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Por uma espiritualidade

pascal da alegria (notas e citações )


- por Sergio de Souza

“Alegrai-vos no Senhor. Repito: alegrai-vos!” (Fl 4,4)

“O que é belo há de ser eternamente


Uma alegria” (John Keats)

Quase tudo o que registrarei aqui não é fruto de minha reflexão, mas comentários sobre
o que vi e ouvi, ou mesmo mera repetição. Por isso, farei questão de citar as fontes para
que você, querido leitor, posso ver com seus próprios olhos o que eu também vi. Eu só
posso ter feito estas anotações porque, como os autores e testemunhas, cujas obras e
palavras aqui cito e sobre as quais medito, também fui surpreendido pela alegria, muito
embora seja um sujeito miseravelmente medíocre.

1. A alegria espantosa diante de Deus

O Papa Francisco certa vez proferiu uma belíssima homilia que é chamada de “Hino à
alegria” [1]. Nessa homilia, o Santo Padre vai dizer que:

“O bilhete de identidade do cristão é a alegria»: a «admiração» diante da «grandeza de


Deus», do seu «amor», da «salvação» que doou à humanidade não pode deixar de levar
o crente a uma alegria que nem sequer as cruzes da vida podem afetar, porque também
na provação há «a certeza de que Deus está conosco”.

Primeiro o Papa nos fala de uma alegria que transborda da esperança nascida da
regeneração operada em nós por meio de tudo o que Deus nos deu em Jesus Cristo.
Estamos no período pascal, recém-saídos da oitava da Páscoa. A liturgia da Semana
Santa e logo depois, a liturgia desta primeira semana do tempo Pascal nos mergulha,
primeiramente, no desespero causado nos apóstolos e discípulos pela morte de Cristo e
pelo choque de ter visto o seu mestre torturado e derrotado na cruz.

A depressão pós-paixão e morte de Jesus é muito evidente nos evangelhos. Os apóstolos


simplesmente não haviam entendido o que significava a ressurreição, mesmo tendo
Cristo os instruído sobre isso com ênfase: “De fato, eles ainda não tinham
compreendido a Escritura, segundo a qual ele devia ressuscitar dos mortos.” (Jo 20,9) A
atitude dos apóstolos e discípulos demonstra: voltaram ao barco de pesca, os discípulos
de Emaús estavam indo embora de Jerusalém cabisbaixos, estavam tão prostrados que
não acreditaram no testemunho das mulheres… Foi a Páscoa mais triste da vida deles.
Estavam paralisados pela decepção, frustração e tristeza. Além do terror de terem tirado
o seu Mestre, fonte de toda esperança, seu futuro e confiança, tinham medo do que o
Sinédrio poderia fazer consigo.

O Evangelho de Pedro, apócrifo, coloca na boca do primeiro papa as seguintes palavras:

“Eu e os meus companheiros estávamos angustiados, nos escondíamos com o coração


dilacerado, pois nos caçávamos como se fôssemos criminosos, acusando-nos de querer
incendiar o templo. Jejuávamos, chorávamos e nos afligíamos dia e noite”. [2]

Estavam desalentados, sentiam-se literalmente abandonados por Deus.

É quando a gente mergulha profundamente na paixão e morte de Nosso Senhor que a


liturgia nos proporciona; é quando penetramos na consciência dos discípulos devastados
por essa depressão pós-morte do Senhor que conseguimos também captar o choque da
Ressurreição. O espanto da alegria, a alegria espantosa, a admiração extasiante diante da
constatação de que Jesus havia ressuscitado e estava vivo…

Dom Bernardo Bonowitz vai dizer, numa também belíssima homilia [3], que a
ressurreição, a aparição de Cristo ressuscitado aos apóstolos foi uma coisa tão chocante
que eles só podiam “experimentar”. Não havia a possibilidade de elaborar nada, pensar
no significado, teologizar. Estavam extenuados, exaustos, mal tinha assimilado o terror
da morte e Jesus lhes aparece.

