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Capítulo 1

Já era tarde da noite quando resolveu encerrar as brincadeiras na piscina


com Dewgong. Nos dias de calor, como aquele, era hábito comum estendê-las
até aquele horário, quando todo o ginásio já estava em silêncio, a não ser pelos
sons dos mergulhos e saltos do pokémon que jogava bola com ela nas costas,
de um lado para o outro, isso tudo depois de toda a rotina de treinamentos. Sua
resistência era formidável, e Trienne o admirava muito por isso, mas também era
muito carinhoso, se ela não lhe desse descanso àquela hora, passaria a
madrugada jogando com ela e ainda estaria todo feliz ao amanhecer.

Ela secava os cabelos com a toalha enquanto pendurava o maiô no varal


da varanda, usava o seu roupão azul predileto depois de um bom banho. No
caminho para o quarto, passou pela porta da sala, aonde viu o pai encher o copo
com mais uma dose de uísque. Notara que ele andava exagerando bastante
durante as noites, mas não era seu hábito fazê-lo e ela preferia fingir que não
notava. Com todos os problemas que andava enfrentando, supunha que tomar
uns copos a mais não lhe prejudicaria demais a saúde.

Havia quase um mês desde que a policial chefe da cidade, sra. Bella,
muito amiga de seu pai há anos, veio toda cabisbaixa e contrariada lhe entregar
a ordem judicial. As atividades no ginásio deveriam cessar de imediato e eles
estavam respondendo processo. E perderiam, com certeza. Há mais de uma
década o pai, o sr. Germann, liderava o ginásio da cidade de Seeland de forma
exemplar. Trienne era sua fiel testemunha, nunca o vira falhar, nenhuma vez
sequer, cuidava do ginásio todos os dias, até quando estava doente, e lhe
ensinara desde pequena a fazer o mesmo. Lhe deixava ajudar com tarefas
simples como alimentar os pokémons, auxiliar na parte lúdica de seu
treinamento, além de, por vezes, realizar as visitas guiadas aos turistas. Sabia
tudo sobre cada peça daquele lugar, surpreendendo até aos mais céticos
visitantes com a prontidão e a qualidade das informações que dava a cada nova
pergunta. Sabia até mais do que o pai gostaria, porque às vezes fugia das tarefas
escolares para espiar as batalhas dele às escondidas.
Nunca, nenhuma falha. Até aquele fatídico dia. Durante um de seus
desafios, parte do teto do ginásio desabou e o garoto desafiante quebrou a
perna. Não havia explicação para aquilo além da fatalidade, toda aquela área
passara recentemente por rigorosas reformas para a realização das quais o sr.
Germann atrasou as de sua própria residência. Tudo estava na mais perfeita
ordem e de acordo com todos os protocolos de segurança. Mas um grupo de
energúmenos relatou no laudo da perícia que o acidente ocorrera por falhas na
manutenção. Agora, além da indenização que teriam que dar à família do garoto,
a qual o pai fazia questão de pagar, a Comissão da Liga se aproveitava deste
ocorrido para embargar o ginásio até que uma outra reforma especificada em
contrato fosse realizada. Uma que eles jamais teriam condições de realizar e
que, caso conseguissem, os tesoureiros da liga, de forma muito oportunista,
acrescentariam as benfeitorias realizadas por terceiros em seu patrimônio.

Havia um prazo, quase a vencer, para que tudo fosse acertado. Caso isso
não acontecesse, a família teria que deixar o ginásio com uma dívida gigante e
sem ter para onde ir. Não tinham como conseguir outra casa com estrutura para
abrigar todos aqueles pokémons e nem sustento para eles. Por mais que
pensasse, o pai não conseguia achar solução, até uma semana atrás, quando
um representante comercial da Satz, uma grande empresa de tecnologia, veio
lhe oferecer um acordo de mediação através do qual a empresa compraria da
liga a concessão da propriedade e o sr. Germann e família sairiam sem dívidas.
Mas esta era a morte de um sonho, pois o ginásio seria transformado em uma
extensa área comercial.

O pai viera conversar com ela noite passada. Disse que aceitaria. Trienne
argumentou fervorosamente contra, afinal, nada daquilo era culpa do líder de
ginásio, ela sabia, até mesmo a polícia local sabia, e embora as indenizações à
família do garoto devessem ser pagas, não havia por que perderem todo o
trabalho de uma vida e uma carreira inteira, que exigiu muita dedicação, por um
acidente que não fora sua culpa. Além disso, não conseguia engolir um ginásio
reconhecido como aquele se transformar em um monte de prédios e lojas. Mas
nada adiantara, não havia saída e fariam o acordo.

O cúmulo veio quando viu o nome do pai nos jornais, difamado pela
imprensa e culpado de uma irresponsabilidade que não cometera. Desonrado.
Vários depoimentos mentirosos de antigos desafiantes que nunca conseguiram
ganhar a insígnia, dizendo que o lugar sempre fora malcuidado e que o sr.
Germann tinha a obrigação de arcar com todos os prejuízos, foram parar nas
páginas matinais. Até mesmo um antigo rival e pretendente ao cargo de líder
daquele mesmo ginásio fora à uma emissora local testemunhar contra a conduta
do atual líder.

Não aturaria mais aquilo. Aquela fora sua noite de despedida com
Dewgong, o pokémon do pai com o qual tinha mais afinidade desde criança. Ela
foi até o quarto, abriu a porta e, com lágrimas nos olhos, deu de cara com aquelas
paredes todas pintadas em um caos de figuras. Smeargle, seu próprio pokémon,
lhe esperava em pé sobre a cama, segurando o rabo, que terminava em um
pincel, com a mão, fazendo mais alguns rabiscos sobre a cabeceira. Quantas
vezes pintara e repintara aquele quarto, apenas para que o companheiro
pudesse rabiscá-lo novamente com novas linhas. Trocou de roupa. Tinha
deixado a mochila pronta, chamou o amigo, que atendeu prontamente, e ficou
esperando o pai adormecer na poltrona da sala. Com todo aquele uísque, não
demoraria mais do que meia hora. Dito e feito. Conferiu se não estava se
esquecendo de nada.

