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PROGRAMA DE PÓS‐GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO DA UFMG
(ORGANIZADOR)
I SEMINÁRIO DO NPGAU “AS TRANSFORMAÇÕES DA CIDADE”
ANAIS
Belo Horizonte, 7 a 9 de novembro de 2012.
BELO HORIZONTE
ESCOLA DE ARQUITETURA DA UFMG
2012
Seminário do NPGAU (1.: 2012: Belo Horizonte)
S471t As transformações da cidade [recurso eletrônico]: anais / 1°.
Seminário do NPGAU. Belo Horizonte: EA/UFMG, 2012.
290 p.: il.
ISBN: 9788598261089
Disponível online: http://www.arq.ufmg.br/pos/
1. Planejamento urbano. 2. Arquitetura paisagística. I.
Programa de Pós‐graduação em Arquitetura e Urbanismo. II.
Universidade Federal de Minas Gerais. Escola de Arquitetura. III.
Título.
CDD: 711.4
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isbn: 978-85-98261-08-9
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS (UFMG)
Reitor
Clélio Campolina Diniz
Vice‐Reitora
Rocksane de Carvalho Norton
Pró‐Reitor de Pós‐Graduação
Ricardo Santiago Gomes
Pró‐Reitora Adjunta de Pós‐Graduação
Andréa Gazzinelli Corrêa de Oliveira
FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE MINAS GERAIS (FAPEMIG)
Presidente
Mário Neto Borges
Diretor de Ciência, Tecnologia e Inovação
José Policarpo Gonçalves de Abreu
SECRETARIA ESTADUAL DE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DE
MINAS GERAIS (SEMAD)
Secretário
Adriano Magalhães Chaves
Presidente da Fundação Estadual de Meio Ambiente (FEAM)
Zuleika Stela Chiacchio Torquetti
FUNDAÇÃO DE DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA (FUNDEP)
Presidente
Marco Aurélio Crocco Afonso
Analista de Projetos
Raphael Martius Toledo Rosa
Cristiane Maria Rossi Torido
Natiene Doerl Gonçalves
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ESCOLA DE ARQUITETURA DA UFMG
Diretor
Frederico de Paula Tofani
Vice‐diretor
Paulo Gustavo Von Krüger
PROGRAMA DE PÓS‐GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO DA UFMG (NPGAU‐
UFMG)
Coordenadora
Fernanda Borges de Moraes
Sub‐Coordenadora
Ana Clara Mourão Moura
COMISSÃO ORGANIZADORA DO I SEMINÁRIO DO NPGAU
Docentes
Jupira Gomes de Mendonça (Presidente/ Coordenação Geral)
Fernanda Borges de Moraes (Vice‐Presidente/Coordenação Científica)
Discentes
Danielle Stuart
Fabiana Araújo
Felipe Sudré
Jeanne Crespo
Junia Mortimer
Lívia Monteiro
Maria Clara M. S. Bois
Patrícia Urias
Colaboradores
Carolina H. Coelho‐de‐Souza
Luiz Felype Almeida
Patrícia Junqueira
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COMITÊ CIENTÍFICO DO I SEMINÁRIO DO NPGAU
Núcleo Temático I: Cidade em movimento e movimento na cidade
Profa. Dra. Silke Kapp – UFMG/ NPGAU
Profa. Dra. Ana Paula Baltazar dos Santos – UFMG/ NPGAU
Profa. Dra. Denise Morado Nascimento – UFMG/ NPGAU
Núcleo Temático II: Grandes projetos como elementos transformadores da cidade e região
Prof. Dr. Roberto Luís de Melo Monte‐Mór – UFMG/ NPGAU – Cedeplar
Profa. Dra. Ana Clara Mourão Moura – UFMG/ NPGAU
Profa. Dra. Fernanda Borges de Moraes – UFMG/ NPGAU
Profa. Dra. Jupira Gomes de Mendonça – UFMG/ NPGAU
Núcleo Temático III: Memórias e Cidades
Prof. Dr. Flávio de Lemos Carsalade – UFMG/ NPGAU
Prof. Dr. André Guilherme Dornelles Dangelo – UFMG/ NPGAU
Profa. Dra. Celina Borges Lemos – UFMG/ NPGAU
Núcleo Temático IV: Novo perfil de cidade e novos rumos em direção a uma sociedade
inclusiva
Prof. Dr. Carlos Antônio Leite Brandão – UFMG/ NPGAU
Profa. Dra. Carmen Aroztegui Massera – UFMG/ NPGAU
Prof. Dr. Marcelo Pinto Guimarães – UFMG/ NPGAU
Prof. Dr. Otávio Curtiss Silviano Brandão – UFMG/ NPGAU
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isbn: 978-85-98261-08-9
APRESENTAÇÃO
O I Seminário do Programa de Pós‐Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFMG ‐ I
Seminário do NPGAU ‐ partiu de uma iniciativa dos estudantes pesquisadores deste Programa
de Pós‐Graduação e tem por objetivo principal a criação de uma plataforma de encontro e
diálogo entre os pesquisadores desta instituição e de outras entidades de ensino e pesquisa.
O tema desta primeira edição, As Transformações da Cidade, pretende colocar em pauta a
produção de conhecimento sobre o meio urbano, bem como levantar direcionamentos e
proposições que visem a tornar possível uma cidade menos desigual e mais justa. Conhecer e
entender as transformações desse espaço, seus vínculos com o passado, o atendimento às
necessidades do presente e a expectativa por um futuro mais inclusivo são alguns dos pontos
em torno dos quais se reuniram pesquisadores diversos entre os dias 07 e 09 de Novembro de
2012, na Escola de Arquitetura da UFMG, para o I Seminário do NPGAU.
Núcleos Temáticos
O Seminário foi organizado em quatro grandes núcleos com temáticas transversais: Cidade em
movimento e movimento na cidade; Grandes projetos como elementos transformadores da
cidade e região; Memórias e Cidades; e Novo perfil de cidade e novos rumos em direção a
uma sociedade inclusiva.
O Núcleo Temático I, Cidade em movimento e movimentos da cidade, reúne trabalhos
relacionados às alterações na organização e estrutura do espaço urbano e ao papel da cidade
na história, tendo a dialética socioespacial da vida urbana como eixo orientador. Este Núcleo
traz discussões que tratam da produção do espaço em um dado período; o papel dos
movimentos sociais, das instituições e do mercado imobiliário na conformação do território; a
dicotomia existente entre as premissas contidas nas leis e planos urbanísticos e a rapidez da
construção e das transformações da cidade formal e informal; observações a respeito das
relações sociais que têm nas cidades palco para seu desenvolvimento e a ela modificam, entre
outras ações de desconstrução e reconstrução da malha urbana.
O Núcleo Temático II, Grandes projetos como elementos transformadores da cidade e região,
reúne trabalhos que tratam de experiências derivadas de transformações estruturais no espaço
provocadas por: operações urbanas consorciadas; planejamento ou projetos estratégicos;
reabilitações de centros ou outros espaços relevantes das cidades ou regiões; implantação de
grandes equipamentos polarizadores; e alterações na rede e na estrutura urbana ocorridas
para realização dos megaeventos, acontecimentos não periódicos, normalmente de cunho
esportivo, que têm conduzido mudanças espaciais e inversões de prioridades planejadas para
as cidades que os sediam. Esta temática engloba os conflitos territoriais que vão desde a escala
intraurbana até a escala regional.
O Núcleo Temático III, Memórias e Cidades, aborda a partir de uma perspectiva transdisciplinar
questões teóricas, históricas, analíticas e críticas no estudo das produções e reproduções
materiais e imateriais dos diversos grupos sociais que vivenciam a cidade. Desta forma, o
Núcleo enquadra estudos que problematizam objetos como memória social, memória política,
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patrimônio cultural, festividades, espacialidades, memórias dos lugares, memórias sobre a
cidade, além das relações espaço‐tempo desenvolvidas no território urbano.
O Núcleo Temático IV, Novo perfil de cidade e novos rumos em direção a uma sociedade
inclusiva, reúne trabalhos que especulam sobre o futuro das cidades, os possíveis novos rumos
em direção a uma sociedade mais inclusiva. Estão aqui incluídos trabalhos com
transversalidade de temas como a inclusão social e a sustentabilidade ambiental e econômica
com uma visão holística sobre os mesmos, demonstrando como cada pequena parte contribui
para a melhoria da sociedade como um todo.
Em cada Núcleo Temático foram selecionados até cinco trabalhos para publicação nos anais,
sendo classificados três para apresentação oral no Seminário.
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SUMÁRIO
Programação ......................................................................................................................................................... 10
NÚCLEO TEMÁTICO I: CIDADE EM MOVIMENTO E MOVIMENTO NA CIDADE
A produção do espaço não construído: reflexões sobre áreas protegidas de Belo Horizonte e sua periferia
sul‐metropolitana ................................................................................................................................................. 13
Ana Carolina P. Euclydes
O Planejamento Urbano Desejado e o Praticado: O Caso de Viçosa, MG. .................................................... 35
Ítalo I. C. Stephan
Cidades e Afetos: segregação e alteridade ........................................................................................................ 50
Maria Luísa M. Nogueira
Direito de propriedade e propriedade sem direito: o caso da ocupação “Dandara” em Belo Horizonte. . 61
Luiz F. G. Almeida
Urbanização contemporânea e conflitos urbanos em Viçosa, Minas Gerais: a remoção da feira livre da
Avenida Santa Rita e o novo ideal de renovação urbana local. ....................................................................... 74
Nayana Corrêa Bonamichi
NÚCLEO TEMÁTICO II: GRANDES PROJETOS COMO ELEMENTOS TRANSFORMADORES DA
CIDADE E REGIÃO
Operações urbanas consorciadas em Belo Horizonte ‐ novo modelo em construção................................. 91
Lívia de Oliveira Monteiro
Desnudamentos: instantâneos do alargamento da Avenida Antonio Carlos em Belo Horizonte ............ 114
Luciana Souza Bragança; Larissa Batista L. Tredezini; Frederico Canuto
El Parque Lineal concebido y su interpretación espacial desde lo vivido ..................................................... 132
Coppelia H. Cuartas; Juan J. C. Calle
Jeceaba, uma cidade na encruzilhada.............................................................................................................. 155
Reginaldo Luiz Cardoso
Grandes reformas urbanas e seu impacto no direito à cidade ..................................................................... 169
Vyrna Jacomo de A. Nunes
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isbn: 978-85-98261-08-9
NÚCLEO TEMÁTICO III: MEMÓRIAS E CIDADES
Transportes e transformações no Rio de Janeiro de Machado de Assis ...................................................... 182
Cinthia Tragante
Suportes de memória da Comarca do Rio das Mortes: a encruzilhada de rotas e caminhos luso‐
brasileiros ............................................................................................................................................................ 195
Marília Fátima Dutra de Ávila Carvalho; Fernanda Borges de Moraes
Patrimônio + Educação: derrubando barreiras e construindo novas pontes .............................................. 206
Paula Gomes Cury
Patrimônio em ruínas: desafios para preservação ......................................................................................... 220
Maria da Graça Andrade Dias
Modernidade e tradição: A dialética na dinâmica urbana das cidades de pequeno porte ....................... 230
Tamyres Virgínia L. Silveira; Josélia Godoy Portugal
NÚCLEO TEMÁTICO IV: NOVO PERFIL DE CIDADE E NOVOS RUMOS EM DIREÇÃO A UMA
SOCIEDADE INCLUSIVA
O uso das tecnologias digitais no espaço: as telas urbanas ........................................................................... 240
Lorena Melgaço
Quando Rousseau visitou Alphaville: status, desigualdade e uma certa ideia de comunidade ................ 256
Lucas Veloso de Menezes
O cooperativismo na construção civil: uma outra cultura produtiva com sentido social .......................... 273
Cristiano Gurgel Bickel
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isbn: 978-85-98261-08-9
Programação
07/11/2012 ‐ QUARTA‐FEIRA
Noite – 19h00
Palestra de Abertura ‐ Ícones arquitetônicos e espaços públicos na cidade contemporânea
Roberto Segre – UFRJ/ PROURB
08/11/2012 ‐ QUINTA‐FEIRA
Manhã – 10h00 às 12h30
Núcleo Temático II ‐ Grandes projetos como elementos transformadores da cidade e região
Palestrante: Mariana Fix – Unicamp/ Instituto de Economia
Mesa Redonda
Mediadora: Jupira Gomes Mendonça ‐ UFMG/NPGAU 10
Trabalhos apresentados:
Operações urbanas consorciadas em Belo Horizonte ‐ Novo modelo em construção
Lívia de Oliveira Monteiro – UFMG/ NPGAU
Desnudamentos: Instantâneos do alargamento da Avenida Antonio Carlos em Belo Horizonte
Luciana Souza Bragança ‐ I.M. Izabela Hendrix
Larissa Batista L. Tredezini ‐ I.M. Izabela Hendrix
Frederico Canuto ‐ I.M. Izabela Hendrix
El Parque Lineal concebido y su interpretación espacial desde lo vivido
Coppelia H.Cuartas ‐ Escuela de Arquitectura y Diseño de la Universidad Pontificia Bolivariana
Juan J. C. Calle ‐ Escuela de Arquitectura y Diseño de la Universidad Pontificia Bolivariana
Tarde ‐ 14h30 às 18h00
Núcleo Temático I ‐ Cidade em movimento e movimento na cidade
Palestrante: Cristóvão Fernandes Duarte ‐ UFRJ/ PROURB
Mesa Redonda
Mediadora: Silke Kapp ‐ UFMG/ NPGAU
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Trabalhos apresentados:
A produção do espaço não construído: Reflexões sobre áreas protegidas de Belo Horizonte e
sua periferia sul‐metropolitana
Ana Carolina P. Euclydes – UFMG/NPGAU
O Planejamento urbano desejado e o praticado: O caso de Viçosa, MG
Ítalo I. C. Stephan – UFV/ Departamento de Arquitetura e Urbanismo
Cidades e afetos: Segregação e alteridade
Maria Luísa M. Nogueira – UFMG/ Departamento de Psicologia
09/11/2012 ‐ SEXTA‐FEIRA
Manhã – 09h00 às 12h30
Núcleo Temático III ‐ Memórias e Cidades
Palestrante: Mário de Souza Chagas – UNIRIO/ Programa de Pós‐Graduação em Memória Social
Mesa Redonda
Mediador: Flávio de Lemos Carsalade ‐ UFMG/NPGAU 11
Trabalhos apresentados:
Transportes e transformações no Rio de Janeiro de Machado de Assis
Cinthia Tragante – USP/ IAU
Suportes de memória da Comarca do Rio das Mortes: A encruzilhada de rotas e caminhos luso‐
brasileiros
Marília Ávila Carvalho – UFMG/ NPGAU
Fernanda Borges de Moraes – UFMG/ NPGAU
Patrimônio + Educação: Derrubando barreiras e construindo novas pontes
Paula Gomes Cury ‐ UFMG/ NPGAU
Tarde – 14h30 às 18h00
Núcleo IV ‐ Novo perfil de cidade e novos rumos em direção a uma sociedade inclusiva
Palestrante: João Antônio de Paula ‐ UFMG/ Cedeplar
Mesa Redonda
Mediador: Carlos Antônio Leite Brandão ‐ UFMG/ NPGAU
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Trabalhos apresentados:
O uso das tecnologias digitais no espaço: As telas urbanas
Lorena Melgaço ‐ UFMG/ NPGAU
Quando Rousseau visitou Alphaville: Status, desigualdade e uma certa ideia de comunidade
Lucas Veloso de Menezes ‐ UFMG/ NPGAU
O cooperativismo na construção civil: Uma outra cultura produtiva com sentido social
Cristiano Gurgel Bickel ‐ UFMG/ NPGAU
Noite – 19h00
Palestra de Encerramento
Maria Lúcia Malard ‐ UFMG/ NPGAU
12
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NÚCLEO TEMÁTICO I: Cidade em movimento e movimento na cidade
A produção do espaço não construído: reflexões sobre áreas
protegidas de Belo Horizonte e sua periferia sul‐metropolitana
The production of unconstructed space: thoughts on the protected areas in Belo
Horizonte's southern suburbs.
Ana Carolina P. EUCLYDES
Mestre em Geografia/UFMG; Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pelo NPGAU/UFMG; Consultora
de meio ambiente e desenvolvimento sustentável da Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais.
anacpeuclydes@gmail.com
RESUMO
Com Henri Lefebvre (1991), pode‐se afirmar que, na sociedade capitalista, tanto a construção civil
como a restrição à construção – ou a quaisquer outros usos – são faces da produção do espaço. Nessa
perspectiva, a reflexão sobre os espaços intencionalmente não construídos, como os parques e outras
áreas protegidas, pode ser considerada um prisma pertinente para a apreensão de regras,
conhecimentos, ideologias e simbolismos que pautam o processo de produção do espaço. Neste
artigo, combinando a história da instituição de áreas naturais protegidas com a história da expansão
da capital mineira na direção sul, ressalta‐se a relevância do estudo das áreas verdes e áreas
protegidas para a compreensão das dinâmicas históricas e contemporâneas da produção do espaço na
Região Metropolitana de Belo Horizonte. Com essa reflexão, verifica‐se que essas áreas, registros de 13
determinados tempo e espaço, compõem o palimpsesto da construção do espaço urbano,
expressando diferentes representações de natureza e distintos projetos de cidade.
PALAVRAS‐CHAVE: parque, região metropolitana, produção do espaço, áreas protegidas, Belo
Horizonte
ABSTRACT
Lefebvre's (1991) work suggests that, in capitalist society, both the construction and the restriction to
construction – or to any other uses – are aspects of space production. From that point of view, the study
of the spaces that are intentionally not built, such as parks and other protected areas, can be considered
an appropriate perspective to perceive the rules, the knowledge, the ideologies and the symbols that
steer space production processes. In this paper, compounding the history of the institution of protected
areas with the history of the expansion of state capital towards south, we highlight the relevance of the
study on green areas and protected areas for the comprehension of the historical and contemporary
dynamics of space production in Belo Horizonte's metropolitan region. With such contributions, we attest
that these areas refer to determined space and time conditions inhering the palimpsest of urban space
construction, expressing different representations of nature and distinct city projects.
KEYWORDS: parks, metropolitan region, space production, protected areas, Belo Horizonte.
1 A PRODUÇÃO DO ESPAÇO NÃO CONSTRUÍDO
O espaço não é um objeto científico descartado pela ideologia ou pela política; ele sempre foi político e estratégico.
Se o espaço tem um aspecto neutro, indiferente em relação ao conteúdo, (…) é precisamente porque ele já está
ocupado, ordenado, já foi objeto de estratégias antigas, das quais nem sempre se encontram vestígios. O espaço foi
formado, modelado a partir de elementos históricos ou naturais, mas politicamente (LEFEBVRE, 2008, p. 61).
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A crítica proposta por Henri Lefebvre na década de 1960 – direcionada aos estudiosos
que tomavam o espaço como algo puro, neutro, não‐político, e consideravam que o
urbanismo, enquanto uma prática científica e técnica, poderia constituir uma ciência
cartesiana – é hoje amplamente aceita no âmbito da teoria social crítica. Em nossos dias,
compreendemos, sem maiores dificuldades, que espaços como uma zona de expansão
urbana ou um cinturão agrícola são produzidos a partir de combinações de necessidades
e vantagens locacionais, mas também em razão de outros fatores, como as decisões
políticas, pertinentes a espaços/tempos específicos.
Porém, muitas vezes, quando consideramos áreas não construídas, constituídas de campos,
florestas ou mesmo parques, a mesma lógica parece incerta, já que esses espaços não
aparentam terem sido incorporados à dinâmica produtiva, seja na forma de matérias‐primas ou
de espaço ocupado. Talvez por isso sejam comuns as referências a essas áreas como “espaços
livres” ou “espaços vazios”, como se observa em discursos acadêmicos e comerciais, a exemplo
de Miranda Magnoli (1982) e Caparaó e Patrimar (2011).
Mas a produção do espaço se limita à construção (civil) do espaço?
Com Lefebvre (1991), pode‐se afirmar que não. Para o filósofo, a produção do espaço se dá por
meio das relações dialéticas que a sociedade estabelece com seus espaços percebidos, vividos e
concebidos. Em breves termos, enquanto o espaço percebido compreende a leitura do mundo
exterior a partir do uso do corpo, por meio da qual cada pessoa identifica sua localização
particular e os conjuntos espaciais característicos de sua comunidade, o espaço vivido consiste
no espaço dos usuários, que atribuem ao espaço físico imaginário e simbolismos, relacionando‐ 14
se com a experiência cultural do meio. Já o espaço concebido é o espaço dominante, a
abstração por meio da qual cientistas, planejadores e tomadores de decisões mobilizam
conhecimentos, ideologias e códigos para construir elaborações teóricas sobre as práticas
espaciais, e a partir delas, organizar o espaço no sentido produtivo. Assim, se a construção
física do meio constitui uma face do processo de produção do espaço, também o fazem os
afetos, as culturas, os conhecimentos e as ideologias que concorrem para sua organização.
Nessa perspectiva, também os espaços não construídos compreendidos pelas áreas verdes ou
definidos como áreas protegidas1 seriam facetas de um processo de produção do espaço mais
amplo, que demanda a reserva de “áreas naturais” com determinadas motivações. Tendo isso
em conta, cabe buscar compreender as origens e a história dessas áreas, e, com isso, sua
relação com a produção do espaço da/na região.
Foi esse o intuito da dissertação intitulada “Proteção da natureza e produção da natureza:
política, ideologias e diversidade na criação de unidades de conservação na periferia sul da
metrópole belo‐horizontina” (EUCLYDES, 2012), apresentada ao Programa de Pós‐Graduação
em Geografia da UFMG. Nesse trabalho, as quase 30 áreas protegidas no/do Eixo Sul2 da
Região Metropolitana de Belo Horizonte – RMBH –, foram objeto de um estudo que contou
com revisão bibliográfica, entrevistas a agentes públicos e pessoas envolvidas em associações
ambientalistas, além de interpretação de mapas e de discursos proferidos em reuniões públicas
pelos principais agentes relacionados à produção do espaço na região.
Dessa dissertação se origina o presente artigo, que pretende refletir sobre a relevância da
reflexão das áreas protegidas para a compreensão da produção do espaço, a partir de exemplos
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das áreas verdes e áreas protegidas de Belo Horizonte e de sua extensão sul. Para tanto, o
trabalho se compõe de mais seis seções: origens, em que se apresenta a raiz comum do
planejamento urbano e da instituição de áreas protegidas; áreas verdes/áreas protegidas de
Belo Horizonte, que remonta a geohistória da capital a partir de cinco áreas protegidas e um
projeto de parque; considerações finais, em que a metáfora do palimpsesto, recorrente em
estudos do urbanismo, é aplicada às áreas protegidas, salientando a imbricação dos dois
temas; referências; e notas.
2 ORIGENS: CIDADES INDUSTRIAIS, URBANISMO E ÁREAS VERDES/PROTEGIDAS
“Esta audiência poderia ter sido realizada lá, na Serra da Moeda, que tem lugares maravilhosos. Vocês
poderiam ver de perto o natural próximo a Belo Horizonte”.
A fala do vice‐presidente da ONG Associação de Meio Ambiente de Moeda, proferida em numa
audiência pública promovida pela Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais – ALMG –,
para debater os usos do solo na Serra da Moeda, em 18/11/2008, sistematiza a representação
do espaço urbano como o espaço artificial, do qual a natureza foi completamente excluída/
destruída , onde não mais haveria processos ecológicos.
Trata‐se de uma representação recorrente, que figura também com frequência em material
publicitário de empreendimentos imobiliários situados no Eixo Sul destinados a classes de
média e alta renda da zona sul de Belo Horizonte, como no caso do Loteamento Gran Royalle
Casa Branca, que anuncia que “a natureza nunca esteve tão perto de você”. 15
Embora essa oposição cidade x natureza – variação da oposição homem x natureza, em que a
sociedade (Sujeito) é vista como o agente externo de destruição do meio (objeto) – possa parecer
contemporânea, ela remete às transformações socioespaciais vivenciadas na Inglaterra a partir do
século XVII.
Segundo Keith Thomas (1988 apud DIEGUES, 1996; CAMARGOS, 2006), as atitudes cada vez mais
afetuosas dos ingleses com os animais, as plantas e os espaços abertos e silvestres estiveram
relacionadas ao intenso processo de urbanização associado à Revolução Industrial, que promovera
sensíveis alterações no uso e na ocupação do solo, escassez de recursos naturais e modificações no
padrão de consumo3. Como que em repúdio a essas transformações, na medida em que as fábricas se
dispersavam pelo país e as cidades cresciam em número e em densidade populacional, instensificava‐
se a afinidade da sociedade com o meio rural, o que se traduzia na criação de jardins e na busca por
casas de campo – sobretudo pelas classes sociais não diretamente envolvidas na produção agrícola,
como a aristocracia e as classes médias burguesas (THOMAS apud CAMARGOS, 2006, p. 11).
Contribuíram também para a valorização do mundo selvagem o avanço da História Natural e a
divulgação dos relatos dos “viajantes pitorescos”, em especial daqueles que buscavam a singularidade
das praias isoladas, dos costões e das ilhas. Esses dois fatores – a admiração pelo ambiente natural
exótico e a negação da cidade – se refletiram na literatura romântica do século XIX, que aproximava “o
que restava” de natureza selvagem na Europa do imaginário do paraíso perdido, do refúgio, da
inocência, da beleza e do sublime, exercendo grande influência sobre as elites norte‐americanas, que,
mais tarde, se valeriam da constituição de grandes parques como estratégia para a construção da
identidade da nova nação (DIEGUES, 1996b, CAMARGOS, 2006).
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Ao mesmo tempo, nos núcleos transformados pela indústria inglesa, o repúdio a questões
como a falta de infraestrutura geral, as condições sanitárias precárias, a altíssima densidade
populacional dos bairros operários e o arruamento inapto a comportar o trânsito que vinha se
constituindo forneceu elementos à construção do urbanismo moderno (BERMAN, 1989,
p.147). Este primava pela ordem e pela hierarquia, pela eficiência da circulação e pelo
higienismo, contribuindo para a disseminação dos novos conceitos de cidade e natureza
resultantes relacionados ao modo de vida urbano‐industrial (BARROS, 2005).
Desse modo, a concepção social de natureza se transformava: tanto ela se afastava
progressivamente do homem, na medida em que passava a ser vista como “recurso” para as
fábricas e como o “selvagem“ contraposto à civilização, como se enobrecia e se aproximava da
sociedade, na medida em que se acentuavam seus sentidos de “refúgio” e de “saúde”, com a
delimitação de áreas “verdes” destinadas ao descanso dos cidadãos urbanos e à purificação
dos ares da cidade (DIEGUES, 1996; BARROS, 2005).
Foi esse o contexto histórico do planejamento e da construção de Belo Horizonte, a capital
mineira concebida para representar os novos tempos republicanos, no final do século XIX. Seu
projeto, marcado pelas linhas retas, pelas grandes avenidas diagonais e pelos limites impostos
por seu anel de contorno, tinha no Parque Municipal, nas praças e nos jardins encaixados em
seu traçado os símbolos da natureza domesticada, e, ao mesmo tempo, os “pulmões da
cidade”, pensados para facilitar a circulação e purificação do ar, de modo a controlar os males
endêmicos da observados nas cidades industriais europeias (BARROS, 2005).
16
3 ÁREAS VERDES/ PROTEGIDAS DE BELO HORIZONTE (E SUA REGIÃO METROPOLITANA)
3.1 Parque Municipal
Será este Parque o mais importante e grandioso de quantos há na América, e, por si só, merecerá a visita
de nacionais e estrangeiros e elevará a nova cidade acima de quantas ora attrahem no Brazil (Relatório da
Comissão Construtora da Nova Capital apud CVRD, 1992, s/p.)
Projetado para ser um parque inglês4, uma ilha de romantismo e sinuosidade em meio à
geometria retilínea da cidade planejada, o Parque Municipal registra a história de Belo
Horizonte desde a sua construção.
Como ocorreu com todo o arraial do Curral d´El Rey, feito tábula rasa para receber a capital
símbolo da nova época, os terrenos que compuseram o parque constituíam a Chácara
Guilherme Vaz de Mello, conhecida como Chácara do Sapo, que foi desapropriada e posta
abaixo para recebê‐lo. Seu projeto foi elaborado pelo arquiteto‐paisagista francês Paul Villon, e
previa, em meio aos jardins, equipamentos como um cassino, um restaurante, um observatório
meteorológico, uma ponte artística, lagos e gramados.
O parque foi inaugurado três meses antes que a cidade, mas, mesmo antes disso, já sediava os
mais importantes eventos relacionados à construção da capital. Além de ter sido residência do
engenheiro‐chefe da Comissão Construtora da Nova Capital, Aarão Reis, em seus terrenos
foram realizadas as cerimônias de inauguração do ramal férreo, que cumpriu relevante papel
no transporte dos materiais para a construção da cidade, em 1895, e o banquete oferecido
pela Comissão Construtora na noite da inauguração da cidade (CVRD, 1992).
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Inicialmente, o parque tinha como limites as importantes avenidas Mantiqueira (atual Alfredo
Balena), Araguaia (atual Francisco Sales) e Tocantins (atual Assis Chateaubriand), abrindo‐se
para o eixo monumental da cidade, a Afonso Pena. Situava‐se, portanto, na zona reservada aos
funcionários da burocracia estatal, aos representantes do poder e à elite local da nova capital,
devendo servir de palco a suas atividades de lazer.
Já nas primeiras décadas do século XX, assumiu‐se a impossibilidade de se levar adiante o projeto
completo de Villon, e, entre as décadas de 1910 e 1930, iniciou‐se a cessão de áreas para outros
equipamentos públicos, o que, ao longo do século, levou à expressiva redução dos limites do parque,
de 55ha aos atuais 8ha. Nesse período, foi desligada definitivamente a porção a norte do Ribeirão
Arrudas, bem como entregue ao estado a porção a sudoeste do córrego Acaba‐Mundo que se abria
para a atual Avenida Alfredo Balena, principiando a configuração de uma área hospitalar a sudoeste
do parque. Remontam também a esse período a instalação de uma quadra de tênis, uma pista de
patinação e um pequeno zoológico no interior do parque (GÓIS, 2003; GUIMARÃES, 2005).
Na década de 1930 foi implantada a Cidade Industrial, na cidade de Betim – fora do centro
urbano de Belo Horizonte, conforme os preceitos do urbanismo moderno –, constituindo o
movimento de produção de um espaço de produção da cidade, impulsionado pelo estado
(COSTA, 1994). O desenvolvimento do setor industrial, em especial após a 1ª Guerra, fortaleceu
o papel da capital como o centro político‐econômico de Minas Gerais. Essas transformações se
refletiram na intensa expansão urbana, principalmente nos subúrbios, não apenas com direção
à Cidade Industrial e a seus bairros operários, como também na forma de novas áreas
residenciais e de lazer para as elites (MONTE‐MÓR, 1994a). 17
A partir da década de 1950, com o impulso à industrialização substitutiva conferido pela
criação das Centrais Hidrelétricas de Minas Gerais – Cemig – e pelo significativo investimento
em rodovias – debelando as principais deficiências que continham o desenvolvimento
industrial mineiro –, a cidade foi transformada de várias formas, desde a expansão urbana de
bairros afastados e cidades‐satélite até o embelezamento do centro da capital e de suas
periferias imediatas (Ibid.).
No Parque Municipal, as transformações iniciadas nessa década se refletiram em dois
aspectos principais. Primeiramente, em decorrência da intensificação das ligações
regionais, do deslocamento do lazer das elites para a Pampulha, do estímulo aos
transportes de massa e da apropriação da região central da capital pela população de
baixa renda, o público do parque foi significativamente diversificado, popularizando‐se
(GOIS, 2003). Além disso, a área recebeu importantes obras de reestruturação,
promovidas pela administração do Prefeito Américo Renné Gianetti – motivo pelo qual,
mais tarde, o parque viria a receber seu nome.
A reestruturação contou com os estudos do paisagista Burle Marx, que concluiu que o
parque se encontrava ofuscado por edificações públicas que não condiziam com ele e lhe
tiravam a beleza. As sugestões do paisagista foram apenas parcialmente pela prefeitura,
resultando em benfeitorias pontuais e no tratamento das águas que drenavam área.
Contudo, não se interrompeu a cessão de áreas e a construção de prédios públicos,
sendo então implantadas a Escola Técnica de Comércio Municipal e a polêmica Concha
Acústica5 (CVRD, 1992).
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Em, 1975, expressando a reação pública diante da descaracterização da área, o conjunto
paisagístico e arquitetônico do Parque Municipal foi tombado pelo Instituto de
Preservação do Patrimônio do Estado – hoje IEPHA‐MG. A iniciativa, contudo, não
motivou ações para reverter a má conservação da área, que só ao final da década de
1980 viria a receber novos investimentos.
3.2 Tombamento da Serra do Curral
A Serra do Curral é o marco geográfico mais representativo da região metropolitana de Belo Horizonte, com
expressivo significado simbólico, evidenciando múltiplos conjuntos paisagísticos, registros geológicos de milhões de
anos e uma vegetação que comunga com o clima e a ambiência da região. (...) O tombamento inclui o conjunto
paisagístico do pico [de Belo Horizonte] da parte mais alcantilada, ou seja, a parte mais nobre da serra,
resguardando apenas um trecho desta (SPHAN, 1960, p. 8 apud BATISTA, 2004, p. 102).
Como se observa, o tombamento do Parque Municipal não foi o primeiro instrumento dessa
natureza aplicado – e ignorado – ao patrimônio cultural e paisagístico da capital. Já na década
de 1960, o tombamento da Serra do Curral, limite sul entre Belo Horizonte e Nova Lima,
instituído pelo Sistema de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Sphan –, no ano de 1960,
vinha sendo negligenciado.
Exemplo dessa negligência foi a participação da própria prefeitura da capital numa sociedade
de economia mista criada para explorar o minério de ferro na serra. Tratou‐se da Ferro Belo
Horizonte S.A. – Ferrobel –, que atuou nas regiões do Barreiro, do Cercadinho e do Bairro
Mangabeiras6, sob a justificativa de gerar as divisas necessárias à realização de obras de
urbanização na cidade, então em franco processo de expansão (BATISTA, 2004). 18
A expansão a que se referia a prefeitura, observada a partir do final da década de 1960, estava
relacionada ao expressivo crescimento da população metropolitana e ao surto industrial que
culminou com a instalação da Fiat Automóveis na Cidade Industrial, manifestando‐se no
aprofundamento da segregação espacial da região. Nesse período, enquanto as periferias se
expandiam por meio, principalmente, de loteamentos populares e de recreio – do tipo
condomínio –, os espaços centrais e mais bem estruturados passaram por um processo de
elitização (COSTA, 1994).
Roberto Monte‐Mór (1994a) associa esse momento ao coroamento da metrópole fordista
belo‐horizontina: enquanto o centro histórico se fechava sobre si mesmo, excluindo a
população trabalhadora do espaço do poder, o tecido urbano explodia para além das cidades,
estendendo a forma urbano‐industrial dominante pelos subúrbios, por meio de espaços
industriais, serviços, condomínios, conjuntos habitacionais, favelas, loteamentos, linhas de
ônibus e serviços de eletricidade. Oficialmente, a Região Metropolitana foi instituída em 1973,
por meio de lei complementar federal, abrangendo 14 municípios.
Assim, ocupado em acompanhar a expansão urbana, o poder público ignorou o tombamento
da Serra do Curral também ao criar a Companhia Urbanizadora da Serra do Curral – Ciurbe –, e,
mais tarde, a Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado – Codeurb –, que conduziram
a ocupação da zona sul da capital. Seus projetos não foram submetidos à análise do Sphan, que
só se manifestaria novamente sobre a áreas em meados dos anos 1970, propondo medidas
para mitigar os impactos sobre a área tombada e retificando os termos do tombamento, por
meio da definição de seis marcos instalados em pontos da serra7 (BATISTA, 2004).
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Os novos bairros ao sul da capital se caracterizavam pela combinação de zonas residenciais
nobres e favelas adjacentes, reproduzindo um modelo comum às cidades pré‐industriais
brasileiras (MONTE‐MÓR, 1994a). Na direção da Serra do Curral, o Bairro Serra já convivia com
o Morro do Cafezal, como viria a ocorrer com o novo Bairro Mangabeiras.
Para além das fronteiras municipais, as características de elitização e segregação características da
zona sul de Belo Horizonte se estendiam a municípios como Nova Lima e Brumadinho, que se
constituíam como local preferencial para a instalação dos condomínios em função das belas paisagens
e da manutenção da baixa densidade da ocupação – relacionada a restrições como a pronunciada
concentração fundiária por parte das mineradoras, as limitadas alternativas de acesso viário e alguns
condicionantes ambientais, como o relevo acidentado das serras e as áreas de matas (COSTA, 2006).
3.3 Parque das Mangabeiras
Art. 1º ‐ Fica o Executivo autorizado a realizar as obras necessárias à implantação do Parque das
Mangabeiras, em terrenos de propriedade do Município, situados na Serra do Curral.
(...)
Art. 2º ‐ Fica o Prefeito autorizado a urbanizar e lotear uma área de terrenos, com aproximadamente
397.000,00 m2 (trezentos e noventa e sete mil metros quadrados) de propriedade do Município, situada
entre o "Bairro das Mangabeiras” e gleba destinada à implantação do "Parque das Mangabeiras". (Lei
Municipal nº 2.403, de 30 de dezembro de 1974)
Em meados da década de 1970, como parte da referida estratégia de expansão do tecido
urbano belo‐horizontino no sentido sul, a prefeitura da capital empreendeu um grande projeto 19
de urbanização na Serra do Curral, combinando a instalação do Parque das Mangabeiras –
criado por um decreto‐lei em 1969, mas não implantado até então – com o loteamento dos
terrenos públicos em suas imediações. Assim, os loteamentos, voltados para camadas de alta
renda da sociedade belo‐horizontina, se valeriam da infraestrutura de acesso ao parque e, ao
mesmo tempo, custeariam as obras e equipamentos necessários à implantação da reserva
(BATISTA, 2004).
A Figura 1 situa o Parque das Mangabeiras com relação ao Parque Municipal e ao Tombamento
da Serra do Curral, sobre uma imagem de satélite atual.
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Figura 1: Parque Municipal, Tombamento da Serra do Curral e Parque das Mangabeiras
20
Diferentemente do Parque Municipal, a concepção de parque que orientou a criação do das
Mangabeiras, em 1969, estava relacionada à preservação de atributos excepcionais da natureza, bem
como à proteção da fauna e da flora, e à utilização com fins educacionais, científicos e recreativos,
conforme consolidara o Novo Código Florestal, de 1965, que reviu o Código de 1934. As categorias de
áreas protegidas definidas pelo código – parque nacional, reserva biológica e floresta nacional –,
expressaram a concentrada tutela dos recursos naturais pelo Estado, que selecionava as áreas a serem
protegidas e as desapropriava, além de funcionarem como resposta/contenção aos/dos ânimos dos
naturalistas, que viriam a constituir o movimento ecologista no país (GONÇALVES, 2006).
Porém, no caso do Parque das Mangabeiras, ao longo da década de 1970, a finalidade de
proteção da natureza se tornou secundária à recreativa. Com a criação da Empresa Municipal
de Turismo de Belo Horizonte – Belotur –, o projeto do parque foi alterado para constituir um
grande empreendimento turístico, dotado de equipamentos como: conjunto alpino (teleférico
e tobogã), restaurante, pistas de patinação, minifazenda, áreas para quadras e parques infantis
(BATISTA, 2004).
E, embora o discurso oficial fosse de que o parque atenderia a toda população da capital, os
custos pertinentes a sua utilização, como o pagamento de ingressos, os custos com alugueis de
equipamentos de lazer, além das dificuldades de acesso – a exemplo da localização de sua
portaria, no Bairro Mangabeiras –, restringiriam seu uso às elites8. O parque foi inaugurado em
1982, atraindo grande quantidade de pessoas e eventos, embora a maior parte das obras e
atividades planejadas não tivesse sido implementada – já que seu projeto previa que
melhoramentos seriam financiados com os lucros advindos do próprio parque (Ibid.).
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Esses melhoramentos, que incluíam a implantação dos grandes equipamentos, nunca se
efetivaram, pois, além de se mostrarem superdimensionados, revelaram‐se incompatíveis
com as novas posturas de proteção da natureza esperadas do poder público. Isso porque,
na década de 1990, já se discutia a criação do Sistema Nacional de Unidades de
Conservação da Natureza – Snuc 9 –, que distinguia as categorias que deveriam primar
pela proteção da biodiversidade, com usos rigidamente controlados, como os parques,
daquelas onde quais poderia haver uso extensivo das áreas, como as Áreas de Proteção
Ambiental – APAs.
A categoria APA, instituída oficialmente em 1981 a partir da influência dos parques
naturais portugueses, teve como principal diferencial a permissão da manutenção da
propriedade privada da terra e das atividades econômicas, que deveriam ser pactuadas
de modo a assegurar funções ecológicas como a conectividade e o amortecimento. Essas
características levaram à escolha da categoria por um conjunto de associações de
moradores de condomínios de Nova Lima e Brumadinho, que no final da década de 1980
e início da de 1990, propôs ao poder público a criação de uma unidade de conservação
para tentar conter o avanço da mineração na região.
3.4 APA Sul da RMBH
“Era uma proposta que (...) ia causar um certo alvoroço, porque pegava toda a área de mineração.
(...) E realmente o IBRAM [Instituto Brasileiro de Mineração] achou que aquilo seria um empecilho
às atividades mineradoras. Nesse momento, as várias associações de condomínios se uniram para
abarcar a proposta que inicialmente era técnica e mais ampla. O processo ficou em debate por 21
aproximadamente dois anos” (Relato de uma técnica da Fundação Estadual de Meio Ambiente –
Feam –, referindo‐se ao momento da criação da área protegida) 10.
Nos anos 1980, fatores como os grandes projetos do Estado desenvolvimentista, a
implantação de uma complexa estrutura industrial no país, a recuperação dos preços
internacionais do aço, a melhora das condições financeiras das siderúrgicas, a saída de
mercado de importantes empresas internacionais, além de eventos que diminuíram a
oferta do produto, culminaram num momento muito favorável à indústria do minério de
ferro (FERREIRA, 2001). Ao sul da capital, no Quadrilátero Ferrífero, esse momento
provocou a notável expansão da mineração, exemplificada a partir da produção da
empresa Minerações Brasileiras Reunidas – MBR –, que, entre os anos de 1989 e 1999,
cresceu 70% para atender ao mercado interno e 25% para a exportação 11 (PINHEIRO,
2000 apud FREITAS, 2004, p. 59).
Então, enquanto nos bairros situados nos limites entre Belo Horizonte e Nova Lima tinha
início o processo de verticalização, ao longo dos vales das Serras do Rola Moça e da
Moeda principiava o processo de conversão dos sítios de recreio em residências
principais, ocorrendo também um importante aumento na produção de condomínios, em
especial os com apelos relacionados ao “contato com a natureza”, à “qualidade de vida” e
à fuga da metrópole. Entre o final dos anos 1980 e início dos 1990, preocupados com o
perceptível avanço da mineração – em especial com a ampliação das atividades da MBR
no vale do Córrego Mutuca –, esses novos moradores da região começaram a se articular
para reivindicar medidas normatizadoras do uso e da ocupação do solo.
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À época, representantes de nove condomínios e dois clubes da região criaram a
Associação para Proteção Ambiental do Vale do Mutuca – ProMutuca –, que participou
de fóruns de discussão sobre temas ambientais da região, como o Conselho de
Desenvolvimento Ambiental – Codema – de Nova Lima, tendo apresentado
representações à Feam com relação a atividades da MBR (FREITAS, 2004). A entidade
uniu forças com a Associação de Meio Ambiente de Macacos – AMA Macacos – e com o
Conselho Comunitário de São Sebastião das Águas Claras, que tentavam fazer frente às
atividades impactantes das mineradoras, tais como o assoreamento e a poluição de
cursos d´água.
Desse conselho partiu a ideia da criação de uma unidade de conservação na região, que
foi protocolada junto à Feam em junho de 1991, na forma de requerimento solicitando
providências para declarar como APA “a região denominada Vale dos Macacos”. A
justificativa do requerimento se baseava nos impactos causados pela extração mineral
sobre a flora, os recursos hídricos e o solo, e na necessidade de conter a produção de
loteamentos “desconformes com as características da região e agressivos ao patrimônio
que a integra” e o “turismo predatório e desordenado” (FEAM, 1992 apud FREITAS, 2004,
p. 98‐99).
Nos estudos realizados pela Feam, concluiu‐se que a área requerida para a APA deveria
extrapolar o perímetro proposto pelos moradores de São Sebastião das Águas Claras,
protegendo o “cinturão” de vegetação ao sul da RMBH – daí a denominação APA Sul. Em
discussões posteriores, o perímetro da UC foi sendo detalhado, com a participação das 22
associações. Esses debates se estenderam por mais de dois anos, ocorrendo grande
polêmica sobre a aprovação da UC sem zoneamento ecológico‐econômico – ZEE (FREITAS,
2004).
A APA Sul foi criada em junho de 1994, sem ZEE previamente aprovado, abrangendo
165.000ha, em 17 municípios da região central do estado. Passados 18 anos de sua
criação, a APA ainda não teve seu ZEE aprovado, o que tem se refletido em novos
projetos de unidades de conservação para a região (EUCLYDES, 2012).
Ao longo dessas duas décadas, permanecendo a intensa ação dos agentes imobiliários, o
Eixo Sul se consolidou como uma área de valorização acentuada, onde o preço da terra, a
escassez de áreas de expansão e a crescente busca pela moradia próxima a “amenidades
ambientais” criam pressões sobre o padrão de ocupação existente no sentido da
segregação espacial (UFMG/PUCMINAS/UEMG, 2010).
Tendo em vista essa valorização e a possibilidade de auferimento de rendas diferenciais e
de monopólio em negociações imobiliárias envolvendo essas glebas, algumas
mineradoras incursionaram no setor, lançando, no final dos anos 1990, dois grandes
empreendimentos – com área superior a 2.000.000m2, dimensão superior a toda área
parcelada nos 19 loteamentos empreendidos na década de 1960 (COSTA, 2006). Essas
iniciativas, que tendem a se tornar mais freqüentes, em decorrência da grande
concentração fundiária por parte dessas empresas, têm sido apontadas como “a nova” ou
a “terceira safra” do ouro, numa referência ao novo momento de obtenção de lucros por
parte dessas empresas a partir dos mesmos terrenos no Quadrilátero Ferrífero.
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Nesse contexto teve origem o empreendimento imobiliário Vale dos Cristais que, à
semelhança do Condomínio Alphaville Lagoa dos Ingleses, lançado em 1998, configurou
um novo conceito de loteamentos na RMBH, no qual são ocupadas áreas extensas, com
usos variados – residencial, comercial e de serviços – e tipologias arquitetônicas diversas.
Nesse caso, a produção do espaço se baseou em discursos de segurança, combinação de
trabalho e moradia e proteção ambiental, expressos na ocupação de menores proporções
da gleba (COSTA; MENDONÇA, 2009).
O Vale dos Cristais é resultado de uma articulação entre a mineradora AngloGold, proprietária dos
terrenos, e a construtora Odebrecht Engenharia e Construções, responsável pelo projeto
arquitetônico‐urbanístico e pela venda das unidades, remunerando a mineradora com um percentual
das vendas (FREITAS, 2004). O empreendimento, em implantação desde o início dos anos 2000, se
destaca por ter incorporado o discurso ambientalista como elemento estruturador do projeto, que
prevê a constituição de uma Reserva Particular do Patrimônio Natural em seu interior.
3.5 RPPN Vale dos Cristais
uma proposta “para responder a diferentes demandas e aspectos que dizem respeito ao empreendimento como
um todo, com destaque para a questão da sustentabilidade e dos benefícios ambientais, paisagísticos e comerciais
gerados pela preservação de uma parcela significativa da propriedade” (Relatório de Impacto Ambiental – Rima –
do empreendimento Vale dos Cristais, 2002)
A década de 1990 foi marcada pela disseminação da máxima do desenvolvimento sustentável12, que
permitiu a incorporação do debate ecológico por Estados e empresas e a despolitização do tema,
23
caracterizando o que Martin O´Connor (1993 apud ESCOBAR, 1996) caracterizou como a fase
ecológica do capitalismo13. O período coincide com a redemocratização brasileira – e com a elevação
da proteção ambiental a obrigação constitucional –, com a transição neoliberal do Estado e com os
debates sobre o Snuc no âmbito do Congresso Nacional. Antes da aprovação do sistema, contudo, foi
instituída a categoria RPPN, que representou o avanço de permitir e estimular a criação voluntária de
áreas protegidas pela sociedade (MEDEIROS, 2006).
As RPPNs são áreas privadas, gravadas com perpetuidade para fins de conservação da diversidade
biológica. No interior das unidades dessa categoria só podem se realizar pesquisas científicas e
visitação com objetivos turísticos, recreativos e educacionais, conforme previsão no termo de
compromisso e no plano de manejo.
A instituição de uma RPPN traz alguns benefícios ao proprietário, dentre os quais se destacam a
exclusão da unidade de conservação da área tributável do imóvel para fins de cálculo do Imposto
sobre a Propriedade Territorial Rural – ITR –, a prioridade em programas federais de crédito rural –
para RPPNs maiores que 50% da área de reserva legal exigida por lei, com plano de manejo aprovado
–, e as restrições à desapropriação para fins de reforma agrária, dado que a proteção ambiental
constitui função social da propriedade (BRASIL, 2006). Além disso, as RPPNs têm sido utilizadas como
instrumentos de marketing por empresas que buscam se fortalecer no mercado “verde”, expressando
“responsabilidade ambiental” em suas atividades.
A RPPN Vale dos Cristais integra o empreendimento – que, originalmente14, abrangia 587,5ha –
composto por conjuntos de condomínios, prédios, lotes, centro empresarial e área de comércio e
serviços, projetados para conferir certa autossuficiência ao conjunto, de modo que os moradores
pudessem realizar trabalho e consumo no interior do empreendimento.
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No Rima do Vale dos Cristais, apresentado para fins de obtenção de licença ambiental, a RPPN
é apresentada como medida para atender às demandas referentes à “questão da
sustentabilidade”, além de proporcionar “benefícios ambientais, paisagísticos e comerciais”.
Assim, a “preservação da RPPN e das demais áreas de APP [áreas de preservação permanente,
previstas pelo Código Florestal Brasileiro] é a garantia de se gerar um espaço de qualidade, no
qual é a convivência entre as áreas loteadas e estas de preservação que constitui o grande
diferencial deste projeto” (SETE/ODEBRECHT, 2002, p. 40‐41).
Além disso, na seção do Rima pertinente à avaliação dos impactos ambientais, a RPPN é
proposta como medida de controle e/ou compensação decorrente de dos seguintes impactos
ambientais: alteração da paisagem, redução de habitats levando a fuga e/ou perda de
indivíduos da fauna dos biótopos capoeira e capoeirinha, perda de indivíduos da flora do
bioma capoeira, interrupção do corredor florestal com isolamento de algumas populações de
fauna na área do aterro‐dique, caça e coletas predatórias em função do aumento da pressão
antrópica, e fuga e/ou perda de indivíduos da fauna em função da maior presença humana na
área (Ibid., p. 62‐63).
Assim, a unidade de conservação é apresentada como atributo diferencial do Vale dos Cristais –
que repercutiria em benefícios à paisagem, à natureza e às vendas das unidades –, além de
operar antecipando a compensação ambiental dos impactos do empreendimento, que seria
definida pelo poder público após a análise dos documentos demandados para a concessão da
licença ambiental.
O empreendimento Vale dos Cristais foi, de certa maneira, pioneiro na incorporação das 24
áreas protegidas como diferenciais imobiliários no Eixo Sul. Desde a divulgação de seu
projeto, contudo, esse tipo de estratégia se expandiu sensivelmente. É possível dizer que
a RPPN Vale dos Cristais representa o momento atual dos debates internacionais, em que
o discurso ambientalista é utilizado por diferentes atores, com propósitos inclusive
divergentes. Esse momento é descrito com precisão por Laurent Thévenot e Claudette
Lafaye (1993 apud ACSELRAD, 2004, p. 19): “ao contrário de uma causa universal
ecológica que se manifestaria através de atores particulares, como sugere com
frequência o debate corrente, observa‐se uma busca pela universalização de causas
parcelares através de valores [ecológicos] compartilháveis que tornam os atos
justificáveis”.
Nessa perspectiva, a conservação da natureza tem se tornado objetivo secundário de
algumas áreas protegidas, que podem ter por finalidade maior a constituição de
atributos capazes de agregar valor ao empreendimento imediatamente. Tratar‐se‐ia da
produção da natureza, ou, nos termos de Lefebvre (1991), da produção de “substitutos
medíocres da natureza” – já que tais UCs constituem fragmentos exíguos de áreas não
construídas, representantes simbólicos da natureza destruída para dar lugar aos
empreendimentos.
Esses objetivos diversos, encobertos por discursos ambientalistas e áreas protegidas, têm
se disseminado, sendo possível identificar um exemplo recente na proposta de criação do
Parque Águas Claras, situado entre Belo Horizonte e Nova Lima.
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3.6 Proposta de criação do Parque Águas Claras (Parque José Alencar Gomes da Silva)
“... o objetivo é oferecer um espaço de convívio entre os moradores, garantir mais qualidade de
vida e frear o desenvolvimento de Nova Lima naquele local” (Texto extraído de matéria do Jornal
Belvedere & Condomínios de Nova Lima).
Segundo a reportagem de 5 de agosto de 2011, uma proposta da Prefeitura de Belo
Horizonte de transformar o ramal ferroviário da mina desativada de Águas Claras (Nova
Lima) em rota de Veículo Leve sobre Trilhos – VLT –, ligando o Bairro Belvedere à região
do Barreiro, teria desagradado moradores da zona sul da capital. Como reação à
proposta, a Associação dos Amigos do Bairro Belvedere – AABB – e a Frente de
Associações de Condomínios do Vetor Sul teriam se mobilizado para criar “um espaço de
convívio entre os moradores, garantir mais qualidade de vida e frear o desenvolvimento
de Nova Lima naquele local”, por meio da criação do “Parque Águas Claras” ou da
incorporação da área à Estação Ecológica do Cercadinho (PARQUE ÁGUAS CLARAS...,
2011).
Para o presidente da AABB, a utilização do ramal com fins de transporte, “com a
construção de mais lojas comerciais e mais adensamento para a região preocupa os
moradores”, o que poderia ser evitado com a institucionalização da proteção ambiental
da área – teoricamente impeditiva aos usos considerados “preocupantes”. Também
rejeitando a proposta da prefeitura, o presidente da Frente de Associações de
Condomínios do Vetor Sul argumenta que não haveria demanda por transporte de massa
entre Belvedere e Barreiro, além do que a implantação do VLT não solucionaria o 25
principal problema do trânsito da região: a ligação entre Nova Lima e a capital.
Destacam‐se, em falas como essas, o paradoxo das posturas de entidades pleiteiam a
criação de uma área de proteção ambiental – que, se imaginaria, relacionada a
preocupações ambientais –, ao mesmo tempo em que rejeitam o transporte público em
prol do particular, que, além de contribuir para a emissão de poluentes, provoca o
trânsito tão questionado.
Apoiando a demanda dos moradores da zona sul, em agosto de 2011, foi apresentado à
ALMG o Projeto de Lei nº 2.290, requerendo a criação do Parque Estadual José Alencar
Gomes da Silva, no referido trecho do ramal ferroviário. Conforme o projeto, o parque
teria por finalidade a proteção à biodiversidade e a conservação da “paisagem natural,
sua fauna e flora, como elementos promotores do ecoturismo e da recreação em contato
com a natureza” (MINAS GERAIS, 2011). Contudo, há que se questionar a instituição de
um parque estadual, e não uma praça ou parque municipal, em uma área tão limitada,
confinada entre loteamentos numa região densamente ocupada do Eixo Sul.
Observa‐se, no caso desse parque, o deliberado uso das áreas protegidas com fins
diversos da proteção ambiental. Mais que isso, nota‐se como a conservação da natureza
é utilizada como argumento de medidas que acentuam a segregação socioespacial do
Eixo Sul, a exemplo do que verificou Eliano Freitas (2004) com relação à APA Sul.
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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS: PALIMPSESTO DE REPRESENTAÇÕES DE ÁREAS PROTEGIDAS
A partir da reflexão sobre esses espaços não‐construídos, ou de uso restrito, verifica‐se que,
em nossa sociedade, apesar da forte presença do imaginário que concebe as áreas protegidas
como redutos de uma natureza‐original a serem mantidos “intocados” com relação às
dinâmicas produtivas de seu entorno, essas áreas vêm se constituindo como “protocolos de
intenções” de proteção de paisagens e recursos, instrumentos localizados de planejamento
com objetivos de assegurar determinada conformação do espaço urbano15. Assim, os conceitos
de áreas protegidas e espaço urbano se reaproximam – como em suas origens inglesas –,
revelando a manutenção intencional de certos espaços com aspectos naturais originais como
parte integrante do processo de produção do espaço urbano.
Considerando o momento histórico em que cada uma das áreas citadas foi instituída, e
observando, nas figuras apresentadas, a situação dessas áreas no espaço urbano da capital e de
sua região metropolitana, verifica‐se que esse conjunto de áreas protegidas vem sendo
constituído – por meio de ampliações, supressões, sobreposições e substituições – desde a
criação da capital mineira, e, de forma mais pronunciada, ao longo das últimas décadas.
A Figura 2 situa as áreas protegidas a que se refere a seção 3. Entre outras coisas, ela permite
observar a grande desproporção entre a UC e as áreas protegidas criadas até então.
Figura 2: Conjunto das áreas protegidas a que se refere a Seção 3.
26
A dinâmica espacial da criação dessas áreas remete à reflexão de Milton Santos (1996) sobre a
composição da paisagem:
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A paisagem não se cria de uma só vez, mas por acréscimos, substituições; a lógica pela qual se fez um
objeto no passado era a lógica da produção daquele momento. Uma paisagem é uma escrita sobre a
outra, é um conjunto de objetos que têm idades diferentes, é uma herança de muitos diferentes
momentos (SANTOS, 1996, p. 66).
O autor compara a paisagem a um palimpsesto – um manuscrito cuja grafia foi removida para
dar lugar a novo texto, conservando marcas da escrita passada –, explicitando que a leitura
dessa paisagem deve considerar as condições políticas, econômicas e culturais da sociedade
que a produz(iu). Nessa perspectiva, sopesando as sucessivas medidas que criam, sobrepõem,
ignoram e valorizam as áreas protegidas da região, faz‐se pertinente a utilização da metáfora
do palimpsesto para pensar esse conjunto de áreas protegidas16, como se propõe a seguir.
Enquanto a criação e o desenho original do Parque Municipal de Belo Horizonte refletem a
intenção das elites políticas mineiras de constituir uma capital própria dos novos tempos
republicanos – a “síntese entre Paris e Washington, Haussmann e L´Enfant (LEMOS, 1988 apud
MONTE‐MÓR, 1994) –, suas transformações ao longo do século constituem expressões de
diferentes momentos da história belo‐horizontina. Nos primeiros anos de vida da nova capital,
a área foi sede de importantes eventos e do lazer das elites, e, ao mesmo tempo, fragmentada
para receber novos prédios públicos; quando Belo Horizonte fortaleceu suas ligações viárias
com as periferias e os municípios vizinhos, seu público foi alterado e benfeitorias foram
realizadas; mas, quando a industrialização e o milagre econômico fizeram explodir o espaço
urbano, a área se afastou das prioridades do poder público, que voltou suas atenções para a
paisagem das periferias.
27
O mesmo afastamento das áreas protegidas das prioridades do poder público se expressa no
histórico do tombamento federal da Serra do Curral, que não representou mais que um título
de reconhecimento da importância da serra na paisagem da capital – embora sinalize alguma
preocupação pública, ainda que apenas na esfera federal, com a permanência dessa paisagem,
que se alterava com o avanço do tecido urbano em direção às periferias, nas décadas de 1960 e
1970. O entendimento de que o tombamento tenha correspondido apenas a um título se
fortalece com a criação do Parque das Mangabeiras, contido na área tombada. Isso porque, se
o tombamento fosse suficiente para preservar a paisagem – e seu conteúdo –, a criação do
parque, com essa finalidade, não se faria necessária.
As décadas de 1980 e 1990 foram de grandes transformações na capital, como no país e em
todo o mundo capitalista. Os reflexos da “crise do petróleo”, a difusão do Estado mínimo
neoliberal, a queda de barreiras econômicas internacionais, o fim do regime militar e a
redemocratização alteraram não só o modo como a população se relacionava com o Estado,
mas também o comportamento das grandes empresas do setor primário brasileiro. No Eixo Sul
da RMBH, enquanto a mineração se expandia por todo o Quadrilátero Ferrífero, inclusive na
direção da zona sul da capital, os loteamentos populares e de alto padrão avançavam no
sentido sul, acercando‐se dos sítios de recreio de Brumadinho e Nova Lima, que vinham se
convertendo em residências principais.
Desses choques de formas de uso e apropriação do solo – que compreendem o receio de que o
abastecimento de água da capital pudesse se comprometido, o desejo de preservação da
natureza e das belas paisagens da região, e as estratégias de controle dos loteamentos
populares na zona nobre – são registros as vinte áreas protegidas criadas nesse período na
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região. Entre elas se destacam sete áreas de proteção de mananciais, o Parque Estadual da
Baleia, o Parque Estadual da Serra do Rola Moça e a APA Sul. Repetindo a sobreposição de área
protegidas da Serra do Curral, as novas UCs foram criadas umas sobre as outras.
Essa dinâmica permaneceu ao longo dos anos 2000, quando a temática ambiental já se
consolidara nos discursos e ações do Estado e de empresas e a mineração no Quadrilátero
Ferrífero alcançava dimensões nunca antes registradas – o que se exemplifica com o notável
crescimento da mineradora Vale que, privatizada, incorporava empresas como a MBR e
caminhava rumo ao seleto grupo das 40 maiores companhias do mundo. Nesse período, em
que já se podia contar com o novo leque de modalidades de áreas protegidas instituído pelo
Snuc, e no qual a APA Sul completava seu primeiro decênio sem interferir expressivamente no
controle do uso do solo, tiveram destaque as RPPNs – em especial, as pertencentes a
mineradoras – e as UCs de proteção integral nos municípios mais afetados pela mineração.
Essas áreas foram criadas, notadamente, na forma de sobreposições e justaposições.
A Figura 3, que apresenta o palimpsesto regional, agrupando as áreas conforme a década em
que foram criadas, permite observar as tendências de localização dessas áreas protegidas, além
de revelar o progressivo aumento de suas dimensões. A figura não representa o Parque
Municipal de Belo Horizonte, por não se tratar de área voltada para a proteção ambiental, nem
as RPPNs, por falta de informações precisas sobre essas áreas particulares.
Nessa ilustração, explicitam‐se as justaposições e sobreposições de UCs na região, havendo
pontos em que se pode contar até quatro “camadas17” de áreas protegidas – entre as
reconhecidas como existentes e as consideradas revogadas –, o que ratifica a perspectiva do 28
palimpsesto urbano. A representação permite identificar também a repetição do padrão
centro‐periferia da expansão metropolitana no avanço das UCs nos sentidos sul, sobre a Serra
da Moeda, e oeste, sobre a Serra do Rola Moça, ao longo da Serra dos Três Irmãos.
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Figura 3 – A criação de áreas protegidas no Eixo Sul, por década.
29
Sobre esse avanço, cumpre notar que essas são justamente as paisagens montanhosas mais
procuradas por empreendedores imobiliários na RMBH, onde se tem verificado expressiva
valorização dos imóveis, mas também importantes reservas minerais do Quadrilátero Ferrífero.
Tendo isso em conta, e considerando que as motivações que levaram à criação de UCs no Eixo
Sul têm por característica a proposta de controle do uso do solo no que se refere a
empreendimentos minerários e loteamentos populares, essas áreas protegidas podem ser
interpretadas como indicadores dos conflitos entre esses diferentes tipos de uso. Nessa
medida, avaliando os tempos a que se referem e suas crescentes dimensões, pode‐se
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apreender que, ao longo dos últimos 30 anos, tais conflitos têm afetado áreas cada vez
maiores. Desse modo, se persiste a tendência, cabe inferir que, em pouco tempo, toda a RMBH
será cenário de conflitos de uso relacionados à proteção ambiental ou justificados sob o
argumento ambientalista.
Diante do exposto, confirma‐se a pertinência da reflexão sobre as áreas protegidas enquanto
expressões históricas da produção do espaço metropolitano, seja na forma de registros não
construídos de ideologias e políticas de determinadas épocas, seja na forma de representações
do espaço protegido necessárias à reprodução da valorização de mercadorias (minerais,
imobiliárias...) e da segregação socioespacial.
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6 NOTAS
1 A expressão “área verde” é utilizada neste artigo para fazer referência a jardins e pequenos parques urbanos, onde
o principal objetivo não é a proteção da natureza em, mas compor a paisagem urbana e constituir áreas de lazer. Já a
expressão “área protegida” é empregada para fazer referência aos espaços destinados à conservação da natureza.
2 Considera‐se Eixo Sul da RMBH o recorte, determinado por dinâmicas socioespaciais particulares de expansão
metropolitana, que se estende a partir da zona sul da cidade de Belo Horizonte, abarcando municípios vizinhos
como Nova Lima e Brumadinho, e alcançando outros não considerados como componentes da RMBH oficial, na
mesma direção, como Moeda e Itabirito (COSTA, 2006).
3 Conforme aponta Keith Thomas (1988 apud DIEGUES, 1996; CAMARGOS, 2006), naquele país, até o século XVIII,
predominava um ideário de valorização da domesticação do mundo natural, sendo a criação de animais considerada
o ponto mais alto da humanização, motivo pelo qual a entrega de gado aos povos indígenas do Novo Mundo
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constituía a mais simbólica representação de sua introdução à civilização. A transformação desse ideário, que levaria
à convivência entre as antigas sensibilidades e as novas percepções relacionadas à valorização do mundo selvagem,
teve início no século XIX.
4 Na virada do século XX, entre os paisagistas europeus, o geométrico jardim francês perdia espaço para o jardim
romântico inglês, que intervinha na natureza, removendo seus “aspectos desordenados”. Nos termos do importante
paisagista francês Jules Vacheront: “Um jardim romântico é uma obra de arte lançada na própria natureza, não ao
acaso caprichoso de exemplos que esta coloca sob nossos olhos, mas com discernimento e seguindo regras” (CVRD,
1992, p. 19).
5 Dizia‐se que a estrutura não possuía atributos que lhe conferissem acústica satisfatória e que sua posição, voltada
para a área hospitalar, comprometia sua utilização (CVRD, 1992, p.96).
6 A Ferrobel atuou na área que viria a constituir o Parque das Mangabeiras ao longo das décadas de 1960 e 1970,
tendo suas atividades encerradas antes da abertura da área ao público. A mineradora ocupava os locais onde
atualmente se situam o estacionamento Sul e as Praças do Britador e das Águas (HISTÓRICO..., 2011).
7 Contudo, esses marcos não abarcaram a escarpa sul da serra, situada em Nova Lima, atrás do que viria a ser o
Parque das Mangabeiras. Assim, permitiu‐se a exploração mineral em parte da serra, o que, em meados dos anos
1980, veio a implicar no rebaixamento de mais de 100 metros da crista original, descaracterizando a paisagem – e
levando à perda de um dos marcos do tombamento, em função de desmoronamentos (BATISTA, 2004, p.138).
8 É preciso destacar, além disso, que corria entre os belo‐horizontinos a notícia de que uma das funções do parque
seria fortalecer as fronteiras entre o Bairro Mangabeiras e a Vila Cafezal.
9 A lei do Snuc definiu 12 categorias de unidades de conservação ‐ UCs –, divididas em dois grupos: o de proteção
integral e o de uso sustentável. Nas UCs das categorias de proteção integral devem predominar os usos indiretos,
como a pesquisa científica e a visitação controlada, não sendo admitidos “consumo, coleta, dano ou destruição dos 33
recursos naturais” (BRASIL, 2000, art. 2º). As categorias de proteção integral são parque, estação ecológica e reserva
biológica, cujos terrenos devem ser de posse e domínio públicos, e monumento natural e refúgio da vida silvestre,
que poderiam manter áreas particulares, “desde que seja possível compatibilizar os objetivos da unidade com a
utilização da terra e dos recursos naturais do local pelos proprietários” (Ibid., art. 12). Já nas UCs das categorias de
uso sustentável, a exploração dos recursos é permitida, desde que observada a premissa da garantia da “perenidade
dos recursos ambientais renováveis e dos processos ecológicos, mantendo a biodiversidade e os demais atributos
ecológicos, de forma socialmente justa e economicamente viável” (Ibid., art. 7º). São categorias de uso sustentável:
APA e área de relevante interesse ecológico – ARIE, em que é admitida a propriedade privada dos terrenos; floresta
nacional – Flona –, reserva extrativista – Resex – e reserva de desenvolvimento sustentável – Redes –, onde os
terrenos são públicos, com uso concedido a comunidades tradicionais; reserva de fauna, de posse e domínio
públicos; e reserva particular do patrimônio natural – RPPN.
10 Em entrevista concedida a Eliano Freitas (2004).
11 Trata‐se de um aumento de 2,3Mt, em 1989, para 3,9Mt, em 1999, para o mercado interno, e de 16,3Mt, em
1989, para 20,7Mt, em 1999, para exportação, sendo os destinos divididos da seguinte forma: 29% para a Europa,
21% para a Ásia, 18% para o Japão, 16 para o mercado interno e 16% para outros países.
12 O termo se difundiu mundialmente a partir do Relatório Nosso Futuro Comum, publicado pela Comissão Mundial
sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1987. Para Wolfgand Sachs (1992 apud ESCOBAR, 1996), a máxima do
desenvolvimento sustentável contribuiu para a operação ideológica segundo a qual o termo meio ambiente
substituiu as referências à natureza. Para o autor, a transformação da natureza em meio ambiente tem por função
retirar da primeira seu caráter de instância superior, fonte de vida (como na recorrente construção “Mãe Natureza”),
desmistificando‐a e limitando‐a um papel passivo, um apêndice do meio ambiente, que, por seu turno, se refere
apenas a quantidades de matéria e energia. Essa transformação discursiva – que para o autor equivale à morte
simbólica da natureza em paralelo à sua deterioração física – torna o homem o sujeito da ação sobre a natureza,
coroando a visão do mundo como um recurso, construção indispensável para o funcionamento do sistema
capitalista.
13 Para o autor, a produção capitalista tem internalizado a natureza, por exemplo, quando age em prol da
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conservação da biodiversidade por ver nos genes das espécies protegidas da extinção uma utilidade que pode ser
convertida em lucro através da engenharia genética. A natureza, assim, é vista como matéria para produção futura,
ainda mais rentável, de mercadorias de maior valor, como os produtos farmacêuticos.
14 Após obter essa licença ambiental estadual – com base no referido Rima, que previa a construção de casas e
prédios de até quatro andares – o empreendedor buscou o licenciamento em âmbito municipal, junto ao Conselho
Municipal de Desenvolvimento Ambiental de Nova Lima, para expandir o projeto e construir edificações de mais de
15 andares, no condomínio integrante denominado “Vistas do Vale”. Em reação a essas alterações, associações de
moradores de outros condomínios da região fizeram manifestações e apresentaram representações junto ao
Ministério Público Estadual. Em maio de 2011, uma decisão judicial acatou a liminar do MPE, determinando: a
imediata suspensão do processo de licenciamento ambiental municipal para implantação do Vistas do Vale, a
abstenção do município da concessão de qualquer espécie de licença ou autorização ao condomínio; e a suspensão
imediata das vendas de imóveis do referido condomínio (MORADORES..., 2010; ODEBRECHT PROIBIDA..., 2011).
15 Aqui entendido como "zona urbana", no sentido que lhe atribui Henri Lefebvre, referindo‐se ao “estágio de
organização espacial no qual o capitalismo industrial, firmemente estabelecido dentro da cidade e controlando toda
sua região de influência, provoca a ruptura da cidade” em centro urbano (core) e tecido urbano, correspondendo
este às trama de relações socioespaciais urbanas que se expande regionalmente – por todo o espaço (MONTE‐MÓR,
1994b, p. 170; LEFEBVRE, 2008).
16 Considerando que algumas dessas áreas não apresentam limites perceptíveis em campo, confundindo‐se com
terrenos não utilizados pertencentes a mineradoras ou ao poder público, como no caso do tombamento da Serra do
Curral e da APA Sul, sugere‐se que esse conjunto seja compreendido mais como um palimpsesto de representações
espaciais – espaço concebido – que de objetos de base material.
17 Lefebvre (1991) alerta para os riscos da utilização de termos como “camada” para fazer referência ao espaço,
considerando que esse tipo de metáfora sugere que o espaço se limite aos objetos, não refletindo sua natureza
34
dialética. Considerando que os lugares se interpõem, se compõem, se superpõem, e, às vezes, se chocam, cada
fragmento selecionado para análise carrega uma multiplicidade de relações sociais. Nessa perspectiva, ao refletir
sobre essas “camadas”, faz‐se necessário considerar que não se tratam de espaços homogêneos, monolíticos ou
desprovidos de conflitos.
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NÚCLEO TEMÁTICO I: Cidade em movimento e movimento na cidade
O Planejamento Urbano Desejado e o Praticado: O Caso de
Viçosa, MG.
Ítalo I. C. STEPHAN
Doutor em Planejamento Urbano pela FAU/USP; Professor do Departamento de Arquitetura e
Urbanismo da UFV; Conselheiro do CAU‐MG. stephan@ufv.br.
RESUMO
Este texto discute a dicotomia entre as premissas do planejamento urbano e o contínuo crescimento de
Viçosa. Em um município onde se pratica um planejamento, adequado ou não, existem agentes
diferentes envolvidos na sua produção. Este texto visa a analisar os doze anos de produção do espaço
urbano, uma vez que Viçosa aprovou seu plano diretor em 2000, juntamente com a legislação
complementar. Os prefeitos têm mantido a postura de desinteresse na implementação do plano. A
Câmara Municipal permitiu mudanças contrárias ao que defendeu o plano. O Instituto de Planejamento
foi criado, instalado e administrado por técnicos não qualificados. Os construtores permaneceram a uma
distância, ausentes, deixando para agir mais tarde, modificando a legislação, de acordo com seus
interesses, através dos seus representantes na Câmara Municipal. A proposta de revisão do plano,
encaminhada à Câmara Municipal em 2008, permanece sem discussão e aprovação, enquanto a cidade
se expande com vigor, com forte adensamento na área central e com o espraiamento através de
condomínios fechados e programas habitacionais de baixa renda.
PALAVRAS‐CHAVE: Viçosa, MG: Plano Diretor Participativo; Viçosa, MG: Planejamento Urbano; Viçosa, 35
MG: Legislação urbanística.
ABSTRACT
This paper discusses the dichotomy between the assumptions of urban planning and the ongoing growth
in Viçosa, MG, Brazil. In a city where planning is practiced, appropriate or not, there are different
agents involved in its production. This paper aims to analyze the twelve years of production of urban
space, since Viçosa approved its master plan in 2000, together with complementary legislation. The
mayors have maintained the posture of disinterest in implementing the master plan. The City
Council allowed changes contrary to what defended the plan. The Planning Institute was
created, installed and administered by unskilled technicians. The constructors remained at a
distance away, leaving to act later, changing the law, according to their interests, via their
representatives at City Council. The proposed revision of the plan and forwarded to City Council in 2008
remains without discussion and approval while the city expands with force, with a high densification in
the central area and a sprawl through closed condominiums and the low income housing programs.
KEYWORDS: Viçosa, MG: Participatory Master Plan; Viçosa, MG: Urban Planning, Viçosa‐MG;
urban legislation.
APRESENTAÇÃO
O município de Viçosa possui, desde 2000, uma ampla legislação urbanística, com Plano
Diretor à frente. O município dispõe de um Instituto de Planejamento (IPLAM) atuante,
embora subdimensionado em infraestrutura e recursos humanos. A análise e aprovação
de projetos é a sua ocupação quase exclusiva. Em contrapartida, contrariando o Plano
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Diretor, há um processo liderado pelo forte setor da construção civil, de uma visível
verticalização na área central e de expansão em áreas não permitidas, principalmente
nas margens dos cursos d’água e em regiões de nascentes. O processo é complementado
com a construção de condomínios fechados em áreas próximas à infraestrutura suficiente
e com a implantação de conjuntos habitacionais (do Programa federal “Minha Casa,
minha vida”) em áreas periféricas, de difícil acesso e sem infraestrutura. Há inúmeros
vazios urbanos em áreas centrais e uma valorização exacerbada do custo da terra.
Em 2006, foi iniciado o processo de revisão do plano diretor. O anteprojeto de lei foi
entregue ao prefeito que o encaminhou à Câmara Municipal em 2008 e, pelo menos até
meados do ano 2012, não entrou na pauta de discussão.
Depois de doze anos com o Plano Diretor, o forte mercado da construção civil atua de
acordo com os seus interesses e prega a necessidade de ajustes na legislação, para
continuar a trazer o “crescimento“ e a oferta de empregos tão desejados para a cidade.
1 INTRODUÇÃO
Viçosa, um município da Zona da Mata mineira, possui um pouco mais de 72.000 habitantes e
uma população chamada de flutuante de cerca de 15.000 estudantes universitários. A
topografia acidentada espreme a cidade entre morros e vales. Suas ruas são estreitas e de
pavimentação de péssima qualidade, onde circulam cerca de 40.000 veículos. Há um processo
intenso de adensamento e verticalização na região central que resulta da demanda gerada pela 36
ampliação das vagas na Universidade Federal de Viçosa e nas outras três faculdades
particulares.
Em sua história, quase sem exceção, o município não teve prefeitos interessados em um mínimo de
planejamento urbano. A cidade de Viçosa cresceu em resposta às demandas geradas pela UFV. Um
dos prefeitos, o folclórico e populista Antônio Chequer, que do alto de seu “castelo”, construído
estrategicamente em um morro localizado em frente à área central, apontava para seus funcionários
os locais onde queria que passasse o trator para abrir ruas. Foi esse o retrato do “planejamento
urbano” no município até o final do século XX. Chequer uma vez afirmou: “o plano diretor sou eu”.
Até 1998, Viçosa não tinha um plano diretor, mas havia um conjunto de leis (Código de Obras, Lei
312/79) adulteradas ou reduzidas a ponto de restarem dois artigos: um que estabelecia o coeficiente
de aproveitamento e outro que aprovava automaticamente um projeto de construção que não fosse
analisado pela prefeitura em um mês.
Viçosa possui, desde 2000, uma ampla legislação urbanística, encabeçada pelo Plano Diretor. Era esse
o arcabouço da legislação urbanística, no início do século XXI: Plano Diretor de Viçosa ‐ PDV (Lei
1383/2000); Instituto de Planejamento do Município de Viçosa (IPLAM) e Conselho Municipal de
Planejamento (COMPLAN); Lei de Parcelamento do Solo (Lei 1469/2001); Lei de Ocupação, Uso do
Solo e Zoneamento (1.420/2000); Código Ambiental (Lei 1526/2002); Código de Posturas (Lei
1574/2003) e Código de Obras e Edificações (1633/2004). Todo esse aparato legal não tem sido
suficiente para produzir espaços de qualidade na cidade. O setor da construção civil encontra sempre
meios de alterar a legislação em prol da manutenção da construção em massa para atender a uma
demanda ampla e contínua.
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2 LEGISLAÇÃO URBANÍSTICA VERSUS MERCADO IMOBILIÁRIO EM VIÇOSA
A acumulação e especulação imobiliária andam juntas. Esse fenômeno já não ocorre apenas
em cidades maiores. O poder público chega sempre atrasado para se prover de instrumentos
legais para tentar ordenar o uso do solo (KOWARICK, 1993, p 33‐35). Para o autor, “a ação
governamental restringiu‐se (...) a seguir os núcleos de ocupação criados pelo setor privado e
os investimentos públicos vieram colocar‐se a serviço da dinâmica de valorização‐especulação
do sistema imobiliário‐construtor”. Maricato (2001, p. 83) afirma que “a ocupação do solo
obedece a uma estrutura informal de poder: a lei de mercado precede a lei/norma jurídica” e
que “a distância entre plano e gestão se presta ainda ao papel ideológico de encobrir com
palavras e conceitos modernos (...) práticas arcaicas”.
A separação entre planejamento e gestão permanece pela relutância dos políticos de se
envolverem em planos, por não perceberem sua utilidade ou duvidarem dela. (VILLAÇA, 2005).
Quando eles percebem, veem o plano como empecilho para suas ações politiqueiras.
Viçosa apresenta uma aparente prosperidade, embora produza custos ambientais e sociais
desastrosos para a população e o poder público, como deterioração da qualidade de vida,
degradação dos valores estéticos (RATTNER, 2009). A cidade reflete a situação do capital que
mantém à distância as pessoas e as “coisas indesejáveis” (bairros afastados para habitação de
baixa renda) ao mesmo tempo que se aproxima de pessoas e “coisas desejáveis” (estudantes,
professores e o Campus da UFV, Figura 1). Os que não possuem capital permanecem distantes
dos bens mais raros (BORDIEU, 1997).
37
Figura 1: Área Central de Viçosa em frente ao Campus da UFV.
Fonte: STEPHAN, 2012.
Cabe perfeitamente em Viçosa a afirmação de que “nenhuma legislação, mesmo que aprovada
devido a circunstâncias especiais, será implantada; do mesmo modo nenhuma lei, mesmo
sendo autoaplicável, garante justiça social e qualidade ambiental pela sua simples
promulgação” (MARICATO, 1994). Temos, no Brasil, assim como em Viçosa, uma avançada
legislação urbanística, mas carecemos de políticas e meios adequados para implementá‐la. A
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simples adoção de instrumentos normativos não é suficiente para alterar substantivamente a
dinâmica do desenvolvimento urbano. A política, como sempre, faz a diferença (GOULART,
2008). Nada mais pertinente como retrato da dinâmica da produção que ocorre na pequena
cidade de Viçosa, em Minas Gerais.
O PDV foi formulado a partir do oferecimento de amplas oportunidades para que a
população se manifestasse, além de uma farta divulgação na mídia, realizada por meio de
artigos de divulgação e matérias em jornais; debates nas emissoras de rádio; programas
temáticos e mesas redondas na emissora de TV local (STEPHAN, 1998). Foram aplicados
questionários nas ruas comerciais e na feira livre como também questionários temáticos
para os setores de engenharia, de construção civil e de comércio e indústria. Os maiores
conflitos, os ligados à ação do mercado imobiliário em Viçosa, permaneceram
dissimulados. A participação, em nenhuma de construtores, engenheiros e arquitetos
atuantes no mercado da construção civil nas reuniões públicas foi insignificante1.
Evidenciou‐se que parte do setor prefere atuar junto aos seus interlocutores na Câmara
Municipal, quando lhes interessa.
O projeto do Plano Diretor tramitou na Câmara Municipal nas vésperas das eleições
municipais de 1999, o que dificultou as negociações para sua aprovação. Os dois
candidatos a prefeito, tanto nos comícios, como em seus programas de rádio e televisão,
defendiam abertamente a aprovação do Plano Diretor e a sua aplicação, mas, nos
bastidores, articulavam pela sua não aprovação. Após negociações entre os dois
vereadores que defendiam a aprovação do Plano e os opositores, conseguiu‐se que fosse 38
mantida apenas a criação do IPLAM e do COMPLAM. No entanto, as atribuições do IPLAM
e a composição do COMPLAM foram retiradas da lei do Plano Diretor para serem votadas
em outra oportunidade. A estratégia utilizada pelos vereadores que se opunham à
aprovação era adiar ao máximo a implantação desses dois órgãos. (STEPHAN, 2006).
O IPLAM começou a funcionar de maneira precária e com poucos funcionários. Seus
diretores não tiveram capacitação em planejamento2. O primeiro diretor foi o Secretário de
Obras da época em que houve uma aprovação em massa de projetos às vésperas da
entrada em vigor da Lei de Zoneamento, Uso e Ocupação do Solo. Após alguns anos de
funcionamento, o IPLAM é pouco atuante em planejamento e continua subdimensionado.
A atribuição que mais o ocupa é a de análise e aprovação de centenas de projetos a cada
ano (STEPHAN, 2006). A população, quando precisa aprovar projetos, reclama da demora.
Alguns anos depois prevaleceram os interesses do setor da construção civil, isso inundou as
áreas centrais de prédios com taxa bruta de edificação sempre superior aos índices legais
(Figura 2). Também, nesse período, caiu a exigência de afastamento frontal de 3 metros,
estabelecido pela lei de uso do solo, ficando obrigatório apenas para novas ruas. Em
desacordo com a legislação de parcelamento do solo, tentou‐se permitir a pavimentação
de novos loteamentos com pedras fincadas, para baratear os custos dos construtores.
O instrumento Transferência do Potencial Construtivo foi aplicado quatro vezes, com
problemas. Os potenciais foram transferidos para dentro dos próprios terrenos e, como
contrapartida, houve a preservação de partes das edificações tombadas, com resultados
questionáveis.
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3
Criado simultaneamente com o IPLAM, o COMPLAN funcionaria como órgão superior de
assessoramento e consulta da administração municipal, com funções fiscalizadoras no âmbito
de sua competência. O conselho se reuniu algumas vezes nos primeiros anos e ficou desativado
desde 2006 (STEPHAN, 2009a).
Figura 2: Área Central de Viçosa em processo de verticalização.
39
Fonte: STEPHAN, 2012.
Vários alvarás resultantes da avalanche de projetos aprovados às vésperas da entrada em vigor
da lei de Ocupação, Uso, e Zoneamento do Solo Urbano de Viçosa, que teriam validade até por
dois anos, foram prorrogados por até cinco anos. Essa atitude deixou graves problemas para os
anos seguintes (STEPHAN, 2006 b). A paisagem urbana passou a apresentar aglomerados de
edificações verticalizadas. A versão da lei do uso do solo encaminhada para votação foi
alterada. A faixa non aedificandi de 15 metros ao longo das margens dos cursos d’água foi
reduzida para 10 metros, em desacordo com a Lei Federal 6766. Foram alterados alguns índices
urbanísticos, para valores mais permissivos, tais como número máximo de pavimentos e os
coeficientes e taxas de ocupação das zonas urbanas, de forma a ficarem mais favoráveis a um
maior adensamento que o inicialmente previsto. Houve posteriormente uma alteração no
texto, permitindo o acréscimo de um terceiro pavimento de subsolo.
3 O PLANO REVISTO E DEIXADO DE LADO
No interregno entre a promulgação da Constituição e a edição da Lei no. 10257 de 10 de julho
de 2001, vários municípios aprovaram seus planos diretores. Poucos inovaram no tocante ao
desenho da Política Urbana local e aos instrumentos que a viabilizariam. A maioria, por sua
vez, pautou‐se por criarem verdadeiras cartas de intenção, com objetivos gerais a serem
atingidos, contudo sem demonstrar a forma como isto se daria (STEPHAN, 2009 a). Nesse
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panorama, insere‐se a experiência de Viçosa que, em 25 de maio de 2000, editou seu Plano
Diretor. Apesar de ser fruto da interação entre o Poder Público e os cidadãos, a referida norma
filiou‐se à segunda tendência acima apontada, não inovando na matéria, mas se contentando
em estabelecer normas generalíssimas, com baixa densificação normativa. Al revisão do plano
ficou para se feita em cinco anos, entretanto isso só teve início no final de 2006. Além desta
cláusula do plano,
Pouco mais de um ano após a edição da lei Municipal, o Estatuto da Cidade veio a lume, tornando
imperiosa a revisão do Plano Diretor de Viçosa, adequando‐o às diretrizes nacionais, bem como corrigindo
falhas constantes no texto normativo, modernizando a estrutura e o aparato prescrito, de forma a atender
aos reclamos da sociedade local (SPORCH, 2008).
A base dos trabalhos foi estruturada seguindo o Estatuto da Cidade e atendendo às resoluções
de número 15 e 34, ambas de 2005, do Conselho das Cidades. Desta vez, a equipe foi formada
por professores da UFV e por técnicos do IPLAM.
A revisão do Plano Diretor de Viçosa teve quatro etapas com participação popular. A primeira
com a realização de 39 reuniões públicas (21 na área urbana, seis na área rural e 12 reuniões
setoriais), o que resultou numa quantidade enorme de assuntos para serem tratados no plano.
A segunda, com a apresentação do resultado da leitura das reuniões aos delegados eleitos em
cada reunião em debates públicos. A terceira, com a realização de debate público, com a
presença dos delegados na discussão e aprovação das propostas a serem incluídas no plano. A
quarta proposta constou de um Encontro da Cidade, aberto aos delegados e à população em
geral, onde foi apresentado e discutido novamente o texto do plano diretor, inclusive com
40
algumas propostas de alterações acordadas e posteriormente incluídas no texto.
O novo plano foi feito contando com a consolidação do IPLAM, o funcionamento efetivo dos
conselhos, a ampliação da fiscalização e, principalmente, abrindo canais para a participação da
população na solução de problemas e na apresentação de propostas para melhorias. Para
alcançar o desiderato da Política Urbana, o Município terá a oportunidade de aplicar os
instrumentos previstos no plano, quais sejam: parcelamento, edificação ou utilização
compulsórios; IPTU progressivo no tempo; desapropriação com pagamento em títulos da dívida
pública; concessão de uso especial para fins de moradia; direito de preempção; outorga
onerosa; operações urbanas consorciadas; transferência do direito de construir; estudo de
impacto de vizinhança. Pretendeu‐se, por um lado, incentivar o comportamento dos cidadãos
de forma a fazer com que o mesmo seja consoante com o Plano Diretor. Por outro lado,
objetivou‐se obrigar que as normas cogentes de ordenação do espaço fossem atendidas.
Na redação da documentação a ser encaminhada para tramitação na Câmara Municipal, ficou
clara a importância de produzir um plano diretor com o máximo possível de dispositivos
autoaplicáveis e identificando os agentes responsáveis pela execução e fiscalização de cada
proposta de ação, obra ou programa incluído no plano e prazos para sua execução (STEPHAN,
2008).
Outro aspecto desenvolvido foi a redução da inflação normativa. Além de proposições de nova
redação para alguns artigos de leis e a inclusão de partes de leis, trata da redução da inflação
normativa, através de proposições de revogação de partes de leis; exclusão de partes de leis e
revogação de leis. Desta forma, 55 leis relativas à política urbana foram alteradas, sendo que 32
tiveram algum tipo de alteração em seu texto, como a Lei de Parcelamento do Solo. Foram
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revogadas 23 leis, como a de Ocupação, Uso do Solo e Zoneamento, que teve todo o seu
conteúdo revisto e incluído no plano (STEPHAN, 2008). O maior problema foi que dos 783
artigos do plano, 449 são relacionados a esta limpeza da legislação, o que assustou e intimidou
vários vereadores.
Outras características do plano são:
Seguindo a orientação do Ministério das Cidades, as normas referentes à ordenação do
solo foram inseridas no Plano Diretor, o que levou à revogação da Lei Municipal
no1420, de 21 de dezembro de 2000, conforme explicitado no Título VIII. Assim,
trabalhou‐se inicialmente com as normas referentes à ocupação do solo, adequando‐as
ao Estatuto da Cidade e aos demais dispositivos aplicáveis a cada caso, resolvendo‐se
anomias e antinomias com estas normas, com as normas de outras esferas, e até
mesmo contrariedades com as normas constitucionais. Outrossim, houve a
flexibilização de índices e a racionalização de parâmetros, de forma a orientar a
construção civil no processo de produção da cidade, adequando‐os à realidade
municipal, seja no que concerne aos investimentos do setor privado, seja no que tange
às observações realizadas durante as reuniões públicas (SPORCH, 2008);
O IPLAM passaria a ser autarquia municipal, com personalidade jurídica de direito
público, com autonomia administrativa e financeira;
A criação do Fundo Municipal de Política Urbana, formado, dentre outros, pelos
recursos obtidos através dos valores devidos das medidas mitigadoras e/ou 41
compensatórias determinadas pelos Estudos de Impacto de Vizinhança e contribuição
de melhoria decorrente de obras públicas;
A implantação da Sede dos Conselhos Municipais, que abrigará as reuniões de todos os
órgãos colegiados de participação popular e
A definição das regras para Produção e alterações das normas urbanísticas; da
elaboração da Revisão Decenal do Plano; das adequações das normas urbanísticas às
Plataformas Políticas dos Prefeitos Eleitos e do redirecionamento das Normas
Urbanísticas.
Junto com o texto do anteprojeto de lei do plano, foi encaminhada a “Lei dos Instrumentos”,
redigida de forma a conter e concentrar as disposições prescritas como leis específicas e
previstas no estatuto da Cidade, estabelecendo:
O que determina o parcelamento, a edificação ou utilização compulsórios do solo urbano não
edificado, subutilizado ou não utilizado, com as condições e prazos para a implementação da
referida obrigação (Art. 5o do Estatuto da Cidade);
A delimitação das áreas de incidência do direito de preempção, com prazos e formas de
notificação do proprietário ao Município;
A fórmula de cálculo para cobrança da Outorga onerosa do direito de construir, os
casos passíveis de isenção do pagamento da outorga e as contrapartidas do
beneficiário (Art. 30);
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A regulamentação do Consórcio imobiliário e a Concessão de uso especial para
fins de moradia;
As condições a serem observadas para a Outorga onerosa do direito de construir
(Art. 30);
A delimitação das áreas para a aplicação de operações consorciadas (Art. 32);
As condições para a aplicação da Transferência do direito de construir (Art. 35);
A definição dos empreendimentos e atividades que dependerão de elaboração de
Estudo de impacto de vizinhança (Art. 36 ).
Os textos dos anteprojetos foram submetidos à apreciação do Ministério Público, para
que se opinasse sobre as medidas e a sua correção. Esse momento apresentou caráter
preventivo, além de ser meio de informação do órgão ministerial, proporcionando a sua
participação e melhoria da atividade de controle da gestão pública, estreitando, ainda, os
laços entre essas instituições (SPORCH, 2008).
Os anteprojetos de lei foram entregues ao prefeito, que os encaminhou à Câmara
Municipal em 2008 e, até meados do ano de 2012, não entraram na pauta de discussão.
Houve uma tentativa de aprovar o plano às pressas, no final de 2008, sem sucesso. Um
dos vereadores quis retirar de dentro do plano todo o conteúdo de controle e uso do solo
urbano. Posteriormente, houve eventuais tentativas de alguns dos vereadores de
conhecer e entender o conteúdo do plano como também houve a instabilidade política 42
da expectativa de cassação do mandato do prefeito eleito em 2008, o que ocorreu em
maio 2010.
4 OS INTERESSES DO MERCADO IMOBILIÁRIO
A atuação do mercado imobiliário em Viçosa tem sido gerada principalmente pela
demanda crescente em função da criação dos novos cursos na UFV 4 (vinte deles
começaram a funcionar a partir de 2000) e nas faculdades particulares (FDV 5, Univiçosa6 e
ESUV 7). A maioria absoluta dos estudantes é de outras cidades.
Doze anos depois de entrar em vigência, contrariando várias vezes o Plano Diretor, mas
amparado pela atuação da Câmara Municipal, há a continuação do processo, liderado
pelo setor da construção civil, de verticalização em áreas não recomendadas e da
expansão da área urbana em vetores que o plano indica como não adensáveis8.
Isso ocorre tanto com a implantação de novas áreas, quanto com a construção de
condomínios fechados e novos loteamentos em áreas próximas à boa infraestrutura de
serviços urbanos, vizinhas ao Campus da UFV e com a implantação de conjuntos
habitacionais em áreas periféricas não dotadas de infraestrutura adequada (Figura 3).
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Figura 3 Mapa esquemático
Fonte: STEPHAN, 2012.
Há uma intensa substituição de edificações menores (casas e lojas) por edifícios de múltiplos
pavimentos (Figura 4), em sua maioria com uso comercial ao nível da rua e apartamentos
pequenos, cujo objetivo é atender à alta demanda por aluguéis numa cidade universitária. O 43
conselho municipal que cuida do patrimônio histórico (CMCPCA) tem tido, como maior
demanda de discussão, solicitações de pareceres pelo IPLAM, a respeito do pedido de
demolições de casas inventariadas. O conselho é mantido apenas consultivo, o que o torna
frágil e ineficaz.
Figura Área Central de Viçosa, onde prédios altos substituem casas ecléticas
Fonte: STEPHAN, 2012.
