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O presente texto tem como objetivo traçar algumas linhas históricas sobre o texto dedicado
à Nossa Senhora, a mãe de Deus, que se encontra no capítulo oitavo da Constituição Dogmática
Lumen Gentium, documento do Concílio Ecumênico Vaticano II sobre a Igreja, no qual o Vaticano
II aborda a sua Mariologia, assim como revisitar os quatro dogmas marianos, estabelecendo
algumas linhas históricas e buscando o sentido dos mesmos para os dias de hoje.
Na fase preparatória do Vaticano II, 600 Bispos haviam pedido que o Concílio tratasse da
Virgem Maria. A Comissão Teológica Preparatória elaborou um texto sobre a Virgem Maria,
intitulado “A beata Virgem Maria, mãe de Deus e mãe dos homens” (De Beata Maria Virgine matre
Dei et matre hominum), com 6 páginas. Inicialmente, após discussões entre os membros da
Comissão, com “dois partidos diferentes”, no dizer de Guilherme Baraúna, era um esquema
independente, que foi distribuído aos padres conciliares no dia 10 de novembro de 19621.
O esquema não foi discutido durante a primeira sessão do Concílio. Todavia, entre a
primeira e a segunda sessão, chegaram à Comissão várias sugestões escritas pedindo a inserção
do texto sobre a Virgem Maria no esquema sobre a Igreja. A Comissão decidiu não atender a estes
pedidos, e enviou o esquema para os Bispos, mudando, todavia, o título, que passou a ser “A
Santíssima Virgem Maria, mãe da Igreja” (De Beata Maria Virginis Matre Ecclesiae)2.
Durante os debates sobre o esquema De Ecclesia na segunda sessão do Concílio, em 1963, a
opinião da inserção do esquema mariano como capítulo no esquema sobre a Igreja foi tomando
corpo. Diante disso, o primeiro debate na aula conciliar sobre o esquema mariano versou sobre
esta questão: a exposição sobre a Virgem Maria deveria constar como um capítulo do De Ecclesia
ou deveria ser abordada em um documento próprio.
As duas posições tinham seus defensores, tanto por motivos teológicos quanto por razões
sentimentais. É verdade que a discussão não poderia ser minimizada, diante do lugar proeminente
que a devoção mariana ocupa na vida do povo cristão. Por isso, no dia 25 de outubro de 1963, os
* Possui doutorado em Teologia pela Pontificia Università Gregoriana e Pós-Doutorado pelo Institut Catholique de
Toulouse. Foi membro da Comissão Teológica Internacional da Congregação para a Doutrina da Fé. É Professor do
Programa de Pós-graduação em Teologia da PUCRS. Contato: gborgesh@pucrs.br
1 BARAÚNA, G. A Santíssima Virgem a serviço da economia da salvação, p. 1158.
2 PHILIPS, G. La Chiesa e il suo mistero, p. 45; BARAÚNA, G. A Santíssima Virgem a serviço da economia da salvação, p.
1158.
moderadores comunicaram que enviariam esta questão para o debate na aula conciliar3. Entre os
vários pronunciamentos, pode destacar-se o do Cardeal Rufino Santos, das Filipinas, que defendeu
a posição de que deveria ser um documento próprio, a fim de destacar o lugar proeminente da
devoção mariana na vida concreta dos fiéis católicos, o que parecia melhor pela relação entre a
Virgem e a Igreja, a partir da Assunção corporal de Maria, além da mariologia não fazer parte da
eclesiologia. O Cardeal Francisco Koenig, de Viena, defendeu a inserção no documento De Ecclesia,
o que favoreceria a perspectiva histórico-salvífica e o ecumenismo, preferindo uma exposição
mariológica sóbria e sólida, baseada diretamente sobre o estudo das fontes e vista à luz do
mistério central e total da Igreja4. Após a apresentação na aula conciliar das diversas posições, foi
apresentada a proposta para a votação, que aconteceu no dia 29 de outubro de 1963. Com 2.193
votantes, o resultado foi o seguinte: 1.114 votos a favor da inserção no documento De Ecclesia,
como capítulo; 1074 votantes preferiam um documento próprio; 5 nulos5. Este resultado
mostrava uma divisão interna.
