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PROBLEMAS DE POLÍTICA. OBJETIVA.

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BIBLIOTECA PEOAC(lc;ICA BRASILEIRA
Série s•.. * B R A S I L I A N A * Vol. 256

OLIVEIRA VIANA
DA ACADEMIA BRASILEIRA

PROBLEMAS
DI
POLITICA OBJETIVA

I. O problema da revisão
II. O problema da liberdade
III. O problema dos partidos
IV. O problema do govêrno
V. O problema da nacionalidade

,. 2.• EDIÇÃO AUMENTADA


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COMPANHIA EDITORA NACIONAL


SAO PAULO
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1 9 47
Impresso nos Eatedos Un:dos do Bresll
Printed ln the Unlted Stetes of Brezll
Je suis le premier à rechercher
les constructions juridiques,· mai,
encore faut~il qu'elles soient une syn-
th~e de la réalité; sinon elles sont
une pure opération de l'esprit, elle1
ne répondent à rien, elles sont sam
valeur, comme sans utilité,
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DuoUIT.
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"··

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/

Lendo a RETIRADA DA LAGUNA, de Taunay, o que


,e recolhe, afinal, da leitura de todas aquelas pd-
ginas, maravilhosas de simplicidade e eloquéncia
a impressão última que nos fica, como r~iduo d•
tantos episódios comoventes, é que todos aquêle,
homens - quase dois mil no infeto da marcha -
foram vitimas inconcientes de um êrro colossal.
tste érro partira daqui, do~ responsáveis supremo,
pelo plano de campanha e nascera da ignorância
por parte dêles daquêle meio remóto, das fronteiras
de Mato Grosso, das imensas solidões campinosa.,
que nos ligam ao Paraguai.
Os que planejaram a expedição e os que che-
fiaram a expedição não sabiam nada do mundo em
que iam mover-se e agir. Nada, nem da Terra;
nem !'do Clima: nem da Flora,· nem da Fauna,· I
nem do Homem. Nada das condições topográfica,
da imensa região a atravessar. Nada das suas par~
licularidades. Nada dos recursos que ela poderia
oferecer à coluna em marcha. Desconhecimento
~ompleto. A não .ser que se chame conhecimento
da terra o conheci-la a.travéa doa compêndio~ de
geografia •••
Nestas condições, é natural que tudo falhasse,
a icomeçar pelo serviço de intend~ncia. Dêste,
fracasso completo. Faltou munição. Faltou trans-
porte. Faltou alimentação. Naquela região de-
teria, só conhecida de campeiros broncos, não hou-
ve como abastecer o exército expedicionário. De
quando em quando, o comandante mandava parti-
da,s de cavaleiros caçarem gados nos campos; mas,
voltavam desolados: não haviam encontrado nadai
Os grandes rebanhos anunciados não existiam. E
o exército em marcha começou a morrer de fo-
me. . • Teria morrido totalmente, se o comandan-
te não ordenasse prudentemente a retirada - a re-
tirada da Laguna.
Sente-se que todos aqu~les estrategistas, todos
oquêle, professores de engenharia militar desco-
nheciam inteiramente o ambiente que os envolvia.
a natureza que os cercava. Tinham de tudo aqui-
lo noções teórica, e genéricas, aprendidas nos li-
vro, - e nada mais. Levavam cuidadosament~
bússolas, outros instrumentos precioso~ de ciência
e complicadas cartas geográficas: mas. nada disto
lhes valeu para coisa alguma. Entrados naquelas
4olidões, po,tos frente a frente da Realidade_ sen-
tiram-se completamente desorientados. Marcha-
vam ao acaso, cégos por inteiro aos {legredos da-
quela terra prodigiosa. Um homem do povo. um
jéca de barbicha rala, um campeiro rude e anal/a-
belo, salvou-os a todos da rufna completa. tste
homem foi o gula Lopes.
Por mais paradoxal que is~o pareça, no meio
de tanta gente sabida, êste matuto ignorante era o
único que VIA 'lla .expedição, o único que SAFIA, o
único que tinha a verdadeira ciência daquela ter-
ra. Sem êle, sómente com o auxilio das bússolas
e das cartas geográficas, a expedição não caminha-
ria um só dia, não daria um só passo com rumo se-
guro. Houve uma certa fase da retirada, em que to-
do o corpo expedicionário ficou dependendo exclu-
sivamente dêle, da sua ciência, que não era a dos li-
vros, mas a da observação e da experiêncla. P:le ti-
nha o sentimento da realidade.- e os outros, não.
Os outros raciocinavam,· êle intuía. ' Os outro.s sa-
l>iam pela razão; êle pela intuição. Por isso, êle sa.
bia; os outros, não.
- "Nada sei, sou sertanejo; os senhores, que
estudaram os livros, é que sabem" - costumava
dizer humilde, mas certamente com ironia. Por-
que, no fundo. êle estava certo de que só êle conhe-
cia aquela Terra. E dizia com orgulho, zombando
da ciência oficial: ..:... "Desafio todos os engenhei-
ro,s com as suas bússolas e plantas. Nos campo,·
de Pedra de Cal e Margarida, sou rei Só eu e os
índios cadiveus conhecemos tudu isto".
Estrangeiros naquelas paragens, os oficiai,
1gnoravam-nas totalmente - e ,isto abria ensan-
chm a delicadas zombarias de Lop~. Certa vez, .
ha'!endo incindio numa moita de taquaru,,ti., fo.
ram tanta• a, explosõe, e tão forte,, que o, oficiai•,
fgnorantes do fenômeno, ficaram alarmados, jul-
gando que era a ação da artilharia inimiga. E
lopes, seguro da sua cUncia e troçando: - "Bem
se v~ que o, senhore, são novato• ne•ta terra/" ·
Toda, a, vêzes que via o• oficiais con,ultarem
e, bússola, punha-,e a rir. Para êle •• a agulha
grande só servia para fazerem bonitos desenho,
destinados a divertir pas,eantes". E tinha razão;
porque foi êle quem, com o seu admirável conheci-
mento do terreno, conduziu a expedição, atravé8 ca-
minho seguro, até pô-la fora do alcance dos para-
guaios perseguidore•.
Em certo momento, foi o verdadeiro e.hefe da
.~xpedição: os oficiais entregaram-,e inteiramente
a êle. E quanáo, inquietos, depoi, de consultarem
(inutilmente, já se vê) a bús.sola e o• mapa,, per-
guntavam-lhe, confusos, atrapalhadiuimo,, que
rumo levavam, êle, rindo-,e à cara de todos êle,,
· respondia: - "O da minha cabeça!" E continua-
va a conduzi-lo, . . .
Realmente, ile era o único que sabia, no mei,>
de todo aquêle vi,toso grupo de sábio, que não ,a-
biáinnada.
n
Na esfera polltica e constitucional, as nos.sas ·
elites dirigentes não estão mais informada, do que
na esfera militar: nesta, como naquela, o seu des-
conhecimento da terra e do povo é completo.
O objetivo principal d~ste livro é justamente
mostrar como seria posslvel corrigir ~ste desconhe-
cimento e 01 males que d~le derivam. procl'ran-
do trazer aos centros do gov~rno e da administra-
ção, por meio do mecanismo engenhoso dos Con-
telhos Técnicos, a colaboração de todos os homens .
de bôa vontade, práticos, experientes, que, embora
não pertencendo à classe politica, estejam, contudo '
- taes como aquêle obscuro campeiro da RETIRADA
DA LAGUNA - em contato mais direto com a nos.sa
Realidade e, por isso mesmo, mais senhores da,
suas idiossincrasias, das suas intimidades e dos &eus
1egr~dos.
OLIVEIRA VIANNA
Janeiro de 1930.

\
PREFACIO A 2.ª EDIÇÃO

t,ste livro é reeditado sob uma atmo1féra de


agitações polltica, 'e ideológica, idênticas à da épo-
ca climatérica em que foi editado: 1930. Nêle eu
havia coligido, em forma metodizada, vários en- ··
saios esparsos da minha colaboração em jornai,
e revistas, )
Elaborados em época, muito diferentes, todo,
êstes ensaios, entretanto, mantêm entre si uma afi-
nidade muito grande de idéias t: de orientação me-
todologica, e - o que é mais - uma igual afi-
nidade com tudo o que tenho escrito depois desta·
data. E uma das coisas que mais me surpreende
a mim mesmo é justamente esta coerência e uni-
dade de pensamento e de doutrina que venho man-
tendo desde que tomei da pena para o estudo e o
debate dos problemas brasileiros, especialmente oa ,
da e8iruhiração polftica e social do pais. E me
,urpreende, primeiro - porque ;sou um dos escri-
tores que meno, se leem a si mesmos; segundo -
Oliveira Viana

porque nunca tive a preocupação determinada de


parecer sempre em coerlncia com a:J afirmaçõe,
e conclusões de escrito:J anteriores.
Esta unidade de pensamento, ~sim mantida
por tão largo espaço de tempo, não é, pois, intencio"
nal, nem procurada. Como me parece um fato _
inegável, eu só a atribuo à metodologia empregada,
ao espfrito a~ rigorosa objetividade ~ inteira im-
parcialidade e isenção com que venho analisando,
até agora, as realidades sociais e políticas do nosso
povo. •
II
Reahnente, estas realidade, eu a:J venho in-
vestigando e analisando, nos vários aspectos com
que me tenho ocupado - a história polltica e :JO-
cial, a raça e a mestiçagem, a economia agrária
e a industrial, o direito público e constitucional, o
direito social e corporativo, a geografia humana,
ele. - com o mesmo espirito de respeito à realida-
de dos fato~, à realidade observada, (i realidade
viva, numa atitude mental em tudo idênti<'a à
dos etnologistas ao observarem a:J instituiçõea
sociais dos povos primitivos - como, por exemplo,
Metraux a civilização dos ln.dios guaranis, Ro-
quette Pinto os aborlgene,s da Rondonia, Vellard
os guaiaqufs do Paraguai ou o salesiano Cobalchini
a cultura dos borôros nas nossas florestas mato-
grossenses. Quero dizer: com objetividade cientifi-
Problemas de Polltica Objetiva 15

ca, completa, absoluta,· tanto quanto esta objetivida-


de é realizável dentro das nossas limitadas possibi-
lidades humanas.
Saint-Beuve gabava-se, como critico, de ser um
"naturaliste des esprits". De mim posso dizer que,
ao estudar as nossas instituições pollticas - sejam
nos seus aspectos formais e legais (nas suas Cons·
tituições ou nos seus códigos), sejam nos seus aspec-
1os sociológicos ou culturais (nos usos, costumes,
tradições, sentimento, e · idéias que nos inspiram
ou nos determinam na execução que damos a êste,
códigos ou a estas Comtituições) - sempre me
conduzi tratando êstes fatos, êstes códigos, êstes
costumes e estas tradições en naturaliste. Vale
dizer: objetivamente, realisticamente, no mesmo
('sfilo com que ·OS t~cnicos do Instituto Biológico
pesquizaram a irradiação da broca do café em São
Paulo, ou os investigadores da Fundação Rockefel-
ler estão qcompanhando a expansão do anopheles
gambiae nas regiões nordestinas.
Confesso honestamente que, fazendo um exa-
me de consciência, uma análise introspectiva das
minhas idéiQtS e das minhas fontes de inspiração,
não descobri ainda no meu e.,pirito nenhum tra-
ço de parti-pris, nenhum vestfgio consciente de
qualquer tendenciosidade ou inclinação apriorlsti-
ca nêste ou naquêle sentido. Habituei-me a ren-
. der-me à evidência dos fatos e aos dados da reali-
dade objetiva - e isto, ·em parte, por disciplina
16 Oliveira Viana

cientifica, e, em parte, por condições peculiares do


meu e,splrito, decorrentes talvez do meu "tipo psi-
cológico", no sentido dado por Jung a esta expre8-
siio. Si, n este dom(nio de conhecimentos, tenho
cultuado algum deus, êste tem sido sempre aqu~-
le Deus carlyleano das "causas como as cousa,s são"
- "the God of thing1 as they are". Nenhwn
outro.
III
Não me parece, · entretanto, que me hajam
· compreendido nesta atitude de rigorosa imparciali-
dade e objetividade. Vejo sempre, com surprêsa,
descobrirem nos meus ensaios e livros tendências
pessoais, inclinações parUdárias, intenções ocull~.
sub-intenções de servir aos que estão no poder, etc.
Foi, por exemplo, o que ocorreu com Populações
Meridionais e com O idealismo da Constituição.
Foi o que ocorreu com êste livro - e é oportuno
relembrar o episódfo, dadas a eminência e a au-
loridade da fonte donde emanaram as orguições
articuladas. -
Logo que os Problemas de política objetiva
foram lançados à publicidade, em pleno climax da
campanha presidencial de 30, o Jornal do Comér-
cio, o venerando órgão da nossa imprensa e honra
da nossa cultura, abriu contra o livro uma série
de gazetilhas nada favordveis ,u idéias nêle de-
Problemas de Politica Objetiva 17

1:envolvidas e su,stentadas. Dizia aqu~le grande 6r-


gão que eu havia falta do com ~ste livro aos deve-
res que incumbem aos homens de pensamento no
Brasil, pois com ~le não havia tido outro intuito
11enão fornecer aos poderosos do dia os fundamen·
tos pa.ra justificarem ~ suas atividades contrárias
o.os principios democráticos e às instituições repu-
1
blicanas.
" - E' lamentável ~ dizia na gazetilha de 20
de março - que, no meio desta luta, um homem
de valor, como o sr. Qliveira Viana, venha, num
livro recente, seriar e compendiar asserções para
serem aproveitadas pelos no~sos politicos militan-
tes". ·
Depois de reconhecer que tenho · "estudos sé-
l'ios sôbre a nossa formação social (referia-se a
Populações M~ridionais do Brasil e a Evolução do
Povo Brasileit:o), lamenta que eu me houvesse "de-
clarado francamente contra o liberalismo e a de-
mocracia":
. "- Essa atitude desconcertante da sua parte
- continuava - só pode animar os adversários do
e.spfrito constitucional, que são muitos entre os po-
derosos de ocasião. Acreditamos que o sr. Oliveira
Viana terá oportunidade de corrigir muitos dos
~eu, conceitos e verificar o ~rro das suas conclu-
sões. Muitos politico, militantes, que se dizem
conservadores, já se regozzjaram com os conceitos
reacionários do sr. Oliveira Viana. Esperamo,
18 ' Oliveira Viana

que, retificando algun., dos sem raciocínio.'f, o sr


Oliveira Viana, que é um pensador, nã.o se incorpo-
re aos que são contra a liberdade da manife~tação ·
do pensamento. Conservadores da Constituição,
consideramos um dever protestar contra o espírito.
subversivo dos que querem desacreditar os princi-
pias dos textos con,stitucionais".
Em outros artigos, de 20 de março a 28, conU ·
rmou o grande órgão conservador a de~envolver
uma cerrada argumentação contra o.'f temas do U-
vro, combatendo-os um a um, com argumentos, qu,.
são os dos doutrinadores liberais e cuja validad~
nrio quero discutir agora, deixando que os capítu-
los dêste livro falem pos si mesmos, em resposta. ·
l\tum dêstes artigos, o de 26 de março, assim con ,! , 1

duia:
- "Algum escrito·res e jornalistas dos gover--
nismo~ reaciondrios '<1.plaudiram e ainda acentua-
ram mais as idéias anti-democrdficas do sr. Olivei-
ra Viana, no seu recente livro Problemas de Polf ·
fica Objetiva. 'J:ste,s publicistas são aproveitadores
de ocasião. Mas, o ·sr. Oliveira Viana tem valor
próprio, tein admiradores em todo o pai~ e a8sim
a sua influência poderá ser perigosa, si a op,'nião
liberal do país não mostrar desde logo o êrro, a
falta de fundamento das suas asserções",
Medeiros de Albuquerque, que fazia então u
crlfica do Jornal do Comércio, foi men,os t1evero na
apreciação do livro. Concordou com muita coü:a
Problemas de Política Objetiva 19

e aplaudiu certa,s sugestões que faço: mends com


o que eu disse sôbre o Haiti (cap. V). tste capl·
tu/o, aliás, êle o criticou azedamente, com a sua
habitual mordacidade - ·e com muitp espírito.

IV
Entretanto, o Jornal do Comércio não tinha
razão. tle, que, com a sua habitual segurança de
informações e de critica, sempre teve razão em
tudo, no meu caso e no caso do meu livro não ,r
· tinha, de modo algum.
Concordo que me qualifique de anti-federalis-
la e de anti-parlamentarista - e aceito com honra
e mesmo orgulho o qualificativo. Não, porém, .J~
Pnti-liberal, nem de anti-democrático. Não so11
uma coisa, nem outra. Sou justamente o oposto
disto. ·
Não pode realmente ser anti-democrátiro
quem, em O idealismo da Constituição, dado à pu-
blicidade em 1924, já dizia, no prefácio à edição
de 1927, depois de dividir as democracias moder-
nas em democracias de opinião organizada e de-
mocracias sem opinião organizada:
- "Não há maior ilusão do que supôr que no
Brasil exista uma opinião organizada. tste volu-
me, nos vários capltulos de que ,e compõe, visfl
. iustamente demonstrar esta tese. Ora, um rlN
20 Oliveira Viana

grandes problemas da nossa organização politi~•


está precisamente em fazer evoluir a nossa demo-
cracia desta sua condição atual para uma demo-
cracia de opinião organizada. E' o que ficará de~
mon~trado em vários pa.ssos dêste livro".
Leia-se O idealismo da Constituição - ,e vu·
,,e-d que êle está todo cheio dêste pensamento e
desta tese. Nêle desenvolvo de forma extensiva '>
fema de que o que é preciso é organizar as fontes d.~
opinião pública e de opinião democrdtica, torná-
Tas mais amplas e mais autorizada$, por menos im-
pregnadas do espírito faccioso dos partidos e por
mais expressivas dos interêsses coletivos e dos intr..
rêsses económicos. Quando susteni'-0 a necessida-
de da organização das cl~ses produtoras, que é e.
tese central do livro, o que viso é justamente pre-
parar à nossa democracia incipiente uma afmos-
f era de opinião pública capa.:z de orientar o, qu~
governam, e esclarecê-los, e mesmo domind-los. O
meu raciocfnio era lógico: desde q11e o nosso ideal
- o ideal polltico e de gov~rno contido na CorMU-
hzição - era uma democracia de estilo ingMs, o
caminho a acon,selhar era êste e não havia outro:
ampliar as fontes de opinião e constituir a pre1sã.o
(pressure politics),
- "Sem isto - conclula então - o melhor 8eró
contentarmo-nos com o que estd: - com o govlr-
no do povo por oligarquias broncas, que todo,s o.,
r,ossos espíritos capazes de idealidade deverão pug•
,.
f
1
:, Problemas de Polltica Objetiva 21

nar para que se transformem em oligarquim e,


c-larecidllJl".
· Quero também levantar a arguição ao meu
anti-liberalismo, principalmente às minhas tendln
da, contra a liberdade do pensamento. Devo con-
fessar com inteira lealdade que não sei onde e em
~ que capitulo manifestei tal pensamento. Não o
-encontro em livro algum meu. Aliás, a minha tese
central - da organização da opinião e da organi-
zação da pressão m·ostra a inteira improcedência
desta arguição. Porque opinião democratica e pres.
são da opinião são instituições pollticas ,ó possi.
l'eis de funcionamento num clima de plena liber·
dade, especialmente de liberdade de pensamento.
Na tese da opinião e da pressão está naturalmente
implicito o principio desta liberdade, sem a qual
não se conseguirá nem ;organizar a opinião, nem
exercer a pressão.
Um simples confronto de datos esclarecerá a
,, suspeita. Os ensaios coligidos na primeira edição
dêste livro eram, como disse, trabalhos publicados
em jornai., e revistas. Dentre êles, uns foram e~-
critos antes de 1920 (data da publicação das Popula..
ções Meridionais) - e é ·o caso dos capitulas da pri-
meira parte; os outros, os mais modernoi5 - como
o ensaio s6bre os conselhos técnicos nos govê.rnos
modernos - não levam a sua publicação alé.m de
1928, ano em que apareceram pela primeiro ue~
. ,,
22 Olz'velra Viana

em O Jornal e com que iniciei a minha colaboração


nesta fôlha.
Ora, o caso da éandidatura Julio Prestes e o
l11ta .polifica consequente irromperam em 1929
Fni em 1929 que o ambiente politico do pals, aM
então aparentemente calmo e límpido, se infla-
mou subitamente com o lançamento oficial daque-
la candidatura. Começaram imediatamente as
contra-reações, que acabaram objetivando-se na
<'andidatura Getúlio Vargas e na constituição dl,
Aliança Liberal. Excitadas pelo temperamento
afirmativo, ardoroso e combativo do 1r. W. Lui::
(oram estas contra-reações crescendo cada vez maú
de intensidade até atingir o climax dramático de
2'1 de outubro de 30.
Os Problemas de política obj etiva foram escri-
, tos, pois, muito antes do desencadear da tormenta:
muito antes mesmo dela começar a pintar no hori-
zonte. Nêste tempo, o autor e~tava tão alheio ,t
politica, tão distante dela e das suas competiçõeJ
( r, continua ainda estar) que não se havia aindt1
~equer alistado eleitor, coisa que só fb quando
· foi a isto compelido por um mandamento leg(ll - ·
pelo voto obrigatório.
Não tenho, nem nunca tive, atin~ncias parti-
dárias de qualquer espécie. Não pertenço a par-
tido algum. Não pertenço, nunca pertenci e espe-
ro em Deus que terei a lucidéz e o bom ,enso bas-
tantes para jamais pertencer. Muito ao contrário
.•

Problemas de Polltica Objetiva 23

di,sto, sempre fiz timbre de ser um espírito. livre,


inteiramente livre, dêstes atilhos de partidos. Des·
ta liberdade, que o meu aparlidarismo me concede,
se a tenho usado, tem sido para julgar os nossos ,
homens públicos e os nossos homens de govêrno
com inteira independência e imparcialidade, ou
r.ensurando-os quando fazem jus à censura, ou
.aplaudindo-os, quando merecem o meu aplauso, e,
si nominalmente tenho aplaudido a êste ou aquêle
homem de govêrno, - fato aliás raríssimo -, só
e, lenho feito quando os seus ato,s coincidem com
as linhas fundamentais do meu pensamento, ex-
presso em quase uma dezena de livros. Nunca
apoiei ato algum de govêrno contrário às idéias
expostas nêstes livros. Este livr.os é que constituem
o meu partido: não tenho outro. Guardados as ·de-
Lddas proporções, passo dizer de mim o que de si
disse Bernardo Vasconcellos no Senado, em 1839:
"- Sou uma unidade tranquila e nunca me senti
mais desasombrado e livre do que quando so~
unidade."

,V

Reedito ~ste livro sem nenhuma alteração n6


1reu texto primitivo, salvo as que decorreram d~
· uma melhor f eítura, - ou mais justa como expres~
$âO do pensamento, ou mais artistica como expres-
2.f. Oliveira Viana

,ão literária. Substancialmente, não há n~le alte-


ração de uma idéia 8equer. Publicado há <fulnze
ano8, nêste espaço de tempo ( curto ou longo. con-
forme o tingulo em que no8 colocarmo,), muito,
dos temas nêle abordados, ou já tiveram a con8a-
gração das lei8, ou continuam e~ plena atualidade.
Certo, . um ou outro podem ter perdido eda
atualidade; mas, a sua notação deve ficar. Servirá,
ao menos, ao historiador futuro como um testemu._
nho informativo e subsidiário do estado dos espíri-
tos e das preocupações que os dominavam naquele .
/
momento fecundo, em cujas matrizes, ricas de latên-
cia, criadoras, palpitavam os germens de aconteci- .
mentos da mais alta relevlíncia para nossa histó-
ria politica.

OLIVEIRA VIANNA

·r 'Dezembro de 1945.
Alameda São Boaventura, 41.
'f11it~;•


·,

I PARTE

O PROBLEMA DA REVISÃO
Cap. I : O aentido nacional da revi.aio
Cap. II: O problema da revisão ·e a luta contra o
espírito de facção
Cap. III: .Alberto Torres e o problema. da l'ffiaão

,
CAP1TULO I

O SENTIDO NACIONAL .DA REVISÃO

SuMÃRro: - I. Discordância geral sobre o sentido da re·


visão; tendências que se acentuam. Condição preliminar à solu,
ção do problema da revlsão: modificação no sistema de idéias po-
líticas das elites dirigentes - I. O preconceito da superioridade
cívica dos elementos da oeoslção: o que há de ilusão nêle --
III. O teste da excelência do regime atual: o argumento .
do "Qrande homem". Critica e Improcedência dêste argumento
- IV. O verdadeiro sentido nacional da revisão.

Entre as correntes partidárias da reforma da


Constituição de 91 não tem havido, realmente, con-
cordância de opiniões sôbre o sentido geral que a
revisão deve ter. Sôbre êste ponto, o que há de
definitivo e completo é o projeto radicRI, profun-
do e severo de Alberto Torres - o único formula·
'do até hoje oom todos os detalhes. . .
E' certo que o Partido Liberal, que aqui sur-
gira em consequência do movimento civilista, es-

28 Oliveira Viana

boçara no seu programa um plano de revisão (1) ~


mas, êste plano deu apenas uma feição mais de-
finida àquele que Rui Barbosa, na sua plataforma
1
de 1910, foi obrigado a deixar um tanto reticente
e vago, para não se incompatibilizar com os ele.
mentos anti-revisionistas que, naquela época, o aju-
davam na luta contra o facciosismo dos quartéis.
Nos vários grupos regionais do pais, também ,
nada se vê que pareça positivo e claro. Os fedéra ·
listas e democratas dos pampas, tão intrépidos no
pensamento como na ação, não formularam até
agora nenhum projeto de revisão próprio e se têm
limitado a enunciar as suas idéias reformador&!
de modo genérico, doutrinário, abstrato. -No nor-
te, tão rebelde e revolucionário outrora, os centro11
políticos e intelectuais permanecem paradoxalmen~
!e indiferentes ao problema : de lá não IDOS vem a
- mais leve, a mais sutil vibração nêste sentido.
O desencontro das opiniões é geral. Há ten·
dências parlamentaristas muito acentuadas em
certos grupos. Há vagas aspirações centralizado-
ras e unitárias. Há veleidades mesmo de uma de., -
centralização maior, principalmente entre as eli•
tes dos Es lados mais progresistas. Sôbre certo•
pontos chega haver quase o uníssono das unanimi
dades - como sôbre a unificação do processo e
da justiça, tornando-a privativamente f edei-al (2). •
Qual° será então a.tendência, o sentido real, na.
ci<mal <la revisão?
.,
Problemas de Politica Objetiva 2.9

Uma preliminar, entretanto, se pode estabele-


cer desde já. E' que o movimento pela revisíic
da Constituição de 91, jamais chegará a qua]quet
resultado eficaz e fecundo, se revisionistas e anH ..
revisionistas não fizerem em si mesmos, antes de
iniciarem o debate constitucional, esta dupla r~-.
visão no sistema dos seus próprios ideais politicoii:
a) a revisão dos seus velhos preconceitos 11~-
bre o valor e a superioridade das formas de go
vêrno;
b) a revisão das suas velhas presunções sô
bre as capacidades e a cultura politica de nosso
povo.
Sem que uns e outros façam tábua raza de to-
dos êsses preconceitos. e presunções, que lhe estra-
bizam ou daltonizam a visão real das nossas coisas,
tôda e qualquer tentativa de reforma constitucio-
, nal resultará em .pura logomaquia parlamentar.

n
O primeiro dêsses preconceitos a rever é aqnê ·
. le que poderemos chamar - o preconceito da su-
perioridade civica dos oposicionistas sôLre l '$ que
eventualmente estão no poder. tsse preconceito
é que leva os que combatem uma dada situação e
estão fóra do poder a se julgarem sempre os úni-
cos cidadãos capazes de "salvar a pátria"; não pas-
30 Oliveira Viana

sando os que estão no poder de um bando de mau!I


sujeitos, que não fazem senão perdê-la e explo ·
rá-la.
Dêsse preconceito, domrnan te em tôdas as nos ·
sas camadas sociais, das mnís baixas às mais altas,
é que procede - · já o explicamos alhures - ês,e
nosso eterno messianismo político, em que vivemos
sempre a invocar e sempre à espera de "um gran-
0P homem", de uma "geração patriótica", de "um
prande movimento nacional", que nos faça "sair
djsto", realizando em tôda a sua grandeza "as pro·
nessas do regimen" (3). E' escusado dizer que ês-
tc grande homem - o "salvador da pátria", o ';.he
rói", etc., - encontra-se sempre entre os que estão
do outro lado - na oposição ...
tste estado de espírito nos leva a duas atitu-
des:
a) a carregarmos sempre todos os êrros, abu-
sos e corrupções do nos~ viver político à culpa
exclusiva de um certo grupo de homens, isto ~.
os que estão no poder, com a "situação" (os "pa-
tifes", como os chamava o então coronel Pantaleão
Teles);
b) a éonvencermo-nos de que, expulsos ou
Elliminados êsses corruptos e êsses corruptore!I pe ·
lo ostracismo, pela revolução, pelo fuzilamento.
JJela forca, pelos autos-de-fé na praça pública, para
logo o regimen idealizado por ·Quintino, por Ben-
Problemas de Politica Objetiva . 31

jamin, por Silva Jardim se iluminará de belezas


estelares.
Crendice, abusão ingênua e infantil, como a
fé das velhas rezadeiras nas virtudes exorcizante~
do galho de arruda. :t:;ste estado de espírito é, en-
tretanto, tão radicado na consciência das nossa3
massas e mesmo das nossas elites que lhes turva
completamente qualquer visão lúcida f clara das
uossas realidades.
Não fôra a influência obnublante dessa velha
superstição política - e esses quarenta anos de de-
mocràcia e federação bastariam para nos fazer
compreender estas verdades substanciais, claras,
límpidas, transparentes como a água das fontes
e dos ribeiros: ~
- Primeiro: que todos os êrros, descalahrn.1
e desatinos, que temos o hábito de levarmos à con-
ta de alguns homens, outra coisa não são senão
consequências das deficiências e do rudimentaris
mo da cultura política do nosso próprio povo --
das massas populares, a quem cabe, afinal, num
regímen de maioria, a responsabilidade da direção
do país;
- Segundo: que a execução deturpada, que até
a.~ ora temos dado ao regímen estabelecido na Cons.
lituição de 91, é a única que lhe podemos dar; e
qne não possuímos, considerando-nos coletivamPn-
te como povo, capacidade, nem aptidões para dul'
/
à Constituição atual outra e melhor execução;
3.2 Oliveira Viana

- Terceiro: os homens excepcionais que sur


girem, pouco poderão fazer, dadas as deficiências
do próprio meio, no sentido de uma completa exc·
cução do regime.
Todos os nossos políticos e publidstas, peh me-
nos os da escola da democracia e do liberalismo,
parecem estar profundamente convencidos do con-
' trário disto e creem que, se não praticamos ainda
'\ Constituição, é unicamente por êste simples mo-
tivo: - porque não temos querido. Para êles, bas-
taria que todos nós - cidadãos do Norte, do Sul,
do Litoral, do Sertão - um dia, batendo o pé nurn
(,lesto de resolução coletiva, disséssemos, num aces-
so de veneta cívica: - "Vamos executar o regime.1 1•
- - e para logo o executaríamos, à justa, exato, ~
impecáveis como os americanos de Wilson e. dA.
Hoover. Tudo está dependendo apenas dessa f\t.Í
tude intima de cada um de .nós: - querer (4) . E·
como se vê, a metafisica do livre arbítrio apHcada
it vida constitucional das Nações ...
Esta, a convicção. Pois bem, há cêrca de vinte .
anos abriu-g~nos uma bela, uma magnifica opor- ·
. tunidade que nos colocou em condições de verifi-
C'lrmos, de modo pragmático e excepcional, a falta ,
de base dessa convicção, desta presunção secular. ·
Esta oportunidade foi o ciclo das "salvações
militares" ao Norte, no tempo da presidência HC'r :
mes. Então, tôdas as velhas oligarquias do Norte
- dos Neris, dos Maltas, dos L~mos, dos Acio-

'I'
Pr~blemas de Polftica Objetiva 33

Hs - foram postas abaixo, entre a surriada da pn·


pulaça, a panaços de espada, Sob o clamor do
entusiasmo dos povos "redimidos", subiram os
"~alvadores", isto é, os que iam cumprir a Cons·
tituição, salvar as instituições. realizar as "prornP.s-
sas do regime", tal como o haviam concebido, em
91, os seus idealizadores e fundadores.
Entretanto, que é que todos verificamos? O
qne todos verificamos - com a evidência e a fln
grância das experiências nos laboratórios de Fi-
!lica - foi que nada havia de mais parecido com
um "oligarca" do que um "salvador", como,
aliás, já havíamos verificado, durante o Império,
numa série de experiências de rn ais de meio sé-
culo, que, em matéria de conduta ou moral polkti-
ca, nada se assemelhava mais a um conservador
do que um liberal ...

IIl

Os Jeremias, e. tâmbém os Elias, do regimen de


91, não -se deixaram vencer nem convencer dian1P
dêste fracasso estrondoso. Continuaram inabalá-
,·eis na sua crença, cada vez mais recalcitrantes e
obstinados dentro de seu culto ultramontano ao
princípio das "revoluções salvadoras", E revida-
ram: que se a reação contra as oligarquias se epi -
logára com um fracasso, isto devera-se exclusiva-
mente ao fato .de que os chefes da reação, eleva-
34 Oliveira Viana

dos ao poder, eram infelizmente personalidades d'"


segunda ou terceira ordem; se porventura acont~-
cesse subir ao poder um homem verdadeirament~
notável, para logo o regimen revelaria as suas be~
lezas e reflorej aria em maravilhas.
Em primeiro lugar, pode-se perguntar se nfin
importa em condenação de um regímen fazer de.
pender a sua bondade apenas do valor pessoal do
. executor? Quando ocorre a execução estar con.
fiada a um grande estadista (da estatura, por exem.
plo, de Rodrigues Alves) o regímen mostrará tôda
a sua incomparável sublimidade; mas, se vem a .
cair nas mãos de um presidente medíocre ou fac- <
cioso, não há como evitar que se torne ruinoso pa- :
rn o pais. . . :
Em segundo lugar, êste argumento do "gran- Í
de homem", apesar de tôda a sua fôrça e beleza, 1
einda assim não é decisivo. Não se compreende .
realmente como os talmudistas do regímen, os zela- ~
,fores fiéis do espírito e da letra da Constituiçãll, ~
possam esperar que um grande homem, colocado :
na presidência da Republica, baste para o perfeito :
funcionamento de um sistema descentralizado, co- i
mo o da Constituição de 91. Sendo amplíssima 9 ,
esfera da autonomia atribui da a cada um dos Es- ~
lados, é claro que a atividade politico-administnti- 1
va dos govêrnos respectivos torna-se incumbência
tão grave e tão complexa quanto a da atividade ·
político-administrativa do govêrno da União - e

·~
Problemas de Polltica Objetiva 35
pede, sem dúvida, para governadores ou presiden
tes, verdadeiras capacidades de estadistas.
Para uma execução fiel e integral do regimen
,·igente, seria, pois, absolutamente necessário qu(',
ao aparecer no govêrno da Nação o "grande ho-
mem•• providencial, provessem logo os fados a
coincidência feliz de aparecerem nos govêrnos dos
Estados outros homens também da mesma molda-
gem e tipo. Do contrário - dada a difícil transpo
nibilidade das barreiras com que a Constiluitíío de-
fende as autonomias estaduais contra as incursõe1
do Poder Federal - o homem notável, que o a.caso
fizesse subir à presidência da República, pouca coi.
sa poderia fazer para evitar os abusos daquêle~
governadores que tivessem o mau gôsto de não
quererem ser, como êle, também grandes homens.
Foi o que aconteceu no quatriênio W enceslau Braz,
em que vimos o presidente da República, para pôr
termo digno à luta inominável do Contestado, tep
que se submeter à humilhação' de parlamentar
com dois oligarcas estaduais, como se fôssem dois
soberanos ...
E' verdade que hoje as coisas já se passa111
diferentemente. Em vez do presidente da Repú·
blica parlamentar com os oligarcas, são êstes que ,
parlamentam com o Presidente. Mas, isto é umn
evolução, que se está operando contra a Constitui
ção e o seu espírito - e não segundo ela . .. (5)
Não é só. Como são vinte os Estados, teria·
mos que um quatriênio presidencial, realmente "r«>•
36 Oliveira Viana

pnblicano", realmente "constitucional"9 realmentl!


"beleza do regimen, exigisia nada menos de vinte
estadistas notáveis - e como nenhum dêles pode-
ria ser reeleito,· seriam precisos mais vinte par&
o quatriênio seguinte. Equivale dizer que - para
termos a ventura de uma execução à risca do regi-
men durante apenas oito anos - seria. preciso a
existência, dentro do paÍS', de um stock visível de
quarenta grandes estadistas, pelo menos.
Ora, um sistema assim exigente de gênios po-
líticos só poderia ser executado, à justa, pelos grcl
ves e impecáveis cidadãos que povoavam a ilh u
da "Utopia", de Thomas More; mas, é perfeito dF
mais para a nossa incultura de latino-americanos.
D~ntro dessa morada luxuosa e esplêndida, o Brn-
RiJ, como aquêle Jacinto, da Cidade e as serras, evi-
<lentemente boceja, aborrecido com os incômodo,
de tamanhas comodidades.
Nos Estados Unidos ou na Inglaterra, ninguém
se lembraria de estabelecer, como condição ele,
mentar para a execução do regímen presidencial
.. f\U parlamentar, o acidente da presença de gran-
<les homens no poder. Cada um dêsses regimens
{: ali praticado, da maneira mais natural e espon-
tânea do mundo, por políticos notáveis ou por po ·
titicas. medíocres, indiferentemente. Símplesmen-
te. os grandes estadistas dão à execução dêsses regi-
mens o traço da sua superioridade.

1 '
Problemas de Polltica Objetiva 37

Para os grandes políticos, aliás, não há pro-


priamente bons, nem maus regimens, por que. den-
tro das aparê,ncias do regimen que simulam obede-
cer, o que êles ·r ealizam, na verdade, é um regímen
seu - o ,r egímen da sua per90nalidade ou do seu
gênio.
Para o nosso povo, a melhor Constituição,
a Constituição ideal seria, não a que cris-
tolizasse no seu texto tôdas as sublimidades do
liberalism10 e da democracia; mas, a que, como
já dissemos, permitindo a revelação de tôdas ti:•
boas qualidades da raça (e as temos primorosas),
nos desse meios de reduzir, ao mínimo, a influên-
<'ia nociva dos maus governos, dos maus chefe~.
dos maus politicos, dos maus cidadãos. Porque
é nas virtudes comuns, ordinárias, virtudes de to.
dos os dias, do povo que se devem assentar O'i fun-
damentos de uma Constituiçãü verdadeiramente
nacional. E' uma ilusão funestíssima confiar o
perfeito funcionamento de um regimen político a
estados emotivos excepcionais, a crises de superPX·
citação cívica das massas, ou fazê-lo depender da
11parição de grandes homens. Essas crises de civi'!'-
mo passam, cessando as cousas de que as geraram;
êsses grandes homens desaparecem, sem deixar
continuadores e as Constituições, que encontravam
nêstes grandes homens ou naquelas crises a sua ÚD!·
CR condição de funcionamento e aplicação, ficam,
por assim dizer, suspensas no ar, magnificas e brl-
38 Oliveira Viana

lbantes, mas sem nenhum ponto de apôio na reali-


dade nacional.

III

Tôdas -essas contradições e deficiências dr.


nossa organização política e constitucional têm o
sua origem no fato de estarmos, desde os primC'i•
ros dias da Independência até hoje, a reincidir nu-
ma leviandade, cujas consequências têm sido incal-
culàvelmente nefastas para a nossa organizaçãn
!' integridade nacional: a leviandade de querer imi-
tar, nas duas ou três vêzes que temos tentado or-
ganizar constitucionalmente a Nação, o mais ini-
mitável cidadão do globo: o anglo-saxão - par-
ticularíssimo, originalíssimo, inconfundibilissimo,
sempre absolutamente êle mesmo. Durante maii-
de meio século, no Império, levamos a procurar
"fazer como os ingleses". Há cêrca de quarenta
anos, na República, estamos a procurar "fazer co-
mo os americanos" (6) .
Esta coqueluche anglo-saxônica está longe de•
ser inocente e inofensiva, como talvez pareça a
muita gente. Ela nos tem levado, ao contrário
· · dado a nossa falta de senso de medida e adaptR-
ção - a sacrificar ineptamente todos êsses altos,
austeros, fecundos princípios, que a nossa condi-
ção de povo em formação impõe como essenciai~
à integração definitiva de nacionalidade (7) :
• Problemas de Polltica Objetiva 39

1.0 - O principio da unidade polltica:


2.0 - O principio da continuidade admini1-
trativa:
3. 0 - O principio da 1upremacia da autorida-
de central.
Contra êsse enorme êrr,o político é que aos re-
visionistas caberá reagirem. ~les deverão traba-
lhar por introduzir um modicum dêsse "principio
monárquico", que a imprevidência dos nossos Iegis.
ladores constituintes esqueceu e que Goodnow jul·
ga, entretanto~ indispensável à existência de todo
o govêrno livre.
:tste é que há de ser o sentido nacional da re-
visão. Se nos fôsse possível resumi-lo num lema
único, poderíamos formulá-lo assim: Organização
1ólida e estável da liberdade, principalmente da
liberdade civil, por meio de uma organização IÓ·
lida e e1tável da autori.dade, principalmente da
autoridade do pPder cerotral.
Está claro que, quando dizemos - "autorida-
de", não queremos dizer apenas autoridade do
Executivo, mas também, e principalmente, autor! ·

dade do Judiciário. O Poder Judiciário e o P,oder
Executivo ~ão 01 grande, poderes, cuja organização
nos deve preocupar, de maneira preclpua, numa
obra séria de revisão. O Pod~ Lesgislativo, na sua
modalidade parlamentar, é, ao contrário do que
parece, de importância secundária (8).
40 Oliveira Viana •
Um P<>der Executico forte,· ao lado d~le e con-
tra ~le um Poder Judiciário ainda maia forte - eis
a fórmula.
Ou o movimento de reforma das nossas insti:
~nições terá êste sentido nacional, ou não terá sen .
tido nacional algum - e se resolverá apenas numa
agitação temerária e perigosa, de regionafümos
revivescentes.

( 1) v. Rui Barbosa - Contra o militarismo, Rio, 1911.


(2) Este Ideal foi attlngido no tocante ao proce&.so, aue está
unificado; não, quanto à organizaçlfo judiciária, que foi estadua-
lizada. Cfr. Castro Nunes - Teoria e prática do Poder Tudiciá-
rio, Rio, 1943. Cfr. ainda meu - O idealismo da Constituiçlfo,
2.• edição, 1939, cap. XVII (- O regime federal e a unidade da
magi&tratura.)
(3) v. Populac6e& Meridional& do Bra8ll. cap. XVII: P,1.
' cologia das revoluçõe.s meridionai&, § VI.
( 4) Por esta época, a teoria geral do Estado estava ainda
na fase da filosofia política. Não havia cheçiado ainda à fase da
citncia política, em Que está hoje, nem à da sociolonia política ( so-
ciologia das instituições politlcas), que são hoje duas ciência, de
observação - corno a socloloiiJa econômica, -a sociolonia Jurídica,
a etnografia, a pslcologia social. a antropologia cultural, a antro-
posociologia, a antropogeografia, etc. Os problemas da estru•
turação do Estado, da organização constitucional e da programa•
ção política eram então resolvidos como se fõssem ,Problemas ma•
temáticos, in abstracto, ao modo de uma equação algébrica - e
não como se fõssem problemas de realidades, problemas orgãoi-
cos, Interessando esta coisa real e viva, que é uma sociedade ou
uma nação.
Problemas de Politica Objetiva

Woodrow Wilson fixou com multa Ironia esta mentalidade,
quando aludiu aos construtores da Constituição de Filadélfia com
a sua preocupação de "freios": - "!les construiram um govêrno
como teriam construido um planetário. Para êles, a polltica não
era senão uma variedade da mecânica - e o fundamento da Cons-
tituição foi a lei da gravitação" (La nouve/le liberté, Paris, 1913,
pág. 6-4). E comenta : - ··o mal desta teoria é que o govêrno
não é uma máquina, rn !S, sim, alguma coisa de vivo; não depen-
de da teoria do Universo, mas da teoria da vida orgânica: o seu
domínio é o da ciência de Darwin, e não o da ciência de Newton,
Para viverem, as Constituições devem ser darwinianas, não só na
sua estrutura como na sua prática. E' a sociedade um organismo
vivo e deve obedecer às leis da vida, não às da mecânica. O
que os esplritos progressistas pedem ou desejam é apenas que lhe11
seja permitido Interpretar a Constituição segundo o principio de
Darwin; é que reconheçam este fato : uma nação é uma coisa viva -
e não uma máquina". Cfr.: - O idealismo da Constituição, 2.•
edlçfo, 1939, prefácio.
(5) v . adiante cap. Vl: Nacionalidade ou liberdade. Cfr.: O
idealiamo da Constituição, cap. III.
(6) Hoje, os modelos são outros - e múltiplos. Hã os
que querem "fazer como os italianos" (de Mussolini); ou "como
os alemães" (de Hitler). Hã mesmo os que querem "fazer como
os russos" (de Lenine). De qualquer maneira, sempre fazer como
os outros. . . E' que todos êles ainda continuam dominados pela
mentalidade ''mecanicista" ou ··voluntarista", a que me referi em
nota anterior. Para uns, a sociedade é uma máquina, qu.? pode-
mos mover apertando apenas um botão; para outros, uma espécie
de argila plástica, que podemos modelar, segundo ~s nossos dese-
jos ou a nossa vontade, por meio de leis ou de Constltuiç~es, ou
atos de govêrno. !ste é o grande equivoco das nossas elites po-
lltitas e sobre êle, em face dos dados da sociologia polttica, v. os
meus Problemas dl direito sindical, Rio, 1943, pâg. 243-2-H e
nota 124. 1

(7) v. Populaç(Ses Meridionais do Brasil, cap. XVI: Gê·


nese do sentimento das liberdades públicas; cap. XIX: Punção po·
lltlca das populações do Centro-Sul. E também - Evolução do
povo brasileiro, III parte (Evolução das instituiç6ea políticas) •


Oliveira Viana

( 8) Esta aparente inferiorização do Parlamento como 6r-


.
gllo legislativo é, aliâ.s, um fato - sim, um fato - geral. Estu-
dando as novas tendências do direito público moderno, Mlrldne•
Guatzevitch chega a esta conclus:Io e reconhece que a socieda-
de moderna "perdeu a confiança nas Câmaras Legislativas e nos
legisladores" e que este processus de desilusão dos povos nos seus
órg:Ios legislativos "é observável em todos os países," (L,:s 11ou-
velles tendartces du droit coristitutional, ln "Revue du Droit Pu-
blic et de Science Politique", 1930, pâg. 74) . E acrescenta, Jus-
tificando o fato da preponderância do Executivo no Estado Mo-
derno : - "O E xecutivo moderno, que se apoia na maioria parla-
mentar, não é sómente o órg:Io de execuç:Io, mas o órgão mais
forte da legislação. Como jâ demonstramos, a complexidade da
vida moderna atual conduz ao monopólio do govi!rno naquilo que
concerne à iniciativa legislativa: para preparar um projeto de lei
é necessário um aparelho administrativo e técnico. Se é o Par•
lamento que vota as leis, é o Executivo que as prepara e obriga
o Parlamento a votâ-las. Ignorar esta transformação capital do
Executivo é ignorar a evolução do regimen parlamentar. O Exe-
cutivo continuou sempre baseado no sufrâçiio universal; continua
sempre responsâvel perante o Parlamento; mas, no ponto de vista
técnico, é o Executivo que possue o caráter criador na vida mo-
derna" (pâg. 80-8-). Cfr. Herring (Pend1eton) - Presiden-
tial leardership, N .. York, 1940. V . adiante oa capitulo, relati-
vos aos Conselhos Técnicos.


CAP~TULO II

O PROBLEMA DA REVISÃO E A LUTA


CONTRA O ESPfRITO DE FACÇÃO

SUMÁRIO : - I. O critério nacionalista na obra da revlsAo.


O tipo de govêmo que precisamos criar. - II. Os pressuposto,
da Constituição: sua contradição com a realidade nacional. -
III. O êrro da Constituição Republlcana : carência de meios de
defesa dos aparelhos administrativos contra as influências da poli-
ticagem e do partidarismo. Um novo modificador sociológico: o
"sangue de tatu" .

