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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE


INSTITUTO DE HISTÓRIA

LUCAS LEONARDO DA SILVA SANTOS

Ê BOI DE PINDARÉ LEVANTOU!


Política e Cosmopolítica no Boi de Pindaré em São Luís, MA.

Niterói
2019
SUMÁRIO
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Introdução 1

Capítulo 1 - Uma breve reflexão sobre cosmopolítica rumo ao levantar do Boi de Pindaré
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1.1 - Antropologia e Política 6


1.2 - Micropolítica 10
1.3 - Alteridade como objetivo positivo 18
1.4 - Cosmopolítica segundo Isabelle Stengers 18
1.5 - Bricolage 22
1.6 - Afroindígena 24
1.7 - Cosmopolítica em ação 27
1.8 - Boi de Pindaré e as questões cosmopolíticas 30

Capítulo 2 - Bumba meu Boi de Pindaré, um relato etnográfico acerca de uma


brincadeira séria 34

2.1 - São Luís e o Bairro de Fátima 34


2.2 - Nascimento do boi e o ensaio redondo 38
2.3 - Batizado do boi 41
2.4 - Obrigação - Dia de São Pedro 44
2.5 - A dimensão Política 47
2.5.1 - Tradição contra o espetáculo ( Pindaré contra o Estado) 49
2.5.2 - Militância, pertencimento e disputa 52
2.5.3 - Aliança 53
2.5.4 - Cismogênese da relação dos bumbas 55
2.5.5 - Cosmopolítica no Boi de Pindaré 60
2.6 - Técnicas do corpo e constituição do brincante 63
2.6.1 - Brincar de cazumba 65
2.6.2 - O batuque dos pandeirões 65
2.6.3 - O tambor onça 66
2.6.4 - As matracas 66
2.6.5 - Brincar de índia e de índio 66
2.6.6 - Brincar de baiante e de vaqueiro 67
2.6.7 - Brincar de pai francisco e mãe catirina 67
2.6.8 - Brincar na burrinha 68
2.6.9 - Rolar no miolo 68
2.6.10 - Cantar e contar a história ( aboiar ) 69
2.6.11 - O bordar e o cobrir 70
2.6.12 - Técnicas como tradição e eficácia 70
2.6.13 - A pessoa brincante 72
2.7 - A morfologia social 74
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2.7.1 - Formação concêntrica com variação de natureza e 76


centralidade do sagrado
2.7.2 - Anomalias e rearranjos 77
2.7.3 - Território e diferença 78
2.8 - Tempo 80
2.8.1 - Tempo do sagrado 81
2.9 - Últimas considerações 82
2.10 - Imagens 92
2.11 - Referências Bibliográficas 99

Introdução

Esta monografia tem como objetivo a descrição etnográfica e a análise antropológica


do fenômeno do festejo do bumba meu boi, mais especificamente, aquele que ocorre todos os
anos na capital São Luís, MA. Antes da exposição etnográfica que irei realizar durante a
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monografia gostaria, aqui, de delinear algumas origens que o festejo possui que remontam ao
século XVIII e XIX e alguns elementos e semelhanças que o festejo compartilha com outros
que são encontrados em diversos estados, como Bahia, Pernambuco, Ceará, Alagoas, Minas
Gerais, Goiás, e Santa Catarina.
Câmara Cascudo em seu livro, Literatura Oral no Brasil, descreve as formas dramáticas
em que ele encontra no folclore brasileiro, o chamados autos, em que reúnem-se Congadas,
Bumba Boi, Reisados, etc. Chega a considerar o auto do Bumba Boi como “superior” aos
demais: “Bumba meu Boi é superior a qualquer outro dos autos pela variedade, multiformidade
das fisionomias fixadas e dos episódios criticados. “(Cascudo, 432). Destaca assim a variedade
das formas presentes e sua complexidade em lidar com o contexto dos escravos e libertos,
evocando a ironia com que as toadas se referiam ao senhorio dos engenhos ou aos capitães do
mato. Neste sentido o autor destaca o folguedo ligado ao contexto das fazendas de engenho
açucareira e sua interpretação tende a compreendê-lo como parte da miscigenação ou
mestiçagem constituinte da sociedade brasileira como um todo, em especial, a mistura de
brancos e negros presente no folguedo.
Já Arthur Ramos desenvolve uma interpretação que ficou comum entre diversos
estudiosos acerca das origens históricas do boi: ameríndia, européia e africana, devido,
geralmente a centralidade “totêmica” do boi envolvida em teatros populares ou autos festivos
que remetem sua origem aos inícios da Idade Média e as festas rurais gregas. Descreve o boi
como um teatro encenado na rua com a participação de músicos e um sem número de
personagens que poderiam representar essa origem plurívoca. De uma maneira ou de outra o
boi foi se misturando aos outros autos dramáticos existentes no Brasil desde o século XVIII, e
que continham certas relações com os ciclos festivos realizados durante o natal, fato é que há
evidências de realizações de festas do bumba durante este período.
Edison Carneiro destaque outro ponto importante: a centralidade da ressurreição e
morte do boi como objetivo ou “leitmov” central dos autos dramáticos do bumba. Evidente
que constata que este tema central perde relevo a partir das variações regionais que o deturpam,
envolvendo a encenação com uma gama de personagens que ofuscam o tema central. Neste
sentido é que o autor explica como o Boi pode ser relacionado às festividades religiosas, pois,
argumenta que este auto nada tem de religioso, posto que há personagens que desvalorizam a
figura do sacerdote, além da “brincadeira” ter um aspecto mais “lúdico” do que “litúrgico”. O
autor, por conseguinte, compreende que esta função lúdica, envolvendo a depreciação das
classes superiores é a verdadeira função ou papel que a brincadeira desempenha, de certa
forma, representando o descontamento dos participantes com a “realidade envolvente”.
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Foi Américo de Azevedo, estudioso de grupos de bumba boi, quem desenvolveu um


tipo de classificação dos grupos de boi que seguia esquematicamente aquela das “três raças”
dividindo os grupos segundo as características que os aproximava das raças as quais eles teriam
surgido. Estas diferenças diziam respeito principalmente aos instrumentos, as vestimentas, ao
ritmo e ao bailado, e geralmente era identificado pelo nome de “sotaque”. Por conseguinte, O
Sotaque de Zabumba estaria relacionado aos grupos africanos, pois teria os instrumentos
“tambor de fogo” e zabumba, o que denotaria um ritmo mais próximo a “macumba e ao
samba”, mais agressivo. Enquanto que o sotaque ligado aos grupos de origem indígena teriam
um ritmo menos agressivo, e os instrumentos, as matracas e os pandeirões, teriam uma
marcação muito semelhante aquela dos ritmos ameríndios. Por fim aqueles sotaques derivados
das origens brancas estariam mais ligados aos instrumentos de sopro, típico da música
ocidental.
Os sotaques no Bumba Boi, como os folcloristas mesmo delinearam, sugerem uma
diversidade de estilos e modos de fazer a brincadeira. Atualmente eles se referem geralmente
aos elementos que compõem a brincadeira e diferencia os grupos entre si, como indumentária,
estilo, ritmo, instrumentos. Há outros elementos que podemos dizer que são constituintes dos
grupos de boi, como o “boi-artefato”, e os personagens principais, “mãe catirina”, “pai
francisco” o amo ou fazendeiro, índios (ou ainda tapuias e rajados), bem como a realização da
festividade em devoção a entidade católica, São João. O termo sotaque pode ser encontrado na
literatura acerca do folguedo, bem como nas falas da maior parte dos brincantes, o que sugere
uma ambiguidade acerca de sua origem.
Os sotaques geralmente remetem-se a localidade ou região em que surgiu o grupo de
bumba. Cada localidade estabeleceu seus ritmos e vestimentas o que os diferenciava dos outros
grupos estabelecidos em outros bairros, ou até de outras localidades do Maranhão fora da
capital. Neste sentido os nomes dos grupos remetem-se a localidade em que surgiram, em que
praticam suas festas ou podem estar relacionados ao nome do fundador e primeiro dono do
boi, indicando assim sua filiação através da história dos donos do boi e sua origem “familiar”.
Em resumo, os grupos de boi podem ter um dono, possuem uma designação referente
a localidade ou região de seu dono e/ou fundador, mas essa designação pode ter uma qualidade
religiosa, como referente a santos católicos, visto que o boi é uma festa religiosa. Meu contato
se deu através da leitura do estudo de Carolina Martins que investiga os desdobramentos e
relações políticas que a cultura do boi e seus brincantes travaram ao longo do século XX.
Somando a isso, em meu trabalho de campo realizado com os brincantes e participantes do
Pindaré, ficou evidente desde o início a centralidade e importância da relação dos envolvidos
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com agentes do estado, por um lado, e outros grupos rivais ou não de bois, por outro. Essas
relações estão permeadas por compromissos vitais com entidades religiosas, sejam católicas
ou oriundas dos cultos afro-brasileiros presentes no maranhão. Este campo complexo de
relações mostrou uma forma particular desses grupos colocarem questões e se engajarem em
problemas que denominamos políticos. Isto é, os brincantes pensavam e realizavam a política
de maneiras diferentes, não convencional, embora não deixem de lado as relações
institucionais e burocráticas. Podemos dizer que esses problemas e essas relações se travavam
num regime de alianças com entes humanos e não humanos e de disputa no cosmo
sociopolítico do bumba. Ou seja, pela relação de alteridade entre seres heterogêneos.
Em São Luís, essa é a forma geral que se apresentam os grupos de boi, e nesse sentido,
essa monografia se pretende adentrar o cosmo do bumba maranhense, especificamente o Boi
de Pindaré para refletir sobre as relações políticas e cosmopolitas sempre seguindo o vetor da
diferença e da alteridade.
Pretendo pensar o preparo e o desdobramento da brincadeira dramática do boi como
um campo de encontros entre agentes humanos e não humanos em que estes criam e colocam
seus problemas de maneira própria. Essa maneira particular que esses grupos se pensam e se
relacionam , geralmente, está fora das assembleias modernas, de onde são tomadas as decisões
que afetam essas pessoas ofuscadas. Mas eles perseveram e criam suas lutas, através de seus
modos particulares de manterem a consistência daquilo que lhes é importante e imprescindível.
É sobre esse aspecto que a proposição cosmopolita se coloca, isto é, para pensar os modos
heterogêneos e diferentes que as multiplicidades agem e se estabelecem no mundo.
O Boi de Pindaré é um grupo que figura um cosmo particular que necessariamente trava
relações de disputa e de aliança com outros agentes. Logo, é esse modo de operar relações
políticas entre cosmos heterogêneos, que é expressivo dos grupos de boi, que interessa o
presente trabalho. Com efeito, primeiramente iremos refletir sobre como pensar a política
acompanhando o vetor da diferença, através da micropolítica de Deleuze e Guattari e da
proposição cosmopolítica de Isabelle Stengers, para logo seguir o Pindaré em seu modo de
realização da brincadeira que em certo momento começou a se apresentar como um reativar
ou levantar do Boi de Pindaré, visto que ele havia sido desfeito e desligado.
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Uma breve reflexão sobre cosmopolítica rumo ao levantar do Boi de


Pindaré

Este capítulo tem como objetivo delinear algumas compreensões teóricas para abordar
sob uma perspectiva política o trabalho de campo que realizei com o grupo boi de Pindaré,
sediado em São Luís, MA. Primeiramente apresentarei de maneira breve alguns estudos
clássicos sobre política em antropologia, para encaminhar a reflexão a outra perspectiva. A
abordagem que adotamos aqui privilegia a dimensão da micropolítica delineada por Deleuze
e Guattari (1981), a dimensão da cosmopolítica defendida por Isabelle Stengers, leitora
rigorosa de Deleuze e Guattari, além da relação afro-indígena e do sincretismo, como forma
de aliança imanente entre cosmos distintos, apresentado por Marcio Goldman e José Carlos
Gomes dos Anjos. O objetivo é traçar outra perspectiva aos estudos sobre política na
antropologia e que abordam os fenômenos sem privilegiar a importância do Estado ou dos
temas tradicionais da política, como eleições, partidos, organizações, movimentos sociais, etc.
A intenção desta monografia é, a partir das dimensões apontadas acima, pensar sobre
as relações de disputa como também da aliança no boi de Pindaré. Alianças firmadas entre
pessoas que são constituídas ou inseridas num regime de técnicas corporais, musicais,
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artesanais, dramáticas e religiosas do bumba meu boi. Pessoas brincantes que figuram uma
poderosa festa religiosa e cheia de mistérios que se expressa em seus personagens
emblemáticos e inumanos, que por sua vez conjuram forças e encadeamentos as vezes
imprevisíveis.
O mistério também se faz presente no alto ou mito do boi, encadeado na dança que
possui uma forma peculiar quando pensamos a dimensão da heterogeneidade e da
religiosidade. O aspecto do heterogêneo é de súbito expressivo na brincadeira do boi e se
manifesta em várias dimensões como nas técnicas, nos materiais, na dança e nas alianças.
Alianças com entidades humanas e não humanas. O boi é uma festa em louvor a santos
católicos, e no caso do Pindaré, também é designada por entidades encantadas1. Mas além
desses aspectos que constituem a brincadeira e a vida dos brincantes, estes mesmos apresentam
uma postura peculiar que alguns chamam de "levantar do Boi de Pindaré".
Essa inclinação se apresenta às vezes como uma atmosfera em que os brincantes vivem,
que permeia seus afetos e o seu comprometimento e tem origem num certo acontecimento que
ocorreu durante a troca de geração e diligência do Pindaré. O momento em que alguns
"fundamentos" e artefatos religiosos foram quebrados e o boi desativado por sua dona, o que
gerou consequências severas na vida dos brincantes e na dela própria. A partir de então, a dona
do Pindaré foi intimada em sonhos pelos guias do boi a reativá-lo. O Levantar é um reativar
das potências do Pindaré, isto é, uma retomada da brincadeira e das alianças intensivas que a
sustentam. Essa inclinação compreendo e tentarei defendê-la como uma prática política e
cosmopolítica pois consiste na retomada de potências que estão em jogo num campo composto
de forças e agentes heterogêneos. Os desdobramentos etnográficos do Boi de Pindaré e a
operação do "levantar do Boi” serão feitos no próximo capítulo.
Este primeiro capítulo empreende uma reflexão sobre desenvolvimentos de alguns
autores a respeito de teorias que vieram a ser conhecidas como teorias da diferença. E a questão
da diferença se faz central na reflexão que intento aqui, visto que esses aspectos da
multiplicidade e da heterogeneidade, como dito acima, são expressivos no campo de práticas
cosmopolíticas. Trataremos dessa perspectiva no decorrer deste capítulo. Senti a necessidade
de fazer a breve explanação acerca da problemática do levantar do Boi de Pindaré para
partirmos desta e seguirmos os desdobramentos teóricos. Comecemos estão com a
apresentação dos estudos clássicos sobre política em antropologia.

1
"Encantados" é a designação para seres invisíveis que já foram vivos em corpo visível mas que não passaram
pela experiência da morte. Eles se encantaram em algum momento. Ver: PRANDI, Reginaldo ( org.). Encantaria
Brasileira: o livro dos mestres, caboclos e encantados. Rio de janeiro: Pallas, 2011.
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1.1 Antropologia e política


Os estudos clássicos sobre antropologia política se dedicam à análise das formas da
organização social, que geralmente foram definidas segundo duas classificações: aquelas
organizações que se definem por possuírem um governo, ou seja, uma autoridade central, uma
máquina administrativa e instituições jurídicas, que são assumidas por integrantes imbuídos
de valor, prestígio ou riqueza; e aquelas em que essas características não existem e o “poder”
e a “política” estão disseminados por meio do parentesco e da hierarquia no interior das
linhagens. (EVANS-PRITCHARD, 1940, p. 5).
O interesse dos pesquisadores se concentraram em pesquisas empíricas, notadamente
na África, para que, distanciando-se dos filósofos políticos, pudessem descrever como sistemas
de governos e estruturas sociais funcionam, e observaram como a organização do parentesco
e os modelos de relações que regulavam estas estruturas definiam as “sociedades
segmentárias”. Este tratamento diferenciado tornou a política uma entre outras categorias
abordadas sob um viés antropológico (como a economia, o parentesco, a organização social, a
religião, a feitiçaria, etc).
Delineado em African Political Systems, estes dois tipos de sociedades poderiam
originar problemas distintos no tocante ao equilíbrio de disputas de interesses entre seus
membros e lideranças. No sistema em que prevalecem a centralidade haveria uma coesão e
uma fidelidade na cooperação entre os integrantes no interior da hierarquia que possibilitaria
certa solidez na abrangência do poder das lideranças locais. Naqueles sistemas sem poder
centralizado, a organização entre os segmentos políticos estruturalmente equivalente
permitiria uma menor relação de disputas entre as lideranças locais e as linhagens divergentes.
A resolução das disputas também não estão mediadas por instituições jurídicas, como é comum
no outro tipo de sistema, mas por negociações entre os segmentos. É evidente, pois, que nos
sistemas sem centralização, não haveria poderes locais subordinados a instâncias superiores,
cujos conflitos pudessem ser dirimidos por outras instâncias que comporiam um governo
estatal.
O debate na antropologia política, como descrito por Clastres, acerca das “sociedade
primitivas” geralmente esteve associado ao destaque das diferenças entre o “nós” e “eles”,
“nós” seríamos constituídos por sociedades com Estado, governo e história, e as sociedades
primitivas seriam aquelas sem estado, sem governo e sem história. Sua abordagem da
liderança indígena entre os Guarani desenvolveu, por um outro viés, a questão política da
organização social, em contraponto as investigações mais tradicionais interessadas na
constituição de grupos, composições segmentares e conflitos de interesses.
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A antropologia britânica se concentrou num primeiro momento nas organizações


políticas, sejam centralizadas ou segmentares entre as populações africanas. Gluckman
deslocou um pouco as questões propondo uma abordagem política das sociedades
centralizadas, mas que estivessem ligadas às formas mais desenvolvidas de organização
estatal, num estágio de avanço em já estivesse imbuída dos principais problemas gerados pela
colonização e pela intervenção estatal britânica na África do Sul. Sua análise ainda se
concentra na composição de grupos locais nos modos como os conflitos entre eles se delineiam
em relação a constituição da sociedade como um todo. Também há as famosas análises de
Victor Turner que tentam descrever como rituais religiosos podem “refletir” e “encenar”
conflitos da “estrutura social” trazendo para a liturgia e a ritualística as disputas de interesses
entre os segmentos e os grupos de parentesco.
Leach propõem outro ponto de vista a abordagem política da constituição dos grupos,
desenvolvendo um estudo em outra área etnográfica. Demonstrou como as categorias políticas
utilizadas pelos nativos descreviam sistemas instáveis de organização dos grupos e que
poderiam ser rearranjados de acordo com a disputa de interesse entre os grupos ligados por
laços de parentesco e definições de identidade em relação a uma etnia. Parece abandonar as
formas mais tradicionais de compreender as organizações políticas, dando ênfase a como os
conflitos e os contextos modificam as categorias que os nativos utilizam quando definem seus
grupos de parentesco, mas a resultante final parece nula, na medida em que os conflitos entre
os grupos são reelaborados e as categorias definem uma nova oposição entre grupos
centralizados e aqueles não centralizados, ou seja, a instabilidade dos grupos não parece
delinear um novo horizonte de categorias, mas somente a oposição tradicional entre aqueles
com Estado e aqueles sem formas estatais de governo.
Clastres desloca totalmente a abordagem mais tradicional colocando em questão a
pressuposição de que a figura da liderança ou do líder é receptáculo ou fonte de poder, a partir
do qual a coesão social pode ser definida. Apresenta a figura do líder indígena sem poder
coercitivo, fonte de autoridade, por exemplo para Radcliffe-Brown. O poder de autoridade do
chefe indígena reside tão somente em convencimento e capacidade de realizar trocas,
geralmente desvantajosas para si mesmo. Ele não possui propriedades, nem pode submeter
nenhum integrante da aldeia a submissão e ordens. Os outros podem ouvi-lo ou não, e podem
recusar-se a fazer o que ele lhes pedem. Neste contexto, a política estaria ligada numa
disposição entre os integrantes da aldeia em destituir de poder coercitivo ou de poder de
submissão o chefe. Numa sociedade em que não há poder administrativo de um estado nem
poder das chefias ou lideranças das linhagens, o poder estaria a serviço de conjurar a
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possibilidade do aparecimento do estado, do surgimento da divisão entre dominantes e


dominados.
As análises antropológicas realizadas no Brasil acerca do problema da politica se
concentraram nas formas pelas quais o Estado se relacionou com as populações tradicionais
ou os movimentos sociais, por exemplo. A relação das populações tradicionais com os
problemas da questão da identidade nacional, da sociedade abrangente, permeiaram muitos
estudos realizados durante os anos 60 e 80.
Durante os anos 90, muitos estudos começaram a se deslocar, e a colocar sob a
perspectiva de objeto o Estado e a política, domínios tradicionalmente ligados a sociologia ou
a ciência política. Dentro desse escopo estariam as dimensões dos rituais, das representações
e da violência, notadamente no território brasileiro, e geralmente sob o âmbito das eleições, e
nas relações entre agentes e instituições concebidas como política. No estudo de Palmeira e
Heredia (2013), se destacou a compreensão do fenômeno do “tempo da política” em que a
eleição e seus rituais instauram uma dimensão de temporalidade que altera completamente o
cotidiano de muitas populações campesinas, refletindo na organização do comércio, nas
práticas agrícolas, no calendário escolar e administrativo, etc.
Os estudos também se concentram nas relações de parentesco envolvidas quando as
pessoas dizem estar a fazer política ou quando estão sob o jugo do tempo da política. Outras
temáticas denotam a complexidade das relações, disputas e dinâmicas entre os agentes e as
instituições, como a violência, as relações de compadrio, de reciprocidade, de solidariedade,
de compromissos entre os agentes sejam eles integrantes da administração estatal ou não. O
importante destes trabalhos é a análise fina e etnograficamente orientada do que as pessoas
fazem quando dizem que estão se empenhando ou se afastando de “política”, sejam estas
atividades ligadas a instituições, órgãos ou setores da administração do estado, como a prática
das eleições, dos comícios, das disputas legislativas, ou aquelas ligadas a conflitos entre
familiares, a laços de compadrio, solidariedade, ou compromisso que se estabelecem entre os
políticos e as pessoas, abrangendo uma dimensão fora do Estado.
Em suma, a antropologia desenvolvida no Brasil pelo viés político esteve concentrada
nos estudos acerca do Estado e de seu protagonismo. Isto significou uma análise etnográfica
dos debates de candidatos, campanhas eleitorais, voto, práticas rituais de comício, que estariam
ligadas a regimes de política de Estado e de governo. Outro aspecto analisado foi destacar a
dimensão política nas práticas concretas e objetivas dos movimentos sociais, nas
manifestações e idéias que, de maneira relativamente semelhante, estariam engajadas na
tentativa de mudança, reforma, ruptura ou manutenção da ordem e das instituições de poder.
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Para mais além, as pesquisas se estendem a fenômenos sociais como o campesinato,


parentesco, práticas de corrupção, nepotismo, grilagens e violência física a grupos e
indivíduos.
1.2 Micropolítica
Proponho no presente trabalho, entretanto, uma reflexão acerca do conceito da política,
mas no que concerne a outras dimensões, às vezes imperceptíveis, dos corpos sociais. Nesse
sentido seria preciso efetuar uma dobra, uma atualização do conceito ou a compreensão da
diferença entre as grandes estruturas políticas e as pequenas práticas e devires, que são
simultâneos e imanentes umas às outras. Nessas pequenas práticas que aparentemente não
desenvolvem a política tradicional poderíamos constatar um certo transbordamento de forças
que colocariam problemas de dimensão política. Neste encadeamento o conceito de
micropolítica de Deleuze e Guattari nos coloca diante da perspectiva de compreender os
fenômenos de certos grupos como práticas políticas, mas numa outra compreensão daquela
tradicionalmente vinculada ao conceito, numa concepção em que macropolítica e
micropolítica são inseparáveis.
Deleuze e Guattari ao longo dos trabalhos que produziram juntos, dentre os diversos
temas que pensaram e visitaram na história da filosofia e da ciência, se propuseram a pensar a
dimensão da diferença como proposição ontológica. Essa proposição pretende investigar os
processos de variação, de criação, de diferenciação e atualização das formas tradicionais da
metafísica ocidental.Tais processos tomam vida própria, criam problemas e consistência.
Como também tendem a escapar ou fazer escapar, a traçar linhas de fuga, de reinventar, que
age simultaneamente com a tendência de marcação, fixação, e territorialização. Esta linha de
fuga é compreendida como um encadeamento político na medida em que freiam, aceleram e
rompem as grandes formas, estruturas e territórios imanentes.
Deleuze e Guattari nos oferecem uma reflexão clara sobre os movimentos de
diferenciação e territorialização que atravessam o ser. Mas, primeiramente, é preciso aqui
esclarecer os conceitos utilizados pelos autores e como são operados em sua análise.
Em Micropolítica e Segmentaridade é posto que os indivíduos ou grupos são feitos de
linhas. Essas linhas são divididas em três espécies: as primeiras são linhas de segmentaridade
dura ou molar que correspondem às grandes formas, as grandes estruturas sociais (o estado, a
família, a profissão, a classe, a escola e o exército); mas seria possível compreender que
existem muitas linhas dessa espécie e cada estrutura, como as citadas acima, representam uma
delas, um segmento. Ao mesmo tempo, temos linhas de segmentaridade flexível ou molecular.
Essas linhas também atravessam os indivíduos e os grupos, entretanto, efetuando desvios,
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fissuras e a aceleração dos fluxos moleculares que operam a queda das estruturas molares (um
levante político; uma festa; fascismo de massa!). Mas há ainda uma terceira espécie de linha,
uma linha mais simples que efetua um desvio maior, uma linha que segue através das outras,
mas que leva a uma destinação desconhecida. Linha de ruptura, linha de fuga (aliança
demoníaca; devir; máquina de guerra).
Somos segmentaridades por todos os lados e em todas as direções. O homem é um
animal segmentário. A segmentaridade pertence a todos os estratos que nos compõem.
Habitar, circular, trabalhar, brincar: o vivido é segmentarização espacial e
socialmente. A casa é segmentarização conforme a destinação de seus cômodos; as
ruas, conforme a ordem da cidade; a fábrica, conforme a natureza dos trabalhos e das
operações. Somos segmentaridades binariamente, a partir de grandes oposições duais:
as classes sociais, mas também homens e mulheres, os adultos e as crianças, etc.
(DELEUZE E GUATTARI, 2012a, p. :92)

A linha de segmentaridade dura molar se refere às esferas marcadas, territorializadas


das sociedades ou dos grupos. Nesse sentido, podemos tomar como referência as instituições
como já dito acima: a família, a escola, a empresa, o exército, etc. Mas o aspecto ou a natureza
emblemática e significativa das linhas de segmentaridade é a binaridade, máquina binária, isto
é, a linha que segmenta os indivíduos e os grupos em termos binários: homem e mulher; patrão
e empregado; cultura e natureza. Com efeito, no caso da sociedade moderna ocidental, a linha
de segmentaridade, ao produzir formas binárias, estabelece relações hierárquicas entre os
termos. Os corpos, as formas, os grupos e as instituições incorporam o significante do Estado,
isto é, homem, branco, civilizado, hétero, burguês, cristão etc. Os segmentos antitéticos desses
termos significantes são postos em uma localidade cultural e metafísica inferior a estes. A
hierarquia entre os termos binários é o que mantém os segmentos em suas posições e solidifica
as divisões impostas aos segmentos, fazendo da hierarquia vertical uma divisão em segmentos
na sua horizontalidade. É por meio deste enquadramento que as divisões binárias mantém-se
numa divisão segmentar. Portanto a linha de segmentaridade dura possui a tendência de manter
as divisões entre os segmentos, controlando os fluxos que passam de uma divisão a outra,
quantificando e dimensionando essas divisões para mantê-las em seu lugar, porque os fluxos
tendem a desfazer as divisões, tornando pouco nítida as fronteiras. É neste sentido que a
segmentaridade dura pode manter-se como tal e capturar os fluxos moleculares e as linhas de
fuga que escapam.
Foi descobrindo a segmentaridade e a heterogeneidade dos poderes
modernos que foucault pode romper comas abstrações vazias do Estado e da Lei, e
renovar todos os dados da análise política. Não que o aparelho de Estado não tenha
sentido: ele próprio tem uma função muito particular, enquanto sobrecodifica todos os
segmentos, a um só tempo os que ele toma sobre si em determinado momento e
aqueles que ele deixa fora de si. Ou, antes, o aparelho de Estado é um agenciamento
concreto que efetua a máquina de sobrecodificação de uma sociedade. Essa máquina,
por sua vez, não é, portanto, o próprio Estado, é a máquina abstrata que organiza os
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enunciados dominantes e a ordem estabelecida de uma sociedade, as línguas e os


saberes dominantes, as ações e sentimentos conformes, os segmentos que prevalecem
sobre os outros. A máquina abstrata de sobrecodificação assegura a homogeneização
dos diferentes segmentos, sua convertibilidade, sua traduzibilidade, ela regula as
passagens de uns nos outros, e sob que prevalência. Ela não depende do Estado, mas
sua eficácia depende do Estado como do agenciamento que a efetua em um campo
social ( por exemplo, os diferentes segmentos monetários, as diferentes espécies de
moeda tem regras de conversibilidade, entre si e com os bens, que remetem a um banco
central como aparelho de Estado).( DELEUZE E PARNET, 2012a, p. 105)

