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Quase tudo o que registrarei aqui não é fruto de minha reflexão, mas comentários sobre
o que vi e ouvi, ou mesmo mera repetição. Por isso, farei questão de citar as fontes para
que você, querido leitor, posso ver com seus próprios olhos o que eu também vi. Eu só
posso ter feito estas anotações porque, como os autores e testemunhas, cujas obras e
palavras aqui cito e sobre as quais medito, também fui surpreendido pela alegria, muito
embora seja um sujeito miseravelmente medíocre.
O Papa Francisco certa vez proferiu uma belíssima homilia que é chamada de “Hino à
alegria” [1]. Nessa homilia, o Santo Padre vai dizer que:
Primeiro o Papa nos fala de uma alegria que transborda da esperança nascida da
regeneração operada em nós por meio de tudo o que Deus nos deu em Jesus Cristo.
Estamos no período pascal, recém-saídos da oitava da Páscoa. A liturgia da Semana
Santa e logo depois, a liturgia desta primeira semana do tempo Pascal nos mergulha,
primeiramente, no desespero causado nos apóstolos e discípulos pela morte de Cristo e
pelo choque de ter visto o seu mestre torturado e derrotado na cruz.
Dom Bernardo Bonowitz vai dizer, numa também belíssima homilia [3], que a
ressurreição, a aparição de Cristo ressuscitado aos apóstolos foi uma coisa tão chocante
que eles só podiam “experimentar”. Não havia a possibilidade de elaborar nada, pensar
no significado, teologizar. Estavam extenuados, exaustos, mal tinha assimilado o terror
da morte e Jesus lhes aparece.
Dom Bernardo vai colocar três pontos essenciais para captar desse encontro de Jesus
com os apóstolos, aspectos de uma espiritualidade de alegria pascal:
Primeiro: Jesus estava vivo. Eles acabavam de experimentar o que nunca haviam
entendido pela explicação do Mestre: a ressurreição como fato.
“A alegria e o medo tomaram posse deles. Alegria por Ele — Ele não fora engolido pela
morte; aquela grande baleia o tinha devolvido à terra dos vivos. Alegria por si mesmos,
porque, apesar de sua mesquinhez e de seu lema “sobrevivência pessoal acima de tudo”,
eles o amavam. Era uma alegria enorme para eles vê-lo. Uma alegria que fez com que as
lágrimas corressem. Mas também dava medo, porque uma tal alegria não cabia nesse
mundo.” [4]
“Antes Ele já era grande, agora era majestoso. Ainda chagado, transmitia uma paz, uma
segurança, uma maestria, uma realeza, que eram mais do que humanas, mais do que
temporais. Ele falava e agia com o sotaque da eternidade. Por seus gestos e seu olhar,
dava a impressão de tinha viajado longe, tinha sido coroado e agora tinha voltado a
reinar. Toda aquela conversa zombeteira dos últimos dias de “rei dos judeus” agora
parecia ter fundamento, não era irônica, mas real”. [5]
“A paz esteja convosco!”. Agora, a gente não diz Shalom para qualquer um. Shalom é
reservado para os amigos, os irmãos, as pessoas do seu coração, os fiéis, os leais. Os
discípulos se lembravam (não conseguiam esquecer) de sua fuga, de sua negação, da
baixeza de sua covardia. Quando Ele precisava deles, a única vez em que Ele realmente
precisava deles, eles tinham sumido. Cada um sentia algo da culpa de Judas pesar sobre
si, e com razão. Com certeza Ele tinha percebido a sua ausência, a tinha sentido, a tinha
chorado. Mas em vez de fazer repreensões, Ele tinha absorvido e perdoado a sua vil
pobreza. A paz esteja convosco. Imagine!” [6]
É claro que essa alegria pascal, que começa com uma experiência e com um encontro,
depois de Pentecostes será assimilada pelos apóstolos e pela Igreja. A presença interior
do Espírito Santo, a reflexão da Igreja e a busca dos significados irá fazer com que essa
alegria entre para o dia-a-dia dos cristãos. São Paulo e São João já apresentam uma
teologia da alegria pascal em seus escritos. É essa alegria da qual fala o Papa Francisco,
capaz de nos sustentar em tempos difíceis, de cruzes e apreensões; a alegria que é
duradoura, que nunca passa, porque Cristo Ressuscitado, aquele mesmo que apareceu
para os apóstolos, está conosco até o fim do mundo.