A falta de unanimidade demonstrava duas visões diferentes de mariologia, cada uma com
metodologia diversa. Uma visão procurava exaltar as virtudes e as prerrogativas de Nossa
Senhora, ainda entusiasmada com a definição solene de sua Assunção corporal, feita pelo Papa Pio
XII, no dia 01 de novembro de 1950, com a Bula Munificentissimus Deus, partindo, do ponto de
vista metodológico, do magistério da Igreja. A outra visão buscava evitar uma mariologia isolada
e que mostrasse a relação com os outros mistérios cristãos, centrada em seu papel histórico-
salvífico, tendo como ponto de partida a inserção da mariologia na história da salvação6. A
diferença de posições demonstrava a existência, na época, de duas visões mariólogicas diferentes,
que poderiam ser denominadas uma de maximalista e a outra de minimalista. Porém, a reflexão
precisava caminhar em busca de uma síntese. A unanimidade nas votações, de acordo com o
desejo do Papa João XXIII e intensamente solicitada pelo Papa Paulo VI7, deveria ainda ser
construído com paciência.
Enfim, a votação final do texto mariano, incluído como capítulo oitavo no documento sobre
a Igreja, aconteceu no dia 29 de outubro de 1964, com o seguinte resultado: 1559 a favor (placet),
521 com emendas (iuxta modum), 10 votos contra (non placet) e 1 nulo, sendo 2091 os votantes.
O texto conciliar, na opinião de Olivier Rousseau, chegou à almejada síntese mariana:
3 A votação efetuada dentro da Comissão sobre a inserção ou não como capítulo no esquema sobre a Igreja, obteve o
seguinte resultado: tractetur extra schema de ecclesia: 9; tractetur intra schema de Ecclesia: 12; abstenções: 2 (cf.
CONGAR, Y. Diario del Concilio. 1960-1963, vol. 1, p. 414-415).
4 Cf. PHILIPS, G. La Chiesa e il suo mistero, p. 46.
5 BARAÚNA, G. A Santíssima Virgem a serviço da economia da salvação, p. 1158. Também em CONGAR, Yves. Diario del
Concilio. 1960-1963, vol. 1 p. 456 (Y. Congar apresenta uma diferença de números em relação aos votos nulos: 2 com
modificações (iuxta modum); 2 nulos (nulli)).
6 Cf. PHILIPS, G. La Chiesa e il suo mistero, p. 513.
7 Giuseppe Alberigo expõe o desejo de unanimidade nas votações como uma das chaves hermenêuticas do Vaticano II:
ALBERIGO, G. Criteri ermeneutici per uma storia del Vaticano II, p. 43.
Duas observações preliminares devem ser feitas a respeito deste capítulo. A primeira
observação: o capítulo não pretende esgotar tudo que se possa dizer sobre a Virgem Maria.
Privilegia, sim, a Virgem Maria a partir de uma perspectiva histórico-salvífica e deixa de lado uma
orientação teológico-especulativa. Por isso, o texto aborda a mariologia dentro do mistério da
salvação, situando seus privilégios e prerrogativas pessoais neste horizonte. A segunda
observação: o Concílio não quis resolver as controvérsias entre as diversas tendências de
Mariologia presentes nos debates sobre o seu texto durante as sessões do Concílio. O texto
conciliar quis legitimar o valor da Tradição e do Magistério, que, juntamente com a Sagrada
Escritura, servem de base para um progresso doutrinal da Mariologia, deixando aberta a
continuidade da reflexão teológica9.
Nesta perspectiva, o capítulo mariano da Lumen Gentium apresenta uma reflexão sobre a
Virgem Maria a partir de uma orientação cristológica e eclesiológica, como o título do capítulo
mostra, apontando para um progresso qualitativo, no sentido de apresentar de forma nova a
doutrina mariológica, não fazendo acréscimos quantitativos, como o que aconteceu com a
definição solene do dogma da Assunção, mas alcançando um progresso doutrinal no
aprofundamento da doutrina tradicional10. Isto foi fruto do esforço de centrar a mariologia na
história da salvação e integrá-la no todo da reflexão teológica, retornando a uma visão bíblica,
patrística e litúrgica.
A elaboração do texto do capítulo oitavo da Lumen Gentium observou três critérios: o
bíblico, o ecumênico e o antropológico. A base escriturística adotada no capítulo demonstra a
preocupação ecumênica, que foi um dos pontos norteadores do Concílio Vaticano II. Com isto, foi
possível estabelecer diálogo com os não-católicos, especialmente com os protestantes. O critério
antropológico resultou no reconhecimento do valor da pessoa humana pelo texto como
colaboradora na realização da história da salvação. Desse modo, foi possível eliminar o perigo de
uma Mariologia fechada, autônoma e isolada. É como afirma o Papa Paulo VI: o capítulo mariano
da Lumen Gentium foi “um aprofundamento da compreensão e do amor dos mistérios marianos”,
não de desenvolvimentos teológicos ainda discutíveis11.