E saiu.

Capítulo 2

Estava entardecendo quando descobriu que não se preparara nem dez


por cento para o que pretendia fazer. Trienne vivera até os dezesseis anos em
um ginásio e sabia tudo o que precisava para mantê-lo impecável, porém, era a
primeira vez que viajava sozinha. Já tinha completado a idade legal para isso,
mas não tinha a experiência de que necessitava. Tinha feito uma pesquisa
minuciosa em sua casa, parecia fácil, apenas precisava seguir a Rota 32 e
estaria em Garbord, mas por um descuido de principiante, acabou saindo da
estrada e agora não conseguia encontrá-la mais. Seu celular estava sem bateria
e, mesmo quando ainda funcionava, não tinha sinal para que fosse usado e
agora ela tinha a percepção de que deveria ter se equipado com itens mais
primitivos e mais funcionais em zonas não urbanas, como uma bússola e um
mapa.

Trouxera consigo um saco de dormir, mas a última coisa que queria era
passar a noite no bosque. A escuridão, diziam, era total e aquela provavelmente
não seria uma noite de luar. Smeargle vinha sempre ao seu lado, e já
demonstrava também sinais de uma crescente ansiedade. “Calma, parceiro,
vamos ficar bem”, dizia ela, acariciando sua cabeça, entretanto a verdade é que
não tinha certeza nenhuma disso. O sol ainda podia ser visto no horizonte e,
ainda assim, em meio às árvores já estava difícil de enxergar. Por duas vezes
um wurmple roçou em seu pé enquanto caminhava e ela tomou um grande susto.
Pensando bem, achava inclusive que era o mesmo e que ela andava em círculos.

Não conseguiu achar a estrada, mas encontrou acidentalmente um lago,


onde reabasteceu suas garrafas de água e começou a cogitar passar a noite ali,
se pudesse acender uma fogueira. Foi quando escutou o farfalhar dos ramos
atrás de si e, virando-se, viu um garoto magro e alto, de pele negra e cabelos
crespos ao estilo black power, saindo do meio da mata. Pela garrafa que trazia
na mão, viera com o mesmo objetivo que ela. Demorou a percebê-la, e quando
a viu diante de si já estavam próximos.

– Uow.... me desculpe – disse ele, quando notou que, caso continuasse,


trombaria com a desconhecida – achei que estava sozinho.

– Não foi nada – respondeu ela, tímida – não se preocupe.

– Dukhen – ele estendeu a mão em cumprimento.

– Trienne – ela respondeu, apertando-a.

– Você também treina pokémons – observou ele, notando o tímido


smeargle que se escondia atrás das pernas dela.

– Err... sim – respondeu.


– Topa uma batalha?

– Claro, por que não? – ela não tinha ideia do que estava fazendo,
desconhecia os protocolos e não sabia se deveria recusar ou não.

Ele até esqueceu de encher sua garrafa, estavam frente à frente, dois
adolescentes, ele não poderia ser muito mais velho do que ela. Dukhen tirou do
cinto uma pokébola e pressionou o seu centro, ao que ela quadruplicou de
tamanho. Quando a abriu, um geodude, pokémon semelhante a uma rocha com
braços, saltou para diante de smearlge.

Como ele apenas esperasse, ela deu seu comando: “esfera de


eletricidade”, e smeargle prontamente respondeu. Usou a mão para girar em alta
velocidade a ponta da cauda e a rotação gerou uma corrente elétrica em forma
de círculo. Com um salto, atirou-a contra a rocha de braços. O adversário nem
se preocupou em esquivar, absorveu todo o impacto sem nada sofrer.

– Eletricidade não vai funcionar contra o geodude – gabou-se ele e,


quando ia ordenar um ataque...

– É o único que ele conhece – disse Trienne, cabisbaixa.

– Como disse? – o garoto parou.

– Eu desisto – disse a garota – meu pokémon só conhece um ataque e,


para falar a verdade, esta foi a minha primeira batalha fora de casa.

– Entendo – ele deixou de lado a postura de batalha e relaxou – você não


sabe o que fazer, não é?

Ela balançou a cabeça.

– Não há problema – tranquilizou-a – deveria ter me dito.

– Fiquei com vergonha – ela enrubesceu.

– Não seja boba. Trouxe comida? Eu tenho bastante, vamos nos sentar e
comer.

Estavam sentados à beira do lado quando a noite caiu por completo,


ambos tinham comida e fizeram uma boa refeição. Tinham juntado lenha e,
usando uma pastilha de acender churrasqueira, fizeram uma fogueira. Era a hora
de alimentar os pokémons. Para a surpresa de Dukhen, Trienne tirou outra
pokébola da bolsa e arremessou em direção ao lago, e um enorme dewgong
nadava em círculos, todo animado.

– Você tinha um dewgong esse tempo todo? – ele parecia impressionado


– Por que não o usou na batalha? Meu geodude não teria chance.

– Este pokémon não é meu – explicou ela – é do meu pai, este dewgong
cuida de mim desde que eu era pequena por ordens dele. Eu não ia trazê-lo,
mas ele não permitiu que eu saísse sem ele, bloqueou meu caminho e
empurrava sua pokébola na minha direção com o focinho repetidas vezes, até
eu concordar.

Dukhen riu.