“Chesterton é tão feliz que se poderia quase chegar a crer ele encontrou Deus” Ele é tão
alegre, parece que viu Deus”.
Faz muito bem ser interlocutor de um autor que não sente medo, cujos livros não
apertam por sua estreiteza, cujo pensamento é muito arejado. Quantas pessoas, lendo-o
devem exclamar: Posso respirar! [8]
Yancey disse que, lendo Chesterton, passou a crer nas coisas boas deste mundo,
reveladas para ele através da música, do amor romântico e da natureza, que ele chama
de “relíquias de um naufrágio”, pois dão pistas de de uma realidade encoberta pelas
trevas deste mundo, e são, em certo sentido, vestígios do plano original de Deus. Mais:
são sinais da redenção operada por Deus em um mundo maculado pelo mau uso da
liberdade humana, que só irá se mostrar com plenitude no fim dos tempos.
Chesterton encontrou o segredo da alegria porque, ao contrário de grande parte dos
literatos cristãos, não ocupou-se somente com o problema do sofrimento, mas ocupou-
se com fascinação também do problema do prazer. Por que não aproveitar as coisas
boas da vida ? Por que os cristãos sentem culpa ao experimentar fartamente a alegria de
um bom vinho ou de uma boa noite de amor? Por que a sensação de deleite não pode ser
simplesmente aproveitada sem dor na consciência ? O sexo é bom, o sorriso de um bebê
é bom, uma tarde de lazer é boa, a beleza de um quadro de Van Gogh é boa. Por que
não podemos, como Deus na criação, nos deleitar com tudo que é muito bom ? Por que
Deus colocou a alegria e o prazer nisso tudo?
“Na questão do prazer, os cristãos conseguem respirar mais aliviados. Um Deus bom e
amoroso naturalmente gostaria que suas criaturas experimentassem deleite, alegria e
satisfação pessoal. Os cristãos partem desta premissa e depois procuram maneiras de
explicar a origem do sofrimento.
Depois de sua longa odisséia, Chesterton voltou à fé porque apenas o cristianismo deu
as pistas para resolver o mistério do prazer. “Sentia, primeiramente em meus ossos, que
este mundo não se explicava (…) Em segundo lugar, passei a sentir como se a mágica
precisasse ter um significado, e o significado precisasse de alguém para expressá-lo.
Havia algo de pessoal no mundo, como numa obra de arte (…) Terceiro, considerava
este propósito maravilhoso em sua forma original, a despeito de seus defeitos, como os
dragões. Quarto, que a maneira adequada de agradecer a ele é um tipo de humildade e
moderação: deveríamos agradecer a Deus a cerveja e o vinho não bebendo muito dos
dois (…) E, por último, e mais estranho, tive em minha mente uma vaga e vasta
impressão de que, de algum modo, todo o Bem era uma sobra a ser guardada e
preservada, como sacra, de alguma ruína elementar. O homem salvara seus bens como
Robinson Crusoé salvou seus pertences: ele os recuperou de um naufrágio.
“De onde vem o prazer? Depois de buscar diversas alternativas, Chesterton fixou-se no
cristianismo como a única explicação razoável para sua existência no mundo.
Momentos de prazer são restos de um naufrágio jogados na praia, pedaços do Paraíso
que resistiram ao tempo. Devemos nos ater a essas relíquias, sem muito apego, e usá-las
com gratidão e prudência, nunca utilizá-las como rótulos.
É natural que, num mundo distanciado de Deus, até mesmo as coisas boas devem ser
tratadas com cuidado, como se fossem explosivos. Perdemos a imaculada inocência do
Éden, e todo o Bem representa também um risco, possuindo dentro de si o potencial
para o abuso. Comer se transforma em glutonaria, o amor se torna desejo e, durante o
processo, perdemos de vista Aquele que nos deu o prazer. Os antigos transformavam as
coisas boas em ídolos; nós, modernos, chamamo-las “vícios”. Em ambos os casos,
aquele que deixa de ser servo transforma-se num tirano, um princípio que vi claramente
em operação na vida de meu irmão e de seus amigos hippies.