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A degradação ambiental é visível na cidade. O alto preço da terra retirou casas com quintais às
margens dos rios e provocou a construção de prédios nas margens dos cursos d’água. Vários
novos prédios têm sido autorizados a ser construídos às margens dos cursos d’água, dentro da
faixa dos quinze a trinta metros, sob o pagamento em dinheiro, de compensações ambientais
irrisórias9.
Três casos ilustrativos
A seguir, apresentaremos três casos que ilustram a atuação do setor imobiliário,
respectivamente ao burlar a legislação; ignorar as diretrizes do plano diretor e alterar os
parâmetros urbanísticos quando o que existe não mais os satisfaz.
No primeiro caso, o “Condomínio Ecolife” será formado por duas torres de treze pavimentos
encravadas em uma mata, numa região da cidade em que o zoneamento ‐ ZR310 ‐ permitiria,
no máximo, quatro pavimentos, incluindo o térreo. Trata‐se também de uma região da cidade
onde se encontram as nascentes do ribeirão São Bartolomeu, responsável pelo abastecimento
de 50% da população urbana. Num artifício bem planejado, a Câmara Municipal aprovou um
projeto de Lei (1848/2007) que denominou de Avenida Prefeito Geraldo Eustáquio Reis o trecho
entre a Rua Carmita Pacheco e o término do trevo que dá acesso ao Bairro Acamari.
Alguns meses depois, a Lei 1865/200811 a substituiu, prolongando a avenida por uns 500 metros
até o trevo de acesso ao bairro Romão dos Reis e a incluiu como Corredor Secundário, como
definido pela Lei 1420/2000. Essa lei, portanto, alterou duas outras e não uma como está no
seu caput. Isso significou que o que era ZR3, passou a ser Corredor Urbano ‐ CS. Passou a ter 44
como características a predominância de uso comercial e ser área adensável. O Coeficiente de
Aproveitamento máximo passou de 1,5 para 2,8. Sua Taxa de Ocupação máxima passou de 50%
para 80%. A Taxa de Permeabilização mínima passou de 30% para 10%. Por fim, o gabarito
máximo das edificações passou de 4 para 10 pavimentos (figura 4). Uma vez legalizada a
possibilidade de construir torres no lugar, o projeto foi aprovado pelo CODEMA local, sob a
garantia de que o empreendimento compensaria com a reposição de árvores, obteria e trataria
sua água para se tornar potável e trataria seu esgoto. Com o parecer do CODEMA e sem
consulta ao COMPLAN, o projeto foi aprovado (STEPHAN, 2009b).
Figura 4: Uma das duas torres de 13 pavimentos em construção em área de zoneamento alterado
Fonte: STEPHAN, 2012.
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No segundo caso, a presença do Programa Federal “Minha Casa, Minha Vida” em Viçosa
revelou uma fragilidade do programa no município, que não possui terras públicas nem sequer
estabeleceu nenhuma Zona de Especial Interesse Social para receber programas de habitação
de interesse social. O programa foi atendido por um projeto de uma construtora proprietária
de um terreno em uma área urbana, em uma ZR3, em local (Coelhas) de difícil acesso e longe
do tecido e da infraestrutura urbana. O terreno está localizado em um vale separado do resto
da cidade por uma cadeia de morros, o que acrescenta esforços extras para caminhada,
dificuldades para o uso de bicicletas ou percorrer trechos mais longos com uma declividade
razoável . No local foi construído um conjunto de 132 casas de 37 metros quadrados em lotes
de 120 metros quadrados, um “pombal” característico como os que se produziram há pelo
menos quarenta anos atrás (figura 5). Depois mais um conjunto de 123 foi construído na
mesma região. Outro está em fase de construção. Criou‐se menos autonomia, mais exclusão
social, menos mobilidade, enquanto os terrenos centrais vazios chegam a preços elevados12,
sem atender à função social da propriedade urbana13.
O terceiro caso foi a aprovação pela Câmara Municipal de Viçosa de uma lei alterando a Lei
1420/2000, de Zoneamento e Uso do Solo. Estabeleceu‐se que, nas vias com caixa de rua inferior a 7
metros, seria concedida uma compensação de 20% do potencial construtivo da edificação, desde que
constasse no projeto um recuo de 2 metros ao longo da frente do lote. Tal recuo seria transferido ao
Poder Municipal, possibilitando o alargamento da rua. Com a medida, poderiam ser acrescidos até
dois pavimentos. O objetivo era “promover o alargamento das vias centrais do Município, onde o
trânsito vem se tornando cada vez mais caótico; sendo certo que, com o recuo [...] a Zona Central da
cidade tornar‐se‐á viável [...]”. Acrescentava que: “Deste modo, em troca de uma mobilidade nas vias
45
centrais [...] , o Poder Público Municipal possibilitará uma compensação ao empreendedor, no intuito
de melhorar não só a fluidez do trânsito nas vias centrais, como também a própria estrutura da região
central do Município.”
Figura 5: Conjunto habitacional do programa Minha casa Minha Vida, na localidade Coelhas, Viçosa, MG
Fonte: STEPHAN, 2011.
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Uma interpretação desta proposta leva a constatar que:
A compensação de 20% a mais do potencial construtivo (o que permite que o proprietário
construa 20% a mais no lote) é muito mais vantajosa para o empreendedor. Por exemplo, em
um terreno de 20x30 metros, o proprietário perderia 40 m2 multiplicados pelo Coeficiente de
Aproveitamento ‐ CA (área do lote multiplicado por um número específico para cada zona
urbana), mas ganharia 120m2 multiplicados pelo o CA, ou seja, 3 vezes mais;
Consegue‐se criar na via duas vagas de estacionamento, mas se cria, com a compensação, no
mínimo, uns quatro apartamentos, o que geraria pelo menos 4 automóveis a mais circulando
na via;
O alargamento de 2 metros seria apenas na frente do lote e, para se tornar um alargamento
em toda a extensão da via, seriam necessárias décadas para acontecer, uma vez que não
haveria substituição dos prédios já construídos e nem para prédios tombados. Portanto,
teríamos algumas vagas esparsas e não o alargamento da via, sem melhoria alguma na
fluidez do trânsito.
É pertinente lembrar que o Plano Diretor de 2000 e a Lei 1420/2000 previam um recuo de três metros
com o objetivo de obter‐se, em longo prazo, o alargamento das vias. O recuo foi retirado das leis e os
proprietários ganharam 3 metros a mais para construírem nos lotes. Atualmente, há prédios na cidade
que alargaram a calçada, sem nenhuma compensação.
46
5 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em um município, exista nele a prática de um bom planejamento ou não, há vários agentes
envolvidos, cada grupo de uma forma, mais ou menos explícita. Neste texto foi feito um
balanço dos doze anos de produção do espaço urbano, desde que Viçosa aprovou seu plano
diretor, em 2000, juntamente com a legislação complementar referente à política urbana. O
resultado do balanço entre as ações efetivadas e as regras aprovadas é claramente negativo.
Os prefeitos mantiveram certa distância, sem muito interesse e esforço na aplicação do plano.
A população, quando convidada a participar, esteve presente. Os prefeitos, assim como os
vereadores são despreparados, sem noção da amplitude da legislação. Os vereadores apoiaram
os prefeitos, por razões políticas. Parte deles atuou permitindo a utilização de brechas na
legislação ou de alterações contrárias ao que prega o plano diretor, a partir da defesa de
argumentos contraditórios.
O IPLAM foi criado, instalado precariamente e dirigido por técnicos sem formação em
planejamento urbano. Em alguns casos, ligados diretamente ao setor da construção civil. O
órgão passou todo o tempo sob pressão da população descontente com as regras e com a
demora da aprovação dos projetos. O IPLAM vem sendo efusivamente criticado pelos setores
da construção civil, com raras exceções, que discordam da sua atuação, uma vez que, no órgão,
busca‐se aplicar a legislação e tentam‐se impedir ações irregulares14.
Os construtores também se mantiveram à distância, deixando para atuar posteriormente junto
a seus representantes na Câmara Municipal, quando lhes aprouvessem. O setor atua
fortemente para derrubar ou adequar leis que não condizem com os interesses daqueles a
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quem representam. As leis prevalecem na base do “tudo pode desde que não afronte as áreas
valorizadas pelo mercado”. Construtores cinicamente ameaçam ir embora da cidade e
espalham, nas pessoas menos esclarecidas, o medo de que a imposição de regras poderá gerar
desemprego. Tal ameaça não se concretizará porque a demanda persistirá e os lucros são
enormes.
Com a certeza de que a população continuará a crescer, há de se ocupar, dentro da legislação e
de forma sustentável, os muitos vazios urbanos, muitos próximos à área central, cercados de
infraestrutura. Essas propriedades não cumprem sua função social e se destinam à especulação
imobiliária. Não houve prefeito com coragem de cobrar de muitos proprietários o
cumprimento da função social da propriedade. A construção civil pode, como felizmente é
comprovada por alguns empresários, conviver com o respeito às leis, continuar a lucrar muito e
empregar muita gente. A cidade pode crescer de forma mais harmoniosa, não como um tumor
maligno.
Houve poucas melhorias como resultado da legislação, pois elas só começaram a surgir há uns
cinco anos nas tipologias das edificações. A produção e reprodução de espaços urbanos
continuam dominadas pela forte ação do setor imobiliário. O meio ambiente foi fortemente
agredido e moldado de acordo com interesses do setor. Há um grande estrago já feito por
conta da invasão das margens dos cursos d’água e das irregularidades espalhas pelo tecido
urbano, inclusive nas periferias.
Há, no entanto, alguns sinais de que algo pode estar mudando na cidade de Viçosa. Embora
tarde, mas não tarde demais, a firmeza do Ministério Público na cobrança pela aplicação da 47
legislação ambiental vem confirmar que Viçosa está crescendo de forma errada e ilegal e que
algo precisa ser feito. As últimas decisões quanto à negação da permissão para se construir
dentro das áreas não edificantes provarão estar corretas e contribuirão decisivamente para
alterar o destino da insustentável forma de crescimento que a cidade tomou nas últimas
décadas. Agora, a preocupação com o destino do meio ambiente parece encontrar
decisivamente o seu amparo legal.
Este texto é um alerta. Tem‐se de pensar num futuro em que não persistirão as aberrações
permitidas e construídas em cima de interesse, privilégio, irresponsabilidade, ameaça e
impunidade. Um dia, não importa em quantas décadas ou qual geração que nos sucederá, os
erros deverão ser reparados. É certo que nossa atual geração poderá ser lembrada como
mesquinha e inconsequente, mas a nós poderá também ser atribuído o reconhecimento dos
erros e o crédito do marco inicial da mudança.
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7 NOTAS
1
Foi feita uma reunião específica para o setor de construtores e agentes imobiliários. Foram apenas cinco os
presentes. Foi realizada uma segunda reunião, com seis presentes. Nenhum deles era de alguma grande construtora,
nenhum arquiteto.
2 Um dos diretores era um construtor de conhecimento prático em obras. Foi escolhido pelo prefeito com a
justificativa de que, se o IPLAM não funcionava direito com diretores com formação em nível superior, deveria
funcionar com uma pessoa de vivência prática.
3 O Conselho Municipal de Planejamento de Viçosa (COMPLAN) tem, dentre outras as seguintes atribuições: ‐
monitorar, fiscalizar e avaliar a implementação do Plano diretor; sugerir alterações das normas contidas no Plano
Diretor e demais leis municipais correlatas, além de promover a compatibilização com as demais leis municipais,
sugerindo modificações em seus dispositivos; opinar sobre a compatibilidade das propostas de programas e
projetos contidos nos planos plurianuais, leis de diretrizes orçamentárias e nos orçamentos anuais; analisar e emitir
parecer sobre as propostas de alteração do Plano Diretor e da legislação municipal correlata.
4 Cursos de Dança, Engenharia Ambiental, Engenharia Agrícola e Ambiental e de Produção, 1999; Bioquímica,
Geografia, História e Engenharia Elétrica, 2000; Educação Infantil em 2006; Comunicação Social em 2005;
Enfermagem, Engenharias Mecânica e Química, Ciências Sociais, Licenciaturas em Ciências Biológicas, Química,
Física, Matemática, em 2007 e Medicina em 2010.
5 Fundada em 1999, possuía em 2010 cerca de 550 alunos matriculados em sete cursos de graduação e seis de pós‐
graduação.
6 Fundada em 2005, possuía em 2010 cerca de 1800 alunos matriculados em treze cursos de graduação e doze de
pós‐graduação. 49
7 Criada em 2001, possuía em 2010 cerca de setecentos alunos matriculados em quatro cursos de graduação e dois
em pós‐graduação.
8 O setor sudoeste da cidade, como região das nascentes do Ribeirão São Bartolomeu, que é juntamente com seu
receptor Rio Turvo, o responsável pelo abastecimento de água .
9 O último caso, para a construção de um prédio às margens do Ribeirão São Bartolomeu, foi paga quantia de R$
26.000,00, o que permitiria a construção de mais de vinte apartamentos dentro da faixa dos 15 a 30metros.
10 A ZR3 tem o Coeficiente de Aproveitamento máximo de 1,5 (um inteiro e cinco décimos). A ZR3 tem como
índices de ocupação do solo: ‐ Taxa de Ocupação máxima de 50% (cinqüenta por cento) e Taxa de Permeabilização
mínima de 30% (trinta por cento). Para a ZR3, o gabarito máximo das edificações será de 4 (quatro) pavimentos.
11 Art. 1º ‐ O artigo 1º da Lei nº. 1.848, de 26.09.2007, passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 1º ‐ Fica denominada Avenida Prefeito Geraldo Eustáquio Reis a via pública que tem início depois do
número 419 da Rua Carmita Pacheco e término no trevo que dá acesso ao bairro Romão dos Reis.”
Art. 2º ‐ A Avenida Prefeito Geraldo Eustáquio Reis fica assim incluída como Corredor Secundário do
Anexo V da Lei nº 1.420/2000.
Art. 3º ‐ Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.
12 O custo por metro quadrado de um apartamento na área central chegou aos R$4.500,00 no início de 2012.
13 Em 2002, em monografia de especialização em Planejamento Municipal, Sérgio Cardoso Pinheiro levantou todos
os terrenos vazios na área urbana de Viçosa e concluiu que a cidade não necessitaria se expandir pelos próximos
trinta anos.
14
Em adição a estes aspectos a demora na aprovação dos projetos, na maioria dos casos normal pela tramitação
exigida, irrita aos construtores que não levam em consideração esse tempo em seus cronogramas.
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NÚCLEO TEMÁTICO I: Cidade em movimento e movimento na cidade
Cidades e Afetos: segregação e alteridade
Cities and affections: segregation and otherness
Maria Luísa M. NOGUEIRA
Mestre em Psicologia Social/UFMG; Doutoranda em Geografia/UFMG; Professora do Departamento de
Psicologia/UFMG. marilumn@yahoo.com.br
RESUMO
A partir de uma discussão sobre fragmentação urbana, discute‐se neste texto a questão da segregação,
sobretudo em seu caráter simbólico. Pela via da dimensão psicossocial, é possível perceber os aspectos
negativos destes processos. Para tanto, usa‐se não apenas referências a casos específicos das cidades
brasileiras, como também a presença deste tipo de arranjo urbano em obras literárias. Deste modo:
Jurerê Internacional, em Florianópolis; Complexo Cidade Jardim, em São Paulo; Alphavilles; e as
paisagens literárias de Altos de La Cascada, extraída do livro As viúvas das quintas‐feiras, de Cláudia
Piñeiro e o Centro, da obra A Caverna, de José Saramago. Objetiva‐se estabelecer uma reflexão sobre a
dimensão simbólica das cidades, tendo como base as imagens colhidas nas paisagens citadas acima e a
ideia de que o espaço é político, conforme pensam Henri Lefebvre e Milton Santos. Admitir a dimensão
política do espaço é reconhecer a importância da diferença, o que nos encaminha a refletir sobre como a
vivência da alteridade hoje resvala na produção do que aqui foi denominado como alteridade cosmética.
PALAVRAS‐CHAVE: cidade, segregação, alteridade, subjetividade, imaginário.
50
ABSTRACT
Questioning the urban fragmentation issue, this paper discuss the symbolic matter of segregation.
Through psychosocial dimension it is possible to apprehend the negative aspects of these proposals. For
this purpose we borrow not only specific cases of Brazilian cities, as urban arrangements on literary
works. Thus: Jurerê Internacional in Florianopolis, Complexo Cidade Jardim in São Paulo; Alphavilles, and
the literary landscapes such as Altos de la Cascada, from Claudia Piñeiro book As viúvas das quintas‐
feiras and the Center, from the book A Caverna of Jose Saramago. The goal is to establish a reflection on
the symbolic dimension of cities, based on images taken in the landscapes mentioned above. As a way to
dive into this problematic field, we discuss and raise reflections from the Henri Lefebvre and Milton
Santos works, such as the idea of space as political. Acknowledge the political dimension of space is
recognize the importance of difference, leading us to think about how today the experience of otherness
became, as this paper calls, a cosmetic otherness.
KEYWORDS: city, segregation, alterity, subjectivity, imaginary
Diversos autores já apontaram para as consequências negativas dos processos de fragmentação da
trama do tecido urbano, evidentes na autossegregação das elites, não apenas na produção dos
enclaves fortificados – como denominou Teresa Caldeira (CALDEIRA, 2003.) ou urbanizações privadas
(SVAMPA, 2004). Eles também se fazem presentes em estratégias variadas como a inserção de
guaritas e cancelas nas ruas da cidade (privatização branca1); marcam também, de acordo com
Marcelo Lopes de Souza, a territorialização de favelas pela questão do tráfico” (SOUZA, 2008, p. 58).
Exclusões e autoexclusões participam, pela via do medo, na conformação de um tipo de experiência
urbana2, marcada por uma alteridade cosmética.
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Há muito tempo a teoria urbana já fala de segregação. Em publicação recente, Lúcia Maria
Bógus dedica um texto inteiro à discussão desse léxico e suas diversas análises, ao longo da
conformação das várias vertentes da teoria urbana, desde os últimos cem anos e passando por
várias disciplinas. A autora faz um trabalho interessante e aponta a seguinte conclusão,
informando a necessidade do aprofundamento da questão e sua consequente ação, em termos
de políticas públicas:
[...] os estudos sobre segregação espacial acabam invariavelmente apontando para as consequências
negativas do isolamento involuntário de grupos sociais em determinados espaços das cidades, quaisquer
que sejam as causas desse tipo de isolamento. Mesmo nos casos de isolamento voluntário dos grupos de
alta renda em condomínios residenciais, as desvantagens podem ser apontadas em relação às limitações
impostas às formas de sociabilidade, que em muitos casos se restringem às áreas intramuros (Caldeira,
2000) ou a elas contíguas, como reação de defesa a outro tipo de sociabilidade que vem se instalando nas
cidades do terceiro mundo, a sociabilidade violenta, maior em áreas segregadas de baixa renda, que se
apresenta como uma ameaça aos habitantes dessas cidades, como um todo. (BÓGUS, 2009, p. 123).
O importante a colocar em relevo no pensamento de Lúcia Maria Bógus, a meu ver, é
justamente a multiplicação das consequências negativas dos processos de segregação que
engenhamos. Contudo, há duas ressalvas importantes a marcar: em primeiro lugar, parece
pouco afirmar que a segregação voluntária expressa‐se apenas como “reação de defesa” a uma
possível “sociabilidade violenta”. Ainda que esse desejo de defesa seja um elemento inegável
na escolha das famílias de renda média e alta pela moradia isolada, isto é, o desejo de se
afastar da violência da e na cidade, penso que seja preciso reconhecer que é justamente esse
movimento (de segregação) um eixo fundamental da própria violência – o que só pode ser
compreendido se tomamos a violência numa compreensão mais ampla do fenômeno.
51
Portanto, me parece importante sublinhar que, se querem dela se afastar, não deixam de
participar de seu fomento. Em segundo lugar, no mesmo raciocínio, o que a autora chama de
sociabilidade violenta não é exclusividade das cidades dos países chamados de terceiro mundo
(se é que podemos ainda manter essa nomenclatura).
No livro A Caverna, José Saramago conta os efeitos da opacidade da vida vivida no Centro,
mesmo para aqueles que (ainda) lá não vivem.
Creio que a melhor explicação do Centro ainda seria considerá‐lo como uma cidade dentro de outra
cidade, Não sei se será a melhor explicação, de qualquer modo não é suficiente para que eu perceba o que
há dentro do Centro, O que há é o mesmo que se encontra numa cidade qualquer, lojas, pessoas que
passam, que compram, que conversam, que comem, que se distraem, que trabalham, [...] é curioso que
cada vez que olho cá de fora para o Centro tenho a impressão de que ele é maior do que a própria cidade,
isto é, o Centro está dentro da cidade, mas é maior do que a cidade, sendo uma parte é maior que o todo,
provavelmente será porque é mais alto que os prédios que o cercam, mais alto que qualquer prédio da
cidade, provavelmente porque desde o princípio tem estado a engolir ruas, praças, quarteirões inteiros.
(SARAMAGO, 2000, p. 258)
Ruas, praças e quarteirões inteiros podem desaparecer num instante. Foram engolidos?
Crescer, crescer, crescer. Crescer para desenvolver. Para Henri Lefebvre: “Sabemos (e repito
insistentemente) que o desenvolvimento e o crescimento não coincidem, que o crescimento
não conduz automaticamente ao desenvolvimento” (LEFEBVRE, 2008, p. 161). É ao gosto (e
gozo) feroz da especulação imobiliária que o cenário urbano muda sempre e rapidamente.
Morrem casas todos os dias. Enterra‐se o rio, mais ou menos lentamente. A qualidade da vida
urbana muda em vários sentidos – forma, conteúdo, escala, sentido. Inventam‐se e
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reinventam‐se arranjos de moradia, trabalho, lazer. Nascem cidades dentro da cidade, cidades
fora da cidade, pseudo‐cidades maiores que a cidade, indiferentes a ela. O Centro cresce todos
os dias (SARAMAGO, 2000, p. 281.) transporta para seu interior os usos antes próprios da vida
urbana – cinemas e teatros, discotecas, jardins, igreja, praia, zoológico, cascata (SARAMAGO,
2000, p. 277), entre diversos outros componentes observados pelos personagens de José
Saramago. Trata‐se de eliminar da cidade o que não pode ser previsto e controlado. Trata‐se de
um simulacro3 de cidade. Uma cidade falsa?
Nuances desse tipo de proposta aparecem e desaparecem em ofertas diversas de tudo um
pouco, moradia, transporte, intimidade, privacidade, segurança, controle, anestesia. Instituir
protocolos de contato. Fixar memórias em imagens estáticas. Pesar o tempo. Controlar, vigiar,
militarizar. Nada disso é novidade, já faz parte da esfera imaginária desde, pelo menos,
Admirável Mundo Novo, 1984, Alphaville4. Talvez seja relativamente novo5 encontrar condições
materiais à mão para fabricar esses modos de viver. Não ser afetado: morar, trabalhar,
consumir sem estabelecer contato com a cidade. Fazer do shopping, a rua. Obrigar a rua a
ceder à estética do shopping.
São arranjos urbanos chamados, por exemplo, de “condomínio do tipo cidade”, amparados na
proposta de “ter tempo” para viver a cidade, sem precisar dela – afinal, trata‐se, talvez, de uma
“cidade própria”6, uma “minicidade”7. Em São Paulo, o complexo Parque Cidade Jardim parece
oferecer justamente esse modelo de desconexão à cidade. Seu slogan é previsível: isto é
inédito, ainda que não seja efetivamente nada tão novo ou original8. Praça particular. Bosque
particular. Rua particular. “Sustentabilidade” e “personal shopper”9. Vista para o rio, ou o que 52
um dia foi um rio. Shopping ao ar livre, “de frente para um jardim”, o jardim dos outros –
aquele mesmo, que é sempre mais bonito. Em 2 anos, todos os luxuosos apartamentos (325
unidades) das torres residenciais estavam vendidos, um terço do tempo previsto pela
incorporadora10; o consumo das torres comerciais também foi recorde.
Cidades de tantas torres. Torre: topo do mundo. Observar sem ser visto. Ser forte e pronto para
a guerra. Uma torre deve ser alta, fortificada. Se há de fato uma verticalidade considerável,
pensando na escala da cidade, talvez o preponderante na proliferação do uso desta
denominação seja a dimensão simbólica que sustenta o léxico: lugar protegido, fortificado,
enclausurado, pronto ao combate. Este modelo de arranjo urbano prolifera‐se, radicaliza a
ideia de Henri Lefebvre sobre a sociedade urbana, sobre como o urbano corrói os tecidos da
vida agrária (LEFEBVRE, 2008). Parece que os tecidos urbanos veem‐se, eles mesmos, cada vez
mais esgarçados por um arranjo que nega a própria cidade.
Não estamos apenas nos domínios do medo, estamos no reino do conforto. O conforto é da
família da ordem, já o acaso é companheiro da desordem. E para Beatriz Sarlo a cidade é
território aberto (SARLO, 2009, p. 21)11, disponível a vivências múltiplas; um artefato delicado,
resistente e complexo que carrega em si um potencial diabólico de desordem.
A desordem, característica tão evidente de nossos movimentos no tecido urbano, do próprio
movimento das cidades ao longo da história, vem sendo vivida como indesejável. Contra ela
vem sendo desenvolvido um mundo de tecnologias de controle e previsibilidades vigilantes.
Repelir a desordem, ou dominá‐la, significa o esvaziamento dos encontros, bem como a
eliminação discreta da cidade. Com uma tipologia que persegue a “perfeita adequação entre
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12
finalidade e disposição do espaço” (SARLO, 2009, p. 13) , a ambição do shopping, por sua vez,
ainda segundo Beatriz Sarlo, é justamente substituir a cidade: mais do que se contrapor a ela,
ele transpõe em seu interior, de forma revista e selecionada, usos e serviços, sempre
tangenciados pelo consumo e pelo conforto. Prolonga‐se, assim, ad nauseam, uma superfície
de homogeneidade, na qual a posição do sujeito diferente é sempre modificada para a de
inimigo, aquele que ameaça. Porém, é claro, o outro é e sempre será, de fato, uma forma de
ameaça. Há uma ameaça necessária. É pelo encontro com o olhar do outro que saímos de um
equilíbrio psíquico postiço, do mesmo de nós mesmos. O outro é capaz de nos convidar ao
devir, à saída da manutenção identitária. O outro, que nos convida à vivência da diferença,
base da experiência de alteridade, tão importante à produção subjetiva.
Está claro que a semelhança e homogeneização são bases do conceito que estrutura este tipo
de arranjo urbano, ainda que, contraditoriamente, venda exclusividade, diferença. “É o
paradoxo de nosso mundo: ser igual quando tudo aponta para (ou facilita) singularizações e
singularizar‐se quando tudo se encaminha para grandes formações homogêneas” (BRANDÃO,
2002, p. 138). Assistimos a um deslocamento abrupto ente singularidade e homogeneização,
conforme sugere a cartografia feita por Ludmila de Lima Brandão no livro A Casa Subjetiva:
“Casas querendo ser iguais a..., fazendo parte de tribos. Casas querendo ser diferentes de..., o
sonho de ser famoso, único” (BRANDÃO, 2002, p. 27). Nada mais igual que um shopping. Quer
ser inédito, mas é sempre mais uma reedição. Para Teresa Caldeira:
Essas tecnologias incluem a ubiquidade dos muros, sua inserção em complexos sistemas de vigilância e
distinção, privatização e comoditização da segurança e a naturalização de mecanismos de controle. Essas
novas tecnologias do público tornaram a desigualdade e a segregação naturais. O público que elas criaram,
53
inerentemente desigual, não apenas distancia grupos sociais, mas trata essa separação como desejável”
(CALDEIRA, 2011, p. 217).
Os enclaves fortificados segundo Teresa Caldeira carregam a segregação social como um
valor. Nesse tipo de ordenamento socioespacial, em que são facilmente enquadrados
condomínios fechados e shoppings, a marca é a da seletividade e separação; ali,
reduzem‐se substancialmente as “interações cotidianas entre habitantes de diferentes
grupos sociais.” (CALDEIRA, 1997, p. 174).
Na cidade de Florianópolis, em Jurerê Internacional, os muros são proibidos. Entretanto,
estão ali, ocupando outra materialidade – eles simplesmente não são necessários pois o
bloqueio à diferença já está inscrito socioespacialmente. Trata‐se da produção de um
espaço reservado às camadas de alta renda do Brasil (não só de Florianópolis)
aparentemente aberto, mas pouco acessível. Essa localidade, de forte carga imagética,
parece ter muito a dizer sobre o universo privado. Chama atenção o sobrenome
recentemente agregado: internacional – sugerindo a transposição de limites e fronteiras,
a ida ao exterior, a entrada em uma cultura distinta. A formalidade impressa no nome
torna o outro um estrangeiro ali – Internacional. Entretanto, o uso do termo não respeita
a ideia de exterioridade implícita na noção, antes, seu emprego não diz respeito ao fora,
mas sim à produção de uma distinção que, mesmo na ausência de muros, busca o mais
dentro: o fechamento, a seleção, a particularidade.
Os lugares possuem uma força singular na espacialização social. O mundo dos lugares é
um mundo de elementos que parecem intangíveis: o cotidiano, o simbólico, a
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subjetivação. É justamente nos lugares que a experiência subjetiva acontece como
produção de sentido, movimento e diferenciação – um processo que exige o mergulho
permanente no conflito, no encontro com o outro, com os lugares dos outros. Por isso, os
lugares são permeados de dissenso, permitindo a emergência das contradições e fazendo
conviver dialeticamente os elementos de que se tece a vida.
Milton Santos fundamenta a ideia de que partimos sempre de um lugar, de onde vemos o
mundo, como parece testemunhar o livro As Viúvas das quintas‐feiras de Claudia Piñeiro. O
cotidiano de seus personagens revela‐se profundamente marcado pelo lugar, Altos de la
Cascada, ele mesmo um personagem de destaque na história. Entretanto, os moradores de La
Cascada parecem apenas existir sob a condição de pertencerem àquele lugar, onde
aparentemente a cidade emerge pelo seu avesso, sua negação:
Todos os que viemos morar em Altos de la Cascada dizemos ter feito isso buscando ‘o verde’, a vida
saudável, o esporte, a segurança. Com essa desculpa, inclusive diante de nós mesmos, acabamos por não
confessar por que viemos. E, com o tempo, já nem nos lembramos. A vinda para La Cascada produz um
certo esquecimento mágico do passado. O passado que resta é a semana passada, o mês passado, o ano
passado, “quando jogamos o intercountry e ganhamos”. Vão‐se apagando os amigos da vida inteira, os
lugares que antes pareciam imprescindíveis, alguns parentes, as recordações, os erros. Como se fosse
possível, em certa idade, arrancar as folhas de um diário e começar a escrever um novo. (PIÑEIRO, 2007, p.
25)
As desculpas se sustentam em justificativas frágeis e terminam por substantivarem‐se em
modos de vida. Com o tempo, esquecemos as origens deles, naturalizamos modos de morar, de
ver o mundo, de passar o tempo. O modo de viver é um modo de significar o mundo, de 54
simbolizar a vida, de subjetivar. É sentir, pensar, organizar a vida, as memórias, os afetos, os
encontros. Por que, atualmente, as pessoas parecem gostar tanto de passarem suas vidas em
idas e vindas a shoppings? Por que o desejo tão disseminado pelos condomínios fechados? Não
parece ser apenas a questão da segurança, ainda que ela não seja desprezível. Parece haver
uma conotação de adequação neste modelo, é isso que que se deve desejar. O que reitera uma
questão central: por que a escolha parece ser primariamente dirigida pela dimensão do
privado? Mais do que pensar o shopping e o condomínio, cabe refletir sobre o que os sustenta.
O livro de Claudia Piñeiro termina como uma interrogação, a mesma que este texto persegue:
“Está com medo de sair?” (PIÑEIRO, 2007, p. 252). Interrogação que leva a outras tantas:
podemos viver uma alteridade cosmética? Isto é, podemos nos relacionar com o outro, com a
diferença, com a política, de modo controlado, segregacionista, previsível, narcisista? Temos
medo do outro? O que o outro nos diz sobre nós mesmos? Será possível pensar que
determinadas políticas de espacialidade contemporâneas são capazes de recusar o conflito?
Em Altos de la Cascada, a cidade emerge como sua negação. Na extinção de lembranças, a
radicalização da fragmentação da cidade. Vive‐se o ausência do acaso – esse elemento que
integra a cidade e seus encontros –, nutre‐se a elisão do imprevisível e a conversão do risco em
regularidade, ainda que submersas numa aura de naturalidade e espontaneidade:
Não há cercas retas cortadas com precisão para imitar paredes verdes. Nem arbustos
arredondados. As cercas são cortadas desigualmente, como que descabeladas, para que pareçam
naturais, embora a poda tenha sido meticulosamente estudada. À primeira vista, essas plantas
mais parecem um casual acidente geográfico entre vizinhos do que barreiras colocadas de
propósito para marcar um limite. Ainda que o sejam e que esse limite só possa ser insinuado por
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plantas. Não são permitidos alambrados, grades e muito menos paredes. Exceto o alambrado
perimetral de dois metros de altura que corre por conta da administração do bairro, e que logo
será substituído por um muro que satisfaça as novas normas de segurança. [...], anda‐se em
qualquer hora, por qualquer lugar, com absoluta tranquilidade porque nada de ruim pode
acontecer. (PIÑEIRO, 2007, p. 22)
Estética feita para parecer, minuciosamente, espontânea e casual. A marcação de limites
é propositalmente disfarçada. Os muros são para o lado “de fora”, para o outro,
diferente. Antes, por causa dele. O que se passa entre os muros? Recusa da cidade? É
possível afirmar que haja ali a negação da experiência urbana? Certamente, há a redução
dos encontros, o empobrecimento da experiência social no assoreamento das trocas, na
tirania da regulamentação, tributária do medo da cidade e do medo na cidade 13 (SARLO,
2009, p. 23), preocupação central que alimenta as espacialidades urbanas
contemporâneas, segundo Beatriz Sarlo.
O tempo, uma das novas raridades, sugere Henri Lefebvre (LEFEBVRE, 2008). É
justamente tempo o maior atrativo e o melhor produto do complexo Parque Cidade
Jardim, ele vende tempo. Para Henri Lefebvre, o espaço envolve o tempo (LEFEBVRE,
2008). É isso que a incorporadora parece perceber e fazer muito bem: quando se compra
um espaço, compra‐se igualmente uma distância, um emprego do tempo:
O tempo, bem supremo, mercadoria suprema, se vende e se compra: tempo de trabalho, tempo de
consumo, de lazer, de percurso, etc. Ele se organiza em função do trabalho produtivo e da
reprodução das relações de produção na cotidianidade. O tempo “perdido” não o é para todo
mundo, pois é preciso pagar caro por ele. (LEFEBVRE, 2008, p. 50) 55
Portanto, parece haver aquele que pode comprar tempo. Espaço‐tempo que vincula‐se à
reprodução das relações sociais de produção, ainda de acordo com Henri Lefebvre. Não
se trata, portanto, de demonizar esse determinado modo de vida, afinal, ele não existe
desvinculado da sociedade como um todo, dos modos de vida possíveis. É apenas uma
questão de escala. As mesmas substâncias que conformam o cotidiano no Parque Cidade
Jardim, ou Alphaville, ou Jurerê Internacional, ou Altos de la Cascada estão presentes no
meu cotidiano. Aquele que faz, efetivamente, essa opção de vida responde ao imaginário
construído por todos (KEHL, 2008, p. 294 ) 14. Todos nós contribuímos em maior ou menor
medida à existência de espaços‐tempos de segregação, ainda que seja na posição de
impossibilitados de obtê‐los, o que é a essência de sua valorização, nossa impossibilidade
é o que os torna tão desejáveis. Deste modo, cabe lembrar que algumas condições
socioespaciais foram necessárias para essa opção nascer como arranjo urbano. Elas estão
presentes na cidade como um todo. A condição de possibilidade deste arranjo foi
fundada em gestos e signos que dizem respeito à nossa relação com o mundo.
As imagens urbanas são tecidas de elementos diversos – política, história, poética,
memória, uso sucessivo e contínuo que transformam espaços. A cidade é preenchida por
um imaginário, compartilhado por habitantes e visitantes. Esse imaginário é permeado
pelos diversos usos do espaço urbano. Ele nunca é constituído abruptamente, mas sim
pelos modos de olhar a cidade que vão se configurando ao longo dos tempos, em
horizontes de enunciação, na co‐habitação de conceitos, na proliferação de imagens mais
ou menos similares.
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O corpo da cidade é feito de aderência, colagem incessante das imagens colecionadas na
órbita tempo‐espaço: o que se vê, o que se esconde, o modo de olhar. Essas imagens são
produzidas a partir do que o olhar encontra, não apenas pelo que ele constrói. Toda
imagem é construída no jogo do olhar: o que se emoldura em suas urgências; a ação das
forças do mundo sobre minha história; o ângulo e o lugar de onde se vê; o instante fixado
na memória, no papel, da câmera fotográfica, no corpo. O imaginário, justamente o que
compartilhamos na cidade, é uma dimensão afetiva do mundo. Constrói‐se por sensações
e sentimentos, pelas curiosidades do corpo. Essa dimensão simbólica, que constituí o
imaginário, não se decreta, pois ele é constituído nas condições de encontro. Ele é feito
dos diferentes usos do espaço da cidade, a partir de nossas perspectivas e experiências
singulares, tecidas por nosso olhar.
O imaginário urbano hoje parece ceder à primazia de imagens negativas: a cidade do medo, da
paranóia, da vigilância, dos muros. Esses elementos, somados a outras substâncias, alimentam
a produção desses arranjos urbanos que voltam para si mesmos, onde conectam‐se shoppings,
condomínios fechados, arquitetura do medo, indústria da segurança, conforto constante e
anestésico, o medo do outro. Parece ser difícil deixar marcas na cidade, participar de sua vida,
produzir memória, fazer cidade. Parece que ela já está pronta, a memória já está dada
(substituída), os caminhos já estão traçados – e tomados – e temos apenas que responder,
adequadamente, a isso. Para tanto, multiplicam‐se regras, polícias, dispositivos de controle,
segregação e vigilância. Imagens prontas, editadas. Se a cidade nos habita, ela é, ao mesmo
tempo, produtora da vida, marcando cotidianamente suas possibilidades, seus trajetos e,
ainda, os modos de subjetivação que aí se tecem. Se as subjetividades são construções sociais,
56
composições, elas se arranjam a cada meio‐fio da cidade, às suas guias, às pedras que a
modelam; integram cada intervalo socioespacial, irrompendo em corpo. Uma noção mais
radical de alteridade se obtém deste modo, aquela em que a subjetividade ressoa imóvel,
indisposta, hermética.
Nessa cidade, queremos um pouco de cada coisa, queremos apenas um pouco do outro – a
porção dele que se encaixa explicitamente às minhas necessidades – de satisfação,
reconhecimento e afirmação de quem sou, dada por contraste, por desqualificação. Queremos
do outro, e dessa cidade, aquilo que se ajusta a mim sem grandes desgastes, sem maiores
conflitos. Eu preciso que o outro exista, mas na medida certa. Eu desejo a cidade, mas não tudo
que ela contém. A cidade inteira é impossível e insuportável.
Maria Rita Kehl discute o empobrecimento da experiência subjetiva, presente na emergência da
depressão como um sintoma social, por esse que entendemos como um temor da
heterogeneidade – radicalização da clássica definição do que Freud denominou narcisismo das
pequenas diferenças15. Em seu último livro O tempo e o cão (KEHL, 2009) a autora discute a
depressão como um sintoma social contemporâneo. Um sintoma social é um modo de
comportamento, de pensamento, de estilo subjetivo que vai à contramão da norma social de
seu tempo, por isso, a tristeza é uma anomalia. A depressão seria um sintoma por ser estranha
ao modo de funcionamento de nossa sociedade, que é o do gozo imperativo, cuja regra é a
euforia e o conforto permanentes. Não basta, ainda, nessa sociedade, ser único: há que se ser
especial. A autora indica como diversas propagandas que evidenciam a produção de gozo, por
meio da produção de si como um sujeito especial. O mesmo processo que podemos ler no
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espaço urbano, em que prevalece a desqualificação de determinadas regiões da cidade para a
produção de lugares valorizados. A desqualificação se dá por vias diversas, tais como a
dificuldade e/ou precariedade de acesso a bens e equipamentos públicos e a distância às
centralidades urbanas, mas ela se efetiva também por dispositivos simbólicos, na afirmação
midiática de determinadas parcelas que adquirem estatuto nobre, seja pela invenção de
imagens seguras (mesmo que não o sejam) e, sobretudo, como locais conexos ao sistema
urbano (novamente, mesmo que não sejam, já que regiões valorizadas também apresentam
problemas de trânsito e afins). Interessa sublinhar que a valorização de uma parcela do solo
costuma se dar em detrimento de outras. Seja como for, a especulação urbana desempenha
papel importante neste movimento. Ela é produtora de imagens importantes das cidades,
nomes e palavras que circulam e se multiplicam em propagandas de moradias, matérias de
jornais e revistas de grande circulação enaltecendo memórias e futuros, deliberando onde é,
de verdade, o coração da cidade, onde se deve desejar morar.
As contradições do urbano, já apontadas por Henri Lefebvre (LEFEBVRE, 2008; 2006), os
possíveis‐impossíveis da cidade, podem ser encontrados na pluralidade da cidade. São diversas
as cidades da cidade e elas se atravessam, conformando aquele imaginário da cidade, cujo
tecido também é feito de pluralidade, compartilhado por seus habitantes e visitantes.
(…) a cidade não se faz na sua inteireza, a um tempo só, mas ela se faz anacronicamente, nos lugares da
inteireza idealizada, presente nas cartografias ideais que preenchem os imaginários e os desejos de ter o
mundo nas mãos ou nos mapas. Assim, como não há a cidade inteira, também não há a cidade que se faz
completa e a um tempo só. A cidade é sempre incompleta, e vai se resolvendo no ritmo dos fazeres
distintos, tal como são compreendidos, em sua distinção, desde que eles estejam subordinados à 57
prevalência da racionalidade cartesiana em detrimento das subjetividades. (HISSA & WSTANE, 2009, p. 89)
Os ideais de cidade, os sonhos, os medos, os pertencimentos. As subjetividades e as
racionalidades. As cartografias sensíveis e as cartografias cartesianas. A cidade existe em
processo inacabado, tramado nas diversas ações do cotidiano, feito também do que rezam os
especialistas. Os usos, a despeito das racionalidades, preenchem os espaços e produzem
subjetividades. Contudo, as teorias sobre cidade – teorias que, em sua maioria, se pautam no
cartesianismo – não costumam dar conta disso, da incompletude da cidade, de sua pluralidade.
Em geral, as teorias não sabem ver as cidades da cidade. Talvez lhes falte reintegrar a utopia a
seu corpo, perceber os ausentes e os outros possíveis – a imaginação, matéria prima da arte.
Incorporar a utopia é o que os Situacionistas chamaram de imaginação da ausência:
A pavorosa falta de idéias que possa se reconhecer em todos os atos da cultura, da política, da organização
da vida e de tudo mais, se explica por esta mesma razão, e a debilidade dos construtores modernistas de
cidades funcionais não é mais que um exemplo particularmente visível. Os especialistas inteligentes só
têm inteligência para jogar o jogo dos especialistas: daí o conformismo medroso e a falta fundamental de
imaginação que os fazem admitir que tal qual a produção é útil, boa, necessária. Na realidade, a raiz da
falta de imaginação reinante não pode compreender‐se se não unir‐se à imaginação da falta; quer dizer,
conceber o que está ausente, proibido e oculto, e é por tanto possível na vida moderna. (I.S., 1962, p.
10, grifo meu)16
Onde moram as utopias de hoje? As utopias desabam quando se conformam em objetos de
consumo. Não é a utopia que os condomínios fechados querem vender? De acordo com o
pensamento de Carlos Fortuna: “O colapso da utopia impede‐nos, assim, de concretizar
alternativas que não sejam as propaladas pelas fantasias tecnológicas da cultura do consumo e
da lógica da acumulação” (FORTUNA, 2008, p. 18).
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O privado se insinua não apenas no que diz respeito ao capital, tão evidente na cidade – de
acordo com Carlos Vainer, o interesse privado dos capitalistas (VAINER, 2002, p. 88) – mas,
também, no que parece se colocar como elemento compositor de um modo hegemônico da
experiência subjetiva: privar‐se do outro, do risco da alteridade; da política, como possibilidade
do dissenso; viver o temor da heterogeneidade, a busca pelo gozo constante e pela segurança
(KEHL, 2003; 2009), na sociedade de consumo imperativo; privar o outro de movimentar‐se
nessa sociedade; deixar enrijecida a dinâmica social. Carregamos em nós a privatização, não a
sofremos simplesmente. O processo de privatização é trivialmente legível nesses territórios
que produzem arranjos urbanos alisados, limpos, previsíveis e controláveis, feitos de conforto e
semelhança. Porém, ficarmos restritos a esse tipo de arranjo espacial é insuficiente. Antes do
muro, está o projeto, gravado nas formas de viver, marcado por propostas de segregação. O
muro talvez seja apenas o índice.
Recusar a homogeneização sutil mas despótica em que incorremos às vezes, sem querer, nos dispositivos
que montamos quando os subordinamos a um modelo único, ou a uma dimensão predominante. Aceitar
esse paradoxo de que quando um dispositivo está dando certo demais é que ele já não serve mais, que
quando um grupo está demasiadamente bem sucedido alguma processualidade foi emperrada, que
quando entendemos muito bem é porque deixamos de entender um bocado, que quando estamos muito
sãos é porque já estamos muito é neuróticos. (PELBART, 1993, p. 23)
REFERÊNCIAS
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58
BÓGUS, Lucia Maria M. Segregações Urbanas. In: FORTUNA, Carlos & LEITE, Rogério Proença (orgs). Plural de Cidade: novos
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NOTAS
1 O autor afirma perceber que “vários tipos de interação diminuem (e até tendem a desaparecer) ou tornam‐se (muito) mais
seletivos.” (SOUZA, 2008, p. 58)
2 Seria possível incluir diversos outros itens presentes na conformação das espacialidades urbanas (como o urbanismo, por
exemplo, na leitura de Robert Pechman (PECHMAN, 2002), entre outros (FISHMAN, 2004). Porém, construir uma lista
exaustiva de tais elementos não parece enriquecedor. A opção, no momento, é por uma aproximação sensível a uma 59
determinada nuance da questão, de caráter simbólico e material.
3 A ideia é emprestada de Jean Baudrillard (BAUDRILLARD, 2008), para quem simulacro é um engodo que traz a presença da
coisa na forma de representação. O autor usa o termo, portanto, com forte conotação negativa.
4 Respectivamente: Aldous Huxley, 1932; George Orwell, 1949; Jean‐Luc Godard, 1965.
5Copan/SP, Edifício JK/Belo Horizonte são projetos que, originalmente, esboçaram matizes deste modelo, ainda que inseridos
em outros projetos ideológicos.
6 Referência ao Complexo Cidade Jardim, em São Paulo. De acordo com depoimento de moradores, do incorporador e da fala
do repórter da Rede Globo no Programa Mundo S/A sobre esse tipo de arranjo urbano. Exibido em 2012. Disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=8‐‐MiyHzdYA&feature=related. Acessado em 4 de maio de 2012.
7 Matéria Eles vão morar no shopping. Revista da Folha. Folha de São Paulo, 6 de julho de 2008.
8 São diversos os empreendimentos, espalhados pelo mundo, que se baseiam neste modelo: Roppongi Hills/Tóquio; Kuala
Lampur City Center; Time Warner Center/NY. Ainda em São Paulo o Parque Villa Lobos possui as mesmas características do
Complexo Cidade Jarim. Na Flórida, Celebration (Celebration Community Development District,) cidade lançada pela
Corporação Disney com notório sucesso nos anos 90 , viveu, cabe registrar, acontecimentos recentes que mancharam a
imagem fantasiosa de perfeição, segurança e controle criada pela estética Disney, a saber: um suicídio e um assassinato.
Informação disponível em:http://www.guardian.co.uk/world/2010/dec/13/celebration‐death‐of‐a‐dream. Acessado em 10 de
Maio de 2012.
9 Propaganda do Parque Cidade Jardim. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=V57fB9i0ivA&feature=related.
Acessado em 4 de maio de 2012.
10 Depoimento de José Auriemo Neto, presidente da Incorporadora JHSF, ao Programa Mundo S/A – Rede Globo, 2010. Cabe
registrar que um dos próximos lançamentos da Incorporadora é o Dona Catarina, o projeto de uma cidade para 60 mil
habitantes, em São Roque, a km de São Paulo (Os inovadores do boom imobiliário. Revista Época Negócios, junho de 2008, p.
94; O senhor do luxo Dinheiro 23/11/2011, p. 74).
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11 “[...] la ciudad es un território abierto a la exploración por desplazamiento dinámico, visual, de ruidos y de olores: es un
espacio de experienciais corporales e intelectuales; está medianamente regulado pero también vive de las transgresiones
menores a las reglas [...].” (SARLO, 2009, p. 21)
12 “Sólo una tipología, la del shopping center, resiste ao principio diabólico del desorden, exorcizado por la perfecta
adecuación entre finalidad y disposición del espacio” (SARLO, 2009, p.13).
13 “[...] la inseguridad, que fue siempre um tema urbano (...), se convertió en uma preocupación central: el miedo de la ciudad
y el miedo en la ciudad, el exódo a barrios cerrados, a enclaves que simulan aldeas, a suburbios bajo control, el abandono de
los espacios abiertos a causa de sus acechanzas.” (SARLO, 2009, p. 23)
14 “O que faz de São Paulo, por exemplo, uma cidade compartilhada, com características comuns entre todos os seus 12
milhões de habitantes? É o imaginário urbano.” (KEHL, 2008, p. 294)
15 Sobre narcisismo das pequenas diferenças: “... unir uns aos outros pelos vínculos do amor, uma imensa massa de homens,
com a única condição de que alguns fiquem de fora para serem alvo de ataques.” (Cf. Freud, S.‐ E.S.B.‐ Vol. XI ‐ Pág.184).
16 “This explains the astonishing lack of ideas evident in all the acts of culture, of politics, of the organization of life, and in
everything else — the lameness of the modernist builders of functionalist cities is only a particularly glaring example. The
intelligent specialists are intelligent only in playing the game of specialists; hence the timid conformity and fundamental lack of
imagination that make them grant that this or that product is useful, or good, or necessary. The root of the prevailing lack of
imagination cannot be grasped unless one is able to imagine what is lacking — that is, what is missing, hidden, forbidden, and
yet possible, in modern life.” (I.S., 1962, p. 10)
60
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NÚCLEO TEMÁTICO I: Cidade em movimento e movimento na cidade
Direito de propriedade e propriedade sem direito: o caso da
ocupação “Dandara” em Belo Horizonte.
Property rights and property without law: the case of informal settlement movement
“Dandara” in Belo Horizonte.
Luiz F. G. ALMEIDA
Mestrando em Arquitetura e Urbanismo pelo NPGAU/UFMG; Servidor da Secretaria Estadual de
Desenvolvimento Regional e Política Urbana de Minas Gerais. luizfelype.almeida@gmail.com
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo traçar e sugerir reflexões a respeito do conceito de direito à
propriedade e os rebatimentos e implicâncias de tal compreensão no que concerne ao acesso á moradia
dita formal. Para isso, o recorre‐se no ensaio à observação e relato das motivações, organização e
perspectivas do assentamento informal “Dandara” localizado na Região Norte Belo Horizonte. Observa‐
se que os participantes do movimento por meio da adequação da forma de organização do espaço físico
da ocupação ás normas formais do município presentes em seu Plano Diretor, têm como objetivo não
apenas o Direito (acesso) à propriedade, mas também, à propriedade com “direito”.
PALAVRAS‐CHAVE: direito à propriedade; propriedade privada; Dandara.
ABSTRACT 61
This paper aims to outline and suggest reflections on the concept of property rights and the repercussions and
implications of such an understanding with regard to access to housing formal dictates. For this, the test relies on
the observation and reporting of motivations, organization and prospects in informal settlement "Dandara"
located in the North Belo Horizonte. It is observed that the participants of the movement through the
appropriateness of the form of organization of physical space occupation ace formal standards present in the city
Master Plan, are aimed not only the law (access) to the property but also the property with "right".
KEYWORDS: property rights, private property; Dandara.
1 INTRODUÇÃO:
O presente trabalho tem como objetivo traçar e sugerir reflexões a respeito do conceito de direito à
propriedade no qual se baseia o planejamento urbano de forma geral e os rebatimentos e
implicâncias de tal compreensão no que concerne ao acesso á moradia dita formal.
Ao discutirmos a noção de direito, percebemos que a mesma distingui‐se, sobretudo em duas formas
principais. A primeira, a qual revela o direito como reconhecimento da necessidade dos indivíduos
para sua sobrevivência e a segunda, correlata à primeira, a qual toma o direito em seu sentido legal,
como o instrumento que garante e legitima o acesso a dado bem ou recurso. Tais conceituações
necessariamente deveriam caminhar de forma conjunta como meio de produzir uma plena realização
do indivíduo no espaço de sua sobrevivência. Em palavras, é preciso mais que do que o
reconhecimento de determinada necessidade1, mas também a formulação de práticas e
especificações que regulem o acesso imperativo a tais provisões.
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Embora a aglutinação das noções acima referidas demonstre‐se como indispensáveis na
construção de um cenário ideal e sustentável de vida, nem sempre a mesma acontece. O caso
dos assentamentos precários e informais é exemplar nesse sentido, configurando‐se naquilo
que denominamos no presente trabalho como Direito de propriedade em meio a uma
propriedade sem direito. Nas chamadas terras irregulares ‐ propriedades à margem da
regulação do direito ‐ reconhece‐se, por motivos lógicos, a necessidade do indivíduo ao acesso
à propriedade para fins de moradia e habitação no espaço físico urbano, ao mesmo tempo em
que não se manifesta de imediato o reconhecimento do direito, como prática legal, da posse de
determinado terreno.
Nas seções que se seguem a esta introdução, a discussão acima apresentada será realizada
tendo como objeto empírico de análise a ocupação informal “Dandara”, localizada na região
norte do município de Belo Horizonte. Por meio de entrevistas realizadas com moradores da
ocupação e técnicos que auxiliaram em sua formação busca‐se entender as formas de
organização do movimento, suas iniciais motivações, a vinculação do mesmo ao planejamento
urbano dito formal e suas perspectivas repercussões no espaço que está inserido. Antes da
apresentação do caso é realizada uma rediscussão da problemática habitacional brasileira, com
ênfase sobretudo, nas incoerências, implicações e perversidades advindas da instituição da
propriedade privada. A quarta e última seção traz as considerações finais do trabalho.
2 A PROPRIEDADE PRIVADA E PROPRIEDADE SEM DIREITO
62
Em uma das mais interessantes e esclarecedoras declarações de Karl Marx em O Capital, o
autor aponta para uma grave incoerência observável ao considerar‐se a terra como um bem
mercantilizável assim como todos os demais produtos frutos do trabalho humano. Marx sugere
que:
A circunstância de a renda fundiária capitalizada se configurar no preço ou no valor da terra, e de a terra
por isso ser comprada e vendida como qualquer outra mercadoria, é, para alguns apologistas motivo para
justificar a propriedade fundiária, pois o comprador teria pago por ela, como por qualquer outra
mercadoria, um equivalente, e a maior parte das propriedade fundiárias teria assim mudado de mãos. A
mesma argumentação legitimaria assim a escravatura, pois, para o senhor que pagou dinheiro pelo
escravo, o rendimento do trabalho deste representa apenas juro de capital que empregou para comprá‐lo.
Justificar que a renda fundiária existe por ser ela comprada e vendida significa justificar sua existência com
a própria existência. (MARX, K., O Capital: crítica á economia política, p.716, grifo nosso).
Sendo assim, não há problemas na constituição da propriedade privada em contraposição ao
regime comunal ou de concessão, na medida em que o solo não passa de mais outro produto
existente na esfera de circulação das mercadorias. Contudo, como a força de trabalho humana,
a terra é um “bem” não reprodutível e monopolizável. Desse ponto advém comparação de
Marx entre a renda fundiária e a escravidão.
Em palavras, não há possibilidade de criação de novas terras seja pelo trabalhador mais
eficiente que exista. Complementarmente, ao ocupar uma gleba de terra – posse financeira ‐
determinado agente torna impossível que algum outro possa ocupá‐la ou dela fazer uso
simultaneamente (monopólio). Nesse sentido, o reconhecimento formal por parte do Estado
da propriedade privada ou, nas palavras de Marx, da suposição “que certas pessoas têm o
monopólio de dispor de determinadas porções do globo terrestre como esferas privativas de
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sua vontade particular” (Idem, p. 707, grifo nosso), significa consequentemente o
reconhecimento de que certos indivíduos não terão acesso a tal recurso. De forma mais
explícita, a instituição da propriedade privada aponta, no limite, para a aniquilação do acesso a
terra como Direito e sua constituição como componente do mercado. Ter acesso á propriedade
em qualquer forma contrária a tal modelo, significa assim obter propriedade sem direito.
As implicações disso mostram‐se problemáticas. Em termos teóricos, na instituição da
propriedade privada, observamos o germinar de determinada lógica orientadora do
comportamento humano no seu ambiente de vida, a saber, a lógica do conflito por espaço. Na
promoção e consolidação de tal forma como a mais adequada e justa de acesso a terra, a lógica
estabelece‐se e consolida‐se. A total mercantilização do acesso ao solo via sua inserção na
esfera de circulação das mercadorias e sua plena realização como valor de troca conduzem a
um tipo de acesso ao urbano necessariamente orientado por uma perspectiva de conflito
monetário pelas terras melhor “localizadas”.
Ao longo dos anos e com formação e consolidação dos grandes centros e metrópoles urbanas a
lógica intensifica‐se. Os movimentos e disputas por espaço tornam‐se mais freqüentes e
dinâmicos. Das vagas de estacionamento ao acesso à moradia a lógica do
conflito/luta/conquista nos forma e (con)forma. Sua expansão, contudo encontra um limite
físico e natural. Nesse ponto, a cidade explode do formal para o informal, do estruturado para o
precário, do urbano para o quase‐urbano. Com isso, reproduzem‐se e multiplicam‐se os
problemas decorrentes dos conflitos: exclusão, revolta, violência.
A ação do capital imobiliário tem papel fundamental nesse processo. Atua de diversas 63
maneiras. Na retenção de terras para especulação move‐se pela luta por espaço para novas
construções; na delimitação e estruturação de grandes condomínios fechados acirra a exclusão
e a separação de classes; na depreciação fictícia do estoque existente estimula a novas lutas
por espaço pelos agentes e assim por diante.
Aglutina‐se à lógica dos conflitos, o papel e poder centralizador da cidade e do urbano que
aglomera múltiplos caracteres e formações individuais. Instala‐se um cenário de caos formado
e formador do espaço o qual resulta, em ato ou potência, em renovadas formas de conflitos e
violências (LEFEBVRE, 1999).
A formação urbana no Brasil, acompanhada das sucessivas políticas habitacionais promovidas
pelos diferentes governos evidenciam tal realidade. Não há possibilidade de acesso ao Direito
de propriedade (formal e consolidada) àqueles que, no conflito por espaço, não possuem
suficientes recursos financeiros para a ela ter acesso. SOUZA (2004), tratando a respeito dos
anos finais do século XIX e primeiros do XX aponta que:
Mesmo havendo uma crescente demanda e uma significativa oferta de lotes, grande parte da população
não tinha condições de acesso à habitação formal. Assim intensificam‐se as favelas e os loteamentos
clandestinos, o que acaba por pressionar o poder público a tomar novas atitudes. (pg. 169)
Cabe a ressalva que, conforme destaca o mesmo autor, as soluções em termos de
planejamento e construções urbanas por parte do poder público para essa situação
materializaram‐se na construção das chamadas vilas higiênicas e operárias, de qualidade e
acesso bastante precários.
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AZEVEDO (2004) traçando um panorama da política habitacional brasileira nas últimas décadas
apresenta um cenário verdadeiramente desanimador no que concerne á capacidade do Estado
em lidar com a mediação e resolução dos conflitos por espaço existentes no território. Todas as
iniciativas desde o BNH até os programas pontuais dos governos como o Habitar Brasil,
Programa de Ação Imediata para a Habitação – PAIH, Cred‐Casa, dentre outros, mostraram‐se
fadados em determinados momento ao fracasso, por não atingirem, dada a baixa lucratividade
ao setor construtivo, ás camadas de menores rendas e, por conseguinte, de maior necessidade
de acesso á moradia. Como ressalta o autor:
Entre as diversas carências da população de baixa renda vinculadas ao ‘habitat’ (saneamento,
abastecimento de água, energia elétrica, transporte, etc), a que apareceu com mais evidência e
centralidade foi o déficit de moradia. Esse contexto se explica, em parte, não só pelo fato de o poder
público, em termos de política urbana, ter priorizado historicamente a questão habitacional, com também
pela pouca amplitude e o fracasso da maior parte dessas intervenções governamentais. (pg. 105)
Contudo, como causa mais elementar para a ineficácia de tais medidas estava o fato das
mesmas preocuparem‐se na tentativa de ampliação do Direito, deixando intacta, contudo a
concepção de propriedade adotada para determinado programa. Dava‐se assim um verdadeiro
contra senso, pois, objetivava‐se dirimir o problema habitacional mantendo‐se, contudo o
cerne motivador do mesmo em sua essência, a saber, a instituição incontestável da
propriedade como sendo de uso privado.
O planejamento urbano, materializado de forma mais evidente nas políticas habitacionais,
mostra‐se assim sempre a mercê de tal categoria constituinte da cidade a qual para abrigar
alguns deve necessariamente excluir a outros. Com a Constituição Federal de 1988 que melhor 64
esclarece no País o princípio da função social da propriedade e da cidade e, sobretudo com a
promulgação em 2001 do Estatuto das Cidades observa‐se uma tentativa mais acurada por
parte do poder em modificar a realidade até então vigente. Ao tocar na questão central do
acesso à terra, a saber, sua própria concepção, há, mesmo que teoricamente, uma recondução
da noção da terra como Direito, não mais como mercadoria condicionada aos interesses
individuais.
Entretanto, as primeiras avaliações de tais medidas têm revelado que, ao contrário do que se
esperava, há a continuidade do acirramento das incoerências das disfunções causadas pela
manutenção da propriedade privada, dado que o reconhecimento do Direito ainda não se mostra
totalmente legitimado e esclarecido na legislação. Conforme aponta Fernandes (2008:126):
De fato, um aspecto fundamental a ser considerado para o avanço das políticas urbanas no Brasil diz respeito à
necessidade de uma maior compreensão da tensa relação entre, por um lado, a natureza jurídica dos direitos de
propriedade imobiliária e, por outro, a definição dos limites da intervenção do poder público no domínio da
propriedade – e do mercado imobiliário – através das atividades e políticas de planejamento e legislação
urbanística. Há várias décadas tem se verificado um embate entre dois paradigmas jurídicos distintos: o paradigma
ainda hegemônico do legalismo liberal, baseado no ideário do Código Civil e na concepção individualista,
mercantilista e patrimonialista da propriedade, e uma tentativa de ruptura dessa visão civilista tradicional através da
afirmação do princípio constitucional, da ordem do direito público, da função socioambiental da propriedade e da
cidade.
Infelizmente os instrumentos de planejamento até então existentes no Estatuto das Cidades em sua
materialização municipal através dos planos diretores ainda não tem dado conta de prover de forma
eficaz uma solução ao embate apontado pelo autor.
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Relatório produzido pelo Ministério das Cidades em parceria com o Observatório das Metrópoles no
ano de 2011 destaca que:
As dificuldades políticas de regulamentação dos instrumentos com potencial de intervenção no mercado de terras
urbano sempre foram bastante conhecidas – afinal, nem todos ganham quando há mais justiça nas formas de
apropriação social dos bens e serviços urbanos ‐, mas a possibilidade de regulamentação do Estatuto [da Cidade] no
sentido da construção de uma cidade menos desigual exigia que o campo de elaboração dos planos diretores – a
quem cabia a construção das condições de implementação dos instrumentos – fosse disputado. A leitura dos
relatórios estaduais indica, contudo, que o potencial dos instrumentos de intervenção do mercado de terras, de
redistribuição da renda gerada pelo desenvolvimento urbanos e de promoção da redução das desigualdades sociais
no acesso à terra urbanizada e à cidade praticamente não foi aproveitado. (OLIVEIRA & BIASOTTO, 2011:59)
Corrobora ainda para tal cenário a adoção cada vez maior por parte do poder público das diretrizes e
práticas de planejamento estratégico, as quais tomam a cidade como mercadoria e imagem a ser
vendida aos interesses dos capitais financeiros e internacionais. Sob essa orientação de planejamento,
não há espaço para uma propriedade de função social, ao contrário, a cada vez maior mercantilização
é condição sine qua non para a execução do projeto de cidade pensado.
Por fim, somam‐se a tais fatores, conforme observa QUEIROZ (2004), a falta de vontade política ainda
existente em nossas Câmaras legislativas em propor e promover verdadeiras práticas de redistribuição
e reforma fundiária. Ao contrário, apresenta o autor, observa‐se nas cidades brasileiras a formação de
um poder urbano corporativo, no qual grandes interesses mercantis mostram‐se ligados às políticas
de desenvolvimento urbano.
Na perpetuação de tais empecilhos à total realização da propriedade como instrumento de inclusão e
não como de exclusão social, não restam alternativas para determinada classe dominada pela lógica 65
de produção do espaço capitalista, intrinsecamente conflituosa e desigual, que não o acesso ao
Direito de propriedade sem direito. Essas experiências, por sua vez, não necessariamente serão
executadas de forma desordenada ou resultarão em assentamentos degradados, dada a própria
aspiração e desejo de seus moradores em pertencer à cidade legal, se não pela via do direito, ao
menos pelos traços de sua forma. O caso da ocupação Dandara apresentado a seguir é exemplar
nesse sentido.
3 A OCUPAÇÃO DANDARA
Sob a perspectiva colocada na primeira seção do trabalho, o espaço urbano apresenta‐se como uma
arena de conflitos e exclusão devido, sobretudo, à instituição da propriedade privada e a inexistência
de instrumentos jurídicos e de planejamento urbano verdadeiramente eficazes na prática para o
tratamento de suas implicações.
A FIG. 1 abaixo, extraída do relatório para plano de mobilidade da prefeitura de Belo Horizonte,
relaciona o nível de renda das famílias á 26 regiões delimitadas no plano para análise. Conforme pode
ser observado, a ocupação do espaço e sua configuração mostram‐se diretamente relacionadas ao
nível de renda das famílias. Na disputa e conflito por espaço, a renda monetária tem assim papel
determinante promovendo uma verdadeira homogeneidade de classes em cada recorte territorial
que compõem os bairros do município. É pela posse da renda que se permite ao morador ter acesso á
moradia, sua realização no espaço urbano e o acesso a serviços das mais variadas naturezas bem
como o convívio com outros indivíduos.
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Figura 1 – Nível de renda média individual por região de Belo Horizonte
66
Fonte: PBH, 2011
Dessa condição desigual de disputa apresenta‐se, por sua vez, uma realidade perversa de
segregação e isolamento ‐ por demais óbvias ‐ e que claramente pode ser visualizada nos
grandes aglomerados de pobrezas denominados como vilas e favelas e nas outras inúmeras
formas de assentamento informal originadas da busca por acesso ao dinamismo e aos
acontecimentos do urbano. As manchas claras nos espaços escuros da figura são exemplos
dessas manifestações.
A ocupação Dandara, assim denominada por seus próprios moradores, nasce devido a um
processo de exclusão social e espacial característico do modo de produção capitalista
inerentemente conflituoso, como já destacado, o qual impede que tais indivíduos tenham
acesso á moradia considerada formal e legal. No conflito que toma como suas armas a
capacidade monetária das pessoas para o pagamento do aluguel ou da compra, via
financiamento, de uma moradia, determinada classe mostra‐se plenamente desarmada. A
própria ausência de um comprovante formal de localização no espaço urbano impede o acesso
aos serviços básicos necessários à sobrevivência e realização plena da cidade, da cidadania, dos
relacionamentos.
A verdadeira diferença é que aqui eu não vou pagar o aluguel o porque o problema maior é que
você loca um lugar pequeno, você não tem liberdade pra nem se quer receber a sua parentela
dependendo do lugar que você aluga, porque a gente não é rico, não tem condições de alugar uma
casa grande sozinho em um lote. A maioria dos valores do aluguel ultrapassam meio salário
mínimo, ai já vai sobrar uma migalha pra gente. Diante disso como é que eu vou sustentar essa
moradia pagando essa quantidade? E ainda por cima eu preciso de um fiador.
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Não há respostas formais para a pergunta da Sra. Maria de Fátima, moradora da
ocupação.
Dada tal realidade, a solução encontrada por grande parcela da população, utilizando‐se de
outras armas de luta e conflito que não a sua renda e na maior parte das vezes seu próprio
corpo, é a de a ocupação de terras privadas que estejam ociosas. Ainda assim, a instituição da
propriedade privada, motivadora da luta por espaço e elementar à lógica do conflito, mostra‐se
por vezes tão arraigada à nossa cultura e formação e tida como justa e normal que, apesar das
inegáveis privações e miseráveis condições de vida e sobrevivência, as próprias pessoas vítimas
de tal condição consideram inicialmente a ocupação como uma medida errada e inadequada.
Faz‐se necessário um tempo para a adaptação e compreensão das incoerências engendradas
pela forma atual de organização do espaço urbano para que assim o desejo por “uma única
oportunidade” – Sra. Maria de Fátima – possa superar as inseguranças que uma atitude como a
apropriação de uma terra não comprada monetariamente podem levar. Como relata a Sra.
Wagna, moradora e liderança local sobre sua inserção no movimento:
Meu filho foi comprar pão de manhã e disse: ‘mãe, o povo está invadindo o pasto vamos lá?’ Não vou não,
não é nosso. ‘Se a senhora não for, eu vou sozinho porque não agüento ver mais a senhora chorar de
morar na casa da mãe do Felter (...) Vivia numa casa muito boa, mas que não era minha, agüentava
humilhação da minha sogra, meu marido não quis ir, disse ele que não ia (...) Depois de 6 meses meu
marido resolveu por o pés a primeira vez na ocupação. Ele levava comida pra mim, mas esperava na
esquina porque tinha vergonha de entrar na comunidade (...) Com 6 meses eu consegui levar ele pra o
primeiro manifesto. Hoje é um militante de mão cheia e assim, a nossa família toda engajou na luta.
Na organização de tais movimentos no espaço, contudo, existem significativas diferenças. 67
O caso da Dandara é exemplar nesse sentido, apresentando características que a
distinguem de outras ocupações. Como regra inicial, a comunidade então constituída de
aproximadamente 100 famílias optou pela eliminação do mercado informal na região. Na
comunidade “perde quem compra e perde quem vende” como aponta uma entre as 13
regulamentações básicas instituídas em conjunto com a comunidade. O cancelamento e
proibição das trocas comerciais tanto entre moradores como externa tem como objetivo
garantir que a utilização do solo seja exclusivamente para moradia. Mais ainda, a
“concessão” do lote obrigatoriamente deve ser acompanhada tanto pela construção
como pela habitação no local a fim de evitar a retenção de terras por famílias que já
possuam outro local para residência.
Na resolução de pequenas disputas que ocorrem no interior da ocupação, apenas em casos
extremos recorre‐se ao poder de regulação e coesão formal, a saber a polícia. Há uma busca
pela construção do consenso entre os moradores até mesmo pelo fato de que a ação policial
foi marcada na região pela violência, retenção e proibição da ocupação.
“A policia entrou assim: derrubando tudo” afirma a Sra Wagna. “Conflito que a gente
teve por aqui foi só com a polícia, (...) as mulheres sentaram em cima dos tijolos com as
crianças e disseram: ‘vocês podem dar tiros, fazer o que quiserem, mas nós não vamos
sair daqui”, relata o Sr. Fernando, outro morador da ocupação.
Nesse cenário de exclusão e conflitos, é na informalidade que se abre uma brecha à
realização de uma utopia do convívio coletivo que por mais que não tenha como objetivo
estar totalmente desconectada e isolada numa ilha, cria regras próprias e práticas de
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regulação interna. Sobretudo, tenta lidar com a questão do uso e propriedade do espaço
urbano via eliminação do mercado e consequente eliminação da lógica de qual são fruto
que regula a ocupação e realização humana no espaço pela capacidade de pagamento ao
invés de pela necessidade.
As relações de produção do espaço urbano no que concerne ás edificações das casas,
construção dos espaços coletivos e conservação da ordem são orientadas pelo
cooperativismo e auxílio mútuo:
“Para construir, eu não paguei pedreiro não, foi no sistema de mutirão (...) cada um dos
companheiros deu uma mãozinha e eu fiz meu barracão, e to aí, pelejando aí”; “A gente
trabalha no coletivo, é um ajudando o outro... é assim que funciona a organização dentro
da comunidade” afirmam respectivamente o Sr. Fernando e a líder Wagna.
Obviamente, distorções e relações de opressão certamente ocorrem na ocupação, até
mesmo como fruto das condições de exclusão que muitos dos lá residentes passaram e
viveram. Contudo, observa‐se ao mesmo tempo um projeto de regulação interno que
objetiva a mediação do conflito principal existente em suas realidades, o conflito por
espaço. Complementarmente, há uma proposta de organização espacial encaixada nos
padrões legais e o interesse pela maior parte da população residente em manter tal
proposta como meio de atingir dois objetivos principais, quais sejam, primeiramente a
consolidação da ocupação como parte integrante e ao mesmo tempo desconectada do
restante da cidade e em segundo lugar a não transformação do território em algo
semelhante ás vilas e favelas, cenário passivo de repulsa por todos os entrevistados para 68
o trabalho.
Nesse contexto, caber‐nos‐ia dizer que a ocupação pode ainda ser caracterizada como
uma “informalidade legal”, na medida em que as regras de ocupação no que concerne ao
tipo de edificação, tamanho dos lotes, áreas de conservação e escoamento, largura das
vias, dentre outros aspectos estão todos de acordo com as diretrizes para a região
dispostas no Plano Diretor de Belo Horizonte. Essa estrutura foi organizada dessa forma
não por acaso, ao contrário, desde o início da ocupação o movimento foi acompanhado
por diferentes profissionais que alinhando o conhecimento dito técnico às aspirações da
população formularam uma proposta urbanística para a região.
A FIG. 2 abaixo aponta para a proposta que direcionou a forma em que os lotes seriam
divididos, o número de ruas, áreas de uso coletivo, etc.
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Figura 2 – Proposta urbanística para ocupação Dandara
Fonte: Arquivo da comunidade
Dado o crescimento exponencial do número de famílias presentes (100 para 887) assim como da área
69
ocupada foi necessária a divisão da comunidade em nove grupos, a qual foi acompanhada da eleição
de coordenadores para cada um deles, sendo esses, responsáveis pela participação nas assembléias
semanais e repasse das informações ao restante da população assim como da realização de reuniões
periódicas com as famílias presentes em seu grupo. No início da ocupação e à medida que a mesma
crescia era realizado um cadastro familiar que conduziria a instalação das famílias até que a
capacidade total do terreno fosse atingida.
A cada um dos grupos foi instituída uma cor de identificação e através de sorteios foi delimitada a
área em que cada um passaria a ocupar. Em seguida, cada agrupamento internamente sorteava ou
deixava a livre escolha dos habitantes para ocupação de seu lote. Em determinadas ocasiões, foi dada
preferência de escolha a famílias específicas que de alguma forma (presença nas reuniões, doações,
etc.) mostravam‐se mais envolvidas no projeto da ocupação conforme relatado pela Sra. Wagna.
Anteriormente à tal proposta (FIG. 2), contudo, foi elaborada uma primeira a qual caracterizava‐se
pela pureza da técnica arquitetônica em conformidade a legislação municipal vigente. Sendo quase
que totalmente formulada por profissionais da área da arquitetura e urbanismo, a proposta levava
em conta, sobretudo a necessidade de instalação da maior parte de famílias possível2. Assim,
propunha a divisão da área em lotes coletivos, divididos conforme a topografia da região,
compensando‐se assim com uma maior área aqueles terrenos com menor possibilidade de
construção devida á inclinação.
Nas palavras de Tiago Castelo Branco, arquiteto que esteve à frente do planejamento do
projeto para instalação da comunidade, assim como desde o início do processo auxiliou a
população para que as normas urbanísticas do município pudessem ser seguidas:
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A gente elaborou um primeiro plano pra área. Por que os lotes coletivos? Para a gente ter o mínimo
possível de ruas e não perder espaço com ruas, porque a gente tinha cerca de 1300 famílias, então a gente
precisava criar uma solução que atendesse essas 1300 famílias.
Nem por isso o processo era realizado de forma autoritária ou tecnocrática. Ao contrário,
conforme destaca o arquiteto:
Durante todo esse período havia todo um processo de discussão com as lideranças e com a população
para ver se eles iam aprovar essa proposta, se essa proposta era interessante pra eles ou não. (...) Essa
proposta começa a ser implantada e você tem uma pressão muito forte da polícia, o processo de
demarcação demora muito, ele poderia ter acontecido muito rápido, mas você não consegue devida a essa
pressão.
Tal participação popular apresenta‐se em determinado momento tão massiva que toda a
proposta tem de ser reformulada dada a insatisfação da população residente, sobretudo com
um aspecto específico do projeto em pauta, a saber, a vida em coletividade:
Um problema, porém começa a surgir que é a questão da vida coletiva. Morar nos lotes coletivos, eles não
conseguem resolver bem isso, eles começam a achar que isso vai gerar uma favela, que tudo aquilo que
eles estavam insistindo ia se perder com a proposta do lote coletivo, e eles tinham um receio muito grande
porque com o lote coletivo era necessário você criar um condomínio de cada lote coletivo e isso eles não
estavam aceitando bem.
Como discutido anteriormente no ensaio, duas inquietações principais permeavam a vida
dos moradores, a saber a preocupação na manutenção da ordem urbanística
implementada e de forma mais evidente o medo e completa aversão dos moradores por
uma taxa de utilização da terra como o aluguel ou aqui entendido como o condomínio. A 70
proposta do lote coletivo, ao menos aparentemente, ia de encontro exatamente a tais
questões. Nesse ínterim, ao mesmo tempo em que se observa a tentativa de uma
construção de comunidade de ajuda e parceria mútua, de auxílio e construção do espaço
de forma compartilhada, quando o tema volta‐se para a questão da moradia, o convívio
coletivo mostra‐se indesejado.
O confronto e inquietação tornam‐se tão expressivos que a população decide por si
mesma reavaliar o caminho até então percorrido e sugerir uma nova proposta, que em
sua perspectiva teria como intuito o impedir a transformação da ocupação em uma vila,
mas, sobretudo evitar conflitos futuros que pudessem vir a acontecer provenientes da
vida coletiva. A descrição abaixo, apresentada pelo arquiteto mesmo que extensa,
explicita bem as impressões e iniciativas tomadas nesse momento.
Então eles, a população, eles apresentam uma proposta (...) Eles apresentam a proposta a partir de um dos
moradores da região, ele apresenta aquele desenho ali [Figura 2 rascunhada] para mim e ele vai, ele desqualifica o
desenho com o lote coletivo (...) Ele fala que o lote coletivo era uma besteira que não era necessário e o ideal eram
lotes individuais e todos os lotes iguais. Ai a gente, eu argumento com ele que ao fazer isso a gente ia perder área
porque a gente ia perder áreas abrindo ruas (...) Só que a população prefere fazer isso aqui, prefere fazer o lote
individual e todos os lotes iguais; era uma exigência extremamente importante para eles. Nessa proposta do lote
individual, trabalhamos com todos os lotes iguais, de 126 metros quadrados (...) Então essa proposta é apresentada
e imediatamente a população vai se apropriar dessa proposta e vai implantar isso aqui tudo, e nesse momento sem
nenhum acompanhamento técnico (...) Eles conseguem absorver muito bem a idéia porque a proposta, ela é muito
fácil de ser implantada. Eles conseguem ir medindo e demarcam todo o terreno, aquilo que na proposta do lote
coletivo eles ficavam assim 20 dias tentando desenvolver uma coisa dentro do terreno, com essa proposta aqui em
uma semana eles tinham demarcado tudo.
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Nesse contexto destacam‐se dois aspectos principais. O primeiro deles relacionado às
contradições e até mesmo embate por vezes existente entre o conhecimento técnico e o
popular (FRIEDMAN, 1987), sobretudo no que concerne à ocupação e construção do
espaço urbano. Apesar da “simplicidade” da segunda proposta, era nela que se refletia a
aspiração se não de toda, ao menos de grande parte da população que se instalava na
Região. Na medida em que toda a execução dos trabalhos seria necessariamente
executada pelos próprios moradores, uma proposta que se encaixasse mais ás suas
aspirações, anseios e desejos de realização no espaço seria implementada de forma mais
eficaz, como ocorre. Ao mesmo tempo, ao descaracterizar a primeira proposta alguns
elementos essenciais do planejamento ordenado para a região como o tamanho ideal das
áreas de recarga tem de ser suplantados devida a instituição de novos lotes assim como
necessariamente diminui‐se o espaço no território para a instalação de novas famílias.
Esse segundo aspecto merece um pouco mais de atenção. Ao optarem pelo lotes
individuais e demarcados em mesmo formato e tamanho como meio de contenção de
conflitos há em certo sentido a opção pela manutenção da lógica da qual a própria
ocupação é fruto, a saber, a individualização da posse e das necessidades. A ocupação,
resultado de uma lógica de conflito e exclusão e tendo como herança dessa lógica o
constante receio de exclusão sócio‐espacial o território é organizado de forma repartida
e individualizada. O desejo intenso pela individualização do lote em oposição ao projeto
coletivo reflete e reproduz essa herança perversa.
A escolha por tal projeto, contudo é também composta pela crença que é pela 71
individualização que se evitariam os conflitos futuros de convivência, a qual, manchada
pelas marcas da marginalidade e da exclusão é por vezes conflituosa funcionando à base
da ameaça e da coerção.
Viver individualmente, homogeneizando fisicamente o espaço, a despeito das limitações
topográficas, significa assim fugir e evitar o conflito tanto de preferenciais como de
relacionamentos. Ao mesmo tempo, tal opção se adéqua totalmente ao padrão da cidade
formal e em certo sentido da perversidade de que o próprio movimento é fruto. Tal fator,
associado ao desejo presente nos moradores de uma regularização que lhes garanta não
apenas o uso, mas à posse da terra pode levar futuramente à manifestação e reprodução
do papel excludente da propriedade.
Enquanto não ocorre, na ocupação manifesta‐se de forma literal um verdadeiro espaço
de anseios e desejos de realização. O lema, “ocupar, resistir, construir”, manifestado pela
líder Wagna, de forma resumida apresenta a ação, consequências e esperanças por parte
dos moradores da Região. Em um formato de organização do espaço que tendo como
base os princípios orientadores do modo de produção capitalista, possivelmente serão
nesses espaços informais e socialmente construídos, por mais que não legalmente
reconhecidos – propriedade sem direito ‐, que realmente poder‐se‐ia falar em real
Direito de propriedade bem como em novas possibilidades e novos arranjos para a plena
realização do urbano.
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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme apresentado de forma sugestiva no presente ensaio, a instituição da
propriedade privada tem atuado na consolidação de um dilema jurídico e urbano, na medida em
que se reconhece o Direito de propriedade como indispensável á sobrevivência, ao mesmo tempo em
que um significativo número de pessoas necessita recorrer ao uso da terra sem direito. Nessa
sociedade manifestam‐se de forma cada vez mais constante conflitos e contradições que resultam de
e em um cenário de dominação e exclusão.
Nesse cenário de conflito que toma como principal e única arma a posse de renda monetária pelos
indivíduos, determinada classe fica a margem de tal arena dada sua impossibilidade de nela adentrar
por meio de tal armamento. Como alternativa, tais indivíduos, utilizando‐se de seu próprio corpo e
voz na disputa por espaço urbano passam a ocupá‐lo e nele implementar, ao menos em
determinados aspectos, diferentes formas de planejamento e uso do solo. A ocupação informal
Dandara, no momento presente, apresenta uma dessas novas possibilidades.
Na conclusão de sua obra, A Revolução Urbana, Lefebvre aponta para “um dos problemas mais
perturbadores” da construção e realização do urbano, a saber, “a extraordinária passividade das
pessoas diretamente interessadas, concernidas pelos projetos, postas em questões pelas estratégias.
Por que esse silêncio dos usuários?” (pg. 163), pergunta o autor. Como uma das razões apresentadas
por Lefebvre, está o costume, ou mais do que isso, o “hábito” de tais usuários delegarem seus
interesses aos seus representantes formais.
O caso aqui apresentado em certo sentido mostra‐se em certo sentido como uma tentativa de 72
enfrentamento de tal hábito maléfico. Através do embate, promovido pelo fim da espera por uma
resposta formal e pelo convencimento de determinadas incoerências, os usuários promovem e
articulam seus movimentos na busca por um pleno pertencimento sócio‐espacial. Absolutamente, a
questão da ocupação não pode ser aqui esgotada e possivelmente apresente aspectos e incoerências
que não estiveram presentes e fogem ao escopo deste trabalho. Contudo, abordá‐la e analisá‐la
segundo a perspectiva da economia política marxista e das práticas de planejamento urbano mostra‐
se como eficaz meio de compreensão das lógicas que atuam sobre o espaço em que a ocupação
materializa‐se bem como da maneira que elas na prática se manifestam.
5 REFERÊNCIAS
AZEVEDO, Sergio de. A Questão da Moradia no Brasil: necessidades habitacionais, políticas e tendências. In:
FERNANDES, Ana & SOUZA, Ângela Gordilho(Orgs.). Habitação no Brasil: reflexões, avaliações e propostas.
Salvador: FAUFBA/PPGAU, 2004, p. 83‐120.
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Preliminar. Belo Horizonte, 2011. Disponível em:
http://www.bhtrans.pbh.gov.br/portal/page/portal/portalpublico/BHTRANS/publicacoes. Acesso em: 25 julho
2001
CASTELO BRANCO, T. Depoimento [6 de julho, 2011] Belo Horizonte. Entrevista concedida ao autor.
CRUZ, M. F. Depoimento. [4 de julho, 2011]. Belo Horizonte. Entrevista concedida ao autor.
FERNANDES, Edésio. Reforma urbana e reforma jurídica no Brasil: duas questões para reflexão. In: COSTA, Geraldo
Magela; MENDONÇA, Jupira Gomes (Orgs.). Planejamento Urbano no Brasil: trajetórias, avanços e perspectivas.
Belo Horizonte, 2008, p. 123‐135.
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FERNANDO. Depoimento. [4 de julho, 2011]. Belo Horizonte. Entrevista concedida ao autor.
FRIEDMANN, J. (1987) Planning in the Public Domain: From Knowledge to Action. Princeton: Princeton University
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190
WAGNA. Depoimento [4 de julho, 2011]. Belo Horizonte. Entrevista concedida ao autor
6 NOTAS
1
Para fins de distinção, passaremos a grafar a palavra Direito em letra maiúscula quando referir‐se ao
sentido de necessidade/condição de sobrevivência e em letra minúscula ao a considerá‐la como 73
instrumento legal.
2
Na ocasião, a ocupação contava com mais de 1000 famílias.
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NÚCLEO TEMÁTICO I: Cidade em movimento e movimento na cidade
Urbanização contemporânea e conflitos urbanos em Viçosa,
Minas Gerais: a remoção da feira livre da Avenida Santa Rita e o
novo ideal de renovação urbana local.
Contemporary urbanization and urban conflicts in Viçosa, Minas Gerais: the removal of
Santa Rita Avenue’s street fair and the new local urban renovation pattern.
Nayana Corrêa BONAMICHI
Arquiteta e Urbanista; Pós Graduanda do curso de Especialização em Política e Planejamento Urbano e
Regional do IPPUR/UFRJ. mnbona@gmail.com
RESUMO
Ler o processo de produção do espaço urbano através de seus conflitos é partir da leitura do
espaço como campo de lutas; Por meio destes conflitos enxergamos um espaço vivo e não neutro,
um cenário de divergências, uma cidade em constante movimento. A partir desta leitura se torna
mais rica a compreensão dos processos de produção do espaço. O objetivo deste artigo é
apresentar os resultados de um trabalho de pesquisa desenvolvido entre os anos de 2009 e 2010
que acompanhou uma real situação de conflito urbano travada sobre o gozo do direito de uso do
espaço público e os interesses privados da indústria da construção civil, em Viçosa, MG; Trata‐se
do conflito entre retirada/manutenção da feira livre da Avenida Santa Rita (tradicional feira livre 74
de rua do município), em um momento em que esta Avenida passava por intenso processo de
valorização imobiliária. O trabalho de pesquisa teve como objeto de estudo a dinâmica interna e
os desdobramentos de tal situação de conflito, desde a proposta até a efetiva remoção da feira
livre, em janeiro de 2010. Através de uma abordagem predominantemente qualitativa buscamos
entender como esta parcela do urbano em questão foi/é produzida e apropriada, como as partes
envolvidas exerceram/exercem seu domínio ou são dominadas através do espaço.
PALAVRAS‐CHAVE: Urbanização Contemporânea, Conflitos Urbanos, Feiras Livres.
ABSTRACT
Reading the urban space production process between its conflicts is equal to pull out the reading
of the urban space like a field of struggles; By these conflicts we can see an alive and non‐neutral
space, a scenario of differences, a city in constant movement. Starting from this reading, it
becomes richer the comprehension of the space production process. The purpose of this article is
to present the results of a research work developed between 2009 and 2010 that had monitored a
real urban conflict situation among the enjoyment of the right to use the public space and the
privates interests of the construction industry, in Viçosa, MG; It’s the conflict among the
removal/maintenance of the Santa Rita Avenue’s street fair (a municipality traditional street fair
in that city), while this Avenue was going through a strong process of property appreciation. The
research work had as its study object the internal dynamic and the developments of this conflict
situation, since the proposal until the effective removal of the street fair, in January 2010.
Through a predominantly qualitative approach we tried to understand how this urban portion in
question was/is produced and appropriated, how the involved portions had exercised/exercises
their domain through the space.
KEYWORDS: Contemporary urbanization, Urban Conflicts, Street Fairs.
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1 INTRODUÇÃO
Entre as décadas de 1960 e 1970, o município de Viçosa, Minas Gerais, passou por uma
intensificação no seu processo de urbanização em função da expansão das atividades da atual
Universidade Federal de Viçosa. A então ESAV (Escola Superior de Agronomia e Veterinária)
passou a ser reconhecida como Universidade Federal, aumentando significantemente os
recursos federais nela investidos e alterando drasticamente a dinâmica social, cultural, política
e econômica do município. A cidade passou a se desenvolver em razão da própria
Universidade, tendo na expansão da Academia a alavanca para o desenvolvimento econômico
do município e passando a ter no setor de serviços e na construção civil as bases de sua
economia. O crescimento da demanda habitacional gerada principalmente pelo inchaço da
comunidade ligada à Universidade fez com que a região central do município rapidamente se
adensasse, novos vetores de crescimento/adensamento fossem formados e a renovação
urbana atingisse índices muito altos.
Atualmente, a ação feroz do seguimento de indústria da construção civil se soma a cada vez
maior raridade de solo urbano central intensificando situações latentes de conflitos e lutas pelo
direito de consumo e de (re)produção do espaço urbano. Diante da raridade e do esgotamento
da centralidade, novos vetores de crescimento e investimento imobiliários vêm sendo
formados em áreas vizinhas às já intensamente ocupadas e verticalizadas. Neste contexto, nos
últimos seis anos, a Avenida Santa Rita e Rua Gomes Barbosa, no centro do município vêm se
configurando como uma dessas novas áreas de intensa valorização imobiliária.
Coincidentemente, uma proposta de remoção da popular feira livre de rua que funcionava há 75
quatro décadas na Avenida Santa Rita veio à tona pela Secretaria de Agricultura do Município
no ano de 2006. Através de uma manobra política, em uma reunião pouco esclarecedora foi
votada e aprovada pelos poucos feirantes presentes a construção de um novo local para a feira
livre. Em janeiro de 2010, após manifestos tardios contra a mudança, organizados por parte dos
feirantes e parte da população,e, após incessantes discussões públicas sobre o destino da feira
livre, a mesma teve suas atividades relocadas para área às costas do Colégio Viçosa, ao final da
Rua Gomes Barbosa (área menos central e até então menos visada pelo mercado imobiliário),
em um notável processo de marginalização. O ato significou a perda de parte da força da feira
livre, em nossas leituras, um rico lugar de sociabilidade, de trocas econômicas e principalmente
sociais e de saberes; Uma possibilidade de manutenção de uma cultura da “vida de rua”, que
perdurou por mais de quatro décadas na Avenida Santa Rita.
A remoção significou, também, uma possibilidade importante para a leitura e a análise do
processo de exercício de domínio de determinados segmentos sociais locais sobre outros
através da disputa pelo espaço urbano; Tal processo de exercício de domínio e de disputa é
colocado aqui como objeto de pesquisa deste trabalho. Assim, com o objetivo de analisar os
desdobramentos desta situação de conflito e traçar considerações que ajudem a entender seus
significados, este artigo transita entre observações feitas a partir da analise de fatos empíricos
e considerações teóricas baseadas na revisão de obras que discorrem sobre as populares feiras
livres de rua e o processo de produção do espaço urbano a partir de seus conflitos.
Entrelaçando tais considerações teóricas e observações empíricas, acredito ser mais rica a
compreensão do processo de renovação urbana e valorização imobiliária local e seus efetivos
papéis na remoção da feira livre.
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2 METODOLOGIA
Os procedimentos metodológicos adotados na pesquisa reuniram técnicas quantitativas e
qualitativas, entre elas: revisão teórica sobre a temática das populares feiras livres de rua,
levantamento documental sobre a antiga e popular feira livre da Avenida Santa Rita,
levantamento documental e mapeamento dos principais empreendimentos imobiliários
lançados entre os anos de 2006 e 2010 para a região central de Viçosa1, aplicação de
questionários a feirante e frequentadores/não frequentadores da feira livre2, observações
diretas e registros fotográficos das atividades da feira, entrevistas e acompanhamento das
discussões públicas sobre a remoção/manutenção da feira livre3.
3 CONSIDERAÇÕES SOBRE AS FEIRAS LIVRES COMO LUGARES DE SOCIABILIDADE4
Segundo Mascarenhas (2008,p.75):
A feira livre no Brasil constitui modalidade de mercado varejista ao ar livre, de periodicidade semanal,
organizada como serviço de utilidade pública pela municipalidade e voltada para a distribuição local de
gêneros alimentícios e produtos básicos. Herança em certa medida da tradição ibérica (também de raiz
mourisca), posteriormente mesclada com práticas africanas [...]. Desempenham ainda hoje papel
relativamente importante no abastecimento urbano.
Ainda segundo este autor (ibidem, p.74):
Como resultado de longa evolução dos mercados a céu aberto, de remota origem ibérica, redefinidos no
contexto urbanístico da racionalidade higienista da Belle Époque, a feira livre representa uma experiência 76
peculiar de sociabilidade e de uso da rua, que há décadas sofre acusações de obsolescência, pela difusão
ilimitada da automobilidade e das modernas formas de varejo (sobretudo os supermercados).
As feiras livres, em suas diversas configurações, aglomeram multidões e se configuram como
importantes espaços de sociabilidade. São atividades de base econômica, mas que muito
transcendem a esfera comercial; Se constituem em espaços de mobilidades comerciais e
sociais onde erguem‐se redes de sociabilidades (ARAÚJO E MORAIS, 2006, p.247).Em uma
ambiência de informalidade, as frias relações existentes na troca moeda‐mercadoria das
modernas formas de varejo alimentar sedem espaço a relações informais mais próximas, que
envolvem a troca não só de mercadorias mas social e de saberes. As feiras livres se configuram
como locais de estadia e de lazer, sua ambiência informal ganha força nos ambientes públicos
de livre permanência.5
A tradição do “dia de feira” ganha a amplitude de um festejo para aqueles que têm nesta
atividade um importante momento de lazer e intensa sociabilidade. Para essas pessoas, a
tradição do “ir à feira” vira um ritual carregado de valor simbólico e afetivo; “A presença de
elementos populares no cotidiano de uma feira livre [...] mostra também a possibilidade destes
elementos realizarem encontros festivos no interior da feira, exercendo espontaneamente
formas de sociabilidade” (MASCARENHAS, 2008, p.77). Para Guimarães (2010, p.03), o evento
da feira livre se insere como “possibilidade de integração social, celebração de costumes e
força instauradora dentro da rotina, possuindo inclusive diversos aspectos semelhantes ao de
uma festividade”.