J
Há ainda muita gente em nossa terra. que nãrJ
pode compreender uma reforma da Constituição
sem que seja no sentido parlamentarista. O regí -
men democrático representativo só lhe aparece
,ob essas duas modalidades, únicas e alternativas:
-- ou o presidencialismo da Constituição vigente,

ou parlamentarismo da Constituição do Império.
Não há meio termo, não há variante, não há tem-
peramento possível. Ou ficamos no presidencialis-
44 Oliveira Viana

mo ou voltamos ao regime parlamentar - eis o


dilema.
Devem ser espíritos radicais os que assim pex,.-
sam, o que equivale dizer espíritos limitados por.
que em política - em que tudo é adaptação, opor-
. tunismo, relativismo - radicalismo significa ape-
nas inferioridade de observação, inferioridade de
idéias e, às vezes mesmo, inferioridade de espirito.
Entretanto, bastava que qualquer dêles passasse os
olhos pelo admirável ensaio do grande Freemar,
sA.bre o regimen presidencial para que visse como
são variadas as modalidades de formas de govêr·
no, que ficam intermédias aos dois tipos clássicos.
do parlamentarismo e do presidencialismo (1) .
O centro da questão revisionista no Brasil não
é, entretanto, êste, não é organizar aqui um regi.
men parlamentar, ou um regímen presidencial à
maneira americana. Essa preocupação europi;;a ou
americana é um êrro enorme, é um puro f enô.
meno de bíbJio.sugestão.
Nós, na realidade, nada temos com "tipos rlt
regímen" exóticos ,- o tipo inglês; o tipo francês;
o tipo suiço; o tipo americano. O que devemos
buscar é um regimen para nós mesmos, adequado a
nós, modelado sôbre nossas realidades e refletindo
O;J nossas idiosincrosias.
Equivale dizer que precisamos ter uma auto-
nomia e uma originalidade de pensamento, que nos
capacitem criar, si possível, um tipo de regímen nos~
Problemas de _Politica Objetiva 4-5

so - o ,tipo brasileiro, que possa vir a figurar,


futuramente, nos tratados do direito público e cons·
titucional, ao lado do tipo inglês, do tipo francês, d·,
tipo suíço, do tipo americano, com os mesmos di-
reitos que êstes têm à consideração e à critica dmi
pnblicistas.
tste é que é o método principal para a soln•
ção do problema. Na procura dessa solução é po~-
sível que nos possamos aproveitar da experiênci1
alheia, é possível que nos seja util a experiêncin
alheia - e a instituição dos Conselhos Técnicos é
uma prova disto (2) ; mas, é também preciso que
nos convençamos de que, para esta obra, nenhumn
rmgestão ou exemplo de origem estranha suprh·á
9S sugestões e exemplos da nossa própria experiên,
eia:
a) os nossos setenta anos de experiência mo- '
nórquica;
b) os nossos quarenta anos de experiência
republicana.
Deixando de lado os setenta anos de experi~n-
C'ia monárquica, só êstes quarenta anos de expc .
riência republicana nos dariam lições incompará-
veis. . Só êles bastariam para nos permitir condu-
zir pelo seu verdadeiro caminho o problema ela
revisão.
46 Oliveira Viana

II

Realmente, do exame destes quarenta anos republi -


canos, o primeiro ponto que êle deixaria claro
seria:
a) que a excelência de tôda a estrutura d.1
Constituição de 91 tem o seu fundamento, não em
fatos verificados, mas numa série de presunçõe.,
sôbre a capacidade política do nosso povo;
b) que tôdas essas presunçõ~s ou pressupostos
resultam integralmente falsos, quando os pomo,;
em confronto com a nossa realidade nacional.
Exemplos? Bastam-nos três:
Primeiro pressuposto: - Nossa Constiêuição
presume ou pressupõe, difundida de alto a baixo no
povo, uma consciência nacional, forte, vivaz, pre-
ponderante. Do contrário, a descentralização fe·
dera tiva teria sido um crime de lesa-pátria . . .
Segundo pressuposto: - Nossa Constituição
presume ou pressupõe em todos os brasileiros
- homens do campo, homens da cidade, homen"
do sul, homens do norte, e· jacente no íntimo do
caráter de cada um, com ·a força de um instil)to -
o :sentimento profundo e enérgico dos inte- ·
rêsses públicos, seja. do Município, seja do Esta- ~
do, seja da Nação. Do contrário, as diversas auto--
nomias estaduais e municipais não teriam justi-

.
~

J
Problemas de Polftica Objetiva 47

ficação possível e nos levariam às dissocie.~ão e


ao desmembramento.
Terceiro pressuposto - Nossa Consti:uição
presume ou pressupõe grandes correntes de idéas,
circulando e dominando, de uma maneira continua.
a consciência -e .a vida de tôda a Nação. Do con-
trário, não se explicariam ainda o regimen descen-
tralizado, nem também a periodicidade limitadí~-
sima dos mandados presidenciais, à maneira ame-
ricana.
Todos os órgãos, tôdas as molas interiores dn
re~imen atual , para darem resultados práticos e
positivos, não contradi~órios com as respectivas
finalidades, pressupõem, assim, ;na psicologia de ca.
da um de nós - boiadeiro em Goiás, lavrador en•
Minas, estancieiro no Rio Grande, senhor d ·! lati-
fúndios em S. Paulo ou plantador de cana em Per,
nambuco (para só falar na aristocracia local)
um substractum moral formado de umas tantas
qualidades cívicas, orgânicas, instintivas, forte~
bastante para determinar e regular, de modo per~
manente, a nossa conduta na vida pública (13).
Ora, essa qualidades cívicas - qualidades de
de "animal político" - tão fundamentais e eficien-
tes nos povos anglo-saxões; ~ujas constituições po,
liticas andamos a copiar, não existem em nosso po
,·o. Corrijamos em tempo: existem; mas, em eil-
tado rudimentaríssimo, sem nenhuma capacidade
normativa e orientadora. Nem as circunstâncias
48, Oliveira Viana

da_nossa formação histórica permitiram que as ad-


quiríssemos; nem os povos, de cujo caldeamento
proviemos, as possuiam com fôrça bastante para
nô-las transmitirem.
Em matéria de psicologia política, estamos ain-
da na fase do patriotismo tribal, da solidariedadt>
do clã, principalmente do clã rústico, parental, se-
nhorial ou eleitoral, - e não vamos além. Pode-se
dizen mesmo, sem êrro, que não temos sequer ~c;-
pirito municipal, que é uma das nossas ficções cons
titucionais: ao nosso sentimento de comunidade
municipal falta essa energia, essa profundidade <l~
que nos dão exemplos os vários tipos de comunicla.
des européias - a town saxônia, a comuna france-
sa e suiça, os pueblos e os ajuntamientos ibérioos;
mesmo os concelhos e as freguezias de algumas rf>-
giões de Portugal. E a própria tradição comunal,
que o luso colonizador nos trouxe com os seus f o-
rnis e senados de câmaras, pouco a pouco diluiu-s<- ·
e desapareceu na dispersão cada vez maior da nos-
~ª população, crescentemente ruralizada (4).
Não é só. Se não conseguimos condensar t:
r-ristalizar, em nossa mentalidade política, um&
"consciência do grupo municipal", menos ainda
conseguimos cristalizar uma "consciência do grupo
provincial" e do "grupo nacianal". Temos, é certo,
o conceito do "grupo municipal", do "grupo provin-
cial" e da "coletividade nacional"; mas, tudo istCl
em forma de simples idéias, de meras abstrações.
r
r
1

Problemas de Polltica Objetiva 49

sem quase nenhum coe{iciente afetivo ou em ocio


_ nal. Nação, Estado, Municlpio - tudo isto são
conceitos que existem em nosso espírito, não há
dúviêla; mas, como estado~ de consciência pura-
mente intelectuais, s~m as condições de af etividadf'
indispensável à sua objetivação pragmática, is~ t'.:,
em formas quotidianas de conduta.
Não ficam aí, infelizmente, as nossas dificiên-
rias de animal político. Carecemos também de ou-
tros sentimentos cívicos indispensáveis à personali-
dade de um cidadão, a quem se deu a grave incwu-
b~ncia de executar uma Constituição adiantadis,;i.
Ma, como à de 91. Não temos ( e, quando dizemn:i
Jlão temos, entende-se: com a fôrça que êstes sen-
. timentos têm nos povos qµe nos servem de paradig-
ma) não temos o sentimento dos grandes devere.i
públicos; como não temos o sentimento da hierar-
. guia e da autoridade; o respeito subconsciente dn
lei; a consciência do poder público como fôrça de
utilidade social. Nenhum dêsses sentimentos exis-
tem em nós, pelo menos na sua forma objetiva,
prática, militante, como os vemos exibirem-se, por
exemplo, nas sociedades saxônias dos dois mun-
dos.
~sses sentimentos, aliás, não são, como errada-
mente muita gente imagina, predicados trivi~i'3,
,·nlgarizados em todos os povos da nossa civiliza-
ção. Muito ao contrário, são dons parcimoniosa-
mente distrihuidos entre os grupos humanos; na

'
50 Oliveira Viana

,·erdade, SÓ OS encontramos, energÍCAmente orga•


r.izados, em certas nações, em certos grupos privi
lcgiados: no saxão insular; no seu ramo america-
no; nos povos germânicos em geral; ~otre os ant!-
gos romanos; no grupo nipônico.
Mesmo os gregos de era clássica, tão grande~
em tudo, eram nestes pontos inferiores. Todos e;~ .
hemos que em certos momentos da su'\ história o
personalismo, o interessismo, o divisíonismo poli
tico chegaram a ser entre êles tão dhisolventes co-
mo em qualquer república sul-americana de nos-
rns dias (5).
Por outro lado, os hindus, apesar da sua exis-
tência imemorial no vale do lndus e do Gange.~
~ mesmo da sua alta civilização, aincl& não pu<le-
rnm elevar a massa dos seus duzentos milhões <le
almas acima da consciência da pequena "comu-
nidade de aldeia" (village-patriotism), segun<ln
Seeley (6).
Ora, êsse substratum de sentimentos politiro~
superiores, assim tão raramente distribuídos na
humanidade, é que explica, na Inglaterra e na Amé-
rica, o admirável fu'n cionamento dos dois belos re.
girnens, que nós ingênuamente transladamos para
aqui: o parlamentarismo inglês ou prf'sidenciali,..
mo americano. Nem o regímen presidencial, nern
o regímen parlamentar podiam contar aqui, portan- ,
to, com uma exata e perfeita execução, já que ao~1
homens, que os tinham de executar, hJtava a ba<1e :
1
Problemas de Política Objetiva 51

de sentimentos políticos e de cultura cívica que ê<i-


-tes dois regimens pressupõem.
No Império, o que obstou a o regím en parlamen-
tar tornar-se uma calamidade nacional, foi apcnn..:
o "poder pessoal" do monarca - e nada rnah:.
Para corrigir, de algum modo, os malefícios que
o parlame-ntarismo estava produzindo entre nós,
foi preciso, com efeito corrompê-lo, abrasileiran- .
. do-o pela célebre máxima de Itaborai, formularln
E:m contraposição à do programa liberal, que ern
de pura extração britânico: "o rei reina, govern;i
e administra" - o que equivallaria, na prática, à
negação do próprio regímen parlamentar (7).
Da mesma forma , hoje, com o regimen presi-
dencial, para que êle possa produzir aqui os seu~
heneficios, o que precisamos fazer-lhe é o que j:í
fizemos com o regímen parlamentar: córrompê-lo,
deformá-lo, abrasileirá-lo, de modo a adaptá-lo á
riossa mentalidade e à nossa índole.

III

Tal corno se acha organizado na Constituiçã,,


de 91, o regimen presidencial abre, sem dúvida . ma-
I· ravilhosas possibilidades às manifestações de tô-
das as boas qualidades do nosso povo; mas, por
outro lado, não nos dá nenhuma garantia pre-
ventiva, ·nenhum meio de neutralização, nenh1!n,
rorretivo eficaz contra a influência das nossas qun-
52 Oliveira Viana
lidades más. Esplêndido para as expansões dol!
nossos instintos de paz, de hospitalidade, de tole·
râ-n cia, de idealidade; mas, insuficiente para no!\
premunir contra os malfícios derivantes da nossa
ausência de tradições cívicas, da nossa incultura de-
mocrática, principalmente dos nossos costumes de
faciosismo e politicagem (8).
Na velha Constituição Imperial, ainda se con-
trapunha a êstes costumes e a estas falhas a açã,>
retificadora de um alto poder, intangível pela mn..
irstade de sua ascendência e superior ao interessi.,.
mo dos partidos: - o "Poder Moderador" da Co
rôa. tste, nas mãos honestas de Pedro II,' foi um~
das mais admiráveis fôrças de coordenação e mora-
lização política, que jamais temos tido (9).
No regímen atual não há coisa alguma que com
isso se pareça. Não se engenhou m eio de resguar-
dar os aparelho$ da administração contra a in-
fluência perturbadora e corruptora do espirita de .
facção e politicalha. De tal maneira e com tama-
nha imprevidência se fêz ali a distribuição dos po-
cleres do govêrno, que as organizações partidário~
- - facções, grupos, clãs - passaram a adquirir <,Ô·
bre êles, nêstes quarenta anos, um domínio e uma
ascendência que estavam longe de possuir no regí-
men imperial.
Estas "facções'" ou · "partidos", corporações
militantes e predatórias por excelência, afirmaram
primeiramente o seu domínio sôbre os legislativos
, dos Municípios, dos Estados e da União -- câma-
Problemas de Politica Objetiva 53

ras, assembléias, Congresso; o que não é de estra-


nhar, porque elas têm aí o seu natural campo de
ação.
Depois, foram progressivamente invadindo.
contagiando e sujeitando à sua lógica de clã (10)
todos os outros poderes, ou administrativos, ou po-
líticos, locais e gerais, mesmo aquêles que até en-
tão pareciam indenes à sua influência: o Podei
Executivo dos Estados; o Poder Judiciário d;is Es-
tados; por fim, o Poder Executivo da União, que
despojaram da sua impersonalidade de magsitra-
tnra nacional.
Não satisfeitas com essa enorme extensão das
suas conquistas, tentarem, por fim, um últime, gol-
pe, submeter o Poder Judiciário da União, ora
ameaçando o Supremo Tribunal com uma lei de
-responsabilidade: ora procurando introduzir nos
c.ostumes a praxe de lhe não cumprir os acórdãos:
ora reduzindo.lhe mesmo o campo das suas atri-
buições julgadoras - como se f êz na última re-
forma de 1926.
Um regímen, em que o facciosismo pôde uclqui-
rir- essa generalidade, essa supremacia, essa incon
írastabilidade, essa arrogância estrondosa é evi ·
dentemente um mau regimen, imprevidente e im-
precavido, organizado com a atenção às nossas
qualidades boas, mas sem nenhuma atenção às nos-
sas qualidades más.
54 1 Oliveira Viana

III
O problema central da obra revisionista há -ic
ser, pois:
a) ou investir o Poder Judiciário, tornado ex-
clusivamente federal, de uma fôrça e de uma 911
tonomia, estendidas até ao máximo das suas pos·
sibilidades; ou
.b) criar um quarto poder/tal como o antigo
Poder Moderador, que, sendo vitalício também,
tenha, entretanto, o direito de iniciativa, que o Po-
der Judiciário não tem.
Em suma: ou isto ou qualquer outra coisa qce
represente um centro de fôrça, de natureza essen-
cialmente político; mas, completamente fóra ele
qualquer atinência ou dependência como os gm-
pos partidários. tste centro de fôrça. cu.f II ne-
cessidade todos sentimos, seria organizado de ma·
nPira tal que pudesse agir direta e espontâneamen-
te, e com eficiência imediata quando se fizes41,~ pre-
c~Ro, sôbre os grupos, as facções, os clãs, neutrali .
za·n do-lhes a influência e a nocividade na vida nrl
ministrativa do.pais (11)
Singular contradição I Há mais de um século.
dPsde a Independência, estamos a proclamar, er.!
tCldos os ton, e em todos os ritmos, que o que nos
anarquiza, a causa de todos os nossos males, de to•
do nosso atraso e dissolução é a "política", são os
corrilhos, as facções, os grupos, os campanários ,1<'
Problemas de Polliica Objetiva 55

tôdas as c6res, l}Ue se agitam e entrehatem nosso


imenso campo de guerra, que ,é a vida pública elo
Brasil. E' um clamor unânime, universal, seculA.r
qne enche o Primeiro Império, atravessa a borras-
ca Regencial, comove e perturba a calma do Se-
1<1tnlo Império e, há quarenta anos, está a abaht
com o seu fragor a atmosfera do novo regimen. En-
tretanto, ao elaborarmos um sistema de. govêrnú
constitucional, pensamos em tudo, cuidamos de tu-
do, prevemo-nos de tudo, menos de aparelhos efj
cctzes contra aquilo que é a razão e causa das nor. ,
sas queixas e protestos seculares: as facções e os
seus pendores facciosos, os corrilhos eleitorais ,.
partidários 1 (12).
E' uma negligência surpreendente, que não tem
cutra explicação senão o fato de que os nossos cons-
trutores de Constituições têm sido espíritos idealis-
tas, que desconhecem por inteiro o meio e o pov(l
para os quais legislam.
Com e:o1t.a tendência teorizante, que não per
nem nunca , êles supõem que essas máquinas cl11
Parlamentarismo ou do Presidencialismo, que ar-
mam ou que pretendem armar entre nós em Car
tAs Fundamentais imponentes, podem funcionar
aqui como t.:ostumam funcionar na América ou na
Inglaterra, isto é, como se tivessem para mane.já·
las, não brasileiros de falha educação política, m:is
autênticos saxões do Essex ou americanos da Pen -
silvania - 1los da raça de :palmerston e dos da rft-
66 Oliveira Viana

ç:i de Hamilton. Construindo Constituições para ~


Brasil, fazem-no sempre sôbre a base cômoda dei;
ta presunção generosa, que lhes facilita extraor-
dinariamente a tarefa: de que ingleses, anglo-ame
ricanos e nós outros, dêsses imensos Brasis, somM
todos - no a~sunto cultura política - iguahnentt
marqueses ...
Essas e outras ingenuidades dos nossos legir.
lndores e constitucionalistas, sempre que nelas con-_
sidero, trazem-me á memória uns versos mor-
dazes do nosso Gregório de Matos._ tste terrível
flagelador da "unhates" ,e "marinícolas", fazendn,
oom uma antecedência histórica de quase trezentos
anos, o processo antropo-sociológico do miscigeni-;-
mo nacional, deixou ce11a vez escorrer o fio da suo
satiricidade urticante sôbre o nosso "sangue rlf!
tatu":
Há coisa como ver um papalá,
/
Multo prezado de ser caramurú,
pescendente do sangue de tatú,
Cujo torpe Idioma é capobá, etc.•..

Na transplantação, que fizermos, de qnalque :


instituto ou regime estrangeiro, não devemos nu'l
c·a deixar de contar com esta colaboração local e
nativa - do "sangue de tatu". Foi justamente
por não terem dado nenhuma: importância à açõ"
dêsse poderoso modificador sociológico que o' par-
lamentarismo inglês e o presidencialismo america
,

Problemas de Polltica Objetiva 57

no não puderam realizar nunca o "sonho" dos ql!C'


o sonharam nesta terra (13).

( 1) v . Freeman (Ed.) - Select histories/ e,says, :.efpzlg,


1875, pág. 293-334. Cfr. Mirklne-Guetzevltch - Les con stitu-
Hons de l'Europe nouvelle. 1930; Gordon (E .) - Les nouve/le~
constltutions européennes et /e ró/e du cl,ef d'Stat, Paris, 1931:
Dendfas (M.) - Le chef d'Stat républicain et /e rajustement dt
/'Executif, Paris, 1937. E ainda Gouet (Y.) - De /'unité du
Cabinet parlementaire, Paris, 1930; Redslob (R.) _ Le régim,•
par/ementaire. Paris, 1924.
(2) v. adiante cap. X. XI, XII e Xlll, ·s0bre o papel do~
Conaelhos técnicos nos governos modernos.
(3) - "Government does not conslst in charters, orclinances
and rules merely, but ln the hablts, disposftlons, wlshes, te:ndencies
of the urban populations". ( Merrian, Ch. - New aspects of polític11,
Chicago, 1925, pág. 197). Cfr. Bryce - Les démocraties mo-
derne11, Paris, 1924. I, cap. II e XIII; - Hindrances to good ci-
tizenship, New Haven, 1910.
(4) v. Populaçõe11 Meridionais do Brasil, 1;ap. XV. E tam-
bém : cap. VII, VIII, XII, XIV e XVI.
(5) v. Jardé - La formation du peuple grec, Paris, 1923,
pég. 354-400.
(6) Seeley ;__ The expansion of England, 1884, pág. 293-17.
(7) v. Populações Meridionais do Brasil, cap. XIV; - O
oca.só do Império , 2.• ed., pág. 17-22, 53-62. '
(8) Pode-se dizer dêle como disse Lipman (W .): - "It may
sound noble. But does no work" ( - The phantom Public. New
York, 1930. pág. 124). • •
(9) v. - O oca.,o do Império, pág. 39-420 53-62, 1\3-85 . .


•,
\

58 Oliveira Viana

( 10) Sõbre a natureza e a fõrça sentimental desta lógica


em nossos meios políticos, v. Pequeno:s e:studo:s de psicologia so -
cial. 3'. • ed., 1912, cap. : - O papel do:s governo:s fortes no regime11
presidencial.
( 11) E a Justiça eleitoral, que velo com a Constitulçllo de
31, fol um coméço disto - e um bom coméço.
( 12) Cfr. Bryce, J. - Hindrsnce:s, cap. III.
( 13) Conta Júlio Perternostro, no seu recente livro Viagem
ao Tocantins ( São Paulo, 1915) ter assistido, em pleno desertão
do vale do Tocantins, num povoado marginal ao rio (Imperatriz
ou Santo Antonio) a uma pequena fes ta escolar. Professora e
alunos representavam uma espécie de comédia, lntltulada Fada
Morgana. A escola era uma palhoça de folhas de babassú. Con-
ta-nos o viajante, que a professora desempenhou o papel da fada
Morgana; quanto às outras personagens, respontllam todas por no-
mes franceses : uma era Marianne, outra Pirrete, etc. Pelos diálo-
gos, vla-se que a história se passava sob a "'neve" e com .. frio"
Intenso; "árvores de Natal'' e "ataques de chacáls", etc, completa-
vam a paisagem: - "Cenas européias - observa Ironicamente o
narrador - que não se coadunavam com o ambiente tropical de
30°C, em que viviam as crianças, atrizes de tez morena. Disse-me
a professora que era a única comédia existente no seu caderninho
de notas . .• " (pág. 117) .
Ora, ai está. Eis o Brasil culto. Esta abnegada professora
do alto sertão nordestino vale um símbolo. Representa tõda uma
tradição educativa: nos outros domlnJos da administração, bem
como no- do direito público e constitucional e da polltica, não te-
mos. há mais de cem anos, feito outra colsa. Na pedagogia, na
doutrina constitucional. na programática pol!tlca, em tudo, temos
vivido a ensaiar e a representar, sob a linha radiante dos trópicos,
a Fada Morgana e outras comedla:z:inhas cõr de rosa, molhadas de
neve, transidas de frio e vividas em cenários europeus. O local
é que tem variado. Ora, a neve é da França e vem de Paris;
ora, é da Inglaterra e vetn de Londres; ora é norte-americana, e
vem de Filadélfia; agora, Já se tenta a Rússla 1! é de Moscou que
vem a neve e t> frlo - e provavelmente também os chacais ...
CAPITULO III

ALBERTO TORRES E O PROBLEMA


DA REVISÃO

SUMÁRIO: - O. O preconceito da Intangibilidade. Reação


revisionista. - II. O papel de Alberto Torres: o seu projeto ::!e
revisão. - III. O pn:concelto democrático. Como Torres rea-
'd~ éontra a ortodoxia democrática. - IV. Centralização e de:i-
centralização. O ponto de vista de Torres. Concepção centrípe-
ta do regímen federativo. - V. O Poder Coordenador: fundamen-
tos e funções. Composição do Poder Coordenador. - VI. O
esplrlto de politlcalha: melos de reduzir a sua nocividade. - VII.
Reação contra a politlcalha: o que se fez no Império e o que s~
fez na República. - VIII. O Poder Coordenador em face da
realidade nacional. Dúvidas sõbre o seu êltlto e eficiência
IX. O sentido da revisão. Indecisão geral.

Há vinte anos, o problema da revisão consti -


tucional era encarado de um modo muito dif eren~
te do de hoje pelas ·n ossas elites políticas e intelec-
tuais. Por aquela época, esta palavra "revisão"
tinha um sentido que não tem hoje: encerrava un1
1
60 Oliveira Viana

pensamento alarmante e perigoso, ante cuja pos- 1


1
sibilidade estremeciam os centros mais altos da po- 1

lítica nacional. 1
Estávamos então sob o consulado do generaJ
1
Pinheiro Machado. Nos conselhos superiores 11:l
direção política do país, dominavam -- não pel-• 1
número, mas pelo prestígio - remanescentes dos 1

l\ntigos "históricos" (os que haviam figurado na


Constituinte) e sobreviventes da antiga reação flo- 1
rjanista (os que haviam derramado sangue pel.J
1
"causa da Legalidade"). Uns e outros - antigos
1
"legalistas" e antigos "constituintes'' - gravitavam 1
em tôrno do morro da Graça, solar de Pinheiro.
f" haviam erigido em tabú a Constituição de 24 d~
Fevereiro de 91, cobrindo-a com o zainfe da "in-
tangibilidade".
Que ninguém tocasse na Constituição I Para
êste grupo, a Constituição de 91 era uma obra imo-
difícável, sagrada, eterna - qualquer coisa semc-
lhan te às Tábuas do Decálogo, reveladas no Sinai
Os males? estavam nos homens - e não -nela. Os
erros? eram dos homens - e não dela. Demais,
n Constituição tinha apenas vinte anos e em vinte
unos um povo novo, em formaç~o. sem tradiçõe",
etc. etc. etc., não poderia certamente aprender o
manêjo de um regímen tão perfeito:
- "Esta desorganização, em que o pRÍs se vaj
desmedrando e dissolvendo, não provém da Cons-
tituição, meus senhores; é apenas consequência da
r "·

Problemas de Política Objetiva 61

falta de tirocínio das instituições. Amigos, paciên-


eia I nós estamos fazendo ainda a "aprendizag<'ru
ao sistema. Aprendido que seja_ vereis como sô-
:bre nossas cabeças baixará, resplandecente, a "b<'-
leza ·do regimen l"
Assim falavam os Zarastustras da IntangibiJi
dade. Eram, como se vê, argumentos df! polpa e
pêso, sérios, graves, altos, transcendentes, capazeil
de pôr um vinco de severidade reflexiva à fronte
mesmo de Hilarião.
Alberto Torres, que estava também entre os dfl
"glQF.ÍOsa jornada", devia sorrir dêstes espíritos cré·
dnlos com o seu bom sorriso, cheio de tolerânchl
filosófica. Porque já então êle se confessava fr11n .
r.Rmente convencido da impraticabilidade da Cons
tituição -de 24 de fevereiro:
----. "Nossa Constituição - dizia êle -- é um ...
'coleção de textos mortos como espécies de erbaná-
rio, entre os quais exercemos uma dialética de ass()
ciações verbais e raciocínios doutriná.rios".

II

, Não é possível discutir aqui, com a amplitucl::>


merecida, a larga justificação sociológica que Al-
berto Torres dá ao seu· projeto de !-evisão. Há,
porém, que destacar no seu trabalho um traço ori,
~inal: ao planej~ uma reforma constitucional ,pn-

62 Olz'veira Viana
• 1
rR o Brasil, Torres fêz esta coisa inédita e simpHs·
t:ima: abriu calmamente êste grande livro _?e di·
reito público, que eram os vinte e tantos anos de
regimen federativo nesta terra -· e pôs-iie a lê-los
com a mesma atenção e seriedade com que, paro
e mesmo fim, Rui Barbosa iria ler a .República
Americana, de Bryce, e Teixeira Mendes a Polltica
positiva, de Augusto Comte.
Numa fórmula sintética, pode-se condensa,
~ssim o pensamento revisionista de Alberto Torres .
- § O povo brasileiro, por motivos peculia-
res à sua formação e evolução, não tem, corno.aliá ;
não têm muitos outros povos, capacidade de dire·
ção politica;
- § Mas, o Brasil precisa realizar desde já,
por urna série de razões poderosas e urgentes, uma
alta política de ·c aráter profundamente Oliigânk!J
e nacional. Esta·política, porém, só pode ser feit a
por iniciativa do Estado.
- § Ora, 01Estado, pela maneira por que está
-organizado na Constituição vigente, não pode ~fi-
cazmente realizá-la;
- § Logo, tudo depende de urna reforma
constitucional que organize o Estado num sentido
que o capacite para êste fim superior e necessário
O projea>, que elaborou com êste pensamento
geral, belamente justificado no volume sôbre a {)f.
ganização naci<mal, depois de largamente prepa,
I
Problemas de Polltica Objetiva 6.1

rndo no volume sôbre o Problema nacional brasl-


leiro, fere cinco pontos capitais:
1. 0 - O mandato do Presidente, que ampfü,
para oito anos (e que seria melhor ampliasse pa:-a
dez);
2. 0 - A eleição do Presidente, que pAssa a se~
feita por um corpo selecionado de eleitores;
3.º - O Senado, cuja composição altera pro~
fundamente, introduzindo nêle os representante!!
das diversas classes e das diversas correntes da opi-
nião, eleitos pelo crité,rio dorporativo, ou de
cJasse; .
4. 0 - O art. 6, cujas dubiedades deslinda numa
!érie de parágrafos explicativos e cujos limit~s am
plia num sentido favorável ao Poder Federal ou à
Vnião; )'
5. 0 - O Poder Coordenador - peça nova qu!"
êJe ajmta ao nosso aparêlho constitucional e que.
pensa êle, o completa.
Há outras reformas, outros retoques, outra~
alterações laterais, accessórias, ramiculares; mnJ,
êstes cinco itens formam o pensamento estrutur al
, e orgânico do seu projeto.

II
Nestas pequen':ls alterações, como naque1R'-'
grandes alterações, o que líá de notável é que AI-
64 Oliveira Viana

berto Torres se m ostra absolutamente d.e spido tlt


qualquer respeito pelos bordões clássicos do nosa->
direito público. :8Ie não é, por exemplo. dos que
entôam antífonas no côro pregoeiro da DemocrR- •
cia. Não é o velho refrão demagógico: - "o g'l·
•:êrno do povo pelo povo•• a· sua fórmula. O qur
êle quer é a nova fórmula de Woodrow Wilson
- "0 Estado pelo individuo .., isto é, o "govêrno
do povo para o povo••. Vale dizer que êJe atribui
nos chefes do govêrno e às fôrças dirigentes con
centradas· no poder uma autonomia de ação que
não seria compreensível num regimen puramente
democrático, em que governa. ou deve governar,
a Opinião.
Para Torres, o sufrágio universal - · que êl<.
conserva, sem grande razão, no seu projeto - , '-'
'lpenas um meio de revelação dt> sentimento popu-
lar; nunca, porém, um meio de direção govern!l-
mental, um mandato imperativo ao seu represen
fonte no poder. l:ste, ao contrár4<J, é que tem o de-
11er elementar de imprimir à massa social a direção
mais racional e mais sábi~:
"E' um ên-o - diz êle - imputar aos povo~,
na critica dos acontecimentos sociais, a responsa-
bilidade dos desvios de evolução e esperar dêles
n iniciativa de reformas e movimentos reparatlo-
res. O corpo alimenta; não,inspira nem dirige
o _cérebro".
Problemas de Polftica Objetiva 65

Com estas idéias, nada mais natural que, na


compos1çao do Conselho .Federal - entidade que..
no seu projeto, tem atribuições quase magestática3
- . estane1eça, como base de escruunio, nao . o su-
frágio popular, das massas, das maiorias; mas, o
sufrágio selecionado, restrito, corporativo, dand:l
voto unicamente aos membros do próprio Const-
1110 e aos represen lantes dos Poderes Legíslauvo,
Executivo e Judiciario federais.
Demais, êste Conselho Federal e os .seus cli-
\·ersos representantes estaduais e municipais (for-
mando todos, no seu conjunto, o Poder Coordena
dor) possuem, no projeto, atrwuições que, aos olhos
dos nossos velhos republicanos, da marca "imortais
princípios", devem parecer denegações flagrante~
rla" soberania das massas".
E' o que acontece, por exemplo, com a verifi-
cação dos mandatos dos eleitos do povo. O Con
selho Federal verifica e reconhece os mandatos do
presidente e do vice-presidente da República, b~1u
como os dos deputados e senadores federais. Quan
to aos mandatos dos presidentes de câmaras muni ,
cipais; vereadores -e juízes de paz, êstes são verifi-
cados e reconhecidos pelos procuradorefi da União
que são os delegados -do Coll8elho Federal nas pro
vincias (Estados).
Ora, segundo a ficção dominante, a verific'l-
çio e o reconhecimento dos mandatos eletivos de -
66 OUveira Viana

\·f'm caber exclusiva e privativamente aos próprios


delegados da soberania. Torres, porém, que já ha-
,·ia observado, longamente, nos seus tempos de po-
lítico, como todos nós estamos observando agora,
essa triste vilania, que é a ver ificação f' o reconhe
cimento de poderes entre nós, desdenha do clássir.o ·
preconceito democrático e dá esta incumbência de-
!ic-ada a um outro poder, cujos representantes são
eleitos por um critério, por assim dizer, aristocrá-
tico e são superiores, pela vitaliciedade com que so
privilegiam, às sugestões da politica f aeciosa.
E' ainda a êste novo poder, a êste novo órgão.
ac;sim fóra da influência da opinião e da pressão
dos partidos, que Torres concede a f acuidade for-
midável de declarar incapaz de autonomia qu~l-
quer dos Estados federados (províncias, no p~je-
tl'), cassando discricionariamente a sua Constitui-
ção. Também -é ainda êste novo poder que impõe
a perda do cargo, por incapacidade administrati-
\'a, aos presidentes de províncias (Estados), embo -
ra sejam eleitos pelo sufrágio do povo e estejam
apoiados ou não pela vontade do povo.
:estes exemplos mostram que a reverência à
Democracia não está nas preocupações de nos~J
grande pensador - como não pode estar no espi-
rita de qualquer homem com dois dedos de sens•>
comum. O dar caráter vitalicio a um poder essen-
cialmente político e, ao mesmo tempo, o maior do~
poderes do seu sistema, prova que a sua confian~a
Problemas de Politica Objetiva õl

na soberania do povo, na inerrA.ncia do povo, na


citmcia infusa das maiorias populares era nenhu-
ma. O antigo propagandista republicano, compa-
nheiro de Silva Jardim e de Patrocinio, mais do qlle
ninguém estava convencido da incapacidade atuuJ
do nosso povo para realizar o seu próprio govêrno,
segundo os moldes democráticos dos sonhadores
do manifesto de 70.
Todo o mundo - ora por pressentimento du
\'erdade, ora por experiência da verdade - está
também, mais ou menos, na mesma convicção;
mas, o que todo o mundo não tem, como teve Al
berto Torres, é a resolução, a coragem, a intrepi-
dez intelectual de afirmar francamente esta in<'a·
pacidade, e prová-la, e tentar corrigi-la. Esta co ·
rRgem .é que tem faltado a todos os nossos dirigen .
tes - e tem sido precisamente esta espantosa co-
vgrdia geral que ainda não nos permitia fazer clc1
nossa organização política uma realidade viva e or-
g~nica, feita de músculos, nervos e sangue (1).

m
'

E' igualmente esta mesma pusilanimidade de


dizer a verdade consciente, a verdade sensível e
material, que nos fez, até há bem pouco, vacilar,
cm refundir, resolutamente, em moldes nacionais,.
os velhos conceitos sôbre "autonomia dos Estados ..,
68 Oliveira Viana

sôbre "regimen federativo", sôbre "pnderes impli-


citos", sôbre "princípios constitucionais da União".
sôbre "casos de intervenção federal".
Nenhum dos nossos constitucionalistas havia
procurado cunhar em metal brasileiro, dentro dos
moldes das nossas conveniências nacionais, o con-
ceito dêsses diversos ,p ontos controvertidos do nos•
so direito público. Nas várias interpretações, que
haviam esforçado por firmar, sentia,-se, não ape-
nas a influência das instituições e da.s doutrinas
norte-americanas - o "Federalista", d~ Hamilton,
à frente; mas, a influência indissimu lá vel das an-
tigas fôrças regionalistas e separatistaF-, que tanto
nos agitaram, outrora, durante o período do Ato
Adicional (~).
E' verdade que êsses excessos estadualistas
acabaram por alarmar o·s nossos melhores espi•
ritos, com os excessos provincialistas, derivados do·
Ato Adicional, ac~bararn alarmando os liberais
exaltados, como Bernardo de Vascon~elos, forçan-
do-os a corajosas apostasias, a atitud'!S patrióticas
de reação e protesto. Não foi realmente Rui Bar-
bosa quem disse, uma vez, alhures, referindo-se ao
vanilóquio da soberania estadual, então pregada
por alguns federalistas extremado's, que "trans-
plantar para o nosso povo êste conceHo fôra tra-
vessura de símio, que nos exporia ao ridículo e à
morte"? '
Prvblemas de Politica Objetiva 69

Tôrre& &egue também pela mesnia estrada de


Rui; mas, atira a barra muito mais longe. Na in-
terpretação do art. 6, como do art. 65, o que êle
defende, como conceito racional do nosso regimen
federativo, é, não tanto uma restrição no campo da
autonomia e.;tadual, mas uma ampliação na esfera
de intervenção da União.
Existem sôbre o art. 6 da Constituição, em nos-
sas letras Jurídicas, comentários abundantes, que
esgotam o assunto, versando não sabemos quantos
autores americanos, argentinos, suíços; m~s, nada
'se escreveu até hoje mais justo, mais razoável, mais
"nosso" do que aquela dúzia. de páginas, com que,
'-
na Organização Nacional, Alberto Tôrres, sem a
mais leve sobrecarga erudita, faz o comentário das
nossas instituições e estabelece, de um ponto de
vista estritamente nacional, os direitos da inter-
venção federal na economia dos Estados.
, Lendo o desdobramento do art. 6 e do art. 60
do seu pi ojeto, parece, à primeira vista, que o
autor da Organização Nacional está entre os uni-
tários e os ~entralistas. Entretanto, assim não é;
êle acha, &o contrário, que "a carta geográfica do
Brasil é um imperativo à autonomia provincial".
O que procura estabelecer é apenas uma es-
pécie de de~centralização relativa: nega à "União
das P·r ovíncias", que cria, o caráter federativo dos
'
f "·E stados Unidos" da nossa atual Constituição;
I
i
.J
70 Oliveira Viana

mas, não rec11sa aos Estados (províncias) autono•


mia bastante para o cuidado dos seus .interêsses
locais. Não lhes dá, contudo, nem a faculdade da _
magistratura própria, nem a da legislação proces-
sual; ao contrário, sôbre o campo da autonomia
estadual, tal como a vemos hoje, trama, no seu
projeto, em ·favor do poder federal, uma espécie
de rêde estratégica de múltiplas intervenções de
ordem social, econômica, tributária, financeira e
política, que impedem o isolamento, a independên-
cia, a regionalização excessiva dos atuais núcleos
estaduais e permite manter, _em estado de conso·
lidação crescente, a unidade nacional. O seu in·
tuito capital é salvar a integridade da nacionali-
dade, inegàvelmenle sacrificada na Constituição
atual:
- "A autonomia dos municípios e dos Estados
- diz êle - não é mais do que uma consentração
mais cerrada do tecido governamental em tôrno
do Município e do Estado; mas, o tecido não se
inter~ompe, nem -se cinde, para formar núcleos in•
termédios, continua-se e entrelaça-se até oomple·
tar tôda a trama da organização nacional, que ter-
mina, enfim, no relêvo mais forte dos poderes fe
derais. A verdade é, entretanto, que QS governos
estaduais, no regímen da nossa Constituição e, ain-
da mais, com a interpretação que lhes emprestam,
Problemas de Politica Objetiva 71

concentram efetivamente a fôrça política nacional,


dividida, assim, 'e m vinte eixos excêntricos".

IV

Esta excentricidade da nossa estrutur~ políti-


ca é para o nosso grande pensador uma das cau-
sas mais enérgicas da nossa anarquia social, um
agente tremendo de discordância, de incoordena-
ção, de dissolução íntima da nacionalidade. O Po-
der Coordenador, que êle engenha, tem exatamen-
te, como função, acabar com essa excentricidade;
o seu fim principal é coordenar ou harmonizar as
energias dispersas dêsses vários núcleos regionais,
a um tempo vivazes e desunidos.
:toste novo poder é a grande originalidade do
projeto. Poder essencialmente político, êle age em
tôdas as esferas de atividade da Nação, do Estado
e do Município, feito, em cada uma delas, o seu
supremo regulador político, jurídico, social, admi-
nistrativo, econômico, financeiro, mesmo partidá.
rio e eleitoral.
Dada a desmedida amplitude e complexidade
da sua competência, encontram-se nêle, além das
suas atribuições peculiares:
a) as atribuições politicas do antigo poder
Moderador; ·
72 Oliveira Viana

b) as atribuições consultivas do antigo Con-


selho de Estado;

e) certas atribuições dos atuais poderes L.e• ·
gislativo e Judiciário. ·
E' esta a sua composição: no centro - um
Conselho Federal, de vinte membros no máximo,
com jurisdição nacional; em cada província - um
-procurador da União: em cada município - um
delegado especial: em cada distrito - um repre-
sentante: em cada quarteirão - um preposto do
grande Poder Central.
O Conselho Federal , vitalicio, cabe-lhe no-
mear os procuradores da União, também vitali-
cios, e os delegados municipais. :estes nomeam
naturalmente os dois outros representantes locais.
De modo que o Conselho Federal, instalado no
centro da União, tem sob a sua dependência todos
os representantes provinciais, municipais e locais
do Poder Coordenador.
Com esta organização, Tôrres presume-o per-
feitamente apto a fazer chegar a cada aldeia obs-
cura e remota do pais a vibração da sua vontade;
por outro lado, pode igualmente agir, numa ação
simultânea e geral, sôbre todos os pontos do país.
É-lhe fácil, então, dar à totalidade das fôrças so-
ciais da nacionalidade uma direção uniforme e co-
mum - isto é, a orientação de uma política ver-
dadeiramente nacional,
1
/
Problemas de Politica Objetiva 73

Essa convergência de direção, essa totalização


de fôrças e aspirações é inteiramente impossiveJ
obter, pensa Tôrres, com os vinte eixos excêntri-
cos, formados ·pelo federalismo atual. Com êsle
complicado sistema de vinte centros de fôrças, a
dissociação, a divergência, a disparidade, senão o
antagonismo e o conflito, são consequências ine-
vitáveis e anomalias irredutíveis, dadas a nossa
desmensurada extensão territorial e as diferenças,
cada vez mais crescentes, de evolução e cultura en~
tre os grupos regionais do Sul e do Norte.

,- V

Dá Tôrres ao seu novo poder duas funções


culminantes. Uma, como se está vendo, de supre-
mo inspirador e orientador político - órgão da
., vida de relação do povo, o olhar, a inteligência, a
razão da nacionalidade, que lhe observa, analisa,
escruta a vida íntima e orgânica, sugerindo aos ou-
tros poderes as medidas necessárias ao seu pro-
gresso, ao seu equilíbrio, à sua unidade. Para isto, o
seu caráter vitalício lhe assegura uma especiali-
zação, que os outros poderes políticos, pela tran-
sitoriedade dos seus mandatos, não ·p odem adqui-
rir. Corrigir-se-ia, destarte, de um certo modo, es-
ta grave falha das nossas administrações republi-
Oliveira Viana

canas: os programas incompletos, os programas


inacabados, os programas abandonados em meio
Outra função - a segunda função culminante
do Poder Coordenador - é a de corrigir o nosso
espírito de facção, as competições do personalismo
e do politiquismo; numa palavra, os inconvenien-
tes das lutas de clã. E isto:
a) porque lhe cabe, por meio dos seus diver-
sos órgãos, o reconhecimento dos poderes dos re-
presentantes do povo, provinciais e municipais,
como já se disse;
b) porque lhe cabe autorizar ;º Presidente da
República a intervir nos casos do art. 6. E o pro-
j eto derime assim, de uma maneira explicita, a
lamentável ambiguidade em que havíamos de vi-
ver até há bem pouoo no tocante a êste ponto;·
e) porque, enfim, lhe cabe a solução dos con-
flitos dos poderes da União entre si; os conflitos
suscitados entre os poderes da União e dos Esta
dos; e os conflitos dos poderes dos Estados entre
si ou entre os poderes dos Estados e os dos Muni-
cípios. Equival,e dizer que os desrespeitos du
sentenças do Supremo Tribunal pelo Poder Exe-
cutivo ou pelo Congressó Nacional, hem como 011 ·
"casos" de duplicatas de governadores ou de as-
sembléias provinciais viriam cair, por um dispo.
sitivo expresso e categórico, na jurisdição especial
' Problemas de Politica Objetiva

de um grande Poder, político sem dúvida, mas pre•


75

sumidamente liberto da influência dos partidos, da-


da a sua vitaliciedade, que lhe permitiria manter.
imune de corrupção, uma absoluta independência
julgadora.
Criando êste poder independente e acima dos
interêsses das facções, Tôrres considera'\7a natural-
mente que, enquanto dominar entre nós, na nosse
atividade política e administrativa, o espírito de
clã e de campanário, será pràticamente impossível,
em qualquer hipótese, orientar o pais de maneira
continua e permanente no sentido de uma alta po-
litica nacional. Dai êle deslocar para um outro
poder político - mas já de natureza vitalícia -
a função coordenadora e a função verificadora
tle pensava, -p or êsse meio, reduzir a nocividade
da politiquice e do campanarismo na economia da
nossa organisação administrativa.

VI
.:.
Realmente, Tôrres viu com clarividência o pro-
blema. :tle sentiu, há vinte anos, o que hoje todo
o mundo está sentindo: que tudo, na nossa atua-
lidade, está impondo a criação de um centro po-
deroso qualquer de fixação, de estabilização, de
~oordenação da nossa vida política. Qual seja êle;
como se deve organizar; que estrutura e forma
76 Oliveira Viana

deve ter: - eis o que está desafiando a capaci-


dade dos nossos gênios políticos, com os seus ta-
lentos inventivos e a sua imaginação criadora
Porque, no campo das instituições políticas, há
tanta necessidade de gênios inventivos como no~
domínios da Física, da Química ou da Mecânica.
Há Stephensons, há Edisons, há Marconis na his-
tória e na evolução política das nacionalidades.
tste centro de coordenação, de estahilização1
de fixação precisa vir, -p recisa ser inventado, pre-
cisa ser descoberto. Há quarenta anos seguros, a
nossa vida política vem correndo descontinua, in-
coerente, instabilissima, variando a todo o momen-
to, conforme variam as idéias dos chefes, os capri-
chos dos chefes, os compromissos dos chefes, até
mesmo as neurastenias, as nevralgias e as dispep-
sias dos chefes. Esta instabilidade administrativ11
, e política da vida da República, esta sua extrema
variabilidade e descontinuidade, esta sua aptidão
a sófrer os choques e os contra-choques dos fato-
res individuais, por mínimos e personalíssimos que
sejam, deriva justamente da ausência de um cen-
tro permanente de orientação e equilíbrio na cúpo-
Ia do regímen. Em suma, da inexistência de um
poder -político vitalicio entre os poderes políticos
tempordrios, criados pelo Constituição Republi
cana,
l
1

Problemas de Polltica Objetiva 77



No Império, contra o espírito faccioso, contra
a intolerância dos caudilhos, contra a tendência
dos corrilhos partidários a perpetuarem-se no po-
der, opuseram e os nossos grandes estadistas- da
escola conservadora, como meio eficaz de mode-
ração e repressão, três poderes. essencialmente po-
líticos - a Coroa, o Senado e o Conselho de Es-
tado. Eram três -p oderes colossais pela fôrça, pelo
prestígio, pela ascendência de uma larga tradição
histórica - e todos êles vitalícios.
Os constituintes republicanos, modelando a
nossa carta fundamental pelo padrão americano,
não vacilaram em desmontar, um a um, sem a me-
nor atenção às nossas realidades e aos nossos cos-
tum.es partidários e eleitorais, êsses admiráveis ·
aparelhos constitucionais de inibição e equilíbrio,
com que o Império conseguira, durante mais de
meio século, dar ao govêrno do país, no meio da
instabilidade inevitável dos regimens parlamenta-
res, um pouco de continuidade, de permanência,
de ordem. Todo o acervo administrativo e poli.
tioo da União e dos Estados ficou, assim, de súbito,
entregue, sem o menor corretivo ou temperilho, à
incumbência exclusiva dos dois únicos ,p oderes po-
líticos do regímen: o Poder Executivo e o Poder
Legislativo - ambos eletivos, ambos temporários1
ambos, na União ~ nos Estados, inteiramente avas•
,.
78 Oliveira Viana

salados ao domínio faccioso das nossas inumerá-
veis coterles politicantes.
Poderiam objetar que êste encargo devia ser
conferido ao Supremo Tribunal e aos juízes secio-
nais de modo a evitar a _criação de um novo órgão
no conjunto dos nossos · poderes políticos. Tôrres
responderia naturalmente que esta alegação come-
çava por não ter base histórica: as nossas tradições
constitucionais não são hostis à instituição de um
quarto poder, capaz . de substituir, na medida do
possível, o antigo Poder Moderador, da Constitui- '
ção Imperial.
Estas, em síntese, as idéias revisionistas de Al-
berto Tôrres. Esta, a grande e engenhosa peça,
com que êle pensava completar a nossa aparelha-
gem constitucional : "Ela não é - observavà êle
- uma criação arbitrária; é o complemento do
regímen democrático e federa tivo, sugerido pela ob-
servação da nossa vida e pela experiência das nos-
sas instituições". '

VII

O Poder Coordenador, na prática, tera possi-


bilidades de dar o resultado que o seu criador pre-
sumia?
E' duvidoso. :i;:ste poder exige para a sua per-
feita eficiência, -nos seus numerosos representantes
f

Problemas de Polltica Objetiva 79

- desde os vinte membros do Conselho Federal,


instalado no centro, aos vinte representantes esta-
duais, aos milhares de representantes municipais
e às dezenas de milhares de representantes distri-
- tais - uma mentalidade civica, uma consciência
política, um sentimento dos interêsses públicos, em
suma, uma unidade de idéias e de sentimentos im-
possível no Brasil, talvez ainda por -muitas deze-
nas de anos. Nem daqui há um século talvez, a
nossa educação política, ou melhor, a nossa evo.
lução política nos terá dado uma menJalidade tão
. unida e forte que possa levar lautos milhares de
homens, espalhados por uma . tão desmedida su-
perlicie territorial, a agir de um modo uniforme
e harmonioso, no sentido de um alto pensamento
de justiça, de verdade e de patriotismo, partido de
um órgão central: - do Conselho Federal.
Em nenhum •pais do mundo - a não ser talvez
a Alemanha ou o Japão (3) - seria possível en-
ccmtrar um sentimento tão generalizado de patrio-
tismo, um ideal nacional tão energicamente domi-
nante ,n a consciência de cada autoridade, de cada
-representante do poder público, como o que seria
preciso aqui para a atividade e a eficiência do
11r ande órgão de coordenação política, engenhado
pelo formidável diagnosticador do nosso organis-
mo nacional.
/
..
80 Oliveira Viana

O nosso grande mal - já o vimos (4) - é
justamente, de um lado, a ausência de um ideal
nacional, a .fraqueza do sentimento do interêsse co-
letivo, a debilidade do instinto político; de outro,
a exacerbação do espírito de localismo, de faccio-
sismo e de mandonismo. Ora, tudo isto são ele-
mentos que irão naturalmente impedir que o Po-
. der Coordenador, organizado à maneira de Tôr-
res, venha a exercer as funções benefícicas que lhe
cabem na vida da nacionalidade.
No ponto de vista da nossa estrutura social e
de nossa mentalidade cívica, é inegável que esta-
mos ainda, como povo, muito longe do ideal de
Alberto Tôrres. tste ideal teria possibilidade de
realização em países de alta integração coletiva,
como a Alemanha, a Inglaterra e talvez os Esta~os
Unidos. Infelizmente, pela nossa dissociação, pela
nossa desintegração, pela nossa dispersão, estamos
ainda quase num polo oposto ao dêstes grandes
povos. Talvez, muito mais próximos da Rússia ou
da China - a China das revoluções e a Rússia dos
soviets (5).