A Virgem Maria é apresentada no capítulo em dependência do mistério trinitário, pois na
sua vida se manifesta a ação da Trindade como demonstra o início do capítulo mariano:
8 ROUSSEAU, O. A Constituição no quadro dos movimentos renovadores de teologia e pastoral das últimas décadas, p.
131.
9 Gerard Philips opina que o não querer apresentar toda a doutrina sobre a Virgem Maria indicava a precaução de levar
a pensar que o Magistério deve dirimir todos os problemas teológicos com declarações autoritárias, como também
deixar aberto o prosseguimento da pesquisa e reflexão teológica. Assim, os padres conciliares se antecipavam a
possível crítica de que promoveram uma diminuição da piedade mariana na Igreja (cf. PHILIPS, G. La Chiesa e il suo
mistero, p. 529).
10 Cf. BARAÚNA, G. A Santíssima Virgem a serviço da economia da salvação, p. 1161.
11 PAPA PAULO VI. Alocução de 04 de dezembro de 1963, p. 37.
de recebermos a filiação adotiva’ (Gl 4,4-5). Por amor de nós, homens, e para nossa
salvação, desceu dos céus e encarnou na Virgem Maria, por obra e graça do Espírito Santo
(Lumen Gentium, n. 52).
Assim, a Virgem Maria, a mãe de Deus, é apresentada em comunhão com a obra redentora
de Jesus Cristo e em função do mistério total de Cristo, mostrando que as suas prerrogativas estão
a serviço da obra redentora de Cristo, como fundamenta o texto ao mostrar em cada etapa de vida
de Maria, desde a Anunciação até depois da Ascensão, a relação com a história da salvação (cf.
Lumen Gentium, n. 55-59). A isto se acrescenta o culto especial prestado pela Igreja a ela, pois ela
“tomou parte nos mistérios de Cristo”, particularmente pela sua maternidade divina – por isso,
desde os tempos mais antigos, honrada com o título de “Mãe de Deus” –, ela “é com razão venerada
pela Igreja com culto especial” e “sob a sua proteção se acolhem os fiéis, em todos os perigos e
necessidades” (Lumen Gentium, n. 66).
O capítulo aborda a relação da Virgem Maria com a Igreja. Em primeiro lugar, ela é modelo
de Igreja devido ao papel que ela exerceu na economia da salvação, fruto de sua maternidade
divina, tornando-se, assim, imagem da Igreja. Isto aconteceu da parte dela como missão e graça,
que não abarca o todo da Igreja. Em segundo lugar, ela é membro da Igreja, pois participa da
realidade mesma da Igreja e realiza o que é a Igreja. Em terceiro lugar, ela é mãe da Igreja, pois
como mãe de Deus, ela se torna a sua imagem primeira, por ter realizado tudo o que a Igreja deverá
realizar até a plenitude escatológica.
Assim ela é tipo da Igreja como virgem e mãe. No mistério da Igreja – pois também a Igreja
é com razão chamada de mãe e virgem – a bem-aventurada Virgem Maria ocupa um lugar
eminente e singular como modelo de virgem e mãe (cf. Lumen Gentium, n. 63). Pela sua virgindade,
ela realiza a união esponsal com Cristo e viveu em fidelidade absoluta a ele. Pela sua maternidade,
ela se torna a primogênita de toda a humanidade, pois ama, gera e educa seus filhos. Pela
maternidade, ela exerce a mediação quando colabora na comunicação da graça. A partir desta
compreensão, foi evitada a questão da oposição ao título “medianeira”, apesar da não definição
solene. Jean Galot assim se expressa a respeito desse tema: “A ideia de uma cooperação maternal
ao nascimento e a educação dos cristãos surge notavelmente mais rica do que aquela da mediação
na ‘distribuição das graças’”12.
