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Niterói
2019
SUMÁRIO
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Introdução 1
Capítulo 1 - Uma breve reflexão sobre cosmopolítica rumo ao levantar do Boi de Pindaré
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Introdução
monografia gostaria, aqui, de delinear algumas origens que o festejo possui que remontam ao
século XVIII e XIX e alguns elementos e semelhanças que o festejo compartilha com outros
que são encontrados em diversos estados, como Bahia, Pernambuco, Ceará, Alagoas, Minas
Gerais, Goiás, e Santa Catarina.
Câmara Cascudo em seu livro, Literatura Oral no Brasil, descreve as formas dramáticas
em que ele encontra no folclore brasileiro, o chamados autos, em que reúnem-se Congadas,
Bumba Boi, Reisados, etc. Chega a considerar o auto do Bumba Boi como “superior” aos
demais: “Bumba meu Boi é superior a qualquer outro dos autos pela variedade, multiformidade
das fisionomias fixadas e dos episódios criticados. “(Cascudo, 432). Destaca assim a variedade
das formas presentes e sua complexidade em lidar com o contexto dos escravos e libertos,
evocando a ironia com que as toadas se referiam ao senhorio dos engenhos ou aos capitães do
mato. Neste sentido o autor destaca o folguedo ligado ao contexto das fazendas de engenho
açucareira e sua interpretação tende a compreendê-lo como parte da miscigenação ou
mestiçagem constituinte da sociedade brasileira como um todo, em especial, a mistura de
brancos e negros presente no folguedo.
Já Arthur Ramos desenvolve uma interpretação que ficou comum entre diversos
estudiosos acerca das origens históricas do boi: ameríndia, européia e africana, devido,
geralmente a centralidade “totêmica” do boi envolvida em teatros populares ou autos festivos
que remetem sua origem aos inícios da Idade Média e as festas rurais gregas. Descreve o boi
como um teatro encenado na rua com a participação de músicos e um sem número de
personagens que poderiam representar essa origem plurívoca. De uma maneira ou de outra o
boi foi se misturando aos outros autos dramáticos existentes no Brasil desde o século XVIII, e
que continham certas relações com os ciclos festivos realizados durante o natal, fato é que há
evidências de realizações de festas do bumba durante este período.
Edison Carneiro destaque outro ponto importante: a centralidade da ressurreição e
morte do boi como objetivo ou “leitmov” central dos autos dramáticos do bumba. Evidente
que constata que este tema central perde relevo a partir das variações regionais que o deturpam,
envolvendo a encenação com uma gama de personagens que ofuscam o tema central. Neste
sentido é que o autor explica como o Boi pode ser relacionado às festividades religiosas, pois,
argumenta que este auto nada tem de religioso, posto que há personagens que desvalorizam a
figura do sacerdote, além da “brincadeira” ter um aspecto mais “lúdico” do que “litúrgico”. O
autor, por conseguinte, compreende que esta função lúdica, envolvendo a depreciação das
classes superiores é a verdadeira função ou papel que a brincadeira desempenha, de certa
forma, representando o descontamento dos participantes com a “realidade envolvente”.
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com agentes do estado, por um lado, e outros grupos rivais ou não de bois, por outro. Essas
relações estão permeadas por compromissos vitais com entidades religiosas, sejam católicas
ou oriundas dos cultos afro-brasileiros presentes no maranhão. Este campo complexo de
relações mostrou uma forma particular desses grupos colocarem questões e se engajarem em
problemas que denominamos políticos. Isto é, os brincantes pensavam e realizavam a política
de maneiras diferentes, não convencional, embora não deixem de lado as relações
institucionais e burocráticas. Podemos dizer que esses problemas e essas relações se travavam
num regime de alianças com entes humanos e não humanos e de disputa no cosmo
sociopolítico do bumba. Ou seja, pela relação de alteridade entre seres heterogêneos.
Em São Luís, essa é a forma geral que se apresentam os grupos de boi, e nesse sentido,
essa monografia se pretende adentrar o cosmo do bumba maranhense, especificamente o Boi
de Pindaré para refletir sobre as relações políticas e cosmopolitas sempre seguindo o vetor da
diferença e da alteridade.
Pretendo pensar o preparo e o desdobramento da brincadeira dramática do boi como
um campo de encontros entre agentes humanos e não humanos em que estes criam e colocam
seus problemas de maneira própria. Essa maneira particular que esses grupos se pensam e se
relacionam , geralmente, está fora das assembleias modernas, de onde são tomadas as decisões
que afetam essas pessoas ofuscadas. Mas eles perseveram e criam suas lutas, através de seus
modos particulares de manterem a consistência daquilo que lhes é importante e imprescindível.
É sobre esse aspecto que a proposição cosmopolita se coloca, isto é, para pensar os modos
heterogêneos e diferentes que as multiplicidades agem e se estabelecem no mundo.
O Boi de Pindaré é um grupo que figura um cosmo particular que necessariamente trava
relações de disputa e de aliança com outros agentes. Logo, é esse modo de operar relações
políticas entre cosmos heterogêneos, que é expressivo dos grupos de boi, que interessa o
presente trabalho. Com efeito, primeiramente iremos refletir sobre como pensar a política
acompanhando o vetor da diferença, através da micropolítica de Deleuze e Guattari e da
proposição cosmopolítica de Isabelle Stengers, para logo seguir o Pindaré em seu modo de
realização da brincadeira que em certo momento começou a se apresentar como um reativar
ou levantar do Boi de Pindaré, visto que ele havia sido desfeito e desligado.
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Este capítulo tem como objetivo delinear algumas compreensões teóricas para abordar
sob uma perspectiva política o trabalho de campo que realizei com o grupo boi de Pindaré,
sediado em São Luís, MA. Primeiramente apresentarei de maneira breve alguns estudos
clássicos sobre política em antropologia, para encaminhar a reflexão a outra perspectiva. A
abordagem que adotamos aqui privilegia a dimensão da micropolítica delineada por Deleuze
e Guattari (1981), a dimensão da cosmopolítica defendida por Isabelle Stengers, leitora
rigorosa de Deleuze e Guattari, além da relação afro-indígena e do sincretismo, como forma
de aliança imanente entre cosmos distintos, apresentado por Marcio Goldman e José Carlos
Gomes dos Anjos. O objetivo é traçar outra perspectiva aos estudos sobre política na
antropologia e que abordam os fenômenos sem privilegiar a importância do Estado ou dos
temas tradicionais da política, como eleições, partidos, organizações, movimentos sociais, etc.
A intenção desta monografia é, a partir das dimensões apontadas acima, pensar sobre
as relações de disputa como também da aliança no boi de Pindaré. Alianças firmadas entre
pessoas que são constituídas ou inseridas num regime de técnicas corporais, musicais,
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artesanais, dramáticas e religiosas do bumba meu boi. Pessoas brincantes que figuram uma
poderosa festa religiosa e cheia de mistérios que se expressa em seus personagens
emblemáticos e inumanos, que por sua vez conjuram forças e encadeamentos as vezes
imprevisíveis.
O mistério também se faz presente no alto ou mito do boi, encadeado na dança que
possui uma forma peculiar quando pensamos a dimensão da heterogeneidade e da
religiosidade. O aspecto do heterogêneo é de súbito expressivo na brincadeira do boi e se
manifesta em várias dimensões como nas técnicas, nos materiais, na dança e nas alianças.
Alianças com entidades humanas e não humanas. O boi é uma festa em louvor a santos
católicos, e no caso do Pindaré, também é designada por entidades encantadas1. Mas além
desses aspectos que constituem a brincadeira e a vida dos brincantes, estes mesmos apresentam
uma postura peculiar que alguns chamam de "levantar do Boi de Pindaré".
Essa inclinação se apresenta às vezes como uma atmosfera em que os brincantes vivem,
que permeia seus afetos e o seu comprometimento e tem origem num certo acontecimento que
ocorreu durante a troca de geração e diligência do Pindaré. O momento em que alguns
"fundamentos" e artefatos religiosos foram quebrados e o boi desativado por sua dona, o que
gerou consequências severas na vida dos brincantes e na dela própria. A partir de então, a dona
do Pindaré foi intimada em sonhos pelos guias do boi a reativá-lo. O Levantar é um reativar
das potências do Pindaré, isto é, uma retomada da brincadeira e das alianças intensivas que a
sustentam. Essa inclinação compreendo e tentarei defendê-la como uma prática política e
cosmopolítica pois consiste na retomada de potências que estão em jogo num campo composto
de forças e agentes heterogêneos. Os desdobramentos etnográficos do Boi de Pindaré e a
operação do "levantar do Boi” serão feitos no próximo capítulo.
Este primeiro capítulo empreende uma reflexão sobre desenvolvimentos de alguns
autores a respeito de teorias que vieram a ser conhecidas como teorias da diferença. E a questão
da diferença se faz central na reflexão que intento aqui, visto que esses aspectos da
multiplicidade e da heterogeneidade, como dito acima, são expressivos no campo de práticas
cosmopolíticas. Trataremos dessa perspectiva no decorrer deste capítulo. Senti a necessidade
de fazer a breve explanação acerca da problemática do levantar do Boi de Pindaré para
partirmos desta e seguirmos os desdobramentos teóricos. Comecemos estão com a
apresentação dos estudos clássicos sobre política em antropologia.
1
"Encantados" é a designação para seres invisíveis que já foram vivos em corpo visível mas que não passaram
pela experiência da morte. Eles se encantaram em algum momento. Ver: PRANDI, Reginaldo ( org.). Encantaria
Brasileira: o livro dos mestres, caboclos e encantados. Rio de janeiro: Pallas, 2011.
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fissuras e a aceleração dos fluxos moleculares que operam a queda das estruturas molares (um
levante político; uma festa; fascismo de massa!). Mas há ainda uma terceira espécie de linha,
uma linha mais simples que efetua um desvio maior, uma linha que segue através das outras,
mas que leva a uma destinação desconhecida. Linha de ruptura, linha de fuga (aliança
demoníaca; devir; máquina de guerra).
Somos segmentaridades por todos os lados e em todas as direções. O homem é um
animal segmentário. A segmentaridade pertence a todos os estratos que nos compõem.
Habitar, circular, trabalhar, brincar: o vivido é segmentarização espacial e
socialmente. A casa é segmentarização conforme a destinação de seus cômodos; as
ruas, conforme a ordem da cidade; a fábrica, conforme a natureza dos trabalhos e das
operações. Somos segmentaridades binariamente, a partir de grandes oposições duais:
as classes sociais, mas também homens e mulheres, os adultos e as crianças, etc.
(DELEUZE E GUATTARI, 2012a, p. :92)
Mas é preciso lembrar que as linhas molares, moleculares e de fuga são imanentes umas
às outras, isto é, são simultâneas, se embaralham, se atravessam. Elas são diferentes, mas
inseparáveis. As linhas de segmentaridade dura, molar possuem a tendência e o esforço de
capturar, recodificar e sobrecodificar as linhas que escapam a molaridade, porque a própria
linha de segmentaridade dura conjura as linhas de fissura, molecular e as linhas de ruptura, de
fuga. Cada espécie de linha é a causa imanente de si e das outras.
Não basta pois opor o centralizado e o segmentário. Mas tampouco basta
opor duas segmentaridades, uma flexível e primitiva, a outra moderna e endurecida,
pois as duas efetivamente se distinguem mas são inseparáveis, embaralhadas uma com
a outra, uma na outra. As sociedades primitivas têm núcleos de dureza, de
arborificação, que tanto antecipam o Estado quanto o conjuram. Inversamente, nossas
sociedades continuam banhando num tecido flexível sem o qual os segmentos duros
não vingariam. Não se pode atribuir a segmentaridade flexível aos primitivos. Ela não
é nem mesmo a sobrevivência de um selvagem em nós; é uma função perfeitamente
atual e inseparável da outra. Toda sociedade, mas também todo indivíduo, são pois
atravessados pelas duas segmentaridades ao mesmo tempo: uma molar e outra
molecular. Se elas se distinguem é porque não tem os mesmos termos, nem as mesmas
correlações, nem a mesma natureza, nem o mesmo tipo de multiplicidade. Mas se são
inseparáveis, é por que coexistem, passam uma para a outra, segundo diferentes
figuras como nos primitivos ou em nós - mas sempre uma pressupondo a outra. Em
suma, tudo é político, mas toda política é ao mesmo tempo macropolítica e
micropolítica.( DELEUZE E GUATTARI, 2012a, p. 99)
Faz-se necessário neste momento fazer um breve desenvolvimento que visa esclarecer
o que seriam linhas moleculares. Que espécie de linhas seriam essas? As linhas moleculares
designam movimentos que procedem nos limites, nas bordas das estruturas e das formas
molares. Essas linhas se compõem do transbordamento dos segmentos. O fluxo ou o
movimento que os segmentos não suportam, não conseguem canalizar, quantificar, mensurar,
restringir. Todo casal está submetido às diferenças de sexo, idade e temperamento, e constitui
uma certa segmentaridade entre homens e mulheres. Porém, essas relações sempre passam por
sobre as determinações duras de ser homem ou mulher, movimentos, percepções,
pensamentos, sentimentos ou afetos que fazem os limites se dissolverem, as fronteiras entre os
sexos perderem a evidência, porque o limite entre os segmentos deixa passar fluxos de coisas
que não suportam ser enquadradas e fazem esmorecer as barreiras que as separam. E isso
também pode ser aplicado nas divisões binárias entre adulto e criança, jovem e idoso, animal
e humano, patrão e empregado. O entendimento aqui é que na sociedade as divisões são claras
e segmentadas, formadas por barreiras fixas e intransponíveis, porém, elas estão sempre
sujeitas a sofrerem as transformações daquilo que deixam passar, que circulam ou percorrem
seus segmentos, deixando um rastro de transformação. Portanto essas linhas designam um
impulso que constitui devires, blocos de devir, acoplando os fluxos em máquinas mutantes,
diferentes daquelas do Estado, máquinas binárias. Essas máquinas são criadas juntamente com
os agenciamentos dos fluxos que levam os grupos ou os indivíduos a uma destinação que não
a da identidade, do território e dos segmentos molares.
As linhas moleculares comportam uma diferenciação que as levam a uma dimensão
outra daquela da segmentaridade dura. Elas comportam certo risco. É porque aquilo que
transborda nos segmentos, o fluxo que faz as fronteiras entre as coisas se dissolverem, faz as
diferencas entre homem e mulher, natureza e cultura perderem a nitidez e entrarem em
consonância. Como se os estratos se apagassem para que um contínuo de intensidade se
delineie entre os limites ou os opostos. É neste continuum de intensidades que podemos
compreender a natureza dos fluxos e sua maneira própria de circularem no interior dos estratos.
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espaço liso, não estriado, não codificado, como daquele do Estado e da cidade, em que os seres
poderiam se compor de formas variáveis.
Porém, mais geralmente, vimos que a máquina de guerra era invenção nômade, porque
era, na sua essência, o elemento constituinte do espaço liso, da ocupação desse espaço,
dos homens; é esse seu único e verdadeiro objetivo (nomos). Fazer crescer o deserto,
a estepe, não despovoa-los, pelo contrário. Se a guerra decorre necessariamente da
máquina de guerra, é porque esta se choca contra os Estados e as cidades, bem como
contra as forças (de estriagem) que se opõem ao objetivo positivo; por conseguinte, a
máquina de guerra tem por inimigo o Estado, a cidade, o fenômeno estatal e urbano,
assume como objetivo aniquila-los.(DELEUZE E GUATTARI, 2012c, p.109)
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Em a floresta de cristal, Viveiros de Castro faz uma apresentação sobre o plano de imanência xamânico dos
yanomami. Cito: "No primeiro tempo, quando a floresta ainda era jovem, nossos antepassados eram humanos
com nomes de animais e acabaram virando caça. São eles que flechamos e comemos hoje. Mas suas imagens não
desapareceram e são elas que agora dançam para nós como espíritos xapiripe. Estes antepassados são verdadeiros
antigos. Viraram caça há muito tempo mas seus fantasmas permanecem aqui.Tem nomes de animais mas são
seres invisíveis que nunca morrem.(...) Nós guardamos as palavras dos nossos antepassados dentro de nós há
muito tempo e continuamos passando-as para os nossos filhos. As crianças, que não sabem nada dos espíritos,
escutam os cantos dos xamãs e depois querem que chegue a sua vez de ver os xapiripe. É assim que, apesar de
muito antigas, as palavras dos xapiripe sempre voltam a ser novas. São elas que aumentam nossos pensamentos.