Mas é preciso lembrar que as linhas molares, moleculares e de fuga são imanentes umas
às outras, isto é, são simultâneas, se embaralham, se atravessam. Elas são diferentes, mas
inseparáveis. As linhas de segmentaridade dura, molar possuem a tendência e o esforço de
capturar, recodificar e sobrecodificar as linhas que escapam a molaridade, porque a própria
linha de segmentaridade dura conjura as linhas de fissura, molecular e as linhas de ruptura, de
fuga. Cada espécie de linha é a causa imanente de si e das outras.
Não basta pois opor o centralizado e o segmentário. Mas tampouco basta
opor duas segmentaridades, uma flexível e primitiva, a outra moderna e endurecida,
pois as duas efetivamente se distinguem mas são inseparáveis, embaralhadas uma com
a outra, uma na outra. As sociedades primitivas têm núcleos de dureza, de
arborificação, que tanto antecipam o Estado quanto o conjuram. Inversamente, nossas
sociedades continuam banhando num tecido flexível sem o qual os segmentos duros
não vingariam. Não se pode atribuir a segmentaridade flexível aos primitivos. Ela não
é nem mesmo a sobrevivência de um selvagem em nós; é uma função perfeitamente
atual e inseparável da outra. Toda sociedade, mas também todo indivíduo, são pois
atravessados pelas duas segmentaridades ao mesmo tempo: uma molar e outra
molecular. Se elas se distinguem é porque não tem os mesmos termos, nem as mesmas
correlações, nem a mesma natureza, nem o mesmo tipo de multiplicidade. Mas se são
inseparáveis, é por que coexistem, passam uma para a outra, segundo diferentes
figuras como nos primitivos ou em nós - mas sempre uma pressupondo a outra. Em
suma, tudo é político, mas toda política é ao mesmo tempo macropolítica e
micropolítica.( DELEUZE E GUATTARI, 2012a, p. 99)

Como observamos, as segmentaridades duras são imanentes as linhas moleculares e de


fuga. Dir-se-ia que as três espécies de linhas constituem uma relação entre si, na qual, cada
uma conjura a outra. Cada linha alimenta a outra. Mas não se trata de sair de uma dimensão
para a outra, isto é, da molaridade para molecularidade. As dimensões coabitam, coexistem.
Os grupos ou indivíduos são atravessados por ambas as linhas ao mesmo tempo. O que procede
é que num gradiente de repouso e de velocidade, linha molar e linha molecular, dependendo
das condições dos agenciamentos dos fluxos, uma linha pode se sobrepor a outra. Mas isso
não significa a superação da binaridade. A linha molecular questiona e ultrapassa os limites
das formas dos segmentos binários molares, mas ao mesmo tempo pode ser recodificada e
sobrecodificada pela linha de segmentaridade. Cada linha cria a condição para a outra seguir.
"Com efeito, num primeiro caso, quanto mais a organização molar é forte, mais ela própria
suscita uma molecularização de seus elementos, suas relações e seus aparelhos
elementares."(DELEUZE E GUATTARI, 2012a, p. 102)
15

Se as três espécies de linhas são imanentes e coexistentes e a linha de segmentaridade


dura conjura as linhas moleculares e de fuga, é razoavelmente lógico dizer que isso acontece
reciprocamente:
Um fluxo molecular escapava, minúsculo no começo, depois aumentando
sem deixar de ser inassinalável… No entanto, o inverso é também verdadeiro: as fugas
e os movimentos moleculares não seriam nada se não repassassem pelas organizações
molares e não remanejasse seus segmentos, suas distribuições binárias de sexos, de
classes, de partidos.(DELEUZE E GUATTARI, 2012a, p. 104)

Faz-se necessário neste momento fazer um breve desenvolvimento que visa esclarecer
o que seriam linhas moleculares. Que espécie de linhas seriam essas? As linhas moleculares
designam movimentos que procedem nos limites, nas bordas das estruturas e das formas
molares. Essas linhas se compõem do transbordamento dos segmentos. O fluxo ou o
movimento que os segmentos não suportam, não conseguem canalizar, quantificar, mensurar,
restringir. Todo casal está submetido às diferenças de sexo, idade e temperamento, e constitui
uma certa segmentaridade entre homens e mulheres. Porém, essas relações sempre passam por
sobre as determinações duras de ser homem ou mulher, movimentos, percepções,
pensamentos, sentimentos ou afetos que fazem os limites se dissolverem, as fronteiras entre os
sexos perderem a evidência, porque o limite entre os segmentos deixa passar fluxos de coisas
que não suportam ser enquadradas e fazem esmorecer as barreiras que as separam. E isso
também pode ser aplicado nas divisões binárias entre adulto e criança, jovem e idoso, animal
e humano, patrão e empregado. O entendimento aqui é que na sociedade as divisões são claras
e segmentadas, formadas por barreiras fixas e intransponíveis, porém, elas estão sempre
sujeitas a sofrerem as transformações daquilo que deixam passar, que circulam ou percorrem
seus segmentos, deixando um rastro de transformação. Portanto essas linhas designam um
impulso que constitui devires, blocos de devir, acoplando os fluxos em máquinas mutantes,
diferentes daquelas do Estado, máquinas binárias. Essas máquinas são criadas juntamente com
os agenciamentos dos fluxos que levam os grupos ou os indivíduos a uma destinação que não
a da identidade, do território e dos segmentos molares.
As linhas moleculares comportam uma diferenciação que as levam a uma dimensão
outra daquela da segmentaridade dura. Elas comportam certo risco. É porque aquilo que
transborda nos segmentos, o fluxo que faz as fronteiras entre as coisas se dissolverem, faz as
diferencas entre homem e mulher, natureza e cultura perderem a nitidez e entrarem em
consonância. Como se os estratos se apagassem para que um contínuo de intensidade se
delineie entre os limites ou os opostos. É neste continuum de intensidades que podemos
compreender a natureza dos fluxos e sua maneira própria de circularem no interior dos estratos.
16

Neste sentido, as intensidades que percorrem os corpos no interior de certos agenciamentos


podem estar modeladas pela homogeneidade dos estratos, ou podem estar associadas a
velocidade e ao repouso próprio de sua natureza e, consequentemente, romperem certos limites
e atravessarem certos limiares. Esses processos, como possibilidade imanente, podem levar a
rupturas profundas, estados de ânimos profundamente alterados, fissuras no interior da
subjetividade que causam lesões irreversíveis, porque extrapolam os limites possíveis e
recolocam-nos em outros patamares. É o risco de se compor com a molecularidade, uma
espécie de matéria primordial intensiva que os artistas estão em constante contato e que
portanto as linhas "(...) não consistem nunca em fugir do mundo, mas antes em fazê-lo fugir,
como se estoura um cano (...)" (DELEUZE E GUATTARI, 2012a, p. 85).
Mas todas as espécies de linhas carregam consigo seus respectivos riscos. Podemos
imaginar os riscos que envolvem as linhas de segmentaridade dura, molar, o risco de sucumbir
a um endurecimento, a uma territorialização que culmine em um Estado totalitário. Os riscos
que se atualizam via uma linha molecular, por outro lado, fazem testemunho a uma demolição
ou dissolução das formas, das estruturas, de tal maneira, que a própria vida do indivíduo ou do
grupo possa perecer. Há de se ter cuidado. Saber identificar, traçar essas linhas é a proposta da
micropolítica, mas também, é tarefa desta sempre nos lembrar da "(...) prudência com a qual
devemos manejar essa linha, as precauções a serem tomadas para amolecê-la, suspendê-la,
desviá-la, miná-la, testemunham o longo trabalho que não se faz apenas contra o estado e os
poderes, mas diretamente sobre si."( DELEUZE E PARNET, 1998, p. 112)
Compreendemos então que é da natureza das linhas moleculares e linhas de fuga
fazerem dissolver, fazerem morrer e demolir as formas e estruturas molares. Como dito
anteriormente, as linhas de fuga são traçadas e operadas nos limites dos estratos, das formas
molares. Essa espécie de linha são a condição imanente dos agenciamentos coletivos que
efetuam a abertura das formas molares para sua dissolução. Esses agenciamentos são
trabalhados por máquinas ou blocos de máquinas abstratas, que agem " (...) pelas pontas de
descodificação e de desterritorialização. Traçam essas pontas; assim, abrem o agenciamento
territorial para outra coisa, para agenciamentos de outro tipo, para o molecular, o cósmico e
constituem devires." (DELEUZE E GUATTARI, 2012c, p. 241). Mas por outro lado há
máquinas abstratas que operam os agenciamentos a serviço do aparelho de estado, isto é, das
linhas molares duras de sobrecodificação e reterritorialização. De maneira semelhante à uma
cartografia das linhas, em que identificamos três espécies de linhas, podemos identificar, aqui,
duas espécies de máquinas abstratas: máquina abstrata como aparelho de estado e de captura
e máquina abstrata como máquina de guerra nômade.
17

As máquinas abstratas como aparelho de captura coordenam os agenciamentos, os


fluxos e linhas à molaridade. Essa máquina tem por natureza, recapturar os segmentos
moleculares e de fuga, remaneja-los, recodificá-los, sobrecodificá-los. A máquina abstrata
captura, canibaliza os segmentos desviantes do Estado e os reinsere no regime do código
molar. Com efeito, podemos constatar que o exercício do aparelho de captura admite os
movimentos de fuga, porque, como já sabemos, a linha dura é imanente, simultânea às linhas
moleculares, assim como o aparelho de captura é imanente à máquina de guerra. Mas o
aparelho de captura desdobra-se em um movimento incessante de capturar o molecular, o
cósmico, a diferença. "(...) os outros são maus, mas pode-se melhorá-los obrigando-os a se
transformar até que se tornem, se possível, idênticos ao modelo que lhes é proposto, que lhes
é imposto. A negação etnocida do Outro conduz a uma identificação a si(...)"(CLASTRES,
2014, p.79)
As máquinas abstratas como máquina de guerra nômade possuem natureza diferente
daquela do aparelho de captura. A máquina de guerra orienta e coordena os agenciamentos
efetuando aberturas. Elas operam descodificando as formas molares e os estratos, fazendo
correr os fluxos e gerando agenciamentos diferentes. Mas por quê guerra? Trata-se da
constatação de aparelhos semióticos que, de maneira contrária ao aparelho de captura do
Estado, tem como objetivo demolir e fazer o Estado morrer. Essa morte caracteriza-se pelos
processos de diferenciação, criação, desterritorialização e variação que a máquina de guerra
orienta, fazendo com que os fluxos e agenciamentos criem novas composições e com efeito a
máquina binária é dissolvida, ainda que, sempre haja a possibilidade dela ressurgir. Devir. A
guerra, aqui, não necessariamente tem a ver com genocídio e morte como o fim da existência
do indivíduo ou do grupo, muito embora, esses riscos estejam sempre em jogo na concretude
do processo. Guerra e morte designam o combate do processo molecular, das linhas
moleculares e de fuga, da máquina de guerra contra a segmentaridade dura, contra a máquina
binária e o aparelho de captura. Mas há muitas maneiras de guerrear. Fazer guerra, no regime
ou dimensão que tratamos aqui, é criar aberturas e variações, criar diferenças e desvios. Guerra
é fazer a identidade, em certas condições e em certos momentos, perecer. "A guerra não tem
necessariamente por objeto a batalha, e, sobretudo, a máquina de guerra não tem
necessariamente por objeto a guerra, ainda que a guerra e a batalha possam dela decorrer
necessariamente ( sob certas condições)" (DELEUZE E GUATTARI,2012c, p. 107)
Uma questão fundamental aparece aqui: em que medida a máquina de guerra pode ter
como seu principal objeto a guerra e quais implicações essa possibilidade traz? Dir-se-ia que
a máquina de guerra nômade, por ser uma invenção nômade, teria como objetivo criar um
18

espaço liso, não estriado, não codificado, como daquele do Estado e da cidade, em que os seres
poderiam se compor de formas variáveis.
Porém, mais geralmente, vimos que a máquina de guerra era invenção nômade, porque
era, na sua essência, o elemento constituinte do espaço liso, da ocupação desse espaço,
dos homens; é esse seu único e verdadeiro objetivo (nomos). Fazer crescer o deserto,
a estepe, não despovoa-los, pelo contrário. Se a guerra decorre necessariamente da
máquina de guerra, é porque esta se choca contra os Estados e as cidades, bem como
contra as forças (de estriagem) que se opõem ao objetivo positivo; por conseguinte, a
máquina de guerra tem por inimigo o Estado, a cidade, o fenômeno estatal e urbano,
assume como objetivo aniquila-los.(DELEUZE E GUATTARI, 2012c, p.109)

É certo que a dimensão da guerra carrega, de maneira significante, a concretude do


fazer combate, do fazer morrer. Historicamente, poderíamos identificar os movimentos
moleculares contra as formas molares das sociedades e dos Estados. Processos de
independência, Guerras Mundiais, levantes populares e revoluções caracterizam movimentos
que, em certa medida, desejaram o combate físico. Mas o problema é quando a guerra é o
primeiro ou o único objetivo da máquina, quando a linha de fuga é acelerada de tal maneira
em que não seja mais possível traçar novas linhas de fuga e esta conjure sua própria
aniquilação. Linha de abolição."O telegrama 71 - se a guerra está perdida, que pereça a
nação"(DELEUZE E GUATTARI, 2012a, p. 71). Esse é o risco eterno que acompanha a linha
de fuga e a máquina de guerra. Esse risco pode efetuar-se quando o aparelho de estado se
apropria da máquina de guerra. As instituições de repressão do Estado, o exército, a polícia,
fazem presença quando trata-se de desejar a guerra e o genocídio. Nesse sentido, não seria
equivocado afirmar que o Estado compõe-se de máquinas abstratas do tipo aparelho de captura
e do tipo máquina de guerra. Mas a máquina de guerra que o Estado se apropria é a máquina
que deseja ou tem como objeto primordial a guerra, não há objetivo positivo, criar linhas de
fuga, plano de consistência e novos agenciamentos. Há apenas linhas de abolição, linhas de
morte. "(...) Dispomos aí, portanto, de um terreno favorável, se é possível dizer, à pesquisa da
distinção entre genocídio e etnocídio, já que as últimas populações indígenas do continente
são simultaneamente vítimas desses dois tipos de criminalidade (...)" (CLASTRES, 2014,
p.78)
Gostaria de elaborar uma revisão acerca do que vimos sobre as linhas moleculares, de
fuga e a máquina de guerra. Sabemos que os grupos e os indivíduos são compostos de três
espécies de linhas e que as linhas moleculares e de fuga ativam agenciamentos do tipo máquina
de guerra carregando consigo necessariamente os riscos de fazerem correr uma linha de
abolição, uma linha de morte. Mas esse processo que os grupos e indivíduos elaboram, em
que, traçam suas linhas moleculares e de fuga, criando máquinas de guerra, os colocam em um
espaço e em um modo que possibilita composições, agenciamento e territórios inteiramente
19

distintos. Lugares ou tempos2 em que a multiplicidade e a composição de elementos


heterogêneos prevaleçam sobre a identidade. Pierre Clastres nos apresenta de maneira
magistral a compreensão do povo Guarani que nos ensina sobre a potência da aliança com a
alteridade:
(...)Um habitante da Terra sem Mal não pode ser qualificado univocamente: ele é um
homem, sem dúvida, mas também o outro do homem, um deus. O Mal é o Um. O
Bem não é o múltiplo, mas o dois, ao mesmo tempo o um e seu outro, o dois que
designa verdadeiramente os seres completos(...) ( CLASTRES, 2012, p. 188).

1.3 Alteridade como objetivo positivo


A alteridade presente no espírito dos indígenas Guarani e também em outros povos
fazem testemunho de uma abertura a dimensão dessa constituição entre elementos
heterogêneos ou se preferirmos, alianças com multiplicidades. É preciso desenvolver essa
reflexão. Viveiros de Castro em A inconstância da Alma Selvagem, analisa, através de
documentos históricos, as cartas e relatos de clérigos, padres e missionários, a natureza
inconstante dos indígenas diante da evangelização. Os relatos evidenciam que o espírito
indígena estava propenso a combinações com a alteridade. A adesão e o abandono veloz dos
indígenas ao cristianismo, muito embora, motivo de frustração dos jesuítas, poderia supor "(...)
uma postura mais fundamental, uma "overture à l'Autre (...)"(VIVEIROS DE CASTRO, 2002,
p. 195).3 Nesse sentido, podemos concluir que o espírito selvagem dos indígenas faz presença
a esse modo, essa zona de composição e aliança com multiplicidades. Mas o que essa
constatação poderia nos fazer pensar sobre política? O que a dimensão ontológica e imanente

2
Em a floresta de cristal, Viveiros de Castro faz uma apresentação sobre o plano de imanência xamânico dos
yanomami. Cito: "No primeiro tempo, quando a floresta ainda era jovem, nossos antepassados eram humanos
com nomes de animais e acabaram virando caça. São eles que flechamos e comemos hoje. Mas suas imagens não
desapareceram e são elas que agora dançam para nós como espíritos xapiripe. Estes antepassados são verdadeiros
antigos. Viraram caça há muito tempo mas seus fantasmas permanecem aqui.Tem nomes de animais mas são
seres invisíveis que nunca morrem.(...) Nós guardamos as palavras dos nossos antepassados dentro de nós há
muito tempo e continuamos passando-as para os nossos filhos. As crianças, que não sabem nada dos espíritos,
escutam os cantos dos xamãs e depois querem que chegue a sua vez de ver os xapiripe. É assim que, apesar de
muito antigas, as palavras dos xapiripe sempre voltam a ser novas. São elas que aumentam nossos pensamentos.
São elas que nos fazem ver e conhecer as coisas de longe as coisas dos antigos. É o nosso estudo, o que nos ensina
a sonhar." Nesta citação, Viveiros de Castro observa que as palavras dos xamãs, seus ensinamentos correspondem
ao contato entre os yanomami do presente com seus antepassados. Espíritos yanomami que possuíam nomes de
animais e com o decorrer do tempo, desenvolveram outra natureza, outra roupagem, outro corpo, corpo de caça.
São eles que seus filhos, os indígenas yanomami do presente, caçam hoje. Mas a concretude cosmológica desse
processo evoca um outro tempo, um tempo não espacializado. O tempo em que antepassados yanomami que
tornaram-se animais convivem com seus descendentes do presente. Um tempo que designa uma multiplicidade
virtual intensiva, que se atualiza via a filiações intensivas. (VIVEIROS DE CASTRO,, 2006, p. 320 apud
Kopenawa & Albert 2003)
3
Viveiros de castro nos apresenta uma fórmula mais concisa: "A inconstância da alma selvagem, em seu
momento de abertura, é a expressão de um modo de ser onde "é a troca, não a identidade, o valor fundamental a
ser afirmado" (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 206)
20

da aliança com multiplicidades e elementos heterogêneos nos faz pensar sobre a política? Eis
um problema fundamental.

1.4 Cosmopolítica segundo Isabelle Stengers


Essa questão que se instaura na presente sessão faz a necessidade de refletir sobre uma
célebre proposição elaborada pela filósofa Isabelle Stengers (2018). A proposição
cosmopolítica. Essa proposição faz o título de um dos trabalhos mais emblemáticos da autora,
La proposition cosmopolitique. Esse trabalho, de maneira mais objetiva, se faz central no
argumento da presente monografia.
Isabelle Stengers, apresenta a proposição cosmopolítica como algo que nos força a
pensar. Trata-se de uma desaceleração dos raciocínios que criaria uma ocasião de sensibilidade
em que os problemas seriam colocados de maneira em que não seríamos capazes de encontrar
soluções prévias, equivocadas, rápidas e adequadas às teorias totalizantes4. Os clichês.
Poderíamos acompanhar Stengers em seu questionamento e crítica do conceito de
cosmopolitismo, cunhado por Emanuel Kant, que visa a conceituação de um mundo comum a
todos os homens, um mundo em que um estatuto cívico seria estendido ao cosmo humano
perpetuando a igualdade de todos os indivíduos. A filósofa identifica que tal mundo comum
seria sustentado por uma igualdade baseada em alguma fórmula transcendente. Mas que
igualdade seria essa? Essa igualdade se baseia na constituição de um mundo cívico para todos,
o fim das diferenças, e esse estatuto cívico seria proposto a partir de um lugar específico,
estendido e forçado a todos. Essa operação encarna, de maneira lógica, a natureza do aparelho
de captura e, com efeito, esse entendimento de cosmopolitismo nada tem a ver com alteridade,
com aliança com multiplicidades. A filósofa prossegue:
É aqui que a proposição corre o risco do mal-entendido, pois o atrativo kantiano pode
induzir à idéia de que se trata de uma política visando a fazer existir um "cosmos", um "bom
mundo comum". Ora, trata-se justamente de fazer desacelerar a construção desse mundo
comum, de criar um espaço de hesitação a respeito daquilo que fazemos quando dizemos "bom"
(...)(STENGERS, 2018, p. 446)

4
Donna Haraway (1988), em Saberes Localizados, versa sobre a perspectiva transcendentes dos saberes ou
caráter totalizante das ciências modernas. “O ponto de vista de Deus”. A filósofa alerta sobre os problemas
implicados sobre essa perspectiva que não possui um lugar, um corpo demarcado, que por se pretender totalizante
e homogeneizante, está em todo lugar. Portanto, logicamente, em lugar nenhum. Haraway aponta também a
tendência que essa perspectiva se faz, dos saberes modernos ocidentais e pós-modernos, destacando a
impossibilidade que essa perspectiva teria de ativar uma saída política do ponto de vista totalizante para as
composições e conexões parciais com outros saberes.
21

Esta ideia de um “comum” tende a conjurar um termo transcendente que governa e


identifica os corpos e os agentes na pretensão do estabelecimento de um cosmo totalizante.
Mas tampouco tratar-se-ia de admitir as diferenças de cosmos que existem entre os grupos e
os indivíduos e partir numa tentativa de tradução ou equivalência segundo uma categoria
“imparcial” e objetiva como a das ciências modernas. Pois "(...) Uma tentação seria a de buscar
encontrar uma categoria "verdadeiramente neutra", antropológica, diríamos. Infelizmente, nós
também somos a antropologia, assim como a ambição de definir-descobrir o que há de humano
no homem.(...)" (STENGERS, 2018, p. 445)
Sobre o mundo comum do cosmopolitismo, podemos constatar uma espécie de "boa
vontade" que é incorporada a essa tentativa de unificação, generalização e igualdade, que
atualiza em muito o funcionamento do aparelho de captura.
Quando se trata do mundo das questões, ameaçadas e problemas cujas repercussòes
se apresentam como planetárias, são os "nossos"saberes, os fatos produzidos pelos nossos
equipamentos técnicos, mas igualmente os julgamentos associados a "nossas" práticas que
estão na linha de frente. A boa vontade, o "respeito pelos outros"não são suficientes para apagar
essa diferença, e negá-la em nome de uma igualdade de direito"de todos os povos da terra não
impedirá, posteriormente, de condenar a cegueira fática ou o egoísmo daqueles que se negariam
a admitir que não podem se esquivar das "questões planetárias". (...)(STENGERS, 2018, p.
446)

Isabelle Stengers propõe o inverso. A cosmopolítica persegue o caminho das


diferenciações que questões complexas podem gerar ao invés de realizar uma redução das
diferenças através de um conceito “do comum” como feito pelo cosmopolitismo kantiano.
Neste sentido, cosmopolítica está relacionado a um “mundo” em que seja possível travar
relações e composições com agentes e elementos heterogêneos. Essas composições de maneira
nenhuma pressupõem uma tentativa de equalização, num sentido de equivalência entre os
agentes, muito menos, um intuito de tradução dos diversos cosmos e agentes para nossos
códigos ditos humanos ou “culturais”. Trata-se de descrever ou delinear um mundo (ao invés
um comum) em que os agentes e os cosmos se coloquem em relação imanente,
compreendendo, muito embora, a divergência entre eles, e o pavor que essas relações possam
evocar. A proposição cosmopolítica desacelera os raciocínios, ela é "idiota", resgatando um
personagem conceitual de Deleuze e Guattari. Ela cria interstícios, não sucumbe às soluções
rápidas e às questões urgentes, ela sente que há sempre algo de mais importante a se pensar.
Ela convoca os cosmos para um processo de problematização que provavelmente não será
resolvido. Ela instaura o pavor!
Esta dimensão em que os agentes heterogêneos implicam diferenciações que não
podem ser reduzidas por um “comum”, e que aqui colocamos como “mundo”, se assemelha
ao que Stengers define como “cosmos”. Não é uma ideia de um mundo “englobante” em que
22

convergiriam todos, mas uma proliferação de cosmos, de dimensões plurívocas, que por sua
própria natureza não podem se reduzir a uma dimensão homogeneizadora. Aqui cito Stengers:
O cosmos, aqui, deve portanto ser distinguido de todo cosmos particular, ou de todo
mundo particular, tal como pode pensar uma tradição particular. E ele não designa
um projeto que visaria a englobá-los todos, pois é sempre uma má ideia designar um
englobante para aqueles que se recusam a ser englobados por qualquer outra coisa.
O cosmos, tal qual ele figura nesse termo, cosmopolítico, designa o desconhecido
que constitui esses mundos múltiplos, divergentes, articulações das quais eles
poderiam se tornar capazes, contra a tentação de uma paz que se pretenderia final,
ecumênica no sentido de que uma transcendência teria o poder de requerer daquele
que é divergente que se reconheça como uma expressão apenas particular do que
constitui o ponto de convergência de todos (...) (STENGERS, 2018, p. 447)

A proposição cosmopolítica reclama um campo de problematização em que abre a


dimensão política dos cosmos para a uma ontologia da problematização. Porque os problemas
que são criados por cada cosmo não são os mesmos, mas se atravessam. Esse campo é situado
a partir de dimensões ou agentes que são co-participantes, ou seja, que se comunicam, porque
a transversalidade que os problemas colocam exigem dimensões que se atravessam como
encarnação da complexidade gerada. Os agentes e os cosmos parecem então atuar
necessariamente divergindo e problematizando, são de certa maneira, inimigos imanentes 5.
Trata-se de estabelecer um campo de imanência em que as fórmulas transcendentes, isto é, a
tentativa de tradução, equivalência e universalização, precisem ser abandonadas. É preciso
negar, em alguma medida, as fórmulas e questões equivocadas, simples e prévias, é preciso
resistir a tendência cabal e generalizadora de dizer “e portanto”. Pois a operação que a
proposição cosmopolítica conclama é “ (...) uma colocação em inquietude [mise en inquiétude]
das vozes políticas, um sentimento de que elas não definem aquilo que discutem; que a arena

5
Em a imanência do inimigo, Viveiros de Castro reflete acerca das implicações imanentes da cosmologia araweté
sobre o matador araweté. É certo que os indígenas araweté quando morrem, chegam ao céu em espírito corrupto
e mesquinho. Por essa razão são devorados, canibalizados pelos deuses arawetés, a fim de renascerem em forma
não corrupta. Isso não se aplica ao matador araweté. Este ao matar sua vítima está fadado a ser acompanhado
pelo espírito dela. O matador araweté é perturbado, canibalizado pelo espírito de sua vítima, ele contém o sangue
de sua vítima em seu estômago, em seu corpo. Com o tempo, através de práticas rituais, o espírito da vítima e o
do matador, que compartilham a mesma casca, vão estabelecendo formas criativas de comunicação e composição.
O espírito da vítima, que é um outro, vai revelando ao matador novas palavras. O matador araweté é um inimigo
em potencial, pois habita dois cosmos, que por ser acompanhado, perturbado e conduzido pelo espírito de sua
vítima, corresponde a uma ameaça para o grupo, está em uma relação de devir com o espírito de sua vítima. Mas
ele ainda é um araweté. Dir-se-ia que por experienciar o processo de ser canibalizado pelo espírito de sua vítima,
quando morto, o matador araweté é temido e respeitado pelos deuses e portanto não é canibalizado por estes.
Nesse sentido é certo que o matador araweté habita um campo limite, de composição, de devir outro, com seu
inimigo. "A relação é criada precisamente pela supressão de um de seus termos, que é introjetado pelo outro; a
dependência recíproca que liga e constitui os sujeitos da troca atinge aqui seu ponto de fusão - a fusão dos pontos
de vista -, onde a distância extensiva e extrínseca entre as partes converte-se em diferença intensiva, imanente a
uma singularidade dividida. A relação de predação constitui-se em modo de subjetivação.(...) ego e inimigo, essa
entidade "monopolar"que é o matador constitui-se por involução ou implicação, determinando-se como foco
virtual de uma condensação predicativa onde a dupla negação - eu sou inimigo de meu inimigo - não restitui uma
identidade que já estaria lá como princípio e finalidade, mas, ao contrário, reafirma a diferença e a faz imanente
- eu tenho um inimigo, e por isso o sou(...)"(VIVEIROS DE CASTRO,, 2002, p. 293)
23

política está povoada pelas sombras dos que não tem, não pode ter ou não quer ter voz
política(...)”(STENGERS, 2018, p. 447).
Conferir uma dimensão “cosmopolítica” aos problemas que pensamos sob o modo
da política não se refere ao registro das respostas, mas coloca a questão sobre a
maneira como podem ser escutados”coletivamente”, no âmbito do agenciamento
através do qual se propõe uma questão política, o grito de pavor ou o sussurro do
idiota (...) Não se trata de se dirigir a eles, mas de agenciar o conjunto de maneira tal
que o pensamento coletivo se construa “em presença” da questão insistente que eles
fazem existir. Dar a essa insistência um nome, cosmos, inventar a maneira mediante
a qual a “política” que é a nossa assinatura, poderia fazer existir seu “ duplo cósmico”
[doublure cosmique], as repercussões disso que vai ser decidido, disso que constrói
suas razões legítimas, sobre isso que permanece surdo a essa legitimidade, eis a
proposição cosmopolítica. ( STENGERS, 2018, p. 448)

