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REFLEXOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER EM SEUS

FILHOS: UMA VISÃO SISTÊMICA

Caroline Teresinha Camargo de Lima

Caxias do Sul, 2019.


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UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL


ÁREA DO CONHECIMENTO DE HUMANIDADES
CURSO DE GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

REFLEXOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER EM SEUS


FILHOS: UMA VISÃO SISTÊMICA

Trabalho apresentado como


requisito parcial para
aprovação da disciplina
Trabalho de Conclusão de
Curso II, sob supervisão da
Profa. Dra. Rossane Frizzo de
Godoy.

Caroline Teresinha Camargo de Lima

Caxias do Sul, 2019.


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AGRADECIMENTOS

Como ponto de partida desse trabalho gostaria de agradecer a minha família por ter
sempre me dado força e me apoiado em minhas decisões. Agradecer especialmente a
minha mãe Marcia, que sempre me guiou a fazer o bem e me auxiliou na construção dos
meu valores, bem como sempre batalhou muito para me proporcionar uma educação de
qualidade; ao meu pai Ronaldo, que mesmo não estando mais entre nós deixou seu legado
em minha vida ao ser sempre muito carinhoso e justo, e batalhou ao lado de minha mãe
com o mesmo objetivo; as minhas irmãs mais novas Nathalie e Emilie, que acrescentaram
muito em minha vida desde o dia em que nasceram; e minha avó Marlene, que mesmo
estando internada no hospital em uma situação não favorável transmitiu em mim sua força
e me incentivou a não desistir quando as coisas não estão indo muito bem.
Também agradeço a minha namorada Fernanda por sempre estar ao meu lado nos
momentos bons e ruins, me dando suporte e afago quando necessário e amor todos os dias.
Agradeço por ela ter passado por todo o processo da graduação comigo, sendo sempre
compreensiva e me oferecendo apoio e motivação antes de cada prova e apresentação de
trabalho. Aproveito para firmar meu comprometimento com essa mulher que tanto soma
em minha vida, e que possamos percorrer um longo caminho lado a lado, sempre
auxiliando uma a outra a crescer, tanto individualmente, quanto como casal.
Agradeço ainda as amizades que fiz durante a graduação e que se manteram até o
fim, amizades essas que gostaria de levar para a vida por serem pessoas incríveis e que
fazem me sentir bem. Utilizo desse espaço para ressaltar a saudade que sentirei das
conversas no bar do Olavo e das noites pós-aulas passadas no Baruks na companhia de
indivíduos divertidos e que possibilitam a troca de angústias advindas de situações do
curso. Gostaria de citar Luíse e Simone pela parceria durante a maior parte do tempo em
que estive na universidade, que possamos levar esse trio para a vida e continuar apoiando
uma à outra em nossas carreiras profissionais e pessoais.
Além disso, gostaria de agradecer aos professores que fizeram parte da construção
do meu conhecimento nesses anos, cada um acrescentou muito para que eu pudesse chegar
até aqui e levarei seus ensinamentos para sempre. Quero citar especialmente a Profa.
Rossane por me orientar na construção desse trabalho, e me tranquilizar todas as vezes que
estava aflita durante o processo, bem como a Profa. Bruna que me orientou no estágio
clínico, área que tenho apreço, me passando seu conhecimento da abordagem sistêmica,
utilizada nesse trabalho e em meus atendimentos clínicos.
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Por fim, agradeço a mim mesma por conseguir concluir mais uma etapa de vida,
sempre com muita persistência e garra, mas nunca deixando de cuidar de minha saúde
mental e física. Foram sete anos e meio de muitas perdas a serem superadas, porém de
muitas conquistas a serem comemoradas. Acabo a graduação com o sentimento de
completude e de satisfação por ter escolhido o caminho certo.
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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO………...........................……………..……………………....…….…….07
OBJETIVOS.......................................................………………………………………….10
REVISÃO DA LITERATUA...................................................................………………...11
Violência doméstica contra a mulher no Brasil........................................................11
Exposição a violência doméstica..............................................................................13
Conceitos da teoria sistêmica...................................................................................15
MÉTODO....................................................................……………...…………………….19
Delineamento...........................................................................................................19
Fontes.......................................................................................................................19
Instrumentos.............................................................................................................20
Procedimentos..........................................................................................................20
Referencial de análise...............................................................................................20
RESULTADOS E DISCUSSÃO...........................…………………...…………………...21
CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................………………..……………………..29
REFERÊNCIAS...........................................……………………………………………....30
ANEXO................................................................................................................................35
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RESUMO

Famílias permeadas pela violência doméstica contra a mulher tendem a acarretar


sofrimento psíquico intenso a seus membros. Crianças inseridas nessas famílias, na maior
parte dos casos, presenciam cenas constantes de violência, ao ponto em que se tornam
vítimas indiretas das situações. O objetivo geral do trabalho é identificar possíveis
consequências psicológicas presentes em filhos(as) de mulheres em contexto de violência
doméstica, a partir da teoria sistêmica. Os objetivos específicos contemplam: caracterizar
violência doméstica contra a mulher; descrever aspectos existentes em pessoas expostas à
violência doméstica sofrida por suas mães; e elucidar contribuições da teoria sistêmica a
respeito da dinâmica que ocorre em famílias acometidas pela violência doméstica contra a
mulher. Na revisão de literatura, o tópico de violência doméstica no Brasil abrange as
definições de gênero, o histórico desse tipo de violência no país e as mães que são
acometidas pela mesma; o tópico exposição à violência doméstica correlaciona famílias
com filhos e violência intrafamiliar; e o tópico conceitos da teoria sistêmica elucida alguns
conceitos utilizados pela teoria sistêmica. Utilizou-se o delineamento qualitativo de caráter
exploratório e interpretativo. Como fonte foi escolhida uma reportagem chamada “Filhos
da Violência Doméstica”, realizada pelo programa “Caminhos da Reportagem” da TV
Brasil em 2010. Neste, adultos que foram expostos a violência doméstica quando crianças
compartilham suas experiências, juntamente com suas mães, as vítimas das agressões. A
partir disso algumas cenas foram selecionadas e categorizadas nos itens: contextos da
violência doméstica; repercussões nos filhos; e aspectos conceituais da teoria sistêmica. O
referencial de análise respalda-se na análise de conteúdo de Laville e Dionne. As
consequências da exposição à violência doméstica quando crianças manifestam-se nos
sujeitos a partir de diferentes sintomas, sejam eles cognitivos, comportamentais e
emocionais. Estes sintomas evidenciaram-se através de seus relatos sobre as dificuldades e
desafios enfrentados em suas vidas adultas, em razão das circunstâncias em que se
desenvolveram. As principais sequelas apresentadas foram inabilidade em demonstrar
afeto para outras pessoas, envolvimento em repetidos relacionamentos violentos,
habilidades sociais escassas e sentimentos de inferioridade em relação a terceiros.

Palavras-chave: Violência Doméstica, Terapia Sistêmica, Violência Contra a Mulher,


Parentalidade e Conjugalidade.
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INTRODUÇÃO

A escolha de tal tema justifica-se devido a contribuições da minha trajetória


acadêmica. Minha atenção foi direcionada a violência doméstica e desenvolvimento
infantil nas seguintes matérias: Psicologia da Infância, Família e Processos Psicossociais,
Processos Psicopatológicos na Infância, Psicologia e Psicoterapia Sistêmica,
Psicodiagnóstico II, Intervenção em Contextos de Família e Intervenção Clínica na
Infância e na Adolescência. As temáticas discutidas em aula, bem como alguns trabalhos
apresentados, foram responsáveis pelo meu interesse em construir um trabalho para
aprofundar os conhecimentos adquiridos.
Na disciplina Psicologia da Infância tive meu primeiro contato com o assunto do
psiquismo infantil e dos fatores de risco da violência, bem como o papel da família nesses
processos. Em Processos Psicopatológicos na Infância foram explanadas as consequências
das violências no psiquismo de crianças, e o sofrimento psíquico causado nas mesmas.
Intervenção Clínica na Infância e na Adolescência foi meu primeiro contato com as
técnicas de intervenção nesses casos, pelo viés de diversas teorias da psicologia. Também
foi discutido o desenvolvimento infantil e a violência contra a mulher. Meu interesse pela
psicologia infantil cresceu quando atendi uma criança de oito anos em Psicodiagnóstico II,
foi uma experiência enriquecedora, onde tive oportunidade de confirmar minha afeição por
essa área.
A disciplina Família e Processos Psicossociais foi minha introdução a psicologia
sistêmica, sendo apresentada a diversos conceitos, tais como, mitos, rituais e comunicação
familiar. Também, nessa disciplina, foram tratados assuntos relevantes ao tema escolhido,
como: Padrões de gênero, família na contemporaneidade e resiliência familiar. Em
Psicologia e Psicoterapia Sistêmica foi dado continuidade a esses assuntos, mas com mais
foco nos diferentes tipos de terapias que a sistêmica oferece. Intervenção em Contextos de
Família contemplou a prática dos conteúdos aprendidos anteriormente, mostrando aos
acadêmicos como intervir em situações familiares. O trabalho desta disciplina consistiu na
formulação de um artigo científico, um dos temas tratados nos trabalhos foi a violência
doméstica.
Além da minha trajetória acadêmica, alguns dados, teorias e pesquisas demonstram
a importância e relevância desse tema ser abordado nos dias atuais. A Constituição
Brasileira prevê que é dever da família, sociedade e Estado garantir à criança e ao
adolescente o direito à vida, alimentação, saúde, lazer, educação, respeito, dignidade e
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liberdade. Além disso, também proteger a criança e adolescente de qualquer forma de