São elas que nos fazem ver e conhecer as coisas de longe as coisas dos antigos. É o nosso estudo, o que nos ensina
a sonhar." Nesta citação, Viveiros de Castro observa que as palavras dos xamãs, seus ensinamentos correspondem
ao contato entre os yanomami do presente com seus antepassados. Espíritos yanomami que possuíam nomes de
animais e com o decorrer do tempo, desenvolveram outra natureza, outra roupagem, outro corpo, corpo de caça.
São eles que seus filhos, os indígenas yanomami do presente, caçam hoje. Mas a concretude cosmológica desse
processo evoca um outro tempo, um tempo não espacializado. O tempo em que antepassados yanomami que
tornaram-se animais convivem com seus descendentes do presente. Um tempo que designa uma multiplicidade
virtual intensiva, que se atualiza via a filiações intensivas. (VIVEIROS DE CASTRO,, 2006, p. 320 apud
Kopenawa & Albert 2003)
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Viveiros de castro nos apresenta uma fórmula mais concisa: "A inconstância da alma selvagem, em seu
momento de abertura, é a expressão de um modo de ser onde "é a troca, não a identidade, o valor fundamental a
ser afirmado" (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 206)
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da aliança com multiplicidades e elementos heterogêneos nos faz pensar sobre a política? Eis
um problema fundamental.
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Donna Haraway (1988), em Saberes Localizados, versa sobre a perspectiva transcendentes dos saberes ou
caráter totalizante das ciências modernas. “O ponto de vista de Deus”. A filósofa alerta sobre os problemas
implicados sobre essa perspectiva que não possui um lugar, um corpo demarcado, que por se pretender totalizante
e homogeneizante, está em todo lugar. Portanto, logicamente, em lugar nenhum. Haraway aponta também a
tendência que essa perspectiva se faz, dos saberes modernos ocidentais e pós-modernos, destacando a
impossibilidade que essa perspectiva teria de ativar uma saída política do ponto de vista totalizante para as
composições e conexões parciais com outros saberes.
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convergiriam todos, mas uma proliferação de cosmos, de dimensões plurívocas, que por sua
própria natureza não podem se reduzir a uma dimensão homogeneizadora. Aqui cito Stengers:
O cosmos, aqui, deve portanto ser distinguido de todo cosmos particular, ou de todo
mundo particular, tal como pode pensar uma tradição particular. E ele não designa
um projeto que visaria a englobá-los todos, pois é sempre uma má ideia designar um
englobante para aqueles que se recusam a ser englobados por qualquer outra coisa.
O cosmos, tal qual ele figura nesse termo, cosmopolítico, designa o desconhecido
que constitui esses mundos múltiplos, divergentes, articulações das quais eles
poderiam se tornar capazes, contra a tentação de uma paz que se pretenderia final,
ecumênica no sentido de que uma transcendência teria o poder de requerer daquele
que é divergente que se reconheça como uma expressão apenas particular do que
constitui o ponto de convergência de todos (...) (STENGERS, 2018, p. 447)
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Em a imanência do inimigo, Viveiros de Castro reflete acerca das implicações imanentes da cosmologia araweté
sobre o matador araweté. É certo que os indígenas araweté quando morrem, chegam ao céu em espírito corrupto
e mesquinho. Por essa razão são devorados, canibalizados pelos deuses arawetés, a fim de renascerem em forma
não corrupta. Isso não se aplica ao matador araweté. Este ao matar sua vítima está fadado a ser acompanhado
pelo espírito dela. O matador araweté é perturbado, canibalizado pelo espírito de sua vítima, ele contém o sangue
de sua vítima em seu estômago, em seu corpo. Com o tempo, através de práticas rituais, o espírito da vítima e o
do matador, que compartilham a mesma casca, vão estabelecendo formas criativas de comunicação e composição.
O espírito da vítima, que é um outro, vai revelando ao matador novas palavras. O matador araweté é um inimigo
em potencial, pois habita dois cosmos, que por ser acompanhado, perturbado e conduzido pelo espírito de sua
vítima, corresponde a uma ameaça para o grupo, está em uma relação de devir com o espírito de sua vítima. Mas
ele ainda é um araweté. Dir-se-ia que por experienciar o processo de ser canibalizado pelo espírito de sua vítima,
quando morto, o matador araweté é temido e respeitado pelos deuses e portanto não é canibalizado por estes.
Nesse sentido é certo que o matador araweté habita um campo limite, de composição, de devir outro, com seu
inimigo. "A relação é criada precisamente pela supressão de um de seus termos, que é introjetado pelo outro; a
dependência recíproca que liga e constitui os sujeitos da troca atinge aqui seu ponto de fusão - a fusão dos pontos
de vista -, onde a distância extensiva e extrínseca entre as partes converte-se em diferença intensiva, imanente a
uma singularidade dividida. A relação de predação constitui-se em modo de subjetivação.(...) ego e inimigo, essa
entidade "monopolar"que é o matador constitui-se por involução ou implicação, determinando-se como foco
virtual de uma condensação predicativa onde a dupla negação - eu sou inimigo de meu inimigo - não restitui uma
identidade que já estaria lá como princípio e finalidade, mas, ao contrário, reafirma a diferença e a faz imanente
- eu tenho um inimigo, e por isso o sou(...)"(VIVEIROS DE CASTRO,, 2002, p. 293)
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política está povoada pelas sombras dos que não tem, não pode ter ou não quer ter voz
política(...)”(STENGERS, 2018, p. 447).
Conferir uma dimensão “cosmopolítica” aos problemas que pensamos sob o modo
da política não se refere ao registro das respostas, mas coloca a questão sobre a
maneira como podem ser escutados”coletivamente”, no âmbito do agenciamento
através do qual se propõe uma questão política, o grito de pavor ou o sussurro do
idiota (...) Não se trata de se dirigir a eles, mas de agenciar o conjunto de maneira tal
que o pensamento coletivo se construa “em presença” da questão insistente que eles
fazem existir. Dar a essa insistência um nome, cosmos, inventar a maneira mediante
a qual a “política” que é a nossa assinatura, poderia fazer existir seu “ duplo cósmico”
[doublure cosmique], as repercussões disso que vai ser decidido, disso que constrói
suas razões legítimas, sobre isso que permanece surdo a essa legitimidade, eis a
proposição cosmopolítica. ( STENGERS, 2018, p. 448)
Isabelle Stengers nos mostra que a cosmopolítica apenas adquire sentido em situações
concretas, isto é, ela requer praticantes e com efeito se torna uma proposição inerente à própria
política. Se a cosmopolítica requer praticantes e, por essa razão, é uma questão política, no
sentido mais usual do conceito, podemos dizer que toda política pressupõe uma cosmopolítica,
assim como toda macropolítica pressupõe uma micropolítica. Mas isso não nos autoriza a dizer
que todos os agentes, indivíduos ou grupos pratiquem a cosmopolítica, porque a proposição é
uma prática ativada pelo esforço de desacelerar os raciocínios, evitar as soluções rápidas, que,
por sua vez, os agentes, grupos ou indivíduos podem não praticar. Aqui pretendo levantar a
seguinte questão: O Boi de Pindaré é praticante da cosmopolítica? Essa questão será
desenvolvida no capítulo seguinte.
1.5 Bricolage
A discussão apresentada e proposta no presente trabalho traz a problemática insistente
dos agenciamentos e composições com a heterogeneidade, o pensamento que provoca o pavor
ou a guerra prudente travada entre multiplicidades. Tendo em vista a criatividade dos
brincantes do Bumba e os aspectos do catolicismo e das intensidade afro-brasileiras co-
participantes queremos destacar mais de perto como esta feitura se realiza. Trazemos a
abordagem do bricolage proposta por Lévi-Strauss para que esta dimensão se torne mais
evidente.
Em A Ciência do Concreto, Lévi-Strauss explora dois modos de pensamento: O
pensamento em estado selvagem, propriamente operado pelos povos selvagens e o pensamento
científico moderno. Podemos nos esclarecer sobre a natureza dos dois modos de pensamentos
através das palavras do próprio autor:
(...) O paradoxo admite apenas uma solução: é que existem dois modos diferentes de
pensamento científico, um e outro funções, não certamente estágios desiguais do
desenvolvimento do espírito humano, mas dois níveis estratégicos em que a natureza
se deixa abordar pelo conhecimento científico - um aproximadamente ajustado ao da
percepção e ao da imaginação, e outro desloca; como se as relações necessárias,
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objeto de toda ciência, neolítica ou moderna, pudessem ser atingidas por dois
caminhos diferentes: um muito próximo da intuição sensível e outro mais
distanciado. (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 31)
abordagem tende aproximar mito e obra de arte como que operando por meio do fato e da
estrutura. A obra de arte tem como objetivo reunir um ou vários objetos e um ou vários fatos
para conferir a eles um caráter de totalidade, partindo deles, então para se chegar a estrutura
que os subjaz. Os mitos, ao contrário, utilizam uma estrutura como uma maneira de oferecer
um conjunto ordenado e esquematizado de fatos e histórias.
Aqui, pretendemos apenas compreender as dimensões imbricadas que o fenômeno da
bricolage desvela. Se num objeto artístico, os elementos utilitários e aqueles menos ligados a
dimensão da prática, ligados a apreciação estética, estão imbricados e formam um amálgama,
como no exemplo da arma que Lévi-Strauss descreve no texto, então, há uma dimensão
digamos "compósita" dos elementos, em que eles podem ser conjugados não apenas em uma
função específica, mas também, na composição heteróclita dos elementos, outras dimensões
podem ser acopladas e conjugadas. A questão que pretendemos aproximar com as elaborações
de Deleuze e Guattari (2011) e com as de Stengers (2018), é a da composição e relação com
multiplicidades, com a heterogeneidade. As máquinas desejantes desenvolvidas em O Anti-
Édipo se conjugam como bricolage, ou seja, reúnem em suas múltiplas dimensões elementos
heterogêneos ou heteróclitos que produzem outras funções do que aquelas que pudessem ser
previsíveis dado o conjunto instrumental, assim como um campo imanente de encontro dos
cosmos, o campo de pavor, não se sabe exatamente o resultado desses encontros. Um
instrumento pode ser combustível para uma máquina, uma matéria prima pode ter outras
funções dependendo do conjunto instrumental considerado, e é esta aproximação que
pretendemos aqui elaborar. O arranjo e rearranjo tanto das máquinas quanto do bricolage segue
uma relação de imprevisibilidade e de constituição muito semelhante aquelas realizadas pelas
obras de arte e pelos artistas.
1.6 Afroindígena
A partir daqui, pretendo acompanhar essa caminhada teórica que encorpa o presente
capítulo e promover uma reflexão teórica, etnográfica e histórica apresentada por Marcio
Goldman (2017).
Goldman (2017) elabora a pertinência do conceito de Afroindigena. Afroindígena
designa uma relação que se fez necessária a ser pensada também a partir do trabalho de Cecília
Campello do Amaral Mello (2003) a qual Goldman se refere explorando sua dimensão
histórica e cosmopolítica. A partir do trabalho de Mello(2003) que versa sobre um grupo de
pessoas que se pensam como “afroindígenas”, o conceito alcançou proporções filosóficas e
políticas e tornou possível uma reflexão cosmopolítica a respeito dos encontros e
agenciamentos que se atualizam ao longo da história do Brasil, o encontro entre quase 10
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politicamente descartado. “(...) Nessa história, que é a de todos nós, coexistem poderes mortais
de aniquilação e potências vitais de criatividade” (GOLDMAN, 2017, p. 12)
Acompanhando a trajetória do pensamento social brasileiro, é possível identificar a
questão da mestiçagem e do sincretismo como problema motor da consolidação das ciências
sociais no Brasil. A busca incessante de alcançar uma "identidade nacional", por parte dos
intelectuais, das ciências sociais brasileiras representa um dos maiores problemas políticos,
históricos e sociais da história desse país. Essa marcha que vislumbrava estabelecer, durante e
depois do século XIX, uma harmonia, equilíbrio, ordem entre os povos que compunham o
Brasil e cunhar uma ideia de nação homogeneizada estava baseada em proposições racialistas,
que geraram os efeitos mais nefastos.
Sabe-se que muitos pensadores das ciências sociais brasileiras versaram sobre as
questões da mestiçagem e do sincretismo, tanto em relação aos povos indígenas quando em
relação aos povos negros. Nessa chave, poderíamos citar pensadores como Nina Rodrigues,
Arthur Ramos, Gilberto Freyre e Edson Carneiro. Para esses pensadores a questão racial se
tornou fundamental a ser pensada, muito embora, divergissem em relação às soluções para a
identidade nacional. Em certo ponto era preciso desenvolver o pensamento acerca da
mestiçagem, que seria o processo de entrecruzamento de brancos, negros e indígenas baseado
em fundamentos biológicos e fenotípicos, de outro modo fazia-se necessário pensar a respeito
do sincretismo, que baseava-se na mistura, camuflagem e purificação de um grupo
subalternizado, do ponto de vista étnico, cultural e religioso. Para muitos pensadores da época,
a questão da mestiçagem seria a saída para uma equalização racial da nação brasileira, que,
por fim, entregaria à nação sua identidade, o povo brasileiro. Mas haviam também aqueles que
manifestavam suas preocupações racistas a respeito do risco que a mestiçagem oferecia a
"pureza" e ao privilégio das camadas brancas européias brasileiras. Apesar de divergirem
acerca da orientação de suas preocupações a respeito da mestiçagem ( os que a defendiam e os
que a condenavam), ambas as partes estavam orientadas em pressupostos racialistas, de
mistura, estabilização e homogeneização.
Essa identidade nacional que deveria ser cunhada partindo do "famigerado mito das
três raças" foi pensado a partir de um ponto de vista transcendente, privilegiado, o ponto de
vista do branco. A tentativa de embranquecer a sociedade através da entrada em grande escala
de imigrantes europeus no Brasil durante o século XX é uma prova desse ponto de vista
dominante. Mesmo os pensadores que tinham como guia sua boa fé e simpatia para com a
mestiçagem, baseavam suas reflexões segundo perspectivas sociológicas, isto é, processos de
integração das classes e grupos subalternos à sociedade e ao Estado. O desenvolvimento dessas
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as pessoas entrevistas, um terço delas disse compreender Iemanjá e a santa "como a mesma
coisa", outros um terço acredita haver relações mas diz que são distintas entre si, e outros um
terço considera a procissão apenas como católica.
Outra procissão também é realizada em paralelo a esta, mas em meios fluviais, a partir
de uma embarcação levando algumas centenas de pessoas pelas águas do rio Guaíba.
Entretanto esta procissão atualmente não é oficial e foi proibida de ser organizada pela igreja
católica devido a um acidente ocorrido no Rio de Janeiro que colocou o temor que o mesmo
ocorresse em Porto Alegre. Mesmo assim, os praticantes a realizam no mesmo dia da santa, e
costumam acompanhar ambas as festas.
Alguns elementos compõem as duas festas e as aproxima enquanto um agenciamento
único. As pessoas que saem pelas ruas acompanhando a imagem, costumam levar consigo uma
pequena imagem da santa, e seguem a música que o carro de som ecoa. O que leva a Gomes
dos Anjos compreender que a conjugação dos corpos em movimento nas ruas, junto com uma
certa disposição que eles possuem induzida pela música e pelo "ritual" levam-nos a certas
composições singulares. Os corpos em movimento terrestre (territorial) por causa de uma
figura religiosa e em contato com uma certa música é balizado por forças cósmicas,
poderíamos dizer heterogêneas, que modulam e fazem a procissão acontecer enquanto uma
"festividade"em louvor a santa. O mesmo se passa com a procissão fluvial, que encadeia uma
maneira de povoar as águas do rio como uma comunhão com os elementos constituintes da
divindade, além da presença da música. Outro elemento que a festa encadeia, referenciais de
ambas as divindades, é a melancia, alimento que tipicamente a população costuma consumir
quando da ocasião da festa, chegando mesmo a consumi-la durante a procissão.