Isabelle Stengers nos mostra que a cosmopolítica apenas adquire sentido em situações
concretas, isto é, ela requer praticantes e com efeito se torna uma proposição inerente à própria
política. Se a cosmopolítica requer praticantes e, por essa razão, é uma questão política, no
sentido mais usual do conceito, podemos dizer que toda política pressupõe uma cosmopolítica,
assim como toda macropolítica pressupõe uma micropolítica. Mas isso não nos autoriza a dizer
que todos os agentes, indivíduos ou grupos pratiquem a cosmopolítica, porque a proposição é
uma prática ativada pelo esforço de desacelerar os raciocínios, evitar as soluções rápidas, que,
por sua vez, os agentes, grupos ou indivíduos podem não praticar. Aqui pretendo levantar a
seguinte questão: O Boi de Pindaré é praticante da cosmopolítica? Essa questão será
desenvolvida no capítulo seguinte.
1.5 Bricolage
A discussão apresentada e proposta no presente trabalho traz a problemática insistente
dos agenciamentos e composições com a heterogeneidade, o pensamento que provoca o pavor
ou a guerra prudente travada entre multiplicidades. Tendo em vista a criatividade dos
brincantes do Bumba e os aspectos do catolicismo e das intensidade afro-brasileiras co-
participantes queremos destacar mais de perto como esta feitura se realiza. Trazemos a
abordagem do bricolage proposta por Lévi-Strauss para que esta dimensão se torne mais
evidente.
Em A Ciência do Concreto, Lévi-Strauss explora dois modos de pensamento: O
pensamento em estado selvagem, propriamente operado pelos povos selvagens e o pensamento
científico moderno. Podemos nos esclarecer sobre a natureza dos dois modos de pensamentos
através das palavras do próprio autor:
(...) O paradoxo admite apenas uma solução: é que existem dois modos diferentes de
pensamento científico, um e outro funções, não certamente estágios desiguais do
desenvolvimento do espírito humano, mas dois níveis estratégicos em que a natureza
se deixa abordar pelo conhecimento científico - um aproximadamente ajustado ao da
percepção e ao da imaginação, e outro desloca; como se as relações necessárias,
24

objeto de toda ciência, neolítica ou moderna, pudessem ser atingidas por dois
caminhos diferentes: um muito próximo da intuição sensível e outro mais
distanciado. (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 31)

O pensamento selvagem desenvolvido por Lévi-Strauss tem como objetivo elevar ao


status cientificista as elaborações representativas e sensíveis desenvolvidas pelos indígenas no
contato e classificação com a natureza. Neste sentido é um pensamento mais ligado a uma
dimensão da intuição sensível. É esta relação que, aqui, quero propor como imanente, relação
esta entre o conhecimento indígena com a matéria que investiga, analisa, observa e classifica
que geralmente estão alinhados a uma maneira do bricolage. Trata-se de um sistema de
classificação que tem como campo de operação a composição de elementos que firma relações
sensíveis com o real. As analogias que elabora são uma maneira sensível e intuitiva de ligar
representações a coisas e através disso elaborar conhecimentos médicos, por exemplo, a
relação que um grão em forma de dente protege contra mordidas de cobra. Este exemplo
apresenta uma relaçao analogica entre um domínio natural e um domínio terapêutico e
possíveis analogias entre eles.
O bricolage é uma modalidade de atividade no plano técnico, mas que pode nos dar
condições inteligíveis no plano teórico. Ele se situa numa dimensão em que só há um circuito
ou arcabouço fechado em que é necessário operar por improviso, através de elementos que
sejam ferramentas ou matérias primas, que não estão a serviço de um projeto pré-determinado,
mas ao contrário, os elementos se confundem entre matéria e combustível. Neste sentido, é
muito próximo a atuação da bricolage em sua relação com meios limites, a partir dos quais se
tem a perspectiva do conjunto retrospectivamente, tentando encaixar nas novas utilidades as
antigas produções e os antigos resultados antes operados. O artista ou artesão que elabora por
bricolagem deve "voltar-se para um conjunto já constituído, formado por utensílios e materiais,
fazer ou refazer seu inventário, enfim e sobretudo, entabular uma espécie de diálogo com ele,
para listar (...) as respostas possíveis que o conjunto oferece." (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 35).
A diferença entre cientista e o bricoleur é sobre sua abordagem acerca do fato e da
estrutura. O primeiro elabora fatos através de estruturas pré-concebidas e idealizadas em
projetos e modelos. O segundo elabora estruturas de compreensão e reação, geralmente
imprevisíveis e improvisadas, através dos fatos que tem a disposição no conjunto instrumental
restrito que tem a mão. Essa atitude do bricoleur é melhor vista quando se pensa a organização
em estruturas que o pensamento mítico elabora através de fatos narrados e mitos encadeados.
Lévi-Strauss então aborda a dimensão da arte como uma dimensão intermediária entre ciência
e bricolagem, como também algo que mantém dos outros dois elementos constituintes. Esta
25

abordagem tende aproximar mito e obra de arte como que operando por meio do fato e da
estrutura. A obra de arte tem como objetivo reunir um ou vários objetos e um ou vários fatos
para conferir a eles um caráter de totalidade, partindo deles, então para se chegar a estrutura
que os subjaz. Os mitos, ao contrário, utilizam uma estrutura como uma maneira de oferecer
um conjunto ordenado e esquematizado de fatos e histórias.
Aqui, pretendemos apenas compreender as dimensões imbricadas que o fenômeno da
bricolage desvela. Se num objeto artístico, os elementos utilitários e aqueles menos ligados a
dimensão da prática, ligados a apreciação estética, estão imbricados e formam um amálgama,
como no exemplo da arma que Lévi-Strauss descreve no texto, então, há uma dimensão
digamos "compósita" dos elementos, em que eles podem ser conjugados não apenas em uma
função específica, mas também, na composição heteróclita dos elementos, outras dimensões
podem ser acopladas e conjugadas. A questão que pretendemos aproximar com as elaborações
de Deleuze e Guattari (2011) e com as de Stengers (2018), é a da composição e relação com
multiplicidades, com a heterogeneidade. As máquinas desejantes desenvolvidas em O Anti-
Édipo se conjugam como bricolage, ou seja, reúnem em suas múltiplas dimensões elementos
heterogêneos ou heteróclitos que produzem outras funções do que aquelas que pudessem ser
previsíveis dado o conjunto instrumental, assim como um campo imanente de encontro dos
cosmos, o campo de pavor, não se sabe exatamente o resultado desses encontros. Um
instrumento pode ser combustível para uma máquina, uma matéria prima pode ter outras
funções dependendo do conjunto instrumental considerado, e é esta aproximação que
pretendemos aqui elaborar. O arranjo e rearranjo tanto das máquinas quanto do bricolage segue
uma relação de imprevisibilidade e de constituição muito semelhante aquelas realizadas pelas
obras de arte e pelos artistas.
1.6 Afroindígena
A partir daqui, pretendo acompanhar essa caminhada teórica que encorpa o presente
capítulo e promover uma reflexão teórica, etnográfica e histórica apresentada por Marcio
Goldman (2017).
Goldman (2017) elabora a pertinência do conceito de Afroindigena. Afroindígena
designa uma relação que se fez necessária a ser pensada também a partir do trabalho de Cecília
Campello do Amaral Mello (2003) a qual Goldman se refere explorando sua dimensão
histórica e cosmopolítica. A partir do trabalho de Mello(2003) que versa sobre um grupo de
pessoas que se pensam como “afroindígenas”, o conceito alcançou proporções filosóficas e
políticas e tornou possível uma reflexão cosmopolítica a respeito dos encontros e
agenciamentos que se atualizam ao longo da história do Brasil, o encontro entre quase 10
26

milhões de pessoas sequestradas e embarcadas a força da África para as Américas com as


populações indígenas, ambas vítimas do genocídio europeu.
A relação Afroindígena não se refere a uma identidade de grupo, muito embora a
questão identitária se faz presente e importante quando tratamos de grupos e indivíduos. Mas
a dimensão que o autor explora é a dos cruzamentos cósmicos, os processos históricos e
políticos que foram ativados pelos agentes e que podem ser descritos fora do ponto de vista
transcendente do Estado, que possa ser explorado no interior e nos modos próprios das relações
que os agentes efetuaram e efetuam. Sua crítica repousa sobre a preponderância e o enfoque à
questão da identidade que permeia o pensamento social brasileiro. Compreende que o conceito
de Afroindígena não está ligado ao de identidade, porque este negligenciaria toda a expressão
e potencialidade que o conceito emana e quer abarcar, ou seja, toda a dimensão do processo
de composição, de encontro, de alianças e de poderes criativos entre grupos, povos e agentes
distintos, que por sua vez, atualizaram mundos e modos de vida que permaneceram ocultos. O
que Afroindígena inaugura no discurso acadêmico é um entendimento sobre um campo de
relações que se firmam entre grupos e agentes que se colocam em choque, compondo,
arriscando, variando os cosmos. Não se trata nem da “(...) identidade, nem do pertencimento,
mas do devir” - “ do que se torna, do que se transforma em outra coisa diferente do que se era
e que de algum modo, conserva uma memória do que se foi”(GOLDMAN, 2009, p. 95 apud
MELLO, 2003)
É novamente necessário reafirmar que os encontros cósmicos que se efetuaram nas
Américas remetem a praticantes concretos, remetem a agentes históricos e políticos,
composições entre afrodescendentes e indígenas. Mas isso não é tudo. A relação Afroindígena
não é pensada como uma relação somente entre afrodescendentes e indígenas, não se trata de
uma redução histórica que visa identificar o produto da soma entre dois agentes ou grupos. A
relação Afroindígena não reduz os encontros e as composições cósmicas a termos de
identidade (africano + indígena), muito embora, o conceito da relação tenha tomado vida a
partir dessa realização histórica. A relação propõe, antes, um campo de produção que opera
em devir, isto é, em variação e transformação, cuja diferença surge no atravessamento entre
os cosmos distintos. É certo que os praticantes, pensados por Goldman, representam um dos
maiores processos de desterritorialização da história da humanidade, mas é certo também que
tais encontros foram pensados majoritariamente através de perspectivas dominantes e
transcendentes do Estado, ou seja, fora do que realmente fazem e dizem os praticantes. A
relação Afroindígena se refere a tentativa de pensar fora do significante dominante, fora da
esfinge do Estado, porque há algo de profundo nessa história, algo negligenciado e
27

politicamente descartado. “(...) Nessa história, que é a de todos nós, coexistem poderes mortais
de aniquilação e potências vitais de criatividade” (GOLDMAN, 2017, p. 12)
Acompanhando a trajetória do pensamento social brasileiro, é possível identificar a
questão da mestiçagem e do sincretismo como problema motor da consolidação das ciências
sociais no Brasil. A busca incessante de alcançar uma "identidade nacional", por parte dos
intelectuais, das ciências sociais brasileiras representa um dos maiores problemas políticos,
históricos e sociais da história desse país. Essa marcha que vislumbrava estabelecer, durante e
depois do século XIX, uma harmonia, equilíbrio, ordem entre os povos que compunham o
Brasil e cunhar uma ideia de nação homogeneizada estava baseada em proposições racialistas,
que geraram os efeitos mais nefastos.
Sabe-se que muitos pensadores das ciências sociais brasileiras versaram sobre as
questões da mestiçagem e do sincretismo, tanto em relação aos povos indígenas quando em
relação aos povos negros. Nessa chave, poderíamos citar pensadores como Nina Rodrigues,
Arthur Ramos, Gilberto Freyre e Edson Carneiro. Para esses pensadores a questão racial se
tornou fundamental a ser pensada, muito embora, divergissem em relação às soluções para a
identidade nacional. Em certo ponto era preciso desenvolver o pensamento acerca da
mestiçagem, que seria o processo de entrecruzamento de brancos, negros e indígenas baseado
em fundamentos biológicos e fenotípicos, de outro modo fazia-se necessário pensar a respeito
do sincretismo, que baseava-se na mistura, camuflagem e purificação de um grupo
subalternizado, do ponto de vista étnico, cultural e religioso. Para muitos pensadores da época,
a questão da mestiçagem seria a saída para uma equalização racial da nação brasileira, que,
por fim, entregaria à nação sua identidade, o povo brasileiro. Mas haviam também aqueles que
manifestavam suas preocupações racistas a respeito do risco que a mestiçagem oferecia a
"pureza" e ao privilégio das camadas brancas européias brasileiras. Apesar de divergirem
acerca da orientação de suas preocupações a respeito da mestiçagem ( os que a defendiam e os
que a condenavam), ambas as partes estavam orientadas em pressupostos racialistas, de
mistura, estabilização e homogeneização.
Essa identidade nacional que deveria ser cunhada partindo do "famigerado mito das
três raças" foi pensado a partir de um ponto de vista transcendente, privilegiado, o ponto de
vista do branco. A tentativa de embranquecer a sociedade através da entrada em grande escala
de imigrantes europeus no Brasil durante o século XX é uma prova desse ponto de vista
dominante. Mesmo os pensadores que tinham como guia sua boa fé e simpatia para com a
mestiçagem, baseavam suas reflexões segundo perspectivas sociológicas, isto é, processos de
integração das classes e grupos subalternos à sociedade e ao Estado. O desenvolvimento dessas
28

teorias descartaram todos os processos imanentes e composições próprias dos agentes


pensados. As teorias que se proporam a pensar as questões raciais no Brasil ofuscaram o modo
como os agentes se colocavam e se pensavam, dando lugar a fórmulas de integração,
homogeneização e mistura. A morte da diferença. Esse ponto de vista sociológico se
consolidou como ponto de vista transcendente que ignorou todos os processos imanentes de
modulação compósita dos grupos subalternizados. Nesse sentido, sincretismo se reduziu a
formas de adaptação, mistura, no sentido de homogeneidade e camuflagem.
Os contradiscursos sobre a mestiçagem e o sincretismo são as vozes que dizem o
inverso. Não se trata de homogeneização e fim das diferenças, mas a evidenciação dessas
diferenças, colocá-las em evidência em um campo de modulação e problematização. Mas para
podermos, de fato, compreender essa movencia, torna-se necessário estabelecer um campo de
simetria, como o que temos pensado até aqui. Porque os significantes dominantes,
transcendentes tendem a ofuscar e capturar os modos de vida divergentes, tramando-a em seus
códigos. Composição designa a retirada de termos transcendentes, técnica que Gilles Deleuze
pensa, que foi elaborada pelo teatrólogo italiano Carmelo Bene ( DELEUZE & BENE 1979).
Através dessa extração é possível efetuar uma "minoração", um plano de simetrização entre os
saberes e os agentes, que, por sua vez, revelam a potencialidade de suas diferenças que, quando
se chocam, produzem mundos, problemas e seres cujo as vozes nunca foram escutadas. Essa
constituição pode tornar indiscernível o papel de cada face, de cada cosmo, mas de maneira
nenhuma suprime a distinção e a diferença destes. Eis o processo de composição.
1.7 Cosmopolítica em ação
Aqui pretendo apresentar um exemplo empírico de como um coletivo de pessoas
elaborou agenciamentos e composições nesta dimensão da heterogeneidade. Em seu estudo
sobre o sincretismo entre Maria e Iemanjá, Gomes dos Anjos discorre acerca dos processos de
agenciamento que os fiéis de ambas as "tradições" realizam a partir da festa em louvor a ambas
as divindades que ocorre sempre no dia 2 de fevereiro. A festa se encadeia a partir de um
percurso pelas ruas de Porto Alegre em uma procissão de cunho católico para a santa Nossa
Senhora dos Navegantes. Como também esta festa compõem uma procissão fluvial nas águas
do rio Guaíba realizada por fiéis de religiões afro-brasileira.
Durante a procissão da N.S. dos Navegantes muitas pessoas são encarregadas de
organizar a estrutura da festa, instituída pelo pároco da igreja, da irmandade e pelos
representantes do poder público, como prefeitura e os bombeiros. Além disso, aqueles que
percorrem as ruas são ou católicos ou praticantes de religiões afro-brasileira que percebem na
imagem da santa certa ligação com a figura de Iemanjá. Como nos informa a pesquisa, entre
29

as pessoas entrevistas, um terço delas disse compreender Iemanjá e a santa "como a mesma
coisa", outros um terço acredita haver relações mas diz que são distintas entre si, e outros um
terço considera a procissão apenas como católica.
Outra procissão também é realizada em paralelo a esta, mas em meios fluviais, a partir
de uma embarcação levando algumas centenas de pessoas pelas águas do rio Guaíba.
Entretanto esta procissão atualmente não é oficial e foi proibida de ser organizada pela igreja
católica devido a um acidente ocorrido no Rio de Janeiro que colocou o temor que o mesmo
ocorresse em Porto Alegre. Mesmo assim, os praticantes a realizam no mesmo dia da santa, e
costumam acompanhar ambas as festas.
Alguns elementos compõem as duas festas e as aproxima enquanto um agenciamento
único. As pessoas que saem pelas ruas acompanhando a imagem, costumam levar consigo uma
pequena imagem da santa, e seguem a música que o carro de som ecoa. O que leva a Gomes
dos Anjos compreender que a conjugação dos corpos em movimento nas ruas, junto com uma
certa disposição que eles possuem induzida pela música e pelo "ritual" levam-nos a certas
composições singulares. Os corpos em movimento terrestre (territorial) por causa de uma
figura religiosa e em contato com uma certa música é balizado por forças cósmicas,
poderíamos dizer heterogêneas, que modulam e fazem a procissão acontecer enquanto uma
"festividade"em louvor a santa. O mesmo se passa com a procissão fluvial, que encadeia uma
maneira de povoar as águas do rio como uma comunhão com os elementos constituintes da
divindade, além da presença da música. Outro elemento que a festa encadeia, referenciais de
ambas as divindades, é a melancia, alimento que tipicamente a população costuma consumir
quando da ocasião da festa, chegando mesmo a consumi-la durante a procissão.
O sincretismo elaborado por esses praticantes estaria ligado, na compreensão de Anjos,
a relaçao de três elementos: "componentes dimensionais vinculados à presença de agentes de
ordem, intra-agenciamentos da ordem do desejo cristalizados na imagem da santa e produçaõ
da presença." (Anjos 2009). Neste sentido a composição que a procissão realiza territorializa
no corpo dos devotos signos e afetos cristalizados a partir da imagem da santa. As pessoas
juntas conjugadas a partir e por causa da santa compõe uma territorio que modula, organiza e
regula os corpos e mentes, porque se aliam a potência de um agenciamento operado entre
"domínios" ou em conjugação com uma dimensão composta de heterogêneos, como aquela
entre santos católicos e divindades afro-brasileiras.
Abre-se, assim, a possibilidade de cotejarmos a hipótese segundo a qual a devoçaõ a
Nossa Senhora dos Navegantes em Porto Alegre foi se fortalecendo na sobreposiçaõ
de territórios cosmológicos (católico e afro-brasileiro). Como Nossa Senhora e/ou
30

como Iemanjá, uma mesma intensidade marca diferentes territórios cosmológicos


numa mesma cidade. (ANJOS, 2009, p. 57).

A comunhão de um mesmo ícone (a santa) entre católicos e praticantes afro-brasileiros


se constituiu, segundo Anjos, numa espécie de sincretismo. No sentido particular que ele
sugere, talvez, este sincretismo estivesse em proximidade com a lógica da bricolagem que
expomos algumas páginas atrás. Seguindo também Bastide, haveria dois tipos de sincretismo,
aqueles que se constituem por processos de analogias e equivalências entre sistemas religiosos
distintos, e aqueles que compõem outros sistemas a partir da aglutinação de elementos, se
podemos dizer, heterogêneos, mas que são conjugados, justamente porque respondem a
problemas específicos ou estão envolvidos em questões particulares dos devotos. O exemplo
da melancia como um elemento adotado por católicos porque associados por afro-brasileiros
à Iemanjá, nos esclarece sobre o compartilhamento mútuo de elementos e combinações que se
operam, justamente de uma maneira não unilateral. Neste sentido, a combinação sincrética
operada nos faz pensar o ícone da santa/Iemanjá como ocupando um campo de intensidades
que é povoado por diferentes âmbitos da cidade, mas que, pela força da composição da
procissão se reúnem na ocasião festiva.
Entretanto, a procissão fluvial realizada pelos devotos afro-brasileiros e proibida pela
organização da procissão coloca uma questão cosmopolítica. Anjos compreende que no caso
analisado da festa, há uma aproximação entre os mundos católicos e afro brasileiros. Não se
está dizendo que há uma sobreposição de territórios existenciais, mas, de uma comunicação
entre mundos distintos, e que ele se dá por meio do ícone da santa em vias de se confundir com
a da divindade africana das águas. Neste sentido, a cosmopolítica operada por esses devotos
estaria nessa comunicação, e na valorização do "fundamento" da festa, fazendo a necessária
ligação da divindade com o elemento territorial das águas. A reivindicação de fazer a festa a
partir do fundamento da procissão fluvial revela a cosmopolítica operada por esses grupos em
reivindicar uma relação com as coisas, entre elas aquela de outro universo religioso, na sua
dimensão de fundamento, a saber aquela ligada a característica marítima da divindade/santa.

1.8 Boi de Pindaré e algumas questões cosmopolíticas


De maneira breve, desejo apontar novamente aqui algumas compreensões que me são
caras a respeito de observações sobre a brincadeira de bumba boi, em especial, o Boi de
Pindaré que vai de encontro com desenvolvimentos teóricos apresentados neste capítulo. Tais
desenvolvimentos me possibilitam pensar as operações que compreendo como política no
interior do Boi de Pindaré. Os trabalhos discutidos neste texto se apresentaram para mim como
31

meio/ferramenta teórica para refletir os problemas implicados pelos brincantes e pela própria
brincadeira do boi. Com efeito, o boi está envolvido com a dimensão da relação entre humanos
e não-humanos, a política e a micropolítica, a criatividade bricoleur, o perigo de abolição e a
relação com o estado, a questão do levantar do boi e sua problemática cosmopolítica.
A brincadeira do bumba boi envolve elementos e agentes distintos mas que,
brevemente, podem ser elencados como: brincantes, fardas e roupas, materiais de artesanato,
instrumentos musicais, alimentos, bebidas, o bairro e a cidade, cores e texturas. Mas
poderíamos dizer que os elementos não se reduzem a sua materialidade, pois que há a dança,
o mito, as toadas, as disputas, as alianças, as promessas e obrigações, os entes não humanos,
os afetos, as técnicas do corpo, a procissão, os espaços, o parentesco. A partir dos materiais
elencados os brincantes elaboram as fantasias dos dançadores, índios, cazumbas, além do
artefato boi. O manejo do bordado e do arranjo das roupas, tarefa desempenhada pelas
mulheres principalmente, parecia estar associado com matérias primas encontradas sem prévio
estabelecimento, e a colagem e confecção dos bordados pareciam ser feitos segundo uma
ordem improvisada. Essas mulheres pareciam compor a indumentária a maneira de um
bricoleur.
O campo social e cultural do Boi de Pindaré conjuga elementos materiais e socioafetivos,
como os apresentados acima. Ele admite brincantes de origem diferentes com relações
diferentes para com o grupo. Há muitos brincantes que "baiam" em mais de um grupo de boi,
diferentemente dos brincantes mais velhos e lideranças que possuem sentimento de
pertencimento para com o Pindaré. A brincadeira admite também o rompimento do grupo e a
criação de um segundo ou terceiro grupo de boi, que potencialmente pode tornar-se um rival,
um "contrário". Neste sentido, apresentaremos no próximo capítulo como se configura essa
dimensão política dos conflitos entre os grupos de bois, marcada pela disputa entre os
brincantes.
O Bumba boi é “firmado” sobre a alçada e a proteção de entidades não humanas que
podem reclamar comprometimentos e obrigações vitais para com os brincantes. Aliança. E o
nível intensivo dessas alianças ou o encontro de grupos rivais, sem o devido preparo e
prudência, pode ocasionar consequências mortais para as pessoas da brincadeira. Como um
caso de esfaqueamento entre brincantes de bois rivais que presenciei. Linha de abolição.
O Boi de Pindaré realiza a festa sustentado pelo movimento potente e criativo dos seus
brincantes que se firmam na força e na proteção dos santos e encantados. A relação das pessoas
com os santos católicos, a partir da dimensão da procissão, juntamente com a música e o
território da cidade se configuram como modos de experienciar estas intensidades que povoam
32

os corpos durante a festa. É portanto uma brincadeira atravessada por afetos de euforia, alegria,
confraternização, mas também, engendra obrigações e responsabilidades difíceis e pesadas.
Ela pode conjurar afetos tristes e mortais, como a disputa que encadeia a violência física entre
brincantes rivais que encorpam a história da brincadeira do boi em São Luís desde do século
XIX, segundo os jornais e periódicos da cidade muito bem demonstrado por Martins (2015).
As responsabilidades e obrigações envolvidas com o processo da feitura da festa são
“negociadas” na aliança e nos acordos dos brincantes com as potências e forças que compõem
a brincadeira e isto se refere também aos entes católicos e encantados. A brincadeira se realiza
num agenciamento de forças que trabalham e processam elementos oriundos de diversas
origens (tradições católicas, africanas e indígenas) que operam modulações precisas entre esses
cosmos.
Por fim apresento a questão do "levantar do boi" que faz pensar sobre este movimento
específico de reativar que se referem os brincantes e que parece trazer à luz uma dimensão
cosmopolítica. Benedita Aroucha, dona do Boi de Pindaré e Carolina Martins, historiadora,
pesquisadora e brincante do boi me falaram sobre o momento de decadência que o Pindaré
vinha passando ao longo dos últimos 10 anos. Essa decadência se deu devido a quebra de
certos fundamentos, de certos objetos sagrados e a apropriação de fardas, instrumentos e outros
elementos fundamentais para a brincadeira por ex-integrantes que saíram do boi e começaram
a brincar em outro grupo. A quebra desses fundamentos e assentamentos ocorreram na troca
de geração e de direção do boi. Segundo seu Bigode, mestre e cantador do Pindaré, a
brincadeira é feita em louvor aos Santos católicos, Santo Antônio, São João, São Pedro e São
Marçal, como também aos entes encantados dos cultos do Tambor de Mina e Cura,
principalmente, seu Tapindaré, entidade dona do Boi de Pindaré. Segundo seu Bigode, com a
quebra dos fundamentos, o boi entrou em decadência e os brincantes sofreram consequências
espirituais e de outras ordens, mas que estão relacionadas. Nesse sentido o boi teria diminuído
sua “potência criativa”, visto que perdeu o fundamento, o assentamento, que efetuava as
operações cósmicas necessárias para a brincadeira, isto é, os artefatos que selavam as alianças
intensivas do Pindaré. Segundo Benedita Aroucha, Carolina Martins, Seu Bigode e Seu Chico,
o Boi de Pindaré é um grupo que se constitui de maneira “tradicional”, entendido assim porque
é o segundo boi do sotaque de baixada criado em São Luís. Esta maneira “tradicional” de se
constituir se configura numa relação de convergência de promessas, obrigações e mistérios
que reúne e faz circular pessoas, coisas e seres e se constituiria como uma característica
particular do grupo.
33

As relações elencadas entre entes humanos e não humanos nas confluência entre
elementos oriundos de tradições africanas, indígenas e católicas parece-nos próximo das
relações abarcadas pelo conceito de afroindígena (GOLDMAN, 2017). Isto porque os
brincantes se dizem católicos e frequentam festas de terreiros de Mina e Cura, ou de outra
maneira, porque o Boi de Pindaré se faz em louvor a santos católicos e tem como um encantado
seu dono. Esta “composição” de elementos oriundos de “localidades” díspares se configura
através e a partir da comunicação entre cosmos, mundos ou dimensões “heterogêneas”.
Heterogêneo no sentido de caracterizar a relação entre objetos, seres ou coisas que se
relacionam numa chave da “arbitrariedade”, “dispersão”, “imprevisibilidade”, “improviso”. É
devido a esta característica que essas dimensões em que estão presentes heterogêneos podem
e levam a provocar estados físicos e mentais de excitação, tontura, estremecimentos e
“irradiações”.
Mas, sobre o momento de decadência, segundo os integrantes mencionados acima, este
está passando, o boi está se levantando, pois, eis que os brincantes estão a retomar seus afazeres
e a reconstruir os fundamentos. É nessa retomada que o boi levantará, me disseram Carolina
Martins e seu Bigode. O Boi de Pindaré resiste a tendência de espetacularização das
programações do Estado e ao estado de decadência. É retomando as obrigações e a tradição
que o barracão pode voltar a ser povoado pelos “índios”, como me disse Dona Chica Preta,
brincante anciã do boi.
A retomada dos afazeres do Pindaré pode ser pensada como um reativar das potências
criativas, no sentido próprio que os brincantes me informaram, que será desenvolvido no
próximo capítulo, um reclaiming, conceito cunhado por Isabelle Stengers (2011) e pensado
rigorosamente por Renato Sztutman (2018). É nesse sentido que alguns brincantes se afirmam,
atualmente, em uma toada de autoria do Coxinho. Este famoso cantador e compositor
maranhense, ex cantador do Boi de Pindaré, e já falecido, cantava uma toada que versa, penso
eu, sobre esse reativar e o levantar do boi. Segue a toada cantada por Coxinho que compõe o
álbum do Boi de Pindaré gravado em 1976.