Mascarenhas ainda defende as feiras livres não só como lugares de anônima aglomeração
periódica, mas como espaços de sociabilidades específicas. Na feira livre se instala o uso,
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impresso pela dinâmica da vida e estimula o uso coletivo dos espaços públicos, ajuda a
manter viva a cultura da vida de rua no que seria uma via contrária ao processo de
expansão da agorafobia, dos condomínios fechados e shoppings centers. Quando fala da
perda do significado tradicional da rua, afirma que:
A sociabilidade confinada e o temor da violência urbana crescente inauguram nas ultimas décadas
um estilo de vida onde a rua perde seu significado tradicional de local privilegiado da convivência
tranquila, do lazer infanto‐juvenil e de diversas possibilidades de interação na vida comunitária,
para tornar‐se árida via monopolizada pelo automóvel. A “morte” da rua (HOLSTON, 1993; CHOAY,
1982) e todo seu folclore engloba a “morte” das feiras livres, literalmente ausentes nos bairros e
cidades pautados pelo urbanismo progressista.(2005, p. __)
A atividade da feira livre, no momento da apropriação da rua, volta a afirmar este espaço
como o local do encontro e nega a sua condição de local de passagem, da não
permanência. O uso está ligado à formação de um valor simbólico sobre o lugar na
memória do indivíduo, assim, fortalecendo os vínculos para com as áreas de domínio
público e as reconhecendo como espaços que são de todos, e não como o que não é de
ninguém. Trata‐se de um forte exercício do direito a estes espaços. 6
4 A ANTIGA FEIRA LIVRE DA AVENIDA SANTA RITA, VIÇOSA – MG 7
Funcionando há mais de quatro décadas, a antiga Feira Livre da Avenida Santa Rita
iniciou suas atividades antes na Praça Silviano Brandão, principal praça publica do
município, no centro de Viçosa, passando já no ano seguinte a funcionar na Avenida 77
Santa Rita. A partir de extenso levantamento realizado por esta pesquisa sobre a origem
dos feirantes e frequentadores desta feira livre, constatou‐se que suas atividades
atingiam uma amplitude “microrregional”. Tal constatação é, em parte, explicada pelo
fato desta ser a única feira livre de gêneros alimentícios e produtos básicos do município
de Viçosa e a maior dentre seus municípios vizinhos, o que atraía feirantes de cerca de
doze outros municípios próximos a Viçosa (Teixeiras, Guaraciaba, Cajuri, Coimbra,
Amparo da Serra, Ubá, Ponte Nova, Guiricema, Visconde do Rio Branco, São Miguel do
Anta, Tocantins e Ervália). Reunia desde pequenos a grandes produtores e comerciantes
de produtos agrícolas, revendedores, artesãos, produtores de derivados do leite ou grãos
e comerciantes de produtos industrializados.
Constituía importante atividade de utilidade pública, pois possibilitava o comércio direto
entre pequenos produtores rurais e consumidores. Em Viçosa, as vendas na feira livre
ainda representavam a única fonte de renda para grande parte destes produtores (ver
Figura 1).
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Figura 1: A Feira Livre da Avenida Santa Rita
Fonte: Foto Documentário Sábado‐Feira, um registro fotográfico sobre a tradicional feira livre de Santa Rita, 12/11/2008.
As relações sociais de familiaridade entre trabalhadores da feira livre foi uma das características
mais fortes observadas. O trabalho manual no campo que envolvia toda a família dita patriarcal
era tradicionalmente passado de pai para filhos. Na feira livre da Avenida Santa Rita, resquícios 78
deste antigo tipo de organização refletiam nas formas de distribuição do trabalho no momento
da feira e até na “herança” do “ponto comercial” 8, vários deles passados pelos pais ou outros
parentes em graus próximos. Estes tipos de relações de familiaridade foram notados com
grande intensidade, principalmente no grande número de crianças que ajudavam no “trabalho”
e na garantia da renda familiar através da feira. Na atmosfera de informalidade desta atividade,
frequentemente se transitava entre o trabalho e o não trabalho.
A ambiência informal de que fala Mascarenhas (2008, p.82) somada à ausência de uma
fiscalização rigorosa por parte do poder público local contribuiu para formação de um “ponto
de trocas” de fácil acesso em Viçosa, que pode significar a inserção das classes populares neste
segmento de mercado ou uma possibilidade ainda melhor para aqueles que já possuem pontos
comerciais fixos. Em outras palavras, a falta de leis e fiscalização vinha transformando a feira
livre da Avenida Santa Rita em uma grande possibilidade de reprodução do capital comercial
varejista e de muito fácil acesso.
Por outro lado, a força desta atividade a mantinha como uma forma de festejo. No ambiente da
feira livre transitava‐se entre a formalidade da esfera comercial, do trabalho, do lucro e a
informalidade do momento da feira como momento de lazer, do sábado pela manhã como
tempo do não trabalho.
A feira livre da Avenida Santa Rita se apresentava como uma das atividades reunidoras de
consumidores e usuários de maior heterogeneidade do município; Por isso, uma atividade de
grande riqueza social e importante para a manutenção da diversidade no espaço urbano local
(ver figuras 2 a 6).
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Figura 2: Fortes relações familiares na Feira Livre da Avenida Santa Rita
Fonte: Acervo pessoal da autora, 09/05/2009.
Figura 3: O passeio na feira livre Figura 4: O passeio na feira livre
79
Fonte: Ambas Foto Documentário Sábado‐Feira, um registro fotográfico sobre a tradicional feira livre de Santa Rita, 12/11/2008.
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Figura 5: A feira livre na Avenida Santa Rita.
Fonte: Foto Documentário Sábado‐Feira, um registro fotográfico sobre a tradicional feira livre de Santa Rita, 12/11/2008.
Figura 6: A feira livre na Av. Santa Rita. Fortes relações de amizade.
80
Fonte: Foto Documentário Sábado‐Feira, um registro fotográfico sobre a tradicional feira livre de Santa Rita, 12/11/2008.
5 AS POPULARES FEIRAS LIVRES DE RUA COMO O ARCAICO E O DISTANTE9
A modernização do varejo alimentar, a popularização dos super e hipermercados,
somados ao enrijecimento das leis higienistas contribuíram para a formação de um
constante olhar preconceituoso sobre as populares feiras livres de rua como forma de
abastecimento alimentar. Esta popularização veio revestida por uma ideologia de
modernização, de higiene e de praticidade a todo instante, enquanto a feira livre passou
a ser considerada como o arcaico e o anti‐higiênico.
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O elevado nível de capitalização destes modernos estabelecimentos comerciais, mesmo
nas cidades de pequeno e médio porte, o alto investimento midiático, a expansão de
grandes redes hegemônicas fortemente contrastam com a ambiência informal e a falta de
capital da popular feira livre de rua.
Para Mascarenhas (2008, p.79):
No plano do imaginário, recriam‐se as feiras livres como territórios do desconforto, do informal,
do transtorno, do atraso, do barulho e sujeira das ruas, enquanto os supermercados são
massivamente apresentados como portadores do novo, do belo, do conforto, do “american way of
life”.
Como consequência de um longo período de evolução, as feiras livres passaram de uma
tentativa de modernizar o arcaico comércio ambulante ao que Mascarenhas (2005, p.__)
chama de “estratégias informais de sobrevivência”, formadas por um “conjunto de práticas
alheias ao projeto civilizatório das modernas cidades norte‐americanas, por isso uma anomalia,
uma patologia social, [...] o folk sector está dentro da cidade sem fazer parte dela”
(FRIEDMANN apud MASCARENHAS, 2005, p.__, grifos no original); Por isso, as feiras livres são
tidas como “transgressões” (SILVA apud MASCARENHAS,2005, p.__).
A atividade da feira livre passou a ser tachada como um fenômeno da informalidade urbana,
consequência da expansão de parte pouco capitalizada do setor terciário e da busca de novas
formas de sobrevivência material pelas classes populares. As feiras livres passaram a ser
reconhecidas pela sua condição de expressiva atividade econômica para as camadas sociais
populares. 81
Sem qualquer tipo de fiscalização, as feiras livres mergulham na economia informal e cada vez
mais passam a serem vistas como uma forma distante e atrasada de comércio. Porém, como
forma de sobrevivência para milhares de famílias de baixa renda, a feira livre persiste e resiste
ao “processo acentuado de negação da rua, do espaço público de franco acesso, que vem
marcando a urbanização brasileira nas últimas décadas” (MASCARENHAS, 2008, p.79).
Em Viçosa, a inserção das cidades de pequeno e médio porte na lógica das grandes
metrópoles, dada a popularização das modernas formas de varejo também nos pequenos e
médios municípios brasileiros, a facilidade de escoamento de mercadorias somada a cada vez
maior raridade de tempo que impõe a lógica dos grandes mercados de auto serviço de amplo
horário de funcionamento ao indivíduo moderno colocam a feira livre cada vez mais como uma
forma alternativa de abastecimento alimentar; E, principalmente, como uma forma distante da
modernidade e da necessidade de modernização do moderno de que fala Bauman (2005,
p.35).
6 O ARCAICO X UM PROJETO DE MODERNIZAÇÃO E RENOVAÇÃO URBANA LOCAL10
Segundo Lefebvre (1999, p.45):
Denominamos iso‐topia um lugar (topos) e o que o envolve (vizinhança, arredores imediatos), isto é, o que
faz um mesmo lugar. Se noutra parte existe um lugar homólogo ou análogo, ele entra na isotopia.
Entretanto, ao lado do “lugar mesmo”, há o lugar outro, ou o outro lugar. O que o torna outro? Uma
diferença que o caracteriza, situando‐o (situando‐se) em relação ao lugar inicialmente considerado. Trata‐
se da hetero‐topia.
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Henri Lefebvre defende que o espaço urbano é formado por “lugares outros” e “lugares
mesmos”, que são relacionais. Os “lugares mesmos” seriam territórios do espaço urbano que
possuem na sua configuração grandes semelhanças sociais, econômicas e até mesmo físicas.
Os “lugares mesmos” são áreas “homogêneas” na produção do espaço, embora não
completamente. Os lugares se tornam “lugares outros” se comparados a outros territórios que
reúnem características físicas, políticas e sociais diversas e muitas vezes contrárias às suas.
A existência dos lugares relativos no conjunto urbano, segundo Lefebvre, supõe a existência
também de um elemento neutro que consiste na ruptura‐sutura dos lugares justapostos; Este
elemento neutro seria, por exemplo, a rua, a praça ou um cruzamento. O espaço da rua
representa um espaço “neutro”, não pertencente a uma iso ou hetero‐topia, pela sua constante
negação como lugar, pela não apropriação, pela mera função de passagem.
As populares feiras livres de rua, em geral, no momento em que se apropriam deste espaço, o
afirmam como lugar. A rua deixa de ter a função de passagem para se transformar em lugar de
permanência. O espaço passa de neutro a territorialidade popular, apropriado popularmente
como o local do encontro, do festejo, da troca de mercadorias e da troca social.
Como atividade reunidora de público de grande heterogeneidade econômica e social, as
atividades da antiga feira livre da Avenida Santa Rita se constituíam como uma forma de
apropriação ricamente heterogênea; Tomamos então como hipótese que a feira livre se
configurava como a materialização de um “lugar outro” dentro de um lugar com um forte
projeto de homogeneização, veiculado pelos grandes incorporadores imobiliários locais. Tal
hipótese ajudaria a compreender a intensificação da iminência de conflitos. Para Lefebvre 82
(1999,p.45) “Desde que se considere os ocupantes dos lugares, a diferença pode ir até o
contraste fortemente caracterizado, e mesmo até o conflito” [grifo nosso].
A consolidação da Avenida Santa Rita como um novo vetor de intensa valorização imobiliária,
principalmente após o ano de 2006, é tomada por nós como reflexo da crescente demanda
habitacional gerada principalmente pelo aumento da comunidade ligada à Universidade
Federal de Viçosa, pela raridade de solo urbano central não edificado e pelas características
físicas desta Avenida11.
Nos últimos seis anos, a Avenida vem se configurando como um banquete para os
empreendedores da construção civil12 (nas figuras 7 a 11, alguns exemplos de parte destes
grandes empreendimentos).
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Figura 7: Avenida Santa Rita n85. Alvará de construção emitido Figura 8: Avenida Santa Rita n06. Alvará de construção emitido
em novembro de 2006. em agosto de 2006.
Fonte: Acervo pessoal da autora, 06/05/2009. Fonte: Acervo pessoal da autora, 06/05/2009.
Figura 9: Avenida Santa Rita n184. Alvará de construção emitido em dezembro de 2008.
83
Fonte: Acervo pessoal da autora, 06/05/2009.
Figura 10: Avenida Santa Rita n132.
Fonte: Acervo pessoal da autora, 19/10/2009.
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Figura 11: Avenida Santa Rita n159 e 171. Antigos sobrados em processo final de demolição.
Fonte: Acervo pessoal da autora, 19/10/2009.
Ainda segundo a hipótese defendida acima, a antiga feira livre da Avenida Santa Rita, como
forte representante da heterogeneidade do espaço urbano, significava uma ameaça à
homogeneidade local por estar inserida em um visível novo vetor de investimento imobiliário
de caráter fortemente homogenizador. A resistência dos segmentos sociais que se colocaram a
favor da permanência desta atividade na Avenida Santa Rita, mesmo diante dos interesses da
reprodução do capital imobiliário, resultou em uma situação latente de conflito.
Esta latente situação de conflito, travada em torno do gozo do direito de uso do espaço público
versus a apropriação privada da centralidade pelos negócios do segmento de indústria da
construção civil refletiu o grande contraste existente entre o novo ideal de modernização
urbana local e a atividade da feira livre como territorialidade popular e “arcaica”.
A cidade se reproduz na contradição entre a eliminação substancial e manutenção persistente dos lugares 84
de encontros e reencontros, da festa, da apropriação do público para a vida. Há resíduos e resistências nos
subterrâneos que fogem ao processo homogeneizador e terrificante do capital.(CARLOS,2007,p.91)
Neste processo inconstante, os resíduos e resistências deste subterrâneo muitas vezes são
“lavados”, pois
a modernidade de impõe como atmosfera portadora não apenas de todo um conjunto de novas
expectativas e práticas sociais, mas também de decisivas transformações na espacialidade urbana,
destruindo velhas urbanidades (LEFEBVRE,1991) e as substituindo por novos formatos.
(MASCARENHAS,2008,p.79‐80).
Nos novos empreendimentos imobiliários na Avenida Santa Rita, a venda do imóvel, unidade
habitacional/comercial implicava também na venda da paisagem, da extensão da casa, da rua,
onde os estrangeiros (BAUMAN, 2005, p.56) circulavam, mas não permaneciam. Igualmente, a
venda da paisagem da Avenida Santa Rita no ato da venda do imóvel envolvia a “limpeza” local,
implicava em “varrer” qualquer tipo de apropriação estrangeira existente. Para o mercado,
promover a retirada de qualquer fator considerado de desvalorização local fazia parte da
estratégia de marketing, na tentativa de garantir a máxima reprodução do capital.
Na busca por estes interesses econômicos do segmento de indústria da construção civil, a retirada da
feira livre representava abrir as portas para uma transformação urbana que vinha revestida por uma
ideologia de modernização e que se contrapunha ao “arcaísmo” da feira livre. Não permitir que a
feira, como territorialidade popular arcaica e ultrapassada, continuasse se apropriando daquele
espaço significava o primeiro passo para a promoção da Avenida Santa Rita como um novo vetor de
renovação e modernização urbana e, consequentemente, de intensa valorização imobiliária. Tornou‐
se necessária a remoção do que estivesse distante disto, o que incluía a feira livre.
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7 FOCOS DE RESISTÊNCIA E A REMOÇÃO DA FEIRA LIVRE
A proposta de relocação da feira livre veio à tona através da Secretaria de Agricultura do
Município no ano de 2006. Através de uma aparente manobra política, em uma reunião pouco
esclarecedora foi votada e aprovada pelos poucos feirantes presentes13 a construção de um
novo local para a feira livre. No ano de 2008, tal proposta foi retomada pelo Poder Público que
iniciou a estruturação de um novo espaço para a feira. Tardiamente, em meados do ano de
2009, sob a iminência da remoção efetiva, manifestações contra esta mudança foram
organizadas por parte dos feirantes e defensores da permanência desta atividade na Avenida
Santa Rita. Os sujeitos sociais envolvidos nesta defesa resistiram se organizando para
reivindicar as suas condições de sobrevivência material e o exercício da cidadania.
Parte dos feirantes acessou a Defensoria Pública do município, no Fórum Presidente Arthur
Bernardes, na tarde do dia 28 de maio de 2009 com o intuito de buscar alguma forma de apoio
legal que impedisse a mudança da feira (JORNAL FOLHA DA MATA, 29/05/2009, p.01) (ver
figuras 12 a 14). O ato antecedeu dois momentos de uso do espaço da Câmara Municipal de
Viçosa para discussão do futuro da feira livre14, sendo um deles uma Assembleia Pública
organizada exclusivamente para a discussão do assunto. Esta assembleia reuniu cerca de 100
pessoas entre feirantes, moradores da Avenida Santa Rita, Prefeito Municipal em exercício
(Raimundo Nonato Cardoso), Secretário de Agricultura e Meio Ambiente em exercício (Geraldo
Deusdedit Cardoso) e representantes da sociedade civil. Todos os encontros foram registrados,
publicados e divulgados pela mídia impressa local.15
A amplitude que tomou as discussões sobre o direito de apropriação coletiva da centralidade 85
da Avenida Santa Rita pela feira livre reflete a dinâmica de um espaço urbano em constante
choque de interesses e a notoriedade que tal atividade (da feira livre) havia no município.
Somado a isto, tais discussões reafirmam a condição de um espaço vivo e não neutro. As
formas de organização em defesa da cidadania evidenciadas aqui são importantes indicativas
de resistência contra o poder hegemônico. No entanto, apesar da força da resistência, a feira
livre teve suas atividades transferidas para área às costas do Colégio Viçosa, na Rua Gomes
Barbosa, no mês de janeiro de 2010.
A remoção foi justificada principalmente pela existência prévia de uma votação16 na qual os
próprios feirantes teriam aprovado a mudança. Somado a isto, a necessidade de uma melhor
infraestrutura que supriria necessidades básicas da feira livre (como acesso a pontos de água e
sanitários) também foi um dos argumentos utilizados pelo poder publico na tentativa de
justificar tal remoção. Para a grande maioria dos feirantes contrários a saída, tal votação usada
como argumento não passou de uma manobra política dados os motivos já mencionados
anteriormente e, ainda, por terem recebido a proposta da construção de um pavilhão coberto
para a realização das atividades da feira, proposta esta que não foi cumprida pelo poder
público municipal.
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isbn: 978-85-98261-08-9
Figura 12: Capa do jornal Folha da Mata
Fonte: Jornal Folha da Mata, Edição 2100 de 29/05/2009. Ano XLVI p.01.
Figura 13: Capa do jornal Tribuna Livre
86
Fonte: Jornal Tribuna Livre, Edição 936 de 29/05/2009. p.01.
Figura 14: Jornal Folha da Mata
Fonte: Jornal Folha da Mata. Edição número 2103 de 19junho2009. Ano XLVI. p.03
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8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os conflitos urbanos se configuram como formas de luta pelo direito ao consumo e
construção/reconstrução do espaço urbano. A leitura do urbano através de seus conflitos nos mostra
uma cidade sendo construída através de jogos de forças, domínio e dominação; Possibilita‐nos
enxergar o movimento inerente à forma urbana que nunca é estática e muito menos acabada. Ao
contrário, é uma construção artificial humana que ganha forma a partir de suas relações de poder.
O Estado possui um papel fundamental na construção do espaço urbano, pois ao mesmo tempo em
que atua como mediador de conflitos atua também na garantia da consolidação de relações de
domínio do poder hegemônico quando age em função deste e ajuda a promover de maneira desigual
o acesso à cidade.
A remoção da feira livre da Avenida Santa Rita foi parte integrante de um novo ideal de modernização
urbana local e afirmação desta Avenida como novo vetor de grandes investimentos imobiliários do
qual o poder público de Viçosa compartilha e é peça chave para sua consolidação. A proposta de
remoção da feira livre ao mesmo tempo impulsionou e foi impulsionada pela ação do mercado
imobiliário e teve papel fundamental na promoção da valorização urbana local.
A constante imagem formada sobre a tradicional feira livre da Avenida Santa Rita como forma arcaica,
ultrapassada e anti‐higiênica de varejo alimentar deveu‐se também pela própria ausência do poder
publico na fiscalização e promoção de tal atividade como importante forma de abastecimento
alimentar, fonte de renda e sociabilidade urbana. A remoção foi então impulsionada de um lado pela
ausência do Estado no fortalecimento e defesa da feira livre e de outro na presença do mesmo como 87
peça chave para a consolidação da hegemonia do poder do segmento de indústria da construção civil
local.
A relocação da feira livre para área às costas do Colégio Viçosa, na Rua Gomes Barbosa, resultou em
uma rápida perda de parte da força da feira, pois comprometeu sua antiga e rica forma linear de
organização espacial17 e, principalmente, sua visibilidade e centralidade18 (ver figura 15).
Figura 15: Jornal Tribuna Livre. Núcleo Central do novo espaço da feira livre. Sua nova organização espacial a fragmenta em duas
vias ortogonais em torno deste núcleo.
Fonte: Jornal Tribuna Livre, Edição 936 de 29/05/2009. p.05.
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isbn: 978-85-98261-08-9
Se de um lado a remoção da feira livre significou sua marginalização e perda de parte da sua
força, por outro, significou o passo que faltava para a consolidação de mais um novo vetor de
intensa valorização imobiliária no município de Viçosa, pautado por um ideal de modernização
e renovação urbana local.
9 REFERÊNCIAS
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FOLHA DA MATA. Edição número 2100 de 29maio2009. Ano XLVI. p.01.
_______________. Edição número 2102 de 12junho2009. Ano XLVI. p.01 e 03.
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88
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TRIBUNA LIVRE. Edição nº. 936, de 29/maio/2009. p.01 e 05.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIÇOSA. [Foto documentário] Sábado‐Feira, um registro fotográfico sobre a tradicional
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programa de pós-graduação em arquitetura e urbanismo da ufmg (org.)
isbn: 978-85-98261-08-9
10 NOTAS
1
Tomamos como “principais empreendimentos imobiliários” os grandes empreendimentos caracterizados como
condomínios verticais ou edifícios residenciais multifamiliares de mais de cinco pavimentos. O levantamento e
mapeamento foram feitos com base nos Alvarás de Construção emitidos pelo Instituto de Planejamento Urbano
Municipal (IPLAM) da Prefeitura Municipal de Viçosa para o período referido. Como resultado deste mapeamento,
constatou‐se a efetiva formação de um novo forte vetor de grandes investimentos imobiliários em direção ao antigo
local de funcionamento da feira livre (Avenida Santa Rita), na região central de Viçosa.
2
Os questionários direcionados aos feirantes abrangiam questões como origem e tempo como feirante, gênero e
faixa etária, produtos comercializados e local de produção, grau de escolaridade e profissão, assim como questões
semi estruturadas para levantamento de subjetividades sobre a feira livre. Os questionários direcionados aos
frequentadores da feira também abrangeram questões como origem, faixa etária, grau de escolaridade e questões
semi estruturadas que permitiram capturar subjetividades sobre a feira livre e a Avenida Santa Rita.
3
Por “acompanhamento das discussões públicas” entende‐se a participação nas assembleias destinadas a discussão
da remoção/manutenção da feira livre e o acompanhamento dos registros da mídia impressa local sobre o assunto.
4
Os apontamentos feitos neste tópico se apoiam nas ideias de Mascarenhas (2005 e 2008), Morais e Araújo (2006),
Guimarães (2010) e em análises feitas a partir de observações empíricas sobre as populares feiras livres de rua como
territórios de sociabilidade.
5
Para Mascarenhas: “Em contraposição ao ambiente frio e formal dos supermercados, as feiras constituirão um
verdadeiro reduto comunitário dentro da cidade de concreto” (2008, p.81).
6
As feiras livres têm um “papel social e cultural associado ao usufruto da cidadania” (MASCARENHAS, 2005, p.__) e
89
possuem um “papel histórico e crucial de lugar do encontro, do espontâneo, do provisório, da diversidade cultural”
(Ibid., p.__).
7
As considerações feitas aqui neste tópico são baseadas em levantamentos realizados quando esta feira livre ainda
funcionava na Avenida Santa Rita, centro de Viçosa, MG. Tais afirmações não podem ser tomadas para descrever a
feira após sua remoção desta Avenida e relocação para área próxima ao Colégio Viçosa já que tal relocação resultou
em visíveis alterações na sua dinâmica e composição interna que não foram estudadas a fundo por este trabalho.
8
Como “ponto comercial” entende‐se a barraca ou o modulo de barraca utilizado como unidade base constituinte
da feira livre. Para controle da Prefeitura Municipal de Viçosa, cada feirante tinha direito de um a quatro módulos de
dimensões 2x2m cada. O controle e a fiscalização das atividades da feira livre era feito através da numeração de
cada um destes módulos.
9
Sobre a imagem arcaica frequentemente atribuida às populares feiras livres de rua, Mascarenhas (2005 e 2008) faz
uma rica discussão questionando o lugar da feira livre na metrópole contemporânea. É principalmente nas suas
observações e nos resultados das análises dos dados empíricos coletados sobre a dinâmica da antiga Feira Livre da
Avenida Santa Rita no município de Viçosa, Minas Gerais, que se baseiam as idéias contidas neste tópico.
10
Neste ponto, é traçado um paralelo entre as ideias sobre iso, heterotopias e conflitos urbanos levantadas por
Lefebvre (1999), as ideias sobre o caráter homogeneizador do capital imobiliário levantadas por Carlos (2007) e
Mascarenhas (2008) e, observações feitas a partir da análise de dados empíricos registrados sobre o processo de
renovação urbana da Avenida Santa Rita. Tal paralelo objetiva construir uma hipótese que se baseia tanto em fatos
empíricos quanto em colocações teóricas, enriquecendo a discussão.
11
A forma do tipo boulevard da Avenida Santa Rita é tida como importante fator de valorização fundiária local
quando comparada à maior parte da estrutura viária do município, caraterizada por vias estreitas e pouco
arborizadas.
12
O mapeamento dos principais empreendimentos imobiliários realizados entre os anos de 2006 e 2010 na região
central de Viçosa mostrou sete demolições e cinco novos grandes empreendimentos sendo construídos ou em início
de construção somente na Avenida Santa Rita, que possui menos de um quilômetro de extensão total.
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13
Segundo o representante dos trabalhadores da feira livre, Fernando Antônio Mota, os poucos feirantes
convocados para tal votação eram tidos como aliados do então Secretário de Agricultura do município, o que
comprometeu uma votação realmente democrática.
14
Nos dias 9 e 17 de junho de 2009.
15
Jornal Tribuna Livre. Edição nº. 939, de 19/junho/2009. p.01; Jornal Folha da Mata. Edição número 2102 de
12junho2009. Ano XLVI. p.01 e 03; e Edição nº 2103 de 19junho2009. Ano XLVI. p.01‐03.
16
Votação descrita aqui na nota de numero XIV como pouco democrática e como parte de uma possível manobra
política.
17
O antigo espaço utilizado pela feira livre na Avenida Santa Rita permitia sua organização de forma linear e
contínua por conta da grande extensão e desenho retilíneo desta Avenida. Tal fato estimulava o fluxo de forma
ininterrupta em toda a feira livre. Sua nova forma de organização no novo espaço construído pelo poder publico a
fragmentou, pois estipulou uma nova forma de organização espacial que a subdividiu em duas ruas ortogonais e um
núcleo central; Isto comprometeu a continuidade dos fluxos internos criando áreas residuais e promovendo
“desencontros de fluxos”.
18
A Avenida Santa Rita se localiza no centro do município de Viçosa, em área importante e de intensa convergência
de fluxos proporcionados tanto pelo seu traçado quanto por suas conexões com o restante da malha urbana. Tal fato
ajudava a promover de forma muito mais rica o encontro e a visibilidade da feira livre. No novo espaço, a nova
forma de implantação da feira a tira da rua e do fluxo pois a transfere para vias sem saída atrás do Colégio Viçosa e
que, portanto, não se configuram como vias de passagem e fluxo intenso.
90
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NÚCLEO TEMÁTICO II: Grandes projetos como elementos transformadores da cidade e região
Operações urbanas consorciadas em Belo Horizonte ‐ novo
modelo em construção
Consortium urban operations in Belo Horizonte ‐ building a new model
Lívia de Oliveira MONTEIRO
Mestre em Arquitetura e Urbanismo pelo NPGAU/UFMG; Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pelo
NPGAU/UFMG. liviaomonteiro@yahoo.com.br.
RESUMO
O Plano Diretor de Belo Horizonte, promulgado em 1996, inseriu as Operações Urbanas como
instrumentos de política urbana no município. A aplicação desta ferramenta, que deveria,
principalmente, servir para auxiliar na repartição de custos e benefícios originários dos processos
de urbanização acabou ganhando a conotação de troca em que o poder público concedia
flexibilizações em parâmetros urbanísticos vigentes e o setor privado efetuava transformações
pontuais no espaço, nem sempre, prioritárias. As decisões tomadas na III Conferência Municipal
de Política Urbana basearam revisão da legislação urbanística em 2010, pela qual foram
incorporados instrumentos originários do Estatuto da Cidade, como as Operações Urbanas
Consorciadas e o Estudo de Impacto de Vizinhança, que inserem novos conceitos para a
elaboração de operações no território belorizontino. Por meio do Plano Diretor, foram marcadas
áreas para operações urbanas consorciadas em espaços considerados estratégicos para se 91
promover transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e valorização ambiental. Está
em curso a elaboração da Operação Urbana Consorciada Estação Barreiro e Adjacências, que
retrata a construção de uma metodologia para consolidação de operações urbanas no município
sob novos princípios. O novo modelo se aproxima de uma forma de planejamento local e
demonstra desafios.
PALAVRAS‐CHAVE: operações urbanas consorciadas, aplicação, desafios
ABSTRACT
The Belo Horizonte Master Plan, which was promulgated in 1996, inserted the Urban Operations
as instruments of urban policy in the municipality. This tool application should mainly assist the
cost and benefits distribution for the urbanization process, but it ended up getting a connotation
of an exchange in which the public power granted flexibility in already exist urban parameters
whereas the private sector performed punctual changes in the space which not always presented
as priorities. The decisions taken at the III Urban Policy Municipal Conference based the urban
land legislation review in 2010 which incorporated instruments from the City Statute, e.g.
Consortium Urban Operation and Neighborhood Impact Study, that include new concepts for the
operation development in Belo Horizonte. Through the Master Plan, areas were marked for the
Consortium Urban Operations in spaces considered strategic, in order to promote structural
urbane changes, social improvement and environmental enhancement. The Barreiro Station and
its vicinity Consortium Urban Operation is being elaborated and depicts a new methodology
building to consolidate the urban operation in the municipality under new principles. The new
model resembles a way of local planning and displays challenges.
KEYWORDS: urban consortium operations, application, challenges
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1 INTRODUÇÃO
As operações urbanas estão previstas no Plano Diretor (PD) de Belo Horizonte desde 1996. A
Lei n° 7.165/96, que contém o Plano Diretor municipal, foi um marco importante na política
urbana da capital mineira. Ela foi promulgada na mesma data da Lei de Parcelamento,
Ocupação e Uso do Solo (LPOUS), Lei n° 7.166/96, que a rege e complementa. Este conjunto
regulatório, elaborado depois da aprovação da Constituição Federal de 1988, trouxe avanços na
forma de organizar o espaço citadino, abrangendo as responsabilidades da municipalização
presentes na carta magna, conjuntamente à adoção do Plano Diretor como instrumento básico
da política de desenvolvimento e de expansão urbana, sob o preceito da garantia da função
social da propriedade.
Muitas das diretrizes contidas nas leis municipais referenciadas haviam sido enunciadas pela
Lei Orgânica do Município. Esta regulamentação, aprovada em 1990, fora elaborada em um
momento em que estavam ainda latentes as discussões feitas para a inserção de algumas
reivindicações do Movimento pela Reforma Urbana na Constituição Federal, presentes,
sobretudo, em seus artigos 182 e 183.
Somada à conjuntura de mudanças trazidas pela lei constitucional, o contexto de formatação
do Plano Diretor e da Lei de Parcelamento, Ocupação e Uso do Solo em Belo Horizonte foi
marcado por uma alteração no quadro político do governo municipal. O Partido dos
Trabalhadores ‐ PT assumiu a Prefeitura em 1993, quando Patrus Ananias ganhou as eleições,
colocando um partido de esquerda pela primeira vez no governo da capital mineira1. Uma das
metas mais importantes da administração Ananias foi a elaboração destas leis urbanísticas2. 92
No primeiro ano de seu mandato, foi organizada uma estrutura técnico‐administrativa para a
concepção dos projetos de lei que dariam origem às novas normas urbanas. O Executivo
montou um grupo de trabalho que congregava especialistas de várias áreas para consolidarem
estudos acerca da estrutura urbana da cidade. A publicação, denominada “Plano Diretor de
Belo Horizonte: lei de uso e ocupação do solo, estudos básicos”, demonstrou uma cidade com
crescimento desigual; concentração de riquezas; diferentes padrões de urbanização;
densidades construtivas diversas, sobretudo, concentradas na área central e sua periferia
imediata; fragilidades ambientais e deficiências no cuidado ao patrimônio e à paisagem, dentre
outros aspectos. Tais problemas, típicos das capitais brasileiras, fruto do rápido processo de
urbanização que viveu o país, foram espacializados no território para que as deficiências
fossem identificadas e analisadas com mais clareza e se pudesse delinear os condicionantes
legais para ordenar o desenvolvimento urbano do município.
O discurso que justificava a consolidação do novo aparato legal era fundamentado na necessidade de
“inversão de prioridades”, na conformação de modelos de construção participativa de planejamento e
gestão urbanos e na mitigação dos processos de exclusão e segregação espacial observados no
território belorizontino. As legislações urbanísticas promulgadas em 1996, segundo seus
elaboradores, buscavam contemplar as omissões e corrigir os erros contidos nas leis de 1976 e 19853,
que regulavam o uso e a ocupação do solo até então. Visavam também introduzir conceitos e
pensamentos que norteassem uma ocupação do solo mais adequada às condições de cada região e
promover desenvolvimento urbano de qualidade com melhor distribuição dos bens de consumo,
infra estrutura, serviços e produção no território.
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As principais alterações feitas pelas leis urbanísticas promulgadas em meados da década de
1990 tentaram amenizar a concepção extremamente funcionalista de regulação do uso e
ocupação do solo adotada até então. As leis introduziram o conceito de macrozoneamento,
mitigando alguns efeitos decorrentes do zoneamento adotado nas leis anteriores. As normas
urbanísticas precedentes determinavam modelos de assentamento para as edificações, bem
como quais usos eram admitidos em cada zona. O macrozoneamento possibilitou a adoção de
índices construtivos mais ou menos permissivos, de acordo com potenciais de adensamento
determinados a partir da completude da infra estrutura de cada área e das demandas por
preservação e proteção ambiental, cultural, arqueológica ou paisagística. A instalação de usos
não residenciais passou a ocorrer em conformidade com a hierarquia das vias no sistema de
circulação, classificadas dentro das categorias de vias de ligação regional, arteriais, coletoras e
locais4, respeitadas as áreas de relevância ambiental e cultural.
Em áreas onde aspectos ambientais, paisagísticos, patrimoniais ou urbanísticos conferiam
especificidades aos lugares, foi proposto um "sobrezoneamento" que deveria predominar sobre a
mancha do macrozoneamento existente no local, com a denominação de Área de Diretrizes Especiais
(ADE). Foram, também, instituídos na nova legislação instrumentos específicos de política urbana,
como a transferência do direito de construir, a operação urbana e o convênio urbanístico de interesse
social.
No contexto de reformulação das leis urbanísticas, as operações urbanas deveriam ser inseridas como
mecanismos redistributivistas, de modo a promover a repartição mais justa de cargas e benefícios
originados do processo de urbanização, e viabilizar intervenções urbanísticas mais inclusivas ou 93
vinculadas à promoção de habitação de interesse social (COTA, 2010). O texto legal que regulamenta o
instrumento, entretanto, não explicitou, como obrigatórios, os preceitos redistributivistas das
operações, apenas conferindo ao Executivo a coordenação das intervenções, com liberdades amplas
para conduzir as parcerias.
Art. 65 – Operação urbana é o conjunto integrado de intervenções, com prazo determinado, coordenadas pelo
Executivo, com a participação de entidades da iniciativa privada, objetivando viabilizar projetos urbanísticos
especiais em áreas previamente delimitadas.
Parágrafo único – A operação urbana pode ser proposta ao Executivo por qualquer cidadão ou entidade que nela
tenha interesse (BELO HORIZONTE, 2000a).
As poucas amarras do texto legal davam ao Executivo possibilidade para, facilmente, justificarem a
operação e ao investidor muitas alternativas para solicitar a flexibilização de parâmetros construtivos
e negociar contrapartidas. Da criação do instrumento no município até 2010, foram aprovadas pela
Câmara Municipal de Belo Horizonte (CMBH) 12 operações urbanas. As mesmas não demonstraram o
caráter de inversão de prioridades, de redistribuição da valorização fundiária e nem sempre serviram
de forma eficiente à promoção de projetos estruturantes, função que o setor técnico passou a
depositar no instrumento, mas que não se viabilizou da forma esperada. Tais operações acabaram
sendo utilizadas para a flexibilização de parâmetros construtivos, sobretudo no que concerne ao
aumento de coeficiente de aproveitamento, em troca de intervenções, em sua maioria, pontuais de
requalificação urbanística. Passou a haver uma conotação de “trocas”, nas quais os benefícios
privados, utilizando‐se dos princípios do “solo criado”, eram revertidos em obras, nem sempre,
prioritárias. O trabalho de Cota (2010) reflete o histórico da criação do instrumento e analisa as
operações viabilizadas no município. A autora conclui, a partir de suas análises, que:
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Apesar de ser instituída como um meio de viabilizar o direito à cidade, ao propor uma nova lógica de
participação da iniciativa privada na produção do espaço – qual seja, a repartição de custos e benefícios do
processo de urbanização com o poder público –, na prática, as experiências revelam que o instrumento é
utilizado para viabilizar demandas específicas, a maioria, empreendimentos pontuais, que, em geral,
exigem flexibilizações nas normas da legislação de uso e ocupação do solo. Com isto, as operações
urbanas, em Belo Horizonte, acabaram sendo apropriadas para viabilizar, por intermédio do Estado,
interesses particulares e/ou privados. Na maioria das propostas analisadas o interesse público ficou a
reboque das demandas privadas ou específicas (COTA, 2010, p: 383).
Alterações na forma de se desenvolver operações urbanas no município de Belo Horizonte
foram possíveis com a inserção das Operações Urbanas Consorciadas (OUC) como instrumento
de política urbana no Plano Diretor municipal, em sua alteração promulgada pela Lei n° 9.959
em 20 de julho de 2010. O Executivo, sobretudo por meio da Secretaria Municipal Adjunta de
Planejamento Urbano (SMAPU), vem construindo uma nova forma de se pensar as operações
urbanas, levando em conta tanto os exemplos de aplicação do instrumento realizados no
próprio município como também experiências de São Paulo, Curitiba e Rio de Janeiro, no que
concerne às razões dos sucessos e problemas verificados na aplicação desta ferramenta. A
SMAPU busca um novo método de elaborar operações urbanas com o objetivo de garantir seu
papel como instrumento de parceria para promoção do planejamento, desenvolvimento e
gestão do solo citadino.
As alterações na conjuntura legal e política em Belo Horizonte que possibilitam essa nova
conformação ao instrumento – disposto sob premissas do Estatuto da Cidade, Lei n° 10.257/01 ‐
serão explicitadas na sequência, bem como a metodologia para a elaboração da primeira
operação urbana consorciada em desenvolvimento sob os novos preceitos: a Operação Urbana
94
Consorciada Estação Barreiro e Adjacências (OUC‐EBA). Mesmo tratando‐se de processos
recentes e em curso, é possível identificar avanços e desafios para se incorporar às operações
urbanas em Belo Horizonte as funções de melhor aproveitamento da terra urbana, inclusão
social, divisão dos custos de urbanização e viabilização das intervenções prioritárias.
2 A CONFERÊNCIA MUNICIPAL DE POLÍTICA URBANA E A ALTERAÇÃO DE PRINCÍPIOS
LEGAIS
A III Conferência Municipal de Política Urbana foi realizada pelo Executivo no primeiro ano de
mandato do Prefeito Márcio Lacerda, 2009. A então Secretaria Municipal de Política Urbana
(SMURBE)5, coordenada pelo Secretário Murilo Valadares, ficou incumbida de organizar o
corpo técnico da Prefeitura e convocar a população para discussões acerca dos resultados que
o Plano Diretor e a Lei de Parcelamento, Ocupação e Uso do Solo, vigentes no território há mais
de 10 anos, haviam gerado na cidade. O evento teve como objetivo redesenhar o que fosse
preciso entre os artigos das leis organizadoras do território em busca de adequações,
modernizações e construções de novos rumos para o desenvolvimento do município. Os
técnicos do núcleo de planejamento urbano da SMURBE haviam preparado um diagnóstico
publicado sob o título “Estudos urbanos: transformações recentes na estrutura de Belo
Horizonte”, com a compilação de pesquisas multidisciplinares que demonstraram os resultados
da ocupação do solo e da distribuição de atividades econômicas no município. Estes estudos
balizaram todas as discussões da Conferência.
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O evento contou com a participação de 243 delegados, que representavam os setores técnico,
empresarial e popular, eleitos em assembléias organizadas para cada um desses setores6. A
metodologia de discussão foi baseada, fundamentalmente, na organização dos delegados e
técnicos do Executivo em sete grupos de debate que trabalharam a partir de material que
continha as propostas iniciais de alteração das diretrizes legais. Grande parte do conteúdo
levado para discussão era proveniente da II Conferência Municipal de Política Urbana7, alterado
pelo diagnóstico técnico organizado previamente e pela intenção do poder público municipal
em incorporar à legislação as premissas do Estatuto da Cidade. Foram debatidos nos grupos os
seguintes temas: ocupação do solo; licenciamento e localização de atividades econômicas;
parcelamento do solo; posturas municipais; áreas de diretrizes especiais; áreas de interesse
social e instrumentos de política urbana. As propostas aprovadas em cada grupo foram votadas
pela plenária geral, formada por todos os participantes, de modo a legitimar o conteúdo a ser
redigido pelo Executivo em um Projeto de Lei para alteração das normas urbanísticas.
Mesmo tendo sofrido diversas emendas, o Projeto de Lei enviado para a Câmara Municipal foi
aprovado na forma da Lei n° 9.959 em 20 em julho de 2010. As principais alterações contidas
no texto legal, que imprimiram um novo formato às operações urbanas no município foram: a
inserção das Operações Urbanas Consorciadas (OUC); a demarcação de perímetros para
operações urbanas consorciadas no território pelo Plano Diretor e a regulamentação do Estudo
de Impacto de Vizinhança (EIV).
Belo Horizonte, depois da alteração feita ao PD e à LPOUS, passou a contar com dois tipos de
operações urbanas, diferenciadas entre operações urbanas simplificadas, baseadas em 95
diretrizes das operações urbanas vigentes no município desde 1996, e as operações urbanas
consorciadas, reguladas pelas diretrizes impostas pelo Estatuto da Cidade para o instrumento.
O conceito geral de operações urbanas passou a vigorar com a seguinte redação:
Art. 65 ‐ Operação Urbana é o conjunto de intervenções e medidas coordenadas pelo Poder Executivo
Municipal, com a participação de agentes públicos ou privados, com o objetivo de viabilizar projetos
urbanos de interesse público, podendo ocorrer em qualquer área do Município (BELO HORIZONTE, 2010).
As operações urbanas simplificadas não foram explicitamente conceituadas na lei municipal. O
caput do artigo 66 do PD dispõe apenas que as mesmas devem ser sempre motivadas por
interesse público. Quanto às operações urbanas consorciadas, o Plano Diretor traz, no artigo
69, definição análoga ao conceito expresso no Estatuto da Cidade para o instrumento:
Art. 69 ‐ Operação Urbana Consorciada é o conjunto de intervenções e medidas coordenadas pelo Poder
Executivo Municipal, com a participação dos proprietários, moradores, usuários permanentes e
investidores privados, com o objetivo de alcançar transformações urbanísticas estruturais, melhorias
sociais e valorização ambiental, podendo ocorrer em qualquer área do Município (BELO HORIZONTE,
2010).
A diferença fundamental entre os dois tipos de operações urbanas são seus objetivos: as
simplificadas viabilizam intervenções pontuais e continuam com a noção de “troca” da primeira
geração de operações urbanas, inserindo poucos parceiros e tendo alcance específico e
limitado, enquanto as consorciadas visam intervenções mais estruturantes, de maior amplitude
e que abarcam maior gama de participantes e tipos de parcerias. Organizando os preceitos
legais que resguardam as finalidades de cada tipo de operação em um quadro, pode‐se
comparar o alcance destas ferramentas.
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Quadro 1: Quadro comparativo entre os tipos de operação urbana em Belo Horizonte
(Art. 66 e art. 69 da Lei n° 7.165/96, alterada pela Lei n° 9.959/10)
8 9
Operação Urbana Simplificada Operação Urbana Consorciada
tratamento urbanístico de áreas públicas; otimização de áreas envolvidas em intervenções
reurbanização; urbanísticas de porte e reciclagem de áreas consideradas
subutilizadas;
dinamização de áreas visando à geração de empregos;
abertura de vias ou melhorias no sistema viário; ampliação e melhoria da Rede Estrutural de Transporte
Público Coletivo;
melhoria e ampliação da infra estrutura e da Rede Viária
Estrutural;
implantação de programa habitacional de interesse social; implantação de Programas de Habitação de Interesse
Social;
implantação de equipamentos públicos; implantação de equipamentos estratégicos para o
desenvolvimento urbano;
recuperação do patrimônio cultural; valorização e criação de patrimônio ambiental, histórico,
proteção ambiental; arquitetônico, cultural e paisagístico;
amenização dos efeitos negativos das ilhas de calor sobre a
qualidade de vida;
regularização de edificações e de usos; regularização de construções, reformas ou ampliações
executadas em desacordo com a legislação vigente;
requalificação de áreas públicas. implantação de espaços públicos.
Fonte: Monteiro, Lívia, com base em BELO HORIZONTE, 2010.
As operações urbanas consorciadas delimitadas no Plano Diretor Municipal são (ver FIG. 1 e 2):
Áreas em Reestruturação no Vetor Norte de Belo Horizonte; entorno de Corredores Viários 96
Prioritários; entorno de Corredores de Transporte Coletivo Prioritários; Áreas Centrais,
indicadas como preferenciais para Operação Urbana nos termos do Plano de Reabilitação do
Hipercentro; áreas localizadas em um raio de 600m das estações de transporte coletivo
existentes ou das que vierem a ser implantadas (BELO HORIZONTE, 2010: art. 69A).
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Figura 1: Áreas para operações urbanas consorciadas
97
Fonte: – Anexo III ‐ Inclui o Anexo IV da Lei 7.165/1996. BELO HORIZONTE, 2010.
Figura 2: Operação urbana consorciada das áreas em reestruturação do vetor norte de belo horizonte
Fonte: – Anexo IV ‐ Inclui o Anexo IV‐A da Lei 7.165/1996. BELO HORIZONTE, 2010
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As demarcações de áreas de operação urbana consorciada indicadas nos anexo III e IV do
PD são preliminares e passíveis de serem alteradas de acordo com estudos específicos,
quando da regulamentação de cada uma delas. São limites submetidos a regras
transitórias, com o intuito de controlar a valorização da terra nos principais setores de
crescimento da cidade para onde esta prevista a aplicação do instrumento por meio,
principalmente, do controle do potencial construtivo atribuído aos terrenos. Dentro das
áreas demarcadas como OUC e nos terrenos limítrofes a elas, o coeficiente de
aproveitamento fica limitado a 1,0 ou a 0,5, exceto para a construção de
empreendimentos públicos ou de comprovado interesse público, os quais, em
determinadas áreas, podem praticar o potencial construtivo original do
macrozoneamento. As áreas dentro destes perímetros não podem receber potencial
construtivo derivado de transferência de direito de construir e a lei também regulamenta
que não pode haver operações urbanas simplificadas nas áreas de operações urbanas
consorciadas, a menos que objetivem viabilizar a construção de empreendimentos
destinados a incrementar a estrutura urbana para a Copa de Futebol FIFA 2014.
A limitação prévia do coeficiente de aproveitamento para as áreas de operação urbana
consorciada é fundamental para a sua viabilidade. Os coeficientes de aproveitamento
praticados em Belo Horizonte são bastante altos em decorrência não só dos próprios
índices, mas também dos descontos atribuídos a áreas de estacionamento, pilotis,
cobertura e uma porcentagem das áreas destinadas à circulação vertical e horizontal,
varandas, caixa d’água, casa de máquinas, dentre outros elementos construtivos.
Dependendo da tipologia da edificação, a soma dos descontos feitos à área computável
98
pode fazer dobrar o coeficiente de aproveitamento regulamentado para o
macrozoneamento. O rebaixamento do potencial construtivo nas áreas de operação
urbana indica maior pertinência em se praticar as premissas de “solo criado” agregadas a
outras ferramentas, com as quais o poder público, por meio de lei específica para cada
OUC, poderá conceder onerosamente o direito de construir, de modo a promover um
maior controle de adensamento e uma distribuição, mesmo que parcial, dos encargos
gerados pelo uso intensivo da terra.
As regras transitórias para as áreas de operação urbana consorciada ainda prevêem a
aplicação de Direito de Preempção sobre todos os lotes nelas incluídos. Este
instrumento, entretanto, não foi regulamentado no município para seu efetivo emprego.
Ressalta‐se ainda que tais regras transitórias sobrepõem‐se a qualquer diretriz legal
menos restritiva dada pelo macrozoneamento ou pelo sobrezoneamento e são soberanas
até que a lei específica da operação urbana seja aprovada. O PD dispõe, entretanto,
diferentes objetivos e regras para os perímetros demarcados para cada OUC.
A Operação Urbana nas Áreas em Reestruturação no Vetor Norte de Belo Horizonte foi
criada, especificamente, com a finalidade de ordenar a ocupação do solo, visando
estruturar nova centralidade no entorno da Cidade Administrativa do Estado de Minas
Gerais (CAMG). Ela é dividida em subáreas que visam organizar o entorno deste grande
equipamento para expansão do uso institucional de interesse público complementar a
suas atividades, ordenar o crescimento urbano na região, ampliar e melhorar a rede
viária estrutural e local, entre outros objetivos.
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As Operações Urbanas Consorciadas das Áreas Centrais, por sua vez, são originárias de
um plano urbano local concluído em 2007. O “Plano de Reabilitação do Hipercentro”10
indicou perímetros que merecem ser requalificados por seu potencial de atendimento
por comércio e serviços, pela sua importância na malha urbana, por seus atributos
culturais e históricos e pela própria quantidade de visitas que recebem cotidianamente.
As operações urbanas consorciadas Corredores Viários Prioritários e Corredores de Transporte
Coletivo Prioritários têm finalidades semelhantes. A Área Central de Belo Horizonte é o núcleo
polarizador das atividades urbanas. A região, projetada para ser o ponto nodal da capital do
estado, congrega atividades tradicionais e modernas, grande diversidade de usos, sedes de
empresas, órgãos públicos e é o principal locus da festa e da cultura da metrópole mineira. Ao
longo dos anos, vários tipos de atividades se instalaram nas vias radiais à Área Central, espaços
alternativos à visibilidade do centro principal por cortarem o território ligando o núcleo
primeiro de Belo Horizonte às periferias e municípios da Região Metropolitana (RMBH).
Os eixos radiais agregam condições que lhes conferem altos preços da terra: são geralmente
áreas com declividades amenas que se destacam em uma cidade com grandes áreas de relevo
acidentado; reúnem identidade histórica como reconhecidos eixos de ligação entre
comunidades; servem ao tráfego de grande quantidade de linhas de transporte coletivo; têm
permissividade legal para a implantação de atividades não residenciais de variados tipos;
possuem coeficientes de aproveitamento do solo predominantemente maiores ou iguais a 1,0;
são atendidos por infra estrutura completa comparativamente à instalada na cidade, além de
receberem obras de manutenção com maior freqüência. 99
A execução de obras de grande porte – em curso em avenidas como Cristiano Machado,
Antônio Carlos e Pedro I, com vistas a qualificar e aumentar a capacidade do sistema de
transporte por meio da implantação do sistema de Bus Rapid Transit (BRT) – apesar de gerar
perda de valor de uso para algumas atividades, agrega valor de troca, sobretudo, aos imóveis
imediatamente lindeiros a estas vias.
As operações urbanas Corredores Viários Prioritários e Corredores de Transporte Coletivo
Prioritários visam, fundamentalmente, organizar os perímetros das áreas adjacentes a
importantes eixos de ligação urbana como expansões qualificadas do centro principal da
cidade, dissipando qualidade de centro regional aos mesmos, promovendo o incremento de
áreas economicamente atraentes a investimentos do setor imobiliário e a atividades
econômicas que possam expandir a função da metrópole em oferecer comércio e serviços. Os
eixos devem ser planejados para servirem à função de morar, incluindo população de baixa
renda, e agregarem intervenções para equilíbrio ambiental, oferecendo áreas verdes e espaços
públicos. A idéia que vem sendo discutida entre a equipe técnica da SMAPU e levada ao
Conselho Municipal de Política Urbana (COMPUR)11 é a qualificação desses percursos para a
formação de unidades territoriais que privilegiem deslocamentos por modos de transporte
coletivo e não motorizados com a finalidade de se criar alternativas que promovam menor uso
do automóvel.
As OUCs demarcadas em torno das estações de transporte coletivo têm muitas das funções
determinadas para as áreas de operações urbanas lindeiras a corredores viários prioritários, até
mesmo por terem, muitas vezes, seus perímetros coincidentes com partes destas. Elas,
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entretanto, agregam com mais força a motivação em se aproveitar espaços subutilizados e
aumentar a capacidade de suporte do solo urbanizado para conter maior adensamento
construtivo e populacional. A idéia em discussão é que o entorno das estações de transporte
coletivo, sobretudo das que servem ou servirão ao sistema de trens, agregue equipamentos de
grande porte e seja local de moradia de uma população que faça uso intensivo de transporte
coletivo e do modo a pé de deslocamento. O objetivo, além maximizar a estrutura de
transporte de massa implantada, é trazer uma população socialmente diversificada para residir
e trabalhar em locais centrais e acessíveis, a partir do alcance dos objetivos definidos no artigo
69‐M da Lei n° 7.165/96 (BELO HORIZONTE, 2010).
Art. 69‐M ‐ A Operação Urbana nas áreas localizadas em um raio de 600 m (seiscentos metros) das
estações de transporte coletivo tem as seguintes finalidades:
I ‐ permitir a implantação de equipamentos estratégicos para o desenvolvimento urbano e para o sistema
de transporte;
II ‐ ampliar e melhorar a rede viária local, melhorando o acesso às estações;
III ‐ otimizar as áreas envolvidas em intervenções urbanísticas de porte e proporcionar a reciclagem de
áreas consideradas subutilizadas;
IV ‐ rever os adensamentos, dada a maior capacidade de suporte do sistema de transporte.
As áreas definidas para operações urbanas consorciadas no Plano Diretor recebem regras
especiais, como afirmado anteriormente, que podem ser revisadas quando elaborado plano
específico para formatação do texto legal que lhe dará viabilidade e regerá seu funcionamento.
Baseado no conteúdo do Estatuto da Cidade, o § 4° do artigo 69 da Lei n° 7.165/96 (BELO 100
HORIZONTE, 2010), regulamenta:
§ 4º ‐ A lei específica que aprovar ou regulamentar a Operação Urbana Consorciada deverá conter, no
mínimo:
I ‐ a definição da área a ser atingida;
II ‐ o programa básico de ocupação da área;
III ‐ o programa de atendimento econômico e social para a população diretamente afetada pela Operação;
IV ‐ as finalidades da Operação;
V ‐ o estudo prévio de impacto de vizinhança;
VI ‐ a contrapartida a ser exigida dos proprietários, usuários permanentes e investidores privados, nos
termos do disposto no inciso VI do art. 33 da Lei nº 10.257/01;
VII ‐ a forma de controle da Operação, obrigatoriamente compartilhado com representação da sociedade
civil.
Especificamente sobre o Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV), citado no inciso V do § 4° do
artigo 69 do PD, acima referenciado, Belo Horizonte regulamentou um sistema bastante
particular para desenvolvimento e avaliação, o qual serve à concepção das operações urbanas
consorciadas de uma forma especial, como será retratado com o caso da Operação Urbana
Consorciada Estação Barreiro e Adjacências.
As alterações ao Plano Diretor trouxeram a incorporação do instrumento como ferramenta
para análise de empreendimentos considerados potencialmente geradores de impactos
preponderantemente urbanísticos, seja pelo porte das edificações ou pelas atividades que
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12
desempenham . O EIV foi regulamentado pelos artigos 74‐A a 74‐E da LPOUS e pelo Decreto
n° 14.479 em 13 de julho de 2011, alterado pelo Decreto n° 14.594 em 30 de setembro do
mesmo ano. O segundo decreto manteve as disposições do primeiro, mas foi necessário para
adequar a tramitação e desenvolvimento dos processos de licenciamento urbanístico especial à
criação da Comissão de Interface para Orientação e Acompanhamento do Processo de
Licenciamento de Empreendimentos de Impacto13.
A regulamentação do EIV14 no município imprimiu ao COMPUR uma importância ainda maior
do que a que apresentava antes da promulgação da alteração das normas urbanísticas em
2010. As operações urbanas ou os empreendimentos que possuem a obrigatoriedade de
desenvolverem este estudo para sua implantação, construção, ampliação ou funcionamento
devem passar por reuniões públicas do Conselho, pelo menos, duas vezes, salvo alguns casos
para os quais os conselheiros deliberaram que sua Gerência Executiva deve levar para
apreciação em plenária apenas a decisão de diretrizes.
A operação urbana consorciada disposta em torno da Estação de Integração do BHBUS
Barreiro, localizada na Avenida Afonso Vaz de Melo no bairro Barreiro de Baixo, denominada
Operação Urbana Consorciada Estação Barreiro e Adjacências (OUC‐EBA) e discutida a seguir, é
a primeira operação a ser desenvolvida sob os novos preceitos legais. A construção desta
operação, ainda em curso, deve ser levada à comunidade acadêmica e descrita a maior parte
da população para debates e aperfeiçoamento. Provavelmente será a partir de sua
metodologia, com revisões e adequações, que as demais operações urbanas consorciadas, de
porte muito maior, deverão ser formuladas pelo poder público municipal. 101
3 A OPERAÇÃO URBANA CONSORCIADA ESTAÇÃO BARREIRO E ADJACÊNCIAS (OUC‐EBA)
Belo Horizonte, diferentemente de outras capitais como Curitiba, Rio de Janeiro e São
Paulo, considerou que o fato do Estatuto da Cidade e do Plano Diretor municipal exigirem
estudo de impacto de vizinhança prévio para as operações urbanas, cria a obrigação de
desenvolvê‐lo para a concepção do Projeto de Lei referente à OUC a ser regulamentada. As
outras capitais, conforme pesquisado, procedem, na maioria das vezes, a realização do
estudo de impacto de vizinhança ou estudo de impacto ambiental anteriormente à
implementação da operação, mas depois que a lei que a rege foi aprovada pela Câmara
Municipal.
Entendeu‐se que o EIV deve ser o instrumento básico para que a operação urbana
consorciada adquira seu equilíbrio urbanístico e econômico‐financeiro. É por meio desta
ferramenta que se buscará desenvolver diagnóstico sobre a região abrangida pela operação
de modo a: avaliar a capacidade de suporte ao adensamento construtivo e populacional da
área; dimensionar as áreas verdes, espaços públicos e equipamentos urbanos e
comunitários; decidir sobre intervenções estruturadoras do espaço e priorizar obras;
formular novos desenhos urbanos; conceber regras e padrões de parcelamento, ocupação
e uso do solo que incidam especificamente sobre a área delimitada para a operação;
apurar informações sobre a dinâmica imobiliária e o valor da terra; estabelecer as formas
de contrapartida, entre outras condições para qualificação do espaço e solução de
problemas nele diagnosticados.
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O EIV é o instrumento que garantirá o equilíbrio da operação dentro da área que abrange e
para seu entorno. Parte‐se da premissa que um plano urbanístico com a complexidade de uma
OUC só pode existir se forem previamente equacionados os impactos negativos que as
alterações espaciais que promova possam ocasionar e potencializados os impactos positivos a
ordenarem o desenvolvimento do território. As diretrizes, normas legais e obras intrínsecas às
operações devem ser escolhidas como medidas mitigadoras dos problemas e possíveis
impactos negativos e potencializadoras das vocações e qualidades locacionais, a partir do
equacionamento de repercussões identificadas por meio da análise de conflitos, escopo do
estudo de impacto de vizinhança para operações urbanas consorciadas.
A metodologia para elaboração da Operação Urbana Consorciada Estação Barreiro e
Adjacências foi proposta com os princípios enunciados. O contexto de formatação desta
operação incluía fatores como a vontade da SMAPU em desenvolver um estudo piloto onde
poderia aplicar as discussões feitas acerca dos novos instrumentos de política urbana, antes de
ter que regulamentar as grandes operações previstas para os corredores viários principais da
cidade, e a pressão que os proprietários de terra no Barreiro faziam para terem direito aos
coeficientes do macrozoneamento original da área, predominantemente classificada como
Zona Central do Barreiro (ZCBA) e Zona de Adensamento Preferencial (ZAP).
A Secretaria Municipal Adjunta de Planejamento Urbano organizou uma metodologia para
desenvolvimento da OUC‐EBA baseada, fundamentalmente, em dois estudos: o Estudo de
Impacto de Vizinhança e o Estudo de Viabilidade Econômico‐financeira (EVEF).
O EIV foi formatado pelo levantamento das características da região, especificando‐se os 102
pontos positivos e as deficiências identificados entre os diversos elementos e dinâmicas que a
compõem. A primeira constatação da equipe foi a necessidade de revisão do perímetro da
operação, ajustando o limite legal, contido no Plano Diretor, a uma área de abrangência com
real adequação às funções que a OUC deveria agregar para requalificação do espaço e
aplicação dos fundamentos que a originou. O novo perímetro, ampliado em relação ao limite
original, foi definido com base em limites administrativos, barreiras topográficas, áreas
industriais e outras características do tecido local adequadas à intenção desta operação em
ampliar o aproveitamento da estrutura urbana em torno da estação de transporte coletivo e
incrementar a importância do lugar como centro regional.
Foram feitas consultas a dados secundários, sobretudo ao Censo Demográfico, para a
caracterização da realidade econômica e social. A dimensão relativamente pequena da área
abrangida pela OUC, aproximadamente, 1,34 Km², permitiu que a equipe técnica a percorresse
facilmente, afim de: reconhecer todas as áreas verdes disponíveis e verificar a condição da
arborização; qualificar os espaços públicos; caracterizar as tipologias construtivas em seu porte
e padrão; levantar e caracterizar os grandes equipamentos da região; hierarquizar o conjunto
de atividades não residenciais internamente e em relação à cidade; avaliar as alternativas de
trânsito e transportes e de estacionamentos da região; aferir o valor do solo e conhecer a
dinâmica imobiliária; estudar a qualidade da infra estrutura, além de elaborar diagnóstico
concernente a outros temas. O debate constante da equipe sobre as observações feitas em
campo cuidava que fossem enumerados criteriosamente os conflitos de uso, ocupação e
apropriação do espaço.
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Conforme o EIV, a região pode ser dividida em pelo menos cinco subáreas em decorrência de
suas características sociais, econômicas, de organização territorial e de uso e ocupação do solo,
assim sintetizadas:
Subárea 1: definida a leste ao longo do corredor da Avenida Olinto Meireles, a qual possui fábrica da
Vallourec e Mannesmann Tubes de um lado e a outra margem com imóveis subutilizados ou ocupados por
atividades que geram menor movimento de pessoas como concessionárias, oficinas mecânicas,
marmorarias, etc;
Subárea 2: formada à norte e oeste pelos bairros Santa Margarida e Átila de Paiva, onde reside uma
população de baixo a médio poder aquisitivo. A área, separada do centro principal do Barreiro pela linha
férrea, apresenta predominância de residências unifamiliares, muitas delas, inseridas em lotes menores
que 300m² com alta taxa de ocupação. É provável que a conclusão das obras na avenida Tereza Cristina
seja acompanhada da valorização imobiliária do local.
Subárea 3: faixa de grandes equipamentos de abrangência intermediária e regional situada paralelamente
à linha de trem: instituição da rede Pitágoras; um grande atacadista; campus da Pontifícia Universidade
Católica (PUC‐Minas); batalhão da Polícia Militar; estação de transporte coletivo e Shopping Center;
Restaurante Popular; Hipermercado; Campus da UNA, entre outras atividades;
Subárea 4: determinada como a porção centro‐oeste e sul do perímetro da operação urbana. Esta é a área
onde os imóveis são mais qualificados e predominam residências de melhor condição construtiva,
comparativamente à região, e alguns edifícios multifamiliares;
Subárea 5: localizada a centro‐leste e ao longo da avenida Sinfrônio Brochado, onde concentram‐se
atividades de comércio e serviços locais e intermediários que recebem maior visitação cotidiana de
pessoas. Este espaço é o que mais sofre com o intenso tráfego de passagem, más condições dos passeios,
mobiliário urbano disposto de forma inadequada, poluição visual, entre outros problemas. Nesta área
encontram‐se edifícios de maior porte, com mais de 10 andares.
103
Todo o perímetro estudado é carente de áreas de lazer e equipamentos culturais e as
poucas áreas verdes existentes são pequenas e mal estruturadas. Faltam salas de cinema,
teatros e outros equipamentos que valorizem a memória da região.
O tráfego de veículos possui conflitos em decorrência das principais avenidas servirem
bastante ao tráfego de passagem, tanto de veículos particulares quanto de linhas de
transporte coletivo municipais e metropolitanas. Este aspecto deverá ser alterado com a
finalização das obras da avenida Tereza Cristina. Este elo de ligação da capital com os
municípios a sul possui problemas de capacidade e interrupções que serão,
provavelmente, equacionados com a conclusão das obras. Convém ressaltar que, embora
a quantidade de itinerários de transporte coletivo cause conflitos no tráfego, traz
também movimento e visitas à região e, portanto, sua rearticulação deve ser tratada com
cautela. Ainda sobre as questões de mobilidade ressalta‐se que a área deverá receber a
Linha 2 do metrô, que facilitará a ligação da região ao centro da cidade.
Verificou‐se que a área demarcada para operação tem a possibilidade de tornar‐se um
centro regional qualificado. A constituição do bairro Barreiro de Baixo antecedeu a
construção da capital mineira e o local, historicamente, atende demandas de um entorno
carente em termos do atendimento às necessidades da população que abriga. A área,
que sempre foi polarizadora de sua vizinhança pela própria carência de serviços urbanos
nela observada, passa, atualmente, por um processo de aumento real da capacidade de
atendimento ao modo de vida urbano em muitos aspectos.
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A região do Bairro Barreiro de Baixo congrega, predominantemente, atividades de cunho local
– como mercearias, farmácias, salões de beleza, entre outras – e de função intermediária –
como lojas de cama, mesa e banho, supermercados, consultórios médicos e odontológicos,
entre outras. A região, entretanto vem recebendo atividades de maior porte e especialização,
que servem a um raio de abrangência cada vez maior. A própria estação de integração de
transporte coletivo interligada ao shopping center é um exemplo. A construção de um campus
da PUC‐Minas, bem como de unidades de ensino da rede Pitágoras e do Centro Universitário
UNA, têm atraído mais pessoas e aumentado o poder de polarização da área. No perímetro
estudado, surgiram, ao longo dos últimos anos, cartório, atividades forenses, clínicas, agências
bancárias, entre outros ramos mais qualificados de comércio e serviço.
O diagnóstico apontou, entretanto, que, mesmo com novos empreendimentos, ainda
predomina baixa utilização do solo comparativamente ao potencial construtivo legal vigente
até 2010. São poucos os lotes vagos, mas a região dispõe de grande possibilidade de
substituição de edificações, pois os imóveis são predominantemente horizontais. Os estudos
concluíram que, caso tivessem sido consolidadas na área alterações na dinâmica imobiliária
que explorassem os coeficientes permitidos para os macrozoneamentos predominantes – ZCBA
e ZAP, com os parâmetros construtivos legais, determinados lote a lote, sem uma
reestruturação da infra estrutura local – teria se configurado uma situação de saturação de
difícil solução.
O estudo de viabilidade econômico‐financeira, parcialmente incorporado ao EIV,
considerou os preços dos terrenos, tomando como bases principais o Imposto Predial e 104
Territorial Urbano (IPTU) e o Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis por Ato
Oneroso Inter Vivos (ITBI). Foram também realizadas pesquisas com corretores
imobiliários na área, que informaram altos valores no preço do metro quadrado
construído, sobretudo na porção do centro intermediário, onde os valores imobiliários
podem ser comparados aos praticados na Área Central de Belo Horizonte. Os corretores
apontaram preços que chegavam a R$7.000,00 /m2. Verificou‐se, ainda, altos preços das
“luvas” pagas pelos pontos comerciais. As pesquisas organizadas no EVEF demonstraram
também, por outro lado, a baixa dinâmica imobiliária da região, sendo os edifícios que
exploraram o coeficiente de aproveitamento do zoneamento aqueles construídos antes
da promulgação da lei de 1996 e alguns poucos que surgiram recentemente a sul da área
demarcada para OUC, os quais aproveitaram o potencial construtivo dos quarteirões
classificados como ZAP. As principais carências de produtos imobiliários são prédios de
salas, apartamentos pequenos – um ou dois quartos – hotéis e outras alternativas
comerciais.
Os estudos técnicos foram complementados por pesquisa de percepção ambiental. A
metodologia contemplou a aplicação de questionários a pessoas residentes e
trabalhadoras na área e entrevistas com informantes qualificados: lideranças
comunitárias e religiosas, empresários que atuam na região, diretores de instituições de
ensino, entre outros atores. As opiniões são, obviamente, diversas, mas a população
demonstra que gosta de residir ou trabalhar no Barreiro, ressaltam problemas como
intenso tráfego de veículos e violência e exaltam as características da região como um
núcleo comercial “quase independente do centro principal de Belo Horizonte”.
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A caracterização da operação urbana para início do processo de Estudo de Impacto de
Vizinhança provocou um primeiro momento de debate público sobre o assunto. O tema
foi levado para a 168° Reunião Ordinária do COMPUR, ocorrida em 15 de dezembro de
201115. Na ocasião, o presidente do Conselho, também Secretário de Desenvolvimento
Urbano, Marcello Faulhaber e a Vice Presidente do Conselho, também Secretária
Municipal Adjunta de Planejamento Urbano, Gina Rende, apresentaram os primeiros
resultados do diagnóstico acerca da área pesquisada, bem como as principais premissas
que regeriam o plano de adensamento e o plano de obras e intervenções da operação
urbana.
Os Conselheiros e demais presentes tiveram a oportunidade de tirarem suas dúvidas quanto
aos objetivos e a aplicação do instrumento. A reunião foi tomada, principalmente, pelo
discurso de um grupo de proprietários de terreno e empresários locais. Eles concordavam com
a avaliação sobre as carências e problemas que a área possuía e que a verticalização
desacompanhada da qualificação da estrutura urbana poderia ocasionar piora à região. Seus
depoimentos em prol da liberação da área da restrição causada pela demarcação da OUC‐EBA
pelo Plano Diretor, entretanto, convergiam para argumentos tais como: o rebaixamento do
coeficiente causa prejuízo a comerciantes e contribuintes, que exigem uma “solução” rápida a
este problema; a adoção de coeficiente 1,0 “atrapalha” a dinâmica imobiliária; o dinheiro pago
por cada empresário para a obtenção de potencial construtivo é insignificante para a Prefeitura
e bastante impactante para o investidor da região, entre outras falas que demonstraram a
crença de que o Executivo estaria “banindo um direito” àquela população.
105
As discussões da equipe técnica decorrentes do diagnóstico e do contato com a
população avançaram para o cruzamento de dados setoriais e a pontuação de conflitos e
potencialidades existentes na área. A equação dos impactos e características levantadas
deu origem ao que se chamou de Plano Urbanístico da operação urbana que sintetiza um
“plano de intervenções” e um “plano de adensamento” elaborados para a área.
É interessante observar que o Plano Urbanístico foi consolidado como uma ação de
planejamento local que apontou para a região estudada unidades de vizinhança
específicas quanto ao padrão de urbanização com funções determinadas e
complementares entre si. A OUC‐EBA ganhou um formato muito semelhante a um plano
local, para o qual foram propostos parâmetros urbanísticos e foram elencadas
intervenções específicas. A conformação deste plano como uma operação urbana
consorciada, entretanto, avançou em comparação a outros planos locais desenvolvidos
em Belo Horizonte por esclarecer a priorização das obras, dimensionar seus impactos e
formatar os meios pelos quais serão financiadas.
O plano de intervenções contemplou, fundamentalmente, um conjunto de ações para
qualificação ambiental da área, alterações no sistema de mobilidade, qualificação das
principais centralidades, implantação de equipamentos urbanos e comunitários e
produção de habitação de interesse social. As intervenções urbanísticas e ambientais têm
como princípio servir à solução de problemas diagnosticados e preparar a região para
aumentar a capacidade de suporte para receber adensamento construtivo e
populacional, premissas de áreas em torno de estações de transporte coletivo destinadas
a operações urbanas, como explicitado.
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As intervenções de cunho ambiental prevêem o resgate e a criação de áreas verdes
públicas contemplando medidas como: a melhoria da arborização e das praças; criação
de uma praça com equipamento cultural na área da antiga estação de trem;
implementação de um complexo esportivo junto à pedreira desativada; construção de
uma praça central próxima à estação de transporte coletivo; requalificação da praça
contígua à PUC‐Minas e dotação de espaço público de lazer adjacente ao clube existente
em terreno municipal.
A qualificação do sistema de mobilidade e a valorização das áreas comerciais abrangem
ações como: melhoria da infra estrutura das vias, com a solução de pontos de
estrangulamento, sobretudo nas avenidas principais; adequação dos sentidos de fluxo do
tráfego; revisão do sistema de drenagem disposto nos logradouros; melhoria da iluminação
pública; adoção de medidas de desenho urbano que privilegiem o transporte coletivo e o
modo não motorizado de circulação – ciclistas e pedestres. Convém ressaltar que as
intervenções no sistema de mobilidade também buscam preparar a região para as
alterações do tráfego que serão decorrentes da finalização das obras da avenida Tereza
Cristina. Um terminal de embarque e desembarque de linhas metropolitanas foi proposto
para o bairro Santa Margarida com a finalidade de organizar o fluxo intermunicipal,
retirando itinerários da Área Central do Barreiro. Devem ser mantidas as linhas municipais
neste local. Há a previsão de intervenções no viaduto existente junto à avenida citada para
melhorar o fluxo dos movimentos que recebe e para viabilizar uma ligação mais adequada
e ágil entre a Estação Barreiro e a Estação Diamante, parada de transporte coletivo situada
mais a sul da Região Administrativa Barreiro.
106
A implantação de equipamentos públicos está prevista para ampliar o atendimento da rede
existente à medida que o adensamento populacional ocorrer. Estão planejadas unidades
municipais de ensino infantil (UMEI), escola de ensino médio, centro de saúde e uma sede mais
adequada para a administração regional, que deverá ter central de atendimento a munícipes
com mais funções integradas. A operação urbana prevê, também, a produção de 1000
unidades habitacionais destinadas a famílias com renda entre 0 a 3 salários mínimos.
Os projetos e obras necessários à implantação das intervenções foram preliminarmente
orçados levando‐se em conta valores praticados em obras de instalação de infra estrutura e
equipamentos urbanos e comunitários pelos órgãos municipais competentes16. Apesar de se
ter a certeza de que estes valores serão alterados com a formulação de projetos básicos e
executivos, é importante verificar o montante financeiro a ser gasto para constatar a
viabilidade e o equilíbrio econômico da operação. As intervenções foram priorizadas em quatro
cenários de adesão à operação urbana que coincidem com o depósito de contrapartidas
equivalentes a, aproximadamente, 25%, 50%, 75% e 100% do valor médio considerado para
arrecadação com a venda de potencial construtivo por meio de Outorga Onerosa do Direito de
Construir (OODC).
Pode‐se dizer que as intervenções contidas dentro do primeiro cenário construído são aquelas
essenciais para a o aumento da capacidade de suporte da região e requalificação de centros e
centralidades. A segunda fase contempla obras necessárias à complementação da estrutura
urbana e o aumento da capacidade de suporte para adequar a região à maior venda de
potencial construtivo. Nesta fase, há expansão dos perímetros requalificados. As obras
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referentes à terceira etapa contemplam a conclusão de alguns eixos de intervenção em um
cenário em que se concretiza um adensamento populacional e construtivo aproximado da
conclusão da operação. A última etapa abarca obras para finalização do Plano Urbanístico.
O plano de adensamento, por sua vez, foi consolidado com vistas a dotar cada subárea de
potencial construtivo e de densidade populacional compatíveis com a qualidade de estrutura
urbana existente e com a possibilidade de aumento da capacidade de suporte da região,
produzida pelas intervenções do Plano Urbanístico. Foi organizado com base em três
classificações diferenciadas pela densidade construtiva e padrões de urbanização que devem
ser atribuídas às quadras ou partes de quadras.
A equipe entendeu que a proposição de uma operação urbana deve trabalhar para quebrar a
lógica de construção lote a lote como condição para promover uma reestruturação qualificada
da área. Este é um desafio na região central do Barreiro onde as seqüências de lotes, quase
sempre, são compostas por diversos proprietários. Sob o raciocínio do arquiteto colombiano
Augusto Carrillo, funcionário do Departamento Nacional de Planeación da Colômbia,
Montandon e Souza (2007, p: 128) afirmam:
É preciso romper o modelo de produção da cidade prédio por prédio, lote por lote, para se realizar um
manejo do solo urbano mais adequado às questões ambientais e à paisagem, que garanta o exercício da
função social e ecológica da propriedade.
A equipe da SMAPU elaborou lógica de adensamento baseada no agrupamento de lotes,
o que pode ser considerado um avanço na aplicação do princípio de Carrillo, mesmo que
se tenha a consciência de que práticas mais eficientes deverão ser desenvolvidas neste 107
sentido. Os graus de adensamento possuem uma escala de potencial construtivo
admitido que varia de acordo com a área dos terrenos. Os terrenos que possuem até
360m² não estão habilitados a comprar coeficiente de aproveitamento. Os índices de
aproveitamento construtivo aumentam para terrenos com dimensões maiores que 360m²
e menores que 2.160m² e é admitida a aplicação dos coeficientes de maior valor aos
terrenos com área superior a 2.160m²17.
Esta alternativa foi acrescida de exigências em busca de um modelo construtivo que
pressupõe a concentração de potencial de edificabilidade em parte do terreno com a
finalidade de proporcionar liberação de espaço para uso público que possibilite encontro,
estar, lazer e atividades urbanas compatíveis com o centro.
A operação define taxa de ocupação18, que varia de acordo com o tamanho dos terrenos
nos quais for realizado o empreendimento. Os beneficiários pela maior utilização de
potencial construtivo devem cumprir taxa de permeabilidade vegetada em terreno
natural e construir caixa de captação de água pluvial, com vistas a melhorar a qualidade
ambiental e paisagística e conter a sobrecarga do sistema de drenagem urbana 19. A
proposta de qualificação urbanística é incrementada pela exigência de implantação de
uma faixa livre de uso público interna a todos os terrenos que aderirem à operação
urbana consorciada, com largura mínima de seis metros. Esta faixa busca garantir a
permeabilidade visual e de transito entre os terrenos. Estas devem passeio voltado ao
livre fluxo de pedestres e pode ter área destinada à instalação de mobiliário urbano,
acesso de veículos às edificações ou ampliação das atividades econômicas para o
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logradouro. Também, as regras da lei de uso e ocupação do solo referentes à altura na
divisa e à relação entre afastamento lateral e de fundos e altura dos edifícios podem ser
flexibilizadas, chegando‐se à construção sobre até 50% da extensão das divisas entre os
lotes.
A Tabela 1 é parte do quadro do Relatório de Estudo de Impacto de Vizinhança da OUC‐
EBA, que contém os parâmetros urbanísticos que subsidia o Parecer de Licenciamento
Urbanístico desta operação e, portanto, embasa a concepção do Projeto de Lei que a
regulamentará.
Tabela 1: Parâmetros Urbanísticos – OUC‐EBA
A) Coeficiente de Área do terreno <= Área do terreno < Área do terreno <
Grau de adensamento
Aproveitamento: 360 m² 360m² <= 2.160m² 2.160m²
G1 2,0 3,0
G2 1,0 3,0 4,0
G2 4,0 5,0
B) Área permeável: Área do terreno <= Área do terreno < Área do terreno <
Grau de adensamento 360m² <= 2.160m²
360 m² 2.160m²
G1, G2 e G3 10% 20% 25%
C) Caixa de Captação Dimensionamento compatível com a retenção de água para amortecimento do escoamento para o
sistema de drenagem pública, calculada para cada caso.
D) Taxa de ocupação Grau de adensamento Área do terreno <= Área do terreno < Área do terreno <
360 m² 360m² <= 2.160m² 2.160m²
G1, G2 e G3 80% 60% 50%
20
Fonte: Monteiro, Lívia com base em Diário Oficial do Município (DOM) , alterado após a 172° Reunião Ordinária do COMPUR,
ocorrida em 26 de abril de 2012 .
108
Esta OUC deverá ser monitorada pela SMAPU que subsidiará tecnicamente as ações do
Grupo Gestor desta operação. O grupo citado deverá ser formado por representantes do
Executivo e da sociedade e terá entre suas atribuições: escolher dentre as etapas de
prioridades das obras aquelas que deverão se executadas primeiro; publicizar os efeitos da
operação urbana; coordenar a elaboração do Programa de Atendimento Econômico e
Social à População Diretamente Afetada pela Operação Urbana; gerir o fundo financeiro
próprio configurado para esta operação. Este grupo será responsável, também, pela
aprovação da implantação das edificações, zelando pela interligação das áreas livres de uso
público, visibilidade das áreas verdes, composição paisagística, entre outros fatores.
A OUC‐EBA será a primeira experiência do município na utilização da outorga onerosa do
direito de construir como contrapartida ao aumento do potencial construtivo. Há na fórmula,
além de fatores que condicionam o preço da contrapartida aos valores de coeficiente de
aproveitamento básico, coeficiente aproveitamento máximo e área do terreno, outros fatores
que amenizam o preço final pelo coeficiente construtivo adicionado. Estes servem para
incentivar a diversidade de usos, obras de interesse público – como equipamentos urbanos e
comunitários e habitações de interesse social – bem como para estimular a instalação de
mecanismos que confiram conceitos de sustentabilidade aos edifícios. Além destes fatores,
deverá ser facultado que a contrapartida seja paga ou tenha seu valor amortecido pela
transferência de imóveis ao poder público e pela execução de obras previstas no Plano
Urbanístico. A forma de pagamento da contrapartida deverá ser determinada pelo Grupo
Gestor desta operação.
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O Executivo deverá concluir o Projeto de Lei em regulamentação à OUC‐EBA, detalhando as
premissas aprovadas pelo Conselho para a operação, muitas delas, parte do processo de EIV,
trazidas para discussão neste texto.
4 CONCLUSÕES PRELIMINARES SOBRE DE UM RECOMEÇO
É inegável o efeito perverso, ou a própria “falta de efeito”, que operações urbanas formatadas
em Belo Horizonte e São Paulo, casos mais conhecidos pela autora, provocaram. As pesquisas
em curso, sobretudo a partir da análise dos trabalhos de Fix (2003, 2007) e Cota (2010)
demonstram a utilização do instrumento para benefício do setor privado com a exploração do
espaço urbano. O conhecimento das experiências urbanísticas pelo olhar das autoras
demonstra a força do setor imobiliário em inverter as situações de crescimento urbano a seu
favor e colocar o poder público para atuar como seu parceiro, fazendo concessões e obras que
corroboram muito para os ganhos privados e pouco para a coletividade.
O instrumento provocou, sobretudo na capital paulista, onde abrangeu áreas de maior
amplitude, substituição descontrolada do tecido urbano, geração de mais valia fundiária sem
correspondente divisão das cargas e benefício pela utilização intensiva do solo e concentração
de intervenções em pontos específicos da cidade, onde o capital privado demandou
intervenção estatal. As operações foram feitas de uma forma excludente em que o próprio
mercado tinha autonomia para negociar com a população dos aglomerados urbanos e pouco
foi planejado para que estas comunidades permanecessem no perímetro de aplicação do 109
instrumento. As pesquisas de Fix (2003, 2007) relatam a destituição da favela Água Espraiada e
o torturante deslocamento da população em situação de vulnerabilidade social, com ínfimas
indenizações, para abrigos e outras favelas.
Sem acreditar que as operações urbanas são a “salvação” do planejamento e da gestão do solo
da cidade, compartilha‐se da idéia de Montandon (2009) de que o instrumento não deve ser
completamente refutado pelas experiências mal constituídas. Pode‐se encontrar uma via
possível para a construção de estratégias para implantação de projetos urbanos e de
“mediação da participação privada nestes projetos, pautando‐se no controle público, nas
melhorias sociais e na equidade no desenvolvimento urbano” (MONTANDON, 2009, p: 236).
A investigação das operações urbanas consorciadas como mecanismos de planejamento
urbano demonstram algumas possibilidades para planejamento e gestão do solo em sua
função social: “Nota‐se o alinhamento do instrumento operações urbanas a uma estratégia de
atuação urbanística voltada à obtenção de resultados relevantes em áreas de transformação
prioritária estabelecidas no Plano Diretor e a partir da gestão integrada das intervenções no
território” (MONTANDON, 2009, p: 12).
Pela experiência inicial obtida com a elaboração da Operação Urbana Consorciada Estação
Barreiro e Adjacências, foi possível reconhecer que a concepção deste instrumento é uma
imbricada articulação entre ferramentas de política urbana, vários elementos especiais para
definição de parâmetros urbanísticos, reconhecimento profundo das deficiências e
potencialidades do território para elenco de obras pertinentes ao seu desenvolvimento e
utilização de mecanismos para financiar as melhorias no sistema urbano. O estudo de impacto
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de vizinhança, sob o formato constituído para esta operação, foi instrumento fundamental para
análise do equilíbrio urbanístico e financeiro da aplicação da OUC neste centro em
desenvolvimento.
Os desafios para a concepção das operações urbanas de maior porte no município são os mais
diversos, mas na OUC‐EBA pôde‐se explorar o instrumento como um “plano diretor local
estratégico” promotor de intervenções estruturantes, determinador de parâmetros
urbanísticos compatíveis com a realidade da região, indutor de melhorias sociais e distribuidor,
mesmo que parcial, dos custos derivados da mais valia provocada pelo solo criado. A operação
concebida para a área institui mecanismos para incremento do centro urbano com a
preocupação de trazer população para as áreas onde a infra estrutura, já diferenciada, receberá
melhorias pelas intervenções a serem implantadas. As premissas aprovadas para esta operação
ainda serão formalizadas em um projeto de lei que lhes dêem condições reais de
implementação, definindo regras claras para a gestão cotidiana do instrumento.
O que se reflete do que “ainda se deve fazer” é, principalmente, uma aplicação mais sistêmica
dos demais instrumentos de política urbana. A captura da agregação de valor à terra urbana
ainda é parcial nas áreas de operação urbana consorciada. A mensuração dos ganhos
imobiliários produzidos a partir do mecanismo do solo criado proporciona a cobrança pelo uso
intensivo do potencial construtivo, mas não são cobrados os valores agregados à propriedade
pelas benfeitorias físicas como se faz no Land Reajustment, sob suas variações vigentes, por
exemplo, no Japão e na Colômbia (MONTANDON, 2010, p: 85). A contribuição de melhoria
permanece inutilizada nas leis orgânicas municipais. Também não se explorou ainda a geração 110
de divisas derivadas da participação na alteração de usos (MONTANDON, 2010, p: 123).
Os instrumentos de política urbana contidos no Estatuto da Cidade transpostos para o Plano
Diretor de Belo Horizonte adquirem pouca efetividade, pelo menos por enquanto, em sua
aplicação na cidade e, obviamente, também nas áreas de OUC, seja por estarem sem
regulamentação ou pelo caráter facultativo que possuem.
A legislação do município coloca regras claras para se considerar um imóvel como vazio ou
subutilizado. O inciso II do artigo 74‐D do PD estabelece, sinteticamente, que imóvel
subutilizado é aquele que usa menos que 15% do potencial construtivo básico admitido pelo
macrozoneamento e não possui atividade que necessite da utilização do terreno por sua
natureza. A aplicação dos instrumentos de parcelamento, edificação e ocupação compulsórios
demora para ganhar efetividade no cumprimento da função social da propriedade, entretanto.
Instrumentos como o consórcio urbanístico e o convênio urbanístico de interesse social
possuem um caráter facultativo, limitando a atuação do poder público. A concessão
urbanística, por sua vez, que seria um instrumento de caráter mais compulsório com
semelhanças a algumas ações dentro do Land Reajustment, deve ser regulamentada para sua
implementação.
Enfim, há muitas outras possibilidades de aplicação de instrumentos de política urbana dentro
do âmbito das operações urbanas consorciadas que lhes proporcionem maior controle do solo
urbano, repartição dos custos decorrentes dos processos de uso intensivo da terra e
valorização pela implantação de obras. Belo Horizonte está recomeçando.
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5 REFERÊNCIAS
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Disponível em: www.cmbh.mg.gov.br. Acessado em 20 de fevereiro de 2012.
BELO HORIZONTE (MG). Lei n.º. 7166. 27 ago. 1996: Estabelece normas e condições para parcelamento, ocupação e
uso do solo no município de Belo Horizonte, consolidada com as alterações feitas pela Lei n. 8.137, de 21 de dez.
de 2000. Belo Horizonte, 2000b. Disponível em: www.cmbh.mg.gov.br. Acessado em 20 de fevereiro de 2012.
BELO HORIZONTE. (MG). Leis nº 7.165 e nº 7.166, ambas de 27 de agosto de 1996, consolidada com as alterações
feitas pela Lei n. 9.959, de 20 de jul. de 2010. Belo Horizonte, 2010.Disponível em: www.cmbh.mg.gov.br.
Acessado em 20 de fevereiro de 2012.
BELO HORIZONTE (MG). Prefeitura Municipal. Plano Diretor de Belo Horizonte: lei de uso e ocupação do solo,
estudos básicos. Belo Horizonte: São João, 1995.
CALDAS, Maria Fernandes; MENDONÇA, Jupira Gomes de; CARMO, Lelio Nogueira do. Estudos urbanos: Belo
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Biblioteca Pública Infantil e Juvenil de BH, 2008.
COTA, Daniela Abritta. A parceria público‐privada na política urbana brasileira recente : reflexões a partir da análise
das operações urbanas em Belo Horizonte. Tese (Doutorado) – Instituto de Geociências da Universidade Federal
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FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia de Moraes. Direito urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo
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FIX, Mariana. Parceiros da exclusão: duas histórias da construção de uma 'nova cidade' em São Paulo : Faria Lima e
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FIX, Mariana. São Paulo cidade global: fundamentos financeiros de uma miragem. 1a. ed. São Paulo: Boitempo
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MONTANDON, Daniel Todtmann. Operações urbanas em São Paulo: da negociação financeira ao compartilhamento
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MONTANDON, Daniel Todtmann (Coord.). Seminário internacional instrumentos urbanísticos de gestão da
valorização da terra e de indução do desenvolvimento urbano: um diálogo Brasil – Japão‐ Colômbia. Brasília:
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MONTANDON, Daniel Todtmann; SOUZA, Felipe Francisco de. Land readjustment e operações urbanas consorciadas.
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MONTEIRO, Lívia de Oliveira. Meio urbano, suas vocações e suas regras: atividade terciárias e instrumentos de
organização em busca do desenvolvimento do território de Belo Horizonte. Dissertação (mestrado) – Escola de
Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte: edição do autor, 2007.
OLBERTZ, Karlin. Operação urbana consorciada. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2011.
6 NOTAS
1
Belo Horizonte teve uma sucessão de governos com participação do PT que se iniciou com a gestão de Patrus
Ananias (1993‐ 1996). O PT continuou no executivo municipal com o governo Célio de Castro eleito em 1997 pelo
PMDB com vice petista e reeleito em 2001. Castro licenciou‐se por motivos de saúde, assumindo seu vice, Fernando
Pimentel que, eleito em 2004, esteve à frente do Executivo municipal até 2008.
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2
Desde 1989, durante o mandato do Prefeito Pimenta da Veiga, o Executivo elaborava estudos para formatar um
Plano Diretor para o município. Em 1991, durante a administração do Prefeito Eduardo Azeredo foi mandado para a
Câmara Municipal o Projeto de Lei (PL) que contemplava o Plano Diretor, denominado como BH 2010. O PL não foi
aprovado, principalmente, por não se conseguir superar divergências sobre quais seriam as estratégias e
instrumentos a serem adotados pelo poder público de modo a intervir no processo de produção e ocupação do
espaço urbano belorizontino e por não atender a parâmetros da Lei Orgânica do município.
3
A capital mineira teve aprovada, na década de 1970, sua primeira legislação urbanística, abrangendo de forma mais
ampliada o território municipal. A Lei de Uso e Ocupação do Solo de Belo Horizonte, Lei n° 2.662/76, regulamentou a
distribuição das funções urbanas e a forma construtiva das edificações. Foi revisada pela Lei n° 4.034/85, sem,
entretanto, alterar a lógica de zoneamento funcional da cidade (MONTEIRO, 2007).
4
A lógica de determinar a possibilidade de instalação de usos não residenciais de acordo com a classificação das vias
no sistema de circulação foi modificada com a promulgação da Lei n° 9.959/10. A possibilidade de instalação de usos
não residenciais é atualmente regida pela classificação dos logradouros por permissividade de usos em: via
preferencialmente residencial – VR; via de caráter misto – VM e via preferencialmente não residencial – VNR.
5
A Secretaria Municipal de Política Urbana (SMURBE) foi extinta na reforma administrativa ocorrida em fevereiro de
2011. As funções de planejamento urbano que desempenhava foram transferidas para a Secretaria Municipal
Adjunta de Planejamento Urbano (SMAPU), ligada à Secretaria Municipal de Desenvolvimento (SMDE).
6
Ressalta‐se que havia 81 delegados de cada setor e seus suplentes. A eleição de delegados envolveu um número
muito maior de munícipes em assembléias setoriais e realizadas em cada Região Administrativa. Dos 81 delegados
populares, havia 9 representantes de cada uma das 9 Administrações Regionais em que se subdivide a cidade.
7
A II Conferência Municipal de Política Urbana ocorreu de outubro de 2001 a agosto de 2002, período
imediatamente posterior à promulgação do Estatuto da Cidade – julho de 2001. Foi feita na gestão do prefeito
Fernando Pimentel e, apesar de contar com a participação de 244 delegados, não teve muitos resultados efetivos. O 112
evento teve problemas em sua finalização e na legitimação das propostas decorrentes dos debates, sobretudo,
porque o setor empresarial, prevendo alterações indesejadas ao mercado imobiliário, retirou‐se da Conferência.
8
Artigo 66, incisos I a X, da Lei n° 7.165/96, alterada pela Lei n° 9.959/10.
9
Artigo 69, § 2°, incisos I a VIII, e § 3° inciso II, da Lei n° 7.165/96, alterada pela Lei n° 9.959/10.
10
O Plano de Reabilitação do Hipercentro foi uma iniciativa de planejamento local para parte da Área Central de
Belo Horizonte que recebe a classificação de Zona Hipercentral – ZHIP pela Lei n° 7.165/96 e suas adjacências. Este
plano foi coordenado pela SMURBE e desenvolvido em parceria com a empresa Práxis Consultoria e Projetos,
vencedora de processo licitatório. O plano foi financiado pelo Ministério da Cidade e elaborado de forma
participativa. O documento traz diretrizes para requalificação de espaços públicos, alternativas para atração de
emprego e renda, alterações de desenho urbano, remodelação do sistema de circulação, entre outros projetos.