– Menina de sorte, não deveria estar tão insegura com um guardião desse
porte do lado.

– Eu gostaria de vencer minhas batalhas com meu próprio pokémon –


confessou ela – um pokémon que eu criei sozinha.

– Claro, eu entendo. Você logo vai aprender como se faz. Está indo para
onde?

– Garbord.

– Eu vim de lá. Você não está longe, se partirmos amanhã cedo,


chegamos em umas duas horas, dependendo da sua velocidade de caminhada.

– Você vai voltar para lá?

– Sim – disse ele – estou no bosque para explorá-lo, mas estou


hospedado na cidade.

Passaram o restante da noite conversando. Ficou óbvio que o que ela


tinha de inexperiente em viagens, Dukhen tinha de experiente. Ele era da cidade
de Allemd, que fica em outra ilha do arquipélago que formava a região de Ihnard
e, quando ela finalmente lhe contou sobre sua situação, ele se comprometeu a
ajudá-la durante os primeiros dias, até que ela tivesse autonomia para seguir
sozinha. Combinaram que, no dia seguinte, ele lhe mostraria o funcionamento
da vida de um aventureiro.

Capítulo 3

Dukhen era um homem de palavra e, como dissera na noite passada,


após duas horas de caminhada estavam chegando em Garbord. Ele não teve
dificuldade alguma em achar a estrada novamente e, quando perguntou como
ela havia se perdido, Trienne mentiu que tinha perseguido um pokémon até o
meio do bosque, julgava que seria vergonhoso demais admitir que apenas se
afastara demais para ir ao banheiro com medo de ser vista da trilha.

Garbord era uma cidade muito movimentada e misturava uma arquitetura


paradisíaca com um acúmulo incompatível de construções e lixo. Mas, segundo
o garoto, era uma cidade segura e muito boa para abrigar viajantes como eles.
Enquanto caminhavam em direção ao centro da cidade, ela lhe perguntou como
ele conseguira um quarto lá.

– Bom – disse ele – existem três formas de um viajante se manter. Alguns


pouquíssimos recebem patrocínio para suas viagens por parte dos grandes
laboratórios de pesquisa reconhecidos pela Comissão da Liga, mas é um grupo
muito seleto e pode haver apenas três por laboratório. Normalmente, são
parentes selecionados a dedo pelos cientistas que trabalham nestes mesmos
laboratórios ou na própria Comissão da Liga. Eles coletam informações através
de dispositivos tecnológicos que mais tarde são utilizadas para pesquisa, o que
justifica o patrocínio. Não é para nós, reles mortais.

“A segunda forma é você ter uma família rica que te banque enquanto
você viaja, mas não é o nosso caso, tampouco. Pessoas comuns como nós
providenciam isto – ele mostrou um cartão azul que tirou da carteira – vamos
fazer um para você assim que chegarmos no posto oficial da liga. Com ele,
podemos trabalhar em um regime especial de meio período nos comércios da
cidade e receber por dia. O que também nos dá o direito de dormir gratuitamente
em um dos albergues para viajantes. Eles ficam abertos das oito horas da noite
às nove da manhã, e fornecem um quarto individual de proporções minúsculas,
mas bem confortável. Como o turismo Pokémon movimenta muito dinheiro,
instituições como essas podem existir patrocinadas por empresas que ofertam
produtos destinados a este mercado. Se está acompanhando, já entendeu como
funciona, você toma café da manhã no albergue e almoça no trabalho, o que
permite só gastar com o que for comer à noite e com a comida dos pokémons.”

“Claro, alguns dormem também nas alas comunais do Centro Pokémon


da cidade, mas isto é menos confortável e você precisa ter seu próprio saco de
dormir. Em outras palavras, dorme no chão. Ao final de uma ou duas semanas
de trabalho, consegue acumular um salário suficiente para se reabastecer com
comida, pokébolas e afins e retomar viagem. Se for a uma cidade perto, pode ir
a pé, se não você aluga uma bicicleta. Está entendendo?”

Tudo aquilo era informação demais para Trienne naquele momento.

– Então você come só três vezes ao dia? – foi o que conseguiu perguntar.

– A vida não é fácil para quem resolve explorar este mundão na raça. Ah
– lembrou-se ele, repentinamente – é claro, você só recebe estes benefícios se
estiver com seu currículo escolar em dia, então, semanalmente você receberá
no seu celular o material online preparado pelo estado e as tarefas que precisa
fazer, se em algum momento seu desempenho ficar abaixo da média, você não
pode mais utilizar o cartão e precisa estudar pelo menos por um ano em uma
instituição de ensino presencial.

– Que saco – ela parecia desanimada – isso tudo é muito complicado.

– Não precisa necessariamente ser tão chato – disse uma voz perto deles.

Quando se viraram, deram com a figura mais exótica que tinham visto.
Um garoto mais alto do que eles, de jaqueta preta, com um enorme estojo de
violão às costas, sobre o qual se empoleirava tranquilamente um farfetch’d.
Agarrado a um dos braços, dormia profundamente um gracioso komala.

– Ah, é o Ferd – balbuciou Dukhen.

– Você estava ouvindo? – indagou Trienne.


– Não tenho culpa – respondeu o garoto chamado Ferd – ele se empolga
muito ao falar. Todo mundo na rua ouviu.

– Não dê ouvidos a ele – interrompeu Dukhen – ele é um boa-vida.

– Um o quê?

– Boa-vida – repetiu ele – é um quarto tipo de viajante. É o tipo que “se


vira”. No caso do Ferd, ele fica pelas ruas e toca violão em troca de uns trocados
para comer e beber.

– E o que você faz com a escola? – perguntou inocentemente a garota.

– Abandonei – confessou sem ressalvas o boa-vida.