“Eu vi meu vaqueiro aboiar


Ê quiôu ê quiôu
Eu vi meu vaqueiro aboiar
Ê quiôu, ê quiôu

Eu me alegrei
Quando o Pandeiro tocou
Mandei botar no Jorná
Ê boi de Pindaré levantou”
34

(Coxinho)

Bumba meu Boi de Pindaré, um relato etnográfico acerca de uma


brincadeira séria.

Pretendo neste capítulo apresentar etnograficamente o Boi de Pindaré a partir de


domínios que considerei mais relevante, tais como a dimensão política presente no conflito,
na disputa e na aliança entre os grupos de boi e a esfera burocrática do Estado. Pretendo
encaminhar também uma reflexão acerca da dimensão corporal em que os participantes do
grupo estão inseridos em suas relações com os instrumentos, a música, a dança, os adereços,
como também suas relações com entes humanos e não humanos, que permeiam ,assim, um
campo de agências, conflitos e interesses que pude delinear como envolvidos numa dimensão
cosmopolítica. A partir da compreensão dos interesses, a cooperação e as disputas entre grupos
de boi, agentes do Estado, e entes humanos e não-humanos, podemos estabelecer uma arena
de ações políticas que nos leva a compreender a importância do "levantar do boi", termo nativo
que sugere outros modos de práticas e atitudes em relação ao legado da tradição e a história do
grupo do Boi de Pindaré.
Primeiramente apresentarei o Pindaré em seu contexto urbano e na temporada de São
João, descrevendo brevemente quem são os integrantes, a localidade da sede e os rituais
religiosos que o grupo realiza durante o ciclo festivo junino. Em seguida, realizo uma descrição
que se propõe reflexiva sobre temas que me são caros e pertinentes para se pensar a dimensão
que se fez presente em meu trabalho de campo, isto é, a cosmopolítica. Esses temas elencados
são intensamente atravessados por processos que denominamos no capítulo anterior como
movimentos de diferenciação e de composição com multiplicidades ou com entes
heterogêneos. É nessa dimensão da heterogeneidade que grupos humanos como o Boi de
Pindaré criam e colocam seus problemas de maneira particular e complexa. Onde constroem e
mantém suas máquinas funcionando e realizam seus pactos e alianças religiosas. Em suma,
tentarei pensar sobre esses movimentos que se configuram, logo de súbito, como um campo
de problematização intensivo próprio da proposição cosmopolítica.

2.1 São Luís e o bairro de Fátima


Tinha nêgo Chico e mãe Catirina..
35

Nêgo Chico trabalhava na fazenda do sinhô...o dono da fazenda..


Um dia, mãe Catirina, que tava grávida, sentiu ..desejo de comer língua de boi..
E pediu pra nêgo Chico pegar uma língua de boi e fazê pra ela…
Mas o boi que nêgo Chico pegou era o boi mais bonito e o preferido do sinhô né..
Aí ele matou o boi e foi-se embora com mãe Catirina..
O sinhô, o âmo da fazenda, descobriu que o boi tinha sido morto..
Mandou os vaqueiro e os índios procurar nêgo Chico e mãe Catirina
Quando eles acharam nêgo Chico, nêgo Chico pediu perdão e se arrependeu
Aí, os índios…., o pajé, fez a magia e o boi reviveu…. encantado…
( O mito do boi contado por seu Chico, diretor do Pindaré, na tarde do dia 25 de junho, na sede do
Pindaré)

O Bumba meu Boi de Pindaré, consiste em grupos de pessoas, brincantes que em sua
maioria residem no bairro de Fátima localizado bem próximo do centro de São Luís, capital
do Maranhão. Os bairros de Fátima e Coroadinho concentram uma substancial quantidade de
grupos de bumba meu boi do sotaque de baixada e outros sotaques, como orquestra, matraca
e zabumba. São quatorze grupos de bumba meu boi do sotaque de baixada; dois grupos do
sotaque de orquestra; um grupo do sotaque de matraca e três grupos do sotaque de zabumba6.
Para além da questão estatística acerca da quantidade de grupos de boi, a maior parte dos
brincantes com quem conversei e fiz entrevistas habitam o bairro de Fátima. Para melhor
descrever a relação entre os brincantes, o bairro e o Boi de Pindaré é necessário, de maneira
breve, compreender quem são esses brincantes e saber a partir de qual lugar esses corpos
travam e constroem suas relações.
A maioria dos habitantes do bairro de Fátima e adjacências como também os brincantes
do Boi de Pindaré são pessoas negras. Isso nos leva a ideia de que as brincadeiras do boi tem
sua origem em alguma herança africana. Essa herança é percebida pelo êxodo de populações
negras da baixada maranhense para os bairros periféricos de São Luís, como seu Bigode,
cantador do Boi de Pindaré e Mestre de brincadeira, me relatou em entrevista, "o boi é coisa
de negro que veio da senzala, coisa que veio do mato". “A brincadeira parece ser uma prática
herdada dos negros escravizados que por lá viveram;” (CARVALHO, 2011, p.87). Os
brincantes do Pindaré, muitos deles, trabalham em atividades informais, como ajudantes de
pedreiro, diaristas, soldadores, etc. Por se tratar de um bairro periférico, o bairro de Fátima
apresenta grande quantidade de casas humildes com famílias numerosas. Vale ressaltar que
algumas pessoas e pesquisadores que conversei costumam dizer que o bairro de Fátima, assim
como outros que concentram grande número de pessoas negras, são quilombos urbanos.

6
Complexo Cultural do Bumba-meu-boi do Maranhão. Dossiê do registro como Patrimônio Cultural
do Brasil / Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. São Luís: Iphan/MA, 2011, p.98.
36

O bairro de Fátima também expressa certa violência, como me foi relatado por diversos
interlocutores. Segundo Benedita Aroucha, muitos jovens, e isso inclui alguns batuqueiros do
Boi de Pindaré, já se envolveram ou se envolvem com "gangues", com atos violentos que
envolvem riscos de vida. A mesma me informou que o boi tenta evitar que muitos jovens do
bairro acabem entrando nesse "mundo". Ela acredita que o boi é uma grande família que cuida
de todos e, por esse motivo, tenta mudar o destino desses jovens a partir dos ensinamentos da
brincadeira. Benedita, como pude presenciar, toma conta e observa cada brincante, podendo
ficar, durante as apresentações, sem se alimentar e sem ter como voltar para casa para que
outro brincante possa. Sobre esse aspecto é possível refletir que essa realidade é expressiva
nos bairros periféricos de São Luís. Os habitantes do Bairro de Fátima e arredores compõem a
região de periferia como classe trabalhadora, trabalhadores informais e pessoas de baixa
escolaridade.
A vida do bairro está ligada ao que acontece nas sedes dos grupos de boi durante o
ciclo das festas de São João e de matança, ou morte do boi, que se faz em agosto. Muitas
pessoas iam até a sede do Pindaré apenas para assistir, participar e conversar, encontrar os
amigos, os conhecidos e os vizinhos. Essa relação apresenta o boi, e em especial o Boi de
Pindaré, como um espaço de vivência da comunidade e do bairro, como lugar de
confraternização, de ajuda, de solidariedade e de socialização. Muitos dos brincantes saíam do
seu trabalho e se encaminhavam a sede para participar das atividades, ajudar na confecção dos
adereços, ou até mesmo, como pude presenciar, assistir o jogo entre Brasil e Suíça da copa do
mundo de dois mil e dezoito numa pequena televisão instalada na sede num dia de brincada.
É como se a sede exercesse uma função comunitária.. "A formação dos grupos de Bumba-
meu-boi envolve aspectos religiosos, culturais e sociais. Como mostram os depoimentos estes
aspectos se entrelaçam aos vínculos comunitários de uma determinada localidade."(Martins,
2015 p. 73)
Como já dito, o Boi de Pindaré não é o único grupo de boi sediado no bairro de Fátima.
A relação do Pindaré e seus brincantes, com outros brincantes de outros bois é relativa a
história do grupo, visto que ele é o segundo boi mais antigo do sotaque de baixada em São
Luís. Com efeito, segundo os relatos dos brincantes, a fundação de outros bois de sotaque de
baixada teve origem a partir de dissidências de antigos brincantes do Pindaré. Nesse sentido é
possível apontar dois cenários. Em primeiro plano, há grupos de bumba boi que apesar de sua
dissidência não desenvolveram relações conflituosas com o Boi de Pindaré, como o boi União
da Baixada e o Boi Capricho do Povo, de seu Antoninho. Por outro lado existem aqueles
grupos que o próprio processo de dissidência se deu de forma conflituosa e mantiveram, de
37

maneira relativa, o conflito, o ressentimento e o sentimento de disputa no seio de suas relações.


Mas essas disputas e ressentimentos não ofuscam o respeito e a admiração mútua entre os
mestres boieiros, os amos e cantadores mais velhos que vieram da baixada, que por sua vez,
cantam em bois rivais. Mesmo que possa haver ressentimentos e querelas pessoais entre os
mesmos, eles reconhecem e admiram a sabedoria, a arte de saber fazer/brincar boi e a virtude
do canto de seu “contrário”. Segundo os brincantes mais antigos do Pindaré, os grupos tidos
como rivais são chamados de "contrário", termo local para grupos de bumba rivais. Apesar da
história do Boi de Pindaré atualizar as relações presentes que este tem com outros grupos,
acredito que o elemento do conflito possa ter origem, localidade e desdobramentos que se dão
para além do parentesco dos grupos de boi e para além do bairro de Fátima.
Como pude constatar durante o trabalho de campo, a vida do bairro de Fátima e
arredores se modifica completamente quando chega o período do São João. O São João é uma
temporada ou um período em que os grupos saem para os arraiais para fazer as brincadas, as
apresentações, além de realizar certos cortejos e obrigações, termo nativo para rituais
específicos que envolve a brincadeira em lugares determinados em louvor a santos católicos e
a entidades encantadas. É nítido, portanto, que quando chega o São João, a vida da comunidade
se altera.
Em São Luís são construídas arenas preparadas e customizadas com elementos festivos
da cultura maranhense, são feitos arraiais com palcos destinados as brincadas dos grupos de
boi. Esses espaços são preparados em diversos bairros e praças determinadas por seu valor
histórico e geográfico. Esses grupos fazem a brincada e as apresentações, batendo matracas,
pandeiros, tambores e instrumentos de sopro e de corda. Os batalhões 7 de boi rolam pelos
arraiais trajando fardas que designam personagens específicos. Tanto os instrumentos quanto
as fardas e personagens variam de acordo com cada sotaque. Mas há também, nas festividades
de São João, apresentações de outras manifestações culturais, como o cacuriá, a dança
portuguesa e o tambor de crioula. O objetivo mais expressivo na brincadeira de boi durante o
São João é o louvor aos santos católicos, Santo Antônio, São João, São Pedro e São Marçal,
mas principalmente, o padroeiro da temporada, São João. Na sede do Pindaré, sempre há um
conjunto de pessoas bordando e costurando as fardas que precisam ser confeccionadas, os
instrumentos são reparados e concertados. A sede que em outros períodos permanece visitado
com menos frequência e intensidade, se enche de pessoas, sejam participantes ou como pude
perceber ano passado, espectadores e pesquisadores.

7
termo que se refere aos grupos de boi.
38

2.2 Nascimento do boi e o ensaio redondo


Anoiteceu
O galo cantou
Vaqueiro vai na igreja
Que o sino dobrou

É pra reuni
vamo guarnicê
Esta é a ordem
Que São João mandou
(Guarnicê do Boi de Pindaré gravado em 1976)

O início e os preparos para as festas do ciclo junino se dão no sábado de aleluia no


mês de Abril. O Boi de Pindaré inicia seus ensaios no sábado de aleluia e esse primeiro ensaio
é dito como o nascimento do boi. Não pude testemunhar os primeiros ensaios que atravessaram
o mês de maio, visto que cheguei em São Luís no dia 2 de junho.
Segundo os relatos que os brincantes me concederam, no mês de maio a movimentação
na sede do Boi de Pindaré se intensifica e os integrantes mais antigos e mais velhos, se assim
posso dizer, começam a trabalhar, engatam nos preparativos para festa e se articulam com as
dimensões burocráticas dos festejos juninos promovidos pelo o Estado.
A partir do sábado de aleluia, no mês de maio , uma vez por semana são feitos ensaios
até o ensaio redondo, o último ensaio. Durante todo o mês, os brincantes mais velhos e mais
comprometidos com a brincadeira frequentam intensamente o barracão, começam a organizar
os instrumentos, a bordar as fardas e a comprar os materiais. Fazem as manutenções dos
instrumentos e ali convivem e se divertem fazendo os preparativos. Benedita Aroucha, por
outro lado, sempre está preocupada e ativa resolvendo as questões pendentes. Podemos listar:
a burocracia da secretaria de cultura do estado, os materiais que precisam ser comprados, o
transporte do grupo para as brincadas, o custo e a importância da vinda de brincantes do
interior, os alimentos, as bebidas e as obrigações e rituais de preparo que o boi artefato de
Pindaré tem que realizar para brincar no São João. Durante esse período, os brincantes
trabalham no barracão e se divertem, bebem cerveja e fazem piadas. São grandes momentos
de confraternização. As mulheres se dedicam seriamente aos bordados e a organização dos
materiais, se dedicam também a cozinha, a limpeza do barracão, além da logística dos
alimentos e bebidas. Pude testemunhar a grande virtude e destreza da arte de bordar de Marli,
Theresa, Raimunda, Pelada, Frango e Raiane.
Nesse período, no tocante aos preparativos, os homens também ajudam no bordado,
como o próprio Seu Chico, diretor do boi, Belisca, chefe dos Cazumbás e Nato, chefe dos
batuqueiros. Eles mostram maestria na arte de fazer caretas de Cazumbá, como é o caso de
39

Belista, eletricista e artesão em horizontes variáveis, e na arte de cobrir os pandeirões, cujo o


aro é feito de jeniparana, e coberto com couro de bode. Neste caso, posso citar o próprio
Belisca, Nato e Buguelo, miolo do Boi de Pindaré. Seu Chico me disse que brincar bumba boi
é saber fazer um pouco de tudo no que tange essas artes, muito embora, os brincantes se
destaquem numa ou noutra. Pude perceber que os mais velhos se dedicam e se enchem de
alegria na criação de toadas. Penso que o afeto contagiante ou a paixão do entoar canções de
bumba boi atravessa os mais velhos como uma forma de contar a história do interior, da
baixada, dos negros boieiros, de contar a história de viagens, as relações religiosas com santos
católicos e entidades encantadas. Como também, é o modo de contar a história do Boi de
Pindaré e prestar homenagens a seus brincantes que já se foram. Muitas toadas expressam
essas realidades. Me parece que os brincantes homens cantadores anciãos carregam consigo
essa tarefa e esse desejo de entoar a história.
Os Brincantes, no processo de preparo da sede e da brincadeira se relacionam de
maneira descontraída, fazem brincadeiras e piadas uns com os outros. O ensaio redondo é o
último ensaio do Pindaré antes do batismo. No dia do ensaio redondo, os brincantes desde cedo
começam os preparativos para o ensaio, que a meu ver, se configura numa grande festa. Os
brincantes adultos e mais antigos se mostram muito determinados e comprometidos. Já muito
cedo os integrantes começam a limpar a sede e a preparar a comida. No ensaio deste ano foi
feita uma quantidade enorme de frango ensopado, arroz e feijão. Na noite do ensaio, os
brincantes do bairro começam a chegar e a confraternizar. O café, a cerveja e o conhaque estão
sempre presentes, muito embora, nem todos os brincantes bebam, como alguns cantadores
anciãos. Creio que esses cantadores mais velhos evitam beber nos dias de ensaio, apresentação
e principalmente nos dias de fazer obrigações religiosas, por conta de seu comprometimento
para com a brincadeira ou por respeito ao momento sagrado. Observei que essa atitude é
tomada como um ato de preparo e eficácia por brincantes que são afetados intensamente por
rituais que fazem parte da brincadeira. Pude observar que alguns deles em momentos
específicos, como o do batismo do boi, ou como a procissão até a igreja de São Pedro, no dia
de São Pedro, ficam apreensivos, muito calados e preocupados antes e durante esses
momentos. Os brincantes podem ficar "irradiados"8 pelas forças que a brincadeira/ritual
compõe em processos específicos. Com efeito, alguns desses praticantes evitam ingerir bebida

8
“Irradiação” é uma designação dos próprios brincantes para os efeitos intensivos que se apresentam no corpo
durante rituais religiosos.
40

como um cuidado ou forma de preparo do corpo para os momentos intensos de encontro com
forças e potências religiosas.
Os jovens do Bairro de Fátima logo começam a aparecer na sede com o objetivo de
integrar e brincar no Boi de Pindaré no São João que se aproxima. A maioria deles costumam
ficar do lado de fora da sede onde confraternizam, bebem e namoram. Dentre esses jovens,
muitas moças integram o grupo de índias e muitos rapazes compõem o batuque. Segundo
Benedita Aroucha e Seu Chico Aroucha, o batuque dos pandeirões e o “repinicado” do sotaque
de Pindaré contagia logo os rapazes. Pude perceber que ano passado, o Boi de Pindaré contava
com poucos índios. Os cantadores se reuniram e começavam a organizar os brincantes no
fundo do salão, próximo ao altar das imagens dos santos e dos bois artefatos9.
Durante os ensaios que atravessam o mês de maio e o próprio ensaio redondo, os
brincantes o fazem sem as fardas. O fardamento se dá a partir do batizado do boi. Seu João Sá
Viana, um dos amos do boi, com seu apito, anunciava a hora de reunir o batalhão. Os baiantes
e vaqueiros começaram a se agrupar em roda, formando um semicírculo ao redor do salão, os
cazumbas pegavam seus sinos, distribuídos por Belisca e Caboclinho e tomavam o centro do
salão em fila. As índias firmavam suas posições enfileiradas na extremidade oposta dos
cantadores. Os batuqueiros mais velhos, horas antes, fizeram uma fogueira no quintal da sede
e colocaram os pandeirões próximos com seus couros direcionados para o fogo, para afiná-los.
No momento da tomada de posição, isto é, de se cantar a "reunida", primeira toada cantada
pelo amo para reunir o batalhão, os batuqueiros recolheram os instrumentos da fogueira e se
preparavam para fazer entoar os sons dos pandeirões. Eles se agrupavam no centro próximo
aos cantadores.
Quando seu João Sá Viana deu o primeiro apito e começou a cantar a "reunida", todos
já estavam a postos. O amo cantador canta a toada toda uma primeira vez sem o batuque dos
pandeiros, das matracas e sem nenhuma dança. Quando termina de cantar a toada ele ergue
sua maraca prateada e a chacoalha, dando o sinal para o batalhão agir. É a maraca do amo
e/ou do cantador encarregado no momento de cantar ,que convoca o batuque e a dança. "Pode-
se observar que o agitar do maracá e o apito do amo é que determina o início e o fim de uma
toada. O amo é o fazendeiro, o dono da festa "( MARTINS, 2015, p. 73-74) E foi isso que
aconteceu. Seu João Sá Viana cantou a reunida e sacudiu sua maraca, logo o grande salão do
Pindaré se preencheu com o ensurdecedor batuque dos pandeirões. Nesse momento os outros
cantadores do batalhão inteiro começaram a cantar fazendo o coro da toada, aos sons dos

9
designação para a armadura de boi.
41

pandeirões e das matracas, as índias e os índios começaram a executar seus passos saltitantes.
Quando o batalhão termina de cantar a toada, o amo e/ou cantador torna a cantá-la. A toada é
cantada em um revezamento entre amo e/ou cantador e o batalhão inteiro. O som dos
pandeirões rapidamente capturou o restante dos jovens que estavam do lado de fora, que logo
correram para apanhar algum pandeirão para tocar.
Seu João Sá Viana cantou, as toadas; Lá vai; Chegou; e Urrou do Boi de Pindaré, toada
composta por João Câncio, fundador do Pindaré, que se eternizou na voz do Coxinho, e tornou-
se hino do folclore maranhense. A partir daí, os cantadores começaram a se revezar para
cantarem suas belas toadas. A última toada, a "despedida" foi cantada por João Sá Viana
anunciando o fim do ensaio. Pude observar que alguns cazumbas, índias e batuqueiros já
haviam ido embora. Os mais velhos e alguns brincantes mais novos, geralmente, parentes
desses brincantes mais velhos, ficaram até o fim. Com o término do ensaio os brincantes foram
embora, Benedita e alguns brincantes da direção do boi ficaram para fechar a sede.
2.3 Batizado do boi
A saída dos cortejos não tem uma data específica para ocorrer, e cada grupo realiza em
datas que eles mesmos especificam. Como seu Bigode me relatou, antigamente os cortejos e
saídas para as brincadas só tinham início após batizado do boi, mas o mesmo não ocorre
atualmente. Como pude presenciar, houve cortejos no IMPEM e na igreja de Santo Antônio
em que o Boi de Pindaré realizou suas brincadas antes do batizado propriamente dito. O
batizado é uma obrigação realizada na sede do Boi. Esse ritual era a condição imanente para o
boi sair para brincar. É possível pensá-lo como um ritual de preparo e eficácia para o boi
começar a brincar fora da sede, fora de seu espaço sagrado.
Os brincantes dirigentes, no dia do batizado que se deu em vinte e três de junho, já se
encontravam na sede no começo da manhã, fazendo os preparativos para a cerimônia. Lá
preparavam as comidas para receberem os brincantes do bairro e os que vieram de outras
cidades. No cair da noite, os brincantes ja devidamente fardados confraternizavam, alguns
tomavam café e se preparavam para o ritual. Os cantadores conversavam e mais brincantes
iam chegando. Alguns amigos de Carolina Martins, minha amiga, historiadora e brincante do
boi, chegaram com ela e com seu Marido, Élio. O boi também contou com a presença no
batizado de alguns turistas do Rio de Janeiro. Esse fato é importante porque, segundo Benedita,
a presença de turistas e pessoas que não são brincantes é muito incomum. Mas ela havia
recebido um presságio de seu Zé Bussú, brincante afastado, versado nos mistérios da
encantaria, que no referido ano, o boi seria surpreendido com visitas inesperadas. Essas visitas
alegraram muito os brincantes e a Benedita, visto que, tal fato, mostra que o boi está se
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levantando, está atraindo as pessoas, mesmo que inesperadamente, as "entidades"e os santos