11
O Conselho Municipal de Política Urbana (COMPUR) foi criado em 1996 pelo Plano Diretor. Este Conselho é
formado por oito membros do executivo municipal; seis membros da sociedade – representantes dos setores
técnico, empresarial e popular; dois representantes do legislativo municipal e os respectivos suplentes. O COMPUR
está ligado à SMDE, sendo o Secretário deste órgão seu presidente, e possui a Gerência Executiva do COMPUR
(GCPU), ligada à SMAPU, como suporte administrativo e técnico.
12
O Capítulo XI do Plano Diretor trata da instituição do Estudo de Impacto de Vizinhança.
13
A Comissão de Interface para Orientação e Acompanhamento do Processo de Licenciamento de
Empreendimentos de Impacto, vinculada à Gerência de Orientação e Licenciamento Integrado da Secretaria
Municipal de Serviços Urbanos (SMSU), é composta por todos os órgãos municipais que têm responsabilidade no
processo de licenciamento para construção de grandes empreendimentos. Ela é responsável pela orientação,
avaliação e acompanhamento conjunto dos expedientes referentes aos licenciamentos, que iniciam com a
requisição do responsável técnico e termina com a emissão de licenças para ocupação e uso do empreendimento.
14
O EIV tem uma tramitação que segue, sinteticamente, os procedimentos: 1‐ protocolo do formulário de
caracterização do empreendimento ou da OUC na GCPU e comunicado em jornal de ampla divulgação deste ato; 2‐
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publicação de extrato da caracterização do empreendimento ou da OUC no Diário Oficial do Município (DOM), onde
também é veiculada a pauta da reunião do COMPUR que contém o agendamento da apresentação do requerimento
como matéria a ser apreciada; 3‐ apresentação da caracterização do empreendimento ou da OUC em plenária,
quando os presentes podem interferir no roteiro de estudo que a GCPU passará ao responsável técnico (RT) para
desenvolvimento do EIV; 4‐ elaboração do estudo pelo RT e protocolo do mesmo para avaliação, acompanhado de
nova publicação em jornal de ampla circulação e fornecimento de cópia para consulta popular; 5 ‐ avaliações
setoriais de responsabilidade de cada órgão; 6‐ conclusão do trabalho pela Comissão de Interface para Orientação e
Acompanhamento do Processo de Licenciamento de Empreendimentos de Impacto em um parecer conjunto
denominado Relatório de Estudo de Impacto de Vizinhança (REIV), o qual contém diretrizes para o projeto e
medidas mitigadoras ou compensatórias que o empreendimento ou a OUC deve cumprir; 7‐ publicação do REIV e da
pauta da reunião do COMPUR que trará o mesmo como matéria no DOM; 8‐ aberto prazo de recurso quanto ao
REIV, que pode ser feito por qualquer munícipe e será levado ao COMPUR; 9 – decisões dos Conselheiros e
formatação do Parecer de Licenciamento Urbanístico (PLU), publicado no DOM. A partir das diretrizes do PLU, pode‐
se continuar o licenciamento das construções e atividades ou, no caso das OUC, à formatação de seu Projeto de Lei.
15
A autora estava presente na reunião. As informações relacionadas neste artigo tiveram como fonte a ata da 168°
Reunião Ordinária do COMPUR no sítio http://portal6.pbh.gov.br/dom/iniciaEdicao.do?method=DetalheArtigo&pk=
1074298, acessado em 14 de maio de 2012. As falas demonstram a visão de proprietários de terreno reivindicando
atitudes para melhoria na área e desconsiderando a premissa constitucional de que o direito à propriedade está
desvinculado de sua função social, cabendo ao poder público regular sobre o uso e a ocupação da terra urbana.
16
Neste trabalho, grande parte dos valores foi referenciada com base em arquivos da Superintendência de
Desenvolvimento da Capital (SUDECAP), órgão que, entre outras atribuições, desenvolve projetos e executa obras na
município.
17
A SMAPU havia pensado em uma alternativa mais conservadora para a aplicação de coeficientes. A proposta
abrangida neste trabalho foi feita pelo Conselheiro Píer Senesi, também Secretário Municipal de Serviços Urbanos, e 113
aprovada na reunião do COMPUR, de 26 de abril de 2012, quando foi apreciado o REIV da OUC‐EBA.
18
Convém salientar que a legislação urbanística de Belo Horizonte não prevê limites à taxa de ocupação a não ser
para as áreas de proteção ambiental.
19
A LPOUS exige o cumprimento de taxa de permeabilidade para as construções de acordo com o tamanho do lote
que ocupam, sendo para as áreas de proteção e preservação ambiental, aplicadas regras mais rígidas. Em geral,
deve‐se cumprir 10% de permeabilidade em terrenos com até 360 m² e 20% de permeabilidade para terrenos com
área superior. É permitida a impermeabilização total do terreno desde que se compense a área impermeabilizada
por caixa de captação complementarmente à dotação de área vegetada em jardineira na mesma proporção da taxa
de permeabilidade exigida (BELO HORIZONTE, 1996d, art. 50).
20
http://portal6.pbh.gov.br/dom/iniciaEdicao.do?method=DetalheArtigo&pk=1075287, acessado em 14 de maio de
2012.
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NÚCLEO TEMÁTICO II: Grandes projetos como elementos transformadores da cidade e região
Desnudamentos: instantâneos do alargamento da Avenida
Antonio Carlos em Belo Horizonte
Nudities: snapshots about the enlargement of the Antônio Carlos avenue in Belo
Horizonte
Luciana Souza BRAGANÇA
Mestre em Arquitetura e Urbanismo pelo NPGAU/UFMG; Professora do Centro Universitário Metodista
Izabela Hendrix; Sócia do escritório GRAMA Arquitetura e Urbanismo. lubraganca@gmail.com.
Larissa Batista L. TREDEZINI
Arquiteta e Urbanista; Sócia do escritório GRAMA Arquitetura e Urbanismo. ltredezzini@gmail.com.
Frederico CANUTO
Doutor em Poéticas da Modernidade pela FALE/UFMG; Professor do Centro Universitário Metodista
Izabela Hendrix, participando da agência Observatório do Caminhante; Trabalha ocasionalmente na
GRAMA Arquitetura e Urbanismo. fredcanuto@gmail.com.
RESUMO
Ainda que normalmente se associe as grandes obras estruturadoras relacionadas à mobilidade nas
114
grandes cidades à imagem haussmaniana da Paris do século XIX e à produção de não‐lugares, dado que
vidas inteiras são transformadas e a cidade tende a se redesenhar para tornar‐se cada vez mais produtiva
do ponto de vista do capital, por outro lado, estes não‐lugares produzidos abrem possibilidade de se
imaginar outros lugares. Em breves momentos tais interrupções da forma da cidade e de seu cotidiano
possibilitam uma redefinição das relações entre publico e privado para além de uma complementaridade
dada por uma espetacularização do urbanismo. Assim, o objetivo aqui é discutir a ambivalência de tais
não lugares tomando como exemplar o alargamento da avenida Antonio Carlos em Belo Horizonte,
devido a Copa do Mundo de Futebol a ocorrer em 2014.
PALAVRAS‐CHAVE: Mobilidade – Não‐Lugares – Paisagem
ABSTRACT
Although the concept of Non‐Places and the Paris of Haussmann in the XIXth century are usually related
to the structuring major projects related to mobility in large cities, given that entire lives are transformed
and the city itself tends to be redesigned to become increasingly productive from the viewpoint of capital,
moreover, these non‐open locations produced possible to imagine other places. In brief moments, these
interruptions of the city and its daily life allow a redefinition of relations between public and private
sectors beyond a complementary relation given by a spectacle of urbanism. So, this article aims to
discuss these ambiguous Non‐Places, taking the example of the extension and enlargement of Antonio
Carlos avenue in Belo Horizonte due the Football World Cup 2014.
KEYWORDS: Mobility – Non‐Places – Landscape
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isbn: 978-85-98261-08-9
A Avenida Presidente Antonio Carlos tem papel central para a cidade de Belo Horizonte e
região metropolitana porque é via que faz conexão entre o centro da cidade, sua região mais
conhecida – a Pampulha – e bairros mais periféricos surgidos a partir de sua inauguração nos
anos 30. Devido a isso, e com a metropolização de Belo Horizonte em processo desde metade
do século XX, passou desde os anos 90 a ser motivo de debates para uma ampliação de sua
largura a fim de se tornar mais produtiva do ponto de vista do capital: valorizando
imobiliariamente áreas que até então tinham uma imagem de abandono; fazendo circular mais
rápido e em maior quantidade tanto pessoas como produtos; reorganizando bairros que até
então se mostravam a margem de qualquer relação com a cidade metropolitana que Belo
Horizonte almeja desde Juscelino Kubistchek ser.
Com a realização da copa do mundo de futebol em 2014, toda a discussão acima colocada
tornou‐se pressão para que o projeto pudesse acontecer. E para tornar mais intenso tal clamor
pelo alargamento, a companhia responsável pelo planejamento e gerenciamento do trânsito
em BH, a BHTRANS, fez da avenida uma das linhas mestras de seu plano de mobilidade ao
torná‐la corredor de circulação para o BRT (Bus Rapid Transport). É relevante citar que havia
outro projeto para o alargamento do meio da década de 90 com concepções de espaços
públicos incorporados ao projeto viário que foi rejeitado pela BHTRANS e novo projeto foi
elaborado e implantado.
Marc Auge em seu livro Não‐Lugares. Introdução a uma Antropologia da Supermodernidade já
alertava para o fato da cidade contemporânea se caracterizar pela proliferação de
espacialidades e territórios caracterizados não pelas relações sociais e engajamento ou 115
proximidade mas sim pelo distanciamento. Estes eram os chamados Não‐Lugares. Entretanto,
mesmo que tal termo por ele cunhado e que usualmente é visto em publicações no campo das
ciências sociais e planejamento urbano seja associado a uma negatividade, ao ler tal obra
percebe‐se que existe uma possibilidade positiva. Reconhecendo que tais não‐lugares
produzem nada mais que experiências de distanciamento, o autor justamente pensa também
tal distanciamento como esforço de imaginação pois repele o real. Assim, os não‐lugares
podem ser também lugares outros.
Ainda com Auge, em seu recém‐lançado Por uma Antropologia da Mobilidade, tal raciocínio
retorna. Ao tomar o problema da imigração francesa e fazendo um paralelo da época em que o
pais recebeu em grande quantidade de pessoas vindas de colônias e outros lugares – os anos
60 e 70 – com a relação que tais movimentos estabeleceram nos dias atuais, é possível
entrever como a noção de não‐lugar perdura como recorte critico. Porém, associa a este termo
a fronteira, sendo esta entendida não como linha divisória, mas como zona – ela própria não
uma passagem, mas um território onde ainda está a ser decidido identidades e hábitos – ou
limiar, termo caro hoje aos estudos envolvidos com o fenômeno urbano.
Esta compreensão de Auge a respeito do não‐lugar como fronteira que, por sua vez, abre novos
sentidos a respeito dos próprios lugares e situações ali a ocorrer é que interessa ao presente
estudo.
A partir do momento em que fomos contratados via o escritório GRAMA para fazer pela
prefeitura de Belo Horizonte o projeto de Tratamento Paisagístico das Áreas Remanescentes às
Margens da Avenida Antônio Carlos, tais possibilidades de pensamento sobre este não‐lugar
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negativo emergiram através da categoria paisagem. Tomando o paisagismo não apenas como
especialidade da disciplina arquitetura e urbanismo interessada na correta organização dos
elementos vegetais entre outros naturais num espaço, foram abertos horizontes de significação
para a situação a qual fomos chamados a colocar em questão.
A primeira questão, recorte mestre para nós, diz respeito à categoria paisagem. Tal como ABALOS em
seu reconhecido artigo O que é Paisagem deixa claro, esta categoria geográfica só pode ser pensada
em sua dimensão arquitetônica se não for tomada como olhar formado a distância e
desinteressadamente, mas sim na proximidade, comprometida com o conteúdo sócio‐espacial
envolvido no próprio espaço. Desta forma, a paisagem desdobrada aos nossos olhos não foi aquela
que partiu apenas de um interesse no tecido vegetal ou relativo as águas que passam ou não no lugar.
Mas, principalmente, a um conhecimento dado no espaço, interessado em sua condicionantes
econômicas, políticas, físicas, sociais tendo em vista os diferentes agentes.
Desta forma, viemos nesse texto apresentar 09 imagens destes não‐lugares a partir de um olhar
paisagístico interessado não apenas numa negatividade ou critica normalmente materialista de
profundas raízes marxistas – como diversas escolas envolvidas com estudos urbanos intensamente
fazem – mas numa positividade: potência para outros territórios, construções de fragmentos de
cidade possíveis.
1 HORTAS DESCOLETIVAS
Figura 01: Aboboras 116
Fonte: GRAMA Arquitetura e Urbanismo, 2011.
Atualmente, a agricultura urbana aparece como parte de um ideal de vida comunitário
que “inocentemente” tenta ser resgatado. Uma vida bucólica inserida no cotidiano da
metrópole para suavizá‐la. Ainda que diversas sejam as experiências ocorridas e
documentadas desde o século XX, normalmente se atribui a esta tentativa uma imagem
de descrença.
Entretanto, se for procurado e analisado globalmente, temos experiências que colocam
em questão tal imagem como, por exemplo, as ocorridas nos anos 90, em Cuba. Como
relatado pelo jornal News form the Field, publicação distribuída na 27a Bienal de Arte de
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São Paulo, o governo cubano tem um extenso projeto de ajuda a comunidades que
formam uma rede de relacionamento envolvendo a produção de hortifruti para um
determinado local.
Não somente em Cuba, também temos no México práticas de agricultura organopônica
nos bairros de periferia, agregando conhecimentos locais para a segurança alimentar da
população local. Ou mesmo no Brasil, em Belo Horizonte, com práticas cotidianas que
envolvem a negociação entre donos de lotes vagos e moradores no bairro Urucuia, como
relatado pelos artistas Louise Ganz e Breno Silva no projeto Lotes Vagos, até Foz do
Iguaçu. Ou ainda com a existência dos CEVAEs – Centro de Vivência Agroecológica, em
Belo Horizonte com a participação de ONGs como a Rede.
A questão se tornou a tal ponto importante e de abrangência nacional a ponto do
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate e Fome ter um programa voltado a
questão: Programa de Agricultura Urbana.
Entretanto tais ações também acontecem nas margens desses movimentos de
formalização públicos. No entorno da Avenida Presidente Antônio Carlos, próximo a um
dos retornos construídos para os carros e ônibus, tornou‐se visível uma pequena horta
plantada e cuidada por uma senhora residente nas proximidades. A margem de qualquer
programa ou de pertencimento a qualquer comunidade, ela cuida da horta e chega a
dividir suas abóboras com outros moradores próximos. Não há um ideal de coletividade a
qual ela deve se reportar ou um programa que a leve a tal ato. A base para tal relação é
uma dimensão de afeto construída com seus vizinhos. Pela localização da pequena 117
plantação, a senhora procura esconder sua pequena obra que se desenvolve num
barranco de pouco acesso.
Se as comunidades produzidas ou requeridas neste programas estatais acabam por se
tornar armadilhas identitárias pois tornam todos figuras visíveis pelos diversos poderes
que controlam a vida coletiva ou o seu ideal, interessante notar como é fora desta
identidade e distante de qualquer discussão sobre a alimentação mundial que a senhora
constrói relações de proximidade desamparados desvinculada de qualquer “coletivo”. A
senhora diz, não de uma comunidade existente ou imposta por demandas externas, mas
de uma potencial – não ponto de partida, mas zona de chegada.
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2 JARDINS MOVEDIÇOS
Figura 02: Jardim externo plastificado
Fonte: GRAMA Arquitetura e Urbanismo, 2011.
118
No jardim de uma casa, a sala de visita se move.
A casa, no fundo de um lote, é uma coleção de materiais vindos de diversos depósitos de material de
construção: portas metálicas cinzas, janelas sasazaki, tijolos cerâmicos a mostra. Uma bricolagem
kitsch. As janelas blindex expõem um desejo de ascensão e pertencimento social distantes do
contexto onde ele realmente habita.
Logo a frente, antigo fundo do lote exposto pela ampliação da avenida e alçado à nova categoria de
importância, chama atenção um gramado e um jardim que, vistos a media distancia, parecem bem
cuidados e aparados, com plantas e árvores verdes e delicadas, decorados com puffs e tapetes. O
espaço externo é parte da casa, sendo decorado como tal qual uma sala de visita.
Num rápido olhar, tudo parece o que realmente é. Aproximando‐se e de modo mais vagaroso, há algo
mais ali.
A vegetação bem cuidada e quase brilhante ganha outros contornos. O gramado verde demais e
aparado de forma homogênea saiu de uma fábrica. As plantas, altas e baixas, samambaias à frente e
bananeiras ao fundo, brilham. Ao se cheirar, não exalam odor algum. Ao se colocar a mão,
plastificações.
Campo de grama, plantas e flores, todos de plástico. Como se estivesse banhado no formol, tal espaço
naturalizado não sente o tempo passar. Permanece incólume à ação do tempo conservando
artificialmente seu frescor.
Construído a frente, tal jardim artificial é também um dispositivo de captura. Captura de metros
quadrados. Captura de propriedade.
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Após o redesenho e alargamento da via logo à frente da casa, motivados pela necessidade de
aumentar o transporte de pessoas e mercadorias na grande cidade, foram subtraídos pedaços de
diversos lotes. Muitos desses terrenos, antes retangulares, tornaram‐se trapezoidais devido a uma
desapropriação parcial. Nestes cortes e recortes, portanto, o redesenho de quarteirões acabaram, por
sua vez, redesenhando tamanhos de propriedades. Surgem dimensões e formas imprecisas e
diferentes da geometria da cidade dita formal dada pelo traço regulador do desenho urbano.
Com tal imprecisão, o dono desta propriedade percebe uma possibilidade de aumentar a sua
casa. Com plantas e jardins moventes, captura um pedaço a mais, para além e indo além, de
qualquer precisão pretensamente dada por uma cartografia planialtimétrica ou pelo foto aérea
do googlearth. De tempos em tempos, aumenta seu jardim‐sala de visita, deslocando suas
plantas e gramados plantados na superfície centímetros à frente.
Cultiva‐o como aparelho de guerra. Se a prefeitura ou governo do estado retirou‐lhe um
pedaço de terreno – que, aliás, lhe foi dado por usucapião, pois o terreno foi invadido e apos
mais de uma década de apropriação, tornou‐se próprio – ele o tem de volta em um processo
rotineiro de ocupação.
Uma tática de guerra para conquistar o território inimigo. Ao invés de grandes planos, milhares
de reais em indenizações, operações urbanas consorciadas ou parcerias público‐privadas que
deixam visíveis negócios na mídia, um pequeno deslocamento de centímetros a cada dia, sem
que ninguém perceba, aumenta e especula, a sua maneira, a forma, o desenho e o espaço da
cidade.
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3 DA ÁFRICA
Figura 03: Viaduto presente na avenida Antonio Carlos
Fonte: GRAMA Arquitetura e Urbanismo, 2011.
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Benedict Anderson em seu livro Comunidades Imaginadas discute a questão da nação na
Modernidade. Constrói seu argumento a partir do conceito de imaginação que vem atrelado as
nações surgidas a partir do século XVII nos países não‐europeus: imaginado porque muitas
tornam‐se parte de ideais de nações outras que nem mesmo conhecem – e se é que elas
existem. Ou seja, nações, grupos, comunidades são fundadas segundo uma noção de
pertencimento a um outro que pode, em última instância, não existir ou existir enquanto
produto imaginário.
Ao passar pelos viadutos Senegal e Congo, questões emergem ligadas ao sentido e sentimento
de comunidade que tais nomeações imaginam a respeito de si mesmas. Se o poder público
assim nomeou, sem consulta a população ou qualquer outra entidade próxima do local, pensa‐
se sobre a cooptação que tal simbolismo ou homenagem africana pode trazer. Se a escolha foi
de alguma forma partilhada ou vinda exclusivamente da população local, questiona‐se porque
referenciar a países que explodem em conflitos armados dados por uma influência exterior que
até hoje se faz sentir junto a brigas internas que tentam explodir justamente esta unidade
nacional.
Mas tais imagens são tão passageiras como os próprios veículos em alta velocidade que pelos
viadutos passam. Imagens de uma África fragilizada pela história que a explica como colônia de
exploração européia que até hoje paga com seu subdesenvolvimento tal passado.
Na verdade, pouco se sabe o que é a África. Enigma que ainda carrega imaginações passadas,
hoje é lugar cinematográfico de campanhas humanitárias empreendidas por astros
internacionais ou contexto de filmes sobre contrabando de pedras preciosas. A pergunta é o 120
que significa como operador conceitual o termo “África” para o urbanismo e planejamento
urbano.
Se a África é conceito que ambiguamente implica unidade e fragmentação, ironicamente dizem
dos viadutos também. Uma parte de uma rede de mobilidade que serve de passagem mas
reconhecida como lugar.
Como ligação, por outro lado, o que os viadutos ligam são justamente territorialidades vizinhas
que pouco tem a ver exceto o fato de serem divididas por uma grande avenida. O viaduto como
passagem o é porque não é um ou outro bairro, não é África pobre, nem África rica, mas
compossibilidade de todos estes lugares ao mesmo tempo que negação de todos. Assim são
limiares ou zonas de transição.
Senegal e Congo são zonas de passagem e assim o são permanentemente, tal como os viadutos
que cortam a imagem de unidade produtiva da Avenida Presidente Antônio Carlos e
corroboram para seus ares de modernidade.
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4 DO ESCRITÓRIO: APROXIMANDO‐SE DA ÁREA
Figura 04: Imagens satélite da avenida Antônio Carlos, 2006.
Fonte: Google Earth, 2011.
Figura 05: Imagens satélite da avenida Antônio Carlos, 2009.
121
Fonte: Google Earth, 2011.
Figura 06: Imagens satélite da avenida Antônio Carlos, 2011.
Fonte: Google Earth, 2011.
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Interessante as imagens do googlearth ao longo dos dois últimos anos da avenida Antônio
Carlos, via que liga o centro de Belo Horizonte a região da Pampulha, cartão postal modernista
de Belo Horizonte desde os anos 30. Foi possível ver linhas se duplicando e triplicando, curvas
transformando‐se em retas, quadrados desaparecendo para que a linha cinza do asfalto
pudesse ser implementada. Era possível ver nomes de ruas ali indicadas que não mais existiam
no próprio mapeamento.
Tal como as imagens do livro A Terra vista do Céu ou ainda em diversos sites especializados no
tema paisagem, à distância a avenida tornava‐se composições. Pinturas onde se pode ver
proporções, ritmos, simetrias quebradas, organicismos gerados por um desenho que ora se
acomoda numa topografia que não é vista por este mecanismo que a desconsidera.
Interessante como esta representação do real tornou‐se um efeito do mesmo: a linha recém‐
inaugurada do asfalto que serpenteia por um emaranhado de quadrados com seu cinza vivaz
enche os olhos com uma perfeição colorística e formal, dada pelo traçado da via. Tal como
vendido pelo governo em outdoors e imagens em sites institucionais.
Num clique, metros mais próximos, com nitidez a cidade torna‐se visível, deixando para trás
esse rastro de uma possível pintura da paisagem do século XXI, a despeito do que isso foi no
século XIX. Se à época, os quadros de pintores‐cientistas tinham como objetivo não dar uma
visão pessoal do desconhecido, mas serem utilizados como meio de visualizar terras nunca
antes vistas de modo objetivo e científico; hoje, o googlearth parece substituir qualquer
subjetividade por um “choque do real”. Agora cada quadrado é uma casa, cada linha cinza uma
via. Acostumados estamos a compreender esta informação como mapa do real pois é usual ver 122
o mundo “de cima” como espectadores de ponto de vista privilegiado.
Ainda por cima, pelo google street view, caminho foto a foto pelos lugares novos. A topografia
ganha textura, assim como casas, ruas e a própria avenida. Numa tentativa de reconhecer, olho
e tento lembrar se é isso mesmo que há na avenida pois de ônibus nunca dei atenção ao
entorno. Uma foto parece ser igual a varias outras.
A velocidade com que se passa por lugares associado a um grau de distração dado pela
experiência típica habitual da cidade, faz com que o Google street view se torne um método de
desaceleração e distanciamento do que pretende apresentar uma aproximação que se opera à
distância: mediada. Como uma lente que possibilita um escrutínio maior da realidade,
pretende uma profundidade cada vez maior: o que a Google e outros mecanismos de
visualização querem é que as lentes penetrem cada vez mais fundo na intimidade. Mas repetir
uma mesma imagem várias vezes significa torná‐la desinteressante. Assim aprendemos a ver
por estes dispositivos: desaprendemos a enxergar possibilidades para ver realidades que
acabam por cansar o próprio olhar sobre a cidade.
Tornando pelo google streetview a realidade num amontoado de dados que só se interessa
procurar quando necessário é uma imagem do lugar procurado, a realidade torna‐se resultado
de uma percepção unicamente utilitária. Se a cidade de Paris no século XIX tem como
protagonista a multidão, força empática para o flanêur, na avenida Antonio Carlos tal sensação
se torna indiferença e capitalização total da cidade.
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5 FOREVER ALONE
Figura 07: Imagens satélite da avenida Antônio Carlos, 2006.
Fonte: Google Earth, 2011.
Figura 08: Forever Alone.
123
Fonte: GRAMA Arquitetura e Urbanismo, 2011.
Recortes dados por reformas viárias urbanísticas no tecido formal da cidade acontecem de
forma até corriqueira. Desapropriar moradores de casas ou donos de comércios locais não é
problemático visto que a prefeitura tem até suas maneiras de lidar com a questão. No entanto,
o que fazer quando no rastro de tal movimento de apropriação está erguida uma torre de mais
de dez pavimentos?
Deixado na alça do viaduto pelo valor altíssimo que seria o de sua desapropriação o edifício
reina absoluto, solitário, contaminando o fluxo e isento de qualquer vestígio físico da
vizinhança que o circundava
Um edifício que criou seu próprio desenho urbanístico. Tem um quarteirão próprio, ilhado do
restante da cidade. Uma ilha que desconectada de tudo a volta nada tem a fazer senão pensar
o pouco de contexto que lhe resta. Pintar suas fachadas da cor verde para combinar com o
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verdor da grama – estratégia paisagística comum dada para os espaços residuais dos grandes
redesenhos.
Quem sabe em suas fachadas, tal como nas gramas residuais, não deveriam ser plantadas
árvores e plantas, imaginando uma paisagem urbana e ambientalmente responsável para o
entorno – criado da avenida ou existente dos bairros lindeiros. Transformar o edifício solitário
numa potencia para um redesenho da paisagem sendo esta compreendida desde a edificação
até o desenho urbano.
6 DOS CORTES
Figura 09: Recortes domésticos
124
Fonte: Google Earth, 2011.
Entre os recortes gramados e os descampados à margem da avenida duplicada de pistas e
quadruplicada de veículos insurgem composições arquitetônicas que fariam inveja às
proposições pictóricas de Mondrian.
Não há um critério único para que estes painéis se apresentem. Em alguns momentos foram
resguardos pela estabilidade de platôs e montanhas de terra acima da avenida. Na sua grande
maioria são resquícios de estabelecimentos comerciais e residências. O que antes era dividido
por alvenarias agora conforma um plano com patchworks de modos de ocupação, não
intencionalmente, mas para resguardar o limite físico dos vizinhos não demolidos.
Os vestígios das ampliações estão lá impressos nas paredes que resistem como um mostruário de
uma vida urbana doméstica que se exterioriza. Aos azulejos das cozinhas e banheiros gozam de uma
importância e se colocam com participantes da cidade. A eles se sobrepõe os grafites, a publicidade
informal, as queimaduras. Tornam‐se ruínas.
Nas empenas desconstruídas surge um tipo de interlocução visual emudecido pelo barulho dos
veículos em alta velocidade, mas nem por isso menos presentes, intercalado entre as queimaduras,
pichações e grafites, os revestimentos cerâmicos e outros vestígios estão elementos de publicidade
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informal oferecendo todos os tipos de serviços. Cartomantes, serviços exotéricos, borracharias,
prestadores de serviços, motores e escapamentos. É oferecido, diga‐se em grande estilo, até o amor.
Se aos olhos do poder público e dos higienistas é poluição visual, aos olhos concentrados de
motoristas e pedestres imersos na predominância do cinza talvez sejam os únicos elementos de
comunicação de resquícios de uma outra vida com o exterior.
7 DAS ALTURAS E TOPOGRAFIAS: CAMAROTES E ILHAS
Figura 10: Montanhas de Arrimo
125
Fonte: Google Earth, 2011.
No que tange o planejamento viário e a obsessão pelo encurtamento de distância para os veículos
subverte uma das noções básicas de geometria descritiva. A linha reta passa menor distância entre
dois pontos para um veiculo e a maior distância altimétrica entre dois níveis de ocupação e vida
urbana.
A urgência de aumentar as pistas de tráfego colocou em segundo nível de importância os
condicionantes topográficos das localidades em função da mobilidade urbana.
Os desníveis produzidos pela ampliação não são poucos ou suaves. As ruas que cruzavam a avenida
para fazer contato estão agora nos limites superiores assistindo de seu camarote imaginário a cena
urbana da avenida.
Quadras inteiras cortadas criaram ilhas remanescentes de difícil acesso e conexão. As transposições se
fazem pelos viadutos, pelas escadas e rampas. Esses são os novos territórios passiveis de ocupação: as
conexões. Os patamares das escadas e rampas são agora os locais de parada e de contemplação de
uma paisagem pouco bucólica.
O resultado destes recortes foi a configuração de uma paisagem de teatro de arena, com terraços
descobertos e desnudos de proteção sonora, visual e auditiva. Esta desproteção permite que seus
habitantes/espectadores mirem com “vista privilegiada” áquilo que foi considerado superior a suas
relações e deslocamentos naquele espaço.
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O desnível antes acomodado pela conformação de edificações quadras e pela topografia quase
natural virou filão para a confecção de um grande show room de contenções e movimentos de terra.
Grandes superfícies de concreto projetado, cortinas atirantadas, gabiões, muros de arrimo, taludes
escalonados praticamente em pé e muitos outros métodos testados nas suas condições mais
críticas para que sejam capazes de acomodar geotecnicamente novamente maciços de terra e
edificações.
8 SEIS ÁRVORES
Figura 11: Descampado
126
Fonte: Google Earth, 2011.
A rua enquanto experimentação da diversidade da vida urbana é um cenário de numerosas
possibilidades e práticas. Ao longo de um percurso de quatro quilômetros em uma mesma avenida
cercada por vários bairros é possível que sejam feitas numerosas observações e percepções,
arquitetônicas, urbanísticas, antropológicas, sociológicas, psicossociais, econômicas, climáticas e
ambientais.
Procurávamos toda e qualquer informação que dissesse respeito às áreas remanescentes de estudo.
No entanto, sobressaía‐se um dado curioso e traumático dentre os muitos dados e observações
vindos daquelas áreas.
Em treze áreas distribuídas ao longo de quatro quilômetros havia seis árvores. No passeio da avenida
apenas pequenas árvores recém plantadas e ainda tímidas na sua juventude. Seis pontos de sombra
natural possíveis para ocupação imediata confortável sob o sol inclemente da Avenida. Mais áreas
remanescentes do que árvores remanescentes.
A distribuição dessas seis sombras não é equânime. Numa primeira área remanescente
há três copas frondosas e agradáveis junto ao que sobrou de um quarteirão da Rua Fides.
Em outra área fruto de uma quadra inteira demolida há uma pequena árvore jovem ainda
em fase de crescimento também junto a Rua Fides. Na última área agraciada com
sombra, junto ao viaduto São Francisco, há mais duas árvores: um eucalipto adulto e uma
pequena amoreira.
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A categorização das áreas verdes como resto urbano da área ocupada dificulta seu papel
social de elemento de integração de usos e de espaço público e principalmente restringe
o potencial dessas seis árvores.
Se não houve grande problema em desapropriar quadras inteiras e retalhar o tecido
urbano porque haveria pavor em retirar o único elemento natural que poderia causar
melhor ambiência à toda aquela aridez? Como destemunhas desse fato restam seis
árvores imponentes em sua presença improvável.
O deserto é o ambiente em torno de um ser humano, isolado das vistas, dos sons e
cheiros da atividade dos homens. Se o conhecimento humano é tão diverso, tampouco a
ignorância coletiva da natureza é sem limites.
O deserto da avenida é o inverso do deserto. Cheio de tudo humano.
Esse deserto é concretado e impermeável, cheios de palmeiras, ou gramados que sequer
suscitam o desejo da ocupação humana que não dentro de seus caros já que são
margeados pela austeridade da grande via de circulação de veículos automotores. O
desertos urbanos são opções normalmente dentro da ausência de opção.
Desde os anos 70 grupos como Guerrila Gardening e Green Guerrilas em cidades como
Londres e Nova Iorque tem sido foco de ações de “invasão verde”. Estes grupos tratam a
ausência de áreas verdes de modo combatente propondo ações coletivas e participativas
que alertam para a necessidade de jardins e áreas verdes como algo maior que um
adorno ou resto urbano dentro do modo impermeável e árido como as grandes 127
metrópoles tem ocupado seus territórios.
A permanência de áreas verdes em corredores viários com o objetivo criar melhores
ambiências urbanas para além das áreas mortas e mortais do ideal moderno, além do
congelamento da especulação imobiliária e do longo processo de execução das
operações urbanas é causa de um conflito interno velado. As soluções e ações são em
longo prazo e dificultadas por questões burocráticas pouco propositivas.
Na ausência da sombra e na presença do sol a pino, ficou latente a vontade de
disseminar bombas de sementes, não de sementes de girassol como fazem o Guerrila
Gardening , mas de guapuruvus, patas de vaca, ipês e eritrinas na tentativa de
transformar a remanescência em novas ambiências, mesmo que ainda muito
desertificada. Explodir assim as seis árvores remanescentes em essência, como os
fractais, como padrões de elementos que são "auto‐similares" em diferentes escalas
repetindo um padrão de “verde/sombra” equivalentes geométricamente em diversos
tamanhos.
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9 OUTDOORS
Figura 12: Bonde na avenida Antônio Carlos, 1957.
Fonte: www.observadoresocias.blogspot.com , 2011. 128
Figura 13: Imagens satélite da avenida Antônio Carlos, 2011.
Fonte: Google Earth, 2011.
Interessante como o modelo de mobilidade de Belo Horizonte parece que voltou no
tempo para ditar um futuro. Os transportes públicos de massa à época – bondes – que
atravessavam a avenida Afonso Pena, Paraná e no caso aqui em questão, Antônio Carlos,
em 1958, voltarão a compor a diretriz de intervenção da BHTRANS para a mobilidade na
cidade. Por outro lado, vejamos a foto com mais cuidado:
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Em 1958 uma parte da cidade urbanizada, com postes de iluminação em suas margens, e
uma grande área quase homogeneamente verde sendo especulada para ocupações. O
espaço do bonde não possui faixas de segurança, nem rampas de acessibilidade para
acessar o veículo, e nem parece se mover a uma velocidade excessiva. O espaço de sua
delimitação é quase de terra e no ar, onde passam os cabos de energia, não se vê outras
fiações, e nem árvores para sombras.
Inóspito. Aberto. Muitos vazios.
Hoje, tornou‐se uma via onde ônibus e taxis por ali atravessam a velocidade muitas vezes
superiores a 60 Km/h. Separação visível, mas nem por isso segura, entre veículos automotores
e pedestres dados por grades laterais e passeios a centímetros mais altos, com largura para,
dificilmente, duas pessoas. Acima, árvores recém‐plantadas.. Abaixo, recém‐inaugurados,
passeios e asfalto vão sendo quebrados novamente para instalação do BRT. Os campos vazios
dão hoje lugar a um adensamento intenso, que intraurbanamente não pára de crescer,
tornando estes em áreas residuais gramadas sem sombra para ninguém. Apenas marcações de
rotatórias, desvios e retornos.
Igualmente inóspito.
O IAPI como grande empreendimento e quase monumento regional torna‐se um amontoado
de concreto próximo de outros amontoados – seja a própria via ou edifícios entorno.
Entretanto, sua escala que permanece e o destaca na paisagem não pode ser vista – passamos
muito rápido por ali. Agora pintados novamente, quem sabe não se tornam enormes outdoors 129
de uma fábrica de tinta, como já o foram de uma indústria da construção civil de concreto
nascente nos anos 50.
10 CONTENÇÕES
Figura 14: Muro Arrimo
Fonte: GRAMA Arquitetura e Urbanismo, 2011.
programa de pós-graduação em arquitetura e urbanismo da ufmg (org.)
isbn: 978-85-98261-08-9
Do camarote da Rua Fides avista‐se do outro lado mais uma amostra de soluções técnicas
para conter movimentos de terra mais abruptos. Desta distância nada se revela mais. Ao
atravessar as pistas duplicadas da avenida e aproximar‐se da alça de retorno do viaduto,
nas colméias de concreto, outros detalhes vão aparecendo além da total aridez do talude
praticamente desnudo de grama.
Duas lonas fazem as vezes de parede em dois módulos, o que cria um isolamento e
individualidade de cada um daqueles módulos, controversas e camufladas unidades de
habitação. Vivendo e coexistindo junto com toda a austeridade da margem de uma via
arterial.
Na 27ª Bienal de arte de São Paulo, Eliane Robert Moraes publicou um ensaio de reflexão
sobre o tema da mostra “Como Viver Junto”, título extraído da obra Roland Barthes de
2003. O “como” foi afã de estudo do filósofo francês, e por sinal muito utilizado na
tentativa de elucidar as variações e modalidades complexas de convivência humana em
suas referências espaciais. “Viver junto implica uma demarcação, um lugar, um endereço.
Mesmo que este seja flutuante” argumenta a autora ao estabelecer uma relação entre o
filósofo francês com a experiência da convivência em um barco, um lugar sem lugar.
A habitação/contenção da Avenida Antônio Carlos abre um questionamento além do
como: onde e porque viver? A pergunta parece mais próxima do coexistir junto.
A caracterização do não lugar de Marc Auge é uma possibilidade, especialmente na falta
de contrapartidas e medidas mitigadoras e compensatórias para outras questões urbanas 130
daquela região. Uma delas poderia justamente promover a habitação.
Em meio ao discurso que criou aquelas enormes pistas, faixas de pedestres e ao
deslocamento de relações de usos, vieram áreas “residuais” sem contrapartidas que
impedissem que a aquele elemento ganhasse feições de residência nem que
legitimassem dignamente a apropriação e vida doméstica daquele lugar. À margem de
tudo isso a vida segue seu curso e encontra seu lugar.
11 AGRADECIMENTOS
Agradecemos a Fernando Tourinho pela ajuda e participação no projeto como um todo.
12 REFERÊNCIAS
ABALOS, Iñaki. O que é Paisagem. In: Revista Eletrônica Vitruvius. Ano 05, mai. 2004. Disponível em:
http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/05.049/572/pt. Acessado em 26/12/2010.
ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. Trad.: Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras,
2008.
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AUGÉ, Marc. Por uma antropologia da Mobilidade. Maceió: EDUFAL, UNESP, 2010.
KOOLHAAS, Rem. Generic City. In: KOOLHAAS, R.; MAU, B. S,M,L,XL. New York: 010, 1997. p. 1247‐1265.
LAGNADO, Lisette, PEDROSA, Adriano (org.). 27ª Bienal de São Paulo. Como Viver Junto. São Paulo: Fundação Bienal, 2006.
programa de pós-graduação em arquitetura e urbanismo da ufmg (org.)
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MORAES, Eliane Robert. O Corpo Impossível. A Decomposição Humana de Lautremont a BAtaille. São Paulo:
FAPESP, Iluminuras, 2002.
Roland Barthes, Como viver junto trad. Leyla Perrone Moysés, São Paulo, Martins Fontes 2003.
SEDLMAYER, S.; GUIMARAES, C.; OTTE, G. Limiares e Passagens em Walter Benjamin. Belo Horizonte:
EdUFMG, 2010. p. 12‐26.
131
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NÚCLEO TEMÁTICO II: Grandes projetos como elementos transformadores da cidade e região
El Parque Lineal concebido y su interpretación espacial desde lo
vivido
The designed linear park and its interpretation from the living space
Coppelia H. CUARTAS
Profesora investigadora, magister en antropología, Universidad Pontificia Bolivariana, Medellín Colombia.
coppelia.herran@upb.edu.co
Juan J. C. CALLE
Profesor investigador, magister en Hábitat, Universidad Pontificia Bolivariana, Medellín Colombia.
juan.cuervo@upb.edu.co
RESÚMEN:
Dentro de los múltiples proyectos urbano–arquitectónicos que adelanta actualmente la ciudad Medellín,
consideramos para este artículo los Parques Lineales que se extienden a lo largo de toda la ciudad, como
una nueva modalidad de espacio público. Como casos de estudio se escogen los parques lineales La
Presidenta, La Bermejala, La Hueso y Bicentenario ubicados en los cuatro puntos cardinales de la ciudad
para comprender mediante una exploración etnográfica y un enfoque principalmente socio espacial qué
tipo de usos, prácticas y apropiaciones sociales se producen en estos lugares después de su 132
implementación.
Identificando coincidencias entre las interpretaciones que los actores sociales elaboraron frente a estos
lugares y las concepciones que tuvo el gobierno local cuando diseñó y construyó estos parques lineales
para el uso y el disfrute público, se pudieron identificar las múltiples formas en que las personas
interpretan y le dan significado a esta clase de intervenciones públicas. Con un énfasis muy marcado en
la prioridad urbanística que respondía a unas necesidades físicas y estéticas en cada sector en donde se
encuentran ubicados estos parques, se vio como un aspecto secundario el interés por suplir las
necesidades del usuario real y no ideal que hace uso de este tipo de espacialidades.
PALABRAS CLAVES: Parques lineales, espacio público, prácticas socio espaciales, apropiaciones
espaciales, imaginarios urbanos.
ABSTRACT:
Among the many urban‐architectural projects currently being conducted by the city Medellin for this
article we consider linear parks that extend throughout the city as a new form of public space. As case
studies are chosen linear parks La Presidenta, La Bermejala, La Hueso and Bicentenario located in the
four corners of the city to understand through an ethnographic exploration and focus primarily social
space what kind of customs, practices and social appropriation occur in these places after
implementation.
Identifying similarities between interpretations those social actors developed against these places and
perceptions when local government was designed and built these linear parks for public use and
enjoyment, were unable to identify the many ways in which people interpret and give meaning to this
kind of public interventions. With a very marked emphasis on the priority urban responding to a physical
and aesthetic needs in each sector where these parks are located, was seen as a secondary interest in
meeting the needs of the real user and not ideal that makes use of these specialties.
KEYWORDS: park, public space, praxis, urban imaginary.
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1 INTRODUCCIÓN
Considerando los espacios públicos más significativos de las ciudades como son las plazas, las
calles, los parques y su función dentro de la ciudad, se dirige la mirada hacia los parques lineales
como obras de intervención ambiental hechas recientemente por la Municipalidad en el espacio
público, ya que no solo aportan y enriquecen a la calidad ambiental de las ciudad de Medellín,
sino que además son espacios en los que interactúan grupos con diversas motivaciones y
necesidades espaciales, coexistiendo y conviviendo en una misma superficie de carácter urbana.
De acuerdo a la investigación que soporta este texto, se fija la mirada en cuatro intervenciones
realizadas por la Municipalidad en calidad de Parques Lineales (PL), para realizar una lectura en
dichos escenarios con el objetivo de interpretar el habitar en relación con lo concebido, lo
percibido y lo vivido, mientras se busca someter a discusión y evaluación, las concordancias
halladas entre la visión Estatal y las apropiaciones y significados de los actores sociales que a
diario utilizan sitios.
De los catorce parques lineales construidos durante las dos últimas administraciones en Medellín
se escogieron La Presidenta, La Bermejala, La Hueso y Bicentenario haciendo un estudio
etnográfico a profundidad, teniendo en cuenta que algunos de estos parques se encuentran
inscritos dentro de barrios que tienen un carácter más comercial que residencial como es el caso
de La Presidenta y La Hueso, mientras que otros como La Bermejala y Bicentenario tienen un
perfil residencial complejo con una fuerte historia de lucha entre el Estado y los grupos armados
ilegales, que trae consigo en algunos casos desalojos y una superación constante reflejada en sus
antiguos y actuales pobladores (Figura 1). 133
Figura 1. Mapa de la ciudad de Medellín con la ubicación de los cuatro PL escogidos
Buscando entender las distancias y aproximaciones que aparecen entre lo que estos parques
lineales ofrecen y las necesidades que tiene cada comunidad, se toman en consideración los
conceptos empleados por la teórica urbanística y activista político‐social Jane Jacobs (1973), y
su propuesta para validar el funcionamiento y significado de los parques lineales investigados.
Para este punto Jacobs propone que para que las intervenciones que se hagan en la ciudad no
nazcan muertas desde su inicio, se debe tener en cuenta a partir de su concepción, aspectos
como la ubicación, la dotación física apropiada para los intereses de la comunidad, las
condiciones de seguridad y características referidas al diseño con respecto a un lugar y de esa
forma, reconocer la dinámica vital o la muerte de los lugares.
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Los (PL) no sólo conforman la nueva fisionomía en la urbe, sino que hacen parte de la
nueva modalidad de espacio público de la ciudad, insertándose en todos los rincones de
la cotidianidad de los vecinos, visitantes o transeúntes. Por ello se tiene en cuenta dentro
del marco de esta investigación, las diferentes maneras en que cada comunidad responde
con una serie de prácticas, costumbres y hábitos según sus particularidades e
imaginarios, al tiempo que construyen su propia significación referida a estos parques. En
la misma línea se busca identificar las concordancias y diferencias surgidas entre la visión
estatal y los actores sociales en cuanto a las interpretaciones de cada parque lineal, para
abrir una discusión sobre la manera en que las nuevas intervenciones espaciales, aportan
a la construcción de ciudad. No sólo se considera aquí el fenómeno geo‐espacial sino
social, político y ético que compromete el uso de estos lugares, además de establecer
cuáles son las relaciones que resultan entre los actores sociales y estas nuevas realidades
espaciales llamadas PL.
Concebidos con una misma finalidad, pero usados de diferente forma según sus propias
particularidades se buscó conocer la manera en que los diferentes vecinos, visitantes y
transeúntes se apropian de estos lugares, poniendo en discusión el espacio preconcebido
desde la planificación, por medio de las dinámicas sociales presentes en cada lugar. De
acuerdo a esto, las situaciones que aparecen en la producción de esta clase de espacios
públicos, generan una serie de apropiaciones que los sujetos individuales y colectivos
hacen de los mismos con recursos que provienen de sus recuerdos, necesidades y
representaciones sociales, en las cuales no sólo se inscriben huellas sobre el espacio
físico, sino que también disputan un nuevo lugar de reconocimiento, frente a las nuevas
134
formas de construir espacios públicos en la ciudad.
Haciendo énfasis en el constructo humano y cultural expresado y recreado en cada
parque lineal por sus habitantes o visitantes que aceptan y/o rechazan estos lugares, se
observó cómo muchas veces los cambios físicos pueden llegan a marginar, integrar,
problematizar o reordenar socialmente no sólo los parques lineales, sino también a sus
actores sociales. Finalmente como posibles lugares generadores de relaciones sociales,
marcas, recorridos y comunicaciones que buscan promover apropiaciones individuales y
colectivas en el espacio público, se busca encontrar los aciertos y diferencias que las
personas que resultan de esta clase de intervenciones espaciales, frente a las
necesidades que cada comunidad manifiesta.
En resumen, este trabajo busca responder a las siguientes preguntas:
a. ¿Cómo se incluyeron las visiones de los usuarios en la concepción e
intervención de los parques lineales como espacios públicos proyectados para la
ciudad?
b. ¿De qué manera concurren las percepciones de los usuarios de cada parque
lineal, con las concepciones que tenía el gobierno local sobre éstos?
En la búsqueda del reconocimiento y el sentido que los usuarios le dan a estos lugares
que hacen parte de la ciudad, se presenta a continuación algunas de las teorías
consideradas, para explicar los fenómenos y las representaciones socioculturales que
resultan de las diferentes formas de percibir y vivir estos nuevos espacios de la ciudad.
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2 LA “TRIALÉCTICA DEL ESPACIO” COMO UNIVERSO CONCEPTUAL EN LA INVESTIGACIÓN
DE LOS PARQUES LINEALES
Para establecer qué relación existe entre las personas y los parques propuestos, se
definieron algunos elementos conceptuales que ayudaron a entender el componente
social que resulta de estas intervenciones espaciales llamadas parques lineales. Haciendo
una lectura socio‐espacial en los parques seleccionados, se dejó de lado la idea
preconcebida de que el territorio físico es el único elemento pensado en el plano sobre
el cual se traza la cartografía cultural, dando una idea de que el espacio arquitectónico
no es solo producto, sino productor de lo social. A partir de la teoría de la trialéctica del
espacio planteada por Henry Lefebvre (1974) en The production of the space, se hizo una
lectura del espacio físico a partir de la conformación trialéctica entre lo concebido, lo
percibido y lo vivido que plantean sus autores, cuya resultante es la comprensión del
proceso de producción del espacio mismo. Esta teoría retomada luego por el geógrafo y
planeador urbano Edward Soja (1996), buscó interpretar las relaciones que se establecen
a través de la espacialidad, asumiendo el espacio no como un simple contenedor, sino
como escenario del comportamiento humano. Soja lleva a la práctica cada uno de los
elementos que compone la trialéctica de Lefebvre y analiza la categoría del lugar, desde
la producción social del espacio habitado para la búsqueda de un saber y una
comprensión práctica del conocimiento, sobre la permeabilidad que tiene el individuo
sobre éste (SOJA, 1996, 5).
Según Lefebvre la trialéctica del espacio propone concebir de forma diferente “la 135
espacialidad de la vida humana” (SOJA, 1996, 1), ya que su aplicación en el contexto
investigativo fue pensada para aquellas disciplinas que se encuentran implicadas
profesionalmente con los estudios socio‐espaciales. Por esta razón se considera la
trialéctica como un referente fundamental en la elaboración de esta investigación
realizada en algunos de los parques lineales, concebidos por el gobierno local de la
ciudad de Medellín.
Entendiendo la trialéctica del espacio como un conjunto de prácticas espaciales, espacios
representados y espacios de representación (PIAZZINI, 2004, 154), la referencia central
de esta marco teórico, que necesariamente surge a partir de una creación colectiva, es la
espacialidad de la vida humana donde aparecen una serie de consecuencias sociales en la
relación hombre‐espacio, otorgando como resultado un “sentido práctico a la
espacialidad de la vida social” (SOJA, 1996, 5). La trialéctica en este sentido representa lo
concebido como lo pensado, lo percibido como lo físico y el espacio vivido como el
representado (SOJA, 1996, 154) en los parques lineales estudiados. Para ampliar mejor
este concepto se recrea la trialéctica del espacio en la siguiente figura (Figura 2).
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Figura 2. La Trialéctica del Espacio. Fuente: personal.
De acuerdo a esta figura, el espacio concebido hace referencia a su finalidad, a los propósitos
que se pretenden desde cada organización, institución, gobierno local o nacional, en donde se
definen las particularidades del espacio, así como la normatividad. Desde la institucionalidad, el
espacio concebido generalmente es visto como un soporte material básico que posee unas
cualidades físicas, climáticas, ambientales junto con materiales funcionales y formales, y el
territorio comprendido como un concepto para entender los parques como ese lugar donde se
definen los procesos y los grupos sociales que lo han venido transformando y haciéndolo parte
de sus aconteceres (ECHEVERRÍA y RINCÓN, 2000, 14). En este numeral el espacio concebido
no se desarrolla conceptualmente a profundidad ya que el caso de estudio que corresponde a
los parques lineales de la ciudad de Medellín, es definido por la Municipalidad.
En cuanto a la dimensión de lo percibido se consideran todos los aspectos físicos del lugar, como una 136
espacialidad materializada junto con las actividades que desarrollan los moradores en cada espacio,
teniendo en cuenta cómo las personas usan, marcan, habitan, y transforman el lugar. Considerando
que es a través de los usos y las prácticas de las personas que se configura un lugar, se pensó en cómo
la instauración de los PL afectan y transforman a los individuos que lo habitan, constituyéndolo como
parte de su entorno. El espacio percibido también se relaciona con el concepto de territorio pensado
como una “producción social del espacio” (ECHEVERRÍA y RINCÓN, 2000, 13), donde lo espacial es
presentado como producto de lo social. De acuerdo a esto, el territorio desde lo percibido, no sólo
define procesos físicos tangibles de tipo cuantitativo dentro de cada espacio físico, sino que adquiere
un significado cuando se usa espacial, temporal y materialmente. Por esta razón se determina aquí
que lo físico y espacial puede influir sobre el aspecto social, no alrededor sino al interior de éste,
permitiendo pensar que lo percibido en estos lugares puede verse como el “…producto social en
relación con otros elementos materiales, entre ellos los hombres, quienes contraen determinadas
relaciones sociales, y dan al espacio una forma, una función y una significación social” (ECHEVERRÍA y
RINCÓN, 2000, 13).
En el contexto de trabajo de los PL se busca establecer la relación que existe entre el reordenamiento
de estos espacios y la forma en que las personas se relacionan con ellos. Para esto el espacio físico
donde se encuentran localizados estos parques, se revisa como aquel material básico que comprende
unas cualidades físicas, climáticas y ambientales, acompañado de unos materiales que tienen función
y forma al tiempo que son definidos por los procesos y grupos sociales que transforman el espacio,
haciéndolo parte de sus aconteceres (ECHEVERRÍA y RINCÓN, 2000, 14). De esta forma las
características físicas de un espacio percibido pueden llegar a trascender por medio de unas
apropiaciones, para convertir ese lugar en el sitio donde se gestan identidades y sentidos de
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pertenencia, o como plantea Milton Santos (1996, 28) en “...la casa, el lugar de trabajo, puntos de
encuentro, caminos que unen esos puntos, que son […] pasivos que condicionan la actividad de los
hombres y rigen la práctica social”.
El espacio vivido como último componente de la Trialéctica del Espacio, tiene en cuenta las
apropiaciones y representaciones que los sujetos y colectivos manifiestan en el espacio como un
lugar cargado de sentidos por quienes lo practican, identifican y habitan, convirtiéndose en escenarios
donde se gestan diferentes situaciones cotidianas. El espacio vivido otorga importancia a
componentes históricos, permitiendo la comprensión de valoraciones y significaciones que las
personas confieren a los lugares practicados, así como a las materialidades existentes en cada lugar
consideradas muchas veces como producto de la cultura material que involucra todo aquello que
ocupa un espacio en la memoria y el reconocimiento colectivo.
Las prácticas territoriales son también un componente importante dentro del espacio vivido, ya
que a través de éstas se expresan sentimientos, nociones y percepciones que llevan a
apropiarse del territorio de diferentes formas. Según Echeverría y Rincón (2000, 17), pensar la
territorialidad es pensar en la marca de un espacio y un tiempo en el que se genera o se altera
un ambiente (físico, social, cultural o político), donde aparecen cambios que implican controles
de transformación del territorio, adquiriendo un sentido a través de lo que la territorialidad le
otorga a ese espacio. De esta forma las manifestaciones de territorialidad encontradas en el
espacio vivido o representado, deben asociarse en cada espacio con las actividades y
representaciones sociales que surgen de las formas de apropiación y territorialización.
Valorando las representaciones sociales como un componente fundamental del espacio vivido, 137
Jodelet (1984 en ARAYA 2002, 11), explica cómo las personas conocen la realidad por medio de
los procesos de comunicación y pensamiento social. Para Araya existe un conocimiento
específico que es determinante en la forma de pensar y actuar de las personas, apareciendo así
un “...conocimiento del sentido común” el cual otorga una forma de percibir1, actuar y razonar
dentro de un conocimiento social que incluye procesos cognitivos, afectivos y simbólicos en los
que se pueden reconocer las conductas que responden a opiniones, normas, creencias y
valores de manera positiva o negativa. Según Araya, la percepción es uno de los componentes
más importantes del espacio, clasificándola según circunstancias sociales relacionadas con la
cultura y la clase social a la que se pertenece. La manera en que influyen las formas en que se
concibe la realidad del espacio, tiene que ver con la manera como ésta es aprendida y
reproducida por los sujetos sociales que transitan, visitan o permanecen en estos lugares. Se
plantea entonces que la percepción desde lo vivido pone de manifiesto el orden y la
significación que la sociedad le asigna al ambiente (MELGAREJO, 1994, 49) reflejada en los
usos, prácticas y apropiaciones de cada individuo.
La antropología define la percepción como una forma de conducta que comprende el proceso
de selección y elaboración simbólica de la experiencia sensible, la cual encuentra sus límites en
las capacidades biológicas humanas y en el desarrollo que el hombre establece para la
producción de símbolos. Según esto, la percepción a través de lo vivido, asigna características
cualitativas a objetos o circunstancias que aparecen en el entorno, mediante referentes que se
elaboran a partir de sistemas culturales e ideológicos construidos y reconstruidos por un grupo
social, permitiendo generar evidencias, sobre una realidad determinada (VARGAS M, 1995 en
MELGAREJO, 1994, 50). Desde este contexto, el espacio vivido entra en el territorio del
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imaginario como elemento integral para la construcción del lugar. Al poner en consideración la
historia humana y las diversas formas de sociedad que se conocen, se puede decir que éstas se
definen esencialmente por la creación imaginaria, la cual evidentemente no puede ser
catalogada como ficticia, ilusoria o especulativa, sino que son formas creadas por cada
sociedad, haciendo que exista un mundo en el cual cada grupo se inscribe y configura un lugar
(CASTORIADIS, 1975, 227)
Como concepto clave para la interpretación de lo vivido en el trabajo de campo, el imaginario
se asocia con la producción de creencias e imágenes colectivas generadas por los actores
sociales de cada parque, a partir de las ideas que se registraron en la memoria de la comunidad
que interpretó y significó de forma diferente cada intervención. Según esto, los espacios de
representación que aparecen desde lo vivido, se combinan con la forma en que los parques
lineales trabajados son percibidos e interpretados. Con ello se tiene en cuenta que es a través
de los imaginarios, que los individuos construyen creencias compartidas que finalmente son
aceptadas por una sociedad, en la que participan una serie de significaciones sociales
constitutivas de una identidad colectiva. Lo deseable, lo imaginable y lo pensable de la
sociedad actual, se define por la comunicación que se establece dentro de un espacio
(CASTORIADIS, 1975, 227). Las formas de comunicación creadas por cada grupo,
(…) hacen que exista un mundo en el cual esta sociedad se inscribe y se da un lugar. Mediante ellas es
como se constituye un sistema de normas, de instituciones en el sentido más amplio del término, de
valores, de orientaciones, de finalidades de la vida, tanto colectivas como individuales. En el núcleo de
estas formas se encuentran cada vez las significaciones imaginarias sociales, creadas por esta sociedad, y
que sus instituciones encarnan (CASTORIADIS, 1990, 195). 138
En la medida en que se logre comprender cómo los actores sociales perciben la importancia de
esos lugares que habitan, se podrá tal vez contribuir a una comprensión del vínculo que hay
entre los parques investigados y las relaciones de tipo social que se producen en los mismos, ya
que éstas no sólo funcionan como componente tangible del lugar, sino como condición o límite
de la acción frente al uso de los mismos, al tiempo que se tiene presente la construcción
sociopolítica en la que se elaboran, imaginan y cuestionan las maneras en que se imponen las
nociones de espacio público y lugar, influyendo innegablemente sobre la cultura, el tiempo, el
sitio, sus habitantes y visitantes.
3 RUTA METODOLÓGICA DEL TRABAJO EMPÍRICO
Dentro de la ruta metodológica trazada en esta investigación, es importante señalar que la
trialéctica del espacio desarrollada también guio la recolección, organización y posterior análisis
de la información de esta exploración. Con la propuesta que plantea la trialéctica, se toma el
espacio concebido para revisar todos los aspectos referidos a la planeación de estos parques,
seguido por lo que se percibió en el trabajo de campo y por último el análisis e interpretación de
los datos recopilados, expuesto en el espacio vivido de cada parque lineal. De esta forma la
primera parte se enfoca en la planificación donde se identifican las entidades encargadas de la
intervención y transformación de estos lugares, conociendo las consideraciones tenidas en
cuenta para la planeación de estos PL. La segunda etapa se concentra en la intervención y se
estudia a profundidad los cambios espaciales, amueblamiento y redistribución, así como las
consideraciones para su construcción. Por último se analiza la apropiación de los diferentes
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usuarios en estos parques entregados por la Municipalidad, buscando establecer que
coincidencias hay entre las propuestas del Estado para el uso de estos lugares y las
respuestas que resultan por parte de las personas que habitan, recorren, aceptan,
apropian o rechazan estos espacios. Para esta última fase correspondiente a la
apropiación (o lo vivido), se tuvieron en cuenta unas categorías de análisis, para ubicar
este modelo reciente de espacio público a partir de la naturaleza urbana inscrita en la
ciudad, seguida por la domesticación del espacio público en la que se aprecian prácticas
cotidianas exclusivas de la vivienda y que son extendidas hacia el espacio público y por
último, las percepciones y representaciones sociales que los diferentes usuarios de estos
parques elaboran con relación al sentido y funcionamiento que deben tener esta clase de
lugares, es en lo que se concentra el interés para soportar este texto.
Para entender qué sucedió socialmente con las transformaciones físicas convertidas en
parques lineales, se emplearon una serie de variables que contribuyeron a la lectura
socio‐espacial en la que los sujetos evidenciaron sus lógicas, visiones, modos de ser y
estar teniendo en cuenta los siguientes aspectos:
Tiempo: con este factor se consideran los momentos en que se ocupan y se
desocupan estos parques.
Mobiliario: se consideran dentro de esta variable todos objetos y materialidades
usadas, apropiadas o alteradas dentro de cada lugar.
Usuarios: se clasifican de acuerdo a la frecuencia de uso de los lugares en los 139
están presentes visitantes, vecinos y transeúntes.
Acciones y actividades: se tienen en cuenta a partir de los actos que se realizan y
la frecuencia con que se desarrollan.
Comportamientos: éstos pueden ser puntuales o generales con respecto a un
individuo o grupo (impacto en cuanto al uso, magnitud de ocupación y actividad
en el espacio utilizado).
Localización: Para este caso se tiene en cuenta cada parque lineal y su relación
con el entorno inmediato (proximidad al barrio o a la ciudad).
Centralidad externa: se manifiesta en las formas de acceder al parque desde
cualquier parte del barrio.
Centralidad interna: está pensado como las líneas indicadoras de puntos físicos
donde confluyen senderos y espacios dirigidos a las prácticas cotidianas de los
usuarios.
Las categorías de análisis mencionadas en párrafos anteriores, se amplían a continuación
para explicar lo que se encontró en los parques investigados y considerados siempre
desde las tres posturas de la trialéctica: el parque concebido, el parque percibido y por
último, el parque vivido.
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4 EL PARQUE LINEAL CONCEBIDO COMO NATURALEZA URBANA
Creados dentro de la planeación urbana de Medellín, estos parques pertenecen al Plan de
Desarrollo 2004‐2007, como parte 2del espacio público y del medio ambiente. De acuerdo a
este plan, se proponen una serie de estrategias con las normas complementarias al POT,
buscando avanzar en la recuperación del río Medellín como espacio público metropolitano, por
medio de alternativas que aseguren la calidad del mismo, para el encuentro ciudadano
mejorando así las condiciones para la movilidad de sus habitantes. Para esto se buscó
intervenir en orden de prioridades, las quebradas en forma de parques lineales promoviendo
así la articulación de los barrios, con los sistemas de movilidad y equipamientos de la ciudad3.
Pensados para los cuatro puntos cardinales de la ciudad4, de acuerdo al componente urbano
que hace parte del sistema estructurante de espacio público de la ciudad, la ubicación de esta
clase de parques enmarca una gran diferencia frente a los parques biblioteca5, que son centros
culturales inscritos dentro de modernas infraestructuras, con amplios espacios verdes públicos,
senderos peatonales y mobiliario ubicados estratégicamente en las zonas más necesitadas de
Medellín y concebidos por la administración municipal como lugares en los que se
implementan diferentes programas socioculturales y educativos, que le apuntan al
mejoramiento de la calidad de vida de los ciudadanos, que habitan las zonas más pobres y
vulnerables de la ciudad6..
Previstos para responder a la necesidad de un espacio en particular, hay que recordar que para
el caso de la Bermejala y La Hueso existieron unos requerimientos enmarcados en lo funcional,
mientras que para La Presidenta y Bicentenario hubo un asunto relacionado con lo 140
contemplativo, sumado a la recuperación ambiental. De acuerdo a esto, las intervenciones de
los cuatro parques se enfocaron en recuperar y canalizar las quebradas de cada sector, al
tiempo que sé que se promovió un desplazamiento agradable visualmente por medio de la
contemplación del paisaje, el paseo y el encuentro cuando las personas cruzan algunos de
estos parques.
Medellín obedece a la de un valle estrecho y urbanizado que exige inventar nuevas formas para
hacer crecer el espacio público, de acuerdo con las limitaciones y condiciones topográficas,
siendo los parques lineales alrededor de las quebradas, otra forma de hacer parques en la
ciudad. Debido a que la ciudad tiene muchas pendientes y fuentes hídricas, Medellín tendrá un
millón de metros cuadrados en parques lineales alrededor y a lo largo de sus quebradas y del
río Medellín, como un sistema de respuesta novedosa a la que nos obligan las montañas
(PÉREZ, 2003,141).
Pensados por el gobierno local como espacios abiertos para diferentes posibilidades, se tiene
en cuenta que los parques lineales a partir de su diseño, fueron pensados con unos usos
particulares en cuanto al ocio y esparcimiento se refiere. Teniendo en cuenta cómo el gobierno
local organiza los recursos naturales para crear naturaleza urbana en forma de trayectos
lineales para recuperar ciertos espacios de la ciudad, se ve cómo algunos elementos de la
naturaleza como plantas, árboles y quebradas quedan organizados en forma lineal para el
disfrute público.
Vale la pena resaltar en el caso de los parques escogidos, que aparte de considerar la diferencia
topográfica con que cuenta cada sector en donde se encuentran inscritos, también se
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consideraron los antecedentes históricos, las condiciones sociales, políticas y económicas que
demarcan cada lugar, estableciendo una diferencia no sólo en sus recorridos, sino por la forma
en que son usados en cada sector de la ciudad. Pensando en los cuatro parques lineales
escogidos como lugares de acceso, circulación y visibilidad, también se consideraron como
lugares donde se gestan permanentemente las formas específicas de vida social entre
desconocidos, que tienen que convivir entre sí. Transitando o habitando temporalmente en
estos parques, aparece una realidad que resulta por la interacción social entre conocidos o
desconocidos, se realiza dentro de un mismo espacio público. Aunque somos seres hechos para
vivir en ambientes internos con límites definidos y conocidos, también somos seres sociales
que compartimos vivencias y experiencias que necesitan del otro para su propia
complementación (SARTRE, 1997 en SILVA, CORREA y MAGNABOSCO, 2010, 111). Por esta
razón se considera pertinente pensar que las transformaciones que surgen en estos parques,
aparte de estar compuestos por aspectos físicos y materiales dispuestos en un orden
determinado, también se debe pensar en los fenómenos sociales que surgen dentro de estos
escenarios, como resultado de las transformaciones espaciales. Los parques lineales escogidos
se convierten entonces, en el lugar donde se manifiestan los diferentes usos de acuerdo a los
intereses de cada parte. No se define como una simple colección de eventos y objetos
observables, sino como esa porción de espacio, en donde se produce la simbiosis de los
sentimientos personales con lo simbólico y lo colectivo (DALIA y ARTIOLI, 2009, 8).
De acuerdo a lo encontrado en espacio concebido, estos parques fueron interpretados de
múltiples maneras y por diferentes individuos de acuerdo a sus necesidades particulares,
otorgándole a cada lugar nuevos sentidos y significados aparte de la naturaleza urbana que se
141
inscribe como soporte material básico que posee unas cualidades físicas, climáticas,
ambientales junto con otras materiales funcionales y formales.
5 EL PARQUE PERCIBIDO COMO ESPACIO DOMESTICADO
Teniendo en cuenta que el espacio percibido es donde se encuentra presente todo lo físico y
tangible, se busca reconocer de qué forma lo material influye sobre lo social, a partir de lo que
Milton Santos define como “un conjunto indisociable, solidario y también contradictorio de
sistemas de objetos y sistemas de acciones, […] no deben ser considerados aisladamente […] ya
que […] los sistemas de acciones tampoco permiten el conocimiento sin los sistemas de
objetos” (1999, 51 en SCHNEIDER y PERÉY, 2006, 8). De acuerdo con esto, se plantea que la
disposición de las materialidades presentes en los parques concebidos, a veces influye en la
manera en que éstos son usados y territorializados. Desde el reconocimiento que se hizo de los
objetos que hacen parte del mobiliario de estos parques como son las bancas y los senderos, se
pudo apreciar de qué forma éstos se convierten en dispositivos importantes a la hora de
permanecer en cada lugar. Por ejemplo las bancas de algunos de los parques investigados,
además de ser usadas para sentarse también son empleadas para acostarse, leer, esconder la
basura o transformarse en portería de futbol, en el momento de jugar un partido.
Aparte de las funciones de cada parque, se encuentran otros aspectos relacionados con las
percepciones sensoriales. Aunque éste no es uno de los ejes temáticos de esta investigación, sí
es importante enunciar que la presencia de olores, colores, texturas, climas o ruidos de cada
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parque también aportan en la producción de la vida social de cada lugar. Según la antropóloga
Martha Cedeño Pérez, las relaciones de los seres humanos con el entorno son de naturaleza
poli sensorial, haciendo que todo lo que captemos a nuestro alrededor sea a través de los
sentidos. De acuerdo al antropólogo Edward T. Hall, el ser humano cuenta con dos tipos de
receptores que le ayudan a captar todo a su alrededor. Como primeros receptores de distancia
se encuentran los oídos, la vista y la nariz con los que se percibieron los olores fuertes y
desagradables en la quebrada de La Bermejala, que comparado con La Presidenta, el fuerte
olor, no es una característica del lugar. De igual forma los ruidos fuertes alrededor de La
Bermejala y Bicentenario marcaron una enorme diferencia, comparado con el silencio de La
Presidenta y La Hueso. En cuanto a los segundos receptores que denomina Hall como
inmediatos, se encuentran la piel y los músculos que captan la temperatura y las texturas o
superficies. Para este caso factores como el clima, la hora y otros aspectos sensibles que se
perciben a través de la piel, pueden influir al momento de estar o rechazar este tipo lugares
(HALL, 1972). En el caso de La Bermejala y Bicentenario por ejemplo, se experimentó al
transitar por sus senderos, cómo la ausencia de árboles incrementaba las altas temperaturas
en época de verano, produciendo una fuerte sensación de calor a la hora de caminar, sobre
todo al medio día cuando el sol está más fuerte y no hay muchas opciones de sombra ni
natural, ni artificial para resguardarse.
De acuerdo al profesor José Jairo Montoya, no tener un lugar es como habitar una temporalidad, en
vez de una espacialidad (MONTOYA, 2010, 90). Por donde antes permanecíamos hoy simplemente
vamos de paso, siendo la estancia prolongada un concepto más efímero todos los días dentro del
espacio citadino, que da como resultado una condición de extranjeros en nuestro propio territorio. Se
142
hace la salvedad que el término extranjero empleado en este artículo, se relaciona con los
comportamientos que se producen en el espacio público y que solamente responden a contactos
ligeros, transacciones móviles y encuentros pasajeros en los cuales cabe más la actitud del sujeto, que
la identidad del individuo que vive en la ciudad. Partiendo de esta idea se puede decir que los usos,
prácticas y actividades encontradas sobre todo en los parques La Presidenta y Bicentenario, se
definieron por el registro de permanencias cortas justificadas por los mismos visitantes que
reclamaron a través de las entrevistas, las limitadas opciones que ofrecían estos parques eran muy
limitadas a la hora de permanecer en estos lugares, por largo tiempo. Como espacios públicos
dispuestos para el encuentro y el ocio pasivo, estos parques lineales presentan dos funciones
complementarias que son la de circular para ir a alguna parte, o la de pararse para estar y existir en un
lugar dentro del mismo.
Percibiendo en tiempos muy marcados un microcosmos de prácticas citadinas, interacciones y
acontecimientos de los que se desprenden diferentes formas de ser y estar, se encuentra un contraste
entre los tránsitos rápidos de las personas que sólo atraviesan estos parques y que reclaman la falta
de más sitios para descansar, lo que obliga a reducir el tiempo de permanencia en éstos. Para este tipo
de usuarios que cruzan cada lugar para conectarse con otras estancias de manera rápida, se le asignó
la categoría de turistas o extranjeros, junto con los visitantes que en su mayoría permanecían por
tiempos muy cortos, dando como resultado una situación en la que se habita una temporalidad, en
vez de una espacialidad. Por otro lado están los visitantes que a pesar de no encontrar muchas bancas
o cubiertas que protejan de la intemperie, transforman, utilizan y adecúan ciertos espacios del
parque, de acuerdo a sus necesidades definidas en la vida cotidiana y que van cobrando significado
según los usos encontrados (Figura 3 ).
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Figura 3. Personas comiendo en el parque lineal La Presidenta. Nota: las mesas y objetos que se aprecian en la imagen no hacen
parte del mobiliario original del parque. Fuente personal, agosto de 2010.
Se puede concluir que las personas no sólo tienen la capacidad de dar sentido a los entornos urbanos
a partir de sus comportamientos, sino que también pueden transformarlos llegando incluso a cambiar
su sentido original. Más que optimizar los espacios estéticos de la ciudad, se debe evidenciar un
reconocimiento por parte de los sujetos respecto a los lugares que se piensan poner a su disposición,
pues “aquél que tiene la sabiduría para la creación de intervenciones fantásticas, debe también
ocuparse de la elaboración de sus significados. Estos construyen la historia y con ella otra porción de
otras historias” (SILVA, CORREA y MAGABOSCOSO, 2010, 119).
143
6 DOMESTICANDO EL PARQUE
Continuando con la búsqueda de aquellas manifestaciones que reflejaran la
domesticación del espacio público, se encontraron algunas prácticas cotidianas en La
Bermejala, que dejaron ver la forma cómo la casa logra permear el espacio urbano a
partir de las dinámicas domésticas y las formas de significación expresadas por sus
habitantes y vecinos, a la hora de usar este lugar. Al encontrar actividades como secar la
ropa al sol, cocinar en los senderos peatonales o asolear los recién nacidos sobre las
barandas de la quebrada canalizada, la extensión de la vivienda en el espacio público
consolida el PL como su centro y da lugar a lo habitable y lo comprensible, que son dos
factores constituyentes de lo doméstico. Comprendiendo los significados e imaginarios
que se construyen hacía el interior y exterior de la casa y cómo es la relación con el
umbral inmediato a la vivienda (correspondiente a lo público), se evidencia en La
Bermejala, un espacio público que para algunos se remite a la utilización del
esparcimiento y recreación como expresión tradicional de lo público, mientras que para
otros cumple con el sentido de abrigo, donde se extiende la acepción de hogar en lo cual,
la familiaridad de la casa se dilata hacia el exterior, permitiendo identificar
particularidades íntimas que corresponden a las prácticas domésticas de la vivienda, con
situaciones que no estaban previstas dentro del urbanismo y las formas de diseño
arquitectónico del espacio público tradicional. De esta forma, los individuos dotan el
exterior de sentidos, cualidades y significaciones privadas que para la Municipalidad no
corresponden a las estéticas del espacio público.
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Según Mauricio Chemás, cuando el entorno se hace próximo a la vivienda, tanto el afuera
como la casa misma se convierten en el micro hábitat del individuo, a través de modos de
relación particulares según el contexto que valoran estética, social y culturalmente las
condiciones del macro hábitat que es el vecindario o la misma ciudad (2007, 11). Para este
autor, en lo cotidiano de estos territorios aparecen unos límites mucho más flexibles y
permeables que se definen como fronteras de unos imaginarios en los cuales las personas
conviven de manera armónica en el espacio público. Lo que resulta de estas apropiaciones del
espacio físico, se convierte en lo que él llama la “tercera zona” como nuevo espacio de
afluencia. Éste proviene de la mezcla entre lo público y lo privado que no es la calle ni es la
casa, sino una tercera zona que remplaza lo que antes era un espacio vacío. A esta tercera zona
Fernández (2004, 20) la denomina “casa pública”:
(…) sacar la casa al mundo, y fundar allá fuera un intercambio de perspectivas domésticas, […] implica
crear un espacio comunicativo inédito, que no sea ni casa ni calle, sino otro, semiprivado y/o semipúblico,
entre cuatro paredes pero con las puertas abiertas. Ni casa ni calle, por lo que se llamó ‘casa pública’.
Situación propia de muchos sectores populares de las ciudades latinoamericanas (Figuras 4 y
5).
Figura 4. Secando la ropa sobre el parque. Figura 5. Cocinando en el parque lineal.
144
Después de conocer este tipo de prácticas sobre el parque lineal La Bermejala, se
considera el espacio público como un territorio en el cual más que su comprensión como
escenario que da lugar a la vida cotidiana, sea comprendido como un territorio en el cual
se deja grabada la huella de la existencia del ser humano, quien mediante su uso
cotidiano lo impregna con su esencia y llega a concebirlo como un espacio de vida. Bajo
esta fundamentación conceptual surgen algunos de los planteamientos teóricos más
notables de esta investigación; autores como (SOJA, 1996), (ECHEVERRÍA y RINCÓN,
2000), (LEFEBVRE, 1996), (MATA, 2005), (SANTOS, 2000) se toman como una base
conceptual fundamental que define los vínculos que tiene el hombre con el espacio
público y la vivienda, como resultado de la materialización y representación que contiene
la esencia de quien habita. “un pedazo del mismo convertido en espacio” (BOLLNOW,
1993, 92) exteriorizando su forma de habitar. Esta fundamentación ayuda en la
comprensión del espacio público desde la producción social del espacio habitado,
abordando no sólo lo concebido, sino también lo percibido y lo vivido para la búsqueda
de un saber y una comprensión más práctica en el conocimiento sobre la apropiación del
espacio público. Más allá del espacio percibido, se encontró en la configuración del
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territorio una serie encuentros, desencuentros, intercambios, asimilaciones,
diferenciaciones y exclusiones cuando los diferentes actores sociales participaron de
forma directa o indirecta, en estos parques lineales. Pensando en la función social que
deben cumplir estos espacios a través de los servicios y oportunidades que prestan a las
diferentes comunidades, aparece implícito el tema del diseño pensado para cada lugar.
Se propone por lo tanto debatir la “domesticación” de lo urbano no sólo como un
fenómeno geo‐espacial, sino también político, ético y estético que compromete el
habitar; ya que establece una relación de dominio del ser humano sobre el espacio, con
el fin último de habitarlo. De acuerdo a esto se genera la pregunta: ¿conoce la
Municipalidad las prácticas y apropiaciones que gestan día a día los habitantes, en los
espacios públicos que proyectan? Es importante aclarar que en este documento sólo se
somete a discusión los hallazgos de los parques lineales enunciados anteriormente. En
estos lugares además de dar respuesta a esta pregunta se vincula, discute y evalúa las
correspondencias ente la mirada del Estado y las respuestas de los actores, que a diario
utilizan estos lugares.
7 EL PARQUE COMO ESPACIO VIVIDO O REPRESENTADO
Recordando que en la trialéctica del espacio, lo vivido es sinónimo de lo representado, se
toman en cuenta para esta última parte del artículo, las apropiaciones y representaciones que
los sujetos y colectivos manifiestan en los PL, como lugares cargados de sentidos por quienes lo 145
practican, identifican y habitan, convirtiéndose en escenarios donde se gestan diferentes
situaciones cotidianas. El espacio vivido también otorga importancia a componentes históricos
de cada lugar, permitiendo la comprensión de valoraciones y significaciones que las personas
confieren a los sitios practicados, así como a las materialidades existentes en cada lugar,
consideradas como producto de la cultura material que involucra todo aquello que ocupa un
espacio en la memoria y un reconocimiento colectivo.
Aunque los parques tradicionales y lineales funcionan como receptáculos para el encuentro y la
interacción, el sentido del PL se encuentra más orientado a promover en términos funcionales, un
ejercicio de conectividad y corta permanencia. Como uno de los hallazgos sobre estos espacios de
representación, se encontró que muchos de los usuarios desde su propia interpretación, no
encuentran un diálogo muy fluido entre la infraestructura establecida en estos espacios y la retícula
dotada de grama y árboles que muchos se imaginan, cuando se les menciona la palabra parque lineal.
Transformada tanto la forma como la función, muchos sintieron que el cuadrado se remplaza por la
línea y el acto de estar, por el de cruzar.
Observando el caso del parque lineal Bicentenario, se encontró que diferentes personas entrevistadas
lo definen como un parque a secas, sin la palabra lineal. De acuerdo a lo que respondieron los
interlocutores, este lugar es apropiado de forma diferente por cada individuo o grupo que lo visita con
actividades tan diversas como elevar cometas, montar en patineta, esconderse para desarrollar
actividades ilícitas relacionadas con el consumo de alcohol o sustancias alucinógenas, vender o
comprar comida, comer, hacer deporte, acostarse a dormir o jugar con la pantalla de agua, hacen de
este tipo de parques lineales, sitios multipropósitos a pesar del poco mobiliario.
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Como otra forma de reconocimiento de estos parques para conocer el espacio vivido, muchos
de los usuarios identificaron estos lugares, a partir de lo que actualmente consideran que les
hace falta. Examinando lo ausente, los entrevistados elaboraron una lista de materialidades
que pensaban debían estar presentes para poder configurar cada PL de acuerdo con su
imaginario. Reclamando la presencia de más mobiliario y disposición de diferentes servicios y
equipamientos como tiendas, cafés, colegios y mercados o lugares para cambiarse la ropa para
poder disfrutar de la pantalla de agua (como fue el caso de Bicentenario), los interlocutores
consideraron que estos elementos podían aportar de forma positiva, en el funcionamiento de
los diferentes parques. Es importante señalar en este punto que cuando se inauguró el parque
lineal Bicentenario, desde lo concebido con relación a la pantalla de agua, fue pensada para un
uso enteramente contemplativo, aunque con el paso del tiempo se debió ajustar el
funcionamiento de esta pantalla con unas instrucciones adicionales de uso para los visitantes, a
los cuales se les sugiere no utilizar bronceador o protectores solares y no pararse sobre las
rejillas de desagüe que hay e el suelo, debido a que muchos de sus visitantes la emplean como
fuente y ducha, sobre todo en los fines de semana. (Figura 6)
Figura 6. Personas bañándose en la pantalla de agua. Foto tomada por estudiantes al medio día en semana.
146
De esta forma las lógicas de apropiación de los parques lineales varían según las
representaciones sociales que tengan construidas sus vecinos, habitantes o visitantes, reflejado
en las diferentes formas de habitar el territorio. Por ejemplo los senderos que determinan
estos lugares y su apropiación, no siempre son los que definen el encuentro y las relaciones
sociales vistas en cada lugar. A pesar de no estar acondicionados para estancias largas, estos
parques no dejan de ser empleados por los jóvenes que en el día o en la noche no tienen
problema para sentarse, así no haya suficiente mobiliario e incluso, acostarse en el piso de cada
parque. En este caso el poco inventario material, no es un impedimento para que se relacionen
algunos vecinos o visitantes, que desdibujan las marcas que recuerdan que estos lugares
fueron concebidos para ser utilizados de paso. Por esta razón las acciones surgidas en cada
parque lineal como caminar, hablar, comer, conversar, jugar, secar la ropa al aire libre, vender,
comprar, divertirse, observar el paisaje, hacer ejercicio, descansar o tomar el sol fueron entre
otras, las experiencias citadinas que sirvieron como testimonio directo en las diferentes formas
de usar estos lugares, marcando y transformando el sentido de cada sitio por cuenta de sus
vecinos o visitantes. Considerados como territorios que adquieren su existencia por medio de
la expresión de territorialidad que se manifiesta dentro de un conjunto de prácticas,
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expresiones materiales y simbólicas, estos parques se definen por momentos la apropiación y
permanencia de un determinado territorio, por un determinado agente social (LOBATO
CORREA, 1996, 252, en MONTAÑEZ y DELGADO, 1998, 124).
Teniendo en cuenta las valoraciones y significaciones que las personas le otorgan a los lugares
desde su imaginario, se pudo observar cómo en el caso de La Bermejala aparecen sentimientos
relacionados con el arraigo, la identidad y un sentido de pertenencia muy fuerte hacia el barrio
de Moravia y de un modo menos visceral para Laureles y El Estadio que son los barrios donde
se encuentra ubicado el PL La Hueso. Esto se hizo evidente cuando los habitantes y vecinos de
Moravia expresaron que cuando salen de sus casas no lo hacen al parque lineal, sino a su
barrio.
Desde lo vivido, se ve entonces como ambos parques (La Hueso y Bermejala) además de ser
entornos físicos y sociales, sirven de escenario en los que se gestan diariamente múltiples
experiencias de la vida cotidiana entre los vecinos y transeúntes que reconocen que las calles,
aceras, plazoletas, puentes, senderos peatonales de cada parque lineal se convierten en
escenarios para el juego, el trabajo, la diversión, la reunión, el encuentro o el conflicto,
otorgándole dinamismo y vida a cada lugar.
Más que identificarse con las intervenciones físicas en el caso de La Bermejala, lo hacen
con la memoria y el recuerdo, expresando así el apego al lugar al que ellos consideran
que pertenecen. A pesar de que el barrio Moravia donde se encuentra ubicado el PL La
Bermejala, todavía se presentan situaciones muy criticadas en cuanto a la calidad del
hábitat por los altos índices de población hacinada, la poca distancia que separa lo 147
privado de lo público, el poco espacio público por habitante y un déficit notable en
cuanto a espacio privado se refiere, aparecen continuamente manifestaciones de
participación, liderazgo y alianzas solidarias entre sus habitantes como es el caso de los
convites 7 realizados en el barrio, que refuerzan los vínculos y reconocimientos del
territorio. Para el caso de La Hueso aparece un fenómeno similar, ya que sus vecinos y
visitantes consideran que la entrega de este nuevo lugar lo consideran más como un
aporte para su barrio, que para el resto de la ciudad, aunque también hay quejas de los
mismos usuarios que reclaman la falta de más mobiliario y luminarias, que garanticen la
seguridad dentro del lugar.
Recordando que la extensión y diseño de los parques lineales investigados no solo tienen un
trabajo de recuperación ambiental de las quebradas, sino que hacen las veces de conexión a
través de sus senderos, comunicando barrios con barrios, o barrios con el resto de la ciudad
como sucede con La Bermejala, La Presidenta y Bicentenario, se pudo conocer cómo los
mismos senderos, funcionan diferente de día y de noche. Con la observación realizada
durante el trabajo de campo, se pudo vivir de cerca la forma cómo muchas personas
percibían la transformación de estos parques, cuando llegaba la noche. Convirtiéndose en
una frontera para el tránsito tranquilo de muchas personas, estos parques son acogidos por
muchos solo durante el día. En el caso de La Presidenta y Bicentenario por ejemplo, muchos
de los visitantes que iban en el día sentían temor frente a los comportamientos y actitudes
de otros individuos y grupos que visitaban estos lugares en la noche, sobre todo si estaban
mal vestidos, en estado de alicoramiento o consumiendo algún tipo de sustancias
alucinógenas. En cambio cuando se les preguntó qué sensación les transmitía la presencia de
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niños o ancianos en esta clase de lugares, dijeron sentirse tranquilos, acompañados y
seguros debido a que la presencia de este tipo de personas, sí invitaba a permanecer en
estos sitios, de acuerdo a la idea de seguridad y bienestar que consideran los usuarios con
relación a este tipo de espacios públicos.
Como una conclusión general frente al espacio vivido se considera que las percepciones positivas o
negativas que resultan en estos parques, no solo están determinadas por la disposición espacial y
material de los mismos, sino por el tipo de personas que lo visitan. Según esto, muchos usuarios
diurnos sienten que estos parques funcionan de día como lugares abiertos, mientras que en la
noche se transforman en una frontera oscura que restringe las formas de acceder al lugar. Como
espacios solitarios, muchas de las personas entrevistadas expresaron que estos PL no ofrecen las
condiciones adecuadas para los tránsitos ni diurnos y nocturnos, ya que por un lado los mismos
senderos de los PL se convierten en barreras que sólo los más osados se atreven a pasar y por otro,
la noche alimenta las sensaciones de miedo y peligro aumentada con la poca visibilidad de los
lugares, dando como resultado cualquier posibilidad de robo o agresión física. Al preguntar por el
tiempo de permanencia a las mujeres que visitaban estos parques, la mayoría manifestó que estos
sitios de noche cambian y se transforman en lugares de difícil acceso, llegando incluso a
considerarlos como fronteras que obstaculizan cualquier tránsito u ocupación, por el riesgo de
sufrir algún tipo de agresión física o robo.
Como otro aspecto relacionado con las fronteras espaciales percibidas por muchos
usuarios, se encuentra la poca iluminación y la disposición espacial que tienen estos
parques y que es percibida como espacios que promueven el escondite de personas o 148
animales que pueden en un momento determinado, llegar a agredir a los visitantes y
transeúntes que van o cruzan este tipo de parques. De acuerdo a la respuesta de muchos
interlocutores entrevistados, la percepción de miedo está relacionada con la idea de no
atravesar estos parques o a permanecer en otros lugares dentro de los mismos.
Las fronteras espaciales que se identifican en estos parques también están definidas por
el tiempo que las personas consideran que se puede permanecer o no, en estos lugares.
De acuerdo a esto la finalización del día es vista por muchos, como una situación que las
personas asocian con la oportunidad de lo ilegal y peligroso. Pensando que la noche
promueve actividades que no se practican de día como el consumo de alcohol, sustancias
alucinógenas y manifestaciones exageradas de afecto en el espacio público, hacen de
estos lugares, el sitio ideal para desprenderse de prejuicios o prohibiciones para unos, o
en fronteras para los que no quieren presenciar este tipo de actividades. De esta forma el
espacio y el tiempo se convierten en factores que definen sus vecinos y visitantes, a la
hora de llegar o permanecer en estos parques lineales. Como dicen Análida Rincón y
María Clara Echeverría:
Uno de los ámbitos donde se gesta la territorialidad es el de la memoria y el imaginario, en el que
se funden inconscientemente los esquemas socioculturales frente a esos espacios (concretos o
virtuales); se construyen imágenes sobre estos; se posibilitan, limitan o guían ciertas percepciones
(se ama o se teme) desde las que asumen ciertas relaciones con espacios y se ocupan, desocupan,
habitan o deshabitan, se frecuentan o se evaden ciertos lugares (ECHEVERRÍA y RINCÓN, 2000, 41).
De acuerdo a esto, el sentido de referencia y la condición de permanencia se ve
influenciada por las fronteras que restringen el acceso al lugar, en donde el sentido de
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apropiación está determinado por el imaginario que construyen los diferentes actores
sociales de cada parque, frente a lo que perciben espacial y socialmente, cuando utilizan
algunos de sus tramos, en diferentes horas del día o de la noche.
Como espacio vivido los parques lineales La Presidenta, La Hueso o Bicentenario pueden
ser los senderos que comunican con el resto de la ciudad o la frontera que delimita,
cuando la calidad del disfrute se restringe y emergen sentimientos relacionados con el
miedo, frente al uso o permanencia en el lugar. A partir de la mirada imaginativa de los
propios vecinos y usuarios que construyen fronteras espaciales y temporales en estos
parques, se encuentra una variedad de percepciones que van desde un lugar bonito y
agradable, hasta uno peligroso y solitario que las personas se rehúsan a cruzar.
8 REFLEXIONES FINALES
Partiendo de la idea de que esta clase de espacios públicos son los que hacen posible la
ciudad, existe una posibilidad de que lo que se vaya encontrando en el camino es que la
misma urbe, se está configurando como un espacio cada vez más independiente y difuso,
donde los lugares centrales que antes servían de punto de encuentro, ahora empiezan a
quedarse en el recuerdo y la añoranza de muchas personas, que buscan rescatar su
propia identidad, a partir de las diferentes formas de ser y estar en la ciudad. Con la idea
de permanencia en el espacio público cada día más difusa, la ciudad cosmopolita e
interconectada se expande, cambiando el habitar de las casas por edificios, el entorno 149
barrial por unidades residenciales, los parques cuadrados por lineales y las calles por
avenidas y autopistas.
Frente a lo percibido se puede decir que los parques lineales funcionan como escenarios
de significado y socialización por medio de diferentes expresiones y apropiaciones de
carácter social, político, económico o cultural. Es importante resaltar que las expresiones
relacionadas con los usos, prácticas y apropiaciones responden a una serie de
comportamientos que, aparte de relacionarse con los usos y las prácticas de cada lugar,
también resultaron situaciones que fueron asociadas a los diferentes modos de
apropiarse y otorgarle un sentido de pertenencia a cada parque.
Considerando el espacio físico no como una imagen subjetiva del entorno, sino como un
conglomerado de sujetos, acciones y percepciones que hicieron de estos espacios un
entorno múltiple y variado sobre el que las personas tomaron decisiones espaciales para
estar y/o transitar. Por lo que durante los tránsitos, las esperas, los cruces, los encuentros
y las ocupaciones espaciales se pudo comprender que la utilización de estos lugares no se
determinaba únicamente por los elementos físicos presentes en cada lugar, sino por el
significado que tanto vecinos como visitantes le otorgaron a cada parque. Pensados como
aspectos positivos para la ciudad por parte del gobierno local, pero interpretados como
un riesgo o amenaza por la comunidad, estos PL fueron entendidos muchas veces como
espacios generadores de sentimientos negativos en donde el miedo, la inseguridad y la
desconfianza hizo que el espacio transformado para beneficio de los ciudadanos, fuera
percibido de forma contraria por sus habitantes y visitantes.
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A partir del interés que había por conocer los actores sociales presentes en cada parque
se pudo entender por medio de las actividades, usos, trayectorias, qué apropiaciones
aparecían de acuerdo a las representaciones sociales de cada lugar, las cuales en muchas
oportunidades se alejaron de lo que el gobierno local tenía concebido, cuando construyó
estos parques lineales. Por otro lado es importante reconocer desde lo concebido, que se
atendieron problemas físicos relacionados al mejoramiento ambiental de las quebradas
(olores, desechos, vertimientos, contaminación ambiental) y algunos aspectos
relacionados con el orden social, la movilidad, la localización de venteros ambulantes y la
dotación de un espacio público efectivo, respondiendo en forma positiva a las
necesidades básicas de circulación y conectividad peatonal, así como la recuperación
parcial de las quebradas que quedaron canalizadas para evitar riesgos de
desbordamientos e inundaciones según la infraestructura establecida.
Frente a lo vivido se puede concluir que los diferentes tipos de usos, apropiaciones y re‐
significaciones encontrados en cada lugar, superpuso la visión de lo concebido por el
gobierno local frente a lo vivido por los vecinos, visitantes y transeúntes en cada PL.
Pensados para suplir unas necesidades ambientales, estos parques lejos de adherirse a
unas políticas abiertas de uso, fueron interpretados muchas veces como una
domesticación del espacio para un uso privado y/o público, a partir de la experiencia
cotidiana de sus habitantes quienes reflejaron en cada lugar procesos de ocupación y
apropiación, llegando a convertir cada parque en un referente simbólico de aceptación o
rechazo, condicionado por las percepciones y representaciones sociales de sus actores
sociales y no necesariamente por lo que sus gestores planearon.
150
Mientras el gobierno local propone nuevas formas de ocio y esparcimiento en el espacio
público intentando alejar el concepto de retícula en la mente de sus usuarios, no es
posible ocultar la dicotomía que aparece cuando éstos pretenden que los parques
lineales sean acogidos y aceptados de la misma forma que los parques tradicionales,
teniendo en cuenta que las dinámicas sociales son cambiantes. Como espacios públicos
pensados para el disfrute y la calidad de vida de la ciudadanía, éstos se vuelven
territorios accesibles por muchos sujetos y grupos, pero al mismo tiempo pasivo cuando
el gobierno local controla a través de la arquitectura y el diseño las formas de ocupación,
uso y recreación.