VIII

Em síntese, Alberto Tôrres, formulando o seu


projeto de re~isão contitucional, afirma que o regi-
men vigente é imparticável. tle deu corpo sem
dúvida a um estado ainda difuso da consciência

.1
I
!
Problemas de Polltica Objetiva 81

nacional, mais já frequente nos grupos mais sele-


tos da nossa intelectualidade e da nossa alta po-
litica. Dizemos que êste estado de consciência é
difuso, porque a verdade é que, se todos sentem
a necessidade da revisão, ninguém sabe, ao certo,
ainda agora, como deve ser conduzida; que rumo
deve tomar; qual o sentido exato que ela deve ter.
Há cinco anos, no Oca,so do Império, já expri-
mi a êsse mesmo pensamento nestas palavras:
..,,.. "O presente regimen não deu satisfação às
nossa's aspirações democráticas e liberais: nenhu-
ma delas conseguiu ter realidade dentro da orga-
nização política vigente. Estamos todos descren-
tes dela; todos sentimos que precisamos sair dela
para outra coisa - para uma nova forma de govêr-
no. Esta nova forma de govêrno, entretanto, nin-
guém ainda: pode dizer ao certo qual deva ser. Não
há nenhuma aspiração definitivamente cristaliza-
da na consciência das massas. Nenhum nódulo
riovo·ae crença se formou ainda no espírito das
nossas elites em tôrno de um principio qualquer. .
Há, sem dúvida, várias tendências, de gravitação
em tôrno dêste ou daquele ponto; mas, ainda as-
sim, vagamente, indistintamente, de forma impre-
cisa e indeterminada. Há uma certa tendência de
retôrno ao regímen parlamentar. Há uma certa
tendência de retôrno ao Poder Moderador, exerci-
do já agora por um Conselho vitalício. Há uma
82 Oliveira Viana

certa tendência para umas tantas restrições da au-


tonomia estadual, para uma maior extensão dos
poderes federais.Há mesmo pequenos movi1:11entos
de gravitação para o Socialismo alemão, até mes-
mo para o Bolchevismo russo. TudCl isto, porém,
vago, impreciso, incorpóreo. Tendo perdido a fé
no regimen vigente, mas não tendo elabora.do ainda
uma nova fé, estamos atravessando uma destas
"épocas s·e m fisionomia", de que falava Timandro.
parda, informe, indecisa - de atonia, em cuja at.
mosferà parada, de calmaria, giram, circulam, sus-
pensos, germes de futuras crenças, embriões de fu-
turos ideais, mas que não são nem crenças, nem
ideais ainda" (5).
Esta indecisão, que assinalávamos há cinco
·a nos, é a m esma de 1910, quando Rui tentara, com
a sua plataforma de candidato, equacionar e re-
solver o grande problema (7) . Hoje ainda esta
indecisão perdura e todos continuam incertos sô-
bre o sentido da revisão. Será o da centralização?
será o do parlamentarismo?

( 1) Neste gênero, nada se compara em grandeza, e1t1


inten.,idade patriótica, em eloquência, em profundeza, em signi-
ficação doutrinária, e atitude de Bernardo Vasconcellos, Justificando
o aeu "regresso" aos quadros do partido conservador, em 1838.
- "Fµ i liberal, então a liberdade era nova no palz, estav.s
nas aspirações de todos, mas não nas leis, não nas ideias pra-
ticas; o poder era tudo; fui liberal. Hoje, ~m. é diverao o
Problemas de Polftica Objetiva 83

aspecto da sociedade: os prlnclplos democratlcos tudo ganha-


ram e multo comprometeram; a sociedade, que então corria
risco pelo poder, corre agora risco pela desorganização e pela
anarchia. Como então quiz, quero hoje servil-a. quero salval-.t;
e por Isso sou reçiresslsta. Não sou transfuçia. não abandono
a causa que defendi , no dia do seu perigo, da sua fraqueza;
deixo-a no dia em que tão seçiuro é o seu triunfo que até o
excesso a comprome-te. Quem sabe se, como hoje defendo o paiz
contr.a a desorganisação, depois de o haver defendido contra o
despotismo, e as comissões militares, não terei algum dia de dar
.-:>utra vez a minha voz ao apolo e a defesa da liberdade?"
São palavras de coragem clvlca e de sublimado patriotismo,
que dão a medida exata do homem-de-estado Integral, que era
Bernardo de Vasconcellos. Deviam ser inscritas no frontão do
Parlamento, de todos Escolas de Direito, de todas a U nive rsi-
dades, de todos os estabelecimentos públicos, como um lema e ·
um "memento" à mocidade do Brasil.
(2) v. Populações Meridionais do Brasil, cap. XII e XIX;
- Bvoluçlfo do povo brasileiro, parte lll; - O idealismo da Con3 -
tituiçlfo; cap. XVI: Conceituaçlfo bra3ileira do regime federatiyo .
(3) Cfr. Whltman (S.) - Imperial Germany, 1890, cap.
IV, VI, VII, VIII; Hovelaque - Le Japon,. Paris, 1921 , pág.
244-249.
(4) Cfr. Populaç&3 Meridionais, cap. VIII, IX, XII, XIV.
XV e XVI.
( S) Hoje btes paises apresentam uma consciência de unida.
de nacional mais forte e mais clara; contudo, é uma consol!dação
ainda precária, sem background histórico, elaborada, como foi, à
nossa vista. sob a pressão da guerra. Provavelmente, cessado o
perigo do inimigo comum que os uniu, os velhos locallsmo~ resur-
girão.
(6) v. O ocaso do Império, p4g. 105.
(7) Rui Barbosa - Contra o militarismo, Rio, 1911, pãg. 10.
I
.

I
/
II PARTE

O PROBLEMA DA LIBERDADE
Cap. IV: O problema da liberdade civil e a organl.
zação da justiça.
Cãp. V : O conceito pragmático da liberdade política.
Cap. VI: Liberdade ou nacionalidade?

/
I
./
./
CAPITULO IV

O PROBLEMA DA LIBERDADE CIVIL E A


ORGANIZAÇÃO DA JUSTIÇA

SuMÃRIO: - I. O equivoco secular dos nossos esplritos li-


berais. Correlação entre a Uberdade polltica e a liberdade civil:
esta pode existir sem aquela, mas aquela não pode existir aem
esta. - II. Ürijanização da justiça como melo de realizar a )l.
herdade civil. Os democratas modernos e o seu lema. - III. Co-
mo a Constltulção Republicana resolveu o problema da organi-
zação da Justl~a. Porque os esplrltos pragmãtlcos condenam esta
solução. Organização que nos convém. A "oligarquia do Su,
premo" e 011 demagogo.,.

O grande problema da liberdade no Brasil não


é o da liberdade política, como há cem anos te-
mos vivido a pensar - e sim o da liberdade civil.
Os nossos políticos liberais, desde o primeiro dia
da Independência, têm, sôbre êste ponto, errado
duplamente ·- como homens de doutrina e como
homens de ação.
88 Oliveira Viana
I
Como homens de doutrina - êles têm errado.
dando uma importância suprema ao problema da
liberdade política e deixando em segundo plano o
problema da liberdade civil; quando a verdadeira
orientação seria justamente a contrária, em que o
problema da liberdade civil aparecesse em primei-
ro plano.
Como homens de ação - têm também erra-
do, procurando, através de Constituições, lutas, sis-
temas eleitorais, revoluções, dar realidade à liber-
dade politica, num pais, cujos cidadãos, principal-
mente os das classes populares, não conseguiram
ainda assegurar a sua liberdade civil.
Ora, a verdade é que é possível existir um re•
gime de perfeita liberdade civil sem que o povo
tenha a menor .parcela de liberdade política : -e o.
govêrno do "bom tirano" é uma prova disto. Mas,
seria pueril conceber a existência de um regime
de liberdade política sem a condição preliminar
da liberdade civil.
:tste é o grande equívoco dos nossos agitado-
res liberais. Aliás, já demonstramos alhures que,
durante a fase da nossa formação histórica, o que
impediu, nas camadas populares, a formação do
verdadeiro cidadão, do homem público à maneira
inglesa - com a sua consciência cívica, a sua in-
dependência politica, a sua combatividade eleito-
ral, a sua confiança no direito e na lei - foi jus-

..
Problemas de Polltica Objetiva 89

tamente a ausência da liberdade civil, devido à


desorganiza,ção geral da justiça, durante o perío-
do colonial, e, depois, à fraqueza dela, durante o
Império (1).
E' fundamental, pois, a importância da orga-
nização da justiça como um dos meios de dar rea-
lidade à nossa democracia de letra de f ôrma. Po-
de-se dizer mesmo que, se até hoje não temos tido
nem liberdade civil, nem liberdade politica, é prin-
cipalmente porque nunca tivemos uma eficiente or-
ganização da justiça.
Há, porém, infinitos modos de organizar a jus-
tiça - e é precisamente o modo melhor . de orga-
nização que deve ser o ,p onto principal do pro-
grama de um partido democrático ou liberal no
Brasil.

II

E' certo que os nossos modernos agitadores


liberais e democráticos inscrevem na sua bandei-
ra o lema: Justiça! Mas, é também verdade que
o lema: Justiçai - só por si não basta, só por si
não pode constituir propriamente um item de pro-
grama de partido (2). Para isto seria preciso ad-
mitir a hipótese de um partido oposto, capaz de
arvorar a bandeira contrária, a bandeira da In-
justiça - o que é inadmissível. Todos querem a
Justiça; ninguém ha que se coloque confessada-
.
/

90 Oliveira Viana

mente do lado oposto; os que o fazem sempre o


fazem recorrendo ao sofisma, à dissimulação, à
camuflagem - o que é um modo indireto de ren-
der homenagem ao grande princípio. O desejo da
justiça é uma aspiração que está no fundo da al-
ma de todo o homem - e não pode servir para
mote de ação política, para lema de bandeira par.
tidária, para descrime de grupos que militem n~
campo da vida pública.
tsse descrime só se poderia estabelecer, se-
parando os espíritos pelo antagonismo dos parti-
dos, quando os modernos legionários da nossa re-
generação política viessem dizer o plano que ha-
viam articulado, de refonnas a serem feitas na nos-
sa organização judiciária. O ideal da justiça, co-
mo todo ideal, é um alvo, é uin ponto de chegada;
o essencial está, portanto, em determinar_ o pleno
itinerário mais apto pera irmos até lá.
Estamos presentemente numa encruzilhada,
donde se ,irradiam caminhos para os quatro hori-
zontes, representando outros tantos tipos de orga-
nização do aparelho judiciário. Dêsses caminhos,
que se abrem a nossa frente, qual o que devemos
seguir? Do campo democrático bradam-nos ape-
nas: Jw1tiçal Mas êste também é o grito dos ou-
tros grupos; também êles conclamam : Justiçai
Todos nós conclamamos também: Justiçai E' um
ideal comum - o que não impede de continuar-·
Problemas de Politica Objetiva 91

mos indecisos, no centro da encruzilhada, sem sa-


bermos o melhor, o verdadeiro rumo a tomar para
atingi-lo .. ·.
Os que estão agitando a bandeira de Justiça,
traduzem apenas, numa palavra-lema, uma aspi-
ração geral, que não é de um grupo, mas de todos
os grupos, da Nação na sua totalidade. Estão fa-
zendo obra meritória, talvez, de agitação, de pro-
testo, de reação; nunca, porém, obra de edifica-
dores políticos e de organizadores de partidos -
obra de reforma, de construção, de organização,
como se faz mister.
Os políticos liberais do Império sempre feri-
ram esta nota - o ideal da justiça - e neste ·p on-
to são como os de hoje ; mas, ao contrário dos de
hoje, nunca se ]imitaram a enunciá-lo apenas, co-
mo estão fazendo agora; sempre formularam um
programa detalhado, um sistema de medidas por
êles julgadas capazes de dar realização a êste ideal.
E' só ler os .seus programas. E' só ler o pro-
grama do Partido Progressista, de 1864. E' só ler
o programa do Partido Liberal, de 1869. E' só
ler o programa do Partido Radical, de 1868. E'
só ler o programa do Partido Republicano Pau-
lista, de 1872.
Em todos êles há sempre uma enumeração mi-
nuciosa dos pontos de reforma, das modificações
11 fazer. Os programas de 1868 e 1869 são extre-
92 Oliveira Viana

mamente minudentes na descriminação das alte-


raições a realizar na estrutura judiciária existen-
te, não só no tocante à própria organização da
magistratura, como no tocante ao rito processual
e ao sistema das garantias individuais. Podiam •
estar em êrro os seus elaboradores - e o estavam
em muitos pontos, como já demonstramos em ou-
tra parte (3); mas, pelo menos mostravam ter uma
noção concreta, objetiva, prática do que julgavam
necessário fazer.
Os nossos modernos organizadores de progra-
mas não agem assim; não indicam as suas prefe-
rências; ficam nas generalidades. Mas, generali-
dades nunca serviram para abandeirar homens
conscientes, que querem marchar seguros para o
seu alvo. Em tôrno delas poder-se-á oongregar a
massa dos indivíduos mais ou menos predispostos,
por feitio mental, a estarem antes com a pessoa dos
chefes do que com as idéias dos chefes. Os espi-
ri tos, porém, para os quais os programas políticos
~,
.
,,
devem objetivar normas claras de ação, pontos
concretos de reformas, não se contentam de gene:-
ralidados e pedem coisas mais objetivas, mais prá-
ticas, antes de darem a sua adesão. Bem o com-
preenderam isto os anti-personalistas argentinos,
como veremos.
Os legisladores do Código de Processo de 32
também eram pela justiça: - e or~anizaram uma
Probremas de Polltica Objetiva 93

justiça descentralizada,, à maneira inglesa é ame-


ricana, com o seu centro de gravitação em tôrno
dos juízes de paz eletivos. Os elaboradores da lei
de 3 de dezembro de 41 também queriam a jus-
ti,ç a: - e organizaram uma justiça ultra-centrali-
zada, com todos os seus fios, visiveis e invisíveis,
presos. ao centro do Rio. Também queriam a jus-
tiça os organizadores da reforma judiciária de 71:
- e a organização que lhes deram não era nem
a de 32, nem a de 41 (4).
O mesmo aconteceu com os legisladores repu-
blicanos: também queriam a justiça e também a
organizaram à sua maneira, que nã~ foi, entretan-
to, a maneira de 71, nem a de 41, nem a de 32.

III

Esta última organização, que é à vigente, é


boa? Para os espíritos pragmatistas, a resposta há
de ser negativa - porque os resultados desta or-
g1;1nização têm sido maus: ninguém aqui, que co-
nheça o nosso pais para além do perímetro das
capitais, será capaz de afirmar que sejamos um
pais de justiça acessível, de justiça segura, de jus-
tiça eficiente. Como a organização judiciária taJ
como existe, saída da Constituição de 91, o Brasil
não é ~videntemente o lugar mais próprio para nêle
94 Oliveira· Viana •

ser repetida a anedota do moleiro de Frederico,


o Grande ... (5).
Os agitadores democráticos, que nos acenam
com o lema Ju,stiçal, parecem reconhecer que não
a temos, parecem implicitamente condenar a or-
ganização atual, parecem reconhecer que ela tem
falhas graves e que é preciso modüicá-la. Mas
como modificá-la'/ em que pontos? qual o pensa-
mento dos reformadores? Será o de dar ao Po-
der Judiciário a faculdade da auto-organização?
Será o de deixá-lo na subordinação atual ao Poder
Ex-ecutivo, que escolhe, nomeia, promove, remo-
ve, demite'/ .Será o da unificação do processo e
da magistratura? E' o, que ainda não foi dito. E'
o que precisa ser dito.
Basta ver o que se passa com a justiça federal.
Basta ver ~ que se passa com o próprio Supremo
Tribunal: a sua formação está subordinada a dois
poderes essencialmente polf ticos: o Legislativo e o
Executivo. Como o Legislativo é hoje uma enti-
dade meramente expletiva, pode-se dizer que a or-
ganização do nosso mais alto tribunal está subor•
dinada exclusivamente ao mais politico de todos
os paderes: o Executivo. ~ste fica com o arbítrio
de mandar para lá, ou um magistrado às direitas
ou simplesmente um advogado do govêrno, ou um
juiz ou um "camarada" - à vontade.
Problemas de Polltica Objetiva 95

O que é preciso evitar é justamente isto, é jus-


tamente que a constituição da nossa suprema ma-
gistratura continue sujeita às possíveis influências
do espírito de facção. O que se deve fazer é pôr
no grande Tribunal o direito de organizar-se a si
próprio e não só a si próprio, mas as outras ju-
dicaturas do. pais (6).
Os demagogos dirão que isto importaria em ins-
tituir e legalizar, dentro da nossa democracia re-
publicana, uma nova modalidade de oligarquia: -
"a oligarquia do Supremo". Todos estamos vendo
que isto é apenas uma frase; mas, mesmo que cor-
respondesse à realidade, ainda assim seria um bem.
De tôdas as oligarquias possiveis em nosso pais,
a "oligarquia do Supremo" - a oligarquia da To-
ga - seria ainda a única realmente benéfica e li-
beral, .a única, cuja opressão não humilharia -
porque seria a opressão da Lei e não do arbítrio.

( 1 ) Populações meridionaia, cap. VIII: Génese doa clb e do


eeplrito de clã.
(2) Refiro-me a um partido organizado por Assis Brll.911.
cujo nome não me recordo bem (Partido Democrático?) e que
teve voga efêmera naquêle tempo. Assis era bem daquêle tlpo
de "mecanicistas" politicos e constitucionais, da Ironia de Wilson.
que planejavam Constituições com a técnica de construtores de
pl1111etárlos •••
... ..,.~
_

',t "' ·11

96 Oliveira Viana ; ..·..: ..


(3) v. Populaçl5es Meridionais, cap. XII : Organizaç4o - ~
ordem legal, e pâg. 233 sq.
( 4) v .O idealilmo d1t Con8titulç4o, cap. I: O primado do
Poder Moderador. ·
(5) v . Populaçõe3 Merídional8, cap. VIII: Glnele dol cllh
e do espírito de clã.
( 6) E ' fste o pensamento de Rui, formulado na sua plata-
forma de 1910: v. obr. cit. pâg. 29.

,
CAP1TULO V

O CONCEITO PRAGMÁTICO DA LIBEDADE


POLITICA

SuMÃRro: - i: Liberalismo e pragmatismo. Experiência de


uma e de outra destas duas escolas de política no Haiti. - II. O
Haiti da liberdade. O que era como govêmo; como administra•
ção; como povo: corrupção: delapidação; barbarização. - III. O
Haltt da dominação estrangeira (Haiti escravizado) . O que pP ...
1ou a ser como govêrno; como administração: como povo; mo-
ralidade; legalidade; liberdade; prosperidade. - IV. A lição ,k
pragmatismo americano.

- Os liberais da velha escola da soberania do


povo e os da moderna escola da self-determination
encontrariam nà história contemporânea do Haiti
matéria para fundas meditações. Se acaso se qui-
sessem poupar a leituras mais sérias sôbre o as-
sunto e desejassem apenas ter uma visão sintética
do que ali se passa, não seria preciso mais nada
senão ler o belo estudo que, numa revista ameri•
,

Oliveira Viana

cana de sociologia, publica sôbre o Haiti dêstes úl-


timos vinte anos o professor Ulysses Weatherley,
da Universidade da Indiana (1). O professor
Watherley é um espírito perfeitamente america-
no; como tal, é pragmatista, bom discípulo do seu
compatriota William James.
E' justo ou injusto o domlnio atualmente exer-
cido pelos norte-americanos no Haiti? - eis a tese
que se propõe a discutir.
Para o professor Weatherley, êste domínio se•
rá justo ou injusto, conforme o ponto de vista da
filosofia política, em que nos coloca.rmos. Se êste
ponto de vista fôr o do antigo idealismo da sobe-
rania do povo, o domínio americano é injusto.
Mas, se em vez dêsse sovado ponto de vista, to-
marmos o ponto de vista do moderno idealismo
pragmático, o domínio americano é justíssimo. E'
escusado dizer que o professor Weatherley toma
· êste último ponto de vista - e a demonstração que
êle no,s dá nos convence de que é com êle que está
a razão.
O Haiti até 1915 era um "·p ovo livre e sobera-
no" - como diria aqui, com voz do papo, qual-
quer dos nossos republicanos históricos remanes-
' centes. Na letra de fôrma da sua m~.jestosa Carta
Constitucional, o povo do Haiti gozava a ventura
de reger-se por um govêrno democrático, republi-
cano, representativo, lib~ral, etc., etc., etc. E' pro-
1
,· Problemas de Politica Objetiva . 99

vável mesmo que, ad majorem Haiti gloriam, pra-


ticasse o voto secreto e garantisse a representação
das minorias. Em suma: uma máquina constitu-
cional e democrática perfeitamente montada, com
tôdas as peças de praxe.
Pois bem. Iam as coisas correndo para Haiti
ao sôpro brando dos zéfiros perfumados, quando ·
certo dia. .ai por volta de 1915, os americanos che-
gam ali em navios artilhados e, fazendo desem-
barcar marinhagem, tomam, a tiros de canhão e a
golpes de sabre, conta do pais. Mandango, depois,
ao diabo · a democracia, que devia estar banhando
em delícias os felizes haitianos, começam a gover-
nar o Haiti à sua maneira, isto é, à maneira yankee.
O Haiti passou a ter assim duas histórias: '8
do Haiti livre - quando o "povo soberano" do
Haiti dirigiai os seus próprios destinos; e a do Hai-
ti escravizado - quando os referidos destinos pas-
saram a ser dirigidos por funcionários america-
nos.
O professor Weatherley nos descreve, de uma
maneira sucinta, estas duas histórias - e vale a
pena estabelecer o confronto.

n
No Haiti do tempo da liberdade, não havia
propriamente govêrno - porque, como observa o
f
100 Oliveira Viana

professor americano, o govêrno fazia tudo ali, me-


nos exercer as funções elementares que incumbem
ao govêrno em qualquer Estado orglmizado.
Em primeiro lugar, não havia policia, nem
exército. O exército e a po1ícia não passavam de
bandos armados, de que os caudilhos políticos se
serviam como instrumentos nas suas lutas pelo ·
poder.
Não, havia, portanto, nem defesa nacional, nem
ordem pública. Nas regiões do Norte ,io pais, do-
minava um regime de banditismo endêmico, in-
comparàvelmente mais bem organizado do que os
dos nossos altos sertões.
Dêsses Curralinhos, dêsses Paj eús de Flores,
dêsses Inhamuns haitianos, patriotas salvadores
faziam descer frequentemente algaras armadas sô-
bre a capital do pais, situada ao sul, no intuito de
depôr os adversários, senhores do govêrno. E isto
estabelecia no país um estado de desordem crô- .•
nica, sob o qual a ordem pública desa.parecia to- ~
talmente. · 1
Não havia Justiça -: porque os a1;arelhos ju- ,
diciários estavam avassalados inteiramente à po- ,
litica~ha das f acçõ~. Nem havia ensino, nem es- 1
colas - porque os governos, preocupa dos em de-
fender-se dos seus inimigos, não tinham tempo
para cuidar destas coisas.- Não havia meios de
l•

~
comunicações - porque não existi11n1 estradas;
·i
-~
l
...,j
1.
Problemas de Política Objetiva 101

nem rodovias, nem ferrovias; nad~. Não havia


· higiene pública, nem hospitais, nem organiz'açõe&
de profilaxia. Nas cidades - o povo morria de-
vastado pela tul;>erculose; nos campos - pela ma-
laria e pela anquilostomose.
Não havia finanças organizadas. Embora o
sistema de ímpostos f ôsse a pilhagem tributária
levada ao requinte, o pais estava em franca ban-
carrota - porque os dinheiros arrecadados eram
gastos com a camarilha que eventualmente deti-
nha o poder. Os Chamorros e os Calles haitianos,
isto é, os revolucionários vitoriosos (no Haiti da
liberdade só se chegava ao poder pelas revolu-
ções) consideravam o erário público ooisa da sua
propriedade particular - e dispunham dos dinhei-
ros da nação com a liberalidade costumeira nas
revoluções vitoriosas.
O professor Weatherley resume o Haiti "livre
e soberano" numa frase: a cultural debâcle. E
ronclui que se as atividades dos govêrnos visavam
algum objetivo, êste poderia ser tudo;..menos a pro-
moção dos interêsses públicos:
- "lf these was anytbing like a cultural de-
bâcle, it must be attributed to the state's f ailure
to exercize these and similar fun ctions. The worst
·indictment against the old Haitian government -
and it .appt a.rs to be a valid one - is that it Wcll
102 Oliveira Viana

conducted for ends other than the promotion of [


public walfare" (2). _

III
1

O "Haiti d.a escravidão" apresenta outro as.-1


pecto. Os americanos entram ali e põem para fo• 1
ra do govêrno, sumária e dràsticamente, os poli-
tiqueiros que exploravam, sob o rótulo de demv·
cracia, o pais. Feito o que, oomeçam a refundir,
a reformar, a reorganizar tudo - isto é, a go• _
vernar.
Restauram, com providências práticas e enér·
igcas, as finanças públicas. Reformam o absurdo
\ '
sistema de imposto, substituindo-o por outro ra• .
cional e justo. Dão aos dinheiros arrecadados uma-'
aplicação rigorosamente honesta: gE'8tando-os em
serviços públicos. Enchem o Haiti de escolas de
todo gênero; primárias, profissionais, técnicas; - -
e com isto reduziram o coeficiente de analfabetis• ·
mo, que era, no "Haiti soberano", de 95%. Fun·
dam hospitais modelos; drenam pântanos: - e
com isto extinguem a malária, a anquilostomose,
etc. . Conseguem dar à gente haitiana aquilo por·
que o nosso Belisário Pena vive a batalhar brava• -
mente: uma consciência sanitária. Desenvolvem 1
tôdas as fôrças eoonômicas. Introduzem na agri- j
cultura os processos da cultlll'a científica, até en- j

,,
Problemas de Polltica Objetiva 10:J

tão desconhecidos. Fundam uma Escola Superio1


1
de Agricultura, donde saem técnicos de verdade
para o labor dos campos. E o Haiti, que só pro-
duzia cereais, café e algodão, passa a produzir em
quantidade tudo isto e mais: açúcar, fumo, frutas
tropicais-.
Não é só. O exército e a policia se haviam
tornado instrumentos dos políticos f acciosos. Os
americanos dissolvem um e outro e organizam, em
substituição, uma sorte de milícia nacional, já ago-
ra disciplinada e comandada por oficiais ameri-
canos: e com ela restabelecem a ordem pública.
Nos grandes focos de banditismo do norte fazem
o que o professor Weatherley chama - "uma cura
por ventilação". O que gerava o banditismo er.a
a inacessibilidade daquela região setentrional À
ação policial do poder. Ora, os americanos com- '
preenderam logicamente (lógica pragmática .. . )
que o que se fazia preciso era corrigir esta inaces-
sibilidade, quebrar esta impenetrabilidade, em su-
ma, "ventilar" a região: - e a rasgam de estradas,
e a cobrem de rodovias, e conduzem até ali o te-
légrafo e o telefone; de modo que os automóveis
carregados de policia embalada puderam circular
em tôdas as direções, ao primeiro chamado. E o
banditismo desapareceu, com os seus Lampeões,
as suas algaras, os seus temíveis raid~ reV10lucio-
nãrioa Bôhre a capital do Sul. E o professor Wea-
101/. Oliveira Viana

therley conclui: - "O Haiti é hoje um dos países


mais pacíficos e ordeiros do mundo".

IV

E' êste o confronto entre os dois Hailis - o


novo Haiti da dominação estrangeira (Haiti escra-
vizado) e o antigo Haiti dos politiqueiros (Haiti
livre). Confronto, que é uma pungente ironia e
que também é a mais bela lição que o pragmatis•
mo americano podia dar aos ortodoxos idealistas
da soberania do povo e do principio da self-deter-
mination (3).

(1) Weatherley (U.) - Haiti: an esperlment ln Pragma-


tlsm (ln "Amerlcan Joumal of Sociology", 1926, pág. 358) . Con-
sulte-se ainda Leybourn (J.) - The haittan people, New Ha-
ven, 1941.
(2) Em concordãnda: Leybourn - obr. clt., cap. V e XIL
~ ( 3) Quando foi lançada a 1.• edição dbte livro, êste capi-
tulo causou uma Imprevista Impressão, porque Impressão desagra-
dável. chocante, de repulsa mesmo. Isto transpareceu claramentt
nas restrições feitas pela critica, na sua unanimidade, atacando es•
pec!almente l!ste capitulo - e Medeiros e Albuquerque fel-o com
01ordac!dade. Parecia que o que eu pretendia era Justificar os Im-
perialismos então em voga - dos Estados Unidos, da Inglaterra,
da Alemanha, do Japão, e as suas conquistas e golpes de fôrça
· contra os povos fracos, ou desorAanlzados Internamente. Es-
tas nações poderosas se haviam então arvorado em agentes dv11!-
?:adores do resto do mundo. Civllizadores e policladores - e êsta
foi o caso de Haiti, cuja domiDação pelos &tadoa llnldoa ttve
Problemas de Politica Objetiva 10~

• por fundamento o estado c:rõnlco de desordem e turbulência em


que vivia aquela gente (state of anarchy), onde ("no espaço de
4 anos, seis presidentes subiram ao poder e dêle calram" ( Ley~ .
bourn - ob. cit., pâg . 100) , O meu pensamento, entretanto, ao es-
crever este capitulo, não era, de modo algum, justificar,
os imperialismos conquistadores: mas, apenas mostrar, com
um exemplo concreto com o caso do Haiti os
perigos, em que Incorrem os povos, que se deixam dominar
pela politlcalha de clan e pelo facciosimo. Era este o meu
pensamento intimo, a intenção que ditara o capitulo.
O capitulo, aliás, não merecia tanto e é, como se vê, incidente na
estruturação do livro; mas, a verdade é que a sua condenação quase
que acabou importando na condenação do livro todo. . . Prepa-
rando esta 2. • edição, tive, a principio, desejo de suprimir êste ca-
pitulo. Entretanto, acabei conservando-o. Considerei que ele
não poderia mais parecer chocante ou repulsivo aos espíritos, mes-
mos os mais delicados e sensíveis.
Porque, evídeutemeote, o i:µw11;lo está muito mudado depols
desta guerra imensa. Todo éle parece estar evoluindo para uma
s1utação de controle internacional das soberanias nacionais.
Tudo indica que os povos Uvres não terão mais, no gozo
da sua condição soberana, a latitude que até então pos-
sulam. Está ocorrendo no concerto das nações o que ocor-
reu na vida dos iodivlduos : a liberdade dos Estados estâ
sofrendo, na esfera da sua vida internacional, limitações tão gran-
des e senslveis como a liberdade dos individues na esfera da sua
vida civil ; os seus direitos se estão reduzindo 'em favor dos
lnterésses da ordem e da segurança da grande comunidade inter•
nacional, a "grande sociedade~, de Graham \Vallas. Esta a.-ssume,
cada vez ' mais, um direito de controle - e, portanto, de interven-
ção - , o§o jâ sobre a vida externa, mas mesmo sõbre a vida ln-
terna dos Estados. Já lhes estâ Impondo modos convenientes de
vida pública, formas de existência decentes, até tipos de. organi-
zação politica interna. Não se admite mais turbulentos oa or-
dem Internacional. nem mesmo que façam barulho portas a den.
tro, em familia. E' o que se estâ vendo com a Espanha, e com
o Japão, e com a Alemanha, e com Argentina, que estão ~endo
· aberta ou discretamente, direta ou Indiretamente, forçadas a en-
quadrar a sua estrutura polltica no.c clássicos padrões da demo,
crada e .do liberalismo.
....
106 Oliveira Viana

Não discuto a legitimidade des(as cousas: reconheço nelas a


evolução do próprio direito internacional, em que a "soberau~
dos Estados" Já não é mais aquêle direito lntangtvel e ilimitado,
aquela espécie de Jus utendi et abutendi quinitario, que caracteri-
zava a concepção Individualista das soberanias nos séc. XVII1
e XIX. Tudo está mostrando que o futuro dará ao direito de
intervenção e pollciamento internacional, postos nas mãos da fu-
tura Organização da Segurança Mundial a instituir-se, uma la-
titude enorme: - e a ordem pública interna dos Estados tenderá
a tornar-se um capítulo apenas da ordem pública externa e a esta
subordinada. Os Estados continuarão soberanos; mas, para goza-
rem a honra e a dignidade de figurar na comunidade internaclc- -
nal como tau - Isto é, como nações soberanas - estarão já agora
obrigados à exigência da folha corrida, ao termo de bem viver
e à prova do bom comportamento em famil!a. . . O caso do Hai-
ti, estudado neste capitulo, foi apenas uma antecipação, um epi-
sódio profético. Cfr. Gurvitch ( G.) - Le temps prêsent ._,t
l'idêe du droit social, Paris, 1931. pág. 100 sg.; Le Fur - Drolt
internacional public, Paris, 1937, pág. 379 sq.; Politis (N.) -
La morale internationale, N . York, 1944; Levi Carneiro - O dl·
reito Internacional e a democracia. Rio, 1945, pág. 97 sg.
Estas ponderações me convenceram que devia conservar, nes-
ta nova edição, o malsinado capitulo: e êle ai está, nesta, tal
como saiu na primeira. O ambiente internacional está, hoje, mu,,
to modificado e é outro o tom das idéias : o que parecia execrável
e digno de anátema então é hoje, ou tenderá a ser multo em bre•
ve. WD critúio praguiático da própria nova moral Jnternac!onaJ.
CAP1TULO VI

LIBERDADE OU NACIONALIDADE?

SuMÃRJO: - I. Mentalidade polltica das n°"u elites diri-


gentes: o que ela era hã vinte anos e o que ela começa a ser
agora. Tendência centrípeta moderna; sintomas. O movi-
mento centrífuAO de há vinte anos : crença nas virtudes das
eutonomlas locais. O artigo 6. 0 da Constituição e os zelotes do
regime federativo. - II. O caso da autonomia do Acre. - III. O
caso do Triãngulo Mineiro. - IV. O federalismo e o descentra-
bsmo como possivels agentes liberticlda6. Um conceito de Seeley.
O sentimento da naclonalldade e o esplrlto de obediência. O
culto do Estado - condição dos povos fortes e grandes. O exem .
pio da Alemanha. O exemplo da França. -: V. Um apólogo
de Klpling.

Quem comparar a mentalidade das nossas eli-


,, tes dirigentes há vinte anos passados .com a men-
talidade que estas mesmas elites revelam boje é
que podera compreender a enorme mutação ope-
rada no seu sistema de idéias políticas. O centro
108 Oliveira Viana

da gravitação dessas idéias realizou uma transla-


ção tão acéntuada que a impressão que se tem é
de que a sua posição de hoje está quase num sen-
tido oposto à sua posição de há vinte anos.
Hoje, é sensível wna tendência centrípeta, um
rápido movimento das fôrças políticas locais na
direção do poder central. Nas atitudes das poli-
ticas estaduais; nas novas praxes que se introdu-
zem; na importância crescente do Rio como cen-
tro de elaboração e direção politica de todo o pais;
em mil e outros sintomas, uns claros, outros sutis,
embora aparentemente insignificativos; - em tudo
vemos quê a Nação está evoluindo sensivelmente
para uma federação de tipo centrípeto e, por um
movimento difuso dos numerosos centros locais da
sua subconsciência coletiva, está a corrigir, natu-
ral e espontâneamente, o êrro enorme da descen-
tralização política, cometida contra a sua integri•
dade pelos constituintes republicanos.
Há vinte anos passados as idéias políticas, nos
centros intelectuais e partidários, não só locais co-
mo mesmo federais, ,diferiam muito destas idéias
atuais: traiam a influ~ncia da concepção centrl·
fuga do regime federativo. Eram as liberdades
provinciais, eram as franquias locais, eram a so· .
berania dos Estados e a autonomia dos municípios
que importavam, que interessavam, que estavam
em moda.
Problemas de Politica Objetiva 10!1

Campos Sales erigira o famoso artigo 6. 0 da


Constituição em "coração da República"; na in-
terpretação estrita e restrita dos seus parágrafos
estava, oomo se dizia, a "salvação do regime fe-
derativo". Frase que era como o toque de clarim
com que Pinheiro Machado costumava chamar, às .
vêzes telegràficamente, a postos as "sentinelas da
República".
O direito de intervenção, que a União dispu-
nha em virtude do art. 6.º, era considerado, por
aquela época, uma faculdade temerosa, cuja pre-
figuração, mesmo longínqua, só por si, bastava pa-
ra espalhar escuras sombras sôbre a fronte pen-
sativa dos chamados "defensores do regime".
Quanto ao próprio fato material da intervenção,
êste então era tido em abominação, considerado
sacrilégio monstr uoso e provocava, no colégio das
vestais, guardadoras da "pureza do regime", re-
cuos de espanto, gritos histéricos, ululações de ter-
ror sagrado.
Era êste, há vinte anos passados, o estado ge.
ral da mentalidade das nossas elites dirigentes.

n
O i)reconceito da liberdade local, ou melhor,
e,p1'4" :on1~eito de que o poder central, a subordi-
nação ao centro nacional do govêrno era um mal·
110 Oliveira Vz'ana

penetrara a consciência dessas elites, e de tal


maneira', que já não dominava apenas os seus gru-
pos superiores, mais cultos e mais "bovarizadosº,.
mas invadira mesmo os seus núcleos locais mais
obscuros.
Os centros regionais mais Iongíriquos e retar-
datários já não se limitavam a considerar intole-
rável o jugo do Poder Central; começavam mes-
mo a sentir como pêso demasiadamente opressivo
o próprio Poder Estadual. Bastava que dêste par-
tisse uma pressão mais ou menos enérgica, tenden-
te a coibir os desmandos de meia dúzia de man•
dões locais, ou uma medida administrativa qual•
quer, de caráter secundário, contrária ao prestigio
dêsses mandões, para que, do fundo da hreoha re-
mota, começasse a se levantar um clamor em pro)
da "liberdade" daqueles povos oprimidos. E
nunca faltava na imprensa do Rio quem ecoaS6e
aquêle clamor com sinceridade e entusiasmo, con-
vencido de que estava servindo aos " interêsses do
regime" e à "causa libera:!".
Tivemos por aquela época doi• exemplos tí-
picos dêsse estado de espírito das nossas elites po-
liticas. Um, o movimento em favor da autonomia
do Acre, cujo epílogo foi a apresentação pelo se-
nador Francisco Sá de um projeto de lei, elevando
à categoria de Estado aquela vasta região amazô-
nica. Outro, o movimento, de pouca duração, mais
f
Problemas de Polltica Objetiva 111

impressionante pelo alarido jornalistico feito em


tôrno dêle, em favor da autonomia do Triângulo
Mineiro, seccionado de Minas e elevado também à
condição federativa.
~sses dois movimentos, operados quase simul-
tâneamente, mostram o estado de credulidade qua-
se fanática, em que estavam por aquela época os
centros polítioos do país, nas virtudes regenerado-
ras e salvadoras das autonomias municipais, das
soberanias estaduais, dos regimes descentralizados.
Nunca o nosso bovarismo politico se revelara sob
aspectos mais alucinantes. Era como se tivessem
injetado em nosso organismo coletivo uma toxina
sutil, que nos mergulhasse numa espécie de deli-
rio e nos abolisse inteiramente o senso e a inteli-.
gência das nóssas realidades.

DI
Realmente, só delirantes paranoicos ou cegos
às realidades ambientes poderiam supor possível o
$e[f-government no Acre ou no Triângulo.
O Acre era por aquêle tempo uma sociedade
instável, incoerente, desorganizada, de estrutura
rudimentar. Faltava-lhe então - como lhe falta
ainda - êsse enquadramento de classes, que ca-
racteriza as sociedades estabilizadas e definitiva-
mente constituídas. Tinha então uma fisionomia
112 Oliveira Viana

de acampamento - e acampamento anarquizado.


O quadro das classes sociais superiores e médias -
sem as quais uma sociedade é apenas um campo
de concentração em desordem ou uma turba-multa
de grande feira - não estava constituindo: o que
havia era apenas um rudimento, sem caracteriza.
ção apreciável.
O sentimento ,da unidade social, o patriotismo
local não se havia podido ali formar, não só por-
que os elementos originários, com que se consti-
tuiu aquela população, eram, em regra, tipos de
homens de aventura, com o temperamento e a psi-
cologia específica de homens de aventura; como
mesmo porque estávamos diante de uma sociedadP.
dispersíssima, cuja densidade demográfica era por
aquela época muito inferior a 0,2 habitantes por
quilômetro quadrado - a densidade média do cen-
tro amazônico, segundo os melhores cálculos es-
tatísticos (1).
Ora,, essa sociedade sem fixidez, sem ossatura
de classes, sem sentimento coletivo e, portanto, sem
espírito público; com um coeficiente de analfabe-
tismo de quase cento por cento; e primitiva pela
indisciplina, pela desordem, pelo trabuquismo ge•
neralizado, pelo predomínio dos mandões locais
sôbre os centros estáveis de autoridade e govêrno;
essa sociedade é que se queria vestir dos direito5
da autonomia política, elevando-a à categoria de
, Problemas de Política Objetiva 113 .

Estado, unicamente pelo fato de formar uma mas-


sa de cêrca de eem mil habitantes e contribuir com
tunas tantas centenas de contos para as rendas da
Nação.
Consi'1ere-se agora o extravagante dêste racio
cinio; vejam como êle se ressente dessa lógica "in·
telectualista", tão característica do nosso idealis-
mo utópico (2). Como ali não havia ordem, não
havia justiça, não havia policia - e a capangagem
dos caudilhos depunha prefeitos e autoridades f e-
derais com o mesmo desembaraço com que os co-
lhedores de borracha golpeavam à machadinha a ,
casca das seringu.eiras; como não havia nada dis-
to, os ºespíritos liberais (que vivi am cá pelos li-
torais civilizados oom o ôlho fito na América do
Norte e na Inglaterra, nas belezas do self-govern-
' ment e nas maravilhas da descentralização) con-
cluíram esta coisa espantosa:
- que, se tudo isto acontecia, se nada valiam a
lei, ~ justiça, o direito; se nada valia o prestigio
da autoridade, a fôrça moral do govêrno; se tudo
cedia diante do capricho dos homens que dispu-
nham de trabucos e facas de arrastão, . era tudo
porque êstes homens estavam sendo duramente
oprimidos pelo govêrno federal;
- que o que lhes estava faltando em Liberdade
e que ludo melhoraria desde que se lhes desse essa
· "liberdade", isto é, a autonomia, o direito de se go
I .

I '
114 Oliveira Viana

vernarem a si mesmos, de dirigirem os seus pró-


prios destinos, sem serem incomoda.-fc>s pela pre-
sença, sempre impertinente e abelhu,la, dos agen-
tes federais 1
Havia desordem? depredações? motins? rebel-
dias contra a autoridade? Pois bem; tudo isso era
devido à disciplina que lhes queria impor o go-
vêrno federal. Removessem o poder federal - e
veriam como todos os indisciplinados ficariam lo-
go, pela influência transfiguradora da Liberdade,
disciplinadíssimos 1 (3).
Era o regime do open door, aplica do à filoso-
fia poli tica ...

IV

Por certo, o Triângulo não estava por aquela


época no mesmo nível social do Acre; nem seria
justo equiparar as duas sociedades. Entretanto,
nada indicava então que essa região mineira tives-
se os elementos suficientes para se erigir em grupo
autônomo, capaz de exercer com segurança as fa.
culdades complexas, inerentes a uma sC1ciedade so-
berana. Primeiro, o Triângulo sempre teve, como
base econômica da. população e comn indústria
predominante, o latifúndio pasteril - o que já in-
dica que,se trata de uma população rar-efeita e dis-
persiva. Em segundo lugar, o índice, de sua con-
Problemas de Politica Objetiva ·tt5

densação social não podia deixar de ser então in-


ferior a 8 habitantes por quilômetro quadrado, que
era então a média da densidade demograf ica de
Minas (4). Por maior que fôsse. pois, a difusão
dos seus centros de cultura e a generalização da
riqueza particular, não era possível que aquela po-
pulação pudesse ter uma consciência política de-
senvolvida, o sentimento real e lúcido da sua uni-
dade regional e dos seus interêsses comuns.
De mais, seria preciso também saber se havia
ali uma classe superior, suficientemente numero-
sa, que pudesse assumir a direção integral duquela
sociedade. Porque a verdade é que muito~ Esta-
dos do Norte e mesmo alguns do Sul se ressentem
ainda hoje da falta de uma aristocracia dirigente,
que ainda não se havia formado quando o impro-
viso federativo os elevou, de repente, à condição
de entidades soberanas. E' esta a causa primeira
da estagnação em que estão mergulhados, senão
da desordem, da anarquia, .d a desorganização que
os deprime e aniquila (5).
Felizmente, o separatismo -do Triângulo não
teve outro efeito senão o de seJ.'..Vir de tema para
os noticiaristas sem assunto; dentro em pouco. li-
quidou-se pela ação espontânea dêsse espírito de
cordura e conciliação, que é insito à indole paci-
fica e conservadora .da gente mineira.
. \

116 Oliveira Viana

Contudo, êsses dois casos - o -do Acre e o do


Triângulo - foram extremamente significativos:
serviram, como indícios, para mostrar o grau de
dissociação a que havia chegado, pela fôrça desin-
tegradora do regime federativo, a nossa consciên-
cia política nacional, que o Império havia lenta-
mente cristalizado durante cêrca de cinquenta anos
de centralização. .,

Há evidentemente em tudo isto um grande


equivoco, uma grande ilusão, que perturba a visão
exata das realidades nacionais a todos os nossos
/ , descentristas e autonomistas - e são, afinal, aqui
todos os espíritos que se jatam de liberais e adian. --.
tados •..
Porque é preciso recordar, com Seeley que a
Liberdade e a Democracia não são os únicos bens
do mundo; que há muitas outras causas dignas de
serem -d efendidas em política, além da Liberdade
- como sejam a Civilização e a Nacionalidade;
que muitas vêzes acontece que um govêrno não li-
beral, nem democrático, pode ser, não obstante,
muito mais favorável ao progresso de um povo na
direção daqueles · dois objetivos. Um regime de ~
descentralização sistemática, de fuga à disciplina •
do centro, de localismo ou provincialismo prepon-
Problema, de Polltica Objetiva 117

derante, ,e m .vez de ser um agente de fôrça e pro-


gresso, pode muito bem ser um fator de fraqueza
e aniqujlamento e, em vez de assegurar a liberda-
de e a democracia, pode realmente causar a morte
da liberdade e da democracia. Não tivemos nós
mesmos a prova disto com o regime ultra-demo-
crá tioo do Código de Processo de 32? (6).
Em nenhum povo o sentimento desta verdade
tem sido mais vivo do que no ·povo alemão. O
alemão divinizou o Estado. 'tste é para êle a ex-
pressão suprema da Nação organizada. O alemão
tem a reHgião do Estado, o culto da autoridade:
obedece-o e, obedecendo-o, fá-lo com um sentimen-
to equivalente ao que êle põe na obediência aos
dogmas da sua religião. Honra-se intimamente
com isto; a subordinação não o revolta como uma
humilhação: a obediência é para êle um titulo de
nobreza, uma prova de devoção à coletividade na-
cional (7).
Quando um povo chega a êste estado de in,
tegração; quando a sua consciência coletiva atin-
ge esta intensidade, êste vigor, êste poder de coer-
ção - êste povo tem o seu triunfo assegurado, conta
e contará, é e será uma fôrça de civilização, é e
será um fator da história (8).
Os povos fortes e dominadores são sempre as-
sim. O domínio e a fôrça só se conservam nêles,
enquanto na alma das suas elites o sentimento do
118 Oliveira Viana

grupo nacional prevalece sôbre o sentimento dos


grupos locais ou sôbre o ~goísmo dos indivíduos.
O perigo está em que êste sentimento do gru·
·po n,acional pode entrar em fase de desintegração
e mesmo desaparecer. Então os interêsses dos pe-
quenos grupos - seitas, clãs, familias, partidos -
vêm à tona, tornam-se dominantes, laceram a co-
letividade, reduzem a nada a sua grandeza.
' Vêde a França. Esteve a pique da queda; os
interêsses inconciliáveis dos partidos, das côterie~
politicantes, cada qual mais intransigente dentro
do seu egoísmo de facção ou de clã, a impeliam
ràpidamente para a ruína. O que a salv,m foram
as virtudes maravilhosas do seu velho instinto na-
cional, latentes, apesar de tudo, na consciência dos
seus homens representativos. Estas virtudes é que
os levaram a formar a "união sagrada,. em tôrno
de Poincaré.
Dando esta prova de ah.n egação e de sacrifí-
cio dos seus pontos de vista pessoais ou tribais, os
homens de partido da França mostraram que a
grande nação latina ainda não passou, ainda me-
rece a admiração universal, ainda conta e contará
nos destinos do mundo (9). O dia em que, na al~
ma das suas elites, estancarem-se estas reservas de
desinterêsse, de abnegação, de sacrifício e, portan-
to, de subordinação. e de disciplina, ela deixará de
,
Problemas de Polttica Objetiva 119

ser a f!>rça civilizadora que é - e a sua dissolu•


ção apenas terá para assisti-la a piedade compun-
gida dos puYos organizados.
Esta subordinação dos interêsses dos indivi-
duos, do grupo, do clã, ,·10 partido o·u da seita ao
interêsse supremo da coletividade nacional - da
Nacionalidade - exprime -se, para cada cidadão,
na vida de todos os di.as, pda capacidade de obe-
diência e de disciplina, pelo culto do Estado e da
sua autoridade. Há lugar aqui para êste raciocí-
nio: - o ~entimento nacional forte gera a subor-
dinação do individuo ao grupo ,· esta suliordi,
nação gera a obediência ao Estado; a obedi~ncia
ao Estado gera a fôrça, a grandeza, o domínio.
Os povos de fraco sentimento coletivo, isto é,
aquêles em que a consciência do grupo nacional
é rudimentar ou nula, não podem elevar-se, por
isso mesmo, ao culto do Estado e da sua autorida-
de, não compreendem nem praticam as virtudes
da obediência e da disciplina. Mas, êstes são os
Haitis, as Nicaráguas, os Méxicos, as Venezuelm;
(10) - presas ·p resentes Oll( futuras das nações im-
perialistas e robustas, cuja fôrça da expansão e
conquista está justamente na solidez da estrutura
política que conseguiram organizar, utiiizando 'l
sentimento de hierarquia, subordinação e discipli-
na dos seu~ membros.
120 Oliveira Viana

VI

Ninguém exprimiu melhor êste pensamento do


que KiJJling, num dos apólogos que vêm no
Livro do Jung/ai e onde êle dardeja o sarcasmo
do saxão, educado na legalidade e na obediência
política - e, por isso mesmo, livre corno nenhum
cidadão do globo - contra os povos barbarizados
e sem disciplina, que repugnam a obediência, a
subordinação, a hierarquia, a autoridade - e, por
isso mesmo, condenados aos suzeranatos estrangei- .
ros. .r
Kipling ~os descreve o majestoso espetáculo
de uma parada de tropas inglesas na lndia. São
cêrca de 30.000 soldados que desfilam, em marche
cadenciada, dentro da imponência das suas for-
mações militares, arrastando a multidão heterogê-
nea das alimarias de guerra : bois, cavalos, elefan-
tes. . O espetáculo tem uma movimentação gran-
diosa, que enche de deslumbramento as pupilas
dos chefes bárbaros, vindos ali especialmente pare
assisti-lo. Um dêles, descido dos platós da Asia
Central, surpreende-se pi,incipalmente pela ordem
perfeita com que se move tudo aquilo, tôda aquelA
massa de homens e animais:
- E' maravilhoso tudo isto! Como se pode
fazer uma coisa assim, tão prodigiosa? perguntou
ao oficial inglês. E o oficial respondeu com na-
turalidade:
Proble~as de Polltica Objetiva 121

- Muito simplesmente: foi dada uma ordem


e esta ordem foi obedecida.
- Ma~, os animais? são também inteligentes
como os homens?
- Não; êles obedecem como os homens -
explicou o oficial. o burro, o cavalo, o boi, o ele-
fante obedecem ao seu condutor; o condutor obe-
dece ao sargento; o sargento obedece ao capitão;
o capitão obedece ao major; o major obedece ao
coronel; o coronel obedece ao brigadeiro, coman- .
dante de três regimentos; o brigadeiro obedece ao
general, que obedece ao vice-rei, que, por seu tur•
no, é servidor de S. M. a Imperatriz. '
O chefe bárbaro meditou um pouco e depois
exclamou:
- Ah I como seria bom que acontecesse a
mesma coisa no Afganistã I Lá, nós só fazemos o
que está na nossa vontade - e não obedecemos a
ninguém!
- ·E· por isso - acentuou o oficial inglês,
olhando-o com sobranceria e torcendo maliciosa•
mente os bigodes ~ é por isso que o vosso Emir,
a qblem não obedeceis, é obrigado a vir aqui reee-
ber ordens do nos110, Vice-rei ...