O sincretismo elaborado por esses praticantes estaria ligado, na compreensão de Anjos,
a relaçao de três elementos: "componentes dimensionais vinculados à presença de agentes de
ordem, intra-agenciamentos da ordem do desejo cristalizados na imagem da santa e produçaõ
da presença." (Anjos 2009). Neste sentido a composição que a procissão realiza territorializa
no corpo dos devotos signos e afetos cristalizados a partir da imagem da santa. As pessoas
juntas conjugadas a partir e por causa da santa compõe uma territorio que modula, organiza e
regula os corpos e mentes, porque se aliam a potência de um agenciamento operado entre
"domínios" ou em conjugação com uma dimensão composta de heterogêneos, como aquela
entre santos católicos e divindades afro-brasileiras.
Abre-se, assim, a possibilidade de cotejarmos a hipótese segundo a qual a devoçaõ a
Nossa Senhora dos Navegantes em Porto Alegre foi se fortalecendo na sobreposiçaõ
de territórios cosmológicos (católico e afro-brasileiro). Como Nossa Senhora e/ou
30
meio/ferramenta teórica para refletir os problemas implicados pelos brincantes e pela própria
brincadeira do boi. Com efeito, o boi está envolvido com a dimensão da relação entre humanos
e não-humanos, a política e a micropolítica, a criatividade bricoleur, o perigo de abolição e a
relação com o estado, a questão do levantar do boi e sua problemática cosmopolítica.
A brincadeira do bumba boi envolve elementos e agentes distintos mas que,
brevemente, podem ser elencados como: brincantes, fardas e roupas, materiais de artesanato,
instrumentos musicais, alimentos, bebidas, o bairro e a cidade, cores e texturas. Mas
poderíamos dizer que os elementos não se reduzem a sua materialidade, pois que há a dança,
o mito, as toadas, as disputas, as alianças, as promessas e obrigações, os entes não humanos,
os afetos, as técnicas do corpo, a procissão, os espaços, o parentesco. A partir dos materiais
elencados os brincantes elaboram as fantasias dos dançadores, índios, cazumbas, além do
artefato boi. O manejo do bordado e do arranjo das roupas, tarefa desempenhada pelas
mulheres principalmente, parecia estar associado com matérias primas encontradas sem prévio
estabelecimento, e a colagem e confecção dos bordados pareciam ser feitos segundo uma
ordem improvisada. Essas mulheres pareciam compor a indumentária a maneira de um
bricoleur.
O campo social e cultural do Boi de Pindaré conjuga elementos materiais e socioafetivos,
como os apresentados acima. Ele admite brincantes de origem diferentes com relações
diferentes para com o grupo. Há muitos brincantes que "baiam" em mais de um grupo de boi,
diferentemente dos brincantes mais velhos e lideranças que possuem sentimento de
pertencimento para com o Pindaré. A brincadeira admite também o rompimento do grupo e a
criação de um segundo ou terceiro grupo de boi, que potencialmente pode tornar-se um rival,
um "contrário". Neste sentido, apresentaremos no próximo capítulo como se configura essa
dimensão política dos conflitos entre os grupos de bois, marcada pela disputa entre os
brincantes.
O Bumba boi é “firmado” sobre a alçada e a proteção de entidades não humanas que
podem reclamar comprometimentos e obrigações vitais para com os brincantes. Aliança. E o
nível intensivo dessas alianças ou o encontro de grupos rivais, sem o devido preparo e
prudência, pode ocasionar consequências mortais para as pessoas da brincadeira. Como um
caso de esfaqueamento entre brincantes de bois rivais que presenciei. Linha de abolição.
O Boi de Pindaré realiza a festa sustentado pelo movimento potente e criativo dos seus
brincantes que se firmam na força e na proteção dos santos e encantados. A relação das pessoas
com os santos católicos, a partir da dimensão da procissão, juntamente com a música e o
território da cidade se configuram como modos de experienciar estas intensidades que povoam
32
os corpos durante a festa. É portanto uma brincadeira atravessada por afetos de euforia, alegria,
confraternização, mas também, engendra obrigações e responsabilidades difíceis e pesadas.
Ela pode conjurar afetos tristes e mortais, como a disputa que encadeia a violência física entre
brincantes rivais que encorpam a história da brincadeira do boi em São Luís desde do século
XIX, segundo os jornais e periódicos da cidade muito bem demonstrado por Martins (2015).
As responsabilidades e obrigações envolvidas com o processo da feitura da festa são
“negociadas” na aliança e nos acordos dos brincantes com as potências e forças que compõem
a brincadeira e isto se refere também aos entes católicos e encantados. A brincadeira se realiza
num agenciamento de forças que trabalham e processam elementos oriundos de diversas
origens (tradições católicas, africanas e indígenas) que operam modulações precisas entre esses
cosmos.
Por fim apresento a questão do "levantar do boi" que faz pensar sobre este movimento
específico de reativar que se referem os brincantes e que parece trazer à luz uma dimensão
cosmopolítica. Benedita Aroucha, dona do Boi de Pindaré e Carolina Martins, historiadora,
pesquisadora e brincante do boi me falaram sobre o momento de decadência que o Pindaré
vinha passando ao longo dos últimos 10 anos. Essa decadência se deu devido a quebra de
certos fundamentos, de certos objetos sagrados e a apropriação de fardas, instrumentos e outros
elementos fundamentais para a brincadeira por ex-integrantes que saíram do boi e começaram
a brincar em outro grupo. A quebra desses fundamentos e assentamentos ocorreram na troca
de geração e de direção do boi. Segundo seu Bigode, mestre e cantador do Pindaré, a
brincadeira é feita em louvor aos Santos católicos, Santo Antônio, São João, São Pedro e São
Marçal, como também aos entes encantados dos cultos do Tambor de Mina e Cura,
principalmente, seu Tapindaré, entidade dona do Boi de Pindaré. Segundo seu Bigode, com a
quebra dos fundamentos, o boi entrou em decadência e os brincantes sofreram consequências
espirituais e de outras ordens, mas que estão relacionadas. Nesse sentido o boi teria diminuído
sua “potência criativa”, visto que perdeu o fundamento, o assentamento, que efetuava as
operações cósmicas necessárias para a brincadeira, isto é, os artefatos que selavam as alianças
intensivas do Pindaré. Segundo Benedita Aroucha, Carolina Martins, Seu Bigode e Seu Chico,
o Boi de Pindaré é um grupo que se constitui de maneira “tradicional”, entendido assim porque
é o segundo boi do sotaque de baixada criado em São Luís. Esta maneira “tradicional” de se
constituir se configura numa relação de convergência de promessas, obrigações e mistérios
que reúne e faz circular pessoas, coisas e seres e se constituiria como uma característica
particular do grupo.
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As relações elencadas entre entes humanos e não humanos nas confluência entre
elementos oriundos de tradições africanas, indígenas e católicas parece-nos próximo das
relações abarcadas pelo conceito de afroindígena (GOLDMAN, 2017). Isto porque os
brincantes se dizem católicos e frequentam festas de terreiros de Mina e Cura, ou de outra
maneira, porque o Boi de Pindaré se faz em louvor a santos católicos e tem como um encantado
seu dono. Esta “composição” de elementos oriundos de “localidades” díspares se configura
através e a partir da comunicação entre cosmos, mundos ou dimensões “heterogêneas”.
Heterogêneo no sentido de caracterizar a relação entre objetos, seres ou coisas que se
relacionam numa chave da “arbitrariedade”, “dispersão”, “imprevisibilidade”, “improviso”. É
devido a esta característica que essas dimensões em que estão presentes heterogêneos podem
e levam a provocar estados físicos e mentais de excitação, tontura, estremecimentos e
“irradiações”.
Mas, sobre o momento de decadência, segundo os integrantes mencionados acima, este
está passando, o boi está se levantando, pois, eis que os brincantes estão a retomar seus afazeres
e a reconstruir os fundamentos. É nessa retomada que o boi levantará, me disseram Carolina
Martins e seu Bigode. O Boi de Pindaré resiste a tendência de espetacularização das
programações do Estado e ao estado de decadência. É retomando as obrigações e a tradição
que o barracão pode voltar a ser povoado pelos “índios”, como me disse Dona Chica Preta,
brincante anciã do boi.
A retomada dos afazeres do Pindaré pode ser pensada como um reativar das potências
criativas, no sentido próprio que os brincantes me informaram, que será desenvolvido no
próximo capítulo, um reclaiming, conceito cunhado por Isabelle Stengers (2011) e pensado
rigorosamente por Renato Sztutman (2018). É nesse sentido que alguns brincantes se afirmam,
atualmente, em uma toada de autoria do Coxinho. Este famoso cantador e compositor
maranhense, ex cantador do Boi de Pindaré, e já falecido, cantava uma toada que versa, penso
eu, sobre esse reativar e o levantar do boi. Segue a toada cantada por Coxinho que compõe o
álbum do Boi de Pindaré gravado em 1976.
Eu me alegrei
Quando o Pandeiro tocou
Mandei botar no Jorná
Ê boi de Pindaré levantou”
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(Coxinho)
O Bumba meu Boi de Pindaré, consiste em grupos de pessoas, brincantes que em sua
maioria residem no bairro de Fátima localizado bem próximo do centro de São Luís, capital
do Maranhão. Os bairros de Fátima e Coroadinho concentram uma substancial quantidade de
grupos de bumba meu boi do sotaque de baixada e outros sotaques, como orquestra, matraca
e zabumba. São quatorze grupos de bumba meu boi do sotaque de baixada; dois grupos do
sotaque de orquestra; um grupo do sotaque de matraca e três grupos do sotaque de zabumba6.
Para além da questão estatística acerca da quantidade de grupos de boi, a maior parte dos
brincantes com quem conversei e fiz entrevistas habitam o bairro de Fátima. Para melhor
descrever a relação entre os brincantes, o bairro e o Boi de Pindaré é necessário, de maneira
breve, compreender quem são esses brincantes e saber a partir de qual lugar esses corpos
travam e constroem suas relações.
A maioria dos habitantes do bairro de Fátima e adjacências como também os brincantes
do Boi de Pindaré são pessoas negras. Isso nos leva a ideia de que as brincadeiras do boi tem
sua origem em alguma herança africana. Essa herança é percebida pelo êxodo de populações
negras da baixada maranhense para os bairros periféricos de São Luís, como seu Bigode,
cantador do Boi de Pindaré e Mestre de brincadeira, me relatou em entrevista, "o boi é coisa
de negro que veio da senzala, coisa que veio do mato". “A brincadeira parece ser uma prática
herdada dos negros escravizados que por lá viveram;” (CARVALHO, 2011, p.87). Os
brincantes do Pindaré, muitos deles, trabalham em atividades informais, como ajudantes de
pedreiro, diaristas, soldadores, etc. Por se tratar de um bairro periférico, o bairro de Fátima
apresenta grande quantidade de casas humildes com famílias numerosas. Vale ressaltar que
algumas pessoas e pesquisadores que conversei costumam dizer que o bairro de Fátima, assim
como outros que concentram grande número de pessoas negras, são quilombos urbanos.
6
Complexo Cultural do Bumba-meu-boi do Maranhão. Dossiê do registro como Patrimônio Cultural
do Brasil / Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. São Luís: Iphan/MA, 2011, p.98.
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O bairro de Fátima também expressa certa violência, como me foi relatado por diversos
interlocutores. Segundo Benedita Aroucha, muitos jovens, e isso inclui alguns batuqueiros do
Boi de Pindaré, já se envolveram ou se envolvem com "gangues", com atos violentos que
envolvem riscos de vida. A mesma me informou que o boi tenta evitar que muitos jovens do
bairro acabem entrando nesse "mundo". Ela acredita que o boi é uma grande família que cuida
de todos e, por esse motivo, tenta mudar o destino desses jovens a partir dos ensinamentos da
brincadeira. Benedita, como pude presenciar, toma conta e observa cada brincante, podendo
ficar, durante as apresentações, sem se alimentar e sem ter como voltar para casa para que
outro brincante possa. Sobre esse aspecto é possível refletir que essa realidade é expressiva
nos bairros periféricos de São Luís. Os habitantes do Bairro de Fátima e arredores compõem a
região de periferia como classe trabalhadora, trabalhadores informais e pessoas de baixa
escolaridade.
A vida do bairro está ligada ao que acontece nas sedes dos grupos de boi durante o
ciclo das festas de São João e de matança, ou morte do boi, que se faz em agosto. Muitas
pessoas iam até a sede do Pindaré apenas para assistir, participar e conversar, encontrar os
amigos, os conhecidos e os vizinhos. Essa relação apresenta o boi, e em especial o Boi de
Pindaré, como um espaço de vivência da comunidade e do bairro, como lugar de
confraternização, de ajuda, de solidariedade e de socialização. Muitos dos brincantes saíam do
seu trabalho e se encaminhavam a sede para participar das atividades, ajudar na confecção dos
adereços, ou até mesmo, como pude presenciar, assistir o jogo entre Brasil e Suíça da copa do
mundo de dois mil e dezoito numa pequena televisão instalada na sede num dia de brincada.
É como se a sede exercesse uma função comunitária.. "A formação dos grupos de Bumba-
meu-boi envolve aspectos religiosos, culturais e sociais. Como mostram os depoimentos estes
aspectos se entrelaçam aos vínculos comunitários de uma determinada localidade."(Martins,
2015 p. 73)
Como já dito, o Boi de Pindaré não é o único grupo de boi sediado no bairro de Fátima.
A relação do Pindaré e seus brincantes, com outros brincantes de outros bois é relativa a
história do grupo, visto que ele é o segundo boi mais antigo do sotaque de baixada em São
Luís. Com efeito, segundo os relatos dos brincantes, a fundação de outros bois de sotaque de
baixada teve origem a partir de dissidências de antigos brincantes do Pindaré. Nesse sentido é
possível apontar dois cenários. Em primeiro plano, há grupos de bumba boi que apesar de sua
dissidência não desenvolveram relações conflituosas com o Boi de Pindaré, como o boi União
da Baixada e o Boi Capricho do Povo, de seu Antoninho. Por outro lado existem aqueles
grupos que o próprio processo de dissidência se deu de forma conflituosa e mantiveram, de
37
7
termo que se refere aos grupos de boi.
38
É pra reuni
vamo guarnicê
Esta é a ordem
Que São João mandou
(Guarnicê do Boi de Pindaré gravado em 1976)
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“Irradiação” é uma designação dos próprios brincantes para os efeitos intensivos que se apresentam no corpo
durante rituais religiosos.
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como um cuidado ou forma de preparo do corpo para os momentos intensos de encontro com
forças e potências religiosas.
Os jovens do Bairro de Fátima logo começam a aparecer na sede com o objetivo de
integrar e brincar no Boi de Pindaré no São João que se aproxima. A maioria deles costumam
ficar do lado de fora da sede onde confraternizam, bebem e namoram. Dentre esses jovens,
muitas moças integram o grupo de índias e muitos rapazes compõem o batuque. Segundo
Benedita Aroucha e Seu Chico Aroucha, o batuque dos pandeirões e o “repinicado” do sotaque
de Pindaré contagia logo os rapazes. Pude perceber que ano passado, o Boi de Pindaré contava
com poucos índios. Os cantadores se reuniram e começavam a organizar os brincantes no
fundo do salão, próximo ao altar das imagens dos santos e dos bois artefatos9.
Durante os ensaios que atravessam o mês de maio e o próprio ensaio redondo, os
brincantes o fazem sem as fardas. O fardamento se dá a partir do batizado do boi. Seu João Sá
Viana, um dos amos do boi, com seu apito, anunciava a hora de reunir o batalhão. Os baiantes
e vaqueiros começaram a se agrupar em roda, formando um semicírculo ao redor do salão, os
cazumbas pegavam seus sinos, distribuídos por Belisca e Caboclinho e tomavam o centro do
salão em fila. As índias firmavam suas posições enfileiradas na extremidade oposta dos
cantadores. Os batuqueiros mais velhos, horas antes, fizeram uma fogueira no quintal da sede
e colocaram os pandeirões próximos com seus couros direcionados para o fogo, para afiná-los.
No momento da tomada de posição, isto é, de se cantar a "reunida", primeira toada cantada
pelo amo para reunir o batalhão, os batuqueiros recolheram os instrumentos da fogueira e se
preparavam para fazer entoar os sons dos pandeirões. Eles se agrupavam no centro próximo
aos cantadores.
