependência e de interdependência que estruturam a sociedade.”
(CASTEL, 1998: 597).

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do


mundo do trabalho. Campinas, Cortez/Editora da Unicamp, 1998, 155p.
ARENDT, Hannah. A condição humana.. Trad. Celso Lafer, 2a. ed. Rio de Janeiro, Editora
Forense Universitária Ltda., 1983, 339 p. (Tradução de: The Human condition).
ARISTÓTELES. A Política. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo, Martins Fontes, 1991.
BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico; Contribuição para uma
psicanálise do conhecimento. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro, Contraponto,
1996.
BERMAN, Marschall. Tudo que é sólido desmancha no ar – A aventura da modernidade.
Trad. Carlos Felipe Moeses & Ana Maria L.Ioriatti. São Paulo, Companhia das Letras,
1992
CAPISTRANO FIHO, David. Adeus ao trabalho? Há um meio de unir progresso técnico,
tempo livre e emprego para todos. Santos, mimeografo, s/d.
CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. (Trad. Lês
metamorphoses de la question sociale). Petrópolis, Vozes, 1998.
CHATELLET, François. História das Idéias Políticas. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 2a.
ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.
DELUIZ, Neise. Inovações tecnológicas e Mudanças no conteúdo do trabalho: Implicações
para a formação profissional no setor terciário. Rio de Janeiro, UFRJ, 1993. Tese
(Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, UFRJ, 1993.
DEFOE, Daniel. Robson Crusoé – A conquista do mundo numa ilha. Adaptação: Wener
Zotz. São Paulo, Scipione, 1986, 112p.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Trad.Salma Tannus Muchail. 6ª. Ed. São
Paulo, Martins Fontes, 1992, 407 p.
GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo, Unesp, 1990, 177p.
HARVEY, David. Condição Pós Moderna; uma pesquisa das origens da mudança cultural.
São Paulo, Loyola, 1992.
HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil.
São Paulo, Abril, 419 p. (Os Pensadores).
MAQUIAVEL. O Príncipe. São Paulo, Cultrix, MCMLXXVI.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. São Paulo, Difel, 1982, 6 volumes.
POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. São Paulo, Cultrix, s/d.
ROUANET, Sérgio Paulo. Do Pós-moderno ao Neo-moderno. In: Revista Tempo
Brasileiro. Rio de Janeiro, n. 84, p. 86/97, janeiro/março/1996.
SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice – o social e o político na pós
modernidade. São Paulo, Cortez, 1997.
WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. São Paulo, Cultrix, 1993.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo, Pioneira, 1992.
14

Você também pode gostar