Dom Bernardo vai colocar três pontos essenciais para captar desse encontro de Jesus
com os apóstolos, aspectos de uma espiritualidade de alegria pascal:

Primeiro: Jesus estava vivo. Eles acabavam de experimentar o que nunca haviam
entendido pela explicação do Mestre: a ressurreição como fato.

“A alegria e o medo tomaram posse deles. Alegria por Ele — Ele não fora engolido pela
morte; aquela grande baleia o tinha devolvido à terra dos vivos. Alegria por si mesmos,
porque, apesar de sua mesquinhez e de seu lema “sobrevivência pessoal acima de tudo”,
eles o amavam. Era uma alegria enorme para eles vê-lo. Uma alegria que fez com que as
lágrimas corressem. Mas também dava medo, porque uma tal alegria não cabia nesse
mundo.” [4]

Segundo, Jesus estava diferente:

“Antes Ele já era grande, agora era majestoso. Ainda chagado, transmitia uma paz, uma
segurança, uma maestria, uma realeza, que eram mais do que humanas, mais do que
temporais. Ele falava e agia com o sotaque da eternidade. Por seus gestos e seu olhar,
dava a impressão de tinha viajado longe, tinha sido coroado e agora tinha voltado a
reinar. Toda aquela conversa zombeteira dos últimos dias de “rei dos judeus” agora
parecia ter fundamento, não era irônica, mas real”. [5]

Terceiro, Cristo ressuscitado lhes dizia “Shalom”.

“A paz esteja convosco!”. Agora, a gente não diz Shalom para qualquer um. Shalom é
reservado para os amigos, os irmãos, as pessoas do seu coração, os fiéis, os leais. Os
discípulos se lembravam (não conseguiam esquecer) de sua fuga, de sua negação, da
baixeza de sua covardia. Quando Ele precisava deles, a única vez em que Ele realmente
precisava deles, eles tinham sumido. Cada um sentia algo da culpa de Judas pesar sobre
si, e com razão. Com certeza Ele tinha percebido a sua ausência, a tinha sentido, a tinha
chorado. Mas em vez de fazer repreensões, Ele tinha absorvido e perdoado a sua vil
pobreza. A paz esteja convosco. Imagine!” [6]

É claro que essa alegria pascal, que começa com uma experiência e com um encontro,
depois de Pentecostes será assimilada pelos apóstolos e pela Igreja. A presença interior
do Espírito Santo, a reflexão da Igreja e a busca dos significados irá fazer com que essa
alegria entre para o dia-a-dia dos cristãos. São Paulo e São João já apresentam uma
teologia da alegria pascal em seus escritos. É essa alegria da qual fala o Papa Francisco,
capaz de nos sustentar em tempos difíceis, de cruzes e apreensões; a alegria que é
duradoura, que nunca passa, porque Cristo Ressuscitado, aquele mesmo que apareceu
para os apóstolos, está conosco até o fim do mundo.

2. A alegria das coisas boas da vida


O Papa Francisco, em seu “Hino à alegria”, também nos diz que “O bilhete de
identidade do cristão é a alegria”. Franz Kafka, o famoso escritor, de alma cinzenta e
melancólica, após a leitura de Gilbert Keith Chesterton, declarou:

“Chesterton é tão feliz que se poderia quase chegar a crer ele encontrou Deus” Ele é tão
alegre, parece que viu Deus”.

Não estaria Chesterton, através de seus escritos, distribuindo bilhetes de identidade de


alegria cristã? Philip Yancey, um jornalista e escritor protestante, membro de uma
comunidade evangélica fundamentalista cujos pastores transmitiam em seus sermões a
imagem de um Deus “tirano irado e vingativo” e cujos membros viviam em profunda
prostração existencial, quando deparou-se com a obra de Chesterton verificou que
“havia cristãos que desatavam suas mentes em vez de contê-las, que combinavam um
sabor de sofisticação com a humildade que eles não exigiam de outros e, acima de tudo,
que havia experimentado a vida com Deus como uma fonte de alegria, não de
repressão.” [7] Faz lembrar aquilo que Dom Bernardo Bonowitz declarou sobre Thomas
Merton:

Faz muito bem ser interlocutor de um autor que não sente medo, cujos livros não
apertam por sua estreiteza, cujo pensamento é muito arejado. Quantas pessoas, lendo-o
devem exclamar: Posso respirar! [8]

Yancey disse que, lendo Chesterton, passou a crer nas coisas boas deste mundo,
reveladas para ele através da música, do amor romântico e da natureza, que ele chama
de “relíquias de um naufrágio”, pois dão pistas de de uma realidade encoberta pelas
trevas deste mundo, e são, em certo sentido, vestígios do plano original de Deus. Mais:
são sinais da redenção operada por Deus em um mundo maculado pelo mau uso da
liberdade humana, que só irá se mostrar com plenitude no fim dos tempos.
Chesterton encontrou o segredo da alegria porque, ao contrário de grande parte dos
literatos cristãos, não ocupou-se somente com o problema do sofrimento, mas ocupou-
se com fascinação também do problema do prazer. Por que não aproveitar as coisas
boas da vida ? Por que os cristãos sentem culpa ao experimentar fartamente a alegria de
um bom vinho ou de uma boa noite de amor? Por que a sensação de deleite não pode ser
simplesmente aproveitada sem dor na consciência ? O sexo é bom, o sorriso de um bebê
é bom, uma tarde de lazer é boa, a beleza de um quadro de Van Gogh é boa. Por que
não podemos, como Deus na criação, nos deleitar com tudo que é muito bom ? Por que
Deus colocou a alegria e o prazer nisso tudo?

“Na questão do prazer, os cristãos conseguem respirar mais aliviados. Um Deus bom e
amoroso naturalmente gostaria que suas criaturas experimentassem deleite, alegria e
satisfação pessoal. Os cristãos partem desta premissa e depois procuram maneiras de
explicar a origem do sofrimento.

Depois de sua longa odisséia, Chesterton voltou à fé porque apenas o cristianismo deu
as pistas para resolver o mistério do prazer. “Sentia, primeiramente em meus ossos, que
este mundo não se explicava (…) Em segundo lugar, passei a sentir como se a mágica
precisasse ter um significado, e o significado precisasse de alguém para expressá-lo.
Havia algo de pessoal no mundo, como numa obra de arte (…) Terceiro, considerava
este propósito maravilhoso em sua forma original, a despeito de seus defeitos, como os
dragões. Quarto, que a maneira adequada de agradecer a ele é um tipo de humildade e
moderação: deveríamos agradecer a Deus a cerveja e o vinho não bebendo muito dos
dois (…) E, por último, e mais estranho, tive em minha mente uma vaga e vasta
impressão de que, de algum modo, todo o Bem era uma sobra a ser guardada e
preservada, como sacra, de alguma ruína elementar. O homem salvara seus bens como
Robinson Crusoé salvou seus pertences: ele os recuperou de um naufrágio.

“De onde vem o prazer? Depois de buscar diversas alternativas, Chesterton fixou-se no
cristianismo como a única explicação razoável para sua existência no mundo.
Momentos de prazer são restos de um naufrágio jogados na praia, pedaços do Paraíso
que resistiram ao tempo. Devemos nos ater a essas relíquias, sem muito apego, e usá-las
com gratidão e prudência, nunca utilizá-las como rótulos.

Como Chesterton pensava, a promiscuidade sexual nada mais é senão uma


desvalorização do sexo, em vez de ser uma supervalorização. “Reclamar de que só
posso me casar uma vez é como reclamar que só nasci uma vez. Era incompatível com a
tremenda excitação de quem falava. Mostrava não uma exagerada sensibilidade ao sexo,
mas uma curiosa insensibilidade a ele (…) A poligamia é a falta de realização no sexo; é
como um homem que quer comer uma pêra, mas colhe cinco só para se distrair.”