Frente a lo concebido por parte de la administración pública, se evidenciaron normas que no
sólo responden a los soportes espaciales estructurando y comunicando diferentes partes de la
ciudad en calidad de espacio público, se enfrentan con las “políticas” de uso que establecen los
actores sociales mediante su participación cotidiana en el espacio público, con las que
potencializan su significado de manera diversa y continua. Con esto vale la pena resaltar que el
significado de un espacio puede ser determinado por el uso y el reconocimiento que los
individuos le otorguen, ya que el diseño arquitectónico, la distribución espacial y el mobiliario
pueden estar sujetos a la interpretación que los usuarios le asignen, mediante sus prácticas
cotidianas. Así las personas no sólo tienen la capacidad de dar sentido a los entornos urbanos a
partir de sus comportamientos, sino que también pueden transformarlos llegando incluso a
cambiar su sentido original, aquel que se tiene planeado desde la política pública estatal. Con
esto se concluye que el espacio público no sólo se planea desde la proyección arquitectónica,
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sino que debe ser pensado como un espacio en el que se evidencie un reconocimiento por
parte de los sujetos que la viven y la interpretan, pues “…aquél que tiene la sabiduría para la
creación de intervenciones fantásticas, debe también ocuparse de la elaboración de sus
significados. Estos construyen la historia y con ella otra porción de otras historias” (CANALLI en
SILVA, CORREA y MAGABOSOCO, 2010, 119).
Aunque desde lo concebido, estos parques fueron entregados como espacios de
reconocimiento para la interacción y el disfrute social pasivo, muchas de las prácticas
socioculturales no funcionan de acuerdo su planificación. Esta disociación respecto a las
prácticas socioculturales de los moradores y el resultado arquitectónico en los PL (que muchas
veces son definidos por diferentes entidades del mismo gobierno local), se pudo ver por
ejemplo en el PL La Bermejala, antecede un manifiesto estudio sociocultural (UNALMED, 2004)
mientras que el resultado arquitectónico del parque ejecutado por la Empresa de Desarrollo
Urbano (EDU), pareciera ignorar los hallazgos iniciales.
Desde la noción urbanística institucional, aunque estos espacios fueron pensados para uso
público, pueden volverse lugares de inclusión para unos y de exclusión para otros cuando son
concebidos en términos funcionales para usos y usuarios específicos. Desde lo concebido, los
actores sociales para los que fueron pensados estos parques, debían cumplir con unas
características físicas, económicas y sociales como si los intereses específicos por el
funcionamiento y el sentido del lugar, correspondieran a una realidad inexistente de las
dinámicas sociales de los actores reales como usuarios activos.
Pensando en el reconocimiento de los espacios tampoco se encontró una concordancia entre 151
concebido y lo vivido frente al tema del nombre parque lineal. Definidos con este término por
el gobierno local, estos parques fueron identificados por la comunidad con nombres tales como
camino, sendero ecológico o ruta al lado de la quebrada. Apareciendo en muy pocas
oportunidades la palabra parque lineal para referenciar estos espacios, cada colectividad
reconoció estos espacios de forma diferente a la concebida. Asunto que está relacionado con el
imaginario de las personas al relacionar el PL con simples senderos peatonales en los cuales la
presencia de la quebrada no tiene un significado muy marcado de acuerdo al sentido que debía
tener desde lo concebido.
Teniendo en cuenta que el espacio físico a veces se aleja de la planeación que se busca en los
proyectos de ciudad, se puede pensar que para mejorar la tensión entre la ciudad pensada, la
ciudad vivida y la apropiada hay que orientarse por quiénes la van a ocupar y con esto orientar
políticas y reformas institucionales y educativas, sobre las características que se pueden incluir
para las futuras transformaciones que se piensan implementar. Para Borja (2003,118) hacer
ciudad, es un desafío urbano y social que debe pensar en centralidades, monumentalidades,
movilidad, accesibilidad, en la calidad y visibilidad de los barrios, como una fuerza de
integración de los espacios públicos, donde el autoestima de sus habitantes y el
reconocimiento exterior hagan de los espacios, unos entornos físicos y simbólicos que ayuden
a construir y dar sentido a la vida cotidiana de la ciudadanía, ya que el espacio público además
de constituirse como una materialidad urbana, debe responder a una necesidad del individuo
como parte de un colectivo. Su participación incluyente en el diseño, mantenimiento e
intervención del espacio público, se convierte en elemento fundamental para su uso efectivo
(PINZÓN y ECHEVERRI, 2010,99). De acuerdo a esto, se plantea un debate en torno a los
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criterios de diseño que fueron concebidos estos espacios, ya que la planeación misma entra en
contradicción con las prácticas sociales que obedecen a otras lógicas de acción, como es el caso
de la apropiación y producción del espacio público dentro de estos parques lineales. El ideal de
una ciudad organizada requiere de unos espacios ordenados y controlados, pero en la ciudad
real los actores sociales de estos lugares actúan con base a las lógicas de sus propias
necesidades, de acuerdo a los sentidos y los imaginarios propios sobrepasando la regulación
del gobierno local. De esta forma las diferentes prácticas en estos parques lineales crean
resistencias representadas en la apropiación o rechazo de los mismos.
Se puede decir que el proyecto de parques lineales como alternativa para recuperar las fuentes
hídricas y promoción de la movilidad es una contradicción. Por un lado se implementó como
consecuencia de esa transformación espacial que ha venido experimentado la ciudad, pero por
otro, se efectuó sin tener en cuenta cada contexto, es decir los diseños fueron llevados a cabo
con muy pocas alternativas de uso y recreación de acuerdo a los lugares implementados,
teniendo en cuenta la escases de parques y espacios públicos destinados a la recreación que
tiene actualmente la ciudad.
Para finalizar este texto, queda la propuesta de observar en forma más detallada las distintas
configuraciones que existen en la ciudad asociadas a los valores, hábitos, costumbres, imaginarios,
deseos, rituales y rutinas vividos por sus habitantes, ya que no se trata solamente de diseñar y
ejecutar obras con procedimientos democráticos, sino entender las diferentes circunstancias que cada
grupo social necesita cuando se definen los espacios pensados y las comunidades que pretenden usar
el espacio público, ya que a través de éste se teje y se relacionan los objetos que conforman lo 152
urbano, los pensamientos de los habitantes, los sueños o las “utopías quimeras”, como las llama Alicia
Lindón (2005). El espacio público habla de la organización, la función y de lo que la ciudad es. La
humanización (o la domesticación) de éste es un construir constante del ser humano, es a lo que
Heidegger llama “vivir” que es igual a habitar.
(...) entender que el espacio público alcanza sentido cuando corresponde al recorrido natural de quien la
usa, de quien la colma de significados porque lo recorre, y un parque no es un ‘espacio público’ sino lo
contrario, el espacio donde lo público se torna íntimo en la medida en que el anciano, el niño, la pareja
que los usan les confieren a esos espacios una propia dimensión (RUIZ, 2005).
Por eso lo público en cierta medida, puede hacerse privado.
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10 NOTAS
1
Aclaramos que término de percepción empleado aquí, no se debe confundir con el concepto de “espacio percibido”
explicado en párrafos anteriores, la percepción a la que se alude es definida por la psicología como “el proceso cognitivo de la
conciencia, el cual está encargado de otorgar el reconocimiento, la interpretación y la significación para la elaboración de
juicios, en torno a las sensaciones obtenidas del ambiente físico y social, en el que intervienen otros procesos psíquicos dentro
de los que se encuentra el aprendizaje, la memoria y la simbolización” (Melgarejo, 1994, 48).
2
POT es un instrumento establecido en 1999 por Acuerdo Municipal con el cual la administración municipal establece las
reglas y las condiciones con las cuales se puede utilizar el territorio.
3 Para ampliar la información remitirse al Plan de Desarrollo 2004/2007. Municipio de Medellín. Página 105.
4 Para ampliar información sobre la ubicación de la ubicación de los parques lineales en Medellín, remitirse al cuadro de la
página 58 del POT 2006.
5
Según la administración municipal de Medellín, “Los Parques Biblioteca son Centros Culturales para el desarrollo social que
fomentan el encuentro ciudadano, las actividades educativas y lúdicas, la construcción de colectivos, el acercamiento a los 154
nuevos retos en cultura digital. Y también son espacios para la prestación de servicios culturales que permiten la creación
cultural y el fortalecimiento de las organizaciones barriales existentes.” (EDU: parques biblioteca, Proyectos 2004‐2007)
6 Centro Iberoamericano De Desarrollo Estratégico Urbano CIDEU
http://www.cideu.org/index.php?mod=objeto&act=verObjeto&idObjeto=217 (Consultado el 15 de Octubre 2011).
7 Definición de convite: Reunión de trabajadores que prestan sus servicios a cambio de comida. Tomado de Diccionario de la
lengua española‐Vigésima segunda edición. http://buscon.rae.es/draeI/SrvltConsulta?TIPO_BUS=3&LEMA=convite.
(Consultado el 12 junio 2011).
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NÚCLEO TEMÁTICO II: Grandes projetos como elementos transformadores da cidade e região
Jeceaba, uma cidade na encruzilhada
Jeceaba, a city at the intersection
Reginaldo Luiz CARDOSO
Mestre em Ciência Políitica/UFMG; Doutorando em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ.
bauhaus2@uol.com.br.
RESUMO
Este artigo busca compreender o processo de ocupação territorial brasileira contemporânea a partir do
estudo da implantação de um complexo siderúrgico na cidade mineira de Jeceaba. Tal análise
fundamenta‐se na premissa de que o exame da economia política de um grande projeto permite‐nos
constatar a forma com que os atores políticos, independente do nível escalar em que estejam operando
− municipal, estadual e/ou federal −, tornaram‐se reféns da nova movimentação do capital inaugurada
com o neoliberalismo, o verdadeiro nome da globalização. Focamos nossa análise no projeto Jeceaba
porque, em se tratando de um work in progress, coloca‐nos diante das condições de possibilidade da
representação de tal fenômeno e de sua conseqüente problematização.
PALAVRAS‐CHAVE: planejamento urbano, globalização, território, desenvolvimento regional, indústria
siderúrgica
ABSTRACT 155
This article seeks to understand the process of contemporary Brazilian territorial occupation from the
study of the implantation of a steel complex in the city of Jeceaba, Minas Gerais, Brazil. This analysis is
based on the premise that the examination of the political economy of a large project allows us to verify
the way political actors, regardless the scale level in which they are operating ─ local, state and/or
federal ─, have become hostages of the new capital movement inaugurated with the neoliberalism, the
true name of globalization. We focus our analysis on Jeceaba project because, dealing with a "work in
progress", it put us in front of the conditions of possibility of the representation of such phenomenon
and its consequential problematization.
KEYWORDS: globalization, territory, regional development, urban planning, steel industry.
1 INTRODUÇÃO
Milton Santos, em uma de suas últimas entrevistas1, disse que, ao olhar o território nacional
brasileiro, via “um território nacional mas da economia internacional”. Para ele, o esforço dos
novos mandarins − “o esforço de quem manda” − se fazia no sentido de favorecer o trabalho
dos atores da economia internacional. “Não apenas as multinacionais estrangeiras, mas todas
as grandes firmas estrangeiras ou brasileiras, são elas que trazem para o território uma lógica
globalizante. (...) Há mais que globalização, há globalitarismo” (SANTOS, 1998). Para Vainer
(2007), a história recente do planejamento territorial brasileiro poderia ser narrada como uma
trajetória continuada de desconstituição. De desconstituição política, evidenciada no
desaparecimento progressivo da questão regional da agenda nacional e de desconstituição
operacional dos instrumentos estatais construídos a partir da década de 50 do século passado.
Para o autor, hoje, após a ditadura e a adesão total ao neoliberalismo (vide Consenso de
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2
Washington I e II ), “a desconstituição parece atualizar‐se (e realizar‐se) numa espécie de
conformada aceitação da fragmentação territorial que consagra a acomodação subordinada às
formas contemporâneas da globalização” (Ibid, p.103.). Tomando o que Vainer (Ibid, 2007)
denomina de “vetores de fragmentação territorial”, no qual práticas e dinâmicas são resultados
de processos decisórios (LAFER, 1987), buscaremos observá‐los no processo de implantação de
uma usina siderúrgica na cidade de Jeceaba, MG. A nossa hipótese buscará corroborar a
premissa lançada por Vainer de que:
O exame da economia política de cada grande projeto permitiria identificar de que forma atores políticos e
empresas nacionais e internacionais se associam e mobilizam elites locais e regionais, para exercer o
controle do território, constituindo uma nova geografia física, econômica e política que decompõe o
território nacional em novos fragmentos “glocalizados” (VAINER, 2007, p.5).
2 TERRITORIALIDADES
Partamos de uma indagação: o que é uma cidade? Difícil dizer. Lugar onde, inicialmente, os
homens foram compelidos a viver juntos? Solução por demais simplista, voluntariosa e
determinista. Da sua origem à sua atual composição, muitas voltas se deram. A antropologia
nos diz que as primeiras aglomerações ocorreram para que os homens pudessem honrar os
seus mortos. Caçadores e coletores viviam para lá e para cá, sem que dessem ou vissem algum
sentido nisto. Até que, mesmo por falta de um centro qualquer, começaram a depositar os seus
mortos em um só lugar, ao qual voltavam anualmente para prestar‐lhes homenagens. Voltavam
para expiar suas culpas, redimir seus pecados, lembrar outros tempos, repudiar más 156
lembranças... A cidade nasce, portanto, dentro de um sentido antitético, marcada desde o seu
começo pelo seu duplo. Lugar para onde se vai e lugar para onde se esvai, se esfalece, se
escapa. Maldita pelas lembranças, sagrada pelas esperanças nela depositadas.
Contudo, não sabemos bem a que ou a quem serve. É evidente que esse aglomerado, perdido
nas curvas do tempo, teve em seus princípios algumas regras. Se se tornou a norma, seguiu o
desejo dos homens. Ao se racionalizar (tal finalidade), tornou‐se política. Aglomerados, os
seres humanos, idiossincráticos que são, conflitam entre si. A política surge neste gap, na
tentativa de fazer, como corretamente denominou Bobbio (1986), com que conflitos não
terminem em banhos de sangue.
Territórios são habitados por seres humanos, ou seja, são apropriados e usados. Se estamos no
campo do humano, estamos falando em interesses, únicos, sui generis, no limite,
idiossincráticos. Qualquer tentativa de ordenamento deste território esbarra necessariamente
em conflitos, já que qualquer relação entre sujeitos acarreta relação ou relações de poder. O
poder, a decisão a ser tomada, só ocorre ao ser exercitada. Para Raffestin (1993, p.144), “o
território se apóia no espaço, mas não é o espaço, é uma produção a partir do espaço. Ora, a
produção, por causa de todas as relações que envolve, se inscreve num campo de poder”. Dito
de outra forma, o poder é práxis.
Esta tentativa de ordenamento do território como processo de planejamento, de acordo com
Lafer (1987), pode ser subdividida em três fases: a) a decisão de planejar, b) o plano em si e, c)
a implementação do plano. Se o plano em si é etapa notadamente técnica, a decisão e a sua
conseqüente implementação são essencialmente políticas. É nessa caldeira que a vida presente
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e futura de gerações inteiras é forjada. Porém, em uma sociedade em que prevalece a luta de
classes, quem decide, já que o conjunto de forças é repartido de forma desigual, ou naquilo
denominado como jogo de “soma zero”3? Ou, em outras palavras: como uma questão se
transforma em uma questão? Deixemos que o território fale por si mesmo.
3 JECEABA
Eu me lembro do que o presidente Roosevelt fez com a Tennessee Valley Autorithy. O papel do
Estado é planejar, estimular desenvolvimento com incentivos e, se necessário, prover fundos em
parcerias com o setor privado. (Luiz Inácio Lula da Silva, The Washington Post, 31/11/2002)
Se acionarmos a constelação de satélites que forma o Sistema de Posicionamento Global,
vulgarmente conhecido como GPS (Global Positioning System), na coordenada 20° 32’
07’’ S (latitude) e 43° 58’ 59’’ W (longitude) depararemo‐nos com um determinado ponto
do Extremo Ocidente. As fotografias fornecidas pelos satélites mostram, no entorno de
tal ponto, um vale verdejante entremeado por dois pequenos rios – Camapuã e
Paraopeba – e um pequeno aglomerado de casas. Tudo ali em sua volta é povoado de
topônimos com nomes estranhos ao mundo globalizado, escritos em uma língua extinta.
O ponto perdido no planeta aparentemente não tem muita importância. Que lugar será
este? Um alemão exclamará: “Iêceaba”, um francês indagará: “Geceabá?”. E um japonês
redargüirá não muito distante da pronúncia do francês. Na linguagem global, “Djiciaba”.
Em tupi‐guarani, quer dizer: “confluência de rios”. Jeceaba, município de Minas Gerais,
Brasil, América do Sul. Estamos a apenas 124 km de Belo Horizonte, 3ª cidade em 157
importância econômica do país, capital de um dos três Estados mais desenvolvidos do
Brasil. E lá se encontra também uma pequena população de 6.500 habitantes, sendo que
3.400 deles estão na área urbana.
Jeceaba continuaria a ser uma cidade qualquer se não fosse o fato de ter alçado às
manchetes econômicas do país desde que foi escolhida para ser o lugar da instalação de
uma siderúrgica de grande porte. Trata‐se de uma joint venture4 formada pelo complexo
franco‐germânico Vallourec‐Mannesmann − V&M (55% do capital) e o japonês Sumitomo
(45%). Juntas irão construir uma usina integrada (aciaria e fábrica de tubulares
petrolíferos) com capacidade para produzir anualmente 600.000 toneladas de tubos sem
costura. Previsto para começar suas operações a partir de 2010, com investimentos da
ordem de US$ 1,6 bilhão, tal empreendimento tem povoado continuamente corações e
mentes da população jeceabense desde que a notícia veio à tona. Em algumas
publicações, Jeceaba aparece como sendo o símbolo do novo ciclo do aço em Minas
Gerais. Em depoimentos tomados pela imprensa e por este autor, as expectativas da
população resvalam em um misto de esperança e medo. 5 Esperança no que pode ser um
alavancamento da cidade e região a um suposto e melhor patamar socioeconômico – a
palavra‐chave aqui é emprego para todos – e medo das consequências que este mesmo
boom econômico pode trazer. Na verdade, uma vez que o que está por vir é de difícil
representação, o imaginário popular vive a possibilidade de viver o absurdo, isto é, a
possibilidade de tudo.
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6
4 FIAT LUX
Na região, Vale do Paraopeba, projeto de tal porte não é novidade, pois, a cerca de 40 km dali,
em Ouro Branco, foi instalada no início da década de 1980, uma siderúrgica estatal de grande
porte, a Aços Minas Gerais S. A. – Açominas, que veio fazer parte mais tarde, com a política
governamental das privatizações, do Grupo Gerdau. Desde meados de 2007, seguindo o
aumento extraordinário da demanda externa por aço (vide China), a Gerdau encontrava‐se em
processo de expansão da sua capacidade produtiva. É quase desnecessário dizer que, com a
crise econômico‐financeira deflagrada em setembro de 2008, tal processo foi atropelado,
sendo paralisado.
O importante é registrar que a instalação da Açominas na região atendia, na época, a um
projeto governamental de incitação de novos pólos de desenvolvimento regional, aliado à sua
proximidade de fontes importantes de recursos naturais, no caso, o minério de ferro (hematita
e itabirito). De lá para cá, muita coisa mudou. A ditadura findou‐se, o poder político voltou às
mãos dos civis, uma nova Constituição foi elaborada e aprovada. O modelo econômico
adotado, se era o autoritário‐desenvolvimentista‐centralizador, agora passa por outro,
poderíamos dizer, de cunho nitidamente neoliberal. Basta ver que, de estatal, a empresa citada
tornou‐se privada e, acrescente‐se, sem nenhuma discussão mais ampla sobre o que estava ou
poderia acontecer em curto, médio e longo prazos7, nos níveis político, econômico e social.
Em que pese a presença de seus rios, Jeceaba não se encontra mais em uma encruzilhada. Ao
que tudo indica, segue rigorosamente o modelo vigente. No mundo globalizado, Jeceaba foi
descoberta como ponto estratégico de investimentos pelos global players. Para a elite local, 158
trata‐se de um passo enorme no incremento dos negócios, talvez até grande demais. Em
janeiro de 2009, o prefeito de Jeceaba, a convite do consórcio, foi conhecer, na França e no
Japão, as plantas industriais das respectivas siderúrgicas. No site de informações da cidade de
Jeceaba, ficamos sabendo que o mesmo teve a oportunidade de conversar com Yasuo Imai,
vice‐presidente da Sumitomo Metal Industries “sobre diversos assuntos ligados à instalação da
Vallourec‐Sumitomo em Jeceaba e de sua importância para nossa (sic!) região e para as
próprias empresas diante da crescente demanda mundial de tubos de aço sem costura (OCTG,
na sigla em inglês)8, que será a produção de Jeceaba”9. No mais autêntico espírito de
“paroquialismo mundializado” (VAINER, 2007), ficamos sabendo ainda que, além de ficar
maravilhado com o espetáculo das cerejeiras em flor, o Sr. Prefeito espera “que os
procedimentos para a implantação ocorram dentro da maior brevidade possível, de forma a
permitir à população de Jeceaba e do Alto Paraopeba desfrutar deste grande acontecimento
em nossa região”. Para o Presidente da Câmara local, vereador José Ribeiro Maia, o “Zuinho”:
“É uma graça de Deus a escolha do Brasil, de Minas Gerais e, principalmente, de nossa cidade",
para a implantação do empreendimento.10
Embora, oficialmente, tanto a Sumitomo Metals Industries quanto a Vallourec‐Mannesmann
aleguem que a joint‐venture ocorra por motivos estratégicos, não é a primeira vez que as duas
fazem uma parceria. Segundo a Agência de Notícias da Comunidade Européia11, em dezembro
de 1999, as duas produtoras de tubos de aço e mais seis outras foram condenadas a severas
multas, acusadas de formação de cartel, e, conseqüentemente, partilha de mercados. Carlo
Monti, economista italiano, Comissário Europeu (1994‐99) responsável pela competição na
Comunidade Econômica Européia à época, assim resumiu a situação: “trata‐se de uma violação
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muito grave dos princípios da concorrência, que incita a uma sanção verdadeiramente
dissuasiva. É o primeiro caso de cartel transfronteiras que trato e deve constituir um exemplo
de práticas a evitar cuidadosamente”. O episódio, denominado “Clube Europa Japão”, foi fruto
de uma investigação feita pela Comissão Européia no período 1990‐95, no qual, ao fim da
investigação, ficou evidenciada a formação de cartel no qual haviam firmado um acordo de
respeitar os mercados nacionais de cada produtor, isto é, os mercados alemão, britânico,
francês, italiano e japonês. O resultado foi uma multa que, no conjunto, somou a quantia de 99
milhões de euros, no qual couberam à Mannesmann e à Sumitomo 13.500.000 euros cada, e à
Vallourec SA, 8.100.000 euros, quantia menor, tendo em conta a sua cooperação no
apuramento dos fatos pela Comissão.12 O caminho, para a livre operação na América Latina,
estava a um passo do começo da sua pavimentação.
5 GLOBALIZAÇÃO
Procurando lançar novas luzes sobre a falta de debate que há em torno da globalização, o
sociólogo Zygmunt Bauman (1999) nos adverte que, inexoravelmente, o processo de
globalização, apesar de ser vendido como o aglutinador de tudo e de todos, traz uma contínua
polarização: de um lado ficam os “globais” (elite extraterritorial) e, de outro, os condenados à
localização, os “locais”. Para ele, a evidente compressão tempo/espacial da globalização traz
em seu bojo problemas estruturais insanáveis. Assim o diz:
Ao examinarmos as causas e as conseqüências sociais dessa compressão, ficará evidente que os processos
globalizadores não têm a unidade de efeitos que se supõe comumente. Os usos do tempo e do espaço são
159
acentuadamente diferenciados. (...) Junto com as dimensões planetárias dos negócios, das finanças, do
comércio e do fluxo de informação, é colocado em movimento um processo “localizador”, de fixação de
espaço. (...) Ser local num mundo globalizado é sinal de privação e degradação social. Os desconfortos da
existência localizada compõem‐se do fato de que, com os espaços públicos removidos para além do
alcance da vida localizada, as localidades estão perdendo a capacidade de gerar e negociar sentidos e se
tornam cada vez mais dependentes de ações que dão e interpretam sentidos, ações que elas não
controlam. (Ibid., pp. 6‐7.)
E arremata: “Os centros de produção de significados e valor são hoje extraterritoriais e
emancipados de restrições locais – o que não se aplica, porém, à condição humana, à qual
esses valores e significados devem informar e dar sentido” (Ibid, pp. 8‐9).
Alan Lipietz, da escola francesa regulacionista, é outro autor que pode contribuir com a nossa análise,
principalmente através de seu instigante texto de 1989, excepcional pelo caráter visionário sobre o
processo que começava a acontecer. Pensando em alternativas para o século vindouro, no qual
estamos, Lipietz (1991) denomina este processo – liberal‐produtivismo – como sendo uma visão de
mundo (Weltanschaaung) que se instalou sobre as ruínas do fordismo em crise, de cujo fracasso ela
tirou o essencial de sua força. Ainda que anterior a Bauman, Lipietz nos diz que o liberal‐produtivismo
induz a uma forte polarização social, a uma sociedade de dupla velocidade. Para ele, o que estava por
vir era uma sociedade tipo “ampulheta”, com os de cima, os de baixo e uma erosão no “centro”. No
alto, os vencedores; no meio, trabalhadores semiqualificados com estabilidade cada vez mais restrita
e, por fim, embaixo, uma multidão de “solicitadores de emprego”, divididos entre empregos precários
e desemprego. E como denominou este espetacular fenômeno? Processo de “latino‐americanização”
ou “abrasileiramento” do mundo.13
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Lipietz (1991) tratou ainda das conseqüências políticas do fenômeno. Se, de um lado, como
previa, revoltas coletivas desestabilizadoras não aconteceram de maneira generalizada − ainda
que o que se viu na Argentina entre 2000‐01 e na França entre outubro e novembro de 2005
possam conter tal embrião − de outro, a generalizada delinqüência individual realizou‐se e
incrementou‐se. Como parte da solução do problema, visualizava que o medo da delinqüência
faria por si só a solidarização dos dois primeiros terços da sociedade e até mesmo parte do
último terço. De fato, a luta contra a insegurança tornou‐se um argumento político eficaz, já
que pode isolar como “estranho”(s) o(s) promotor(es) da desordem. Não à toa, o ramo de
atividade das empresas de segurança transformou‐se em um dos setores econômicos de maior
rentabilidade. De quebra, dentro de um quadro de desemprego estrutural, emprega uma parte
dos pobres, a fim de que defendam os ricos contra os outros pobres.14
6 A MODELAGEM DO ESPAÇO
Quem consultou o site oficial da Prefeitura de Jeceaba em meados de 2007, logo após a notícia
de sua escolha como localização do novo empreendimento, deparou‐se com um inusitado sinal
do advento dos novos tempos: uma carta aberta à população nativa, em inglês, sem nenhuma
tradução para o português.15 Ficava evidente que, a partir de então, o jogo seria outro, ou que
os “localizados” não precisariam de acesso a certos tipos de informações.
Entretanto, longe do GPS e da Internet, ou seja, dentro do mundo real, o que vemos na
cidade perplexa? Os equipamentos urbanos têm a precariedade e a funcionalidade de 160
uma cidade pobre do interior. Um hospital público (municipal) com 25 leitos no qual,
segundo moradores, o atendimento “depende da sorte” e um Centro de Saúde, fechado
para reformas. A Cadeia Municipal, desativada, − casos graves são transferidos para Entre
Rios, município fronteiriço, distante 8 km da localidade − vai ser transformada em um
anexo do Centro de Saúde Municipal, já que sua localização é ao lado da mesma. Ainda
no campo da saúde coletiva, há um hospital filantrópico – a Associação Hospitalar de
Jeceaba – que mantém 21 leitos. Completam esta estrutura, na área urbana, duas escolas
municipais e uma estadual, duas agências bancárias e um centro comunitário ligado à
paróquia. A energia elétrica chega ao campo, mas não há esgoto tratado e o aterro
sanitário está em implantação. Situação que não poderia ser diferente já que cerca de
90% da receita municipal sai do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) e pouco
menos de metade da população – aproximadamente três mil pessoas – vive na zona
rural. 16
Mas surge uma questão primordial: como Jeceaba, cidade mediterrânea, aparece como
opção do grande capital? Como tal escolha foi operada? A explicação oficiosa pela
escolha do local, o seu parâmetro locacional, deve‐se estritamente à sua posição
estratégica. Segundo Wilson Brumer, diretor no ano de 2007 do Grupo Estratégico de
Fomento (GEF) de Minas Gerais, as negociações com o governo de Minas foram iniciadas
em 2006. Segundo informação dada pelo mesmo, “não haverá benefício fiscal para o
projeto e o governo comprometeu‐se apenas a investir na infraestrutura viária da cidade,
que fica próxima à malha ferroviária da concessionária Malha da Rede Sudeste Logística
SA (MRS) 17, e contribuir para o treinamento de mão‐de‐obra na região”.18
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Antes que avancemos, vale a pena conhecermos mais de perto o operador Wilson Brumer,
pois o seu papel nesta negociação exemplifica de maneira clara a natureza dos processos
decisórios que dão origem aos atuais grandes projetos de investimentos (GPIs).19 Formado
em administração de empresas no ano de 1975, tornou‐se uma figura emblemática de todo
o processo político‐econômico que o país passa a sofrer a partir da década de 1990.20
Participou praticamente de todas as grandes negociações que resultaram na privatização
do complexo mínerometalúrgico brasileiro. A década de 90 vai encontrá‐lo no Conselho
Administrativo da Cia. Vale do Rio Doce (1990/92), da Usiminas (1992), da Acesita –
Companhia Aços Especiais Itabira (1992/98)21, da Açominas (1995/97), da Companhia
Siderúrgica Tubarão (1996/99), dentre outras do setor privado (Aços Villares, ABN‐Amro
Bank, Unibanco, BHP Billiton e outras menores). Na passagem do século, depois de presidir
e conduzir a privatização da Acesita, pôde ser encontrado presidindo o Instituto Brasileiro
de Siderurgia (IBS). De lá para cá, passou pelos Conselhos da Valepar22, Cemig, Light,
Localiza, Codemig, GEF e BDMG, até sentar‐se no governo de Minas Gerais na qualidade de
Secretário Estadual de Desenvolvimento Econômico (2003/07). Dali só saiu para se associar
ao empresário, ex‐presidente da Fiemg e ex‐presidente do BDMG, Bruno Scariolli, e presidir
a Winbros Participações, Gestão e Empreendimentos, holding que, além de fusões e
aquisições, especializou‐se em formar parcerias em torno de pequenas centrais
hidrelétricas (PCHs).
Voltando ao projeto Jeceaba, ficamos sabendo que o ex‐presidente da siderúrgica Acesita,
Wilson Brumer travou uma batalha pessoal nos últimos tempos para mostrar às
siderúrgicas mineiras as vantagens de investir perto das fontes de matérias primas −
161
principalmente o minério de ferro − e não perto dos portos. “Ontem, ele comemorava mais
uma vitória. A Vallourec foi apenas uma das siderúrgicas a anunciar novos investimentos
em Minas. A Usiminas anunciou recentemente a expansão da produção na usina de
Ipatinga”.23
Mas há, também, outros atributos logísticos importantes para uma siderúrgica em Jeceaba:
esta fica a 30 quilômetros da mina de Pau Branco, explorada pela própria V&M24 e segundo
a MRS Logística, 70% de toda a carga transportada pela empresa anualmente (113 milhões
de toneladas) são transportadas pela Ferrovia do Aço, que tem seu marco zero nas
proximidades de Jeceaba e vai até Barra Mansa (RJ).25 Aliás, todos estes detalhes não
ficaram despercebidos pelo empreendedor. Segundo documento da Vallourec, trata‐se de
um empreendimento em uma “région qui présente des conditions extrêmement
favorables: a) matières premières, b) énergie, c) main d’oeuvre et d) logistique…”.26
Pelo porto de Sepetiba, em Itaguaí, no Estado do Rio de Janeiro, os produtos seriam
embarcados para o exterior a custos menores. E, no porto, receberiam o carvão mineral
usado no processo de fabricação do aço (embora a V&M, por exemplo, use o carvão
vegetal), também com custos mais baixos. “No Brasil, só temos um insumo importado na
fabricação do aço, que é o carvão mineral. Procuramos mostrar às empresas que o carvão
pode ser transportado por trem do litoral até Minas e os vagões voltarem carregados com
aço, produto de maior valor agregado”.27
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7 ESTADO DA ARTE
A nova Usina integrada representará o estado da arte da tecnologia no setor. Assim, vamos assegurar à
nova Usina um avanço tecnológico de no mínimo 10 anos à frente de suas congêneres erguidas em
passado recente tanto na China como na Rússia. (Marco Antonio Castello Branco, Presidente do Conselho
de Administração da V&M do Brasil. Discurso proferido na assinatura do Protocolo de Intenções com o
Governo de Minas, em 23 de abril de 2007)
É difícil dizer sobre quanto tempo ainda vai perdurar no imaginário popular de Jeceaba a
certeza triunfal de que a implantação da usina foi uma dádiva dos céus, um acerto na loteria
global de alocações de capital. Afinal, já é um mito entre os jeceabenses que a localidade tenha
vencido uma disputa contra cidades de nove países (Venezuela, Rússia, Ucrânia, Argélia, Arábia
Saudita, França, Índia, China e Irã), com outras cidades brasileiras candidatas de estados
litorâneos como Rio de Janeiro e Espírito Santo e outros três municípios de Minas Gerais.
Contudo, a fala do presidente do conselho de administração da V&M do Brasil, Marco Antônio
Castelo Branco, aponta para outro lugar: “tínhamos alternativas com custos equivalentes aos
do Brasil, mas com riscos maiores”.28 Do momento em que as duas empresas iniciaram os
entendimentos para construir e operar uma usina integrada e uma fábrica de tubos sem
costura, em 2006, até a assinatura do Protocolo de Intenções (Memorandum of Understanding)
pelo conselho de administração das duas companhias, em 28 de março de 2007, o local ainda
não estava definido.29 De acordo com o superintendente de Participações da V&M do Brasil,
Rubens Ferreira Filho, uma empresa de consultoria e análise de risco foi contratada para
identificar o melhor local para o empreendimento: “Em princípio, foram identificados dez
países. Depois, fixou‐se em três e, finalmente, no Brasil. O passo seguinte foi decidir se seria no 162
litoral ou no interior. Batemos o martelo por Minas Gerais”.30 Menos de um mês depois, 23 de
abril de 2007, o Governador Aécio Neves recebeu os dirigentes dos dois grupos no Palácio da
Liberdade e anunciou a decisão.
Em outra escala, em março de 2005, o prefeito recém‐eleito de Jeceaba, Júlio César Reis (PT), já
havia batido às portas da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Econômico, pedindo ajuda
para a criação de uma cooperativa de doces. Atendido pelo então secretário de
Desenvolvimento Econômico de Minas, Wilson Brumer, este informou ao prefeito sobre o
investimento que seria feito pelas transnacionais Vallourec e Sumitomo Metals, mas “pediu
sigilo”.31 Sigilosamente, a Companhia de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais ‐
Codemig, empresa de capital misto ligada à Secretaria de Desenvolvimento Econômico, já fazia
levantamento de uma área de quase 12 milhões de m2 para posterior desapropriação –
declaração de utilidade pública – e criação do distrito industrial para instalação da usina.
Assim, mal batido o martelo do Protocolo de Intenções em Paris, uma semana depois, a toque
de caixa, Câmara dos Vereadores e Prefeito Municipal de Jeceaba iniciam os trâmites para
legalizar o que “foi uma exigência dos investidores, segundo o presidente da Câmara, Sálvio de
Freitas Maia”.32 Em 04 de abril, tramita na Câmara a Proposição de Lei 03/2007, fixando o
perímetro da zona de expansão urbana para uso predominantemente industrial e suas
atividades de apoio no município de Jeceaba (a área que já havia sido fixada pela Codemig). Em
14 de abril, o Governador do Estado de Minas Gerais, através de decreto, declara como de
utilidade pública os imóveis identificados no perímetro descrito para fins de desapropriação,
mediante acordo ou judicialmente. Três dias depois, o Executivo Municipal manda à Câmara o
Projeto de Lei 06/2009 com a exposição de motivos sobre incentivos tributários às empresas
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que se instalarem no Município, especialmente a que se instalará neste Município (grifo meu).
Em 25 de abril é aprovado pela Comissão de Finanças e Orçamento e Tomada de Contas da
Câmara Municipal o Projeto de Lei 06/2009. Finalmente, em 9 de maio, a Proposição de Lei
05/2007, que concede incentivo fiscal às empresas que se instalarem no Município – três anos
sem Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), valor mínimo de Imposto sobre Serviço de
Qualquer Natureza (ISSQN) permitido por lei (2%) e, após isto, 10 anos de 50% de IPTU −, é
aprovada pela Câmara e sancionada imediatamente pelo prefeito.
Seguindo o mesmo ritmo, em 7 de julho, é lançada a pedra fundamental e iniciada a
terraplenagem. 33 De acordo com o coordenador de engenharia civil do projeto VSB, João
Márcio Vieira, “a terraplenagem, acompanhada da drenagem, constitui a principal parte
das obras civis de infraestrutura necessárias à implantação de qualquer empreendimento
que se deseja realizar”. A Licença de Instalação do Distrito Industrial de Jeceaba, dada
pelo Conselho Estadual de Política Ambiental (COPAM), só virá em 8 de janeiro de 2008.34
Em dezembro de 2008, já com mais de 2.000 operários nas obras, a Fundação João
Pinheiro, ligada à Secretaria Estadual de Planejamento e Gestão, trabalhava em um
diagnóstico que servirá de base para o anteprojeto do plano diretor da cidade. 35
Bem, Jeceaba, é um work in progress. Muitíssimos elementos estão em aberto à pesquisa
e à análise, seja de ordem demográfica e morfológica, seja de ordem mobiliária e
econômica. Várias podem ser as motivações para que uma determinada empresa se
materialize em um território, este coágulo de relações sociais. Em um ponto de vista
essencialmente economicista, de caráter neoclássico, no mercado de capitais, a 163
siderurgia é comumente classificada como uma indústria cíclica. Um mecanismo de
redução de exposição a tais efeitos cíclicos (crises stop‐and‐go) de um determinado
mercado é a diversificação geográfica. Isto talvez explique a mobilidade espacial da
siderurgia no mundo e no Brasil: seja porque empresas com atuação em inúmeros países
tendem a possuir vantagens frente àquelas que operam em um único (ou poucos) países,
seja por fatores macroeconômicos (evolução da renda doméstica e da taxa de câmbio),
seja por questões setoriais (no caso de crise de um importante setor consumidor). Além
disso, a diversificação geográfica pode resultar em outras vantagens tais como diferenças
nos custos de produção e transporte (PAULA, 2007). No caso da VSB tais vantagens foram
claramente obtidas. É uma explicação necessária mas não suficiente.
Uma outra explicação, agora de caráter histórico‐estrutural, parece ser mais convincente.
Com a marcha neoliberal advinda depois da crise de 1973‐74, o chamado modelo de
desenvolvimento de “cima para baixo” (PERROUX, BOUDEVILLE, 1977) e que era
altamente dependente do governo, é substituído pelo chamado modelo de “baixo para
cima” (PIORE/SABEL e SCOTT/STORPER). Agora, o desenvolvimento irá e deverá ocorrer a
partir de baixo, do poder local, lastreado de vasta polissemia: crescimento endógeno,
arranjos produtivos locais (APLs), distritos industriais, clusters etc. Assim, o que era
pensado de forma sistêmica passa a ser operado de forma fragmentária, focalizada,
alimentado pela globalização, categoria à procura de um conceito, mas rica em
mitificações como: inclusão, homogeneidade e universalização (AMIN/ROBINS, 1994,
HERMES, 2001). O termo globalização, aliás, como aponta Chesnais (1994), veio das
business schools americanas e ganhou mundo pelas mãos de ideólogos como Kenichi
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Ohmae. Ligar o termo “mundialização” “ao conceito de capital significa dar‐se conta de
que, graças ao seu fortalecimento e às políticas de liberalização, o capital recuperou a
possibilidade de voltar a escolher, em total liberdade, quais os países e camadas que têm
interesse por ele” (CHESNAIS, 1994, p. 18). O cerne da questão da reestruturação urbana
e industrial no capitalismo não é outro do que a deslocalização em busca do lucro
ampliado, facilidades estatais e trabalho despolitizado. Parece‐me ser esta a lógica mais
perceptível no processo detectado em Jeceaba.
Em tal circunstância, opera‐se o pós‐fordismo no qual, o que está explícito, é a
“descaracterização da cidade e a transformação em valor de troca de áreas produzidas
enquanto valor de uso social” (LIMONAD, 2005). Mas, se isto é verdadeiro, onde firma a
sua legitimidade? No controle osmótico das contradições, criando consensos e
escamoteando antagonismos. Há quem diga que, hoje, o planejamento de cidades ou de
localidades constitui‐se como um movimento participativo, como um conjunto de ações
no qual se engajam diversos segmentos da sociedade. Convém atentar ao fato de que a
gestão participativa, na maioria das circunstâncias, pode ter nenhum efeito na vida
urbana como um todo. Pode representar, sim, uma disputa dos pobres entre si, puxando
um pequeno cobertor em uma ninharia de recursos que nem sempre beneficiam os
mesmos. Ou seja, a gestão participativa pode representar um modelo de controle e
exclusão social.
Planejam, assim, a participação no planejamento, sem dar chance aos envolvidos de participar
concretamente. Em geral o poder público tende a colocar na agenda de discussões questões
táticas e não questões estratégicas. Ou seja, discute‐se questões parciais ou alternativas a
164
determinadas intervenções, mas não: qual cidade se deseja? (LIMONAD, Idem).
A instauração da cidade‐empresa constitui, em tudo e por tudo, uma negação radical da
cidade enquanto espaço político – enquanto pólis. Na empresa reina o pragmatismo, o
realismo, o sentido prático, na qual a produtividade é a única lei. Como construir política
e intelectualmente as condições de legitimação de um projeto de encolhimento tão
radical do espaço público, de subordinação do poder público às exigências do capital
internacional e local? É preciso que reiteremos: pelo consenso, sem o qual não há
qualquer possibilidade de estratégias vitoriosas. Dito de outra maneira: despertando o
patriotismo cívico dos cidadãos, eternos reféns da crise. Fica assim bem mais fácil
persuadi‐los a se tornarem competitivos. O problema é que o emprego, tal qual foi
conhecido, não mais será realidade, devido à mudança da lógica do capital. Porém, este é
um problema a ser resolvido mais tarde: por enquanto, estamos imantados, enfeitiçados
pela possibilidade de que o crescimento desta fábrica consensual fará brotar rios de
empregos. Basta ver que o atual prefeito, em novembro de 2008, foi reconduzido ao
cargo sem nenhuma campanha eleitoral.36
Por fim, a idéia de cidade como máquina de crescimento, pode ser assim resumida: os
custos referentes às mudanças estruturais, exigidas sob pressão do capital internacional,
são socializados e, aparentemente, legitimados através do poder retórico e político,
através do apelo nostálgico à “comunidade” como panacéia para os males sociais,
econômicos e urbanos. 37
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8 CONCLUSÃO
Procuramos mostrar o processo que ocorre em Jeceaba dentro da dialética do espaço e do
lugar, pensando o lugar como um espaço que tem uma porção de individualidade e
singularidade. Assim, visualizamos a dimensão concreta e a dimensão simbólica do lugar, um
lugar em que as intensidades dos vínculos permitiam pensar como um todo. Ao sofrer uma
intervenção brusca e de grande impacto, surge um modelo emasculado do lugar, sem
densidade histórica, abstraído de toda historicidade de um processo histórico. Trata‐se de um
excelente capítulo do movimento do capital, totalmente autônomo da zona civil, não nos
escapando que o que se apaga e apazigua, com este dispositivo, é a dimensão política,
portanto pública, do problema de cada um.
Traçar cenários é atentar contra esta dialética, naquilo que vai, se esvai, bate e rebate. Permito‐
me concluir com Vainer (2007), quando afirma que:
(...) o exame da economia política de cada grande projeto permitiria identificar de que forma atores
políticos e empresas nacionais e internacionais se associam e mobilizam elites locais e regionais, para
exercer o controle do território, constituindo uma nova geografia física, econômica e política que
decompõe o território nacional em fragmentos glocalizados.
9 REFERÊNCIAS
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VMB Notícia: Jornal interno da V&M do Brasil. Vários números.
166
10 NOTAS
1
Revista “Caros Amigos”, nº. 17de agosto de 1998.
2
Cf. Fiori (2001).
3
Eis aqui, uma faceta da teoria dos jogos. Se x tem poder, é preciso que em algum lugar haja um ou vários y que sejam
desprovidos de tal poder.
4
Joint‐venture é uma expressão em inglês que significa “união de risco” e designa o processo mediante o qual pessoas, ou, o
que é mais freqüente, empresas se associam para o desenvolvimento e execução de um projeto específico no âmbito
econômico e/ou financeiro. Uma joint‐venture pode ocorrer entre empresas privadas, entre empresas públicas e privadas, e
entre empresas públicas e privadas nacionais e estrangeiras. Durante a vigência da joint‐venture, cada empresa participante é
responsável pela totalidade do projeto. No caso brasileiro, esta modalidade foi estimulada especialmente durante os anos 70,
envolvendo empresas privadas nacionais, empresas estatais e empresas estrangeiras. (SANDRONI, 2004, p. 315).
5
“A Corrida do Aço: novos projetos trazem R$ 15 bilhões a Minas”. Estado de Minas, 8 de abril de 2007. “Jeceaba Queria Doces
e Ganhou uma Siderúrgica”. Valor Econômico, 12 de junho de 2007. “Jeceaba Desconhece os Efeitos da Crise Econômica”.
Gazeta Mercantil, 8 de janeiro de 2009. “Uma Cidade Presa em Gaiola de Ouro”. Estado de Minas, 7 de fevereiro de 2010.
6
Locução latina, “Faça‐se a luz!” Palavras com que Deus, segundo o livro do Gênesis (na tradução latina da Vulgata), criou o
mundo.
7
A usina Aços Minas Gerais S.A. − Açominas −, criada e posta em funcionamento pelo Governo Federal em 1985, foi leiloada
em agosto de 1993 e adquirida por um consórcio encabeçado pela Mendes Júnior. Posteriormente, em 1996, por motivos não
muito claros, passou‐se o controle acionário aos Grupo Gerdau e Nat Steel (Singapura). (V. Piquet, 1998).
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8
Iniciais para Oil Country Tubular Goods.
9
V. Matéria: “Prefeito visita França e Japão”. www.jeceaba.mg.org.br/home.php?l=phl_noticias/act_ver&id=76. Acesso em: 20
de dez. 2009.
10
Idem.
11
V.
(http://europa.eu/rapidpressReleasesAction.do?reference=IP/99/957&format=PDF&aged=1&language=NL&guiLanguage=en).
Acesso em: 20 de dez. 2009.
12
As multas foram assim divididas: Mannesmannröhren‐Werke AG, Sumitomo Metal Industries Limited, Nippon Steel
Corporation e Kawasaki Steel Corporation multadas em 13,5 milhões euros cada, NKK Corporation em 13 milhões de euros,
British Steel Limited em 12,6 milhões, Damine SpA em 10,8 milhões e, por fim, Vallourec S.A em 8,1 milhões.
(http://europa.eu/rapidpressReleasesAction.do?reference=IP/99/957&format=PDF&aged=1&language=NL&guiLanguage=en).
Acesso em: 20 dez. 2009.
13
Paulo Eduardo Arantes (2004, p. 47) diz não importar o nome da coisa. Apenas lança o desafio: “o tempo dirá se terá sido
uma demasia desarquivar a imagem assustadora da sociedade dual dos subdesenvolvidos, novamente na berlinda a propósito
desses novos “tempos da exclusão”, como se diz a torto e a direito no debate francês”.
14
No dia 05 de setembro de 2009, inaugurando a “nova ordem” presente em Jeceaba, o cidadão jeceabense Antonino dos
Santos, 35 anos, foi assassinado por dois policiais militares (PMs) da recém criada 122ª Companhia da Polícia Militar de
Jeceaba. Segundo testemunhas, a vítima, ao sair de uma festa beneficente na principal praça da cidade, ao se recusar deitar no
chão para uma revista, foi baleado na virilha e no abdômen, vindo a morrer a caminho do hospital. É quase desnecessário dizer
que, como tudo em Jeceaba nos últimos tempos, os dois policiais acusados do assassinato são novos na corporação. Um tem
um ano e meio na PM e o outro, três. (V. “Estado de Minas”, 6 de setembro de 2009, p. 22 e “Correio da Cidade”, edição
975/2009, 12 de setembro, pp. 62 a 67). 167
15
Esta página e seu conteúdo estavam disponíveis em 21 de maio de 2007. Posteriormente, o seu conteúdo foi retirado do ar,
cujo título era: Seamless Tube Steel in Jeceaba.
16
Em 7 de fevereiro último, o jornal “Estado de Minas” reporta que a situação parece não ter mudado de fato. Apesar da
arrecadação da Prefeitura local ter saltado de R$ 50 mil mensais para R$ 1,5 milhão, só com a fase de implantação da VSB, por
falta de projetos (e licitações), a mesma está impedida de gastar o dinheiro. (Estado de Minas, 7 de fevereiro de 2010).
17
A MRS, como ficou conhecida, foi criada em agosto de 1996, com o objetivo estratégico de assumir a concessão no dia 1º de
dezembro do mesmo ano, após a obtenção por cessão dos direitos adquiridos pelo Consórcio MRS Logística, através do leilão
de privatização, da Malha Sudeste da Rede Ferroviária Federal S.A.. É formada pela associação da mineradora Vale e das
siderúrgicas CSN, USIMINAS e Gerdau.
18
No “Estado de Minas” de 13 de abril de 2008 há uma nota dizendo que até então o BDMG ainda não havia “equacionado” o
seu investimento no projeto.
19
Francisco Foot‐Hardman (2006), em artigo de grande acuidade analítica, denomina tais personagens como “homens‐
dispositivo”, configurados pela robótica da sociedade global‐financista do espetáculo. Para ele, os homens‐dispositivo não
agem sós, mas também não representam vontades particulares ou gerais. Por isso se apresentam indistintamente como
emissários. São mestres da obediência devida.
20
As informações a seguir encontram‐se em cemig.infoinvest.com.br/modulos/doc.asp?arquivo=00245010...doc. Acesso em
15 fev. 2010.
21
Wilson Nélio Brumer assumiu a presidência da Acesita em novembro de 1993, deixando‐a em agosto de 1998. A siderúrgica
Acesita, ao ser privatizada em 1992, promoveu um amplo processo de reestruturação produtiva, onde se destaca o processo
de descentralização de suas atividades. Assim declarou Brumer em pesquisa realizada pelo CORECON‐MG no ano 2000: “o
“negócio” é produzir “inox” e, assim, tudo o que estava fora de foco da empresa foi terceirizado ou transferido para outrem”.
Além disso, a Acesita também declarou seu descompromisso em relação aos trabalhadores terceirizados e aos que já haviam
sido desempregados logo após sua privatização. E assim afirmou Brumer peremptoriamente: “A empresa tem que criar valor,
mas não tem o compromisso de criar empregos”. Tanto isso é verdade que, dos 8.428 trabalhadores empregados em 1991
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somente 3.980 aí estavam em 1996, e isso muito antes de a empresa concluir o processo de reestruturação programado.
(Fonte: Centro de Estudos para o Desenvolvimento –CED/CORECON‐MG).
22
A Valepar S. A. é uma empresa formada pelos seguintes associados: Previ, Bradespar, BNDESpar, Mitsui & Co e o Oportunity.
Detém 33,6% do capital total e 52,3% do capital votante da Cia Vale do Rio Doce, atual VALE, desde 2002, o que consolida a
sua posição de controladora majoritária sobre a mesma. V. www.bradespar.com.br/portugues/composicao_acio_valepar.htm.
Acesso em 12 set. 2008.
23
“Valor Econômico”, 29 de março de 2007.
24
V&M do Brasil é o nome do consórcio brasileiro firmado entre a Vallourec e a Mannesmann em 2000. O consórcio de
Jeceaba, devido à Associação com os japoneses, é denominado de VSB – Vallourec & Sumitomo, Tubos do Brasil.
25
Disponível em: www.mrs.com.br/saladeimprensa. Acesso em 12 set. 2008.
26
Vallourec: Nouvelle tuberie au Brésil: Vallourec poursuit sa croissance et renforce sa compétitivité,28 março de 2007. Paris.
Disponível em www.vallourec.fr/fr/news/presentations.asp. Acesso em: 15 mai. 2009.
27
Entrevista do coordenador do Grupo Estratégico de Fomento (GEF), Wilson Brumer. “Agência Minas”, Notícias do Governo
do Estado de Minas Gerais, 28 de março de 2007.
28
“Valor Econômico”, 12 de junho de 2009.
29
Press release Vallourec, 28 de março de 2007.
30
“VSB: Jornal da Comunidade/Construindo o Futuro”, Ano 1, Edição 1, fevereiro de 2008, p.2.
31
“Valor Econômico”, 26 de junho de 2007.
32
Idem.
33
168
“VMB Notícia”, Jornal interno da V&M do Brasil, Ano VII, no. 31, maio/junho de 2007, p. 10.
34
“VSB: Jornal da Comunidade. Construindo o Futuro”, Ano 1, Edição 1, fevereiro de 2008, p. 3.
35
“Estado de Minas”, 8 de dezembro de 2008.
36
“Gazeta Mercantil”, 8 de janeiro de 2009.
37
Não por acaso, um das primeiras benesses da grande empresa em Jeceaba foi criar em fevereiro de 2008, com distribuição
gratuita, a publicação “Jornal da Comunidade/Construindo o Futuro”. Em papel couchet encorpado e fotos coloridas, vem
ininterrumpidamente, desde então, relatando a relação osmótica entre a empresa e a comunidade.
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NÚCLEO TEMÁTICO II: Grandes projetos como elementos transformadores da cidade e região
Grandes reformas urbanas e seu impacto no direito à cidade
Great urban reforms and their impact on the right to the city
Vyrna Jacomo de A. NUNES
Mestranda em Urbanismo pelo PROURB/UFRJ. vyrna.jacomo@yahoo.com.br.
RESUMO
A cidade do Rio de Janeiro vem sofrendo grandes transformações em seu tecido, impulsionadas pelo
poder público, com vista a recepcionar os grandes eventos por vir – a Copa de 2014 e os Jogos Olímpicos
e Paraolímpicos de 2016. Contudo, para tanto, tem‐se percebido, sob tal camuflagem, um processo
silencioso de reprodução da exclusão social evidente na cidade – a retomada das remoções de favelas,
aliada à expulsão da população de baixa renda, caracterizada como entrave às transformações e ao
processo de embelezamento vigente. Esta não é uma questão atual, remetendo a um histórico de
políticas habitacionais – nacionais e cariocas – que preconizaram a segregação socioespacial e o
isolamento de determinadas camadas da sociedade. Observando esta questão pelo viés da moradia de
qualidade, este estudo tomou como referência a relação entre a produção da habitação e os elementos
que devem complementá‐la, permitindo o acesso à educação, saúde, lazer e cultura, ou seja, o acesso à
cidade. Analisando e compreendendo sua importância para o alcance do “direito à cidade”, demonstra‐
se como, pelas mãos do poder público, desenvolveu‐se um padrão habitacional que reproduz as
desigualdades sociais, inviabilizando uma perspectiva de ascensão para as camadas de baixa renda
atingidas e contribuindo para o seu sentimento de parte não integrante da cidade.
169
PALAVRAS‐CHAVE: equipamentos comunitários, remoções, habitação popular, desigualdade social
ABSTRACT
The city of Rio de Janeiro has undergone major transformations in its tissue, driven by the government, in
order to welcome the great events to come – the 2014 World Cup and the Olympic and Paralympic
Games in 2016. However, to do so, we have seen, under a certain camouflage, a silent process of
reproduction of social exclusion evident in the city – the recovery of removals of “favelas”, combined with
the expulsion of low‐income population, seen as an obstacle to changes and the ongoing beautifying
effect. This is not a current issue, referring to a history of housing policies – national and local – that
worked with the idea of segregation and isolation of certain sections of society. Viewing this question
from the perspective of housing quality, this study took as reference the relationship between the
production of housing and the elements that must complement it, allowing access to education, health,
leisure and culture, in other words, the access to the city. Analyzing and understanding its importance to
achieve the "right to the city", it demonstrates how, by the hands of the government, a housing standard
that reproduces social inequalities has taken place, making impracticable the low‐income affected
population to rise. Moreover, it has increased these people that they are not an integral part of the city.
KEYWORDS: community equipments, removals, social housing, social inequality
1 INTRODUÇÃO
A cidade do Rio de Janeiro, assim como outras metrópoles latino‐americanas, apresenta um
alto índice de desigualdade social, ocasionado não só por um desequilíbrio na distribuição de
renda, mas pelo próprio reflexo deste no espaço urbano. Isto é, expressa na tessitura urbana,
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esta condição concentra o acesso aos recursos de seu espaço (VILLAÇA, 2001) nas mãos de
uma minoria detentora do capital. Este processo por sua vez, tem se intensificado pelas mãos
do poder público, uma vez que, com a premissa de resolver o déficit habitacional, acaba por
lançar uma série de políticas excludentes, que vêm agravar a segregação socioespacial,
limitando o “direito à cidade” (LEFEBVRE, 2001).
Para a compreensão desta ideia, deve‐se lançar, inicialmente, um olhar sobre o espaço urbano
que transcenda sua dimensão física para encontrar seu campo simbólico – um “espaço social”
(BOURDIEU, 2011). Assim, pode‐se compreendê‐lo não só como produto das relações políticas,
econômicas e sociais – uma vez que estas se fazem valer no território, configurando‐o de modo
a atender à expectativa daqueles que o habitam –; mas, também, como agente transformador
destas, condicionando a população pelo modo como promove o acesso a seus recursos, ou
seja, o acesso à cidade. A partir daí, buscando‐se um equilíbrio neste processo, propõe‐se que
todos os cidadãos, independentemente de sua classe social, têm direito a atuar neste espaço
como formadores e transformadores de sua própria realidade.
[...] esses direitos concretos vêm completar os direitos abstratos do homem e do cidadão [...]:direitos das
idades e dos sexos [...], direitos das condições [...], direitos à instrução e à educação, direito ao trabalho, à
cultura, ao repouso, à saúde, à habitação.(LEFEBVRE, 2001, p. 116).
Entretanto, conforme inferido, tal equalização não ocorre, uma vez que há um domínio por
parte dos “centros de decisão” (LEFEBVRE, 2001, p. 113) – as classes no poder –, movidos
exclusivamente pelas relações econômicas. Com isto, impõe‐se ao espaço realidades
presumidas, adequadas a estas camadas sociais, posicionando o cidadão como mero objeto 170
desta dinâmica pré‐definida e alienando‐o de sua participação enquanto sujeito. Compromete‐
se, portanto, o “direito à vida urbana” (LEFEBVRE, 2001, p. 118), isto é, o direito de viver a
cidade.
Assim, seguindo‐se tal raciocínio, apreende‐se uma subjetividade do espaço urbano que,
segundo Bourdieu (2011), traduz‐se pela influência mútua entre físico e simbólico, atuando
sobre as oportunidades da população, que sofre seus “efeitos de lugar” (BOURDIEU, 2011, p.
159) – positivos ou perniciosos. Trazendo‐se tal reflexão para o caso carioca, visualiza‐se,
inicialmente, uma má distribuição da cidade, dada pela desigualdade na propriedade da terra e
pela concentração de investimentos em áreas privilegiadas. Por conseguinte, intensifica‐se a
segregação socioespacial, reunindo as camadas privilegiadas em locais bem equipados, nos
centros, e agrupando, nas bordas da cidade – nas periferias e assentamentos informais –, as
camadas mais baixas.
Uma vez localizadas em áreas vitimadas pela má aplicação de recursos (CASTELLS, 2011), essas
camadas desprivilegiadas são privadas do acesso à cidade e, assim, de sua apropriação:
Uma asserção geral da teoria da localização e da teoria da interação espacial é a de que o preço local de
um recurso ou proximidade é função de sua acessibilidade e vizinhança para o usuário [...] O domínio
sobre os recursos [...] é assim função da acessibilidade e proximidade locacionais. (HARVEY, 1980, p.56).
Tem‐se, portanto, um processo cíclico, onde o capital domina os interesses da cidade, configurando‐a
de modo desigual, e esta, por sua vez, condiciona uma parcela da população a uma desqualificação –
análoga àquela que atinge a área em que habita – e ao subdesenvolvimento. Em outras palavras, “o
lugar tem a ver com a ideia de quem é cidadão e quem não é cidadão” (ROLNIK, 2009a).
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Conforme observado, o poder público, ao longo do século XX e início do século XXI, devido a
uma série de fatores a serem apresentados mais adiante, contribuiu para tal prejuízo através de
suas políticas pontuais e clientelistas (OLIVEIRA, 2001), despreocupadas com a promoção do
acesso à cidade. Determinando a moradia como uma necessidade básica que vai além da
simples construção da residência em si (ROLNIK, 2009a), puderam‐se perceber lacunas não só
no provimento de infraestrutura e acesso a equipamentos comunitários1 – que deveriam
acompanhar a produção da habitação – mas, também, na própria inserção desta no tecido
urbano, o que resultou em um agravamento da questão da segregação e da exclusão.
Recentemente, corroborando para este quadro, o Rio de Janeiro tornou‐se palco de uma série
de transformações. Inúmeras obras de infraestrutura foram lançadas, uma vez que a cidade
sediará os grandes eventos esportivos por vir – a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de
2016 –, com vista a recepcionar milhares de turistas brasileiros e estrangeiros. Entretanto, para
a contemplação do espaço carioca com reformulações viárias de grande porte – incluindo a
implantação de novas modalidades de transporte, como o BRT2 –, bem como a implantação de
diversos equipamentos públicos, uma parcela da população teve de ser removida de suas
antigas moradias – formais ou informais.
Isto ocorre devido ao curto prazo para a execução das intervenções e à manutenção de uma
deficiente estrutura do poder público para garantir aos cidadãos o acesso à habitação. Assim,
inúmeros moradores destes locais, destacando‐se favelas e ocupações irregulares, foram
apresentados a duas únicas opções: aceitar uma unidade em um conjunto habitacional
designado pela prefeitura ou receber uma indenização – sendo esta, no caso de habitação 171
informal, irrisória. Então, concorreu‐se para a exclusão, mais uma vez, desta parcela
desfavorecida que, obrigada a ir habitar em locais distantes, encontra‐se alijada do usufruto
dos possíveis benefícios que tais transformações poderiam ensejar.
Diversos autores trataram, em suas obras, da desigualdade no acesso aos benefícios do espaço
urbano3, assim como outros o fizeram em relação à moradia de qualidade4. Assim, visando
acrescentar nova perspectiva sobre tais questões, agregando o cenário atual de transformação
intensa do espaço urbano, este estudo propõe uma convergência de tais temas. Entender‐se‐á,
para tanto, a ideia de “moradia de qualidade” a partir da percepção da consolidação do acesso
à cidade – através do acesso aos elementos que vão se unir à habitação para consolidar o
acesso à cidade, tais como educação, saúde, lazer e cultura. Assim, pretende‐se vislumbrar de
que modo estes estiveram presentes ao longo da história da habitação, compreendendo
melhor como a reprodução de seu quadro conduziu ao cenário atual, bem como quais
prejuízos sociais podem resultar desta dinâmica.
2 OS EFEITOS DE LUGAR E A ESTIGMATIZAÇÃO – A IMPORTÂNCIA DO PLANEJAMENTO
Conforme sugerido, assim como as relações políticas, econômicas e sociais se refletem no
espaço, este, igualmente, as transforma, condicionando aqueles que o habitam. Para uma
melhor compreensão desta propriedade, primeiramente, compreender‐se‐á a existência no
mesmo de um campo simbólico, ou seja, um “espaço social” – conceito trabalhado por
Bourdieu (2011) – que transcende sua dimensão física.
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Compreendendo‐se a existência de uma esfera simbólica na qual se relacionam as
diferentes classes sociais, pode‐se perceber o citado espaço social como aquele em que se
expressam os limites do domínio de cada uma delas, de acordo com seu poder. Este sítio
virtual, por sua vez, vem se refletir no espaço físico, sob a capacidade destas classes de
apropriação da cidade e dos bens que esta pode oferecer. Outrossim, aqueles que
desfrutam de um amplo acesso à cidade se verão habilitados a uma posição de domínio do
espaço social.
Dentre tais bens sociais, têm destaque, neste estudo, aqueles para a promoção de
educação, saúde, lazer e cultura – direitos sociais da população. É importante lembrar que
diversos fatores condicionam seu acesso, não se tratando puramente de um quantitativo.
Tem grande relevância, portanto, a questão da localização, em termos físicos – somando‐se
a facilidade de deslocamentos na cidade, passando pelo tema da disponibilidade de
transporte público eficiente – e, também, simbólicos – a liberdade de ir e vir para alcançar
estes locais, bem como o sentimento de acolhimento pelos mesmos, a serem vistos a
seguir.
A participação efetiva na cidade
Para agenciar a inserção social, não basta construir a habitação e/ou equipamentos
comunitários, mas garantir sua integração, eliminando barreiras físicas e simbólicas do
tecido urbano. Essencialmente, trata‐se de promover a facilidade de deslocamentos –
através de transporte público de qualidade, acessibilidade e curtas distâncias. Entretanto, 172
existem outros fatores que condicionam a liberdade de circulação da população, tais como
a violência – que, circunda ambientes favelizados, especialmente – e o sentimento de
pertencimento ao local – uma vez que se formam “guetos” de pobreza, isolados do resto
da cidade.
Em adição, retomando‐se a concepção de ilhas segregadas, é significativa a estigmatização
causada pelo fato de habitar um local carente de investimentos pelo poder público. Uma
vez que tal imagem se reflete mutuamente entre ambiente e morador, penetra‐se em um
ciclo de degradação, o que vem comprometer a participação na cidade, bem como a
perspectiva de futuro fora destes espaços. Um exemplo expressivo se dá no ambiente
escolar onde, por conta das condições da população e espaço que o cercam, não se
preconiza a imagem de uma realidade alternativa à já conhecida pelos jovens, bem como
não se incentiva a realização de atividades que previnam o furto da infância – dado pela já
citada falta de perspectiva, além das más condições financeiras.
Assim, é importante contornar tal processo, garantindo um balanceamento no provimento
do direito à cidade, aliado à inclusão social. É imperioso, por conseguinte, interferir na
cidade de modo a garantir, em diferentes esferas, um acesso igualitário a seus recursos.
3 RIO DE JANEIRO – UM HISTÓRICO DE RUPTURAS E EXCLUSÃO
A exclusão social nas metrópoles esteve constantemente atrelada à questão habitacional.
Uma vez que, prioritariamente, se abordou a habitação como mercadoria, concentrou‐se
sua produção nas mãos de uma minoria capaz de alcançá‐la, “construindo‐se” a cidade
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ao seu redor. Deste modo, uma grande parcela populacional se viu cerceada do direito à
moradia em sua acepção completa, indo habitar, ora as favelas – sem condições de
salubridade e/ou sem investimentos em infraestrutura e serviços – para garantir a
proximidade de dinâmica social, ora as periferias, distanciando‐se fisicamente dos
equipamentos urbanos.
A partir do momento em que, a despeito dos prejuízos a essas classes, esta problemática se
configura como incômodo às elites – forçadas à convivência com a pobreza, de modo geral, a
ameaça de doenças, inicialmente e, em seguida, com a violência urbana – propõem‐se estudos
e, por conseguinte, medidas para a promoção de alojamento destinado à camada excluída.
Sendo assim, pode‐se inferir que esta questão esteve, ao longo do século XX, dentre os
principais debates acerca do espaço urbano, sendo retratada por diversos autores5.
Sugere‐se, então, uma apresentação do desenho geral de seu cenário, com vista à apreensão
da relação indicada.
Originalmente, tratava‐se da questão da salubridade, como mencionado, valorizando‐se a
opinião de médicos e sanitaristas, que propunham uma transformação na cidade, favorecendo
o desmonte de habitações com “más condições de higiene” – nas favelas e cortiços – que
dariam lugar às grandes obras de “embelezamento” da cidade (ABREU, 2008), tais como novas
vias de circulação e edificações.
Porém, em seguida, permanecendo a hipótese de carência de educação e esclarecimento da
população (BONDUKI, 2004; VALLADARES, 2005), passa‐se a pensar não só em casas, mas 173
também em equipamentos comunitários agregados que, neste caso, trariam a inserção social,
embora através da ideia de capacitação dos trabalhadores “preguiçosos” para a vida em
sociedade (VALLADARES, 2005). Foi apenas com a chegada da influência modernista que se
lançaram iniciativas, tais como os IAPs, passando‐se a crer na necessidade de equipamentos
presentes junto à construção da habitação social, em prol de uma transformação no modo de
vida de seus usuários (BONDUKI, 2004).
Contudo, além de surgirem em número inexpressivo, frente ao déficit habitacional da
época – por conta da já explanada falta de interesse dos detentores do capital e da
descontinuidade entre posturas de diferentes esferas (BONDUKI, 2004) – era possível
perceber um deslocamento destes conjuntos para áreas periféricas, dificultando o acesso
da população que aí foi residir às demais áreas da cidade, nas quais os serviços se
encontravam previamente instalados. Já existia, portanto, o gérmen do processo que viria a
ocorrer em seguida – a expressiva expulsão da população de baixa renda das áreas
centrais.
A partir da década de 1960, criou‐se uma ruptura na questão social. Passou‐se à realização
de projetos empobrecidos, o que Bonduki (2004) coloca como “um divórcio entre
arquitetura e moradia popular, com graves repercussões na qualidade do espaço urbano”–
no que se destaca o provimento de serviços –, sobretudo nos casos proponentes de
remoções. Esta ideia se deu, dentre outros, pela valorização das terras urbanas centrais –
que acarretavam na implantação de conjuntos habitacionais distantes, em terrenos mais
baratos, onde não havia a infraestrutura necessária (ROLNIK, 2004) –, a falta de interesse
público pela urbanização e a aludida incongruência entre interesses (Figura 1).
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Figura 1: As más condições dos conjuntos da época, carentes de infraestrutura
Fonte: Autor desconhecido, Panfleto, página 20, 17/02/1964.
Optava‐se, assim, pela transferência da questão da habitação e das mazelas das favelas para
fora das vistas do poder público e das elites, deixando estas de se configurarem como um
incômodo. Já nas periferias não planejadas, a população sofria com a reprodução de suas
carências, enquanto assistiam a reformulações nas áreas de sua origem, cujos benefícios não
os alcançariam (Figura 2).
Figura 2: Recorte de jornal mostra o cenário da transferência do Morro do Pasmado para conjuntos habitacionais em Bangu 174
Fonte: Autor desconhecido, Panfleto, página 18, 17/02/1964.
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No entanto, ao longo da década de 1990, após o marco dado pela Constituição de 1988 (a
“Constituição Cidadã”), tem‐se um novo momento na política habitacional (BRASILEIRO, 1999).
As propostas, então, buscavam romper com o ideal remocionista, compreendendo a favela
como parte da cidade e sugerindo sua urbanização e incorporação ao tecido formal, como
novos bairros. Previa‐se, em conjunto, dotá‐los de infraestrutura e equipamentos públicos.
Assim, estaria garantido o “direito à cidade, à habitação, ao acesso a melhores serviços
públicos e, por decorrência, a oportunidades de vida urbana digna para todos” (OLIVEIRA,
2001, p. 3).
Entretanto, muitas destas medidas não tiveram prosseguimento, mantendo‐se apenas no
discurso. Além disso, as remoções haviam sofrido apenas uma redução, voltando a ser postas
em prática, embora de maneira camuflada, como será visto a seguir.
4 UM NOVO DISCURSO, A MESMA PRÁTICA
Atualmente, com a elaboração do Plano Nacional de Habitação (PlanHab), foi retomada a
construção de conjuntos habitacionais em larga escala, no entanto, sob novas diretrizes. Com
vista a proporcionar moradia de qualidade é trazido como inovação, além da questão do
planejamento em si – não recorrente no setor habitacional (BONDUKI & ROSSETTO, 2008) –, a
aplicação do conceito de “função social da propriedade”6, além do direito básico à moradia
como atribuição de todas as esferas governamentais.
Como principal alternativa, além de outras formas de crédito, este momento apresenta a 175
facilitação no acesso à moradia, o que vem se aliar à grande oferta de unidades habitacionais
em construção, com vista a atender o público de baixa renda. Associadas ao Programa Minha
Casa Minha Vida, orientado pela Caixa Econômica Federal, diversas construtoras têm investido
em terrenos mais baratos, realizando uma construção maciça.
Poder‐se‐ia pensar, a princípio, que seria possível equacionar o expressivo déficit habitacional
(Tabela 1), de um modo divergente das propostas anteriores, já que os terrenos disponíveis
seriam mais acessíveis, porém, desta vez, encontravam‐se dentro da cidade. Isso porque
haveria um diálogo entre as esferas competentes, de modo a viabilizar a construção em larga
escala. Entretanto, alguns questionamentos surgiram, com o andamento das obras.
Tabela 1: Distribuição do déficit habitacional por faixas de renda no ano de 2008
DISTRIBUIÇÃO PERCENTUAL DO DÉFICIT HABITACIONAL URBANO, POR FAIXAS DE RENDA MÉDIA FAMILIAR MENSAL, SEGUNDO
REGIÃO GEOGRÁFICA (SUDESTE), UNIDADES DA FEDERAÇÃO E REGIÕES METROPOLITANAS (RMs) ‐ BRASIL ‐ 2008
FAIXAS DE RENDA MENSAL FAMILIAR (EM SALÁRIOS MÍNIMOS)
ESPECIFICAÇÃO
Sem renda até 3 mais de 3 a 6 mais de 6 a 10 mais de 10 Total (2)
DISTRIBUIÇÃO PERCENTUAL DO DÉFICIT HABITACIONAL URBANO, POR FAIXAS DE RENDA MÉDIA FAMILIAR MENSAL, SEGUNDO
REGIÃO GEOGRÁFICA (SUDESTE), UNIDADES DA FEDERAÇÃO E REGIÕES METROPOLITANAS (RMs) ‐ BRASIL ‐ 2008
FAIXAS DE RENDA MENSAL FAMILIAR (EM SALÁRIOS MÍNIMOS)
ESPECIFICAÇÃO
Sem renda até 3 mais de 3 a 6 mais de 6 a 10 mais de 10 Total (2)
Fonte: Fundação João Pinheiro, 2008.
Em primeiro lugar, lembra‐se que a oferta de unidades atende apenas a uma parcela da
população, pois estas são, em sua maioria, destinadas à camada que possui algum capital
para arcar com os custos das parcelas e taxas cobradas. Enquanto isso, àqueles que não
possuem renda fixa ou baixa ou nenhuma renda – um número expressivo–, não existem
opções (Figura 3). Encontram‐se, deste modo, sem perspectiva, alojados em favelas e
loteamentos irregulares. Sua única oportunidade será vista mais adiante, com as
remoções.
Figura 3: Gráfico com a proporção do déficit habitacional por faixas de renda
176
Fonte: Fundação João Pinheiro, 2008.
Em segundo lugar, o processo de escolha dos terrenos em conformidade com a função
social da propriedade não estaria sendo controlado pelo governo, segundo Rolnik
(2009a), o que veio permitir a realização de mais construções nas periferias. Repete‐se,
portanto, a segregação socioespacial pela via do planejamento.
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Inclusive, ainda acerca do tema da falta de investimentos e dimensão dos terrenos, além
dos curtos prazos para a construção, deve‐se destacar um aproveitamento máximo do
espaço – refletido na alta densidade proposta para cada conjunto, além da sensação de
pouca privacidade – e de projetos – traduzido na padronização excessiva das edificações,
o que gera uma falta de individualidade e uma massificação dos moradores, retornando‐
se à questão da estigmatização.
Entretanto, o que se pretende salientar aqui é a problemática da falta de planejamento
que englobe as diferentes demandas da população, sem se restringir à questão
habitacional. Ressalta‐se, portanto, que, apesar de contar com uma unidade com
provável qualidade para morar, o modo como este espaço se relaciona com o restante da
cidade encontra‐se comprometido.
Isso se deve à pouca disponibilidade de equipamentos comunitários junto à moradia.
Partindo‐se de uma visão restrita da garantia aos direitos sociais – tratando‐se apenas de
habitação – não se hesita em construí‐la isolada da dinâmica da cidade, onde há um
baixo ou nenhum investimento público. Não se projetam ou não se concretizam os
demais elementos – tais como escolas, hospitais, praças, etc. – de modo a atender o
novo contingente que se desloca no território. Paralelamente, os equipamentos pré‐
existentes são insuficientes – sem ter recebido as devidas ampliações antes da chegada
destes novos grupos.
Enfim, conclui‐se que sem os devidos investimentos e em locais já desprivilegiados, as
camadas mais baixas da população atingidas pelos programas propostos sofrem os 177
efeitos de lugar perversos, refletindo a degradação e permanecendo excluídas.
A retomada das remoções – a manutenção da exclusão
A despeito dos prejuízos gerados pela manutenção de um processo segregacionista já
trabalhado neste artigo e por outros autores, um procedimento atual, concomitante e
relacionado a este, atrai, então, atenção do ponto de vista da injustiça social – a
retomada das remoções em prol do embelezamento da cidade. Repetindo‐se o modelo já
superado do início do século XX, a cidade voltou a se tornar o cenário para novos
arranjos viários – além de equipamentos comunitários de grande porte – de modo a
contribuir para sua maior visibilidade. Sendo assim, considerados entraves para tais
reformas, diversos moradores de favelas passaram a ter suas residências eliminadas,
sendo impelidos para locais mais distantes – mais acessíveis do ponto de vista financeiro.
A partir daí, uma vez que não se dispunha de tempo suficiente, o poder público passou a
realocar esse contingente em conjuntos habitacionais já construídos ou em construção –
pela lógica atual citada –, na periferia da cidade. Muitos acabaram optando por uma
indenização irrisória, o que inviabilizou a moradia formal em qualquer outro lugar e ao
que se sucedeu apenas uma mudança para alguma comunidade mais próxima.
Todo este processo, além de traumático por conta do curtíssimo prazo para a mudança,
falta de diálogo com os moradores e falta de perspectiva futura, tem ocorrido de forma
inadequada, já que separou por grandes distâncias a população de seu local de origem –
bem equipado, próximo aos vizinhos, ao trabalho e à escola.
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É essencial ressaltar que a questão da inacessibilidade do local vem intensificar esse
quadro. Ou seja, não se trata apenas do raio em que se situam os pontos de interesse
para os moradores – tais como a casa de parentes ou equipamentos públicos – mas da
dificuldade em acessá‐los, que se traduz em um transporte precário e caráter inóspito
para a circulação no meio – seja pela falta de escala do pedestre, seja pela insegurança
(Figura 4).
Figura 4: Imagem de conjuntos à Av. Brasil, em Realengo, construído pela Caixa Econômica – um entorno abandonado
178
Fonte: Acervo próprio.
Figura 5: A implantação dos conjuntos em áreas periféricas, vazias e degradadas cria o isolamento pela descontinuidade no tecido
Fonte: Acervo próprio.
Dada a edificação de tais barreiras físicas e simbólicas, de acordo com entrevistas
realizadas com os ex‐moradores de uma das favelas removidas – Vila das Torres, em
Madureira –, e com a pesquisa realizada pelo Observatório das Metrópoles (2011) –
tomada como referência – diversas pessoas tiveram de deixar seu trabalho e escola,
ficando desempregados e sem estudo por um longo período de adaptação ao novo
espaço de moradia. Ou seja, mais uma vez, como ao longo de um século que já se
imaginava superado, não se projetou uma estrutura para recepcionar este novo
contingente, pensando‐se apenas na unidade habitacional e desconsiderando‐se o
conjunto que permite o acesso à cidade.
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Além disso, agravando a problemática da localização desprivilegiada, retorna‐se à questão
anteriormente comentada – os “guetos” favelizados e cercados pela violência (Figura 5). Limitando o
ir e vir, bem como trazendo uma percepção limitada da cidade, tais barreiras simbólicas contribuem
ainda mais para o isolamento deste contingente. Ou seja, lançando estas camadas em um local que
lhes condiciona a uma baixa perspectiva de futuro e de ascensão, bem como a um limitado acesso aos
meios que conduziriam a um quadro mais favorável econômica e socialmente, o poder público tem
reproduzido sua exclusão social.
Vale lembrar, ainda, que perante tal condição, bem como frente à falta de investimentos
futuros à implantação dos conjuntos, diversos destes começaram a sofrer um processo de
favelização semelhante ao visto no passado – como no caso da Cidade de Deus7. Deste modo,
acabam por ser absorvidos pelo meio – não raramente já composto por diversas comunidades
de baixa renda – assumindo suas características. Uma vez sofrendo tal processo, estes
conjuntos vêm, portanto, acrescentar nova contribuição para a reprodução das condições da
moradia anterior, reproduzindo‐se, igualmente, as mazelas sofridas anteriormente às
remoções.
5 CONCLUSÃO
A partir desta análise, pôde‐se formular a ideia inicial de que, ao longo do século XX e
início do século XXI, não houve uma política habitacional clara que considerasse a
implantação de equipamentos comunitários junto à moradia. O que se verificou foi a 179
existência de propostas pontuais e de baixo alcance, atreladas a políticas fragmentadas –
possíveis graças à incompatibilidade de esferas do poder público e entre órgãos
envolvidos. Além disso, dentre os casos em que se elaboraram projetos nos quais
figuravam os referidos equipamentos, poucos os concretizaram, dadas as divergências de
interesses.
Como resultado de tais propostas, construíram‐se unicamente as unidades habitacionais
em si, descoladas do entorno e, ainda, prejudicadas pelo difícil acesso, dado pelas longas
distâncias e pela insuficiência dos transportes. Deste modo, não se promoveu um cenário
de real inclusão social para aqueles removidos das favelas. Assim, a própria iniciativa
governamental teria conduzido a uma reprodução das desigualdades sociais.
Sendo assim, não se pode falar propriamente em “moradia”, já que esta ideia implicaria
no enraizamento da população à cidade onde vive, o que se daria por meio de elementos
que garantam sua cidadania – aqueles equipamentos voltados para a oferta de educação,
saúde, cultura e lazer. Inversamente, ocasionou‐se, sucessivamente, a expulsão dos
pobres da cidade, enviando‐os para periferias – constantes rebarbas sociais.
A despeito de já ter sido superado – através de diversos estudos acerca do tema da
habitação – este quadro permanece em vigência, mas de maneira disfarçada, sob o
discurso de modernização da cidade e garantia da casa própria – o que já foi visto na
década de 1960, mas sob imposição do governo autoritarista. Assim, infere‐se que
estariam sendo infligidos à população de baixa renda, neste início do século XXI, os
mesmos prejuízos sociais que se apresentaram ao longo do século XX.
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Acrescentando‐se as noções de direito à cidade e efeitos de lugar, percebe‐se, portanto, como o
poder público tem desconsiderado as reais necessidades da população, limitando‐se a projetos
habitacionais – com, sobretudo, um baixo alcance – e promovendo seu isolamento social. A despeito
de contar com um espaço salubre e legalizado para moradia, a população continua carecendo de uma
série de elementos ainda exclusivos de uma minoria capaz de arcar com os custos para acessá‐los.
Este quadro torna‐se interessante no período atual, uma vez que não se desejam fragmentos de difícil
solução em meio ao tecido urbano. É de grande interesse, portanto, extirpá‐los, “empurrando‐os”
para além do campo visual das elites e turistas que desfrutarão dos benefícios produzidos pelo poder
público.
Tendo em vista unicamente a promoção da cidade como espaço ideal para a recepção dos grandes
eventos por vir, grandes mudanças em curso reproduzem, sucessivamente, as desigualdades sociais.
Ou seja, cria‐se um cenário restrito a uma minoria e intensifica‐se a exclusão dos demais – as largas
camadas de baixa renda.
6 AGRADECIMENTOS
A pesquisa que originou este artigo foi financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq). Agradeço a Luciana Andrade e a Eliane Bessa pela orientação e apoio.
7 REFERÊNCIAS 180
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8 NOTAS
1 A definição de equipamentos comunitários é dada pela Lei 6.766/79, Capítulo II, Item IV, § 2º: “Consideram‐se
comunitários os equipamentos públicos de educação, cultura, saúde, lazer e similares.”. No item I do mesmo
capítulo, fala‐se novamente da expressão, com redação da Lei 9.785 de 1999. Além disso, tal expressão também é
encontrada na Constituição de 1988 e remarcada no Estatuto da Cidade – Lei n. 10.257.
2 Sigla para o “Bus Rapid Transit” sistema de corredor exclusivo para ônibus, a ser implantado para conexão entre
diversos pontos da cidade. Ver: <http://www.rio.rj.gov.br/web/guest/exibeconteudo?article‐id=1624721>. Acessado
em 20 de maio de 2012.
3 Ver, por exemplo, Harvey (2000), Bourdieu (2011) e Castells (2011).
4 Ver, por exemplo, Bonduki (2004), Taschner (1997), Valladares (2005) e Rolnik (2009b).
5
Dentre eles, Bonduki (2004), Burgos (2006), Perlman (1977), Rolnik (2004), Valladares (2005).
6
A função social da propriedade é definida pela Constituição de 1988 e regulamentada pelo Estatuto da Cidade – Lei
n.10.257 – com vista a atender, no parcelamento do solo, benefícios comuns à sociedade.
7
Hoje tratada como bairro, a Cidade de Deus – originalmente construída pelo poder público para abrigar ex‐
favelados – sofreu sucessivos processos de favelização, sendo, atualmente, cercada de comunidades de baixa renda,
que acabaram por englobar os conjuntos originais.
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NÚCLEO TEMÁTICO III: Memórias e Cidades
Transportes e transformações no Rio de Janeiro de Machado de
Assis
Transportation and transformations of Rio de Janeiro in Machado de Assis
Cinthia TRAGANTE
Mestranda em História da Arquitetura e do Urbanismo pelo IAU/USP. cinthiatragante@gmail.com
RESUMO
Durante o século XIX, a cidade do Rio de Janeiro passou por diversas mudanças sociais, econômicas,
políticas e culturais por conta de ocorrências históricas marcantes principalmente no período
oitocentista, como a vinda da família real no início do século, o crescimento econômico e as
transformações políticas que se manifestaram depois da independência do país, o declínio do regime
escravocrata, a ascensão da economia cafeeira e o investimento no transporte e indústrias. Tais fatores
contribuíram para a transformação da configuração urbana e social da cidade carioca, emergindo, no
início do século XX, uma cidade bastante diferenciada da que se apresentava no século anterior,
particularmente no que se refere aos transportes urbanos. Diversos destes acontecimentos são
retratados nas obras de Machado de Assis, ambientadas nos diferenciados espaços do Rio de Janeiro.
Este trabalho busca investigar o desenvolvimento do transporte urbano na cidade do Rio de Janeiro e os
impactos sociais e urbanos durante o século XIX, usando, para isso, a literatura de Machado de Assis.
PALAVRAS‐CHAVE: Rio de Janeiro; Machado de Assis; Transportes; Século XIX. 182
ABSTRACT
During the nineteenth century, the city of Rio de Janeiro has passed by several social, economic, political,
cultural and historical modifications. Since 1808, when the royal family has arrived in Brasil, the city have
been radically transformed, with politicians and economic developments ‐like the independence, the
increase of the economy provided by the coffee, the end of the slave trade and investments in the
urbanism of city. Because of all these transformations, the urban factors of Rio de Janeiro city in early
twentieth century were very different of before, particularly in the transportation. These changes have
been described in the literature, especially in the novels of Machado de Assis, which had been acclimated
in different contexts of Rio de Janeiro. This work investigates the increase of transportation in the city of
Rio de Janeiro and the social and urban modifications during the nineteenth century, using for this the
literature of Machado de Assis.
KEYWORDS: Rio de Janeiro; Transportation; Machado de Assis; Transportation; 19th Century.
1 INTRODUÇÃO
Durante o século XIX a cidade do Rio de Janeiro, então capital do país e com grande importância
nacional, é palco de acontecimentos históricos marcantes os quais, em parte, contribuem para que a
cidade passe por várias transformações nas diversas esferas social, urbana, política e econômica.
Até então marcada pelo cenário colonial, é a partir do século XIX – concentrando nele vários
acontecimentos importantes – que a cidade começa a tomar formas mais complexas na sua
apresentação urbana. A cidade carioca anterior ao desenvolvimento oitocentista mostrava‐se como
aponta Abreu (1987, p. 35) como uma cidade limitada, sobretudo pelos morros, pouco expandida,
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com a população predominantemente escrava, carente de transportes coletivo – o que implicava em
habitações concentradas em um espaço limitado – e guiada política e economicamente por uma
reduzida elite que se diferenciava dos demais pela forma de morar e não pela localização. Sobre a
inicial dificuldade de desenvolvimento da cidade, Bruand (1981, p. 333) afirma que “[...] a cidade foi
literalmente espremida entre o mar e a montanha, semeada por todos os lados de morros que
constituíam terríveis obstáculos a um desenvolvimento racional!”.
Um dos primeiros marcos do século surge com a reação em busca de desenvolver instituições
de cultura e melhorar as condições materiais da cidade por conta inclusive da chegada da
família real. Juntamente com a vinda dos nobres de Portugal, foi trazida grande parte de sua
riqueza, incrementando a economia até então desenvolvida de forma tímida. E a partir da
vinda da família real, se fez a abertura dos portos brasileiros, o que ocasionou a entrada de
produtos estrangeiros aumentando o comércio nas maiores cidades, em especial o Rio de
Janeiro. O constante aumento da população também contribuiu para o desenvolvimento do
comércio.
A cidade carioca era dotada de sujas e malcheirosas ruas e não contava com infraestrutura e, a
partir da residência da família real, as condições urbanas da cidade recebem maior atenção.
Assim, é neste momento que
Foram feitos diversos tipos de investimentos na remodelação da cidade, entre os quais um observatório
astronômico e a fundação do Jardim Botânico, junto à recém‐criada fábrica de pólvora, em uma região
desabitada às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas. Ainda em 1808, surgiram o Banco do Brasil, a
Impressão Régia, a Real Academia dos Guardas‐Marinha e a Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica. Dois
183
anos depois criou‐se a Real Academia Militar (ERMAKOFF, 2006, p. 13).
O embelezamento da cidade segundo os padrões europeus coube à Missão Francesa, chegada
em 1816, trazendo artistas plásticos, arquiteto e carpinteiros, entre outros ofícios. Foram esses
mesmos artistas que mais tarde, em 1826 – já com o país independente – fundaram a
Academia de Belas‐Artes.
O desenvolvimento da cidade continuou impulsionado pela transformação econômica e
política guinada a partir da independência do país e da ascensão da cidade ao longo do século.
Esse desenvolvimento atraiu, por sua vez “[...] numerosos capitais internacionais, cada vez mais
disponíveis e à procura de novas fontes de reprodução. Grande parte deles é utilizada no setor
de serviços públicos (transportes, esgoto, gás, etc.), via concessões obtidas do Estado” (ABREU,
1987, p. 35). Neste momento a cidade também atrai grande número de trabalhadores
nacionais e estrangeiros aumentando progressivamente a população da cidade.
É no século XIX, com todas estas transformações, que a cidade do Rio de Janeiro começa seu
processo de estratificação social marcado na forma urbana. Ainda segundo Abreu (1987), o
fator que mais contribui para tal estratificação social foi o investimento do sistema de
transportes, fundamental para o seu crescimento visto que a efetiva expansão da cidade só é
possibilitada a partir do momento em que esta conta com o bonde de burro e o trem a vapor.
Os primeiros passos de expansão para além do núcleo em que se concentrava a cidade –
entre os Morros do Castelo, São Bento, Santo Antônio e Conceição ‐se deu a partir do
momento em que corte se instalou em São Cristóvão. Região até então afastada e
separada do centro da cidade, esse bairro e seu caminho até o núcleo urbano, recebeu
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infraestrutura como instalações de iluminação e melhoria da travessia com os aterros nas
áreas de mangue. Além disso, a construção de habitações foi incentivada com a isenção
de impostos, mas só para aquelas da elite. A partir de então, outras melhorias
começaram a ocorrer na região entre São Cristóvão e o centro da cidade principalmente,
de acordo com as necessidades locais, sendo essa região chamada então de Cidade Nova.
Mais tarde, já impulsionada pela economia promissora do cultivo de café, os
investimentos urbanos e a chegada de estrangeiros na cidade aumentando a população,
além do funcionamento das primeiras diligências movidas a tração animal (1838) “a
expansão da cidade ultrapassa os limites do campo de Santana e de Lapa, Catete, Glória e
Botafogo, de um lado, e Cidade Nova, Catumbi, Engenho Velho e São Cristóvão, do outro”
(ERMAKOFF, 2006, p. 74). A procura por estes bairros era, porém, voltada às camadas
mais abastadas que tinham poder de mobilidade, isto é, podiam usufruir do transporte
marítimo ou do terrestre, enquanto as pessoas menos favorecidas mantinhas suas
residências no centro da cidade, mais próximas aos serviços e procura de trabalho.
A melhoria pública em geral é vista neste contexto com a iluminação à gás instalada em
algumas das ruas do centro da cidade, em 1854, com a iniciativa do Barão de Mauá, as
quais no fim do século serão substituídas pelas lâmpadas elétricas; o telégrafo ligando o
país à Europa em 1874; a coleta de lixo instaurada por volta de 1854; uma rede de
esgotos em 1857, livrando os escravos de carregarem em barricas todo o esgoto
produzido e jogarem ao mar; e obras de aterro em vários pontos da cidade possibilitando
a expansão da ocupação. Vale ressaltar que a maioria destas ações se deu a partir do 184
investimento do capital estrangeiro, muitas vezes conjugado ao Estatal.
É também com iniciativa estrangeira, com a Botanical Garden Rail Road, que se inaugura
a linha de bonde sobre trilhos puxados por animais em 1868, evento colocado por Abreu
(1987) como marco divisório entre a cidade concentrada e a estratificada socialmente e
com acelerada expansão. Na década de 90, inclusive, o bonde chegava até Copacabana,
bairro praticamente não habitado até então. Era o início de uma fase em que o
investimento do capital buscava seus lucros a partir da associação entre transporte e
novos loteamentos.
A contradição do investimento urbano na cidade aparece no fato de que ele costumavam
ocorrer inicialmente no centro, local em que estava residindo a população mais pobre,
causando assim a expulsão de parte da população mais empobrecida ali residente. Isto
ocasiona, por sua vez, o surgimento de cortiços nesta área, já que o deslocamento para
moradia no subúrbio era dispendioso. Ainda assim, outro montante populacional menos
favorecido se direciona aos bairros mais longínquos e suburbanos da cidade – por conta
do elevado valor imobiliário nos bairros centrais e mais nobres ‐utilizando‐se, para isso,
dos trens, transporte que se instaurou ligado às camadas mais baixas.
“Bondes e trens possibilitaram, assim, a expansão da cidade e permitiram a solidificação
de uma dicotomia núcleo‐periferia que já se esboçava [...] antes de 1870” (ABREU, 1987,
p. 44). Villaça também caracteriza todo este período apontado como de transição na
produção do espaço urbano carioca, em que ocorre uma nova estratificação social com
uma nascente burguesia e classe média. (VILLAÇA, 2001, p. 160).
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2 LITERATURA COMO FONTE DE PESQUISA
Este momento peculiar de transformações ocorridas no âmbito urbano carioca é bastante
representado na literatura, de Machado de Assis. A relação de Machado de Assis com a sua cidade
natal é um fator muitas vezes apontado – pelos seus aspectos positivos de descrição da cidade – pela
crítica literária, sendo Machado considerado um dos escritores que melhor conseguiu retratar a
cidade e a sociedade a que pertencia através de seus personagens. “Ao contar suas histórias,
Machado de Assis escreveu e reescreveu a história do Brasil no século XIX.” (CHALHOUB, 2003, p. 17).