Tudo isto justifica a imitação de Maria pela Igreja. Não só por ser a cristã mais perfeita, mas
também pela exemplaridade em relação com a Igreja, pois ela é a imagem ideal da Igreja, por isso,
tipo da Igreja, como membro supereminente e de todo singular na Igreja por causa de sua
maternidade divina. Ela realizou uma peregrinação na fé como aponta o texto do capítulo:
Mas, ao passo que, na Santíssima Virgem, a Igreja alcançou já aquela perfeição sem
mancha nem ruga que lhe é própria (cf. Ef 5,27), os fiéis ainda têm de trabalhar por vencer
o pecado e crescer na santidade; e por isso levantam os olhos para Maria, que brilha como
modelo de virtudes sobre toda a família dos eleitos. A Igreja, meditando piedosamente na
Virgem, e contemplando-a à luz do Verbo feito homem, penetra mais profundamente,
cheia de respeito, no insondável mistério da Encarnação, e mais e mais se conforma com
o seu Esposo. Pois Maria, que entrou intimamente na história da salvação, e, por assim
dizer, reúne em si e reflete os imperativos mais altos da nossa fé, ao ser exaltada e
venerada, atrai os fiéis ao Filho, ao Seu sacrifício e ao amor do Pai. Por sua parte, a Igreja,
procurando a glória de Cristo, torna-se mais semelhante àquela que é seu tipo e sublime
figura, progredindo continuamente na fé, na esperança e na caridade, e buscando e
fazendo em tudo a vontade divina. Daqui vem igualmente que, na sua ação apostólica, a
Igreja olha com razão para aquela que gerou a Cristo, o qual foi concebido por ação do
Espírito Santo e nasceu da Virgem precisamente para nascer e crescer também no coração
dos fiéis, por meio da Igreja. E, na sua vida, deu a Virgem exemplo daquele afeto maternal
de que devem estar animados todos quantos cooperam na missão apostólica que a Igreja
tem de regenerar os homens (Lumen Gentium, n. 65).
3 Os dogmas marianos
O dogma da maternidade divina foi definido pelo concílio de Éfeso, no ano de 431. A
fundamentação bíblica do dogma está em Lc 1,30-35; 41-43. É um dogma com base escriturística
revelada suficiente. O dogma ensina que houve uma verdadeira maternidade biológica, isto é,
humana e natural e, ao mesmo tempo, uma maternidade plenamente espiritual, tanto quanto ao
modo – uma maternidade virginal – quanto à causa da maternidade – o Espírito Santo. Daí que a
maternidade divina de Maria se mostra como uma verdade cristológica e mariológica
simultaneamente.
O anúncio do anjo no momento da Anunciação demonstra que a sua maternidade se tornou
revelação para a vida da Virgem Maria, porque, por meio do diálogo, ela é elevada à condição de
parceira com Deus, não se tornando, assim, mero instrumento passivo nas mãos de Deus. Por ela
13 Cf. MÜLLER, A. La posizione e la cooperazione di Maria nell’evento di Cristo, p. 515. A mesma argumentação encontra-
se em SCHMAUS, M. Fé da Igreja, v. 6, p. 115.
saber, torna-se pessoa na história da salvação, pois na Anunciação ela é instruída sobre sua
predestinação eterna e se desvela a ela a dimensão histórico-salvífica de sua vida14. A resposta dada
por ela, o seu sim, não é simples reação situada no nível do conhecimento, mas comunicação plena
acontecida por meio de um colóquio pessoal, só possível por que aconteceu em uma verdadeira fé. A
sua resposta a faz participar da intimidade de Deus, pois ele revela a sua vontade e ela aceita. E a
resposta positiva dela abrange a esfera do conhecimento e da vontade, ou seja, a profundidade da
totalidade do seu ser. Por isso, sua maternidade não é meramente física, mas também espiritual. O
Papa João Paulo II, citando os Padres da Igreja, assim se expressa:
Maria pronunciou este ‘fiat’ mediante a fé. Foi mediante a fé que ela ‘se entregou a Deus’
sem reservas e ‘se consagrou totalmente, como escrava do Senhor, à pessoa e à obra do
seu Filho’. E este Filho - como ensinam os Padres da Igreja - concebeu-o na mente antes
de o conceber no seio: precisamente mediante a fé. Com justeza, portanto, Isabel louva
Maria: ‘Feliz daquela que acreditou que teriam cumprimento as coisas que lhe foram ditas
da parte do Senhor’. Essas coisas já se tinham cumprido: Maria de Nazaré apresentava-se
no limiar da casa de Isabel e de Zacarias como mãe do Filho de Deus. É essa a descoberta
letificante de Isabel: ‘A mãe do meu Senhor vem ter comigo!’” (Redemptoris Mater, n. 13).
A Virgem Maria, a mãe de Deus, foi proclamada mãe da Igreja, no dia 21 de novembro de
1964, pelo Papa Paulo VI. Com esta proclamação, que não é uma definição dogmática nova, o Papa
deseja que a Virgem Maria seja “honrada e invocada por todo o povo cristão” para a sua glória15.
