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BARRETI FILHO, Aulo (Org.).

Dos Yorùbá ao
Candomblé Kétu: Origens, Tradições e
Continuidades. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2010. 304 p.

LUCAS DE MENDONÇA MARQUES & OLAVO DE SOUZA PINTO FILHO

O controverso gorro de Exu escolhas e suas consequências, do fazer ou não


fazer, do cumprir ou descumprir. É a dinâmica
Há uma narrativa de Exu que é muito uti- da ação, aquele que faz acontecer” (cf. p.83).
lizada, recontada e difundida nos terreiros de Patrono das inversões, Exu opera pelas dobras,
candomblé e nas páginas das etnografias – in- pelas rupturas que instauram o novo. Assim,
clusive presente neste livro (cf. p.88-89) –, que seu gorro é ao mesmo tempo preto e vermelho.
diz respeito a um evento ocorrido entre dois Suas aparições sempre fundam o controvertido
amigos que tinham uma amizade inabalável. nas narrativas; é como dizem nos terreiros de
Um dia, Exu resolve aparecer no caminho en- candomblé, o sim onde só existe o não, quem
tre os dois. Descobriu os amigos arando um faz o erro virar acerto. Ele é, ao mesmo tempo,
campo dividido ao meio por uma estrada es- o que constrói esse texto e sobre o que este tex-
treita. Assim, ele surge no caminho, vestindo to é construído.
um gorro na cabeça pintado em sua metade Difícil seria a tarefa de realizar uma síntese
direita de preto, e em sua metade esquerda de desta coletânea, dada a complexidade e mul-
vermelho. Cumprimenta os dois irmãos unidos tiplicidade dos diversos temas que ela mobili-
e segue em frente. Após isso, o amigo da direita za. Como nos diz o prefácio de Niyi Afolabi, a
se vira ao outro e pergunta: “Quem era aque- coletânea é uma reunião de vozes emergentes,
le homem de gorro preto?” Ao passo que o da divergentes e complementares. Por isso, nada
esquerda responde: “Eu vi o rapaz, porém ele mais oportuno que invocarmos aqui a figura
usava um gorro vermelho”. Como Exu estava de Exu. Ambicionamos, com esta pequena re-
entre os dois e um não conseguia ver o outro senha, menos realizar um conjunto linear de
lado do gorro, que era dividido exatamente ao comentários sobre os textos e mais potenciali-
meio, um achou que o outro estava zombando, zá-los, movimentando os temas que transversa-
desacreditando, e logo a discórdia foi tanta que lizam o livro. Portanto, trazer Exu não apenas
começaram uma enorme briga. E a amizade para pensá-lo “à luz da antropologia”, mas pen-
que era inabalável, já não era tão “inabalável” sar a própria antropologia a partir de Exu.
assim. E por isso que, até hoje, nos terreiros, A coletânea, Dos Yorùbá ao Candomblé
os mais velhos ainda avisam: “cuidado com o Kétu: origens, tradições e continuidades, como o
gorro de duas cores!”1. próprio nome informa, se insere no debate so-
Exu é um orixá astuto, sagaz e perspicaz – bre inovações e permanências das tradições re-
como nos diz o próprio organizador da cole- ligiosas presentes no campo afro-brasileiro, que
tânea. “Èsù é o agente da causa e efeito, das mobilizou diversos pesquisadores na contro-