– O que?

– Olha – disse ele – essas coisas todas vão tornar suas viagens um
verdadeiro inferno. Eu não quero saber de nada disso. Você vai dormir em
albergues e eu vou aproveitar o luar no banco da praça.

– E quando chove?

– Eu me viro – respondeu ele, muito seguro de si.

– Não é perigoso? – questionou a garota.

– Só para quem não sabe fazer – gabou-se – agora, se me dão licença,


preciso fazer uns trocados.

– Um momento – disse ela, quando ele já estava se afastando, o que


deixou Dukhen meio irritado – eu já vi você em algum lugar – mal terminara de
dizer, lembrou-se aonde o vira e se tocou da besteira que tinha feito.

Ele a encarou de volta, mais atencioso.

– Uma garota e um smeargle – subitamente, seu semblante se iluminou –


você é a garotinha do Germann, o líder do ginásio da cidade de Seeland!

– Você é filha de um líder de ginásio!? – espantou-se Dukhen.


Capítulo 4

– Sim – confessou Trienne, encabulada.

– Por isso aquele dewgong parecia tão forte – observou Dukhen – você
poderia ter me contado – havia um toque de ressentimento na voz.

– Eu ia – defendeu-se a garota – mas, desde que parti, tudo está


acontecendo muito rápido e eu ainda estou tentando entender como as coisas
funcionam.

Ele ainda parecia meio amargurado.

– Olha – disse ela – eu realmente agradeço muito o que você está fazendo
por mim. Então, vou lhe contar tudo.

Ela então lhes contou todos os fatos pelos quais a família estava
passando e a injustiça que representavam para ela. Dukhen ficou muito
impressionado ao ouvir tudo aquilo e, tão logo entendeu a importância da
história, perdoou-a instantaneamente pela reserva. Ferd parecia muito irritado.

– Eu fui um desafiante do ginásio de Seeland quando estive por lá fazendo


alguns shows com meu antigo grupo musical – disse ele – eu o desafiei várias
vezes, mas nunca venci. Seu pai me recebeu muito bem e sempre foi muito
honesto nos combates. O ginásio era impecável. Lembro-me de que o sr.
Germann me deu abrigo nele em um dia de tempestade, foi aí que descobri que
você e seu smeargle espionavam as batalhas.

Ela corou.

– Não entendo como antigos desafiantes puderam dar estes depoimentos


mentirosos. O ginásio era exemplar.

– Obrigado – disse ela, muito tímida, e Dukhen notou, um tanto quanto


surpreso, que sentia uma pontada de ciúmes da identificação que ocorria entre
eles.
– Eu vou te ajudar! – prontificou-se o garoto – Do que você precisa?

– Promete que não vai rir? – a garota corou ainda mais.

– Claro que prometo! – garantiu ele.

– Eu pensei que, como fui criada pelo meu pai e devo a ele tudo o que eu
sei sobre pokémons, se eu conquistasse as insígnias dos outros ginásios eu
provaria o quão digno ele é.

– Você deseja recuperar a dignidade que seu pai perdeu perante a


sociedade?

– Mais do que isso – disse ela, ganhando coragem – eu quero provar sua
inocência. A perícia mentiu que o acidente aconteceu por falta de manutenção,
mas não é a verdade. Se eu me tornar uma treinadora influente perante a
Comissão da Liga, posso convencê-los a reabrir o caso e examinar com mais
cuidado. Tenho certeza de que há uma explicação para tudo isso.

Dukhen e Ferd se entreolharam, apresentavam algum entendimento


mútuo.

– Se vai mesmo fazer isso – disse Dukhen – o caminho é longo, mas vou
te ajudar como puder.

– Eu não sei o que a vida me reserva – era Ferd – mas posso acompanhá-
los por algum tempo. Quanto mais eu viajar, mais posso ganhar dinheiro.

– Você acha mesmo que vai ganhar mais do que alguns trocados tocando
violão nas calçadas? – admirou-se Dukhen.

– Pensei que o combinado era não caçoar dos objetivos dos outros –
rebateu o boa-vida, simulando ofensa. Trienne riu muito com isso.

– É verdade, Dukhen – repreendeu ela, em tom de brincadeira, mas o


garoto parecia ter um krabby no estômago cada vez que dava uma bola fora com
a menina.

– Enfim – disse ele, para tirar a atenção de si mesmo – vamos ao centro,


é preciso fazer um cartão da liga para você. É aí que tudo começa.
E assim os três garotos seguiram seu caminho juntos pela cidade, o
cartão, como dissera Dukhen, era apenas o primeiro passo, em seguida
precisariam de um bico nos comércios da cidade. As coisas na vida real não
eram como nos filmes e séries de televisão, nos quais em uma temporada curta
o protagonista parecia capaz de viajar o mundo todo, capturar cem pokémons e
vencer os torneios mais concorridos. No mundo das pessoas de verdade, era
preciso tempo, dedicação e, principalmente, muita paciência, pois
provavelmente ficariam na cidade por semanas.

Capítulo 5

Ao contrário do que pareceu à primeira vista a Trienne, a burocracia toda


mencionada por Dukhen não era um empecilho tão grande. O cartão exigiu um
punhado de informações para ser autenticado, mas, uma vez que o cadastro foi
feito, foi emitido na hora e ela não levou nem trinta minutos para sair com ele em
mãos. Arrumar um trabalho também foi tarefa simples, parece que os comércios
das cidades já contavam em boa parte com a oferta de mão-de-obra dos
viajantes e tinham bastante trabalho acumulado para delegar a eles.