( 1) Anuário Estatlstico do Brazil - 1916, pâg. 257.


Hoje ainda, o coeficiente de dens idade é 1 hb. por km. qua-
drado (Anu.trto &tatl#ico do Braail, 1939-40) .
122 Oliveira Viana

(2) v. O idealismo da Cofl!Jtituiçló - cap I: o. primado


do Poder Moder~or.
( 3) Nos meus Pequenos estudos de psicologia social, jã ha-
via discutido êste ponto num capitulo ( O êrro da autonomia acrea-
rni) - o que me valeu veemente réplica de um escritor noí-:ies-
llno, Craveiro Costa, profundo conhecedor da região (v. Craveiro
Costa - A conquista do deserlo ocidental, São Paulo, 1940, pãg
289 sq.). Craveiro. pertencia, entretanto, ao grupo dos que en
chamei "idealistas utópicos", para quem os problemas da orga.
alzação política e constitucional são meras equações algébricas,
que se resolvem in abstrac:to (v. cap. J, nota 4). Esquecia, con-
1equeotemente, na sua defesa da autonomia acreana, essa velha
lel da nossa história política, que formulei em Populaçl5es: - "En-
tre nós, liberalismo (leia-se: autonomismo, federalismo) significa.
praticamente, e de fato, nada mais do que caudilhismo local ou
provincial'' (v. cap. XIV: Funçlfo politica da Corôa) .
(4) Anuário fütatlstlco do Brasil, 1916, pãg. 251. Cfr. Tei-
xeira de Freitas - AnuArio demográfico de Mirla8 Gerais, Bek
Horizonte, 1928, 82 sq.; Afrânlo Carvalho - A natalidtu.k mi-
neira, Belo Horizonte. 1929, pãg. 23.
(5) Houve Estados, nos primelr05 tempos da República,
que não tinham sequer elementos dirigentes superiores e tiveram
que importar gente dos Estados vizinhos mais desenvolvidos para
a composição dos quadros da representação estadual e federal. . .
Hoje ainda, alguns dêles não conseguiram formar uma elite diri-
gente realmente à altura das responsabilidades da sua condição
autônoma - e.sta é que é a verdadt.
(6) v. Populaç6es Meridionais do Brssil, cap. XII, pAg.
234-235. Insisto sõbre êste ponto. O uemplo do Código do
Processo de 1832 é a mais sugestiva demonstração, feita ao vivo,
dêste fato. Prova flagrantemente que nem sempre um regime li•
oeral e democrático (pelo menos, teôricamente liberal e democrá-
tico) serve pràtlcamente à liberdade e à democracia.
O Código de Processo, realmente, instaurou, como sabemos,
.una contrafacção do $e[f-government norte-americano em nosac
pais, ainda mal liberto das faixas coloniais. O centro da vida po- ,
lltlca e administrativa do pats paasou e ser o municlpio e os seWI
6rgãos locall eram todos eletivo,: a Justiça era eletiva; a polltica
Problemas de Polltica Objetiva 123

era eletiva: as cAmara.s e prefeitos eram eletivos: a guarda nacional


era eletiva. O Juiz municipal, o promotor, o Juiz de orfãos, o
juiz de paz eram de origem eletiva. O corpo de jurados era
escolhido por uma Junta composta do pâroco e de duas autorida-
des eletivas, o prefeito e o Juiz de paz: - "A autoridade de
eleição era tudo-diz Uruguay; a de nomeação do governo, nada".
" - Os cabos e demais inferiores eram eleitos pelos gu11rnada".
A guarda nacional, que tinha, no tempo, um grande p:.pel na
vida partidária e polltica dos munlclpios, constituía-se por
eleições ·· - Os cabos e demais Inferiores eram eleitos peJ..is guar-
das. O tenente-coronel comandante, o major. o ajudante, o alfe-
res porta-bandeira, - pelos furriéis e sargentos. Só o major /
da legião e o comandante superior eram nomeados pelo centro" .
Não se podia organizar, portanto, regime mais liberal e democrá-
tico -- e funcionou aqui até a promulgação do Ato Adicional.
de 35. Dois anos e pico, apenas.
Pois bem: que saiu dêste regime ultra-liberal e ultra-demo-
crâtlco7 Não foi a democracia, não foi a l!berdade, não foi a
felicidade dos povos. Nas províncias do Norte, foi o cáos, foi
a anarquia, foi a opressão sistematizada, o domlnio da caudilha-
gem e do trabuco, a persegi+ição sanguinârla e lmplacâvel dos
adversârlos polltlcos. Conta João Brlgido que. no Cearâ, por
exemplo, em poucos meses deste regime, levantaram-se forcas por
tõda a parte, para nelas pendurarem os Inimigos do partido con-
trário ( naquêle tempo, o júri tinha competência para condemu
l morte). Para salvarem a vida, os per:.eguidos tiveram que
.se refugiar nos Estados vizinhos, Pernambuco, Paralba, et::. Den-
tro em pouco, não havia mais um oposicionista sequer no Ct!a-
râ •. , E assim em outras provindas: - "E' impossivel que dei-
xeis de conhecer todos os excesos dos julzes de paz - dizia, no
seu Relatório, em 1838, o presidente da Provinda do Maranhão
à Assembléia Provincial. Abri a sua história - e vereis ca-:la
pâglna manchada com os fatos mais monstruosos, filhos da lgno•
rãncla e da maldade, um luxo de arbitrariedades e perseguições
contra os bons. Inaudita proteção aos maus e porfiada guerra às
autorl'dadesw ( Cfr. Populações Meridionais, ibidem).
( 7) O fato dE' ter sido vencida, na segunda grande? puer-
ra { 1939- t 945) , esta ' derrota certamente não lmportarâ no desa. .
pareclmento dêste esplrito da comunidade nacional alemã, que se
exprime no.famoso Deutschtum. Este esplrito está vivo e ainda mais
124 Oliveira Viana

ardente e militante do que nunca. Os aliados estão bem certos disto


- e tomam Já as providéncias devidas. De Bismark disse
Ludwiçi : - uBismark sempre amou mais o poder do que a
liberdade - e nisto era também um alemão". Cfr. Whit·
man (S.) - Imperial Germany, Leipzig, 1896, pág. 26-37,
177-222; Andrillon - L'expan.sion de I'Allemagne, Paris, 1914,
cap. I e VII; Descamps (P) - La formation sociale du prus-
5ien moderne, Paris, 1916, pág. 235-167; Huntlngton - Mains-
prings of Civilization, N. York, 1945, pâg. 208 sq. "
(8) Repito o que disse na nota anterior: não creio no
aniquilamento da Alemanha, no sentido de que fique Impossibili-
tada ou incapacitada para voltar a ser uma fõrça ponderável no
equilíbrio do mundo. O mal que 'ela nos causou com o seu Im-
perialismo delirante, cuja culpa está expiando dura, mas justa-
mente agora, resultou antes da lmprevid!'ncla dos outros povc~
lideres, Inglaterra, França e Estados Unidos, que não souberam
cont!'-la a tempo, Impedindo que o seu desejo natural de expan-
são degenerasse na obcesslo pan-german!Bta da dominação do
mundo.
(9) E' o que todos nós esperamos agora dos seus homens
de estado e dos seus novos dirigentes, nós os amigos da França,
oue amargamos com a tragédia da sua debac:le presente. Tudo
depende de saber se as suas matrizes étnicas ainda podem gerar
e nutrir elites viris, que saibam se colocar acima das facções e dos
1part1dos que a dividem e se mostrem cheias até a plenitude do sen-

timento da grandeza histórica da França e da consciência da


sua missão no mundo. O que sabemos do que presentemente se
paSBa ali ruio é de molde, entretanto, a nos acalentar multo ne'lta
esperança carinhosa ••..

(10) Quando êste livro foi escrito, os dois palses tUtlmoa


justificavam a comparação com o Haiti e a Nicaragua, como exem-
plos de povos anarquizados. Hoje, a situação está multo modi-
ficada, principalmente em relação ao México.


III PARTE

O PROBLEMA DOS PARTIDOS


Cap. VII: Programas de_parlidoa e plataformaa · de
candidatos.
Cap. VIII: Bue social dos partidos.
Cap. ' IX: Orientação pragmática du campanhu
democrática..

...



,


t ' .
j"

CAP1TULO VII

PROGRAMAS DE PARTIDOS E PLATAFORMAS


DE CANDIDATOS

SUMÁRIO: I. Os anti-personalistas argentinos e a elabo-


ração coletiva das plataformas. - II. Pontos da plataforma antl-
ersonal!sta. - III . O sistema argentino : sua superioridade sô·
re o nosso. - IV. O sistema de elaboração coletiva e o sistema
dt elaboração Individual: superioridade daquêle em relação à luta
contra a pressão partidária.

I
Em relação ao problema das plataformas, os
0
~ liticos argentinos, que formam o partido dos an•
t~-personalistas, adotaram um processo que mere-
cia ser adotado entre nós. Para êsse grupo de po-
1·1 r
lcos, as p]ataformas passaram a ser do partido
- e não do candidato. E' o partido que traça ao
candidato o seu programa de ação, as diretrizes
do seu govêrno, o que êle deve fazer e o que não
deve fazer, se fôr eleito; em suma - a sua plata-
forllla.
128 Oliveira Viana

Essa plataforma é proposta, discutida e ap~


vada previamente em convenção especial do par-
tido; depois dessa formalidade é que a convenção
escolhe o candidato. O candidato não tem, por-
tanto, um programa governamental seu; é um me-
ro executor do programa do partido. O partido
é que lhe dita .a s linhas gerais da sua ação, os pon-
tos que deve atacar, as providências que deve to-
mar, os problemas que deve resolver. O candidato
tem apenas que dar objetividade àquelas normas
de . ação, prescritas pelo grupo partidário a que
pertence. Foi o que .aconteceu com a última cam-
panha em que saiu eleito Hypolito Irigoyen, con-
tra o candidato do partido anti-personalista, que
era Leopoldo Melo.
O programa do oondidato anti-personalista
contém cêrca de 34 itens. Na sua totalidade, obra
de pura elaboração coletiva. Os convencionais,
reunidos em abril de 1927, haviam, oom efeito,
escolhido uma comissão de 15 membros, tirados
das diversas delegações provinciais - e a esta co-
missão foi dado o encargo de redigir a platafor•
ma. Redigida em forma de ante-projeto, foi apre-
sentada em plenário, discutida largamente, emen-
dada e recomendada e, por fim, aprovada, sendo a
votação feita artigo por artigo.
'tstes encerram, destarte, o pensamento . do
partido em relação aos grandes problemas politi·
cos, constitucionais e administrativos do pais.
Problemcu de Politica Objetiva 129

II
Os artigos relativos à organização econômica
da Argentina, principalmente os relativos à sua
economia rural, são numerosos. Os anti-persona-
listas argentinos querem instituir um regime pro-
tecionista para as indústrias argentinas; para isto
propõem uma reforma radical na organização ta-
rifaria atual. Pretendem também fomentar o de-
senvolvimento da pequena propriedade e promo-
ver a revisão da lei do "homestead", o auxílio às
cooperativas de produção e de crédito e a funda-
ção de um Banco Agrícola. Querem ainda "uma
lei geral de expropriação das terras, adjacentes às
estações ferroviárias, rios e canais navegáveis, pa-
ra serem parceladas e entregues à colonização" -
medida a que também nãm deve ser indiferente
a atenção -dos nossos homens de govêrno.
Não são êstes os únicos artigos de caráter eco-
nômico contidos ,na plataforma anti~ersonalista.
Há nela também sugestões relativas à defesa co-
mercial do pais e, entre estas, uma aparece, rela-
tiva à fundação de mercados no estrangeiro para
a venda dos produtos argentinos, digna de figurar
numa plataforma de candidato em nosso pais. Ou-
tra sugestão também aparece no sentido de ser
constituído um fundo especial destinado à execu-
ção de um plano orgânico de aproveitamento das
águas do interior do pais. E outras tendentes à
130 Oliveira Viana

realização da profilaxia social e da luta contra as


endemias. Num dos 34 itens do programa, suge-
re-se também a reforma da legislação então vi-
gente sôbre a profilaxia anti-palúdica.
Itens de ordem social - como, por exemplo,
tribunais para resolver os conflitos entre operá-
rios e patrões, uma legislação de trabalho, uma lei
de seguro social figuram também na plataforma.
E outros de ordem politica, parlamentar e admi-
nistrativa: - reforma · das leis eleitorais paria dar
maior representação às minorias; limitações da ini- '
ciativa ·p arlamentar em matéria de despesas; re-
forma das leis de contabilidade; criação de um
Tribunal de Contas para a fiscalização preventiva ~
da despesa pública. E ainda: - "sanção de uma ,
lei que regulamente a constituição e funcionamen·
to dos partidos políticos com bases essencialmente
democráticas e impessoais" ~ problema que seria
interessante saber como o candidato anti-perSvl''t·
Jista iria relolver, se tivesse sido eleito.

III

tste programa proposto ao candidato não de·


ve ser confundido com o programa geÍ-al do par-
tido. O partido tem uma Carta Orgânica, onde
se acham formuladas as idéias gerais, os pontos
doutrinários da sua orientação. O programa pro-
{
Problemas de Polltica Objetiva 131

posto ao Qandidato é de carater restrito, é o pro•


grama para a sucessão que se vai abrir dentro em
pouco, é a síntese do que o candidato deverá f a·
zer e prover dentro do seu período de govêrno; é
o manlato do partido ao seu candidato. Neste
mandato, o partido articula uma série de provi
dêficias precisas, objetivas, concretas, que o man-
datá.r io tem que tomar, durante o se.u govêrno.
Como se vê, é o contrário exatamente do que
se passa aqui. Entre nós, o partido elege o seu
candidato e êste, então, em manifesto ou em dis·
curso, .formula a sua plataforma, diz as suas ·idéias,
traça o seu plano de govêrno; antes disso, não se
sabe absolutamente o que o candidato pensa. O
candidato é quem diz: - o meu plano de govêrno
é êste e peço para êle o -a pôio de meu partido. E'
o candidato que impõe o seu programa ao parti-
do e não, como no caso argentino, o partido que
impõe o seu programa ao candidato.
No tipo argentino, o programa de govêrno é
coletivo - o que prova que existe o partido. No
tipo brasileiro, o programa de govêrno é indivi-
dual - o que prova que o partido não existe.
E' indiscutível a superioridade do sistema ar-
gentino sôbre o nosso. O nosso é o da incógnita,
da .surprêsa, do imprevisto. E' digno de obser-
var-se o estado de inquietação, de espectativa, de
quase angústia, em que ficam os correligionários
132 Oliveira Viana

de candidato no espaço de tempo que medeia o


dia da convenção e o dia do banquete solene. Há
uma pergunta no ar: que dirá êle? C) _partido não
sabe. Os amigos não sabem. Ningu~m sabe. De
modo que a plataforma do candidato é uma sorte
de boite-a-surprise para os seus pró,Pt'ios correli-
gionários •••

IV
O sistema argentino tem mais esta vantagem
inestimável que o nosso de modo algwn pode pos-
suir: aumenta a fôrça de resistência do candidato
eleito. ll!ste, colocado na posição de simples exe-
cutor individual do pensamento do grupQ, fica com
· maior poder para exigir dos seus correligionários
que o .não embaracem na execução do seu progra-
ma. que outra coisa não é senão o programa do
partido, elaborado coletivamente pel•is próprios
correligionários.
Num ensaio sôbre "O papel dos governos for.
tes no regime presidencial .., já havíamos acentua-
do êste pen-sarnento e demonstrado que o grande
problema moral que os homens de govêrno em
nosso pais têm que resolver quotidianamente -
para a .execução de um programa honesto de ad•
ministração política - é justamente a resisténcia
aos amigos, aos companheiro,s, aos correligionários.
ll!stes é que perturbam tudo; que corrompem tudo;
Pt"o blemas de Politica Objetiva 133

que forçam a quebra das diretrizes honestas tra-


çadas pelos. governos; que arrastam, pelo argumen-
to capciosc, da solidariedade partidária, os admi-
nistradores dignos aos maus precedentes, às indul-
gências criminosas, às prevarica,ções francas, à11
conivências indecentes, ' aos sacrifícios frequentes,
quase quotidianos, dos interêsses gerais aos inte-
rêsses particulares e de partido:
- "O grande escolho está em que essa re&is-
tência não é fácil de fazer-se - dizíamos então.
Numa terra, como a nossa, de partidos caracteris-
ticamente pessoais, é mesmo um problema formi-
dável à resolução de um chefe de govêrno e diante
do qual têm fraquejado, e fraquejarão ainda, as
melhores e:apacidades morais da nossa Taça.
Nós, brasileiros, somos profundamente sensí-
veis aos de.veres da gratidão e da amiz,ade. tste
é até um dos traços mais acentuados e nobres da
nossa indole nacional. Ora, tôda a estrutura dos
nossos parti dos políticos assenta exclusivamente
sôbre êsses dois sentimentos - e daí o terrivel em-
baraço para os governos.
O cidadão francês, que há pouco, sob o gra~
nizo da metralha, seguia, no campo da guerra, fiel-
mente o seu general, não esperava dêle, por certo,
a gratidão ou a amizade; não era por êle que se
batia, mas pela honra e pela glória da França. ,
\

134 Oliveira Viana

Quando, porém, um homem luta por outro e


o eleva pelo seu esfôrço à posição eminente, em
que se acha, êsse outro está preso fatalmente a êle
pela .g ratidão ou pela amizade; será preciso uma
insensibilidade, uma frieza, uma dureza d'alma ex·
trema para que êle o abandone, ou não o atenda.
Eis porque, no Brasil, a resistência dentro do pró-
prio grupo é uma das mais terríveis provações para
um chefe de Estado.
No seu poderoso livro sôbre a nossa Organi·
zação Nacional, diz Alberto Tôrres que: - "O Bra-
sil carece de um govêrno consciente e forte, seguNI
• 1
dos seus fins, dono da sua vontade, enérgico e sem
contraste". ~ste govêrno, contudo, não o podere-
mos ter nunca se os nossos chefes de Estado não
dispuserem a treinar ·a sua von~ade nos exercício(
quotidianos dessa sorte de ginástica sueca do ca·
ráter, que consiste .naquela "coragem de resistir
aos amigos", da ironia de Paraná" (1).
Estudando F eijó e a sua -p ersonalidade, escre-
víamos ainda:
- "Neste ponto é que êle nos parece uma
aberração espantosa de gênio de sua raça. Por-
que nós, -b rasileiros, somos amigos dos nossos ami-
gos, até em política. Em todos os nossos homens

( 1 ) Pequenos eatudo, tk psicologia IOdal, 3.• ed., 1942,


pág. 134.
Problema.s de Politica Objetiva 135

públicos, mesmo os mais enérgicos, os de mais "fi-


bra", há sempre, incoercível, no f.ntimo do seu ca-
ráter, um deplorável pendor amigueiro, parenteiro
ou camaradeiro, que os vulgariza para logo no seu
meio, ou dentro do seu partido. Razões de ordem
afetiva, puramente pessoais às vêzes: a gratidão, o
obséquio, os laços de camaradagem, a amizade f'
até mesmo o receio de magoar ou desiludir pre-
ponderam, noventa vêzes sôbre cem, em cada -um
dêles, na intimidade da sua consciência, sôbre as
graves razões de Estado, sôbre o sentimento dos
interêsses coletivos, sôbre o dever de respeito à lei
ou à majestade da justiça, e outros sentimentos
superiores, que dão têmpera à alma dos cida-
dãos. Tôdas as vêzes que um dêles se ergue, apru-
mando-se, resoluto, dentro da consciência do seu
dever patriótico, par,a logo, do fundo da sua sub-
consciência moral, lá vem, lá surge, lá sobe, cap-
cioso, insinuante, o terrível pendor amigueiro -
e entra a desaprumar a verticalidade daquela ati-
tude cívica" (2).
Ora, os programas elaborados à maneira do
partido anti-personalista argentino armam, sem
dúvida, com as armas mais eficientes os homens
de govêrno contra esta insidiosa e também irresis-
tível pressão em tôrno dêles exercida pela chama-

(2) obt. cit., pãg. 193.


136 Oliveira Viana

da "solidariedade partidária": tornam-nos mais


capazes de resistência à solicitação interesseira dos
"correligionários" e abrem-lhes maiores possibili-
dades de manterem-se fiéis às suas "promessas de
candidato", aliás quase sempre honesta e sincera-
mente feitas.
Na verdade, desde que, no govêrno, os candi-
datos eleitos vão agir como meros executores de
um programa elaborado, .não por êles, mas pelos
próprios correligionários, cada um dêles tem, e po-
de ter, por isso mesmo, fôrça moral para repelir
quaisquer sugestões tendentes a corromper êste
programa, principalmente as sugestões vindas da-
queles que foram justamente os seus elaboradores
e a cujos itens deram a sua solidariedade. Os ho-
~ mens de govêrno no Brasil não estão na mesma
situação, executores que são de programas pessoais,
às vêzes personalíssimos, a que os outros elemen-
tos do partido - os "companheiros", os "correli•
gionários", os "amigosº - deram apenas uma ade-
são formal.
CAPITULO VIII

BASE SOCIAL DOS PARTIDOS

SuMÃRIOS - I. Relação entre a democracia' e as organl-


1eções de classe. Nossa democracia é Individualista - e é esta
a sua fraqueza. O êxito do Partido Democrático em São Paulo:
razão disto. - II. Evolução dos partidos na Inglaterra e nos
Estados Unidos. Base social dos partidos: a., organizações de
cla.,ses.

Nunca verdadeira democracia, devem ter cola-


boração preponderante as classes ~conômicas, as
classes que produzem e que, afinal, são também
as classes que pagam: sem isto nãQ há democracia
possível.
Esta participação -das classes que produzem
nos negócios públicos não é, porém, a pa1·ticipação
individual que cada um dos elementos destas clas-
ses possa ter. Esta participação individual é a de
·qualquer cidadão, seja das classes que produzem,
'
138 Oliveira Vlana

seja das classes que não produzem. O que é ca•


pital para a democracia é a participação coletiuÕt
a participação destas classes como tais nos negó-
cios públicos, na atividade dos governos, na de-
terminação de suas diretrizes administrativas e po-
líticas (1).

Esta participação coletiva é a pedra de toque


de uma verdadeira organização democrática. Uma
democracia ~ó é realmente cugna ctéste nome quan,
do repousa, não na ativi<1a<1e dos seus c1cta<1aos,
aginao como tais, isto é, como indimduos; mas.
na atividade dos seus cidadãos agindo como mem-
bro desta ou daquela corporação, como parcelas
dt! um dado agrupamento, unidos pela consciência
de um interêsse comum, - de classe.
Ora, em nossa democracia, o que vemos é jus-
tamente o contrário disto: ela se baseia em indi-
viduos - e não em classes; em indivíduos disso-
ciados - e não em classes organizadas; e todo mal
está nisto. E' uma democracia em estado atomis-

( 1) v. adiante: 0.s conselho.s técnico.s no.s governo.s moder-


,ios. V. também os meus Problemas de direito corporativo, Rio,
1938; - Problemas de direito sindical, Rio, 19-43 e - Novu dire-
:,i:es da política sodal, Rio, 1939,
Problemas de Política Objetiva 139

tico, como já o demonstramos uma vez - porque


em seu seio os cidadãos ~parecem como átomos .
despi;ovidos de afinidades eletivas capazes de os
lévàr a agregarem-se em organizações podero-
sas (2). Essa dissociação é devida a causas pro-
fundas, que residem, em parte, .na nossa própria
formação nacional (3) e, em parte, nas concepções
individualistas da Revolução Francesa, ainda do-
minantes infelizmente na mentalidade das nossas
elites dirigentes (4).
Essa preocupação, em que sempre estamos ,
depois da República, de constituir partidos políti-
cos é uma prova de que a ,n ossa democracia re-
presentativa sente os inconvenientes dêste estado
atomístico da sua estrutura e procura reagir, ten-
tando organizar centros poderosos de gravitação
e agregação. O .Partido Democrático, recém-cons-
tituído, é um sintoma desta reação.
Mas, o Partido Democrático labora num equí-
voco enorme, que é, aliás, o equívoco em que têm
incidido tôdas as tentativas de organização parti-
dária em nosso país, desde o Primeiro lmpério.
E' julgar possível a organização de um partido -
partido que não seja um bando, agitando-se em
tôrno de ~m homem, de um caudilho - sem a pre-
1 liminar organização das classes econômicas, d~
classes que prod~em e contribuem (5).
140 Oliveira Viana

'.tste é o seu grande equivoco e também a ra-


zão íntima, que explicará o seu fraca!!SO inevitável.
• I
Porque um partido político, numa sociedade em
que ainda não conseguiu operar a organização das
suas classes ·e conômicas, não pode deixar de ser
senão uma organização artificial, tão artificial co-
mo as organizações que a precederam e, como tal,
destinada, mais tarde ou mais cedo, ou a disso1- ·
ver-se, ou a desviar-se dos seus objetivos superiores.
Com uma mentalidade que, no fundo, é per-
feitamente igual a dos outros partidos anteriores,
o Partido Democrático está concentrando tôdas as
suas preocupações sôbre questões puramente elei-
·torais; quando a grande verdade é que, se há um
objetivo central para êste partido - objetivo que
lhe poderá assegurar a vitória e a estabilidade e
que deve ser a razão de tôda a sua atividade -
iste objetivo não deve ser outro senão êste, que até
y,
agora não parece ter-lhe preocupado nada: atacar \
afundo o problema da organização das nos.,a,s clas-
ses produtoras e do desenvolvimento do seu esp{.
rito de solidan'edade e cooperação no campo eco-
nômico (6).
Por que? Porque êste espírito de solidarieda-
de e cooperação nn campo econômico, trabalhado
hàbilmente, acabaria transmudando-se, com faci-
lidade, em espírito de cooperação e solidariedade
no campo político. O partido teria então os seu11
Problemas de Polltica Objetiva tt,.1

pontos de apóio, ·o u melhor, os seus ·p ontos de pega


na própria estrutura social.
E' certo que poderão alegar o êxito relativo
do Partido Democrático em São Paulo. O que ex.
plica, porém, êste êxito é a própria organização da
sociedade paulista. Há ali já um comêço de or-
ganização de classes econômicas, isto é, as chtsses
produtoras, urbanas e rurais, estão adquirindo -e
desenvolvendo cada vez mais a consciência doa
seus interêsses de classe e, levadas pela necessi.
dade de defendê-los, se vão insinuando nas esfe,
ras do poder e da administração. E' nisto que está
a razão de ser do êxito relativo do Partido Demo-
crático em São Paulo. E' também a falta disto
que explicp o seu insucesso em , outros pontos do
pais.
II ,

Nos grandes povos modernos, é tendênciai


aliás, dos partidos despojarem-se cada vez mais do
seu imponente enquadramento tradicional - e tor-
narem-se partidos de classes. Os seus programas
representam ·p rincipalmente os interêsses das clas-
ses em que se 91ooiam - e não própriamente prin-
cipiQs gerais de doutrina política (7).
E' o que está acontecendo com os partidos in-
gleses e americanos. Os livros de André Siegfried
sôbre os dois grandes povos anglo-saxônios nos dei•
142 Oliveira Viana

xam ver claramente como tem sido pronta, ,nestes


últimos anos, a adaptação de cada um dêles, prin-
cipalmente os da direita, às modificações no qua-
1
dro das classes sociais, às flutuações dos interêsse11
~
destas classes e às transformações da sua estru,
tura (8).
O nosso povo não está, pois, pelo estado dt
t
desorganização das suas classes económicas, pre-
t'·' / parado para assegurar condições de viabilidade a
organizações partidárias com programas gerais, de
caráter não pessoal. Mesmo que elas consigam es-
',, tender--se por todo o pais, será difícil, senão im•
,.
possível, evitar que os seus centros regionais de
•,: direção fujam ao determi,nismo do meio local, que
acabará impelindo-os para campo das amhiçõea
personalistas.
Esta evolução ou involução personalista é uma
tendência fatal, que não poderá ser evitada, salvo
se -êstes centros regionais encontrarem para base
de apôio sólidas organizações locais de classes, já
preexistentes e já educadas no hábito de defender
os seus interêsses de classes junto ao Poder.
Sem esta base de apôio - que é social e não
politica - tôdas essas tentativas que estão sendo
feitas aqui de organização de partidos impessoais
ou anti-personalistas não passarão, por enquanto,
de simples agitações de superfície, brilhantes, mas
efêmeras - _como tantas que se têm operado em
nossa história.
. r

Problemas de Politica Objetiva :f.t.3

(2) Cfr. - O Idealismo da Constituição, cap. VI e XI.


(3) Cfr. Populaç~u meridionais do Brasil, cap. VIII, IX
XV; Problemas de direito sindic;al, prefácio.
(i) v. - O idealismo da Constituição, cap. I: O primado
do Poder Moderador. Cfr. Laskl (H.) - El liberalismo euro-
peu, l'rad. V. Miguelez, México, 1939; Orton (C.) - The atomic
tlieorg of aocietg ( "American Political Science Review'', 1930)
(S) Como observava o prof. Walter Sandelius, referindo-,e
la sociedades modernas, é fato que "os grupos econôml(:os que
as compõem se estão transformando cada vez m!lis em grupos po•
líticos": - "Not only avowedly political groups, such as politi-
cal partles, but also what are ostensibly economlc groups, belong
largely and increasingly ln the category of political organlzatlon
(- National sovereignity versus the rule of law - in "American
Polltical Science Review", 1931. pâg. 17). Tanto na Inglaterra,
como nos Estados Unidos - continua o prof. Sandelius - se está
generalizando a opinião de que a "democracia política, seperada
t!a democracia econômica, significa pouca coisa, pouco mais do
que o direito formal de lançar um voto na urna, voto que nllo
raro é vendido a baixo preçoº.
Numa Investigação recente da Comissão de Pesquisas Social,
da Universidade de Chicago, realizada pelo prof. Harold GosnelL
esta tendência foi constatada, pelo menos para os Estados Unidos.
Gosnell encontrou, nos partidos americanos, uma tendência para
as divisões segundo critérios econômicos e sociais ( "parties divided
more on economic and classe lines") e observa: - "The De-
mocratic party is becoming the party of tre lower lncom1: groups
, - the organized industrial workers, and the beneflclarles of the
relief, farm, houslng, lending and others programs of natlonal
government. The Republican party, on the other hand, Is tendlng
to become a party of the higher lncome groups - the buslness-
men, the professional classes, whlte~collar woekers, and the lnde-
pendent farmers who have not felt that they have benefited from
the farm programs" (Gosnell, H. - Grass root politics, Washing-
ton, 1942, pág. 128-129). Um livro recente do prof. Robert Brady.
da Universidade de Colúmbia (- Business as a system of power,
N . York, 1943) deixa, aliás, à mostra, com nitidez e abundante
documentação, a poderosa estruturação a que chegaram as classes
econômicas e produtoras nas grandes nações industrializadas mo-
dernas, como também o seu crescente e decisivo papel ua admi·
144 Oliveira Viana

n!stração e no govêrno destas Nações. Donde esta conclu\ffo: -


em face da realidade brasileira atual, pretendermos reviver, aqui,
hoje, nesta altura da nossa 0rganização social, partidos de bases
meramente doutrinárias e Ideológicas (tipo omnibus ou "Imortais
prlnclplos"), desagregados da noosa estrutura econõml-:3, fun•
clonando acima dela e abstraindo Inteiramente das suas dlvl•õe1
naturais, seria certamente desconhecer o sinal dos tempos, seria
um puro anacronismo. Qualquer coisa como se tent.:issemos rt.S•
taurar as cavalhadas e o entrudo. Com esta dlfen:.i;,J: as ca•
valhadas e o entrudo seriam coisas Inocentes e, mesmo, recreativas;
ao passo que com esta espécie de partidos não ocorreria a mesma
coisa ...
(6) v. nota (S) E também - O Idealismo da Corutitut-
ç4o, cap. XXI.
(7) v. nota (5).
(8) Cfr. Siegfried (A.) - L'Angleterre áaujourd hui, 1924,
cap. VI; - Les S tats-Unis d'aujourd'hui, 1929, cap. XVIU,
XXII. Para a Europa central e oriental: v. "American PollticaJ
Sclence Review", 19i3, pág, 889 sq.
CAPtTULO IX

ORIENTAÇÃO PRAGMATICA DAS CAMPANHAS


DEMOCR.4TICAS

SuMÃRJ0: - I. Pequena hlstõrla das campanhas democrã•


ttcas. Razão de Insucesso delas. - II. Organização dos par•
tidos no Brasil: mentalidade das nossas classes populares. O
esplrlto do clã e enquadramento dos partidos. :... III. Orgaril•
zação c:los partidos na Inglaterra. Educação das classes popu-
lares Inglesas. Uma observação de Descamps. - IV. Organi-
zação dos partidos nos Estados Unidos: o papel das "mãqulnas",
segundo Siegfried. - V. Cotêjo entre as organizações partidá-
rias anglo-saxõnicas e as nossas organizações: razão da ineftcl~n-
c1a das campanhas de propaganda entre nós. - VI. Utilidade
destas campanhas: desintegração do espírito de clã. Exemplo nos
Estados Unidos: a ação de Jefferson. - VII. Outra utilldacic
destas campanhas: desintegração do espírito de clã. Exemplo nos
e os '·conselhos de aldeia". O valor das organizações locais:
a Importância delas na Rússia Soviética. - VIII. Núcleos de
solidariedade profissional: necessidade do seu desenvolvimento.
O que as "caravanas" podem fazer.

Em 1910, quando candidato à presidência da


República, em concorrência com o Marechal Her•
146 Oliveira Viana ·

mes da Fonseca, Rui Barbosa ofereceu ao Brasil


o espetáculo inédito de uma campanha eleitora]
feita, não no velho sentido brasileiro -- de cabala
de campanário; mas, no bom sentido america.l.io -
pela predicação direta e oral, expondo às grandes
influêncías eleitorais do interior as suas idéias e
os seus planos de govêrno.
Rui, orador prodigioso, pertencia àquela an-
tiga escola '·de bovarismo político, que vem inspi-
rando as nossas atividades partidárias desde o pri•
meiro dia da Independência. Era em política o
que Graham W allas chama um "intelectualista":
acreditava na fôrça lógica do raciocínio e da dia-
lética como agentes determinantes da conduta dru
multidões e pedia ao primitivismo e à instintivi-
dade das massas populares o que a psicologia po-
lítica contemporânea, que l·ê Freud e Jung, reco
nhece que elas não podem dar (1).
Em 1914, inspiradas no exemplo de Rui, as-
sistimos DQ Estado do Rio, objetivando os mesmos
propósitos democráticos, a duas campanhas ' para-
.... lelas, em que vimos, de um lado, o ex-presidente
Nilo Peçanha e, de outro, o senador Feliciano So-
( 1) Cfr. Graham Wallas - Human nature ln politic:s, Lon•
dres, 1924; Robert Michels - Les partis politiques, Par:s, 1910;
Walter Lippmann -;-- Public Opinion, N. Y., 1922; - The phan•
tom Public, N . Y. 1930; Charles Merriam - New aspects oi
politics, Chicago, 1925; - Systematic politics, Chigado, 1945;
Kimball Youug - Source-book for social psycologigJJ, N. Y., 1927,
cap. X-XXVII.
• Problemas de Politica Objetiva 147 .

dré, que haveria, mais tarde, de vir a presidir o


Estado.
Depois, ·em 1918, Rui volt~u de novo à arena
em nova campanha pela presidência federal, tendo
corno adversário o senador Epitácio Pessoa.
Ern seguida, em 1922, Nilo Peçanha, que até
então se estreara numa campanha de âmbito res-
trito, abalança-se a movimento de maior amplitu-
de e percorre os Estados do Sul e do Norte, dis-
cursando como "candidato das fôrças populares da
Nação" contra o "ca,n didato das oligarquias domi-
nantes''.
Por fim, já nestes últimos anos, excursões
(''caravanas") dos elementos mais idealistas e
combativos do Partido Democrático têm procura•
do agitar em favor das suas idéias os grupos elei-
torais do interior.
E' esta, em resumo, a pequena história das
campanhas democráticas, de molde e estilo anglo-
saxônio, no Brasil. Do movimento inicial de Rui
às últimas "caravanas" democráticas, há o espaço
de quase vinte anos. E' já alguma coisa conside-
i·ável, se ponderarmos que igual espaço de tempo
llledeou entre o manifesto republicano de 70 e a
Proclamação da República em 89. · Entretanto,
não nos parece que tenhamos andado muito. De,.'
ve haver uma causa qualquer, intima, profunda,
que contribui para tornar ineficiente todo êste pa,
148 Oliveira Viana
triótico esfôrço de tantos batalhadores generosos.
Não nos iludamos: o fracasso destas propii-
gandas, dêstes apostolados, destas regenerações ci•
vicas tem sua origem no desconhecimento de todos
êstes evangelizadores das condições reais dentro
das quais evolµi a vida das organizações partidá- .,
rias no Brasil. 1
u'
Realmente. Só os que não conhecem os cos.
tumes das nossas populações do interior, a sua dis.
tribuição em grupos partidários perfeitamente f e-
chados, os seus instintos radicados de gregarismo
o personalismo, julgara que elas se venhílm .~ colo-
car na atitude de juízes ante a predicação do<, can-
didatos e acabem, depois, por decidir-se por êste
ou por aquêle, consoante ao programa dêste ou
daquele.
Em boa verdade, essas propagandas não adian•
tam um passo à conquista de votos. tstes já se
acham dados, com uma antecipação só explicável
pela fôrça mesma dêsse determinismo, que regula
o ritmo à vida eleitoral do nosso povo. Os votos,
que hão de caber a um dos candidatos, lhe serão
dados com ou sem propaganda; os que devem su.
fragar o outro candidato a êle virão matemàtica.
mente, independentemente de qualquer exposição
de programa.
Esta atitude de refratariedade às sugestões da
dialética doutrinária deriva dêste fato particular
Problemas de Polltica Objetiva 14/)

ao nosso grupo nacional - de que a organização


dos partidos se faz entre nos sob aquilo que em
riP.ncia social se costuma chamar - o "sistema de
clã". Nas nossas zonas rurais, por exemplo, as
populações se dividem e ahandeiram em tôrno de
um certo número de chefes e lhes dão o seu apóio,
expresso numa obediência incondicional, sem se
preocuparem em absoluto com as idéias que êstes
chefes encarnam ou representam. O que elas
apoiam, o que elas vêem, o que elas aceitam é a
pessoa dos chefes; pouco se lhes dá o programa
por que se batem êles.
Os que conhecem as nossas gentes matutas sa-
. hem que o "vira-casaca" entre elas não é o homem
que muda de idéias ou mesmo de partido; mas,
o que muda de chefe local. Esta fidelidade ao
chefe local é uma sorte de devoção entre os nossos
campônios, tão sólida que se faz, às vêzes, heredi-
tária, passando de pais a filhos, como entre os an- '
tigos o culto do nume larário. Essa lealdade, as-
sim sempre vigilante e constante, é para êles um
pundonor vivíssimo: aquêle que falta a êsse dever
'de honra e prende-se a outro chefe, adversário do
primeiro, desclassifica-se, em regra, no seio da-
quelas almas primitivas. Em hipótese alguma, um
homem do campo deixará o seu chefe tradicional
para passar para outro, simplesmente por que êsse
outro tem idéias mais belas ou patrióticas do que
. o primeiro. Mesmo porque, nos nossos meios r11·
150 Oliveira Viana
rais, esta justificação da nova conduta não seria
aceita -como razoável e bastante.
Em sociedades como estas, assim organizadas
sob o princípio da poJitica de clã, campanhas elei:·
torais, em que se procure grangear votos por n1eio
do grangeio de convicções, não dão resultados prá-
ticos - e são ineficientes. Os quadros partidários
são ali imutáveis e fixos; por maior que seja a
sedução oratória dos candidatos, nenhum · dêles
conseguirá modificá-los um ápice na sua estabili.
dade. Os nossos homens de interior costumam
apoiar homens - e nã.p programa,: pessoas - e
não ideias.
III
Campanhas e propagandas com intuitos elei-
torais só se justificam entre povos, cuja organiza.
ção partidária não é o clã pessoal, ou em que o
instinto gregário está ausente do caráter das maio,
rias populares.
E' o caso dos grupos anglo-saxônicos. Na
América ou na Inglaterra, logo abaixo das classes
propriamente políticas e dirigentes, enquadradas
nas grandes divisões partidárias tradicionais -
"conservadores", "liberais" et
trabalhistas", na In-
glaterra; "republicanos" e "democráticos", na
América - existe uma vasta, uma enorme massa
eleitoral, o Povo enfim, o verdadeiro Povo sobe-
rano e livre, que não tem propriamente nenhuma
· qualificação partidárfa antecipada. Isto é, não
Problemas de Politica Objetiva "151

tem propriamente partido efetivo e permanente;


vota• e elege segundo o seu alvedrio ou segundo a
. sedução momentânea exercida por esta ou aquela
idéia, por êste ou aquêle programa, por esta ou
aquela bandeira, estrepitosamente desdobrada, du-
rante as grandes campanhas eleitorais, pelos pre-
tendentes e pelos responsáveis, pelos "leaders" e
pelos "bosses" dos grandes partidos (2).
Esta massa, ,não presa aos liames estáveis doe
partidos, é ali a base do corpo sufragante, a sua
maioria. No campo político, a sua liberdade de
ação é completa; ela flutua e oscila conforme as
atrações partidárias se façam sentir mais energi-
camente num ou noutro sentido. Os candidatos
se dirigem a ela com o fim de sugestioná-la e ali- ·
ciá-la para o seu lado com o engôdo de uma re.
forma; de um melhoramento, de uma renovação
social ou politica.
E' o que se vê na Inglaterra. E' o que se vê
nos Estados Unidos.
Na Inglaterra, por exemplo. Para ter-se uma
idéia clara do que seja o povo, a massa popular
da Inglaterra, basta recordar aqui uma observação
muito expressiva de Paul Descamps (3). Estu.
dando a estrutura da sociedade rural da lnglater-
(2) v. Bryce (J.) - La Republique Amérlcalne, trad. de
Chavegrin, Paris, 901, v. II: Taine (H.) - Notes sur l'Angleter,
..e, cap. V.
(3) Descamps (P.) - La fonnatlon &Odale _de l'Anglalf>
moderne, Paria, 1914, pâg. 305.
152 Oliveira Viana
ra, Descamps nos descreve as relações de ordem
política e eleitoral existentes entre os grande!i pro-
prietários territoriais (lords) e os seus operários
agrícolas.
tstes operários são trabalhadores salariados,
aradores, ceifadores, etc., que vivem na imediata
dependência daqueles proprietários da terra. Es-
tão para êstes na mesma situação dos nossos Jecas
puxadores de enxada para com os fazendeiros ou
senhores de engenho. Representam a plebe rural
inglesa - a plebe dos que, nos campos, não têm
terras, dos que moram em terras alheias, depen-
dentíssimos, portanto, dos que possuem terras.
Esta dependência, entretanto, que aqui é ab1
soluta_ é lá, apesar de tudo, muito relativa. Pelo
menos, em matéria de convicções políticas e de li-
berdade de voto. Neste particular, o homem do
povo na Inglaterra, mesmo o proletário dos cam-
pos, frui uma independência, que é difícil ser com-
preendida aqui, nesta democracia de "coronéis"
que mandam e "eleitores de cabresto" que obe-
decem.
tstes salariados agrícolas, êstes "dependentes"
começam por ter, como todo o inglês, convicções
definidas sôbre os grandes problemas econômicos
e politicos do seu pais.
Descamps conta-nos então - e ai é que está
o interêsse da sua observação - a conversa que
teve com um grande proprietário territorial, um
Ploblemas de Polltica Objetiva 153

tal Mr. Brown, sôbre o programa protecionista com


que os grandes líderes conservadores estavam agt
tando, por aquela ocasião, por meio de intensa
propaganda, os meios rurais do pais:
- "Os meus homens (salariados, aradores, cei-
feiros, etc.) - diz Mr. Brown - não estão por isto.
São livres cambistas e conserv.am-se fiéis às suas
convicções. Vieram a mim, seu proprietário e pa.
trão, para declararem que terão muito prazer em
dar-me os seus votos; mas, com uma condição -
que eu não me meta nestas coisas de protecionis-
mo e protecionistas; do contrário, nada; nem um
só voto".
E' -e sta a mentalidade polítfoa, não já da aris-
tocracia inglesa, não já da burguesia inglesa, mas
da própria plebe inglesa na sua expressão menos
culta, que é a plebe dos campos. :tstes campone.
ses, pobres trabalhadores braçais, rudes maneja-
dores de arado, conseguem realizar esta coisa sur·
preendente: ter idéias assentadas, "convicções fir-
mes", sôbre questões de protecionismo, livre cam,
bismo, etc. - coisa que não acontece a muito depu-
tado ou senador do Brasil. E sustentá-las, e afir-
má-las no campo eleitoral contra os seus próprios
chefes naturais - coisa que também não acontece
a muito deputado ou senador do Brasil.

IV
.Nos Estados Unidos, o que ,se passa não é coisq

·-
154 Oliveira Viana •
diferente. O grosso da massa eleitoral não está
organizado dentro de quadros partidários -rijos, à
• maneira nossa. Tem, ao contrário, uma liberda-
de de movimentos, que para nós é pouco com.
preensivel.. E' a ela que os "politioos" ("poli ti,
cians") dirigem-se, pondo-se à sua descrição para
-servi-la nas suas aspirações, nos seus interêsses.
nos seus ideais: quando a procuram em pro pa·
ganda, êles não lhes levam idéia,s, a que ela deva
dar a sua adesão; ela é que ,impõe a êles as suas
· idéias. Porque, ali as "máquinas" ("partidos",
como chamamos aqui) exercem um papel pura-
mente passivo: são simples "aparelhos registrado-
res" - como observa André Siegfried, num dos
seus notáveis livros:
- "Os partidos, as "máquinas" - diz êle -
não são senão mecanismos sem inieiativa e sem
vida, com o objetivo da conquista do poder: o
seu funcionamento permanece incompreensível se
não levarmos em conta o fato de que êles são es-
tritamente passivos, destituídos de tôda aptidão,
mesmo de tôda vontade criadora e comparáveis a
u·m aparêlho registrador,. (4).
Os grupos sociais, que visam objetivos idea-
listas ou de classe - os "comités", as "ligas", as
"associações", etc. -quando se utilisam dêstes par-
tidos ("maquinas") e dos políticos profissionais
(4) Slegrled (A.) - Les Stats-Unis d'au/ourd'hul, Paria,
1928, pág. 2H,
Problemas de Polfiica Objetiva 155

("politicians", "bosses"), os utilisam apenas para


fazer vingarem suas idéias, aspirações ou interês-
ses; mas, de modo algum se prendem a êstes "políti·
cos''. de modo algum se incorporam às suas "má·
quinas":
- "On s'adresse donc au parti, à son orga-
nization profissionelle, à son personnel spécialisé,
comme on aurait recours à une banque ou à une
compagnt,e de transports. Les apôtres font avec
lui des contracts (sic) pour la réalisation de leur
ideal, mais ils ne lui donnent pas leur à.me" (5),

(S) Siegfried (A.) - ob. cit. pâg. 2-H. E também Hello


Lobo - A passo de gigante, Rio, 1925, pág. 302. Cfr. Odegard
(P.) - Pressure politics ( The history of the Anti-Saloon Leaguc),
N. Y. pág. 1928. Como se vê de Odegard, da parte destas asso-
ciações, ligas, sindicatos. sociedades, etc., a que os "pollticlans ·
se dirigem , solicitando votos, e com que entram em conchavo ou
fazem o "contrato", a que se refere Siegfried, hâ um verdadeiro
prontuário organizado, uma espécie de fichário, por onde as dl·
retorias destas associações podem verificar a Idoneidade dêste1
"pollticlans" para o cumprimento das promessas assumidas com
elas durante a campanha eleitoral. Cada um dêles tem uma fi,
cha própria, onde são anotados os seus antecedentes, a sua ma!o1
ou menor correção no desempenho dos compromissos assumido!·
e alterações de condutas ocorridas eventualmente ou posteriormente
ao "contrato" . . Se não cumprem o prometido, são "marcados";
nas eleições imediatas já não terão mais os votos dos sócios da
assoc iação, liga, ou sindicato iludido. Pode-se imaginar o que
isto significará para um candidato a deputado, senador, governa-
dor ou mesmo presidente da República, se a · assolação ludibriada
é uma poderosa corporação, conio, por exemplo, a American Fe,
deration of Labor, com os seus milhões de associados. . . O plot
é que estas fichas são espalhadas por dezenas de milh1res, em
folhetos, por todo o distrito ou circunscrição eleitoral do candl·
dato, pelas Igrejas, pelos lugares públicos, por cartas, etc,; -
156 Oliveira Viana •,

Compreende-se agora o papel das campanhas


eleitorais nestes países. os trezentos e oitenta e cin-
co discursos de Roosevelt ou a~ peregrinações de
Asquith ou de Lloyd George. O que se procura
por êsse meio é "fixar·•, por um instante, no cam- '
po eleitoral essa maioria flutuante de sufrágios,
prendê-la provisoriamente, para os efeitos eleito-
rais, às "máquinas" (partidos) em luta. Reali-
zadas as eleições. essa maioria flutuante se des-
prende. se liberta e adquire novamente a sua mo-
bihdade e a sua independência; até que outra cam- -
panha venha renovar, mais uma vez, no seu seio
êsse trabalho sisífico de polarização e fixação de
suf~ágios.
Entre nós, entre nossas pÔpulações rurais
principalmente. não existe essa maioria flutuante
e móbil, que é o elemento dinâmico nos comicios
eleitorais dos povos anglo-saxônios (6). Os qua•
dros partidários aqui, dentro .dos quais a classe pro,
priamente política se classifica e imobiliza, esten-
dem-se a tôdas as camadas da população, abran,
gendo-as e compreendendo-as inteiramente.
Não ae faz nenhuma pressão no aentldo de ditar 1lo eleitor como ,
deva votar, observa Odegard; ma.,, a ficha do candidato remetida
deixa pouca margem à duvida sõbre como ele deva lançar na
uma a sua cédula" (pág. 93).