Quando seu João Sá Viana deu o primeiro apito e começou a cantar a "reunida", todos
já estavam a postos. O amo cantador canta a toada toda uma primeira vez sem o batuque dos
pandeiros, das matracas e sem nenhuma dança. Quando termina de cantar a toada ele ergue
sua maraca prateada e a chacoalha, dando o sinal para o batalhão agir. É a maraca do amo
e/ou do cantador encarregado no momento de cantar ,que convoca o batuque e a dança. "Pode-
se observar que o agitar do maracá e o apito do amo é que determina o início e o fim de uma
toada. O amo é o fazendeiro, o dono da festa "( MARTINS, 2015, p. 73-74) E foi isso que
aconteceu. Seu João Sá Viana cantou a reunida e sacudiu sua maraca, logo o grande salão do
Pindaré se preencheu com o ensurdecedor batuque dos pandeirões. Nesse momento os outros
cantadores do batalhão inteiro começaram a cantar fazendo o coro da toada, aos sons dos
9
designação para a armadura de boi.
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pandeirões e das matracas, as índias e os índios começaram a executar seus passos saltitantes.
Quando o batalhão termina de cantar a toada, o amo e/ou cantador torna a cantá-la. A toada é
cantada em um revezamento entre amo e/ou cantador e o batalhão inteiro. O som dos
pandeirões rapidamente capturou o restante dos jovens que estavam do lado de fora, que logo
correram para apanhar algum pandeirão para tocar.
Seu João Sá Viana cantou, as toadas; Lá vai; Chegou; e Urrou do Boi de Pindaré, toada
composta por João Câncio, fundador do Pindaré, que se eternizou na voz do Coxinho, e tornou-
se hino do folclore maranhense. A partir daí, os cantadores começaram a se revezar para
cantarem suas belas toadas. A última toada, a "despedida" foi cantada por João Sá Viana
anunciando o fim do ensaio. Pude observar que alguns cazumbas, índias e batuqueiros já
haviam ido embora. Os mais velhos e alguns brincantes mais novos, geralmente, parentes
desses brincantes mais velhos, ficaram até o fim. Com o término do ensaio os brincantes foram
embora, Benedita e alguns brincantes da direção do boi ficaram para fechar a sede.
2.3 Batizado do boi
A saída dos cortejos não tem uma data específica para ocorrer, e cada grupo realiza em
datas que eles mesmos especificam. Como seu Bigode me relatou, antigamente os cortejos e
saídas para as brincadas só tinham início após batizado do boi, mas o mesmo não ocorre
atualmente. Como pude presenciar, houve cortejos no IMPEM e na igreja de Santo Antônio
em que o Boi de Pindaré realizou suas brincadas antes do batizado propriamente dito. O
batizado é uma obrigação realizada na sede do Boi. Esse ritual era a condição imanente para o
boi sair para brincar. É possível pensá-lo como um ritual de preparo e eficácia para o boi
começar a brincar fora da sede, fora de seu espaço sagrado.
Os brincantes dirigentes, no dia do batizado que se deu em vinte e três de junho, já se
encontravam na sede no começo da manhã, fazendo os preparativos para a cerimônia. Lá
preparavam as comidas para receberem os brincantes do bairro e os que vieram de outras
cidades. No cair da noite, os brincantes ja devidamente fardados confraternizavam, alguns
tomavam café e se preparavam para o ritual. Os cantadores conversavam e mais brincantes
iam chegando. Alguns amigos de Carolina Martins, minha amiga, historiadora e brincante do
boi, chegaram com ela e com seu Marido, Élio. O boi também contou com a presença no
batizado de alguns turistas do Rio de Janeiro. Esse fato é importante porque, segundo Benedita,
a presença de turistas e pessoas que não são brincantes é muito incomum. Mas ela havia
recebido um presságio de seu Zé Bussú, brincante afastado, versado nos mistérios da
encantaria, que no referido ano, o boi seria surpreendido com visitas inesperadas. Essas visitas
alegraram muito os brincantes e a Benedita, visto que, tal fato, mostra que o boi está se
42
importantes e que, para o guardião, a dimensão intensiva e ritualística que era referida não
admitia atrasos e contingências. Era coisa muito séria. Mas o guardião acolheu o artefato mais
antigo, entrou na casa e fechou as portas de maneira severa e violenta. Tudo havia sido, de
certa maneira, resolvido
Retomando a noite do batizado, enquanto os brincantes estavam envolta dos Bois
artefatos, um dos amos do boi, Sá Viana, começou a realizar certas rezas específicas em latim
durante vários minutos, que os brincantes chamam de "ladainha". Enquanto isso, alguns deles
começaram a sentir-se "irradiados", alguns tremiam, enquanto outros ajoelhavam e fechavam
os olhos. Depois que a reza acabou, um casal escolhido para ser padrinho do boi se aproximou
do altar e do boi a ser batizado, Sá viana então conduziu as mãos dos padrinhos para que estes
jogassem água benta e batessem com um ramo de folhas no Boi artefato. Essas batidas
consistiam na enunciação da santíssima trindade: "Em nome do Pai, do filho e do espírito
santo. Amém". Então o batizado estava realizado. Em seguida os brincantes e devotos que
estavam com velas nas mãos começaram a colocá-las reunidas próximo ao altar do artefato
batizado. Junto a esse movimento, as pessoas iam fazendo suas promessas. A partir desse
momento, seu João Sá Viana começou a entoar as toadas anunciando a brincadeira do boi.
Primeiro a "Reunida"; depois a "Lá Vai"; "Chegou"; e "Urrou". Os brincantes estavam todos
fardados e alegres com a nova aventura sagrada que se iniciava. Os cantadores, Bigode, Gegê,
Zé Poeira, Manoel e Chico Aroucha cantaram suas toadas e João Sá Viana finalizou com a
"Despedida". Seu Hermínio Castro, também amo do boi, não esteve presente porque mora em
Manaus e sua mulher estava com problemas de saúde. O mesmo só chegou em São Luís no
dia vinte e oito de junho para a madrugada do dia de São Pedro. Mestre Castro me disse que,
tradicionalmente, o boi deve ser batizado e brincar na sede antes de meia noite, pois, ainda
antes dessa hora ele deve sair para brincar fora. E foi isso que se deu. Quando a brincada no
barracão acabou, antes de meia-noite, eles lotaram os dois ônibus fretados e desapareceram no
horizonte da rua A 8, rua da sede no bairro de Fátima, cantando, batendo pandeirões e
matracas, rumo a algum lugar para brincar.
2.4 Obrigação - dia de São Pedro
Pensar a dimensão cosmopolítica no universo do bumba meu boi faz a necessidade de
refletir sobre a virada do dia vinte e oito de junho para vinte e nove, dia de São Pedro. Essa
madrugada é tida como central na temporada de brincadeira de bumba boi, em São Luís, visto
que, trata-se de uma noite de brincadas, cobrança de promessas e obrigações que os grupos de
boi fazem, e terminam com a grande procissão, ainda na madrugada/manhã do dia vinte e
nove, no bairro de da madre Deus. Essa procissão é feita por todos os grupos de bumba até a
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capela de São Pedro, em que os grupos fazem seus cortejos em homenagem ao Santo. Na
manhã do dia de São Pedro observa-se uma grande procissão de católicos e devotos
acompanhando a grande imagem do Santo sobre um barco carregada por fiéis. A imagem
destina-se a capela e lá se estabelece para que os fiéis e devotos prestem suas respectivas
homenagens, pagarem suas promessas e firmarem novas.
Quando presenciei o cortejo do Boi de Pindaré no dia de São Pedro, o grupo já tinham
saído da sede no dia anterior. Por volta das seis horas da noite, o Pindaré foi fazer suas
brincadas tão costumeiras durante o período de São João. Passavam na casa de pessoas
importantes ou ligadas ao boi para cobrarem promessas que algum devoto fez ao boi no ano
anterior. Geralmente nessas casas o devoto/anfitrião oferece comidas e bebidas aos brincantes
assim que o grupo termina de brincar em frente a sua casa. A noite toda fora preenchida com
esses afazeres.
Por volta das quatro da manhã o grupo chegou no bairro da Ponta D'areia, em que
ocorreu a obrigação realizada ao encantado, Menina da Ponta D'areia. os ônibus chegaram com
os brincantes, eles se dirigiram ao calçadão em frente a praia e os cantadores junto com os
batuqueiros entoavam toadas de toda ordem, umas mais ligadas ao encantado homenageado,
outras a história do Pindaré e sua ligação com a baixada. Não se assemelhava a uma brincada
realizada nos arraias. Eles pareciam apenas cantar e tocar para o encantado homenageado.
Outras pessoas que faziam parte dos índios e dos cazumbas não dançavam, apenas cantavam
ou tomavam banho no mar. Dentro de uma hora eles pararam de tocar, entraram nos ônibus
fretados e se dirigiram ao bairro da Madre Deus.
Passamos em frente a Capela de São Pedro e nos dirigimos a parte alta do bairro da
Madre Deus que fica imediatamente atrás da capela. O Pindaré saiu do ônibus, foram recebidos
por Benedita Aroucha e fizeram uma refeição se preparando para a saída. Cada brincante vestiu
sua farda e eles se colocaram em fila para sair desfilando no bairro. Na procissão eles se
organizam em filas horizontais de grupos, um atrás do outro, respeitando uma ordem que
organiza os brincantes segundo seus personagens. Essa ordem será tratada na sessão sobre a
morfologia social.
O cortejo demorou-se pelas longas vielas do bairro, em pequenas descidas para chegar
a capela de São Pedro. Durante o cortejo, O Pindaré encontrou no meio do caminho outros
grupos de Boi, gerando animosidade e conflitos com os outros brincantes. Seu Bigode,
apreensivo diante dos acontecimentos, começou a jogar cachaça na rua por onde o Boi
percorreria no objetivo de afastar a possibilidade de infortúnios. Outras pessoas estavam
apreensivas, porque era comum pessoas brigarem durante os cortejos devido ao acirramento
45
dos ânimos, principalmente entre os integrantes mais jovens. Os mais velhos estavam ansiosos
com a situação e o clima no ambiente favorecia a tensão, o cheiro de cachaça, pólvora e som
alto pareciam estimular os humores. Quando os outros grupos passavam por perto, era comum
que gritos de guerra fossem entoados entre os integrantes mais jovens. Havia um sem número
de outros grupos desfilando pelo bairro em direção a capela. Outras pessoas pareciam passar
por "irradiações" e costumavam gritar ou passar a ter acesso de tremedeira. Os cazumbas, os
batuqueiros e índias já estavam num contexto em que já não se movimentavam com tanta
disciplina, haviam retirado parte de suas fardas, e alguns abandonando instrumentos, outros
cantavam e dançavam como que "irradiados". Buguelo que já estavam rolando no artefato de
Boi desde da noite anterior, já apresentava um cansaço e exaustão visível, mas ao mesmo
tempo manifestava comportamentos do tipo "irradiado" por tamanha intensidade que parecia
permear o ambiente.
Na esquina da rua que chega na capela se encontra a Casa das Minas. O Pindaré possui
um "fundamento" como dizem os brincantes, neste terreiro, o que o obriga a visitá-lo durante
a procissão. Sobre A Casa das Minas, trata-se do segundo terreiro de Tambor de Mina mais
antigo de São Luís. O "fundamento" se caracteriza como uma "obrigação" que neste caso é o
fato do Pindaré ir até a casa e lá cantar e tocar. O atual guardião da casa, seu Euzébio ficava
parado segurando um defumador enquanto buguelo dançava na porta de entrada. Enquanto
buguelo dançava em frente a porta o guardião se dirigiu até a entrada do cômodo em que o
rolador, no caso, Buguelo iria "baiar", ainda defumando o recinto. Buguelo adentrou correndo
pelo corredor escoltado por duas índias, em que uma delas era sua filha, chefe das fileiras de
índias. Nesse momento ele se pôs a dançar em frente a um altar repleto de santos. Haviam
algumas bandeirinhas penduradas no teto e as índias que acompanharam-no haviam se
prostrado diante do altar com cajados nas mão. Buguelo parecia irradiado “baiando” e
balançando a capoeira/armadura do boi com maestria e desenvoltura, embora visivelmente
rápido. Após algum tempo, abaixou-se e depositou a capoeira em frente ao altar, e se retirou
tremendo e suando, visivelmente "irradiado". O zelador da casa segurou-lhe pelos braços
enquanto ele voltava a si. Ajoelhou-se perante o altar, fez o sinal da cruz e ficou algum tempo
de cabeça baixa. Depois, se levantou ainda com as pernas bambas e se armou novamente com
a capoeira do boi, dançou ainda mais algum tempo, e finalmente saiu do cômodo e da casa das
minas em direção a rua acompanhado com a escolta das índias.
O Pindaré recebeu Buguelo e continuou a procissão em direção a Capela de São Pedro.
A caminhada era lenta, os passos eram acompanhados com os ritmos da matraca e do batuque
dos pandeirões. Chegando na capela localizada na parte mais alta do bairro da Madre Deus, o
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Pindaré se dirigiu a uma rampa que liga a parte alta a baixa, e lá se prontificou num largo, com
palco e equipamentos de som. Havia uma pequena organização na apresentação dos bois, que
compartilhavam os equipamentos para que pudessem cantar enquanto seu artefato de boi fosse
até o interior da Igreja. Buguelo foi novamente escoltado pelas índias, e se direcionou até a
entrada da capela, percorrendo a extensa escadaria, aparentemente num gesto de penitência e
devoção. Eram comuns que outros bois fizessem outros percursos em direção a capela que não
fosse pela escadaria.
Havia uma miríade de devotos e outros participantes segurando velas e cantando
ladainhas indiscerníveis que entravam na igreja e viam o bailado de buguelo em frente ao altar.
Como na Casa das Minas, bailou por algum tempo. Depois retirou o artefato, se ajoelhou
perante o altar, e rezou em silêncio. levantou-se posteriormente, e empunhou a armadura,
dançou ainda mais, e se dirigiu a saída e ao Pindaré que la embaixo o receberia.
A dimensão política do boi tornou-se visível para mim a partir dos relatos que obtive
dos brincantes, em que muitos deles apresentavam a sede como uma referência de espaço de
confraternização e demandas sociais. Sobre esse aspecto, pude constatar que a sede do Boi de
Pindaré é um espaço onde são travadas relações importantes dos habitantes do bairro. Me
chamaram a atenção também, as tensas relações que o boi de Pindaré tem com os editais de
seleção de grupos para apresentações no São João, com a política eleitoral e com a rivalidade
ou simpatia para com outros grupos de boi.
Os grupos de boi se financiam através de brincadas, por meio dos quais eles recebem
uma certa quantia em dinheiro, enviada através de editais da secretaria de cultura da prefeitura
e do Estado. A importância do boi e de sua existência atravessa a vida das pessoas. Seu Chico
me disse uma vez que a brincadeira do boi e o tambor de crioula são a sua vida, são tudo para
47
ele. Foi possível observar que para muitos, além do próprio Chico, o boi e a brincadeira são
tidos como fundamentais e até mesmo primordiais na vida dos que brincam e se constituíram
da brincadeira. Segundo os relatos de alguns brincantes mais velhos, eles aprenderam a brincar
boi quando criança, na região da baixada, assim como seus conterrâneos. Era a brincadeira que
proporciona as amizades, os amores, as festas, a diversão no interior. O boi lhes fez
desenvolver a arte de bater bem o pandeiro, ser um bom batuqueiro; de “saber dançar bonito”;
saber rolar embaixo do boi, compor e encadear as toadas no alto do boi, isto é e saber “matar
um boi”. As toadas, no caso do sotaque de baixada ou Pindaré, são formas criativas e poéticas,
as quais, os cantadores entoam e versam, cujo o conteúdo é muito heterogêneo. As toadas
podem versar, dentre muitos assuntos, sobre o interior, sobre trabalho, sobre a baixada, sobre
disputas, sobre comando e disciplina, sobre o passado e a religiosidade. A poesia das toadas
se atualizam conforme os brincantes e a própria brincadeira vão se deslocando para outras
regiões, como o caso do sotaque de baixada que veio do interior para São Luís, praticado pelas
pessoas negras que vieram trabalhar na capital do Estado. Com o mesmo rigor e
comprometimento, os brincantes do interior que vieram para São Luís, introduziram seus filhos
na brincadeira, e muitos seguem mantendo a tradição do bumba meu boi de baixada como seus
pais faziam e/ou fazem. Mas o conceito de tradição empregado aqui designa somente o que
eles entendem quando fazem a festa e a brincadeira da maneira particular como o Boi de
Pindaré sempre fez. Isso significa que quando os brincantes empregam o termo tradição se
referem ao jeito singular e específico com que o Pindaré realiza o seu brincar. Isso não significa
que o termo seja empregado para designar um conjunto imutável de componentes e elementos
que não poderiam deixar de fazer parte da brincadeira. Corresponde tão somente um modo e
uma maneira particular e musicalmente própria de cantar, dançar e tocar durante a brincadeira,
o que, às vezes, é sugerido como o próprio "sotaque" do Pindaré, trazendo a luz a semelhança
entre sotaque e tradição.
