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Marisa Lajolo - No Jardim Das Letras, o Pomo Da Discórdia
Marisa Lajolo - No Jardim Das Letras, o Pomo Da Discórdia
MARISA LAJOLO
é Professora Dra.do Dep. de Teoria
Literária do IEL-Unicamp
Foi só na década de trinta que se implantaram os cursos de Letras no Brasil, não obstante as várias
reivindicações anteriores (por exemplo a de Carlos de Laet durante o Congresso de instrução de
1883 ou a de Afrânio Peixoto na Aula Magna da Universidade do Rio de Janeiro, em 1921),e
mesmo uma efêmera experiência de 1908,levada a cabo em São Paulo, no Mosteiro de São Bento.
Instituídos como parte do projeto da criação das Faculdades de Filosofias, os cursos brasileiros de
Letras, enquanto lugar privilegiado para o estudo das línguas e literaturas, são recentes .
Mas, apesar dos privilégios, eles parecem ter herdado algumas das contradições características do
estudo "de letras" que, antes de sua criação formal, manifestava-se nas disciplinas "letradas" que
integravam os currículos de alguns cursos.
Mas estes cursos criados nos anos trinta não tinham em comum apenas a designação de Letras, nem
a amplidão dos objetivos que presidiram à sua criação. Eles aparentavam-se também - e o
parentesco ainda persiste- pela configuração bipartida que assumia a forma de consecução de seus
objetivos: confinavam a licenciatura (então chamada Licença Magistral) a umas tantas matérias
cursadas fora do curso de Letras, e num ano que se somava aos ano dedicados às línguas e
literaturas.
Assim, entre as constantes do curso de Letras, ao longo de seu meio século de existência, destaca-se
o exílio das matérias de sua licenciatura para as escolas/institutos/faculdades de
Educação/Pedagogia, onde metodologia, Psicologia, Administração Escolar & Didática, pretendem
e precisam dar conta da formação docente de um engresso do curso de letras.
Com o perdão do samba, um dá o tom ,o outro a melodia. E, como se previa no ensaio geral,
acabam desafinando o coro e atravessando a música.
Examinando os currículos dos cursos de Letras, afloram outras peculiaridades que talvez estejam na
raiz do que hoje é, com unanimidade, vivido e proclamado como a crise dos cursos de Letras.
O trajeto da disciplina Literatura Brasileira no currículo de Letras pode ser modelar, por ter sido
bastante semelhante ao trajeto que ela já tinha percorrido no Bacharelado em Letras oferecido, no
século XIX, pelo Colégio de Pedro II (nota 2).
Em ambos os casos ,foi muito lenta a separação da literatura Brasileira da Portuguesa, coexistindo
ambas, nos primeiros currículos de Pedro II, sob a designação de Literatura Luso-Brasileira.
Joaquim Manuel de Macedo registra que foi só em 1857,vinte anos, portanto, depois da fundação do
colégio, que se criou no sétimo ano, uma cadeira de História da Literatura Brasileira e Nacional.
mostra-nos um trajeto em tudo similar. De 1935 a 1939,o currículo que regia a concessão de
Licenciatura Magistral em Línguas Novi-Latinas não incluía nenhuma literatura, exceto, no último
ano ,uma disciplina intitulada Literatura Geral. A partir de 1939 com a formação da Faculdade de
Educação, Ciências e Letras da Universidade do Distrito Federal na Faculdade Nacional de
Filosofia da Universidade do Brasil, o currículo de Letras Neolatinas passou a incluir um ano de
Literatura Portuguesa e Brasileira, modelo que foi estendido para âmbito federal (nota 4).
Foi só a partir de 1946 que, em movimento liderado por São Paulo, um currículo opcional deu
autonomia a Literatura Brasileira que, na FFCL da USP passou a dispor em igualdade de condições
com a Literatura Portuguesa, de dois anos ,enquanto as línguas e literaturas Francesa, Italiana e
Espanhola (incluindo Literatura Hispano-Americana) continuavam a dispor de três anos cada uma.
Com base no mesmo decreto que permitiu a reorganização do currículo paulista, a Faculdade
Nacional de Filosofia do Rio de Janeiro reestruturou o seu, redistribuindo o tempo dedicado às
diferentes línguas e literaturas. Nesta redistribuição, Literatura Brasileira passa a ter apenas um ano
(carga Horária idêntica à de Literatura Portuguesa...)conta os quatro anos de Língua e Literatura
Francesa, os três anos de Língua e Literatura Italiana, os dois anos de língua e literatura espanhola.