Trienne conseguiu emprego temporário como ajudante em um


restaurante, lavando pratos, e Dukhen estava auxiliando a entregar kits e
materiais escolares do governo. O albergue era realmente pequeno, espremido
era a palavra, mas havia mais de um pela cidade e os quartos eram realmente
confortáveis. Dormiam de noite, trabalhavam durante o dia. Era frequente
Dukhen fazer algumas idas ao bosque durante as tardes. Ao contrário deles,
Ferd tocava seu violão nas praças e calçadas, em frente a comércios e estações
de trem e metrô, dormia cada dia em um lugar diferente e os encontrava no
decorrer do dia seguinte em meio aos afazeres comerciais.

No terceiro dia, Dukhen chamou Trienne para acompanhá-lo ao bosque.


Como não puderam encontrar Ferd, foram sozinhos. Eles andavam
descontraídos por entre as árvores, reparando nos pokémons que viam pelo
caminho, subitamente, Dukhen fez sinal para que a garota fizesse silêncio e se
abaixasse com ele atrás dos ramos de uma planta. Ele então apontou para um
local perto dali. Quando olhou na direção de seu dedo, a garota viu um grupo de
exeggcutes. Os pequenos ovinhos pululavam de um lado a outro confundindo-
se em uma massa disforme.

– É isto que venho fazendo no bosque, estou observando aquele


pokémon. – disse o garoto, muito animado.

– Aquele qual? – indagou Trienne, que não conseguia nem mesmo


distinguir um do outro.

– Aquele – insistiu ele.

– Você pode identificá-lo? – surpreendeu-se a garota, que ainda não sabia


a qual deles o amigo se referia.

– Sim, claro – disse ele – eu o venho observando há dias, inclusive no dia


em que te achei perdida no bosque. Senti uma empatia entre nós e ele tem
respondido a alguns sinais meus. Parece acostumado à minha presença.

Dito isto, Dukhen levantou-se e foi até onde estavam os pokémons. Todos
se esconderam, com exceção de um, o qual ela supunha ser o que ele apontara
antes. Eles se encaravam, afrontosos. O garoto lançou a pokébola e seu
geodude saltou de dentro dela.

Houve uma luta rápida, o exeggcute lançou algumas rajadas de


sementes, o geodude impulsionou-se com os braços para saltar, esquivando-se.
Quando ia aterrissar de volta, Trienne ouviu o amigo gritar “magnitude!”, e uma
forte pancada de corpo e mãos de seu pokémon no chão fizeram tudo ao seu
redor tremer. Os ovinhos se bateram entre si, atônitos e desequilibrados, e
Dukhen aproveitou-se deste momento para lançar a pokébola. Acertou em cheio,
houve resistência, mas logo a luz central estava verde e o pokémon, capturado.

Trienne aplaudiu os movimentos do amigo e o elogiou, ao que ele pareceu


muito encabulado. De volta à cidade, enquanto comiam um salgado em uma
padaria, Dukhen revelou que estava se sentindo um pouco nervoso com a
convivência de seu antigo pokémon e o mais recente.
– É o primeiro pokémon que você captura? – indagou ela.

– Sim – admitiu ele.

– Nossa, está viajando há tanto tempo com apenas um pokémon? – ela


surpreendeu-se.

Ele a olhou ofendido.

– A vida não é como nos filmes, Trienne – disse ele – capturar um


pokémon é um processo longo e complicado, é preciso que aconteça empatia,
observação; é necessário conhecer o pokémon antes do confronto. Ele precisa
aceitar você de volta, precisa querer estar com você. Manter um Pokémon
selvagem com você contra a vontade dele é crime, se for maior de idade, vai em
cana, basta alguém denunciar, se for menor, irá passar por extensos programas
do governo e ficará anos sem poder comprar pokébolas e itens relacionados.

– Me desculpe – ela tentava acalmá-lo – eu não quis caçoar de você, eu


sei o quanto você se esforçou para capturar este pokémon. Eu mesma nunca
nem tentei pegar um.

Ele parecia mais calmo.

– Eu passei dias observando ele até ser capaz de distingui-lo dos outros
– prosseguiu Dukhen – de repente não era necessário esforço algum, eu sabia
quem era ele a uma grande distância, só pelo seu comportamento em relação
aos outros. Ele também foi se acostumando à minha presença, parecia
interessado em mim, foi assim que eu soube que ele estava pronto para o
desafio.

– Uau – exclamou ela – eu não sabia que era assim tão difícil. Eu resgatei
o meu smeargle perdido numa floresta e ele simplesmente ficou. Ele nem tinha
uma pokébola até que fizemos nossa primeira viagem de avião. Não são
permitidos pokémons soltos a bordo.

– É um processo muito delicado – frisou ele, novamente – existem


treinadores que passam meses observando um pokémon até que os dois
estejam prontos para o desafio.
– Agora eu sei – disse a garota – sinto muito se pareceu que estava
caçoando de você, e parabéns novamente pela sua brilhante captura, tenho
certeza de que ele vai adorar fazer parte da sua equipe.

Era impossível ficar bravo com ela. Logo os dois conversavam


animadamente, estavam praticando movimentos com geodude e smeargle
diariamente e discutiam como melhorar. Foi quando Ferd chegou, ia dizer-lhes
alguma coisa, mas quando notou a diversão com que discutiam e davam risadas,
achou melhor deixar para outra ocasião, não tinha por que estragar aquele
momento.

Capítulo 6

– Como assim não podemos ficar? – espantou-se Dukhen.

Era o dia seguinte, no café da manhã, quando Ferd finalmente lhes dera
a notícia que pretendia dar antes.

– Eu já disse – enfadou-se o outro, tinha aberto um pacote de nozes e


alternava entre farfetch’d e komala, dando-lhes uma a uma na boca – ou bico.