negligência, exploração, opressão e crueldade (BRASIL, 1988).
A violência intrafamiliar pode ser compreendida como qualquer atitude danosa a
saúde mental, física e emocional, bem como desfavorável ao desenvolvimento e ao direito
de liberdade de um familiar. Trata-se de uma violência cometida por qualquer membro da
família, que exerça poder sob a vítima (Day, Telles, Zoratto, Azambuja, Machado,
Silveira, Debiaggi, Reis, Cardoso & Blank, 2003).
A violência doméstica psicológica agregada a violência física é o tipo de agressão
que mais tem se evidenciado, mesmo assim continua sendo a categoria mais negligenciada.
Isso pode estar associado ao fato da mídia somente anunciar casos de violência quando
estes apresentaram danos físicos a vítima, não levando em consideração a manipulação
psíquica e as pessoas acometidas indiretamente ao presenciar as situações, muitas vezes
traumáticas (Silva, Coelho & Caponi, 2007).
Segundo Ribeiro e Coutinho (2011), dados do Banco Mundial evidenciam que na
América Latina a violência doméstica acomete de 25% a 50% das mulheres e, somando
todos os crimes praticados contra a mulher, em 70% dos casos, o autor é seu companheiro.
Segundo o Instituto Maria da Penha, a cada 2 segundos uma mulher é vítima de
violência física ou verbal, e a cada 22,5 segundos uma mulher é vítima de espancamento
ou tentativa de estrangulamento (http://www.relogiosdaviolencia.com.br/).
Além disso, a Pesquisa de Condições Socioeconômicas e Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher, concluiu que 23% dos adultos que presenciaram violência
doméstica quando crianças, têm memórias claras de suas mães sendo agredidas (Carvalho
& Oliveira, 2017).
Bowlby (1982), em sua teoria do apego, destaca que para a criança se desenvolver
de maneira positiva, ela necessita de proteção advinda dos adultos que as cercam. Essa
sensação de segurança é tão importante quanto alimentá-la e nutri-la.
Bandura (1976), em sua obra Social Learning Theory, discorre sobre a
Aprendizagem Social, essa teoria contempla os padrões assimilados na infância, e a
repetição dos mesmos na vida adulta. Então, segundo o autor, se uma criança cresce
presenciando violência doméstica, há grandes chances dela se tornar um adulto violento.
Segundo Aberastury (1992), a criança que cresce presenciando violência corre o
risco, pelo processo de busca de identificação, de se tornar um adolescente violento, e, se
não houver tentativa de mudança desse comportamento, evoluirá para um adulto também
violento.
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Fergusson e Horwood (1998) conduziram um estudo sobre as consequências, a


longo prazo, em pessoas que foram expostas a cenas de violência doméstica quando
crianças. Os resultados mostraram que esses sujeitos se tornaram adultos com diversas
dificuldades de ajuste social, incluindo problemas de saúde, abuso de substâncias tóxicas e
comportamentos criminosos. Além disso, demonstraram sintomas de ansiedade e desordem
de conduta.
Pesquisas realizadas concluíram que crianças, as quais presenciam agressões
domésticas, são mais propensas a desenvolverem transtornos mentais, além de correrem
risco de se tornarem alvos da violência física advinda do agressor, sendo assim, necessitam
de proteção (Sinclair, 1985).
A teoria sistêmica tem a individuação como parte de seu conceito de família, onde
acontecem, simultaneamente, o sentimento de pertencimento aquele sistema e a construção
da identidade individual de cada membro (Costa, 2010). Dessa maneira, é esperado que
aconteça a passagem de valores e modos de agir, daquela família para suas próximas
gerações, bem como terão interferência nas preferências afetivas de seus membros,
construindo um padrão pela representação simbólica e, também, pelo meio sociocultural
que o sistema familiar está inserido (Sant’anna & Penso, 2016).
A revisão de estudos recentes na área da violência doméstica indicou a importância
do aprofundamento sobre as consequências enfrentadas pelas crianças envolvidas em tais
situações, visto que são diversas e podem colocá-las em risco.
Em vista do que foi apresentado, este trabalho busca responder a seguinte pergunta
de pesquisa: Quais as possíveis consequências psicológicas presentes em filhos(as) de
mulheres em contexto de violência doméstica, a partir da teoria sistêmica?
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OBJETIVOS

Objetivo Geral
Identificar possíveis consequências psicológicas presentes em filhos(as) de
mulheres em contexto de violência doméstica, a partir da teoria sistêmica.

Objetivos Específicos
- Caracterizar violência doméstica contra a mulher.
- Descrever aspectos existentes em pessoas expostas à violência doméstica sofrida
por suas mães.
- Elucidar contribuições da teoria sistêmica a respeito da dinâmica que ocorre em
famílias acometidas pela violência doméstica contra a mulher.
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REVISÃO DA LITERATURA

Violência doméstica contra a mulher no Brasil


A visibilidade da violência contra a mulher, no contexto atual, deve-se basicamente
aos subsídios do movimento feminista, sendo este um importante movimento social do
século XX, uma vez que pode proporcionar mudanças nas entidades e nos valores
presentes na sociedade (Silva, 2010). O feminismo, no decorrer de sua história, estabeleceu
reivindicações a favor da igualdade de direitos políticos, civis e sociais entre homens e
mulheres. Paralelamente à sua posição política, envolveu-se também na dimensão
teórica/acadêmica, viabilizando diversos estudos e pesquisas, com intuito de apreender o
fenômeno em questão (Martins, 2015).
O movimento feminista, historicamente, foi composto por “ondas”, que foram fases
ocorridas em diferentes épocas e com diferentes vieses. A primeira onda caracteriza o
surgimento do movimento feminista, com a proposta de representar a luta das mulheres
pela igualdade de direitos civis, políticos e educativos, direitos que eram reservados apenas
aos homens (Narvaz & Koller, 2006). O movimento sufragista (grupo de mulheres que se
uniu em prol da busca de seus direitos na Inglaterra, França, Estados Unidos e Espanha)
teve papel fundamental nessa fase de surgimento do feminismo. O objetivo do movimento
feminista, nessa época, era a luta contra a discriminação das mulheres e pela garantia de
direitos, inclusive do direito ao voto. Inscreve-se nesta primeira fase a denúncia da
opressão à mulher imposta pelo patriarcado (Abreu, 2002).
A violência doméstica deferida à mulher no Brasil se refere aos primeiros estudos
sobre gênero e seus significantes. No âmbito político da ditadura militar, com influência
dos grupos feministas norte americanos e europeus juntando forças, iniciam-se os
primeiros movimentos feministas entre estudantes do meio acadêmico no ano de 1970, nos
quais as alunas discutiam sobre a condição feminina a que eram submetidas. As lutas eram
em busca de direitos básicos como habitação, educação, respeito e saneamento básico.
Neste período, a violência contra mulher ocupava um lugar de grande abrangência, pois,
naquela época, a sociedade convivia com as agressões, porém não possuía nenhum
programa governamental de atendimento a essas mulheres/famílias (Santos, 2011).
Por meio da segunda onda do feminismo, nos anos setenta e oitenta, a violência
contra a mulher obteve reconhecimento no Brasil. Neste momento, foram estabelecidas
pautas culturais, as quais buscaram desconstruir e questionar os papéis sociais
padronizados, marcados por uma ótica desigual, atribuídos aos homens e às mulheres,
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tanto nas relações afetivas, como na esfera política e no trabalho. (Martins, 2015;
Guimarães & Pedroza, 2015).
Em agosto de 2006, criou-se a Lei 11.340, intitulada de Lei Maria da Penha, a qual
possibilitou uma maior atenção e visibilidade a questões que envolvem violência familiar e
doméstica contra o sexo feminino. A Lei Maria da Penha pune os agressores que, de
alguma forma, violentaram mulheres. Com a sua aprovação, tornou-se possível a criação
de diversas políticas públicas, que beneficiam a vítima — ao oferecer proteção, segurança,
auxílio psicológico, entre outros — e buscam reeducar o agressor, com o objetivo de que
este entenda que seus comportamentos são prejudiciais à saúde física e psicológica da
vítima, tendo por finalidade a não repetição dos atos violentos (Elias & Gauer, 2014).
Há necessidade de compreender o conceito de gênero, já que este é considerado um
componente essencial das relações sociais (Kronbauer & Meneghel, 2005). Antes do
movimento feminista se fazer presente, a palavra gênero era considerada uma variação do
binarismo feminino/masculino, homem/mulher, sob perspectiva apenas biológica (Scott,
1995). Com o movimento em vigor, pode-se compreender gênero como uma forma de
representação das construções sociais — papéis atribuídos diferencialmente aos homens e
às mulheres (Scott, 1995).
A violência de gênero é aquela que recai sobre as pessoas em virtude do gênero a
qual pertencem, logo, a violência ocorre diante dos papéis que tanto homens como
mulheres atribuem para si (Strey, 2004). Embora fique claro que ambos possam sofrer
desta violência, visto que o conceito de gênero é amplo, estatisticamente a incidência se dá
em sua maioria sobre as mulheres. Culturalmente, em algumas sociedades, ela é vítima
primaz (Saffioti, 2015). De modo geral, as violentas relações entre homens e mulheres
podem ser vistas como um fragmento das relações sociais, baseadas nas diferenças
culturais implicadas nos gêneros, que buscam afirmar, por intermédio da violência, suas
identidades masculinas e femininas (Minayo, Silva & Gomes 2005).
A violência de gênero pode ser entendida por aquela que os homens cometem
contra as mulheres, sendo o fato de a vítima ser mulher a principal causa da agressão. As
mulheres são agredidas pelo simples fato de serem do sexo feminino, sendo assim, a
violência segue sendo uma forma de dominação desempenhada pelos homens, acarretando
em consequências em toda dinâmica familiar. É possível indagar que, em todos os locais
do mundo, existem mulheres vivendo em condições de desigualdade social em relação aos
homens. Todavia, essas desigualdades não são mais aceitas em silêncio, emergindo
manifestações de grande magnitude contra elas (Casique & Furegato, 2006).
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A violência contra a mulher é presente na maioria das sociedades, sendo esta