estão ajudando o boi a retomar sua força, sua reputação. Até mesmo minha aventura, meu
contato, meu interesse para com eles, sendo um jovem de um estado distante que ineditamente
se embrenhou pela brincadeira do Pindaré, foi compreendido pelos brincantes como um sinal
de que o boi está atraindo pessoas, firmando novas alianças e está se levantando.
Com o som dos apitos do amo e do diretor, seu Chico, os brincantes começaram a
tomar seus lugares, concentraram-se todos ao redor do altar, onde se localizavam os bois
artefatos. Haviam três bois artefatos, mas apenas um deles iria ser batizado e um outro ficaria
vigiando o Barracão enquanto o boi batizado saísse para brincar. O Terceiro Boi Artefato foi
encomendado por Benedita, visto que, ela queria despachar o mais velho dos artefatos, pois
segundo a própria Benedita, só podem haver dois artefatos de boi. Em uma sessão de consulta
em um terreiro, Benedita consultou a entidade dona do boi, seu Tapindaré para saber como
despachar o artefato de boi mais velho. A entidade lhe informou que era preciso quebrar o
artefato todo e despachá-lo no mar, para que ele retornasse para seu povo, "o povo do fundo".
Mas no momento do batizado, o Pindaré ainda contava com os três artefatos, porque Benedita
não havia conseguido ainda fazer o ritual de morte e despacho.
Mas o boi que viria a ser batizado não era o artefato novo, mas sim o mais velho, porque
os brincantes mais velhos e Benedita queriam que ele saísse para brincar um último São João.
Uma semana antes do batizado, como é feito tradicionalmente todo ano, o artefato de boi foi
levado para a Casa das Minas, em que, o guardião do famoso terreiro de Tambor de Mina, seu
Euzébio, realizou alguns procedimentos religiosos com ele. Acompanhei Benedita quando ela
levou o artefato para lá, mas não tive autorização para entrar na casa. Benedita diz que não
sabe exatamente o que ocorre, mas diz que são certos procedimentos de preparo do artefato
para o tão esperado batizado. O artefato fica na Casa das Minas até o dia do batismo. Os
brincantes dizem que essa relação que o Boi de Pindaré tem com Casa das Minas é devido ao
"fundamento" que o boi tem para com o lugar e com a religiosidade desde sua criação, desde
o tempo de João Câncio.
No São João que acompanhei o Pindaré, quando fomos levar o artefato de boi mais
velho para a Casa das Minas, o guardião perguntou a Benedita se o então artefato que ela havia
trazido era o novo, o que havia sido feito recentemente. Quando ela o informou que não, que
se tratava ainda do mais velho, por ainda não ter conseguido matá-lo, o guardião lhe alertou
severamente, dizendo que era para ela fazer o que deveria ser feito logo, que era para o artefato
novo sair naquele São João e que ela havia demorado muito para levar o então artefato para lá,
para passar pelo então procedimento de preparo. Pude observar que se tratava de técnicas muito
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importantes e que, para o guardião, a dimensão intensiva e ritualística que era referida não
admitia atrasos e contingências. Era coisa muito séria. Mas o guardião acolheu o artefato mais
antigo, entrou na casa e fechou as portas de maneira severa e violenta. Tudo havia sido, de
certa maneira, resolvido
Retomando a noite do batizado, enquanto os brincantes estavam envolta dos Bois
artefatos, um dos amos do boi, Sá Viana, começou a realizar certas rezas específicas em latim
durante vários minutos, que os brincantes chamam de "ladainha". Enquanto isso, alguns deles
começaram a sentir-se "irradiados", alguns tremiam, enquanto outros ajoelhavam e fechavam
os olhos. Depois que a reza acabou, um casal escolhido para ser padrinho do boi se aproximou
do altar e do boi a ser batizado, Sá viana então conduziu as mãos dos padrinhos para que estes
jogassem água benta e batessem com um ramo de folhas no Boi artefato. Essas batidas
consistiam na enunciação da santíssima trindade: "Em nome do Pai, do filho e do espírito
santo. Amém". Então o batizado estava realizado. Em seguida os brincantes e devotos que
estavam com velas nas mãos começaram a colocá-las reunidas próximo ao altar do artefato
batizado. Junto a esse movimento, as pessoas iam fazendo suas promessas. A partir desse
momento, seu João Sá Viana começou a entoar as toadas anunciando a brincadeira do boi.
Primeiro a "Reunida"; depois a "Lá Vai"; "Chegou"; e "Urrou". Os brincantes estavam todos
fardados e alegres com a nova aventura sagrada que se iniciava. Os cantadores, Bigode, Gegê,
Zé Poeira, Manoel e Chico Aroucha cantaram suas toadas e João Sá Viana finalizou com a
"Despedida". Seu Hermínio Castro, também amo do boi, não esteve presente porque mora em
Manaus e sua mulher estava com problemas de saúde. O mesmo só chegou em São Luís no
dia vinte e oito de junho para a madrugada do dia de São Pedro. Mestre Castro me disse que,
tradicionalmente, o boi deve ser batizado e brincar na sede antes de meia noite, pois, ainda
antes dessa hora ele deve sair para brincar fora. E foi isso que se deu. Quando a brincada no
barracão acabou, antes de meia-noite, eles lotaram os dois ônibus fretados e desapareceram no
horizonte da rua A 8, rua da sede no bairro de Fátima, cantando, batendo pandeirões e
matracas, rumo a algum lugar para brincar.
2.4 Obrigação - dia de São Pedro
Pensar a dimensão cosmopolítica no universo do bumba meu boi faz a necessidade de
refletir sobre a virada do dia vinte e oito de junho para vinte e nove, dia de São Pedro. Essa
madrugada é tida como central na temporada de brincadeira de bumba boi, em São Luís, visto
que, trata-se de uma noite de brincadas, cobrança de promessas e obrigações que os grupos de
boi fazem, e terminam com a grande procissão, ainda na madrugada/manhã do dia vinte e
nove, no bairro de da madre Deus. Essa procissão é feita por todos os grupos de bumba até a
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capela de São Pedro, em que os grupos fazem seus cortejos em homenagem ao Santo. Na
manhã do dia de São Pedro observa-se uma grande procissão de católicos e devotos
acompanhando a grande imagem do Santo sobre um barco carregada por fiéis. A imagem
destina-se a capela e lá se estabelece para que os fiéis e devotos prestem suas respectivas
homenagens, pagarem suas promessas e firmarem novas.
Quando presenciei o cortejo do Boi de Pindaré no dia de São Pedro, o grupo já tinham
saído da sede no dia anterior. Por volta das seis horas da noite, o Pindaré foi fazer suas
brincadas tão costumeiras durante o período de São João. Passavam na casa de pessoas
importantes ou ligadas ao boi para cobrarem promessas que algum devoto fez ao boi no ano
anterior. Geralmente nessas casas o devoto/anfitrião oferece comidas e bebidas aos brincantes
assim que o grupo termina de brincar em frente a sua casa. A noite toda fora preenchida com
esses afazeres.
Por volta das quatro da manhã o grupo chegou no bairro da Ponta D'areia, em que
ocorreu a obrigação realizada ao encantado, Menina da Ponta D'areia. os ônibus chegaram com
os brincantes, eles se dirigiram ao calçadão em frente a praia e os cantadores junto com os
batuqueiros entoavam toadas de toda ordem, umas mais ligadas ao encantado homenageado,
outras a história do Pindaré e sua ligação com a baixada. Não se assemelhava a uma brincada
realizada nos arraias. Eles pareciam apenas cantar e tocar para o encantado homenageado.
Outras pessoas que faziam parte dos índios e dos cazumbas não dançavam, apenas cantavam
ou tomavam banho no mar. Dentro de uma hora eles pararam de tocar, entraram nos ônibus
fretados e se dirigiram ao bairro da Madre Deus.
Passamos em frente a Capela de São Pedro e nos dirigimos a parte alta do bairro da
Madre Deus que fica imediatamente atrás da capela. O Pindaré saiu do ônibus, foram recebidos
por Benedita Aroucha e fizeram uma refeição se preparando para a saída. Cada brincante vestiu
sua farda e eles se colocaram em fila para sair desfilando no bairro. Na procissão eles se
organizam em filas horizontais de grupos, um atrás do outro, respeitando uma ordem que
organiza os brincantes segundo seus personagens. Essa ordem será tratada na sessão sobre a
morfologia social.
O cortejo demorou-se pelas longas vielas do bairro, em pequenas descidas para chegar
a capela de São Pedro. Durante o cortejo, O Pindaré encontrou no meio do caminho outros
grupos de Boi, gerando animosidade e conflitos com os outros brincantes. Seu Bigode,
apreensivo diante dos acontecimentos, começou a jogar cachaça na rua por onde o Boi
percorreria no objetivo de afastar a possibilidade de infortúnios. Outras pessoas estavam
apreensivas, porque era comum pessoas brigarem durante os cortejos devido ao acirramento
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dos ânimos, principalmente entre os integrantes mais jovens. Os mais velhos estavam ansiosos
com a situação e o clima no ambiente favorecia a tensão, o cheiro de cachaça, pólvora e som
alto pareciam estimular os humores. Quando os outros grupos passavam por perto, era comum
que gritos de guerra fossem entoados entre os integrantes mais jovens. Havia um sem número
de outros grupos desfilando pelo bairro em direção a capela. Outras pessoas pareciam passar
por "irradiações" e costumavam gritar ou passar a ter acesso de tremedeira. Os cazumbas, os
batuqueiros e índias já estavam num contexto em que já não se movimentavam com tanta
disciplina, haviam retirado parte de suas fardas, e alguns abandonando instrumentos, outros
cantavam e dançavam como que "irradiados". Buguelo que já estavam rolando no artefato de
Boi desde da noite anterior, já apresentava um cansaço e exaustão visível, mas ao mesmo
tempo manifestava comportamentos do tipo "irradiado" por tamanha intensidade que parecia
permear o ambiente.
Na esquina da rua que chega na capela se encontra a Casa das Minas. O Pindaré possui
um "fundamento" como dizem os brincantes, neste terreiro, o que o obriga a visitá-lo durante
a procissão. Sobre A Casa das Minas, trata-se do segundo terreiro de Tambor de Mina mais
antigo de São Luís. O "fundamento" se caracteriza como uma "obrigação" que neste caso é o
fato do Pindaré ir até a casa e lá cantar e tocar. O atual guardião da casa, seu Euzébio ficava
parado segurando um defumador enquanto buguelo dançava na porta de entrada. Enquanto
buguelo dançava em frente a porta o guardião se dirigiu até a entrada do cômodo em que o
rolador, no caso, Buguelo iria "baiar", ainda defumando o recinto. Buguelo adentrou correndo
pelo corredor escoltado por duas índias, em que uma delas era sua filha, chefe das fileiras de
índias. Nesse momento ele se pôs a dançar em frente a um altar repleto de santos. Haviam
algumas bandeirinhas penduradas no teto e as índias que acompanharam-no haviam se
prostrado diante do altar com cajados nas mão. Buguelo parecia irradiado “baiando” e
balançando a capoeira/armadura do boi com maestria e desenvoltura, embora visivelmente
rápido. Após algum tempo, abaixou-se e depositou a capoeira em frente ao altar, e se retirou
tremendo e suando, visivelmente "irradiado". O zelador da casa segurou-lhe pelos braços
enquanto ele voltava a si. Ajoelhou-se perante o altar, fez o sinal da cruz e ficou algum tempo
de cabeça baixa. Depois, se levantou ainda com as pernas bambas e se armou novamente com
a capoeira do boi, dançou ainda mais algum tempo, e finalmente saiu do cômodo e da casa das
minas em direção a rua acompanhado com a escolta das índias.
O Pindaré recebeu Buguelo e continuou a procissão em direção a Capela de São Pedro.
A caminhada era lenta, os passos eram acompanhados com os ritmos da matraca e do batuque
dos pandeirões. Chegando na capela localizada na parte mais alta do bairro da Madre Deus, o
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Pindaré se dirigiu a uma rampa que liga a parte alta a baixa, e lá se prontificou num largo, com
palco e equipamentos de som. Havia uma pequena organização na apresentação dos bois, que
compartilhavam os equipamentos para que pudessem cantar enquanto seu artefato de boi fosse
até o interior da Igreja. Buguelo foi novamente escoltado pelas índias, e se direcionou até a
entrada da capela, percorrendo a extensa escadaria, aparentemente num gesto de penitência e
devoção. Eram comuns que outros bois fizessem outros percursos em direção a capela que não
fosse pela escadaria.
Havia uma miríade de devotos e outros participantes segurando velas e cantando
ladainhas indiscerníveis que entravam na igreja e viam o bailado de buguelo em frente ao altar.
Como na Casa das Minas, bailou por algum tempo. Depois retirou o artefato, se ajoelhou
perante o altar, e rezou em silêncio. levantou-se posteriormente, e empunhou a armadura,
dançou ainda mais, e se dirigiu a saída e ao Pindaré que la embaixo o receberia.

2.5.0 A dimensão política

O tambor de crioula é de São Benedito


Bumba boi é de São João
E a Festa de Caixa é do Divino
O Tambor de Mina é de Nagô

Eu vou em todas elas


Só em carnaval que eu não vou
Eu não participo de festa que não tem santo protetor
(Toada de Mestre Raimundinho do boi União da Baixada)

A dimensão política do boi tornou-se visível para mim a partir dos relatos que obtive
dos brincantes, em que muitos deles apresentavam a sede como uma referência de espaço de
confraternização e demandas sociais. Sobre esse aspecto, pude constatar que a sede do Boi de
Pindaré é um espaço onde são travadas relações importantes dos habitantes do bairro. Me
chamaram a atenção também, as tensas relações que o boi de Pindaré tem com os editais de
seleção de grupos para apresentações no São João, com a política eleitoral e com a rivalidade
ou simpatia para com outros grupos de boi.
Os grupos de boi se financiam através de brincadas, por meio dos quais eles recebem
uma certa quantia em dinheiro, enviada através de editais da secretaria de cultura da prefeitura
e do Estado. A importância do boi e de sua existência atravessa a vida das pessoas. Seu Chico
me disse uma vez que a brincadeira do boi e o tambor de crioula são a sua vida, são tudo para
47

ele. Foi possível observar que para muitos, além do próprio Chico, o boi e a brincadeira são
tidos como fundamentais e até mesmo primordiais na vida dos que brincam e se constituíram
da brincadeira. Segundo os relatos de alguns brincantes mais velhos, eles aprenderam a brincar
boi quando criança, na região da baixada, assim como seus conterrâneos. Era a brincadeira que
proporciona as amizades, os amores, as festas, a diversão no interior. O boi lhes fez
desenvolver a arte de bater bem o pandeiro, ser um bom batuqueiro; de “saber dançar bonito”;
saber rolar embaixo do boi, compor e encadear as toadas no alto do boi, isto é e saber “matar
um boi”. As toadas, no caso do sotaque de baixada ou Pindaré, são formas criativas e poéticas,
as quais, os cantadores entoam e versam, cujo o conteúdo é muito heterogêneo. As toadas
podem versar, dentre muitos assuntos, sobre o interior, sobre trabalho, sobre a baixada, sobre
disputas, sobre comando e disciplina, sobre o passado e a religiosidade. A poesia das toadas
se atualizam conforme os brincantes e a própria brincadeira vão se deslocando para outras
regiões, como o caso do sotaque de baixada que veio do interior para São Luís, praticado pelas
pessoas negras que vieram trabalhar na capital do Estado. Com o mesmo rigor e
comprometimento, os brincantes do interior que vieram para São Luís, introduziram seus filhos
na brincadeira, e muitos seguem mantendo a tradição do bumba meu boi de baixada como seus
pais faziam e/ou fazem. Mas o conceito de tradição empregado aqui designa somente o que
eles entendem quando fazem a festa e a brincadeira da maneira particular como o Boi de
Pindaré sempre fez. Isso significa que quando os brincantes empregam o termo tradição se
referem ao jeito singular e específico com que o Pindaré realiza o seu brincar. Isso não significa
que o termo seja empregado para designar um conjunto imutável de componentes e elementos
que não poderiam deixar de fazer parte da brincadeira. Corresponde tão somente um modo e
uma maneira particular e musicalmente própria de cantar, dançar e tocar durante a brincadeira,
o que, às vezes, é sugerido como o próprio "sotaque" do Pindaré, trazendo a luz a semelhança
entre sotaque e tradição.
O comprometimento ou a aliança vital que as pessoas estabelecem com a brincadeira
do boi pode estar fundamentada em dimensões religiosas, como a da promessa e da obrigação.
Posso dizer que Benedita, Chico, Buguelo, Marli, Raiane, ambos da família Aroucha e Bigode,
Chica Preta e Bulão, filho de dona Chica, possuem um elo vital e religioso para com o boi, e
dependendo da pessoa, esse elo atravessa a linhagem, como o caso da família Aroucha. Essas
pessoas, em tempos de brincadeira, apresentam extremo comprometimento e determinação em
fazê-la. Conjuntamente com tamanho rigor, pude observar que alguns destes brincantes
manifestam estados “irradiados”, como eles próprios dizem. Esses estados poderíamos
entender como o encontro, que os brincantes efetuam, com forças religiosas dos santos
48

católicos, assim como, com a das entidades encantadas, que por sua vez, firmam e compõem
o Boi de Pindaré. A religiosidade e os cultos religiosos, tanto católicos, quanto do tambor de
mina e do tambor de cura, também são muito presentes e imprescindíveis na história da
brincadeira do boi e de São Luís. A brincadeira compõe incomensurável religiosidade de
ambas as tradições. Com efeito, brincar boi é agenciar forças e tendências que encadeiam a
folia, a diversão, a beleza, mas também a religiosidade, seriedade, o comprometimento, a
responsabilidade vital que guiam a vida das pessoas e seus destinos. A brincadeira é muito
importante na vida dos brincantes, ela figura um espaço de socialização como também uma
prática religiosa, os quais os praticantes, em sua maioria, se inseriram desde criança ou quando
jovens. Por isso, muitos políticos utilizam dessa dimensão do boi para usos eleitoreiros, pois
sabem que o boi é muito importante para as pessoas brincantes. O que significa, que muitos
deles ajudam ou auxiliam nos custos e nas despesas que os grupos possuem, isto é, financiam
grupos em troca de promoção e propaganda de sua imagem política nas toadas, e até mesmo
em troca de voto.
2.5.1 Tradição contra o espetáculo ( Pindaré contra o Estado)
O Boi de Pindaré é um caso à parte. A dona do Boi, Benedita Aroucha nega qualquer
ajuda de interesse de terceiros, seja por interesses políticos ou ajudas orientadas por
sentimentos de piedade ou dívida que outros bois tenham para com o Pindaré, muito embora,
receba o pagamento das brincadas realizadas no período Junino. Essa posição, se podemos
dizer, política se coloca diante de sua compreensão do festejo do boi. Enquanto outros grupos
realizam muitas brincadas e por conseguinte recebem muito financiamento, os bois
"tradicionais", termo que brincantes utilizam para se referir aos bois comprometidos com a
esfera ritualística, religiosa, histórica e dramática, são desfavorecidos. Mas a questão se torna
problemática de acordo com a burocracia dos editais de brincadas das secretarias de cultura da
prefeitura e do Estado10. Os editais são lançados visando a contratação de serviços artísticos
para compor a programação artística do São João. São elencadas as categorias/segmentos que
a secretaria visa contratar: Danças Regionais; Grupos Alternativos; Shows Musicais; Bumba
meu boi; Tambor de Crioula e Forró Pé de Serra. A quantidade de grupos que serão contratados
em cada categoria varia. Para além dessas categorias, há as subcategorias que são aplicadas às
manifestações artísticas tradicionais do Maranhão, como o Bumba meu boi e as Danças
Tradicionais. As subcategorias dividem-se em: A; B ou C. Os grupos de Bumba são

10
Segue o edital da secretaria de cultura para as festivdades de São João de 2018
http://www.sectur.ma.gov.br/wp-content/uploads/2018/03/Edital-S%C3%A3o-Jo%C3%A3o-de-Todos-
2018.pdf
49

classificados em uma dessas subcategorias segundo a apresentação de documentos como


impostos em dia e segundo sua história e reputação artística. O Boi de Pindaré é classificado
como A por ser um dos bois mais antigos e "tradicionais" do sotaque de baixada em São Luís.
Mas há na disputa desses editais o favoritismo dos bois maiores do sotaque de orquestra, cujo
os donos mantém relações políticas ou de “politicagem” para com o governo, como dizem os
integrantes do Pindaré. Assim muitos bois menores, mais humildes, muito embora,
"tradicionais", não conseguem passar pelo processo de triagem dos editais, como é o caso dos
bois do sotaque costa de mão, que por muito tempo foram ofuscados e negligenciados pelas
atividades do estado. Entretanto, em dois mil e dezoito a secretaria de cultura da prefeitura e
do estado, desenvolveram uma política para promover esse sotaque que vinha desaparecendo,
disponibilizando brincadas especialmente para os bois desse sotaque.
Mas os problemas não acabam. O Boi de Pindaré é classificado como categoria A,
assim como muitos outros grandes bois de orquestra, como o Boi de Axixá e o Boi de Nina
Rodrigues. Os brincantes do Boi de Pindaré defendem que os bois de mesma subcategoria
devem receber o mesmo número de brincadas, mas isso não ocorre. Os bois maiores do sotaque
de orquestra recebem as vezes o dobro ou mais de brincadas que outros bois menores de outros
sotaque, mas que estão na mesma subcategoria. Os brincantes do Pindaré dizem que isso
decorre da “politicagem”. Essa questão política que as secretarias de cultura da cidade e do
Estado travam com os grupos é problemática na medida em que, cada brincada nos arraiais, os
bois ganham uma soma que varia entre cinco mil à sete mil reais. Como pude observar, criar
um boi e mantê-lo é muito caro, pois se tem as fardas, os instrumentos, os artesãos que os
tramam, a sede, os alimentos, as bebidas, o transporte dos brincantes, impostos de luz, água e
esgoto. Todos esses elementos juntos constituem um valor alto, mesmo quando se tem que
fazer apenas a manutenção destes. Benedita Aroucha não aceita a ajuda de políticos ou pessoas
ligadas a burocracia. Ela sempre se recusa a estabelecer acordos com essas entidades. Os
brincantes se alegram em fazer as brincadas que ganham nos editais, as brincadas de cobrança
de promessa e as brincadas de obrigação, mas sempre se mantêm críticos e descontentes com
a injustiça decorrente da “politicagem” das secretarias de cultura da prefeitura e do estado, que
na perspectiva deles, trataria-se de acordos comumente pré-estabelecidos entre os grandes
grupos de boi do sotaque de orquestra e os órgãos de cultura da prefeitura e do estado.
Essa realidade sociopolítica acaba por influenciar o modo como o cortejo e as festas
são realizadas. Segundo os relatos dos brincantes do Boi de Pindaré e dos pesquisadores da
50

Casa de Nhozinho11, os bois de sotaque de orquestra ganham mais brincadas durante o São
João, pois esses favoritos do sotaque de orquestra, em sua maioria, estão menos
comprometidos com a dimensão ritualística, religiosa, mitológica da brincadeira do boi, eles
possuem uma estética de espetáculo, muito embora, há bois do sotaque de orquestra que se
orientam na tradição de seu sotaque e mantém o firmamento religioso. Mas para alguns
brincantes do Boi de Pindaré e outras pessoas que conversei, o sotaque de orquestra por
apresentar instrumentos de sopro e metal, ocultam o batuque e os instrumentos de percussão,
colocando-os como secundários, o que faz os brincantes mais velhos do Pindaré nem sequer
reconhecê-los como grupos de boi. Como me disse, seu Chico, uma vez que boi é batuque. Há
outro aspecto, ou mais uma curiosidade, muito destoante dos bois maiores e comerciais do
sotaque de orquestra, que é o financiamento de academias para que brincantes dançarinos
exibem corpos sarados e musculosos.
Os bois maiores do sotaque de orquestra, na medida que apresentam, uma estética de
espetáculo não possuem o reconhecimento dos brincantes mais velhos do Pindaré. A razão
para tal falta de reconhecimento se baseia em o sotaque de orquestra utilizar outros materiais,
não comuns e tradicionais que estão presentes em quase todos os outros sotaques, como
aqueles que apenas manifestam a arte do batuque em instrumentos de percussão variáveis, e
também materiais específicos na confecção das fardas, como as penas de ema. Logo, os bois
do sotaque de orquestra, para alguns brincantes do Pindaré não se enquadram na brincadeira
do boi. Segundo alguns pesquisadores que conversei, os boi maiores do sotaque de orquestra,
aos quais não estão inseridos os bois menores desse mesmo sotaque, apresentam uma estética
comercial, de espetáculo e convidativa aos turistas, patrocinadas pelo Estado. Nesse sentido
há uma dissonância entre a perspectiva dos brincantes do Pindaré que não consideram o
sotaque de orquestra como bumba-meu-boi em sua completude, e a perspectiva de alguns
pesquisadores da casa de nhozinho que apresentam críticas a forma comercial e
espetacularizada dos bois maiores, e não aos menores do sotaque de orquestra.
Apesar de ocuparem um papel central na brincadeira, as performances
cômicas - especialmente os autos tradicionais - estão perdendo importância, em face
das transformações impostas pela crescente comercialização do bumba meu boi como
espetáculo de massa e produto de consumo turístico.(GONÇALVES DE
CARVALHO, 2011, p. 88)

Para além dessa perspectiva, alguns desses bois "empresariais" nao apresentam traços
ritualísticos e religiosos, principalmente com a encantaria, que muitos bois possuem e
expressam. Os bois que apresentam em suas brincadas pessoas irradiadas, incorporações,

11
A Casa de Nhozinho é um museu localizado no centro histórico de São Luís,
51

bebidas e brincantes humildes, são alvos das mais nefastas formas de preconceito e racismo,
como me disse um taxista, evangélico, para acompanhar dois famosos bois do sotaque de
orquestra, o Boi de Morros e o boi de Nina Rodrigues, visto que os bois de outros sotaques
tem macumba e bebida. “Apesar da ampla aceitação que o bumba meu boi vem obtendo
atualmente em meio a diversas camadas da sociedade maranhense, ele foi, durante muito
tempo, criticado por grande parte das elites locais, tendo sido mesmo perseguido e proibido
pela polícia” (CARVALHO, 2011, p.87) Portanto, é possível compartilhar a indignação com
Seu Chico, que me disse muitas vezes o quanto é injusta a seleção de brincadas. Como já dito,
o Boi de Pindaré mantém contato profundo com a dimensão ritualística, ou das obrigações que
o festejo do boi está ligado, o que diferencia o modo como realizam as brincadas e o cortejo
durante a festa do São João, e consequentemente, o modo como se articulam com a política e
os editais de brincadeiras.
2.5.2 Militância, pertencimento e disputa
A dimensão política é tecida também no pertencimento, na militância, nas disputas que
os próprios brincantes do Pindaré expressam para com outros bois. Não é incomum, ao
conversar com um brincante do Pindaré, ouvir que o Pindaré é o boi do sotaque de baixada,
existente, mais velho, ouvir que ele é o pai de todos os outros bois, visto que muitos outros
bois antigos de baixada, com exceção do boi de Viana, de onde o pindaré saiu, vieram dele.
Os brincantes ainda dizem que o boi de Pindaré, assim como os outros bois do sotaque de
baixada, mesmo sendo classificados no mesmo sotaque, tem seu próprio sotaque. No caso do
Pindaré, os mais velhos relatam que a levada mais lenta e o “repinicado” dos pandeiros do
Pindaré são o sotaque legítimo e verdadeiro da baixada. Se firmam também no fato de o
sotaque de baixada ser conhecido também como sotaque de Pindaré, visto que o fundador do
Poi de Pindaré, João Câncio, veio do município de Pindaré Mirim, próximo a baixada
maranhense ocidental.
Os mais jovens, indios, indias e batuqueiros, durante as saídas para as brincadas, dentro
do onibus fretado para os levar aos arraiais, quando lá chegavam, conjuravam o estrondoso
grito de guerra: "É PINDARÉ! É PINDARÉ!" ; "EU TE PISO! EU TE PISO!". A disputa com
outros grupos de boi, em certa medida, é expressa na fala e no comportamento dos brincantes
do grupo. Os mais velhos são mais calmos, mas fazem questão de falar sobre o Pindaré como
o boi mais tradicional, mais antigo e com o batuque mais bonito. Afirmam também que os
outros grupos de boi, que consideram "contrários", sentem inveja do Pindaré, muito embora,
possa haver respeito e admiração entre os cantadores de bois rivais, visto que, em sua maioria,
os cantadores de boi mais velhos de São Luís se conhecem de longa data e reconhecem a
52

destreza e virtude do saber fazer e cantar boi de seu rival. Os mais jovens, por outro lado,
expressam seus afetos de pertencimento e sua torcida pelo Pindaré de maneira mais tensa. Eles
saem para as brincadas entoando toadas do Pindaré, gritos de guerra, e podem até mesmo
provocar outros grupos de boi. Essas atitudes que manifesta a intensa torcida e pertencimento
dos mais jovens podem até mesmo levar a conflitos letais com outros grupos, como um caso
de esfaqueamento que presenciei.
Sabemos que os grupos de boi podem estabelecer relações de disputa entre si. Isso é
evidente na relação entre "contrários", e sobre essas condições, as disputas podem se tornar
bem tensas e perigosas, principalmente entre os mais jovens. Mas essas disputas e conflitos
que os jovens travam com outros jovens de outros bois podem ser em razão de brincarem em
bois diferentes e rivais, em que tenha havido provocação de uma ou ambas partes; ou por
razões pessoais que podem se somar com o fato de serem brincantes de bois rivais. Mas não
podemos considerar que todos os demais grupos de bois do sotaque de baixada são rivais e
"contrários" do Boi de Pindaré. Muitos outros bois do sotaque de baixada possuem relações
amistosas com o Pindaré. Alguns dos brincantes que vem, praticamente todo o ano, do interior,
da baixada maranhense para brincar no Pindaré também brincam em outros bois de baixada,
que possuem boas relações com o Pindaré, como o Boi de seu Antoninho e o Boi do Oriente.
Esse campo de relações complexas entre os grupos de boi admite boas relações, em que os
brincantes de bois diferentes podem se ajudar e serem simpáticos uns com os outros, como
também, admite o conflito, em que os grupos e seus respectivos brincantes podem fazer guerra.
2.5.3 Aliança
Uma outra questão política que atravessa o Pindaré é das relações de promessa, troca
e reciprocidade que muito embora, promessa como troca, de imediato, possa evocar o domínio
da religiosidade e da economia, entendo, na dimensão que tratamos aqui, como política na
medida em que funda uma forma de relação ética na aliança entre agentes humanos e
inumanos. Essa relação baseia-se na dádiva que brincantes e devotos firmam com o boi. Muitos
brincantes e devotos no período junino fazem promessas para santos católicos, como São João,
mas também fazem promessas para o boi, para o artefato do boi. 12 Neste sentido a relação de
devoção para com o boi e para com o santos católicos se assemelham. Aparentemente se torna
indiscernível para quem os devotos estão oferecendo suas homenagens e promessas. o que nos
sugere que o artefato do boi possui uma agência "espiritual" semelhante àquele dos santos
católicos, pelos menos no tocante as dádivas e súplicas.

12
Artefato de boi é uma denominação para o corpo do boi, feito de madeira, o qual o miolo veste e rola embaixo.
53

As promessas que os devotos e brincantes fazem para o boi estabelecem uma relação
de troca/dádiva, que pressupõe a reciprocidade. As pessoas fazem seus pedidos ao boi, aos
santos católicos e as entidades encantadas, como superar alguma demanda, que, como pude
observar, variam bastante. Por exemplo: doenças, problemas familiares e problemas
financeiros. Mas os pedidos podem recorrer a conquista de algo. Por exemplo: conseguir
emprego. No caso do Boi de Pindaré as pessoas fazem suas promessas ao boi, geralmente na
noite do batizado do boi. Elas fazem seus pedidos e prometem algo em troca, se seus pedidos
forem atendidos. Elas podem prometer uma imagem nova de algum santo para o altar do boi,
uma vela de n-dias, um novo couro bordado para o boi. O elemento de troca pode variar, mas
sempre está dentro do campo religioso e social do bumba. Mas as pessoas podem pagar
promessa também chamando o boi para brincar em sua rua e oferecer comida e bebida aos
brincantes. Eles adoram esse modo de troca, inclusive, esse modo de dádiva, não
necessariamente está fundado numa promessa, pode ser estabelecido num simples acordo entre
os brincantes e alguma pessoa que, durante o período junino, queira que o boi brinque em sua
rua, em frente de sua casa.
A relação de troca e reciprocidade que os devotos e brincantes tem para com o Boi de
Pindaré pode ser compreendida como política porque pressupõe certas alianças que a pessoa
faz com o grupo e com a "espiritualidade", a agência intensiva que o boi expressa. Os que
fazem promessa são aqueles que possuem algum elo de comprometimento, de pertencimento,
de afinidade e de respeito para com o Pindaré. Nesse sentido, os que apresentam relações
dessa natureza para com o boi, desempenham uma responsabilidade vital para com o mesmo,
diferente, geralmente, da relação que possa vir a se estabelecer com outro boi. Essas relações
que os devotos e brincantes tem para com o Pindaré evoca afetos, comportamentos e condutas
muito particulares, que os brincantes dizem somente haver entre eles e as pessoas que sempre
fazem promessas ao boi. Fui informado que as pessoas que chamaram o Pindaré para brincar
em sua rua em dois mil e dezoito, comumente o chamam. Com efeito, penso que o Pindaré
tem suas alianças certas, seus amigos, sua turma, que estão ai para ajuda-lo, fortalecê-lo e para
brincar com ele.

