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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

ESCOLA DE MÚSICA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA
Disciplina: Psicologia da música (MUS 510)
Docente: Dra. Diana Santiago

Resenha crítica do artigo Fifty shades of blue: Classification of music-


evoked sadness

Pablo Pérez Donoso

PELTOLA, H.; EEROLA, T. Fifty shades of blue: classification of music-evoked sadness.


Musicae Scientiae, v. 20, n. 1, p. 84-102, 2015.

É muito comum, como músicos, escutarmos que nosso trabalho atinge as emoções
e sentimentos das pessoas. Eu, pessoalmente, cresci escutando isso… dos meus
familiares, dos meus amigos, de pessoas que me assistiam tocando e até dos meus
professores de música: “a música é a linguagem das emoções!” falavam eles com tanta
autoridade que jamais passaria pela minha cabeça duvidar disso. Mas com o tempo
duvidei… e não foi senão por me questionar o “por quê” e o “como”.
Nas aulas do conservatório um professor de harmonia nos ensinava sobre as
escalas maiores e menores, ele falava sobre sua construção, suas diferenças, suas
peculiaridades sonoras e em determinado momento falou de algo que marcou minha
forma de assimilar a teoria musical, ele disse: “vejam como a escala maior é sempre
alegre e a menor é triste”, também referenciou ao mesmo efeito quando se tratava das
tonalidades... “as maiores são alegres e as menores tristes”, repetia. No início aceitei, no
fim das contas era o professor que estava falando isso. No entanto, chegando em casa fui
verificar a tonalidade das músicas que eu achava tristes e alegres. Para minha surpresa,
as músicas que eu considerava mais alegres, a maioria, estavam em tom menor. Os
trechos de músicas que eu mais gostava de ouvir e que me causavam grande felicidade
usavam escalas diminutas, acordes diminutos ou aquelas blue notes do jazz mais
“nostálgico”. Concluí que quando se fala em música, em teoria musical, nos efeitos da
música, não se pode ser tão deterministas… e isso foi algo que realmente compreendi
muito tempo depois.
No entanto, não era do meu interesse contradizer o professor, não falava disso com
ele e ele nunca soube que alguém tinha descoberto que as coisas não eram “tão assim”.
Em mim ele despertou outra grande curiosidade: como é possível mexer com as emoções
das pessoas com música? Eu sabia que era possível, parece que todos sabiam, mas
queria saber a “formula mágica” que me permitiria compor música sabendo
antecipadamente o efeito que ela teria nas pessoas. Procurei me informar sobre o
assunto e passei desde a teoria dos afetos até pesquisas sobre a música utilitária em
centros comerciais na atualidade. Com o tempo perdi o interesse no assunto, não me
dediquei à composição, que era o que eu enxergava como objetivo dessas curiosidades.
Não tinha como não mencionar todas essas coisas agora, quando tenho que fazer
uma resenha crítica de um artigo que retoma esses meus questionamentos antigos de
uma forma, desde minha perspectiva, inusitada. É comum nos dias atuais escutar
discussões sobre a redefinição de todas as áreas da ciência, a redefinição do olhar
científico. Diversos autores mencionam que nos encontramos em um tempo de transição
de paradigmas, de grandes mudanças. Talvez essa transição seja mais evidente em dois
campos: o político-social e o científico. Para quem trabalha com pesquisa e métodos de
pesquisa não é novidade escutar falar em positivismo, paradigma newtoniano-cartesiano
e outras denominações que demarcam uma época científica na qual prevalecia – e ainda
prevalece, porém com menos força – uma visão determinista e segmentalista dos
acontecimentos e das causas e efeitos.
Foi justamente isso a primeira coisa que me chamou a atenção no artigo de Peltola
e Eerola. O texto começa falando sobre o conceito de tristeza, primeiro no cotidiano e
depois na psicologia. A visão comum entre as pessoas, segundo os autores, é que a
tristeza é algo ruim, algo que é melhor evitar. O mundo ocidental costuma enxergar o