praticada pelo parceiro íntimo, constituindo a forma mais endêmica de violência, podendo
ser reconhecida como um fenômeno cultural, enraizado nos costumes dos locais, tornando-
se aceitável e reproduzível. Segundo o Banco Mundial, uma mulher tem maior
probabilidade de ser espancada, violada ou assassinada pelo seu companheiro atual ou
anterior do que por um estranho (Menezes, Amorim, Santos & Faúndes, 2003).
A existência de violência contra a mulher provoca diversas consequências
prejudiciais a vida da mesma, já que não só influencia em seu desenvolvimento, mas
também danifica e compromete o desempenho dos direitos humanos e da cidadania,
juntamente com o andamento da parte socioeconômica de um país (Narvaz & Koller,
2006). Há uma incidência de dados que assinalam que as mães agredidas exibem níveis
altos de estresse e, na maioria dos casos, repercutem no exercício de seus papéis parentais,
como por exemplo, no relacionamento com seus filhos. As mães que sofrem violência de
gênero vivenciam sentimentos de incompetência frente a capacidade de ser mãe,
considerando-se más influências e, por vezes, explanando suas interações com os filhos
como sendo algo desagradável e estressante. Os estudos dos autores informam que, dentre
as mães analisadas, as que obtiveram maior índice de agressão/estresse foram as que mais
relataram problemas relacionais com os filhos, e identificaram que os mesmos apresentam
comportamentos desadaptativos (Patias, Bossi & Dell’Aglio, 2014).
Os filhos de mulheres acometidas pela violência doméstica sofrem consequências
tanto psicológicas, quanto comportamentais. Isso ocorre pelo fato de presenciarem as
situações agressivas, direta ou indiretamente, por meio de machucados ou pelo estado
emocional da mãe (Durand, Schraiber, França-Junior & Barros, 2011). Essa temática será
melhor explorada no próximo tópico desta revisão.

Exposição à violência doméstica


Segundo Magro e Senra (2014), pode-se dizer que a violência é um ato complexo,
marcado por desuniformidade de poder em relação à gênero, instituições sociais e
sexualidade. Dentre as variadas formas de manifestações do fenômeno, a violência
ocorrida dentro das famílias pode acontecer tanto dentro, quanto fora das casas, sendo
praticada por qualquer membro da família que detenha poder sobre a vítima. As
incidências de maior número são geradas pelos pais/cônjuges, os quais, na maioria dos
casos, praticam um combo de agressões, sendo elas: física, psicológica e sexual. Em
conjunto a isso, também ocorre negligência. A violência intrafamiliar é conceituada pelos
autores como toda ação ou omissão que possa prejudicar o bem estar, a integridade física e
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psicológica, a liberdade e o direito ao desenvolvimento pleno de qualquer membro da


família — filhos, cônjuges ou agregados.
Para Caprichoso (2010), a exposição de crianças à violência que ocorre no
ambiente doméstico e familiar, seja ela independente de sua expressão, é causadora de
efeitos negativos sobre a saúde e o bem estar físico e psicológico do menor. O efeito mais
adverso observável é de ordem psicológica, o qual pode levar a criança a desenvolver
sintomas como ansiedade, depressão e embotamento, sendo que, em casos mais limítrofes,
a criança necessita de internação.
A criança que observa algum dos membros da família sendo agredido enquadra-se
também em um tipo de violência, pois lhe causa sofrimento. Considera-se que a violência
psicológica é a menos diagnosticada, o que contradiz os números, pois é a mais prevalente
e é mais causadora de danos no desenvolvimento infantil que a violência física. Ela
provoca danos complexos e distorce o mapa psicológico do menor que a vivencia. As
consequências mais observadas nas crianças são, além de ansiedade e depressão,
insegurança constante, transtornos de estresse pós-traumático, distúrbios alimentares e
tentativas de suicídio (Abranches & Assis, 2011; Padilha & Silva, 2012; Lourenço,
Baptista, Senra, Almeida, Basílio & Bhona, 2013).
Na maioria dos casos, o cônjuge detentor do poder utiliza-se da violência física
para educar/disciplinar/impor regra à vítima. A criança que faz parte deste microssistema
familiar poderá ter a inserção de sentimentos negativos como revolta, humilhação, tristeza
e mágoa, podendo perpassar para a idade adulta. A criança pode também repetir os
comportamentos do agressor, tanto no presente, como no futuro (Gabatz, Padoin, Neves &
Terra, 2010; Apostólico, Hino & Egry, 2013).
Almeida e Lourenço (2012), Lourenço e Senra (2012) e Sousa, Vieira e Sousa
(2013) descrevem que esse tipo de experiência na vida da criança é fator de risco para seu
desenvolvimento, a qual pode vir a expressar raiva, medo, ansiedade, revolta contra o
agressor e vítima, desconfiança, diminuição do desenvolvimento cognitivo e complicações
no aprendizado, relações evitativas, baixa auto estima, medos sem motivo eminente,
ambivalência de sentimentos e percepção distorcida de si mesmo e de sua família.
Ramos e Silva (2011) também destacam os efeitos adversos da violência
intrafamiliar exposta aos menores, realçando que a mesma se constitui em uma realidade
angustiante. Os prejuízos no desenvolvimento da criança podem ser de curto, médio e
longo prazo, sendo de ordem tanto física, quanto psicossocial — podendo ser tão
desgastante que reflita em comportamentos e atitudes desajustadas também na idade
adulta.
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Dentre as principais consequências dessa violência para as crianças, já descritas nos


parágrafos anteriores, pode-se elucidar também sobre a adoção de comportamentos de
risco, provenientes dos traumas gerados, sendo eles: abuso de álcool e outras drogas,
gravidez precoce, problemas mentais, comportamentos agressivos, prostituição e tentativas
recorrentes de suicídio na adolescência ou idade adulta. (Brasil, 2008).
Para Martins (2009), crianças que vivem em circunstâncias em que testemunham
agressões têm suas concepções de casa e família ameaçada, visto que a referência de local
de segurança e proteção, que deveria estar sendo formada, fragmenta-se, deixando as
crianças sem figuras de suporte e modelo saudável/adaptativo. Pode-se descrever também
que a omissão do papel de alicerce emocional e de confiança que os filhos deveriam ter
perante os pais não atende as necessidades básicas de uma criança, podendo vir a
comprometer gravemente seus padrões e mecanismos de vinculação, tanto no momento
atual, como no futuro.
Para Menezes et al (2003), existe um grande índice de frustração e insatisfação —
aliados a comportamentos de risco, como álcool e drogas — que favorecem o início do
ciclo da violência em famílias mais pobres, pois elas tendem a serem compostas por um
maior número de integrantes, acarretando em um menor cuidado por parte dos pais com os
filhos, tanto no quesito financeiro como no educacional.
O comprometimento da exposição à violência intrafamiliar para a saúde e
desempenho escolar de adolescentes, deixa claro a importância dos profissionais da saúde
e dos educadores no processo de identificação do fenômeno (Magalhães, Gomes, Campos,
Camargo, Estrela & Couto, 2017).