– Não – retrucou Dukhen – você apenas despejou na mesa uma notícia


repentina, agora explique direito o porquê de não podermos ficar aqui mais
tempo.

– Eu descobri ontem – disse ele – nas minhas andanças, que a


Celebração Anual Ho-oh acontecerá em sete dias.

– Celebração Anual Ho-oh? – indagou Trienne – É mesmo, tinha-me


esquecido. Mas por que isso nos afeta tanto?

– Bom – explicou Ferd, como se dissesse o óbvio – o arquipélago de


Ihnard tem como eixo principal a sequência de nove ilhas que o cortam de norte
a sul, em um discreto “S”, cercado de ilhas menores dos dois lados. Se você
pretende conquistar as insígnias dos outros ginásios, o caminho padrão para
qualquer viajante é percorrer o “S” de fora a fora, é o chamado Caminho da
Serpente. Somente nele você topará com quatro ginásios; três, no seu caso, pois
o ginásio do seu pai ficou para trás e não está podendo receber desafiantes.
Estamos no extremo sul, a última ilha, seu objetivo, caso queira percorrer este
caminho, é chagar à ilha mais ao norte, a Cabeça da Serpente.

– Você não tinha me dito isso – censurou ela, dirigindo-se a Dukhen.

– Eu ia dizer, ia dizer em breve – defendeu-se ele, atrapalhado.

– Enfim – prosseguiu Ferd – para irmos à cidade de Legrand, na próxima


ilha, precisamos de uma balsa, e como é justamente lá a sede da Celebração, o
preço das passagens estará muito além do nosso poder aquisitivo em breve.
Precisamos comprar todas hoje mesmo.

– O que? – espantou-se Trienne, atônita, esperava ter um pouco mais de


tempo.

– Não dá para arriscar esperar mais – disse Ferd, jocoso – a não ser que
você tenha dinheiro o suficiente para o Cruzeiro da Serpente, uma expedição
caríssima de seis meses especial para os treinadores, que percorre toda a
extensão das nove ilhas. Eu ficaria honrado em te acompanhar.

Trienne suspirou desanimada.

– Vamos lá então – anuiu.

– Veja pelo lado bom – Dukhen tentava animala durante o caminho do


guichê – você poderá participar das competições ao longo do festival, vamos
estar bem no centro dele.

– Eu sei – disse ela – mas queria ter me preparado mais.

– Estamos partindo mais cedo – disse Dukhen – mas uma vez chegando
lá, teremos tempo até que as festividades comecem.

– Se chegarmos ainda hoje, teremos seis dias – apontou ela, nada


otimista.

– Você tem o jeito da coisa, vai se preparar rápido.


Dukhen tentava ser otimista para animar a garota, o que ele não podia
imaginar naquele momento, é que estava inteiramente certo. Conseguiram a
passagem pelo preço normal para o mesmo dia, no período noturno, então
partiram direto para o cais. Como tinham pouco dinheiro, fizeram o caminho
andando, o que lhes custaria cerca de seis a sete horas de caminhada. Neste
intervalo, encontraram outros viajantes pelo caminho e Trienne conseguiu uma
sequência avassaladora de seis vitórias em batalhas.

Seu começo tímido e a falta de experiência tinham dificultado sua


faculdade de responder às situações que se apresentavam, mas agora, depois
de praticar com Dukhen e começar a se acostumar com a independência das
viagens, toda sua observação das batalhas do pai e conhecimento acumulado
vieram à tona. Ambos descobriram, muito surpresos, que ela tinha uma prontidão
e rapidez de raciocínio impressionantes, e também um ótimo tempo de resposta.
Smeargle tinha aprendido técnicas novas através de seu ataque esboço,
enquanto treinava com geodude, e ela venceu todos os combates sem recorrer
ao dewgong do pai.

Isto não teve apenas a vantagem de torná-la mais confiante, como era
costume entre desafiantes presentear o vencedor com algum item que tivesse
disponível, ela ganhou alguns frascos de poções para curar e restabelecer
pokémons, pacotes de vitaminas e o último oponente, um senhor idoso muito
simpático que vivia em uma cabana perto da estrada, presenteou-a com uma
Bola Rápida, um tipo especial de pokébola para pokémons rápidos na fuga.

Quando chegaram ao local de embarque, ainda tinham uns trocados para


se abastecer de alimentos até o dia seguinte, e Trienne já tinha trocado a
expressão de derrota por um semblante confiante que lhe dava um caráter ainda
mais exuberante.

Capítulo 7
Os ramos farfalhavam com violência quando ele passava, Trienne já caíra
duas vezes ao persegui-lo, suas roupas estavam sujas de lama e repletas de
folhas que lhe grudavam na sujeira. Tinham acabado de chegar a Legrand,
depois de uma agradável viagem de balsa, quando ele começou a lhes
importunar. Trienne e Dukhen encontraram lugar para treinar perto da saída da
cidade, o terreno lá era parte da floresta e muito propício à prática de exercícios
devido ao sobe e desce do chão coberto de grama. As árvores propiciavam boa
zona de sombra fresca e havia um rio próximo.

Contudo, como nada pode ser perfeito, sem que soubesse se era por uma
questão territorial ou simples força do hábito, um fletchinder muito insistente
começou a importuná-los durante as práticas diárias. Ele voava em círculos
fazendo barulho e por vezes dava uma rasante sobre suas cabeças. No primeiro
dia, levou o exeggcutte de Dukhen a nocaute com uma rajada de fogo e, naquela
mesma manhã, roubou com as garras o prendedor de cabelo de trienne.
Presente de sua avó.