As igrejas que freqüentei enfatizavam os perigos do prazer tão exageradamente que


perdi qualquer mensagem positiva que elas pudessem estar passando. Guiado por
Chesterton, passei a vero sexo, o dinheiro, o poder e os prazeres sensoriais como boas
dádivas de Deus. Todos os domingos, posso ligar o rádio ou a televisão e ver pregadores
censurando as drogas, a libertinagem sexual, a ganância e o crime que estão “crescendo
assustadoramente”. Em vez de simplesmente balançar nosso dedo diante de tão óbvios
abusos das boas dádivas de Deus, talvez devêssemos demonstrar ao mundo de onde
esses presentes realmente vêm e por que eles são bons. O maior triunfo do mal pode ser
seu sucesso em retratar a religião como uma inimiga do prazer, quando, na verdade, a
religião aponta para sua fonte: todas as coisas boas e agradáveis são invenção do
Criador, que doou liberalmente esses presentes ao mundo.

É natural que, num mundo distanciado de Deus, até mesmo as coisas boas devem ser
tratadas com cuidado, como se fossem explosivos. Perdemos a imaculada inocência do
Éden, e todo o Bem representa também um risco, possuindo dentro de si o potencial
para o abuso. Comer se transforma em glutonaria, o amor se torna desejo e, durante o
processo, perdemos de vista Aquele que nos deu o prazer. Os antigos transformavam as
coisas boas em ídolos; nós, modernos, chamamo-las “vícios”. Em ambos os casos,
aquele que deixa de ser servo transforma-se num tirano, um princípio que vi claramente
em operação na vida de meu irmão e de seus amigos hippies.

“Sou ordinário no exato sentido da palavra”, diz Chesterton, “o que significa aceitação
de uma ordem, um Criador e uma Criação, o senso comum de gratidão pela Criação,
vida e amor como dádivas permanentemente boas, com o casamento e o cavalheirismo
como leis que o controlam de maneira adequada”. Sob sua influência, também percebi a
necessidade de me tornar mais “ordinário”. Havia concebido a fé como um mudo e
severo exercício de disciplina espiritual, uma mistura de ascetismo e racionalismo na
qual a alegria não tinha espaço. Chesterton restaurou em mim uma sede pela
exuberância que flui de uma ligação com o Deus que planejou todas as coisas que me
dão prazer.” [9]

3. O espanto diante da beleza


Quem já não suspirou diante da beleza de uma mulher deslumbrante? De uma peça de
Bach ou Mozart ? De um quadro de Rembrandt? Da beleza de uma Igreja? De uma
ópera, uma peça de teatro, uma apresentação de ballet ? De Shakespeare, Dante,
Cervantes ou Platão?

Quem, diante da beleza, não intui um mistério, uma transcendência, o sentimento de


uma presença, uma Beleza com “B" maiúsculo? A sensação magnífica de que tudo não
pode se resumir a este mundo, a isto aqui? A sensação de que aquilo que os olhos não
vêem e os sentidos não captam é muito maior e é o que dá sentido a tudo?

Um belíssimo trecho de “O Senhor dos Anéis” ilustra muito bem a perplexidade


positiva diante da beleza:

“Frodo suspirou e adormeceu quase antes de serem ditas as últimas palavras. Sam lutou
com o próprio cansaço e pegou a mão de Frodo; e ali ficou sentado, em silêncio, até cair
a noite profunda. Então, finalmente, para manter-se desperto engatinhou para fora do
esconderijo e olhou em volta. A região parecia repleto de ruídos que rangiam, estalavam
e eram metreiros, mas não havia som de voz nem pés. Muito acima da Ephel Dúath no
Oeste, o céu noturno ainda era baço e pálido. Ali, espiando por entre os farrapos de
nuvens acima de um pico escuro e alto das montanhas, Sam viu uma estrela branca
piscando por alguns instantes. Sua beleza lhe atingiu o coração, olhando para cima
desde a terra abandonada, e a esperança retornou a ele. Pois como um raio, nítido e frio,
perpassou-lhe o pensamento de que no fim a Sombra era somente uma coisa pequena e
passageira: havia luz e elevada beleza para sempre além de seu alcance. Sua canção na
Torre fora mais de desafio que de esperança: pois naquele momento estava pensando
em si mesmo. Agora, por um instante, seu próprio destino, e mesmo o do seu patrão,
deixaram de afligi-lo. Voltou engatinhando para dentro da sarça, deitou-se ao lado de
Frodo e, deixando de lado todos os medos, lançou-se em um sono profundo e
tranquilo.” [9]