Conceitos da teoria sistêmica


A terapia familiar é fundamentada na visão de que o homem não é um ser isolado,
mas sim um ser ativo/reativo dos grupos sociais em que se insere. A concentração dos
terapeutas sistêmicos em analisar a dinâmica relacional dos homens surge a partir da
compreensão da influência psíquica existente (Minuchin, 1990).
De acordo com Nichols (2007), as famílias são um conjunto de fronteiras que se
influenciam mutuamente de maneiras poderosas, fortes e imprevisíveis. Nessas famílias
existem padrões consistentes de comportamento familiar, o que nos permite considerar que
eles têm uma estrutura de sentido funcional. O autor complementa que é necessário
entendermos a organização familiar, já que é ela que sustenta e mantém as interações
dentro de uma família em funcionamento. Um exemplo observável que o autor traz é o de
pais que repreendem ou que se agridem. Esses pais podem acabar se revelando dois
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parceiros que se prejudicam, porque um está emaranhado com a criança, enquanto o outro
é um excluído zangado. Se for assim, as tentativas de incentivar uma disciplina eficaz
provavelmente fracassará, a menos que o problema estrutural seja tratado, e os pais
desenvolvam uma parceria genuína. Os pais mais emaranhados tendem a ser mais
amorosos e atenciosos, passar mais tempo com os filhos e fazer muito por eles.
A estrutura hierárquica, além de sua finalidade de organização, cumpre o papel de
manter a privacidade do casal, dando a eles, além de um posto de segurança, locais
demarcados (Nichols, 2007). Segundo Dias (2011), os indivíduos formam subsistemas
dentro das famílias, sendo o paternal, o fraternal e o conjugal os mais comuns. Esses
subsistemas podem ter sido formados por gênero, interesse, geração ou função. A
organização de subsistemas de uma família fornece subsídios para a quebra de homeostase,
em se tratando do processo de manutenção de sistemas e subsistemas disfuncionais. As
fronteiras de um subsistema são os tópicos que definem quem participa e como participa.
A função da fronteira é proteger a diferenciação do sistema. Cada subsistema familiar tem
funções específicas. Para o funcionamento apropriado da família, as fronteiras dos
subsistemas devem ser nítidas. Devem ser definidas suficientemente bem para que possam
permitir, aos membros do subsistema, claridade em suas funções.
De acordo com Minuchin (1990), a estrutura familiar é a soma invisível de
requisitos funcionais, que visam organizar os modelos de interação do grupo. Uma família,
por ser um sistema que opera através de modelos transacionais, com padrões pré-
estabelecidos, quando os seguem de forma homeostática, tendem a reforçar o sistema. Os
padrões transacionais ordenam o comportamento da família. Alguns são mantidos por dois
sistemas de repressão. O primeiro é genérico, o qual envolve regras universais, que
orientam a organização familiar. Por exemplo, deve existir uma hierarquia de poder, em
que os pais e os filhos têm diferentes níveis de autoridade. Também, seria significativo
existir complementaridade das funções, no qual os cônjuges aceitam a interdependência e a
hierarquia dos membros, operando como uma equipe.
Nichols (2007) discorre sobre a abordagem narrativa, a qual é parte integrante da
teoria sistêmica. Segundo o autor, tal abordagem afirma que todo o conhecimento é visto
como construído, em vez de descoberto, que se preocupa com o modo em que as pessoas
constroem seus significados, a partir das suas experiências, em vez de se preocuparem com
a maneira em que se comportam. A narrativa focaliza cognições autoderrotistas (as
histórias que as pessoas contam a si mesmas sobre seus problemas), com o objetivo de
expandir o pensamento dos clientes, para permitir que considerem maneiras alternativas de
olhar para si mesmos e seus problemas. Isso porque, quando as histórias que as pessoas
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contam a si mesmas levam-nas a construir sua experiência de maneira prejudicial, elas


tendem a mergulhar em problemas. Esse problema, por exemplo, provavelmente persistirá
enquanto tais histórias prejudiciais continuarem imutáveis.
O maior desafio enfrentado por aqueles que tratam de famílias é enxergar além das
personalidades e perceber os padrões de influência que determinam o comportamento dos
membros da família. É costumeiro ver o que acontece nas famílias como produto de
qualidades individuais, já que ver padrões de relacionamento requer uma mudança radical
de perspectiva. Outro elemento importante para compreender essa linha de pensamento
consiste no que o mesmo autor traz como homeostase: auto regulação que mantém os
sistemas em um estado de equilíbrio dinâmico. No entanto, nem sempre esse dinamismo se
mantém de forma saudável. Em determinados casos, é necessário que haja uma quebra na
homeostase para que a família perceba os padrões que se mantém disfuncionais e assim ir
em busca de uma mudança (Nichols, 2007).
A Terapia Sistêmica Estratégica trabalha com o conceito de feedbacks. Existem
dois tipos diferentes: o positivo e o negativo. Tais feedbacks são chamados assim devido
aos efeitos que causam no sistema familiar. O feedback negativo assegura a homeostase
familiar, mantendo a estabilidade sem ocorrer nenhuma mudança. O feedback positivo
causa alguma mudança no ambiente familiar, acarretando quebra na homeostase
(Camacho, 2005).
A maneira que os pais tratam seus filhos tem relação direta com o desenvolvimento
de seus autoconceitos, ou seja, quanto mais negativas forem as interações (gritos, punições,
xingamentos, ameaças), mais negativo será o desdobramento do autoconceito da criança
(Loos & Cassemiro, 2010).
A Terapia Familiar de Bowen é composta por diversos conceitos importantes para o
tema aqui debatido. Um deles é a diferenciação de self, que diz respeito ao nível de
individuação do sujeito em relação a sua família de origem (Bowen, 1979). Ao passar para
o filho suas frustrações, a mãe transfere sua ansiedade e sua carga emocional, acabando por
não estimulá-lo a realizar o processo de diferenciação. Consequentemente, o filho é
prejudicado emocionalmente, tornando-se um adulto infantilizado e imaturo psiquicamente
(Martins, Rabinovich & Silva, 2008).
Outra definição da teoria de Bowen é a transmissão multigeracional, que se refere
ao movimento de passagem de ansiedades e processos emocionais de geração para geração.
Famílias que realizam esse deslocamento tendem a não fornecer espaço para os filhos
efetuarem suas próprias escolhas, os quais se conformam com a situação ou se rebelam
(Martins, Rabinovich & Silva, 2008).
18

O processo de triangulação é um conceito da teoria sistêmica que se mostra


pertinente quando abordado o assunto da violência familiar. A triangulação ocorre entre
três pessoas, sempre envolvendo uma dupla e um terceiro, o qual participará mais
ativamente da relação à medida que o nível de desconforto e ansiedade aumentar entre as
duas pessoas. No caso, uma das pessoas participante da relação dual estabelecida buscará
uma terceira para aliviar a tensão (Mota, 2012).
De acordo com Schmidt, Schneider e Crepaldi (2011), os integrantes de uma
família costumam apresentar sentimentos e percepções de ligações especiais entre si,
sentimento este conhecido por vínculo familiar. Por existir laços que unem as famílias,
encontra-se o interesse de apoio, defesa e proteção entre os membros. No entanto,
compreende-se que tensões e conflitos são inevitáveis nos relacionamentos, desdobrando-
se, por vezes, em situações de violência. Desavenças e atritos ocorrem em todas as
famílias, sem exceção, porém é necessário que se planeje métodos de resolução dos
conflitos sem uso de violência física/verbal, mas sim fazendo uso de espaços
conversacionais, mais adequados, saudáveis e satisfatórios para todos os familiares. Há
famílias que convivem com um padrão disfuncional de resolução de conflitos, alicerçado
em comportamentos prejudiciais, que se beneficiam da fraqueza de alguns dos integrantes
para impor seu poder, colocando o membro em risco.
19

MÉTODO

Delineamento
O escopo da ciência é a verificação da autenticidade de fatos, a fim de comprová-
los, ou não. Para isso, faz-se necessário a utilização de técnicas e métodos de pesquisa.
Tais métodos podem ser definidos como a junção de procedimentos intelectuais e técnicos,
aplicados com o intuito de atingir determinado conhecimento (Gil, 2008).
Método é um conjunto de passos a serem seguidos para se chegar a um fim
previamente planejado. Técnica e método por vezes se confundem, em termos de
conceitualização. Pode-se dizer que o método é constituído por técnicas, onde o primeiro
indica o que fazer, e o segundo como fazer (Galliano, 1979).
Para a elaboração deste trabalho de conclusão de curso, foi utilizada a pesquisa
qualitativa de caráter exploratório e interpretativo. Segundo Flick (2009), a pesquisa
qualitativa investiga os assuntos levando em consideração a subjetividade humana, a partir
da perspectiva de seus componentes previamente escolhidos. Além disso, o autor
acrescenta que esse tipo de pesquisa visa compreender os significados das situações, ao
invés de somente descrevê-las.
A pesquisa exploratória tem como propósito a aproximação e familiarização com o
tema problematizado, para assim torná-lo mais compreensível e levantar suposições acerca
do mesmo (Gerhardt & Silveira, 2009).
De acordo com Gil (2008), as pesquisas bibliográficas são criadas a partir de um
material já existente, composto por artigos científicos e livros. Esse modelo tem por
principal vantagem, o fato de proporcionar ao pesquisador o entendimento de mais
fenômenos, do que se pesquisasse diretamente. E, após as análises das bibliografias e
fontes de estudo, realiza-se a interpretação do material referenciado, objetivando alcançar
significados mais abrangentes aos dados já descritos. Frente a este motivo, principalmente
em pesquisas qualitativas, interliga-se a interpretação com as pesquisas exploratórias.

Fontes
O artefato cultural que foi utilizado como fonte para relacionar a teoria com dados
observáveis é uma reportagem chamada “Filhos da Violência Doméstica”, realizada pelo
programa “Caminhos da Reportagem” da TV Brasil no ano de 2010, produzida por
Eduardo Goulart de Andrade, Mariana Fabre, Paula Abritta, Thaís Rosa, Aline Beckstein e
dirigida por Bianca Vasconcellos. Neste, adultos que foram expostos a violência doméstica
20

quando crianças compartilham suas experiências, juntamente com suas mães, as vítimas
das agressões.