2.5.4 Cismogênese na relação dos bumbas


Podemos, então, dizer que as relações políticas que se travam entre o Boi de Pindaré e
seus brincantes, na sede, se mantém num regime de comunidade, em que os agentes tentam se
ajudar e cuidar uns dos outros. Já a relação com o governo do estado e da cidade são, de certa
54

maneira, conflituosas, visto que, os programas e editais de cultura para o são joão não
contemplam de maneira justa as necessidades do Pindaré e outros bois de outros sotaques que
não os bois maiores do sotaque de orquestra. Podemos dizer também que as relações que o
Pindaré trava com outros grupos de boi podem ser simpáticas, indiferentes ou conflituosas. E
o regime de troca e reciprocidade com devotos e brincantes são harmônicas e
responsaveis.Com isto, pretendo refletir esse campo sociopolítico a luz do que Gregory
Bateson chamou de Cismogênese.
Bateson, ao analisar os contrastes etológicos do povo Iatmul, habitantes do curso médio
do rio Sepik em Nova Guiné, verifica que esses contrastes etologicos podem diferenciar-se em
razão de idade, gênero e parentesco. Esses contrastes etológicos, isto é, a diferenciação de
afetos, comportamentos e condutas, possuem ampla significação sociológica e psicológica, e
nesse sentido, o autor compreende esse processo como um processo de diferenciação, o qual
se refere como cismogênese. Esse conceito se torna interessante para nós na medida em que
nos permite refletir sobre as relações simpáticas e conflituosas que o Boi de Pindaré tem com
os entes do estado e outros grupos de boi, isto é, sua relação com o fora. Acredito que o
conceito de cismogênese nos proporciona uma chave reflexiva para pensar, especificamente,
as relações de disputa, conflito e de guerra que o boi apresenta. A questão da disputa se fez
expressiva para mim, porque é um tipo de relação muito presente no universo da brincadeira
de bumba boi, muito embora a simpatia, a afinidade e reciprocidade também compunham essas
relações. A disputa, as provocações se manifestam nas toadas, nos comportamentos, nas
atitudes e podem tomar proporções cada vez mais complicadas e violentas, até mesmo, na
cotidianidade, fora do período festivo. Isto significa que brincantes de um grupo podem evitar
se relacionar com brincantes de um grupo rival em seu dia a dia e falarem mal destes. É sobre
essa possibilidade de relação que intento a pensar com o auxílio da cismogênese. As relações
que podem conjurar atitudes, condutas, juízos e afetos de afinidade ou de indiferença, conflito
e guerra.
O conceito de cismogênese é esclarecido por Bateson como um processo de
diferenciação do ethos . O autor está preocupado com as variações de comportamento e de
conduta dos Iatmul. Mas podemos, certamente, tratar as relações de conflitos, disputas, de
simpatia e reciprocidade através das variações de comportamentos, de afetos e juízos no
campo sociopolítico que os grupos de boi estabelecem entre si. Em resumo, pretendo pensar a
dimensão política da disputa, do conflito, da simpatia e reciprocidade através da variação,
diferenciação de comportamentos, afetos e juízos. É certo que a conduta e o comportamento
dos integrantes do Boi de Pindaré para com o estado e para com outros grupos de boi tem
55

razões históricas, diacrônicas. Muito embora o conceito tenha sido empregado numa análise
sincrônica por Gregory Bateson, cismogênese, como diz o próprio autor, refere-se a “um
processo de diferenciação nas normas de comportamento individual, resultante da interação
cumulativa dos indivíduos.”(BATESON, 2008, p. 223), e com efeito, a acumulação no tempo
de certos comportamentos estabelece um campo que expressa uma função variante destes. Isto
é, a cismogênese.
Quando nossa disciplina é definida em termos das reações de um indivíduo
às reações de outros indivíduos, torna-se imediatamente evidente que precisamos
considerar as relações entre dois indivíduos como passível de alterar-se no tempo,
mesmo na ausência de perturbações externas. Temos não apenas de considerar as
reações de A ao comportamento de B, mas ir adiante e considerar como estas afetam
o comportamento posterior de B e o efeito disso sobre A(BATESON, 2008, p. 223).

Bateson considera duas possibilidades de diferenciação de comportamento, de conduta


e afetiva, isto é, dois modos de cismogênese. A cismogênese complementar e a cismogênese
simétrica:
Cismogênese complementar: agente A tem comportamento e conduta assertiva em
relação a B e B corresponde com submissão. Nesse sentido, se B responde a assertividade de
A com submissão, A tenderá ser cada vez mais assertivo em relação a B; e por sua vez, B
tenderá a ser mais submisso a A.
Cismogênese simétrica: agente A tem comportamento e conduta assertiva em relação
ao agente B e B corresponde com assertividade à A. Nesse sentido, ambos tenderão apresentar
cada vez mais assertividade um em relação ao outro até a relação entrar em colapso.
Ele diferenciou a cismogênese em dois tipos: complementar – na qual o
grupo divergente mantém doutrinas antagônicas àquelas do grupo original – e
simétrica – na qual os dois grupos resultantes têm a mesma doutrina, mas se
distinguem e competem entre si. (COELHO, 2009, p. 226)

Pretendo apontar esses dois modos de relação no que tange as relações políticas que o
Boi de Pindaré estabelece, como as relatadas na presente sessão. Entretanto não viso, nesse
encaminhamento, analisar as minúcias individuais de cada brincante, mas, sim compreender o
boi de pindaré como um corpo de brincantes que possuem comportamentos diferenciados
relativos a suas relações com a burocracia dos editais de cultura e com outros bois, rivais ou
não. Será necessário também destacar a diferenciação etológica entre os jovens, os mais velhos
e o parentesco.
Como observamos, a maioria dos grupos de boi do sotaque de baixada acabam sendo
desfavorecidos pelos editais de cultura da prefeitura e do estado, que favorecem os bois
maiores do sotaque de orquestra. Com efeito os bois menores de outros sotaques conseguem
poucas brincadas e ganham menos dinheiro para se manterem. Os brincantes mais velhos,
56

desde meados da primeira metade do ano, começam seus trabalhos para preparar a brincadeira,
e isso se refere ao reparo e a produção de novas fardas, dos instrumentos e da sede. Esses
brincantes mais velhos, geralmente, são da mesma família, como o caso da família Aroucha,
que é a diligência do boi. Mas podem haver outros brincantes que possuem elo parental
classificatório, como o compadrio ou por se conhecerem a muitos anos. No caso do Pindaré, e
nítido que a dona, Benedita Aroucha, passa noites sem descanso, durante o período de preparo
e o período junino. Eles investem o dinheiro que muita das vezes seria destinado às
necessidades de sua vida pessoal. Eles dão suas vidas ao boi. Logo podemos identificar um
alto investimento na brincadeira por parte dos brincantes e um descaso infeliz por parte do
estado. Mas os brincantes continuam fazendo parte da disputa de brincadas, visto que eles
precisam do dinheiro dos editais para manterem a brincadeira. Nesse sentido, esse cenário
sociopolítico me remete a clássica situação da classe trabalhadora no mundo capitalista, o que
nos faz pensar na “luta de classes”. A “luta de classes” seria uma cismogênese complementar,
visto que, os trabalhadores são explorados pelo burguês dono dos meios de produção. Logo,
quanto mais o burguês e o mercado exploram a classe trabalhadora, menos dinheiro a classe
trabalhadora recebe, e portanto necessita vender sua mão de obra as condições mais nefastas
de trabalho para sobreviver. Submissão. Em resumo, quanto mais o burguês age de forma a
explorar a classe trabalhadora, mais ela reage com submissão, até que a dinâmica se rearrange.
O Estado contrata os boi menores e lhes dão três, quatro, cinco brincadas, enquanto para os
bois maiores de orquestra ele disponibiliza quatro vezes mais brincadas. O número de
brincadas que os bois menores recebem não lhes fornece o rendimento em dinheiro para
financiar e sustentar a brincadeira, logo investem na brincadeira o dinheiro de seus bolsos e
pegam as poucas brincadas que o estado lhes dispõem. Com efeito, podemos dizer que quanto
mais o estado é negligente e concede aos grupos menores um número restrito de brincadas,
mais os grupos menores reagem com submissão e de maneira descontentes pegam suas poucas
brincadas. Eles aceitam sua situação, muito embora indignados, pois precisam do dinheiro. Os
brincantes mais velhos demonstram grande insatisfação e reprovação para com a política do
estado, enquanto a maioria dos jovens parecem indiferentes quanto a essa relação, com
excessão dos jovens integrantes da família Aroucha ou os jovens cujo os pais brincam ou
brincaram no Pindaré por muito tempo.
A relação entre os grupos de boi, por outro lado, pode se estabelecer de outra maneira.
Como já dito, os grupos podem ter relações de afinidade, como podem ter relações
conflituosas, é o caso dos “contrários”. As relações de afinidade podem se dar em razão de os
brincantes, principalmente os mais velhos, terem boas relações com brincantes de outro boi.
57

Essa relação de afinidade, geralmente, é em função de os brincantes mais velhos de bois


diferentes já terem brincado no mesmo boi no passado, como é o caso do Pindaré, o ancestral
de muitos outros bois de baixada em São Luís. Muitos brincantes de outros bois brincaram no
Pindaré no passado. Muitos deles se consideram da mesma turma e adoram se reunir, como o
caso do Boi de Pindaré e o Boi União da Baixada. Vez ou outra, em algumas apresentações do
Pindaré, o amo do União da Baixada É convidado para cantar. A dissidência de brincantes do
Pindaré se deu, em parte, de forma harmoniosa e sem conflitos, como os brincantes que
fundaram o boi da União da Baixada, o Boi do Oriente e o Boi de seu Antoninho, ex-miolo do
boi de Pindaré. Mas houveram também aqueles dissidentes que romperam de forma nao
tranquila com o Pindaré, e até mesmo, levaram grande parte dos materiais e artefatos do
Pindaré, o que causou, em certo modo, a decadência do batalhão. Não pretendo revelar o boi
responsável por essas ações, mas digo que esse grupo de boi, tem relações com o Pindaré
marcada por mágoas e insatisfações. Esse mesmo boi tornou-se um “contrário”.
Torna-se pertinente aqui esclarecer que, em minhas observações, a disputa e a relação
entre “contrários” se estabelece entre bois do mesmo sotaque. Desconheço alguma ocasião em
que bois de sotaques diferentes travaram relações de disputa e conflito, a não ser em relação a
conquista de editais de brincadas, o que gera grande descontentamento e insatisfação entre os
grupos de sotaques que não sejam, como observamos, do sotaque de orquestra. Mas as relações
de disputas atravessam a dinâmica do campo social e histórico da brincadeira. Não encontrei
fontes que apontem os primeiros sinais de conflitos e disputas entre os brincantes, mas sabe-
se que a disputa é uma dimensão histórica no universo do bumba. Durante o século XX tiveram
concursos de grupos de boi, de cantadores e de toadas.
O período compreendido de 1950 a 1970 revela um contexto em que o
Bumba-meu-boi ganha projeção no meio sociocultural maranhense, demarcando o
início de um processo de valorização dos Bois por meio de iniciativas como a
realização dos concursos, a principal marca dessa época. (DOSSIÊ DE REGISTRO
COMO PATRIMÔNIO CULTURAL DO BRASIL, 2001, p. 45)

Os bois provocam seus rivais em suas toadas, desqualificando-os, zombando de seu


cordão. Mas como já dito, a disputa pode tomar proporções de conflito mortal. Essa observação
me faz lembrar do relato de Carolina Martins, Historiadora, pesquisadora e brincante do
Pindaré, em que me informou que os grupos de boi no início do século XIX, quando eram
proibidos de brincar no centro de São Luís e ficam restringidos a brincar da região do bairro
do João Paulo13 em diante, os integrantes escondiam armas, como facas e navalhas, dentro do
artefato do boi para se enfrentarem na avenida. Nesse sentido, podemos constatar que a

13
Ver DOSSIÊ DE REGISTRO COMO PATRIMÔNIO CULTURAL DO BRASIL, 2001.
58

dimensão da disputa e do conflito atravessa a história da brincadeira do boi, ela é orientada


pelo sentimento de orgulho e pertencimento de brincantes de um grupo, que por razões
históricas ou/e de provocações, por parte de seus rivais, pode se intensificar e se agravar.
O Governo prohibira os fógos e destacára forças para que os bandos
tradicionaes do Bumba-meu-boi não passassem do areal do João Paulo. Apezar dessas
ordens rigorosas, na noite de 23 de Junho [de1823], armados de perigosos busca-pés
de folhas de Flandres e de carretilhas esfusiantes, grupos de rapazes, inimigos ferozes
dos puças, affrontaram a soldadesca até o Largo do Carmo, onde dançaram e cantaram
versalhadas insultuosas contra os portuguezes, atravez de um verdadeiro combate de
pedras, pranchadas e tiros de toda a especie. A casa de Francisco Coelho de Rezende,
recém-construída, ficou muito damnificada e com as portas arrombadas, sendo
atiradas á rua numerosa e finas mercadorias.(Assunção, 2003, apud DOSSIÊ DE
REGISTRO COMO PATRIMÔNIO CULTURAL DO BRASIL, 2001, p. 35)

E sobre esse aspecto que podemos pensar a cismogênese, mas a cismogênese do tipo
simétrica. Os bois que agem com simpatia, afinidade e boa reciprocidade para com outro, este
outro reage da mesma forma. E se um boi age com provocações, bazófia, zombaria e enuncia
a guerra para com um outro, este outro reagirá da mesma forma, mas talvez, mais intensamente.
Os mais velhos tendem a se bastar nas toadas e poesias quando vão provocar seus “contrários”,
os mais jovens, inclusive os jovens da família Aroucha, por outro lado, podem embarcar em
conflitos mortais, como combates corpo a corpo.
Na política. No presente estado perturbado e instável da política na Europa,
há duas cosmogêneses que se destacam visivelmente: a) cismogênese simétrica nas
rivalidades internacionais; b) cismogênese complementar da “luta de classes”. Aqui,
outra vez, como nos demais contextos em que discutimos a cismogênese, e evidente a
progressiva evolução do comportamento no sentido de diferenciação e oposição
mútuas cada vez maiores, e nossos políticos parecem tão incapazes de lidar com o
processo quanto o e o esquizóide de ajustar se a realidade. (BATESON, 2008, p. 231)

Podemos resumir que a dimensão política explorada na presente sessão designa o


comprometimento, o pertencimento que os brincantes têm para com o grupo, o cuidado que
eles têm uns com os outros e com a comunidade. Seria preciso também dizer que esse
comprometimento pode ser compreendido como uma militância que visa conservar a
"tradição" do Pindaré, resistir às manobras espetacularizantes do estado e triunfar sobre grupos
de bois rivais. Com efeito essa militância, se podemos dizer assim, pode estabelecer relações
múltiplas que fazem variar os juízos, afetos e comportamentos para com o estado, a prefeitura
e sua burocracia de editais de apresentações e para com outros grupos de boi. Concluímos que
o conceito de cismogênese nos capacitou para organizar e pensar os tipos de relações, ações e
reações que os grupos de boi, em especial, o Pindaré tem com o estado e com outros grupos
de bumba.
2.5.5 Cosmopolítica no Boi de Pindaré
59

Mas de outro modo, gostaria de pensar esse campo sociopolítico, que tem, nitidamente
traçado, relações de poder, de afinidade, de reciprocidade e de conflito, a partir de
desdobramentos que compreendo como cosmopolíticos. E já de imediato, respondo a questão
acerca do Pindaré praticar ou não a cosmopolítica, levantada no capítulo anterior. Sim, o Boi
de Pindaré é praticante da cosmopolítica.
Como vimos os grupos e as sedes exercem uma função sociológica e comunitária. Em
muitos relatos dos dirigentes do Pindaré, dizem que o boi é muito importante para mudar o
caminho e o destino dos mais jovens, que geralmente, estão a mercê de relações de toda a sorte,
inclusive, as mortais. Nesse sentido o boi opera ensinamentos de técnicas, é constituído e
constitui praticantes corporais que se colocam a serviço da tradição e da religiosidade. A
brincadeira do boi efetua agenciamentos na vida em que são traçadas novas linhas, novos
horizontes e oportunidades para muitos jovens, inclusive o boi figura outro modo de família,
isto é, uma grande comunidade. Lá os mais jovens escapam das más relações, aprendem
diferentes técnicas e aprendem a cuidar de sua vida religiosa. A religiosidade é muito
importante na vida dos brincantes. Muitos deles possuem relações com a encantaria, muito
embora, dizem ser católicos. O boi é uma brincadeira que opera agenciamentos e relações
imanentes do tipo Afroindígena. Os brincantes se irradiam com a força de são joão, mas
também recebem intensidades caboclas e podem ver os espíritos de índios dançarem junto ao
cordão do boi.
Podemos observar o desdobramento da cosmopolítica nas relações entre os grupos de
boi, na medida em que travam suas alianças e fazem a guerra. Sim, cosmopolítica é aliança, é
guerra, quando pensamos todo um preparo, todo um "cuidar", e uma ética para firmar relações
prudentes e lançar-se num campo de cooperação e disputas entre multiplicidades, que carrega
virtualmente seu risco. A brincadeira do boi, tradicionalmente, expressa a dimensão da aliança,
visto que, os grupos são formados por pessoas, corpos versados em uma certa arte ou ciência
do bumba que se juntam para brincar, criam novos grupos, formam um batalhão, resistem
juntas à força etnocida do Estado. Mas esse estado, esse território, na medida em que admite
alianças cosmopolíticas, também estabelece seus conflitos, a disputa, a rivalidade dos grupos
de boi que carregam consigo o risco da guerra como morte, como abolição. O Boi de Pindaré
também tem suas alianças com forças e intensidades não humanas. Seu Tapindaré, o índio de
vestes e adereços branco e vermelho, a entidade dona do boi, é, eu diria, a aliança
cosmopolítica mais importante do Pindaré. Ele guarda, protege e guia o boi. O grande índio
acompanha o Pindaré desde o começo de sua história e se manifesta, quando necessário, para
os brincantes, como quando designou a Benedita o procedimento ritual para matar o artefato
60

de boi mais velho. A dimensão da promessa e da dádiva, implica, se podemos compreender,


por esse lado, uma forma de composição necessária entre os humanos e as intensidades
variadas, mesmo sendo uma espécie de negociação. Tratar-se-ia de agenciamentos que operam
a abertura dos cosmos para que os entes e agentes de natureza distinta possam se compor.
Alianças que devotos, brincantes e fiéis fazem com entidades não humanas, as homenageiam,
as louvam para que elas os abençoem, os protejam e abram seus caminhos. A relação entre
entes heterogêneos está presente em todo campo cosmopolítico do Bumba Boi de Pindaré. São
praticantes que operam o culto religioso de maneira imanente. Santos católicos e caboclos
povoam e sustentam o Pindaré a partir de uma cooperação potente e propriá entre eles, fora da
miríade hierárquica e do sincretismo clássico e transcendente. Os praticantes são católicos,
mas frequentam tendas e terreiros de Cura. Mas sobre tais alianças, a palavra que me perturba
e me força a dizê-la é a palavra "necessária". Em minhas observações, penso que as alianças
cosmopolíticas que tratamos nesta sessão são necessárias para as pessoas brincantes. Soube de
pessoas que ao saírem da brincadeira e negligenciarem sua vida religiosa, começaram a
enfrentar dificuldades desastrosas, pessoas além de Benedita, que foram perseguidas e
cobradas em sonho por entidades encantadas. Como se a vida só fosse possível se mantida a
aliança com o Pindaré.
Há mais um aspecto que podemos compreender como cosmopolítico que vejo a
necessidade de pensar, talvez o aspecto mais concreto do conceito cunhado por Stengers. "eu
preferiria que não", dizia Bartleby. Benedita sempre nega, sempre diz não a ajuda de políticos
e outros grupos de boi que não confia. Ela é, em si, um ato cosmopolítico. Ela manifesta
inacreditável determinação em fazer o Boi de Pindaré se levantar. Mas ela sabe que ele não se
levantará sozinho, porque ele tem sua turma, suas alianças humanas e não humanas. Ele é
heterogêneo e atravessado por multiplicidades intensivas. Ela confia em seus aliados, sonha
com eles, com índios e caboclos. Vez em quando, recebe um presságio. Ao negar a ajuda de
certas entidades humanas, eleitoreiras e empresariais, o que de certa maneira traria fama,
dinheiro e prestígio ao Pindaré, ela se orgulha ao mesmo tempo em que se perturba. Porque
ela sabe que não é esse o caminho. Pois se orienta pela assembleia cósmica composta pelos
aliados do Pindaré que ora tomam forma em seus sonhos. A assembleia delibera que não. Ela
sente que tem algo mais profundo, algo mais importante, como diria Stengers. Ela não
sucumbe às soluções simples. "Para Stengers, essa insistência dos que não foram convidados
para participar das assembleias modernas é eminentemente um ato de resistência, algo que
exige desaceleração dos nossos modos de pensar e agir no mundo." (SZTUTMAN, 2018, p.
340) Benedita efetua interstícios, ela espera, sente outro tempo, pensa com seus aliados e sabe
61

contra quem e quando deve impor limites. Ela reconhece com amor, alegria e lágrimas quando
triunfa.
O levantar do pindaré, diferente do que achava no começo de meu trabalho de campo,
hoje, creio que seja um processo cosmopolítico porque é um ato que se atualizou na vida e na
história do grupo fazendo a necessidade dessa retomada, desse reativar. É, antes, uma potência
que criou uma nova postura nos praticantes que abriu o cosmo do Pindaré, através da
militância de seus integrantes, a retomada, não somente, de alianças intensivas rompidas no
passado, mas a novos encontros e firmamentos que designam um lançar-se a um futuro
diferente desse mesmo passado decaído. O boi tem seus praticantes concretos, pessoas que dão
seu sangue todo ano para erguer o "galheiro14" do Pindaré. Seu levantar corresponde a outro
tempo, não se sabe quando, mas os brincantes sentem a força do boi aumentando a cada ano.
Dona Chica diz que os índios estão retornando aos poucos para o barracão. Talvez o levantar
não designe um momento em que o boi terá retomado completamente sua força e tudo terá
chegado ao fim. Talvez, o levantar seja esse entre, essa travessia, esse campo limite. Um ataque
cosmopolítico da máquina de guerra que consiste em investir força, desejo e vida numa arena
difícil, num campo de problematização entre forças humanas e sagradas , em que os termos, o
tempo e a língua do debate sejam heterogêneos. Com efeito, podemos brevemente
compreender esse processo como processo cosmopolítico porque é uma retomada das alianças
entre humanos e não humanos, que acionaram o cosmo do Pindaré para povoá-lo novamente.
Para juntos embarcarem nessa aventura rumo a uma destinação, a uma experiência chamada
"levantar do Boi de Pindaré".
Ao Corpo sem Órgãos não se chega, não se pode chegar , nunca se acaba de
chegar a ele, é um limite. Diz-se: que é isto - o CsO - mas já se está sobre ele -
arrastando-se como um verme, tateando como um cego ou correndo como um louco,
viajante do deserto e nômade da estepe. É sobre ele que dormimos, velamos, que
lutamos, lutamos e somos vencidos, que procuramos nosso lugar, que descobrimos
nossas felicidades inauditas e nossas quedas fabulosas, que penetramos e somos
penetrados, que amamos. (DELEUZE E GUATTARI, 2012a, p. 12)

2.6 Técnicas do corpo e a constituição do brincante


Sou índio guerreiro, valente e defensor
Na minha aldeia sou cacique
Onde mostro me valor
Bato no peito e digo
Sou Pindaré, sou sim senhor

Eu sou, eu sou, eu sou, eu sou


Pindaré vai dar um show

14
Conceito nativo que se refere ao boi.
62

Eu sou, eu sou, eu sou, eu sou


Pena de ema balançou
(Toada de João Sá Viana)

A sessão anterior se propôs pensar a respeito das relações de disputa, afinidade e


conflito que o Boi de Pindaré e seus brincantes tem para com o Estado, a prefeitura, sua
burocracia e para com outros grupos de boi. Essas relações fazem manifestar nos brincantes
sentimentos, comportamentos e juízos que imprescindivelmente fazem jus ao corpo e a pessoa
brincante. Essa questão faz a necessidade de refletir sobre a constituição da pessoa brincante.
Para podermos nos aproximar humildemente do que seria a constituição de um
brincante, proponho refletir sobre o que os brincantes mais velhos, os quais tive mais contato,
me relataram sobre quando começaram a brincar bumba boi. É certo que não tenho nenhuma
intenção de reduzir, formular ou definir o que seria o estatuto de brincante e sua constituição,
mas ao contrário, pretendo pensar sobre o que os mais velhos me contaram sobre suas histórias
como brincantes e articular com as observações que pude ter dos grupos de bumba durante o
São João de dois mil e dezoito.
Os brincantes mais velhos do Pindaré, me disseram que brincavam boi, alguns, desde
pequenos e outros já na mocidade. Eles começaram a brincar na região da baixada maranhense.
Mestre Hermínio Castro, amo do Pindaré, me relatou em entrevista que, quando criança,
brincou em um “boizinho” só de crianças. Ele diz: “na idade de dez anos eu já tangia boiada”.
Aprendeu a batucar e a cantar. Desde pequeno, Hermínio Castro, brinca bumba boi e foi
iniciado junto com outras crianças na brincadeira. Dizia que queria brincar como os adultos,
que faziam uma brincadeira de boi muito bonita e divertida. O boi segundo Hermínio Castro,
é uma brincadeira que se aprende de tudo, a cantar, a batucar, a dançar, é o lugar onde se
firmam as amizades, as paixões e também a reputação. O mesmo me disse que quando se
começa a brincar boi desde criança, quando a pessoa se forma no boi, o boi torna-se uma
dimensão muito importante na vida da pessoa e é por isso que a maioria das pessoas que
brincavam boi na baixada, quando se mudaram para São Luís, fundaram um novo boi na capital
ou procuraram algum grupo para poderem continuar brincando. Hermínio Castro também
relatou que a brincadeira é muito religiosa e muitos brincantes possuem relações com a
religiosidade católica e com os cultos de encantaria, mas o boi é uma grande festa, uma grande
brincadeira que contempla ambas as dimensões, isto é, a dimensão da festa, da folia, mas
também da religiosidade. Na baixada os brincantes aprendiam a brincar boi da forma que os
mais velhos ensinavam a tradição do bumba. Mas brincar bumba boi envolve aprendizado,
envolve técnicas que o aspirante a brincante desenvolve e é desenvolvido por elas.
63

2.6.1 Brincar de cazumba


No boi de pindaré pude observar algumas crianças que estavam a sair de cazumbá,
personagem mascarado misterioso das brincadeiras de bumba boi do sotaque de baixada.
Percebi que eles possuem um bailado próprio. Para sair de cazumba, seu Chico, que já foi
cazumba do Pindaré, relata que é preciso balançar a bunda muito bem, visto que, o cazumba,
por baixo de sua farda carrega um cofo15 que aumenta seu quadril. Mas esse balançar precisa
acompanhar o batuque. O cazumba carrega em uma de suas mãos um sino ou chocalho, a qual,
não pára de balançar. O cazumba dança em fila quando se trata de um cortejo para iniciar o
cordão, e em roda quando o cordão está formado, muito embora, ele, necessariamente, saia
dessas formações em alguns momentos. Mas o mais importante, o cazumba ele precisa ser
travesso, visto que, ele “comete ações que são proibidas por outros personagens, viola algumas
regras, ele é considerado um transgressor” (MANHÃES, 2008, p. 2) Para ser cazumba é
preciso aprender o remelexo do quadril e saber muito bem o limite da travessura. Todas essas
técnicas as pessoas podem aprender na brincadeira. Nesse contexto, as crianças ,no final de
uma brincada, tiraram suas fardas de cazumba, pegaram ,cada uma, um pandeirão e começaram
a batucar. Os jovens batuqueiros começaram a ficar impacientes, porque o movimento que as
crianças estavam a fazer com as mãos estava certo, mas a batida que elas faziam na borda/aro
do pandeirão estava muito forte o que fazia o aro e o couro vibrar demais, o que gerava um
descompasso no batuque. Alguns batuqueiros começaram a corrigir as crianças.
2.6.2 O batuque dos pandeirões
O batuque consiste em três modos que são efetuados em dois tipos de pandeiro: O
pandeiro marcação, maior pandeiro, o qual, se faz o batuque de marcação; o pandeiro
“repinique”, pandeiro menor, o qual, se faz o batuque do repinique e o batuque merengue.
Podemos observar que para batucar é preciso praticar, como dizem os brincantes, tem que
sentir o instrumento, até o ponto em que você já saiba exatamente a parte da mão que bate no
pandeiro com a variação de força certa para fazer o verdadeiro batuque “repinicado” do
Pindaré. Mas os batuqueiros expressam outra particularidade do corpo. No sotaque de baixada,
os batuqueiros se reúnem em roda, seguram o aro do pandeiro em posição vertical na
extremidade superior. Os pandeiros ficam suspensos alguns centímetros do chão pela mão do
batuqueiro. Os batuqueiros em roda se curvam e começam a tocar. Diferentemente, o sotaque

15
Tipo de sexto para carregar pesca.
64

da ilha, que também usa pandeirões, os batuqueiros não se reúnem em roda, eles ficam
dispersos na multidão, ou melhor, por se tratar de uma multidão de batuqueiros, apresentam
uma formação imprecisa. Eles erguem seus pandeirões para o alto e os golpeiam ali mesmo.
Dir-se-ia que o sotaque de baixada se toca em baixo e o sotaque da ilha, em cima, entretanto,
alguns brincantes me disseram que isso não é uma regra. O sotaque de baixada possui a
tradição de tocar em baixo, mas nada impede que o batuqueiro erga seu pandeiro e toque em
cima.