“Sou ordinário no exato sentido da palavra”, diz Chesterton, “o que significa aceitação
de uma ordem, um Criador e uma Criação, o senso comum de gratidão pela Criação,
vida e amor como dádivas permanentemente boas, com o casamento e o cavalheirismo
como leis que o controlam de maneira adequada”. Sob sua influência, também percebi a
necessidade de me tornar mais “ordinário”. Havia concebido a fé como um mudo e
severo exercício de disciplina espiritual, uma mistura de ascetismo e racionalismo na
qual a alegria não tinha espaço. Chesterton restaurou em mim uma sede pela
exuberância que flui de uma ligação com o Deus que planejou todas as coisas que me
dão prazer.” [9]
“Frodo suspirou e adormeceu quase antes de serem ditas as últimas palavras. Sam lutou
com o próprio cansaço e pegou a mão de Frodo; e ali ficou sentado, em silêncio, até cair
a noite profunda. Então, finalmente, para manter-se desperto engatinhou para fora do
esconderijo e olhou em volta. A região parecia repleto de ruídos que rangiam, estalavam
e eram metreiros, mas não havia som de voz nem pés. Muito acima da Ephel Dúath no
Oeste, o céu noturno ainda era baço e pálido. Ali, espiando por entre os farrapos de
nuvens acima de um pico escuro e alto das montanhas, Sam viu uma estrela branca
piscando por alguns instantes. Sua beleza lhe atingiu o coração, olhando para cima
desde a terra abandonada, e a esperança retornou a ele. Pois como um raio, nítido e frio,
perpassou-lhe o pensamento de que no fim a Sombra era somente uma coisa pequena e
passageira: havia luz e elevada beleza para sempre além de seu alcance. Sua canção na
Torre fora mais de desafio que de esperança: pois naquele momento estava pensando
em si mesmo. Agora, por um instante, seu próprio destino, e mesmo o do seu patrão,
deixaram de afligi-lo. Voltou engatinhando para dentro da sarça, deitou-se ao lado de
Frodo e, deixando de lado todos os medos, lançou-se em um sono profundo e
tranquilo.” [9]
– Graça: o sentido deixa a pessoa “em estado de graça”, fazendo com que tudo “tenha
graça”, nada mais sendo sem graça e, menos ainda, desgraçado;
***
Aprendi com Henri Nouwen, em seu precioso livro de meditações breves chamado
“Mosaicos do presente”, que nesta vida alergia e tristeza andam de mãos dadas. Essa
descoberta foi importantíssima porque ocasionou o rompimento com um certo dualismo
que me era muito prejudicial. Nouwen me mostrou o caráter pascal da vida. A Páscoa é
o testemunho de que Paixão, Morte e Ressurreição estão profundamente interligados. E
que a vida de Jesus, na qual somos inseridos por meio do batismo, nos insere nesta
dinâmica pascal. Não há uma dicotomia entre alegria e tristeza. A nossa vida, que é a
vida de Jesus em nós, é vida pascal: cruciforme, mas selada com a alegria da
ressurreição. Jesus é o ressuscitado que passou pela cruz. Quando aparece ressuscitado,
não dispensa suas chagas. Suas chagas são gloriosas. O Cordeiro do Apocalipse está
imolado, mas de pé. Imolado porque, como disse Pascal, enquanto houver um homem
sofrendo no mundo por causa do pecado, Jesus estará em agonia; de pé porque está
ressuscitado. Sendo assim, a vida pascal compreende a alegria morando na mesma casa
da tristeza, enquanto habitarmos este mundo. Um dos primeiros passos para aceitar a
cura do coração é aceitar essa estranha e incômoda mistura. Na parábola do joio , Jesus
deixa claro que o mal não será extirpado antes do momento certo. É preciso aceitação e
paciência. A alegria não significa ausência de tristeza nem a tristeza a ausência de
alegria. Viver bem é aprender a equacionar a complexidade desta vida. E é uma
dinâmica batismal: quando se mergulha no abismo da morte, se emerge para uma nova
vida de alegria; a alegria torna-se mais profunda e fundamentada quando se conhece de
verdade o que é a tristeza. Que nos digam os místicos que emergiram das noites escuras
da alma. O próprio Jesus, diz Henri Nouwen, “foi o homem das dores, mas também o
homem da total alegria” [12].