Carioca nato sem praticamente nunca ter deixado a cidade do Rio de Janeiro, Machado de Assis
morou e vivenciou vários espaços do Rio imperial trazendo‐os aos seus textos. Como afirma Ribeiro
do Val:
Nos livros que escreveu, Machado de Assis, escritor carioca por excelência, fixou de maneira admirável sua cidade
natal. Todos os aspectos do Rio de Janeiro estão visíveis na obra machadiana. O homem e a sociedade, o meio físico
e o ambiente. [...] Pelos seus romances, contos e crônicas pode‐se conhecer o que de mais característico havia no
Rio de Janeiro de seu tempo. (RIBEIRO DO VAL, 1977, p. 19)
Assim, a obra de Machado de Assis constitui uma importante fonte de estudos do ambiente carioca
do século XIX, visto sua forte relação com a cidade do Rio de Janeiro e a abrangência dos contextos
temporais e espaciais que são observados e narrados pelo escritor.
Embora diversas pesquisas referentes à obra machadiana tratem da sua relação com o Rio de Janeiro,
este trabalho analisa especialmente a presença do desenvolvimento da cidade, no que concerne aos
transportes nela existentes, do Rio de Janeiro e as relações associadas a estas mudanças, tema pouco
185
abordado na literatura existente.
Como literatura, entende‐se que a obra a ser estudada se trata de uma representação da cidade
carioca, isto é, a obra literária, como se sabe, não deve ser utilizada como fonte historiográfica, mas
sim como base para os estudos históricos não fugindo, desta maneira, de seu caráter verossímil. A
discussão sobre a verossimilhança na ficção, principalmente na prosa, é tema bastante presente na
área da Literatura e é necessário levar isto em conta para a utilização da obra machadiana como
estudo.
Sabemos todos que um romance (ou um conto, ou uma novela) formula as próprias leis sob as quais se desenvolve,
leis essas que cumpre ao leitor conhecer e aceitar.[...] Este [o ficcionista] inventa um mundo com base na
observação, na memória e na imaginação, que o leitor deve entender como tal (MOISES, 1969, p. 90).
Moisés (1969) ainda discute a verdade ou verossimilhança dentro do romance afirmando que não se
deve entender que a ação reproduzida na obra seja literalmente ocorrências da vida real, já que assim
não se trataria de ficção e perderia o caráter artístico da literatura, mas ela se organiza coerentemente
como na realidade (MOISÉS, 1969, p. 90).
Por outro lado, mesmo considerando a não obrigatoriedade do compromisso da ficção com a
realidade, podemos intuir que a literatura retrata valores e acontecimentos que se passam de fato
dentro do plano real
Ou seja, a literatura busca a realidade, interpreta e enuncia verdades sobre a sociedade, sem que para isso deva ser
a transparência ou o espelho da ‘matéria’ social que representa e sobre a qual interfere. A Machado de Assis, como
John Gledson já sugeriu, interessava desvendar o sentido do processo histórico referido, buscar as suas causas mais
profundas, não necessariamente evidentes na observação da superfície dos acontecimentos. [...] (CHALHOUB,
2003. p. 92‐93)
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Ainda, baseando‐se no fato de Machado de Assis ser um escritor considerado pela crítica
dentro dos parâmetros do movimento do Realismo, entende‐se que sua literatura tem mais
aproximação com o contexto do Rio de Janeiro que outros momentos literários distintos. Sobre
o Realismo, Alfredo Bosi diz que nas obras deste momento, os escritores buscam a
impessoalidade diante dos objetos e das pessoas assim como procuram demonstrar de forma
objetiva a verdade, ainda que esta se trate de representação. (BOSI, 2006, p. 167). O crítico
literário afirma também que “O ponto mais alto e mais equilibrado da prosa realista brasileira
acha‐se na ficção de Machado de Assis.” (Idem, p. 174). Desta maneira, Machado de Assis
produziu textos que em grande parte se aproximam da realidade vivida na cidade, podendo
então ser utilizada como ponto de partida e pesquisa – considerando‐a sempre como
representação – para a compreensão dos aspectos históricos da cidade no que concerne à
formação e às mudanças da cidade no século XIX.
Para análise de um texto de caráter literário entende‐se que a obra a ser estudada se trata de
uma representação da cidade carioca, isto é, a obra literária, como se sabe, não deve ser
utilizada como fonte historiográfica, mas sim como base para os estudos históricos não
fugindo, desta maneira, de seu caráter verossímil. Moisés (1969, p. 90) discute a verdade ou
verossimilhança dentro do romance afirmando que não se deve entender que a ação
reproduzida na obra seja literalmente ocorrências da vida real, já que assim não se trataria de
ficção e perderia o caráter artístico da literatura, mas ela se organiza coerentemente como na
realidade. Nesse sentido, a obra de Machado de Assis pode ser utilizada como ponto de partida
e pesquisa para a compreensão dos aspectos históricos no que concerne à formação e às
mudanças da cidade no século XIX.
186
Nesse sentido, este trabalho tem por objetivo a análise e compreensão de algumas das
transformações ocorridas na cidade durante o século XIX, buscando inclusive compreender
como a ambientação é atuante na construção do enredo dos romances machadianos. Para isso,
toma‐se como base para os estudos as representações presentes nos romances de Machado de
Assis, sendo eles: Ressurreição (1872), A Mão e a Luva (1874), Helena (1876), Iaiá Garcia (1878),
Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899) e Esaú
e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908)1.
A metodologia utilizada pra o trabalho se concentra na leitura minuciosa dos romances
machadianos e na sistematização dos espaços descritos e suas características pelo escritor em
seus romances. Tais informações, por sua vez, são analisadas em conjunção com a
historiografia do tema, ou seja, sobre arquitetura urbanismo do século XIX no Brasil. Desta
maneira, pode‐se compreender as transformações socioespaciais que ocorreram no Rio de
Janeiro neste período e suas implicações dentro da obra literária.
3 MOBILIDADE URBANA E DISTINÇÃO SOCIAL
Como vimos, há uma forte relação entre o crescimento urbano da cidade e o desenvolvimento
dos sistemas de transportes, uma vez que o poder de mobilidade foi um dos fatores que
contribuiu para que a população se deslocasse para bairros mais afastados do centro da cidade.
Durante o século XIX, houve uma intensificação do sistema de transportes coletivo, com mais
bondes por exemplo, assim como a importação de veículos individuais.
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As primeiras diligências da cidade circundavam os bairros que até então eram mais valorizados,
como São Cristóvão. As gôndolas, que eram os primeiros ônibus que surgiam no ano de 1838,
puxados à tração animal, também tinham linhas nesse bairro além de outros menos habitados
pela população urbana, como Andaraí, Tijuca e Engenho Velho (ABREU, 1987, p. 37;41). A
família de Bento Santiago, assim como seus amigos, costumavam utilizar os ônibus para se
deslocar. Seu amigo Escobar o utiliza para ir embora da casa de Bento “Escobar despediu‐se
logo depois de jantar; fui levá‐lo à porta, onde esperamos a passagem de um ônibus.” (DC,
LXXI, p. 883), assim como o pequeno Bentinho, “[...] minha mãe achou o dia quente e não
consentiu que eu fosse a pé; entramos no ônibus, à porta de casa.” (DC, XXIII, p. 833).
A partir das últimas décadas do século XIX os sistemas de transporte vão influenciar com maior
intensidade a expansão da cidade. A inauguração da Estrada de Ferro Dom Pedro II (Central do
Brasil), em 1858, possibilita que áreas no subúrbio fossem habitadas, enquanto o bonde de
burro surgido dez anos depois facilitava a expansão rumo às zonas norte e sul. A Botanical
Garden Railroad Company foi a pioneira quanto ao funcionamento dos bondes com trajetos
mais restritos ao centro da cidade, expandindo as linhas gradualmente a outros bairros no
decorrer dos anos.
O surgimento do bonde, de certa forma, propiciou a instalação de pessoas em áreas mais
distantes do centro, mas que continham o mesmo conforto daquelas freguesias mais
requisitadas pelas camadas abastadas. Assim, cresce a habitação urbana em bairros que até
então eram tomados apenas por chácaras, mas que começam a ser atendidos pelos bondes e
tinham terrenos de valor mais acessível. 187
A partir de então, outras companhias de bonde começam a surgir na cidade, adentrando a vários
bairros como São Cristóvão, Tijuca, Gamboa, Catumbi, Caju, Santo Cristo e Rio Comprido e com isso
“a novidade nos transportes provoca a modernização desses bairros” (TRIGO, 2000, p. 197).
O bonde é descrito nos romances de Machado de Assis sendo utilizado por alguns personagens mas
somente nos últimos de seus romances. Os primeiros romances se passam antes desta grande
expansão dos bondes na cidade, isto é, os enredos datam da década de 50 e meados da 60. Assim,
nestes iniciais não existem passagens que mostrem seus personagens se deslocando pela cidade com
bondes. À medida que este meio de transporte vai se inserindo de fato na vida urbana, Machado o
descreve de forma mais incisiva em seus enredos. Deste modo, só nos dois últimos romances (Esaú e
Jacó, com o enredo a partir de 1871 e Memorial de Aires, com enredo iniciado em 1888) é que, de
fato, o bonde faz parte das descrições da cidade carioca. Um dos personagens adeptos ao uso do
bonde é Natividade (EJ) que o utiliza para ir às compras e inclusive encontra o conselheiro Aires no
veículo. Ambos estes personagens pertencem a famílias em boas condições sociais, enfatizando quem
eram aqueles que utilizavam o bonde.
Quando, às duas horas da tarde do dia seguinte, Natividade se meteu no bonde, para ir a não sei que compras na
Rua do Ouvidor, levava a frase consigo. A vista da enseada não a distraiu, nem a gente que passava, nem os
incidentes da rua, nada [...] (EJ, XXXVIII, p. 993).
Fidélia tem o mesmo motivo para uso do transporte: “Quando cheguei hoje à cidade, eram duas
horas, e ia a sair do bonde, chegou‐se a ele a bela Fidélia, com o seu gracioso e austero meio‐luto de
viúva. Vinha de compras, naturalmente. Cumprimentamo‐nos, dei‐lhe a mão para subir” (MA,
12/09/88, p.,1149).
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Com a articulação dos bondes de diversas companhias intensifica‐se, neste momento, a
associação entre as linhas de bonde e o crescimento da cidade guiado pelo loteamento.
Exemplo disso é a Companhia Ferro‐Carril de Vila Isabel, pertencente ao Barão de Drummond,
que surgiu em 1872 e atendia Vila Isabel, Andaraí, Grajaú, Maracanã, São Francisco Xavier e
Engenho Novo. “A associação bonde/loteamento é bem exemplificada em Vila Isabel, onde o
bonde demandava o bairro do mesmo nome, criado em 1873 pela Companhia Arquitetônica,
também da propriedade de Drummond, em terrenos outrora pertencentes à família imperial”
(ABREU, 1987, p. 44).
Já por volta dos anos 80, a Companhia do Jardim Botânico (ex‐Botanical Garden Railroad
Company) procura expandir suas linhas até o bairro de Copacabana, até então caracterizado
como um pitoresco arrabalde. Novamente funciona a associação entre transporte e
loteamento, pois a chegada do bonde até lá e as melhorias que foram feitas no bairro para que
isso acontecesse aumentou a procura pelos novos loteamentos do mesmo.
Os trens, no entanto, tiveram papel diverso dos bondes. Estes atendiam a áreas suburbanas
que eram marcadas pela predominância do ambiente rural. As linhas de trem então levaram a
população urbana até locais como Sapopemba, Cascadura ou Nova Iguaçu. Essas regiões
passaram a ter mais ocupação, assim como as áreas entre diferentes estações, passando então
a transformar antigos espaços rurais em “pequenos vilarejos, e a atrair pessoas em busca de
uma moradia barata, resultando daí uma elevação considerável da demanda por transporte e a
consequente necessidade de aumentar o número de composições e de estações” (ABREU,
1987, p. 50). 188
Bento Santiago, já morando no Engenho Novo, isto é, quando trens e bondes já faziam parte do
cotidiano carioca, utiliza o trem para ir até a sua casa, como narra no capítulo de entrada do
romance:
Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem da Central uma rapaz aqui do
bairro, que eu conheço de vista e de chapéu. Cumprimentou‐me, sentou‐me ao pé de mim, falou da lua e
dos ministros, e acabou recitando‐me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que não fossem
inteiramente maus. Sucedeu, porém, que, como eu estava cansado, fechei os olhos três ou quatro vezes”
(DC, I, 809).
Em pouco tempo mais estações foram acrescidas e as viagens foram adequadas aos horários de
entrada e saída dos trabalhadores em seus empregos enquanto continuava a se expandir as
áreas próximas à passagem da linha de trem.
O processo de ocupação dos subúrbios tomou, a principio, uma forma tipicamente linear, localizando‐se as
casas ao longo da ferrovia e, com maior concentração, em torno das estações. Aos poucos, entretanto,
ruas secundárias, perpendiculares à via férrea, foram sendo abertas pelos proprietários de terras ou por
pequenas companhias loteadoras, dando inicio assim a um processo de crescimento radial, que se
intensificaria cada vez mais com o passar dos anos (ABREU, 1987, p. 50).
E assim como ocorreu com os bondes, as linhas de trem foram se multiplicando no decorrer dos anos,
atingindo outros bairros e transportando mais pessoas. Mas já no fim do século, bondes e trens
passavam por uma crise de superlotação pois o uso se tornava cada vez mais intenso.
As viagens a cidades vizinhas, como Petrópolis, quando já tinham acesso por trem, eram feitas por
este meio de transporte. O conselheiro Aires assim viaja com a companhia do desembargador
Campos.
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Campos achava grande prazer na viagem que íamos fazendo em trem de ferro. Eu confessava‐lhe que
tivera maior gosto quando ali ia em caleças tiradas a burros, umas atrás das outras, não pelo veículo em si,
mas porque ia vendo, ao longe, cá embaixo, aparecer a pouco e pouco o mar e a cidade com tantos
aspectos pinturescos. O trem leva a gente de corrida, de afogadilho, desesperado, até à própria estação de
Petrópolis. E mais lembrava as paradas, aqui para beber café, ali para beber água na fonte célebre, e
finalmente a vista do alto da serra, onde os elegantes de Petrópolis aguardavam a gente e a
acompanhavam nos seus carros e cavalos até à cidade; alguns dos passageiros de baixo passavam ali
mesmo para os carros onde as famílias esperavam por eles (MA, Segunda‐Feira, p. 1106).
Também em Niterói se intensificou a ida e permanência, constituindo local de residência
alternativa, após a inauguração do serviço das barcas a vapor entre o Rio e esta cidade. A
navegação era feita pela Sociedade Navegação de Nitheroy e foi implementada para suprir as
necessidades comerciais entre os dois locais, mas tornou‐se transporte de passeio no decorrer
do século, com barcas que saíam de hora em hora, desde as seis da manhã, até o fim da tarde.
Mas além dos transportes coletivos, havia também o transporte particular, com diversos tipos
de carros de aluguel ou de posse das famílias, disseminados principalmente a partir da chegada
da corte portuguesa, em 1808. Dentre estes veículos temos várias passagens nos textos de
Machado, que discorrem desde os mais antigos, como a cadeirinha e a sege, até os que na
época eram os mais atuais e elegantes. Táti (1961) dedica um capítulo a esses meios de
transporte, apontando a ocorrência de tais veículos nos textos machadianos.
Vale a pena apontar as características de cada um desses veículos para compreender a
diferença, inclusive socioeconômica, envolvida em cada tipo.
Havia, desde os tempos coloniais, a cadeirinha, que constituía uma espécie de adaptação da 189
rede e era utilizada por pessoas mais abastadas, carregados por seus escravos. Era restrita aos
principais homens e, durante o XVIII, as mulheres só podiam utilizá‐las quando parte da
nobreza.
É em uma cadeirinha que Brás Cubas vê Marcela pela primeira vez, “Vi‐a sair de uma
cadeirinha, airosa e vistosa, um corpo esbelto, ondulante, um desgarre, alguma coisa que
nunca achara nas mulheres puras” (MP, XIV, p. 533). Também numa cadeirinha ocorre a trágica
morte da avó de Quincas Borba no episódio que figura também uma sege. Pode‐se concluir,
neste episódio a nobreza da avó de Quincas, o que enfatiza sua riqueza deixada para Rubião.
— Foi no Rio de Janeiro, começou ele, defronte da Capela Imperial, que era então Real, em dia de grande
festa; minha avó saiu, atravessou o adro, para ir ter à cadeirinha, que a esperava no Largo do Paço. Gente
como formiga. O povo queria ver entrar as grandes senhoras nas suas ricas traquitanas. No momento em
minha avó saía do adro para ir à cadeirinha, um pouco distante, aconteceu espantar‐se uma das bestas de
uma sege; a besta disparou, a outra imitou‐a, confusão, tumulto, minha avó caiu, e tanto as mulas como a
sege passaram‐lhe por cima (QB, VI, p. 646).
Facilitando o deslocamento, surgem, mais adiante, os carros movidos à tração animal com
constantes melhorias em termos de conforto e velocidade, surgindo o coche. Seguido dele,
outros veículos vão tomando características próprias. A carruagem, por exemplo, constitui, de
certa forma, um aperfeiçoamento do coche, pois, com mudanças em relação a suspensão da
caixa, trazia mais conforto e estabilidade além da boleia que era onde se sentava o cocheiro, a
frente, trazendo mais visibilidade e precisão de conduta a este. De maneira geral, a carruagem
era associada às viaturas de luxo (MHN).
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Ter tais veículos eram sinônimo de luxo. O pai de Brás Cubas, homem de posses, fala da compra
de um coche: “Bebeu o último gole de café; repoltreou‐se, e entrou a falar de tudo, do Senado,
da Câmara, da Regência, da restauração, do Evaristo, de um coche que pretendia comprar, da
nossa casa de Mata‐cavalos...” (MP, XXVI, p. 548). E o Nóbrega, rico homem que queria se casar
com Flora (EJ), tem uma bela carruagem, o que enfatiza sua riqueza “Um deles valia mais que
todos pela carruagem, — tirada por uma bela parelha de cavalos, — capitalista do bairro.” (EJ,
CII, p. 1074) assim como Dona Úrsula, viúva do conselheiro Vale: “Dona Úrsula meteu‐se na
carruagem, logo depois do jantar [...]” (HE, II, p. 281).
Também Valeria (IG), possui uma carruagem, dentre seus outros pertences, como a casa de
veraneio em Santa Teresa e outras de aluguel, como a da Tijuca. Sua posição social também é
alta, tanto que impede que seu filho se case com Estela, filha de um ex‐empregado de seu
marido desembargador, pois a considera inferior à sua posição social e asssim não compátivel
com Jorge. É com a carruagem que os três vão visitar a casa da Tijuca, local onde ocorre uma
cena na história do truncado romance de Jorge e Estela.
Um dia, vagando uma casa de Valéria no caminho da Tijuca, determinou‐se a viúva a ir examiná‐la, antes
de a alugar outra vez. Foi acompanhada do filho e de Estela. Saíram cedo, e a viagem foi alegre para a
moça, que pela primeira vez ia aquele arrabalde. Quando a carruagem parou, supunha Estela que mal
tivera tempo de sair da Rua dos Inválidos (IG, III, p. 411).
Semelhante à carruagem era a berlinda, veículo de origem alemã. Homens de cargos
importantes – o Vice‐Rei e os funcionários mais renomados – a utilizavam. Seus custos de
manutenção com os cavalos e o cocheiro eram altos, além de ser pouco adaptável as tortuosas
190
e curvas ruas das cidades brasileiras.
Já o coupé, citado várias vezes por Machado de Assis em seus romances era uma
carruagem de origem francesa que acomodava somente um passageiro. No coupé, o
condutor ia à frente separado do passageiro por um vidro. “O carro em voga entre as
famílias abastadas do tempo de Rubião era o cupê, carruagem fechada de quatro rodas,
com dois assentos, servida por lacaio e cocheiro na almofada, fardados, e puxada por
mulas ou cavalos, conforme as condições do dia” (TÁTI, 1961, p. 68). Ainda assim, Rubião
acha‐o pouco elegante para toda a cerimônia em que ele sonhava para seu belíssimo
casamento
Naquele dia e nos outros, compôs de cabeça as pompas matrimoniais, os coches, — se ainda os
houvesse antigos e ricos, quais ele via gravados nos livros de usos passados. Oh! grandes e soberbos
coches! Como ele gostava de ir esperar o imperador, nos dias de grande gala, à porta do paço da
cidade, para ver chegar o préstito imperial, especialmente o coche de Sua Majestade, vastas
proporções, fortes molas, finas e velhas pinturas, quatro ou cinco parelhas guiadas por um cocheiro
grave e digno! Outros vinham, menores em grandeza, mas ainda assim tão grandes que enchiam os
olhos. Um desses outros, ou ainda algum menor, podia servir‐lhe às bodas, se toda a sociedade não
estivesse já nivelada pelo vulgar coupé. Mas, enfim, iria de coupé; imaginava‐o forrado
magnificamente, de quê? De uma fazenda que não fosse comum, que ele mesmo não distinguia, por
ora; mas que daria ao veículo o ar que não tinha. Parelha rara. Cocheiro fardado de ouro. Oh! mas
um ouro nunca visto (QB, LXXXI, p. 712).
Anteriores aos famosos coches e coupés, eram presentes as seges e cabriolés, este último
teve um período curto, caindo em desuso. A sege era mais simples, podendo contar com
duas ou quatro rodas com cortina na frente. É uma velha sege que a família de Bentinho
mantém.
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Em pequeno, lembra‐me que ia assim muita vez com minha mãe às visitas de amizade ou de
cerimônia, e à missa, se chovia. Era uma velha sege de meu pai, que ela conservou o mais que
pôde. [...]
[...] Era uma velha sege obsoleta, de duas rodas, estreita e curta, com duas cortinas de couro na
frente, que corriam para os lados quando era preciso entrar ou sair. Cada cortina tinha um óculo
de vidro, por onde eu gostava de espiar para fora. (DC, LXXXVII, pp. 894/895).
Também havia o tílburi que era um “veículo pequeno, sem boléia, com apenas dois
assentos e duas rodas e puxado por um só animal” (TÁTI, 1961, p. 71). Os tílburis
aparecem muitas vezes nos romances machadianos como carros de aluguel, que
circundavam as ruas com seus passageiros e ficavam muitas vezes estacionados no Largo
de São Francisco à espera de quem necessitasse, como Rubião que andava indeciso pela
cidade: “Pensou em ir ao teatro, mas era tarde. Então dirigiu‐se ao Largo de São
Francisco para meter‐se em um tílburi e ir para Botafogo” (QB, XLV, p. 677), ou Bento
indo ao enterro de Escobar, “No tílburi em que andei uma ou duas horas, não fizera mais
que recordar o tempo do seminário, as relações de Escobar, as nossas simpatias, a nossa
amizade, começada [...]” (DC, CXXII, p. 926), ou ainda as indas e vindas de Estévão à casa
de Luís Alves (ML): “Meia‐noite estava a pingar; uma pessoa descia de um tílburi e batia‐
lhe à porta. [...] Mas só lhe respondeu o rumor dos pés que desciam, e pouco depois o do
tílburi que rolava surdamente na terra úmida da praia” (ML, XVI,
p. 255‐259).
Ainda havia o landau que também se caracterizava como carro de luxo com dupla capota, 191
e a vitória, que era uma carruagem descoberta com quatro rodas.
A família Santos, caracterizada como abastada em todo o romance (EJ) tinha toda a
elegância para usar os mais luxuosos carros como a vitória, “Um vitória da Santos
esperava ali os rapazes, a conselho e por ordem da mãe, que buscava todas as ocasiões e
meios de os fazer andar juntos e familiares” (EJ, XC, p. 1060), ou os landaus
No cais pharoux esperavam por eles três carruagens, — dois coupés e um landau, com três belas
parelhas de cavalos. A gente Batista ficou lisonjeada com a fineza da gente Santos, e entrou no
landau. Os gêmeos foram cada um no seu coupé. A primeira carruagem tinha o seu cocheiro e o
seu lacaio, fardados de castanho, botões de metal branco, em que se podiam ver as armas da casa.
Cada uma das outras tinha apenas o cocheiro, com igual libré. E todas três se puseram a andar,
estas atrás daquela, os animais batendo rijo e compassado, a golpes certos, como se houvessem
ensaiado, por longos dias, aquela recepção. De quando em quando, encontravam outros trens,
outras librés, outras parelhas, a mesma beleza e o mesmo luxo. (EJ, LXXIII, p. 1041).
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Figura 1‐ Mapeamento dos espaços citados nas obras de Machado de Assis referentes ao deslocamento e mobilidade urbana.
192
Fonte: Produção própria sobre a planta da cidade (1890), in CZAJKOWSKI (2000).
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O século XIX, no qual se passam os enredos dos romances analisados, em relação às alterações
e desenvolvimento da cidade do Rio de Janeiro, foi um período em que as mudanças
econômicas e políticas e também alterações na sociabilidade e costumes, acarretaram
modificações na maneira como se apresentava a organização da cidade.
Contemporâneo a estas alterações que estavam ocorrendo a seu redor e bastante observador,
Machado de Assis retratava sua sociedade de forma muito bem caracterizada entrelaçando
aspectos sociais, espaciais e econômicos, inclusive demonstrando isso através da descrição de
seus personagens.
Especificamente sobre a forma como se apresentam o uso dos transportes dentro da literatura
machadiana, a descrição dos diferentes tipos de transportes utilizados pelas distintas classes
sociais que neles aparecem, vai se modificando à medida que o sistema de transporte cresce
na cidade. Também é notável, em Machado, que a ambientação faz parte da construção social
e cultural dos personagens, evidenciando, através das características dos espaços e dos usos de
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diferentes modalidades de transporte, marcos sociais e culturais que buscavam ser criados pelo
narrador. Claramente se vê, através dos espaços narrados, que Machado pouco descreve a
população mais empobrecida, dando prioridade à descrição da elite e os valores que a faziam
soberana, o que pode ser percebido inclusive na demarcação predominante da mobilidade ao
longo da orla (Figura 1), em detrimento dos espaços suburbanos para os quais avançavam os
trens, por exemplo. Tratando‐se de Machado de Assis, essa preferencia pela descrição da elite
talvez possa ser, na verdade, uma crítica à sociedade que estava se formando na então capital
brasileira, pautada prioritariamente pelos valores guiados pela aparência – como morar em
boa localização, ter posses e mostrar‐se a sociedade da melhor maneira possível ‐como muitas
vezes retratado ironicamente em suas obras. Os transportes, dentro da obra machadiana,
enfatizam tais aspectos, sendo nitidamente demarcadores sociais.
Cabe ainda ressaltar que a compreensão das relações da cidade com a presença de uma fonte
que não é unicamente a consagrada pela historiografia, isto é, o estudo dos aspectos
relacionados ao urbanismo através da literatura, evidencia a riqueza que pode trazer a relação
de troca entre diferentes objetos de estudo.
5 REFERÊNCIAS
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AGUIAR, Luiz Antonio. Almanaque Machado de Assis: vida, obra, curiosidades e bruxarias literárias. Rio de Janeiro:
Record, 2008. 193
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006.
BRUAND Yves. Arquitetura Contemporânea no Brasil. Perspectiva, São Paulo, 1981.
CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis: Historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
COARACY, Vivaldo. Memórias da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: José Olympio, 1955.
COUTINHO, Afrânio (org.) Machado de Assis: Obra Completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2006.
CZAJKOWSKI, Jorge. Do cosmógrafo ao satélite: mapas da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Centro de
Arquitetura e Urbanismo, 2000.
ERMAKOFF, George. Rio de Janeiro 1840‐1900 ‐Uma crônica fotográfica. Rio de Janeiro: G. Ermakoff Casa Editorial,
2006.
GUIMARÃES, H.S. & SACCHETTA, V. (orgs.) A olhos vistos: uma iconografia de Machado de Assis. São Paulo: Instituto
Moreira Salles, 2008.
MOISES, Massaud. A Análise Literária. São Paulo: Cultrix, 1969.
REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da Arquitetura no Brasil. São Paulo, Perspectiva,1978.
REIS, Nestor Goulart. Evolução urbana do Brasil. São Paulo, Liv Pioneira Ed/EDUSP, 1968.
SEVCENKO, Nicolau (Org.). Historia da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
TÁTI, Miécio. O Mundo de Machado de Assis: o Rio de Janeiro na obra de Machado de Assis. São Paulo: São José,
1961.
TRANSPORTE URBANO NO BRASIL. In: Museu Virtual do Transporte Urbano. Disponível em:
http://www.museudantu.org.br/QBrasil.htm. Acesso em 03 fev. 2011.
TRIGO, Luciano. O viajante imóvel: Machado de Assis e o Rio de Janeiro de seu tempo. Rio de Janeiro: Record, 2000.
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isbn: 978-85-98261-08-9
VAL, Valdir Ribeiro do. Geografia de Machado de Assis. Rio de Janeiro: São José, 1977.
VILLAÇA, Flávio. O espaço intra‐urbano brasileiro. São Paulo: Studio Nobel / FAPESP / Lincoln Institute, 2001
6 NOTAS
1
Para facilitar a compreensão, utilizou‐se, neste trabalho, as referências das citações dos romances de Machado de
Assis com a seguinte sequência: sigla da obra, capítulo, página. Sendo as obras utilizadas e suas siglas: Ressurreição
(RE), A Mão e a Luva (ML), Helena (HE), Iaiá Garcia (IG), Memórias Póstumas de Brás Cubas (MPBC), Quincas Borba
(QB), Dom Casmurro (DC), Esaú e Jacó (EJ) e Memorial de Aires (MA); e as páginas referentes à edição organizada
por Afrânio Coutinho (2006), indicada nas referências.
194
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NÚCLEO TEMÁTICO III: Memórias e Cidades
Suportes de memória da Comarca do Rio das Mortes: a
encruzilhada de rotas e caminhos luso‐brasileiros
Marília Fátima Dutra de Ávila CARVALHO
Mestre em Geografia/UFMG; Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pelo NPGAU/UFMG;
Professora da Escola de Design/UEMG. marilia.avilacarvalho@gmail.com
Fernanda Borges de MORAES
Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela FAU/USP; Professora do Departamento de Urbanismo
da Escola de Arquitetura/UFMG; Coordenadora do Programa de Pós‐graduação em Arquitetura e
Urbanismo – NPGAU/UFMG. fernanda.borges.moraes@gmail.com
RESUMO
Caminhos e rotas fariam parte de um acervo operacional museal? Caminhos e rotas parecem‐nos
documentos vivos (ou fontes documentais) merecedores de interesse enquanto objeto de
preservação, pesquisa e comunicação por parte de um museu? Esse artigo se dedica a discutir
sobre suportes de memória da antiga Comarca do Rio das Mortes (1714‐1892), seus caminhos e
rotas de abastecimento das regiões mineradoras. Julgamos que, na rede urbana e de estradas da
Comarca do Rio das Mortes há paisagens, caminhos, estruturas edificadas e sítios que merecem
figurar como acervo operacional de museus históricos, dinamizadores de projetos curatoriais
interativos e atraentes à visitação ao museu.
PALAVRAS‐CHAVE: Museu. Acervo operacional. Suportes de memória. Comarca do Rio das 195
Mortes.
ABSTRACT
Paths and routes would be part of operating a museum collection? Paths and routes appear to be
living documents (or documentary sources) as an object of interest worthy of preservation,
research and communication on the part of a museum? This article is dedicated to discussing the
storage media of the former Comarca do Rio das Mortes (1714‐1892), its ways and supply routes
of the mining regions. We believe that in the urban network of roads and the County of Rio das
Mortes there are landscapes, roads, built structures and sites that deserve to rank as operating
museums historic collection, curatorial project interactive and attractive to visitors to the
museum.
KEYWORDS: Museum. Collection operations. Storage media. Comarca do Rio das Mortes.
1 INTRODUÇÃO
Em março de 2012, conversando com professores da Escola de Design da Universidade
Estadual de Minas Gerais‐UEMG, procurávamos algumas estratégias didáticas para
provocar o interesse dos alunos, nas visitações culturais a museus históricos, previstas no
curso introdutório de Museologia. A turma compunha‐se de jovens arquitetos e
designers gráficos, com interesses diversos. Os primeiros detinham‐se nas edificações dos
museus e na paisagem do entorno; os graduandos em Design manifestavam especial
interesse por souvenirs comercializados na lojinha do museu, assim como pelos projetos
museográficos, porque ali se abriria espaço para trabalhos futuros. Já os Naquela
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ocasião, nos debruçávamos sobre pequenos objetos do acervo tradicional de museu
histórico (neste caso, objetos, fotografias, textos, ícones, publicações, réplicas, maquetes,
etc.). A lojinha explorava uma vertente pragmática, eivada de lugares‐comuns já por
demais explorados pelo turismo e suas campanhas, sobretudo, de valorização do
patrimônio cultural e da história das cidades, sobretudo as do “período do ouro”.
No entanto, carecíamos de estratégias pedagógicas mais eficientes para a abordagem do
acervo operacional, aqui entendido como o tratamento museológico de paisagens,
esculturas, monumentos, equipamentos, estruturas edificadas que são tornados objetos
musealizados e incorporados ao acervo. Perguntávamo‐nos: os velhos casarões, que
costumam abrigar os museus visitados, são objetos passíveis de musealização? As vias
urbanas e os caminhos interurbanos que dão acesso aos museus são objetos museais? As
encruzilhadas onde esses caminhos tem encontro com outros poderiam ser tratadas
museologicamente? Entendíamos que sim, tanto os casarões, quanto as vias, os
caminhos e as encruzilhadas poderiam fazer parte do seu acervo operacional, desde que
convenientemente tratados como suportes de memória.
Mas a dificuldade residia, justamente, em qualificar tais objetos como suportes de
memória, porque o mundo moderno/ contemporâneo destruiu muitos trechos daqueles
antigos caminhos; hoje em dia os casarões, os caminhos de acesso e as encruzilhadas
reduziram‐se a fragmentos de memória, desconectados, perdidos dentro de alguma
cidade colonial mineira, inserida num contexto urbano contemporâneo, numa nova
ordem econômica, num novo tipo de vida social... 196
Como, então, abordar as potencialidades de acervos operacionais de museus, num
contexto didático‐pedagógico – mais especificamente, no ensino introdutório da
Museologia –, para que os alunos avancem em suas análises, na contramão dos lugares‐
comuns contemporâneos, e agucem a sensibilidade para explorar dimensões singulares,
que enunciem outras narrativas possíveis?
Exploraremos, neste trabalho, em caráter narrativo, duas mitologias gregas: Hécate, a
deusa das encruzilhadas, e as musas, filhas de Mnemósis. Entendemos, nesse contexto,
museu como um lugar de memória, capaz de enunciar, dialogicamente, discussões
intergeracionais, confluências e percepções de camadas enunciativas que mostram
diferentes poéticas dentro de um mundo, com suas permanências mas também em
rápida transformação histórica e cultural. 1
Caminhos poderiam fazer parte de um acervo operacional museal? Caminhos e rotas
podem ser considerados documentos vivos (ou fontes documentais) merecedores de
interesse enquanto objeto de preservação, pesquisa e comunicação por parte de um
museu. Mais especificamente com relação aos nossos interesses de pesquisa e aos
museus explorados no curso de Museologia, como isso se aplicaria à antiga Comarca do
Rio das Mortes e seus caminhos e rotas 2 de abastecimento das regiões mineradoras? Na
transformação das cidades da Comarca do Rio das Mortes, que paisagens, equipamentos,
caminhos, sítios, estruturas edificadas merecerem figurar como acervo operacional de
museus históricos? Esses são os recortes que trataremos, a seguir.
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1 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A ANTIGA COMARCA DO RIO DAS MORTES: NOTAS
PARA PESQUISAS E APLICAÇÕES
A Comarca do Rio das Mortes 3 foi uma das divisões judiciárias criadas em território mineiro
nas primeiras décadas do século XVIII, hoje correspondendo, aproximadamente, às
macrorregiões da Mata, Sul de Minas, Centro‐Oeste de Minas e parte da Central do Estado.
Apesar das inúmeras divisões territoriais sofridas, existiu entre 1714 e 1892. Inicialmente um
extenso território, sua rede urbana destacava‐se, já em meados do século XVIII, pela presença
de inúmeras trilhas, caminhos, rotas, estradas, ao longo dos quais a maior parte dos núcleos
urbanos mineiros se consolidou, dando origem a importantes polos que articulavam rotas de
abastecimento não só com regiões mineradoras, mas também com as demais capitanias.
Muitos caminhos desapareceram, outros se tornaram leito das ferrovias, sendo que os
principais constituem, hoje, parte expressiva da rede rodoviária federal e estadual. A maioria
das cidades atuais, na Comarca do Rio das Mortes, nasceu dos arraiais mineradores, junto a
fortificações, acampamentos militares, ao lado de registros que coibiam o contrabando de
minerais e gemas, em fazendas, ao longo dos seus principais rios, nas encruzilhadas e ao longo
dos caminhos...
As rotas abertas pelos primeiros empreendedores se orientavam pelo curso dos rios mais
caudalosos, mas também pelas linhas de cumeadas e meia‐encostas, no relevo suavemente
amorrado da região. Cabe ressaltar que há descrições pormenorizadas, em vários documentos
coevos, que também mencionam cursos d’água menores, em extensão, os quais, no entanto,
não figuram nos mapas coloniais, sendo este um dificultador para a pesquisa documental 197
contemporânea.
Com o avanço das pesquisas documentais – no sentido de se localizar os primeiros registros dos
mapas coloniais, em comparação (ou superposição) a mapeamento recente que contenha um
registro preciso da orografia, da hidrografia, dos recursos minerais existentes no subsolo –, é
possível reconstituir, com alguma precisão, o traçado das antigas rotas de abastecimento na
Comarca do Rio das Mortes. Vê‐se que há aqui o consórcio de pesquisa de cartografia histórica,
associada à documentação de base tecnológica, a partir de fontes dos séculos XX ‐XXI, cotejadas
a fontes do século XVIII e XIX. Além de identificar fontes de cartografia histórica é necessário
cotejar a informações urbanísticas, tais como ordenações urbanas, emanadas do poder
eclesiástico e do poder cível na Comarca do Rio das Mortes. É um tipo de pesquisa que julgamos
importante como suporte aos setores de pesquisa e documentação de redes de museus.
Recontextualizar os museus históricos no tecido urbano e na rede interurbana dos quais se
originaram não só as edificações antigas que os sediam, mas também seu próprio acervo
significa expandir ser acervo operacional de modo a enriquecer a experiência de seus
visitantes,no sentido de enunciar/ revelar novas percepções do passado e do presente. Um
aparte: no caso do curso introdutório de Museologia e também da disciplina Planejamento
Interpretativo, perguntas provocativas são extremamente úteis para despertar o olhar do
aluno, numa visita ao museu, por exemplo: por que a Rua Direita se chama Rua Direita? Que
diálogo intergeracional o museu poderia fomentar em torno desse mote? As respostas seriam,
na verdade, “chaves de leitura” para orientar o diálogo: a Rua Direita ligava as fazendas ao adro
da igreja principal? Ligava a entrada à saída da vila? Essa rua ficava à direita de que? Ou
“direita”(directa) era um jeito de falar culto que desapareceu com os antigos colonos
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portugueses e se corrompeu na tradição oral? Há várias explicações, ou, como queiram, várias
memórias. Conforme já mencionado, entendemos museu como um lugar de memória, capaz
de enunciar, dialogicamente, discussões intergeracionais, confluências e percepções de camadas
enunciativas que mostram diferentes poéticas dentro de um mundo, com suas permanências mas
também em rápida transformação histórica e cultural.
O ouro encontrado nos aluviões implicou o surgimento de assentamentos humanos ao longo
de cursos de água... Mas havia a dificuldade de se vencer o leito de rios, a vau... Os tropeiros
percorriam longos trechos margeando rios até que encontrassem em canal estreito onde
pudesse lançar troncos de árvores, amarradas lado a lado, para atravessar as tropas em
segurança. Caso os rios fossem largos demais, amarravam os animais pelo pescoço com cordas
e guiavam, a nado, o “feixe de mulas” por cordames recolhidos em carretilhas, tal como
manuseavam cordas ao mar... As dificuldades eram muito grandes, perdiam‐se vidas, perdiam‐
se cargas, gerando a demanda por infraestrutura. A Coroa enviou engenheiros militares
portugueses aptos a elaborar cartas, plantas, esboços e projetos de pontes e obras náuticas,
estradas, fortificações, arruamentos... Esses engenheiros fizeram escola no Brasil, difundiram
conceitos novos, ensinaram técnicas, implantaram tecnologias construtivas. Há muito que se
pesquisar sobre a contribuição da engenharia militar no Brasil.
Há muito que se pesquisar sobre o urbanismo colonial e imperial no Brasil. André Guilherme
Dornelles Dângelo (2006) identificou, em extensa e minuciosa pesquisa, que houve uma
translação da cultura arquitetônica religiosa, barroca, de Portugal para o Brasil colonial. Há
muitas evidências por ele apontadas na cultura arquitetônica em Minas Gerais e seus 198
antecedentes em Portugal e na Europa, expressas na maneira como os arquitetos, mestres‐de‐
obras e construtores produziram a arquitetura religiosa em Ouro Preto, Sabará, Mariana, São
João Del Rei, Congonhas etc. Porém ainda é necessário debruçar sobre a história produção do
urbanismo no Brasil. Teria havido também uma tradição urbanística passada de lá para cá?
Houve cópias? Houve aprendizado em oficinas? Haveria tratadística publicada em Portugal (ou
Europa) que tivesse sido aplicada ao Brasil? Há testemunhos “impressos” em documentos
vivos como pontes, cavas de transporte do gado, valos para demarcação de terras para fins de
agropecuária, sistemas de aquedutos, localização estratégica de fortificações em relação a
divisas, etc? Tais documentos expressam a existência de planos da Coroa para o Brasil?
Têm‐se preciosas fontes documentais na cartografia histórica. O trabalho dos cartógrafos
militares – como o Capitão (da Ordenança) Caetano Luiz de Miranda, que em 1804 publica a
Carta Geografica de Minas Gerais, e outros como José Joaquim da Rocha, responsável por
atualizar as divisas das comarcas de Minas Gerais – mostram caminhos que evidenciam que a
evolução urbana da Comarca do Rio das Mortes, com sede em São João Del Rei, cresceu por
polinucleação, nos termos de Jacui, Baependi, Campanha, Barbacena, Queluz (atual
Conselheiro Lafaiete), Oliveira, São José do Rio das Mortes (atual Tiradentes), São Bento do
Tamanduá (atual Itapecerica).
As cidades históricas de Minas Gerais surgidas no período do ouro (São João Del Rei, Ouro
Preto, Ouro Branco, Mariana, Sabará e Caeté) geraram configurações urbanas semelhantes, no
sentido de processos de urbanização que tiveram origem na colonização portuguesa, nos
arraiais auríferos construídos, a princípio, para que “durassem” o tempo necessário, enquanto
a mineração do ouro fosse extremamente rentável. A atividade mineradora teve tempo de vida
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limitado, porque o minério é uma fonte de recurso que se esgota nas catas e nas lavras. Uma vez
que o ouro de aluvião, nas areias e cascalhos, se extinguia, os mineradores gananciosos iam‐se
embora dali e o arraial caia no declínio. O ouro das minas, no entanto, durou mais tempo e gerou
estruturas urbanas mais consolidadas, cujo sentido histórico torna‐se nexo explicativo para a
compreensão das permanências e das mudanças. As cidades se alteram continuamente, crescem,
desenvolvem, são vivas e complexas. Se conhecermos a sua história, identificaremos que marcos
históricos ainda se fazem presentes no tecido urbano e na configuração dos espaços de conexão
entre as cidades, então nos tornaremos capazes de compreender como as coisas se sucederam ali...
Nesse momento ganharemos “sensibilidade histórica”, ou seja, seremos capazes de entender que
“tanto mais se entende o passado quanto mais se participa do presente” (IGLÉSIAS, 1976, p.13).
A dinâmica de ascensão e queda dos arraiais auríferos suscita potencialidades e contradições a
pesquisar, das quais se aponta: nas cidades históricas mineiras temos muitos museus que se
dedicam a documentar e proteger acervos de monumentos e objetos raros; mas há museus abertos
dedicados a proteger estradas, pontes, sítios fortificados em ruínas, acampamentos militares,
vestígios de aquedutos/bicames/rodas de água, trilhas de tropeiros com seus pontos de rancharia,
barreiros de onde se extraía argila para confeccionar tijolos e telhas, etc? Como tratá‐los? Como
eco‐museus? Como museus abertos? Como extensões operacionais de acervo tradicional? Como
musealização in situ? Não se trata de uma simples requalificação de termos, mas sim de qualificar
melhor a noção de que um museu de acervo tradicional poderia ganhar uma ampliação, se associar
uma proposta de acervo operacional, considerando o contexto de seu entorno como possuidor de
estruturas potentes a serem conservadas e defendidas...
199
Trabalhar a cidade e sua rede de conexões de acesso é um ponto que merece ser discutido visto
que ajudará a reforçar o conceito que uma cidade não nascia sozinha, mas sim no bojo de uma rede
de núcleos, articulados por caminhos (talvez planejados), plantados no interior brasileiro pelos
planos colonizadores luso‐brasileiros. Conforme Soares (2009), “[...] o modo como se processou a
concentração urbana de certas populações fornece pistas valiosas para se compreender a
complexidade atual de sua rede de cidades [...]”.
2 EXPANDINDO OS MUSEUS E A NATUREZA DE SEUS ACERVOS...
Exploraremos, aqui,em caráter narrativo, duas mitologias gregas: Hécate, a deusa das encruzilhadas, e
as musas, filhas de Mnemósis.
2.1 A deusa das encruzilhadas... e as musas
Na mitologia grega, Hécate era a senhora de três mundos: o Céu, a Terra e os Infernos. Tinha três
corpos e três rostos e concedia aos mortais os nascimentos, conservava a vida e determinava o seu
término. Benfazeja e apavorante, a deusa das encruzilhadas era cultuada em estátuas em sua honra,
representadas como uma mulher de três cabeças, em capelas erigidas nas encruzilhadas, onde era
comum haver também culto a outros deuses, como Hermes, que guiava os homens pelos mundos
subterrâneos. A encruzilhada representava, para os gregos, um ponto de parada onde se devia
escolher para onde ir, faziam ali um momento de celebração, de reflexão, muitas vezes julgavam que
fosse necessário um sacrifício para guiar as almas, pois não se sabia ao certo se Hécate faria uma
aparição benéfica ou maléfica (CHEVALIER, GHEERBRANT, 2009).
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Porque trazer aqui ensinamentos simbólicos de tradições da Antiguidade? Teriam essas
tradições sido transportadas para a América? Teria a Grécia antiga contaminado o Brasil? De
certo modo há correspondências ao considerarmos, por exemplo, que escravos africanos
temiam o senhor das encruzilhadas, o protetor de todos os caminhos. Várias nações africanas
prestam cultos e oferendas nas encruzilhadas, para evitar um destino nefasto.
Quanto às musas, essa é outra história: sabemos que museu é templo dedicado às musas.
Heródoto contava que musas nasceram filhas de Zeus (pai dos deuses e dos homens) e
Mnemósine (Memória): Calíope (a musa da Poesia épica), Clio (musa da História), Melpômene
(musa do Canto), Urania (musa da Astronomia), Terpsícore (musa da Dança), Erato (musa da
Poesia lírica), Polímnia (musa da Oratória). Apolo (o deus da Música) era o deus que mais
freqüentava a casa das musas, os museus, pequenos edifícios construídos ao lado dos templos
gregos para guardar objetos de recordação. As musas alegravam os homens com música,
poesia, dança...(COSTA, 2012). A história das musas também nos contaminou? Certamente,
através de matriz ocidental erudita, o museu, tal como o conhecemos hoje, foi criado no século
XVIII, na Inglaterra, quando se recuperou a mitologia das musas para adicionar certo “glamour”
à reinvenção ‘moderna’ do museu.
Que conexão há entre a deusa da encruzilhada e as musas? Na mitologia grega,
nenhuma... Aqui, neste artigo, valemo‐nos das duas narrativas como arsenal para
justificar que há histórias milenares a serem recuperadas nos caminhos, trilhas, atalhos,
rotas abertos na Comarca do Rio das Mortes de meados dos XVIII a meados dos XIX. Ali
circulou muita gente, de várias etnias (sobretudo no período do ouro) que, tal como o 200
gregos na Antiguidade, tinham a crença de que o cruzamento de caminhos tinha algo de
sagrado, de densidade oculta, de transitório, de encontros efêmeros, talvez confrontos
de vida e morte, mudança de destino. Por exemplo, a atual cidade de Baependi (fundada
em 1692), no dialeto indígena significa muitos caminhos dependurados. No início, havia
uma clareira na mata (que talvez fosse uma “coivara” herdada de queimadas dos
indígenas); no alto de um morro, onde cruzavam vários caminhos, ali as tropas faziam
pouso, arranchava‐se, faziam‐se acampamentos, observava‐se a planície lá embaixo.
Provavelmente as pessoas se detinham com receio de emboscadas, se preparavam para
enfrentar a mata cerrada e mais outras tantas léguas, sertão adentro. Isso é indiciário da
importância simbólica da encruzilhada em Minas Gerais, há muitos séculos.
Tradições, patrimônio imaterial, indícios, são suportes de memória plausíveis a se
identificar nos caminhos da Comarca do Rio das Mortes, mediante pesquisa histórica.
Através de proposta de musealização in situ, pode‐se atribuir significados aos suportes
de memória identificados nos caminhos, potencializados por meio de exposição
itinerante, de objetos recolhidos e conservados pelo museu, conforme proposta
curatorial.
Como as histórias da encruzilhada poderiam tomar lugar no museu? Como conciliar
Hécate e as filhas de Mnemósis? Pensamos que, talvez, seja adequado pensar os
caminhos como lugares de memória e buscar desvendar suas camadas enunciativas.
Mário Chagas e Víktor Chagas [2012], observando as pedras que marcam a paisagem da
cidade do Rio de Janeiro apontam que “[...] ao longo do tempo, (tomaram) um lugar
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proeminente na geografia de nossas memórias, nas nossas paisagens subjetivas. Sem
elas, nós não seríamos os mesmos.” E falam de uma “educação pela pedra. As pedras,
essas companheiras de viagem, podem ser boas educadoras”. Parodiando os autores, não
poderíamos nós, mineiros, na Comarca do Rio das Mortes, fazer a “educação pelo
caminho”?
2.2 Caminhos como parte do acervo operacional de museu
Caminhos seriam documentos vivos (ou fontes documentais) e os julgamos merecedores de
interesse enquanto objetos de preservação, pesquisa e comunicação por parte de um museu.
Citemos alguns exemplos de caminhos. Na Comarca do Rio das Mortes, figuram antigas
ligações entre o caminho Novo e o Caminho Velho. O viajante Antonil, em 1699, faz referência
ao Caminho Novo, que passava por Barbacena, Ressaca e dali tomava duas variantes, uma para
Tiradentes, outra para o Rio de Janeiro (OLIVEIRA, 2011).
O Caminho Velho, segundo Geraldo Guimarães (1986, p.27‐43), partia da Vila de São Paulo e
percorria o vale do Paraíba passando, entre outros pousos, por Mogi, Jacareí,Taubaté,
Pindamonhangaba, Guaratinguetá. Nas alturas da Cachoeira Paulista tomava rumo ao norte,
atravessando a Mantiqueira na Bocaina do Embaú. Daí seguia para Pouso Alto e Baependi.
Chegava à Encruzilhada (atual Cruzília) e daí continuava para Ibituruna do Rio das Mortes que
era transposto no Porto Real da Passagem, já nas paragens de São João Del Rei. Mais tarde foi
feito um atalho de Encruzilhada à passagem do Rio das Mortes, deixando Ibituruna ao largo. Do
Rio das Mortes o Caminho Velho rumava outra vez para o norte, passando nas proximidades de 201
Lagoa Dourada, possivelmente pelo arraial de Catauá; dirigia‐se para nordeste, indo a Amaro
Ribeiro (perto de Conselheiro Lafaiete). Daí ganhava a Serra de Itatiaia, de onde seguia para o
Rio das Velhas, continuando para o norte, mais ou menos paralelo ao São Francisco até os
sertões da Bahia. Na Serra de Itatiaia, uma ramificação do Caminho tomava o rumo leste para a
região de Ouro Preto e Ribeirão do Carmo (Mariana), já na bacia do Rio Doce. Daí,
atravessando a Serra do Mar, encontrava o caminho que vinha de São Paulo, no vale do
Paraíba, primeiramente em Taubaté, posteriormente em Guaratinguetá.
Havia também descaminhos para fugir dos registros e contrabandear ouro em pó, entre Vila
Rica e Porto Estrela (CARVALHO, 2011).
O Caminho Novo tem suas origens em uma picada indígena, quiçá uma trilha pré‐histórica4.
Empreitada proposta por Garcia Paes, depois prosseguida por Bernardo Proença, que calçou a
estrada do alto da Serra de Petrópolis até Magé, pela Estrada velha da Serra da Estrela até
Manhumirim. Segundo Otávio Dulci (2011), D. João VI mandou calçar esta estrada, que era
larga, mas tinha muitos atoleiros, era muito íngreme na subida da Mantiqueira e isso afetava os
viajantes; não era carroçável, só se percorria por tropas de burros, havia pontes sobre alguns
rios, porém os cursos d’água maiores eram atravessados por balsas. Era uma via importante
para o abastecimento dos núcleos mineradores, por ali chegavam o sal, tecidos e vinhos
europeus, bacalhaus, chapéus, azeite doce... É importante identificar e mapear os “ranchos” de
tropas, que funcionavam acoplados a vendas, primitivos entrepostos comerciais à beira da
estrada, que não tinham boa comida, mas vendiam aos tropeiros, de tudo um pouco: queijo,
banana, fumo, aguardente, ferrarias, selarias.
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2.3 Rotas enquanto suportes de memória na Comarca do Rio das Mortes
Na Comarca do Rio das Mortes, as rotas diferiam de caminhos ou trajetos, uma vez que
continham relações econômicas explícitas; por exemplo, os sertanistas paulistas, no século XVII
praticavam rotas de apresamento aos índios, ao longo das quais fundavam capelas, não só para
reforçar a imagem de católicos devotos, assim como para instituir, em volta das capelas, um
patrimônio de terras para agricultura, mineração e aldeamento de índios 5. Fazendeiros da Bahia
e do Alto São Francisco traçavam rotas para conduzir o gado dos currais de invernada, às margens
do rio São Francisco até Salvador. Na fase da exploração (e contrabando) do ouro houve vários
caminhos e descaminhos trilhados pelos mineradores, contrabandistas e faiscadores.
Francisco Eduardo de Andrade estuda as Picadas de Goiás, que a partir de 1739 foram abertas
de Minas em direção a Goiás, para execução dos contratos de cobrança de mercadorias e
escravos. Aponta que as rotas entravam pelo território de Minas e Goiás controladas por
cidadãos poderosos da Comarca de Vila Rica (a exemplo do Guarda‐Mór Maximiniano de
Oliveira Leite, residente em Mariana), por um longo período, uma vez que o acordo em relação
às reais divisas entre Minas e Goiás só se fecharia no século XIX. Contratos e acertos para a
abertura de picadas seguiam instruções contra quilombolas e indígenas. As rotas , na Comarca
do Rio das Mortes, começavam perto de São João Del Rei, direcionavam a noroeste rumo a
Formiga, Oliveira, Bambuí, Tamanduá até Paracatu. O sertão, indo para Goiás, foi alvo de
disputa da Comarca do Rio das Mortes com a Comarca Vila Rica e Carmo, envolvendo conflitos
apoiados por interesses eclesiásticos, controlados pelo Bispo de Mariana, que designava os
capelães para administrar a rede de capelas. Havia também rotas que ligavam o centro‐oeste à 202
Bahia, pelo Rio São Francisco.
As picadas dos sertões geraram transformações no lado ocidental da Comarca do Rio das
Mortes, havendo ali paisagens, sítios, ruínas de estruturas edificadas que precisam ser
mapeadas e estudadas para incorporar acervo operacional de museus históricos, mediante
propostas de musealização in situ.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao analisar o passado da Comarca do Rio das Mortes e tentar cruzar a história dos
portugueses com os brasileiros, é preciso ter cuidado para não cometer anacronismos, e
ter em mente que os portugueses estavam inteiramente focados na economia mineral
(DULCI, 2001). Portanto, as rotas e os caminhos luso‐brasileiros da Comarca do Rio das
Mortes foram instrumentos de logística precisa e determinada: colonizar, povoar, manter
apenas uma única ligação com o exterior pelo litoral brasileiro, e, para o interior, instalar
uma rede capilar de caminhos que se organizavam conforme a partição das terras agrícolas
e mineradoras, avançando e adentrando as fronteiras e posses por sobre as terras
espanholas.
A sociedade colonial, na sede da Comarca do Rio das Mortes (em São João Del Rei,
sobretudo), concentrava um grande quadro de funcionários da Coroa e da Igreja,
responsáveis pelo controle das minas do Brasil. Diferindo das áreas de fronteira da
Comarca, as vilas e cidades fundadas na parte central da Comarca do Rio das Mortes
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seguiram de perto o padrão urbano lusitano: “[...] no alto do morro há uma pequena praça
central (que a partir do século XIX recebeu um coreto). De um lado a igreja, do outro lado
da praça a prefeitura/câmara/cadeia; [...]” o arruamento tentava se manter linear, porém
acomodava‐se à topografia (ALBERGARIA, 2012).
A ocupação nas fazendas era esparsa, talvez por conta do sistema de propriedade da
terra no Brasil, ainda sob a égide das sesmarias; na Comarca do Rio das Mortes há
marcos de sesmarias em Chapéu d’Uvas (DULCI, 2011).
Os mascates, tropeiros, preferiam arranchar em lugares onde houvesse maior
concentração de habitantes, para facilitar as vendas e proteger‐se de assaltantes. Onde
havia registros, as tropas “passavam ao largo, desviando...” (CARVALHO, 2011). A cultura
dos tropeiros deixou narrativas na tradição oral, formou vilas, instituiu hábitos.
Proteger bens culturais de natureza fluida e volátil, imaterial, não é tarefa simples. Hoje,
no Brasil, cresce a consciência de que há bens de natureza imaterial que merecem fazer
parte do conjunto de bens registrados e protegidos do nosso Patrimônio Imaterial 6.
Conforme Ulpiano Menezes (1992), a identidade não é fruto do isolamento de sociedades
ou grupos mas, pelo contrário, de sua interação. A identidade da Comarca do Rio das
Mortes repousa não só na cultura urbana, mas também na interação da cultura barroca,
com a cultura tropeira, a cultura mineradora, a cultura lusitana, a cultura cabocla, a
cultura quilombola... Há, na história da Comarca do Rio das Mortes, segmentos sociais
que não se deve pensar isoladamente, mas numa totalidade. 203
A musealização in situ é capaz de atribuir significados a objetos, sítios, edificações,
hábitos culinários, festas, narrativas, fragmentos de memória recolhidos nos caminhos,
encruzilhadas e rotas da Comarca do Rio das Mortes, resgatando a importância de
entender os sinais do passado e a memória da convivência luso‐brasileira, específica da
organização social naquele período entre 1714 e 1892.
Boas propostas e bons projetos curatoriais, contendo técnicas de musealização in situ,
abrirão novos campos de trabalho para aqueles que lidam com patrimônio cultural da
rede de comunicação da antiga Comarca do Rio das Mortes, a exemplo de pesquisadores,
profissionais do turismo, ensino, especialistas em museus, especialistas em arquivos,
restauradores, técnicos de preservação e conservação e técnicos da área governamental.
Espera‐se, como aplicações no ensino, fomentar o estímulo dos alunos, em cursos
introdutórios da Museologia, explorando didaticamente as potencialidades de acervos
operacionais de museus, para que, num contexto de formação acadêmica, os alunos
agucem a sensibilidade para o patrimônio imaterial, explorando dimensões singulares de
fontes documentais da Comarca do Rio das Mortes.
Espera‐se, também, que se perceba o conjunto de caminhos, rotas, encruzilhadas e vias
de interligação de núcleos urbanos da Comarca do Rio das Mortes como lugares de
memória, passíveis de receber propostas de musealização in situ.
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5 NOTAS
1
Fernão Pessoa Ramos escreve sobre cinema documentário no Brasil, apresentando ensaios sobre a representação do
popular na produção nacional contemporânea, influenciada pela obra de Humberto Mauro. Um destes ensaios intitula‐se “A
cicatriz da tomada: documentário, ética e imagem‐intensa” (RAMOS, 2008, p.159‐ 226). Este texto é oportuno por tratar da
singularidade das imagens, sons e mediações advindas do cinema, por sua capacidade de tratar a imagem ficcional e também
a imagem documentária. Essa heterogeneidade (ficcional ou documental) nos parece conveniente como recurso didático para
captar a singularidade dos caminhos de acesso ao casarão do museu (metaforicamente...). Os caminhos são cenários de
movimento, trânsito de pessoas que se movimentam continuamente – a pé ou de carro – há todo um espaço mutável que
circunda o museu, externamente. O interior do museu é o reino da calma, da quietude, do silêncio e do um passado. É possível
filmar o lado de fora do museu e trazer a filmagem para dentro do museu, onde não é permitido filmar, sobretudo por razões
de proteção e integridade da conservação do acervo. Portanto, a imagem com mediação da câmera parece‐nos um bom
recurso técnico, aplicável a cursos introdutórios de Museologia, passível de possibilitar uma relação biunívoca com a mediação
do museu, de tal forma que outra valoração social – a do espectador contemporâneo – seja capaz de unir o dentro e o fora do
museu.
2
Rotas e caminhos têm significado diferentes. Rotas são itinerários que se percorre para ir de um lugar a outro, repetidas
vezes, para cumprir determinado objeto comercial, de inspeção, econômico, de poder. Caminhos, genericamente, são faixas 205
de terreno que se percorre.
3
A Capitania das Minas Gerais foi criada em 1720, desmembrada da Capitania de São Paulo e Minas do Ouro, criada em 1709.
Em 1714, foram criadas quatro Comarcas: a Comarca do rio das Mortes, cuja sede era a Vila de São João Del Rei; a Comarca de
Vila Rica, com a sede de mesmo nome, também a sede da Capitania e residência oficial de seu governo; a Comarca de Sabará
cuja sede era a Vila Real do Sabará; e a Comarca do Serro Frio, com sede em Vila do Príncipe. O território mineiro
experimentou, em razão do descobrimento de ouro em fins do século XVII, um processo de ocupação até então inédito na
América Portuguesa, com o surgimento de inúmeros arraiais. Os núcleos de mineração foram importantes pontos para a
formação de vilas e povoados, que deram origem a uma complexa rede urbana (MORAES, 2006).
4
Vale ressaltar os estudos de Renato Pinto Venâncio (1999) a esse respeito, baseando‐se em estudos arqueológicos como os
de Maria da Conceição Beltrão. Esse historiador chama a atenção, por exemplo, para a existência de indícios arqueológicos de
que o chamado Caminho Novo, ligando Minas ao Rio de Janeiro, seria uma rota indígena milenar que, curiosamente,
localizada em altitudes elevadas, evitava as densas florestas e os animais ferozes que as habitavam. Também destaca locais, ao
longo dos caminhos, que vieram a constituir pontos de abastecimentos – onde as expedições podiam descansar, preparar suas
roças, buscar alimentos ou estabelecer postos estratégicos de apoio etc. – que possivelmente teriam sido objeto de ocupação
anterior à chegada do colonizador (MORAES, 2006, nota 189).
5
Conforme Andrade (2012): “Os descobrimentos paulistas de ouro em Cuiabá, Mato Grosso e Goiás, no final da década de
1710 e na década de 1720, acirraram o processo de exploração e povoamento do sertão. As tradicionais rotas, valendo–se dos
caminhos e veredas indígenas, foram retomadas ou refeitas e atalhos novos são propostos. O interesse dos coloniais
(sertanistas poderosos, senhores das minas, roceiros, faiscadores, jornaleiros pobres e escravos) ao buscarem este novo sertão
era, além de encontrar descobertos lucrativos de ouro ou mesmo terras para pastoreio e plantio, apropriar–se dos ganhos,
provenientes do comércio legal de gêneros e escravos, ou do contrabando, nas transações das rotas coloniais importantes”.
6
O Decreto nº 3551, de 4 de agosto de 2000 institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem
patrimônio cultural brasileiro e cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial.
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NÚCLEO TEMÁTICO III: Memórias e Cidades
Patrimônio + Educação: derrubando barreiras e construindo
novas pontes
Heritage + Education: overcoming barriers and bridging the gaps
Paula Gomes CURY
Mestre em Arquitetura e Urbanismo pelo NPGAU/UFMG; Especialista em Projetos Sociais em Áreas
Urbanas FAFICH/UFMG . curypaula@hotmail.com.
RESUMO
Este artigo investiga possibilidades dialógicas entre os campos do Patrimônio e da Educação. Em seu
caráter propositivo, explora aproximações conceituais entre tais campos assinalando que ações de
educação patrimonial no Brasil, apesar de virem refinando – nas últimas décadas – aspectos
relacionados à participação de uma gama variada de atores sociais, são desenvolvidas de maneira
pontual, isolada e desigual [conceitualmente] nos diferentes espaços em que são propícias.
Parte‐se, desse modo, do entendimento que a noção de patrimônio se transformou em decorrência da
série de fatores relacionados à conjuntura forjada nas cidades ao longo dos séculos, implicando a
revisão de seus pressupostos e conceitos. A noção contemporânea de patrimônio – alcançada mais
precisamente neste último século – foi a que introduziu procedimentos de identificação e
reconhecimento abrangentes e, portanto, mais inclusivos da diversidade sociocultural. Nota‐se, a partir
daí que, este conceito vem repercutindo especialmente na questão dos direitos e da cidadania com 206
relação à re‐produção da cultura, mas que, no entanto, em função da complexidade na dinâmica de
transformação‐preservação dos espaços e das práticas na cidade contemporânea, vê‐se na necessidade
de amparar estratégias de incentivo à valorização. Para isso, a proposta, Patrimônio + Educação, visa
trazer à tona interfaces e implicações associativas entre tais campos.
PALAVRAS‐CHAVE: Patrimônio, Educação, Cidade Contemporânea, Cultura.
ABSTRACT
This article investigates the dialogical possibilities between the Heritage and Education fields.
Propositive in its character, explores conceptual approaches between those fields indicating that the
national heritage education projects, besides being under a redefinition on the aspects of participation of
a various broad group of social actors in the last decades, are developed in a ponctual, isolated and
uneven manner [conceptually] in different places where they are favorable.
Thereby, acknowledges that the notion of heritage has expanded due to a series of factors related to the
situation forged in the cities throughout the centuries. The expanded notion – reached more precisely
over the last century – is the one which introduced comprehensive procedures of heritage identification
and recognition and, so, more inclusive of the sociocultural diversity. It can be seen from this that, this
concept is getting a special repercution on the matters of rights and citizenship with respect to the re‐
production of culture. However, due to the complexity in the transformation‐preservation dynamic of
places and practices in the contemporary city, it is seen in the need to support strategies to encourage its
appreciation. For this purpose, the proposal, Heritage + Education, aims to bring out the interfaces and
associatives implications between those fields.
KEYWORDS: Heritage, Education, Contemporary City, Culture.
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1 INTRODUÇÃO
A cultura, os patrimônios e as cidades são temas que vêm penetrando e interceptando
muitos assuntos e debates na contemporaneidade. Não só o mundo se expandiu espaço‐
territorialmente, como também se tornou mais conectado em redes de comunicação e de
intercâmbio, fazendo com que reflexões sobre as cidades contemporâneas, a cultura e
seus patrimônios, alcancem novas dimensões e formatos. Transformações múltiplas nas
cidades – em com ela da cultura, em variadas escalas do tempo e do espaço, se acentuam
e vêm sendo influenciadas por processos contemporâneos de trocas e intercâmbios
diversos. Enfim, impactos de proporções abrangentes no imaginário urbano,
repercutindo e revelando o tanto que processos de mudança em curso nas cidades e
sociedades se encontram interligados, e até implicados reciprocamente no que tange à(s)
memória(s) e laços identitários dos indivíduos e grupos sociais na relação com os lugares
e sua História [materialidades e imaterialidades].
A maneira como nossa sociedade e o mundo se engendraram no decorrer dos séculos é,
sem dúvida, reflexo do modo como toda uma vastidão de produções e criações urdidas
no tempo‐espaço sedimentou‐se a cada tempo presente. As particularidades das
edificações, artefatos, lugares e fatos da História foram, assim, destacados e tomados
como referência, por diferentes grupos sociais, em distintos momentos da história. Falar
sobre patrimônios, sobre bens culturais, tendo em vista essa dinâmica, relacionando‐a
àquilo que os fez e os faz existir no(s) tempo(s), no(s) espaço(s), na(s) memória(s) – ou
seja, suas condições e condicionantes de existência – é, portanto, considerar questões 207
mais amplas que os abarcam, a cultura e sua influência na transformação das cidades e
da sociedade como um todo.
A preservação e valorização de patrimônios na sua relação com processos
contemporâneos da gestão e planejamento dos espaços urbanos no Brasil nos interessam
aqui, pois é a partir delas que é possível investigar o campo das ações e proposições –
tão complexo e ao mesmo tempo difuso e circunstancial – do Patrimônio aliados a
propostas educativas. Dois campos do conhecimento, Patrimônio e Educação – fundados
em bases das Ciências Humanas e Sociais das quais compartilham matrizes teóricas –
constituem‐se, assim, no foco das discussões propostas neste artigo, tendo em vista as
possibilidades de troca na construção de suas práticas e nos diálogos conceituais.
A educação patrimonial, que nasce das possibilidades de aproximação entre tais campos,
é discutida, à medida que ela avança com uma série de questões a serem repensadas.
Das primeiras concepções às ações empreendidas no Brasil, a educação patrimonial é
questionada em função da transformação que a noção de patrimônio alcançou, ao
introduzir novos procedimentos de identificação e de reconhecimento de bens
relacionados à cultura. Mais abrangentes e inclusivos acerca da diversidade sociocultural,
o campo da legitimação dos patrimônios vem reascendendo a questão dos direitos e da
cidadania, à medida que repercute positivamente em ações de educação patrimonial. No
entanto, a complexidade na dinâmica da transformação‐preservação dos espaços e
práticas na cidade contemporânea incita, para este campo, a necessidade de amparar
estratégias de incentivo à valorização.
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É, diante de novas configurações no conceito e na política do campo especializado do
Patrimônio, e em grande medida, no da Educação (à luz das teorias da educação
construtivista, libertadora e humanizadora de Paulo Freire e seguidores), que processos
mais amplos de cidadania começam a perfazer questões relacionadas ao uso, à
apropriação e interação/interpretação de bens culturais de interesse patrimonial em
nossas cidades contemporâneas.
A educação patrimonial bem como as possibilidades dialógicas entre os campos que a
conforma, do Patrimônio e da Educação, são discutidas com mais detalhe na sequência, tendo
em vista as apropriações e contribuições que a cultura e a noção de patrimônio
contemporâneos vêm projetando para suas ações.
2 POSSIBILIDADES DIALÓGICAS ENTRE OS CAMPOS DO PATRIMÔNIO E DA EDUCAÇÃO
O conceito de patrimônio passou por ressignificações e mudanças bastante intensas no último
século. Ampliado para escalas de identificação mais abrangentes no território, ele não se
estagnou prendendo‐se a consensos e contextos temporais rígidos. Em suas várias dimensões –
política, econômica, social e cultural – e atrelado às concepções contemporâneas da cultura, o
conceito de patrimônio se refina e expande para escalas mais amplas no território, abarcando
um universo vasto de distintas naturezas e dimensões, ainda mais complexo em suas
significações.
É fato que a noção de patrimônio se encontra condicionada por “jogos de poder” e de disputa 208
– o que é comum a qualquer dinâmica de convívio em sociedade – o que implica sua ampliação
pela explicitação, assim, de um ingrediente essencial a seus processos de legitimação: o
reconhecimento da diversidade sociocultural. Também, este reconhecimento passa por
correlações com apropriações afetivas, da memória e identidade, construídas e expressas a
partir de valores referenciados na relação mais próxima e significativa das pessoas com
patrimônios e bens culturais, em seus lugares de vivência e de memória e história comum.
Buscar compreender esse processo de revisão conceitual é, sobretudo, reconhecer o fato de
que as pessoas formulam e reformulam, no fluxo da vida, valores e significados pautados na
sua relação com/nos lugares e à conjuntura sociocultural que os envolvem, considerando o
caráter dinâmico e plural que a cultura e, nela, os patrimônios, as mobiliza e as condiciona.
Sem dúvida, pois, que esse processo é um tanto idiossincrático e subjetivo. Todavia, tratá‐lo
como possibilidade conceitual para ações educativas – que podem evidenciar o valor dos
patrimônios – indica que as oportunidades que elas promovem têm o potencial de orientar,
incentivar e, assim, alimentar processos de reconhecimento e valorização, tornando‐os, não só
menos forjados, mas, sobretudo, mais significativos. As atitudes na identificação e valorização
de bens – tangíveis ou intangíveis – que carregam uma significância cultural e social, tão
almejadas por gestores do patrimônio – e, em certa escala, também pela sociedade – só
poderão constituir uma estratégia eficaz, quando for reconhecido que é a partir do apoio e do
suporte de iniciativas educativas de viés mais humanizador, que elas podem vingar. Ou seja, a
educação patrimonial só fará sentido quando esta fizer sentido para as pessoas que dela
participam.
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Ao considerar que a questão/conjuntura da Educação, per se, constitui‐se um sistema
complexo – no qual interagem inúmeras variáveis potencialmente relevantes, e que
conformam seu campo de práticas, leis e teorias –, as possibilidades dialógicas que se
abrem, na forma de contribuições entre outros campos do saber, são também infinitas.
Nesse aspecto, a educação patrimonial – termo originalmente herdado da expressão
inglesa Heritage Education – ramifica‐se no território brasileiro, sobretudo, pelas ações
de instituições, como os museus e órgãos do patrimônio, trazendo não só novas
perspectivas para a valorização‐preservação dos patrimônios, como também,
fomentando o debate em torno dos princípios que pautam a educação, tanto formal
quanto em seu sentido amplo e abrangente na vida dos indivíduos. Assim, inferir que o
campo da Educação tem mudado e inovado é dizer que não só as teorias gestadas por
pensadores proeminentes como Paulo Freire e seus seguidores foram reacendidas e
retomadas nas práticas focadas no sujeito. Outros campos, e nesse caso, o do Patrimônio,
deram maior fôlego e impulso aos aspectos transformadores e libertadores que o ato de
educar implica. Como defende Freire,
Educar é construir, é libertar o homem do determinismo, passando a reconhecer o papel da
História e onde a questão da identidade cultural, tanto em sua dimensão individual, como em
relação à classe dos educandos, é essencial à prática pedagógica (FREIRE, 1994, grifos nossos).
Construir, libertar, enfim, transformar as crianças, jovens e adultos para uma vida mais
engajada e crítica, social e culturalmente, são premissas que vêm ao encontro das
práticas e das atitudes que reconhecem a importância das relações identitárias nos 209
processos de ensino‐aprendizagem. A “questão da identidade cultural” e o
reconhecimento do papel da História, destacados em Freire (1994), demonstram que a
educação é, em si, um processo intrínseco à constituição da “trama cultural” de uma
sociedade.
Desse modo, analisar a escola como única e grande instituição responsável pela educação
dos indivíduos é não só contradizer e reduzir seu caráter abrangente e complexo, como
também sobrepujar tais instituições da responsabilidade de assumi‐la sozinha. O mundo
é bastante vasto e diverso para tamanha restrição imponderada. Freire adverte, ainda
nesse aspecto, que “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se
educam entre si, mediatizados pelo mundo” (FREIRE,1994)
Assim, pode‐se apontar que os maiores aprendizados são aqueles cultivados na nossa
própria inserção conflituosa e engajada no mundo. As circunstâncias com que indivíduos
se confrontam cotidianamente (nas cidades, em seu meio familiar, etc) seriam, no
sentido dos aprendizados, os maiores guias. Ou seja, os sujeitos, nas suas relações
inerentemente conflituosas e desafiadoras, acumulam – a partir delas e “mediatizadas
pelo mundo”, especialmente na vivência de conteúdos que os patrimônios, em suas
propriedades qualitativas de suscitar, de provocar, de gerar reflexões e atitudes –
importantes aprendizados vinculados à memória, à identidade, à história e à relação com
e nos lugares.
Como as definições da Educação, assim como as do Patrimônio encontram‐se atreladas
aos contextos culturais que as moldam e são por elas moldados, isto torna possível
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pensar melhor sobre os impactos e implicações que esta relação, “Patrimônio +
Educação”, vem promovendo na revisão de seus pressupostos.
A educação, como estágio preliminar e de alicerce para a vida dos indivíduos, assume o
dever de instruir as pessoas nas diversas áreas do conhecimento, apresentando‐lhes
conteúdos e questionamentos necessários para a compreensão do mundo que os rodeia.
A forma como esses conteúdos – que não são apenas informações, mas, sobretudo
experimentações destas – são tratados constituiria o modelo/tipo que orienta suas
práticas. A responsabilidade dos profissionais, docentes e educadores, na condução do
processo de ensino‐aprendizagem deve, também, estar pautada no alcance dos objetivos
e dos resultados esperados, para que a educação possa, assim, gerar benefícios – que
não estão concentrados nos alunos e, sim, na relação professor‐aluno. É claro que essa
questão não é tão linear e direta quanto parece. Tudo que acontece fora do ambiente das
escolas é essencial para a compreensão do que nelas é discutido.
Não há dúvidas que discursos ideológicos têm a capacidade de influenciar pensamentos,
reflexões e, consequentemente, de contaminar, senão comprometer, a aprendizagem. A
educação, em muitos aspectos do viés do modelo “tradicional”, tende a propagar e
reforçar ideologias que aludem idealizações com relação aos conteúdos. Ou seja, a
propagação de certo ideal de progresso e de desenvolvimento em países/nações como
referencial de vida para todos os cidadãos é reflexo dessas tendências, referenciadas em
ideologias de conteúdos dominantes e hegemônicos.
Sendo assim, a pertinência e a carga de compromisso socialmente impostas à educação 210
formal – não somente com a formação dos indivíduos, mas também com o que é capaz
de (re)produzir no plano das ideologias – confirmam seu caráter duplo de
responsabilizar‐se legalmente pela inclusão social e pela cidadania dos sujeitos, ao
mesmo tempo em que devem promover posturas críticas e conscientes frente a
conteúdos permeados por tais ideologias hegemônicas.
A postura da educação formal “tradicional”, muitas vezes impositiva de valores
construídos e consolidados no plano das ideologias hegemônicas, dificulta os alunos
elaborar suas visões de mundo, uma vez que acabam sendo moldadas de forma
doutrinária na transmissão dos conteúdos, porque alheia ao contexto cotidiano plural e
diverso desses alunos. A visão crítica que contribui para uma postura cidadã perante do
mundo é um ingrediente pouco amparado nesse modelo de educação. Por doutrinar os
indivíduos com conteúdos e ideologias, ao invés de provocá‐los a tomarem posturas e
interpretações críticas diante do mundo que os rodeia, acaba comprometendo o
crescimento intelectual e de personalidade a uma esfera menos autêntica/ autônoma e,
portanto, menos conectada com a própria identidade dos alunos.
Muitos teóricos e filósofos abordaram essa questão, com a retomada e com o reacender
do papel basilar da educação na formação das sociedades, apontando que respeitar a
identidade dos educandos, levando em conta suas experiências vividas, passadas e
presentes, é uma tarefa essencial que as escolas, como instituições legalmente
responsáveis pela educação dos indivíduos, não deveriam se eximir de cumpri‐la. Além
disso, a socialização dos indivíduos no âmbito da escola, dos alunos entre si e com os
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professores, incentivada nos termos de relações abertas e não verticais, é outro aspecto
que constitui o quadro de princípios de uma educação menos paternalista e doutrinária,
e, portanto, mais humanizadora, transformadora e libertadora.
O papel elementar e precípuo das instituições de ensino deve ser, portanto, o de romper com
tais modelos “tradicionais” – e, desse modo, livre de determinismos, na medida em que tais
modelos têm sido apontados como incapazes de exercerem sozinhos os seus dois enfoques
fundamentais: a formação social e cultural dos alunos. (In)formar e (trans)formar os alunos é,
portanto, a dinâmica que as escolas devem, assim, se pautar.
No misto de complexidade e possibilidades, o campo da Educação, em suas contribuições e interfaces
com o do Patrimônio deve buscar derrubar barreiras disciplinares, aprofundando e refinando os
pressupostos para as práticas de valorização, reconhecimento e identificação de bens culturais e deles
amparados por iniciativas educativas apoiadas em modelos que entende a escola,
[...] como espaço de troca de saberes, gerando processos criativos que escapam do conhecimento formal como um
modo de produzir interferências, expressões e reflexões para além das atividades pedagógicas. Neste sentido, a
escola deixa de ser um foco central de difusão e formatação do conhecimento e passa a atuar como catalisador de
saberes produzidos pelas comunidades... (KROEF, 2001, p. 11).
No processo de ensino‐apredizagem, incorporar apontamentos e experiências levantados pelos
alunos (ou seja, a visão de mundo que eles têm) aos conteúdos programáticos é uma estratégia
de liberá‐los do medo de aprender, como aponta Jean‐Noël Luc (1997). Sem dúvida que isso os
auxiliaria, assim como aos docentes, a romper com a ideia de aprendizagem como simples ato
de aquisição de conhecimento. A abertura de tais processos à participação mais horizontal 211
entre aluno e professor, impulsiona o desejo de aprender. Como sugere o mesmo autor,
se o conhecimento do qual o aluno lhe interessa se vê necessitado de socorro a explicações encontradas
em realidades mais amplas, se conseguimos passar do interesse pelo concreto a explicações abstratas,
estaremos fomentando o desejo de aprender (LUC, 1997, p.39, tradução direta).
Em outras palavras, se o conhecimento que os alunos solicitam está relacionado ao meio e à
realidade que os circundam, a possibilidade de aprendizagem não só se potencializa como
também os motiva a buscar mais. Uma busca que também estaria relacionada a um desejo de
aprofundar nas reflexões sobre a realidade em que atuam e na qual podem transformar.
Nesse sentido, estratégias de estímulo a aprendizados significativos encontrariam espaço na
perspectiva de projetos/programas de educação – no contexto, aqui discutidos, dos
patrimônios, da cidade, do meio ambiente – em propostas de estudo que partam do meio em
que vivem. Propor leituras da realidade, do cotidiano que se encontra fora do espaço físico das
salas de aula, nos extra‐muros da escola, têm o potencial de estimular os alunos a se
aproximarem de seu entorno como fonte de conhecimento – reduzindo, assim, a dominância
dos livros didáticos em tais processos de ensino‐aprendizagem. A disciplina Ciências Sociais,
nas primeiras fases do ensino, e aquelas decorrentes desta, introduzidas a partir do segundo
ciclo, ensejam, desse modo, potenciais ambientes para trabalhos com temáticas relacionadas
ao campo do Patrimônio.
As “possibilidades históricas do meio, a marca do passado, como fonte abundante e
diversificada de conhecimento” (LUC, 1997, p. 41) instauram nas estratégias da prática de
ensino articulado e relacionado ao meio, um diálogo com o universo dos patrimônios. No
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entanto, vale a ressalva de que a “aproximação histórica ao meio indica ser mais um processo
de observação, do que um meio particular distante à realidade presente” (LUC, 1997, p. 41). Ou
seja, o processo de observação, uma vez motivado por mecanismos de interação e
interpretação junto ao meio em que os patrimônios/bens culturais se encontram, tem o
potencial de exercer nos alunos um senso do que a História e a(s) memória(s) são capazes de
documentar e de registrar material e imaterialmente e de como esses registros permeiam suas
vidas e influenciam suas atitudes.
Nessa aproximação, provocativa e, quiçá, também lúdica, com o ambiente cotidiano, os
patrimônios e bens culturais, presentes e definidores na/da História das cidades, são acionados
como elementos que participam dos processos de aprendizado significativo na fase escolar. Por
isso, as metodologias do processo de ensino‐aprendizagem são tão importantes. Promover
diálogos com os patrimônios e bens culturais é uma forma de, não só potencializar os
conhecimentos em relação ao meio, à História, à memória, mas, sobretudo, de realizá‐los a
partir de experimentações sensorial‐cognitivas nos lugares nos quais eles se encontram
inseridos.
No entanto, promover estes diálogos na dinâmica das cidades contemporâneas – sejam
motivados tanto pelas instituições de ensino quanto pelas do patrimônio – esbarra em
questões práticas e objetivas. A crescente privatização dos espaços pela ocupação
especulativa e segregadora do solo, seus impactos sobre a dinâmica dos espaços
públicos, a insegurança nos espaços públicos e privados, a centralidade das práticas de
consumo têm, nesse sentido, comprometido essas estratégias de ensino‐aprendizado via 212
interação e interpretação junto aos patrimônios e bens culturais. Os campos da Educação
e do Patrimônio são, assim, desafiados, por essas novas configurações assumidas no
plano dinâmico da cultura e das cidades na contemporaneidade.
Desse modo, nem tanto o meio e os patrimônios, como objetos a serem explorados e
interpretados, mas, sobretudo, sua inserção na complexa trama das cidades vem
desafiando estudiosos a referenciar a cidade como espaço privilegiado de aprendizagens
múltiplas. O caráter “desumanizador”, que acreditam ter nela se agravado, os tem
motivado a repensar sobre as oportunidades de vivência e, assim, de interação,
interpretação com e no meio e, em especial, com aquilo que vem perdurando nos
séculos, seus patrimônios. Rabinovich (2004) é bastante contundente a respeito dessas
transformações que recaem sobre as oportunidades de interações entre os homens nos
espaços, e deles com as cidades.
Basicamente, de lugar do encontro tornou‐se um lugar da passagem. (...) A acessibilidade à rua foi
reduzida, assim como sua atratividade, dificultando tanto familiaridade quanto apropriação,
devido ao progressivo desaparecimento de espaços semi‐públicos (...). Estas áreas intermediárias
estariam também associadas aos “lugares da mistura” e seu desaparecimento parece ocorrer
concomitantemente à segmentação, institucionalização e programação da sociedade
(RABINOVICH, 2004, p.95).
Sem dúvida que as cidades, assim como as sociedades, se complexificaram, e com elas,
as possibilidades e oportunidades de diálogo nos e entre os campos da Educação e do
Patrimônio. No entanto, as revisões e ampliações conceituais são indicativos de como
estes campos vêm enfrentando essas mudanças, que se revelam, em última instância, na
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dinâmica da cultura e das cidades contemporâneas. Estar atento às suas novas
configurações e desafios, é perceber que práticas educativas, assim como os próprios
patrimônios, são substratos abertos e, portanto, mutáveis em nossas vivências, ou seja,
susceptíveis às transformações que acontecem de maneira mais ampla nessas instâncias
(cidade e cultura) e no mundo. É ainda mais evidente nos casos de vivências em grandes
centros urbanos, onde as identidades neles construídas tendem a ser fortemente
“reguladas” e influenciadas por processos socioculturais dominantes, em constante e
ritmo mais acentuado de transformação.
3 PATRIMÔNIO + EDUCAÇÃO: DESCONSTRUINDO BARREIRAS PARA EDIFICAR UM NOVO
CAMPO.
O conceito de educação patrimonial, discutido na década de 1980 no âmbito do “I Seminário
sobre o Uso Educacional de Museus e Monumentos” no Museu de Petrópolis (RJ), e, assim
divulgado por meio da publicação do “Guia Básico de Educação Patrimonial” (1999), foi
definido em um contexto em que a noção de patrimônio vinha se refinando para categorias
mais amplas nas escalas do território, porém, pouco, abarcando manifestações culturais que
nelas se realizavam e se desenvolviam.
O reconhecimento de tais manifestações como bens imateriais a serem salvaguardados, ou
seja, dos modos peculiares de expressar – do ser e estar no mundo – só entrou para o rol dos
bens representativos e significativos na política de preservação e valorização do país, nas 213
últimas décadas do século XX e início do XXI. Desde então, a aproximação e atenção dos
gestores do patrimônio para com as pessoas diretamente relacionadas às manifestações de
significância cultural e social, foi a que, provavelmente, contribuiu para serem ampliadas e
aprofundadas as reflexões acerca dos pressupostos que guiavam suas práticas de preservação.
A educação, aí, emergiu como um “ingrediente” que se fazia presente, talvez, sem nem tanto
darem conta que ela se construía na sua relação mais próxima e aberta com as pessoas e
grupos atrelados aos bens reconhecidos ou em vias de ser.
Diante desses sinais, o salto expressivo na definição do conceito de educação patrimonial se
manifestou, tendo em vista as reflexões e ações que se faziam nos processos de significação e
valorização das relações identitárias dos sujeitos para com os bens culturais – muitas vezes tido
por eles como patrimônios a serem salvaguardados – em comunhão com os gestores do
patrimônio. À medida que se aproximavam das pessoas e comunidades para escutá‐las – e,
para assim buscar compreendê‐las em suas peculiaridades e laços de identidade – as
complexidades do mundo contemporâneo, que as sobrepujam, também eram reconhecidas e,
por eles em conjunto, examinadas. A aproximação, mais horizontal entre gestores do
patrimônio e comunidades/grupos sociais, foi, então, o que impulsionou processos mais
recentes de desconstrução e, assim, desnaturalização de conceitos de educação patrimonial
que reproduz uma ideia doutrinária do que deve ser identificado, reconhecido e valorizado
como bem cultural de interesse patrimonial.
É possível verificar, por tudo isso, que a relação mais próxima e associativa entre o campo do
Patrimônio e da Educação sugere que é preciso não só expandir o espectro de identificação e
reconhecimento de bens culturais para além de práticas circunscritas e fechadas a estudar e
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vivenciar determinados patrimônios, mas também incluir a gama variada de atores e agentes
chave no processo de ensino‐aprendizagem, formal e informal. Além disso, o mundo
contemporâneo, em sua complexidade infinita de tempos cada vez mais dinâmicos e
transformadores das materialidades e imaterialidades, trouxe uma série de implicações para
esses processos. Procurar entender tais processos neste contexto é também reconhecer que
grupos atentos e comprometidos com essas mudanças vêm se despertando para a necessidade
de explorar e promover oportunidades de vivências e aprendizados, no conjunto complexo e
dinâmico que é a relação dos indivíduos com e nos lugares, edificações e fatos, e deles na
totalidade das cidades e territórios contemporâneos, provocativa e desafiadora (e que também
pode ser “cegante” se a centralidade é direcionada para instâncias da razão/intelecto em
detrimento da sua combinação com instâncias das sensações e imaginação, aguçadas por
experimentações sensoriais).
Programas educativos como o “Ciudad Educadora” 1 e “La cittá dei Bambini” 2 ressaltam tais
aspectos na medida em que, em suas propostas, a participação na vida social pública é
motivada como mecanismo de incentivo às pessoas – habitantes e alunos – a se engajarem,
buscando, assim, compreender as diversas questões que implicam o universo amplo da cultura,
dos espaços públicos e seus patrimônios nas cidades. “Architecture and Children Environment
Education” 3 particulariza essas questões, ao introduzir, exclusivamente nos ambientes
escolares, o tema da Arquitetura como esfera do conhecimento, que compreende e articula as
diversas temáticas relacionadas às múltiplas vivências no vasto e dinâmico universo das
cidades.
214
Por outro lado, programas de educação patrimonial que ainda se atém a promover
experiências circunscritas a explorar determinados patrimônios e privilegiar certos grupos, sem
questionar sua relação com a dinâmica e a vastidão complexa da cultura nas cidades e no
mundo, podem limitar seu conceito a ideias estanques e inertes, ou seja, entendendo os
patrimônios bem como a relação dos indivíduos e grupos sociais com eles, como entidades não
mutáveis e forjadas, e, portanto, consolidadas e objetivadas.
Muito embora sejam abordadas, nas definições oriundas e pautadas no “Guia Básico de Educação
Patrimonial” (1999), estratégias de incentivo a processos ativos de conhecimento, apropriação e
valorização dos patrimônios, pouco exploram, conceitualmente, aspectos relacionados às
conjunturas das cidades, e de sua complexificação na contemporaneidade. Além disso, ao
advertirem que deveriam ser permanentes, sistemáticos e contínuos, não fica explícito os locais
onde tais processos poderiam se dar dessa maneira. Nas escolas, por exemplo, em função de seu
status pedagógico de ensino e aprendizagem e, assim, das atividades regulares que a eles são
próprias, a continuidade em tais processos encontrar‐se‐á garantida. O caráter sistemático
dependeria, portanto, de um conjunto de parâmetros legais e de diretrizes que respaldassem tais
processos. Em suma, o conceito de educação patrimonial, explicitado neste Guia, necessitaria de
revisões que buscassem apropriar e assumir a complexidade que, não só o campo do Patrimônio
alcançou a partir de abordagens mais abrangentes e inclusivas, na escala da cidade e das distintas
naturezas que caracterizam os bens culturais na sua diversidade, como também o da Educação,
pela fundamental contribuição com relação à abertura a processos mais horizontais e, sobretudo,
mais significativos tanto social quanto culturalmente entre grupos e indivíduos da sociedade e
gestores públicos.
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Programas de educação patrimonial mais recentes, promovidos por órgãos do patrimônio em
parceria com outros agentes e instituições no país, vêm indicando que o conceito vem, em
certa medida, se refinando, assim como as estratégias na gestão de suas atividades, em relação
às suas primeiras experiências. Contudo, não demonstram avançar a ponto de propor uma
reformulação dos mecanismos de participação dos alunos/habitantes nas questões que
envolvem os patrimônios e bens culturais na sua relação com a cidade contemporânea, assim
como uma sistematização dos mesmos no formato de uma política pública. Ou seja, pouco
repercutiram no sentido de “reverter para a cidade em modificações, em melhorias, que não
só “ficticionalizar” os seus problemas”4, como bem ressaltado por uma das coordenadoras do
programa intitulado “Educação para o Patrimônio”, promovido pela Diretoria de Patrimônio
Cultural de Belo Horizonte (DIPC/PBH).
Além dessas questões, a terminologia – que continua a mesma: “educação patrimonial” –
sugere que o uso da palavra patrimônio na forma adjetivada junto ao substantivo educação,
pode redundar em algumas contradições. O que se quer dizer é que “patrimonial” e
“patrimonialidade” apresentam‐se como adjetivos categóricos e, portanto, limitadores da
perspectiva ampla e circunstancial da palavra patrimônio. Igualmente, o substantivo educação
apresenta‐se limitado quando associado univocamente a este adjetivo.
Como nos lembra, Joël Candau (2011), patrimônio é
reconhecido como uma relação que envolve mais uma afiliação do que filiação, uma materialidade
que é mais reivindicada que herdada, assim como menos comunitária que conflitiva (id., 2011,
grifos nossos). 215
A complexidade do universo sociocultural que sobrepuja o campo do Patrimônio, ao se colocar
como uma instância que participa da vida das pessoas, deveria atuar como mediadora dos
processos educativos, e não como educadora de “filiações” que alunos e indivíduos deveriam
se apropriar. A mutabilidade e a diversidade do mundo das coisas e das idéias influenciam
processos identitários e nos advertem que a materialidade dos patrimônios também é
apreendida de maneira diferenciada e particular pelas pessoas e grupos, e por isso, inerente ao
caráter reivindicativo e conflituoso de suas vivências e experiências nos lugares – na escala dos
espaços públicos das cidades, de suas edificações e das dinâmicas socioculturais em seu
sentido amplo.
O programa “Educação para ao Patrimônio” da Diretoria de Patrimônio Cultural de Belo
Horizonte (DIPC/PBH) apresentou uma perspectiva mais refinada, apreendendo essa dinâmica
e o caráter circunstancial da palavra patrimônio, e sugerindo não utilizá‐la na forma adjetivada
mas, sim, como um substantivo com peso equivalente ao da educação. Educação para o
patrimônio é, desse modo, a expressão escolhida para definir o conceito que pauta suas
propostas, onde o campo da Educação, entendido como responsável e integrado à vida dos
indivíduos, é colocado como parceiro ao do Patrimônio, portanto, essencial aos processos de
reflexão e experimentação sensorial/perceptivo das qualidades e complexidades que
circundam o universo sociocultural de nossas cidades. Ou seja, como oportunidade de os
indivíduos exercerem o espírito crítico e de juízo, assim como de experimentarem, sensorial e
intelectualmente, as propriedades que se constituem na sua História e memória, e que são
formadoras de suas identidades – propriedades estas percebidas, sentidas e vividas na relação
com os patrimônios e bens culturais, nos tempos e espaços da cidade.