Instrumentos
Após assistir a reportagem algumas cenas foram organizadas em uma tabela (ver
anexo) com as principais falas dos protagonistas, visando melhor entender os conflitos
vivenciados na infância. Segundo Laville e Dionne (1999), fazer uso de recortes de
conteúdos possibilita ao pesquisador organizar e reunir elementos essenciais da obra,
integrando-os à revisão da literatura.

Procedimentos
Como ponto de partida a reportagem “Filhos da Violência Doméstica” foi assistida
diversas vezes, após foram selecionadas cenas que foram descritas em uma tabela e
divididas em categorias, visando melhor compreender as consequências psíquicas em
crianças expostas à cenas de violência doméstica, bem como sua relação com a dinâmica
familiar. Os dados foram analisados a partir da análise de conteúdo de Laville e Dionne
(1999).

Referencial de Análise
A análise de conteúdo foi o referencial escolhido. Caracterizado por Laville e
Dionne (1999) como um método que possibilita ao pesquisador um vasto caminho para a
cientificidade, juntamente com a desconstrução de elementos, conteúdos e significados
provenientes dos diversos materiais buscados, objetivando a construção de novos
conhecimentos. Ainda, de acordo com os autores, as categorias foram de modelo aberto,
sendo definidas a posteriori, com o emparelhamento teórico da sistêmica.
21

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Com base na reportagem escolhida para a realização desse trabalho de conclusão de


curso, foram analisadas 17 cenas, divididas em três categorias. A primeira categoria abarca
os contextos da violência doméstica em cada família, a segunda retrata as repercussões nos
filhos, e a terceira discorre sobre os aspectos conceituais da teoria sistêmica. As categorias
serão abordadas separadamente, a seguir, com o intuito de proporcionar a compreensão do
assunto.

Categoria 1 - Contextos da violência doméstica


A reportagem “Filhos da Violência Doméstica” unifica a história de três famílias,
contadas pelas vítimas diretas da violência e seus filhos adultos, que presenciaram as cenas
de violência quando crianças. A categoria dos contextos da violência doméstica engloba as
formas de violência sofrida por cada vítima. Essa categoria irá analisar as cenas, 3, 7, 8, 11
e 14.
Na cena 3, Maria de Fátima e sua filha, Mariane, recapitulam cenas da última
agressão sofrida, que aconteceu quando o ex-marido de Maria, pai de Mariane, recebeu
uma carta anunciando o pedido de separação. Maria conta que ele lhe deu um soco no
rosto, causando um hematoma em sua testa. Mariane lembra de seu pai indo até o quarto
para bater em sua mãe que, mesmo tendo colocado um travesseiro no rosto para se
proteger, se machucou. Após ver essa cena, Mariane chamou os vizinhos que vieram
ajudá-las e levaram sua mãe para o hospital e ela para a casa de sua babá. Seu pai fugiu,
pois ficou com medo dos vizinhos.
Nesse recorte, pode-se observar a ocorrência da violência física ocorrida com Maria
ao ser agredida brutalmente por seu, até então, marido. Além disso, também é possível
atentar para uma situação de negligência por parte do pai, que fugiu deixando a filha sem
cuidados. Segundo Silva, Coelho e Caponi (2007), violência física caracteriza-se pela
tentativa de causar prejuízo a outrem, mediante a força física ou de algum instrumento
capaz de provocar lesões internas e/ou externas. As autoras também discorrem sobre
negligência, que ocorre quando alguém demonstra desinteresse em cuidar de familiares que
dependem dele, seja pela idade ou alguma condição que demande cuidados, retirando sua
responsabilidade.
Nas cenas 7 e 8, outra família também relata momentos de violência vivenciados.
No fragmento 7, Robson relata que suas lembranças de infância sempre envolvem
destruição e medo de seu pai, exemplificando isso com os dias de natal em que sua mãe
22

montava a árvore e preparava o jantar, porém a noite sempre terminava com a árvore
destruída, os presentes jogados e a comida esparramada pelo chão. Robson também conta
que não consegue lembrar-se de momentos de carinho, fraternidade e amizade durante sua
infância, e comenta que alguns familiares precisavam dormir na sua casa, pois seu pai
andava por ela a noite com uma faca na mão, e ele enxergava a sombra no corredor
enquanto estava em seu quarto.
Dando continuidade ao relato, Maria de Lourdes, mãe de Robson, narra um
episódio, na cena 8, em que seu ex-marido tentou matar ela e seu filho mais velho com um
revólver, porém Robson pegou as balas e levou-as para longe de casa após seu pai ter lhe
dito que iria matar sua mãe e seu irmão. O agressor, ao perceber que estava sem balas no
revólver, bateu em Maria com o mesmo, a ponto de quase matá-la. Em ambas as cenas, é
possível identificar violência física, já caracterizada anteriormente, e violência psicológica,
definida como ações danosas à auto-estima e ao desenvolvimento da vítima, incluindo
ameaças, humilhações e chantagens. Esta é caracterizada como a violência com maior
dificuldade em ser identificada e usualmente faz com que a vítima sinta-se desvalorizada e
desencadeie crises de ansiedade (Silva, Coelho & Caponi, 2007).
Nos recortes 11 e 14, a terceira família da reportagem narra sua história de
violência. Na cena 11, Ana Cecília conta de uma situação em que seu pai chegou em casa
bêbado no natal e sua mãe, que havia passado o dia inteiro cozinhando, reclamou do fato
dele estar bêbado. Ao ouvir isso, ele deu um soco na mesa, que já estava arrumada, e toda a
comida caiu no chão. Nessa situação, o álcool foi um fator agravante para o
comportamento agressivo. Mota (2013) refere que o consumo de substâncias psicoativas,
dentre elas o álcool, não está diretamente relacionado como causa da ocorrência de
violência doméstica, mas pode ser utilizado como meio para os homens agressores
desenvolverem confiança e desinibição para concretizarem os atos de violência.
No fragmento 14, Ana Cecília relata outro momento em que seu pai utilizou dos
efeitos do álcool para concretizar seus atos violentos — desta vez, agredindo fisicamente
sua mãe, que bateu a cabeça em um tijolo, necessitando fazer de trinta a quarenta pontos.
No momento em que aconteceu a agressão, Eulália, mãe de Ana, botou um pano na cabeça
e colocou os filhos para dormir, avisando que ela sairia, mas voltaria em pouco tempo.
Eulália guarda o pano com seu sangue até hoje como forma dela não esquecer o que
aconteceu e não voltar com seu ex-marido.
Nas cenas 3, 7, 8, 11 e 14 é possível observar padrões de comportamento advindos
dos agressores. Segundo Minuchin (1990), existe um perfil já descrito sobre homens que
maltratam/agridem suas parceiras. Esses indivíduos têm elementos em comum, os quais
23

podem ser usados como indicadores de prevalência de maus tratos na família. A lista de
características do personagem agressor masculino repercutem em alguns dos mais rançosos
estereótipos da masculinidade patriarcal. Os itens presentes são, em nível de personalidade:
impulsividade, irritabilidade, intolerância ao estresse e à frustração, déficit de autoestima,
de assertividade e de habilidades sociais, frustração em seu desempenho do que considera
o papel masculino, perfeccionismo, paternalismo, protecionismo, ciúmes, desconfiança,
sentimentos de medo, insegurança e impotência diante da ameaça de perda de poder e de
controle sobre o parceiro. Em nível de conduta, há prevalência de abuso de álcool ou de
outras drogas, antecedentes pessoais de maus-tratos infantis, problemas de relação de casal,
econômicos, trabalhistas e judiciais. E no nível de valores, observa-se autoritarismo,
convencionalismo, tradicionalismo, machismo, retóricas sobre o valor da família,
disciplina e castigo como recursos estratégicos à prevenção ou à solução de problemas
domésticos ou sobre a necessidade de domar e domesticar as más inclinações da parceira.
Para finalizar essa categoria, é importante pontuar que a existência de violência
contra a mulher influencia o desenvolvimento da vida da vítima, causando diversas
consequências que serão prejudiciais à vida da mesma, danificando e comprometendo o
desempenho dos direitos humanos e da cidadania, juntamente com o andamento da parte
socioeconômica de um país (Narvaz & Koller, 2006).