O comprometimento ou a aliança vital que as pessoas estabelecem com a brincadeira
do boi pode estar fundamentada em dimensões religiosas, como a da promessa e da obrigação.
Posso dizer que Benedita, Chico, Buguelo, Marli, Raiane, ambos da família Aroucha e Bigode,
Chica Preta e Bulão, filho de dona Chica, possuem um elo vital e religioso para com o boi, e
dependendo da pessoa, esse elo atravessa a linhagem, como o caso da família Aroucha. Essas
pessoas, em tempos de brincadeira, apresentam extremo comprometimento e determinação em
fazê-la. Conjuntamente com tamanho rigor, pude observar que alguns destes brincantes
manifestam estados “irradiados”, como eles próprios dizem. Esses estados poderíamos
entender como o encontro, que os brincantes efetuam, com forças religiosas dos santos
48
católicos, assim como, com a das entidades encantadas, que por sua vez, firmam e compõem
o Boi de Pindaré. A religiosidade e os cultos religiosos, tanto católicos, quanto do tambor de
mina e do tambor de cura, também são muito presentes e imprescindíveis na história da
brincadeira do boi e de São Luís. A brincadeira compõe incomensurável religiosidade de
ambas as tradições. Com efeito, brincar boi é agenciar forças e tendências que encadeiam a
folia, a diversão, a beleza, mas também a religiosidade, seriedade, o comprometimento, a
responsabilidade vital que guiam a vida das pessoas e seus destinos. A brincadeira é muito
importante na vida dos brincantes, ela figura um espaço de socialização como também uma
prática religiosa, os quais os praticantes, em sua maioria, se inseriram desde criança ou quando
jovens. Por isso, muitos políticos utilizam dessa dimensão do boi para usos eleitoreiros, pois
sabem que o boi é muito importante para as pessoas brincantes. O que significa, que muitos
deles ajudam ou auxiliam nos custos e nas despesas que os grupos possuem, isto é, financiam
grupos em troca de promoção e propaganda de sua imagem política nas toadas, e até mesmo
em troca de voto.
2.5.1 Tradição contra o espetáculo ( Pindaré contra o Estado)
O Boi de Pindaré é um caso à parte. A dona do Boi, Benedita Aroucha nega qualquer
ajuda de interesse de terceiros, seja por interesses políticos ou ajudas orientadas por
sentimentos de piedade ou dívida que outros bois tenham para com o Pindaré, muito embora,
receba o pagamento das brincadas realizadas no período Junino. Essa posição, se podemos
dizer, política se coloca diante de sua compreensão do festejo do boi. Enquanto outros grupos
realizam muitas brincadas e por conseguinte recebem muito financiamento, os bois
"tradicionais", termo que brincantes utilizam para se referir aos bois comprometidos com a
esfera ritualística, religiosa, histórica e dramática, são desfavorecidos. Mas a questão se torna
problemática de acordo com a burocracia dos editais de brincadas das secretarias de cultura da
prefeitura e do Estado10. Os editais são lançados visando a contratação de serviços artísticos
para compor a programação artística do São João. São elencadas as categorias/segmentos que
a secretaria visa contratar: Danças Regionais; Grupos Alternativos; Shows Musicais; Bumba
meu boi; Tambor de Crioula e Forró Pé de Serra. A quantidade de grupos que serão contratados
em cada categoria varia. Para além dessas categorias, há as subcategorias que são aplicadas às
manifestações artísticas tradicionais do Maranhão, como o Bumba meu boi e as Danças
Tradicionais. As subcategorias dividem-se em: A; B ou C. Os grupos de Bumba são
10
Segue o edital da secretaria de cultura para as festivdades de São João de 2018
http://www.sectur.ma.gov.br/wp-content/uploads/2018/03/Edital-S%C3%A3o-Jo%C3%A3o-de-Todos-
2018.pdf
49
Casa de Nhozinho11, os bois de sotaque de orquestra ganham mais brincadas durante o São
João, pois esses favoritos do sotaque de orquestra, em sua maioria, estão menos
comprometidos com a dimensão ritualística, religiosa, mitológica da brincadeira do boi, eles
possuem uma estética de espetáculo, muito embora, há bois do sotaque de orquestra que se
orientam na tradição de seu sotaque e mantém o firmamento religioso. Mas para alguns
brincantes do Boi de Pindaré e outras pessoas que conversei, o sotaque de orquestra por
apresentar instrumentos de sopro e metal, ocultam o batuque e os instrumentos de percussão,
colocando-os como secundários, o que faz os brincantes mais velhos do Pindaré nem sequer
reconhecê-los como grupos de boi. Como me disse, seu Chico, uma vez que boi é batuque. Há
outro aspecto, ou mais uma curiosidade, muito destoante dos bois maiores e comerciais do
sotaque de orquestra, que é o financiamento de academias para que brincantes dançarinos
exibem corpos sarados e musculosos.
Os bois maiores do sotaque de orquestra, na medida que apresentam, uma estética de
espetáculo não possuem o reconhecimento dos brincantes mais velhos do Pindaré. A razão
para tal falta de reconhecimento se baseia em o sotaque de orquestra utilizar outros materiais,
não comuns e tradicionais que estão presentes em quase todos os outros sotaques, como
aqueles que apenas manifestam a arte do batuque em instrumentos de percussão variáveis, e
também materiais específicos na confecção das fardas, como as penas de ema. Logo, os bois
do sotaque de orquestra, para alguns brincantes do Pindaré não se enquadram na brincadeira
do boi. Segundo alguns pesquisadores que conversei, os boi maiores do sotaque de orquestra,
aos quais não estão inseridos os bois menores desse mesmo sotaque, apresentam uma estética
comercial, de espetáculo e convidativa aos turistas, patrocinadas pelo Estado. Nesse sentido
há uma dissonância entre a perspectiva dos brincantes do Pindaré que não consideram o
sotaque de orquestra como bumba-meu-boi em sua completude, e a perspectiva de alguns
pesquisadores da casa de nhozinho que apresentam críticas a forma comercial e
espetacularizada dos bois maiores, e não aos menores do sotaque de orquestra.
Apesar de ocuparem um papel central na brincadeira, as performances
cômicas - especialmente os autos tradicionais - estão perdendo importância, em face
das transformações impostas pela crescente comercialização do bumba meu boi como
espetáculo de massa e produto de consumo turístico.(GONÇALVES DE
CARVALHO, 2011, p. 88)
Para além dessa perspectiva, alguns desses bois "empresariais" nao apresentam traços
ritualísticos e religiosos, principalmente com a encantaria, que muitos bois possuem e
expressam. Os bois que apresentam em suas brincadas pessoas irradiadas, incorporações,
11
A Casa de Nhozinho é um museu localizado no centro histórico de São Luís,
51
bebidas e brincantes humildes, são alvos das mais nefastas formas de preconceito e racismo,
como me disse um taxista, evangélico, para acompanhar dois famosos bois do sotaque de
orquestra, o Boi de Morros e o boi de Nina Rodrigues, visto que os bois de outros sotaques
tem macumba e bebida. “Apesar da ampla aceitação que o bumba meu boi vem obtendo
atualmente em meio a diversas camadas da sociedade maranhense, ele foi, durante muito
tempo, criticado por grande parte das elites locais, tendo sido mesmo perseguido e proibido
pela polícia” (CARVALHO, 2011, p.87) Portanto, é possível compartilhar a indignação com
Seu Chico, que me disse muitas vezes o quanto é injusta a seleção de brincadas. Como já dito,
o Boi de Pindaré mantém contato profundo com a dimensão ritualística, ou das obrigações que
o festejo do boi está ligado, o que diferencia o modo como realizam as brincadas e o cortejo
durante a festa do São João, e consequentemente, o modo como se articulam com a política e
os editais de brincadeiras.
2.5.2 Militância, pertencimento e disputa
A dimensão política é tecida também no pertencimento, na militância, nas disputas que
os próprios brincantes do Pindaré expressam para com outros bois. Não é incomum, ao
conversar com um brincante do Pindaré, ouvir que o Pindaré é o boi do sotaque de baixada,
existente, mais velho, ouvir que ele é o pai de todos os outros bois, visto que muitos outros
bois antigos de baixada, com exceção do boi de Viana, de onde o pindaré saiu, vieram dele.
Os brincantes ainda dizem que o boi de Pindaré, assim como os outros bois do sotaque de
baixada, mesmo sendo classificados no mesmo sotaque, tem seu próprio sotaque. No caso do
Pindaré, os mais velhos relatam que a levada mais lenta e o “repinicado” dos pandeiros do
Pindaré são o sotaque legítimo e verdadeiro da baixada. Se firmam também no fato de o
sotaque de baixada ser conhecido também como sotaque de Pindaré, visto que o fundador do
Poi de Pindaré, João Câncio, veio do município de Pindaré Mirim, próximo a baixada
maranhense ocidental.
Os mais jovens, indios, indias e batuqueiros, durante as saídas para as brincadas, dentro
do onibus fretado para os levar aos arraiais, quando lá chegavam, conjuravam o estrondoso
grito de guerra: "É PINDARÉ! É PINDARÉ!" ; "EU TE PISO! EU TE PISO!". A disputa com
outros grupos de boi, em certa medida, é expressa na fala e no comportamento dos brincantes
do grupo. Os mais velhos são mais calmos, mas fazem questão de falar sobre o Pindaré como
o boi mais tradicional, mais antigo e com o batuque mais bonito. Afirmam também que os
outros grupos de boi, que consideram "contrários", sentem inveja do Pindaré, muito embora,
possa haver respeito e admiração entre os cantadores de bois rivais, visto que, em sua maioria,
os cantadores de boi mais velhos de São Luís se conhecem de longa data e reconhecem a
52
destreza e virtude do saber fazer e cantar boi de seu rival. Os mais jovens, por outro lado,
expressam seus afetos de pertencimento e sua torcida pelo Pindaré de maneira mais tensa. Eles
saem para as brincadas entoando toadas do Pindaré, gritos de guerra, e podem até mesmo
provocar outros grupos de boi. Essas atitudes que manifesta a intensa torcida e pertencimento
dos mais jovens podem até mesmo levar a conflitos letais com outros grupos, como um caso
de esfaqueamento que presenciei.
Sabemos que os grupos de boi podem estabelecer relações de disputa entre si. Isso é
evidente na relação entre "contrários", e sobre essas condições, as disputas podem se tornar
bem tensas e perigosas, principalmente entre os mais jovens. Mas essas disputas e conflitos
que os jovens travam com outros jovens de outros bois podem ser em razão de brincarem em
bois diferentes e rivais, em que tenha havido provocação de uma ou ambas partes; ou por
razões pessoais que podem se somar com o fato de serem brincantes de bois rivais. Mas não
podemos considerar que todos os demais grupos de bois do sotaque de baixada são rivais e
"contrários" do Boi de Pindaré. Muitos outros bois do sotaque de baixada possuem relações
amistosas com o Pindaré. Alguns dos brincantes que vem, praticamente todo o ano, do interior,
da baixada maranhense para brincar no Pindaré também brincam em outros bois de baixada,
que possuem boas relações com o Pindaré, como o Boi de seu Antoninho e o Boi do Oriente.
Esse campo de relações complexas entre os grupos de boi admite boas relações, em que os
brincantes de bois diferentes podem se ajudar e serem simpáticos uns com os outros, como
também, admite o conflito, em que os grupos e seus respectivos brincantes podem fazer guerra.
2.5.3 Aliança
Uma outra questão política que atravessa o Pindaré é das relações de promessa, troca
e reciprocidade que muito embora, promessa como troca, de imediato, possa evocar o domínio
da religiosidade e da economia, entendo, na dimensão que tratamos aqui, como política na
medida em que funda uma forma de relação ética na aliança entre agentes humanos e
inumanos. Essa relação baseia-se na dádiva que brincantes e devotos firmam com o boi. Muitos
brincantes e devotos no período junino fazem promessas para santos católicos, como São João,
mas também fazem promessas para o boi, para o artefato do boi. 12 Neste sentido a relação de
devoção para com o boi e para com o santos católicos se assemelham. Aparentemente se torna
indiscernível para quem os devotos estão oferecendo suas homenagens e promessas. o que nos
sugere que o artefato do boi possui uma agência "espiritual" semelhante àquele dos santos
católicos, pelos menos no tocante as dádivas e súplicas.
12
Artefato de boi é uma denominação para o corpo do boi, feito de madeira, o qual o miolo veste e rola embaixo.
53
As promessas que os devotos e brincantes fazem para o boi estabelecem uma relação
de troca/dádiva, que pressupõe a reciprocidade. As pessoas fazem seus pedidos ao boi, aos
santos católicos e as entidades encantadas, como superar alguma demanda, que, como pude
observar, variam bastante. Por exemplo: doenças, problemas familiares e problemas
financeiros. Mas os pedidos podem recorrer a conquista de algo. Por exemplo: conseguir
emprego. No caso do Boi de Pindaré as pessoas fazem suas promessas ao boi, geralmente na
noite do batizado do boi. Elas fazem seus pedidos e prometem algo em troca, se seus pedidos
forem atendidos. Elas podem prometer uma imagem nova de algum santo para o altar do boi,
uma vela de n-dias, um novo couro bordado para o boi. O elemento de troca pode variar, mas
sempre está dentro do campo religioso e social do bumba. Mas as pessoas podem pagar
promessa também chamando o boi para brincar em sua rua e oferecer comida e bebida aos
brincantes. Eles adoram esse modo de troca, inclusive, esse modo de dádiva, não
necessariamente está fundado numa promessa, pode ser estabelecido num simples acordo entre
os brincantes e alguma pessoa que, durante o período junino, queira que o boi brinque em sua
rua, em frente de sua casa.
A relação de troca e reciprocidade que os devotos e brincantes tem para com o Boi de
Pindaré pode ser compreendida como política porque pressupõe certas alianças que a pessoa
faz com o grupo e com a "espiritualidade", a agência intensiva que o boi expressa. Os que
fazem promessa são aqueles que possuem algum elo de comprometimento, de pertencimento,
de afinidade e de respeito para com o Pindaré. Nesse sentido, os que apresentam relações
dessa natureza para com o boi, desempenham uma responsabilidade vital para com o mesmo,
diferente, geralmente, da relação que possa vir a se estabelecer com outro boi. Essas relações
que os devotos e brincantes tem para com o Pindaré evoca afetos, comportamentos e condutas
muito particulares, que os brincantes dizem somente haver entre eles e as pessoas que sempre
fazem promessas ao boi. Fui informado que as pessoas que chamaram o Pindaré para brincar
em sua rua em dois mil e dezoito, comumente o chamam. Com efeito, penso que o Pindaré
tem suas alianças certas, seus amigos, sua turma, que estão ai para ajuda-lo, fortalecê-lo e para
brincar com ele.
maneira, conflituosas, visto que, os programas e editais de cultura para o são joão não
contemplam de maneira justa as necessidades do Pindaré e outros bois de outros sotaques que
não os bois maiores do sotaque de orquestra. Podemos dizer também que as relações que o
Pindaré trava com outros grupos de boi podem ser simpáticas, indiferentes ou conflituosas. E
o regime de troca e reciprocidade com devotos e brincantes são harmônicas e
responsaveis.Com isto, pretendo refletir esse campo sociopolítico a luz do que Gregory
Bateson chamou de Cismogênese.