(6) v. Lipman - The phantom Public, cap. X, XI e XIL


{
',

Problema, de Politica Objetiva 157

Estas se acham, poc isso, antes mesmo do pe,


riodo eleitoral, em virtude de possante organiza,
ção dos clãs (partidos), já fixadas ou imobilizadas
em facções de caráter pessoal, tôdas elas solida-
rizadas sob a direção comum de um grande chefe
central ou estadual.
Só a palavra dêste chefe é que poderá fazer
esta vasta solidariedade variar num sentido ou
noutro, em favor dês te ou daquele programa. Ne.
nhum propagandista, por mais disserto ou eloquen-
te, conseguirá, sem o placet dêste chefe, desagregar
dêste bloco coeso o menor fragmento, a mais leve
partícula - só pela fôrça exclusiva de sua elo•
quência ou de sua doutrina.
O instinto de fidelidade pessoal, o preconceito
da lealdade aos chefes é muito vivo no caráter de
todos êsses homens; de modo algum êles se dei-
xarão arrastar pela fôrça abstrata e invisível das
idéias. tles só abandonam os seus chefes tradi·
cionais por motivos também pessoais, quando ês..
tes não os "recomendam" bastante, ou não os "pro-
tegem" ·suficientemente, ou não os atendem com
solicitude nas suas exigências e caprichos de "in,
fluências" locais; quer dizer, quando faltam, na
reciprocidade a que se obrigam, ao dever de leal- ·
dade para com êles. Só nesta hipótese as deser-
cões entre êles são honestamente justificáveis (7) .
(7) Cfr. Pilenco -
.
Le, moeur1 da auffrage uni11ersel en
Prance, Paria, 1930.
158 Oliveira Viana

Em suma: num meio ~orno êste, propagandas


ou "caravanas" como as que, há cêrca de vinte
anos, se vêm fazendo pelo nosso interior, podem
ter o fito de conquistar votos ou abalar, massas
eleitorais; mas, realmente, não conquistam, nem
abalam nada.

VI
Estas campanhas, estas caravanas, se nada va.
lem para o objetivo imediato da conquista de vo-
tos, não devem, entretanto, ser consideradas como
movimentos de puro idealismo, vistosos, teatrais,
mas inúteis, sem nenhuma utilidade prática.
Em primeiro lugar, conduzidas com per8_istên.
cià, continuidade, tato, elas acabarão por ter sôhre
as nossas massas do interior uma influência bene-
fíca: acabarão por desintegrar e dissociar - len•
tissimarnente, já se vê - os elementos desta tra-
dicional mentalidade'de clã acima descritos. ~stes
homens acabarão compreendendo, afinal, por uma
dilatação insensível do seu horizonte intelectual,
que, acima ou ao lado do seu tradicional apôio
pessoal a um chefe, a um caudilho, a um homem,
há outras coisas também dignas de apôio e que
podem também dividir os homens: idéias, progra-
mas, compromissos, planos Qe govêrno e de admi-
nistração. E sentir-se-ão naturalmente maiores,
mais confiantes,· mais seguros de si mesmos e dll
Problemas de Politica Objetiva 159

sua importância e viverão, destarte, uma vida mo-


ral mais alta e mais digna do quel a que tem vivido
até agora, sob aquela "fidelidade animal", de que
fala Ta-ine (8).
Nos Estados Unidos, deu-se coisa semelhante.
Nos primórdios da sua organização política, tam-
bém· as classes populares estavam num estado
mental comparável às nossas: também presas à
lógica da "fidelidade animal"; também incultas;
também sem consciência da sua fôrça; também
alheias aos verdadeiros problemas nacionais.
Foram os grandes chefes democráticos, capi-
( 8) "Quando um profissional do crime - diz Noraldlno
Lima. falando dos Jagunços do São Francisco - resolve passar
com armas e bagagens para o adversârlo, ou porque este lhe
;:,açia mais. ou porque o aborreceu, realisa o seu Intento de modo
categorlco, mais legal: procura o antigo patrão e diz-lhe entre-
gando-lhe a a rma : - "Vancê tem agora um homem de menosw.
A carabina é o traço de união entre o Jagunço e
o chefe; fer ido, si o ferimento não é grave, de modo a lmpos.,1-
bllltar•lhe os movimentos, a carabineiro monta a cavallo ou
arrasta-se até Junto do patrão a entregar-lhe a arma, Feito Isto,
pode expltar tranqul1fo e a morte J4 não o apanha deshonrado,
nem dimlnuldo'' (- No valle du maravilhas, Bello Horizonte,
1926. pg. 129-130) .
Este timbre de honra não é peculiar ao sertanejo, ,, popu•
lações varonis dos altos sertões. E' um traço geral, que encon-
tramos em todas as populações ruraes brasileiras, sejam as dos
altos sertões, sejam as das zonas agrarlas, sejam as das zonas
pastoris do extremo-sul. E' ponto que estudo exaustivamente na
minha Metodologia do direito publico no Brazil (no prelo) .
Cfr. Koster - Viagem ao Nordeste do Brazll (Brasiliana) ,
São Paulo, 1942, pg. 292; Saint-Hilaire - V iagem pelo distrido
diamantino (Braziliana), São Paulo, , 1941 , pg . 234 : Burton -
Vi~em aos planaltos do Brazil, (Braziliana. 1941. l, pq. 144) . .
160 Oliveira Viana

taneados pelo romantismo de Jefferson, que as &r·


rancaram desta fidelidad e; que as instruíram nos
seus aeveres; que llies 1ncullram a 0011sc1encia (la
sua J:é>1·ça; que lhes abriram o conhecimento dos
problemas nacionais:
- "O primeiro mérito que cabe a Jefferson e
ao partido democrático - diz .F arrand - foi COJl•
vencer o homem ele oondiçao wter1or que êle tinha
o c1lre1to de votar contrariamente aos desejos <Ül·
que1es que eram cons1d.erados superiores; mas, P8·
ra isto toi, preciso prrmeirwnente vencer-lhe a .igno-
rância e a ml111ereuça; pois a ma1oria do povo
ignorava totalmente os problemas políticos e mes·
mo com êle se preocupava muito pouco" (9).
Jefferson e seus companheiros tinham diante
de si maiorias populares que, apesar de incultas,
pertenciam à melhor cêpa anglo-saxônia e conser•
vavam, em estado potencial, essa maravilhosa apti·
dão para o self-governrnent, própria dos anglo-sa•
xões. Os democratas americanos não fizeram se-
não desenvolver e sistematizar estas capacidades
latentes das massas populares do seu país. Por
outro lado, êles agiam sôbre homens, cuja liber•
dade civil estava plenamente assegurada pela san•
tidade inviolável da common law: - e é nisto, e
(9) Parrand (Max) - Les Etats-Unis; la formation his-
torlque de la nation américanine, Paris, 1919, pág. 80.
Problemas de Polltica Objetiva 161

não noutra coisa, que estão o segrêdo e a base do
seu êxito.
No Brasil - onde o povo está representado
principalmente por enormes massas rurais, incul-
tas, dispersas e, o que é pior, desamparadas quase
inteiramente de garantias legais, massas que só elas
-constituem talvez os ¾ do corpo eleitoral do pais;
no Brasil, esta transformação será incomp:H'ttvel-
mente mais demorada, mais difícil, mais trabalho-
sa. Não é obra para uma campanha ou uma e:,-cur-
são oratória; não é obra de frutificação e _coJ¾eita
imediatas; é semeadura para alguns, para mu líssi-
mos decênios laboriosos e que pede apóstolo, com
uma capacidade de espera própria de · pla1 1ado--
res de carvalho.

VII

Há, porém, outra utilidade nestas campanhas


"democráticas", já agora de utilidade imed ata e,
talvez, a sua maior utilidade - porque, ut 'idade
objetiva, prática, pragmática E' o centato Jireto
com os centros de vida local e com os seus elemen-
tos representativos; consequentemente, o e -inheci-
mento objetivo, que dêsse contato resultará ias ne·
cessidades materiais ou morais dêstes centr,-,. Tôda
a importância imediata destas caravanas e excur-
sões está neste ponto. O que elas devem visar
162 Oliveira Viana

principalmente é a obtenção, não de uo[;()s, ma$
dêsse conhecimento direto e experimental dos in-
terêsses e neces,idades das regiões percorridas.
Nas suas conferências de propaganda, quan-
do candidato à presidência da República, Wilson
preconizava, justamente para êsse fim, a revives·
cência dos ,a ntigos "conselhos de aldeia". :tle par-
tia do principio de que não há nenhum homem de
Estado, por mais bem informado que seja, capaz
de conhecer os interêsses do seu país na sua tota-
lidade:
- "Não há homem de Estado - dizia êle -
que conheça realmente o seu país em conjunto.
O que mais conviria à sua tarefa seria saber onde
buscar as informações necessárias para compreen.
dê-la, ao menos em parte, no momento em que
houvesse de abordar assuntos de tal complexida.
de. Nós temos necessidade de uma coisa: é revi.
ver o antigo conselho de aldeia" (10).
:tsses pequenos "conselhos dos homens bons.,
das localidades, que são wna das tradições ime-
moriais dos povos saxônios, serviriam, revividos_
ao govêrno como fontes informativas dos interês-
ses comunais. Dêles é que proviriam aos chefes
de govêrno e aos legisladores as sugestões mais
prudentes e concretas relativas à administração
local.

(10) Wilson (W.) - La nouvelle llbertl, Paris, 1913, pg. to-+•

.
.
Problemas de Politica Objetiva 163

Foi o que compreenderam inteligentemente os
dicigentes atuais da Rússia Soviética. Êles dão às
associações locais de: classe grande importância. O
espírito solidarista está sendo ali vigorosamente
estimulado pelos emissários vindos de Moscou. O
movimento cooperativista é intensíssimo nas ai.
deias. Cêrca de 25% da população rural da Rús-
sia, segundo Karl Borders, está presentemente sob
o regime cooperativista:
- "As sociedades cooperativas de produtores
e consumidores - diz êle - já fortes antes da Re-
volução, têm sido estimuladas e crescem vigorosa-
mente, abrangendo nos seus quadros mais de 25%
da população rural" (10).
Há atualmente cêrca de 20.000 dêsses grupos,
dessas "cooperativas", dessas "uniões", em suma,
dessas associações de classe. Elas, porém -- e é
isto que é preciso acentuar - não restringem · a
sua ação ao puro campo dos interêsses econômi-
cos; estendem-na também ao campo dos interêsses
públicos. São entidades vivazes, que intervêm na
administração local e influem nos comícios elei-
toraás. Princip~mente, sãío os órgãos mais ati-
vos de sugestões, reclamações, protestos, críticas
contra a ação administrativa do govêrno central.
Entretanto, tais incursões ao campo político da
parte destas comunidades e associações locais -
"cooperativas" de produtores e consumidores;
164 Oliveira Viana

"uniões" de operários agrícolas; "zemstvos" ad-


ministrativos - não são vistas com desdém .:>U
com irritação pelo govêrno de Mosc.ou. :tste, ao
contrário, é o primeiro a estimular, acolhendo-as
com boa sombra e provocando-as mesmo, as e:,r:,
pansões críticas feitas por êstes g.cupos locais às
iniciativas partidas do centro: em vez de repri,
mi-las e castigá-las, o govêrno de Moscou as en-
coraja ...
Esta atitude não deixa de ser surpreendente
num regime ditatorial como o da Rússia ( 11) Mas,
Borders nos esclarece que a razão desta atitude
do ditador moscovita é que êle sente que o seu
poder, o seu prestigio, a sua eficiência adminis-
trativa, em vez de diminuir, aumenta com esta par-
ticipação crescente dos grupos locais na obra geral
do govêrno:
- "O incentivamento de tôdas Mlas partici-
pações locais no govêrno geral é, sem dúvida, ati-
tude singular numa ditadura - pondera êle; ma5r
é que talvez ela entenda que o seu poder aumen-
tará em fôrça com um entendimento e.1clarecido e
uma crescente participação dos centros locais na
atividade do govêrno central" (by an enlightened
understanding and an increasing pariicipation o/
lhe village in lhe larger affair~ o/ State).
(11) Borders (Karl) -Local autonomg ln russlan 11lllage
life under the Soviets ( ln "Amerlcan Journal of Sociology". 1929,
pág. 416) .
Problema& de Polltica Objetiva 165

VIII
'
Entre nós, êstes "conselhos de homens bons",
de que fala Wilson, pelas condições particulares
da nossa própria formação social não se puderam
constituir (13) - e estarão fora, ainda J>"l' muito
tempo, das possibilidades da nossa evolução poli,
tica: não vale a pena pensar nêles. Há, entretan-
to, probabilidades de que possam encontrar - à
maneira da Rússia - sucedâ,neos, de natureza qua-
se análoga nas associações locais de classe urbanas
e rurais: - Centros Industriais; Associações Co.
merciais; Sociedades Agrícolas; Sindicatos Agríco.
las ou Comerciais; Cooperativas Rurais de qual-
quer tipo.
Estas or~anizações de classe 'já existem em vá.
rias regiões cio pais; mas, evoluindo e progredindo
com uma lentidão incompatível com as tendência&
do mundo moderno, ou mais propriamente: com
as .nossas necessidades de adaptação às tendências
cio mundo moderno (14).
Ora, alta e fecunda missão seria para os pro,
pagandistas de "campanhas~ eleitorais e para os
(13) v. Populações Meridionais do Bruil cap. IX e XV.
(14) Cfr. Graham Wallas - Human nature in politics, Lon-
dres, 1924; Rol,ert Michels - Les partis politiques, Paris, 1910;
Walter L!ppmaan - Public , Opinion, N. Y., 1922; - Th e phan.•
tom Public, N. Y. 1930; Charles Merrlan - New sspects of
JJOlitics, Chicago. 1925; - Systematic politl~. Chicago, 19-4,;
Klmball Young - Source-book for social psycologlgy. N. Y., 1927.
cap. X-XXVII.
166 Oliveira Viana
oradores de "caravanas". políticas estimularem,
com a sua palavra e com seu esfôrço, a aparição
e o desenvolvimento destas instituições de solida-
riedade econômica e social em todos os lugares
do interior por onde deixassem os sinais das suas
sandálias. :t;!Ies teriam feito com isto, n, , sentido
da organização e da realização da democracia em
nosso país, principalmente de um "govêrno do povo
para o povo", obra infinitamente mais eficiente e
fecunda do que a que possa resultar da fôrça re-
generadora de mil discursos eloquentes.
E' o que que se verá nos quatro capítulos se-
guintes, consagrados ao estudo do papel que cabe
aos Conselhos técnicos nos governos modernos.
IV PARTE

O PROBLEMA DO GOVtRNO
Cap. X Os comelhoa técnicos nos governoa mo-
derno• (Evolução européia).
Cap. XI Os conselhos técnicos noa govemoa mo-
derno• (Inglaterra, França, Itália, etc.).
Cap. XII Oa cmi.elhoa técnic:oa noa govemoa mo-
derno. (Brasil).
Cap. Xlll: O. conaelho1 técidcot noe ,overnoa mo-
demos (Brasil).
~ ,. ,.. ,. >· .

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CAP1TULO X

OS CONSELHOS TtCNICOS NOS GOVERNOS


MODERNOS

SUM.l.Rro: - I. Da solidariedade das classes econõmlcm


como condição de sua fõrça polltlca: exemplos. Da cooperação
das classes econõmlcas com 08 poderes públicos: colaboração delw
na obra do govérno e da administração. - II, III e IV. EvoJ 11 •
çllo do mundo moderno n!ste sentido. O advento dos Conselho,i
Técnicoa e &onõmlcoe. Signlfkação poUUca dêate fato.

Em vários capítulos d• O Idealismo da Cons-


tituição, sustentamos a tese de que as noc:.sas clas-
ses sociais, especialmente as grandes classes eco-
nômicas, estavam no dever de se solidarizar em
grupos profissionais, se quisessem exercer o papel
que lhes ca~e nos conselhos do govêrno. Enquan-
to permanecessem nesta condição dispersiva, neste
"estado atomístico", em que estão, nenhuma in-
fluência poderiam ter sôbre os agentes do poder
170 Oliveira Viana

não só sôbre os que legislam, como principal-


mente sôbre os que administram. Era preciso que
elas se colocassem em condições de exercer sôbre
os poderes públicos - sôbre as Camaras locais,
sôbre as assembléias, sôbre o Congresso, sôbre os
órgãos executivos dos Municípios, dos Estados e
da Nação - uma forte ação moral, de natureza
compulsiva, à maneira daquela "pressure from
without" dos ingleses, pressão que é entre êles a
forma por que assinalam a f ôr.ç.a, a ascendência,
o predomínio dos interêsses coletivos, locais ou
· gerais, sôbre os órgãos do govêrno.
Esta "pressão", caracteristicamente democrá-
tica, entretanto, as várias classes sociais só a po- ,
<leriam exercer se aparecessem unidas diante do
poder, se conseguissem exprimir o seu pensamen-
to através de sólidas organizações de classes ou de
partidos. Porque os governos não vêem indiví-
duos: não se entendem com indivíduos; nunca' se
entenderam com indivíduos; nem hoje, nem on-
tem, nem em tempo algum; - e, sim, oom grupoe
ou class~. Ora, as classes só se fazem entender
dos ,g overnos, só influem sôbre os governos, só con-
quistam os governos quando organizada,. Tem
sido assim em todos os tempos, desde Roma e da
Grécia, desde os Egípcios, talvez mesmo desde os
homens de idade da pedra polida. . . A história
não é senão uma seriação de classes que se orga-
Problemas de Polltica Objetiva 171

nizam e se sucedem no Poder: Pareto o demons-


trou luminosamente (1).
Sem organização e sem espírito de cooperação.
as classes valem pouca coisa, valem pouco menos
que os indivíduos isolados: a fôrça de qualquer
classe, econômica ou não econômica, reside na sua
solidariedade. Fôrça moral; fôrça social; fôrç.a
política.
Esta fôrça depende tanto da solidariedade que
independe mesmo da riqueza: uma clas~e rica sr,m
orgaJtização vale menos, possui pràticamente me-
nos fôrça do que qualquer classe pobre organizada.
Temos mesmo entre nós exemplo disto: os traba-
lhadores de estiva, que são uma das classes mais
pobres do Brasil, onde quer que consigam organi-
zar-se em "Resistências", como no -Rio, represen-
tam uma fôrça mais temerosa do que a classe dos
grandes proprietários rurais, rica de centenas de
milhares ~ oontos, Jll8S desprovida de solidarie-
dade.
Estas organizações de classe, principalmente
das classes econômicas, especialmente das classes
produtoras, são úteis em qualquer sentido. Mes-

( 1) Pareto (V.) - Tra/té de ~clologle générsle, Paris.


1919, II, pág . 1285-1308; - e Farina - Compendio di &ociologia
generale, Milão, 1920, pâg. 36-4-371. Cfr. Kola binskala - La ct,.
culstlon de.s élite, en Prsnu, Lall5ailile, 1912: M uret ( M.) -
Grandeza de l& aristocracla3, trad. de Herna de Solar, Santia-
go, 1940.
172 Oliveira Viana
'

.
mo quando tais organizações não tenham esta fi.
nalidade combativa e militante, de pressão sôbre
o poder, ou de conquista do poder - à maneira
inglesa. Conservando-se o seu caráter meramente
profissional, .sem objetivos <le luta ou de conquis-
ta política, ainda assim estasiorganizações de classe
representam elementos preciosos para todos os ho-
mens de govêrno, que queiram servir à causa pú-
blica de modo eficiente : nestas organizações pro-
fi,sionais é que êles, sejam legisladore, ou sejam
administradores, encontram as f antes de informa-
ção mais seguras dos interêsses coletivos. ,Sem essa
colaboração de caráter técnico e profissional, tôda
a atividade administrativa ,arrisca-se a se tornar
negativa ou pouco eficiente, por inadequação ou
impropriedade das medidas aconselhadas ou exe-
cutadas.
Realmente, nada há que supra o conhecimen-
to do "técnico", do "prático•-..ou do "entendido do
negócio". Nenhum homem de Estadoj nenhum
administrador consciencioso, com o sentimento na-
tural das suas limitações, ,há hoje que ouse resolver
por Si só - por ciência· infusa, por palpite, por
intuição- os problemas relativos a nenhuma clas.
se, a mão ser a classe, a que êle realmente pertence.
Uma das grandes causas de falê,ncia de muita le-
gislação no Brasil ou da ineficiência de muita me-
dida administrativa está justamente que umas e
Problemas de Política Objetiva 17.'i

outras têm sido feitas sem essa prévia consulta às


classes interess~das, sem a audiência e o conselho
dos "profissionais", dos "técnicos", dos "práticos
no negócio" (2).
Citemos apenas um exemplo, e de casa. Na
história da nossa administração, o chamado Go-
vêrno Provisório da l.ª Republica foi um dos mais
ativos, aquêle em que a máqu'ina administrativa e
legislativa funcionou a todo vapor. LPgislou-se sô-
bre tudo; providenciou-se sôbre tudo; acelerada
mente, atropeladamente: ensino; indústria; arte;
comércio; agricultura; ciência; bancos; coloniza-
ção; crédito; instituições políticas; iw1tituições pe-
dagógicas; insfituições jurídicas; in~tH.uições eco-
nômicas: - tudo. No entanto, quando medimos o
resultado de tôda esta atividade delirante, o seu
rendimento em resultados práticos - o seu "ren-
dimento útil" - encontramos pouca coisa. Há
uma desproporção enorme, chocante, entre o mui- .
to que se f êz e o quase nada que se apurou de real,
de útil, de prático.
E' que os homens do Provisório eram bacha-
r-éis de talento (alguns mesmo de gênio) que legis-
laram sôbre agricultura, sem ouvir os agriculto,
res; sôbre indústria, sem ouvir os industriais; sô-
·bre o comércio, sem ouvir os comerciantes; sôbre

(2) Cfr. Merriam (Ch.) - New aspect, of polltlc1. Chica-


go, 1925.
174 Oliveira Viana

os bancos, sem ouvir os banqueiros; sôbre o en-


sino, sem ouvir os mesh"es; sôhre o direito, sem
ouvir os jurisconsultos, as congregações e os apli-
cadores da lei; sôbre cuisas da milítança, sem ou-
vir os estados-maiores. Está claro que só pode-
riam acertar por acaso - e foi precisamente o
que aoonteceu.
II

Esta mentalidade, que já dura cem anos, das


elites políticas do Brasil ainda não desapareceu.
No resto do mundo, porém, está quase extinta. Em
alguns países mesmo, como a Itália e a Rússia, de-
saparecpu completamente: - "Hoje o problema
do govêrno dos povos é um problema de direção
técnica" - disse Henri de Jouvenel. E disse uma
verdade destinada a universalizar-se, uma verdade
que o mundo inteiro está reconhecendo - e com
clareza cada vez maior (3).
Na Europa, mesmo naqueles países de elites
políticas mais cultas, na França, na Alemanha, na
Bélgica, na Itália, nenhum parlamento, como ne-
nhum homem de Estado, dispensam hoje a cola-
boração dos técnicos. dos profissionais. Os gover-

(3) v. Chardon (H.) - Le pouvoli- admini~i-atif, Paru,


1912, pág. 384-459. Cfr. Merriam - ob cit.; Lovell ( L.) -
L'opinion publique et /e gouvernement populaire, Paris, 192i,
cap. XVII, XVIII e XIX.
Problemas de Polltica Objetiva 175

· · nos sentiram-se na necessidade de atrai-los, de or,


ganizá-los em grupos, de colocá-los a seu lado, co-
mo órgãos de consultas e informações e, às vêzes
mesmo, com direito de iniciativa de certas medi-
das legislativas e administrativas.
Como observa Lautaud e Poudenx, num livro
recente, em que fazem a análise de todo êste mo-
vimento, essa tendência é, antes de tudo, uma ten-
dência post-bellum (4). E' uma consequência da
transformação operada pela guerra nas sociedades
européias, na sua vida econômica, na estrutura das
suas classes, nos seus sistemas de idéias políticas.
Diante da formidável subversão de valores por ela
produzida, os parlamentos, os governos, os homens
que formam as elites poli ticas foram forçados a
confessar as suas limitações, as suas insuficiências,
a sua incapacidade para resolverem, por si sós, os.
problemas da adaptação política e administrativa
daquelas sociedades à nova ordem de coisas, cria-
da pela conflagração universal.

III
Dai a rápida proliferação dessas corporações
de técnicos, de peritos, de profissionais que, com

( 4) Lataud et Poudenx - La représentation professionellc,


Paris, 1927. Cfr. Lindncr (E.) - E'tude sur les conseils écono-
mique3 dans les différents pays du monde. Genebra, 1932.
176 Oliveira Viana

o nome de ·Conselhos Econômicos, entraram, nes.:


, tes últimos anos, por tôda a Europa, a funcionar
'a o lado das antigas instituições parlamentares e a
colaborar com elas nessa obra de reajustamento
e adaptação.
Para exemplificar, basta citar o papel atribuí-
do aos Conselhos Econômicos na Alemanha e na
França. Na Alemanha, o Conselho Econômico Fe-
deral tem por função: - "colaborar na organização
econômica do país, na execução das leis de socia-
lização e dar pareceres sôbre os projetos de leis
essenciais em matéria de política econômica e so-
cial" (5). Na França, o Conselho Nacional Econô-
mico tem igualmente por incumbência; - "estu-
dar os problemas que interessam à vida econômi-
ca do pais, procurar as suas soluções e propor a
adoção destas soluções aos poderes públicos".
O ·m esmo, ou coisa análoga, acontece em ou-
tros países: na Itália; na Espanha; na Tcheco-Es- .•
lováquia; na Polônia; na Rússia.
Não se veja nisso um fato ocasional, transitó-
rio, uma organização de em ,! rgência, destinada a
desaparecer, logo que desapareçam as circun~tân-
cias excepcionais que lhe deram causa. ·Trata-se
de coisa mais séria. Trata-se de urna remodela_.
,
·1,
(5) Constituição do Relch Alemão de 1919, art. 165 (ln ,
Mlrkine-Guetzevltch - Lu con.stitution., de L'Europe Nou1Jel-
le, ,1930).
Problemas de Polltica Objetiva 177

ção geral das instituições que compunham até en,


1 tão os aparelhos do ,govêrno nas democracias con-
temporâneas. Um homem de Estado, do acume e
da capacidade de Delbruck, viu claramente isto e
reconheceu neste fenômeno - "a origem de uma
evolução politica inteiramente nova para a Eu.
ropa" (6).

IV

O 'f enômeno não é um produto ·da guerra; a


guerra tão somente o revelou. O que a guerra f êz
foi arrancar para a luz crua da evidência flagrante
uma verdade que permanecia latente, obscura,
dissimulada até então, embora sentida vagamente
pela subconsciência das massas: a incapacidade
técnica das elites propriamente politico-partidàrias
para realizarem a obra da administração e do
govêrno.
O que se observa aqui, observa-se também na
Europa, onde aliás, as elites dirigentes têm um sen-
so dos interêsses públicos muito mais profundo do
que a nossa. No Brasil, ainda há muita gente que
/

( 6) Penunzlo vê nesta evolução a constituição da u quarta


dimensão do Estad,/ : " - Ho dimonstrato che lo Sta to ha acquis-
tato, oltre le vecchle tradicional! tre dlmensionl - Popolo, ten-ito-
rio, potestá d"lmperio - uma quarta nuova dimensione: !'ardina .
mento economico ( Panun:zio, S. - ll sentimento ckllo Stato, Ro-
ma, 1929, 112, 163~206) . ·
178 Oliveira Viana

acredita, com sinceridade perfeita, que um moci-


nho qualquer, de anel de rubi no dedo, só pelo
simples fato de acontecer ter sido nomeado depu-
tado, fica por isso mesmo, sem mais nada, com a
competência para discutir ou elaborar uma lei sô-
bre a metalurgia do ferro ou sôbre profilaxia anti-
pali.idica. Na Europa, hoje, ninguém há que não
sorria só em admitir, por hipótese, a possibilidade
dêste milagre de ciência infusa.
E' que ali o ciclo dos parlamentns ~nis~ientes
está encerrado (7) .

(7) Exprimindo hte pensamento, na Comlssã,;, do ItamaratJ,


que se reuniu em 33 para elaborar o ante-projeto de reforma da
Constituição de 91 , dei o seguinte voto:
"Eu aceito qualquer fórmula para a compo5i<.ão da Â~sem•
hléia Nacional. certo que estou de que todas elas darão, no flm,
o mesmo resultado, que é a reprodução, na nova Cémara, dos mes-
mos traços que caracterizaram as Câmaras anteriores. Su frágio
direto, sufrágio Indireto, sufrágio uninominal. sufrágio cum•:latlvo,
orinclpio do terço, sistema proporcional, número mlnlmo de re-
presentantes ou número máximo - pouco importam. Tõdas es
tas fórmulas, todos êstes expedientes, todos êsstcs sistemas -
desde que se processem com um eleitorado não srlecionado, sem
a triagem do censo alto e do critério da cultura. L<Jto é, com um
eleitorado reduzido às condições elementares de raracidade, a que
ficou reduzido o nosso futuro eleitorado com a aprovação da pro•
posta relativa às condições para ser eleitor; tudo Lsto é certo que
acabará dando na mesma coisa e o valor e a efldéncla da nova
Câmara não serão maiores do que os das antlg;is, nem a,. futura
psicologia parlamentar terá alterado nenhum tra~o essencial da
sua antiga caracterização.
Os Parlamentos são sempre os mesmos em toda a parte e no
Brasil principalmente. O nosso Parlamento de ámanhã ha de ser
o mesmo que o nosso Parlamento de ontem, seja qual fõr o sla--

\
Problemas de Política Objetiva 179
tema que se engenhe para a formação dêle. Sou um cético nêste
particular e, não agora, mas há muito tempo e em vários livros,
já manifestei êste meu ceticismo.
Dai a dlsplic~ncia com que estou observando o largo lnte-
rêsse dos eminentes membros da sub-comissão ao procurarem re-
solver o problema do melhor processo para a organização da fu,
tura Assembléia Nacional. E stou pronto, por isto mesmo, a dar
o meu voto a qualquer solução que obtenha o sufrágio da 'maioria
da sub-comissão. Já em sessão. anterior, eu me havia declarado
a favor de um número mínimo de deputados para os Estados,
número que seria de 4 com um máximo que não poderia ultra-
passar 25 - e pensava assim conciliar os interêsses dos grande<!
e pequenos Estados com os interêsses, não menos importantes, do
T esouro Nacional. que não devem ser sacrificados com o custeio
desnecessário de uma assembléia multo numerosa.
Considero o Parlamento, modernamente, um dêsses luxos ca-
ros, que as democracias bem organlzad1\s ntlo riorlrm deix:1r de
cultivar, e que, por Isto, devem cultivá-lo moderadamente. Com
o advento da colaboração dos conselhos técnicos e das classes or
ganlzadas na obra administrativa do Estado e com a ampliação cada
vez mais crescente da Iniciativa legislativa do Poder Executivo.
os Parlamentos - ou como órqãos representativos da opinião das
massas, ou como órgão de elaboração das leis - perderam muito
da sua primitiva Importância nos sistemas politicos contemporâ-
neos. Os grandes problemas que temos de resolver não são estes
- da eleição e da composiçlío do Legis/at;vo; são os de organi-
zação do Tudiciário; silo os da organizaçlío do órglío supremo mo-
derador de todos êstes poderes.
Como o sr. Presidente Antonio Carlos propõe uma fórm ula,
em que se estabelece um mlnlmo fixo de 200 deputados, eu vota-
ria Por esta fórmula, tal como está, Isto é, com um número fixo
e Igual de deputados para cada Estado e um número variável,
eleito segundo a proporção das massas eleitorais de cada um.
Que a eleição desta parcela variável se faça pelo voto individual
ou pelo voto proporcional confesso que é, para mim, indiferente;
porque, como Já disse, seja qual fõr o critério eleitor21l adoptado
o resultado futuro não será diferente dos resultados anteriores
e os futuros deputados, sejam eleitos pela N ação, ou sejam ..lei-
'• tos pelos Estados, continuarão a ser, como sempre, representantes,
antes de tudo, dos seus distritos.
· Votei pelo sistema proporcional. corno votaria por qualquet
outro sistema eleitoral. O Brasil é uma cobaia admirável pela dod•
lidade e pela receptividade - e não será mal que façamos mais
uma experiência, a ajuntar a tantas outras que já temos feito.ft
.,,
,;
/

.
~ '
.,

CAPITULO XI

OS CONSELHOS TtCNICOS NOS GOVERNOS


MODERNOS
SuMÃR10: - I. O problema da confecção das leis e a suba-
tltuição progressiva da competência parlamentar pela competên•
ela técnica. O Parlamento lnglés e seu declinlo como órgão téc-
nico de elaboração legislativa. O papel do Gabinete e do Se-
aetarlado do Gabinete. - li. O método inglês de fazer leis: o,
"inquéritos". No fundo, bte método represen,ta um apelo aos téc•
mcos. O proceaso belga das "sondagens". - III. Outra forma
de apelo aos técnicos: os Conselhos Econõmic:os. O Conselho
Econõmico da Itália. O Conselho Econõmic:o da França. Atri•
buições de um e outro. Os Conselhos Econõmlcos em outros pat-
le&, Tendtnda geral no sentido do &pelo aoa téc:mcoa na elal»
ração daa leis econõmJcu ou aodale.

O traço mai& distintivo que o observador re-


colhe, ao estudar os processos de elaboração legis-
lativa moder:namente adotada pela quase unani-
midade das democracias contemporâneas, é que
nenhuma lei é hoje obra exclusiva dos Parlamen,
tos. Em todo trabalho legislativo há sempre o apê-
lo aos profissionais, aos práticos, aos entendidos.
182 Oliveira Viana

aos técnicos. ~stes se fazem cada vez mais os co-


laboradores obrigatórios dos Parlamentos e, às vê-
zes mesmo, de maneira principal. Em suma: por
fôda a parte a competência técnica vai substituindo
a competência parlamentar.

Esta evolução, tão sensível em tôda Europa, é


assinalada mesmo na Inglaterra - a Inglaterra dos
parlamentos onipotentes.
Hoje, ali, o centro de gravidade da vida polf-
tica não é mais o Parlamento - e sim o Gabinete.
E· uma evolução curiosa que a guerra acentuou e
desenvolveu. Num dos seus belos livros, dedica-
do ao estudo da evolução po$t-bellum do povo in-
glês, ,A ndré Siegfried caracteriza o fenômeno como
significando - "o declínio do Parlamento em fa-
vor do Gabineteº (1). ...
Para dizer a verdade exata, esta evolução não
se operou em favor do Gàbinete - e sim em fa.
vor do Primeiro Ministro. ~ste é que acabou real·
mente absorvendo o Gabinete e centralizando em
si todos os poderes de direção: - "Não era mais
o Gabinete, personalidade coletiva, que concentra·

(l) SJegfrled (A.) - L'Anglatttte d'aujourdhul; t"&J). V.


CBJ), V.
Problemas de Politica Objetiva 183
va o essencial do poder - diz Siegfried - ; mas,
o Primeiro Ministro, secundado de colaboradores
pessoais e técnicos escolhidos" (2).
tstes "técnicos escolhidos", de que fala Sieg,
fried e que cercam o Primeiro Ministro, constituem,
no seu conjunto, um "organismo novo" no meca-
nismo político e administrativo da Inglaterra. ~te
"o~ganismo novo" é o Cabinet-Secretariat - o "Se,.
cretariado do Gabinete", criado por ocasião da
guerra. Durante o consulado de Lloyd George, ês-
te Secretariado tornou-se uma peça essencial da
administração inglesa; acabada a guerra, não de-
sapareceu, nem diminuiu de importância. Forma
hoje, sob a direção imediata do Primeiro Ministro,
uma organização de servi_ços especializados, um
corpo de técnicos, "estudando diretamente as ques-
tões, subtraindo-as mesmo, às vêzes, à competência
dos diversos ministérios'' (3).
Homens como Bonar Law e Baldwin, que su-
cederam no poder a Lloyd George, fiéis às velhas
tradições :parlamentares, tentaram reagir contra
esta evolução, no intuito de restituir ao Parlamen-
to o seu antigo prestígio. Fracassaram: o país evo-
luíra realmente no sentido da substituição da com-

(3) Slegfrld - ob. clt., pêg. 196.


(2) Evolução semelhante se processou na França: v. Serre
(P.) - ob. cit .. pãg. 108. Cfr.: - Chardon (H.) - Le pouvol,
odministratif, pl\g. 41; Resdlob - Le réglme parle:mentalre, 192-t,
pág. 90-5.
184 Oliveira Viana

petência parlamentar pela competência técnica.


O Parlamento inglês poderá recobrar ama-
nhã o seu prestígio; mas, só o fará no seu aspecto
político, ·p orque, na elaboração das leis, não se
abandonará mais o ·p rincipio da colaboração dos
técnicos (4) .

( 4) aste decllnJo da lmportãncla dos Parlamentos como ór-


gãos legislativos é um fenômeno geral em to4os os Estados mo-
demos - observa Arkhipov. Na elaboração das leis, diz fie, "o
centro da gravidade se está deslocando da promulgação das nor•
mas gerais para a promulgação de atos e Instruções, que regulam
e ordenam a admJnlstração" (Gueteuvltch - obr. cit., pág.
117- 118) .
Equivale dizer que, em tõdas as democracias do mundo, a
atividade dos Parlamentos está sendo substltulda pela atividade
legislativa dos Executivos, Isto é, a lei estt,. sendo 3Ubstltulda pela
regulamento. E' o que assinala Panunzlo para a Itália: -
• Quessto spotamento della capacitá e della facoltá dl fare le leggl
dai vecchl Parlamentl ai governl é la vera revoluzlone copemlca-
na dei dlrltto constltuzionale dl oggt. Non li Parlamento, ma il
Governo sostanzialmente stâ diventando l'organo legislativo ordl,
narlo ( - obr. clt. pág. 242). Cfr.: - Dugult - Les transfor·
mations clu Droit Public, 1925, Resdlob - obr cit., pá17. 319;
Chardon - obr. cit., pág. 13, 14. 25; Serre - obr. cit., pág. 36.
Esta retração do Legislativo é senslvel mesmo nos Estadoe
Unidos: v. Dtmock (M.) - Effects of the growth of admlnlstra-
tive law upon tradictional anglo-american legal theories and pra-
tics ("Arnerican Political Sclence Revlew", 1932, pág. 974-5)
, Cfr.: - Pound (Roscoe) - Adminlstrative law, Plttlsburg, 1942;
Car - Delegated legislation, Cambridge, 1921 ; Lelserson - Ad-
ministrative reg11latlon, Chicago, 1942. Cfr. ainda meus Proble-
mas de direito corporativo, Rio, 1938. Tudo Isto parece obedecer
a uma tendência, que, nos Estados Unidos é crescente no sentido
de uma liderança ou Intervenção orientadora do Chefe do Estado
sõbre o Congresso: v, Herring - Presldentlal lealdenhip, N.
York, 1940.
Problemas de Polltica Objetiva 185
n
Releva observar que o processo tradicional dos
ingleses em matéria de confecção de leis, e que
ainda 1não foi abandonado, é já, no fundo, um sis-
tema objetivo, e prático de informação técnica. Na
elabiração .das leis, com efeito, o inglês não
compreende o que aqui chamamos "obra de
gabinete", isto é, uma lei feita por um homem de
inteligência e cultura encerrado no seu gabinete e
fiado nos livros da sua biblioteca ou nas luzes da
sua própria inspiração. Tôda lei na Inglaterra é
sempre consequência de um longo processo de pes-
quisas, investigações, vistorias, isto é, "inquéritos"
(inquiries), realizados nos própr1os meios profis-
sionais interessados: - "Na generalidade dos ca-
sos - -diz Boutmy - as leis mais importantes da
Inglaterra se fazem em consequência e de acôrdo
com os resultados de um inquérito,. (5) .
Foi o que se fêz, quando se tratou de estabe-
lecer a regulamentação das bot as de trabalho nas
fábricas e do trabalho das mulheres e menores.
Cada centro industrial foi minuciosa e demorada-
mente estudado. .Primeiro, as manufaturas de al-
godão - e fez-se um "factory act" especialmente
para as manufaturas de algodão. Depois, as ma.
nufaturas de lã - e fez-se um "factory act" para

(5) Boutmy (E.) - Psicologie politique do peuple anglala,


Paris, 1903, pág. 241. Cfr. Belloc (H.) - Pour miaux com-
prende r Angleterre contemporaine, Paris, 1936. Para os Esta-
dos Unid01 : v. Menlan (Cb.) - ob, cit. cap. VIII, .
,\ '

186 Oliveira Viana

as manufaturas de lã. Depois, as manufatúras de


sedas - e fez-se um "factory act" para as manu-
faturas de seda. E, sucessivamente, os inquéritos
estenderam-se aos outros domínios da tecelagem;
e, depois, às indústrias mineiras, ao carvão, ao
ferro, às tinturarias - a tôdas as indústrias, em
suma.
Cada indústria teve, destarte, a sua legislação
especial, calcada, modelada sôbre dados positivos,
colhidos em cada um dêsses centros profissionais,
mediante o contato dos agentes oficiais com as di-
versas classes interessadas. Ora, êste contato com
as classes interessadas não foi outra coisa senão
o contato dos agentes oficiais com os chefes, os
lideres, os homens mais experimentados de cada
uma delas.
Processo semelhante ao dos ingleses é o ado- -
tado pela Bélgica, pelo menos para as chamadas
"leis sociais" ou "econômicas": - "Onde o bom
sen'so dos belgas se patenteia - diz Charriaut, no
seu livro sôbre a Bélgica moder.na - é no modo
porque êles preparam as suas leis sociais. Como
se tratasse de uma mina a explorar, êles têm o
cuidado de fazer longas e minuciosas sonda,
gens" (6).
Em outros países, como na Itália, na Alema-
nha, na França, para citar somente os mais adian-

(6) Cbarriaut - La Belgiqa~ Modetm, Parla, 1916, pig. 191>.

i
j
Problemas de Polltica Objetiva 187

e dos belgas, embora venha ser o mesmo em subs-


tância. Em vez de ouvirem as classes por meio de
"inquéritos", êles as ouvem por meio do mecanis-
-_ mo dos Conselhos Econômicos. No fundo, no pri-
meiro como no segundo processo - o dos "inqué-
ritos" ou o dos Conselhos Econômicos ~ encon-
tramos o mesmo princípio da colaboração das clas-
ses na obra legislativa. Tanto num como noutro,
elas ·são sempre ouvidas através dos seus homens
de mais experiência, dos seus técnicos ou, princi-
palmente, dos elementos representativos das suas
organizações de classe (sindicatos, etc.).
Há desta evolução dois exemplos expressivos:
o da Itália e o da França. Na Itália, o Conselho
Superior da Economia Nacional, criado em 1923,
funciona junto ao Ministério da Economia Nacio-
nal e compõe-se de 45 membros, todos técnicos,
pertencentes a várias especialidades. :tstes técni,
cos são distribui dos por quatro seções: agricultu.
ra e florestas; indústria e comércio; crédito e se- .
guro; previdência social.
Os debates e deliberações dêste Grande Con-
selho têm versado sôbre os seguintes assuntos: sil-
vicultura; instalações hidro-elétricas; produções de
ferro; matérias-primas; fôrça elétrica; organiza•
ção técnica do comércio italiano; organização cien.
tifica de trabalho; organização da produção hortí-
cola da Itália do Sul; concentração da produção
..
188 Oliveira Viana

industrial; reorga.nização da mão de obra; gene-


ralização do trabalho mecânico; redução do custo
da produção nas manufaturas italianas; etc....
Tôdas as deliberações do Conselho são comu-
nicadas ao Ministério da Economia ou às autori-
dades competentes para a sua devida execução:
- "O Conselho Nacional não é um simples órgão
consultivo - observam Lautaud e Poudenx; mas.
de certo modo, é também um órgão de execução:
os chefes dos serviços do Ministério da Economia
são incumbidos da aplicação e execução das deci,
sões do Conselho".
Os italianos da Terceira Itália dispensam, pre-
sentemente, como se vê, Da sua legislação econô-
mica e social, a homologação do Parlamento. Os
projetos de lei saem diretamente dêste Conselho
técnico para os órgãos executivos do govêrno, sem
passarem, nem mesmo em visita de cortesia, pela
grande assembléia tradicional ...
Na França, há o Conselho Nacional Econômi,
co, criado em 1925. E' também um conselho de
técnicos. Nêle vemos as expressões mais represen-
tativas dos interêsses econômicos e das organiza-
ções de classe da França:· - o presidente da Asso-
ciação de Expansão Econômica e da Federação
dos Industriais de Seda; o delegado da Federação
dos Trabalhadores Intelectuais; o presidente da
Confederação Nacional das Associações Agrícolas;
Problemas de Política Objetiva 18<)

o preside.o.te do Comité Diretor das Grandes Redes


Ferroviárias; o presidente da Federação Geral dos
Sindicatos dos Funcionários; os delegados da Con-
federação Geral do Trabalho; o presidente do Co-
mité das Minas de Carvão da França; o secretário
geral da Federação Nacional das Cooperativas de
Consumo; o delegado das Câmaras de Comércio.da
França; o presidente da Câmara de Comércio de
Lyon; etc.... /
O govêrno francês havia proposto ao estudo
do Conselho Econômico a solução dêstes três gran-
des problemas nacionais: o "problema da habita-
ção"; o "problema do aparelhamento industrial";
"o problema da vida cara'\
O Conselho resolveu atacar primeiramente o
problema da habitação. E' o problema das casas
baratas - o mesmo que nos está preocupando pre-
sentemente. Para a solução dêste problema, o go-
vêrno e o Conselho adotaram um método muito
diferente do que teria sido adotado há vinte anos
na própria França e do que se adotaria aqui em
caso idêntico.
Incumbido de formular as bases de um ante-
projeto legislativo referente ao assunto, o Conse-
lho Econômico entrou a trabalhar. Estabeleceu-se
a ordem da discussão e travaram-se debates vivos;
alvitraram-se várias soluções. Num dado momen-
to, o Conselho sentiu que os seus membros, apesar
190 Oliveira Viana

de técnicos, careciam de certas informações e de-


talhes, que escapavam à sua · competência. Suge-
riu-se então o apêlo às competências estranhas -
às organizações de classe. .F oi ouvido o represen-
tante da Federação dos Construtores. Foi ouvido
o representante do Comité das Fundições. Foi ou-
vido o representante do Comité das Minas de Car-
vão. Foram ouvidos os representantes do Serviço
das Habitações Baratas, do Sena. Foi ouvido o
Alto Comissariado da Habitação.
Tôdas essas competências especializadas trou-
xeram os seus alvitres, as suas sugestões, os seus
plano.s, as suas criticas. Depois de várias sessões,
depois de muita discussão, depois de alguns pro-
jetos formulados, substituídos, emendados, o Con-
selho chegou à elaboração de um ante-projeto, que
foi apresentado ao govêrno. ~ste decidiu então,
na base dêste ante-projeto, redigir um projeto de
lei, em que se adotava inteiramente as idéias su.
geridas pelo Conselho.
Eis como hoje se legisla na França. Eis como
hoje se legisla na Itália. Eis como hoje se legisla ·
na Bélgica, na ,i\.lemanha, na Espanha, na Rússia,
no Japão e - a acreditar em Lautaud e Poudenx
- se legislará, talvez em breve, na Noruega e em
Portugal. Eis como sempre se legislou na Ingla-
terra, na Austrália, nos Estados Unidos (7). Eis
como se está legislando em tôda parte do mundo.
/ i

Problemas de Polltica Objetiva 191



Mas, não é assim, infelizmente, que se legislou e
se legisla no Brasil.