Também Bento XVI, em uma catequese em Castelgandolfo, em 31 de agosto de 2011,


dá um testemunho impressionante:

“Vem-me à mente um concerto de músicas de Johann Sebastian Bach, em Munique da


Baviera, dirigido por Leonard Bernstein. Ao final do último trecho, uma das Cantatas,
senti, não pelo raciocínio, mas no profundo do coração, que aquilo que tinha escutado
me havia transmitido a verdade, a verdade do sumo compositor, e me inclinava a
agradecer a Deus. Ao meu lado estava o Bispo luterano de Munique, e espontaneamente
eu lhe disse: "Ouvindo isso se compreende: é verdadeiro; é verdadeira a fé assim forte, e
a beleza que expressa irresistivelmente a presença da verdade de Deus". Mas quantas
vezes quadros ou afrescos, fruto da fé do artista, nas suas formas, nas suas cores, na sua
luz, nos levam a dirigir o pensamento a Deus e fazem crescer em nós o desejo de chegar
à fonte de toda a beleza. Permanece profundamente verdadeiro o quanto escreveu um
grande artista, Marc Chagall, que os pintores por séculos tingiram os seus pincéis
naquele alfabeto colorido que é a Bíblia. Quantas vezes, portanto, as expressões
artísticas podem ser ocasiões para nos recordarmos de Deus, para auxiliar a nossa
oração ou também a conversão do coração!

Paul Claudel, famoso poeta, dramaturgo e diplomático francês, na Basílica de Notre


Dame, em Paris, em 1886, exatamente escutando o canto do Magnificat durante a Missa
de Natal, percebeu a presença de Deus. Não havia entrado na igreja por motivos de fé,
havia entrado para buscar exatamente argumentos contra os cristãos, e, ao contrário, a
graça de Deus operou no seu coração.” [10]

4. A alegria que vem da descoberta do


sentido
Aqui é o frei Clodovis Boff que vem em nosso auxílio, no seu maravilhoso “O Livro do
Sentido — vol. 1", quando relata os efeitos — “alegria e encantamento” — de ter
encontrado o sentido da vida:

“O sentido-fim provoca uma sensação de autorrealização, de desabrochamento e de


plenitude. É a vitória sobre a melancolia, o pessimismo e a desesperança. Feito ideal ou
paixão, o fim introduz na vida não só um sentimento de entusiasmo e exaltação, mas
também de contentamento e até felicidade. Quanto maior e mais vivo é o ideal de vida,
mais satisfação dá ao coração e mais encanto confere à vida. De fato, ter uma finalidade
ou um sonho na vida é introduzir nela um pathos, uma intensidade, uma vibração
existencial particular que podemos chamar de “encantamento”. O mundo moderno foi
chamado por M. Weber um mundo “desencantado”, justamente porque perdeu aquela
aura de “magia” e de “sentido” que caracterizava o mundo religioso pré-moderno. Ora,
se um mundo “dessignificado” é um mundo “desencantado”, um mundo “com sentido”
é um mundo “encantado”. Assim, dizer que o sentido dá encanto à vida é o mesmo que
dizer que ele dá à vida coisas como:

– Graça: o sentido deixa a pessoa “em estado de graça”, fazendo com que tudo “tenha
graça”, nada mais sendo sem graça e, menos ainda, desgraçado;

– Beleza: o sentido derrama sobre a vida esplendor e poesia, vencendo a prosa do


trivial;

– Canto: o sentido faz a existência vibrar e dançar, triunfando sobre a monotonia do


cotidiano;

– Cor: o sentido dá colorido às coisas do mundo, tirando-lhe o desbotado do desgaste


diário e o cinzento da vida ordinária;

– Sabor: o sentido dá gosto ao viver, tolhendo-lhe o insosso, como o melhor tempero; –