Este título foi usado por Berengário, em 1125, por Leão XIII, João XXIII e Paulo VI16.
A justificativa deste título é que, na Igreja, a Virgem Maria é a parte melhor, a primeira
escolhida da humanidade. Aí está a função materna que ela exerce na Igreja em relação ao povo
cristão. Também, em Cristo, a Igreja encontra aquela por meio do qual Jesus Cristo veio salvar: a sua
Mãe. Além disso, a maternidade é o fundamento da relação especial de Maria com Jesus Cristo e do
seu papel histórico-salvífico, como também o principal fundamento das relações entre Maria e a
Igreja. Como mãe de Deus, é também mãe da Igreja. Sendo mãe de Deus, a Virgem Maria torna-se mãe
de todos aqueles que vivem em Jesus Cristo, seu Filho17.
Mateus, ao explicar a origem de Jesus, exclui José da geração de Jesus, porquanto a série de
gerações é interrompida com José (cf. Mt 1,16), mas, por outro lado, o apresenta como testemunho
do mistério acontecido com Maria e é chamado a assumir o papel de pai legal de Jesus e esposo de
Maria, que ficou grávida por obra do Espírito Santo (cf. Mt 1,18-25). O evangelista Lucas atesta a
virgindade de Maria através do diálogo com o anjo, no qual fica claro que ela concebe por obra do
Espírito Santo e que ainda não convivia maritalmente com José (Cf. Lc 1,30-38). Segundo Stefano
De Fiores, o versículo 36 do primeiro capítulo de Lucas indica a virgindade também no parto com
a palavra “santo”, pois exclui qualquer purificação após o parto natural18. O evangelista João atesta
a virgindade de Maria antes e durante o parto com o versículo 13 de seu primeiro capítulo, o
Prólogo, no qual afirma que Jesus não foi gerado pelo sangue e pela carne nem da vontade do
homem. Esta interpretação, já encontrada nos Padres, é conformada em 1Jo 5,18, com a expressão
“gerado por Deus”19.
A tradição doutrinal da Igreja sobre a virgindade perpétua de Maria é longa. Inácio de
Antioquia, no século II, atesta a virgindade de Maria, desenvolvendo o ensinamento de Paulo em
1Cor 2,7-820. O mesmo faz Justino21, Ireneu de Lião22, Orígenes23. A fórmula ternária, “virgem antes,
durante e depois do parto”, já era usada no século IV. A mesma fórmula é encontrada no cânon 3
do Sínodo Lateranense, de 64924. Santo Ildefonso de Toledo, falecido em 667, escreveu o tratado
intitulado De Virginitate perpetua Sanctae Mariae contra infideles, considerada a primeira obra no
Ocidente dedicada a enaltecer as perfeições de Maria, especialmente a sua virgindade.
Segundo a tradição eclesial e o Magistério, não basta apenas admitir a concepção virginal,
em fidelidade ao texto da escritura, mas também é necessário afirmar o nascimento virginal do
filho de Deus, pois o dogma afirma a integridade corporal de Maria, antes, durante e depois do
parto. Os Padres da Igreja ensinam, ao mesmo tempo, a integridade física da maternidade da
Virgem Maria, a sua realidade somática, e a virgindade também como sinal das realidades
sobrenaturais. Desse modo, a maternidade divina e a concepção virginal de Jesus não são somente
dois fatos milagrosos, mas também verdadeiros mistérios relacionados, que se dá nas dimensões
histórica e pessoal, pois ambas se realizaram na Virgem Maria. Os dois acontecimentos ocorreram
na história humana e na pessoa mesma da Virgem Maria, o que diz respeito à história da salvação.
Na sua virgindade, destaca-se a inciativa absoluta de Deus na encarnação: ele decide o dia e
a hora em que o Messias viria ao mundo. Esta é a mensagem do anjo: “O Santo que nascer será
chamado Filho de Deus” (Lc 1,35). Nela se verifica a decisão divina, mediante a sua aceitação livre:
“Eu sou a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38). Assim, Jesus, o novo
Adão, inaugura o novo nascimento dos filhos de Deus no Espírito Santo.