(7) Cfr. Merrlam - obr. clt., cap. VII; Lowel (L.) -


obr. cit., pâg. 199. .
Fato expressivo desta nova técnica legislativa foram os Có-
digos Industriais, surgidos com o Nerv Deal roosevaltiano. Re- ·
presentam eles uma legislação preparada por técnicos, p:nfisslo-
nals e "entendidos no negócio", todos trabalhando em puro es•
pirlto de colaboração corporativa. O aspecto técnico é dominan-
te nesta Infinidade de códigos, mais de 700 (546 + 185' suple•
mentos = 73 1 ) elaborados em consequência da politlca neo-ca-
pltalista e corporativa de Roosevelt : desde o~ grandes Códi gos -
·O da Siderurgia, o do Petróleo. o do Carvão - até os Códigos daa
pequenas indústrias, por exemplo, como o Código da Maioniiaise
(entre os yankees, a "malonnalse" é uma Instituição ... )
Para a elaboração do Código da Madeira, por exemplo, o ma-
terial reunido ( Inquéritos, pareceres, dados estatlstlcos e econômi-
cos) ocupou - Informa uma testemunha autorizada - "três grandes
salas de um anexo do Ministério do Comércio" (Rosenstock Franck
- Les Codes Roosevelt et le resulta! de la N.R..A. (Revue d'Eco-
nomle Politique" , 1936, pâg. 1989 sq.). Cfr. Dubreuil - Les Co-
des de Roosevelt, Paris, 1934.
,,

CAPITULO XII

OS CONSELHOS TtCNICOS NOS GOVERNOS


MODERNOS

SuMÃRIO : - I. O proces.ro braailelro de elaboração du lei!:


nenhum apêlo à competência técnica. - II. Os inconvenientea
elo processo brasileiro. Necessidade da "adesão moral"' do po,•o
A obra legislativa ou administrativa do govêrno: conceito de Cruf't.
..,.. III. Necessidade de mudar de método. ObstAculos a esta mu,
dança. O que devemos e podemos fazer.

Um estrangeiro curioso, habituado a observai


a estrutura e o funcionamento das instituições po-
líticas. nas democracias de , verdade, como as an-
glo-saxônias, poderia formular esta pergunta in-
discreta:
- "Tendes um acervo enorme de leis, decre-
tos, regulamentos, interessando à· agricultura, à in-
dústria, ao comércio, ao operariado, às clas~s em
geral; leis emanadas das atividades dos vossos go,
194 • Oliveira Vi'ana

vernos e das vossas assembléias. Dizei-me qual


a colaboração que nestas leis,,feitas pela classe que
governa, têm tido as outras classes, as classes que
não participam do poder, as classes que não gover-
nam?".
- Nenhuma! responderíamos nós, unânime.
mente, a êste estrangeiro indagador, que hem po-
deria ser, como já foi, um James Bryce em vile-
giatura.
E' esta infelizmente a verdade. No nosso pais,
o traço mais característico da sua vida pública é
que a obra legislativa e administrativa é feita ex,
clusivamente pela pequena elite que está no poder,
isto é, pela classe política. O povo - não o Povo
das "caravanas" democráticas, mas o povo repre-
sentado pelo conjunto das suas classes sociais -
não é chamado a intervir ou a oolaborar. Não
há uma só lei aqui, não há um só ato administra-
tivo de caráter social, que não tenha sido obra ex-
clusiva do govêrno, criação endógena da sua inte. • ,
ligência. Mesmo as cha1nadas leis de classe, isto "·
é, as que regulam especialmente os interêsses de
certos grupos profissionais, são feitas sem a in-
tervenção ou a colaboração dêstes grupos (1).
Há mesmo leis de repercussões múltiplas e
profundas - como a do imposto da renda - que
se fizeram infra-muros, nas secretarias do govêrno
Problemas de Política Objetiva 195
ou nas salas das comissões do Congresso, sem uma
consulta séria às classes interessadas.
'
E' i,g ualmente o que tem acontecido com a11
nossas leis tarifárias, de tão alto alcance sôbre a
vida nacional. Desde o comêço da República, tô,
das elas têm sido obra de pura inspiração gover.
namental, saídas do salão de despachos do Catete
ou da Rua do Sacramento para a dócil homologa.
ção das Câmaras.
Nossa legislação ·social está sendo elaborada
pelo mesmo processo. Tanto no que já se fêz co-
mo no que se pretende fazer. Leis de acidentes;
leis de férias; leis de regulamentação das horas de
trabalho; leis de regulamentação do trabalho de
menores e mulheres; leis de aposentadorias; leis
de seguros operários - tudo tem sido, tudo está

( 1) Isto dizia em 1930, antes ·da revolução de 30. Depola


dela, as lei.1 sociais passaram, na fase técnica da sua elaboração,
quer no Govêrno Provisório até à Constituinte de 34, quer no
Govêrno Ditatorial, de 10 de novembro de 37 até o presente mo-'
mento, a ter a colaboração das classes profissionais', organizadas,
ou em associações civis, ou em sindicatos oficializados. Foi a
Revolução de 30 que trouxe o esplrlto de colaboração técnica doa
órgãos representativos das classes ,produtoras. No mlnisteriado
Salgado Filho, esta foi a praxe invariãvel e nenhuma lei social,
das multas que ali se fizeram naquêle perlodo fecundo, deixou de
ter a participação direta dos órgãos de classes. como membi:,,s com-,
ponentes das comissões elaboradoras dos ante-projetos. Depois,
adotou-se outro sistema - o da audiência popular, ouvindo-se,
dentro de determinado prazo ( 15 ou 30 dias) . as claslles Interessa-
das sõbre os ante,projetos elaborados pelas comissões internas, com-
postas, em regra, unicamente de funclonârios técnicos do Mi.nia,.
térlo do Trabalho. Foi assim que se procedeu com as duas gran-
des leia - a da Juatiça do Trabalho e a da Sindlc:alizaçlo.
196 Oliveira Viana

Nunca se ouviu, nem ninguém julga que seja pre,


ciso ouvir, as duas grandes classes - a •dos operá-
rios e a dos patrões - cujos interêsses vão ser afe-
tados de um modo decisivo por estas leis (2).

II
No velho mundo, e
no momento presente, o
processo de elaboração legislativa - já o demons,
tramos largamente em páginas anteriores - é di-
ferente do nosso. Há os ministérios, há os parla-
mentos, sem dúvida; mas êstes ministérios e êstes
parlamentos não agem sós, não se isofam, não tra-
balham em reserva, como conclaves de cardeais;
não fazem obra sua, exclusiva; buscam o contato
com as classes, aceitam ou pedem a colaboração
delas. O que resulta dai - a lei, o rf'gúlamento, o
serviço, - é sempre uma expressão d11 realidade,
uma .conciliação dos dois pontos de vista - o do
govêrno e o do povo: uma obra de adequação e
adaptação, em suma, uma entidade viva, atuante,
orgânica, circulada da seiva das neces~idades cole,
tivas.
. Entre nós, não. Os homens que estão no po·
der trabalham sem o menor contato eom o povo,
com as classes, ou diretamente, ou por meio dos

(2) v. aota anterior.


Problemas d~ Política Objetiva 1g]

órgãos da sua expressão coletiva. Isolam-se. Ex,


cluem-se. E' o regime daquilo que um doutrina·
dor russo, lirodovitch, chama o regime da "rutura
entre a vida política e a vida produtiva da Socie-
dade" (3).
Ora, nesta atitude de isolamento e exclusivis-
mo das nossas classes políticas em relação às ou-
tras classes, há um duplo êrro: '
- Primeiro,um êrr() de técnica. Porque não
há lei perfeita sem a colaboração dos técnicos, dos
profissionais, dos "práticos no neg6cio" - como
já vimos.
- Segundo, um êrro de psicologia politica.
Porque nenhuma lei vinga, nenhuma lei é eficien·
te sem a adesão moral do povo. Ora, em geral,
as leis, em que o povo não colabora, não têm essa
adesão.
Já Cruet, nwn livro muito conhecido e vulga-
rizado, acentuava esta necessidade de adesão do
povo às leis para que elas pudessem vir a ser efi-
cientes. Pura êle, o simples poder coercitivo do
Estado, o i,uro prestígio da autoridade não basta
para dar vida a uma lei. E' o que êle chama o
"fraco rendimento da coação". E, como correti-
vo dêste fr11co rendimento, êle invoca o princípio
da oolabor.ação do povo com o Estado:

(3) v. Guetzevitch - obr. dt., .pág. 44. Cfr. Panunzlo -


obr. clt,

1
198 Oliveira Viana

- "De fraco rendimento da ooação - diz êle


- o que se deve concluir é que, nas relações ·entre
o Estado e os particulares, o elemento essencial é
a . "cooperação" e não a "subordinação".
Realmente, promulguem-se as leis mais sábias;
organizem-se os mais perfeitos serviços: se o povo
não "adere", se o povo não "responde", como di-
zem os "behavoristas", tudo fracassa. Exemplos?
Criem-se escolas de ensino agrícola e campos de
demonstração, por exemplo; mas, não havendo a
"cooperação" (adesão) do povo, as escolas e os
campos ficarão desertos. Organize-se um serviço
de distribuição de sementes ou de venda de má-
quinas · agrícolas: · e ninguém se utilizará dêle.
Fundem-se postos de profilaxia rural - e ninguém
lhes solicitará os serviços.
Mesmo as leis de caráter repressivo ou fiscal
não vingam sem esta , "adesão" do povo. Imagi-
. ne-ee o fracasso de um.a '' lei sêca" no Brasil 1
E' justamente êste fator moral que, entre nós,
explica a relativa ineficiência do Ministério da
Agricultura e dos seus "serviços", apesar da per-
feição com que estão organizados: falta-lhes a
"adesão" do povo. O povo, a massa sooial, do
campo ou da cidade, "não responde". E o servi-
ço, que se d irige precisamente ao povo ou é feito
para o povo, dá em consequência um "rendime_n·
Problemas de Polltica Objetiva 199

to" administrativo nulo ou medíocre: não "work",


como dizem os -a mericanos.
Nas democracias de verdade, os dirigentes po:
liticos têm uma penetra,ção muito sutil dêste as-
pecto da psicologia das massas, penetração que pa.
rece .faltar quase inteiramente aos nossos dirigen-
ti!-8. Dai a preocupação que êles têm de contato
com os grupos sociais - , ou indo a êles por meio
das "sondagens",. de que fala Charriaut; ou cha.
mando-os à colaboração com o ,govêrno, como se
estaj fazendo, com a instituição dos "Conselhos Eco-
nômicos", na generalidade das democracias euro-
péias. E' o meio mais hábil que êles encontram,
não apenas para fazerem leis sábias, mas para pro-
vocarem o indispensável interêsse das massas por
estas leis.
~stes homens de estudo, por experiência his-
tórica ou1por experiência atual, sabem que leis eco-
nômicas ou leis sociais elaboradas nos gabinetes
ministeriais ou IDOS conclaves parlamentares, mas
fora do contato com as massas, sem esta colabora,
ção ou adesão do"povo (representado, é claro, pelos
seus orgãos de expressão mais pura, que são as
organizações de classe), são leis destinadas fa tal-
mente a serem burladas, evadidas, nulificadas por
omissão ou contravenção; são leis sem vida, ou
quando muito, leis de vida precária - leis que
200 Oliveira Viana

respiram com um pulmão só. E, infelizmente, ês-


te tipo de leis é muito frequente no Brasil 1
"
..
DI

~stes fatos e estas considerações evidenciam


a necessidade para os nossos politicos, para os nos-
sos legisladores, para os nossos homens de govêr-
no de adotarem métodos novos de trabalho - de
mudarem de atitude.
T6da no,sa obra administrativa evolve dentro
de · um 6istema de dissociação entre a cla,sse [X)li-
tica, que representa o gov~rno, e as outras clases,
que representam o povo - e isto, como acabamos
de ver, é um anacronismo. Temos que operar ev~
lução análoga à operada modernamente pelas de-
mocracias européias. Temos que abaindonar as
nossas velhas praxes de dissociação e isolamento
e iniciar a aplicação sistemática de uma política
de aproximação entre os dois grupos - o gover-
nante e o governado; de modo a tornar, de ma.
neira permanente, os centros legislativos e ad-
ministrativos mais acessíveis, mais suscetíveis,
mais permeáveis à influência dos interêsses e opi-
niões das outras classes, das classes que oão go-
vernam, especialmente das classes produtoras. E'
o que está fazendo a Europa contemporânea, num
movimento, cuja rápida generalização é a prova
Problemas de Politica Objetiva 201

do quanto ela, presentemente, está distante, em re-


lação à ooncepção da democracia, da velha noção
.
meramente eleitoral até há bem pouco dominante.
Não se trata apenas de copiarmos o que estão
fazendo os outros povos civilizados. Não se tra-
ta de um simples movimento de macaqueação, co,
mo os que, há cem anos, vimos realizando na es-
fera constitucional e política. Do que se trata é
de adotarmos uma política nova, um novo método
de govêrno, que, mesmo que não tivesse sido ado.
tado por nenhum pPVO, quem quer que tenha um
grâ:nulo de senso comum está vendo que é per.
feitamente racional e justo. O exemplo do que
se está fazendo no estrangeiro dá ·apenas ao nosso
pensamento um poder de persuasão mais robusto.
Os nossos centros governamentais, parlamen-
tares e políticos naturalmente relutarão em ado-
tar êste método, esta nova atitude; mas, esta re-
lutâ·ncia será apenas o sinal de que, nas concep,
ções políticas dos nossos homens-públicos, subsis-
tem ainda muitos resíduos subconscientes daquela
antiga mentalidade que presidiu, no velho mundo,
o ciclo das constituições outorgadas.
Ora, se lá os inconvenientes desta antiga men-
talidade já se patentearam à plena luz; se lá esta
mentalidade já desapareceu; se, por isso mesmo,
ninguém lá acredita mais na onisciência dos go-
vernos e dos parlamentos; por que razão êste es,
202 Oliveira Viana

tado de espírito há de sobreviver aqui, num povo,


que não tem, como tinham os povos europeus, para
operar esta mudança de atitude, o obstáculo de
nenhuma tradição embaraçante?
O ponto essencial do problema para nós não.
é tanto esta nova orientação, cuja razoabilidade
e necessidade parecem indiscutíveis; mas as mo-
dalidades práticas de que ela dev~rá revestir-se.
Já que seria ingênuo, senão inepto, deixar de con- ,
· siderar, neste trabalho de adaptação, as particula-
ridades de estrutura e .de psicologia, que distin-
guem daqueles povos o nosso povo.
Na Europa, esta nova orientação tem para
apoiá-la, como se viu, uma base de espírito corpo-
ra tivo e um sistema de organização de classes, que
evidentemente, -e sem nenhum pessimismo, não en-
contramos no Brasil. Por outro lado, a cultura
política das nossas elites econômicas não é tão .
.completa, tão rica de substrato cívico, como a das
elites econômicas daqueles povos.
Na adàptação a nós dêsses novos processos de
legislação e govêrno, que estão revolucionando o
velho mundo, há, portanto, que considerarmos as
condições de receptividade do nosso meio a essas
inovações. Há que saber se o 1Dosso povo, com as
idiosincrasias da sua educação política e as par-·
ticularidades da sua organização social, permiti-
ria a transplantação de qualquer dêstes novos si5- j
f
Problemas de Politica Objetiva 203

temas de govêrno engenhados pelas democracias


do velho mundo: sejam simples conselhos técni-
cos, como o da França, com os seus "comités" me-
ramente consultivos; ou sejam os de tipo mais
complexo, como o da lt(llia, com os seus "gruppi
de competenza ", provido singularmente de atribui-
ções legislativas e executivas; ou sejam então uma
organização à maneira inglesa, conjugando s,àbia-
mente o passado e o presente: o novo "secretaria,
do do Gabinete" ("cabinet-secretariat") com o ve-
lho e tradicional processo de investigação direta
e local ("inquiry").
Porque é bem possível que nenhum dêstes sis-
temas nos sirva e que tenhamos mesmo de enge.
nhar um sistema nosso, ao nosso jeito. uma solu-
ção própria, adaptada ao nosso meio; como é pos-
sível também que não engenhernos solução ou sis-
tema ·a lgum - e nos resignemos apenas, em obe-
diência ao imperativo das nossas realidades geo-
gráficas e sociais, a uma apJicação, em escala mui-
to modesta, dêstes largos e ousados métodos de
política contemporâ.nea.
/
CAP1TULO XIII

OS CONSELHOS TtCNICOS NOS GOVERNOS


MODERNOS

, SuMÃRIO: - 1. Evolução recente no sentido do apêlo à


competência técnica na elaboração das leia: os Conselhos técnicos.
O Conselho Nacional do Ensino, o Conselho Nacional do Traba-
lno, o Conselho Nacional de Comércio e Indústria: modalidatie~
de colaboração com 01 poderea pübllcoa. - 11. O procuao
dos "inquéritos" e das "sondagens" : como é possivel adotá-lo aqnl
_ III. Necessidade de generalização da consulta às associaçõc.t
locaiB na Alemanha e na Aiutria. Os nossos Conselhos técnios
~ a colaboração das associações locais. - IV. Preconceitos con-
trários aos Conselhos técnicos entre nós. O preconceito da oni,-
dêncla do Parlamento e do Govêrno. O absurdo dêste preconcei•
to: fraae de Wilson. - V. Conselhos econõmicos regionais: o.
h,stitutos EstaduaiJ de Defesa EconOmica. - VI. Necessidade
de intensificar as funções consultivas dos Conselhos Técnicw.
Necessidade da colaboração das associações locais de classe. O
valor deata colaboração no sentido da formação democrática Jo
pata.

I
Realmente, não ficamos insensíveis a essa bela
~volução operada nos centros de maior cultura
206 Oliveira Viana

política da Europa; ao contrário, refletimo-la ime-


diatamente, com rapidez muito maior do que re-
fletimos outros movimentos europeus· nos períodos
anteriores da nossa formação constitucional. Des- ·
de 1923, os Conselhos Técnicos ao modo da Eu-
ropa po,st-bellum começaram a aparecer aqui. Ex-
cetuando o Conselho . Nacional do Ensino, criado
em 1911 (1), tivemos simultâneamente, em 1923:
o Conselho Nacional do Trabalho (2) e o Conselho
Superior de Indústria e Comércio (3). Todos, se-
não modelados, ao menos inspirados, visivelmente
nos Conselhos Nacionais das grandes nações euro-
péias, particularmente a França, a Itália, a Ale-
manha (4).
tstes três Conselhos N aciouais têm, além de
funções jurisdicionais e administrativas, também
consultivas. O Conselho Superior de Comércio e In-
dústria, que funciona junto ao Ministério da Agri-
cultura, "é o órgão consultivo dos poderes públi-
cos em assuntos comerciais ·e industriais" -- diz o ·

(1) Decr. 8.659 de 15 de abril de 1911; Decr. 16.783-A,


de 12 de Janeiro de 1923.
(2) Decr. 16 .037, de 30 de abril de 1923: Decr. 18.07f,
de 19 de Janeiro de 1929. ·
(3) Decr. 16.009; de 11 de abril ·de 1923.
( 4) Mais tarde, criou-se tàmbém, pelo Decr. 17. 390, de 26 ·
de julho de 1926, o Conselho dos Contribuintes com funções Ju.-
ddidonal.s e de contencioso adm.inlstrativo. .
Problemas de Politica Objetiva 207 ·

art. 1.0 do Decreto 16.009, de 11 de abril de 1923.


O Conselho Nacional do Trabalho conta, entre as
suas atribuições: "responder às consultas que lhes
forem dirigidas pelos Poderes Executivo e Legis-
lativo da União" - diz o art. to' do Decreto 18.074,
de 19 de janeiro de 1928. O mesmo acontece oom
o Conselho Nacional do Ensino: é também órgão
consultivo dos poderes públicos nos assuntos da
sua competência (5).
Os nossos três Conselhos se fazem, assim, co-
laboradores técnicos da obra administrativa dos
governos - e esta colaboração técnica é dada:
ora por pareceres, que, elaborados por comissões
técnicas, representam o pensamento coletivo dês-
tes Conselhos; ora por sugestões, feitas por êles
aos poderes públicos. ~stes pareceres e estas su-
gestões contêm, às vêzes, verdadeiros ante-projetos
de lei ou de regulamento, que são submetidos pos-
teriormente à discussão e à aprovação do Congres-
so Nacional ou à homologação do Poder Executivo.
Em relaição ao Conselho Nacional de Trabalho,
prescreve-se mesmo taxativamente que cabe a êle:
- "organizar os projetos d~s regulamento~ e iins-
truções que o govêrno tiver de expedir sôbre os
mesmos assuntos, ouvidos os inter:essados quando

(S) Decr. 8.659, art. 13, ai. h; Decr. 16.782-A, de 13 de


Janeiro de 1923, art. 12.
208 Oliveira Viana

julgar conveniente" (6). Tal como o Conselho


Econômico da França.
O valor, o pêso, a ·autoridade que têm ou de,
vem ter para os poderes públicos êstes pareceres.
sugestões e ante-projetos, porventura elaborados
por qualquer dêstes Conselhos Nacionais, provém
da própria composição dêstes Conselhos. :tles são
compostos de "competências", de "especialistas"
de "técnicos", escolhidos por fôrça da própria lei:
a) nas esferas da .a lta administração;
b) nos centros de cultura especializada;
e) principalmente no seio das associaçõ~ de
classe.
No Conselho Nacional do Trabalho, por exem-
plo, a maioria cabe aos elementos extra-adminis..
trativos e às representações de classe. Há ali dois
representantes das classes operárias; dois repre.
sentantes das classes patronais; seis especialistas
de reconhecida competência em assunto de orga-
nização do trabalho e dn previdência social: ao to-
do dez. Contra apenas dois representantes da alta
burocracia, funcionários graduados do Ministério
da Agricultura, Jndústria e Comércio, também téc-
nicos em matéria acLninistrativa.

(6) Decr. 18.074, de 15 de Janeiro de 1928.

-~

.J
Problema.8 de P.olltica Objetiva 2011

No Conselho Superior de Comércio e Indús-


tria, os representantes das classes econômicas e
o.s "técnicos", "práticos" e "entendidos no negó-
cio" aparecem mais numerosamente ainda, de fo11-
ma mrus imponente e dominadora. Há ali cinco
1·epresentames do M.lin.isterio àa Agr1cultura; há
alJ. cmc~ representantes do l\1i.n1sténo da .l<'azencla;
há ali tres representantes . d.o Mmü,térJ.o da Viaçào;
há au um representante cio .M.l lllsteno d';lS l~ela-
çoes .t.;xter1ores - ao todo quatorze. Todos, auos
1unc10nar10s tecwcOB, dJ.retores gera..1.8 e inspewre.t1
. gera1s aos dJ.versos _serv1ço,s oe::.tes Mlál.isterios.
M.ru; ao lado destes, e em maioria, outros tecwcos,
outros espec1aJ.J.Stas, outras cowvetenc1as, outros
praucos: o banco do J:Sra.sll, pelo seu presidente;
a J/eúeração das .AssoCJ.açoes l..omerc1rus do tlras.u,
com quatro representantes; a A.s::ioc1açào Comer·
c1al do Hio de JaneJ.ro, com três representantes; o
Cen~ de Comércio e lndústria do J:tio- de Janeiro,
com um representante; a Liga do ~omercio do Rio
de Janeiro, com um representante; o Centro de
Fiação e Tecelagem de Algodão do filo de Janeiro,
com um representante; a Sociedade Nacional de
Agricultura, com dois representantes; e mais nove
pessoas de reconhecida competência' em assuntos
econômicos - ao todo vinte e seis. Os elementos ·
técnicos, representativos dos interêsses particula-
res, preponderam sôbre os elementos técnicos, re.,.
. 210 Oliveira Viana

presenta ti vos da administração pública: - e a ati-


vidade consultiva dêstes Conselhos prende-se assim
muito intimamente, diríamos mesmo muito demo-
crà ticamente, às correntes, impulsões e inspirações
vindas, das classes populares e dos centros mais re- .
presentativos da nossa organização ec,mômica.

II

Entretanto, a competência dêstes diversos gru-


pos de técnicos, que êsses grandes Conselhos Na-
cionais reunem e congregam, nem sempre é bas-
tante para o perfeito conhecimento e a verdadeira
solução dos problemas a êles afetos. Há pequeuos
detalhes práticos, há reflexos locais, há particula-
ridades regionais, suscetíve'is de escapurem à per-
cepção dos grandes téonicos, afeitos aos golpes de
vista de conjunto, e que realmente só podem ser
percebidos pelos "nrá ticos" e pelos "entendidos"
no assunto, agindo dentro de um horizonte mais
limitado e com uma inteligência daA coisas mais
rica de conteúdo objetivo. Dai a necessidade de
recorrer a êles.
E' o que fazem os belgas com as suas "son-
dagens". E' o que fazem os i•ngleses com os seus-~
"inquéritos". E' o que fazem os alemães e aus-
tríacos com o seu sistema de consulta obrigatória
Problemas de Politica Objetiva 211

às organizações locais de classe. Os que criaram


os nossos Conselhos Nacionais compreenderam
também a inevitabilidade destas limitações de co-
nhecimentos e, para corrigir êste inconveniente,
prescreveram que os Conselhos poderiam fazer
apêlo às "competências estranhas". E' o que por
exemplo, explicitamente autoriza o regulamento do
Conselho Superior de Comércio e Indústria:
_ "Art. 35 - As comissões será permitido pe-
dir, em apêlo patriótico, por intermédio da secre-
taria geral, a colaboração de pessoas estranhas ao
Conselho e cujos conhecimentos técnicos ou notó-,
ria ilustração possam aproveitar à elucidação das
questões, cujo estudo lhes tiver sido confiado".
Igualmente, entre as atribuições do Conselho
Nacional do Trabalho, figura esta:
- "Art. 8.0 - Compete à Secretaria do Con-
selho Nacional do Trabalho:
a) coligir e sistematizar a documentação sô-
bre os diversos problemas da nossa economia so-
cial;
b) realizar inquéritos sociais, ouvindo profis-
sionais e interessados" (7).

(7) O mesmo para o Conselho Nacional do Ensino: Decr. ,


16.782-A, de 12 de jánelro de 1923.
212 Oliveira Vlana

III

N,este apêlo às competências estranhas, os nos-


sos três Conselhos Nacionais devem abrir um gran·
de espaço para as consultas às associações locais
de classe. E' o sistema adotado tradicionalmente
pelos ingleses, pelos americanos, pelos belgas, es-
pecialmente J?elos alemães e austríacos, tôdas as
vêzes que pretendem inovar ou modificar a sua
legislação econômica.
Na Alemanha, por exemplo. Desde há. muito
tempo, existem em todos os Estados conselhos téc-
nicos, que são órgãos oficialmente consultivos do
govêrno em assuntos relativos aos interêsses da sua
economia rural. E' o Colégio de Agricultura1 da
Prússia. E' o Comité da União Agrícola, da Ba-
viera. E' o Conselho de Agricultura, do Saxe. E'
o Conselho Econômico, de Baden. E' o Bureau
Central da União Agrícola, de Nurember'g.
Na Áustria, igualmente, há os "Conselhos de
Cultura" e as "Associações de Distrlto". Espa- A

lham-se por diversas regiões, Boêmia, Dalmácia, .


. etc., e têm funções consultivas - como as suas
congêneres alemãs:
- "O papel destas corporações - diz von Phi•
lippovich - é representar os interêsses de classe,
bem como dar pareceres sôbre questões indicadas j
j
~ .

Problemas de Polltica Objetiva


peló govêrno. Elas têm também o direito de ·ini•
ciativa" (8).
Estas corporações provi,nciais prendem-se a tô-
das as corporações comunais ou distritais de cada
região ou província e agem em intima cooperação
com elas. Esta é a razão do valor que para Ofi
governos e legisladores da Alemanha e da Austria
tinham e continuam a ter os pareceres e iniciati-
vas ("sugestões") dêstes Conselhos provinciais ou
oomunais. Valor tão grande que estas corpora-
ções, que são ali entidades vivazes e ativas, foram
i'noorporadas à administração-do Estado: - "Des-
ta atividade semi-oficial das associações privadas
- observa von Philippovich - surgiu a tendência
de prendê-las mais fortemente à administração do
Estado".
Dai o grande papel que elas sempre exerce-
ram, na vida legislativa e administrativa daqueles
paises, muito antes mesmo do advento· dos moder-
nos Conselhos Econômicos.
rute é justamente o melhor caminho a tomar
pelos nossos Conselhos Nacionais: no ap~lo fre-
quente, constante, sistemático às associações locai,
e regionais, ~les encontrarão uma das fontes mais
fecundas. senão a mais fecunda, da sua vit-alidade
(8) vou ·Phllopovitc:b - La poUtlqru agrait'e, Paris, 190-t.
pêg. 158.
214 Oliveira Viana

e d& ,seu prestigio. Os seus "pareceres", as suas


"sugestões", as suas "representações" ou mesmo
os seus "ant,e -projetos" terão um caráter muito
mais impressionante, se revestirão de uma auto-
ridade muito maior per8!Ilte as autoridades con-
sultantes (9).

(9) O número dêstes órgãos consultivos e técnicos aumen-


tou expressivamente depois da Revolução de outubro de 1930.
Esta manifestou, tanto na sua primeira fase - de govêrno provisó-
rio ( 1930-1934), como na sua segunda fase - de govêrno constl•
tuclonal ( 1934-1937), como na sua terceira fase - de govêmo di-
tutorial ( 1937- l 9i5), uma tendência positiva e acentuadíssima para
os conselhos técnicos e consultivos. Basta ver-se a importância
que éles têm na Constltulção de 34, como na Constituição de 37,
como órgãos pre-leglslatlvos e consultivos do Govémo e da Ad-
mlnlstração. Tanto numa como noutra, foram-lhes atrlbuidas prer-
rog atlvas consideráveis. O Conselho de E conomia N acional, lns·
tituldo na Carta de 37, não era apenas um órgão consultivo; podia
mesmo vir a ser investido de funções legislativas no setor da
economia nacional. com excludência do Parlamento. Demais, com
,1 lei da sindicalização, os sindicatos e mesmo as associações pro -
flssloals não sindic~llzadas tornaram-se órgãos consultivos do
Estado em tudo o que se refira à matéria da sua competência
representativa.
Sôbre êste ponto, v . meus Problemas de direito corporativo,
Rio, 1938; e - Problemas de direito sindical. Rio, 1942. con3agrados
um e outro especialmente a esta matéria.
Sôbre corporações técnicas e conselhos consultivos existen-
tes atualmente em nosso pais, ora de composição puramente téc-
1,lca e investidura do Presidente da República, ora de composição
representativa, por designação das corporações, associações civis
ou sindicatos de classes, v. o Indicador da organização adminis-
trativa do Executivo Federal e sua legislaçli.o, editado pelo Depar-
tamento Administrativo do Serviço Público. Neste Indicador vêm
especificados não só os diversos Conselhos e Comissões Técni-
c.as até agora lnstltuldos e em funcionamento, como também a
çl,i~crlminação das diversas autarquias existentes em nossa estru•
Problemas de Polltica Objetiva 216

IV

:ftstes três Conselhos Nacionais terão ainda por


muito tempo contra si, reduzindo-lhe a eficiência,
a fôrça embaraçante de certos preconceitos muito
radicados na mentalidade das nossas elites. En.
quanto não forem removidos, nenhuma destas
grandes corporações técnicas poderão exercer, na
sua plenitude, junto aos poderes públicos, as fun-
ções consultivas e pré-legislativas-que possuem.
Dêstes preconceitos o mais grave, o mais ab-
surdo, o mais anacrônico é a crença na competên-
cia oniscientr. cfos Parlamentos, na sabedoria infu.
sa dos homens que, em virtude do mecanismo do
nosso sistema. representativo, acontecem chegar ao
Poder. :ftste estado de espírito é já esvanecente
nos centros parlamentares e governamentais do ve-
lho mundo; mas, aqui ainda perdura, ainda resis-
te, ainda fonna a substrutura da mentalidade dos
nossos homens públicos: legisladores, administra-
dores, estadistas. E' justamente êle que está i~-
pedindo - e ainda impedirá por muito tempo -

tura administrativa, tanto as de natureza puramente econõmlca


( contrôlc econômico) , como as de natureza social ( previdéncia
social) e as de tipo caracteristicamente corporativo ( Ordem doa
Advogados, Conselho de Engenharia) .
Para a posi~ão geral destas instituições do Estado Moderno,
v. ainda .- Problema de direito corporativo e Problemu do
clúeito alndlcal.
216 Oliveira Viana

os nossos governos e os nossos congressos nos Es-


tados e na União, de operarem êste movimento
racional e sábio de consulta prévia e sistemática
a,o s Conselhos Técnicos - sejam pedagógicos, se-
jam econômicos, sejam federais, regionais ou lo-
cais, sejam públicos ou particulares - já consti-
tuídos ou que aqui1 se vierem a constituir. O pre-
sidente que governa, o ministro que administra,
o deputado que legisla evitarão por todos os meios,
fazendo, às vêzes, esforços inauditos e exàurindo-
se em estudos intensivos, dar aos seus colegas, aos
seus subordinados ou ao povo aquilo que lhes pa-
rece ser .a prova pública da sua ignorância ou -
como diriam enfàticamente - do "seu desconhe-
cimento dos negócios públicos". Nenhum dêles
será capaz de confessar, nenhum terá a hornbri.:
dade, a franqueza, a sinceridade de confessar, co-
mo o grande Woodrow Wilson, que não há ho-
mem público que possa ter a pretensão de conhe-
cer, na sua totalidade, os interêsses do seu país.
Todos êles, ao contrário, sentir-se-ão "diminuídos"
o dia em que se virem obrigados a esta confissão
humilhante e pública das suas deficiências de cul,
tura técnica ou mesmo geral (10).

(10) O que caracteriza a compet!nda do homem de estado


- o legislador, o administrador, o homem de govêmo, o chefe de
um grande partido - não i a competl!ncla especiallznda (fh:nic:a)
~ sim a compettnda geral, Jato f. a aptidão para v1alo co,npluwe.
Problemas de Polltica Objetiva 217

Sómente depois de uma profunda modifica-


ção ·n a mentalidade d-as nossas elites políticas, no
que os problemas oferecem. Finney estabelece multo bem êste
descrlmen:
- "O que o homem de govêrno ( social leader) deve ·conhe•
cer são as "relações". Para as inumeráveis funções, quer públl,
cas, quer privadas. precisamos, sem dúvida, de especialistas; mas,
um plano de govêrno (social policy) é uma coordenação de tõdaa
estas funções; ora, coordenações desta natureza nenhum dos ea-
pcclalistas chamados a conselho será capaz: de organizá-las sàbla·
mente, a não ser que êle seja mais do que um puro especialista
(Finney - A sociological phílosophy of educaHon. N. York, 1929,
pág. 343).
gste trecho de Flnney estabelece muito claramente a dlstln,
ção entre o domlnlo do técnico, que é um especialista, e o dom!•
nlo do político, isto é, do homem-de-estado. O homem-de-estado •
vê em conjunto; o técnico vê em detalhe. O técnico conhece o
seu setor, sabe o que se contém dentro dêle; mas, não sabe o que
pertence aos outros setores, às outras especialidades. O homeu,
de govêrno, o estadista, êste, ab contrário, tem, pela própria altl,
tude do seu espírito de homem-de-estado, possibilidades de conhe-
cer e aprender as "relações", como diria Flnney, entre todos êste•
setores, numa visão panorâmica e integral - e decide então de acõr·
do, não rigorosamente com o parecer do técnico ( limitado na sus
visão justamente por ser um especialista), mas de acõrdo c0m esta
visão complexlva e de conjunto. O senso ou a Intuição po-
lítica, que caracteriza o homem de govêrno, é coisa diferente, subs,
lancialmente, do conhecimento ou da ciência do técnico. Um
deduz; outro Intui. Um vê só um dos lados do problema, qu,
~ o lado da sua especialidade; o outro vê, por intuição, a totali-
dade do problema. Por isto mesmo, o homem de govêmo ' que tlm,
bre seguir passivamente o laudo ou a opinião dos técnicos pode-
ria ser homem de govêrno, mas não seria provàvelmente um ver-
rladelro homem-de-estado.
Na Constituição de 37, o seu art. 73 deu ao Presidente da
República a prerrogativa de dirigir a política administrativa e le,
glslativa da União - e está certo: é êste - o político - Justa•
tamente o domínio dos homens-de-estado. Seria, entretanto, ab-
surdo si lhe coubessem também as funções técnicu desta adml•
nistração ou desta legislação.
Por bte preceito constitucional, o Presidente ê titulado aet
218 Oliveira Viana

sentido da erradicação desta concepção obsoleta


da competência, é que os Conselhos Econômioos t
Técnicos, aqui i1nstituídos e cuja análise acabamos ·
de fazer, poderão vir a exercer, na economia das
nossas instituições político-administrativas, o pa-
pel . culminante, a função -essencial, pragmática,
realista que lhes cabe ter (11).

V
tstes, os grandes Conselhos, órgãos consulti-
vos da União e dos poderes federais. Mas, não

o autor do que hâ de político na leglslaçlio ou na atividade admi-


nistrativa; nlio, no que nela hâ de técnico. Cabe ao Presidente
dar as diretrizes gerai:, da atividade legislativa ao Parlamento
ou às comissões técnicas - e isto é política. Dadas est1s dire·
trizcs gerais, jâ agora cabe aos técnicos e especialistas trabalha-
rem, coru a sua competência especializada, na elaboraçlio das leis
- e isto é técnica. O texto do art. 73 não permite, nem autoriz~
a extravagante lnterpretaçlio de que, em matéria de legislação ou
de administração, o Presidente deve ser o autor de tudo,
Para tanto, seria preciso que ela tivesse, nesta época de saber ,
especializado, o enciclopedismo de um Aristoteles.
( 11) O que parece mais conveniente é levar .ao máximo
de intensificação as funções consultivas e pre-legislativB:J dê::;te~
grandes Conselhos técnicos; as suas funções executivas e juridi:J•
cionais ( - e o nosso Conselho do Trabalho, por exemplo, e o
nosso Conselo do Ensino, tem-nas consideráveis) devem ficar
em plano iecundário. Como já observava Dugult, mesmo nos
povos que praticam a r igor o govêmo direto - como no Uri, no
Unterwald e nos Grissões sulços, - não se vê o povo associado
à função admnisitrativa; êle exerce somente a função legi$lativa
e a função Jurisdicional - e esta, ainda assim, em parte apenas
(v. Duguit Leçon$ de Droit Pub/ic Générale, Paris, 1929
pág. 214).
Problemas de Politica Objetiva 219

deve ficar sem menção uma outra modalidade de


conselhos técnicos, recentemente surgidos aqui, sob
a premência ,das nos·s as condições econômicas. São
as instituições administrativas locais, criadas ulti-
tnamente pelos Estados para a defesa de certos
P.rodutós da nossa economia tropical: o Instituto
de Café de São Paulo; o Instituto de Café de Mi-
nas Gerais; o Instituto de Açúcar de Pernambuco; ,
e Instituto de Mate ·do Paraná; o Ir!1stituto de Fo,
tnento e Economia Agrícola do Estado do Rio. Es-
tas pode-se dizer que são instituições de origem
Puramente nacional, para cuja gênese as influên-
cias exógenas constribuiram, se contribuíram, de
tnodo pouco ponderável.
E' impossível negar o caráter de conselhos téc-
nicos a êstes Institutos. Pela composição dos seus
quadros dirigentes, pela natureza das suas funções,
!>ela complexidade ,e latitude das suas atribuições,
êles se assemelham muito aos modernos conselhos
europeus. Principalmente, os Institutos de Café.
tstes, pela particularidade dos seus objetivos e pela
fôrça executiva das suas "resoluções", lembram
~uito aproximadamente os gruppi di competenza
11
alianos. Não são, legalmente, órgãos consultivos
do govêrno, como o Conselho Nacional do Traba-
lho ou o Conselho Superior de Comércio e J.ndús-
,tria; são, antes, órgãos de natureza administrativ~
'
Oliveira Viana

mas onde os fatores de competência técnica presu,


mem-se preponderar, não só nas suas múltiplas
atividades, como na composição dos seus corpos
dirigentes. ·
:tstes Institutos têm todos uma estrutura aná-
loga; mas, nenhuma representa melhor êste tipo '
1I1ovo de organização do que o Instituto de Fomen,
to e Economia Agrícola do Estado do Rio. Foi
criado, em 1926, sob o govêrno do presidente Fe-
liciano Sodré e engenhado por êle (12).
Inspirando--se embora na organização congê.
nere do Estado de São Paúlo, tem, entretanto, um
campo maior de atribuições. Cabe a êle o ser,
viço da defesa do café, tal como os seus congêne-
res de Minas e de São Paulo; mas, cabe a êle tam-
bém o serviço da defesa do açúcar e do sal - os
três produtos principais dà economia fluminense.
Os poderes estaduais, por meio de sucessivas leis
e decretos, o tem armado de f acuidades excepcio-
nais, que o tornam um organismo técnico dos mais
curiosos e originais na estrutura da nossa admi-
nistração geral.
Na sua diretoria, composta, de quatro mem
bros - o Secretário das Finanças, como Presiden-
te, o Diretor da Carteira Comercial, o Diretor da
Carteira Econômica e o Diretor-Gerente (sem vo-

(12) Lei 2 OH de 15 de agosto de 1926.


Problemas de Política Objetiva 221

to) - entra um representante dos interêsses par-


ticulares, um representante de classe, um "enten,
dido no negócio", que é precisamente o Diretor da
Carteira Econômica e Agrioola, sorte de deputado,
eleito pelos lavradores e proprietários territoriais
do Estado. Os demais diretores são de nomeação
do govêrno.
Há talvez na organização fluminense certa ca-
rência de elementos representativos das principais
classes produtoras; porque o Diretor da Carteira
Agrícola, sendo um, tem que representar, ao mes-
mo tempo, tôdas as regiões e tôdas as indústrias
agrícolas do Estado. Neste ponto, o Instituto Mi-
neiro atende melhor o princípio da colaboração
direta dos interêsses particulares na obra adminis-
1 trativa do govêrno; porque nêle aparecem repre.

sentadas várias regiões do Estado por delegados


seus e também as classes conexas à lavoura caféei-
ra. No Instituto Paulista, houve urna involução
neste sentido: a colaboração direta das cla-sses pro.
dutoras, julgada perturbadora, inconveniente ou
incômoda, foi afastada.
O aspecto, porém, mais interessante, que êstes
1 pequenos conselhos estaduais oferecem, é o drui
atribuições legislativas, executivas e contenciosas,
com que foram armados pelos governos respecti-
vos. ~les legislam, com efeito, por meio de "deli-
berações" e "resoluções" - e estas deliberações
222 Oliveira Viana

ou resoluções têm fôrça de lei, independentemente


de qualquer referendum, aprovação ou homologa•
ção do poder executivo ou legislativo do Estado.
Os executores destas deliberações (que ·envolvem
aspectos delicadíssimos da economia e da riqueza
pública e particular) são os próprios funcionários
dêstes Institutos ~ e não agentes do Poder Exe-
cutivo. O julgamento dos conflitos, surgidos en•
tre êstes Institutos e os particulares, quando de
caráter meramente contencioso, cabe às próprias
Diretorias.
São, portanto, êstes pequenos conselhos esta-
duais organismos admi1nistrativos sui-generis, dis-
pondo de poderes legislativos, executivos e judi·
ciários e pos,suindo, dentro do campo das suas atri-
buições estatutarias, uma autonomia e uma lati-
tude dê ação, que não possuem nem o Conselho
Nacional do Ensino, nem o Conselho Superior de
Indústria e Comércio, nem o Conselho Nacional
do Trabalho, cujas fwnções são quase exclusiva-
mente consultivas.

VI
Há, portanto, dois movimentos a operar no
sentido de dar às nossas instituições legislativas e
administrativas uma feição pragmática, que torne
possível o estabelecimento de um verdadeiro regi·
Problemas de Polltica Objetiva 223

me de opinião, de uni sistema de govêrno verda-


deiramente popular, intérprete real dos interêsses
do povo e infinitamente muito mais democrático
do que aquêle que, há cem anos, estamos procu-
rando realizar pelo sistema representativo, pela
prática da soberania das urnas, pelo sufrágio uni-
versal, pela eleição direta, pela representação das
minorias, pela atividade legislativa das assem-
bléias parlamentares.
~tes dois movimentos são: •.
1.º - Movimento dos ,governos (Poder Legis-
lativo e Poder Executivo) no sentido do aproveita-
lamento mais frequente e ma~s regular das fun-
ções consultivas dos nossos Conselhôs Técnicos
- o do Ensino, o do Comércio, o di Trabalho, etc.
Nada que se refira aos interêsses econômico~
do pai,s, nenhuma lei . ou medida administrativa
deverá ser elaborada ou posta em execução~ sem
que seja obrigatpriàmente sujeita ao estudo prévio
dêstes Conselhos. Nto nosso regime de govêrno,
caracterizado pela ociosidade e mcapacidade do
Legislativo e pela irresponsabilidade prática do
Executivo, êstes ColliSelhos Econômicos - o do
Trabalho, o do Comércio, o do Ensino, etc. - pas-
sarão a exercer aqui i papel que, no Império, exer-
ceu o Conselho do Estado com as suas comissões
~ técnicas. Teríamos ajustado, assim, ao mecanismo
- da nossa administração republicana uma peça
1

224 Oliveira Viana

complementar, que ,evidentemente lhe f.alta e que


a administração do Império, manejada por uma
elite política iincomparàvelmente mais experimen·
tada e m~is culta, nunca pôde dispensar (13).
2.0 - Movimento dêstes Conselhos Técnicos
Nacionàis no sentido de ampliar o seu campo de
informação por um processo de entendimento mais
frequente, regular e sistemático com os orgãos re-
presentativos dos interêsses das classes populares
em geral e, especialmente, das classes econômicas.
Nenhum "parecer", "sugestão" ou "ante-projeto"
de lei ou de regulamento - objeto de consulta ou
$olicitação do Congresso ou do Executivo - de-
verá ser elaborado, sem que da parte dêstes Con•
selhos Nacionais haja um largo e prévio "inqué-
rito" aos centros técnicos particulares, aos grupos
de interêsses organizados, às associações de classe
de todo o pais: - Cooperativas, S'i ndicatos;
Ligas; Sociedades; Federações, etc.
Com esta colaboração dos interêsses popula,
res, vinda assim de tôdas as partes, direta ou in•
(13) Lel de 23 de Novembro de 18-tl, que criou o e~
selho de Estado:
"Art. 7: - Incumbe ao Conselho de Estado con•
aultar em todos os negócios em que o Imperador houver
por bem ouvi-lo para resolvê-los; e principalmente:
' ············· ................................ .
§ 6: - Sõbre decretos, regulamentos e Instruções
para a boa execução das leis; sõbre propostas que o Po-
der Executivo tenha que apresentar à Assembléia Geral.
Problemas de Politica Objetiva 225

diretamente, através dêstes Conselhos Nacionais t


das organizações locais de classe, teremos consti,
tuído aqui um regime d-e ,e laboração legislativa
incomparàvelmente superior - pela fecundidade,
pela eficiência, por um contato mais intimo com
as nossas realidades econômicas e sociais - ao
regime atual, baseada na famosa soberania daa
urnas, na democracia representativa e no precoo.
ceita, hoje reconhecidamente obsoleto, da onisciên,
eia e da infalibilidade dos Parlamentos.
O principio característico do govêrno democrá.
tico consiste em dar à totalidade dos cidadãos uma
parte igual na direção dos negócios públicos - diz
Duguit (14). Ora, se assim é, o melhor caminho
para realizarmos a democracia não é lutarmos,
até com as armas llla mão, para eleger deputados
ao Parlamento; mas, desenvolver os Conselhos
Técnioos e as organizações de classe, aumentar a
sua importância, intensificar as suas funções con.
sultivas e pré-legislativas, generalizar e sistemati,
zar a praxe da sua consulta da parte dos poderes
públicos. E' êste o verdadeiro caminho de demo-
cracia no Brasil.
O que, por um lado, em menos de um decênio,
já temos conseguido com a atividade dos nossos
grandes Conselhos Nacionais, especialmente o do
I

(14) Duguit - obr.. dt., pâg. 128.


226 Problemas de Polltica Objetiva

Trabalho e o do Ensino, agindo, aliás, dentro de


um ambiente cheio de preconceitos embaraçantes;
o que, por outro lado, já temos realizado com a
ação dêstes pequenos Conselhos Econômicos esta-
duais, que, com o nome de Institutos de Café, de
Açúcar, de Mate, defendem os produtos principais
da nossa economia tropical, o caráter técnico e
pragmático das suas . deliberações e sugestões, a
eficiência e o êxito da sua ação; - tudo isto nos dà
a prova experimental da excelência e da superio-
ridade destas novas instituições criadas pelas de-
mocradas contemporâneas e serve para nos ro-
bustecer a convicção de que foram sábios os povos
modernos quando, ao remodelarem os seus pro-
cessos de elaboração legislativa, iniciaràm o mo-
1Jimento da substituição progressiva da competên-
cia parlamentar pela competência técnica.
V PARTE

O PROBLEMA DA NACIONALIDADE
Cap. XIV : O problema do Nordeste e a mentalidade
daa elitea políticas.
Cap. XV : O sentido nacionalista ela obra de Alberto
Torrea..
CAP1TULO XIV

O PROBLEMA DO NORDESTE E A MENTALJ.


DADE DAS ELITES POUTICAS

·suMÃRIO: - · Os bandeirantes do sul e os bandeirantes ,i 1


norte: os antigos vicentistas e os modernos cearenses. Função
centrifuga das secas sertanejas. O drama dos sertões. - II. O
problema das secas: meios de resolvê-lo. Os americanos e o .ie•
serto do Arizona: o triunfo do homem sõbre a natureza. O de·
scrto sertanejo e o deslnterêsse das nossas elites. - III. Razão
dÕ!sse deslnterêsse. O ciclo bovarizante da mentalidade brasileira :
como êle se revela na política e na administração. - IV. N~-
cessldade de uma transformação nos Ideais politlcos das nossas
elites. O sentido do movimento nacionalista.