Sacralidade: o sentido envolve as coisas com uma aura numinosa e um misterioso
fascínio, protegendo-as do perigo da mundanização e da banalização.[11]

5. Alegria e tristeza de mãos dadas (ou


“A alegria autêntica vs. a religião do
bem-estar”)
Produtos de beleza, produtos naturais, meditações, mindfulness, funcional, corrida,
ciclismo obsessivo, vida fitness… As redes sociais não enganam: as pessoas têm
encarado essas práticas com verdadeiro espírito religioso. Parecem não ser somente
práticas isoladas, mas carregar consigo todo um imaginário, um discurso moral e
mesmo espiritual; pretendem não só melhorar a sua saúde e sua qualidade de vida, mas
a caracterizam-se por conotar à sua prática uma espécie de possibilidade da instalação
do bem na realidade. Quem pratica está trazendo o bem para o planeta e fazendo do
mundo um lugar melhor. Os não-adeptos são vistos como cidadãos de segunda categoria
(coitados dos gordinhos, dos fumantes). Chamar alguém de sedentário é como xingar o
sujeito. Os discursos e fotos no Instagram fazem os não-adeptos sentirem-se culpados
por não participarem dessa “alegria”.

Vai se criando assim, uma espécie de religião do bem-estar, devidamente acompanhada


de um mercado do bem-estar (se fôssemos olhar o fundo da questão veríamos que o
importante não é tanto o bem-estar, mas transformar o bem-estar em mercadoria ). Essa
mentalidade têm tentado transcender o campo da saúde e da beleza para colocar o
autocuidado como uma forma de transcendência. Como se você, por exemplo, por ser
adepto das corridas diárias ou da dieta low carb, fosse um ser humano mais autêntico,
ou se fizesse parte de um grupo de ciclistas,pudesse ser uma pessoa melhor por estar
pedalando, ou adotando uma dieta low carb, praticando funcional ou correndo
diariamente. A pessoa que posta no Instagram que entrou em forma, conseguiu baixar a
glicose, ou diminuir o percentual de gordura, etc., parece ter adquirido um status moral
ou espiritual superior. É visto como um virtuoso, um modelo, que tem algo a ensinar
aos outros: bastar observar as reações e comentários. Não que não seja bom e
importante fazer isso tudo. Claro que é. Não estou falando das práticas mas do status
que se dá a elas, da cultura que se vai criando em torno delas. Um culto ao bem-estar,
um culto à saúde, à “felicidade”, ao “aproveitar a vida”…

Esse bem-estar parece exatamente um simulacro da autêntica alegria. E as pessoas agem


como se essas práticas tivessem realmente o poder de extirpar todo o mal-estar e toda a
tristeza que perpassa nossa civilização.

***

Aprendi com Henri Nouwen, em seu precioso livro de meditações breves chamado
“Mosaicos do presente”, que nesta vida alergia e tristeza andam de mãos dadas. Essa
descoberta foi importantíssima porque ocasionou o rompimento com um certo dualismo
que me era muito prejudicial. Nouwen me mostrou o caráter pascal da vida. A Páscoa é
o testemunho de que Paixão, Morte e Ressurreição estão profundamente interligados. E
que a vida de Jesus, na qual somos inseridos por meio do batismo, nos insere nesta
dinâmica pascal. Não há uma dicotomia entre alegria e tristeza. A nossa vida, que é a
vida de Jesus em nós, é vida pascal: cruciforme, mas selada com a alegria da
ressurreição. Jesus é o ressuscitado que passou pela cruz. Quando aparece ressuscitado,
não dispensa suas chagas. Suas chagas são gloriosas. O Cordeiro do Apocalipse está
imolado, mas de pé. Imolado porque, como disse Pascal, enquanto houver um homem
sofrendo no mundo por causa do pecado, Jesus estará em agonia; de pé porque está
ressuscitado. Sendo assim, a vida pascal compreende a alegria morando na mesma casa
da tristeza, enquanto habitarmos este mundo. Um dos primeiros passos para aceitar a
cura do coração é aceitar essa estranha e incômoda mistura. Na parábola do joio , Jesus
deixa claro que o mal não será extirpado antes do momento certo. É preciso aceitação e
paciência. A alegria não significa ausência de tristeza nem a tristeza a ausência de
alegria. Viver bem é aprender a equacionar a complexidade desta vida. E é uma
dinâmica batismal: quando se mergulha no abismo da morte, se emerge para uma nova
vida de alegria; a alegria torna-se mais profunda e fundamentada quando se conhece de
verdade o que é a tristeza. Que nos digam os místicos que emergiram das noites escuras
da alma. O próprio Jesus, diz Henri Nouwen, “foi o homem das dores, mas também o
homem da total alegria” [12].