Desfrutam, pois, as literaturas vernáculas, de igualdade de condições com um ano dedicado às
Literaturas Hispano-Americanas.
Outros aspectos estreitam mais o parentesco entre a versão atual do curso de Letras e suas versões
mais antigas: por exemplo, a constância das queixas ao aprendizado patrocinado por tais cursos.
A sessão de reclamações já se abre no século XVIII, quando Silva Alvarenga (o desertor das
letras,1774)denuncia o estado calamitoso a que estava reduzido, na universidade portuguesa pré-
pombalina, o ensino e o aprendizado das letras e se pergunta quais seriam as causas, quais os meios
porque Gonçalo renuncia aos livros?(nota 6) Sumarizando aos companheiros de Gonçalo -protótipo
do mau estudante anti-herói do poema como
.................................. (7)
Mas não é preciso ir tão longe. Melhor dizendo, esta crise longínqua não nos preocupa mais,
principalmente porque o iluminismo esclarecido fornece a Silva Alvarenga tanto o diagnóstico
quanto a terapia e ambos são inaplicáveis ao surto atual da doença...
Carlos de Laet, aquele mesmo professor que em 1883 reivindicava um curso superior de Letras e
que em1895 assinava, com Fausto Barreto a Antologia Nacional, analisando em 1927 o ensino de
literatura, lástima que depois da revolução de 1889(...) no encontro entre as literaturas e as ciências
médicas, teria aquela mesma sorte que a panela de barro: assim foi -parece incrível- que se julgou
dispensável a literatura no único curso federal de instrução secundária (nota 9).
Mais adiante seu espanto aumenta, quando um bacharel de 1927 o informa que no curso atual do
colégio Pedro II não há palavras sobre as letras germânicas, nem tampouco sobre as anglo-
saxônicas (nota 10).
Em anos bem mais recentes, a propósito de uma experiência de docência universitária no interior
paulista, Osman Lins, com assombros e indignações não menores, registra panorama muito
semelhante:
...insuficiência dos alunos, altamente imaturos e despreparados(...)não são raros os que chegam à
faculdade sem nunca terem lido uma obra literária qualquer...(nota 11).
Descontando o saudosismo e desencanto que via de regra molham a voz dos educadores quando se
reportam à escola de seu tempo, sempre risonho e franco, a unanimidade das queixas parece dizer
que Shakespeare tinha razão: há algo de estranho no jardim das Letras...
E, já que estamos singrando águas Hamletianas, não custa navegar um pouco mais e sugerir que o
curso de Letras parece padecer de uma esquizofrenia crônica, que não esta longe do drama vivido
pelo príncipe dinamarquês, dilacerado entre ser e não ser..
Tal dilaceramento faz-nos retornar a dicotomia básica que presidiu a implantação dos cursos de
Letras no Brasil, comprometida, como se assinalou, com direções opostas: de um lado, com a
formação de professores para o magistério(secundário, normal e superior);do outro a formação de
pesquisadores (nota 12).
Se é bem clara a saída profissionalizante que o magistério representa para os egressos de um curso
de Letras, é profundamente obscuro o mercado de trabalho que pode absorver trabalhadores
intelectuais para o exercício das altas atividades culturais de ordem desinteressada ou técnica .
Enquanto fornecedor de uma habilitação profissional, é muito tênue o parentesco manifestado pelos
atuais cursos de Letras, e aquele antigo Bacharelado em Letras oferecido pelo Colégio Pedro II;
afora isentar tais bacharéis dos exames preparatórios das Academias do Império, de bem pouco
valia o cartucho de um Bacharel em Letras. A fórmula pela qual colavam grau
Juro respeitar e defender constantemente as instituições pátrias, concorrer quanto me for possível
para a prosperidade do Império, e satisfazer com lealdade as obrigações que me forem incumbidas
(nota 13)
não define nenhum tipo de profissionalização: antes sugere que o título Bacharel em Letras era
apenas uma condecoração a mais a fulgurar nas casacas dos que se destinavam, por força do
nascimento ou da fortuna, aos altos cargos da administração ou da política.