Os sertanejos cearenses têm realizado ao Nor•


deste, nestes últimos cinquenta anos, uma obra
análoga à que os antigos paulistas, nos primeiros
séculos da nossa história, realizaram por todo o
Brasil meridional. , Dos paulistas o formidável
movimento de irradiação reveste feituras épicas «;
'230 Oliveira Viana

ecôa ressonâncias homéricas; o dos cearenses é me-


nos ruidoso, menos teatral, menos empolgante, por-
que difuso, sutil, formigueiro; mas, igualmente edi-
ficante pela · férrea resistência moral, pela tena-
cidade indefessa, pela energia paciente, pela pro-
digiosa reserva de abnegação e heroísmo que re-
velam os seus realizadores.
Quem quer que estl!de a área de dispersão das
nossas populações sertanejas terá oportunidade de
reconhecer a extensão surpreendente da sua infil~
traição no seio da massa nacional. Verificará en-
tão que, 'Illa sua expansão para o ocidente - por
exemplo, para ,os grandes vácuos demográficos d~
Mato Grosso e Goiás - êsses novos bandeirantes
têm criado núcleos de população, que ,ainda não
figuram nos mapas dos nossos cartógrafos (1).
Na estupenda expansão colonizadora do ciclo
vicentista, a fôrça de propulsão das ondas migra,
tórias estava na pletora mesmo de vitalidade, no

(1) Cfr. Roquete Pinto - Seixos rolados, Rio, 1927, pág. 8S,
Julio Paternostro - Viagem ao Tocantins, São Paulo, 1945; Ly-
slas Rodrigues - Roteiro do Tocantins, Rio, 1943; Saboia Ribei-
ro - Caçadores de diamantes, Rio, 1945. O livro de Paternos-
tro principalmente é muito informativo sôbre estas obscuras no-
dulações urbanas, improvisadas. anônimas, de vida precária na
sua maioria, e totalmente constiutidas de ptilhoças, ou com uma
alta porcentagem delas (60 a 90%) . Nos sertões do Brasil Cen-
tral, a palhoça de burití, babassú, carnaúba ou carandal é a for-
ma comum das habitações urbanas e onde se Instalam até grupos
escolares ~ outras repartições públicas.
Problemas de Política Objetiva 231

sôbre-excesso de energias acumuladas nos peque-


nos centros de irradiação. O movimento expan-
cionista era um desaf ôgo, um transbordamento,
uma explosão por excesso de vida. Os enxames
colonizadores, que se espalharam por todos os qua,
drantes - para oeste, para o norte, para as minas,
para os belos platós do sul - agiam como apare-
lhos de derivação e eram esplêndidas manifesta-
ções de saúde e de fôrça daquela sociedade cava-
lheiresca e heróica, talhada para as sublimidades
da epopéia.
O moderno movimento colo-n:izador dos cea-
renses busca a sua razão de ser em outras fôrças
motrizes. :tsses sertanejos varonis não se expan-
dem; dispersam-se. Não é uma avançada a sua
irradiação; é uma fuga. Mergulhando no sombrio
das selvas amazônicas, ou entrando os chapadões
florestosos ou pastoris de Mato Grosso e Goiás, ou
descendo em busca das terras férteis e amáveis
do Sul, êles fogem à ardência das soalheiras bra,
vas, à calcinagem periódica dos sertões pelo fogo
implacável. Deixam !l terra, despejados pelo cli-
ma. Sob a inclemência dramática dessas fráguas,
a sua alma, resistente e estoica, se retempera e re-
funde: e é assim que êles a levam para as novas
232 Oliveira· Viana

zonas de infiltração e colonização - palcos silen-


ciosos dos seus heroísmos obscuros (2).
Dêstes heroísmos e dos seus episódios agôni-
cos e pungentes, um escritor do Norte nos dá, a
propósito da grande sêca de 1915, uma descrição
sem preocupações de arte, mas de um pitoresco
sombrio, cheio, às vêzes, de uma dramaticidade
macabra, como as visões saídas das terzinas do
Dante (3). Para êste efeito, não lhe foi preciso
senão esta coisa simplíssima: •n-arrar. Bastou-lhe
descrever com exatidão o drama assombroso, que
é a marcha dos flagelados através os sertões em
fogo. O autor transcreve também várias cartas
que os vigários das freguesias cearenses, para on-
de afluíam os retirantes famintos, dirigiam ao1
· seus superiores, implorando socorro - e só elas

(2) Sõbre a formação e história do homem do nordute, nos


sem vários tipos e feições - o vaqueiro, o sertanejo, o j;i gunço,
e cangaceiro. etc., v. José Américo de Almeida - A ParailM e
sem problemas, Paralba, 1922; Walter Pompeu - Ceorá -
Colônia, Fortaleza, 1929; Joaquim Alves - Nas fronteiras do Nor•
deste, Fortaleza, 1930: Lourenço Filho - Joazeiro ~ o Padre Cícero,
São Paulo, 1930; Pedro Batista - Cangaceiros do Nordeste, Pa-
ralba, 1929; An tonio Bezerra - O Ceará e os cearense,. 1906:
José Carvalho - O matuto cearense; Pompeu Sobrinho - Retrato
do Brasil; Djacos Menezes - O outro Nordeste; Au --imenon
Magalhães - O Nordeste Brasileiro, Rio. 1936; Lages Filho -
A margem das secas do Nordeste, Maceió. 1934.
(3) lldefonao Albano - O 8eCUlar problema do Nordute.
Rio, 1918.
'\

Problema, de Polltica Objetiva


bastariam para sacudir, num f risson de horror, as
naturezas menos suscetíveis às emoções rudimen-
tares da piedade (4). Dá-nos também várias fo.
tografias de retirantes, homens, mulheres, crianças,
todos ostentando o f acies doloroso da miséria e da
fome (5). Com estas, há também uma fotografia
de um campo de ossadas de rebanhos destruídos
- e é tão trágica na sua lúgubre perspectiva como
um recanto do Inferno numa ilustra-ção de Doré.
Ora, êsses episódios não . são de hoje, nem de
ontem; datam dos primeiros tempos, datnm de Pe-

(4) Do vigário de Sarit'Ana do Cariri: - "Vivo triste dian-


te do horroroso quadro do nosso Infeliz povo, a morrer de fomr.
A minha porta está cheia de pedintes esfarrapados, magros e su-
fos, que já não podem quase falar. A caridade particular está
esgotada". - Do vigário de Maranguape: - A miséria vai cres-
C<>ndo dia a dia, afligindo os meus paroq uianos de um modo ater-
rador. Aglomeram-se de todos os pontos emigrantes quase nús,
, esqueléticos. pedindo por amor de Deus um serviço ou u!lla esmo-
la, que " fazem tantos dias que eu não como". N:io lhes resta
mais recursos no mato. nem esperança de serviço público e saem,
como em romaria, pelas ruas pedindo esmolas" . - Do vigário de
Independencia: "Continuo a presenciar horrores; famil ias Intel·
:ras choram pelas ruas, pedindo não deixarem os seus filhos mor•
rerem à fome" , - Do vigário de Russas : - Cresce dia a dia o
r.úmero de pedintes. é grande a avalanche de retirantes, que men-
digam às portas, quotidianamente - e a caridade pública come--
ça a cansar. As alimentações silvestres estão acabadas: não h6
mais palmitos nas várzeas e a pouca macambira que existe é arran-
cada na chapada do Apodl, com quatro léguas ou mais de dis-
tância desta cidade". Do missionário Jesulta D . Lucas Heuser :
- "Os pobr<>s fla ílehidos Já começam a morrer de Inanição. Aln•
da ontem confessei quatro pessoas das quais hoje morreu uma
um verdadeiro esqueleto. Faz chorar ver esta pobre gente. Deu:
mlseratur nostrl" (obr. clt .. pâg. 56-60).
(5) v. eatampu a pág,
234 Oliveira Viana

ro Coelho, o primeiro branco flagelado pelas sê-


cas. Não vale falar das hordas indigenas que, nos
períodos precabralinos, deviam também ter sofri-
do a dureza do tremendo cataclismo e refluído
também, oomo os retirantes modernos, aos lito-
r,ais.
Dada a periodicidade do flagelo, cujos ciclos
tendem a se abreviar cada vez mais, como obser-
va Euclides da Cunha, é natural que se pergunte
se há possibilidade de contrabatê-lo e quais os
meios necessários a êsse objetivo. Porque, se fôs-
se negativa a pergunta, o que se devia fazer era
abandonar de vez essa região condenada, concen,
trar a sua população nas zonas ferazes da serra e
da costa - e deixar os sertões entregues à pleni-
tude do regime desértico.

II

Ora, a verdade é que o deserto, para o·homem


moderno, não existe. Dá-nos a ciência, hoje,
meios para criar nêle condições de habitabilidade
mais completas, transformando-lhe a esterilidade
e a solidão em fecundidade, fartura, riquez·a, po,
pulação humana e vegetal. ~stes meios são os pro·
cessos da açudagem em larga escala e, para o Cea-
rá, a consequente irrigação do vale do Jaguaribe.
Meios únicos, no parecer dos técnicos, que pode·
Problemas de Polífira Objetiva 235

rão resguardar do grande flagelo aquela rija po-


pulação de sertanejos.
Há também quem sugira uma derivação das
. águas do São Francisco para os afluentes do Ja-
guaribe. Outros, menos imaginosos e mais práli-
cos, propugnam por um vasto sistema de poços
artezianos. Outros aconselham uma arborização
sistemática do sertão por meio de certas espécies
vegetais mais resistentes às violências daquele cli-
ma singular - como o "joazeiro", por exemplo.
Como quer que seja, por êste ou aquêle meio,
o problema das sêcas sertanejas não é de impos,
sível solução. Outros povos têm conseguido trans-
formar regiões mais áridas e ingratas do que estas
em alfobres de sementeiras fecundas. O que os
franceses fizeram na Algéria e os americanos nos
desertos do Arizona basta para prová-lo.
Em relação ao Arizona - hoje florescente,
mas outrora feito todo de desertos alcalinos, poei-
rentos, queimados pelo sol, terra montanhosa, so-
litária e nua - Henry Semler escreve estas linhas,
que -são um cântico ao poder do homem sôbre as
fôrças brutas da. Natureza:
- "Quando atravessamos pela primeira vez o
pais, tinham conseguido alguma coisa, todavia não
hesitamos nem um momento em negar qualquer
futuro ao Arizona: aqui os homens brancos nunéa
estabelecerão civilização persistente, fundando-a na
236 Oliveira Viana

agricultura, pensavamos nós. Dez anos mais tar-


de, lembrávamo-nos envergonhados da nossa pro-
fecia: verificamos que o Arizona com os seus pês-
segos e uvas magníficas, rivaliza vantajosamente
com a Califórnia - e onde esperávamos ver um
deserto eterno ondulavam searas de trigo doura-
do. Perguntamos se êstes exemplos não dão di-
reito a concluir que os homens podem extinguir
qualquer deserto? Vimos transformar-se tantos
desertos ,em campos florescentes, vimos tantos ho-
mens que, se melhor pensavam, mais energicamen-
te agiam, vencerem e dominarem ondas de areia
e terrenos rochosos, que aprendemos a nos incli-
nar perante o fato, entoando o hino do novo evan-
~elho: NÃO HA DESERTO I Não I no sentido vul-
gar da palavra, não há deserto. Digam o que qui-
serem a superstição e a ignorância. Neste mundo
criado por Deus, não há lugar condenado à este-
rilidade. Qualquer ponto da rerra pode ser utili-
zado; se não o fôr, a culpa. é da miopia humana".
Diante destas palavras de fôrça e de triunfo,
diante dêste evangelho novo, que afirma que "não
há deserto", mas apenas superstição, ignorância,
miopia humana, é natural que se pergunte:
- Por que o deserto do Nordeste não foi ain-
da eliminado? Por que êste "Problema do Nor,
deste", problema secular, não teve ainda a sua s~
lução? Como se explica o desinterêsse das elas-
Problemas de Política Objetiva 237

ses dirigentes do pais por esta região das sêcas.


que tem por centro o Ceará e que abrange cêrca
de dez Estados, e ,onde sofrem talvez mais de cinco
milhões de bra~ileiros?

III

~ste desinterêsse das classes p·olfticas é . diri-


gentes pelo problema dos sertões e por tudo quan-
to se refere às nossas regiões interiores não pode
ser compreendi<lo sem um pequeno recuo ao pas-
sado. ~ste desinterêsse data de pouco mais de um
· século, nem mais nem menos: data da nossa inde-
pendência. Nos períodos anteriores, durante os
três séculos coloniais, a preocupação dos sertões
é uma sorte de obsessão dos nossos centros admi,
nistrativos, localizados nos litorais. Basta com-
pulsar os documentos dêsse tempo, principalmente
a correspondência dos governadores e tenente-ge-
nerais, para ver-se como os sertões - êsses vastos
interiores da nossa terra - enchiam o espírito dos
dirigentes coloniais (6).
Com a Independência e depois da Indepen-
dência, esta atitude trissecular de sertanofilia mi-

( 6) v. Pequenos estudos de psicologia !Odal, cap,: Orga-


nização da legalidade nos sertões. Também - Evolução do po-
vo brasileiro, parte III.
238 Oliveira Viana

litante modificou-se. O Brasil entrou naquilo que


se pode chamar a sua fase bovarizante: as preo-
cupações administrativas deixaram de ser os ser-
tões e os seus problemas; a l]1entalidade das elites
dirigentes começou a gravitar em sentido oposto:
e ,a obsessão dominante passou a ser as "conquis-
tas liberais" do velho mundo.
Desde êste momento, a atitude · dos nossos le,.
gisladores, estadistas e publicistas se resumiu em
refletir, com o automatismo dos hipnotizados, os
movimentos políticos dá Europa: ou as agitações
parlamentares inglesas, ou as vaniloquências do
liberalismo francês. O grande dever, a grande
glória, a grande ação era pregar a liberdade, or-
ganizar ·a liberdade, defender a liberda-de,-· Iütar
pela liberdade e, se possível, como em 24 ou 48,
' morrer pela liberdade. Liberdade política, está
claro; porque, a liberdade civil ficava em segundo
plano, na penumbra - e os nossos liberais quase
que não se preocupavam com ela (7). Tivemos
então o Constitucionalismo, o Parlamentarismo, o
Liberalismo, o Federalismo _:_ como estamos ten-
do agora o Socialismo e até mesmo o Bolchevis-
mo e o Anarquismo.

(7) Cfr. - Pequenos e8tudos, etc., cap. V.: - O problema da


liberdade civil e a organizaçiw d., justi,;-;;. Cfr. Burgess - Po-
litical science and comparative law, Boston 1890, pâg. 174-2~i.

\
Problemas de Polltfra Objetiva 239

Ora, para uma elite com uma mentalidade


dêsse feitio, os grandes problemas nacionais - os
problemas da Terra, do Homem e -do Povo - não
podiam ser percebidos com a lucidez devida. Só
agora é que começamos a entrevê-los novamente,
depois de mais de um século de esquecimento. Só
agora, quando a crescente tendência nacionalista
das nossas elites começa a mostrar, a fragilidade
e mesmo a inanidade dessas construções teóricas,
que foram o padi;ão de glória das gerações ante-
riores; só agora é que começamos a ver, com cla-
ridade cada vez maior, que são o saarismo, o im-
paludismo, o analfabetismo, o banditismo, o coro-
nelismo, o satrapismo, o federalismo - e não o
Constitucionalismo, o Parlamentarismo ou o Li-
beralismo, os grandes problemas centrais da na.
cionalidade. Já o impaludismo e o analfabetismo
começam a ser atacados, não tanto pelo fato , quan-
to pela propaganda das idéias.
E' sempre bom recordar que a iniciativa da
reação contra essas duas pragas, das sete, endê-
micas, que nos assolam, partiu de outras classes
que não as classes que dirigem politicamente o
país. Estas continuam ainda no culto dos seus
velhos fetiches verbais; ainda aferem a solução
dos nossos problemas mais objetivos e práticos se.
gundo o critério do que elas chamam o "espírito
republicano". Combatem tais ou tais medidas,
240 Oliveira Viana

contestam - e tivemos disto exemplo, quando se


discutiu, na Câmara, há tempos, o Código do Tra-
balho - o direito do Estado a intervir na re-
gulamentação das horas de trabalho das mulheres
e crianças, nas relações contratuais entre patrões
e operários (coisas que os povos mais liberai$ do
mundo, como o inglês, não repugnam fazer), não
porque estas medidas ou estas intervenções dei-
xem -· de corresponder a qualquer necessidade na-
cional ou qualquer idiosincrasia particular do nos-
so povo; mas, simplesmente porque estas medi-das
e estas intervenções não estão de acôrdo com o ...
"espírito republicano" (8). O mesmo se deu com
a lei da vacinação obrigatória: contra ela, e em
nome do "espírito republicano", houve até uma
revolução ...
O critério da utilidade coletiva, da necessidade
ou da conveniência nacional não tem importância
alguma. O valor das medidas legislativas ou ad-
m'inistrativas depende de serem elas éoncordantes
ou não concordantes com ... o "espírito republica- ·

( 8 ) Era urna alusão à oposição oferecida, alguns anos antes,


pelos "castilhistas" do Rio Grande, naquela época, às tentativas
:ie legislação social, entre as quais a da elaboração de um Código
do Trabalho. Considerados então como deposi tários do "espírito
republicano", autênticos mistagogos das tradições m,ais genuinas do
"historicismo", a sua oposição à leg islação trabalh ista ecoava co•
mo a voz da própria consciência republicana - e valeu como uma
excomunhão lançada contra os i110vadores .•• ~·

1
-~ .

Problemas de Polltica Objetiva 241

oo". E' êste principio que deve inspirar e orientar


lôda a ação dos órgãos que legislam ou adminis·
tram. Embora idiosincrasias ou peculiaridades
nossas de estrutura social venham a impor, como
providências de utilidade ooletiva, a adoção de cer-
tas medidas, essas medidas deverão ser repelidas,
se forem contrárias ... ao "espírito republica·no''l
(9).

(9) Naquela época e para aquêles homens, tomados do mls·


tlclsco da República, embebidos até à medula da doutrina de ·
Casti lho, tôdas as reformas legislativas, tõdas as medidas cons-
trutivas ou mesmo tõdas as decisões partidãrias, para serem apro-
vadas ou admitidas , tinham que ser aferidas por um padrão ou ca-
non ideológico, a que davam o nome de "espirita republicano".
Certo, êste "espirita republicano" . de que falava ungidamente o
chefe gaucho (Borges de M edeiros }, sucessor e continuador de
Castllh os, nunca foi definido claramente. Era qualquer coisa
mais ou menos semelhante ao "espírito revoluclonãrio", Invocado
pelos "tenen tes" depol~ da revolução de 30. . Bem analisado,
era, afinal antes uma idé ia vaga e indefinida, uma pre-noção, ln•
tultivamente percebida ou fns •i n~iv:im l' n'l' sentiria: m" ~ oue. aceita
como uma verdade mística, Inspirava - ou devia Inspirar -
as atitudes e decisões tanto dos que faziam políti ca como dos que
faz iam govêrno. Devia esta expressão "espírito republicano" conter
um siçi nificado intimo, oculto, esotérico; ma ,. provavelme nte éste
significado só era conhecido de alguns iniciados - aquêles que
formavam, ali, o pequeno Sinédrio dos sacerdotes do P ar tido.
Contudo, em nome dêste mito, sem consistência, nem contõr•
no, mostrou-me multa coisa utll, inclusive a legislação do traba,
lho, Inclusive a profilaxia antl-varióllca, contra a qual, em nom,
justamente dêsse "espirita republicano", um destes venerandos mis•
ta gogos, Lauro Sodré, capitaneou, - feliz mente sem ~xlto -
uma revoluç ão. Foi ainda, em nome dêste ··espírito republicano·
que se organizou a reação contra a política saneadora de Rodrl•
gues Alves e O swaldo Cruz. E' que êstes visionários - perigo-
.
sos, embora aparentemente inofensivos, - concentravam a fõrça
Oliveira Viana
Um habitante do planeta Marte, onde provà-
velmente não há "republicanos históricos", notan·
do essa importância soberana que, para os nossos
políticos, tem o "espírito republicano", há de pen-
sar lá consigo que êsse "espírito republicano" deve
ser qualquer coisa sagrada, como que uma expres•
são característica da alma da Raça, uma modali-
dade sublimada do espírito da N acionali<lade,
Mas, grande surprêsa há de ter quando verificar
que êsse "espírito republicano" é apenas uma ema·
nação do Contrato Social, de Rousseau, <la Hi~tó-
ria dos Girondinos, de Lamartine, e de alguns vo·,
lumes da Filosofia · P(Jsitiva, de Augusto Cornte,
aqui chegados, há cêrca de cinquenta anos, nos
porões de um transatlântico qualquer ...

IV
, · Enquanto permanecerem neste estado de es· ,;
.
pirito, é impossível que nossas elites políticas dêm . 1
aos grandes problemas nacionais, que interessam 1
à organização da base física do nosso povo, como ·
o das sêcas sertanejas, ou à organização da sua
•·
c'o seu idealismo militante na defesa exclusiva dos "sagrados di-
reitos do Homem". Faltava-lhes a consciência e o sentimento 1
dos "sagrados direitos da Coletividade" . Tinham da liberdade
humana uma compreensão puramente individualista e atomistica. -
Em pleno séc. XX viviam respirando a atmosfera do séc. XVIII, ·,
na doce camaradagem dos Encicolopedistas. . . e também dos ener•
gúmenos do. Par.tido Jacobino,
. ;,.,., .
Problemas de Polltica Objetiva 2*·'
ordem legal, como o do banditismo do interior, a
importância que êles merecem ter. Por outro la-
do, o satrapismo e o coronelismo :-- o potentado
estadual e o potentado local - são para estas eli-
tes, na sua visão daltonizada das nossas coisas e
na sua ignorância das coisas alheias, os símbolos
vivos do espírito do 1elf-government, da autono-
mia -m unicipal, das formosas liberdades l~ais, de
que tanto falam os historiadores politicos da In-
glaterra e os constitucionalistas americanos. eo.
mo se nas comunas inglesas houvesse coronéis e
houvesse sátrapas n·a América do Norte ...
Em boa verdade, todos êsses problemas se en-
cadeiam e será impossível resolvê-los de modo in.
dependente. O federalismo gera o satrapismo. O
satrapismo gera o coronelismo. O coronelismo
gera o banditismo. Enquanto sátrapas, bandidos
e coronéis vão fingindo "regime republicano" e
1elf-government -p or todo êste vasto Brasil, é claro
que não há tempo para cuidar, sêquer pensar, nem
do saneamento da terra, nem do saneamento do
homem, nem do saneamento das inteligências: pe-
la eliminação do deserto;• pela eliminação do pân-
tano; pela eliminação da ignorância.
Nenhum dêsses elementos dirigentes, princi.
paimente os das elites regionais, cheias dos mes..
mos preconceitos doutrinários que dominam a do
\
centro, vacilará em conceder dota~es orçamentá-

, "

244 Oliveira Viana

rias de centenas de contos para custear o luxo


constitucional de uma Câmara alta e de uma Câ·
mara baixa em qualquer dos Estados, por mais
pobre que seja - porque isto será prova de ...
"espírito republicano"; mas, ratinhará na conces-
são de duas ou três dezenas de contos para custeal
um aprendizado agrícola, uma comarca j udiciárillt
a construção de um açude ou a abertura de alguDI
poços e.rtezianos.
Em suma, a solução do problema das sêclll
sertanejas, como ·a de qualquer outro problema
estruturalmente nacional, dependerá de uma tro.nt
formação preliminar a pl'oee11aar-ae na mentali·
dade das nossas classes dirigentes. Enquanto sub·
sistir a atual mentalidade, nada se terá feito
O movimento nacionalista, que Alberto Tôrres
havia por algum tempo lançado e conduzido e que
depois se desnaturou sob a influência das oorrell·
tes do futurismo e do modernismo, visava preci·
sarnente operar êssa transformação preliminar dos
espíritos e muito especialmente a erradicação de al·
guns velhos preconceitos ainda dominantes sôbt1'
os problemas da liberdade e sôbre os problemas
do govêrno. O que êste movimento pretendia mos-
trar - e o faria vitoriosamente, se fôrças pertur•
badoras, de origem exógena, não o desviassem _e
anulassem - era que, sem esta modificação r1l·
d.ical no sistema de idéias políticas das nossas eli·
Problemas de Polllica Objetiva 245

tes dirigentes, seria impossível realizarmos aqui


qualquer obra realmente construtiva e organiza.
dora no sentido de fazer com que o Brasil pudesse
aparecer no concerto do mundo sem o vexame de
exibir, entre o fausto das suas grandes embaixa-
das e a sua situação ~e segunda potência ameri-
cana, os sete décimos da sua população tão incul-
tos, como o homem da idade da pedra; os nove
décimos, senão mais, corroiuos nus suus fontes de
'\lida peJa malária, pela anqui1ostomose e pela mo.
léistia de Chagas; cêrca de dez Estados e mais de
cinco milhões de brasileiros sujeitos às inclemên-
cias e 'às flagelações do regime des6rtico: e os seus
va11toe sertões actcntrionn111 - &oh o prctcJtto de.
respeito aos principios da liberdade municipal, do
self-governmenl e ao dogma f edera'tivo - talados
· impunemente pela correria dos quadrilheiros.
CAP1TULO XV

O SENTIDO NACIONALISTA DA OBRA DE


ALBERTO TORRES
SUÃMRIO: - I. Alberto Torres e a IU8 formação pol!tica. ·
II. Alberto Torres: o publicista. - III. Alberto Torres : o
tiológlco. - V. Alberto Torres e os nossoa pol!tlcos. - VI e VH,
l'uberto Torres e o problema brasileiro - VIII. O sentido na· 1
donaliata da obra de Alberto Torres.

Quando Aluisio de Azevedo apareceu com a


novidade dos seus romances naturalistas, gritaram
do Sul: romancista ao Norte/ Os homens do Nor-
te podiam também dizer com o aparecimento dos
grandes ,e nsaios sociológicos de Alberto . Tôrres:
pensador ao Sul/ Porque, realmente, pela capa-
cidade reflexiva, pela segurança, pela severidade,
pela amplitude do seu pensamento, Tôrres pode 1

ser classificado, sem favor, !llesta categoria de 'j


1

eleitos. I ~

]
Problema, de Politica Objetiva Zfl.l

Entre nós, o poderoso pensador fluminense foi


um dos poucos egressos da política de partidos,
um dos poucos que, depois de se contaminarem
com os miasmas dessa terrível malária ·sul-ameri-
cana,. não mais sentiram a nostalgia dos pauis, que
a elaboram. Lendo-o, sente-se que das tricas da
' politiquice, em que por um momento se envolveu,
trouxe uma impressão de enjôo, mas também uma
lição de experiência : os seus estudos mostram que.
sob as aparências do político, simulando interes-
sar-se pelas frívolices e nugas, com que se entre.
têm e de que vivem os nossos campanários elei.
torais, havia o observador, o crítico, o sociólogo_
sondando e analisando ,as causas e os homens.
Tôrres pertencia ao grupo dos chamados "his-
tóricos". Como tal, também palmilhara na agra
jornada da propaganda; também curtira .sob o ca.
tiveiro dos Faraós; também passara, helas! pelas
provações do deserto antes da entrega das Tábuas
da Lei; mas, ,aó contrário dos seus companheiros,
Tôrres tinha o senso das realidades e possuía idéias
positivas e práticas - e isto dava-lhe à personali-
dade um traço que o distinguia entre os "históri-
oos". :estes, com exceções peregrinas e apesar d.a
rude lição dos fatos, costumavam oscilar entre a
inconsciência dos bonecos falantes e aquela "me-
tafísicà de pedantes", que Taine dá como caracte-
rístico · do espírito jacobino: - "C'est une méta•
248 Oliveira Viana

physique de pédants, debitée avec une ernphase dea


énerguménes ... "
Tôrres, ao contrário, tinha -a vocação, o tem.•
peramento, a instintividade de um verdadeiro pen-
sador político. Corno todos os espíritos realmente
profundos, começou tenteando o terreno, à procu-
ra de uma adaptação que se lhe ifazia difícil pela
complexidade mesma da sua própria inteligência.
Companheiro de Patrocínio e Silva Jardim nas lu,
tas da propaganda, não se esterilizou, como mui-
tos outros no culto das grandes frases sonóras e
inanes. O seu -convívio com a política, que lhe
deu a presidência de um Estado e urna pasta de
ministro, não lhe perverteu, igualmente, nem o
senso da verdade, nem a severidade de pensar e
de dizer. E' que a sua personalidade, muito ori-
ginal e muito enérgica, corno que se n -e utralizara
às sugestões e às influências dêsses meios, onde
tantas inteligênciàs radiosas se embrutecem e tan-
tos caracteres honestos se diluem. O que é admi-
rável, porque tudo isto lhe aconteceu em plena e
florida mocidade: Alberto Tôrres, corno Nilo Pe-
çanha, foi um dos poucos que entre nós fizeram
uma carreira política completa, o cursu~ hono-
rum, a passagem por tôdas as magistraturas - an-
tes da maturidade.
Como rniinistro do Supremo Tribunal, foi um
dos mais notáveis daquela casa. O seu papel ali
Problemas de Polltica Objetil>6. 249

causou a muita gente, principalmente aos seus ad-


versários (que os teve virulentos) uma grande sur-
prêsa: todos o julgavam um tanto alheio às ques-
tões jurídicas e às práticas judiciárias, dada a sua
vida tôda ela passada nos embates da política e do
poder. Mas, cedo, os que nêle viam unicamente
o político começaram a descobrir e a reconhecer
o homem de lei, ho.nem de estudo, o homem de
pensamento, de que não haviam suspeitado ainda
o valor e as capacidades superiores.
Foi-lhe a passagem pelo Supremo Tribunal um
grande bem, porque lhe valeu com uma espécie de
remanso ou de recolhimento, onde o seu espírito
de medidativo se ,a chou à vontade, tranquilo, sere-
no, justo, para julgar e refletir. ,C reio que foi ali
que a sua nova orientação intelectual começou e
despontar e a definir-se. Não seria, com efeito,
no versar quotidiano das grandes questões cons, ,
titucionais, ,a plicando, como juiz, o texto da lei à
realidade dos fatos, à realidade da vida, à nossa
realidade social, que êle entrou a pensar mais se-
riamente na nossa gente, na nossa nacionalidade
e teve talvez, como numa nova Patmos, a visão
da nossa miserabilidade politica?
O que é certo é que, depois que dali saiu, veio
de novo à imprensa; mas, voltou transfigurado.
Deixara as vacuidades e as ressonâncias brilhan-
tes da época da propaganda. Era já agora um es-
...
"
Oliveira Viana

pírito educado à moderna, nos métodos mais re-


centes das ciências sodais.

II

Sôbre tudo isto, um ·e scritor dos melhores das


nossas letras políticas. No estilo, que é d~ um pen·
sador pela austeridade e de um artista pela no-
breza, não se,lhe descobrem, com efeito, êsses ame•
nos lugares comuns ou êsses caminhos já retrilha·
dos de expressão: a frase é sempre nova na sua
modalidade, não porque êle lhe rebusque novida-
de, mas porque o pensamento que exprime é de
si mesmo novo. · Nêle se denuncia um gôsto lite·
rário, que é raro, raríssimo mesmo, encontrar-se
entre os nossos políticos ou cientistas que se fazem
homens de letras.
Sente-se ·que estamos diante de um espírito
tranquilo, que pensa nobremente e com calma.
Não se lhe nota nenhuma vibração febril, nenhu-
ma pressa, nada dêsse nervosismo tão comum en·
tre os noss01, melhores prosadores. Os seus perío-
dos têm o movimento brando, quase imperceptível,
'7 · das águas que fluem em leito sem declives: são
límpidos e líquidos, sem frêmitos, sem centelhas,
sem rebrilhos, mas luminosos, caudais, serenos, es-
pontâneos e amplos.

.
Problema& de Polltica Objetiva 251

Tôrres pertence a essa categoria de escritores


que chamaremos complexos, em que o pensamento
não se destaca e salta desde logo, lllitido e vivo, de
dentro da sua forma verbal; mas, conserva-se uno
em todo o curso da exposição e só se vai desve-
lando aos poucos, lentamente, como uma mancha,
à medida que os períodos prosseguem a sua mar-
cha tranquila. De modo que é preciso lê-lo uma
segunda vez para lhe apreender bem as idéias -
e só então o seu pensamento nos aparece nas vas-
tas linhas do seu conjunto, nos seus amplos e no-
bres contornos.
Esta particularidade do seu talento é que lhe
tem restringido, sem dúvida, o âmbito à expansão
e à popularidade das suas idéias. tle não foi, nem •
' será nunca um escritor acessivel ao grosso da mas-
sa letrada; não atuará nunca diretamente sôbre
o povo; a ação das suas idéias se exercerá prin.
cipalmente sôbre o escol intelectual do país, na
sua porção mais culta, mais educada, mais aristo-
crática intelectualmente.
Doutrinador para classes dirigentes e de elite,
êle tem, no pensamento e na forma, a atitude cor-
respondente: é um espirito grave. Publicistas há
aqui que impressionam mais pela erudição; ou-
tros mais pela vivacidade e pelo brilho; outros
,, ainda pela lucidez, pela acuidade, pela leveza ou
pela graça. Nenhum, porém, nós dá, como Tôrres,

; .
252 Oliveira Viana

essa impressão de gravidade, que não é o cenho


carregado do mestre-escola ou a implacabilidade
moralizadora de Catão, o Censor; mas, a expres-
são alta e nobre de um espírito reflexivo, que con-
siderava a vida e a realidade, como Maeterlinck
considera o amor, uma coisa séria.

III

Vê de agora como é falho o preconceito das


idades: se devera assinalar uma geração nova, eu
classificaria nela Alberto Tôrres. Quando apare-
ceu com os · seus ensaios, na sua cabeça já se lhe
• prateavam os cabelos, embora precocemente; mas,
entre os da geração nova da época em que viveu,
êle estaria entre os mais jovens na revelação do
novo pensamento.
Esta nov·a geração não há de caracterizar-se
por uma preocupação estética, ou por uma preo-
cupação universalista, como a passada; mas, por
uma preocupayâo americana ou, melhor, por uma
preocupação nacionalista. Há qualquer coisa nos
ares que nos está indicando que uma transforma-
/ ção se aproxima para o nosso mundo .i!Iltelectual,
~a orientação qualquer nas tendências da nossa
mocidade, . um novo rumo ao seu pensamento. E
que êste novo rumo será claramente de reação
problemas de Pollfica Objetiva 253

contra ,a excessiva europeização da nossa vida e


da nossa cultura, tudo nos está mostrando.
Provas decisivas dessa trarnsfonnação dos es-
píritos é claro q1:1.e não se podem dar agora; mas,
estas coisas são das que se percebem, antes de tudo,
por intuição ou por instinto, through lhe pores oi
the ~kin, como diria Emerson. Basta ler, senão
nos livros, no próprio ambiente que nos cerca, os
sinais da sua vinda, os sinais da sua aproximação,
os sinais da sua iminência (1).
Nesta transformação de idéias que se ,a centua
nas tendências intelectuais do país, Tôrres, com o
seu objetivismo, o seu indutivismo, o seu realismo,
nos aparece sob as feições de uma figura culmi- .
nante. Poucos, pouquíssimos se mostram, como
êle, libertõs dessa preocupação tão brasileir.a, se-

( 1 ) Isto dizia eu em 1930 - e refletia o estado de esplrlto


do momento. Na verdade, o movimento, que todos presentiamos,
veio; mas, velo sem grandeza nenhuma, desvirtuado, como foi,
inteiramente do seu sentido nacionalista Inicial. Pelo menos no
campo da literatura de ficção, foi vitima das Influências lnterfe,
rentes do chamado "modernismo" ou, mais propriamente, "futu•
rismo", que na da tinha de nós, puro reflexo imitativo, que era, de
movimentos artificiais, vindos de fora, como de costume, mas com
a agravante de ser já agora capitaneado, não por altos esplrltos
europeus, como das outras vêzes ; mas, por autê'nticos c ,botinos
francêses e Italianos, sequiosos de popularidades e de cartas e consl•
derados, mesmo nos seus meios originários, figuras secundárias e na-
da repr!'.se ntativas. O modo por que tomamos a ~ério, sem o maior
exame, êstes cabotinos meios "toqués" e nos puzermos a imi-
tá-los em pastiches de um espantoso ridículo é, na história da,
nossas letras, um capitulo melancólico.
254 -
Oliveira Viana

gundo Silvio Romero, de "querermos ser o, que não


somos". Poucos, pouquíssimos, como êle, pos-
suem a noção mais completa, mais exata, mais com-
plexiva, mais "rica" da nossa realidade coletiva,
da nossa estrutura, do illOSSO funcionamento como
nação, das falhas do nosso caráter, ~as idiosincra-
sias da nossa psicologia, da índole e da mentali-
dade da nossa raça.
Na sua vi.são das coisas, nenhum preconceito
livresoo ou qualquer arriere-pensée de escola ou
de filosofia. Pelo menos, através da serena fluên-
cia das suas idéias, nada há que dê a entender
isto. Sente-se que o seu espírito, ,amplo e lúcido,
é atravessado por um largo clarão··-de agnostic1s-
mo - e as idéias fundamentais do evolucionismo
parecem ser a base da sua vi.são sociológica. Mas,
. tudo isto sem sistematismos/ sem exclusivismos,
sem essa· "lógica em linha reta do jacobinismo"
de que fala Rodó, e que tão irritante tornava en-
tre nós a sólida cultura de Teixeira Mendes. Tôr-
res lança simplesmente sôbre a nossa atualidade
os seus olhos observadores e procura ver, sem fu-
mos de preconceitos, normalmente, naturalmente,
o que se passa em tôrno de si, nas coisas, nos ho•
mens, no ,ambiente; e, recolhendo as suas impres-
sões, as expõe com uma segurança, uma nobreza,
uma elevação, uma racionalidade que o fazem um
dos maiores espíritos do nosso tempo.
~1 , , • • '

Problemas de Política Objetiva 255

Só os que se dedicam aos problemas sociais


· sabem quão difícil e penoso é o trabalho de obser-
vação dos fenômenos e de coordenação de dados
nesta ordem de estudos; e . quão emaranhada e
tn,extricável e variada é a trama dos fatos nêsse
numeroso "consensus ", que é a vida social de um
tlgregado humano ou a vida .psíquica de uma raça.
No meio da sua variedade, da sua multiplicidade,
de sua multivariedade, o observador, para não se
Unilateralizar, é preciso trazer na inteligência como
que um olhar múltiplo, a visão poliédrica dos inse-
- tos. E uma imperturbabilidade, um equilíbrio,
Uma ·s erenidade, um sangue frio intelectual, diga-
mos assim, que em nada é inferior ao dos grandes
oradores no tumulto dos parlamell'tós, ou ao dos
grandes generais nos campos de batalha, entre o
sibilo das balas e os gritos da chacina.

IV

Quando Tôrres deu à publicidade os seus dois


· Primeiros ensaios sôbre o "problema mundial" e
ª "paz universal", houve, em certos centros inte-
lectuais, um vivo movimentô de curiosidade e ad-
Iniração por êsse poderoso espírito, que, em plena
tnaturidade intelectual, aparecia surpreendendo a
geral frivolidade dos IIlossos meios literários com
2.56 · Oliveira Viana

uma das mais atualizadas culturas do nosso tem•


po e esplêndidamente ,a rmado dos métodos mais
modernos e seguros de análise e investigação so-
cial (2).
~sse movimento de curiosidade e de admira·
ção se operára, aliás, apenas num pequeno círculo
de intelectuais já trabalhados, sob a influência de
Sílvio e de Euclides, pela preocupação dos proble-
mas nacionalistas.
Movimento pequeno e restrito illO inicio, sem
dúvida; mas, que cresceu e acentuou-se com a apa·
rição dos outros dois volumes - sôbre o Problema
Naoional Brasileiro e sôbre a Organização Nacio·
nal. E havia razão de sobra para isto.
Realmente, êstes dois livros, sôbre serem ~
duas maiores obras de Tôrres, são dois livros onÍ•
modos, polimáticos, ricos de sugestões e idéias, uJlJ
e outro fundamentalmente brasileiros na sua ins-
piração e largamente embebidos da melhor essên-
cia do nosso gênio local. Formam uma obra vas·
ta e complexa, harmoo<iosa e orgânica, sôlidamen·
te construída com a mais genuína realidade das
nossas coisas.
Pode-se dizer mesmo que êstes dois último~
volumes de Tôrres são uma obra tão notável, no ,..i

(2) E' ponto que será desenvolvido na minha Metoclofogla


, do direito publico no Brazil, no prelo.
Problemas de Polltica Objetiva 25'7
seu gênero, como Os Sertões, de Euclides da Cunha. .
Cerro, êles não tiveram a sua aparição saudada
com a retumbância com que foi rodeada a apari-
ção daquelas outras páginas, duras e belas, cheias
das asperezas e dos brilhos da sílica; mas, isto
deve--se unicamente ao feitio da nossa mentalida-
de literária, amorosa das belas frases e das belas
imagens e, por isso, fàcilmente impressionável pe-
lo fogo e clarões do estilo euclidiano. Numa
e noutra, porém - na obra de Tôrres e na obra
de Euclides - imprime-se vigorosamente o cunho
local da nossa raça e da nossa terra: - e a gran-
deza de ambas está nisto.
~stes dois volumes -,- O Problema Nacional
Brasileiro e a Organização· Nacional - confirmam
lllais uma vez uma observação de li1J1has atrás: da
inexistência de arriêre-pensée em Alberto Tôrres.
Nenhum preconceito de escola ou de filosofia.
Nada, realmente, que pareça corromper ou dalto-
llizar a sua lúcida visão das coisas. Dir-se-ia que
0 mundo exterior lhe entra, ,em impressões suces-

sivas, através dos sentidos, a consciência - e es-


tas impressões sofrem ai apenas o trabalho lógico
do julgamento e da síntese, sem outros fatores
senão elas mesmas e as leis gerais do pensamento.
No fundo, aquela "scientific candor", de que fala

-----
liankins em obra recente (3).

-'<>e ( 3 ) Hanklns (Franck) - An lntroductlon to the lltud.11 of


iety, N. York, 1929.
2.58 Oliveira Viana

:tste método objetivo de análise social, que


Tôrres aplica tão seguramente ao nosso povo, é
que dá às suas críticas e ·às suas conclusões um
valor incomparável. Em qualquer outro país que
não o nosso, os seus cunselhos e sugestões teriam
determinado, nas altas camadas dirigentes, um
movimento de reação salutar e eficaz: -
"Verdades tiradas do concreto e do vivo -
diz êle - as que aqui se encontram são superio-
res às divergências de escola, de orientação ou de
sistema: são fatos e, como fatos, impõem conse-
quências que é forçoso aceitar".
Os métodos indutivos que Tôrres emprega não
são originais, nem aqui, nem fora daqui; reflexões
e investigações como estas sôbre o nosso povo,
outros escritores nossos já as fizeram com relêvo
notável: Nabuco, Tavares Bastos, Sílvio Romero,
Euclides da Cunha, Araripe Júnior, etc., para ci-
tar sómente os mortos. O que distingue Tôrres
de todos êsses publicistas é que nenhum, como êle,
revelou uma visão mais complexiva e mais bra-
sileira da nossa vida intima de povo; nenhum, co-
mo êle, chegou a sínteses tão completas e altas
sôbre a nossa nacionalidade; nenhum, como êle,
consolidou um tão vasto corpo de conclusões po-
sitivas, práticas, experimentais sôbre a verdadei-
ra orientação da nossa poli tica e dos nossos go-
vernos.
Problemas de Política Objetiva 259

E' ai que êle parece estar só entre os nossoa


publicistas. Dêstes, alguns, como Ar-a ripe Júnior,
limitaram-se a fazer ensaios agudos, penetrantes,
lucidi-ssimos, mas incompletos e fragmentários.
Outros, como Euclides, restringiram-se a monogra-
fias regioniais, embora magníficas e poderosas, de-
senhadas com o relêvo, a nitidez, o vigor das águas
fortes. Outros ainda, como Sílvio, tornaram-se cen-
tro de correntes notaveis de pensamento, criando
escolas, nucleos vivazes de acção e combate.
Tôrres, porém, só êle, pode construir, com vagai
é serenidade, à sua maneira e dentro do seu fei-
tio, sôbre a realidade viva do nosso povo, uma SO• '
ciologia brasileira; ·e sôbre essa socioJogia, uma po-
lítica naciori al, isto é, uma política nossa, sem lai-
1

vos de estrangeirismo, sem influências de além.


mar, sem a mescla deplorável dessa "bibli~uges-
, tão", de que f.ala, num dos seus livros, Oliveira
Lima.

Neste ponto é que se torna sensível o descri-


mem entre as idéias de Tôrres .e as dos nossoa
estadistas, políticos, legisladores e, mesmo, soció-
logos. Os métodos até agora: usados entre nós têm
consistido em -aplicar ao nosso povo, de uma for.
ma ingênuamente literal, por um simples tr.abalho
260 Oliveira Viana
de tradução e de cópia, as conclusões, as fórmu-
las, as soluções que os .sociólogos, os legisladores
e os estadistas europeus têm encontrado para re ,
solver os problemas sociais e políticos dos povos
que dirigem e governam. Ora, Tôrres reage in,
trepidamente contra êsse êrro:
- "As idéias, em que se baseiam os estudos
sociais e políticos até hoje feitos sôbre a nossa
vida - escreve êle, ao formular as linhas gerais
da sua política - partem de postulados e dados
analíticos ou sintéticos, inferidos da vida e da evo-
, lução de povos de existência multissecular e do
seu progressivo d·e senvolvimento em regiões den-
samente povoadas, sob a ação dos fatores ordiná·
rios da formação e desenivolvimento das velhas so-
ciedades e civilizações. Estas idéias não têm apli-
cação à interpretação dos fenômenos dos países,
como o nosso, criados por descobrimento, com so-
ciedades formadas por colonização, nem à solução
dos seus problemas".
Eis porque êle vai buscar -as inspirações para
o seu programa nacional no estudo da nossa rea,
lida de brasileira, na investigação dos nossos f enô-
menos, na analyse concreta do nosso povo, do
, nosso homem, da nossa terra, da nossa situação
real no concerto da civilização. Por meio destes
processos positivos de critica e sinthese social, elle
chega à fórmula de um vasto programa de política
genuinàniente brasileiro.
Problemas de Politica Objetiva 261

Esta política é a política da realidade, a poli•


tica dos dados da observação e da experiência, a
política realística, no sentido superior que lhe dá
Francesco Nitti: . '
- "Ogni buona politica - diz êste publicista,
num vigoroso estudo sôbre o problema nacional
italiano - deve essere in Italia r.ealistica: sia pure
per il fine il piu idealistioo, deve partire della co-
noscenza di cio che esiste. Altrimenti non avrà
mai alcuna efficacia: una politica radicale, cioe,
directa ad affrontare nella loro integrità i proble-
mi della vila nazionale, non puo che basarsi sulla
reali tà" (4).
Os métodos de análise social de Tôrres são,
como se vê, os mesmos aplicados por Nitti ao povo
italiano. São também os mesmos aplicados à
Fra,nça por Demolins, Henri de Tourville e todos
os pesquisadores da escola leplaiana: Roussiers,
Poinsard, Pinon, Préville. E os aplicados à E&,
panha por Pompeyo Gener e Joaquin Costa; por
Garcia Calderón ao mundo peruviano e a nós pelo
insigne Sílvio Romero, a quem faltou, contudo, ape.
sar das qualidades geniais do seu espírito, êsse sen•
so de objetividade e de sistematização, tão pro.
fundo e admirável em Alberto Tôrres (5).

('l) Nittl (F.) - 11 partido radicale e la nuova democrazia


industria/e, Turim, 1907, pâg. 75,
(5) v. nota '2.
262 Oliveira Viana

E' !Disto que reside a superioridade das con-


clusões de Tôrres sôbre as conclusões a que têm
chegado, em relação aos grandes problemas da
nossa política, os estadistas e pensadores do Impé-
rio e da República. Para êstes a melhor política
· sempre consistiu precisamente em adotar, copian-
do, a política ... dos outros povos. Tôrres, ao con-
trário, funda sôbre os dados da realidade, uma
política nacional, isto é, um programa nacional de
legislação e govêrno. :tste programa pragmático
de política brasileira é que o nosso grande pen-
sador justifica e desdobra ID05 seus dois últimos
livros.

VI

Para Tôrres, o problema brasileiro é, em sín·


tese, o problema econômico em tôda a sua com-
plexidade: - o problema, da formação, da conser-
vação e da organização da nossa riqueza.
E' uma conclusão, como se vê, completamen-
te diversa da que até agora nos tem ensinado os
nossos melhores espíritos. &tes se têm esforça-
do, desde os grandes dias da Independência até
hoje, por nos converncer que o maior problema na,
cional está: ora, na limitação do poder Modera-
dor; ora; no Parlamentarismo· inglês; ora, no Libe-
ralismo francês; ora, no Federalismo americano;
Problemas de Politica Objetivq 26.3

ora, no voto censitário: ora, no sufrágio universal:


ora, no voto secreto; ora, na representação das mi-
norias: ora, na organização dos partido~ políticos.
Tôrres mostra a inconsistência e a fragilidade
de tôdas essas aspirações, de origem exógena. O
grande problema nacional, o maior dêles, 0 pro-
blema dos problemas, é o da organização e da na.
cionalização da nossa riqueza, de cuja solução de-
penderá sermos amll!nhã um suzeranato europeu
ou uma nação de varões livres. Realmente, para
Tôrres, a nossa terra, com as incomparáveis ri,
quezas do seu solo e do seu subsolo, está sendo
estupidamente saqueada ou destruída no qu~ ela
tem de melhor e essencial.
Logo no segundo século da nossa história, pu-
semo-nos a carrear para os entrepostos europeus
o melhor do nosso ouro e das nossas gemas pre- -
ciosas. Do âmago das "catas''. dos recessos dos
"garimpas", os nossos bandeirantes intrépidos ar-
rebataram, esgotando-OS para sempre e sem remé-
dio, êsips maravilhosos tesouros, com que a Espa.
nha e ·f>ortugal atulharam as suas arcas e enrique·
ceram os seus impérios .
. Por outro lado, contra as nossas florestas se
vêm arremessando, desde o primeiros século, ês-
ses terríveis e implacáveis "fazedores de dest;rto"
na expressão de Euclides da Cunha. Dai, conse-
q,uentemente, as perturbações do nosso resime cli.
264 · Oliveira Viana

mátioo: a constituição progressiv-a das "caatingas"


ao Norte e a amplificação crescente das áreas es,
téreis ao Sul. Em suma: a saarização intensiva
do pais.
De modo que o que estamos fazendo, com a
exploração do ouro -e das outras espécies mine-
rais; com a destruição ou o esgotamento das fio.
restas para a extração da borracha, para a colhei-
ta do caucho, para a grande cultura do café; tudo
isto é apenas obra de delapidação imprevidente
das nossas riquezas, em detrimento das gerações
do futuro - e em favor do estrangeiro. tste re-
cebe as nossas riquezas na prodigalidade da sua
abundância e nos restitui· com valores econômicos
relativamente tão ridículos como os pexisbeques
e as qui·n quilharias vistosas com que costumam
pagar, em troca do seu ouro ou do seu marfim, às
populações broncas da Africa.