Nouwen arremata o tema, num trecho de um livrinho que você, caro leitor, não deveria
deixar de ler:

“O cálice da vida é o cálice da alegria tanto quanto é o da tristeza. É o cálice no qual


tristezas e alegrias, dor e felicidade, luto e dança nunca se separam. Se as alegrias não
pudessem estar onde as tristezas estão, o cálice da vida jamais poderia ser bebido” [13].

Também Tolkien, de novo, numa cena memorável de “O Senhor dos Anéis”, pode nos
ajudar a refletir sobre a alegria rodeada pela tristeza. Quando a saga vai entrando em
seus momentos mais sufocantes, o escritor, com seu gênio literário, introduz-nos em
uma estranha cena de tranquilidade e singeleza em meio ao caos (“preparais uma mesa à
vista do inimigo”, reza o Salmo 22). Quando os dois hobbits atravessavam a região de
Ithilien, recém-conquistada por Sauron e ainda não totalmente arruinada, que mantinha
certa beleza, Sam sente o cheiro das ervas e tem fome, pensa em preparar algo para
comer; pede a Smeagol que lhe traga coelhos para preparar um ensopado.
Contemplando o sono de um Frodo muito magro e abatido, se compadece, e mais do
que matar a própria fome, resolve cozinhar para seu amigo e mestre. Deixando de lado o
descanso, Sam faz algo que remete às obras de misericórdia: dá de comer a quem tem
fome.

Sam preparando para Frodo um ensopado de coelho enquanto se dirigem para Mordor
(e, de certo modo, já envolvidos por suas trevas), nos remete a um depósito de
humanidade, beleza, bondade, alegria serena e ternura que podemos cultivar em nossos
corações mesmo em meio às maiores adversidades.

Esse belíssimo capítulo chamado “De ervas e coelho cozido” [14] recorda-nos a famosa
palavra de Gandalf:

“Saruman acredita que apenas um grande poder pode manter o mal sobre controle, mas
não é o que descobri. Descobri que são as pequenas coisas, as tarefas diárias de pessoas
comuns que mantém o mal afastado, simples ações de bondade e amor.” [15]

Servir anonimamente em silêncio, com alegria, nas aparentemente insignificantes


tarefas cotidianas, são as pequenas coisas que salvam o mundo. Quem de nós não possui
áreas íntimas, domésticas, na família, no cotidiano, em nossa pequena circunstância
diária, que são muito parecidas com a região de Ithilien, “recém-conquistada por Sauron
e ainda não totalmente arruinada, que mantinha certa beleza” ? É nessas “regiões” que o
cultivo da autêntica alegria sempre será possível.

A espiritualidade da alegria não é uma espiritualidade da ilusão.

6. Comentários finais com indicações


literárias:

Termino com duas dicas que podem ser preciosas. Certa vez eu estava querendo voltar a
dois autores católicos franceses da primeira metade do século XX, Leon Bloy e Georges
Bernanos, que são adeptos de um catolicismo agônico, quase “dark”. Não pude
continuar a leitura do livro de Bernanos — do qual não me lembro o título — e nem a
do de Bloy, “O desesperado”, pois deprimiram-me tal maneira que larguei-os de lado e
pulei de volta para o ingleses. A França católica da primeira metade do século XX é
iluminada por fora e sombria por dentro… Já a Inglaterra é cinzenta por fora, mas pura
luz nas obras de Chesterton, Tolkien, nas “Memórias de Brideshead, de Evelyn Waugh,
nos livros de C. S. Lewis, que era irlandês, mas tinha o espírito inglês de Oxford. Tudo
isso sem falar da mística Juliana de Norwich, em seu maravilhoso livro das “Revelações
do Amor Divino”, que ilustrou o negrume de alguns de meus mais tristes dias nestes
tempos duros.
Passando da literatura para a mística, quero transmitir uma dica que na verdade é do
Frei Raniero Cantalamessa. Se os místicos ocidentais, que são marcados pelo
sofrimento e pela Paixão, sendo alguns, inclusive, estigmatizados, como o Padre Pio,
Santa Catarina de Sena e São Francisco de Assis, às vezes nos parecerem demasiados
“pesados” para nossa espiritualidade, somos também convidados a olhar para o oriente
cristão, cujos místicos se voltam mais para o aspecto glorioso da fé, como a
Transfiguração e a Ressurreição. Se você bem notar, para os católicos orientais, a
Páscoa, tanto em sua liturgia quanto no aspecto mais devocional, como nos ícones, é
mais fixada no Mistério da Ressurreição. Os místicos orientais, em vez dos estigmas,
apresentam no corpo, especialmente no rosto, o fenômeno místico da Transfiguração.
São vários testemunhos, por exemplo, de pessoas que viram o rosto de São Serafim de
Sarov brilhar como o rosto de Cristo Transfigurado. O livro “Conversas com
Motovilov” que apresenta os relatos de São Serafim de Sarov é um impressionante
testemunho deste lado mais luminoso dos cristãos orientais.

***

E, para voltar aos ingleses, terminamos com um trecho do belíssimo poema de John
Keats citado no início desta anotações:

Endymion (trecho)

O que é belo há de ser eternamente


Uma alegria, e há de seguir presente.
Não morre; onde quer que a vida breve
Nos leve, há de nos dar um sono leve,
Cheio de sonhos e de calmo alento.
Assim, cabe tecer cada momento
Nessa grinalda que nos entretece
À terra, apesar da pouca messe
De nobres naturezas, das agruras,
Das nossas tristes aflições escuras,
Das duras dores. Sim, ainda que rara,
Alguma forma de beleza aclara
As névoas da alma. O sol e a lua estão
Luzindo e há sempre uma árvore onde vão
Sombrear-se as ovelhas; cravos, cachos
De uvas num mundo verde; riachos
Que refrescam, e o bálsamo da aragem
Que ameniza o calor; musgo, folhagem,
Campos, aromas, flores, grãos, sementes,
E a grandeza do fim que aos imponentes
Mortos pensamos recobrir de glória,
E os contos encantados na memória:
Fonte sem fim dessa imortal bebida
Que vem do céus e alenta a nossa vida.

(John Keats, Tradução: Antônio Cícero)


Notas:
[1]: “Hino à alegria”, Papa Francisco

[2]: “Jesus, Mestre de Nazaré”, Alexander Mien

[3]: “Sermões de um trapista brasileiro”, Dom Bernardo Bonowitz

[4]: Ibidem

[5]: Ibidem

[6]: Ibidem

[7]: “Alma sobrevivente”, Philip Yancey

[8]: “Homilia da Missa do 20º aniversário da Sociedade dos Amigos Fraternos de


Thomas Merton”, Dom Bernardo Bonowitz

[9]: “Alma sobrevivente”, Philip Yancey

[10] “O Senhor dos Anéis — O Retorno do Rei’, A Terra da Sombra, J.R.R. Tolkien

[11]: “Arte e oração”, Audiência Geral, Bento XVI

[12]: “O Livro do Sentido — Vol,.1”, Clodovis Boff

[13]: “A Volta do Filho Pródigo”, Henri Nouwen

[14]: “Podeis beber o cálice?”, Henri Nouwen

[15]: “O Senhor dos Anéis — As Duas Torres”, De ervas e coelho cozido, J.R.R.
Tolkien

[16]: “O Hobbit — Uma jornada inesperada” (filme)

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