Stefano De Fiores escreve que afirmar a virgindade de Maria não resolve todos os problemas
da Igreja e do mundo. Todavia, este mistério pode ajudar o cristão de hoje a viver em plenitude a
sua opção fundamental por Deus como fez a Virgem Maria, além de contribuir para penetrar o
próprio mistério do chamado pessoal dirigido por Deus a determinadas pessoas para exercerem
papéis específicos na história da salvação, fruto do amor de Deus, além de se tornar sinal do
florescimento da capacidade de uma perpétua doação plena a Deus e de uma nova ordem moral,
também sexual, marcada pela graça de Deus25.
Mas o Pai das misericórdias quis que a aceitação, por parte da que Ele predestinara para
mãe, precedesse a encarnação, para que, assim como uma mulher contribuiu para a morte,
também outra mulher contribuísse para a vida. É o que se verifica de modo sublime na
Mãe de Jesus, dando à luz do mundo a própria Vida, que tudo renova. Deus adornou-a com
dons dignos de uma tão grande missão; e, por isso, não é de admirar que os santos Padres
chamem com frequência à Mãe de Deus ‘toda santa’ e ‘imune de toda a mancha de pecado’,
visto que o próprio Espírito Santo a modelou e dela fez uma nova criatura Enriquecida,
desde o primeiro instante da sua conceição, com os esplendores duma santidade singular,
a Virgem de Nazaré é saudada pelo Anjo, da parte de Deus, como ‘cheia de graça’ (cf. Lc
1,28); e responde ao mensageiro celeste: ‘eis a escrava do Senhor, faça-se em mim
segundo a tua palavra’ (Lc 1,38) (Lumen Gentium, n. 56).
[...] com a autoridade de Nosso Senhor Jesus Cristo, dos bem-aventurados apóstolos Pedro
e Paulo, e com a nossa, declaramos, proclamamos e definimos: A doutrina que sustenta
que a beatíssima Virgem Maria, no primeiro instante de sua Conceição, por singular graça
e privilégio de Deus onipotente, em vista dos méritos de Jesus Cristo, Salvador do gênero
humano, foi preservada imune de toda mancha da culpa original, essa doutrina foi
revelada por Deus e, por isto deve ser crida firme e inviolavelmente por todos os fiéis
(Ineffabilis Deus, n. 41).
a humanidade e para a glória da Trindade, após a segunda guerra mundial, que deixou recordações
negativas e pessimistas para a população da época diante do sofrimento gerado pela guerra; para
a unidade da Igreja e para uma devoção autêntica; para a paz no mundo e como sinal da
valorização da vida humana.
A pesquisa sobre a história da fé na Assunção corporal da Virgem Maria revela, segundo M.
Jugie, que os testemunhos da literatura eclesiástica, dos primeiros séculos, a respeito da morte da
Virgem Maria e sobre a sua assunção são, em sentido estrito, raros e desconcertantes. Diante disso,
do ponto de vista puramente histórico, não é possível afirmar, com certeza, que exista uma tradição
apostólica explicitamente universal e ininterrupta sobre o modo como Maria deixou este mundo.
Todavia, se for utilizado um conceito de tradição, aplicável à Assunção, mas também à Imaculada
Conceição, que parte da tradição oral da Igreja, é possível argumentar que essa verdade já estava
contida virtualmente na pregação tradicional da fé e que, em um momento concreto de sua evolução,
surge na consciência da fé da Igreja como já presente e vinculada a ela32.
No Oriente, desde o final do século V, apócrifos sobre o trânsito da Virgem Maria começam a
circular, nascidos fora da Palestina, supondo a sua morte. Eles se dividem entre ressurreição corporal
e a transladação do corpo para o paraíso terrestre. No século VI, a festa litúrgica muda a denominação
de “em memória de Maria” para “festa do óbito da mãe de Deus”. A partir daí, a fé na assunção
corporal vai-se tornando comum nas homilias da festa e no texto litúrgico33. No Ocidente, como foram
rejeitadas as lendas apócrifas do trânsito, a fé na assunção começa com a aceitação por Roma, sob o
papa Sérgio I (687-701), da festa da Dormitio. No século VIII, essa festa litúrgica passa para a
denominação de Assumptio, com o que se expressa a assunção corporal, embora houvesse uma
controvérsia teológica sobre o teor da celebração litúrgica34. Entretanto, ao longo da Idade Média,
pouco a pouco foi se impondo a fé na assunção de Maria35.
No dia 01 de maio de 1946, com a encíclica Deiparae Virginis, o Papa Pio XII enviou 5.000
questionários para os Bispos do mundo todo perguntando se em suas respectivas dioceses era ou
não de fé do povo a assunção corporal de Maria e se o dogma poderia ser definido. Diante das
respostas positivas unânimes, o Papa definiu o dogma, argumentando de que as respostas positivas
deram prova suficiente de que a piedosa suposição se tornara uma convicção de fé.