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Educação para o patrimônio constitui‐se, nesse sentido, termo recente e que vem sendo
utilizado, nos ambientes onde as contribuições da Antropologia e Sociologia são marcantes. O
entendimento e a aplicação do conceito de Educação para o Patrimônio comporiam um
exercício de incorporar, simultaneamente, o sentido de acesso e de oportunidade,
incondicional e irrestrita, aos alunos/habitantes, e deles construírem suas próprias concepções
e apreciações do que venham a ser seus patrimônios, individuais e coletivos, a partir das
vivências experimentadas com e neles.
Com efeito, o papel da Educação, aliada ao campo do Patrimônio – Patrimônio + Educação, tem
sido o de fomentar a trans‐formação do sujeito, por meio da sua percepção de mundo, de seu
entorno, pelos sentidos e a consequente cadeia de saberes e reflexão daí advinda. Estimulados
a desenvolver suas habilidades, nas próprias oportunidades que o ensino formal e informal e a
vida, em seu sentido amplo, possibilitam, os indivíduos exercitam uma série de operações de
articulação de conteúdos e formas que, balizadas pelo pensamento, imaginação, emoção e
sentidos, produzem e reproduzem imagens que lhes são reconhecíveis. Ou seja, uma vez
presente em sua(s) memória(s) e incorporado às identidades, esse substrato (advindo dessas
operações) os auxilia nos processos de identificação, reconhecimento, e valorização de bens
que, por um método quase que “espontâneo”, desenvolvem associações em uma dinâmica
dialética entre significante‐significado.
Assim, a assertiva que diz que “não há possibilidade de saber‐se sujeito sem a capacidade de
memória que articula o conhecimento e o tempo” (CHIOVATTO, 2010) ajuda a pensar a
importância em se considerar processos de construção da memória individual, como 216
ferramenta fundamental para a compreensão e a reflexão sobre a memória coletiva e social. Os
indivíduos só poderiam, desse modo, compreender a si mesmos na memória pessoal a partir
do outro, a memória coletiva e social. Decerto que o mundo, na perspectiva da alteridade, é a
sua referência para se constituírem de maneira relacional e interativa.
Sob o filtro dos cinco sentidos e não mais só do olhar e do intelecto, a percepção sensorial e
emotiva dos sujeitos se agrega à essência das experiências nos e com os lugares – e seus
atributos espaciais e imateriais – percebidos como referências substanciais aos seus processos
cognitivos e de personalidade. Nesse sentido, práticas educativas deveriam atuar, garantindo
aos indivíduos, em seus processos de aprendizado, experiências que resultem na formação dos
substratos úteis ao exercício de seus juízos e raciocínios (CHIOVATTO, 2010). É na
contemporaneidade, por sua vez que, os indivíduos consolidam sua(s) identidade(s), a partir
dos dispositivos da memória, e que, apesar de sua natureza efêmera, tem grandes
possibilidades de se manter viva, no fluxo das transformações, caso o contato com atividades
que aliam a Patrimônio à Educação (e vice‐versa) seja constante e renovado.
A relação entre identidades e memória(s) só poderá ganhar sentido por meio de um projeto
consistente e substantivo de estudos e experiências em interação e interpretação acerca do
que a História, a Arte, a Arquitetura, a Arqueologia, enfim, o que os espaços da cidade são
capazes de contar, provocar e propiciar aos indivíduos, por meio de vivências e habilidades
próprias da percepção, da sensação, da imaginação e dos sentimentos, ampliando, dessa
maneira, a possibilidade de construção de suas relações particulares com a cidade e com
territórios ainda mais amplos, diversos e dinâmicos na contemporaneidade.
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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como visto ao longo do artigo, as possibilidades dialógicas entre o campo do Patrimônio e da
Educação são expressivas. No entanto, o avanço conceitual da noção de patrimônio na
contemporaneidade, assim como o da educação nos aspectos de um modelo construtivista,
portanto mais humanizador e libertador, necessitam receber maiores investidas nas suas
interfaces e implicações associativas. O investimento em projetos e programas educativos que
exploram diversificadas e comprometidas possibilidades de manutenção significativa dos bens
culturais na cidade em estreita relação com a vida social pública que os animam deve ser, nesse
sentido, a via que alimenta esta relação mais próxima e de cooperação entre o campo do
Patrimônio e da Educação.
A caminhada proposta pelo Patrimônio à Educação, e também da Educação ao Patrimônio,
demonstra, assim, que o propósito final de suas ações concentra‐se no estabelecimento das
bases para um “grande projeto” e de cidadania.
As experiências rasas e rasteiras, que se destacam pela euforia mercadológica que vem abalando
o âmbito das interações e interpretação junto aos lugares e bens culturais diversos na
contemporaneidade, são indicativas da fugacidade e superficialidade com que versões “mais
palatáveis” são privilegiadas visando atender a sociedade exclusivamente na condição de
consumidores. Não há dúvidas que isso tem resvalado as experiências nos e com lugares a
interações meramente imagéticas e pouco exploratórias das infinitas qualidades e possibilidades
neles contidas.
217
As oportunidades de experiências vivas nos lugares e, com as qualidades que o legitimam, veem‐
se, por tudo isso, comprometidas por tais dinâmicas e fatores das cidades contemporâneas, que
pelo simples fato de ocultarem, em muitos casos, os conflitos e contradições inerentes a ela,
acabam inibindo possibilidades de contato e diálogo com os atores‐personagens – as pessoas que
habitam e que participam da história e criações desses lugares.
As questões, portanto, relacionadas diretamente ao incentivo a processos mais inclusivos no
tocante ao acesso e usufruto dos/nos espaços, culturais e educativos, públicos e semi‐públicos,
são, muitas vezes, mascarada por discursos e também nas legislações, demonstrando que, na
prática, o fomento a tais experiências se limita a certos grupos sociais. A universalização de
programas educativos relacionados à cultura em suas variadas instâncias configura‐se, por tal
razão, em uma tentativa de lidar com os conflitos e contradições – que, em síntese,
constituem‐se ao mesmo tempo de cunho sociocultural e político.
É por meio do incentivo a práticas que promovem a interação dinâmica e inclusiva de usuários
e habitantes das cidades, às propriedades do lugar, dos fatos/eventos e, consequentemente,
das pessoas que participam e conformam sua vida social pública, que se acredita poder
equilibrar tais efeitos inexoráveis da contemporaneidade. O fortalecimento de sua(s)
identidade(s) e memória(s) no âmbito de ações e programas educativos aliados e alinhados à
noção contemporânea de patrimônio comporia, para além disso, a grande chave deste projeto
meritório de comunhão de esforços entre tais campos. Expressivos reflexos nas sensibilidades
dos habitantes/alunos, com relação a seu papel como cidadãos cada vez mais conscientes da
complexidade que é viver hoje em cidades cada vez mais interconectadas e, também, desiguais
e competitivas, poderão ser sentidos e crescentemente aguçados a partir daí.
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A consagração deste “grande projeto”, do campo do Patrimônio aliado reciprocamente ao da
Educação (Patrimônio + Educação), dependerá, por tudo o que foi exposto, de como ambos
irão lidar com estes desafios e tensões, cada vez mais implicados por movimentos decorrentes
de uma tendência, a que Bauman (2001) chama de “modernidade líquida”, e como, em face
disso, se associarão de maneira cooperativa a alcançar e garantir um objetivo comum, o da
cidadania nos processos de significação e valorização das relações identitárias e da memória
dos indivíduos na relação com o universo sociocultural dos lugares e de seus bens.
O olhar sobre os patrimônios, sobre o universo descontínuo e pulsante das materialidades e da vida que nos rodeia,
é feito a partir de uma visão que é antes de tudo, cultural, ou seja, oriunda do processo imaterial, de imaginar, de
sentir, de guardar na memória, e de tudo que converge simultaneamente no ato de significar. A imaginação assim
como a memória são mecanismos que os indivíduos em sociedade dispõem para se situar e entrever o mundo – em
um ato que pode alcançar o que Manoel de Barros anunciou, o de “transver o mundo”.
218
5 REFERÊNCIAS
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BELO HORIZONTE (MG). Prefeitura. Secretaria Municipal de Cultura. Campanha do programa Educação para o
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BELO HORIZONTE (MG). Prefeitura. Fundação Municipal de Cultura. Diretoria do Patrimônio Cultural. Programa
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TONUCCI, F. et al. L`autonomia di movimento dei bambini italiani. Quaderni del progetto “La cittá dei Bamibini”, n. 1,
Giugno (1988) 2002.
6 NOTAS
1
O programa “Ciudad Educadora” nasceu como um movimento em Barcelona (Espanha), no início da década de
1990, com a proposta de disseminar a ideia de que a cidade (em suas dinâmicas plurais) possui, tanto quanto pode
fomentar, continuamente, um “impulso educador” por toda ela. Motivado, em grande medida, pelas forças e 219
inércias da contemporaneidade (cujas transformações são avaliadas como sendo des‐educadoras), este movimento
de teor abrangente e agregador, propôs o estabelecimento de uma rede de gestão urbana – sobretudo, no âmbito
das instituições públicas, com ecos na totalidade da cidade –, orientada nos princípios que apregoam para a
construção de uma cidade educadora.
2 O programa “La Cittá dei Bambini”, traduzido do italiano como “A Cidade das Crianças”, nasceu de uma iniciativa
do governo da cidade de Fano, localizada na região de Le Marche, porção centro‐leste da Itália, em maio de 1991.
Proposto por gestores públicos que defendiam uma nova filosofia de gestão da cidade, este projeto não visava
desenhar políticas específicas para crianças e jovens, mas, sobretudo tinha motivação política ao neles fomentar a
participação em um amplo leque de políticas públicas que dizem respeito ao funcionamento e dinâmica cotidiana da
cidade. Apresentava um viés questionador da realidade urbana que, predominantemente, privilegia as necessidades
dos cidadãos adultos, fundamentalmente de homens e trabalhadores. A importância que os carros adquiriram na
sociedade contemporânea demonstra claramente, segundo o grupo criador do projeto, o poder instituído pelo
adulto trabalhador, condicionando todas as decisões estruturais e funcionais da cidade.
3
O programa “Architecture and Children Environment Education”, criado pela União Internacional de Arquitetos
(UIA) e concebido por uma equipe da União Internacional de Arquitetos (UIA), representada por dois países, França
e Alemanha, tem como proposta versar sobre “partes” da cidade, os edifícios, espaços públicos, tanto os intersticiais
quanto os ditos por excelência – as praças, vias públicas, etc. Dessa maneira, propõe a criação de uma disciplina
própria, ao mesmo tempo transversal, para tratar dessas temáticas específicas do campo da Arquitetura e do
ambiente construído. A inserção desta disciplina na grade curricular do ensino formal (primário e
secundário/fundamental e médio) se encontra pautada, em sua proposta central, no incentivo a jovens e crianças a
se apropriarem dos atributos espaciais e arquitetônicos dos lugares na cidade., diz respeito a uma política pública a
ser implementada exclusivamente no âmbito da educação formal, mas que, pelo fato de propor a inclusão de
conteúdos da área da Arquitetura e seus temas de interface, na grade curricular do ensino (primário e
secundário/fundamental e médio), apresenta‐se igualmente interessante pelas estratégias metodológicas
inovadoras no tratamento interdisciplinar dos conteúdos programáticos.
4
GOMES, Silvana. Entrevista concedida à Paula Gomes Cury. Belo Horizonte, 14 jul. 2011.
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NÚCLEO TEMÁTICO III: Memórias e Cidades
Patrimônio em ruínas: desafios para preservação
Heritage in ruins: challenges for conservation
Maria da Graça Andrade DIAS
Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela UFBA; Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pelo
NPGAU/UFMG. gracadias@hotmail.com
RESUMO
Propõe‐se nesta pesquisa o estudo de três monumentos religiosos, atualmente em estado de
arruinamento, situados no Recôncavo da Bahia, buscando analisar os aspectos arquitetônicos e
investigar os aspectos simbólicos e do imaginário relacionados a esses patrimônios. Entende‐se que a
atribuição de valores ao patrimônio cultural através das práticas sociais ultrapassa a esfera objetiva,
engloba os símbolos, as relações afetivas com o espaço, a identidade e a memória. Para a análise desses
fundamentos segue‐se os passos metodológicos sugeridos pela teoria das representações sociais através
de abordagens qualitativa e quantitativa. Objetiva‐se, portanto, contribuir com o estudo da dimensão
subjetiva desses patrimônios por considerar que uma política de preservação patrimonial efetiva não
pode ser implementada sem a compreensão da perspectiva das comunidades que moram no seu
entorno.
PALAVRAS‐CHAVE: monumentos religiosos, identidade e memória, representações sociais, preservação
220
ABSTRACT
It is proposed in this research study of three religious monuments, currently in a state of ruination,
located in the Reconcavo of Bahia, seeking to analyze the architectural aspects and investigate the
symbolic and imaginary aspects related to these assets. It is understood that the assignment of values to
cultural heritage through social practices beyond the objective sphere, encompassing symbols, affective
relationships with space, identity and memory. For these reasons the analysis follows the methodological
steps suggested by the theory of social representations through qualitative and quantitative approaches.
The objective, therefore, contribute to the study of the subjective dimension of these assets on the
grounds that a policy of effective heritage preservation can not be implemented without understanding
the perspective of communities living around it.
KEYWORDS: religious monuments, memory and identity, social representations, preservation
1 INTRODUÇÂO
A região escolhida para o desenvolvimento deste trabalho, Recôncavo da Bahia, é conhecida
desde o século XVI como a faixa de terra formada por mangues, baixios e tabuleiros que
contornam a Baía de Todos os Santos. Sendo o Recôncavo formado por 35 municípios,
totalizando uma área de 10.400 Km2 de superfície. Sua colonização é resultante da expansão da
lavoura de cana‐de‐açúcar pelos portugueses. O desenvolvimento da economia deu‐se a partir
do século XVIII até o início do XIX, período áureo, e nas cidades com atividade portuária houve
um maior desenvolvimento urbano (AZEVEDO, 1982).
No século XVIII, com a expansão urbana e a densidade demográfica da região estabeleceu‐se
uma rede que articulava vilas, povoações e cidades. Os fluxos circulavam por vias flúvio‐
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marítimas e caminhos terrestres, tendo nos engenhos e nos pousos suas primeiras formações
urbanas. A sucessão de construções, povoamentos, engenhos e capelas, ao longo dos
primeiros séculos de colonização, acompanhava o curso dos rios. O Recôncavo da Bahia,
conforme SANTOS (1960), formou a primeira rede urbana da colônia portuguesa nas Américas
com os núcleos de povoamento integrados por formações urbanas.
Uma igreja ou uma capela constituía o ponto em torno e em função do qual se formavam
pequenos aglomerados humanos, sendo assim estabelecidos muitos dos núcleos urbanos
brasileiros do período colonial. Segundo MARX (1989) em geral, o processo de formação de
uma vila a partir de uma capela começava com a doação de terras para a sua construção, feita
por um rico proprietário rural ou por vários vizinhos. Para estas capelas serem sacralizadas,
deveriam atender às condições impostas pela legislação canônica, principalmente, serem
edificadas em locais geograficamente destacados e com área livre em seu entorno para o adro
e o passo das procissões. A determinação da localização da capela condicionava o
parcelamento do solo inicial, onde a Igreja controlava e determinava o início da malha urbana
da futura vila ou cidade. Até o momento da criação do município, esse processo de expansão
era norteado pela igreja.
Com o crescimento da população, uma capela passava para outro patamar e era transformada
em paróquia ou freguesia. Como sede paroquial, a antiga capela se transformava em igreja
matriz, e, dessa forma, ia ampliando tanto a sua edificação quanto a população à sua volta.
Posteriormente, era elevada à categoria de vila, com a instituição de uma câmara e
determinação de um solo público. A partir daí, a constituição do espaço físico das formações 221
urbanas coloniais ficava determinada, onde a igreja matriz se destacava, no centro, e tudo
irradiava a partir dela, tanto o desenvolvimento da vida quanto da paisagem desses núcleos
(COSTA, 2003).
A formação de várias cidades do Recôncavo da Bahia deu‐se, também, a partir do
estabelecimento da igreja católica. Alguns autores1 destacaram esta ação no ato colonizador e,
especialmente, como ela se antecipava à Coroa. A definição dos espaços nos territórios deu‐se
através da criação de freguesias e o agrupamento de fiéis junto a povoações ou engenhos com
capelas e, de forma mais intensa junto à matriz, onde era produzida uma "malha reticular
hierárquica que tomava o espaço de ocupação e uso antes mesmo do estabelecimento do
recorte político administrativo feito pela Coroa” (ANDRADE, 2009) quando esta, aliando‐se com
o poder eclesiástico, dava origem a novas vilas e estabelecia termos.
Com o fim do ciclo açucareiro no Recôncavo e a inclusão do sudeste no processo de
desconcentração industrial, a região passa por transformações socioeconômicas e territoriais
latentes que vão lhe conferir novas dinâmicas estruturais. Atualmente, ainda percebe‐se na
região tanto a relevância da territorialidade da cana‐de‐açúcar (dominante no período
colonial), quanto as suas repercussões e transformações nos períodos que sucederam o
apogeu, possibilitando uma análise do espaço geográfico e sua dinâmica. A temporalidade é
visível quando se destacam as modificações sociais e econômicas ocorridas do apogeu até a
decadência ao longo do tempo.
Grande parte do patrimônio histórico de várias cidades do Recôncavo da Bahia, representado,
principalmente, por igrejas seculares, encontra‐se em estado de arruinamento, as causas
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principais vão desde a expulsão dos jesuítas no século XVIII até as grandes transformações
socioeconômicas. Atualmente, existe uma nova reconfiguração espacial nesta região onde as
atividades econômicas se reestruturaram possibilitando o atendimento das demandas
contemporâneas da população de vários municípios, em especial, naqueles em que há
produção de petróleo.
Refletir sobre a preservação desses patrimônios históricos significa debruçar‐se sobre a lógica
subjacente aos conceitos e valores conferidos a esses espaços ao longo do tempo,
considerando‐os como lugares de memória. Esse sistema valorativo é coletivamente
construído, como as relações com os lugares, as estruturas identitárias e a memória, tudo isso
articulado no imaginário irá fundamentar a elaboração, reprodução e expressão das
representações das comunidades acerca do patrimônio.
2 PATRIMÔNIO EM RUÍNAS
A concentração de significados simbólicos, sociais e artísticos transforma as ruínas em fontes
privilegiadas para a investigação sociológica de suas representações e para a pesquisa
arquitetônica da expressão formal. O conceito de patrimônio religioso em ruína possui uma
composição múltipla, memorial, cultural e identitária, fundamental para qualquer sociedade.
Contudo, ele também é em si próprio, um conceito “em aberto”, inter‐relacional, sujeito a
debate, que passa necessariamente pela reflexão, estudo, avaliação, reconhecimento,
conservação e conscientização do seu valor. 222
Esta pesquisa analisará o universo simbólico referente ao patrimônio em ruínas situado em
dois municípios do Recôncavo da Bahia, abaixo relacionados, subsídios para os estudos acerca
do homem, do seu espaço, das suas mentalidades e da sua cultura:
Município de São Francisco do Conde:
Distrito de Paramirim: Capela de Nossa Senhora do Vencimento (Sec. XVIII) ‐ Figura 1
Distrito de Monte Recôncavo: Igreja de Nossa Senhora do Monte (Sec. XVII) ‐ Figura 2
Município de Vera Cruz:
Distrito de Barra Grande: Capela de Nossa Senhora da Conceição (Séc. XVII) – Figura 3
Figura 1: Capela de N. S, do Vencimento Figura 2: Igreja de N. S. do Monte
Fonte: Foto da autora, 2010 Fonte: http://imaginarivm‐imaginarivm.blogspot.com.br
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Figura 3: Capela de N. S. da Conceição
Fonte: Foto da autora, 2009
Estes monumentos constituem‐se num dos mais importantes legados históricos e culturais
dessas regiões. Sendo, efetivamente, referenciais do patrimônio brasileiro, dado que a
preocupação religiosa e os respectivos estabelecimentos se encontram presentes desde as
nossas origens, sempre associados a períodos fundamentais da história política, cultural ou
artística do país. Estão localizados em áreas destacadas, locais marcados por singular 223
delimitação espacial e são representativos do bem patrimonial, reconhecidos por órgãos
estadual e federal.
O patrimônio histórico em ruínas transforma‐se em espaço ritualístico que suporta a
transformação da identidade dos sujeitos por meio de processos sociais. A perda da aura,
ainda que possa contribuir para a destituição desses bens, segundo Fortuna (1994), isto só
acontecerá parcialmente, pois eventualmente até reforçará, a sua capacidade de funcionar
como instrumento a serviço de estratégicas simbólicas de autopromoção e de integração
social.
Assim, alguns fragmentos que nos são revelados na interação com os monumentos e as
comunidades, possibilitam a compreensão das relações entre o passado e o presente.
Quando esses patrimônios se mostram depredados e abandonados assinalam não apenas
uma cidade destruída, mas a cultura arruinada. Quando o passado é um destroço, o
presente fica hipotecado e, ainda seguindo o pensamento de Simmel (2005), pode‐se
dizer que, para salvar o passado e respeitar o presente, será preciso uma política capaz
de manter e preservar o nosso patrimônio.
Segundo Walter Benjamin (1987), a ruína apresenta‐se como alegoria, sendo esta, representativa
de um espaço fragmentado e suscetível a variadas interpretações com resquícios que
rememoram o que a mesma foi um dia. Complementando esta conceituação, Paraizo afirma:
Se a ruína, como alegoria, é algo que sobra de um suposto conjunto que desapareceu, é também uma tensão entre
o efêmero e o eterno, sempre lembrando que o todo, do qual pretensamente é parte, não se pode reconstruir
(2006, p:3).
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O aspecto incompleto e fragmentado da ruína, a define. Por isso ela pode contar com
diversas leituras, uma vez que aquilo que falta pode ser imaginado, bem como sua
trajetória, da construção até o próprio arruinamento. Além disso, sua proximidade com a
destruição nos remete à fragilidade da vida aliada à contraditória sobrevivência do
monumento – que mesmo em aspecto fragilizado, permanece.
3 IDENTIDADE E MEMÓRIA
Segundo Françoise Choay (2007) o passado invocado, convocado, de certa forma encantado,
não é um passado qualquer, ele é localizado, selecionado para fins vitais, na medida em que
pode, de forma direta, contribuir para manter e preservar a identidade de uma comunidade
étnica ou religiosa, nacional, tribal ou familiar, constituindo‐se numa garantia das origens.
Onde a essência do monumento é estabelecida através de sua função antropológica, ou seja, a
relação do tempo vivido e com sua memória.
O monumento constitui‐se tanto como objeto quanto como sujeito do imaginário, isto é, ao
mesmo tempo em que o imaginário elabora imagens e símbolos sobre ele, os seus atributos
físicos tornam‐se elementos para a constituição do imaginário. Esses símbolos funcionam como
códigos que permitem a identificação do grupo. O imaginário estrutura‐se a partir das
instituições sociais, da religião, da organização econômica, da estrutura jurídica do poder
político e também do espaço físico, que adquire significação por meio das praticas sociais.
Nesse processo, quando o espaço é representado no imaginário, a ele são atribuídos valores. 224
Assim a percepção de parte da história da cidade em que se localizam os monumentos de
importância histórico‐arquitetônica, ultrapassa a dimensão física.
O espaço adquire significado por meio da experiência, onde há interação entre o indivíduo e o
ambiente, permeado pelas relações sociais que possibilitam a estruturação de uma rede de
significados e sentidos culturais (CARLOS, 1996). Passa a ser, então, um lugar com forte carga
subjetiva, ligado mais às experiências, ao aspecto afetivo, à necessidade de raízes do que ao
sentido geográfico do termo.
A apropriação envolve significados, crenças, concepções, sentimentos, atitudes, opiniões,
imagens e senso comum, relativos ao patrimônio, revelados nas práticas sociais eventuais ou
cotidianas. Freire (1997, p. 57) considera que a apropriação acontece quando “os objetos são
incorporados ao repertório visual de seus habitantes, ligando‐se às suas experiências afetivas,
momentos significativos de sua vida”. Sendo assim, o patrimônio construído é uma porção do
espaço que, quando experienciado e apropriado, pode se tornar lugar. Com a apropriação, o
individuo ou grupo social tanto assume determinado lugar como propriedade sua, quanto
também entende que a ele pertence. Esse sentimento de pertença não se relaciona apenas à
dimensão espacial: pertencer ao lugar significa também pertencer ao grupo. Como coloca
Halbwachs (1990, p. 69), “há em cada época uma estreita relação entre os hábitos, o espírito
de um grupo e os aspectos dos lugares onde ele vive”. Assim, a apropriação e a sensação de
pertencimento estão intimamente relacionadas à formação da identidade, seja individual ou
coletiva. Por basearem‐se em valores que são construídos social e historicamente, o processo
de apropriação e, portanto, da estruturação de identidade, são dinâmicos.
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A declaração identitária não existe a priori, é sempre múltipla e inacabada, algo que busca se
estruturar. Ela é construída em um processo que leva em conta as questões existentes no contexto
social. A identidade de um grupo, em dado momento, pode mais tarde ser esquecida, pois outro
contexto e outras relações estão em jogo. A identidade se estrutura a partir de elementos que se
interrelacionam, como os valores culturais vigentes no grupo social e as relações com os lugares e a
memória.
A memória é um dos elementos ligados à experiência que contribui para o processo de apropriação,
pois permite a compreensão de como ocorreu a vivência naquele lugar. Não existe memória sem
imaginário e não há imaginário sem memória dos indivíduos. Com relação à identidade, a memória é
um fator fundamental para sua constituição, em função do sentimento de continuidade e de
pertencimento que confere ao individuo ou ao grupo. A memória cria identidade para o grupo, com o
que é comum a ele. Um dos pontos que permite a identificação do sujeito com o grupo é um passado
de acontecimentos e experiências em comum, que possa funcionar como elo, que fomente o
sentimento de pertença. Essa memória coletiva tem um caráter dinâmico: quando o grupo muda ao
longo do tempo, as lembranças também se transformam. Ela só subsiste enquanto o grupo social
existe; quando seus integrantes morrem, tem fim também a memória coletiva. As lembranças
particulares só subsistem quando têm o respaldo das coletivas (POLLAK, 1992; HALBWACHS, 1990).
Assim como a identidade, a memória é uma construção social, é um trabalho de organização que
articula a lembrança e o esquecimento, sofrendo transformações constantes. A memória é seletiva,
depende dos valores do indivíduo, do momento histórico e dos interesses do grupo social, que
sempre remetem aos conflitos de definição das identidades (POLLAK, 1989). A memória coletiva é 225
formada para dar sentido e estabelecer a maneira do individuo se relacionar com o mundo.
Em relação ao espaço, a memória é coletiva, pois a percepção do espaço resulta do que o olhar
apreende, que é trabalhado no imaginário a partir de valores e conceitos estabelecidos pelo grupo. O
lugar funciona como suporte da memória coletiva e da identidade social. Assim, quando os lugares
são transformados ou destruídos, há o sentimento de estranheza e perda das referências identitárias.
O patrimônio cultural desempenha um papel fundamental na procura ou criação das novas estruturas
identitárias. Ele ultrapassa o conceito de lugar, espaço físico que é apropriado por meio da
experiência, para ser um “lugar de memória”, que apresenta dimensão material e funcional, mas
principalmente simbólica (NORA, 1993). Esses lugares contêm elementos necessários ao sentimento
de continuidade dos indivíduos e grupos sociais e contribuem para a manutenção dos valores
identitários. Sendo assim, ao mesmo tempo em que fornece suporte ao pertencimento, memória e
identidades dos sujeitos e grupos, o lugar “também é fragmento, resto, ilusão cambaleante em um
tempo de brevidades, responsável por unir passado e presente” (BRANDIM, 2005, p. 240).
4 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
A teoria das representações sociais, ligada à área de Psicologia Social, foi desenvolvida inicialmente
por Moscovici em sua obra “Representação social da psicanálise”, em 1961. Entende‐se representação
social como “uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, tendo uma visão
prática e concorrendo para a construção de uma realidade comum a um conjunto social” (JODELET,
2002). São conhecimentos práticos que possibilitam a compreensão do mundo e a comunicação
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dentro do grupo social, sendo elaboradas pelos sujeitos sobre objetos socialmente valorizados. A
investigação centrada nas representações sociais fundamenta‐se no fato de que, consciente ou
inconscientemente, elas são utilizadas nos momentos decisórios em relação à cidade e que, por meio
delas, são expressos os valores da sociedade, pois elas justificam e racionalizam comportamentos
anteriores e guiam atitudes comportamentais (WAGNER, 2003).
São as representações sociais que expressam as diversas visões de mundo dos indivíduos. Elas
apresentam um caráter construtivo, criativo e autônomo, pois possibilitam a interpretação da
realidade, estando intimamente ligadas às formas de expressão e produção do espaço pelo
sujeito (JODELET, 2002). A representação social do patrimônio em estudo irá traduzir‐se através
das percepções diferenciadas, resultantes das experiências das pessoas relativas ao
monumento e ao ambiente urbano.
Visando identificar a representação social das comunidades em relação aos seus patrimônios,
será estabelecida uma premissa para determinar de que modo o estudo será realizado,
delineando a representação social predominante, sem desconsiderar a diversidade de
representações existentes. Sendo que o universo da pesquisa deverá ser adequado aos
objetivos do estudo, de forma diversificada e exemplar da população a ser estudada, de modo
a fornecer as informações necessárias para que se possa analisar o fenômeno. O grupo a ser
entrevistado deverá ser composto por pessoas em diversas posições da sociedade, que
enunciem representações sociais distintas: moradores de residências próximas aos
monumentos; comerciantes locais; usuários do comércio e dos serviços locais; sujeitos sociais
em posições chaves da sociedade (jornalistas, historiadores, professores, técnicos da prefeitura, 226
representantes sociais e de comunidades religiosas; órgãos da esfera cultural).
Algumas diretrizes deverão ser consideradas para definir a quantidade de indivíduos a serem
entrevistados. De acordo com o IBGE (2001), aproximadamente 1% da população de um bairro
pode ser considerada uma quantidade representativa, a variabilidade desse percentual poderá
ser ampliada ou reduzida em decorrência da taxa de ocupação da área pesquisada.
A utilização da teoria das representações sociais implica na adoção de procedimentos de
pesquisa que privilegiam a fala, o que será obtido através da realização de entrevistas. Por
meio delas, buscar‐se‐á detectar não apenas o conteúdo manifesto, mas também as
oscilações, as hesitações e o contexto, que ajudam a revelar o imaginário do indivíduo. A
fim de capturar a fala dos atores sociais, será procedida a pesquisa de campo, buscando
adquirir informações sobre o problema, retirando dados da realidade social onde o
fenômeno investigado ocorre.
Selecionou‐se a entrevista semi‐estrutrada como instrumento de pesquisa de campo, por
possibilitar o resgate de informações produtivas. Nesse modelo, as perguntas são lançadas
de forma direcionada, permitindo ao entrevistado flexibilidade para discorrer mais
longamente sobre os pontos que julgar relevantes, enunciando seu modo de pensar ou de
agir, seus sentimentos, crenças e valores.
Objetiva‐se que, ao final das entrevistas, seja possível identificar o sistema de valores da
sociedade contemporânea local, para que seja possível inferir o que o patrimônio em ruína
representa hoje, para os diversos sujeitos sociais.
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No tratamento dos dados, será observada a necessidade de mostrar a representação social
predominante, mas também levar em conta a multiplicidade de representações existentes.
Considera‐se, também, o fato da pesquisa centrar‐se na fala dos indivíduos, expressivas de
sentidos que revelam as representações sociais. Tendo isso em vista, julga‐se que a
utilização da análise de conteúdo será mais apropriada, por permitir a identificação de um
padrão com a abordagem quantitativa, bem como o tratamento qualitativo dos dados, que
revele a diversidade das representações sociais.
A análise de conteúdo segundo BARDIN (2004, p. 37), caracteriza‐se como “um conjunto de
técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos sistemáticos e
objectivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores quantitativos ou não”. Com o
emprego desta técnica buscar‐se‐á estabelecer parâmetros mais objetivos de análise, dado o
caráter subjetivo do assunto, ressaltando temas mais recorrentes, facilitando sua compreensão
e adotando uma técnica mais rigorosa para que, frente à heterogeneidade do objeto, não se
perca a finalidade da pesquisa.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A noção de patrimônio cultural encontra‐se diretamente relacionada à memória e ao sentido
de identidade, conforme menciona a Constituição Brasileira de 1988, em seu Art. 216. "[...] os
bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto portadores de
referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade 227
brasileira." O reconhecimento do valor dos bens de caráter material é obtido por meio do
Decreto de Tombamento.
O patrimônio cultural está vinculado, portanto, à lembrança e à memória — numa categoria
basal na esfera das ações patrimonialistas, uma vez que os bens culturais são preservados em
função dos sentidos que despertam e dos vínculos que mantêm com as identidades culturais.
Coaduna‐se com essas reflexões Mendonça (2004, p. 32), quando ressalta que “estas memórias
nos fazem indivíduos e comunidade, que resgatam uma parcela da nossa cidadania, que nos
permitem aspirar a categoria de povo civilizado e que nos fazem refletir na nossa caminhada
para o futuro”. Nos recônditos da memória residem aspectos que a população de uma dada
localidade reconhece como elementos próprios da sua história, da tipologia do espaço onde
vive, das paisagens naturais ou construídas.
A memória, do ponto de vista de Jaques Le Goff (1997, p. 138) estabelece um "vínculo" entre as
gerações humanas e o "tempo histórico que as acompanha". Tal vínculo, além de constituir um "elo
afetivo" que possibilita aos cidadãos perceberem‐se como "sujeitos da história", plenos de direitos e
deveres, os torna cônscios dos embates sociais que envolvem a própria paisagem, os lugares onde
vivem, os espaços de produção e cultura. Sob essa ótica, Le Goff destaca que a "identidade cultural de
um país, estado, cidade ou comunidade se faz com a memória individual e coletiva"; a partir do
momento em que a sociedade se dispõe a "preservar e divulgar os seus bens culturais" dá‐se início ao
processo denominado pelo autor como a "construção do ethos cultural e de sua cidadania". Sem
dúvida, a cultura apreendida como "formas de organização simbólica do gênero humano remete a
um conjunto de valores, formações ideológicas e sistemas de significação" que norteiam os "estilos de
vida das populações humanas no processo de assimilação e transformação da natureza".
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O patrimônio se configura e se engendra mediante suas relações com a cultura e o meio. Sem
dúvida, hoje se reconhece que a cultura é construída historicamente, de forma dinâmica e
ininterrupta, alterando‐se e ampliando seu cabedal de geração em geração, a partir do contato
com saberes ou grupos distintos.
Desta maneira, o papel dos monumentos histórico‐culturais dentro de suas respectivas
sociedades, mesmo que muitas vezes minimizado, é essencial para o entendimento da
formação e andamento das memórias locais, sejam elas relativas a estratégias de poder ou às
coletividades. E, ao se entender mais sobre tais memórias, passa‐se também, a compreender o
posicionamento desta sociedade frente às influências e fenômenos sociológicos que a mesma
vivenciou ao longo dos séculos, décadas ou mesmo anos – algo de grande importância para a
produção de sua história local, bem como, para o planejamento e implantação de políticas
culturais de defesa e manejo da cultura e do próprio patrimônio histórico‐cultural.
Desde a década de 70 a preservação de monumentos históricos passa a associar‐se ao conceito
de reabilitação (mudança de função inicial), reutilização (atribuição de novos usos a espaços
que tivessem perdido a função inicial) e revitalização (animação dos espaços transformados).
Neste aspecto pretende‐se abordar a recuperação dos bens patrimoniais do Recôncavo da
Bahia, levando em conta o passado histórico, a identidade e a memória das comunidades com
esses bens, visando uma perspectiva de intervenção no futuro, transformadora ou não, com
relação às suas funcionalidades originais.
228
6 REFERÊNCIAS
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7 NOTAS
1
MARX (1989); COSTA (1998); FRIDMAN (2005); dentre outros. 229
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NÚCLEO TEMÁTICO III: Memórias e Cidades
Modernidade e tradição: A dialética na dinâmica urbana das
cidades de pequeno porte
Modernity and tradicion: The dialetic in the urban dinamic on the towns
Tamyres Virgínia L. SILVEIRA
Arquiteta e urbanista. tamyresvls@yahoo.com.br.
Josélia Godoy PORTUGAL
Mestre em Economia Doméstica/UFV; Professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFV.
RESUMO
O presente trabalho se propõe a fazer uma consideração sobre a dinâmica urbana das cidades de
pequeno porte, que se desenvolve na dialética entre modernidade e tradição. O estudo passa pela
abordagem de conceitos pós‐modernos e pela análise destes na conformação urbana das cidades, num
primeiro momento, da metrópole, enquanto palco do nascimento destes, e posteriormente, das cidades
de pequeno porte, num momento em que estes novos valores e princípios conformadores do
comportamento social, extrapolam os limites das metrópoles e se difundem pelas demais cidades,
oferecendo‐as (ou impondo‐as) novas formas de estruturação do espaço urbano e um novo perfil
comportamental da sociedade. 230
PALAVRAS‐CHAVE: Modernidade, Tradição, Dinâmica urbana, Metrópoles, Cidades.
ABSTRACT:
This paper supposed to be a consideration about the towns’ urban dynamic, what develop it selves in the
dialectic between the modernity and the tradition. The study pass by the approach of the post modern
concepts and by the analysis of its in the urban form, at the first moment, the metropolis’ form, while the
birth’s stage of this concepts, and after, the towns’ form, at the instant what this new values and
principles what remake the social behavior, extrapolate the metropolis’ limits and diffuse it selves by the
other cities, offering to them new forms of urban space’s restructuration and a new society’s behavioral
profile.
KEYWORDS: Modernity, Tradition, Urban Dynamic, Metropolis, Towns.
1 INTRODUÇÃO
Evitem dizer que algumas vezes cidades diferentes sucedem‐se no mesmo solo e com o mesmo nome,
nascem e morrem sem se conhecer, incomunicáveis entre si. Às vezes, os nomes dos habitantes
permanecem iguais, e o sotaque das vozes, e até mesmo os traços dos rostos; mas os deuses que vivem
com os nomes e nos solos foram embora sem avisar e em seus lugares acomodaram‐se deuses estranhos.
(CALVINO, 1990: 31)
Calvino (1990) evoca em um trecho de sua narrativa “As cidades Invisíveis” as mudanças decorrentes
da inserção de novas forças na cidade, da relação modernidade e tradição na constituição do tecido
urbano. “Fruto da imaginação e trabalho articulado de muitos homens, a cidade é uma obra coletiva
que desafia a natureza” (ROLNIK, 1995: 7‐8). Sua dinâmica é, então, reflexo dos processos que
incidem sobre ela, uma vez que estes se fazem através da ação humana.
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Na contemporaneidade verifica‐se, segundo Rolnik (1995), uma velocidade de circulação
nas cidades, em ritmo crescente, visto que se inserem em um cenário de modernização
que promove a “redução das barreiras espaciais” (HARVEY, 1996: 173). Assim, os limites
que continham a cidade vão se perdendo e ela torna‐se inesgotável, funde‐se a aldeia
global, e ocorre gradualmente a “aniquilação do espaço através do tempo” (MARX apud
HARVEY, 1996: 172). Desta forma, a cidade não pode ser entendida como um organismo
fechado, “a totalidade não está presente imediatamente neste texto escrito, a cidade”
(LEFEBVRE, 1991: 48), o que dela nasce e o que nela influencia, são processos advindos
de uma esfera maior, dos grandes sistemas políticos, religiosos, entre outros. A tendência
é que a cidade, e neste caso estamos nos referindo à metrópole, viva intensamente o
processo de globalização.
A experiência da Modernidade em sua plenitude, ou seja, na forma como foi vivida nas
grandes cidades no final do século XIX e início do século XX, é bem descrita por Berman
(1986) em seu livro Tudo o que é sólido se desmancha no ar: a aventura da modernidade,
onde segundo ele:
Essa atmosfera – de agitação e turbulência, aturdimento psíquico e embriaguez, expansão das
possibilidades de experiência e destruição das barreiras morais e dos compromissos pessoais,
auto‐expansão e autodesordem, fantasmas na rua e na alma – é a atmosfera que dá origem a
sensibilidade moderna. (BERMAN, 1986: 18)
O cenário descrito por Berman (1986) foi uma realidade vivida na Europa a partir da
“Revolução Industrial”, época em que as transformações ocorriam a uma velocidade
231
nunca antes concebida, com grandes avanços científicos e inovações que alteraram o
cotidiano das pessoas, as quais se viram aturdidas num momento em que, segundo um
dos personagens de Rousseau (1712‐1778)1, “de todas as coisas que me atraem nenhuma
toca meu coração embora todas juntas perturbem meus sentimentos” (ROSSEAU apud
BERMAN, 1986: 18). Este momento foi marcado por uma ausência de referenciais, pelo
medo do novo, o não conhecido que invadiu a vida das pessoas, oferecendo‐lhes novos
caminhos e abalando certezas consolidadas pela cultura e pela tradição.
Ao final do século XIX, as grandes cidades brasileiras também vão experimentar os
processos advindos da Modernidade. No entanto, a “sensibilidade moderna” não se faz
sentir no Brasil tal qual na Europa, pois, entre nós, os aspectos da modernidade, neste
momento de disseminação pelo mundo, já não ocorrem de forma tão chocante. Contudo,
é neste momento que cidades como, São Paulo, Rio de Janeiro (Figura1), Goiânia e Belo
Horizonte vão experimentar em suas configurações urbanas, bem como, em sua
arquitetura, as mudanças que já vinham ocorrendo na Europa, com as reformas
urbanísticas inspiradas em Haussman (Paris, 1853‐70) e Cerdá (Barcelona, 1855‐64). No
entanto também entre nós, as cidades ganham uma nova organização, e vão
gradualmente se transformando em uma teia complexa de relações e lugares. Uma vez
inseridas na modernidade, tudo lhes é pertinente, conforme argumenta Barki (2006),
pois elas aceitam a inserção de inúmeras tipologias, e estas, por sua vez, se encaixam
nessa grande teia e logo fazem parte da cidade.
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Figura 1 ‐ Plano Agache, Rio de Janeiro
Fonte: http://www.vivercidades.org.br/
Ao longo do século XX, a gama de informações se estende a ponto de tornar‐se uma
disseminação de imagens, que extrapolam a condição física, são símbolos que marcam a
cidade, como trata Arantes (2008). Neste contexto, a arquitetura segundo ele, é reduzida a um
jogo de formas, e as metrópoles assistem o desenrolar desses sistemas simbólicos tomando o
lugar dos objetos concretos, numa “dinâmica irrefreável que se desenvolve alimentando‐se de 232
si mesma” (BARKI, 2006: 205).
2 ENTRE MODERNIDADE E TRADIÇÃO – ALGUNS CONCEITOS
O cenário da metrópole contemporânea, podemos dizer, já ultrapassa a realidade de pós‐
modernidade2, um universo turbo acelerado do ciberespaço e da economia globalizada (BARKI,
2006: 205). As sociedades modernas que habitam este cenário são, segundo Hall (2005),
sociedades em mudança constante, rápida e permanente, gerando uma mutação também no
que diz respeito aos conceitos e valores, refletindo assim na cultura e na tradição, moldadas ao
perfil da sociedade.
No entanto, os processos velozes que acometem os grandes centros são sentidos mais
tardiamente e de uma forma menos intensa nas cidades do interior. Simmel (1902) já
ponderava sobre essa distinção em suas considerações sobre a metrópole no início do
século XX. Para o autor, a metrópole apresentava tamanha multiplicidade na vida
econômica, ocupacional e social que não se verificava nas cidades pequenas, pois nestas
o “conjunto de imagens mentais flui mais lentamente, de modo habitual e mais
uniforme”, favorecendo relações externas gradualmente abolidas nas grandes cidades
(SIMMELL, 1902: 12).
Entretanto, independente do grau com que as inovações incidem sobre a cidade, elas
deixam, segundo Harvey (1996), suas marcas. O autor defende a existência de um
palimpsesto urbano – uma paisagem composta de várias formas construídas, sobrepostas
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umas às outras ao longo do tempo – da estrada de ferro e do navio à vapor, às mais
recentes conquistas tecnológicas, cada grupo de inovação deixou sua marca, diferentes
marcas na forma da cidade. As camadas se sobrepõem a uma velocidade crescente,
reflexo dos processos de modernização cada vez mais avançados, que interferem de
maneira radical na organização da cidade.
Mas não se pode dizer que o palimpsesto urbano, as transformações ocorridas nas
cidades, são decorrência apenas dos processos modernizadores, uma vez que é possível
perceber outras fontes de influência, dentre estas, algo que diferencia cada cidade, ou
seja, a cultura, enquanto tradição assimilada pela cidade e seus habitantes. Nas grandes
cidades já se torna difícil identificar esses aspectos tradicionais que condicionam o
comportamento social perante as novas situações. Temos que esta é uma realidade mais
próxima das cidades menores aonde a modernidade chegou tardiamente e, não exerceu
seus domínios com tanto vigor. Estas, podemos dizer que experimentam a modernidade,
num tempo onde elas mesmas, e o mundo de maneira geral, já vivem em uma condição
pós‐moderna.
O domínio da globalização se entende e chega às pequenas cidades, chega mesmo ao
campo, como nos coloca Lefebvre (1999). As inovações tecnológicas que permitem a
troca de informação rápida levam às pequenas cidades, a realidade vivida nas
metrópoles, pelo menos em partes. A intensa metamorfose da capital é vislumbrada no
imaginário das pequenas cidades, fazendo com que as pessoas se encantem pelo seu
modo de vida, pelo viver a metrópole, mesmo que hoje já não esperem mais, viver na 233
metrópole, uma vez que são também conscientes de seus inúmeros problemas urbanos,
problemas estes que já assolam também, salvo as devidas proporções, as cidades de
menor porte.
Ocorre então nestas cidades uma perda de identidade local, seduzidas pela gama de inovações
que se colocam perante elas, as relações cultivadas pela cultura e tradição, são ameaçadas pelo
fulgor das tribos globais, que através dos meios de comunicação não apenas comercializa, mas
“destilam simbolismo, quer dizer, a impressão de pertencer a uma espécie comum”
(MAFFESSOLI, 2006: 168). Podemos nos questionar até que ponto a globalização incide sobre
as cidades de pequeno porte, e, se ela as modifica, como modifica? A mentalidade das pessoas
permeia pela grande gama de informações comuns a este novo cenário, ou estariam elas ainda
atreladas a algum tipo de tradição conservadora?
3 A DINÂMICA DAS CIDADES DE PEQUENO PORTE – O UNIVERSO TURBO ACELERADO?
O espaço urbano, composto por uma simultaneidade tamanha, um amplo convívio de funções e
formas, caminha para um universo de marcas e símbolos do qual trata Arantes (2008), da submissão
do concreto à imagem. O centro urbano “supõe e propõe a concentração de tudo o que existe no
mundo, na natureza, no cosmos: frutos da terra, produtos da indústria, obras humanas, objetos e
instrumentos, atos e situações, signos e símbolos.” (LEFEBVRE, 1999: 46). É a multiplicidade da vida
metropolitana de que Simmel fala (1902), ainda no início do século XX, que culmina no “universo
turbo acelerado do ciberespaço e da economia globalizada” do fim do mesmo século. (BARKI, 2006:
205)
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“O homem urbano, considerado o mais inteligente de todos os primatas, produziu uma
cidade onde a dimensão do humano se perde no cotidiano uniforme, massacrante e
artificial” (CARLOS, 2008: 234). O homem se produz como estranho a si mesmo segundo
Carlos (2008), pois sua identidade é deslocada (HALL, 2005), na busca pelas respostas na
“caixa preta” que é o processo de consolidação do urbano. (LEFEBVRE, 1999).
Assim temos a realidade das grandes cidades, onde o processo de globalização apesar de
não ser homogêneo, como sabemos, exerce sua preponderância. A produção do espaço,
segundo uma lógica do capital, produziu uma desigualdade imposta pelo fenômeno da
globalização, sobre as formas, funções e agentes sociais, alterando‐os em maior ou
menor grau e, no limite, substituindo‐os totalmente. (CORRÊA, 1999: 44)
Aos grandes centros, o fenômeno atingiu alterando seus contornos, não mais expressos
fisicamente, mas dissolvidos pela relação de proximidade que, doravante se verifica no
cenário mundial. A “aniquilação do espaço” (MARX apud HARVEY, 1996: 172) inseriu a
grande metrópole num contexto internacional de modernidade, onde sua estrutura foi
modificada. As metrópoles não só viveram a ampliação de atividades, como o surgimento
de novas, fato que, nas cidades menores, não se observa com tanta intensidade.
As pequenas cidades, verdadeiras fronteiras entre processos rurais e urbanos, que
absorviam pouco os processos cumulativos próprios da modernidade (DAMIANI, 2006:
136), característica própria dos países subdesenvolvidos, foram então, assimilando o
processo mais lentamente, de forma a sofrer as modificações de forma mais residual
como defende Damiani (2006). 234
“As numerosas pequenas cidades brasileiras fazem parte do urbano que se produz com
forças de dispersão que, conforme Santos constitui um fenômeno urbano assaz
expressivo no país, paralelo aquele mais conhecido das grandes metrópoles” (ENDLICH,
2006: 84). Entretanto, é preciso investigar qual é o real perfil deste urbano, haja vista, a
incipiente produção acadêmica sobre o tema. Muitas vezes embasadas em atividades
primárias, funcionando como centros para a produção agrícola, as pequenas cidades
podem ser vistas, num primeiro instante, como uma mescla de urbano e rural. Segundo
Endlich (2006), constituem‐se, assim como os condomínios, as periferias e os
loteamentos de entorno, como manifestações contraditórias do urbano, uma vez que
tendem a negar as relações promovidas pela vivência do urbano, pela diversidade social,
pela concentração e não pela dispersão, no entanto, podemos buscar entendê‐las como
outra faceta do fenômeno urbano, que, devido a maneira peculiar pela qual assimilam a
modernidade, produzem um espaço diferente, com suas próprias complexidades.
As cidades de pequeno porte ainda vivem uma estreita conexão entre urbano e rural,
carregam fortes relações tradicionais, favorecem o que Maffesoli (2006) chama de
localismo, práticas comuns a “um conjunto que se apoia no parentesco, mas que também
se apoia em múltiplas relações de amizade, de clientelismo, ou de serviços recíprocos”.
(MAFFESOLI, 2006: 227).
Estas pequenas cidades, segundo Santos (2006), fazem parte do urbano que se produz
com forças de dispersão que “constitui um fenômeno urbano assaz expressivo no país,
paralelo aquele mais conhecido das grandes metrópoles” (SANTOS apud ENDLICH, 2006:
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84). Entretanto, é preciso investigar qual é o real perfil deste urbano, haja vista, a
incipiente produção acadêmica sobre o tema. Muitas vezes embasadas em atividades
primárias, funcionando como centros para a produção agrícola, as pequenas cidades
podem ser vistas, num primeiro instante, como uma mescla de urbano e rural.
De acordo, com Endlich (2006), a partir dos anos 70 e 80, a disseminação maciça dos
equipamentos tecnológicos, implicou em um isolamento social, a cidade começa a perder seus
pontos de encontro, a efervescência da convivência, das manifestações, começa a abrandar. A
televisão e o telefone substituem o teatro e o cinema, os bancos da praça e a conversa na
calçada. Ocorre, e isso é comum tanto às grandes aglomerações como às cidades de pequeno
porte, uma tendência de renúncia à vida pública, que, segundo Sennett (1998), é entendida
como um dos males da sociedade, causada pela impessoalidade, alienação e frieza. O cenário
que se molda a partir da inserção de inovações na cidade faz com que as distâncias e o próprio
tempo percam a relevância, os novos meios de comunicação possibilitam conexões, outrora
inimagináveis. Desta forma, rural e urbano não podem mais serem atribuídos a determinados
espaços, como coloca Endlich (2006), estes conceitos passam a não mais responder por uma
condição física somente, mas à oferta da possibilidade de estar em contato com a globalização,
de fazer parte, ainda que de forma branda, dos processos modernizadores.
Mas não só a modernidade modifica a cidade, seus contornos são traçados, como já vimos
anteriormente, por influências de aspectos mais específicos, os códigos e símbolos presentes
na cidade, cultura e tradição, marcando o palimpsesto urbano. Segundo Silva (2010), no caso
das pequenas cidades é de suma importância analisar a vida cotidiana das mesmas, uma vez 235
que, ao serem vistas de forma superficial, tendem a serem julgadas como simples e
desprovidas de dinâmica, se comparadas às metrópoles. Desta forma, a autora argumenta que
“a vida cotidiana nas pequenas cidades é marcada pela regularidade dos fatos (safras, festas
religiosas, etc.), que é regida pela natureza e pelas tradições, com pouca interferência externa,
dando uma impressão de estagnação” (SILVA, 2010: 25) como colocado anteriormente,
opondo‐se a multiplicidade da vida na metrópole, já observava Simmel (1902).
As dinâmicas nos pequenos centros não são inexistentes, elas ocorrem de uma forma diferente
se comparadas com as grandes cidades. Os processos modernizadores encontram dificuldade
em penetrar profundamente na vida social da cidade pequena, uma vez que, de fato, os
hábitos dessas cidades são marcados pela “pessoalidade” (SILVA, 2010), tem‐se um cenário
onde todos se conhecem, no âmbito da vizinhança se vigiam, e assim, as pessoas, sem se dar
conta, seguem as regras impostas por esta sociedade (SILVA, 2010), a inserção da modernidade
pode ser renegada caso a mesma atinja tal pessoalidade, caso fira a relação de confiança entre
as pessoas.
Mas as modificações dos padrões sociais ocorrem sim, na medida em que os símbolos se
permitem alterar de alguma forma, e as diferenças que coexistam se redesenhem, uma vez que
a sociedade que habita esta cidade não é monolítica culturalmente, ela tem suas diferenças,
seja étnica, religiosa, etária, entre outras.
Segundo Corrêa (CORRÊA apud MEDEIROS, CARVALHO, 2008: 5), os pequenos centros podem
exercer cinco possíveis funções: 1) prósperos lugares centrais ocorrendo em áreas submetidas
à industrialização do campo; 2) pequenos centros funcionalmente especializados; 3) pequenas
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cidades transformadas em subúrbios‐dormitórios; 4) focos de concentração de trabalhadores
agrícolas; 5) núcleo dependente de recursos externos. (CORRÊA apud MEDEIROS, CARVALHO,
2008: 5).
Pesquisa realizada em trabalho monográfico permitiu observar a cidade de Teixeiras‐MG
(Figuras 2 e 3) que vive hoje uma crise de identidade, acompanhada pela estagnação da
atividade cultural da cidade, que se reflete numa falta de dinamismo urbano. Verifica‐se um
vazio, como aquele observado por Harvey (1999) na consolidação do capitalismo, reflexo da
mudança de sensibilidade, que não mais permite ao habitante daquele lugar reconhecer, como
parte de si, o espaço que habita. O palimpsesto urbano, apesar de bem delineado nas formas
da cidade, que por sua dinâmica lenta, pouco se modificou em termos físicos nos últimos
tempos, não é reconhecido pelo cidadão teixeirense, promovendo um esquecimento da
história local e da memória coletiva, que dá sentido de ser a cidade.
Observa‐se que a cidade ocupou uma posição de cidade dormitório, um grande contingente de
pessoas trabalha ou estuda em Viçosa, cidade vizinha, com melhor infraestrutura. Pela
economia mais forte e desenvolvida, é lá também que se busca por um comércio mais atraente
e diversificado. A saúde é outra área que recebe apoio nos municípios vizinhos, pelos hospitais
mais bem equipados e profissionais especializados.
Figura 2 – Festa religiosa na praça da matriz, Teixeiras‐MG
236
Fonte: Arquivo pessoal Aurélio Medina.
Figura 3 – Desfile de 7 de setembro, Teixeiras‐MG
Fonte: Arquivo pessoal Aurélio Medina.
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No campo cultural não seria diferente. Teixeiras sofre uma carência de lugares propícios ao
lazer e entretenimento, é escassa a oferta de programações culturais, como vimos
anteriormente, logo, as adjacências do município entram novamente como opção a este
público.
Como já observado, a cidade apresenta uma dinâmica lenta. Não há um movimento que atraia a
população para viver a cidade, o que implica no descaso da mesma em relação ao espaço que habita.
A população teixeirense não se reconhece em seu espaço e tampouco se sente no dever e direito de
intervir para uma mudança, o que também foi constatado através das entrevistas. O cenário que se
configura é de abandono do espaço de convívio e troca da população, que acaba por caracterizar a
cidade de fato como cidade‐dormitório, uma vez que a dinâmica que as atividades poderiam
promover na cidade, são transferidas à Viçosa e, em partes, a Ponte Nova.
Analisando o palimpsesto urbano, percebemos que cultura e tradição foram aos poucos
perdendo espaço, ou melhor, o espaço não mais abriga a manifestações de cultura e tradição.
No entanto, essa perda se deu relativamente tarde, uma vez que a inserção dos meios de
comunicação ocorreu de forma tardia no município, desta forma, as grandes mudanças
aconteceram nas últimas décadas, mas já num caráter bem intenso.
A modernidade atingiu a cidade alterando sim sua dinâmica, mas não por uma mudança
drástica em sua configuração espacial como pode ser percebida em cidades de maior porte, a
modernidade em Teixeiras se deu de uma forma como ocorreu em muitos locais, como observa
Canclini (1999), na forma de objetos de consumo, o espetáculo da modernidade, rádio, TV,
telefones, e hoje, a internet, suprimiram o encontro, a vivência do urbano, alterando uma 237
dinâmica que não fora, em sua essência, acelerada, mas que experimentou épocas mais ativas.
Há uma tendência a dissolução das monoidentidades em nome de uma cultural mundial, da
mundialização do comportamento, segundo observa Canclini (1999), realidade que se
configura na cidade de Teixeiras, com o esquecimento tradição local, em favor de “identidades
partilhadas” (HALL, 2005: 74). Resguardadas as devidas proporções, observa‐se este fenômeno
defendido por Hall (2005), produzindo consumidores para os mesmos bens, públicos para as
mesmas mensagens, uma população que vive de buscar referências externas, em renuncia à
história local, ou na melhor das hipóteses, pelo simples desconhecimento da mesma.
Essa busca por referências externas faz com que os costumes e práticas não se baseiem nas
experiências do passado, mas sobre as novidades oferecidas a cada momento, contribuindo
para a crise de identidade do município.
Outro aspecto a ser notado são as relações de pessoalidade das quais fala Silva (2010), relações
intensas que se configuram como resistências a inserção da modernidade na cidade, mas que,
no entanto, não são capazes de sustentar a tradição local, resultado de uma cultura fragilizada,
marcada pela falta de identificação dos habitantes para com a cidade.
Observamos a partir desses apontamentos, que a pequena cidade pode agregar mais de uma
função acima citada, e poderíamos talvez dividir essas funções em dois grandes grupos, centros
ativos e centros passivos. Aos ativos, primeira e segunda classificação, de acordo com proposta
de Corrêa (2008), cabe uma dinâmica pautada em uma função promotora de recursos, capaz
de exercer influência, ainda que pequena, em seu entorno. Ao grupo passivo, referente às três
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últimas classificações feitas por Corrêa (2008), nota‐se uma apatia, a impossibilidade de se
impor como detentor de uma função significativa, no sentido de movimentar a cidade,
promovendo o progresso. Em oposição a isso, tende a ocorrer uma estagnação, proveniente da
carência de complexidade que Santos (1979) defende enquanto requisito primordial para o
acontecimento do fenômeno cidade.
4 APONTAMENTOS
Entender as cidades de pequeno porte é, sobretudo, entender como se dão as relações sociais
nas mesmas. Como visto ao longo da discussão, estas cidades guardam relações estreitas de
pessoalidade, o relacionar‐se com o outro e com as tradições que imperam na trajetória social
é de extrema importância, e condiciona o comportamento das pessoas. Essas características
dificultam a discussão das dinâmicas das cidades de pequeno como um fenômeno que permite
generalizações.
No entanto, não é menos verdade que estas localidades têm se deixado influenciar pelos
processos modernizadores, e por mais que sua forma urbana não tenha sido alterada pelas
inovações, seu palimpsesto sofre com o simples abandono do espaço público, em grande parte
delas. Diferente das grandes cidades, que incorporam em seu tecido, em sua arquitetura, em
sua infraestrutura e em sua própria estrutura social e morfológica, as tendências e
necessidades impostas pela situação cultural de pós‐modernismo, as cidades de pequeno
porte, em sua grande maioria, não sabem como lidar, pois não estão preparadas, com as 238
transformações culturais advindas desse processo. A consequência mais imediata é que o
espaço público vem sendo renegado de numa maneira insustentável para suas realidades
locais. Assim, as novas tecnologias que cabem dentro de cada casa são exaltadas em
detrimento do convívio na rua, no que Lefebvre (1999) reconhece como a desordem, que
informa e surpreende a riqueza da cidade, a vida da cidade.
As alternativas culturais adotadas pelos grandes centros, como os grandes teatros, museus, e
mesmo os shopping centers, não cabem no cotidiano dessas pequenas cidades, que muitas
vezes fracassam ao tentar reproduzi‐las no seu tecido urbano. É dessa forma que o grande
questionamento quanto ao futuro dessas cidades se formula, pois a elas, muitas vezes
mergulhadas sem ação nesse processo global, se imporia uma realidade incerta e distante de
suas tradições. Detentoras de relações tradicionais e de uma cultura do próximo necessitariam
lidar com os aspectos trazidos, pela modernidade, de forma a aliá‐los à construção ou
renovação de experiências sociais que valorizem, principalmente, os seus espaços públicos.
5 REFERÊNCIAS
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2008.
CORRÊA, Roberto Lobato. Globalização e Reestruturação da rede urbana – Uma nota sobre as pequenas cidades.
Revista Território, ano IV, nº 6, jan./jun. 1999. Disponível em
http://www.revistaterritorio.com.br/pdf/06_5_correa.pdf, acessado em 01 de maio de 2010, p.43‐53.
ENDLICH, Ângela Maria. Pensando os papéis e significados das pequenas cidades do Noroeste do Paraná. Presidente
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HARVEY, David. Condição pós‐moderna: Uma Pesquisa sobre as Origens da Mudança Cultural. São Paulo: Edições
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_______, David. Espaços urbanos na “Aldeia Global”: Refexões sobre a condição urbana no capitalismo no final do
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__________, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Editora Moraes Ltda, 1991.
MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: O declínio do individualismo nas sociedades pós‐modernas/ Michel
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MEDEIROS, Dhiego Antonio de, CARVALHO, Antonio Alfredo Teles de. A propósito da “Revanche” das Cidades de
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http://www.dge.uem.br/semana/eixo1/trabalho_51.pdf, acessado em 26 de abril de 2011.ROLNIK, Raquel. O
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SANTOS, Milton. O espaço dividido: os dois circuitos da economia urbana dos países desenvolvidos. Rio de Janeiro:
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239
SENNETT, Richard. O Declínio do Homem Publico: As tiranias da intimidade/ Richard Sennett; tradução Lygia Araujo
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SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental (1902). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1967
6 NOTAS
1
Aqui nos referimos a Saint Preux do romance A Nova Heloisa publicado em França em 1761.
2
Pós‐modernidade configura‐se como a mudança na sensibilidade, uma transformação cultural que rejeita a ideia
de progresso, rejeita a continuidade e a memória histórica, numa, segundo Harvey (1992), ruptura da ordem
temporal das coisas originando um peculiar tratamento do passado.
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NÚCLEO TEMÁTICO IV: Novo perfil de cidade e novos rumos em direção a uma sociedade inclusiva
O uso das tecnologias digitais no espaço: as telas urbanas
The use of digital technologies in the space: the urban screens
Lorena MELGAÇO
Mestre em Cooperação Internacional e Desenvolvimento Urbano pelo Consórcio Mundus Urbano
(Université Pierre Mendès France e a Technische Universität Darmstadt); Mestre em Arquitetura e
Urbanismo pelo NPGAU/ UFMG; Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pelo NPGAU/ UFMG;
Pesquisadora do Lagear/UFMG. Email: melgaco.lorena@gmail.com.
RESUMO
Este artigo parte de estratégias atuais de requalificação do espaço de Berlim para compreender a forma
como as chamadas telas urbanas vem se disseminando na capital alemã. Para isso, discute duas
abordagens diferentes: as ocupações temporárias dos espaços ainda não pressionados pelo mercado
imobiliário — com foco no Tempelhof Freiheit — e a requalificação de extensas áreas da cidade
impulsionadas pelo mercado imobiliário — com foco no Mediaspree — uma vez que ambas as
abordagens exploram, a partir de estratégias diferenciadas, a vocação cultural da cidade. Dado o
enfoque tecnológico de ambas as iniciativas, discute‐se a questão do uso da tecnologia digital no espaço
urbano, em especial com as chamadas telas urbanas. Elaborando a partir das discussões realizadas no
Fórum de Inovação de telas urbanas, realizado em Berlim em 2011, apresenta‐se uma análise do uso
destas telas, e em especial, a Nightscreen Gasometer — a maior tela da Europa — para assim, propor
uma avaliação crítica do uso das tecnologias digitais no espaço público brasileiro.
240
PALAVRAS‐CHAVE: tecnologias digitais, Berlim, Telas Urbanas.
ABSTRACT
This paper departs from current requalification strategies carried out by Berlin’s municipality to
understand how the so‐called urban screens are being displaced in its territory. In order to do that, it
discusses two different approaches to urban planning: temporary uses of the spaces on process of being
pressured by real state and incorporated to the land stock — focusing on Tempelhof Freiheit Park — and
the requalification of extensive areas in the city driven by market forces — such as the Mediaspree
project — once both of them explore, though differently, the cultural drive of the city. Given their
technological approach, the use of digital technology in the urban space is brought into question,
specially the so‐called urban screens. Elaborating on the discussions held during the Innovationsforum
Urbanscreens, which took place in Berlin in 2011, a preliminary analysis of the use of the screens is
presented through the study of the Nightscreen Gasometer — the biggest digital screen in Europe — to,
thereby, propose a further critical evaluation of the use of those technologies in our city: Belo Horizonte.
KEYWORDS: digital technologies, Berlin, urban screens.
1 INTRODUÇÃO
Em The rise of the creative class, Richard Florida (2002) defende a necessidade de os
planejadores urbanos pensarem em novos processos de estruturação urbana, no que chama
de ‘cidades de talentos’. Esta estruturação se baseia no conceito do uso das forças criativas
para o desenvolvimento econômico: pessoas com talentos variados nas áreas de ciência e
pesquisa, engenharia e design, administração e organização, produção cultural e mídia,
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responsáveis pela prosperidade de uma região. O autor apresenta uma gama tão variada de
profissões que estas abarcam, ao fim, trinta porcento da força de trabalho norte‐americana.
Em seu prefácio o autor anuncia
Este livro descreve a emergência de uma nova classe social. Se você é um cientista ou engenheiro, um
arquiteto ou um designer, um escritor, artista ou músico, ou se você usa a criatividade como uma fator
chave de seu trabalho em negócios, educação, saúde, direito ou qualquer outra profissão, você é um
membro1 (FLORIDA, 2002:XXVII).
Sua teoria tem sido criticada por diversos autores (MALANGA, 2004; KRÄTKE, 2010). Um dos
problemas que apresenta é o fato de que as medidas propostas beneficiam uma elite já
estabelecida pelo modelo neoliberal e cujos resultados tendem a produzir gentrificação da
região a partir da melhora socialmente seletiva das qualidades urbanas (KRÄTKE, 2010). Em
segundo lugar, tais qualidades espaciais que esta classe mundial (world class) busca não são
necessariamente semelhantes às demandas locais.
Ainda assim, este livro se tornou um bestseller nos anos 2000 e diversos urbanistas em todo o
mundo vêm adotando o seu método, transformando o espaço urbano e fornecendo a
infraestrutura necessária para atrair as pessoas que se encaixam neste padrão. São exemplos desta
abodagem Cincinatti, o estado de Iowa e Austin, nos Estados Unidos; Winnipeg no Canadá
(MALANGA, 2004) assim como Berlim, capital alemã (KRÄTKE, 2004) e objeto deste artigo.
Berlim é conhecida por práticas de resistência frente a diversas dificuldades econômicas e políticas
que a assolaram no século 20, como os movimentos de agricultura urbana no Tiergarten após a
Segunda Guerra Mundial, ou do mercado Polonês, estabelecido no Potsdamerplatz com a queda do 241
Muro de Berlim (BLUMNER, 2006). A cidade também se caracterizou por práticas cotidianas de
efervescência cultural não associadas à políticas urbanas e culturais, que também datam do início
do século 20. Estas se valeram de grandes áreas em vacância dos antigos polos industriais em
decadência e o desinteresse da indústria imobiliária durante o século passado. Uma das ocupações
espontâneas mais significativas é a região do RAW‐Tempel (GROTH e CORIJN, 2005; OSWALT,
MISSELVITZ e OVERMEYER, 2007) — entre os bairros de Friedrichshain e Kreuzberg. Esta região foi,
por muito tempo, para diversos indivíduos e grupos “um porto seguro para as subculturas e para o
‘temporário’” (GROTH e CORIJN, 2005: 512), caracterizada por bares alternativos e boates famosas,
assim como gravadoras independentes, e especialmente conhecidos no cenário de música
eletrônica. A existência destas referências locais foram carros‐chefe para a criação da marca global
de Berlim como uma metrópole cultural inovadora e selvagem (SCHARENBERG e BADER, 2009).
Embora este caráter vibrante tenha tornado a cidade um pólo de atração de imigrantes específicos
— entre eles, os artistas — Berlim não possui a mesma vocação econômica que a de Hamburgo, a
de Munique ou a de Frankfurt (KRÄTKE, 2004). De fato, configura uma das cidades mais pobres da
Alemanha com polarização sócio‐econômica crescente e declínio de população (GROTH e CORIJN,
2005). Diante da reestruturação econômica necessária, o poder público tem adotado diversas
estratégias partindo desta vocação artística para criar formas de institucionalização da cultura na
cidade. Estas incluem do incentivo institucional às ocupações temporárias (BBSR, 2008; BLUMNER,
2006) à grandes projetos de requalificação urbana — como o Mediaspree na última década e a
atualmente, a região do Schöneberg‐Sudkreuz. Todas estas estratégias buscam a reativação de
áreas abandonadas em Berlim, em diferentes escalas urbanas, mas com o objetivo final de
desenvolvimento econômico2.
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A institucionalização das ocupações temporárias de curta ou média duração visa a revitalização
de regiões da cidade não pressionadas pelo mercado imobiliário a partir da ação individual ou
coletiva. Os administradores locais vêem este tipo de ocupação como uma oportunidade para
atrair residentes e negócios para a cidade, que passa a ser percebida como um centro de
criatividade. Esta estratégia toma como partido o pressuposto apresentado por Florida da
relação entre a existência de uma atmosfera tolerante, de pessoas talentosas e da tecnologia
para a produção das cidades criativas, e conseqüentemente economicamente prósperas. Afinal,
estratégias de usos temporários bem sucedidas exibem o potencial criativo de uma capital
cultural como Berlim (BLUMNER, n.d). Esta institucionalização deve, porém, ser cautelosa. Em
Liverpool, por exemplo, cidade escolhida como a capital europeia da cultura de 2008, o
discurso de inclusão e diversidade cultural — base de todo o projeto — foi comprometido pelo
excesso de regulamentação de uso do espaço público imposto ao longo do período de
preparação. Este fato ressaltou a inconsistência entre o conceito de cultura como produto da
participação popular — explorado pelo programa como a identidade da cidade — e as políticas
que acabaram por regular excessivamente as atividades culturais no espaço público e levaram,
assim, à substituição das manifestações espontâneas pela ‘cultura oficial’ (JONES e WILKS‐
HEEG, 2008).
Sharon Zukin (1995) também questiona a mudança de foco na análise de culturas como
aspectos do dia‐a‐dia para a ideia de ‘Cultura’ como um coletivo de produtos fabricados de
acordo com as demandas de patronos que competem para criar conjunto de símbolos e ao
mesmo tempo, o espaço que os exibe. Como consequência, a Cultura — refletida em museus,
galerias e arquiteturas famosas — é vista como um motor de desenvolvimento econômico e
242
urbano e não como uma construção social que influencia e é influenciada pela produção do
espaço e pelas relações sociais de produção. E quando se conforma aos padrões da cultura de
massa, tais manifestações perdem qualquer reflexão estética da sociedade e da relação
humana com o mundo, tornando‐se, assim, inofensivas a quaisquer questões de ordem social
que devam ser tratadas, como aponta Robert Kurz (1999). Assim, passam a servir como
mantenedora do status quo e não como um agente de transformação social e ainda,
legitimando‐se com um discurso inclusivo.
O Tempelhof Freiheit, situado nas antigas instalações do aeroporto de mesmo nome, fechado
em 2008, é um importante exemplo da ação governamental para restruturação econômica.
Desde seu fechamento, a área tem sido utilizada pela população como um parque, dada a sua
extensa área livre em área central de Berlim. Como uma maneira de potencializar o uso da
região, o Departamento de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente (Senatsverwaltung für
Stadtentwicklung und Umwelt) criou o Pioneerprojekte, iniciativa na qual indivíduos e ONGs
podem propor atividades de uso temporário para o parque. Mas o plano para o Tempelhof vai
além dos usos temporários (que de fato, serão permitidos até 2016). Em 2017 o local sediará o
IGA 2017 (Internationalle Gartenausstellung, Exibição Internacional de Jardins), com o conceito
de ‘a cidade de amanhã’ e cuja expectativa de visitação alcança três milhões de visitantes3. Este
evento por sua vez, já anuncia o IGA 2020 (Internationalle Bauaustellung, Exibição
Internacional de Construção) a ser sediado também em Berlim, em 2020. Cria‐se desta forma
uma rede de mega eventos que garante o fluxo de investimentos (público e privado) e a
atração de turistas no cenário internacional por quase uma década.
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Futuramente, o Tempelhof Freiheit será incorporado novamente ao mercado imobiliário com o
desenvolvimento de mais um novo empreendimento, que como tantos outros, explora os
temas em voga no planejamento: neste caso, a mobilidade. Para isso, prevê a construção do e‐
THF – Kompetenzzentrum Elektromobilität Tempelhof ( Centro de Competência de
Eletromobilidade Tempelhof). Percebe‐se assim uma trajetória de re‐inserção desta porção de
terra no mercado imobiliário a partir da lenta institucionalização do seu uso, que culminará
com a privatização de parte de seu espaço e a consequente gentrificação da região.
Em outra frente de atuação, o projeto Mediaspree vem transformando Berlim em uma cidade
global de mídia (KRÄTKE, 2004). Fruto da negociação entre governo e grandes corporações,
Mediaspree vem requalificando grande parte da região de Kreuzberg‐Friedrichshain (fig. 01)
desde meados da década passada à revelia da população local. A estratégia de
desenvolvimento urbano que privilegiou a instalação de grandes empresas ligadas à indústria
cultural, hotéis e grandes empreendimentos habitacionais, tem causado gentrificação na
região, desmobilização de seus habitantes e descaracterização das margens do rio, que cobre
uma grande área da cidade de Berlim (GROTH e CORIJN, 2005), mesmo com a existência de
uma frente de resistência organizada e mobilizada (fig. 02) — a Mediaspree Versenken (Afundar
o Mediaspree)4.
Figuras 1 e 2: Projeto Mediaspree e convite para a participação da marcha contra o projeto, coordenado pelo Mediaspree
versenken.
243
Fonte: www.stadtentwicklung.berlin.de/planen/stadtentwicklungsplanung/en/wasserlagen/raeume/spreeufer.shtml e www.who‐
owns‐the‐world.org/wp/wp‐content/uploads/2008/04/plakat_ksg_2008.jpg
A imagem criativa e alternativa da região foi explorada pelo poder público como lema do
Mediaspree, anunciado como um projeto que valoriza as características locais determinadas
pelas sub‐culturas e o uso já instituído do espaço público. Scharenberg e Bader (2009)
apontam, porém, a prevalência do caráter econômico da iniciativa dada a escala da
intervenção, público‐alvo do projeto — gigantes da indústria cultural — e a manutenção do
interesse da indústria imobiliária. Esta abordagem privilegia o que Jessup e Sum (apud
SCHARENBERG e BADER, 2009) denominam ‘cidade empresarial’ (entrepreneurial city), na qual
a atração das indústrias criativas é vista como a solução para os problemas urbanos
contemporâneos.
A ‘cidade empresarial’ é o foco de ambas as abordagens aqui apresentadas, deixando assim,
em segundo plano, o desenvolvimento social e cultural. O conceito de cultura que parece ter
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permeado a própria formação de Berlim é transformado, e acaba por se aproximar e transitar
entre os conceitos de cultura de elite e cultura de massa, obliterando elementos cotidianos
que compõem a cultura local. O cenário de ocupação temporária e desenvolvimento
espontâneo de diversas sub‐culturas é enfraquecido ora cedendo lugar a projetos que passam
pelo crivo de curadores e processos de seleção; ora se enquadrando em políticas urbanas
associadas a grandes corporações. O uso temporário do Tempelhof atualmente promove uma
integração social e acesso irrestrito ao espaço, ainda público. Mas seu caráter temporário é
precursor da revalorização fundiária e da sua consequente privatização. Já com o Mediaspree,
a política de clusters criativos acaba por aumentar a desigualdade social, ao proporcionam
poucas (se não nenhuma) oportunidades e mudanças para residentes menos favorecidos, dado
o aumento do custo de vida das pessoas (PANOS apud van HEUR, 2009).
Por causa deste grande investimento na indústria da mídia, Berlim é atualmente um dos
destinos mais procurados pela ‘classe criativa’ (KRÄTKE, 2004). Acompanhando esta tendência,
o setor privado vem também explorando as tecnologias digitais a partir do uso de DOOH
(tecnologias digitais em ambientes de uso público, no original Digital out‐of‐home media), em
especial nas chamadas telas urbanas (Urban Screens) — displays dispostos no espaço urbano e
cujo uso prevê a exibição de conteúdos culturais. A proliferação destas telas está intimamente
relacionada com a ideia de Berlim ser uma das cidade mundiais da mídia. Se por um lado, os
displays digitais estão cada vez mais presentes no espaço público, e vem, pouco a pouco
substituindo a mídia antiga de propaganda, por outro, pouco se vê de conteúdos culturais
sendo difundidos por estes meios.
244
2 O ESPAÇO URBANO E O DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO
A relação entre o desenvolvimento tecnológico e a sua influência na produção e na fruição do
espaço urbano é tema de diversos trabalhos (GRAHAM, 2004 e MUMFORD, 1934). Ao longo do
século 20, alguns acadêmicos assumiram que o desenvolvimento das TICs (tecnologias de
informação e comunicação), das tecnologias de transporte e da cultura digital poderia significar
um colapso catastrófico para as cidades, isto é, a independência do homem do espaço público,
das infraestruturas urbanas, dos fluxos de transporte e, em última análise, inclusive do próprio
corpo (GRAHAM, 2004). Outros vislumbraram um planeta sem barreiras, como Marshall
Mcluhan (1962), que previu que o mundo se tornaria uma ‘vila global’ ou, mais recentemente,
Thomas Friedman (2005), que argumenta que o mundo tenha se tornado plano devido ao
desenvolvimento das tecnologias de comunicação e transportes.
Ambas as colocações se mostram extremas, pois somos ainda mais dependentes da
infraestrutura urbana (SASSEN, 2004) e não vivemos em um mundo sem barreiras. De fato,
Doreen Massey (2006) argumenta que o desenvolvimento das tecnologias não afeta as pessoas
de maneira uniforme e a diminuição das distâncias depende de quem a pessoa é e de onde ela
está. O acesso às tecnologias digitais também obedecem esta mesma lógica.
Contudo, existe uma mudança clara de abordagem quanto ao desenvolvimento tecnológico
nos últimos séculos, como aponta Andrew Feenberg (2010) e essa mudança é essencial para
entendermos o desenvolvimento das próprias TICs e sua relação com a produção do espaço.
Sociedades pré‐modernas se desenvolviam (e se reproduziam) de forma mais ou menos estável
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e apresentavam uma atividade técnica compatível com tal desenvolvimento. O
desenvolvimento técnico era influenciado tanto pela experiência e quanto por outros
fenômenos como religião, gênero, gosto e outros. A sociedade moderna, por outro lado,
“desenvolve uma tecnologia cada vez mais alienada da experiência cotidiana. Este é um efeito
do capitalismo que restringe o controle do design a uma classe dominante pequena e seus
servos técnicos. [...] Os novos mestres da tecnologia não estão contidos pelas lições de
experiência e mudança acelerada até o ponto onde sociedade está em um constante
redemoinho” (FEENBERG, 2010: XIX)5.
Um dos exemplos mais contundentes deste desenvolvimento acelerado e uso das tecnologias
de informação e comunicação no espaço é a Times Square, nos Estados Unidos. A praça se
tornou um cenário‐vedete que exalta o êxito do capitalismo contemporâneo ao explorar as
tecnologias digitais para criar um ambiente que estimula o consumismo e dita o estilo de vida
da classe internacional, provendo um “espaço público para a classe internacional” (public space
for the world class, NEVARÉZ, 2009:164). Este espaço é privatizado pelas grandes corporações
ali representadas e de fato não contempla espaços para a população local. Diversos níveis de
controle são estabelecidos para a manutenção do status da praça, desde estratégias de
controle direto, como sistemas complexos de vigilância privada a manutenção de estratégias
subjetivas de códigos sociais de pertencimento. Desta forma, a experiência cotidiana de que
fala Feenberg cede lugar para a prescrição do espaço. Além da interdição de diversas interações
não previstas, e por isso, não desejadas, tal estratégia pode violar direitos e a liberdade política
e social dos indivíduos — agindo como um organismo artificial que interfere com a natureza da
vida urbana e transformando os espaços em ‘máquinas gigantes de venda’ (vending machines,
245
ZUSTIEGE apud STALDER, 2011).
A abordagem presente na Times Square e o sucesso mais recente de estratégias como a
Federation Square, na Austrália, suscitam a necessidade de uma reflexão crítica — estética,
social, política, econômica e social — acerca das condições atuais de emprego das TICs no
espaço de uso público. Da maneira como acontece atualmente, tal emprego tende a reforçar as
relações de produção e a perpetuação irrefletida das contradições sociais. A discussão em
relação às telas urbanas — principal estratégia usada em ambas as praças — começa a ganhar
força na Europa nos últimos cinco anos, mas pouca discussão se vê em torno das questões
sociais a ela pertencentes.
O termo urban screens foi cunhado durante a primeira conferência sobre o assunto —
chamada “Discovering the Potential of urban Screens for Urban Society” — cujo objetivo era
explorar as oportunidades de uso cultural da infraestrutura crescente de grandes displays
digitais no espaço público. Buscava‐se afastar da ideia do uso das telas para influenciar o
comportamento de consumidores rumo a possibilidade de revitalização do espaço público e
geração de engajamento e interação das pessoas (BOUNEGRU, 2009). Em termos técnicos, a
discussão vem avançando muito nos últimos anos. Para Gernot Tscherteu e Martin Tomitch
(2011) as telas urbanas são grandes telas independentes do espaço construído, mesmo quando
acopladas às fachadas de edifícios, e por isso se comportam como uma camada
completamente diferente. Assim, diferenciam‐se das fachadas e das arquiteturas midiáticas
que são produzidas de acordo com a intenção do arquiteto durante o projeto.
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O Fórum de Inovação Urbanscreens
Em 2011, o Fórum de inovação Urbanscreens, que aconteceu em Berlim, focou na inserção e
nas potencialidades de uso destas telas nos espaços de uso público de Berlim e Brandenburgo
em cinco workshops e uma conferência final. Cada workshop teve um tema específico e reuniu
grupos diretamente envolvidos em questões relacionadas à infraestrutura, conteúdo,
tecnologia, desenvolvimento urbano e Cross‐media marketing6. Uma conferência final reuniu
os diferentes grupos para que compartilhassem as conclusões de cada workshop e criassem
conjuntamente uma estratégia para que as telas sejam de fato catalisadoras sociais. Esta
experiência despertou diversas potencialidades de uso das DOOH propiciadas pelo avanço das
tecnologias digitais. Estas vem despertando o interesse de diversos atores sociais, dentre eles
órgãos de governo, acadêmicos, artistas, produtores de hardware e software, empresas de
publicidade e seus potenciais clientes e a população. Revelou, porém, diversas contradições
sociais inerentes à inserção destas telas urbanas no espaço urbano, evidenciando a existência
de pelo menos dois grupos, aparentemente antagônicos, mas que ao fim servem ao mesmo
propósito, isto é, alimentam e fortalecem a Indústria Cultural: aqueles que romantizam o
potencial da tecnologia de produzir bens culturais e/ou de veiculá‐los — neste caso, conteúdos
relacionados principalmente às artes visuais, interativas ou não — e aqueles que exploram o
seu potencial econômico — seja na produção e manutenção da infra‐estrutura ou no seu uso
como veículo de marketing. Isto porque ambos contribuem para a proliferação da cultura de
massa que reforça o consumismo de objetos e padrões de comportamento sem uma reflexão
social mais profunda.
246
O primeiro grupo: em prol do potencial cultural das DOOH
O primeiro grupo é composto de artistas, arquitetos e produtores de conteúdos culturais que
acreditam na possibilidade de explorar o caráter cultural da tecnologia para fomentar o
desenvolvimento democrático do setor da indústria da mídia, atualmente concentrado nas
mãos de grandes corporações. Acredita‐se que o conteúdo cultural transmitido é muito mais
benéfico para a sociedade do que as mensagens tradicionalmente veiculadas nestes meios —
basicamente propaganda privada — porque, de certa forma, ela possibilita um acesso
cotidiano à cultura. Um olhar mais atento para o tema, porém, aponta o equívoco desta
perspectiva, sobretudo por duas razões: primeiro, grande parte das estratégias exploradas
atualmente propõe experiências contemplativas, reforçando o que Henri Lefebvre (1991)
denomina lógica do visual; e segundo, porque nestes casos o conceito de cultura se reduz
sistematicamente à manifestações artísticas, ignorando outras igualmente importantes no
conjunto da produção cultural de uma comunidade.
Para Vilém Flusser (1989), tal situação reflete o terceiro momento de relação do homem com a
sociedade: o funcionário pós‐industrial e seus filhos se tornam programáveis pelas imagens a
que são expostos e tem seu criticismo reduzido ao mínimo para operarem (function) de
maneira pré‐determinada e se tornarem produtores e consumidores de pontos de vista
estabelecidos por outrem. Desta maneira, acredita‐se que tecnologias digitais predispõem de
ferramentas que por si só podem solucionar diferentes problemas sociais, porque não se tem a
consciência dos processos sociais que definem a produção do espaço e de que a inserção de
tecnologia se encaixa neste mesmo cenário.
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A separação entre produção do espaço e o desenvolvimento tecnológico é fortalecida
pela difusão do chamado determinismo tecnológico que, segundo Feenberg (2010: 08),
“se apóia na suposição de que as tecnologias tem uma lógica funcional autônoma que
pode ser explicada sem referência à sociedade” e por isso ignora o poderoso impacto
social imediato. “Uma visão determinista da tecnologia é senso comum em negócios e
governo, onde se assume com frequência que o progresso técnico é uma força exógena
influenciando a sociedade ao invés de uma expressão das mudanças na cultura e nos
valores”.
Alguns autores tentam escapar desta abordagem determinista, mas ainda ignoram que os
conteúdos são criados ainda segundo a lógica das relações sociais de produção. Mirjam
Struppek (2006), figura proeminente no estudo de telas urbanas, reconhece a
necessidade de se tirar o foco na tecnologia em si e propõe uma produção de conteúdos
orientados socialmente, mas não questiona os possíveis problemas oriundos da
predeterminação que sugere. Embora não seja ditado pela tecnologia em si e sim por
uma orientação social, acaba por estabelecer o conteúdo a priori, trabalhando no mesmo
registro heterônomo de produção do espaço já estabelecido pelo capitalismo 7.
O segundo grupo: produtores de hardware e software e agentes publicitários
O segundo grupo, composto daqueles que obtêm ganho econômico direto, seja com a
produção de conteúdo ou com a instalação da infraestrutura — em resumo, a indústria
da mídia — legitima sua ação com o discurso de prover conteúdo informativo e cultural, 247
mas as telas vem sendo usadas em larga escala para estimular o consumo. Tenha como
exemplo a BusTV, recentemente instalada em ônibus de oito capitais brasileiras, entre
elas, Belo Horizonte. O conteúdo exibido inclui notícias, temas variados e também
propaganda, como se a última fosse somente mais uma atração, e não o foco principal da
instalação destes equipamentos. Ainda que Jessé Souza (2009: 50) aponte que os
indivíduos dessa indústria não representam uma elite propositadamente má, mobilizada
para manter as pessoas em um modo de vida superficial, eles ainda representam os
interesses de um grupo, e para isso, recorrem à fabricação de necessidades e de bens
simbólicos que satisfazem às demandas de seus clientes em um processo heterônomo
(MARCUSE, 1964 e SOUZA, 2009). Neste caso, os próprios canais de mídia se
transformam em bem simbólico que
valoriza[m] o espaço físico e o social ao adicionar singularidade, significado e autenticidade, e
desta forma, intensifica[m] o status das pessoas que o experimentam. Em estratégias de
marketing, arquiteturas altamente midiatizadas promovem a construção de reputação de ambas
localidades (cidades e bairros) e marcas (STALDER, 2011: 05).
Além da arquitetura midiatizada, diversos dispositivos digitais são utilizados no espaço, e
incluem sistemas visuais para postar informações em telas (notícias e informação de
transporte), troca de informação (sistemas de quiosque), propagandas (outdoors) ou para
incrementar o design arquitetônico (fachadas midiáticas) assim como servir de meio para
arte pública (usualmente denominado de telas urbanas) em diversas formas (informação
textual, imagens estáticas ou dinâmicas, luz) e de escala variável” (STALDER, 2011: 04).
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3 O USO DAS TELAS URBANAS NO ESPAÇO DE USO PÚBLICO
Como conseqüência da ação destes dois grupos, tem‐se uma naturalização da presença das
DOOH que acaba por reforçar as relações de consumo já instituídas em mídias analógicas e
estimulá‐las de forma que o valor de troca prevaleça sobre o valor de uso, no que John
Thackara (2001) chama de o dilema da inovação: equipamentos e seus aplicativos são
produzidos pelo impulso do desenvolvimento tecnológico e não das demandas sociais, e desta
forma, sua produção é ditada por aqueles que a disponibilizam8. Nesse aspecto, existe pouca
reflexão — uma escassa produção acadêmica que analise criticamente o emprego das
tecnologias digitais no espaço — e pouca mobilização pública para que a discussão seja feita
por todos os atores sociais envolvidos.
Figura 3: Estratégia de Marketing da Coca‐Cola durante o Campeonato Europeu de Futebol
248
Fonte: autora, 2012
Diversos usos podem ser atribuídos às grandes telas digitais dispostas no espaço público, como
por exemplo, transmitir informações em relação ao trânsito ou notícias, porém Ursula Stalder
(2011: 03) aponta a hegemonia da transmissão de propaganda na infraestrutura de mídia
digital já instalada no espaço urbano: “Na percepção da indústria de marketing, o principal
business case para a infraestrutura de mídia digital no espaço público se restringe à
propaganda, ou mais precisamente, em como novos canais de distribuição usam a propaganda
(conteúdo, mensagens)”. Em Berlim, por exemplo, na ocasião do Campeonato europeu de
Futebol, juntamente com um imenso outdoor da Coca‐Cola foi instalado um grande display
digital (Fig. 03). Nele pode‐se ver fotos enviadas por pessoas pela Internet torcendo,
hipoteticamente, para a Alemanha. Em meio às fotos de pessoas comuns, diversos símbolos da
Coca Cola podem ser vistos. Efetivamente, as pessoas param na rua para observar a tela e
consciente ou inconscientemente absorvem a mensagem da gigante dos refrigerantes.
Curiosamente, é difícil manter “atenção seletiva de displays”9 nessa situação. Em menor escala,
porém, telas urbanas vem sendo utilizadas para de fato transmitir conteúdos não comerciais.
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Para estes usos, pelo menos três tipos de relação entre pessoas e displays podem ser
evidenciados: visualização, participação indireta e participação direta10. A maior parcela de
usos não‐comerciais se encaixa na primeira categoria, porque a visualização não requer gastos
extra com outros sensores, como o de presença, câmeras, entre outros. A Big Screen (fig. 4)
por exemplo, localizada em uma praça de Nova Iorque, possui uma grade de exibição sem
publicidade. Um dos objetivos da Big Screen é veicular material também produzido pela
população, sendo a primeira deste tipo nos Estados Unidos.
Além disso, algumas telas apresentam conteúdo com o qual as pessoas presentes contribuem
indiretamente em alguma ação pré‐determinada. Como exemplo, tem‐se o projeto Hand from
above do artista Chris O’shea, veiculado na BBC Bigscreen de Liverpool, Reino Unido (fig. 5).
Embora usualmente estas telas se encaixem na primeira categoria, pois transmitem jogos de
futebol, notícias entre outros, Hand from above possibilitou uma nova camada de interação. A
imagem das pessoas presentes na praça era manipulada por uma mão gigante, que vinha ‘de
cima’. Embora as pessoas tenham se engajado nesta experiência, e ela tenha provocado novas
interações no espaço, Hand from above evidenciou a dificuldade de interação das pessoas com
a BBC Bigscreen, uma vez que ela é uma imensa televisão disposta a metros de altura do
observador.
Figura 4, 5 e 6: Estratégias de visualização, participação indireta e participação direta
249
Fonte: Urban Screens Association, 2010; Wooster Collective, 2010 e Culturebase.org, n.d.
A terceira forma de interação, aqui chamada de participação direta, é a mais rica de
possibilidades de interação, pois implica na troca de informações em uma forma de interação
entre pessoas e tecnologia. É importante ressaltar que hardware, software e composição
urbana devem permitir tal relação. Um exemplo não realizado potencialmente promoveria essa
relação. Rude architecture network propôs o Chat stops (Fig. 6), um projeto para evitar o medo
nos espaço público e promover a comunicação durante o período tedioso de espera de um
ônibus. Questionando a disseminação crescente das câmeras de vigilância, o grupo sugere o
seu uso para a comunicação entre pessoas em diferentes pontos de ônibus.
Pressupõe‐se, porém, que esta relação de participação direta é pouco possível nas telas urbanas de
grandes dimensões, porque neste caso, a escala humana, a relação entre os diferentes sentidos, assim
como escalas de intimidade não são favorecedoras de uma interação mais duradoura. Assim, a euforia
observada quanto ao uso das telas no espaço urbano como possibilidade de uma comunicação
ampliada devem ser analisadas com cautela. Por não contemplarem estes pontos levantados acima,
as telas urbanas ainda tendem a promover interações simples que enfraquecem o potencial dialógico
das tecnologias digitais e reforçam o desenvolvimento da tecnologia por si. Claus Pias (2005) alerta
que “interatividade se transforma em uma promessa que, ao brincar com o computador, qualquer
um pode produzir algo e então revelar sua criatividade difusa” e que, de fato, não acontece.
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Diversos outros problemas são associados à disposição de telas urbanas nos espaços públicos11,
como integração com o espaço, complexidade de conteúdo, interações sociais desejadas,
valores da comunidade local, usos especificados e potencialidades, atores envolvidos no
processo, altos custos de manutenção entre outros (HALSKOV, 2009). Desta maneira, diversos
são os exemplos de infraestruturas instaladas que apresentaram rejeição da população ou
impossibilidade de continuação de transmissão. A fachada midiática do prédio da Bayern em
Leverkusen por exemplo, com mais de cem metros quadrados de LED instalados, teve que ser
demolida após a finalização de instalação. O prejuízo da empresa não foi revelado. O uso da
fachada do edifício KPN em Rotterdam é hoje regulado por reclamações dos vizinhos (SCHIECK,
2009).