Por outro lado a profissionalização do magistério, foi sempre uma profissionalização pouco
compensadora. O magistério, para cujo exercício, por mais de um século não se pediu nenhum tipo
de preparo, foi com muita freqüência exercido por indivíduos que aumentavam, pelo desprestígio de
seu grupo social de origem, a marginalização social da profissão que abraçavam: mulheres, mulatos
e imigrantes despreparados são a galeria de docentes que o século XIX e começo do século XX
exibem. Só por um breve período, e não por coincidência nos arredores da criação da Faculdade de
Filosofia da USP, o magistério secundário paulista ofereceu condições profissionais dignas (nota
14).
Mas para fora deste efêmero paraíso paulista, sem forças para alterar o mercado de trabalho em
função do qual foi criado ,os cursos de letras ,parecem ter introjetado tanto a degradação da
realidade profissional da escola brasileira quanto, numa espécie de movimento compensatório, a
noção e a praxe antiga de ligar às Letras um certo otium cum dignitate.
Nos anos 30,marco da modernização social brasileira, quando a forma mais visível de inserção
profissional de um licenciado em Letras se fazia mediante a prestação de um serviço (o magistério)
remunerado (irrisoriamente),ressurge a velha fonte do aristocratismo herdado da tradição
oitocentista pré-capitalista, quando as coisas da cultura -entre as quais as Letras- eram esferas de
favor, mecenato e prestígio social. É como se na atual crise dos cursos de Letras desaguasse a
síntese do que mais irreconciliável houvesse em cada uma das extremidades dos modelos
subjacentes à criação dos cursos brasileiros de Letras: entre os anéis e os dedos ,foram-se ambos.
Esta mesma incômoda e improdutiva dicotomia parece orientar os vários e sempre desajeitados
movimentos com que, esporadicamente, os cursos de Letras tentam superar as crises que os afogam:
Tentam, de um lado, ajustar-se ao mercado de trabalho docente, através da substituição de umas
disciplinas por outras, conferindo a estas o poder de realizar o milagre de dotar o egresso de um
curso de Letras dos instrumentos necessários a um exercício mais eficiente do magistério de
primeiro e segundo graus.
Nesse sentido, é interessante observar que, ainda nos anos 30,os cursos de Letras cariocas sofreram
uma sintomática rotação de título: O curso de Línguas Novilatinas passou em alguns anos, a
intitular-se de Letras Neolatinas. De Línguas para Letras deu-se a inclusão da Literatura que,
obviamente, incluía-se entre os pratos do cardápio a ser oferecido aos alunos dos ginásios e colégios
onde iam os formandos ganhar seu pão de cada dia.
Em tempos bem mais recentes, o entra-e- sai da Literatura Portuguesa no currículo de segundo grau
trouxe desassossego às Faculdades de Filosofia, com os docentes desta área bastante inquietos face
á lacuna de qualquer redução na carga horária de Literatura Portuguesa acarretaria na formação dos
alunos e igualmente inquietos quanto aos riscos que seus próprios empregos corriam, se sua matéria
sofresse qualquer decréscimo de importância.
Mas os sustos e chiliques não assolam apenas as áreas das armas e barões assinalados. Propostas e
contra propostas que emanam do Planalto Central sempre que o Conselho Federal de Educação se
debruça sobre o currículo de Letras põe em polvorosa os docentes das mais diferentes
especialidades. Um dos últimos rounds pôs frente a frente lingüistas e especialistas em Língua
Portuguesa e também neste caso, os embates se travaram em nome de uma terapêutica para os
descalabros que fazem emurchecer a última flor do Lácio nos canteiros da rede escolar brasileira.
Ora, tal organização do curso ( e mesmo tal encaminhamento de sua discussão )trai uma concepção
muito pobre da universidade, reprodutora, de antemão ,da inevitável simplificação do modo pelo
qual currículos de primeiro e segundo graus recortam os objetos de conhecimento de que se ocupam
ao longo de sua grade curricular.
Na outra ponta da dicotomia vem o compromisso, assumido pelos cursos de Letras, com a formação
de especialistas. Projeto que também sofreu inúmeros reajustes, mas que parece correr riscos
menores de afogamento. Os trabalhadores intelectuais, as altas atividades de ordem
desinteressada dispõe agora de espaço próprio. A pós-graduação, por sua natureza e objetivos,
alivia (ou pode aliviar) a nível institucional, aquilo que nos singelos anos trinta congestionava o
projeto de criação de um curso de Letras que, já naquela época abriu espaço para uma
especialização (nota 15) (nota 16).
Mas, mesmo assim, respingam na pós-graduação algumas rebarbas de ambigüidade que presidiu ao
projeto de implantação dos cursos de Letras brasileiros. O que exige um novo retorno aos anos
trinta.