Categoria 2 - Repercussões nos filhos


Criou-se essa categoria a fim de analisar as consequências da exposição à violência
doméstica percebidas em cada um dos filhos da reportagem. Para tal, utilizou-se dos
relatos de cada indivíduo. Essa categoria irá analisar as cenas 4, 5, 10, 13, 15 e 17.
Na cena 4, Maria de Fátima relata que Mariane, por ser a filha mais velha, diversas
vezes interferia nas brigas dos pais, colocando-se entre eles, enquanto seu filho mais novo
se escondia. Além disso, conta que o irmão de Mariane não gosta de visitar o pai, pois
guarda mágoas e tem medo do mesmo. Essa narrativa explicita a diferença dos efeitos da
visualização da violência em cada um dos filhos de uma mesma família — enquanto
Mariane sentia desejo de impedir a agressão e demonstrava coragem em fazê-lo, seu irmão
mostrava-se temeroso em relação às situações, algo que o impedia de ficar na presença de
seus pais nesses momentos. Segundo o relato de Maria, esses sentimentos perduram até
hoje no filho, que já é adulto. A criança que faz parte de um microssistema familiar
violento poderá ter a inserção de sentimentos negativos como a revolta, humilhação,
tristeza e mágoa, podendo perpassar para a idade adulta (Gabatz, Padoin, Neves & Terra,
2010; Apostólico, Hino & Egry, 2013).
24

Ainda Mariane, no recorte 5, declara ter dificuldades em tratar a violência


doméstica como um contexto que não é normal, justificando esse pensamento pelo fato de
ter crescido em uma família em que essa era a realidade, complementando: “Aí eu tenho
que trabalhar com a parte de que não, não é normal”. Elias e Gauer (2014), descrevem
que a violência doméstica deferida contra as mulheres no âmbito familiar, em detrimento
da violência de gênero, abala toda a constituição familiar, em especial, as crianças que, por
conviverem com tamanha violência, desde pequenos, a naturalizam como algo ocorrente
em qualquer família ou relação conjugal. Esses comportamentos, a posteriori, podem ser
repetidos com seus filhos e cônjuges.
Na cena 10, Robson menciona ter dificuldade em expressar emoções, relatando não
conseguir falar a frase “eu te amo” para ninguém, nem mesmo para sua ex-esposa, com
quem foi casado por vinte anos: “Fiquei vinte anos com ela, tenho dois filhos, uma menina
de vinte e dois anos e um menino de quatorze, não consigo ser uma pessoa amorosa com
eles, tenho dificuldade nessa relação, é como se me faltasse a referência de família, falar
eu te amo esquece, nunca falo, e se você falar pra mim eu te amo, eu não acredito, pra
mim ninguém me ama, eu enxergo o amor hoje como uma coisa muito delicada, eu acho
que as pessoas te amam enquanto precisam, na hora que não precisa ou que você não é
mais útil não te amam mais, eu não enxergo aquela possibilidade de amor infinito, amor
verdadeiro”. Robson demonstra revolta enquanto narra suas adversidades, deixando claro
a mágoa e ressentimento que sente de seu pai por não ter sido uma figura modelo em sua
infância.
Para Martins (2009), crianças que vivem em circunstâncias nas quais testemunham
agressões têm suas concepções de casa e família ameaçada, pois a referência de local de
segurança e proteção, que deveria estar sendo formada, fragmenta-se, deixando as crianças
sem figuras de suporte e modelo saudável/adaptativo. Pode-se descrever, também, que a
omissão do papel de alicerce emocional e de confiança, o qual os filhos deveriam ter
perante os pais, não atende as necessidades básicas de uma criança, podendo vir a
comprometer gravemente seus padrões e mecanismos de vinculação, tanto no momento
atual, como no futuro.
Ana Cecília, no fragmento 13, descreve as sequelas provocadas pelos anos em que
presenciou violência doméstica contra sua mãe, relatando ter sido a mais prejudicada de
todos os filhos, reprovando diversas vezes a quinta série e internalizando temor de
diferentes situações. Eulália comenta sobre essa temática dizendo que Ana teve
dificuldades de aprendizagem e precisou realizar tratamento com uma psicóloga. Quando a
criança é exposta a violência doméstica, diversos aspectos de seu desenvolvimento podem
25

apresentar prejuízos — o funcionamento cognitivo e a supressão social do QI são alguns


exemplos que tem ligação direta à capacidade de aprendizado. Se esses elementos
apresentarem algum nível de déficit, então as chances da criança/adolescente desenvolver
dificuldades escolares aumentam (Preto & Moreira, 2011).
Na cena 15, Ana Cecília conta que era muito agressiva, principalmente na
adolescência: “Não levava desaforo pra casa, eu não precisava disso, as vezes nem
precisava eu tava dando patada, mas pela criação que eu tive, não era nem porque eu não
gostava da pessoa”. Manifestando impulsividade e reações precipitadas em algumas
situações, pode-se analisar essas atitudes de Ana como forma de externalizar, em outros
contextos, a revolta e a insatisfação que não podia expressar em casa. Segundo Santos
(2011), filhos de casais violentos tendem a reproduzir a violência em suas relações
pessoais, pelo fato de terem aprendido que essa é a única forma de resolverem seus
conflitos, por isso é de extrema importância intervir nesses filhos.
Ana Cecília, na cena 17, fala sobre o papel que a música tem em sua vida.
Atualmente, ela faz parte de um grupo de rap chamado “Atitude Feminina”, composto por
mulheres que passaram pelas mesmas situações que Ana quando crianças, cantando sobre
isso e procurando lidar com suas questões familiares através de canções que escrevem. A
música pode ser vista na vida de Ana como uma forma saudável que ela encontrou de
externalizar seu sofrimento, ao mesmo tempo em que o trabalha e utiliza as letras para
auxiliar outras pessoas que podem estar passando por situações semelhantes às que
vivenciou. A maneira com que cada indivíduo reage a situações traumáticas difere muito,
algumas formas agirão de forma protetiva, porém outras poderão colocar o sujeito em um
risco maior (Poletto, 2013). No caso de Ana, o rap atua de modo protetivo para suas
angústias, na medida em que a auxilia a ressignificar as situações violentas que presenciou
durante sua infância, bem como oferece a possibilidade de compartilhá-las com outras
mulheres que passaram pelas mesmas situações.

Categoria 3 - Aspectos conceituais da teoria sistêmica


Essa categoria foi criada para citar algumas contribuições da teoria sistêmica para a
temática de filhos expostos à violência doméstica contra a mulher, bem como realizar
análise do artefato cultural sob o viés da teoria sistêmica. Essa categoria irá analisar as
cenas 1, 2, 5, 6, 9, 11, 12 e 16.
A Terapia Sistêmica Estratégica utiliza-se do conceito de feedbacks como uma das
formas de se compreender as interações familiares. Existem dois tipos diferentes: o
positivo e o negativo — chamados assim devido aos efeitos que causam no sistema
26

familiar. O feedback negativo assegura a homeostase familiar, mantendo a estabilidade sem


ocorrer nenhuma mudança. O feedback positivo causa alguma mudança no ambiente
familiar, acarretando quebra na homeostase (Camacho, 2005).
Na reportagem foram identificadas duas cenas para esse conceito. Na cena 1, Maria
de Fátima, mãe de Mariane, conta que levava os filhos para um quartinho toda vez que o
pai iria chegar em casa bêbado e desnorteado. “Quando eles tinham 3 e 4 anos, eles já
tinham a compreensão da violência, toda vez que o pai chegava naquele estado eu levava
eles pra um quartinho, ficava com eles lá, ligava a televisão, deixava o outro fazer o que
quisesse, quebrar, o rádio em último volume, incomodava os vizinhos, mas eu mantinha os
dois lá e falava vamos ver televisão, até que eles dormiam”, nesse caso, acontece um
feedback negativo em relação a estrutura familiar quando Maria continua com seus
movimentos costumeiros, mantendo a homeostase e não ofertando espaço para a mudança.
Na cena 9 é possível observar o feedback positivo que ocorreu quando Robson saiu
de casa aos treze anos. Robson conseguiu quebrar a homeostase familiar e se retirar do
recinto violento onde cresceu, preferindo morar nas ruas do que em sua casa, deixando o
pai sozinho após anos de sofrimento psicológico.
No recorte 2, Mariane relata sobre o relacionamento dos pais, contando que o pai
geralmente chegava bêbado em casa e sua mãe não gostava quando isso acontecia; além
disso, ela não lembra dos pais convivendo como um casal em casa. As famílias são
formadas por subsistemas, os mais comuns são fraternal, parental e conjugal. A
organização de subsistemas de uma família fornece subsídios para a quebra de homeostase,
em se tratando do processo de manutenção de sistemas e subsistemas disfuncionais (Dias,
2011).
Segundo Boas, Dessen e Melchiori (2010), a família é um sistema com hierarquias
e interativo, portanto é importante que os subsistemas estejam em harmonia, sem afetar um
ao outro negativamente. Por conseguinte, o acontecimento de desavenças no sistema
familiar acarreta alterações na forma com que os pais educam os filhos, enfraquecendo o
subsistema parental, e, consequentemente, prejudicando os participantes da família, em
especial os filhos, que podem ter reflexos disso em seu desenvolvimento. Na cena 2, foi
possível observar que os pais de Mariane nunca foram amorosos entre si, deixando que os
problemas conjugais afetassem seus papéis de educadores.
Na cena 5, já citada na categoria “repercussões nos filhos”, Mariane declara ter
dificuldades em tratar a violência doméstica como um contexto que não é normal,
justificando esse pensamento pelo fato de ter crescido em uma família em que essa era a
realidade, complementando: “Aí eu tenho que trabalhar com a parte de que não, não é
27