VII
Há ainda uma outra face mais grave do pro-
blema. Em frente a nós, do outro lado do oceano,
e ao lado de nós, ao norte do continente, vivem
e crescem povos fortes, expansivos, intrépidos,
agressivos e cúpidos, crendo profundamente na
própria superioridade e hasteando bandeiras de
hnperialiSlllQ e conquista. Consclent~ da nos~
Problemas de Polltica Objetiva 265

incapacidade e atribuindo-se a si mesmos uma alta


missão civilizadora, êsses povos robustos e varo-
nis, cheios de disciplina, cheios de organização,
cheios de dinheiro e de fôrça, com a pletora de
instintos predatórios das raças fortes, estão dispos-
tos a valorizar, pela diplomacia da paz, em todos
os casos e, em última análise, pela diplomacia da
fôrça, essas riquezas tropicais, inestimáveis aos
seus olhos e que nós não sabemos, pela nossa in,
dolência, pelo nosso descaso, pela nossa desorga.
nização geral, utilizar (6).
Eis para Tôrres o grande perigo, a cujo risco
está exposta, sem possibilidade de recuo ou de fu-
ga, a nossa nacionalidade.
• O que torna êste perigo mais temível para nós
( 6) Nós estâvamos então sob a ação das tendências expan-
sionistas e conquistadoras do imperialismo europeu e americano,
que havia surgido e desenvolvido na segunda metade do séc. XIX
e que, no séc. XX. se havia posto a serviço do capitalismo Indus-
trial. Não se conquistava mais pela fôrça, a tiros de canhão,
em ostentosa exibição do poderio mili tar - como na primeira
fase; mas, pela Inversão progressiva e Intensiva de capitais pri-
vados (bloodless invasion) , garantidos pelo prestigio militar e a
tlutlo de exploração das riquezas naturais dos novos continentais,
mediante a aquisição - ou de privilégios e monopólios industriais,
ou de vastas extensões de terras para agricultura, pastoreio ou
mineração ( v. Hardy - La politique colonial e et /e partage de la
terre au XIX siécle, Paris, 1937; ,....., Géographie et colonisation,
1935; Normano - The struggle for South America; Bardoux (J.)
- Essai áune psycologie de l'Ang/eterre contemporaine, Paris,
1906; Harmand - Domination et colonisation, Paris, 19IO. Cfr.
Guoch - História contemporânea de Europa (1878-1919), trad
e:. Champourcin, México, 1942; Segai ( L.) ,....., Estrutura li rithmo
de Z. .sociedad humana. México, 1940, cap. XI.
266 Oliveira Viana •
é o fato de que nesta luta, a que não podemos
fugir, oontra essas fôrças colossais, a nossa nacio,
111•alidade se ·a presenta fragílima, inteiramente de-
saparelhada das garantias mais elementares para
uma resistência vitoriosa: sem solidariedade mo-
ral, sem coesão nacional, sem organização coleti-
va, sem uma consciência forte, clara, definida da
sua própria situação e dos seus próprios destinos.
O nosso instinto de conservação coletiva nos está
a sugerir, a avisar, a impor a todos nós, princi-
palmente aos nossos dirigentes, aos nossos estadis-
tas, -aos nossos "responsáveis", à sua consciência,
, à sua sinceridade, à fidelidade do seu patriotismo,
a urgência imperativa de uma atitude nova, no
sentido de uma política defensiva, de uma JW)lí-
tica de preservação•e reparo, de prevenção e res-
guardo de nós mesmos, das nossas riquezas, da
noss·a integridade, da nossa p\-ópria existência na-
cional.
Ora, dado o estado de fraqueza e dissolução
de nosso povo e das ·raças que o compõem, esta
política de defesa e conservação nacional não pode
deixar de ser senão uma política de coordenação,
de construção, de consolidade interna da própria
nacionalidade. :tste é o pensamento central de to-
do o programa social e polítioo de Alberto Tôrres.
Nesta parte, ao estudar as causas da noss-a fra-
queza étnica, da nossa dissolução social, da nossa
anarquia política, da nossa desorganização econô,
Problemas de Polltica Objetiva 267

mica, é que os talentos de objetividade e síntese


do nosso grande pensador, a sua capacidade ob-
servador-a, a sagacidade e a lucidez da sua intui•
ção social mostram-se n-a sua plenitude e mara-
vilhosamente. \
Esta política nacionalística de Tôrres, tão \"a-
cional, tão positiv·a, tão prática, tão patt"iótica, do
que ela precisa é encontrar vozes novas e arden-
tes, no seio das nossas elites, capazes de lhe dar
o que o feitio grave do seu autor não lhe pôde
dar com vantagem: permeabilidade, difusibilidade,
popularidade, em suma. Tôrres é um escritor lú-
cido, harmonioso, claríssimo; mas, como pensador
é profundo e severo demais para a familiaridade
das nossas maiorias letradas. Como já dissemos,
é mais um escritor para elites d·e inteHgência e de
cultura. Tivesse êle tido o estron:do, o estrépito,
os .a laridos do grande Sílvio - e teria garantido
às suas idéias uma rápida expansão na consciência
da nacionalidade.

vn
Os céticos impenitentes, os desalentados habi-
tuais, os descrentes da capacidade da nossa raça
duvidarão que essa ·a lta politica de consolidação
e vitalização nacional, que Tôrres prega, possa vir
a ser realizada, utili~ando 0:pem1as os elemenlío~
268 Oliveira Viana

étnicos que constituem o nosso povo. O nosso


grande sociólogo, cujo otimismo é refletido e me-
dido, se bem que orgânico, crê firmemente nessa
possibilidade. E' talvez, dentre os nossos espíri-
tos mais cultos, ·o único que confia sinceramente
na sua raça, o único que a julga capaz dessa "1001·
ga, máscula, paciente tenacidade necessária para
empreender e sustentar, com vigor e inteligência,
o esfôrço múltiplo e vagaroso da construção da
nossa sociedade".
~le discute, por isso, nos seus livros, a apre-
goada inferioridade da nossa raça - e a nega.
Discute também a hipótese da degenerescêncíàOa
nossa raça - e a repele. Discute ainda a possi- ·
bilidade da melhoria da nossa raça - e a susten-
ta, a defende, a proclama.
Nós não somos, segundo êle, inferiores às ou-
tras raças européias, nem mesmo às raças do nor-
te: saxões, escandinavos, germanos em geral. Em
sentido absoluto, não há raças superiores, nem in.
feriares - pensa êle: a superioridade é uma fun-
ção do meio físico e social, em que as raças se en-
contram. O ariano, o indo-europeu só é supe-
rior aos outros tipos étnicos quando nos seus meios
nativos, ou nos meios semelhantes aos dos seus
centros de origem. O egipcio, o chinês, o árabe,
não eram de raça ariana; mas, foram grandes fun-
Problemas de Polllica Objetiva 269

dadores de civilizações. Os indo.:europeus, mes-


mo os seus exemplares .mais puros, os dolicocéf a-
los louros do norte, quaindo transplantados para
os meios tropicais, transformam-se, degeneram-se,
decaem. O alemão de Santa Catarina e Paraná,
na sua terceira geração, revela no caráter e no es-
pírito as mesmas falhas que o brasileiro nato e o
luso-brasileiro (7).
Para Tôrres, o m,eio físico e, principalmente,
o meio social econômico é que inferiorizam ou
superiorizam os tipos étnicos. E' o meio , brasilei-
ro fisico e social, que diminui, na generalidade
dos nossos patrícios, a capacidade para a luta eco-
nômica, em confronto com o homem das terras
frias - o saxão, o germano, o eslavo. :tstes, se-
gundo êle, veem também a sua progê·n ie decair em
nosso meio, pela mesma razão.
O oolono europeu, aqui localizado, vive num
meio a que não está perfeitamente adaptado, nem
no ponto de vista biológico, n:em no ponto de vista

(7) Cfr. Emilio Willems - População marginais do Brszil,


São P'a ulo, 1940; - A aqilturaç§o dos alemães no Brasil - São
Paulo, 1945.
Oliveira Viana

econômico, nem no ponto de vista social. Provin,


dos de regiões tem pera das ou frias, onde se culti-
vam a vinha e o trigo, onde medram a oliveira, o
centeio e a aveia, e deslocando-se bruscamente,
sem um estágio intermediário de adaptação, para
os nossos climas tropicais e sub-equatoriais, onde
o trigo não medr.a, nem a vinha, nem a oliveir~
nem centeio, nem a aveia, êsses imigrantes lusos,
italianos, germânicos e eslavos dos nossos dias so,
frem, como o luso da primitiva colonização, for-
çosamente, um duplo desequilíbrio: o desequilí-
brio psicológioo - pela diferença do clima; o dese-
quilíbrio econômico - pela impossibilidade de con-
tinuarem aqui na prática das culturas tradicionais
dos seus climas de origem.
Esta, a razão de nossa aparente fraqueza ou
da nossa aparente decadência, segundo Tôrrea. ,
Esta observação penetr,a nte e sagaz o leva a
concluir que - numa política que entenda garan-
tir, de um modo permanente, a integ.idade, a in-
dependência, a personalidade do nosso povo em
face dos grandes povos atuais -- um dos pontos
principais é a adaptação do homem europeu e tam-
bém do homem brasileiro à nossa terra e ao nosso "
meio. E' o que êle chama - o "problema brasi-
leiro da cultura e da educação do homem". Com
essa cultura e essa educação, não teremos, pensa
êle, nada ,a temer às raças fortes do norte,
Problemas de Polltica Objetiva !!71

Tôrres considera a apregoada superioridad~


dos gennanos "uma pretensão infundada e injus-
ta" (8). Como Sílvio Romero, êle julga que essas
chamadas incapacidades da nossa raça, as suas
qualidades más - aquilo do seu caráter que, pôsto
em função das necessidades contemporâneas, costu-
mamos chamar as suas "fraquezas" - tudo isto é
corrígivel e remediável, mediante um processo edu-
cativo severo, oom o qual se infiltrem em nosso
caráter essas fortes qualidades morais, essa vis du,
rans, que é o segrêdo e a fôrça das raças germâ-
nicas e saxônias no mundo.
( 8) Era êste um dos pontos das minhas divergências com
Torres. Dlscutiamos frequentemente - e vivamente - este tema. '
Pensava êle que eu defendia a teoria da superioridade das raças.
Esta minha crença na superioridade de certas raças era multo
relativa e condicionada - o que não Impediu de ser considerado
aqui o ar ianista n.• l, partidário da superioridade do dolico-louro1,
defendida por Woltmam, Ammon, Gobineau e Lapouge. Em boa
verdade, nunca defendi esta tese, menos ainda me arregimentei no
séquito da politlca pan-germanista. O que afirmei na Evolução
do Povo Brasileiro, fo i não propriamente a superioridade. mas a
maior migratoriedade dos tipos de raça germlnica, em contn,posição
aos tipos de raça céltica : - e devo confessar que não tenho ainda
hoje motivos para considerar esta afirmação errada.
Dizia eu então que os individuas de raça germãnlca eram
mais tendentes à migração, ao deslocamento, à expansão coloniza,
dora. Nada disse, porém, sõbre a superinridade deles - que i
outro problema, einbora Interferente com o primeiro.
Isto no que toca aos famosos, e hoje malsinados, dóllcos-louros.
Quanto às demais raças, eu jâ esbocei meu modo de pensar em
Raça e auimilação. onde digo algo que permite compreender mi-
nha concepção actual do problema das raç as, e nos futuros volumes
em preparo, dedicados ao estudo da Mobilidade social e da An-
fropo-sociologia das elites completarei esta minha concepção.
Oliveira Viana

E' esta convicção que lhe fortalece a cren~a


na capacidade do nosso homem e da nossa raça
e nas possibilidades futuras do nosso povo.

VIII

São estas, em síntese, as idéia!l fundamentais


de Alberto Tôrres. Nobres, altas, poderosas idéias.
Das páginas dos seus grandes livros, em que elas
se condensam, tão profundamente impregnados
das virtudes singelas da nossa raça e das fragân-
das do nosso solo, ressuma uma consoladora con·
fiança em nós mesmos. nos nossos destinos, na
nossa reabilitação, na melhoria e triunfo final do
nosso povo.
,Nestas idéias e nest~s paginas, deve embeber.se
a nossa geração atual -, cética, frívola, incrédula,
despreocupada, leviana. Na sua eloquência, na
sua serenidade, na sua tranquila beleza, o que elas
dizem, como sendo a expressão do nosso dever para
com o futuro, - a nós, os de agora, - é que, na
interpretação que buscarmos às nossas instituições,
na solução que procurarmos aos nossos problema::;,
o que é principal, o que é imprescindível, o que é
necessário fazer, antes de tudo, é - não esquecer
o Brasil.
\

ADDENDUM
\

'
1 /

,''
\

PROGRAMA DE REVISÃO
DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE
I
Começo proclamando a minha crença na len-
tidão com que se processa a evolução das socieda-
des. Reconheço que há uma "ordem natural" para
elas; que o poder de transformação desta "or-
dem , natural", por ação da vontade consciente do,
legisladores, é muito reduzido; que será preciso,
pois, levar em conta, na elaboração da nova Cons-
tituição, a fôrça, quase sempre incoercível e in-
compressivel, dos antecedentes históricos, repre-
sentados em nossa nacionalidade pelo oonjunto de
, ( *) Este programa de revisão da Constituição de 91 ela-
borei-o atendendo a um apelo do então capitão Juarez Tavora,
em 1932, não me lembro bem a data, Os militares, que }.aviam
feito a Revolução de 30 e formavam a maioria dos soc!os
do Club 3 de Outubro, haviam subido ao poder com a ~aida do
ministro Maurício Cardoso, da pasta da Justiça, que for1 acom-
panhado neste gesto pelo seu colega Lindolfo Calor, da pasta do
Trabalho. Estes militares formavam o grupo chamado dos "tenen-
tes" e, com o rompimento de Mauricio e Colar, foram chamados pelo
Chefe do Govêrno Provisório, o Sr. Getulio Vargas, de quem
receberam todo o ,p restigio j,ossivel e postos na administração
do paiz. Tavora, por lntermedlo de um amigo comum (Alc!des
Gentil) , incumbiram-me ( não sei si por sua própria conta, ou por
delegação dos seus companheiros) de elaborar um programa de
ação, que é o que dou agora à publicidade.
Minha Impressão é que não agradou .. . Multa cousa, porém, ne-
le sugerida, como se verá, foi realizada, ou na Constituição de 34,
ou na Constituição de 37, ou na Constituição de 46, que nos
rege, - como se verá das notas feitas ao fim deste addendum pelo
meu colega do Tribunal de Contas, mlnlstro Ruben Rosa.
276 Oliveira Viana

tendências, tradições, costumes, sentimentos, cren-


ças elaborados em quatrocentos anos de evolução
e que não podem ser eliminados, de súbito, por
um golpe de decreto ou por um código constitu-
cional. Por isso, o meu pensamento politico é
oontrário a modificações de caráter radical da
nossa estrutura social, a inovações muito acen-
tuadas no nosso sistema de leis civis e somente
aceitarei, como pontos de revisão, aquelas modi-
ficações, que embora latentes, já atingiram ao es-
tado de maturidade na consciência coletiva.
No trabalho da reforma constitucional, penso
que se deve tomar para ponto de partida a Cons-
tituição de 24 de -fevereiro de 91, visando objetivos
que são os mesmos que procuram atingir os revisio-
nistas atuais. Justamente por ter sido a Constitui-
ção sob a qual o país esteve durante 40 anos, é que
ela me parece ser o melhor ponto de referência
para se ajuizar das reformas que devem ser pro-
postas.
Considerando que o problema da revisão, an-
tes de ser um problema de técnica jurídica, é um
problema de ciincia política, o meu pensamento
é que, para esta fase preliminar da determinação
dos pontos de revisão, se deve avocar a colabora- ,
ção de tôdas as competências técnicas nos vários
domínios das ciências sociais e políticas, naqueles
pontos que interessam à organização nacional. Não
tenho simpatia pelos velhos metodos de política
Problemas de Polltica Objetiva 'J:'/7

construtiva, que faziam das Constituições um con-


junto de normas abstratas sem objetivação possí-
vel, obtidas dedutivamente ne poções preconce-
bidas, a que chamavam "princípios" (principio
federativo, principio de separação, principio de
autonomia local, etc.), muitos anos dos quais não
significam, em geral, outra cousa senão formas
de subordinação intelectual a pontos de vistas
estrangeiros, sem correspondência com a nossa
realidade nacional, e alguns dos quais, hoje, já
abandonados ou modificados nos próprios paises
de origem.
Liberto dêstes preconceitos ou, pelo menos,
. não me preocupando com eles, procuro orientar
o meu pensamento revisionista segundo métodos
objetivos, de observação e indução, só levando em
conta a nossa realidade presente, esclarecida pelos
nossos cem anos de experiências con.stitucionaic,
e políticas. Considero a nova ·Constituição ape-
nas um novo sistema de meios com que espero
possa a nação atingir os mesmos altos fins (ideais)
de liberdade, igualdade e democracia não atingi.
dos pelo sistema de meios da velha Constituição
do Império e, muto menos, pelo sistema de meios
da atual Constituição Republic~na.
n
Em relação ao regimen federativo, julgo sem
·valor a clausula éonstitucional - de que a Cons-
-~
'
278 Oliveira Viana

tituinte não pode modificar a forma federativa


do govêrno nacional ; po~ue não compreendo
que as gerações de 91 pudessem vincular a uma
forma de govêrno a-s gerações que lhes sucederam
e muito menos, a de agora, distante dela quase
meio século. Não é que eu seja contra a organi-
zação descentralizada, que o regimen feder ativo
implica; mas, não a posso aceitar com a latitude que
esta organização apresen~a na Constituição atual,
porque me parece seria fechar os olhos à evidência
desconhecer os incovenientes que este regimen tem
trazido para administração e govêrno do país.
Não reconheço fôrça no argumento dos que
nlegam, a favor da descentraliza~ão federa tiva, o
im•p erativo da nossa extensão territorial - e isto :
- a) porque reagir - com fim de consolidar e
preservar a unidade nacional, contra a desagrega-
ção imposta pela ação dispersiva dos fatores geo-
gráficos - é justamente a tarefa suprema de qual-
quer govêrno central, a sua obra realmente políti-
ca de construção da nacionalidade;
b) porque os pontos de revisão, pelos quais
propugno, não significam um retorno à antiga cen-
tralização imperai, asfixiante - e tanto mais no-
civa quanto eramos então, como ainda somos ho-
je, um país de circulação desorganizada e deficiente;
signficam, sim, a modelagem da estrutura poli-
tica do país sobre bases de um regímen prudente
de "desçoncentração organizada". ~ste regimen · ·
Problemas de Politica Objetiva 279

consegue conciliar os dois grandes interêsses, as-


segurando aos Estados a gestão dos seus
interêsses peculiáres pelos seus órgãos locais e à
União os da sua supremacia política, - como f ôr-
ça, que é, de coordenação, orientação e govêrno
da coletividade nacional.
Considero assim o Estado Federativo "um caso
espedial de descentralização". Nego, portanto,
em teoria, quaisquer direitos privativos dos Es-
1tndos em face da União e lhes reconheço apenas os
que a União lhes concede para o fim de melhor
gestão dos interêsses locais. Transformo, pois, o
antigo conceito da - federação de Estados - no
conceito mais racional de uma organização dei-
r:enlralizada do país. Dai a conclusão de que ne- ,
nhum Estado é autorizado a invocar os direitos da
sua autonomia ou a defesa de um interêsse local
para obstar que um interêsse de caráter geral ou
nacional se possa realizar dentro do seu território.
Nenhum Estado, como nenhum cidadão e nenhu-
ma classe, têm direitos contra a coletividade na-
cional: não há direitos contra a Nação .- e é a
concordância com o interêsse desta que dá legiti-
midade ao interêsse do Estado, da classe ou do ci-
dadão,

II
Definindo assim o meu modo de compreen-
der a capacidade autonô:mica dos E~tados, é, por-
280 Oliveira Viana

tanto, lógica a oonclusão a que chego, de que só


deve ter direito de administrar êste ou aquele in-
terêsse, ou mesmo a totalidade dos seus interês-
ses locais, aqueles !Estados que tiverem capacida-
de pecuniária para isto. Em face do que esta-
belece, no seu art. 5.0 , a atual Constituição
de que os Estados devem prover ás suas expen-
sas as necessidades do seu govêrno e administra-
ção - penso, fiel a esta concepção nacional do
interês·se público, que aqueles Estados que - pela
carência de elites organizadas, pela extrema dis~
persão da sua população, pela caráter rudimen-
tar da sua economia rural e industrial, pela defi-
ciência da sua capacidade tributária, se revelaram
sem possibilidades para encontrar, dentro ,das
suas fontes normais de receita, recursos orçamen-
tários na medida de atender, de um modo eficiente,
ao custeio dos serviços mais elementres da admi-
nistração pública, devem ficar logicamente fora da
categoria de Estado. Nêste caso, é dever da União -
no interêsse das próprias populações daqueles Esta-
dos - intervir com os suprimentos do seu tesouro
para dar a êstes brasileiros os mesmos direitos.
vantagens e serviços dos demais brasileiros. Pen-
so também que este suprimento financeiro da
Vnião deve arrastar implicitamente o direito da
União de intervir, (1) ou controlando, ou avocando
para si o serviço, ou mesmo cassando ao Estado,
por tempo indeterminado, a regalia autonômica,
Problemas de P.olltica -Objetiva 281

'
Outra conclusão só
t
se explicaria em povos, cujo
tipo federativo tivesse o caráter de "pacto entre
Estados" - e não ,de descentralização organizada,
como deve ser o caso do nosso.

IV
Considerando que, no conjunto dos poderes ·po-
liticos criados pela nossa organização constitu-
cional, nos falta um poder político vitalício, eu
ousaria propôr a criação de um novo órgão da
soberania nacional: o Conselho Nacional (2) como
instituição de contrôle e coordenação dos outros
poderes e dos interêsses gerais, dotado de funções
deliberativas, consultivas e judiciárias, que serão
especificadas na Constituição. Entre as suas atri-
buições e f acuidades deverão estar estas:
a) resolver sôbre a intervenção do govêrno
· federal nos Estados, o prar.o e a estensão dos po-
deres desta intervenção;
b) direito de veto a certo emanados dos outros
poderes políticos;
c) oompetência para resolver os conflitos
entre os diversos poderes da União e dos Estados;
d) opinar sôbre projetos de lei, partidos, ou
da Câmara Federal ou do Poder Executivo;
t

f) julgar os membros do Supremo Tribunal


Federal e os demais membros da magistratura;
t
' '\,
''
..
282 Oliveira Viana

g) contrôle, com direito de veto, sôbre a


proposta da Câmara Federal relativa a fixação
dos subsídios dos deputados federais e do pre-
sidente da República; '
h) competência para determinar o número
de deputados que devem compor a Câmara Fe-
deral e o critério da sua distribuição por Estados.
Este Conselho será composto de 15 a 21 mem-
bros, escolhidos entre as personalidades mais emi-
nentes do país, que se hajam feito notáveis nos
varios domínios do conhecimento, especialmente
nas ciências morais e políticas. Serão eleitos por
um corpo selecionado de eleitores, compostos: a)
dos membros do Conselho Nacional; b) dos mem-
bros do Tribunal de Contas Federal; c) dos mem-
bros do Supremo Tribunal; d) de tantos mem.
bros da Câmara Federal quantos foram os Esta-
dos. Uma lei -o rdinária determinará as condições
de elegibilidade para o Conselho Nacional.
Os ex-presidentes da República, cuja gestão
financeira haj~ sido aprovada pelo Tribunal de
Contas e que não hajam infringido, a juízo do
Supremo Tribunal, nenhum dispositivo da Lei dt'
Responsabilidade, serão considerados membros na-
tos do Conselho Nacional e ingressarão nele in-
dependentemente de eleição. O número de mem-
bros do Conselho Nacional não poderá exceder de
21, excluídos dêste número os ex-presidentes da
República,
' \

Problema, de Polltica Ob jetfoa 283

Consciente da gravidade do problema que é,


em nosso país, a tomada de contas dos gestores de
dinheiros públicos, julgo que se faz :riecessririo uma
reforma na instituição dos Tribunais de Contas,
tcrnando-os, não apenas na União, como nos Es-
tados (3) orgãos autônomos, cujos membros, assegu-
rados na sua independência pela vitalicidade, pela
inamovibilidade e pela irredutibilidade dos ven-
cimentos, exerçam atribuições administrativas,
oonsultivas e contenciosas tais que os tornem uma
fôrça de contrôle efetivo e eficaz · da economia tri-
butária e da execução dos orçamentos da União(-4).
dos Estados e dos Municípios. ~stes Tribunais
<>xercerão na União e nos Estados, além de outras
olribuições que lhe serão conferidas:,
a) um contrôle de gestão, relativo á execução
das leis orçamentárias, exercido pela tomada de
contas dos Presidentes da República, dos Presiden-
tes de Estado e dos Prefeitos Municipais. ~ste con-
trôle caberá, quanto ao orçamento federal, ao Tri-
bunal de Contas Federal, e, quanto aos orçamen-
tos estaduais e municipais, aos Tribunais de Con-
tas Estaduais;
·b ) um contrôlc de oportunidade, exercido
pelos Tribunais de Contas Estaduais sôbre os orça- -
mentas dos municípios e dos Estados, com direito
de veto em relação à matéria tributária, ,si o tri.
284 Oliveira Viana

buto criado é iniquo, excessixo ou anti-econômico;


d) ainda um contr6le de oportunidde, tam-
bém exercido pelos Tribunais de Contas dos Es-
tados, pela faculdade de autorizar ou não os em-
préstimos internos dos Estados e dos municípios (5).
Os empréstimos externos dêstes e daqueles, com~
os da União, serão autorizados pelo Conselho Nà.
cional, mediante parecer do Tribunal de Contas
Federal. !
O meu pensamento é de que o contrôle f inan-
ceiro da União sôbre os Estados não deve ir além
da autorização para os empréstimos externos, dei-
xando a fiscalização dos orçamentos dos Estados
aos seus próprios Tribunais de Contas, assegura-
dos em tôdas as suas condições de independên-
cia. Os membros dos Tribunais de Contas esta-
1 duais serão escolhidos pelo Presidente do Estado,

pelo presidente do Tribunal de Contas e pelo pre-


sidente do Conselho Consultivo &ta-dual, reunidos
em comissão.
·j
VI

Confesso que não tenho o culto do Parla-


mento. Não julgo que ele seja a expressão mais
legitima da opinião e da vontade do povo, porque
reconheço, em nossa sociedade, outras fontes de
opinião, tão autorizadas quanto êle; nem também
o julgo que deva ser o centro do sistema consti-
Problemas de Politica Objetiva • 285

tucional. Entretanto, acho que · é preciso atender


i..o scn limcnlo das massas populares e das elites,
que ainda continuam a considerá-lo a expressão
simbólica da liberdade política. Proponho, por
isso:
a) que se conserve a Câmara Federal, mais
ou menos com as atribuições que tem hoje; extin-
guindo-se, porém, o Senado, cujas funções passam
a ser preenchidas, ou pela Câmara Federal, ou
pelo Conselho Nacional;
b) que seja proibida a reeleição de deputa-
dos federais, estendendo-se esta proibição aos de-
putados estadoais; ·
c) que se estabeleça na Constituição pres-
crições, reguladas por léi ordinária, sôbre as in- ·
compatibilidades entre os que exercem cargos de
eleição ou de nomeação, de maneira a coibir o
revesamento dos postos eletivos e os males do
nepotismo;
d) que a fixação dos subsídios, quanto aos
membros da Câmara Federal, seja da competên-
cia do Conselho Nacional, mediante proposta da
CAmara Federal e, quanto aos membros da As-
sembl éias Estaduais, da competência dos Tribunais
de Contas Estaduais, mediante proposta das Assem-
bléias.
VII
Considerando a justiça uma função eminen-
temente nacional julgo que a dualidade da magis-
286 Oliveira Viana

tratura representa, nos Estados de tipo federado,


uma concepção primitiva, de que a maioria deles
tende a se afastar no sentido de uma concepção na-
cional e autoritária da justiça. Entre nós, essa dua.
lidade foi, como é sabido, uma solução de emer-
gência, por força de circuntâncias então ponde.
ráveis, mas que não tem absolutamente mais ne-
nhuma razão de ser no momento presente; de
modo que esta dupla magistratura não tem nenhum
fundamento nas nossas tradições históricas, nem
justificação aceitavel perante as condições da nossa
cultura civica. Por isso, não reconhecendo os Esta.
dos direito a uma magistratura própria, propugno,
como ponto fundamental da revisão constitucional,
sôbre o qual não se permitiria a menor transação :
a) a unificação da justiça e do processo (7)
tornando uma e outra da competência da União;
concedendo-se aos Estados apenas poderes regula-
mentares, no sentido de uma melhor adaptação da
legislação processual às condições locais respec-
tivas;
'h) a faculdade, -atribuída ao Supremo Tribu-
nal de, por provação do govêrno federal ou esta.
dual, ou de tribunais regionais, ou de qualquer Ins-
tituto da Ordem dos Advogados do país, declarar,
de maneira genérica (8) e com fôrça obrigatória,
a inconstitucionalidade das leis federais ou esta-
duais, ou a nulidade de quaisquer atos dos poderes
federais, estaduais ou municipais;
Pr.oblema, de Politica Objetiva U'l

e ) a amovibilidade compulsória dos magis-


trados, regulada por lei e determinada pelo Su-
premo Tribunal. Os magistrados do têrmo ou de
-
comarca servirão por prazo
0 .q ual serao autom_
. prefixado em lei , findo
a hcamente removidos para
outro têrmo ou comarca.
d) constituição de tribunais reg_ionais (9).

VIII

Umà das causas mais serias dos nossos desa-


certos administrativos, da nossa desorientação .na
gestão dos negócios públicos, dos programas de ·
govêrno fora das necessidades e conveniências
· fundamentais de coletividade, está no precon-
ceito da onisciência que os nossos homens de
govêrno, pelo só fato da sua investidllra nos car-
gos, a si mesmos se atribuem em relação ao conhe-
cimento dos negócios públicos e dis interêsses
coletivos. Donde resulta que a solução dos múl-
tiplos problemas da administração pública, eco-
nômicos, sociais, culturais e jurídicos, extrema-
mente complexos, se faz habitualmente por sim-
ples inspiração, por ciência infusa, ou por méra
leitura de gabinete. No intuito de corrigir os male-
fícios produzidos por esta convicção generalizada ·
nas nossas eli les governamentais, proponho, na
nova Constitu ição, a instituição dos Conselhos
Técnicos (10) como órgãos de consulta obriga . .
tória (11) junto a administração federal, como
288 Oliveira Viana

junto às administrações estaduais e municipais,


organizados de forma 1:1. atender às condições da
representação dos interêsses das classes e de inde-
pendência em face dos órgãos consultantes.

IX

Sou dos que não aceitam o regímen parla-


. mentar sob quaisquer das suas modalidades exis-
tentes (11), . porque estou perfeitamente cons-
ciente do seu fracasso na generalidade dos paises
que o adotaram; conservo-me, pois, fiel à orga-
nização presidencialista·, corno a mais consentâ.
nea com a necessidade de um Poder Executivo
. -
forte (12), numa nação ainda em formação, como
é a nossa. Não pretendo conseqüentemente sugerir
nenhum sistema de medidas que possam enfra.
quecer o Poder Executivo corno fôrça administra.
tiva e aconselho mesmo a elevação para 7 anos
do mandato do Presidente da República (13) e
para 5 do mandato dos Presidentes de Estado;
mas, acho que são indispensáveis certas medidas
cauteiórias e repressivas, tendentes a reduzir o
poder pessoal <los presidentes da República e dos
Estados e, principalmente, assegurar a sua respon-
sabilidade.
Para reduzir as possibilidades de arbí-
trio do poder pessoal dos Presidentes da -Rêpú-
blica e dos Presidentes dos Estados, sugiro, entre
outras, as seguintes medidas:
"' 1
Problemas de Polltica Objetiva 280

a) julgamento, n~ crime, de re1pon1abili-


dade, do Presidente da República (14) e dos Pre-
sidentes de Estado pelo Supremo Tribunal Fe-
deral;
b) tomada de contas da gestão financeira do
Presidente da República pelo Tribunal de Contas
Federal (15) e dos Presidentes de Esfadoa pelos
Tribunais de Contas Estaduais;
c) nos casos de intervenção nos Estados, au-
torização dada ·pelo Conselho Nacional;
d) nomeação dps membros da magistratura,
Inclusive dos membros do Supremo Tribunal Fede•
ral, pelo Conselho Nacional, mediante lista orga-
nizada pelo Supremo Tribunal;
e) . nomeação dos membros do Tribunal de
Contas '4'ederal pelo Conselho Nacional, mediante
lista organizada pelo próprio Tribunal de Con-
tas; ,
f) constituição do estatuto dos funcionllrios
e obrigação dos concursos, para provimento de
cargos públicos (16) ;
g) voto ,ecreto, facultativo, a requerimento
de qualquer deputado, na Câmara Federal ou
nas Assembléias Estaduais, tôdas a, vezes que, na
matéria a ser votada, tiver qualquer interêsse ·
o presidente da República ou do Estado;
h) incapacidade, por dez anos; para qualquer
cargo público, de eleição ou de nomeação, dos
ex-presidentes da República e dos ex-presidentes
290 Oliveira Viana

· ,de Estado, cuja •gestão financeira não fõr apro-


vada pelo Tribunal de Contas competente, e cuja
responsabilidade por crime funcional fôr decla•
rada, por sentença, pelo Supremo Tribunal Fede-
ral, em processo regular, movido, ou ex-officio, ou
por provocação do Conselho Nacional, ou ,p or ação
p~~~ -
O Presidente da República será eleito por um
corpo de eleitores (17) formado do Presidente da
Hepública e seus Ministros de Estados, membros
da Câmara Federal, do Conselho Nacional, do
Supremo Tribunal e dos Tribunais Regionais, dos
Tribunais de Contas Federais e Estaduais, ' dos
Presidentes de Estado e seus Secretários de Estado
e dos membros das Assembléias Legislativas Esta-
duais.
Propondo êste eleitorado prura escolha do
chefe da Nação, não tenho outro pensamento senão
confiar esta escolha a cidadãos em quem presumo
a posse de uma soma de informações e conheci-
mentos que os torna aptos para julgarem do valor
e da idoneidade dos himens públicos mais emi-
nentes do pais. Esta pequena minoria eleitoral,
pela posição e cargos que ocupa. parece-me repre-
sentar, na verdade, mais do que as maiorias incons-
cientes do interior e das cidades, a vontade e o
julgamento da ~ação:
Problemas de Polltica Objetiva Q91
>
X

Todos nós somos testemunhas dos malefícios


· trazidos à administração pública pela instabilidade
do funcionalismo, provocada pelas praxes do
.. spoils system'' - o que muitas vezes priva a
administração de um quadro permanente de fun-
cionários identificados com os serviços e técnica-
mente especializados nas suas funções. Para obviar
a isto, proponho que ca~ba a competência federal
a legislação sôbre o Estatuto dos Funcionários
- Públicos em geral, compreendidos não só os fun-
cionários federais, como os estaduais (18) e muni-
cipais. E' o modo que me parece mais seguro de
reduzir o mais possivel, pela generaHzação das
garantias, as eventualidades das demissões feitas
por motivos puramente partidários ou de mera
politicalha.
'
XI

Num povo de cultura polftica ainda deficiente,


como é o nosso, e num regimen generalizado de
política de clan que domina todo o pais, penso
que só há um meio de garantir a liberdade civil
dos cidadãos, principalmente dos que vivem no
interior, fora dos grandes centros urbanos, e que não
têm ·meios materiais para se defenderem: é a
federalização da justiça. Isto significa criar o juiz
Oliveira Viana

intemerato, forte do apoio da União; quero dizer:


.podendo invocar, se preciso, contra os podere,
locais, contra as policias estaduais, contra o arbi...
trio e arrogância dos cHefes e potentados de aldei._,
. o prestígio da força federal. Não creio, porém, qu~
1e 'Possa atingir inteiramente êste objetivo senã~
. acrescentando a esta federali.zação mais:
a) ju,tiça gratuita,·
b) juiz accessr'vel, isto é, posto ao facil alcal\..
, ce dos jurisdicionados.
Sugiro ainda mais duas medidas que julg~
imprescindiveis à garantia da liberdade civil doe
cidadãos: ,
a) ·prescrição de que - no cabo de violência ºlt
coação por ilegalidade ou abuso de poder, - o juii
. que conceder o habeas-corpus, reconhecendo ,
coação, condene, no mesmo despacho que concede,.
o habeas-corpus, a autoridade coactora as penas
da lei (19), cabendo a esta recurso, sem efeito
. suspensivo, para o juizo ou tribunal superior;
b) instituição da policia de carreira (20).
Com esta sugestão penso assim libertar a autori-
dade policial da dependência, em que vive por
todo pais, dos grupos f acciosos, que fazem a poli-
tica partidária nas localidades. Não posso. con.
ceber que os cargos policiais, cuja mi~são é zelar
pela ordem e tranquilidade da coletividade, con-
tinuem, praticamente, cargos de confinça partidil-
ria - de grupo, de facção, de clan. Considero o

'
Problema• de Polltica Objetiva 293

funcionário policial um funcionário administra.


fivo como qualquer outro e, como tal, julgo que
devemos assegurá-lo nas garantias do seu estatuto.
I
1 •
' -~'.\:• .
XII
Confesso que não tenho preferência por ne-
nhum sistema eleitoral determinado; mas, pro-
_pugnaria pela adoção das seguintes medidas:
a) intervenção soberana da magistratura (21) .
em t6das as fases do processo eleitoral;
.
b), legislação eleitoral única, de caráter fe-
deral (22);
c) censo alto como critério de capacidade ·
eleitoral do cidadão nas eleições para presidente
de Estado, deputados estadua;s e federais; reser- ·
vando ,o sufrágio generalizado às eleições para
formação dos conselhos municipais; ·
d) distinção entre a capacidade de eleger
(jus suffragii) e· a capacidade de ser eleito (jus
honorum) estabelecendo para estas condições mai11 ,
rigorosas de cultura e idoneidade moral.
Não tenho nenhuma confiança nos proces.
sos da democracia diréta em·nosso país; não aceito, ·
pois, nem a iniciativa, nem o referendo (23) ;
mas, não me oporia a que se estabelecesse a revo-
cação dos mandatos para os representantes do
Pader Legislativo, embora não o admitindo para
01 represent'Elntes do Poder Executivo, que só po-
294 Oliv~ira Viana

derão ser distituídos por processo regular perante


os tribunais competentes.

XIIl

Embora reconhecendo as vantagem,, que resul-


tam para a administração dos interêsses muni-
cipais, em confiar-se a sua gestão a agentes locais,
não creio, entretanto, que se deva dar aos muni-
cípios brasileiros a autonomia de que estas enti-
dades administrativas gozam em povos como os
anglo-saxónicos. Proponho, para isso, como\ pres-
crição a inserir-se na nova Carta Constitucional:
a) que se dê ao~ municípios o direito de
influírem nos negócios locais por meio dos seus
Conselhos Municipais e dos seus Conselhos Con-
sultivos (organizados sob o critério da represen-
tação de classes); .
b), que se reserve a função executiva à com-
petência do poder estadual, que a exercerá por
um mandatário seu, mediante o preenchimento "
por parte dês te de certas condições de competêncía ·,
e idoneidade, previamente estabelecidas em lei
ordinária estadual;
e) que ao govêrno estadual seja dado a facul-
dade de exercer sôbre as deliberações e atos dos
poderes municipais um contrôle de oportunid.arle
ou inoportunidade. ~ste contrôle será exercido
pelo Tribuna,! de Contas Estadual nos casos rela-
Problemas de Politica Objetiva ·295

tivos a tributação e a despesas excedentes de certos


limites e pelo pres~dente do 'Estado nos ~emais
casos.

XIV

O grande problema das democracias é a cons-


tituição de uma classes dirigente capaz.
O govêrno é essencialmente uma função ·a as·
elites e só deve ser exercido por individualidades
de elite. Não há, pois, outro título para a ascenção
aos cargos públicos e aos postos de govêrno senão
o da capacidade moral, associada à inteligência,
à cultura e á competência técnica. Por isso, pro-
pugno:
a) pela obrigatoriedade do concurso, devida-
mente regulado por lei, para o provimento dos
cargos públicos federais, estaduais ~ Illunici-
pais (25);
b) por uma organização severa da instrução
secundaria e superior, no sentido de tornar -o
ensino um meio efetivamente seguro de ministrar
a alta cultura e realizar a seleção das capacida-
des (26);
e) pelo contrôle, pelo govêrno federal, do
ensino primário e secundário, de maneira a poder
imprimir diretrizes nacionais ao problema da cul-
tura e da educação do povo (27);
d) pela oficialização do ensino superior, que
passará a ser, em todo o país, ministrado por pro-
296 Oliveira Viana

fessores remunerados' pelo tesouro público e em


escolas custeadas pela União e pelos Estados ;
e) pela distinção entre a capacidade de ele-
ger e a·capacidade de ser eleito, de modo que a ele-
gibilidade só possa caber aos que puderem provar
capacidade moral, competência técnica ou cul-
tura geral.

XV ' '

Não pei:tenço ao grupo dos que acreditam que


o povo brasileiro esteja amadurecido para a socia-
lização de todos ou de alguns do~ meios de produ-
ção (28) . Por isso, não acho aconselhavel preci-
pitar a instituição de um regímen, que ainda está
a prova nos países que o adotaram e de cujo êxi'to
ainda não há resultados positivos. Reconneço que
não existe em nosso pais uma questão social
éont os caractéres de acuidade e relêvo com que
se reveste nos países altamente industrializados:
mas, penso que é dever do Estado Nacional zelar
pela solução equitativa dos conflitos entre o capi-
tal e o trabalho. Dai propugnar por uma legisla-
ção social (29) que ampare o operário urbano e
rural, de maneira e assegurar-lhe a justa remune-
,ação do trabalho e as condições de higien~. bem
estar e segurança pessoal.
'
Problema, de Politica Objetiva 297

XVI

E' preciso realizar - e a nossa realidade o


está impondo de uma maneira imperativa - uma
remodelação no sistema tributário da União, cla-
ramente absurdo, no sentido de uma melhor dis-
tribuição das rendas entre os Estados e a Onião,
de modo a facultar a esta os meios orçamentários
bastantes para atender as graves obrigações que
a nova Constituição lhe irá atribuir. .Para esta
remodelação, seria aconselhavel fosse nomeada
uma comissão de técnicos, que, calculando as des-
pesas da União com os novos serviços, possa
prove-la com fontes tributários capazes de asse-
gurar-lhe uma receita correspondente a êsses
encargos.
Dada a variabilidade de rendimento das diver-
sas fontes tributárias segundo as continuas trans-
formações de estrutura econômica do pais, penso
que a distribuição dos impostos entre a União e
os Estados deveria ser antes matéria, não de prea-
crição constitucional, mas de legislação ordinária,
feita embora com os cuidados de um largo inqué-
rito, realizado por comissões de técnicos e cõm
a colaboração obrigatória dos Tribunais ae Con-
tas, Federal e Estaduais e com a aprovação final
do Conselho Nacional.
298 Oliveira Viana

(l ) Constituição de 34, art. 9 letra d; Constitulçã., de 46,


art. 7 n.• VI 22, in fine; 23 :1, II.
(2) Projetos Amolfo Azevedo (1920): Melo Franco (1933):
Constituição de 37, art. 40 a 55. ·
(3) Sob o regime da Constituição de 34, os Est:,dos do
Rio Grande do Sul, Bala, S. Paulo, Rio de Janeiro Distrito Federal,
Minas Gerais, Paralba tiveram Tribunais de Contas. A Con\lituição
de 46 preve a criação de órgãos de assistência técnlc:i ao: Muni·
clplos (art. 24).
( 4) Constituição de 34, art. 37: Co~titulção de 37, art.
46; Constituição de 46, art. 76 § 1.
(5) Decreto-lei (estadual) n.• 947 de 24 de outubro de
45, Rio Grande do Sul: - Nenhum empréstimo ou operação de
crédito, Interno ou externo, será realizado pelo Estado 0.1 Munl-
1
clplo sem parecer prévio e registo ulterior do Tribunal de Contas
que , lhe fiscalizará a aplicaç/io ( art. 14).
(6) Constituição de 34, art. 90 e 91 - funções rz:fuzidas
- órgão de coordenação. ,
(7) Constituição de 34, art. 5 n.• XIX letra a; Con11titulção
de 37; art. 16, n. 0 XVI; Constituição de 46, art. 5 a.• XV,
letra a.
(8) Declaração em tese: - Constituição Espanhola de
1931, art. 121.
(9) Constituição de 34, art. 78, 79; Constituição de 46,
art. 103.
( 10) Constituição de 34, art. 103; Constituição de 37, art.
S7; Constituição de 46, art. 205.
( 11 ) Constituição de 34, art. 103 § 4.
( 11') Os ministros comparecem às Câmaras quando convo-
cados: Constltulfão de 34, art. 37, 60d, 93; Constituição de 46,
art. 54, 91, IV.
( 12) Constituição de 37, art. 73.
( 13) Constituição de 37, art. 80 - seis anos.
· { Tribunal Especial - Constituição de 34, art. 58:
(14) Senado Federal - Constituição de 46, art. 62 n.0 I;
Conselho Federal - Constituição de 37, art. 86.
( IS) Constituição de 34, art. 102; Constituição de 46, art.
77 § 4.
( 16) Constituição de 34, art. 158, 170; Constituição de 37,
' art. 156; Constituição de 46, art. 168 n.• VI, 180 a 193.
, (17) Pelo Conselho Federal: - Constituição de 37, art. 78.
( 18) Todas aa Constituições &tadl,la.li vQtadas apóa 34 con-
1

.J
Problemtl8 de Polltict:t Objetiva !99

signaram normas mlnimas sõbre o funcionalismo pt\bllc:o. Ver ainda


Decreto-Lei n.• 3070, de 20 de fevereiro de 41 contendo normas
comuns no funcionalismo estadual.
(19) Constituição de 3i, art. 113 o.• 21; Constituição de
i6, art. li t § 22.
(20) Legislação em vigor na União e nos &tados. ,
(21) Constituição de 3i, art. 82-83; Constituição de i6, art.
109-121.
(22) Constituição de :H, art. , n.• XIX letra f, 91 n.• t
letra b; Constituição de 37, art. 16 n.• XXIII ; Constlt,llção de
i6, art. 5 n.• XV letra a.
'(23) Plebiscito: - Constituição de 37, art. 5 § Wllco, 63;
Consti tu ição de i 6, art. 2.
(24) Lei Orgânica Tr.lllunal de Contas - Rio Grt:nde do
Sul, art. 21. 22.
(25) Ver nota 16.
(26) Constituição de 3i, art. 150 letra a: Consutu1.;ão de
i6, art. 168 n! VI ; institutos de pesquisa : - art. 175.
(27 ) Constituição de ·31, art. 5 n.• XIV; Constituição de
,7. art. 15 n.• IX, 16 n.' XXIV; Constituição de 46, art. 5
o.• XV, letra; supletiva dos Estados : art. 6.
( 28 ) Constitu ição de 34, art. 116 ( mouopollzação de deter- ·
minada Indús tria ou atividade econômica); Constituição de 37,
art. li4 (nacionalização progress iva das minas, Jazidas 1t:lnerals
e quédas dágua e outras fontes de energia ; indústrias conslclerada.,
básicas à defesa econômica ou militar ); Constituição de 46, art.
116 (intervenção no domínio econômico; i:nonopolii ãção de deter-
minada Indústria ou ativ idade) . '
(29) Constituição de 3i. art. 121 -1 23: Constituição de 37,
1
, , art. 137-139: Constituição de i6, art. 157- 159.

' '

\
<
tNDICE
pag.
Prefácio da 2.a edição ... ; . . . . . . . . . . . . . . 13
la. PARTE- O PROBLEMA DA REVISÃO
Cap. I - O Sentido Nacional da Revisão 27
ClY-). II - O problema da Revisão e a luta
· contra o espírito de facção... 43
Cap. III - Alberto Torres e o problema da
rev~ão . .. . . .. .. .. .. .. .. . .. . 59 ,
2a. PARTE-O PROBLEMA DA LIBERDADE
Cap. IV - O problema da-liberdade civil e
a reorganização da justiça . . . . . 87
Cap. V - O conceito pragmático da liber-'
dá.de política . . . . . . . . . .. . . . 97
Cap. VI - Liberdade ou Nacionalidade? · 107
3a. PARTE - O PROBLEMA DOS PARTIDOS
Cap. VII - Programas de partidos e plata-
formas de candidatos .·... . .. 127
Cap. VIII°- Base social dos partidos .•. . ~ 137
Cap. IX - Orientação pragmática das
campanhas democráticas . . . . 145
4a. PARTE -- O PROBLEMA DO GOV~RNO
Cap. X - Os conselhos técnicos nos go-
vêrnos modernos (Evolução
Européia) ... . . . . . . . . . . . . . . . · 169
Cap. XI - Os conselhos técnicos nos go-
vêrnos modernos (Inglaterra,
França, Itália, etc.) . . . . . . . . . 181
Cap. XII ~ Os conselhos técnicos nos go-
vêrnos modernos (Brasil) . . . 193
Cap. XIII- Os conselhos técnicos nos g0-
vêrnos modernos (Brasil) . . . 205
5a. PARTE-O PROBLEMA DA NACIONALIDADE
Cap. XIV - O Problema do Nordeste e a
mentalidade das elites polít icas 229
Çap. XV - O sentido nacionalista da obra
1 de Alberto Torres ..... ·. . . . . . . 246
\
')
\
1
. . - - - --->-- ="'-~ - - - - - ·-""' ---- - - -- · ~· - - - - ------......

981.05
t732 ,
Llma, , Clau4io d• J.raujo, 1908-
Placido ele C..•tro, 1a1 oauilu oontra • lmpe•
rlallamo ••• 1952.
j
1953-sss '>I V
,~
i,.
••
\.

11

~-
j
.. : ·. 1
/
Retirantes
Campo de ossadav em Jraúçuh;,
Faminto~ aglomerados na estação de lcuatu

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