Neste exato momento, ele poderia fugir rapidamente voando para longe,
se quisesse, mas após debochar deles fazendo-os embrenhar-se nos caminhos
mais obstruídos de mata para persegui-lo, dava meia volta nos ares e preparava
nova rasante. Era obvio que, como a grande maioria dos pokémons selvagens,
não tinha a intenção de machucar, se o quisesse poderia ter causado sérios
danos a ambos, mas era um importunador extremamente competente.

Geodude tentou acertá-lo mais de uma vez com o seu arremesso de


pedras assim como smeargle, que agora já tinha aprendido com ele este
movimento. Mas sua agilidade no ar era de cortar o fôlego.

– Chega dessa palhaçada! – esbravejou Trienne.

Com a ajuda do apoio de mãos da garota, smeargle pôde saltar para as


árvores e agora perseguia o pokémon alado de perto, saltando de galho em
galho. Não era tão rápido quanto ele, mas a proximidade o assustou, pois lançou
uma rajada de chamas contra o perseguidor. Smeargle usou a cauda para se
pendurar no galho à frente, passando por baixo dele enquanto o fogo vinha por
cima, aonde ele deveria estar não fosse a última manobra. Com os pelos do rabo
levemente chamuscados, ele lançou-se adiante, na direção do fletchinder.
– Esfera de eletricidade! – bradou a garota.

O ataque acertou o voador no peito e fê-lo tombar na grama, com as


penas muito arrepiadas devido à estática. Trienne, achando que a batalha tinha
acabado, avançou para recuperar o prendedor de cabelo, mas o pokémon, ainda
munido de alguma energia, levantou voo prontamente para fugir. Sem pensar
duas vezes, ela arremessou a Bola Rápida, presente do idoso, que apanhou o
fugitivo já à média altura. Ele resistiu, mas era tarde, a captura estava feita.

– Muito bom! – gritou Dukhen, que vinha logo atrás dela – Você pensou
muito rápido usando essa pokébola especial!

– Não pensei – disse ela – resgatando a bola com seu novo companheiro
– quando saí de casa, não me lembrei de levar pokébolas. Esta era a única que
eu tinha.

O garoto riu alto.

– Você tem muita sorte às vezes. Não só por ter a pokébola certa na hora
certa, mas também por este pokémon ter gostado de você. Ele vem chamando
sua atenção há dias.

– Pensei nisso também – disse a garota – como ele não me deixava em


paz, achei que estava me desafiando.

E de fato estava, Dukhen era bom na análise do comportamento dos


pokémons, sempre sabia o que o seus queriam. Como ele previra, o flechinder
logo se tornou bom companheiro da menina, e fazia muita festa, voando ao redor
de sua cabeça, quando ela o soltava para brincar. Smeargle e ele logo
desenvolveram algumas brincadeiras juntos e, certa vez, chamaram sua atenção
no albergue pelo barulho que faziam no quarto enquanto se divertiam.

As coisas estavam indo muito bem, como a demanda crescia muito na


época do festival, muitos comerciantes contratavam viajantes por pagamentos
maiores que o habitual para cobrir o aumento de tarefas e dos horários de
funcionamento. Mais confiantes agora, já haviam se inscrito nos torneios que
desejavam competir. Dukhen estaria na batalha de duplas, assim como Ferd,
que surpreendeu a todos ao anunciar que também participaria. Dukhen
suspeitava de que era para desafiá-lo na frente de Trienne. Ela, por sua vez,
como ainda só tinha um pokémon na ocasião das inscrições, com exceção de
dewgong, que estava evitando usar em batalhas, competiria na batalha
individual.

Com muito trabalho, treinamento e, é claro, estudos, os seis dias


passaram voando tão rápidos como o fletchinder de Trienne e, mal sentiam que
haviam chegado a Legrand, já acordavam uma bela manhã ao som das bandas
de rua que abririam a Celebração Anual Ho-oh. Dizia-se que, no passado, o
grande ho-oh visitava regularmente aquela ilha, e os habitantes, na época
pequenos camponeses, associavam sua chegada a uma colheita afortunada,
motivo pelo qual faziam as celebrações que, mais tarde, tornaram-se este
enorme festival. Há muito tempo a ave não era vista, o que era natural, devido
ao crescimento populacional na região, mas muitos ainda sonhavam vê-la.

Depois de muitas apresentações teatrais e musicais contando a história


do festival e do povo local, a organização para as competições começou.
Haveriam sessenta e quatro competidores na batalha em duplas e, como na
categoria de Trienne os números não chegaram a este montante, uma rodada
preliminar foi feita mediante sorteio para definir quem seriam os trinta e dois a
terem seus nomes impressos na tabela. A menina foi sorteada e conseguiu seu
lugar com uma brilhante vitória sobre um garoto chamado Dilan, que tinha um
fofo pikachu.

Dukhen e Ferd estavam ambos indo muito bem. Nenhum deles havia visto
Ferd batalhar antes e descobriram que, para seu espanto, era muito bom nisso.
Os dois não estavam longe na tabela e, após acumularem duas vitórias cada,
iriam se enfrentar no dia seguinte, quando as batalhas continuariam. Foram
todos dormir em meio a muitas bravatas e caçoadas dos dois meninos que se
veriam adversários no dia seguinte, mas a descontração era evidente. Por este
exato motivo, ficaram todos muito surpresos quando Ferd não apareceu na hora
da competição e Dukhen venceu por W.O.
Capítulo 8