Os argumentos utilizados pelo documento papal, que contém uma síntese crítica feliz de toda
a reflexão teológica desenvolvida ao longo dos séculos e transmitida pela tradição patrística e
doutoral36, foram os seguintes: 1) A harmonia existente entre os privilégios de Maria e da conexão
entre a Imaculada conceição e a Assunção corporal; 2) a antítese Eva-Maria e a superação do pecado
32 Cf. JUGIE, M. L'Assomption de la Sainte Vierge. In: Maria, I, Paris, 1949, p. 631 apud MÜLLER, A. La posizione e la
cooperazione di Maria nell’evento di Cristo, p. 614, nota 1.
33 Como exemplo, pode citar-se Pseudo-Modesto de Jerusalém (+ 680), Germano de Constantinopla (+ 733), João
Damasceno (+ 749).
34 Então surge forte controvérsia teológica. Os testemunhos principais são dois escritos pseudônimos: a) a carta do
Pseudo-Jerônimo a “Paula e Eustóquio” (PL 30, 297-305), de autoria de Pascásio Radberto, OSB (759-865) (Cf.
VIELHABER, K. Paschasius Radbertus, p. 130s), que previne contra a afirmação temerária da ressurreição de Maria,
embora possa ser admitida como crença piedosa; b) escrito agostiniano intitulado “Sobre a assunção da bem-
aventurada Virgem Maria”, do século IX, de autor desconhecido, que defende a assunção corporal. Esses dois escritos
repartem entre si a influência na teologia ao longo da Idade Média.
35 Cf. MÜLLER, A. La posizione e la cooperazione di Maria nell’evento di Cristo, p. 615-617. Também, do ponto de vista
histórico: MEO, S. Assunta. Dogma. Storia e Teologia, p. 167-178. Também: DE FIORES, S. Maria Madre di Gesù, p.
176s; SCHMAUS, M. A fé da Igreja, p. 136s.
36 Opinião de MEO, S. Assunta. Dogma. Storia e Teologia, p. 170.
em Maria; 3) os testemunhos da liturgia, dos Padres e dos teólogos, que se apoiam, em última
instância, nas Sagradas Escrituras, que sempre mostram a Virgem Maria na mais estreita ligação com
seu Filho; 4) o argumento decisivo está nas respostas unânimes. Por isso, o consenso universal do
Magistério ordinário da Igreja constitui um argumento seguro e sólido a favor e prova da assunção
corporal da bem-aventurada Virgem Maria aos céus como “uma verdade revelada aos céus”37.
Nesta perspectiva, o texto conciliar mariano repete a doutrina definida pelo dogma da
Assunção (cf. Lumen Gentium, n. 59) e acrescenta que, por isso, a Virgem Maria é o ícone
escatológico da Igreja:
Entretanto, a Mãe de Jesus, assim como, glorificada já em corpo e alma, é imagem e início
da Igreja que se há de consumar no século futuro, assim também, na terra, brilha como
sinal de esperança segura e de consolação, para o Povo de Deus ainda peregrinante, até
que chegue o dia do Senhor (cfr. 2 Ped. 3,10) (Lumen Gentium, n. 68).
Por fim, há outro aspecto a considerar: o sensus fidei (cf. Lumen Gentium, n. 12). As respostas
unânimes aos questionários enviados apontavam a existência de uma fé consolidada por parte
dos fiéis católicos na Assunção da Virgem Maria, o que deu segurança e garantia para o Papa Pio
XII definir solenemente o dogma. Neste sentido, assim se expressa a Comissão Teológica
Internacional:
Todos os dons do Espírito, e de modo muito especial o primado na Igreja, são dados para
favorecer a unidade da Igreja na fé e na comunhão, e a recepção do ensinamento do
Magistério pelos fiéis é inspirada pelo Espírito, quando os fiéis, através do sensus fidei que
eles possuem, reconhecem a verdade do que é ensinado e a ele aderem. Como explicado
acima, o ensinamento do Concílio Vaticano I, pelo qual as definições infalíveis do Papa são
irreformáveis “por si mesmas e não em virtude do consentimento da Igreja (ex sese non
autem ex consensu Ecclesiae)” não significa que o papa esteja separado da Igreja ou o seu
ensinamento seja independente da fé da Igreja. O fato de que as duas definições
anteriormente infalíveis, a da Imaculada Conceição da Bem-Aventurada Virgem Maria e
de sua Assunção corporal ao céu, tiveram uma ampla consulta aos fiéis, feita a pedido
expresso do Papa então reinante, prova amplamente este ponto. O significado é, mais
precisamente, que tal ensinamento do Papa, e por extensão todo o ensinamento do Papa
e dos bispos, tem autoridade por si mesmo em virtude do dom do Espírito Santo,
o charisma veritatis certum, que eles possuem39.
