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DUNKER, C.I.L. – Tatuagem e Sedução.

Viver Psicologia, 1994,

Tatuagem e Sedução

Christian Ingo Lenz Dunker

Nas sociedades primitivas a tatuagem se associa a um momento preciso da vida,


a passagem da condição de criança à de homem ou mulher. Esta passagem é marcada, em
muitos casos, pela realização de cortes, incisões e inscrições na superfície do corpo. É
comum o fato de que até este momento a criança não possua ainda um nome que lhe seja
próprio. Trata-se de assinalar, por este ritual, que aquele corpo preciso não pertence mais
integralmente à natureza mas está incluído num sistema de trocas simbólicas que rege o
casamento e as relações de aliança e inimizade entre as tribos e os clãs. Esta dimensão
antropológica mostra como a tatuagem é uma espécie de nome no corpo; cifra que indica
a sua origem e as possibilidades de seu destino. Neste sentido receber uma tatuagem é
filiar-se, constituir pelo menos dois grupos heterogêneos: família e não família. Portar
um nome é condição para a única regra encontrada em todas as culturas humanas: a
proibição do incesto. Édipo, o personagem da tragédia de Sófocles, é num certo sentido
um tatuado, um marcado corporalmente, seu nome poderia se traduzir por "pés
inchados", seu pai Laio é "pés tortos" e seu antepassado Lábdaco "coxo". O enigma da
esfinge que Édipo decifra - que animal tem quatro, duas e três pés é na verdade um
enigma sobre o próprio Édipo. Seria ele um ser de cultura (interditado) ou de natureza
(sem regras para casar) ?

Por outro lado vemos na incidência contemporânea da tatuagem resquícios deste


sentido filiativo ancestral. Ela é frequente em situações onde a individualidade ameaça se
diluir tanto pelo apagamento quanto pelo fortalecimento das diferenças. É o que se nota
em grupos como os de presidiários, marinheiros e sociedades religiosas, mas também em
certas formações juvenis onde representam a marca de um estilo de vida ligado ao surf,
ao rock ou ao motociclismo, por exemplo. Nesses mesmos grupos se nota uma perda da
consistência do nome próprio, o que se atesta pela proliferação de apelidos ou de um
segundo nome, como no caso do grupo religioso. É como se a tatuagem viesse inaugurar
um novo regime de filiação, atestando o fracasso do primeiro. Isso talvez explique em
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parte porque ela é encarada pelos pais geralmente como um ato de confrontação. Tais
grupos, principalmente os juvenis, parecem viver de forma radical o paradoxo que
atravessa a constituição da subjetividade moderna. Grosso modo poderíamos definir este
paradoxo da seguinte forma, se exige que o indivíduo seja, ao mesmo tempo, igual a
todos os outros e absolutamente diferente de todos os outros, único. Os grupos onde
normalmente prolifera a tatuagem parecem resolver tal dilema acentuando radicalmente
as igualdades entre seus elementos e marcando sua absoluta diferença com relação ao
restante da sociedade.

Um aspecto que tive a oportunidade de discutir recentemente com um grupo de


tatuados é a importância dada ao fato de que a tatuagem é uma marca perene, que não se
volta atrás, e que sua inscrição se deveu a uma opção absolutamente pessoal. Na ocasião
estava presente um cirurgião que apresentava uma técnica capaz de removê-la sem deixar
cicatriz. A reação dos tatuados frente aos que queriam se livrar de suas tatuagens foi a de
considerá-los quase como traidores, ou como pessoas sem personalidade. A tatuagem
mostra assim a sua face socializadora e individualizadora simultaneamente. Não poder
voltar atrás é uma condição, por vezes trágica, da filiação; principalmente quando o
adolescente se sente coagido, determinado ou sem escolha diante de seus pais. Por outro
lado se este elemento do ato decidido por si próprio está ausente a tatuagem parece ter
uma conotação oposta. O exemplo é a marcação de números nos braços dos prisioneiros
judeus pelos nazistas. Aí a tatuagem parece substituir o nome para apagá-lo, destruindo
assim uma parte da individualidade. O jogo que realiza de um lado a igualização do
grupo (judeus) e de outro a absoluta diferença (nazistas) se faz neste caso do exterior e
constitui uma das formas mais devastadoras de violência simbólica que se conhece.