2.6.3 O tambor onça


O tambor onça é outro elemento percussivo fundamental no batuque. Como uma cuíca
grande, o tocador, no compasso dos pandeirões, com um pano molhado, faz precisas puxadas
e deslizes em uma vara que fica dentro do tambor onça e fica ligada ao couro. O pano molhado
faz a vara vibrar e consequentemente o couro também vibra dando origem a um som muito
semelhante a de um mugido de boi. Os brincantes dizem que é o tambor onça que encorpa e
dá a liga entre os pandeirões e as matracas. Os tocadores ficam juntos com os batuqueiros
durante o cortejo e o cordão.
2.6.4 As matracas
Tocar matraca é, eu diria, a técnica mais básica contagiante na brincadeira do boi.
Matraca é um instrumento que consiste pares pedaços de madeira retangular de todo o
tamanho, em que, o brincante bate uma na outra. Quase todos os brincantes tocam matraca. A
maioria dos baiantes, enquanto dançam, tocam matraca. Os brincantes que vão aos arraiais,
mas não integram nenhum grupo de boi, levam suas matracas e as tocam. Tocar matraca, no
compasso do batuque é uma das técnicas fundamentais e que se alastra pelo povo brincante de
São Luís. O toque varia entre os sotaques, e no sotaque de baixada, consiste em um tempo
mais devagar e cadenciado do que o sotaque da ilha, que é mais rápido e intenso.
2.6.5 Brincar de índia e de índio
As índias e os índios designam os jovens com muita destreza para a dança. Os
adolescentes e os jovens que brincam de índio e índia, aprendem os passos no boi, que consiste
em certo bailado, às vezes, saltitante, às vezes rasteiro, mas bem marcado ao compasso do
batuque. Os indios e indias, segundo minha observação, efetuam o mesmo passo, mas a postura
dos índios é diferente. As índias mexem os ombros e os braços conforme os passos e os
movimentos do quadril. Os índios mantêm a coluna muito ereta e o peito cheio, estufado e um
dos braços rígido, em que um deles carrega um cetro, cajado ou pequeno mastro. Faz parecer,
as vezes, que da cintura para cima estão firmes, enquanto da cintura para baixo os quadris e
65

as pernas fazem o formidável movimento da dança. Tanto as índias quanto os índios têm a
percepção do encadeamento dos passos, porque eles mudam. Sou desprovido das ferramentas
teóricas sobre dança para descrever os passos, visto que, para mim, os passos e suas variações
são muito complexos. No momento da variação, todos os índios e índias acompanham a
mudança do passo. O índios e as índias, assim como os cazumbas, dançam em fila quando vão
entrar para o cortejo, dançam em roda, quando o cordão do cortejo está feito, e dançam em
fileiras no caso de procissão.
2.6.6 Brincar no baiante e no vaqueiro
Os baiantes e vaqueiros geralmente fazem o passo básico de todo brincante: um, dois,
três, quatro - para a esquerda e um, dois, três, quatro - para direita, sendo que no último passo
em cada direção, o brincante faz um movimento de semi rotação com seu corpo na direção
oposta a direção que veio. Mas podemos dizer que esse passo se faz em meia lua. Mas há outra
dança. Acontece quando o baiante articula com o passo básico um remelexo com o quadril, os
ombros, os braços e a cabeça, a cabeça que carrega o exuberante chapéu de baiante. Além do
mais, o baiante, às vezes, dança com o miolo de boi, em que ele pode erguer seu braço em
direção a cabeça do miolo do boi, como se estivesse "tocando" ou Pastoreando o boi. Assim
como os indios e indias, os baiantes e os vaqueiros entram no cordão em fila e selam o cordão
com uma roda de baiantes e vaqueiros que fecha as rodas dos outros personagens. Dançam em
fileiras como no caso da formação da procissão Esse aspecto será desenvolvido na reflexão
sobre a morfologia social da brincadeira.
2.6.7 Brincar de pai Francisco e de mãe Catirina
Pai Francisco, assim como os cazumbas, representa uma das figuras mais travessas.
Ele em todo o cortejo e no cordão efetua movimentos que poderíamos chamar, assim como os
brincantes pensam, de ridículo, travesso, doido. Com seu caminhar capenga carregando sua
espingarda em uma mão e a outra arrastando mãe catirina, ele os faz com tamanha fanfarrice
que provoca o riso. Como seu Chico me disse, ele é um palhaço. para brincar na persona de
pai Francisco, é preciso saber ser palhaço. Esse personagem usa uma máscara, o próprio Chico
me disse que pai Francisco pode ser um cazumba, assim como em muitos bois do interior que
ele conheceu e brincou junto. Mãe Catirina, também apresenta expressões corporais de bazófia
e fanfarronice. Ela segue acompanhando de braços dados com pai Francisco com um sorriso
grosseiro, idiota e gozado. Geralmente é um homem que brinca de mãe Catirina. no tocante a
expressão corporal, a diferença gritante do casal, pai Francisco e mãe Catirina, a meu ver, é
que pai Francisco apresenta um corpo corcunda com um andar capenga, enquanto mãe Catirina
apresenta uma coluna tão ereta que chega a envergar para trás, devido sua grande pança que
66

simboliza sua gravidez. O casal brinca junto em fila e circulando, adentrando, transgredindo
muitas vezes a morfologia do cordão.
2.6.8 Brincar na burrinha
A burrinha é brincada por uma criança. ela é, assim como o artefato do boi, um artefato, uma
armadura, a qual, a criança veste-se com ela. O movimento que o pequeno brincante faz
consiste em pequenos passos galopantes e um giro em semi-rotação com a armadura, para
esquerda e para a direita. O menino que brincou de burrinha nesse São João que passou,
“baiava” muito bem, me contou Benedita Aroucha. A burrinha não parava, diferente de uma
outra criança que brincava na burrinha antes do menino elogiado por Benedita. Segundo a
mesma, a criança anterior não sabia fazer o giro e balançar a armadura, ela não fazia com
brilho e intensidade. A burrinha é um personagem “elétrico” ela não para!
2.6.9 Rolar no miolo
O miolo, no caso do boi de pindaré, é uma questão complexa. Para ser miolo, além de
aguentar a capoeira, artefato, armadura do boi, é preciso saber rolar o boi, saber rolar bonito.
Ser miolo, é dançar embaixo da armadura do boi. Brincar de miolo, assim como brincar de
cazumba, requer bastante resistência, visto que, no caso do cazumba, utiliza-se uma farda que
cobre todo o corpo e carrega-se uma máscara que muitas das vezes é imensa e pesada. O miolo
“baia” embaixo de uma armadura de boi feita de madeira, que por sua vez, é coberta com o
pesado couro trabalhado pelas bordadeiras. Parece sufocante. Mas faz parte da brincadeira e
do comprometimento de ser miolo. O rolar no boi consiste em ficar ora bastante curvado e ora
menos curvado, porque a armadura encobre as costas, a cabeça, ou melhor dizendo, toda a área
da cintura para cima do rolador. Faz a necessidade, aqui, esclarecer que, rolador, miolo, arma
e fato, são conceitos nativos que designam o brincante que brinca no artefato do boi. A dança,
nesse gradiente de mais e menos curvado se faz no movimento em que o miolo gira a parte
dianteira do boi ( a cabeça) e a parte traseira ( o rabo) para cima e para baixo, quando a cabeça
está girando para cima, o rabo está girando para baixo e vice e versa. A arte da dança também
manifesta uma tremedeira ou pulsação que o miolo faz junto com a armadura no compasso do
batuque. Mesmo quando o miolo está em pé, sua coluna se mantém meio curvada, devido a
armadura pesada e que está conectada em suas costas. E para além, a dança admite uma corrida
como se o boi fosse chifrar alguém, dependendo do estado corporal que o miolo acessa.. O
miolo, como outros personagens já ditos acima, pode transpor a formação e estender seu limite
de atuação.
2.6.10 Contar e cantar a história (aboiar)
67

Os cantadores, que figuram, geralmente, os brincantes mais velhos, muitos deles, já


brincaram como outros personagens ou batuqueiros. Mas o que consiste corporalmente aos
cantadores é a arte de compor toadas e entoá-las em seu “aboio”. O corpo do cantador,
principalmente o amo do boi, é o corpo que canta, é o corpo que conta a história, que guia a
comédia, e é o corpo que comanda16 o batalhão, através de seu apito e maraca17 que dão o sinal
do tempo para o batalhão agir. Batalhão é um conceito nativo que designa o grupo. No sotaque
de baixada, as toadas são cantadas em um tempo e ritmos específicos. Mas há uma
particularidade muito importante, que é a voz e o sotaque do interior. Sou desprovido de
ferramentas teóricas para pensar o canto e suas especificidades. Entretanto me disseram que
os cantadores que vieram da baixada possuem um toante na voz que expressa o canto dos
negros e caboclos que tinham o ofício de tocar o gado no interior, singularidade que os
cantadores nascidos e criados em São Luís não possuem. O "aboio" Isso fica muito claro ao
ouvir seu João Sá Viana cantando, ele que é de São Luís. Porque os outros cantadores do
Pindaré, todos, vieram da região da baixada e brincaram boi lá. Eles expressam esse toante,
esse tom no canto. Eles entoam seu “aboiar”!

2.6.11 O bordar e o cobrir


O bordado é outra técnica imprescindível na brincadeira do boi. As mulheres são suas
maiores representantes. A técnica consiste em fazer um desenho em folha de papel seda, depois
costurar essa folha com o desenho sobre o tecido desejado, e começar a tramar o contorno do
desenho. A trama é feita à mão com miçanga, canotilho e paetê. Mas ouvi casos de bordadeiras
que tramam os bordados com máquina de costura, o que, para muitos brincantes, é muito
difícil. É o bordado que compõe a farda dos brincantes. O mesmo pode-se dizer da técnica de

16
Quando tratamos do amo do boi, e principalmente quando o amo é também o dono do boi, nos deparamos com
a dimensão do líder que é responsável pelo comando, pela disciplina, pela ordem e Hierarquia. São regimentos
muito importantes para se organizar o batalhão e até mesmo manter a vida e o comunitarismo na sede. Cada
segmento de personagens da brincadeira possui um chefe que é responsável por organizar seu segmento. Todos
os brincantes se remetem ao chefe de seu segmento de personagem, que por sua vez se remete à direção do boi e
ao dono. Sabemos que o boi pode ter um dono, como é o caso do Pindaré. E em última instância é o dono que
toma as decisões. A liderança é muito importante no cosmo do bumba boi, pois é a agência que permite que o
grupo brinque organizado e não saia do controle, principalmente em relação aos mais jovens. "(...) Além disso,
o papel do líder é fundamental para que o boi consiga se destacar no meio boieiro e conquiste a fama de ser um
grupo que preza pela ordem. A regra e a disciplina fazem parte desses grupos e a obediência à hierarquia que
existe dentro dos cordões é muito importante para a boa convivência entre os participantes. Essa dimensão da
ordem interna dos grupos e do papel central do amo e/ou dono pode ser visualizada também no enredo das
apresentações." (MARTINS, 2015 p. 73)
17
Carolina Martins mostra que a maraca é acompanhada de uma série simbólica que denota o comando e o poder
do cantador. "(...) Uma maracá carrega uma simbologia importante entre os boieiros, pois o seu valor em grande
parte remete àquele cantador que o usou durante sua vida e é o objeto que, de certa forma, denota a autoridade
do cantador sobre o grupo de bumba-meu-boi. (MARTINS, 2015, p. 62)
68

cobrir os aros de jeniparana, madeira que constitui os aros dos pandeirões. Os batuqueiros mais
hábeis, esticam o couro de bode sobre o pandeirão, pregam uma tarracha resistente, juntando
o couro no aro, pregando essa tarracha em uma extremidade e outra na outra extremidade, isto
é pregam o couro nas duas extremidades diametrais do aro. Em seguida fazem o mesmo nas
outras duas extremidades que compõe o diâmetro perpendicular ao anterior. Nesse sentido
seguem pregando incessantes tarrachas e pregos nas outras áreas do aro para deixar o couro o
mais liso possível, mas sempre respeitando a tensão do couro, porque se esticar demais ele
pode rasgar, se ficar pouco esticado, ele não atinge o tom necessário para o batuque. São
técnicas manuais e musicais.
Podemos dizer, nesse momento, que a apresentação das técnicas relatadas, constituem
uma miríade de saberes que são compartilhados no interior e fora do grupo pelo povo boieiro.
Essas técnicas constituem o corpo do brincante. Não necessariamente o brincante sabe efetuar
todas, mas habita um campo onde elas fazem parte e tecem a esfera cultura que ele está
localizado. É certo que para ser um brincante, bastaria acompanhar a brincadeira, ter sua
pequena matraca e sair nas noites de São João brincando ou observando os grupos de boi. Mas
até nesse modo, até o brincante desse tipo, que não integra necessariamente um grupo, está em
contato, ele observa, ele escuta e sente a intensidade do batuque. Ele aprende as toadas
conforme as vai ouvindo, ele adentra o cordão e arrisca um passo. Ele é contagiado e
capturado!

2.6.12 A Técnica como tradição e eficácia


A questão sobre as técnicas do corpo me leva diretamente as célebres reflexões de
Marcel Mauss. O autor compreende a temática das técnicas do corpo como “as maneiras pelas
quais os homens, de sociedade a sociedade, de uma forma tradicional, sabem servir-se de seu
corpo.” (MAUSS, 2003, p. 401). Essa proposição torna-se muito pertinente para nosso caso na
medida em que vimos que as técnicas musicais com instrumentos, com o bordado, com o canto
e com a dança, configuram um arsenal de técnicas corporais que são passadas de geração em
geração pelos brincantes de boi. Elas são tradicionais. É evidente que muitas das técnicas são
técnicas com artefatos e instrumentos, mas antes de tudo elas são corporais.
Nas condições, cabe dizer simplesmente: estamos lidando com técnicas do
corpo. O corpo é o primeiro e o mais natural instrumento do homem. Ou, mais
exatamente, sem falar de instrumento: o primeiro e o mais natural objeto técnico, e ao
mesmo tempo meio técnico, do homem é seu corpo. ( MAUSS, 2003, p. 407)

Mas quando sabemos que o boi é uma brincadeira e uma festa religiosa, nos deparamos
com a problemática que questiona se as técnicas do boi são atos mágicos-religiosos eficazes
69

na vida das pessoas ou se são físico-químicas. “(...)qual é a diferença entre o ato tradicional
eficaz da religião, o ato tradicional, eficaz, simbólico, jurídico, os atos da vida comum, os atos
morais, de um lado, e o ato tradicional das técnicas, de outro?” (MAUSS, 2003, p. 407) Em
minhas observações, pude constatar que as técnicas compõem a cultura do boi e fazem
concretamente a brincadeira acontecer. Mas há um profundo agenciamento religioso na
brincadeira que é passado pela tradição. Nesse sentido, gostaria de refletir um caso que
observei.
No dia do batizado do boi, ofereci cerveja a alguns cantadores e brincantes. Todos os
cantadores negaram, e dentre os outros brincantes, apenas alguns aceitaram. Não compreendi
de início a rejeição, visto que a grande maioria dos brincantes gostam muito de cerveja.
Perguntei aos cantadores dias depois a razão pela qual escolheram não beber. Alguns me
disseram que pelo fato de irem cantar naquela noite, precisavam preservar a garganta e outros
falaram que por o batizado ser um ritual muito religioso, não podiam beber. Durante a reza a
ladainha do batizado, seu Chico, uma das pessoas que ofereci cerveja e recusou por razões
religiosas, e manifestou um estado de "irradiação" intenso. Ficou de joelhos tremendo muito e
chorando. Outros cantadores que recusaram a cerveja para preservarem a garganta não
apresentaram estado de "irradiação" visível. Enquanto outros que também recusaram a cerveja
por conta da preservação da garganta, manifestaram estado de "irradiação" menos intenso que
consistia em estarem de olhos fechados e calados durante todo o ritual de batismo. Logo, penso
que a rejeição pela bebida pode ter ambas as razões. Arrisco dizer que a questão fisico-quimica
de preservar a garganta possa se compor e atravessar o fato religioso do jejum alcoólico. Mas
seria preciso mais observações para adentrar nessa querela.
Portanto, compreendemos que as técnicas são atos tradicionais que são passadas de
geração em geração, a tradição de baixada. Mas da mesma forma que os brincantes dizem que,
na verdade, cada boi tem seu próprio sotaque, podemos dizer que o Pindaré tem sua própria
tradição. Os brincantes dizem muito que o batuque lento e “repinicado” do Pindaré, os outros
bois não conseguem fazer igual. Ele é tradição do Pindaré.“Chamo técnica um ato tradicional
eficaz ( e vejam que nisso não difere do ato mágico, religioso, simbólico). Ele precisa ser
tradicional e eficaz. Não há técnica e não há transmissão se não houver tradição.” (MAUSS,
2003, p. 407)
2.6.13 Pessoa brincante
A tradição da baixada, a tradição do boi de Pindaré, constitui seus brincantes. Digo
isso, porque são as técnicas que são ensinadas aos brincantes e desenvolvem seus corpos e sua
pessoa. Tornar-se um bom rolador, um bom batuqueiro, dirigir e organizar bem o boi. Muitas
70

técnicas, como vimos, fazem parte do arsenal brincante de boi, muito embora não
necessariamente deva-se saber todas, mas se está entre elas. Como disse mestre Hermínio
Castro, o boi é fundamental e até mesmo primordial na vida de um brincante. Esse fato me
leva a pensar sobre o como as pessoas se organizam, se entendem e se classificam na
brincadeira. É evidente que esse aspecto é atravessado pelo o que pensamos acerca da tradição
e da pessoa brincante. Se uma pessoa é formada, é feita ou se pensa segundo uma tradição, seu
referencial é essa tradição em questão. O que não nega a relação com outras tradições. No caso
do boi, se pensamos o Pindaré como um grupo com sua tradição, as pessoas, principalmente
os mais antigos, se pensam, se organizam em relação a outros grupos de boi, como Pindaré.
Eles dizem: eu sou batuqueiro, eu sou miolo, eu sou índia, sou cazumbá do Pindaré! Essa
relação admite o trânsito de brincantes. Há aqueles que brincavam em um boi anos atrás e
agora brincam no Pindaré. Mas para isso é preciso ter o consentimento e o reconhecimento da
dona do boi e de certa forma, dos demais brincantes. "Considerando o complexo que envolve
a formação de um grupo de Bumba-meu-boi, os fatores experiência e tempo são relevantes. É
preciso o reconhecimento dos brincantes pela experiência, carisma, entre outros atributos que
facultam a autoridade ao "amo" e/ou "dono"do boi." (MARTINS, 2015, p. 73). É preciso ser
aceito, ir se compondo aos poucos. Observei algumas dificuldades que brincantes recentes
passaram no ano passado durante o São João, em relação ao resto do grupo. A tradição do
Pindaré, tem suas técnicas que produzem um sotaque próprio, tem suas obrigações religiosas
próprias, ela produz e é mantida através de corpos brincantes que se identificam se referenciam
na brincadeira do Boi de Pindaré, inclusive os brincantes de bois que tiveram origem a partir
do próprio Pindaré reconhecem isso. Muitos brincantes exercem ocupações e funções variadas
em suas vidas cotidianas, fora da brincadeira. Mas a brincadeira, muita das vezes se faz, na
vida do brincante, como primordial, uma dimensão que o brincante foi apresentado e iniciado
em sua infância ou ordenado por razões religiosas. Esses brincantes, antes de serem soldador,
segurança, pedreiro, arrisco dizer, que se entendem como cantador, batuqueiro, bordadeira,
india, cazumba de seu boi.
(...) os bois também fornecem elementos para a construção das identidades
individuais dos sujeitos que lhes são associados. Nem todos os brincantes chegam ao caso do
cantador Humberto Mendes, que ganhou o sobrenome "do Maracanã"em referência ao grupo
em que atua, mas, de maneira geral, a participação em um determinado boi engendra a tomada
de uma série de atitudes por parte dos indivíduos. Pressupondo formas próprias da integração
entre seus participantes, os bois, numa perspectiva ampla, também "dão nome aos bois", na
medida em que os inserem em relações específicas ou ajudam a reforçar suas posições nessas
relações - de dominação, patronagem, parentesco, vizinhança, afinidade, compadrio, amizade,
hostilidade e também de prestação de serviços e favores políticos. (CARVALHO, 2011, p.186)
71

É através desse modo de classificação e orientação que se organizam os grupos e as


pessoas, em que elas travam suas relações. No cosmo do bumba, os brincantes que integram a
brincadeira, travam seus encontros e firmamentos a partir de uma pessoa brincante que está
inserida em uma tradição, que tende a se tornar cada vez mais precisa: Sou brincante de boi,
sotaque de baixada. Sou Pindaré. A tradição do boi é religiosa, de cultos católicos e de
encantaria, ela pode ser passada de geração em geração, ela povoa e compõe a história do
Maranhão. É contagiante. A pessoa pode se tornar um brincante por algumas razões que
observei: Por obrigação religiosa, por ter sido inserido pela família, por afinidade e
comunitarismo.
(...)Vê-se muito nitidamente como, a partir das classes e dos clãs, ordenam-
se as “pessoas humanas” e como, a partir destas, ordenam-se todos os homens livres.
Mas, desta vez, o drama é mais do que estético. É religioso e ao mesmo tempo
cósmico, mitológico, social e pessoal. (MAUSS, 2003, p. 376)

2.7 Morfologia social


Lá vai

Se eu disser lá vai boi


Vaqueiro te arreda da frente
E deixa ele passar

Vai no passinho do compasso


Faz do jeito que eu mandar
Lá vai boi de Pindaré
Tomando contá do lugar
( toada do boi de Pindaré)

Pretendo, na presente sessão, tratar de um aspecto intrigante que observei em meu


trabalho de campo que é a morfologia social da brincadeira do boi, no que tange sua forma em
cortejo, cordão e procissão. As análises empreendidas por Lévi-Strauss (2003) em As
organizações Dualistas Existem? me auxiliaram muito na reflexão sobre esse assunto. É
evidente que a morfologia da brincadeira e a disposição dos personagens possuem relações
complexas e diretas com o mito do boi. Pois trata-se de súbito de uma dança dramática e teatral
que pressupõe a encenação do auto do boi. Entretanto, não entrarei na discussão sobre o mito,
pois este é um tema complexo e vasto que consistiria de muito material de análise e estudo.
72

Me limitei a observações que tive no campo acerca da forma da brincadeira e seus códigos que
expressam movimentos que podemos refletir sobre a relações entre multiplicidades ou
heterogêneos, aspécto fundamental da cosmopolítica. Vejamos a manifestação dramática desse
campo.
Acompanhando o boi de Pindaré nas brincadas nos arraiais durante o São joão de dois
mil e dezoito, compreendi que há uma forma específica de organização dos personagens,
especificamente, do sotaque de baixada na hora de fazer a brincadeira e "tomar conta do lugar".
Como sabemos, o boi, em sua expressão dramática, é composto de: Pai Francisco e mãe
Catirina; miolo e burrinha; cazumbas; índias e índios; baiantes e vaqueiros; cantadores e
batuqueiros. E, no sotaque de baixada, eles brincam em uma ordem precisa mas que admite
alguns rearranjos.
Quando o Boi de Pindaré, e outros grupos do sotaque de baixada, vão começar seu
cortejo eles se organizam numa imensa fila. Na frente formam Pai Francisco e Mãe Catirina
juntos de braços dados e o miolo e a burrinha.. Em seguida segue a fila dos cazumbas. Após
os cazumbas, seguem na fila as índias e depois os índios. Mais adiante, tem os baiantes e os
vaqueiros, e logo após estes, os batuqueiros. Nos arraiais, os cantadores costumam já estarem
posicionados em seus postos de comando para cantarem as toadas e convocarem o batalhão,
mas em procissão, eles vão atrás com os batuqueiros.
Então temos: 1° - Pai Francisco, Mãe Catirina, Miolo de boi e Burrinha ( costumam
entrar juntos)
2° - Cazumbas
3° - Índias e Índios
4° - Baiantes e Vaqueiros
5° - Batuqueiros e Cantadores

Quando os cantadores começam a entoar as canções que ordenam o tempo na brincada,


quando cantam para o cordão entrar e se formar, os brincantes seguem em fila na ordem
enumerada para formarem o cordão. Pai Francisco e Mãe Catirina entram primeiro e começam
a circundar o palco ou o terreno da brincada. Os demais personagens, aos poucos, vão fazendo
o mesmo, entrando e seguindo em fila, bordejando o terreno. O cordão está formado quando
todos os personagens e brincantes entram em cena e dão a tão emblemática forma do cordão.
A forma do cordão consiste em o miolo de boi, Pai Francisco, Mãe Catirina e a burrinha no
centro, os cazumbas formando um círculo em volta deles, que por sua vez estão inseridos
dentro de um círculo maior, o círculo das índias e índios, que também são circundados por um
73

terceiro círculo, maior ainda, o círculo de baiantes e vaqueiros. Os batuqueiros e os cantadores,


como observei, quando se inserem no cordão, ficam sempre na área mais periférica, fora desses
círculos. Segue o esquema:

2.7.1 Formação concêntrica com variação de natureza e centralidade do sagrado


Sobre a formação ou morfologia do cordão nas brincadas podemos dizer que trata-se
de uma formação concêntrica. Mas qual seria a razão que rege a distribuição dos personagens?
Ora, Lévi-Strauss compreende que muitas das formações concêntricas das aldeias indígenas
expressam uma razão em que os elementos mais sagrados, como a casa ou praça de rituais se
localizam no centro da aldeia.
Estamos em presença de uma estrutura concêntrica, plenamente consciente
ao pensamento indígena, onde a relação entre centro e periferia exprime duas
oposições; entre masculino e feminino, como acabamos de ver e entre sagrado e
profano: o conjunto central, formado pela casa dos homens e a praça de dança é o
palco da vida cerimonial, enquanto a periferia está reservada äs atividades domésticas
das mulheres excluídas por natureza dos mistérios da religião(...).(LÉVI-STRAUSS,
1967, p. 165)

Nesse sentido, as formações concêntricas teriam uma distribuição em que seu centro
e sua borda expressam um gradiente variável do sagrado? No caso da brincadeira do boi, do
sotaque de baixada, essa hipótese apresenta bastante fundamento. Os brincantes brincam boi e
cultuam o boi. O boi é um artefato e agência sagrada para as pessoas, em que devotos e
brincantes prestam devoções e promessas. Alguns brincantes me disseram que já ouviram o
boi urrar, no barracão e tomar vida. A brincadeira do boi é uma festa religiosa. O boi é sagrado,
ele possui um altar no fundo do Salão da sede e dança, primeiramente, no centro da formação.
É fato que o boi designa a agência sagrada a qual são prestadas homenagens e firmadas as
alianças e promessas. Logo, o vetor que a brincadeira se orienta manifesta a centralidade do
artefato/agência do boi.
74

Com efeito, torna-se mais clara a forma dramática da brincadeira do boi. Nos
deparamos com o artefato de boi no centro do círculo dos cazumbas, outra figura, além do boi,
que as pessoas, os brincantes, relatam que possui muito mistério, muita espiritualidade e
sacralidade. Estes estão inseridos no centro do círculo das índias e índios, que seu bigode, uma
vez, me disse representarem o "povo do fundo", intensidades encantadas, que por sua vez estão
inseridos no centro do círculo dos baianates e dos vaqueiros. Mas seria possível também
estabelecer uma razão na formação concêntrica do cordão do boi que expressa a relação
natureza e cultura; não humano e humano.
Se observarmos atentamente, partindo da borda para o centro, os personagens vão
apresentando gradualmente características não humanas. No círculo periférico, temos os
baiantes e vaqueiros, personagens humanos que carregam fardas e chapéus específicos, mas
ainda, expressam artefatos culturais humanos, como chapéus de vaqueiros, camisa social e
calças. Eles possuem rostos humanos. Num círculo adentro, temos as índias e os índios,
personagens que são humanos mas que possuem penachos em todos os elementos da roupa de
índia/índio, além de terem rostos pintados. Para além, eles também possuem relações mais
próximas e mais intensas com os personagens mais ao centro. Lembremos do que disse seu
Bigode. "As índias representam o povo do fundo". Mais adentro temos o círculo dos cazumbas,
personagens que já não apresentam corpos e rostos humanos. Usam máscaras de animais
misteriosos, na maioria das vezes, imensas e possuem o quadril enorme. São criaturas, espíritos
travessos dotados de mistério, guardiões ao mesmo tempo transgressores. Eles transgridem a
lei, a forma do cordão. No centro, temos então o artefato de boi, um animal ao mesmo tempo
espírito misterioso, que, estabelece relações ritualísticas de dádiva e bençãos para com os
brincantes humanos, além de ser, segundo o mito, o animal que ressuscita encantado através
da magia dos índios.
2.7.2 Anomalias e rearranjos
Mas a formação concêntrica, como Lévi-Strauss nos mostra, possui anomalias. A
formação diametral e concêntrica que os povos Bororo e Winnebago apresentam ao mesmo
tempo, na verdade, não se bastam, não são dualistas, diametral e concêntrica somente, elas são
triádicas.
Finalizando: tentei mostrar neste artigo que o estudo das organizações ditas
dualistas revela tantas anomalias e contradições, em relação à teoria em vigor, que
seria melhor renunciar a esta e tratar as formas aparentes de dualismo como distorções
superficiais de estruturas cuja natureza real é outra, muito complexa.(...)(LÉVI-
STRAUSS, 1967, p. 187-188).
75