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versa discussão entre o que alguns comentado- iorubá, ressaltando seu lugar de iniciado ao le-
res denominam como uma visão “internalista”, gitimar suas pesquisas como expressão de uma
que buscou detectar “sobrevivências africanas”, visão “desde dentro”.
e outra abordagem surgida a partir da década de Luiz Marins, no capítulo “Èsù Òta Òrìsà:
70, que apregoava “que esses ritos, mitos e sím- Um Estudo de Oríkì”, para refutar a tese que
bolos deveriam ser analisados como a expressão associa Èsù a uma força negativa, consequente-
de relações sociais concretas contemporâneas, e mente à figura cristã do diabo, volta-se às di-
não como sobrevivências de um passado mais versas traduções feitas de um oríkì de Èsù para
ou menos remoto” (Goldman, 2009). mostrar que, ao invés da versão “Exu, inimigo
Esse debate se faz presente, por exemplo, dos Orixás”, a tradução verdadeira seria “Èsù, o
no artigo “Pierre Verger e Fatumbi: uma dupla Orixá vencedor”. O mesmo debate de tradu-
identidade”, de Claude Lepine, onde a autora ções e traições é feito por Aulo Barreti Filho,
resgata uma polêmica que envolveu o velho ba- no capítulo “Òsóòsì e Èsù, os Òrìsà Alakétu
balawô francês e a antropóloga argentina Juana na Tradição Religiosa do Candomblé”, em que
Elbein dos Santos. O cerne da contenda seria a o autor se volta a referenciais históricos para
interpretação da divindade Odudua, que para mostrar a relação entre Òsóòsì e a cidade de
Verger é um deus masculino e para Elbein tra- Kétu, e consequentemente suas ligações com
ta-se de uma entidade feminina. Para refutar o candomblé brasileiro. Ambos os autores ad-
as interpretações de Elbein, Verger “apela para vertem para os problemas de versões equivo-
a crítica da bibliografia, esbanjando erudição e cadas, uma vez que essas são sempre baseadas
rigor, complementando a argumentação com em referenciais cristãos, ao invés de analisadas
dados de suas próprias pesquisas na África” dentro da ótica da própria religião “tradicional
(cf. p.258). Elbein acusa Verger de ser racista yorùbá”. Assim, ambos defendem uma posição
e colonialista, uma vez que não acredita que as antissincrética – posição que teve como um
sociedades tradicionais sejam capazes de gerar de seus expoentes os manifestos das Ialorixás
doutrina e conhecimento teológico. baianas contra o sincretismo, datados de 1983,
Curiosamente, os dois primeiros textos analisados seus desdobramentos no capítulo
da coletânea – de Luiz Marins e Aulo Barre- “Sincretismo ou Antissincretismo?”, de autoria
ti Filho, respectivamente – baseiam-se numa de Josildeth Consorte.
postura muito próxima à de Verger, com le- Uma das leituras possíveis para o enca-
vantamento bibliográfico rigoroso – pautado, deamento dos artigos diz respeito ao posi-
sobretudo, em autores africanos –, criticando cionamento do pesquisador em relação ao
traduções equivocadas que gerariam versões candomblé, ou seja, da dicotomia de visões
deturpadas sobre os mitos dos orixás, con- “desde dentro” e “desde fora” (Elbein dos San-
cordando com Verger que isso seria fruto do tos, 1977). Sendo assim, os dois primeiros
“desconhecimento do papel dos acentos que, capítulos são escritos por sacerdotes-pesquisado-
na língua iorubá, modificam o significado das res2 – fato enfatizado nas notas de rodapé que
palavras” (cf. p.259). Entretanto, os dois auto- abrem os artigos. O terceiro capítulo pode ser
res dão continuidade à proposta político-me- considerado como uma espécie de transição.
todológica de Juana Elbein dos Santos (1977) Escrito pelo sociólogo e babalorixá Armando
em resgatar nas fontes africanas os atributos Vallado e pelo professor Reginaldo Prandi, o
originais dos orixás, utilizando-se da apresenta- artigo trabalha com a multiplicidade do orixá
ção textual de orikis, itans e orixás grafados em Xangô sob uma perspectiva sociológica. O foco