sofrimento como algo do qual deve-se fugir, esta observação nos prepara para os relatos
que os autores inserem ao longo do texto. Quando escutamos das pessoas que a música
atinge suas emoções o que vemos são expressões de alegria e prazer, de satisfação.
Mesmo quando a pessoa se emociona e chora num concerto, o que transparenta não é
sofrimento desconforto ou mal-estar. Mas é isso algo que podemos afirmar?
Para responder à pergunta acima os autores elaboraram uma metodologia simples,
baseada em questionários, que eles mesmos admitem ter suas limitações. No entanto,
deixam bastante claro os aspectos positivos do trabalho: a visão diferenciada sobre o que
as pessoas consideram como “tristeza” e “música triste”. Diferenciada porque nas
pesquisas sobre tristeza e música, até então, prevaleciam as condições “laboratoriais”
que não tomavam em conta aspectos como o contexto socioeconômico, cultural e
caraterísticas individuais das pessoas. A grande diferença de ver as coisas desde essa
perspectiva é compreender que não é a música, como objeto isolado, que desperta as
emoções mas um conjunto de fatores (memórias, vivências, expectativas), numa
complexa rede de interações que só é possível compreender caso por caso.
A visão integracionista é mais clara quando explicam a construção e regulação de
experiências tristes em música, que me lembra muito as ideias revolucionárias do
neurologista Antônio Damásio. Os autores contrapõem a teoria das emoções básicas aos
“atos de conceptualização” (acts of conceptualisation) e mostram como o último é mais
completo pois toma em conta as respostas ao ambiente e a interação com o mundo ao
redor. Assim, seria muito difícil para uma pesquisa desse tipo predefinir o significado de
emoções como a tristeza ou preestabelecer “músicas tristes”. Como dizem os autores,
“emoções são biologicamente evidentes mas também construídas e compartilhadas
socialmente”. Por isso o estudo tem como base a “auto definição” das pessoas sobre os
conceitos de tristeza ou música triste.
Com as bases conceituais estabelecidas os autores iniciam uma sequencia de
relatos, que tem como pilar as perguntas dos questionários sobre evocação de
sentimentos quando se escutando música, abrem um leque de possibilidades enorme
para classificar a tristeza em categorias e subcategorias. Assim é que aparecem os
cinquenta tons de azul (fifty shades of blue), em referência indireta ao filme Fifty shades
of gray e à cor azul que historicamente foi usada para mencionar a melancolia (uma das
formas da tristeza). Como uma palheta de cores, os autores classificam a tristeza em
duas categorias maiores que vão da dor (que contém a dor e luto, a dor catártica, e a
ansiedade), passando pela melancolia (que contém a saudade, a piedade e a auto-
piedade) até a “doce aflição” (que contém a consolação e o prazer estético).
As relações entre esses “tons” são ao mesmo tempo marcados e difusos, tal qual
seria numa palheta de cores, como mostra o gráfico da página 98. A estas colorações da
tristeza os autores acrescentam ainda caraterísticas positivas ou negativas, segundo os
relatos dos questionados. O que abre um debate ainda maior quando se tratando de
emoções em música, qual o lugar das emoções negativas quando se escuta música
triste? A resposta, segundo o estudo, é a menos esperada: as emoções negativas tem
destaque. Isto é, não tudo é prazer estético no mundo dos sons, nem todas as lágrimas
quando se escuta música são de emoções “benéficas”.
São discussões pertinentes no campo da psicologia da música que o artigo mostra
que precisam ser revistas e debatidas com maior amplitude. A pesquisa, a pesar de ser
metodologicamente simples - antes das referências os autores fazem questão de mostrar
a falta de financiamento - consegue gerar uma série de questionamentos que com certeza
vão determinar outros rumos nas futuras discussões sobre as emoções em música.

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