Habituado ao jeito leviano de Ferd, Dukhen sugeriu que ele poderia apenas ter
dormido demais ou então encontrado bom público para seus dedilhados, achando mais
ventura no dinheiro que receberia dele do que na competição. Eles eram assim, os boas-
vidas tinham por regra a inconstância, viviam o momento. Apesar de tudo, via-se que o
garoto ficara verdadeiramente preocupado, assim como Trienne. Ele não mencionara
tudo o que pensava. Ferd estava determinado a vencê-lo, uma vez que viviam se
provocando, não abriria mão disso tão facilmente.
A preocupação foi tanta, que sua cabeça estava longe e o garoto perdeu na luta
seguinte, nas quartas-de-final do torneio, sem ter feito uma boa batalha. Com Trienne
passou-se o mesmo, distraída, foi facilmente derrotada por um garoto e seu nidorino.
Nem sequer ficaram para o fim do festival; preocupados, correram ao primeiro lugar em
que pensaram: o Centro Pokèmon. E lá estava Ferd, profundamente adormecido em
um sofá, ainda que um grande número de pessoas passassem para todos os lados,
devido ao movimento do grande festival.
- Eu disse que ele estava vagabundeando! - irritou-se Dukhen, à primeira vista
imaginando que a suposição que fizera para tranquilizar a amiga estava correta.
- Vamos perguntar a ele o que aconteceu - disse Trienne.
Os dois garotos foram ao encontro dele. Farfetch’d, que se empoleirava no alto
do encosto do sofá, apoiado ao qual também estava o estojo de violão de Ferd, grasnou
para acordar o treinador. Ele não pareceu surpreso ao ver os amigos ali.
- Bom dia - cumprimentou sem se levantar - como foi o torneio? Venceram?
- Como assim o torneio!? - esbravejou Dukhen - Por que você não estava lá!?
- Fale mais baixo - retaliou Ferd - há outros tentando dormir aqui.
- Não, não há! - tornou Dukhen.
O boa-vida olhou em volta e constatou, com leve surpresa, que de fato a
movimentação do dia já estava acalorada naquele horário. Somente quando ele se
sentou por completo, os amigos perceberam que ele tinha o pulso esquerdo enfaixado.
- Ferd - era Trienne, mais calma, mas séria - ficamos preocupados. Por que você
não foi?
- Certo, certo. Venham comigo - disse o garoto.
Ele levou os dois amigos até uma rua específica, na lateral de um prédio de
quatro andares que se estendia por todo o quarteirão, onde parou.
- Eu estava vagueando pela noite - explicou ele - quando escutei dois indivíduos
discutindo, bem aqui, neste local - ele bateu o pé no chão onde estavam - eu me
aproximei para tentar ouvir. Eram um homem e uma mulher. Ela tinha um sneasel, que
a alertou da minha presença logo quando eu começava a ouvir.
Os dois amigos ouviam com muita atenção, os rostos tesos, como se quisessem
interromper, mas não julgassem ter o direito. Não naquele momento.
- Eu e farfetch’d lutamos contra a moça e o sneasel, mas eles fugiram logo depois
de a batalha ter começado. Tentei persegui-los, mas o sneasel congelou o chão e eu
caí - mostrou o pulso enfaixado.
- Caramba, Ferd - disse Trienne - você não devia ter se aproximado tanto dessas
pessoas. Provavelmente eram criminosos!
- Sem dúvida eram - asseverou Dukhen - você ouviu sobre o que falavam?
- Como eu disse - respondeu Ferd - me atacaram logo quando me aproximei.
Mas eles discutiam um plano, divergiam sobre o modo de executá-lo.
Os dois ouvintes estavam espantados.
- Nossa! - exclamou Dukhen, por fim, soltando um suspiro - Você deu sorte. Eles
pareciam ser barra-pesada.
- Mas - disse subitamente Ferd, interrompendo a surpresa deles com outra
surpresa - eu consegui isto!
Ele mostrou um dispositivo eletrônico redondo um pouco maior que a
circunferência do seu polegar.
- O sneasel estava com ele - completou, aproveitando o pasmo silencioso dos
dois - o farfetch’d roubou usando cobiça.
- O que é isso? - indagou a garota.
- Não sei - disse o boa-vida - conheço alguns amigos que poderiam me dizer,
mas estou muito longe do meu pedaço.
- Uau! - espantou-se Trienne - Foi uma ótima estratégia usar cobiça para
conseguir isso.
Dukhen também achava, apesar de não querer dar o braço a torcer. O rival não
só tivera um bom motivo para abandonar o torneio, como também tinha se saído
brilhantemente em uma noitada perigosa. Ele começava a sentir que, se tivessem
mesmo batalhado, o boa-vida o teria vencido. Esse pensamento o incomodava.
- Bom - prosseguiu Ferd, satisfeito com a surpresa que causara - eu passei o
resto da madrugada no hospital e no Centro Pokémon, cuidando do farfetch’d e da
minha mão. Não dormia há muito tempo quando vocês chegaram.
- Desculpe ter te acordado daquela forma - disse Dukhen.
Não era de dar o braço a torcer quando se tratava de elogiar as habilidades de
um rival, mas sempre reconhecia um mau julgamento. E maus julgamentos, de acordo
com sua índole, sempre requeriam um pedido de desculpas.
- Tudo bem, você teve seus motivos - o garoto afastou o constrangimento com
um abanar de mão; nesse movimento, esqueceu-se da mão machucada, justamente a
que escolheu para o gesto, e a careta que fez pela dor causou risos em todos.
A tensão havia sumido. Salvo por uma leve rivalidade e uma pitada de ciúmes
entre os dois garotos, aquele trio já estava se dando muito bem. Um verdadeiro grupo
de amigos.
- Agora sou eu quem quer as novidades - retomou Ferd - vocês venceram as
competições? Onde estão os prêmios?
Trienne e Dukhen entreolharam-se entre desconfortáveis e divertidos. Se tinham
alguma chance de vencer, o desaparecimento de Ferd a eliminara por completo. Mas o
alívio que agora sentiam em vê-lo bem era maior do que qualquer pesar.

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