O desenvolvimento, por nós auspiciado, da devoção para com a Virgem Maria, inserida,
conforme acima aludimos, no álveo do único culto que, com razão e justeza, é chamado
‘cristão’, pois de Cristo se origina e assume eficácia, em Cristo encontra completa
expressão e por meio de Cristo, no Espírito, conduz ao Pai, é elemento qualificante da
genuína piedade da Igreja” (Introdução).
Na encíclica Redemptoris Mater, publicada no dia 25 de março de 1987, o Papa João Paulo II
acentua a presença de Maria na vida da Igreja como aquela que, como peregrina, caminha junto
com o povo de Deus, além de ele desejar dar continuidade ao ensinamento mariano do Vaticano
II, acentuando, por isso, a presença de Maria no mistério de Cristo e no mistério da Igreja. Desse
modo, o Papa quer apresentá-la como a “peregrina da fé”, que caminha junto com o povo de Deus,
unida a Jesus Cristo, como ele mesmo anuncia:
Nas reflexões que passo a apresentar, porém, quero referir-me principalmente àquela
‘peregrinação da fé’, na qual ‘a Bem-aventurada Virgem Maria avançou’, conservando
fielmente a união com Cristo. Deste modo, aquele dúplice vínculo, que une a Mãe de
Deus com Cristo e com a Igreja, reveste-se de um significado histórico. E não se trata aqui
simplesmente da história da Virgem Maria, do seu itinerário pessoal de fé e da ‘melhor
parte’ que ela tem no mistério da salvação; trata-se também da história de todo o Povo de
Deus, de todos aqueles que tomam parte na mesma peregrinação da fé (n. 5).
Além desta perspectiva, este documento pode ser lido à luz da categoria de “presença”. Ao
expor o sentido do ano mariano, convocado por ele, o Papa João Paulo II realça este sentido de
presença:
Seguindo a linha do Concílio Vaticano II, anima-me o desejo de pôr em relevo a presença
especial da Mãe de Deus no mistério de Cristo e da sua Igreja. Esta é uma dimensão
fundamental que dimana da Mariologia do Concílio, de cujo encerramento já nos separam
mais de vinte anos. O Sínodo extraordinário dos Bispos, que se realizou em 1985, exortou
a todos a seguirem fielmente o magistério e as indicações do Concílio. Pode dizer-se que
em ambos – no Concílio e no Sínodo – está contido aquilo que o Espírito Santo deseja ‘dizer
à Igreja’ (cf. Apoc 2, 7.17.29; 3, 6.13.22) na fase presente da história (n. 48).
Santa Maria, Mãe de Deus, Vós destes ao mundo a luz verdadeira, Jesus, vosso Filho – Filho
de Deus. Entregastes-Vos completamente ao chamamento de Deus e assim Vos tornastes
fonte da bondade que brota d’Ele. Mostrai-nos Jesus. Guiai-nos para Ele. Ensinai-nos a
conhecê-Lo e a amá-Lo, para podermos também nós tornar-nos capazes de verdadeiro
amor e de ser fontes de água viva no meio de um mundo sequioso (Deus Caritas est, n. 42).
Referências
ALBERIGO, Giuseppe. Criteri ermeneutici per uma storia del Vaticano II. In: ALBERIGO, Giuseppe. Tansizione
epocale. Studi sul Concilio Vaticano II. Bologna: Il Mulino, 2009.
BARAÚNA, G. A Santíssima Virgem a serviço da economia da salvação. In: Idem (Org.). A Igreja do Vaticano
II. Petrópolis: Vozes, 1965.
COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL. O sensus fidei na vida da Igreja. Brasília: CNBB, 2014.
CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II, Constituição Dogmática Lumen Gentium.
CONFERÊNCIA DOS BISPOS DA AMÉRICA LATINA, Documento final de Puebla. Petrópolis: Vozes, 1979.
CONGAR, YVES. Diario del Concilio. 1960-1963, vol. I. Cinisello Balsamo: San Paolo, 2005.