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da análise então deixa de ser os referenciais de podemos dizer que cada texto carrega consigo
autenticidade africana e passa a ser o percurso seu próprio Exu, ou seja, tensões que afloram
e as configurações das religiões dos orixás no e dinamizam suas próprias problematizações.
novo mundo. Os capítulos subsequentes tam- Como é caso do texto “O Imaginário Mito-
bém seguem uma linha diferente da primeira; lógico na Religião dos Orixás”, de Roberval
assim, poderiam ser enquadrados, se concor- Falojutogun Marinho, que, através de uma es-
dássemos com a dicotomia, em uma visão “des- crita fragmentada – onde uma miscelânea de
de fora”. assuntos e temas são tratados – retorna ao orixá
Essas relações dentro/fora são complexifica- Exu para realizar um elogio à alegria intrínseca
das no texto “Segredos do Escrever e o Escrever à Religião dos Orixás.
dos Segredos”, de Vagner Gonçalves da Silva. Apesar das múltiplas vozes e discursos
Para além dessa relação, outras dimensões são proferidos na coletânea, uma espécie de “des-
abordadas, deslizando essas supostas dicoto- compasso” transversaliza todos os artigos. Esse
mias em novas configurações. Assim, a questão descompasso diz respeito à reificação de dicoto-
do “‘poder’ de representar o outro através da mias que se cristalizam e impactam sua produ-
escrita” (cf. p.279) traz ao leitor questões rele- ção antropológica. Como pudemos notar, todos
vantes para dentro do campo das religiões afro- os textos trabalham com essas dicotomias, seja
-brasileiras. através de uma busca por uma “origem”, por
Para Silva, o texto etnográfico traz conse- uma “tradição”, ou por “continuidades”. Uns
quências que vão para além da academia, per- mais, outros menos, as dicotomias dentro/fora,
passando também o plano político e religioso. religião/academia, internalismo/externalismo,
Assim, muita das vezes a etnografia ganha con- puro/impuro, tradição/invenção, oralidade/
tornos teológicos, correndo o risco de tornar-se escrita e etc., permanecem; ou seja, os textos
uma espécie de “bíblia” para o povo de santo. ainda operam com a invenção de um “Grande
Contudo, como sinaliza o capítulo de Claude Divisor”, tal qual exposto por Goldman e Lima
Lepine, a leitura que pais e mães de santo fa- (1999).
zem dos trabalhos etnográficos nunca é passiva, Assim, podemos perceber que os trabalhos
havendo intervenções e eliminações em busca aqui apresentados ainda reificam esses lugares e
daquilo que lhes interessa. posicionamentos estanques de fala. Ainda que
Podemos perceber, no decorrer da leitura, se voltem reflexivamente a esses, se limitam a
que os capítulos dialogam muito entre si, en- constatar os impasses, não avançando verdadei-
trando em conflitos e concordâncias. Outro ramente sobre eles.
caso de tensões entre capítulos, além do supra- Ao propor-nos uma visão dicotomizada em
citado, diz respeito à discussão de Aulo Barreti “desde dentro” e “desde fora”, a coletânea bus-
com Prandi e Vallado. Enquanto o primeiro ca impor uma das posições em relação à outra
alega que a origem do nome Kétu no candom- – onde uma seria dotada de uma “vantagem
blé brasileiro tem ligações intrínsecas com o epistemológica”, sendo, portanto, mais confi-
orixá Oxóssi, Prandi e Vallado vão falar que o ável e legítima. Essa vantagem, neste caso, se
nome queto designado ao candomblé é fruto daria no fato da busca por uma “verdade úni-
de uma “estranha ironia” (cf. p.146). Assim, ao ca”, ou uma “origem tradicional” presente no
longo da coletânea as vozes vão se notando di- continente africano. Busca-se uma pureza que
versas e divergentes. estaria para além até mesmo da África atual.
Para além destas tensões entre capítulos, Como nos lembra Goldman e Lima (Op. cit.,