O cordão do boi é concêntrico, mas apresenta algumas variações que pude observar:
Mãe Catirina, personagem humano, e Pai Francisco, personagem mascarado, localizam-se,
inicialmente, no centro do cordão, assim como a burrinha, personagem designado pelo nome
de um animal, mas consiste num menino montado num artefato de burrinha. Mas por se tratar
de um cordão teatral, dramático e dinâmico, os personagens estão sempre em movimento. Mãe
Catirina, Pai Francisco e a burrinha podem abandonar sua posição e circundar todo o cordão,
eles podem transpor os círculos dos outros personagens. Os cazumbás eles dançam em um
círculo, mas podem transgredir esse círculo também, desorganiza-lo e sair do cordão. O
artefato de boi, pode transpor, de maneira semelhante, os círculos, pode dançar com um baiante
ou vaqueiro no círculo periférico e os mesmos podem adentrar o interior do cordão e dançar
com o artefato de boi.
Mas o dualismo concêntrico é dinâmico; traz em si um triadismo implícito,
ou melhor, para ser mais exato, todo esforço para passar da tríade assimétrica à díade
simétrica supõe o dualismo concêntrico que é diádico como um, assimétrico como o
outro. (LÉVI-STRAUSS, 1967, p. 177)

Quando tratamos de uma procissão, os personagens se apresentam dispostos em fileiras


que seguem a ordem enumerada linhas acima. Nesse momento, o artefato de boi e os cazumbas
efetuam movimentos que escapam a formação da procissão. O miolo, artefato de boi, brinca,
"baia" com os devotos com as pessoas que observam a procissão, e até mesmo, pode
desaparecer de vista. Os cazumbas, de maneira semelhante, brincam, aproximam-se dos
observadores, atrapalham o cordão, rodam entre si e fazem palhaçadas.
2.7.3 Território e diferença
Com efeito, a morfologia ou organização do ato da brincadeira apresenta uma forma
específica, mas que admite certas variações. Podemos observar que a forma da brincadeira
designa a disposição de personagens heterogêneos. Eles têm natureza diferente. E essa
diferença qualitativa, diferença de natureza, corresponde a coordenadas no espaço, do campo
morfológico da brincadeira do boi. A forma como eles brincam, dançam e operam no espaço,
na fila, como também a posição que aparecem, está relacionada com a natureza que eles
expressam. Se pensarmos que quanto mais ao centro, no caso do cordão, e quanto mais a
frente, no caso de cortejo e procissão, estão localizados os seres, menos humanos eles são,
salve as variações que a brincadeira admite. Nesse sentido, os personagens, que apresentam
natureza distinta da humana, operam movimentos que transgridem, em certos momentos, a
forma e o código do cordão, eles são mais transgressores e imprevisíveis. Desterritorialização.
Mas eles fazem parte, eles compõem o cordão. A brincadeira, o cordão do bumba boi, do
sotaque de baixada admite a dimensão lisa da transgressão, da desterritorialização, e a
76

dimensão da forma, do território, a dimensão estriada. O cordão e a procissão desses bois, é a


expressão fina e dramática de relações entre humanos e não humanos, entre natureza e cultura,
em suma, entre agentes heterogêneos.
Portanto a forma da brincadeira consiste numa variação de grau, em que, quanto mais
ao centro, menos humano, mais sagrado e misterioso é o artefato/agente; e admite diferenças
de natureza entre os elementos, em que, em cada círculo os personagens apresentam natureza
distinta uma da outra.18 Nesse sentido, o cordão do boi expressa um encadeamento dramático
entre entes que variam de natureza e se compõem, nesse drama, nessa dança, de maneira
variável. A organização dramática do cordão do boi se fez tão viva em minhas observações,
pois possui um modo operante que se faz central nesse trabalho, isto é, a cooalisão de
elementos, artefatos/agentes heterogêneos que se compõem, se atravessam e se chocam no
encadeamento da brincadeira. Essa movência realizada por personagens heterogêneos, que
segue em muito o ato do improviso e do rearranjo, manifesta a forma particular das relações
travadas pelos agentes que brincam no movimento dramático do batalhão. Multiplicidades e
pessoas que se encontram constroem um território povoado por agentes e personagens de
natureza dissonante que seguem fazendo a formidável comédia em um campo artístico que
sempre provoca a variação, seja na organização do espaço ou nas manifestações corporais.
Devir. Eles se entrecruzam, os círculos são transgredidos e atravessados. Um personagem, às

18
Essa explicação se baseia na teoria do cone invertido apresentada por Bergson e explorada por Gilles Deleuze
em Bergsonismo. O vértice (ponto de contração) corresponde ao presente, e a base (ponto de distensão)
corresponde ao passado. O presente, o atual, concentra toda variação de grau, enquanto o passado, o virtual,
consiste em toda diferença de natureza. Mas Deleuze chega a intuir que o presente é o mais alto grau de contração
do passado, contendo sobre si a totalidade virtual e todas as diferenças de natureza; ao passo que o passado é o
mais alto grau de distensão do presente. Essa teoria corresponde a necessidade de conciliar a problemática da
variação de graus com as diferenças de natureza. Isto é, a tendência quantitativa com a tendência qualitativa. Na
defesa de uma perspectiva da duração, do tempo não especializado, mas como fluxo imanente ao espaço, Deleuze
acompanha a teoria bergsoniana e desenvolve uma reflexão em que o espaço, a matéria, o atual, a contração - o
domínio que compreende todas as variações de grau, quantitativa; e a Duração, a memória, o virtual, a extensão
e distensão - domínio que compreende toda diferença de natureza, qualitativa - são imanentes e simultâneos. O
tempo ontológico, o tempo do ser, o qual, os autores compreendem como tempo puro é o tempo Uno que não é
múltiplo, mas é uma multiplicidade específica. Multiplicidades de fluxos que se relacionam e se compõem numa
só duração, na ontologia. O real, o formidável e verdadeiro ponto de culminância e simultaneidade do tempo e
do espaço, do passado e presente admite processos de toda a sorte, aqueles momentos em que um elemento
qualitativo, a memória, desaparece e vem aparecer outro elemento, um elemento atual de natureza distinta, a
matéria, que de um modo distendido, vem a se contrair até conjurar um novo aspecto. O espaço. A composição
entre os graus e as diferenças de natureza são a equação metafísica do real. "Quando Bergson defende a unicidade
do tempo, e;e a nada renúncia do que disse anteriormente em relação à coexistência virtual dos diversos graus de
distensão e de contração e à diferença de natureza entre os fluxos ou ritmos atuais. E quando ele diz que espaço
e tempo nunca "mordem"um ao outro e nem "se entrelaçam", quando ele sustenta que somente sua distinção é
real, ele a nada renuncia da ambição de Matéria e memória, qual seja, a de integrar algo do espaço na duração, a
de integrar na duração uma razão suficiente da extensão"(DELEUZE, 2008, p. 75)
Nesse sentido, podemos dizer que a morfologia do boi possui uma variação de grau, em que no centro ou na
frente está localizada a maior densidade ou contração do sagrado, isto é, no artefato do boi, e o mesmo carrega
consigo a virtualidade, o lastro da totalidade de multiplicidades, das diferenças de natureza que ora se fazem
atuais em seu plano.
77

vezes atravessa o cosmo daquele que possui natureza diferente da dele. Eles povoam o cosmo
e o domínio um do outro segundo uma organização que admite e possibilita o rearranjo e a
diferença. Brincantes que vestem personagens humanos e não humanos, misteriosos e sacros
que permitem a esses mesmos brincantes acessarem estados e comportamentos variáveis num
encadeamento dramático de uma brincadeira religiosa, em que, potências, agências e forças se
fazem presente, firmando alianças e muitas vezes concedendo bênçãos e graças.

2.8 Tempo
Se quer vê festa de gado
Vai no Pindaré
É vinte e sete de junho
No dia da vaquejada

Eles já tão se preparando


E eu já tô preparado
Quero vê que vai ser campeão
É nesse grande show de boiada
(Toada de algum boi da região de Pindaré Mirim)

Pude observar que quando pensamos a questão do tempo na brincadeira do bumba boi,
somos levados a dois horizontes. O tempo (na) brincadeira e o tempo (da) brincadeira.
O tempo (na) brincadeira consistiria nos momentos de atuação do batalhão de boi, que
é ordenado pelas toadas que, tradicionalmente, são designadas por nomes específicos que
expressam esses momentos precisos do encaminhamento da brincada. Todo grupo de boi,
necessariamente, possui um conjunto de toadas que fazem o tempo na brincadeira, cantadas
pelo o amo do boi.
Reunida / Guarnecer - Primeira toada cantada em uma brincadeira, é a toada que reúne
o batalhão, quando os brincantes estão dispostos em filas para entrar.
Lá vai - Segunda toada cantada em uma brincadeira, a toada que anuncia a ida, o
lançamento do batalhão, quando os brincantes, em filas, vão entrando na arena
Chegou - Terceira toada cantada em uma brincadeira, a toada que anuncia a chegada
do batalhão, do cordão já em cena para começar a brincadeira.
Urrou - toada cantada em uma brincadeira, a toada que anuncia o urro do boi.
Toadas - Toadas cantadas por outros cantadores, que não somente o amo, em que estes
se revezam e cantam sobre inúmeras temáticas.
Despedida - Última toada cantada em uma brincadeira, anuncia a despedida e a retirada
dos brincantes da arena.
78

Essas toadas designam o tempo (na) brincadeira, diferentemente do tempo (da)


brincadeira que tem a ver com o tempo do sagrado.
Mas essas toadas, tradicionalmente, também estão ligadas com o tempo da dramaturgia
do alto e o mito do boi, encenado comumente, atualmente, no ritual de matança. Não tratarei
neste aspecto neste trabalho, visto que, não acompanhei o ritual de matança que aconteceu em
agosto.
2.8.1 Tempo do sagrado
O tempo (da ou de) brincadeira está remetido a temporada junina do São João e o tempo
de matança, geralmente realizado em agosto. Mas esses dois momentos figuram duas
temporadas importantes, principalmente o São João, que se estende para outras práticas, rituais
e brincadeiras. A brincadeira do boi é feita o ano todo, mas a temporada junina e a "morte do
boi"designam dois tempos rituais cruciais que manifestam grande destaque. Uma vez
perguntei a Benedita Aroucha como era fazer boi, como era seu dia a dia, seu ano, visto que,
explicitamente, aparenta está sempre preocupada e ocupada resolvendo assuntos do boi. Ela
me disse que consegue descansar em um curto período no ano, que vai do fim de agosto ao
início do próximo ano. Mas quando o ano se inicia, ela já começa a resolver os assuntos do
Pindaré, a realizar os preparativos para a grande temporada de São João. Quando a temporada
acaba, consegue descansar por uma, duas semanas e já se preparar para o ritual de matança,
morte do boi, em agosto.
É certo que em São Luís as pessoas orientam suas vidas pelo calendário greco-romano,
o tempo do trabalho cotidiano, mas o São João é um tempo que instaura um interstício no
tempo linear de nosso calendário. É um tempo sagrado que acontece em junho, um tempo de
festas e louvor a santos católicos, época de folia, mas, sobretudo, religiosa. As pessoas
brincantes, se orientam, pude perceber, a partir desse tempo sagrado, em que se faz a hora de
voltar a sede do boi, de retomar os afazeres os preparativos para mais um tempo festivo e
religioso que se aproxima. A temporada de festividades juninas em São Luís apresentou
indícios, em minha observação, de um tempo cíclico, em que os devotos, brincantes e fiéis, no
seio de seu comprometimento com esse tempo sagrado, se orientam e se firmam. Assim como
as análises de Evans-Pritchard sobre o tempo dos Nuer (2013) e as análises de Marcel Mauss
(2003) sobre a morfologia social dos esquimós que muda segundo o tempo, em que, em ambos
os casos o tempo é um tempo ecológico, geográfico, que determina as condições do ambiente
e por sua vez faz esses povos mudarem e agirem. Para os devotos, brincantes e fiéis, é o tempo
do sagrado que os fazem agir.
79

Mas de outro modo, o tempo do sagrado se apresenta como uma nova atualização de
um tempo intensivo, que carrega consigo intensidades e forças cósmicas, religiosas que
povoam São Luís, como o caso das obrigações que tornam liso os espaços estriados
preenchendo-os com as músicas, com as danças e com as forças sagradas. Intensidades as quais
os devotos, brincantes e fiéis se compõem travam acordos singulares, criam novos territórios,
assim como sempre firmam relações e promessas com as entidades. Trata-se de atualizações
de uma virtualidade que provoca uma movência no espaço e nos seres que gera composições
inéditas, mas que preserva seu lastro de memória, de passado. É um tempo sagrado que faz
virem as intensidades que se territorializam nas imagens do santo, nos artefatos de boi, na
procissão e no corpo dos brincantes. São João, o tempo sacro e tradicional, de esperanças, novo
começo, que sempre se repete diferente. Ritornelo19.

2.9 Últimas considerações


Despecida
Adeus morena, eu já vou
Levando o meu batalhão
Espero que não chores
Se chorar vai doer meu coração

Só te peço um abraço
E um aperto de mão
Pra que tornes voltar
Pra que tornes cantar
Bumba boi em São Luís do Maranhão
(Despedida do Pindaré)

Pretendemos neste capítulo ter delineado acerca da dimensão cosmopolítica presente


no Boi de Pindaré, e esta dimensão se revelou no âmbito das alianças que os brincantes
estabelecem com entes humano e não humanos, como também no movimento que alguns
brincantes chamam de "levantar do boi". Além disso, também tentei traçar na morfologia social
da brincadeira a dimensão heterogênea entre humanos e não humanos que não deixa de ser
uma forma de expressão ou organização desta "intensidade" própria que o Boi de Pindaré
possui e que envolve as questões políticas e cosmopolíticas. A postura de brincantes que
aprenderam e aprendem a arte do bumba meu boi, são constituídos na brincadeira, lutam para
preservá-la e passá-la adiante reverbera como atitude de envergadura ética. Como também
praticantes que revelam o estatuto político do boi na medida em que sempre se colocam em

19
Ritornelo é um conceito que designa matéria expressiva que passa através de territórios, mas que opera no
meio, entre o território, que se repete, entretanto, sempre, conjurando um aspecto de novidade, de diferença.
"Num sentido geral, chamamos de ritornelo todo conjunto de matérias de expressão que traça um território, em
que se desenvolve em motivos territoriais, em paisagens territoriais ( há ritornelos motores, gestuais, ópticos,
etc.)" (DELEUZE E GUATTARI, 2012b, p. 139).
80

discussão, na disputa dos editais de brincadas e buscam o reconhecimento da importância da


desta pelas autoridades e entidades administrativas do Estado. Igualmente importante, é o
tempo do acontecimento, o tempo qualitativo que o São João ressoa. O tempo que, muito
embora, seja cíclico e mensurável, apresenta uma outra face, a face ritual e festiva que
intensidades não humanas e praticantes humanos povoam a cidade, firmam e renovam suas
alianças. O tempo que atravessa a madrugada do dia vinte e nove de junho, dia de São Pedro,
que o bairro da Madre Deus se transforma num centro de peregrinação, onde centenas de
grupos de boi, de todo o estado, viajam para realizarem suas obrigações. Dia de São Pedro
como um grande Ramadã. Neste sentido, se estabelece a centralidade das dimensões da
aliança, da militância e comprometimento dos praticantes, do levantar de uma máquina guerra
chamada Boi de Pindaré. Toda essa miríade de práticas potencializadas num tempo, numa
época intensiva para caracterizar a cosmopolítica realizada pelo grupo e descrita neste
trabalho.
Pretendo desenvolver melhor o raciocínio da cosmopolítica aqui. É evidente que a
dimensão da aliança entre agentes heterogêneos é a proposição específica que compreendo
como cosmopolítica. Se acompanhamos bem a descrição e a reflexão etnográfica sobre o
Pindaré, sabemos que esse tipo de aliança atravessa de maneira consistente o grupo. Ele é
firmado em bases de promessas e fundamentos com entidades encantadas, o seu Tapindaré.
Mas é um grupo de bumba meu boi, que brinca em louvor a São João e a outros santos
católicos, mas que possui uma obrigação específica para com o encantado, menina da ponta
d'areia. Os brincantes fazem todas as obrigações religiosas com extremo comprometimento
que as vezes revelam certo medo frente a possibilidade de não conseguirem realizar alguma
obrigação. Eles sempre dizem que o dono do boi, seu Tapindaré, e os santos católicos
protegem o boi. Com efeito, mais uma vez, torna-se claro que o boi possui alianças com
entidades não humanas e sua forma de comunicação com elas é diferente, mas é precisa,
geralmente se dando em sonhos, em sentimentos virtuais, na intuição e na interpretação de
certos sinais. Os brincantes se constituem na brincadeira, aprendem diversas técnicas e figuram
corpos que estão a serviço do festejo do bumba. Eles se dedicam e fazem a luta necessária para
conseguirem continuar fazendo a brincadeira. Disputam os editais de cultura para conseguirem
a verba para realizar a festa, que geralmente é negligenciada ou não é vista com a devida
importância ritualística pelo Estado. Essa importância revela a dimensão política da arte do
bumba boi, porque é uma esfera imprescindível para a vida das pessoas brincantes. É o cosmo
onde são estabelecidas as alianças que sustentam a vida deles. E nesse sentido, o boi se
configura como um lugar em que se suscita "(...) a habilidade de imaginar, de mover-se sem
81

medo de criar novas lutas tendo em vista sempre devires minoritários." (SZTUTMAN, 2018,
p. 348). Uma vez, Carolina Martins me disse que enquanto o capitalismo desencanta o mundo,
o boi segue encantando-o. Seguindo a noção de Stengers sobre feitiçaria capitalista, podemos
dizer que enquanto esta feitiçaria desencanta o mundo, nos enfraquece, nos coloca diante de
alternativas indecidíveis, as práticas minoritárias como o boi nos desenfeitiçariam. Isto
significa que enquanto a vida cotidiana imbuída na dimensão do capitalismo nos enfraqueceria
como uma força que esvaziasse a pessoa (Stutman), o boi seria uma feitiçaria que recobriria
as forças ocultas ou adormecidas presente nas pessoas, "reativando" potências ou "levantando"
processos ou movimentos antes em declínio.
Logo, podemos dizer que a festa de São João e os grupos de boi se configuram como
práticas minoritárias que não coadunam com a perspectiva do Estado e em alguns casos com
a perspectiva mercadológica em que alguns outros grupos foram inseridos. O boi poderia ser
compreendido então como um processo cosmopolítico porque se institui como uma festa em
que são firmadas alianças entre agentes ou agências heterogêneas que designam um território
desconsiderado ou destituído de relevância pelo Estado no momento de discutir, distribuir ou
fomentar as condições necessárias para os grupos. Pois, para o Estado, são joão é um
espetáculo turístico. Com isto, os bois que apresentam traços de espetáculo são favorecidos
com o consequente ofuscamento dos bois de "fundamento", para usar uma definição dos
próprios brincantes. A consequente insatisfação para com o Estado não se refere a uma
infelicidade de não ocupar um lugar preferido por este, mas de discutir os problemas de
realização das festas nos termos dos próprios grupos. Para os brincantes o Estado tende de
tomar responsabilidade sobre o São João no sentido da importância "religiosa" e "espiritual"
do festejo.
Essa questão se tornou mais clara pra mim quando perguntei a uma brincante do
Pindaré o porquê da insatisfação generalizante para o então governo progressista de Flávio
Dino, do PCdoB, visto que a educação, a saúde, o transporte tiveram avanços significativos
em relação ao governo de Roseana Sarney. Ela me respondeu que ele melhorou a educação, a
saúde em muita coisa, mas ele esqueceu da cultura, do boi, do tambor de crioula. Essas podem
ser as alternativas infernais do capitalismo que nos obrigam a escolher justamente aquilo que
nos enfraquece. "(...) ou a reforma da previdência ou a falência do Estado; ou Belo Monte ou
crise da energia; ou o freio a imigração ou o colapso social; ou a indústria farmacêutica ou o
fim do financiamento das pesquisas." (SZTUTMAN, 2018, p. 348) Não se trata de escolher
entre as duas alternativas, mas construir um possível que faça passar entre essas linhas.
82

Assim, vemos que a própria existência dos grupos de boi, a importância da festa para
a cidade e os envolvidos, a intensidade e a mobilização provocadas ressalta uma outra
problemática. A constituição de possíveis neste contexto do Boi se coloca em consonância
com a própria existência e mobilização dos grupos de bumba. A importância dos grupos de
boi, sua ligação com segmentos de parentesco, a aglutinação e mobilização que eles realizam
nas pessoas nos sugere a reorganização dos problemas do Estado. Isto significa que a existência
dos grupos encerra e sustenta uma disputa para com o Estado no interior de um campo de
problemáticas, operando o valor de importância que questões serão tratadas. Se os grupos são
vitais na vida das pessoas, essa perspectiva afirma para o Estado portanto que não existe opção
entre escolher o boi ou negá-lo. A existência política que encerra o campo de problemáticas
que o boi provoca supera ou anula a importância entre escolhê-lo ou não, ou seja, o boi é tão
necessário e vital para as pessoas quanto saúde, educação ou segurança. No sentido de
feitiçaria capitalista desenvolvido por Stutman, podemos pensar o boi como uma prática de
"contra-feitiçaria" em que são desenvolvidas ou reativadas novas formas de ação cujos efeitos
se colocam contra a perspectiva do Estado e seus aparelho de captura que reduzem os
problemas a opções indecidíveis para praticantes da cosmopolítica.
O levantar do Boi de Pindaré de maneira semelhante, se refere ao processo de reativar
práticas que ora estavam desativadas e desenvolvê-las. Como já dito, esse levante, é uma
potência que os brincantes encarnaram em restabelecer as alianças, em criar novas e se colocar
novamente num campo de disputa. É certo que essa potência ganhou o nome de levantar
mediante a um passado nebuloso. O momento em que Benedita escolheu desligar o boi e
dissolver o grupo, visto que, não queria a responsabilidade que seu pai havia lhe deixado. Mais
ainda, o processo de dissidência de brincantes que levaram embora artefatos importantes do
Pindaré. Benedita foi intimada a reaver o boi, a reativa-lo. Mas tudo indica que isso não
acontece do dia para a noite, uma vez que, eles estão se reerguendo aos poucos a cada ano,
segundo a força das alianças, de seu desejo e de sua militância. Esse levantar, esse reativar
designa antes um impulso vital de restabelecer a máquina de guerra, traçar novas linhas, linhas
consistentes que levem a destinações potentes. Aliança Cosmopolítica. É ativar essa máquina
que opera práticas de "contra-feitiçaria" ou de encantamento, a partir de linhas que tramem
corpos, agenciamentos e territórios que não aquele infernal do aparelho de captura.
Nesse trabalho apresentei uma reflexão sobre o acontecimento da festa religiosa que o
Boi de Pindaré realizou no São João de dois mil e dezoito. Traçando uma transversalidade
entre teorias que pensam a dimensão da diferença com certas operações que o Pindaré e as
pessoas que o compõe efetuam. Essas operações tem como vetor e orientação essa mesma
83

dimensão, a dimensão da heterogeneidade. Logo, essa monografia se pretendeu seguir esse


campo de relações com multiplicidades humanas e não humanas que admite, segundo sua
própria natureza, movimentos de variação e diferenciação.
Espero ter apresentado, com êxito, a brincadeira do boi como um grupo de pessoas que
aliam e produzem um campo que é povoado por intensidades heterogêneas. Uma brincadeira
que é composta por elementos materiais e intensivos, numa festa religiosa que é feita em louvor
a santos católicos e sustentada por seres encantados. Nesse agenciamento, pessoas e potências
sagradas estabelecem relações vitais de envergadura política, principalmente, no tocante da
conservação da brincadeira e no desenvolvimento desta perante forças etnocidas exteriores.
Como vimos, o boi estabelece relações de aliança vital para com seus praticantes, e por
esse motivo, percebemos como ele pode ser alvo de agentes externos com fins eleitoreiros e
de consumo. Mas por outro lado a relação intensiva que a brincadeira tem para com seus
praticantes produz modos de vida positivos, principalmente entre os mais jovens, afastando-
os de "maus caminhos". O boi como linha de fuga, muito embora carregue o risco de uma linha
de abolição. Micropolítica
Acompanhamos também as técnicas que são comungadas no cosmo do bumba,
potencializando práticas corporais que dão, aos brincantes, acessos a estados de espírito
variados, ou se preferirmos, a devires minoritários. Como a própria manifestação dramática do
cordão, em que brincantes ativam estados corporais vigorosos segundo seus personagens, que
se dispõem numa formação que apresenta ordenadamente uma diferenciação entre humano e
não humano. Mas é da própria natureza dessa formação dissolver-se num regime de variação
e improviso. Mas essas técnicas formam os corpos do batalhão que por sua vez possuem uma
identidade que fomenta o pertencimento. Porque os brincantes aprendem a brincar boi em
algum grupo em sua comunidade, e com efeito, começam a se pensar a partir desse grupo. "É
PINDARÉ!". Mas a brincadeira admite a circulação de brincantes entre bois, pois como
sabemos, ela segue o vetor da variação, mas desde que não seja um "contrário". Isto é, a
brincadeira possui seus modos particulares convencionais de conservarem o pertencimento.
Porque o contrário ele é um outro, é seu rival. Na miríade das relações entre os grupos de boi,
encontramos uma arena de disputa, que podem ser mortais, como também das alianças, que
sempre se remetem ao passado e se manifestam nas toadas e no embate na avenida.
São João no Maranhão é uma temporada festiva mas que sempre estabelece uma
temporalidade marcante entre as pessoas brincantes. Eles se orientam fortemente por esse
tempo que se inicia e se fecha todo ano. Mas para além, no presente trabalho, tentei mostrar o
caráter religioso que esse tempo manifesta, sempre a partir do sábado de aleluia no mês de
84

abril, em que intensidades religiosas e sagradas se apresentam e se compõem com o cosmo


humano. O tempo em que São Luís é povoado por entidades heterogêneas que produzem uma
longa e complexa festa, criando novas alianças e renovando as antigas através de dádivas e
promessas.
Mas finalmente, tentei refletir um movimento intensivo que os brincantes do Pindaré
estão experienciando que é o do "levantar do Boi de Pindaré". Essa experiência expressa
exatamente uma retomada ou reativar do boi e de suas alianças, visto que, momentaneamente
esteve desfeito. Esse "levantar" se coloca como uma potência que vigora entre os brincantes
que se dispõem a serviço do restabelecimento do boi, nesse campo difícil e ora perigoso da
brincadeira do bumba no Maranhão. É se reerguer numa luta com a política do Estado que a
todo momento negligencia os modos os quais a brincadeira é realizada segundo sua
heterogeneidade. O incessante ofuscamento das dimensões espirituais e intensivas que os
inúmeros grupos de bumba estão atravessados é a natureza do aparelho de captura do Estado
que não compreende e não busca compreender a complexidade da festa religiosa de São João.
É nesse aspecto que política e cosmopolítica se atravessam. Isto é, acionar a máquina de guerra
do Pindaré para se colocar nessa arena de disputa e cooperação entre humanos e não humanos,
entre contrários e o aparelho de captura, numa ação prudente de preservar a brincadeira e evitar
que ela seja canibalizada pelo leviatã mercadológico.
85

Imagens
86

(Os três artefatos de boi no altar localizado no fundo do salão da sede, no bairro de Fátima)

(Velas colocadas em frente ao altar do boi logo após o batizado pelos brincantes como
firmamento de promessa)
87

(Brincada após o batizado na sede, no bairro de Fátima)

(Cazumbas se agrupando em filas em alguma brincada na madrugada do dia vinte e nove, dia
de são pedro)
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( Fileira de índias marchando pelo bairro da Madre Deus na manhã do dia de São Pedro, rumo
a capela de São Pedro)

( O Pindaré brincando e marchando rumo a capela de São Pedro no dia de São Pedro)
89

( Os cantadores e amos do boi na procissão na manhã do dia de São Pedro: Hermínio castro a
esquerda, Bigode no centro, e João Sá Viana a direita)

( Benedita Aroucha, dona do Boi de Pindaré)


90

(Baiantes: Marlí e Theresa brincando em algum arraial com o Pindaré)

(Momento do batizado do boi)


91

(Batuqueiros)

(Buguelo, rolador, miolo, arma, fato.)

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