normal”. Bowen (1979) discorre sobre o conceito da diferenciação de self, que diz respeito
ao nível de individuação do sujeito em relação a sua família de origem. Mariane demonstra
dificuldade em afastar-se da lógica da violência, a qual foi exposta durante toda sua
infância e parte da adolescência, porém manifesta clareza em relação aos prejuízos
acarretados pelas agressões, bem como se esforça para diferenciar-se de sua família de
origem.
Na cena 6, Maria de Lourdes, mãe de Robson, está segurando uma foto do dia de
seu casamento. Quando a repórter a questiona o que pensa quando olha para a foto, Maria
responde: “Ah que foi uma vida perdida, eu era uma menina, 16 anos, perdi minha
juventude toda, tinha tudo pra ser uma família feliz, infelizmente não deu”. Maria de
Lourdes demonstra não visualizar um lado positivo em sua história de vida ao utilizar a
palavra “perdida” para caracterizá-la. Pode-se refletir sobre esse trecho da reportagem a
partir da abordagem narrativa, parte integrante da teoria sistêmica, a qual afirma que todo o
conhecimento é visto como construído, em vez de descoberto, e que se preocupa com o
modo em que as pessoas constroem seus significados, a partir das suas experiências, em
vez de se preocuparem com a maneira em que se comportam. A narrativa focaliza
cognições auto derrotistas (as histórias que as pessoas contam a si mesmas sobre seus
problemas), com o objetivo de expandir o pensamento dos pacientes, a fim de permitir que
considerem maneiras alternativas de olhar para si mesmos e seus problemas. Isso porque,
quando as histórias que as pessoas contam a si mesmas levam-nas a construir sua
experiência de maneira prejudicial, elas tendem a mergulhar em problemas. Esse problema,
por exemplo, provavelmente persistirá enquanto tais histórias prejudiciais continuarem
imutáveis (Nichols, 2007).
Na cena 12, Ana relata que tinha muito medo de seu pai por ele ter esse
temperamento: “Só dele falar Ana Cecília eu fazia xixi na roupa, quando falava o nome
completo né”. O conceito de hierarquia é definido como uma estrutura de poder,
envolvendo controle, adaptabilidade e influência. Além disso, inclui uma relação de
controle de tomada de decisões, tanto em eventos cotidianos, como em acontecimentos
esporádicos. A tomada do papel de poder é adaptativa somente em situações que ajudam a
conservar o equilíbrio no sistema familiar. A hierarquia sustenta o funcionamento familiar
saudável apenas quando o casal mantém uma relação igualitária entre si e possui maior
poder do que os filhos, porém sendo flexíveis diante das mudanças que ocorrem em seus
desenvolvimentos (Feldman & Gehring, 1988). O relato de Ana demonstra que a estrutura
hierárquica de sua família tinha como base o autoritarismo, por parte de seu pai, o qual
28

utilizava o poder de figura paterna de forma intimidadora, a fim de causar medo em sua
filha pequena.
No fragmento 11, já citado na categoria “contextos da violência doméstica”, Ana
Cecília conta que seu pai não é um homem carinhoso, e cresceu em uma família onde era
normal o homem mandar na casa e agredir a esposa. O pai de Ana repetiu o
comportamento de sua família de origem, visto que todos os homens de sua família agiam
da mesma forma. A teoria de Bowen trabalha com o conceito de transmissão
multigeracional, que se refere ao movimento de passagem de ansiedades e processos
emocionais de geração para geração. Famílias que realizam esse deslocamento tendem a
não fornecer espaço para os filhos efetuarem suas próprias escolhas, que se conformam
com a situação ou se rebelam (Martins, Rabinovich & Silva, 2008).
No fragmento 16, Ana Cecília menciona que tinha muito medo de namorar e de ser
agredida igual sua mãe, até que seu primeiro namorado lhe deu um tapa na cara na frente
de algumas pessoas. No momento que isso aconteceu, Ana percebeu a história se repetindo
e relata: “Eu vi minha mãe sofrer isso, de repente eu levei um tapa na cara por nada? Aí
pra esse menino acabou, aquele dia acabou”. Nessa cena, Ana relata o momento em que
se deu conta de que poderia repetir a história de vida de sua mãe, mas, ao compreender a
situação, conseguiu remediá-la, terminando o namoro e impedindo a transmissão
multigeracional.
Conforme visto na integração das três categorias a exposição à violência doméstica
é um fator desencadeante de diversos traumas nos sujeitos. Foram analisados três casos
diferentes, e cada um dos filhos levou marcas diferentes para a vida adulta, mesmo tendo
presenciado situações similares. Além disso, os três indivíduos demonstram nutrir
diferentes sentimentos em relações aos seus pais agressores. Mariane mantém contato com
o pai e relata gostar dele; Robson realiza o movimento inverso e desde os treze anos nunca
mais viu o pai e diz que ele não significa nada em sua vida; e Ana Cecília declara não ter
contato com o pai, porém sente pena dele por ser do jeito que é. Por fim, os conceitos da
teoria sistêmica foram capazes de abarcar as vivências relatadas.
29

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho buscou identificar possíveis consequências psicológicas


presentes em filhos(as) de mulheres em contexto de violência doméstica, e o viés sistêmico
foi escolhido para compreender a dinâmica dessas famílias. Foi utilizada uma reportagem
como fonte de análise, o fato de ser um artefato cultural construído por histórias verídicas
contribuiu para o melhor entendimento do tema, visto que possibilitou maior apreensão do
que acontece em contextos de famílias reais.
Os objetivos desse trabalho foram alcançados, visto que foi possível realizar a
caracterização da violência doméstica contra a mulher, assim como descrever os aspectos
encontrados em pessoas expostas a essa violência, e realizar a análise dessas situações a
partir da teoria sistêmica.
As consequências da exposição à violência doméstica, quando crianças,
manifestam-se nos sujeitos a partir de diferentes sintomas, sejam eles cognitivos,
comportamentais ou emocionais. Estes sintomas evidenciaram-se através dos relatos dos
filhos participantes da reportagem sobre as dificuldades e desafios enfrentados em suas
vidas adultas, em razão das circunstâncias em que se desenvolveram. As principais
sequelas apresentadas foram inabilidade em demonstrar afeto para outras pessoas,
envolvimento em relacionamentos violentos, habilidades sociais escassas, dificuldades de
aprendizado e sentimentos de inferioridade em relação a terceiros.
Com relação às limitações encontradas é relevante citar a dificuldade em encontrar
um artefato cultural que abarcasse especificamente a temática do trabalho. Foram
encontrados diversos artefatos sobre a violência doméstica contra a mulher, porém poucos
que demonstrassem os filhos visualizando as cenas de agressão e as consequências
advindas dessa exposição. A sugestão é que produzam mais artefatos voltados a essa
temática que se mostra tão importante na atualidade.
A teoria sistêmica demonstrou ser uma abordagem com uma gama de contribuições
para o assunto de famílias permeadas pela violência doméstica, porém foram encontrados
poucos trabalhos com o enfoque nos filhos expostos as agressões pelo viés sistêmico,
sendo assim propõe-se a realização de mais estudos sobre a violência doméstica contra a
mulher com foco nos impactos nos filhos das mesmas, visto ser uma temática ainda pouco
explorada e com escassez de publicações.
30

REFERÊNCIAS

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35

ANEXO

Cenas Categorias

Cena 1 - Maria de Fátima, mãe de Mariane,


conta os movimentos que costumava fazer
para que os seus filhos, crianças na época,
não observassem os acessos de raiva que o
pai tinha quando chegava bêbado em casa,
relata: “Quando eles tinham 3 e 4 anos, eles
já tinham a compreensão da violência, toda Aspectos conceituais da teoria sistêmica
vez que o pai chegava naquele estado eu
levava eles pra um quartinho, ficava com
eles lá, ligava a televisão, deixava o outro
fazer o que quisesse, quebrar, o rádio em
último volume, incomodava os vizinhos,
mas eu mantinha os dois lá e falava vamos
ver televisão, até que eles dormiam”.

Cena 2 - Mariane comenta sobre as


lembranças que tem de sua infância e do
relacionamento de seus pais: “Ele
geralmente chegava bêbado, então lembro
sempre da minha mãe retrucando o que ele
falava, eu lembro do relacionamento deles, Aspectos conceituais da teoria sistêmica
eu não lembro muito deles convivendo
como um casal em casa”. Neste trecho,
Mariane faz menção a falta de afeto e
carinho entre seus pais.

Cena 3 - Mariane e sua mãe relembram


como aconteceu a última agressão sofrida,
Maria de Fátima comenta: “A última
agressão foi quando ele recebeu a carta que
36

a gente tava separado de corpos e que ele ia


ser chamado pra gente se separar, aí ele me
deu um murro aí abriu aqui”, neste momento
Maria aponta para a testa e faz um risco com
a mão até a sobrancelha direita. Mariane
também relata o acontecido: “Eu só lembro
do meu pai indo pro quarto, e aí ele foi pra
cima dela, ela colocou o travesseiro pra se
proteger, ela tava deitada, ela colocou o Contextos da violência doméstica
travesseiro pra se proteger e ele começou a
socar o travesseiro, e aí quando ela tirou o
travesseiro a cara dela tava toda
ensanguentada”. Após isso, Mariane
chamou os vizinhos, que vieram ajudar e o
agressor foi embora pois ficou com medo de
apanhar dos filhos da vizinha, Maria foi pro
hospital e Mariane foi para a casa da babá.

Cena 4 - Maria diz que sua filha, por ser a


mais velha, diversas vezes se colocava entre Repercussões nos filhos
os pais nas horas de briga, enquanto seu
filho mais novo se escondia. Além disso,
Maria relata que seu filho mais novo não
gosta de visitar o pai, pois guarda mágoas e
tem medo o mesmo, e só vai quando sua
irmã vai também.