É tempo agora de recordar que a criação dos cursos brasileiros de Letras foi contemporânea da crise
epistemológica por que passavam (e continuam passando) as humanidades, num mundo em
acelerada transformação e sacudido pela tecnologia (nota 17).
Mesmo no periférico Brasil, a década de trinta foi marcada por mudanças significativas no modo de
produção cultural: a urbanização intensiva criou espaço para o aparecimento de novos segmentos de
classe média, cujo fortalecimento articula-se tanto com a multiplicação de ginásios, quanto com o
surgimento de um novo público leitor, que alimentava diferentes expectativas de leitura. Para
satisfazer a estas, as edições da Editora Globo gaúcha por exemplo, foram a medida justa:
somavam-se ao rádio e aos frutos da modernização da imprensa, que começavam a competir com
tradição letrada como resposta ás solicitações culturais deste novo público.
Só este quadro já basta para delinear o anacronismo de uma instituição que elenca, entre seus
objetivos, o patrocínio de atividades culturais de ordem desinteressada, no momento em que a
cultura e seus produtos passa por intensa mercantilização, ou seja: são interessadíssimos. O que a
época pedia era a formação de profissionais mais ajustados ao perfil capitalista moderno que ia
assumindo, também no setor cultural, a sociedade brasileira.
Ao invés disso, os cursos de Letras comprometiam-se com aquele verniz social que as Letras (e as
artes, de modo geral) traziam, tradicionalmente, para seus cultures e estudiosos. E com isso, o
exercício das altas atividades de ordem desinteressada e a realização de pesquisas acabou se
realizando exclusivamente intra-muros. No começo, para capacitar alguns dos alunos mais dotados
a preencherem os claros que os professores que regressavam à Europa iam deixando no corpo
docente da faculdade. E muito pouco além disso.
A pesquisa teve que esperar trinta anos para, através da implantação da pós-graduação, tornar-se
mais palpável, apesar de continuar, até hoje, a realizar-se em função da exigência de titulação para
os professores dos agora numerosíssimos cursos de Letras brasileiros. Pois, ainda hoje, a pesquisa
só se faz, quando se faz, no interior de algumas universidades e é acoplada ,de um lado, aos
cronogramas e prioridades das agências financiadoras, e do outro, as injuções de uma carreira
docente onde o salário, muitas vezes, se atrela à realização periódica de pesquisas nem sempre
relevantes (nota 18) (nota 19).
Talvez os anos 80,que viabilizaram e amiudaram eventos como o que nos reúne hoje, aqui,
configurem um contexto propício para uma reforma geral no jardim das Letras. Uma reforma que
substitua a pauta tradicional de tais discussões-cartorial e corporativista-por uma pauta estrutural e
conjuntural, que dê conta da radical alteração do objeto em nome do qual os cursos de Letras se
criaram e se mantém até hoje. A questão não é curricular .É estrutural . Nasce e desemboca na
forma de inserção do curso de Letras na sociedade brasileira contemporânea.
Sem este acordo, e sem esta aposta, fica cada vez mais fortalecida a esquizofrenia de uma
instituição que, ao desconsiderar o modo como por exemplo, leitura e literatura se incorporam a
uma dada sociedade ,e ao alçá-las a posição de coisas em si, pode permitir-se conceber seu ensino
como mera técnica, tão secundária que é passível de exílio para outros espaços e para outros
especialistas. Como, aliás, é o caso da literatura infantil, da alfabetização, ou de qualquer outra
disciplina que fatores de ocasião propiciem incluir no currículo.
Trata-se, em resumo, de saber (com Terry Eagleton) "se podemos falar de Teoria literária sem
perpetuarmos a ilusão de que a literatura existe como um objeto específico do conhecimento, ou se
não será preferível deduzirmos as conseqüências práticas do ato de que a Teoria Literária tanto
pode se ocupar de Bob Dylan como de John Milton. Minha opinião é que seria mais útil ver a
literatura como um nome que as pessoas dão, de tempos em tempos e por diferentes razões, a
certos tipos de escritos, dentro de todo um campo daquilo que Michel Foucault chamou de práticas
discursivas. E que se alguma coisa deve ser objeto deste estudo, este deve ser todo o campo de
práticas, e não apenas as práticas rotuladas, de maneira um tanto obscura, de literatura" (nota
20).
BIBLIOGRAFIA