Bateson, ao analisar os contrastes etológicos do povo Iatmul, habitantes do curso médio
do rio Sepik em Nova Guiné, verifica que esses contrastes etologicos podem diferenciar-se em
razão de idade, gênero e parentesco. Esses contrastes etológicos, isto é, a diferenciação de
afetos, comportamentos e condutas, possuem ampla significação sociológica e psicológica, e
nesse sentido, o autor compreende esse processo como um processo de diferenciação, o qual
se refere como cismogênese. Esse conceito se torna interessante para nós na medida em que
nos permite refletir sobre as relações simpáticas e conflituosas que o Boi de Pindaré tem com
os entes do estado e outros grupos de boi, isto é, sua relação com o fora. Acredito que o
conceito de cismogênese nos proporciona uma chave reflexiva para pensar, especificamente,
as relações de disputa, conflito e de guerra que o boi apresenta. A questão da disputa se fez
expressiva para mim, porque é um tipo de relação muito presente no universo da brincadeira
de bumba boi, muito embora a simpatia, a afinidade e reciprocidade também compunham essas
relações. A disputa, as provocações se manifestam nas toadas, nos comportamentos, nas
atitudes e podem tomar proporções cada vez mais complicadas e violentas, até mesmo, na
cotidianidade, fora do período festivo. Isto significa que brincantes de um grupo podem evitar
se relacionar com brincantes de um grupo rival em seu dia a dia e falarem mal destes. É sobre
essa possibilidade de relação que intento a pensar com o auxílio da cismogênese. As relações
que podem conjurar atitudes, condutas, juízos e afetos de afinidade ou de indiferença, conflito
e guerra.
O conceito de cismogênese é esclarecido por Bateson como um processo de
diferenciação do ethos . O autor está preocupado com as variações de comportamento e de
conduta dos Iatmul. Mas podemos, certamente, tratar as relações de conflitos, disputas, de
simpatia e reciprocidade através das variações de comportamentos, de afetos e juízos no
campo sociopolítico que os grupos de boi estabelecem entre si. Em resumo, pretendo pensar a
dimensão política da disputa, do conflito, da simpatia e reciprocidade através da variação,
diferenciação de comportamentos, afetos e juízos. É certo que a conduta e o comportamento
dos integrantes do Boi de Pindaré para com o estado e para com outros grupos de boi tem
55
razões históricas, diacrônicas. Muito embora o conceito tenha sido empregado numa análise
sincrônica por Gregory Bateson, cismogênese, como diz o próprio autor, refere-se a “um
processo de diferenciação nas normas de comportamento individual, resultante da interação
cumulativa dos indivíduos.”(BATESON, 2008, p. 223), e com efeito, a acumulação no tempo
de certos comportamentos estabelece um campo que expressa uma função variante destes. Isto
é, a cismogênese.
Quando nossa disciplina é definida em termos das reações de um indivíduo
às reações de outros indivíduos, torna-se imediatamente evidente que precisamos
considerar as relações entre dois indivíduos como passível de alterar-se no tempo,
mesmo na ausência de perturbações externas. Temos não apenas de considerar as
reações de A ao comportamento de B, mas ir adiante e considerar como estas afetam
o comportamento posterior de B e o efeito disso sobre A(BATESON, 2008, p. 223).
Pretendo apontar esses dois modos de relação no que tange as relações políticas que o
Boi de Pindaré estabelece, como as relatadas na presente sessão. Entretanto não viso, nesse
encaminhamento, analisar as minúcias individuais de cada brincante, mas, sim compreender o
boi de pindaré como um corpo de brincantes que possuem comportamentos diferenciados
relativos a suas relações com a burocracia dos editais de cultura e com outros bois, rivais ou
não. Será necessário também destacar a diferenciação etológica entre os jovens, os mais velhos
e o parentesco.
Como observamos, a maioria dos grupos de boi do sotaque de baixada acabam sendo
desfavorecidos pelos editais de cultura da prefeitura e do estado, que favorecem os bois
maiores do sotaque de orquestra. Com efeito os bois menores de outros sotaques conseguem
poucas brincadas e ganham menos dinheiro para se manterem. Os brincantes mais velhos,
56
desde meados da primeira metade do ano, começam seus trabalhos para preparar a brincadeira,
e isso se refere ao reparo e a produção de novas fardas, dos instrumentos e da sede. Esses
brincantes mais velhos, geralmente, são da mesma família, como o caso da família Aroucha,
que é a diligência do boi. Mas podem haver outros brincantes que possuem elo parental
classificatório, como o compadrio ou por se conhecerem a muitos anos. No caso do Pindaré, e
nítido que a dona, Benedita Aroucha, passa noites sem descanso, durante o período de preparo
e o período junino. Eles investem o dinheiro que muita das vezes seria destinado às
necessidades de sua vida pessoal. Eles dão suas vidas ao boi. Logo podemos identificar um
alto investimento na brincadeira por parte dos brincantes e um descaso infeliz por parte do
estado. Mas os brincantes continuam fazendo parte da disputa de brincadas, visto que eles
precisam do dinheiro dos editais para manterem a brincadeira. Nesse sentido, esse cenário
sociopolítico me remete a clássica situação da classe trabalhadora no mundo capitalista, o que
nos faz pensar na “luta de classes”. A “luta de classes” seria uma cismogênese complementar,
visto que, os trabalhadores são explorados pelo burguês dono dos meios de produção. Logo,
quanto mais o burguês e o mercado exploram a classe trabalhadora, menos dinheiro a classe
trabalhadora recebe, e portanto necessita vender sua mão de obra as condições mais nefastas
de trabalho para sobreviver. Submissão. Em resumo, quanto mais o burguês age de forma a
explorar a classe trabalhadora, mais ela reage com submissão, até que a dinâmica se rearrange.
O Estado contrata os boi menores e lhes dão três, quatro, cinco brincadas, enquanto para os
bois maiores de orquestra ele disponibiliza quatro vezes mais brincadas. O número de
brincadas que os bois menores recebem não lhes fornece o rendimento em dinheiro para
financiar e sustentar a brincadeira, logo investem na brincadeira o dinheiro de seus bolsos e
pegam as poucas brincadas que o estado lhes dispõem. Com efeito, podemos dizer que quanto
mais o estado é negligente e concede aos grupos menores um número restrito de brincadas,
mais os grupos menores reagem com submissão e de maneira descontentes pegam suas poucas
brincadas. Eles aceitam sua situação, muito embora indignados, pois precisam do dinheiro. Os
brincantes mais velhos demonstram grande insatisfação e reprovação para com a política do
estado, enquanto a maioria dos jovens parecem indiferentes quanto a essa relação, com
excessão dos jovens integrantes da família Aroucha ou os jovens cujo os pais brincam ou
brincaram no Pindaré por muito tempo.
A relação entre os grupos de boi, por outro lado, pode se estabelecer de outra maneira.
Como já dito, os grupos podem ter relações de afinidade, como podem ter relações
conflituosas, é o caso dos “contrários”. As relações de afinidade podem se dar em razão de os
brincantes, principalmente os mais velhos, terem boas relações com brincantes de outro boi.
57
13
Ver DOSSIÊ DE REGISTRO COMO PATRIMÔNIO CULTURAL DO BRASIL, 2001.
58
E sobre esse aspecto que podemos pensar a cismogênese, mas a cismogênese do tipo
simétrica. Os bois que agem com simpatia, afinidade e boa reciprocidade para com outro, este
outro reage da mesma forma. E se um boi age com provocações, bazófia, zombaria e enuncia
a guerra para com um outro, este outro reagirá da mesma forma, mas talvez, mais intensamente.
Os mais velhos tendem a se bastar nas toadas e poesias quando vão provocar seus “contrários”,
os mais jovens, inclusive os jovens da família Aroucha, por outro lado, podem embarcar em
conflitos mortais, como combates corpo a corpo.
Na política. No presente estado perturbado e instável da política na Europa,
há duas cosmogêneses que se destacam visivelmente: a) cismogênese simétrica nas
rivalidades internacionais; b) cismogênese complementar da “luta de classes”. Aqui,
outra vez, como nos demais contextos em que discutimos a cismogênese, e evidente a
progressiva evolução do comportamento no sentido de diferenciação e oposição
mútuas cada vez maiores, e nossos políticos parecem tão incapazes de lidar com o
processo quanto o e o esquizóide de ajustar se a realidade. (BATESON, 2008, p. 231)
Mas de outro modo, gostaria de pensar esse campo sociopolítico, que tem, nitidamente
traçado, relações de poder, de afinidade, de reciprocidade e de conflito, a partir de
desdobramentos que compreendo como cosmopolíticos. E já de imediato, respondo a questão
acerca do Pindaré praticar ou não a cosmopolítica, levantada no capítulo anterior. Sim, o Boi
de Pindaré é praticante da cosmopolítica.
Como vimos os grupos e as sedes exercem uma função sociológica e comunitária. Em
muitos relatos dos dirigentes do Pindaré, dizem que o boi é muito importante para mudar o
caminho e o destino dos mais jovens, que geralmente, estão a mercê de relações de toda a sorte,
inclusive, as mortais. Nesse sentido o boi opera ensinamentos de técnicas, é constituído e
constitui praticantes corporais que se colocam a serviço da tradição e da religiosidade. A
brincadeira do boi efetua agenciamentos na vida em que são traçadas novas linhas, novos
horizontes e oportunidades para muitos jovens, inclusive o boi figura outro modo de família,
isto é, uma grande comunidade. Lá os mais jovens escapam das más relações, aprendem
diferentes técnicas e aprendem a cuidar de sua vida religiosa. A religiosidade é muito
importante na vida dos brincantes. Muitos deles possuem relações com a encantaria, muito
embora, dizem ser católicos. O boi é uma brincadeira que opera agenciamentos e relações
imanentes do tipo Afroindígena. Os brincantes se irradiam com a força de são joão, mas
também recebem intensidades caboclas e podem ver os espíritos de índios dançarem junto ao
cordão do boi.
Podemos observar o desdobramento da cosmopolítica nas relações entre os grupos de
boi, na medida em que travam suas alianças e fazem a guerra. Sim, cosmopolítica é aliança, é
guerra, quando pensamos todo um preparo, todo um "cuidar", e uma ética para firmar relações
prudentes e lançar-se num campo de cooperação e disputas entre multiplicidades, que carrega
virtualmente seu risco. A brincadeira do boi, tradicionalmente, expressa a dimensão da aliança,
visto que, os grupos são formados por pessoas, corpos versados em uma certa arte ou ciência
do bumba que se juntam para brincar, criam novos grupos, formam um batalhão, resistem
juntas à força etnocida do Estado. Mas esse estado, esse território, na medida em que admite
alianças cosmopolíticas, também estabelece seus conflitos, a disputa, a rivalidade dos grupos
de boi que carregam consigo o risco da guerra como morte, como abolição. O Boi de Pindaré
também tem suas alianças com forças e intensidades não humanas. Seu Tapindaré, o índio de
vestes e adereços branco e vermelho, a entidade dona do boi, é, eu diria, a aliança
cosmopolítica mais importante do Pindaré. Ele guarda, protege e guia o boi. O grande índio
acompanha o Pindaré desde o começo de sua história e se manifesta, quando necessário, para
os brincantes, como quando designou a Benedita o procedimento ritual para matar o artefato
60
contra quem e quando deve impor limites. Ela reconhece com amor, alegria e lágrimas quando
triunfa.
O levantar do pindaré, diferente do que achava no começo de meu trabalho de campo,
hoje, creio que seja um processo cosmopolítico porque é um ato que se atualizou na vida e na
história do grupo fazendo a necessidade dessa retomada, desse reativar. É, antes, uma potência
que criou uma nova postura nos praticantes que abriu o cosmo do Pindaré, através da
militância de seus integrantes, a retomada, não somente, de alianças intensivas rompidas no
passado, mas a novos encontros e firmamentos que designam um lançar-se a um futuro
diferente desse mesmo passado decaído. O boi tem seus praticantes concretos, pessoas que dão
seu sangue todo ano para erguer o "galheiro14" do Pindaré. Seu levantar corresponde a outro
tempo, não se sabe quando, mas os brincantes sentem a força do boi aumentando a cada ano.
Dona Chica diz que os índios estão retornando aos poucos para o barracão. Talvez o levantar
não designe um momento em que o boi terá retomado completamente sua força e tudo terá
chegado ao fim. Talvez, o levantar seja esse entre, essa travessia, esse campo limite. Um ataque
cosmopolítico da máquina de guerra que consiste em investir força, desejo e vida numa arena
difícil, num campo de problematização entre forças humanas e sagradas , em que os termos, o
tempo e a língua do debate sejam heterogêneos. Com efeito, podemos brevemente
compreender esse processo como processo cosmopolítico porque é uma retomada das alianças
entre humanos e não humanos, que acionaram o cosmo do Pindaré para povoá-lo novamente.
Para juntos embarcarem nessa aventura rumo a uma destinação, a uma experiência chamada
"levantar do Boi de Pindaré".
Ao Corpo sem Órgãos não se chega, não se pode chegar , nunca se acaba de
chegar a ele, é um limite. Diz-se: que é isto - o CsO - mas já se está sobre ele -
arrastando-se como um verme, tateando como um cego ou correndo como um louco,
viajante do deserto e nômade da estepe. É sobre ele que dormimos, velamos, que
lutamos, lutamos e somos vencidos, que procuramos nosso lugar, que descobrimos
nossas felicidades inauditas e nossas quedas fabulosas, que penetramos e somos
penetrados, que amamos. (DELEUZE E GUATTARI, 2012a, p. 12)
14
Conceito nativo que se refere ao boi.
62
15
Tipo de sexto para carregar pesca.
64
da ilha, que também usa pandeirões, os batuqueiros não se reúnem em roda, eles ficam
dispersos na multidão, ou melhor, por se tratar de uma multidão de batuqueiros, apresentam
uma formação imprecisa. Eles erguem seus pandeirões para o alto e os golpeiam ali mesmo.
Dir-se-ia que o sotaque de baixada se toca em baixo e o sotaque da ilha, em cima, entretanto,
alguns brincantes me disseram que isso não é uma regra. O sotaque de baixada possui a
tradição de tocar em baixo, mas nada impede que o batuqueiro erga seu pandeiro e toque em
cima.
as pernas fazem o formidável movimento da dança. Tanto as índias quanto os índios têm a
percepção do encadeamento dos passos, porque eles mudam. Sou desprovido das ferramentas
teóricas sobre dança para descrever os passos, visto que, para mim, os passos e suas variações
são muito complexos. No momento da variação, todos os índios e índias acompanham a
mudança do passo. O índios e as índias, assim como os cazumbas, dançam em fila quando vão
entrar para o cortejo, dançam em roda, quando o cordão do cortejo está feito, e dançam em
fileiras no caso de procissão.
2.6.6 Brincar no baiante e no vaqueiro
Os baiantes e vaqueiros geralmente fazem o passo básico de todo brincante: um, dois,
três, quatro - para a esquerda e um, dois, três, quatro - para direita, sendo que no último passo
em cada direção, o brincante faz um movimento de semi rotação com seu corpo na direção
oposta a direção que veio. Mas podemos dizer que esse passo se faz em meia lua. Mas há outra
dança. Acontece quando o baiante articula com o passo básico um remelexo com o quadril, os
ombros, os braços e a cabeça, a cabeça que carrega o exuberante chapéu de baiante. Além do
mais, o baiante, às vezes, dança com o miolo de boi, em que ele pode erguer seu braço em
direção a cabeça do miolo do boi, como se estivesse "tocando" ou Pastoreando o boi. Assim
como os indios e indias, os baiantes e os vaqueiros entram no cordão em fila e selam o cordão
com uma roda de baiantes e vaqueiros que fecha as rodas dos outros personagens. Dançam em
fileiras como no caso da formação da procissão Esse aspecto será desenvolvido na reflexão
sobre a morfologia social da brincadeira.
2.6.7 Brincar de pai Francisco e de mãe Catirina
Pai Francisco, assim como os cazumbas, representa uma das figuras mais travessas.