Nouwen arremata o tema, num trecho de um livrinho que você, caro leitor, não deveria
deixar de ler:
Também Tolkien, de novo, numa cena memorável de “O Senhor dos Anéis”, pode nos
ajudar a refletir sobre a alegria rodeada pela tristeza. Quando a saga vai entrando em
seus momentos mais sufocantes, o escritor, com seu gênio literário, introduz-nos em
uma estranha cena de tranquilidade e singeleza em meio ao caos (“preparais uma mesa à
vista do inimigo”, reza o Salmo 22). Quando os dois hobbits atravessavam a região de
Ithilien, recém-conquistada por Sauron e ainda não totalmente arruinada, que mantinha
certa beleza, Sam sente o cheiro das ervas e tem fome, pensa em preparar algo para
comer; pede a Smeagol que lhe traga coelhos para preparar um ensopado.
Contemplando o sono de um Frodo muito magro e abatido, se compadece, e mais do
que matar a própria fome, resolve cozinhar para seu amigo e mestre. Deixando de lado o
descanso, Sam faz algo que remete às obras de misericórdia: dá de comer a quem tem
fome.
Sam preparando para Frodo um ensopado de coelho enquanto se dirigem para Mordor
(e, de certo modo, já envolvidos por suas trevas), nos remete a um depósito de
humanidade, beleza, bondade, alegria serena e ternura que podemos cultivar em nossos
corações mesmo em meio às maiores adversidades.
Esse belíssimo capítulo chamado “De ervas e coelho cozido” [14] recorda-nos a famosa
palavra de Gandalf:
“Saruman acredita que apenas um grande poder pode manter o mal sobre controle, mas
não é o que descobri. Descobri que são as pequenas coisas, as tarefas diárias de pessoas
comuns que mantém o mal afastado, simples ações de bondade e amor.” [15]
Termino com duas dicas que podem ser preciosas. Certa vez eu estava querendo voltar a
dois autores católicos franceses da primeira metade do século XX, Leon Bloy e Georges
Bernanos, que são adeptos de um catolicismo agônico, quase “dark”. Não pude
continuar a leitura do livro de Bernanos — do qual não me lembro o título — e nem a
do de Bloy, “O desesperado”, pois deprimiram-me tal maneira que larguei-os de lado e
pulei de volta para o ingleses. A França católica da primeira metade do século XX é
iluminada por fora e sombria por dentro… Já a Inglaterra é cinzenta por fora, mas pura
luz nas obras de Chesterton, Tolkien, nas “Memórias de Brideshead, de Evelyn Waugh,
nos livros de C. S. Lewis, que era irlandês, mas tinha o espírito inglês de Oxford. Tudo
isso sem falar da mística Juliana de Norwich, em seu maravilhoso livro das “Revelações
do Amor Divino”, que ilustrou o negrume de alguns de meus mais tristes dias nestes
tempos duros.
Passando da literatura para a mística, quero transmitir uma dica que na verdade é do
Frei Raniero Cantalamessa. Se os místicos ocidentais, que são marcados pelo
sofrimento e pela Paixão, sendo alguns, inclusive, estigmatizados, como o Padre Pio,
Santa Catarina de Sena e São Francisco de Assis, às vezes nos parecerem demasiados
“pesados” para nossa espiritualidade, somos também convidados a olhar para o oriente
cristão, cujos místicos se voltam mais para o aspecto glorioso da fé, como a
Transfiguração e a Ressurreição. Se você bem notar, para os católicos orientais, a
Páscoa, tanto em sua liturgia quanto no aspecto mais devocional, como nos ícones, é
mais fixada no Mistério da Ressurreição. Os místicos orientais, em vez dos estigmas,
apresentam no corpo, especialmente no rosto, o fenômeno místico da Transfiguração.
São vários testemunhos, por exemplo, de pessoas que viram o rosto de São Serafim de
Sarov brilhar como o rosto de Cristo Transfigurado. O livro “Conversas com
Motovilov” que apresenta os relatos de São Serafim de Sarov é um impressionante
testemunho deste lado mais luminoso dos cristãos orientais.
***
E, para voltar aos ingleses, terminamos com um trecho do belíssimo poema de John
Keats citado no início desta anotações:
Endymion (trecho)
[4]: Ibidem
[5]: Ibidem
[6]: Ibidem
[10] “O Senhor dos Anéis — O Retorno do Rei’, A Terra da Sombra, J.R.R. Tolkien
[15]: “O Senhor dos Anéis — As Duas Torres”, De ervas e coelho cozido, J.R.R.
Tolkien