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p.72), a própria questão sobre “o que, em geral, zando-as” enquanto crença, mas potencializan-
nos aproxima e/ou distingue dos outros é ina- do-as enquanto prática de sentido, mudando
dequada e não deveria ser formulada”. Portan- as regras do próprio jogo antropológico3. Ao
to, essa dicotomia tão somente invés de pensar a antropologia como exercí-
cio de controle sobre uma “realidade”, expe-
naturaliza a oposição como uma fatalidade da rimentar multiplicá-la. Projetar no texto toda
lei da perspectiva de maneira tal que os opos- criatividade que transborda o reconhecimento
tos se acomodam e canonizam sua divergência, das categorias de conhecimento do candomblé
abençoando-se finalmente uns aos outros, com como categorias analíticas. Pensar antropo-
doce ironia. A visão “de dentro” e a visão “de logia a partir do candomblé, ampliando seus
fora” se justificam e se repelem, resumindo o de- sentidos, e não pensar o candomblé através da
bate sobre os ritos afrobrasileiros a um eterno antropologia. Seria como se não mais decidís-
jogo de solteiros e casados – já previamente em- semos pensar e escrever sobre o candomblé, mas
patado, de comum acordo (Serra, 1995, p.9). sim pensar, escrever e viver desde o candomblé.
Para encerrar esse pequeno debate a partir
Desse modo, se, como foi dito, a coletânea desses múltiplos posicionamentos, talvez seja-
se insere em um debate entre supostos interna- -nos particularmente interessante voltarmos a
lismos e externalismos, preferimos adotar a ati- invocar a figura de Exu, único capaz de inverter
tude de “imaginar que nosso saber é diferente a ordem vigente e instaurar o novo, sendo o sim
daquele dos nativos, não por ser mais objetivo, onde só existe o não, contraditório, paradoxal e
totalizante ou verdadeiro, mas simplesmente múltiplo em diversos sentidos, a divindade da
porque decidimos a priori conferir a todas as margem, do inominável, senhor da novidade,
histórias que escutamos o mesmo valor” (Gol- do jogo e – por que não? – da mudança dele.
dman, 2006 apud Banaggia, 2008, p.199). Tal qual o gorro de Exu que provoca a conten-
Se, como nos diz Aulo Barreti Filho na apre- da entre os dois amigos, essas discussões ainda
sentação do livro, as “tradições não são estáticas, podem ser de extrema produtividade e criação,
são dinâmicas e mutáveis”, essas transformações mas principalmente aproveitadas como opor-
não geram “sequelas” nas religiões afro-brasilei- tunidades de inovação. Isso porque, além de
ras. Pelo contrário, a tradição, para se manter ser um orixá perspicaz, Exu é um orixá extre-
com esse estatuto, é obrigada a se reinventar con- mamente sábio. Para além da amizade entre os
tinuamente, “pois arranjos, ajustes, adequações, dois homens, ele nos ensina sobre o que vemos;
combinações, não parecem ser função de uma o que experimentamos e o que experienciamos
carência adaptativa mas sim características pró- – em um eterno movimento reflexivo. Por isso
prias do funcionamento destes sistemas religio- seu gorro é ao mesmo tempo vermelho e pre-
sos” (Banaggia, Op. cit., p.206). Nesse sentido, to. E por isso talvez devêssemos ouvir os mais
sincretismos, mutações e transformações seriam sábios, quando nos alertam para os perigos do
movimentos inventivos. Esses movimentos, en- gorro de Exu.
tretanto, não são “unívocos” – os caminhos são
tantos que transbordam até mesmo o número
de possibilidades existentes. Notas
Acreditamos, portanto, que o caminho
mais fecundo seria potencializar as diferentes 1. Agradecemos a Wanderson Flor do Nascimento pela
vivências dentro do candomblé, não “neutrali- inspiração no mito.

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2. Isto é, “o pai de santo que sente a necessidade de Nacional, Programa de Pós-Graduação em Antropo-
aprofundar seus conhecimentos e vai buscá-lo nos logia Social, 2008, p.199.
bancos da Faculdade” (cf. p.267) – ou, neste caso, nas ELBEIN DOS SANTOS, Juana. Os Nagô e a Morte. Pe-
referências bibliográficas africanas. trópolis: Vozes, 1977.
3. Livremente inspirados em Viveiros de Castro, 2002. GOLDMAN, Marcio & LIMA, Tânia Stolze. “Como se
faz um grande divisor?”. In: Alguma antropologia. Rio
de Janeiro: Relume Dumará, 1999, p. 83-92.
Referências bibliográficas _____. Histórias, devires e fetiches das religiões afro-bra-
sileiras. Ensaio de simetrização antropológica. Análise
Social, XLIV (1), 2009.
BANAGGIA, Gabriel. Inovações e controvérsias na an-
SERRA, Ordep. Limiar. In: Águas do rei. Petrópolis: Vo-
tropologia das religiões afro-brasileiras. Dissertação
zes, Rio de Janeiro: Koinonia, 1995. p. 7-28.
(Mestrado em Antropologia Social) – UFRJ, Museu
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O Nativo Relativo.
Mana 8(1), 2002, p.113-148.

autor Lucas de Mendonça Marques


Graduando em Antropologia / UnB

autor Olavo de Souza Pinto Filho


Graduando em Antropologia / UnB

Recebida em 20/08/2011
Aceita para publicação 19/09/2011

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