Ele em todo o cortejo e no cordão efetua movimentos que poderíamos chamar, assim como os
brincantes pensam, de ridículo, travesso, doido. Com seu caminhar capenga carregando sua
espingarda em uma mão e a outra arrastando mãe catirina, ele os faz com tamanha fanfarrice
que provoca o riso. Como seu Chico me disse, ele é um palhaço. para brincar na persona de
pai Francisco, é preciso saber ser palhaço. Esse personagem usa uma máscara, o próprio Chico
me disse que pai Francisco pode ser um cazumba, assim como em muitos bois do interior que
ele conheceu e brincou junto. Mãe Catirina, também apresenta expressões corporais de bazófia
e fanfarronice. Ela segue acompanhando de braços dados com pai Francisco com um sorriso
grosseiro, idiota e gozado. Geralmente é um homem que brinca de mãe Catirina. no tocante a
expressão corporal, a diferença gritante do casal, pai Francisco e mãe Catirina, a meu ver, é
que pai Francisco apresenta um corpo corcunda com um andar capenga, enquanto mãe Catirina
apresenta uma coluna tão ereta que chega a envergar para trás, devido sua grande pança que
66
simboliza sua gravidez. O casal brinca junto em fila e circulando, adentrando, transgredindo
muitas vezes a morfologia do cordão.
2.6.8 Brincar na burrinha
A burrinha é brincada por uma criança. ela é, assim como o artefato do boi, um artefato, uma
armadura, a qual, a criança veste-se com ela. O movimento que o pequeno brincante faz
consiste em pequenos passos galopantes e um giro em semi-rotação com a armadura, para
esquerda e para a direita. O menino que brincou de burrinha nesse São João que passou,
“baiava” muito bem, me contou Benedita Aroucha. A burrinha não parava, diferente de uma
outra criança que brincava na burrinha antes do menino elogiado por Benedita. Segundo a
mesma, a criança anterior não sabia fazer o giro e balançar a armadura, ela não fazia com
brilho e intensidade. A burrinha é um personagem “elétrico” ela não para!
2.6.9 Rolar no miolo
O miolo, no caso do boi de pindaré, é uma questão complexa. Para ser miolo, além de
aguentar a capoeira, artefato, armadura do boi, é preciso saber rolar o boi, saber rolar bonito.
Ser miolo, é dançar embaixo da armadura do boi. Brincar de miolo, assim como brincar de
cazumba, requer bastante resistência, visto que, no caso do cazumba, utiliza-se uma farda que
cobre todo o corpo e carrega-se uma máscara que muitas das vezes é imensa e pesada. O miolo
“baia” embaixo de uma armadura de boi feita de madeira, que por sua vez, é coberta com o
pesado couro trabalhado pelas bordadeiras. Parece sufocante. Mas faz parte da brincadeira e
do comprometimento de ser miolo. O rolar no boi consiste em ficar ora bastante curvado e ora
menos curvado, porque a armadura encobre as costas, a cabeça, ou melhor dizendo, toda a área
da cintura para cima do rolador. Faz a necessidade, aqui, esclarecer que, rolador, miolo, arma
e fato, são conceitos nativos que designam o brincante que brinca no artefato do boi. A dança,
nesse gradiente de mais e menos curvado se faz no movimento em que o miolo gira a parte
dianteira do boi ( a cabeça) e a parte traseira ( o rabo) para cima e para baixo, quando a cabeça
está girando para cima, o rabo está girando para baixo e vice e versa. A arte da dança também
manifesta uma tremedeira ou pulsação que o miolo faz junto com a armadura no compasso do
batuque. Mesmo quando o miolo está em pé, sua coluna se mantém meio curvada, devido a
armadura pesada e que está conectada em suas costas. E para além, a dança admite uma corrida
como se o boi fosse chifrar alguém, dependendo do estado corporal que o miolo acessa.. O
miolo, como outros personagens já ditos acima, pode transpor a formação e estender seu limite
de atuação.
2.6.10 Contar e cantar a história (aboiar)
67
16
Quando tratamos do amo do boi, e principalmente quando o amo é também o dono do boi, nos deparamos com
a dimensão do líder que é responsável pelo comando, pela disciplina, pela ordem e Hierarquia. São regimentos
muito importantes para se organizar o batalhão e até mesmo manter a vida e o comunitarismo na sede. Cada
segmento de personagens da brincadeira possui um chefe que é responsável por organizar seu segmento. Todos
os brincantes se remetem ao chefe de seu segmento de personagem, que por sua vez se remete à direção do boi e
ao dono. Sabemos que o boi pode ter um dono, como é o caso do Pindaré. E em última instância é o dono que
toma as decisões. A liderança é muito importante no cosmo do bumba boi, pois é a agência que permite que o
grupo brinque organizado e não saia do controle, principalmente em relação aos mais jovens. "(...) Além disso,
o papel do líder é fundamental para que o boi consiga se destacar no meio boieiro e conquiste a fama de ser um
grupo que preza pela ordem. A regra e a disciplina fazem parte desses grupos e a obediência à hierarquia que
existe dentro dos cordões é muito importante para a boa convivência entre os participantes. Essa dimensão da
ordem interna dos grupos e do papel central do amo e/ou dono pode ser visualizada também no enredo das
apresentações." (MARTINS, 2015 p. 73)
17
Carolina Martins mostra que a maraca é acompanhada de uma série simbólica que denota o comando e o poder
do cantador. "(...) Uma maracá carrega uma simbologia importante entre os boieiros, pois o seu valor em grande
parte remete àquele cantador que o usou durante sua vida e é o objeto que, de certa forma, denota a autoridade
do cantador sobre o grupo de bumba-meu-boi. (MARTINS, 2015, p. 62)
68
cobrir os aros de jeniparana, madeira que constitui os aros dos pandeirões. Os batuqueiros mais
hábeis, esticam o couro de bode sobre o pandeirão, pregam uma tarracha resistente, juntando
o couro no aro, pregando essa tarracha em uma extremidade e outra na outra extremidade, isto
é pregam o couro nas duas extremidades diametrais do aro. Em seguida fazem o mesmo nas
outras duas extremidades que compõe o diâmetro perpendicular ao anterior. Nesse sentido
seguem pregando incessantes tarrachas e pregos nas outras áreas do aro para deixar o couro o
mais liso possível, mas sempre respeitando a tensão do couro, porque se esticar demais ele
pode rasgar, se ficar pouco esticado, ele não atinge o tom necessário para o batuque. São
técnicas manuais e musicais.
Podemos dizer, nesse momento, que a apresentação das técnicas relatadas, constituem
uma miríade de saberes que são compartilhados no interior e fora do grupo pelo povo boieiro.
Essas técnicas constituem o corpo do brincante. Não necessariamente o brincante sabe efetuar
todas, mas habita um campo onde elas fazem parte e tecem a esfera cultura que ele está
localizado. É certo que para ser um brincante, bastaria acompanhar a brincadeira, ter sua
pequena matraca e sair nas noites de São João brincando ou observando os grupos de boi. Mas
até nesse modo, até o brincante desse tipo, que não integra necessariamente um grupo, está em
contato, ele observa, ele escuta e sente a intensidade do batuque. Ele aprende as toadas
conforme as vai ouvindo, ele adentra o cordão e arrisca um passo. Ele é contagiado e
capturado!
Mas quando sabemos que o boi é uma brincadeira e uma festa religiosa, nos deparamos
com a problemática que questiona se as técnicas do boi são atos mágicos-religiosos eficazes
69
na vida das pessoas ou se são físico-químicas. “(...)qual é a diferença entre o ato tradicional
eficaz da religião, o ato tradicional, eficaz, simbólico, jurídico, os atos da vida comum, os atos
morais, de um lado, e o ato tradicional das técnicas, de outro?” (MAUSS, 2003, p. 407) Em
minhas observações, pude constatar que as técnicas compõem a cultura do boi e fazem
concretamente a brincadeira acontecer. Mas há um profundo agenciamento religioso na
brincadeira que é passado pela tradição. Nesse sentido, gostaria de refletir um caso que
observei.
No dia do batizado do boi, ofereci cerveja a alguns cantadores e brincantes. Todos os
cantadores negaram, e dentre os outros brincantes, apenas alguns aceitaram. Não compreendi
de início a rejeição, visto que a grande maioria dos brincantes gostam muito de cerveja.
Perguntei aos cantadores dias depois a razão pela qual escolheram não beber. Alguns me
disseram que pelo fato de irem cantar naquela noite, precisavam preservar a garganta e outros
falaram que por o batizado ser um ritual muito religioso, não podiam beber. Durante a reza a
ladainha do batizado, seu Chico, uma das pessoas que ofereci cerveja e recusou por razões
religiosas, e manifestou um estado de "irradiação" intenso. Ficou de joelhos tremendo muito e
chorando. Outros cantadores que recusaram a cerveja para preservarem a garganta não
apresentaram estado de "irradiação" visível. Enquanto outros que também recusaram a cerveja
por conta da preservação da garganta, manifestaram estado de "irradiação" menos intenso que
consistia em estarem de olhos fechados e calados durante todo o ritual de batismo. Logo, penso
que a rejeição pela bebida pode ter ambas as razões. Arrisco dizer que a questão fisico-quimica
de preservar a garganta possa se compor e atravessar o fato religioso do jejum alcoólico. Mas
seria preciso mais observações para adentrar nessa querela.
Portanto, compreendemos que as técnicas são atos tradicionais que são passadas de
geração em geração, a tradição de baixada. Mas da mesma forma que os brincantes dizem que,
na verdade, cada boi tem seu próprio sotaque, podemos dizer que o Pindaré tem sua própria
tradição. Os brincantes dizem muito que o batuque lento e “repinicado” do Pindaré, os outros
bois não conseguem fazer igual. Ele é tradição do Pindaré.“Chamo técnica um ato tradicional
eficaz ( e vejam que nisso não difere do ato mágico, religioso, simbólico). Ele precisa ser
tradicional e eficaz. Não há técnica e não há transmissão se não houver tradição.” (MAUSS,
2003, p. 407)
2.6.13 Pessoa brincante
A tradição da baixada, a tradição do boi de Pindaré, constitui seus brincantes. Digo
isso, porque são as técnicas que são ensinadas aos brincantes e desenvolvem seus corpos e sua
pessoa. Tornar-se um bom rolador, um bom batuqueiro, dirigir e organizar bem o boi. Muitas
70
técnicas, como vimos, fazem parte do arsenal brincante de boi, muito embora não
necessariamente deva-se saber todas, mas se está entre elas. Como disse mestre Hermínio
Castro, o boi é fundamental e até mesmo primordial na vida de um brincante. Esse fato me
leva a pensar sobre o como as pessoas se organizam, se entendem e se classificam na
brincadeira. É evidente que esse aspecto é atravessado pelo o que pensamos acerca da tradição
e da pessoa brincante. Se uma pessoa é formada, é feita ou se pensa segundo uma tradição, seu
referencial é essa tradição em questão. O que não nega a relação com outras tradições. No caso
do boi, se pensamos o Pindaré como um grupo com sua tradição, as pessoas, principalmente
os mais antigos, se pensam, se organizam em relação a outros grupos de boi, como Pindaré.
Eles dizem: eu sou batuqueiro, eu sou miolo, eu sou índia, sou cazumbá do Pindaré! Essa
relação admite o trânsito de brincantes. Há aqueles que brincavam em um boi anos atrás e
agora brincam no Pindaré. Mas para isso é preciso ter o consentimento e o reconhecimento da
dona do boi e de certa forma, dos demais brincantes. "Considerando o complexo que envolve
a formação de um grupo de Bumba-meu-boi, os fatores experiência e tempo são relevantes. É
preciso o reconhecimento dos brincantes pela experiência, carisma, entre outros atributos que
facultam a autoridade ao "amo" e/ou "dono"do boi." (MARTINS, 2015, p. 73). É preciso ser
aceito, ir se compondo aos poucos. Observei algumas dificuldades que brincantes recentes
passaram no ano passado durante o São João, em relação ao resto do grupo. A tradição do
Pindaré, tem suas técnicas que produzem um sotaque próprio, tem suas obrigações religiosas
próprias, ela produz e é mantida através de corpos brincantes que se identificam se referenciam
na brincadeira do Boi de Pindaré, inclusive os brincantes de bois que tiveram origem a partir
do próprio Pindaré reconhecem isso. Muitos brincantes exercem ocupações e funções variadas
em suas vidas cotidianas, fora da brincadeira. Mas a brincadeira, muita das vezes se faz, na
vida do brincante, como primordial, uma dimensão que o brincante foi apresentado e iniciado
em sua infância ou ordenado por razões religiosas. Esses brincantes, antes de serem soldador,
segurança, pedreiro, arrisco dizer, que se entendem como cantador, batuqueiro, bordadeira,
india, cazumba de seu boi.
(...) os bois também fornecem elementos para a construção das identidades
individuais dos sujeitos que lhes são associados. Nem todos os brincantes chegam ao caso do
cantador Humberto Mendes, que ganhou o sobrenome "do Maracanã"em referência ao grupo
em que atua, mas, de maneira geral, a participação em um determinado boi engendra a tomada
de uma série de atitudes por parte dos indivíduos. Pressupondo formas próprias da integração
entre seus participantes, os bois, numa perspectiva ampla, também "dão nome aos bois", na
medida em que os inserem em relações específicas ou ajudam a reforçar suas posições nessas
relações - de dominação, patronagem, parentesco, vizinhança, afinidade, compadrio, amizade,
hostilidade e também de prestação de serviços e favores políticos. (CARVALHO, 2011, p.186)
71
Me limitei a observações que tive no campo acerca da forma da brincadeira e seus códigos que
expressam movimentos que podemos refletir sobre a relações entre multiplicidades ou
heterogêneos, aspécto fundamental da cosmopolítica. Vejamos a manifestação dramática desse
campo.
Acompanhando o boi de Pindaré nas brincadas nos arraiais durante o São joão de dois
mil e dezoito, compreendi que há uma forma específica de organização dos personagens,
especificamente, do sotaque de baixada na hora de fazer a brincadeira e "tomar conta do lugar".
Como sabemos, o boi, em sua expressão dramática, é composto de: Pai Francisco e mãe
Catirina; miolo e burrinha; cazumbas; índias e índios; baiantes e vaqueiros; cantadores e
batuqueiros. E, no sotaque de baixada, eles brincam em uma ordem precisa mas que admite
alguns rearranjos.
Quando o Boi de Pindaré, e outros grupos do sotaque de baixada, vão começar seu
cortejo eles se organizam numa imensa fila. Na frente formam Pai Francisco e Mãe Catirina
juntos de braços dados e o miolo e a burrinha.. Em seguida segue a fila dos cazumbas. Após
os cazumbas, seguem na fila as índias e depois os índios. Mais adiante, tem os baiantes e os
vaqueiros, e logo após estes, os batuqueiros. Nos arraiais, os cantadores costumam já estarem
posicionados em seus postos de comando para cantarem as toadas e convocarem o batalhão,
mas em procissão, eles vão atrás com os batuqueiros.
Então temos: 1° - Pai Francisco, Mãe Catirina, Miolo de boi e Burrinha ( costumam
entrar juntos)
2° - Cazumbas
3° - Índias e Índios
4° - Baiantes e Vaqueiros
5° - Batuqueiros e Cantadores
Nesse sentido, as formações concêntricas teriam uma distribuição em que seu centro
e sua borda expressam um gradiente variável do sagrado? No caso da brincadeira do boi, do
sotaque de baixada, essa hipótese apresenta bastante fundamento. Os brincantes brincam boi e
cultuam o boi. O boi é um artefato e agência sagrada para as pessoas, em que devotos e
brincantes prestam devoções e promessas. Alguns brincantes me disseram que já ouviram o
boi urrar, no barracão e tomar vida. A brincadeira do boi é uma festa religiosa. O boi é sagrado,
ele possui um altar no fundo do Salão da sede e dança, primeiramente, no centro da formação.
É fato que o boi designa a agência sagrada a qual são prestadas homenagens e firmadas as
alianças e promessas. Logo, o vetor que a brincadeira se orienta manifesta a centralidade do
artefato/agência do boi.
74
Com efeito, torna-se mais clara a forma dramática da brincadeira do boi. Nos
deparamos com o artefato de boi no centro do círculo dos cazumbas, outra figura, além do boi,
que as pessoas, os brincantes, relatam que possui muito mistério, muita espiritualidade e
sacralidade. Estes estão inseridos no centro do círculo das índias e índios, que seu bigode, uma
vez, me disse representarem o "povo do fundo", intensidades encantadas, que por sua vez estão
inseridos no centro do círculo dos baianates e dos vaqueiros. Mas seria possível também
estabelecer uma razão na formação concêntrica do cordão do boi que expressa a relação
natureza e cultura; não humano e humano.