Cena 5 - Mariane refere ter dificuldade em Repercussões nos filhos


tratar a violência doméstica como algo
maléfico, e justifica isso com o fato de ter
crescido presenciando essa realidade
constantemente: “Uma parte minha, o
subconsciente, acha normal, e aí eu tenho Aspectos conceituais da teoria sistêmica
que trabalhar com a parte de não, não é
37

normal”.

Cena 6 - Maria de Lourdes, mãe de Robson,


está segurando uma foto do dia de seu
casamento, a repórter pergunta a ela o que
ela pensa quando olha para essa foto e a
mesma responde: “Ah que foi uma vida
perdida, eu era uma menina, 16 anos, perdi Aspectos conceituais da teoria sistêmica
minha juventude toda, tinha tudo pra ser
uma família feliz, infelizmente não deu”, se
referindo as consequências causadas pela
violência que permeiava a vida familiar.

Cena 7 - Robson relata acontecimentos que


lembra de sua infância e dos
comportamentos de seu pai: “O que eu
lembro do convívio em família é sempre de
destruição, de medo, de coisas quebradas,
por exemplo, dia de natal a mãe montava a
árvore de natal, com aquele carinho de mãe, Contextos da violência doméstica
com quatro filhos, três filhos na época, e o
que eu lembro do natal é assim a árvore
destruída, os presentes tudo jogado, comida
esparramada pelo chão” e complementa: “Se
eu paro pra relembrar minha infância eu só
lembro coisa ruim, eu nunca vejo um
momento de carinho, de fraternidade, de
amizade, não me recordo disso, eu lembro
dos familiares tendo que ir dormir em casa
porque ele ficava andando a noite com uma
faca, então imagina você deitado no quarto e
vendo a luz lá no corredor acesa e o reflexo
dele passando com a faca, estilo filme de
terror”.

Cena 8 - Maria de Lourdes narra um


38

episódio em que seu ex-marido tentou matar


ela e seu filho mais velho: “Ele bateu na
minha nuca com revólver, abriu a cabeça né,
começou a sair muito sangue, segurando
pelo meu cabelo ele percebeu que tinha
sangue, ele me levou pro chuveiro, me
arrastou pro chuveiro”. Robson a auxilia a
contar com pesar na voz: “Ele tava com uma
arma na mão, então ele botou a arma em
cima da mesa da cozinha, botou as balas da
arma do lado, e falou assim hoje eu vou
matar sua mãe e seu irmão, e entrou no
quarto pra bater nela, aí minha atitude vendo
aquela situação foi pegar as balas do Contextos da violência doméstica
revólver e correr pra rua, daí eu catei as
balas do revólver e corri pra casa de um
colega de escola, contei a situação pros pais,
eles acabaram me acolhendo naquela noite,
na minha cabeça eu tinha salvo minha mãe
porque eu tinha carregado as balas, mas ele
usou o revólver pra bater nela de coronha e
quebrou ela inteira de revólver”.

Cena 9 - Maria de Lourdes relata: “Não


existia família ali, eu só tinha meus filhos e
mais nada, tanto é que quando eu tinha meu
filho menorzinho, eu tava dando de mamar e
ele me deu um tiro, um tiro de revólver
mesmo, mas não pegou”, Robson desabafa
que não tem lembrança da fisionomia de seu
pai e complementa: “Quando eu optei sair
de casa, ainda moleque com treze anos eu
rompi com meu pai, meu pai faleceu se eu Aspectos conceituais da teoria sistêmica
não me engano em 2010 e eu não fui no
enterro, pra mim era uma pessoa estranha,
39

então eu não tenho essa referência”.

Cena 10 - Robson demonstra tristeza em


referir que sente dificuldade em expressar
emoções: “Eu tenho dificuldade em falar eu
te amo, eu acho que não acredito na frase eu
te amo”, repórter questiona Robson se
quando ele era casado conseguia dizer isso
para a esposa, o mesmo responde: “Não não,
não falava, fiquei vinte anos com ela, tenho
dois filhos, uma menina de vinte e dois anos
e um menino de quatorze, não consigo ser
uma pessoa amorosa com eles, tenho
dificuldade nessa relação, é como se me
faltasse a referência de família, falar eu te Repercussões nos filhos
amo esquece, nunca falo, e se você falar pra
mim eu te amo, eu não acredito, pra mim
ninguém me ama, eu enxergo o amor hoje
como uma coisa muito delicada, eu acho que
as pessoas te amam enquanto precisam, na
hora que não precisa ou que você não é mais
útil não te amam mais, eu não enxergo
aquela possibilidade de amor infinito, amor
verdadeiro”. Apesar de ter essa visão sobre
o amor Robson menciona que acha que sua
mãe o ama, porém não consegue dizer “eu te
amo” para ela nem para ninguém.

Cena 11 - Ana Cecília relata o jeito de ser de


seu pai: “Meu pai não é um homem
carinhoso né, nordestino, foi criado no meio Aspectos conceituais da teoria sistêmica
de pessoas muito ricas, onde tinham, pode se
dizer escravos, porque o jeito que eles
viviam lá né, e na família do meu pai era
muito comum que o homem mandasse na
40

casa e que ele batesse na mulher, era


normal”. Logo após conta de uma situação
de acesso de raiva de seu pai que se recorda:
“Quando chovia em São Sebastião acabava
a luz, e em um natal eu me lembro que
minha mãe cozinhou o dia inteiro, e minha
mãe reclamou com ele assim ‘mas já, cê tá
bêbado’, minha mãe já tinha arrumado a
mesa, ele deu um soco na mesa, e a mesa era Contextos da violência doméstica
de vidro muito grosso, no que ele deu esse
soco a comida inteira foi pro chão”. Eulália,
mãe de Ana Cecília, narra outra situação
parecida: “Eu cheguei do trabalho eles
estavam brincando, aí eu botei uma roupinha
normal e sentei na mesa pra comer alguma
coisa, tava jantando, e eles brincando lá
fora, aí ele começou a discutir, e eu não
falava nada, por eu não falar nada ele veio e
deu um murro em cima da mesa, e a mesa
era redonda com tampo de vidro, aí caiu
tudo em cima das minhas pernas, e eu dei
um grito”.

Cena 12 - Ana relata que tinha muito medo


de seu pai por ele ter esse temperamento:
“Só dele falar Ana Cecília eu fazia xixi na Aspectos conceituais da teoria sistêmica
roupa, quando falava o nome completo né”.

Cena 13 - Ana Cecília descreve as sequelas


provocadas pelos anos em que presenciou
violência doméstica contra sua mãe: “Minha
mãe sempre fala que de todos ela acha que
eu fui a mais prejudicada, porque eu
demorei a ler, eu reprovei muito a quinta
série, eu tinha muito medo, eu joguei todo o
41

estresse dessa situação nos meus dentes,


tanto que eu usei dez anos aparelho”. Eulália
comenta: “Ela teve problemas de Repercussões nos filhos
aprendizado, ela teve que fazer tratamento
com psicóloga, uma amiga minha conseguiu
na UnB, eu ia todas as vezes, mas ele nunca
foi, a psicóloga veio aqui tentou falar com
ele mas ele não quis”.

Cena 14 - Ana Cecília narra uma situação


em que seu pai estava bêbado, tentou beijar
sua mãe e após ela negar ele a empurrou Contextos da violência doméstica
fazendo com que ela batesse a cabeça em
um tijolo, conta: “Ela rachou o crânio, onde
ela levou não sei se foi trinta ou quarenta
pontos na cabeça, e eu era muito pequena
sem entender, a única coisa que eu lembro
dela dizer era assim ‘vocês vão ficar em
casa, vão dormir, a mamãe vai sair, daqui a
pouco a mamãe volta’, ela tava com um
pano na cabeça, uma fralda, e essa fralda
tava toda vermelha, daí eu perguntei o por
que da fralda estar vermelha e ela disse ‘não,
a mamãe pintou de tinta’, então na minha
cabeça a minha mãe tinha pintado o cabelo
de vermelho”. Após, Eulália mostra que
guardou o pano utilizado nesse dia com uma
carta para ela nunca mais esquecer o que
aconteceu e não continuar com ele.

Cena 15 - Ana conta que era muito


agressiva: “Não levava desaforo pra casa, eu
não precisava disso, as vezes nem precisava Repercussões nos filhos
eu tava dando patada, mas pela criação que
eu tive, não era nem porque eu não gostava
42

da pessoa”.

Cena 16 - Ana Cecília menciona que tinha


muito medo de namorar e de ser agredida
igual sua mãe, até que seu primeiro
namorado lhe deu um tapa na cara na frente Aspectos conceituais da teoria sistêmica
de algumas pessoas. Relata: “Eu vi minha
mãe sofrer isso, de repente eu levei um tapa
na cara por nada? Aí pra esse menino
acabou, aquele dia acabou”, fazendo menção
ao término de namoro que ocorreu após a
agressão.

Cena 17 - Ana Cecília fala sobre como a


música mudou sua vida, ela faz parte de um
grupo de rap chamado “Atitude Feminina”,
composto por mulheres que passaram por Repercussões nos filhos
situações parecidas com as de Ana e
escreveram uma música sobre suas histórias.
A música foi a maneira que Ana encontrou
de trabalhar suas questões com aquilo que
presenciou quando criança.

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