A tatuagem está associada, pelo menos na sua configuração contemporânea, a


um ato de transgressão. Transgressão em relação ao lugar pouco confortável em que o
sujeito se vê posto como continuador de um mundo falido. Transgressão ainda em face
de um determinado sistema de filiação suposto. Ela implica num ato que reordena
socialmente as relações do sujeito com seu corpo. É certo que a tatuagem responde a um
modo tirânico de conceber o corpo, submetido à moda e a exigência de um corpo exato,

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único, e absolutamente desejável. A questão é que o desejável é sempre transgressivo, daí


o aspecto sedutor da tatuagem.

Quando se articula com a sedução a tatuagem vê sua dimensão estética


sobreinvestida. É o homem que tatua o bíceps ou o peito e a mulher que escolhe as
costas, o seio ou o tornozelo. Há algo de uma paradoxal satisfação em ser visto como
portador deste corpo enigmático. A tatuagem se inscreve, nesta dimensão, geralmente
em lugares semi-encobertos, nas imediações do vestido, camisa ou biquíni. A conjugação
entre o ato livre e independente de se tatuar e o fato dela se realizar sobre o corpo aponta
para uma mensagem do tipo: este corpo é absolutamente autofundado, autoestabelecido,
portanto livre da interdição. Conversando com mulheres tatuadas escutei, notando um
certo tom de queixa, que a tatuagem fazia com que homens se aproximassem supondo
que estavam diante de uma mulher "liberada". No entanto se é um corpo liberto é ainda
um corpo para ser olhado como um corpo hipersexual.

Este efeito, capturante do olhar, promovido pela tatuagem produz uma espécie
paradoxal de satisfação,ou aquilo que a psicanálise chama de gozo. Satisfação que não se
reduz ao prazer, mas cujo melhor exemplo é a satisfação obtida pelo masoquista. Efeito
similar leva a formação de rodinhas em torno de um acidente de automóvel ou despertar
a atenção em torno de uma tragédia qualquer, efeito de captura do olhar. Efeito de
satisfação que pude observar na face de júbilo de uma criança da tribo Bororo ao ter sua
pele atravessada por um pedaço de madeira, durante um ritual de passagem. Pois bem, há
um gozo deste tipo envolvido na tatuagem, desde a sua confecção, que implica em dor,
até o seu efeito sedutor. No caso da sedução o gozo se dá na insinuação, no dar a ver o
corpo, ou no invadi-lo com um olhar. Há ainda o gozo do entre-visto ou do entre-dito, da
ambigüidade da significação em jogo. A tatuagem realiza no registro do olhar o que a
cantada representa no domínio verbal. Ora, se arqueologicamente a tatuagem se liga à
marca do proibido (e do permitido por outro lado), nada mais sedutor que a insígnia da
lei sugerindo sua ultrapassagem pela transgressão. Neste sentido ninguém faz uma
tatuagem para si, mas para o olhar do outro. De fato a sedução vale mais pelo que
esconde e sugere do que pelo que mostra, é um exercício que se poderia conceber como
um fim em si mesmo. A tatuagem, na vertente da sedução fetichiza o corpo, o que é
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próprio de nossa cultura. Fetiche, como já se observou muitas vezes, vem de feitiço.
Assim a tatuagem como que enfeitiça o corpo, aliás como inúmeras outras técnicas de
embelezamento.

Neste registro cabe mencionar o célebre caso clínico conhecido como "o homem
da caneta Bic". Tratava-se de um homem que para poder manter relações sexuais com
sua mulher precisava desenhar no corpo dela certos sinais arbitrários a que chamava de
tatuagens. Este ritual se iniciara quando ele era jovem e certa vez tomou um carimbo da
fábrica do pai e "tatuou" o peito e as coxas. Em seguida sobe numa árvore e brinca de
Tarzã, temendo e desejando ser olhado pelos operários da fábrica. Então volta ao
escritório e se masturba. Dizia: "Se elimino as tatuagens, tenho medo de não ter mais
sexo". É claro que este caso não traduz a montagem que envolve a maioria das tatuagens
mas seus elementos fundamentais parecem estar presentes: a sedução, a procura do olhar
do outro e a sua relação com o casamento, filiação e exercício da sexualidade.

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