Se observarmos atentamente, partindo da borda para o centro, os personagens vão
apresentando gradualmente características não humanas. No círculo periférico, temos os
baiantes e vaqueiros, personagens humanos que carregam fardas e chapéus específicos, mas
ainda, expressam artefatos culturais humanos, como chapéus de vaqueiros, camisa social e
calças. Eles possuem rostos humanos. Num círculo adentro, temos as índias e os índios,
personagens que são humanos mas que possuem penachos em todos os elementos da roupa de
índia/índio, além de terem rostos pintados. Para além, eles também possuem relações mais
próximas e mais intensas com os personagens mais ao centro. Lembremos do que disse seu
Bigode. "As índias representam o povo do fundo". Mais adentro temos o círculo dos cazumbas,
personagens que já não apresentam corpos e rostos humanos. Usam máscaras de animais
misteriosos, na maioria das vezes, imensas e possuem o quadril enorme. São criaturas, espíritos
travessos dotados de mistério, guardiões ao mesmo tempo transgressores. Eles transgridem a
lei, a forma do cordão. No centro, temos então o artefato de boi, um animal ao mesmo tempo
espírito misterioso, que, estabelece relações ritualísticas de dádiva e bençãos para com os
brincantes humanos, além de ser, segundo o mito, o animal que ressuscita encantado através
da magia dos índios.
2.7.2 Anomalias e rearranjos
Mas a formação concêntrica, como Lévi-Strauss nos mostra, possui anomalias. A
formação diametral e concêntrica que os povos Bororo e Winnebago apresentam ao mesmo
tempo, na verdade, não se bastam, não são dualistas, diametral e concêntrica somente, elas são
triádicas.
Finalizando: tentei mostrar neste artigo que o estudo das organizações ditas
dualistas revela tantas anomalias e contradições, em relação à teoria em vigor, que
seria melhor renunciar a esta e tratar as formas aparentes de dualismo como distorções
superficiais de estruturas cuja natureza real é outra, muito complexa.(...)(LÉVI-
STRAUSS, 1967, p. 187-188).
75
O cordão do boi é concêntrico, mas apresenta algumas variações que pude observar:
Mãe Catirina, personagem humano, e Pai Francisco, personagem mascarado, localizam-se,
inicialmente, no centro do cordão, assim como a burrinha, personagem designado pelo nome
de um animal, mas consiste num menino montado num artefato de burrinha. Mas por se tratar
de um cordão teatral, dramático e dinâmico, os personagens estão sempre em movimento. Mãe
Catirina, Pai Francisco e a burrinha podem abandonar sua posição e circundar todo o cordão,
eles podem transpor os círculos dos outros personagens. Os cazumbás eles dançam em um
círculo, mas podem transgredir esse círculo também, desorganiza-lo e sair do cordão. O
artefato de boi, pode transpor, de maneira semelhante, os círculos, pode dançar com um baiante
ou vaqueiro no círculo periférico e os mesmos podem adentrar o interior do cordão e dançar
com o artefato de boi.
Mas o dualismo concêntrico é dinâmico; traz em si um triadismo implícito,
ou melhor, para ser mais exato, todo esforço para passar da tríade assimétrica à díade
simétrica supõe o dualismo concêntrico que é diádico como um, assimétrico como o
outro. (LÉVI-STRAUSS, 1967, p. 177)
18
Essa explicação se baseia na teoria do cone invertido apresentada por Bergson e explorada por Gilles Deleuze
em Bergsonismo. O vértice (ponto de contração) corresponde ao presente, e a base (ponto de distensão)
corresponde ao passado. O presente, o atual, concentra toda variação de grau, enquanto o passado, o virtual,
consiste em toda diferença de natureza. Mas Deleuze chega a intuir que o presente é o mais alto grau de contração
do passado, contendo sobre si a totalidade virtual e todas as diferenças de natureza; ao passo que o passado é o
mais alto grau de distensão do presente. Essa teoria corresponde a necessidade de conciliar a problemática da
variação de graus com as diferenças de natureza. Isto é, a tendência quantitativa com a tendência qualitativa. Na
defesa de uma perspectiva da duração, do tempo não especializado, mas como fluxo imanente ao espaço, Deleuze
acompanha a teoria bergsoniana e desenvolve uma reflexão em que o espaço, a matéria, o atual, a contração - o
domínio que compreende todas as variações de grau, quantitativa; e a Duração, a memória, o virtual, a extensão
e distensão - domínio que compreende toda diferença de natureza, qualitativa - são imanentes e simultâneos. O
tempo ontológico, o tempo do ser, o qual, os autores compreendem como tempo puro é o tempo Uno que não é
múltiplo, mas é uma multiplicidade específica. Multiplicidades de fluxos que se relacionam e se compõem numa
só duração, na ontologia. O real, o formidável e verdadeiro ponto de culminância e simultaneidade do tempo e
do espaço, do passado e presente admite processos de toda a sorte, aqueles momentos em que um elemento
qualitativo, a memória, desaparece e vem aparecer outro elemento, um elemento atual de natureza distinta, a
matéria, que de um modo distendido, vem a se contrair até conjurar um novo aspecto. O espaço. A composição
entre os graus e as diferenças de natureza são a equação metafísica do real. "Quando Bergson defende a unicidade
do tempo, e;e a nada renúncia do que disse anteriormente em relação à coexistência virtual dos diversos graus de
distensão e de contração e à diferença de natureza entre os fluxos ou ritmos atuais. E quando ele diz que espaço
e tempo nunca "mordem"um ao outro e nem "se entrelaçam", quando ele sustenta que somente sua distinção é
real, ele a nada renuncia da ambição de Matéria e memória, qual seja, a de integrar algo do espaço na duração, a
de integrar na duração uma razão suficiente da extensão"(DELEUZE, 2008, p. 75)
Nesse sentido, podemos dizer que a morfologia do boi possui uma variação de grau, em que no centro ou na
frente está localizada a maior densidade ou contração do sagrado, isto é, no artefato do boi, e o mesmo carrega
consigo a virtualidade, o lastro da totalidade de multiplicidades, das diferenças de natureza que ora se fazem
atuais em seu plano.
77
vezes atravessa o cosmo daquele que possui natureza diferente da dele. Eles povoam o cosmo
e o domínio um do outro segundo uma organização que admite e possibilita o rearranjo e a
diferença. Brincantes que vestem personagens humanos e não humanos, misteriosos e sacros
que permitem a esses mesmos brincantes acessarem estados e comportamentos variáveis num
encadeamento dramático de uma brincadeira religiosa, em que, potências, agências e forças se
fazem presente, firmando alianças e muitas vezes concedendo bênçãos e graças.
2.8 Tempo
Se quer vê festa de gado
Vai no Pindaré
É vinte e sete de junho
No dia da vaquejada
Pude observar que quando pensamos a questão do tempo na brincadeira do bumba boi,
somos levados a dois horizontes. O tempo (na) brincadeira e o tempo (da) brincadeira.
O tempo (na) brincadeira consistiria nos momentos de atuação do batalhão de boi, que
é ordenado pelas toadas que, tradicionalmente, são designadas por nomes específicos que
expressam esses momentos precisos do encaminhamento da brincada. Todo grupo de boi,
necessariamente, possui um conjunto de toadas que fazem o tempo na brincadeira, cantadas
pelo o amo do boi.
Reunida / Guarnecer - Primeira toada cantada em uma brincadeira, é a toada que reúne
o batalhão, quando os brincantes estão dispostos em filas para entrar.
Lá vai - Segunda toada cantada em uma brincadeira, a toada que anuncia a ida, o
lançamento do batalhão, quando os brincantes, em filas, vão entrando na arena
Chegou - Terceira toada cantada em uma brincadeira, a toada que anuncia a chegada
do batalhão, do cordão já em cena para começar a brincadeira.
Urrou - toada cantada em uma brincadeira, a toada que anuncia o urro do boi.
Toadas - Toadas cantadas por outros cantadores, que não somente o amo, em que estes
se revezam e cantam sobre inúmeras temáticas.
Despedida - Última toada cantada em uma brincadeira, anuncia a despedida e a retirada
dos brincantes da arena.
78
Mas de outro modo, o tempo do sagrado se apresenta como uma nova atualização de
um tempo intensivo, que carrega consigo intensidades e forças cósmicas, religiosas que
povoam São Luís, como o caso das obrigações que tornam liso os espaços estriados
preenchendo-os com as músicas, com as danças e com as forças sagradas. Intensidades as quais
os devotos, brincantes e fiéis se compõem travam acordos singulares, criam novos territórios,
assim como sempre firmam relações e promessas com as entidades. Trata-se de atualizações
de uma virtualidade que provoca uma movência no espaço e nos seres que gera composições
inéditas, mas que preserva seu lastro de memória, de passado. É um tempo sagrado que faz
virem as intensidades que se territorializam nas imagens do santo, nos artefatos de boi, na
procissão e no corpo dos brincantes. São João, o tempo sacro e tradicional, de esperanças, novo
começo, que sempre se repete diferente. Ritornelo19.
Só te peço um abraço
E um aperto de mão
Pra que tornes voltar
Pra que tornes cantar
Bumba boi em São Luís do Maranhão
(Despedida do Pindaré)
19
Ritornelo é um conceito que designa matéria expressiva que passa através de territórios, mas que opera no
meio, entre o território, que se repete, entretanto, sempre, conjurando um aspecto de novidade, de diferença.
"Num sentido geral, chamamos de ritornelo todo conjunto de matérias de expressão que traça um território, em
que se desenvolve em motivos territoriais, em paisagens territoriais ( há ritornelos motores, gestuais, ópticos,
etc.)" (DELEUZE E GUATTARI, 2012b, p. 139).
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medo de criar novas lutas tendo em vista sempre devires minoritários." (SZTUTMAN, 2018,
p. 348). Uma vez, Carolina Martins me disse que enquanto o capitalismo desencanta o mundo,
o boi segue encantando-o. Seguindo a noção de Stengers sobre feitiçaria capitalista, podemos
dizer que enquanto esta feitiçaria desencanta o mundo, nos enfraquece, nos coloca diante de
alternativas indecidíveis, as práticas minoritárias como o boi nos desenfeitiçariam. Isto
significa que enquanto a vida cotidiana imbuída na dimensão do capitalismo nos enfraqueceria
como uma força que esvaziasse a pessoa (Stutman), o boi seria uma feitiçaria que recobriria
as forças ocultas ou adormecidas presente nas pessoas, "reativando" potências ou "levantando"
processos ou movimentos antes em declínio.
Logo, podemos dizer que a festa de São João e os grupos de boi se configuram como
práticas minoritárias que não coadunam com a perspectiva do Estado e em alguns casos com
a perspectiva mercadológica em que alguns outros grupos foram inseridos. O boi poderia ser
compreendido então como um processo cosmopolítico porque se institui como uma festa em
que são firmadas alianças entre agentes ou agências heterogêneas que designam um território
desconsiderado ou destituído de relevância pelo Estado no momento de discutir, distribuir ou
fomentar as condições necessárias para os grupos. Pois, para o Estado, são joão é um
espetáculo turístico. Com isto, os bois que apresentam traços de espetáculo são favorecidos
com o consequente ofuscamento dos bois de "fundamento", para usar uma definição dos
próprios brincantes. A consequente insatisfação para com o Estado não se refere a uma
infelicidade de não ocupar um lugar preferido por este, mas de discutir os problemas de
realização das festas nos termos dos próprios grupos. Para os brincantes o Estado tende de
tomar responsabilidade sobre o São João no sentido da importância "religiosa" e "espiritual"
do festejo.
Essa questão se tornou mais clara pra mim quando perguntei a uma brincante do
Pindaré o porquê da insatisfação generalizante para o então governo progressista de Flávio
Dino, do PCdoB, visto que a educação, a saúde, o transporte tiveram avanços significativos
em relação ao governo de Roseana Sarney. Ela me respondeu que ele melhorou a educação, a
saúde em muita coisa, mas ele esqueceu da cultura, do boi, do tambor de crioula. Essas podem
ser as alternativas infernais do capitalismo que nos obrigam a escolher justamente aquilo que
nos enfraquece. "(...) ou a reforma da previdência ou a falência do Estado; ou Belo Monte ou
crise da energia; ou o freio a imigração ou o colapso social; ou a indústria farmacêutica ou o
fim do financiamento das pesquisas." (SZTUTMAN, 2018, p. 348) Não se trata de escolher
entre as duas alternativas, mas construir um possível que faça passar entre essas linhas.
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Assim, vemos que a própria existência dos grupos de boi, a importância da festa para
a cidade e os envolvidos, a intensidade e a mobilização provocadas ressalta uma outra
problemática. A constituição de possíveis neste contexto do Boi se coloca em consonância
com a própria existência e mobilização dos grupos de bumba. A importância dos grupos de
boi, sua ligação com segmentos de parentesco, a aglutinação e mobilização que eles realizam
nas pessoas nos sugere a reorganização dos problemas do Estado. Isto significa que a existência
dos grupos encerra e sustenta uma disputa para com o Estado no interior de um campo de
problemáticas, operando o valor de importância que questões serão tratadas. Se os grupos são
vitais na vida das pessoas, essa perspectiva afirma para o Estado portanto que não existe opção
entre escolher o boi ou negá-lo. A existência política que encerra o campo de problemáticas
que o boi provoca supera ou anula a importância entre escolhê-lo ou não, ou seja, o boi é tão
necessário e vital para as pessoas quanto saúde, educação ou segurança. No sentido de
feitiçaria capitalista desenvolvido por Stutman, podemos pensar o boi como uma prática de
"contra-feitiçaria" em que são desenvolvidas ou reativadas novas formas de ação cujos efeitos
se colocam contra a perspectiva do Estado e seus aparelho de captura que reduzem os
problemas a opções indecidíveis para praticantes da cosmopolítica.
O levantar do Boi de Pindaré de maneira semelhante, se refere ao processo de reativar
práticas que ora estavam desativadas e desenvolvê-las. Como já dito, esse levante, é uma
potência que os brincantes encarnaram em restabelecer as alianças, em criar novas e se colocar
novamente num campo de disputa. É certo que essa potência ganhou o nome de levantar
mediante a um passado nebuloso. O momento em que Benedita escolheu desligar o boi e
dissolver o grupo, visto que, não queria a responsabilidade que seu pai havia lhe deixado. Mais
ainda, o processo de dissidência de brincantes que levaram embora artefatos importantes do
Pindaré. Benedita foi intimada a reaver o boi, a reativa-lo. Mas tudo indica que isso não
acontece do dia para a noite, uma vez que, eles estão se reerguendo aos poucos a cada ano,
segundo a força das alianças, de seu desejo e de sua militância. Esse levantar, esse reativar
designa antes um impulso vital de restabelecer a máquina de guerra, traçar novas linhas, linhas
consistentes que levem a destinações potentes. Aliança Cosmopolítica. É ativar essa máquina
que opera práticas de "contra-feitiçaria" ou de encantamento, a partir de linhas que tramem
corpos, agenciamentos e territórios que não aquele infernal do aparelho de captura.
Nesse trabalho apresentei uma reflexão sobre o acontecimento da festa religiosa que o
Boi de Pindaré realizou no São João de dois mil e dezoito. Traçando uma transversalidade
entre teorias que pensam a dimensão da diferença com certas operações que o Pindaré e as
pessoas que o compõe efetuam. Essas operações tem como vetor e orientação essa mesma
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Imagens
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(Os três artefatos de boi no altar localizado no fundo do salão da sede, no bairro de Fátima)
(Velas colocadas em frente ao altar do boi logo após o batizado pelos brincantes como
firmamento de promessa)
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(Cazumbas se agrupando em filas em alguma brincada na madrugada do dia vinte e nove, dia
de são pedro)
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( Fileira de índias marchando pelo bairro da Madre Deus na manhã do dia de São Pedro, rumo
a capela de São Pedro)
( O Pindaré brincando e marchando rumo a capela de São Pedro no dia de São Pedro)
89
( Os cantadores e amos do boi na procissão na manhã do dia de São Pedro: Hermínio castro a
esquerda, Bigode no centro, e João Sá Viana a direita)
(Batuqueiros)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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Porto Alegre. Sincretismo entre Maria e Iemanjá. Porto Alegre: Editora da Cidade.
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DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Felix. Mil Platôs vol. 4. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2012b.
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LEACH, Edmund Ronald. Sistemas Políticos da Alta Birmânia. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2014.
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