Além disso, grande parte da programação apresentada nas DOOH ainda conserva o caráter de
transmissão de informação herdado da televisão, de natureza analógica. O processo não é
repensado para explorar as novas possibilidades trazidas pelo desenvolvimento constante da
tecnologia digital — entre elas a facilidade de criar canais diversos de comunicação em tempo
presente, que variam desde linguagem oral à atuação remota. Além disso, a extensão desta
lógica unidirecional de transmissão de informação no espaço de uso público é usado como
estratégia para reforçar o papel simbólico da arquitetura. Este papel, por sua vez contribui com
a perpetuação das relações sociais vigentes — exclusivas e excludentes.
O Nightscreen Gasometer: A maior tela urbana da Europa
Instalado na região do Schöneberg‐Sudkreuz, o Nightscreen Gasometer ilustra a associação das 250
políticas de requalificação urbana adotadas pela administração local e a exploração das
tecnologias digitais no espaço urbano. O projeto prevê um complexo de escritórios e
estacionamentos, hotéis, universidade privada e, assim como o Mediaspree está sendo
desenvolvido a revelia da população local. Como contrapartida à restauração do gasômetro —
patrimônio alemão — a empresa Megaposter a.G. instalou a maior tela urbana da Europa em
um contrato temporário de uso do gasômetro, que já deveria ter sido encerrado. Embora tenha
sido anunciado pela Magaposter a.G. como um projeto excitante de mídia digital, o
Nightscreen tem sido fortemente criticado pelos Berlinenses.
Durante o Innovationsforum Urbanscreens, Gerd Henrich, diretor da empresa, afirmou que
telas urbanas são parte da experiência urbana exemplificando com a Times Square e o Picadilly
circus, em Londres como ‘imãs de turismo’, e assim, reafirmando a importância desta investida
também em Berlim. Gerrit Reitmeyer, da secretaria da região do Tempelhof‐Schöneberg,
apontou, por sua vez, a dificuldade de estratégias como estas serem aceitas pela população, e
consequentemente, a permissão de instalação das telas está cada vez mais difícil.
Contudo, Nightscreen foi instalada e ainda opera com algumas restrições, tendo sido fortemente
rejeitada não só pela população que vive nas redondezas. O maior incômodo gerado é a poluição
luminosa, que para os que moram na região, implica na oscilação luminosa dentro das residências.
Para os outros habitantes, a tela causa grande impacto sobre os motoristas, por poder ser vista a
uma distância muito grande. Alexander Ziemann, coordenador da iniciativa civil bi‐gasometer12,
afirma que grande parte do conteúdo é composto de propagandas e auto‐promoção da própria
empresa. Segundo ele “toda a área parece mais clara, mais barata, e mais como um parque de
diversões, e isso é sempre negativo” (Fig. 07).
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Figura 7: Paródia da Nightscreen, na qual está escrito que ‘publicidade torna burro’
Fonte: Glockner’s Manifest, 2009
Mesmo que tenha sido ocasionalmente usada para transmitir conteúdos culturais, como
durante os eventos Media Facade Festival em 2008 e 2010, Nightscreen Gasometer reforça o
alto custo das estratégias que usam DOOH no espaço público. Em primeiro lugar, existe o
custo financeiro de instalação e manutenção. Mas sobretudo, existe um desgaste social com
a instalação das telas urbanas, seja pela poluição luminosa, seja pelo conteúdo exposto, seja
251
pela valorização artificial da região. Estes custos combinados são muito altos para a
qualidade de interação que estas tecnologias geralmente promovem: efêmeras e com pouca
(ou nenhuma) reflexão social. Desta maneira, assim como grande parte das telas urbanas
instaladas nas cidades, o Nightscreen não promove o ambiente propício para o exercício da
cidadania no ambiente urbano. Ele pode ser visto à distância, permitindo que a região seja
reconhecida de longe, mas não promove uma identidade local. Do ponto de vista urbano, o
Nightscreen não contribui com a melhora das qualidades do espaço, evidenciando o objetivo
principal desta iniciativa: o lucro. Desta forma, a Berlim – cidade mundial da mídia — pouco a
pouco se afasta daquela outra Berlim que inspirou a sua mudança.
4 O USO DAS TELAS URBANAS NO CONTEXTO BELO‐HORIZONTINO
A avaliação da realidade de Berlim não pode ser simplesmente transposta ao cenário
brasileiro. Ela aponta, porém, para a necessidade de uma análise crítica no Brasil, onde a
aplicação de DOOH vêm crescendo rapidamente nos espaços de uso público e poucos
estudos a respeito estão sendo realizados. Esta estratégia é vista pelas classes média e alta
como um passo necessário para a sua aproximação das condições de vida apreciadas nos
países desenvolvidos, onde o nível de tecnologização é bem mais avançado. Em um país onde
as pessoas analisam a qualidade de vida pelo PIB (SOUZA, 2009), a inserção de dispositivos
que refletem um aparente crescimento econômico e remetem à ideia de progresso para as
classes dominantes reforça as relações sociais de produção e acaba por contribuir com o
agravamento dos problemas socioeconômicos e culturais e a desigualdade social.
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Em uma primeira análise do uso das telas urbanas no Brasil, percebe‐se uma reprodução da lógica
formal internacional sem uma reflexão social do contexto específico, que implica no uso de novos
meios para a disseminação da cultura de massa. Tal abordagem contribui para o processo de
alienação das pessoas quanto ao uso político do espaço público, dado que grande parte da nossa
população ainda prescinde do capital cultural necessário para questionar criticamente a produção e
difusão da cultura de massa. E, como aponta Souza (2009:39) “[...]toda a nossa orientação na vida e
toda justificação de nossas ações e comportamentos dependem de ‘ideias’ contingentes e fortuitas,
formuladas por outros, e que comandam nossas decisões e julgamentos tanto mais quanto menos
temos consciência delas”. Desta maneira, a partir da pesquisa realizada em Berlim, surgem perguntas
importantes que devem ser contextualizadas e podem oferecer indicativos preciosos para o estudo
das telas urbanas em Belo Horizonte, cidade onde o número de displays digitais vem aumentando
consideravelmente nos últimos anos.
5 CONCLUSÃO
Desta forma, quatro constatações preliminares podem auxiliar nesta pesquisa. Em primeiro lugar,
mesmo com o desenvolvimento crescente das tecnologias digitais, grande parte dos dispositivos
ainda enfoca na visualização de informação, especialmente para estimular o consumo, mesmo que a
tecnologia já tenha avançado suficientemente para promover um engajamento corporal não
associado ao mercado. Em segundo lugar, quando utilizadas em um contexto interativo, que
pressupõe uma comunicação ampliada, as interfaces desenvolvidas refletem uma fetichização da
tecnologia que não questiona a produção do espaço; promovem, assim, interações simples e 252
efêmeras, incapazes de fomentar questionamentos sociais. De fato, muitas vezes se tornam meio para
a manutenção do campo da arquitetura a partir a produção de símbolos — arquiteturas
extraordinárias, como a Times Square. Em terceiro lugar, a disseminação acrítica da tecnologia
alimenta o mito de que o seu emprego é alheio à nossa vontade, e que contra isso nada pode ser
feito, tanto na sua produção quanto no seu consumo. Este mito encontra eco nos meios institucionais
da sociedade, que não sabem como lidar com o crescente número de telas no espaço urbano.
Finalmente, como a disseminação da tecnologia no espaço urbano está se acelerando no Brasil, deve‐
se adotar uma postura crítica que questione a atuação das corporações de mídia nas cidades
brasileiras e seu papel na Indústria Cultural.
6 AGRADECIMENTOS
Este artigo é resultante da pesquisa de mestrado “Technospaces; Strategies of Urban Reconfiguration
using Information and Communication Technologies in Berlin” pela Université Pierre Mendès France e
orientada pela Prof. Dra. Lauren Andrés. É também base para o desenvolvimento do projeto de
pesquisa de Doutorado em andamento na Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas
Gerais e orientada pela Prof. Dra. Ana Paula Baltazar dos Santos. Além das professoras acima citadas,
agradeço também a Prof. Dra. Katharine Willis pelas contribuições ao trabalho e consequentemente a
este artigo.
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8 NOTAS
1
Tradução da autora. No original: This book describes the emergence of a social class, If you are a scientist or
engineer, an architect or designer, a writer, artist or musician, or if you use your creativity as a key factor in your
work in business, education, health care, law or some other profession, you are a member.
2
A cada dia, cinquenta hectares de terras devolutas são inventoriadas na Alemanha (BLUMNER, 2006)
3
http://www.tempelhoferfreiheit.de/ueber‐die‐tempelhofer‐freiheit/parklandschaft/iga‐2017/
4
As informações podem ser acessadas no site do grupo: http://www.ms‐versenken.org/
5
No original: the modern world develops a technology increasingly alienated from everyday experience. This is an
effect of capitalism that restricts control of design to a small dominant class and its technical servants. [...] The new
masters of technology are not restrained by the lessons of experience and accelerate change to a point where
society is in constant turmoil.
6
Estratégias multidisciplinares para comercialização e difusão das telas urbanas.
7
Embora seja importante mencionar que durante o simpósio Remediating Urban Space, no qual estava presente,
Struppek mencionou a sua descrença no potencial social das telas urbanas quando se leva em consideração todo o
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custo involvido e os benefícios decorrentes de seu emprego.
8
Este argumento está sendo desenvolvido em pesquisas do Lagear que tem como enfoque o desenvolvimento das
tecnologias digitais e seu potencial de transformação social. BALTAZAR DOS SANTOS, A. P.; et. al. Towards socially
engaging and transformative urban interactive interfaces (no prelo). In: ARTECH 2012 ‐ 6th International Conference
on Digital Arts, 2012, Algarve. Algarve: Universidade do Algarve, 2012.
9
A atenção seletiva de displays (display blindness) é semelhante à atenção seletiva aos banners que aparecem nos
navegadores de Internet. Como tem‐se a expectativa de o conteúdo ser desinteressante, ignora‐se o display.
(MÜLLER et al 2009).
10
Estas três categorias preliminares foram estabelecidas juntamente com Susa Pop na ocasião da preparação do
Innovationsforum Urbanscreens, em Berlim em 2011.
11
A maior parte dos estudos tem como enfoque experiências europeias e norte‐americanas, uma vez que não só a
instalação é mais frequente como também os estudos nestes lugares são mais constantes.
12
As atividades da iniciativa podem ser encontradas em http://www.bi‐gasometer.de/. As informações foram
adquiridas com o Sr. Ziemann em entrevista realizada em 2011 para a dissertação de mestrado da autora.
255
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NÚCLEO TEMÁTICO IV: Novo perfil de cidade e novos rumos em direção a uma sociedade inclusiva
Quando Rousseau visitou Alphaville: status, desigualdade e
uma certa ideia de comunidade
When Rousseau visited Alphaville: status, inequality and a certain idea of community
Lucas Veloso de MENEZES
Mestre em Arquitetura e Urbanismo pelo NPGAU/ UFMG; Doutorando em Arquitetura e Urbanismo pelo
NPGAU/ UFMG. lucasveloso@uol.com.br.
RESUMO
Este artigo propõe reflexão sobre a opção das pessoas em residir em condomínios. Partindo da análise
de questões ligadas à ideia de status, distinção e vida em comunidade, analisa os novos modelos de
condomínios fechados no Brasil e, em especial os Condomínios Alphaville de São Paulo e de Belo
Horizonte. Utiliza elementos de análise da organização espacial dos condomínios, da solução formal das
casas e mesmo dos chamados sinais exteriores de riqueza, especialmente dos automóveis, para a
instalação de uma “comunidade” voluntariamente segregada.
PALAVRAS‐CHAVE: Status, Condomínio, subúrbio, segregação, comunidade
ABSTRACT
This paper proposes a reflection on one of the issues surrounding the choice of people living in
condominium. Based on the analysis of issues related to the idea of status, distinction and community 256
life, discusses the new models of Gated Communities in Brazil and in particular the charges Alphaville São
Paulo and Belo Horizonte. Uses elements of analysis of the spatial organization of the condominiums, the
formal solution of houses and even the so‐called external signs of wealth, especially through the cars, the
installation of a "community" voluntarily segregated.
KEYWORDS: Status, condominium, suburbs, segregation, community
1 INTRODUÇÃO
Mas a filosofia hoje me auxilia
A viver indiferente assim
Nesta prontidão sem fim
Vou fingindo que sou rico
Pra ninguém zombar de mim
Não me incomodo que você me diga
Que a sociedade é minha inimiga
Pois cantando neste mundo
Vivo escravo do meu samba, muito embora vagabundo
Quanto a você da aristocracia
Que tem dinheiro, mas não compra alegria
Há de viver eternamente sendo escrava dessa gente
Que cultiva hipocrisia
Noel Rosa ‐ Filosofia1
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Seres humanos são animais sociais. Vivem, trabalham e convivem em grupos ou comunidades,
que criam características chaves e até mesmo regras para sua eficiência, produtividade e
sobrevivência, entre as quais se incluem lealdade, cooperação, identificação, sanções por
eventual não cooperação e preferências. Entretanto, um ser humano tem e necessita de
individualidades que, especialmente nas sociedades modernas, podem fazê‐lo membro de
múltiplos grupos sociais, numa rede social humana vasta e complexa. Estes grupos demandam
a criação de uma estrutura hierarquizada. Matsumoto (2007, p.414) enfatiza que as sociedades
ou grupos altamente hierarquizados — e, em geral, baixos em igualitarismo — tendem a
enfatizar o poder e diferenças de status entre seus membros, enquanto as sociedades ou
grupos com baixa hierarquização — e, em geral, de alto igualitarismo — por sua vez, tendem a
minimizar algumas diferenças e a distribuir recursos de forma mais equilibrada.
Enquanto “ente” social, o ser humano, vive uma dicotomia que é a necessidade de viver em
um grupo — ou comunidade, onde que procura o equilíbrio e paridade entre seus membros,
ao mesmo tempo em que busca uma afirmação de sua própria individualidade. Neste
aspecto, procura afirmar a sua unicidade por meio de atos e, principalmente, símbolos que
devem ser manifestadamente exteriorizados. Lembra Tocqueville (1868, p. 223) que, em
sociedades onde há maior desigualdade, as disparidades individuais não atraem pouca — e
até nenhuma — atenção, enquanto naquelas em que predomina o igualitarismo e equilíbrio,
a menor variação ou diferenciação é percebida. Assim, membros de grupos sociais ao
mesmo tempo em que procuram a unidade, o equilíbrio e a igualdade do conjunto,
individualmente, buscam sua diferenciação que, num contrassenso, produz desigualdades.
257
Sobre as desigualdades entre seres humanos, Rousseau (1755, p.1) distingue‐as como de
dois tipos: física e social. Enquanto o desequilíbrio físico tem sua origem em fatores naturais
— idade, saúde, deficiências, inteligência — o desequilíbrio social ou político consiste em
privilégios de alguns homens em detrimento de outros, como ser mais rico ou mais
poderoso.
Uma posição social hierarquicamente superior ou favorável numa sociedade denomina‐se,
em geral, como status2. A obtenção de status se tornou, ao longo do tempo, de extrema
importância para algumas pessoas que, lembra Tiedens (2000, p.560), despendem grande
parte de seu tempo e energia para atender às expectativas de sua posição hierárquica —
esperadas e auto impostas — e para subir para uma posição mais elevada ou para evitar ser
demovido para posições inferiores.
Nesta busca por diferenciação, a exteriorização é elemento chave na tentativa de obtenção
de um reconhecimento, preferencialmente entre seus pares, de uma distinção pessoal.
Nesta “jornada”, procuram‐se símbolos que identifiquem, no senso comum, de forma clara
uma diferenciação ou novo nível hierárquico de seu detentor.
O filósofo e aristocrata francês La Rochefoucauld (1613‐1680), que viveu durante grande
parte de sua vida sob o reinado de Luis XIV (reinou entre 1643 e 1715) — um regime em que
se estabeleceram alguns dos parâmetros de luxo e de valorizações pessoais exacerbados —
tinha uma visão crítica sobre a sociedade, escrevendo que “o mundo recompensa com mais
frequência os sinais de mérito do que o próprio mérito” (LA ROCHEFOUCAULD, 1982 [1665],
p.58).
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Dentre os símbolos, adquirem maior significância, aqueles que, embora de primeira
necessidade, e de uso comum, possam ser “impregnados” de elementos ou características que
o distinguem dos demais. Entre estes símbolos comuns que, invariavelmente são
magnificados, está a residência. Um casebre, um barraco de favela e um palácio têm a mesma
função precípua, a de abrigo, entretanto, sua forma, dimensão e acabamento estabelecerão a
“posição” hierárquica ou status de seu detentor e principalmente como fator de estima e
realização, conforme lembra Veblen (1994, 1994, p.20)3 :
Então, assim que a posse do imóvel se torna a base popular da estima, por isso, se torna também um
requisito para o tipo de complacência que chamamos de autorrespeito. Em uma comunidade qualquer
onde os bens são possuídos separadamente, é necessário, para sua própria paz de espírito, que um
indivíduo tenha a posse de quantidade maior de bens que os outros com quem ele está acostumado a se
agrupar e é extremamente gratificante possuir algo mais do que outros. Mas tão rápido como uma pessoa
faz novas aquisições, e se habitua ao novo padrão resultante da riqueza, o novo padrão imediatamente
deixa de proporcionar maior satisfação do que, no início, este padrão trazia. A tendência, em qualquer
caso, está constantemente a fazer do atual padrão pecuniário o ponto de partida para um novo aumento
da riqueza, e este, por sua vez, dará origem a um novo padrão de suficiência e uma nova classificação da
própria riqueza, em comparação com a de seus vizinhos. No que se refere a presente questão, o fim
pretendido pelo acúmulo é a classificação elevada em comparação com o resto da comunidade, sob
aspecto de força pecuniária.
As Figuras 01, 02, 03 e 04 enfatizam algumas das questões levantadas por Veblen,
especialmente naquelas relacionadas ao destaque na comparação com sua comunidade que o
proprietário desta edificação pretenderia.
Figura 01 – “Castelo” no Condomínio Residencial Tamboré 1 — parte do Figura 02 – Réplica da estátua da Liberdade ‐
258
complexo de condomínios de Alphaville — Barueri, próximo a São “Castelo” no Condomínio Residencial Tamboré 1
Paulo.
Fonte: FOTO DO AUTOR, 2009. Fonte: FOTO DO AUTOR, 2009.
Figura 03 – Condomínio Alphaville, Lagoa dos Ingleses Figura 04 – Vênus de Milo, Alphaville
A utilização de réplicas de obras famosas é uma recorrência em São Paulo e Belo Horizonte. Nos dois casos as réplicas são
colocadas em destaque junto à entrada principal da casa. Ao visitante já se demonstra de início a distinção e “cultura” de seu
anfitrião. Observa‐se que, embora estas obras sejam colocadas junto à entrada, sua colocação em uma lateral poderia ser
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interpretada como a relativização de sua importância, pois elas são parte de um bem ainda mais importante: a casa. Embora
haja, nos dois exemplos, uma tentativa de fidelidade ao original, ambas “traem” o original, na “Liberdade Paulistana” as
dimensões e proporções estão bastante diferentes de sua original, enquanto na “Vênus Belorizontina” além das dimensões, a
estátua “perdeu” a parte inferior das pernas e manto.
Fonte: FOTO DO AUTOR, 2007. Fonte: FOTO DO AUTOR, 2007.
Sobre os incentivos à aquisição e acumulação de bens, complementa ainda Veblen (1994, p.21):
O que acaba de ser dito não deve ser tomado no sentido de que não existam outros incentivos para a aquisição
e acumulação do que este desejo de se exceder em níveis pecuniários e assim conquistar a estima e a inveja dos
pares. O desejo de acrescentar conforto e segurança está presente e é a motivação em cada etapa do processo
de acumulação em uma comunidade industrial moderna, embora o nível de necessidades, nestes aspectos seja,
por sua vez, enormemente afetado pelo hábito da emulação pecuniária. Em grande extensão, esta emulação 259
molda os métodos e seleciona os objetos de gastos no conforto e digno sustento pessoal.
Esta postura acumulativa, ao mesmo tempo em que molda atos e decisões individuais, em última
instância, cria “comunidades” que não têm a conotação de convencional de parceria e cooperação,
desgastando e tornando vulnerável o senso comum e os elos que conformariam uma comunidade.
Tönnies (2005, p.18) considera que este ato está de tal forma desgastado que o verdadeiro laço se
resume à família em seu núcleo familiar mais íntimo, produzindo, na comunidade, o que qualifica
como “[...] uma guerra com irrestrita liberdade de todos para destruírem e subjugarem uns aos
outros, ou estarem cientes da possibilidade de maior vantagem, para concluírem acordos e
fomentar novos laços”.
Esta “guerra” mencionada por Tönnies, que poderia determinar a deterioração de uma
comunidade, em certo contrassenso, acaba por reforçá‐la, pois será importante individualmente,
visto que resulta em repetição — ainda que em processos de exacerbação — de símbolos de status,
propiciando um sentimento de pertencimento. Mas, lembra Moura (2003) este pertencimento não
significa uma efetiva participação:
É claro que toda região moral tem seus limites de pertencimento, e é possível estar lá sem participar. No caso
dos locais habitados e frequentados por membros das camadas médias urbanas brasileiras, vemos que o contato
com pessoas que ocupam lugares diferenciados em nossa escala hierárquica tem sido, historicamente, bastante
intenso, ainda que governado por regras de conduta específicas (MOURA, 2003, p.43).
Será esta busca por pertencimento que, ao mesmo tempo, procura uma clarificação de sua
distinção e status nesta comunidade, regerá as relações interpessoais nos condomínios fechados
brasileiros. E esta designação “condomínio fechado” torna‐se, com o passar dos tempos, cada vez
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mais adequada. São “comunidades” que cada vez mais dispõem de dispositivos de segurança como
muros, acesso restrito a estranhos, sistemas privados de vigilância, câmeras, etc., fechando‐se,
paulatinamente, a relações ou conexões urbanas ou selecionando‐as. Por outro lado, este
fechamento do Condomínio às relações urbanas mais diretas, reproduz‐se nas relações internas
entre os condôminos. As casas são isoladas, os afastamentos frontais das residências estão maiores.
No Condomínio Alphaville Lagoa dos Ingleses, por exemplo, a legislação interna exige um recuo
frontal mínimo de 5 metros; não existe passeio, os moradores utilizam‐se inclusive artifícios
para evitar a circulação de pedestres defronte a sua residência (FIG. 05); a entrada de veículos
é dominante na fachada e a entrada social da casa é relegada a “papel” secundário, quando,
como em muitos casos, é feita através do acesso de veículos (FIG. 06).
Figura 05 – Alphaville, São Paulo — Residencial 9. O uso Figura 06 ‐ Alphaville, São Paulo — Residencial 9. Na fachada
de cercas vivas dificulta, e tenta impedir, o transito de principal existe apenas acesso para veículos. A entrada social
pedestres. está localizada no fundo, à direita.
260
Fonte: FOTO DO AUTOR, 2009. Fonte: FOTO DO AUTOR, 2009.
Os condomínios fechados brasileiros, paulatinamente tornam‐se o que se poderia qualificar de
uma maneira como anti‐comunidades. Entretanto, embora percam, em sua essência, alguns
dos parâmetros que, historicamente, ocorriam na criação de comunidades, mantém outros,
especialmente aqueles ligados à reunião de semelhantes, para a aquisição ou confirmação de
status. Neste aspecto, os condomínios se tornam, para seus moradores, um parâmetro que é,
simultaneamente, uma inequívoca confirmação de status e ascensão social e a materialização
de uma sociedade ideal, ou seja, uma utopia.
2 SUBÚRBIO: A SEGREGAÇÃO COMO SINÔNIMO
O subúrbio, em sua origem, tinha uma conotação de privilégio, um refúgio do caos
urbano no campo, destinado a poucos e associado a privilégios. O oficial romano, quando
construía sua casa suburbana introduzia, no campo, várias comodidades da via urbana,
procurava agregar a isto um sinal inequívoco de sua distinção.
Morar em subúrbio, ao longo da história, assumiu duas conotações diferentes que eram
ao mesmo tempo divergentes e convergentes. Divergentes quanto ao extrato social —
nobre versus pobre — e convergentes, ambas as situações sociais têm princípios
segregadores.
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A casa no subúrbio percorreu uma trajetória que a levou a significações que iam da
nobreza à população com menor poder aquisitivo. O caráter de enobrecedor ou de
“excluído” era dado pelo extrato social que a utilizava, a aparência da casa, sua
vizinhança — ou ausência —, os símbolos da sociedade. Este percurso foi
frequentemente marcado por um caráter segregador. Tal processo poderia ser de auto
segregação, quando os aristocratas queriam isolar‐se e mostrar sua distinção em relação
a seus pares ou, em sua contrapartida, o subúrbio era visto como um local distante da
região central da cidade, para onde deveriam ser deslocadas a população com menor
poder aquisitivo, a mão‐de‐obra menos qualificada e as camadas sociais consideradas
párias, ou seja, uma segregação imposta pelas classes detentoras do poder na sociedade.
Numa fase inicial estabeleceram‐se os parâmetros das primeiras habitações em subúrbio — a
Villa Suburbana romana, na qual altos dignitários romanos construíam, em regiões próximas a
cidades romanas, residências no campo com todo conforto de uma habitação urbana — onde
predominava o princípio da nobreza e distinção correlacionados à posse desta villa e da auto
segregação. Na idade média — período no qual se estabeleceu e consolidou a conotação de
subúrbio como o local fora das muralhas — reforçou‐se o entendimento de subúrbio como
local das classes da base da pirâmide social e, complementarmente, símbolo de sua segregação
do restante da cidade e de sua sociedade.
Estabelecidos estes parâmetros, nos séculos seguintes, a visão do subúrbio iria se alternar
entre o seu enfoque como local de enobrecimento de seus moradores ou de marginalidade
social. O enfoque seria de vinculação enobrecedora no Renascimento, com a retomada das 261
construções de villas — inicialmente na Itália e, posteriormente, na Inglaterra — na qual
apenas as pessoas com maior poder aquisitivo poderiam morar nestes locais, pois dependiam
de meios de transporte privado para deslocar‐se. Em geral, estas habitações estavam situadas
em pontos isolados, um pouco afastadas do núcleo urbano. Sua contraparte era o local de
destinação das populações de menor poder aquisitivo, como ocorreu em Paris durante as
reformas de Haussmann (1852‐1870). Comumente, tendiam a se localizar próximos às cidades,
em suas franjas. Podia haver predomínio de uma ou de outra tendência ou mesmo
simultâneas: enquanto na Paris Haussmanina parte da população foi removida para os
subúrbios, nos Estados Unidos construía‐se o subúrbio de classe‐média alta de Riverside
(1863)4.
3 A ASCENSÃO SOCIAL E SEUS SÍMBOLOS
Símbolos de uma ascensão social estão, em geral, correlacionados a bens domésticos,
iniciando‐se na construção da residência e chegando aos utensílios de uso diário e, a partir do
século XX, ao automóvel.
O que torna um objeto um artigo de luxo e que, ao detentor de sua posse possa ser associada
uma ideia de distinção? Goody (2006, p.344) relata que suas raízes podem ser encontradas na
França, por volta do ano 1700, quando o Rei Luis XIV insistia que os nobres passassem a morar
em Versalhes. Impõe‐se, nesta corte, o hábito de mudanças periódicas da moda de vestuário.
Quando a seda se torna uma referência da moda, sua importação se torna restrita à nobreza. A
posse e uso deste tipo de tecido conferiam, a seu usuário, imediata conotação nobiliárquica.
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Os objetos, mesmo os de uso diário, como vestuário, passam a adquirir conotações
subjetivas: distinção e exclusividade. A legitimação e a transformação destes objetos é
um processo cultural que, lembra Bourdieu (1984, p.99), é um caso particular de
competição entre bens raros e práticas. Por outro lado, em sua relação com estes objetos
de desejo, lembra Gombrich (2000, p.245), o ser humano é mais maleável em questões
de gosto do que gostaria de admitir.
A residência, ao longo da história, esteve suscetível a modificações e influências
decorrentes de gostos e de símbolos. Freyre (2002, p.903) lembra que, “depois da
chegada do Príncipe Regente, foi a casa urbana, o sobrado burguês, que sofreu a
europeização mais rápida e nem sempre no melhor sentido”. Complementando a
respeito da casa suburbana, em geral sítios, que esta europeização foi mais lenta. As
modificações nas residências tendem, inicialmente, a ocorrer primeiro na fachada, que é,
no contexto da busca de significação e de um status, uma exteriorização do poder ou
status de seu proprietário. Lembra Holston:
Com uma divisão seletivamente porosa, assim, a fachada constitui uma zona liminar de troca entre
domínios que separa. Não apenas serve à necessidade de se fixar limites, mas também estimula nosso
fascínio pela liminaridade, uma vez que seus lugares de passagem são, em geral, destinados a atrair a
atenção do público. As aberturas se fazem ressaltar por meio de ornamentos como vigas trabalhadas,
entablamentos, esquadrias e balaustradas; pelas placas dos lugares comerciais e outros emblemas que
proclamem o status da família para o público. Como uma zona liminar, a fachada das ruas é, de um lado, a
parede exterior do domínio privado e, de outro, a parede interior do âmbito público. (HOLSTON, 1993,
p.125)
262
Assim como a residência, o automóvel sempre foi ligado à ideia de ascensão social (FIG. 07).
Sheller e Urry (2004, p. 203) afirmam que é o item de maior importância para consumo
individual depois da casa. A este item, uma série de valores é associada, como velocidade,
segurança, desejo sexual (FIG. 08), carreira de sucesso (FIG. 09), liberdade, família, gerando um
caráter específico e sensação de dominação, masculinidade (FIG. 10) e poder (FREUND;
MARTIN, 1993, p.38).
Figura 07 – Propaganda do Cadillac LaSalle, 1929, a Figura 08 – Propaganda do Chevrolet Chevelle 1966: “Não é
propaganda associa sucesso e sofisticação a um automóvel. extravagante, importado ou engorda (SIC), mas um homem
como você vai gostar dele” para completar no final do
texto: “para levá‐lo diretamente ao ponto”.
Fonte: VINTAGE ADVERTISING (1), 2009 Fonte: VINTAGE ADVERTISING (2), 2009
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Figura 09 – Propaganda do DeSoto, década de Figura 10 – Propaganda do Oldsmobile Toronado, final da década de
1930. Seu “garoto‐propaganda” é o ator de 1960. Este carro competia em uma categoria do mercado
filmes de ação Tyrone Power, um dos mais automobilístico norte‐americano conhecido como Muscle cars —
populares e de maior sucesso na época. automóveis esportivos, motores de grande cilindrada e potência e com
aspecto agressivo — a propaganda procura o público específico: “Um
rude individualista encontra um rude individualista”
Fonte: VINTAGE ADVERTISING (4), 2009 Fonte: VINTAGE ADVERTISING (3), 2009
263
Desde a chegada dos primeiros automóveis no Brasil o ato de possuir um veículo estava ligado
a um símbolo de status. Numa primeira etapa havia o fato de ser um objeto importado e caro.
A implantação da indústria automobilística no Brasil, a partir da década de 1950, permitiu que
uma parte da classe‐média tivesse acesso à sua compra. Entretanto, apenas a partir da década
de 1990, com a redução da inflação e maiores prazos para financiamento, ampliou‐se um
pouco mais a possibilidade de compra de um carro por uma faixa maior da classe média. Ainda
hoje, o acesso a um veículo, especialmente um veículo novo, ainda está bastante restrito.
Considerando‐se, por exemplo, o preço de um veículo popular, como o Fiat Uno Mille, que, em
junho de 2012 custa cerca de R$ 23.000,00, equivalia a quase 37 vezes o valor do salário
mínimo5.
Mas, não é em carros populares que se fixa um morador de condomínio. A busca é por marcas
que, aos olhos de seus pares, aliam, de maneira imediata, status, prestígio e riqueza a seu
proprietário. Mercedes‐Benz, BMW, Jaguar e outras, em geral importadas, são os “objetos de
desejo”. Estas marcas, tradicionais símbolos de status, adquiriram um novo concorrente, em
uma faixa distinta em relação às tradicionais marcas de status: as SUV (Sport Utility Vehicle).
Estas foram, ao longo da década de 1990 até meados dos anos 2000, o grande sucesso de
vendas na indústria automobilística norte‐americana. São grandes automóveis, com motores
muito potentes e estilo agressivo. As SUV tornaram‐se o segmento de mercado de mais rápido
crescimento na história da indústria automobilística. Para seus proprietários passam uma
imagem de segurança e fácil manuseio e, em más condições meteorológicas, ofereceriam
menores riscos que os tradicionais carros de passageiros. Inicialmente destinado à família,
torna‐se paulatinamente, um veículo mais luxuoso e denotador de status.
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A SUV Cadillac Escalade (FIG. 11), por exemplo, tem custo que pode chegar, dependendo
do modelo, a U$ 85.000 6, aliando luxo a um veículo concebido, inicialmente, como
utilitário familiar. Este carro conseguiu um sucesso junto à classe média norte‐americana
— e, atualmente, é um fenômeno similar no Brasil (FIG. 12) — por aliar luxo, conforto e
status a uma clara demonstração de poder — associada à sua forma e dimensões. Estes
veículos, mais altos que os demais, têm uma carroceria com aspecto agressivo. É a
materialização automotiva dos princípios de poder, status e diferenciação abordados por
Matsumoto (2007).
Figura 11 – Propaganda Cadillac Escalade 2009. Figura 12 – Alphaville São Paulo, Residencial 9, SUV.
Fonte: CADILLAC, 2009. Fonte: FOTO DO AUTOR, 2009.
264
Uma morfologia para a distinção
A análise do processo de ocupação de Alphaville Lagoa dos Ingleses apresenta vários dos
estereótipos observados em outros condomínios brasileiros e nos subúrbios norte‐
americanos, especialmente aqueles que são vinculados à ideia de status social,
simbolicamente expresso em componentes de paisagem, arquitetura das edificações,
artefatos, mobiliário urbano e utilitário, ornamentos, enfim, dos elementos gerais de
utilização cotidiana do espaço condominial. A busca por distinção mostra‐se presente em
vários aspectos morfológicos do condomínio em análise, conforme observado e relatado
em relação aos ornamentos, na seção introdutória neste capítulo (Figuras 01, 02, 03 e
04)
Nas páginas que se seguem, é realizada uma análise sistemática da morfologia do condomínio
sob a perspectiva dos significados que conferem distinção e segregação, destacando‐se nas
evidências apresentadas, constatações em relação a dois elementos‐chave: de um lado, aos
padrões urbanos (aqui detalhados, entre outros aspectos, no que diz respeito à conformação
dos arruamentos, ao controle de acesso a moradores e visitantes, ao isolamento e cercamento
de áreas por muros, ao afastamento das unidades residenciais, a existência ou não de calçadas,
a destinação de uso do espaço condominial) e, de outro lado, aos padrões arquitetônicos
(observando‐se, nesse caso, o dimensionamento das casas; conformação das áreas destinadas
a garagens, acessos de pedestres e lazer).
Inicialmente, constata‐se a existência de padrões arruamentos sem conexão ou continuidade, com a
malha viária externa (FIG. 13, 14, 15) em Alphaville Lagoa dos Ingleses.
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Figura 13 – Alphaville, Lagoa dos Ingleses, sistema Figura 14 – Vista do desnível entre o residencial 3 e a
viário sem conexão. Na imagem observa‐se as vias avenida Wimbledon e também entre o residencial 1 e a
internas do Residencial 1 (1), a avenida Wimbledon mesma avenida. Em razão desta altura eventual via de
que faz o acesso ao Condomínio Península dos ligação teria declividade acima do permitido pela
Pássaros (2) e Residência 3 (3). legislação urbana.
Fonte: FOTO DO AUTOR, 2008. Fonte: FOTO DO AUTOR, 2008.
Na organização do sistema viário (FIG. 15), foi criado um sistema de ilhas, isto é, cada
residencial (itens 1 a 5) é provido de um único acesso, controlado por portaria. No
entorno do condomínio foram construídas avenidas (7 e 8) com duas faixas de rolagem
em cada sentido, com largura que permitiria, em caso de necessidade ou expansão, a
extensão para uma terceira faixa. Desta forma, a necessidade de interconexão entre os
residenciais torna‐se desnecessária, além de tornar difícil a argumentação para a
remoção dos muros para a ligação entre os sistemas viários dos residenciais. Por outro 265
lado, a existência de lotes, no que poderia constituir‐se a passagem de uma conexão,
dificulta tal implementação, como os trechos assinalados na Figura 15 e também na
Figura 13. Poder‐se‐ia argumentar que em alguns trechos como os dos residenciais 2 e 4
em sua porção superior poderia ser criada uma conexão. Entretanto, neste local localiza‐
se a BR‐040 (9) – no trecho de ligação Belo Horizonte‐Ouro Preto, e para a ligação segura
o empreendedor criou um trevo (não visualizado nesta planta) e uma passagem
subterrânea (11), tipo trincheira. Quando se observa os desníveis entre a pista de
rolagem das avenidas externas e os residenciais (FIG. 292), constata‐se a impossibilidade
de abertura de vias de conexão. Utilizando‐se a altura do muro externo, cerca de 2,80 m,
pode‐se estimar os desníveis que, em h1, o desnível seria de pouco mais de 4 metros,
enquanto em h2 seria em torno de 3 m, considerando‐se ainda que entre as duas pistas
de rolagem da avenida, também existe um desnível, podendo se presumir que haveria
desnível entre os dois residenciais de pouco mais de 7 metros. Feitas estas observações,
constata‐se que a declividade de uma eventual via seria acentuada, acima dos valores
permitidos por Lei. A esta dificuldade que, por si só obstaculizaria e até inviabilizaria a
abertura de vias de ligação, adiciona‐se a opção de assentamento do sistema viário
principal — avenida Wimbledon — e os residenciais e suas vias: esta via foi localizada em
uma cumiada de morro (FIG. 13), em cota mais alta que as vias dos residenciais 1 e 3. O
que significaria uma rampa ainda maior para esta eventual via transpor.
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Figura 15 ‐ Alphaville, Lagoa dos Ingleses, planta geral (detalhe). Pode‐se observar os cinco residenciais, numerados
sequencialmente, e o acesso para o sexto residencial, Península dos Pássaros. Os dois eixos viários de acesso aos residenciais são
as avenidas Princesa Diana (7) e Wimbledon (8) que conectam a região à BR‐040 (9). Na parte superior aparece indicada a área
reservada para a implantação de indústrias (10). Eventuais conexões entre os sistemas viários como os assinalados nos
residenciais 1 e 3, são difíceis em razão da existência de lotes no que poderia ser a extensão de suas ruas internas.
Fonte: ALPHAVILLE URBANISMO S.A., 1997
266
7
O acesso é rigidamente controlado . Só podem entrar pessoas cadastradas (moradores) ou seus
convidados. Os sistemas de controle são automatizados através de leitores de código de barras
(FIG. 16) ou através de sensores de radiofrequência (adotado no Residêncial 1). A morfologia
da portaria (FIG. 17) foi organizada de maneira a facilitar o acesso de veículos de moradores,
com sistemas automáticos e ágeis para reduzir ao mínimo o tempo de acesso ao condomínio.
Para os visitantes ou prestadores de serviço, o acesso com veículos é feito por meio de uma
entrada lateral (2), onde o processo é lento e burocrático.
A estes procedimentos soma‐se outro, que pode‐se conjecturar como sendo excessivo, senão
ilegal e humilhante: a revista diária e sistemática de empregados e operários que trabalham no
condomínio e também de seus veículos. O visitante deverá ser identificado e, só depois de
autorização de um morador da casa de destino, será permitido seu acesso. O acesso de
pedestres é feito através de guaritas exclusivas (3), também com sistema de identificação e
catraca. Na edificação principal (4) localiza‐se a portaria. Pode‐se observar que o acesso de
veículos de condôminos existe uma cobertura (5), inexistente no acesso destinado a veículos
de não‐condôminos (6). Assim como na entrada, existem duas saídas (7) uma destinada a
moradores e outra para não‐moradores, que dão acesso à avenida externa aos residenciais (8).
Estes dispositivos atendem ao que Bauman (2009, p. 13) qualifica como “forte tendência para
sentir medo e a obsessão demoníaca por segurança”.
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Figura 16 ‐ Carteira para acesso a residencial no Condomínio Figura 17– Alphaville, Lagoa dos Ingleses, portaria de acesso ao
Alphaville. Com esta carteira não há necessidade de identificação Residencial 1, com acessos para veículos de moradores (1) e para
ou autorização a cada acesso ao Condomínio. Entretanto, as veículos de convidados e prestadores de serviço (2) e guaritas de
carteiras são para acesso específico a exclusivamente a um controle de pedestres (3) e veículos (4), saída de veículos (7) e
residencial específico. avenida externa (8).
Fonte: DOCUMENTO DO AUTOR, 2008. Fonte: FOTO DO AUTOR, 2007.
O acesso restrito que destaca o aparato de segurança é corroborado pela presença de muros (FIG.
18). O isolamento pode ser magnificado pela possibilidade de construção de muros internos (FIG. 19
e 20), permitida pela legislação do condomínio.
Fonte: FOTO DO AUTOR, 2007. Fonte: FOTO DO AUTOR, 2008.
O isolamento com o exterior é reproduzido em seu interior, com exigência de grandes recuos
das construções8 e pela ausência de calçadas, dificultando a circulação de pedestres. As vias
internas têm 7 metros de largura, “passeios”, 3,5 metros somados aos cinco metros de
afastamento frontal de cada casa, significando uma distância mínima frontal entre casas de
29m. Embora a legislação preveja passeio, não existe, na regulamentação, exigência de que
seja pavimentado. Tal situação faz com que a circulação de pedestres seja bastante perigosa,
pois o desconforto de caminhar por áreas ainda não urbanizadas (terrenos não construídos) ou
mesmo por lotes já edificados, que optam por transformar o passeio em uma extensão do
jardim (FIG. 21). Tal situação poderá ter graves consequências, como atropelamentos. Cumpre‐
se observar ainda que, ao omitir‐se a exigência de pavimentação dos passeios, não só a
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Associação Alphaville, mas também a Prefeitura Municipal de Nova Lima, a quem cabe
conceder o habite‐se a uma residência, incorrem em gestão que pode ser configurada como
temerária, além de desrespeitar a Legislação Federal de Acessibilidade9.
Figura 20 ‐ Alphaville, Lagoa dos Ingleses, Figura 21 ‐ Alphaville, Lagoa dos Ingleses, Residencial 1. A ausência
Residencial 3. Observa‐se o grande recuo das de calçadas (1) dificulta a circulação de pedestres, que, na maioria
residências para a rua. das vezes, optam por circular pela via de veículos.
Fonte: FOTO DO AUTOR, 2008. Fonte: FOTO DO AUTOR, 2008.
A legislação condominial exige área mínima construída de 150m², traduz o que a própria legislação
interna qualifica como “Padrão Alphaville”. O regulamento do Uso do Espelho d’água, em seu item 1.3
qualifica Alphaville como “um empreendimento imobiliário de alto padrão” (ASSOCIAÇÃO
ALPHAVILLE LAGOA DOS INGLESES, 2006, p.65)10. Portanto, seus proprietários construirão casas
neste alto padrão, significando casas de grandes dimensões (FIG. 22)11 e materiais de acabamento
que mantenham este “padrão”.
268
Figura 22 ‐ Alphaville, Lagoa dos Ingleses, Residencial Figura 23 ‐ Alphaville, Lagoa dos Ingleses, Residencial 1, o acesso
3. Vista de três casas, observa‐se a tipologia de pessoas é escondido e pouco destacado, enquanto a grande
predominante de 2 pavimentos, com exemplos de até “abertura” ou destaque é dada ao acesso de veículos.
3 pavimentos.
Fonte: FOTO DO AUTOR, 2008. Fonte: FOTO DO AUTOR, 2008.
FIGURA 24 – Subúrbio norte‐americano. Acesso Veículos (1) X Acesso Pessoas (2).
Fonte: BMAC, 2008
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Reproduz‐se no Alphaville Lagoa dos Ingleses um padrão de construção que é recorrente
nos subúrbios norte‐americanos (FIG. 24) e também é observado no Alphaville de São
Paulo (FIG. 06): a construção de grande quantidade de vagas de garagem, “dominando” a
fachada principal da casa e relegando a entrada social a um pequeno acesso lateral,
quando não passa a ser feito através da garagem. Em um exemplo observado em uma
casa no Residencial 1 (FIG. 23)12, as vagas de garagem são abertas e dominam a fachada
(2), enquanto o acesso à área social é um pequeno portão (1), ladeado por parede cega e
por muro.
Embora a proposta destes condomínios13 seja a de se estar morando em uma comunidade
ideal, as rotinas, procedimentos contradizem esta premissa. A possibilidade de interação entre
os moradores é reduzida, pois simples atos como ir à padaria necessitam que se utilize um
veículo. A ausência de calçadas dificulta as caminhadas. As conexões de seus moradores são,
em sua maioria, externas ao condomínio e região: trabalho, escola, compras, etc.
Considerações finais sobre uma “comunidade” “incomunal”
Quando adotam padrões morfológicos — urbanísticos e arquitetônicos — e sócio
comportamentais semelhantes aos norte americanos, os condomínios brasileiros tendem a
incorrer em problemas semelhantes. Problemas que podem ser magnificados, quando se
consideram as desigualdades históricas no país. A ideia de sociedade ideal parece, em
princípio, muito boa e interessante para seus moradores, porém, seus valores subjacentes e
sua trajetória sócio normativa e atitudinal – em se considerando suas regras explicitas e não 269
explícitas de acesso, convívio e regulação social ‐ projetam‐se em direção a uma alienação
cada vez maior com relação aos problemas brasileiros. Esta atitude pode‐se configurar ainda
mais perigosa ao se pensar nos filhos desta classe‐média que cresce vinculada a uma realidade
social extremamente desconectada com o restante do país.
Embora, como lembra Moura (2003, p.53), ainda se pode pensar em termos otimistas a
respeito dos condomínios brasileiros. “Os condomínios horizontais, cada vez mais
presentes em nossos meios urbanos, apresentam novas formas de estar dentro e fora,
formas que, tanto aqueles que estão dentro quanto os que estão fora, ainda estão
aprendendo a viver”.
Porém, o que se apresenta como sociedade ideal, um projeto utópico, contradiz seu
princípio básico mais importante e recorrente: a igualdade entre os membros. Poder‐se
ia argumentar que os moradores de um condomínio fechado tendem a estar em faixas de
renda próximas ou iguais. Se tal fato econômico ocorre, a exteriorização de sua riqueza,
status e poder será sempre exigida e a continuidade da competição, como salientado por
Veblen (1994), interpõe novos patamares, podendo, no caso dos condomínios
examinados, ir de um veículo mais imponente ou caro, uma ampliação ou melhoria na
residência e até a colocação de uma réplica da estátua da liberdade ou da Vênus de Milo.
E esta sociedade ideal, que se pretende comunidade, está longe deste objetivo. O que se
cria é uma “comunidade” apática e que tende a não se envolver em conflitos.
Baumgartner (1988) em seu estudo sobre subúrbio norte‐americano qualificou a postura
do suburbanita como “minimalismo moral” que manifesta uma aversão ao confronto e
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conflito e apresenta uma preferência por privar‐se de eventual liberdade e aceitar
estratégias de controle social em uma cultura que o autor qualifica como de prevenção.
Observar‐se a suburbanização que se propõe sociedade ideal possibilita, de alguma forma, confirmar‐
se a conclusão de Morus (2006[1516], p.154) para sua obra se aplica, quase 500 anos depois, com
uma atualidade impressionante à realidade dos subúrbios e condomínios: “[...] reconheço de bom
grado que há na república utopiana muitas coisas que eu desejaria ver em nossas cidades. Que
desejo, mais do que espero ver”.
4 REFERÊNCIAS
ALPHAVILLE URBANISMO S.A. Bem vindo ao Alphaville Center.1997, Folder de propaganda impresso.
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271
5 NOTAS
1
Fonte: MÁXIMO; DIDIER, 1990, p. 259.
2
Palavra de origem latina cuja designação original designava a postura ou posição, entretanto, relacionada ao ato de se
estar em pé (FARIA, 1962, p.942).
3
Tradução deste autor, a partir de original em inglês.
4
Subúrbio da cidade de Chicago, projeto de Frederick Law Olmsted e Calvert Vaux.
5
R$ 540,00 em janeiro de 2011.
6
Valor de venda no mercado norte americano, que corresponderia a cerca de R$ 145.000,00 – valores de janeiro de
2011. Se importado, seu custo ficaria cerca de R$ 350.000,00 (custos de importação, frete e impostos).
7
Nos Condomínios Alphaville em São Paulo observam‐se procedimentos semelhantes de controle a acesso.
8
O Regulamento de Ocupação e Uso do Solo do Condomínio em seu item 2.12 exige afastamentos mínimos obrigatórios
de 5 m (frontal), 2 m (lateral, quando testada for igual ou inferior a 18 m) e 3 m (lateral, quando testada for maior que
18 m) e 3m (fundos) (ASSOCIAÇÃO ALPHAVILLE LAGOA DOS INGLESES, 2006, p. 8).
9
Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000, que no item A de seu inciso II determina que não podem existir “barreiras:
qualquer entrave ou obstáculo que limite ou impeça o acesso, a liberdade de movimento e a circulação” nas “nas vias
públicas e nos espaços de uso público” (BRASIL, 2000).
10
Observa‐se no estatuto da Associação Alphaville em seu inciso III do artigo 3º que deverá entre suas obrigações
“preservar as características arquitetônicas e urbanísticas do empreendimento”, sem, entretanto, esclarecer a que,
exatamente, tal preservação se refere (ASSOCIAÇÃO ALPHAVILLE LAGOA DOS INGLESES, 2006, p.43).
11
O Regulamento de Ocupação e Uso do Solo do Condomínio em seu item 2.15 traz uma condição pouco usual em
legislação urbanísticas, qual seja a exigência de área mínima de construção, no caso 150 m² (ASSOCIAÇÃO ALPHAVILLE
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LAGOA DOS INGLESES, 2006, p. 8).
12
O Regulamento de Ocupação e Uso do Solo do Condomínio em seu item 2.27 exige, no mínimo, duas vagas de
garagem por lote (ASSOCIAÇÃO ALPHAVILLE LAGOA DOS INGLESES, 2006, p. 11).
13
É interessante observar‐se uma particularidade com relação a condomínios no Brasil. A palavra segundo Houaiss
(2001, p. 792) designa “a posse ou o direito simultâneo, por duas ou mais pessoas, sobre um mesmo objeto ainda em
estado de indivisão; co‐propriedade, compropriedade”. Entretanto, é, normalmente, empregada para designar‐se os
condomínios horizontais enquanto nos condomínios verticais utiliza‐se usualmente a designação “Edifício”. Entretanto,
formal e legalmente o condomínio horizontal não existe, visto que, os lotes são propriedades individuais, registrados
separadamente e tributados de forma independente com relação a seus vizinhos enquanto seus arruamentos (áreas de
circulação) são propriedade do município. O que, de fato, existe é uma gestão comum da área com relação à segurança,
manutenção de jardins, eventualmente limpeza das ruas, etc. Os “edifícios”, juridicamente, são, de fato, condomínios,
visto que as áreas circulação e a propriedade do são terreno comuns a todos os proprietários de suas unidades; a cada
proprietário corresponde uma fração ideal do terreno, embora, este terreno seja, juridicamente, indivisível.
272
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NÚCLEO TEMÁTICO IV: Novo perfil de cidade e novos rumos em direção a uma sociedade inclusiva
O cooperativismo na construção civil: uma outra cultura
produtiva com sentido social
Cooperativism in the civil construction: another productive culture with social meaning
Cristiano Gurgel BICKEL
Mestre em Artes Visuais/UFMG; Doutorando em Arquitetura e Urbanismo pelo NPGAU/ UFMG;
Professor do Departamento de Artes Plásticas da EBA/UFMG. bickel@ufmg.br.
RESUMO
Neste artigo, discute‐se a cultura produtiva da construção civil brasileira, analisando‐se as atuais
estruturas capitalistas dominantes e apontando para o cooperativismo como alternativa para uma
reestruturação produtiva com sentido social. Levando‐se em conta que tal reestruturação direciona‐se
para a construção de uma sociedade inclusiva, investigam‐se capital e trabalho nas relações sociais de
produção dominantes na construção civil, visando formular estratégias de superação dessas relações,
notadamente excludentes. As recorrentes noções eficazes de crescimento com base econômica
capitalista, em que o sentido social é mercantilizado e ordenado pelo capital, promovem, de fato,
relações sociais de produção, trabalho e consumo sem justiça social, em uma dinâmica exploratória de
larga escala. Como uma outra cultura produtiva articulada às estratégias socioeconômicas para a
construção de uma sociedade inclusiva, o cooperativismo é, então, analisado como possibilidade viável
para se estabelecer a lógica produtiva autogestionária, sem fins lucrativos, eminentemente social. 273
Mudanças significativas nos paradigmas políticos, sociais, econômicos e culturais imersos nas bases
produtivas da construção civil necessitam ocorrer para que as transformações socioprodutivas
contemporâneas não sejam apenas adequadas às reconfigurações do capital. Mas oportunizem,
efetivamente, uma base produtiva capaz de construir cidades inclusivas, articuladas ao desenvolvimento
de uma economia social e cidadã.
PALAVRAS‐CHAVE: Associativismo. Cooperativismo. Construção Civil ‐ Trabalho. Economia ‐ Sociedade.
ABSTRACT
In this article, it is discussed the productive culture of the Brazilian civil construction, analyzing the
current dominant capitalist structures and appointing to the cooperativism as an alternative to a
restructuration, with social meaning. Considering that this restructuration is directed to elaborate an
inclusive society, it is investigated capital and labor in the dominant social relations of production in the
civil construction, aiming to formulate strategies to overcome these relations, visibly non inclusive. The
increasing usual effective notions based on capitalist economics, in which the social meaning is
commodified and commanded by capital; indeed, promote, social relations of production, employment
and consumption without social justice, in a large‐scale exploratory dynamic. As another productive
culture articulated to the socioeconomic strategies in order to create an inclusive society, cooperativism is
analyzed as a viable possibility to establish a self‐managed, non‐profit, eminently social productive logic.
It is necessary that occur significant changes in the political, social, economic and cultural paradigms
embedded in the productive construction bases in order to the social and productive contemporary
transformations are not only suited to reconfigurations of the capital. However, these transformations
may effectively make a productive base capable to create inclusive cities happen, linked to the
development of a social economy and citizenship.
KEYWORDS: Associativism. Cooperativism. Civil Construction ‐ Labor. Economy ‐ Society.
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1 INTRODUÇÃO
Para promover uma outra cultura produtiva com sentido social na construção civil é
fundamental atentar‐se para o estabelecimento de uma outra base socioeconômica, quer seja
a economia social1, na centralidade do desenvolvimento econômico.
A implementação de outros meios socioeconômicos que possam ultrapassar relações sociais de
produção excludentes e estabelecer justiça social é um grande desafio para o desenvolvimento de
uma sociedade inclusiva, cuja eficácia econômica contemple também o desenvolvimento humano e
social. Isso significa, sobremaneira, o entendimento da ação econômica como uma construção
social, envolvendo aspectos não‐econômicos, como a cultura, tecnologia, educação, e também as
funções sociais da propriedade, trabalho, produção e consumo.
Para Lévesque (2007 p.52), a economia social é, de fato, uma socioeconomia política que questiona
as formas econômicas da sociedade, através do engajamento cidadão em uma cidadania ativa e
participativa. Dessa forma, o papel da economia social pertence à reconfiguração Estado‐mercado‐
sociedade. O mercado não é o antagonista, mas o elo da coesão social entre Estado e Sociedade. E
a economia age sob o ponto de vista substantivo de Polanyi, envolvendo redistribuição, com as
atividades não mercantis, e reciprocidade, com as atividades não monetárias.
A orientação para uma outra cultura produtiva, atuando em uma outra economia, que é social,
exige o esforço conjunto político‐social‐econômico, envolvendo outras lógicas de produção e outros
ordenamentos sociais, com bases produtivas capazes de efetivar o desenvolvimento com qualidade
de vida e justiça social. 274
A racionalidade autodestruidora do capital oculta‐se no mito do progresso, da modernização e da
eficácia do desenvolvimento e crescimento econômico. Consequentemente, aprofunda‐se a
desigualdade social, diminuindo a qualidade de vida em meio ao inchaço urbano, inadequação
habitacional, aumento da poluição, colapso viário e outras tantas formas de violência cotidianas.
Para Dupas (2011, p.69), os custos sociais do progresso são trágicos e inevitáveis em nossos dias.
Por sua vez, Mészáros (2009, p.79) evidencia que, diante do aprofundamento da atual crise estrutural
do capital, tornam‐se necessárias mudanças institucionais. E não apenas as estruturas econômicas
necessitam de outras institucionalidades que barrem o avanço do capital sobre a sociedade civil, mas
toda a dinâmica política e social necessita de alternativas para estabelecer, de fato, uma sociedade
inclusiva. Nesse sentido, Mészáros (2009, p.88) considera ainda que “a tarefa de reestruturar a
economia torna‐se primariamente política/social, e não econômica”, e que em “tempos de crise
econômica abrem sempre uma brecha razoável na ordem estabelecida".
Para Marx (2011b, L.3 v.4, p.346), transcender o capital implica ultrapassar formas sociais modernas
de exploração já cristalizadas e tornadas naturais como a concentração dos meios de produção, a
organização do trabalho produtivo e o mercado econômico em escala global.
Com relação à indústria da construção civil, esta desempenha um papel econômico central no ciclo de
reprodução do capital. As relações sociais de produção desse setor ocultam formas exploratórias do
trabalho humano; alta concentração de recursos financeiros; economia especulativa da terra; uso de
materiais, tecnologias e recursos naturais de maneira não‐sustentável; dentre outros aspectos
próprios da reprodução de capital manejada por essa indústria.
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Os setores produtivos brasileiros carecem de uma ampla reestruturação a fim de estabelecer
condições produtivas sustentáveis e inclusivas, relacionadas às trocas econômicas que
valorizem o homem, a sociedade e a natureza. Nesse sentido, o cooperativismo atuando na
construção civil, como será visto adiante, pode promover práticas econômicas não‐capitalistas,
intrínsecas à lógica autogestionária, que perpassam pela desconcentração das riquezas e dos
meios de produção, como também pela democratização e deshierarquização das relações
sociais do trabalho produtivo, possibilitando redução das desigualdades socioeconômicas,
fortalecimento da cidadania ativa, o que contribui para a inclusão social, reelaborando
paradgimas sociais, econômicos, políticos, culturais e ambientais.
O contexto atual carece de ações que efetivamente promovam as transformações políticas,
econômicas e sociais que a economia social pretende para a construção de uma sociedade
inclusiva, que também produza cidades inclusivas, articuladas ao desenvolvimento de uma
economia social e cidadã.
2 REDEFININDO RELAÇÕES ENTRE ECONOMIA E SOCIEDADE
A percepção crítica de que as ações econômicas não são indissociadas dos aspectos sociais
envolvidos nas relações de produção, trabalho e consumo têm ganhado forte presença na
discussão crítica contemporânea acerca da inclusão social.
A discussão deste trabalho sobre uma reestruturação produtiva com sentido social na
construção civil deve pautar‐se, portanto, em uma noção econômica não apenas do 275
funcionamento econômico do capital‐produtivo, mas que também perceba a dimensão
econômica dos arranjos produtivos como sociológica, cultural e política.
Dessa forma, a noção weberiana de que a ação econômica é uma construção social evidencia o
papel das práticas sociais no desenvolvimento econômico. Para Weber (2009, p.5), “a ação
social é uma ação na qual o sentido pensado pelo sujeito ou sujeitos está referido à conduta
dos outros e por ela se orienta no desenvolvimento da ação." Dessa forma, o que confere
sentido à ação social é que ela é motivada pelos interesses e direcionada para o
comportamento dos outros.
A discussão do interesse na sociologia weberiana envolve a discussão de poder e dominação,
que se manifesta nas relações sociais de luta, concorrência e seleção. Em linhas gerais, para
Weber (2009, p. 16) poder significa “qualquer oportunidade de, numa relação social, impôr a
própria vontade contra resistências alheias”, ou seja, ter poder é o mesmo que vencer a luta
(social) ou, inversamente, entrar nessa luta já com oportunidades melhores do que os outros. A
dominação é “a probabilidade de que uma ordem com um teor específico seja obedecida por
um grupo de pessoas”. Weber (2009, p.18) entende a luta como a ação orientada para a
imposição da própria vontade contra a resistência alheia; a concorrência corresponde à luta
pacífica – sem violência física – pelo controle de oportunidades que outros também almejam; e
a seleção é um tipo de luta em que o antagonismo é latente, não intencional, e as ações não se
dirigem diretamente contra outros indivíduos ou grupos.
Baseando‐se nessas definições, Swedberg (2005, p.60) compreende as organizações produtivas
como sistemas de dominação, nos seguintes termos: “Todo sistema político, observa Weber,
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baseia‐se, de alguma forma, na dominação, e como uma economia em geral faz parte do
sistema político, tende a operar de acordo com o mesmo tipo de dominação política.”
Por sua vez, Harvey (2005, p.90) propõe que o Estado deve ser visto como um “processo de
exercício de poder por meio de determinados arranjos institucionais.”
Swedberg (2005, p.61) recorrendo, ainda, à concepção apresentada acima, de que a
dominação não ocorre em si mesma, mas devido à luta ante um conjunto de interesses ou de
autoridades que se estabelecem em um mercado afirma: “em síntese, no mercado não existe
um princípio de dominação, contudo os agentes que possuem o ‘poder de controlar e dispor’
estão numa posição vantajosa.”
A fim de redefinir as relações entre economia e sociedade, Weber elabora um certo tipo de
“individualismo metodológico e do sentido”, como sugere Swedberg, (2005, p.286). O
individualismo metodológico de Weber possui uma natureza mais social que atomista,
contrastando, portanto, com a noção de sujeito econômico fracionado e racionalizado (homo
economicus) da teoria econômica neoclássica. Isso significa que, apesar de os indivíduos
interagirem movidos pelos interesses materiais ou ideais, eles orientam racionalmente suas
ações sociais uns para os outros, o que acaba por influenciar os próprios comportamentos
sociais.
Nesse sentido, o conceito de imersão (embeddeness)2, cunhado por Granovetter (2007),
permite questionar todo tipo de concepções utilitaristas, que consideram a influência social
como uma força externa ao sistema econômico e atribuem ao sujeito econômico uma 276
racionalidade também puramente econômica.
Granovetter (2007, p. 7‐9) entende, pelo contrário, que a dinâmica econômica de relações
sociais concretas evidencia a inconsistência desses pressupostos. Os atores econômicos nem se
comportam “como átomos fora de um contexto social” (subsocializado), nem tampouco
“adotam de forma servil um roteiro escrito para eles” (supersocializado), em função do
pertencimento a determinada categoria, classe ou grupo social. O que ocorre na realidade é
que as “ações com propósito estão imersas em sistemas concretos e contínuos de relações
sociais".
Granovetter (2007) desenvolve o conceito de imersão para designar o fato de que
comportamentos pessoais são influenciados pelas contínuas relações sociais em que se
encontram imersos, de modo que eles se estruturam socialmente em redes favoráveis ao
estabelecimento da confiança na ação econômica. As redes, por sua vez, constituem conjuntos
de alianças, em várias direções e níveis, que formam uma espécie de trama para a durabilidade
das relações econômicas. Nelas se estabelecem acordos cooperativos e se geram condições
econômicas estratégicas.
Dessa forma, Granovetter (2007) se contrapõe à noção de que as oportunidades econômicas
estariam supostamente ligadas apenas à lógica concorrencial dos mercados e às suas
hierarquias. De fato, os conceitos de imersão e redes apontam para a importância dos aspectos
sociais que agem como capitais, tendo na reciprocidade e na interdependência das suas
“moedas sociais” para a formação das alianças no estabelecimento da confiança para as
relações econômicas.
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Isso significa uma ampla redefinição para o entendimento das relações entre economia e
sociedade: “o econômico cessa de ser reduzido ao mercantil para incluir o não mercantil e o
não monetário [...] O social, por sua vez, deixa de ser reduzido à distribuição e aos gastos
sociais para tornar‐se ‘capital social’ ” (Lévesque, 2007, p. 51).
Em linhas gerais, esse debate de base weberiana sistematizado acima por Swedberg (2005),
Granovetter (2007) e Lévesque (2007) tem ganhado forte presença na teoria social
contemporânea, no momento em que o trabalho é flexibilizado, o emprego entra em franca
redução no contexto mundial e as tecnologias da informação e o conhecimento favorecem a
mobilidade dos capitais, circulando em tempo real e no nível mundial, reposicionando entre o
global e o local, as noções de abrangência e relevância dos comportamentos sociais no
protagonismo do desenvolvimento econômico.
3 CAPITAL‐TRABALHO EM COOPERAÇÃO PRODUTIVA
Historicamente, as transformações promovidas pelo capital não são apenas transformações
no modo de produção, mas influenciam as mudanças das relações sociais de produção no
seio das próprias transformações das estruturas sociais, políticas, culturais e econômicas.
O núcleo do sistema econômico dominante, regido pelas instituições do capital, possui sua
dimensão social imersa nas contradições promovidas pelo modo de produção capitalista.
Assim, enfatiza Swedberg (2005, p. 165), “por meio da sua própria lógica e das
conseqüências não intencionais, o capitalismo não apenas produz a riqueza individual 277
como também a riqueza social (Smith), não apenas produz avanços para alguns como
também empecilhos e dificuldades para outros (Marx, Weber)".
Sob o modo de produção capitalista, o trabalho‐produtivo deve, essencialmente, garantir os fins
lucrativos da produção. Com isso, possui a função fundamental de gerar lucro, concentrar capital e
manter a continuidade da produção, permitindo tanto a acumulação de capital quanto a reprodução
do sistema produtivo.
Para Marx (2011b, L.3 v.4, p.338), “a taxa de lucro é a força propulsora da produção capitalista, e só se
produz o que se pode e quando se pode produzir com lucro”. Ou seja, todas as demandas sociais não‐
lucrativas não participam do sistema produtivo. E o sistema produtivo, além de necessitar a criação de
novas demandas, atende apenas o que é lucrativo.
Diante da teoria marxiana, pode‐se definir que a relação capital‐trabalho é, necessariamente, uma
relação social de produção que submete as funções sociais do trabalho ao controle e lógica produtiva
do capital. Nesse sentido, Marx (2011a, L.1, p.215) observa que “meio e objeto de trabalho são meios
de produção e o trabalho é trabalho produtivo”. Dessa forma, o trabalho é entendido como média
social de trabalho simples e uniforme, que baliza o sistema de produção mercantil capitalista nas
transformações do trabalho em valor para produção de lucro.
No regime da produção capitalista, com a divisão social do trabalho, cada trabalhador significa não a
sua habilidade individual de desenvolver trabalho, mas uma quantidade média de trabalho produtivo
socialmente necessário para produzir mercadorias, nas condições sociais e tecnológicas vigentes, para
as necessidades sociais do mercado, e com as possibilidades do meio de circulação monetária.
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Nessa dinâmica de exploração do trabalho, submetendo as atividades produtivas à ordenação
do capital, o capitalista adquire direito sobre o lucro advindo do trabalho produtivo, como
proprietário da produção. A condição proprietária permite, apropriar‐se, anteriormente, da
força de trabalho como uma mercadoria, um bem de produção como outro qualquer, e não
como o próprio bem que gera valor na produção. Isso permite, posteriormente, apropriar‐se
do mais valor ou sobrevalor da produção, através da diferença entre o valor concretizado com
o trabalho produtivo e a não‐remuneração da força de trabalho sob a condição do trabalho
assalariado.
Por outro lado, trabalho‐produtivo é, necessariamente, trabalho coletivo atuando em um
regime de cooperação.
A cooperação corresponde a uma característica própria do trabalho coletivo, a
solidariedade. Dessa forma, não corresponde a um determinado modo de produção,
podendo ser encontrada em todas as relações sociais de produção, sejam elas capitalistas
ou cooperativistas.
Marx (2011a, L.1, p.393) enfatiza que “a divisão manufatureira do trabalho é uma espécie
particular de cooperação, e muitas de suas vantagens decorrem não dessa forma
particular, mas da natureza geral da cooperação”.
Na história social do trabalho, a cooperação é recorrente na produção intensiva e
uniforme, por exemplo, na produção agrícola, mineral e nas obras de construção civil. Em
um regime de cooperação, os trabalhadores atuam coletivamente e ativamente, sem 278
haver, necessariamente, divisão social do trabalho.
A cooperação como força social própria do trabalho coletivo tornada cooperação
capitalista envolve a concentração das forças sociais do trabalho com a consequente
subordinação e alienação da própria classe trabalhadora.
A divisão social do trabalho e a organização da produção em regime de cooperação
constituem a combinação necessária para garantir a continuidade da produção
organizada pelo capital. Por essa via, a divisão técnica do trabalho e a interação das
forças parciais do trabalho‐coletivo parcelado em cooperação adquirem um papel
fundamental na cultura produtiva e na racionalidade econômica capitalista.
Assim, Marx parte da noção de cooperação simples, própria do trabalho coletivo
realizado em escala, para conceber a noção de cooperação complexa, que é a forma
típica do modo de produção capitalista.
A cooperação simples, forma típica do cooperativismo, converge as forças solidárias de
trabalhos parciais em uma força maior que a soma das partes individuais coordenadas.
Já a cooperação complexa, forma típica do capitalismo, transforma a cooperação simples,
introduzindo a divisão social à divisão técnica do trabalho, especializando e controlando
a produção, possibilitando integrar os resultados parciais em um regime conexo da
produção. Segundo Marx (2011a, L.1, p.378), corresponde a “forma de trabalho em que
muitos trabalham juntos, de acordo com um plano, no mesmo processo de produção ou
em processos de produção diferentes, mas conexos”.
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Dessa forma, a cooperação complexa acaba por tornar‐se a forma específica do processo de
produção capitalista. Isso condiciona as relações sociais de produção ao regime de trabalho
coletivo, por meio da cooperação de esforços parcelados e centralizados pela força do capital.
Gorz (2001, p.117) define o trabalho produtivo submetido ao regime capitalista de produção
nas dimensões econômicas e políticas: “assim, para os dirigentes da produção capitalista, a
organização do trabalho responde, conceitualmente, a uma necessidade econômica (obter a
melhor produtividade possível) e a uma necessidade política (manter os produtores diretos
numa posição subordinada em relação ao capital)”.
Essa análise da cooperação como condição do trabalho moderno é fundamental para o
entendimento do modo de produção capitalista vigente, uma vez que, através do
planejamento da produção, da conexão e concentração dos meios de produção em um
mesmo local, os meios produtivos (dimensão econômica) em regime de cooperação
subjugam as forças de trabalho (dimensão política).
Com relação ao papel da objetivação do trabalho produtivo para a alienação do trabalhador,
Gorz (2001, p.177) ressalta que na produção capitalista “a objetivação, não visa somente a
limitar o campo de trabalho, mas também a impedir que qualquer trabalhador compreenda
os laços e a dialética do conjunto e, por conseguinte, a política da empresa”.
Para Napoleoni (1981, p.114), “a objetivação do trabalho se torna a base da alienação”.
Como dito anteriormente, a cooperação é qualidade própria do trabalho coletivo, não
promovendo a alienação propriamente dita do trabalhador. Entretanto, com a divisão do 279
trabalho, atuando em uma estrutura centralizada e hierarquizada para o regime cooperativo
da produção capitalista, criam‐se as condições necessárias para a alienação, por meio da
relação apartada entre as operações parceladas, a totalidade do trabalho e a função social do
trabalho. Dessa forma, o trabalhador não consegue discernir a parte do trabalho que lhe
pertence no processo produtivo, nem seu lugar na inserção social com igualdade de
condições e de direitos.
O particionamento das etapas de produção, o controle da distribuição de tarefas e a
conferência sistemática do andamento do processo de produção constituem a cultura
produtiva capitalista envolvendo uma racionalidade técnica própria com a divisão do
trabalho‐produtivo, submetido à cooperação complexa. A força produtiva do trabalho
social em cooperação complexa torna‐se, dessa forma, força produtiva ampliada para o
capital e não para os próprios trabalhadores.
Nesse sentido, o modo de produção capitalista faz com que a subsunção formal do
trabalho produtivo se torne uma subsunção real, com a divisão social do trabalho e sua
conexão produtiva, pela divisão técnica e social do trabalho, tornada alienada.
O trabalhador é mais um dos bens de produção, direcionado à ampliação e reprodução
do capital e consequentemente, consumido. Para Miglioli (1987, p.135), o trabalho
produtivo objetivado retira a autonomia do trabalhador, assim como atrofia a sua vida,
tornando‐o objeto de consumo da produção. Disso decorre também a redução da
presença de pequenos produtores autônomos atuando no sistema econômico, além de
se configurar um ambiente social de menor mobilidade entre operários e patrões.
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A ampliação das forças produtivas capitalistas, que poderia libertar o homem do trabalho,
torna o homem trabalhador “compulsório” do capital. O nefasto funcionamento da
racionalização técnica capitalista reduz as relações sociais de produção e trabalho ao regime
mercantil, o que aliena o trabalho das dimensões políticas e sociais, restringindo‐se ao
funcionamento econômico para concentração e reprodução do capital.
4 OUTRA CULTURA PRODUTIVA PARA A TRANSFORMAÇÃO SOCIAL
Como alternativa de superação das desigualdades e exclusões sociais, que se aprofundam
com os avanços do modo de produção capitalista, o cooperativismo surge com as lutas
operárias do século XIX e se desenvolve sob os princípios democráticos, solidários,
participativos e autogestionários.
O cooperativismo atua nas transformações sociais relacionadas ao trabalho‐produtivo
reconhecendo que a inclusão social requer mudanças estruturais na lógica do
ordenamento socioeconômico, sobretudo, no âmbito da reordenação das bases
produtivas e das relações sociais de produção, trabalho e consumo. Para Rios (1987),
Souza Santos (2002) e Bucci (2003), o cooperativismo conjuga nas dimensões sociais do
trabalho cooperativo, a reordenação da própria sociedade civil.
A eficácia dos processos produtivos cooperativistas encontra‐se nas características do
trabalho coletivo em cooperação e na forte vinculação social das ações econômicas,
conforme comentadas anteriormente. Assim, a força social do trabalho coletivo alia‐se à 280
força econômica dos meios de produção socializados, configuram‐se relações de trabalho
indissociadas nas dimensões econômicas, políticas e sociais.
Para Bucci (2003, p.37), as cooperativas caracterizam‐se por adotar como fundamento a
“lei da cooperação e não da concorrência”, tendo como finalidade a melhoria das
condições econômicas através da criação de uma empresa de interesse comum,
afastando exploradores do trabalho, intermediários e atravessadores.
Assim, o objetivo do cooperativismo é viabilizar processos produtivos em que trabalho e
valor sejam repartidos, colocando‐se em prática atividades econômicas que retornam o
valor criado pelo trabalho para os próprios trabalhadores cooperados.
Isso, segundo Singer e Souza (2000, p.13), implica formas sociais avançadas em que a
democracia participativa na gestão empresarial, oportuniza igualdade e transparência,
deshierarquizando relações sociais de produção e trabalho, propiciando, por
conseguinte, acesso e disponibilização de informações táticas e estratégias, bem como a
participação nas decisões coletivas das ações dos grupos cooperados.
Dessa forma, Singer (2002) define a cooperativa como unidade típica da economia social,
levando‐se em conta a finalidade econômica orientada para práticas sociais que
viabilizam processos produtivos sem fins lucrativos. Uma empresa social com
características tanto econômicas quanto sociais, movida por formas inclusivas para a
gestão empresarial das atividades produtivas com fins sociais e econômicos não‐
lucrativos.
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É importante frisar que o horizonte mais amplo das ações socioeconômicas
cooperativistas pretende a transformação social que supere o capital e suas relações
exploratórias da produção, trabalho e consumo. Através da repactuação entre capital e
trabalho, uma outra cultura produtiva com sentido social torna‐se meio para ultrapassar
formas exploratórias econômicas do modo de produção capitalista dominante.
Dessa forma, o cooperativismo não tem um caráter complementar à produção capitalista,
correspondendo a uma outra lógica para a cultura produtiva, no interior do
funcionamento da economia dominante, que é capitalista. A periferia do sistema
econômico, na qual o cooperativismo se situa hoje, não significa a localização ideal desse
sistema produtivo, nem uma impossibilidade de se tornar parte central do
desenvolvimento econômico.
É recorrente a suposta noção de que as cooperativas sejam atividades produtivas
complementares, realizando trabalhos secundários pelos desempregados do capital e
ocupando o lugar social dos trabalhos que as empresas capitalistas não se interessam por fazer,
seja pela complexidade, risco ou baixa lucratividade das atividades econômicas.
Trata‐se de uma outra economia do trabalho, com uma outra perspectiva de produção,
trabalho e consumo, na direção de uma sociedade inclusiva, em uma ampla concepção dos
termos solidariedade, sustentabilidade e responsabilidade social, que estão correlacionados às
práticas econômicas e sociais cooperativistas.
No entanto, cabe ressaltar que as práticas não‐capitalistas podem ter a sua lógica subvertida 281
aos interesses do capital, pois não são as formas não‐capitalistas em si que garantem práticas
sociais inclusivas, mas, antes, o estabelecimento dos interesses econômicos e das relações de
dominação, conforme discutido anteriormente.
A dinâmica da terceirização, por exemplo, com a flexibilização do trabalho, pode subverter as
atividades cooperativas em instrumentos para a precarização do trabalho coletivo, retirando
garantias sociais do emprego formal legalmente estabelecidas.
Singer e Souza (2000) apontam para essa subversão do cooperativismo para fins da
precarização coletiva do trabalho, viabilizando a terceirização de mão‐de‐obra e a
monopolização de segmentos de mercado, com a formação de falsos grupos cooperativos com
fins lucrativos e sem os fins sociais.
Singer (2002, p.13) enfatiza que o cooperativismo carece de instrumentos de regulação que
consigam, efetivamente, coibir as chamadas “cooperativas de mão‐de‐obra”, que buscam no
modelo cooperativista saídas econômicas para a exploração do trabalho e redução de custos de
produção, por meio da precarização coletiva do trabalho terceirizado.
Para a atuação efetiva de sociedades cooperativas no Brasil, relacionadas aos vários segmentos
econômicos da construção civil, é necessária uma ampla reordenação socioeconômica do
sistema produtivo cooperativo. Assim, é fundamental promover um autêntico sistema
produtivo cooperativista, e não apenas um conjunto de atividades cooperativas isoladas, ou
mesmo agrupadas em ramos segmentados, em uma efetiva intercooperação produtiva das
práticas autogestionárias, constituindo o funcionamento de uma economia social de base
cooperativista.
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Isso significa a necessidade de se constituir um sistema de produção baseado nos princípios da
economia social e integrá‐lo à construção civil, interligando diversas atividades cooperativas de
produção, trabalho, consumo e crédito, em um sistema de redes de intercooperação com
atividades autogestionárias na construção civil. Dessa forma, redes solidárias podem ativar a
dinâmica geral da economia pela centralidade econômica da construção civil, estabelendo
várias cadeias produtivas não‐capitalistas correlacionadas.
Com efeito, a ordenação jurídica e as políticas públicas brasileiras com relação ao
cooperativismo necessitam de aprimoramentos e do estabelecimento de normas que
regulamentem as diferentes atuações cooperativas, conectando setores econômicos e cadeias
produtivas por atos cooperativos autogestionários relacionados.
Entretanto, o marco legal do cooperativismo brasileiro já conta com as disposições da
Constituição da República, que estabelece a criação de associações e cooperativas sem a
interferência estatal, apoiando e estimulando atividades econômicas de cooperativas e outras
formas de livre associação. Como também com a lei geral do cooperativismo, lei nº 5.764/1971,
que define a política nacional do cooperativismo e institui o regime jurídico das sociedades
cooperativas configuradas pelo Código Civil brasileiro.
Além disso, o desenvolvimento urbano inclusivo, com base no sistema produtivo
cooperativista, pode ser acionado através de um conjunto de instrumentos legais disponíveis
para ações socioeconômicas relacionadas à construção civil brasileira: na lei que trata do
Sistema Financeiro da Habitação ‐ lei federal nº 4380/64; nas diretrizes do Estatuto da Cidade
para a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano ‐ lei federal nº 10.257/2001; nas diretrizes 282
da Política Nacional de Habitação ‐ lei federal nº 11.124/2005, que institui o Sistema Nacional
de Habitação de Interesse Social e cria o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social –
FNHIS; na lei federal nº 11.888/2008, que garante assistência técnica às famílias de baixa renda
para fins da construção de interesse social; na lei federal nº 11.977/2009, que institui o
Programa Minha Casa Minha Vida; e outros atos normativos do governo federal.
Diante disso, pode‐se afirmar o interesse público nas formas produtivas autogestionárias,
através das associações e cooperativas, para a transformação social com inclusão e justiça
urbana.
Apesar da amplitude do conjunto legal apresentado, a cultura produtiva brasileira da
construção civil não corresponde aos avanços sociais que a lei determina. A inserção do
cooperativismo nas atividades produtivas da construção civil brasileira ainda é muito pequena,
estando relacionadas às cooperativas de trabalho e, principalmente, às cooperativas
habitacionais.3
Em suma, as cooperativas de trabalho fornecem mão‐de‐obra para a indústria capitalista da
construção civil, de maneira dispersa entre os vários ofícios e em diversas atividades
produtivas. Por sua vez, as cooperativas habitacionais conformam grupos em regime
autogestionário para o provimento de moradias de interesse social.
Esses âmbitos de atuação do cooperativismo na construção civil brasileira são ainda
muito incipientes, se comparados à amplitude formal e informal da atuação
socioeconômica da construção civil.
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De fato, as atividades sociais e econômicas relacionadas à construção civil perpassam por
qualquer tipo de construção humana de permanência contínua ou temporária, em qualquer
escala, para fins individuais ou coletivos, privados ou públicos, desenvolvendo materiais,
tecnologias e processos construtivos diversos; movimentando solos; pavimentando ruas e
estradas; constituindo sistemas de energia, esgoto, drenagem e abastecimento de água;
gerenciando resíduos sólidos; promovendo instalações prediais e de equipamentos,
urbanizando bairros, vilas e favelas, dentre outras ações e trabalhos relacionados às atividades
produtivas e produtos desenvolvidos pela construção civil. 4
Seja para habitar, trabalhar, transitar, prover melhorias de recursos urbanos ou rurais, dentre
outros, a construção civil tem uma importante função social com relação ao atendimento das
demandas construtivas dos indivíduos e da sociedade, como construir casas, edifícios, ruas,
avenidas, viadutos, pontes, praças, aeroportos, portos, instalações industriais, barragens e
usinas de geração de energia.
Diante disso, a premissa aqui estabelecida é que as sociedades cooperativas de construção civil
podem atuar não apenas no setor econômico habitacional voltado, principalmente, ao
interesse social, mas nas demandas gerais por construção e infraestrutura, em várias escalas
produtivas.
Nesse horizonte de atuação do cooperativismo na construção civil, pode‐se subverter a lógica
capitalista, que institui grandes canteiros de obras para concentrar os meios de produção,
investindo na verticalização para multiplicar ganhos de capital, desinteressando‐se pelo
atendimento a pequenos empreendimentos dispersos no território. 283
Pela lógica da autogestão, descartando‐se os fins lucrativos da produção, sociedades
cooperativas de construção podem também atuar diretamente na recuperação urbana pontual
e dispersa, que não constitui grande interesse para práticas industriais da construção civil,
movida pela lucratividade em larga escala, e que são muito importantes para a revitalização de
espaços urbanos e patrimônios históricos prediais.
Requalificar edificações insalubres e abandonadas, como também recuperar áreas degradadas,
dotar infraestrutura urbana, condições de acesso e mobilidade aos espaços são ações sociais e
econômicas que cooperativas de construção podem realizar.
Considerando o envolvimento do poder público na autogestão urbana e a mobilização social
intrínseca às cooperativas, o ordenamento territorial pode ter um ator econômico, que exerça
limites aos avanços do capital, desestruturadores de qualidades, ambientais, culturais ou
históricas.
Assim, os atos cooperativos podem influenciar a vida das pessoas, promovendo inclusão social
nos âmbitos da produção, trabalho e consumo, como também da gestão urbana, o que
representa uma outra dinâmica na economia, com relação ao acesso ao trabalho, geração de
renda, aliado ao uso e à ocupação do solo nas cidades, sem os fins lucrativos.
Com isso, as cooperativas de construção, nessa concepção prospectiva, colocam em questão o
modo como a interação e a representação social podem acontecer diretamente no trabalho
construtivo, influenciando estratégias solidárias de produção e trabalho, e indiretamente em
formas de inserção social no território, redefinindo relações entre Estado‐mercado‐sociedade.
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A condição autogestionária cooperativista ampliada à autogestão urbana e à ativação da cidadania
implicam maior coesão social para a gestão urbana com maior poder de decisão sobre o espaço
urbano por parte dos cidadãos autogestionários. Isso implica melhorias gerais nas condições de vida
dos espaços cotidianos, como também a potencialização de reordenações locais e regionais, capazes
de intervir na dinâmica de expansão urbana e suas práticas territoriais excludentes.
Cadeias produtivas não‐capitalistas podem ser acionadas e vários empreendimentos autogeridos
podem ser organizados em diversos ramos econômicos. Com isso, a incubação de empreendimentos
autogestionários e a transferência tecnológica apropriada para os fins sociais são fundamentais para a
viabilidade desse sistema, bem como os princípios orientadores da Economia Social.
A constituição de uma outra cultura produtiva pode ser efetivada, desenvolvendo‐se tecnologias e
materiais com fins sociais, envolvendo a abertura de frentes solidárias de produção e trabalho, com
preservação de identidades e diversidades locais, além da utilização responsável de energia e recursos
naturais.
5 CONSTRUÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO
O grande desafio da reestruturação produtiva com sentido social na construção civil,
descrita acima, está na ruptura da cultura produtiva dominante, que exerce um papel
estrutural na dinâmica geral da economia capitalista brasileira.
A indústria da construção civil é evidenciada na centralidade do atual desenvolvimento 284
econômico brasileiro, tendo como suposta função social contribuir para o crescimento
econômico e a geração de emprego e renda, através das atividades de construção de
edifícios, obras de infraestrutura e serviços especializados para construção.5
Dados recentes desse setor, publicados pelo IBGE, com base na Pesquisa Anual da
Indústria da construção, referente ao ano de 20106, demonstram que a construção civil
contribui em 5,7% do PIB do país em um montante de R$ 250 bilhões, ocupando cerca de
2,5 milhões de pessoas e pagando em média 2,6 salários mínimos mensais. Os gastos do
setor formal da construção civil com salários, retiradas e outras remunerações7 são de R$
41,9 bilhões, o que representa um salário médio mensal de R$ 1 300, 00. Ressalta‐se
ainda que os custos e despesas da construção são de R$ 205,6 bilhões, e os gastos com
pessoal ocupado8 são cerca de 30,7% desse total, compreendendo R$ 63,1 bilhões.
A análise conjuntural elaborada pelo DIEESE, no Estudo Setorial da Construção de 2011,
informa que o saldo de empregos do setor no ano de referência é de 300 mil postos de
trabalho, uma vez que dos 2,5 milhões de pessoas ocupadas; 2,2 milhões foram
demitidas em 2010. O argumento da geração de emprego do setor não leva em conta a
imensa rotatividade dos arranjos produtivos que instituem uma política de alta
rotatividade. 9
Segundo informa a análise conjuntural realizada pelo DIEESE, o contexto do aquecimento
econômico do mercado da construção é movido, em grande parte, pelas atividades produtivas
fomentadas pelas políticas públicas do Programa de Aceleração do Crescimento, Programa
Minha Casa Minha Vida, Copa 2014 e Olimpíada 2016.10
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Desde 2009, a política habitacional brasileira foi alterada de uma política de interesse
social para tornar‐se um programa econômico de industrialização capitalista. O objetivo
principal Programa Minha Casa Minha Vida, por exemplo, é “criar um ambiente
econômico confiável que estimule o crescimento do mercado formal de habitação e
crédito, bem como a geração de emprego.” O Plano Nacional de Habitação destaca ainda
essa perspectiva econômica como medida anticíclica, referindo‐se à estratégia de
fortalecimento do mercado interno para o enfrentamento da crise econômica mundial de
2008.11
Entretanto, com base nos estudos do DIEESE, pode‐se afirmar que as relações sociais de
produção permanecem, atualmente, inalteradas, mantendo‐se a cultura produtiva da
construção civil capitalista, em processos semi‐industriais, fundamentalmente,
associados à exploração intensiva de mão‐de‐obra, trabalho manual e informal, alta
rotatividade dos trabalhadores de níveis hierárquicos mais baixos (serventes) e fraca
representação sindical da classe trabalhadora da construção civil.
Embora o cenário tecnológico da construção civil tenha‐se alterado na atualidade com o
incremento da pré‐fabricação industrial e da modernização do setor, movida por
interesses empresariais aliados aos interesses governamentais presentes nas políticas
públicas para o desenvolvimento econômico nacional, a modernização industrial do setor
mantém os princípios da manufatura, cuja base são os ofícios manuais.
Para Farrah (1996. p.104), o atraso tecnológico típico da construção civil significa a forma
específica de acumulação de capital por esse setor econômico, baseado na baixa 285
composição orgânica do capital, movendo‐se à base de mão‐de‐obra intensiva, não‐
qualificada, em processos artesanais e manufatureiros com elevadas perdas de recursos
materiais e frágil presença de máquinas e de equipamentos mecânicos.
De fato, a suposta eficácia do modelo econômico da indústria da construção civil, em
curso no país, não tem correspondido à prometida inclusão social nos moldes
capitalistas. O aumento do número de empregos formais não rompe com a rotatividade e
imensa informalidade do trabalho na construção. Além disso, o modelo econômico não
tem sido seguido por significativos aumentos no rendimento mensal dos trabalhadores
da construção, não promove incremento de saúde e segurança no trabalho, mantendo‐se
condições muito precárias de trabalho nos canteiros de obras.
Por outro lado, o crescimento do mercado formal de habitação industrializada significa a
escala necessária para manter a rotatividade do capital e a viabilidade financeira ao setor
bancário no médio e longo prazo. Os estudos do DIEESE apontam para a importância de
33% do financiamento total do PAC 1, R$ 216,9 milhões, contou com recursos do
financiamento habitacional para pessoa física. 12
Para Harvey (2005, p.48), para que seja viável a elaboração de um novo patamar para
configurar uma demanda efetiva com capacidade de absorção do mercado consumidor, é
preciso atender a quatro pressupostos: penetração do capital em novas esferas
produtivas; criação de novas necessidades de consumo; crescimento populacional; e
expansão geográfica.
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Esses pressupostos são elementos conhecidos da teoria marxiana em uma releitura, que
articula a base populacional necessária para prover execedente de mão de obra; mercado para
a produção de bens de produção; mercado de consumo para absorver mercadorias crescentes
e base territorial para reprodução e ampliação do capital.
Os quatro pressupostos podem ser verificados no cenário econômico atual brasileiro, em que a
habitação tem‐se tornado uma demanda efetiva, considerando‐se que a penetração do capital
em novas esferas produtivas tem sido fomentada pela presença das políticas e programas
governamentais como PAC, Minha Casa Minha Vida, Copa 2014, Olimpíadas 2016. Além disso
são incentivadas a criação de novas necessidades de consumo com a viabilização do “sonho da
casa própria”, e esta recheada com móveis, eletrodomésticos, carros, roupas e telefones novos,
todos financiados a longo curto, médio e longo prazo, principalmente, para a nova classe
trabalhadora brasileira. Com relação ao crescimento populacional e expansão geográfica, o país
tem mantido o crescimento populacional das classes pobres e incentivado a expansão das
zonas urbanas consolidadas, periféricas e rururbanas, pelas atividades da indústria da
construção civil.
Sem reformular capital e trabalho no sentido social inclusivo e mantendo‐se ou até mesmo
aprofundando formas cristalizadas de expropriação do trabalho e da terra, pergunta‐se que
tipo de inclusão social está sendo gestada pela governança brasileira ao fomentar políticas de
desenvolvimento favoráveis à exploração do trabalhador brasileiro e ao rentismo imobiliário da
terra?
Muitos outros impactos inclusivos na produção social do espaço podem ser gerados com a 286
cidadania ativada pela lógica da autogestão cooperativista. Ao constituir outras formas para
ações econômicas com sentido social, modificam‐se os comportamentos, as técnicas, os
instrumentos, os materiais e as formas sociais do trabalho produtivo e de ocupação territorial.
Portanto, o trabalho produtivo alienado pode tornar‐se trabalho com consciência crítica e
responsabilidade social, o que reposiciona a produção e o trabalho para a sustentabilidade e o
desenvolvimento social, redefinindo num sentido amplo relações entre economia e sociedade,
que perpassam a construção civil.
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WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva, volume 1. 4ª ed. Brasília: Editora
UnB, 2009.
7 NOTAS
1
O termo economia social não possui consenso acadêmico no Brasil, sendo encontrado principalmente como
sinônimos: economia solidária, economia popular e economia do trabalho. Adoto o termo economia social neste
trabalho, abarcando a perspectiva global da sua história pregressa conectada às iniciativas alternativas ao
capitalismo, como o mutualismo, o cooperativismo, o associativismo e o ativismo político relacionado aos
movimentos sociais urbanos e às lutas operárias dos séculos XIX e XX.
2
O conceito de embeddedness, de Mark Granovetter, é traduzido para a língua portuguesa como imbricação ou
imersão. Na tradução do texto de Swedberg (2005), adota‐se o termo imbricação. Entretanto, a tradução do texto de
Granoveter (2007) adota o termo imersão. Considerando que a discussão crítica de Swedberg aponta para a noção
weberiana de comportamento para o outro, o termo imbricação parece‐me adequado pela sugestão de estreita
ligação em que os elementos se confundem ou se mesclam. Entretanto, o sentido do ato de imbricar configura uma
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imersão, especialmente imersão nos comportamentos sociais. Neste artigo, adoto o termo imersão.
3
Dados relacionados aos ramos econômicos da Organização das Cooperativas Brasileiras – OCB.
4
Produtos da construção relacionados pelo IBGE ‐ Pesquisa anual da Indústria da Construção, 2010. p.33.
5
Construção de edifícios, obras de infraestrutura e serviços especializados para construção são respectivamente os
agrupamentos das atividades do setor, segundo a metodologia proposta pelo IBGE ‐ Pesquisa anual da Indústria da
Construção, 2010.
6
IBGE ‐ Pesquisa anual da Indústria da Construção, 2010. p. 27
7
A variável salários, retiradas e outras remunerações corresponde à soma das importâncias pagas no ano a título de
salários fixos, pró‐labore, retiradas, honorários, comissões, ajudas de custo, 13o salário, abono financeiro de 1/3 e
venda de parcela de férias, etc., sem dedução das parcelas correspondentes às cotas de Previdência e Assistência
Social (IAPAS). Excluem‐se os pagamentos a trabalhadores em domicílio e, ainda, as participações pagas a
profissionais autônomos. Segundo a metodologia proposta pelo IBGE ‐ Pesquisa anual da Indústria da Construção,
2010.p. 18.
8
A variável pessoal ocupado corresponde ao registro do número de pessoas ocupadas que, em 31/12 do ano de
referência, exerciam efetivamente ocupação na empresa de acordo com as categorias funcionais descritas no
questionário do PAIC. Inclui as pessoas que em 31/12 encontravam‐se afastadas por motivo de férias, de licença,
seguros por acidentes etc., desde que estes afastamentos não tenham sido superiores a 30 (trinta) dias. Não
considera‐se o pessoal sem vínculo empregatício, pessoal dos serviços prestados por terceiros e locação de mão‐de‐
obra. O pessoal ocupado é discriminado, segundo os seguintes grupos: proprietários ou sócios com atividade na
empresa, presidentes e diretores; pessoal não ligado à construção; e pessoal ligado à construção, tais como: pessoal
de nível superior (gerentes, chefes e supervisores), mestres e encarregados, operários, armadores, carpinteiros,
pedreiros, serventes, etc., com atividade na empresa. Segundo a metodologia proposta pelo IBGE ‐ Pesquisa anual 288
da Indústria da Construção, 2010.p. 16.
9
DIEESE, Estudo Setorial da Construção de 2011. p. 14.
10
DIEESE, Estudo Setorial da Construção de 2011. p. 23.
11
Ministério das Cidades. Plano Nacional de Habitação. 2009, p. 192.
12
DIEESE, Estudo Setorial da Construção de 2011. p. 24.