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UNIVERSIDADE FEDERAL DO SUL DA BAHIA – UFSB

PROGRAMA DE PÓS-GRADUÇÃO EM ESTADO E SOCIEDADE - PPGES

ALEGORIAS DO DESCOBRIMENTO:
As “Asas do Brasil Novo” no “Raid” a Porto Seguro (1939)

PORTO SEGURO – 2020


2

JOÃO RAFAEL SANTOS REBOUÇAS

ALEGORIAS DO DESCOBRIMENTO:
As “Asas do Brasil Novo” no “Raid” a Porto Seguro (1939)

Dissertação apresentada como requisito parcial à


obtenção do título de Mestre no Programa de Pós-
Graduação em Estado e Sociedade, na linha de pesquisa
Sociedade, Cultura e Ambiente, que integra o Centro de
Formação em Ciências Humanas e Sociais da
Universidade Federal do Sul da Bahia.

Orientador: Prof. Dr. Francisco Eduardo Torres Cancela.

Porto Seguro – 2020


3

Para Aurora Flor!


4

AGRADECIMENTOS

Inicialmente, agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia – FAPESB pela


bolsa que nos auxiliou nesta jornada do mestrado.

Em nome da minha mãe Janilda Selma Santos Rebouças e do meu pai Sebastião Dantas
Rebouças (in memoriam) agradeço toda a minha família, por todo amor e carinho!

Um agradecimento especial ao prof. Dr. Francisco Eduardo Torres Cancela, orientador com
quem já trabalho desde a graduação em História na UNEB. Agradeço imensamente àqueles
que participaram da banca de qualificação e que tanto contribuíram com este trabalho. Muito
obrigado, prof. Dr. Marcelo Abreu, profa. Dr. May Waddington e profa. Dr. Janaina Zito
Losada, por todas as colaborações e incentivo!

Gostaria também de agradecer a todxs do Programa de Pós-Graduação em Estado e Sociedade


– PPGES, dos professores aos técnicos da Universidade Federal do Sul da Bahia – UFSB e
aos colegas da turma de 2018 pelos bons momentos e pelo compartilhamento desta
experiência tão enriquecedora!

Por fim, agradeço em nome de Sumário Santana a toda a família do Viola de Bolso com quem
compartilhamos muitos saberes e práticas que me constituíram neste processo formativo.
Nesse sentido, vale a lembrança de que foi no Viola que encontrei as duas “fontes” sobre as
quais me debrucei, seja para o TCC da graduação, seja com Sob os céus de Porto Seguro no
mestrado, neste trabalho de pensamento e compreensão da experiência histórica a partir da
Bahia.

Agradeço, ainda, aos amigos e amigas com quem compartilhei experiências de vida!
5

LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Capa de Sob os céus de Porto Seguro, 1940. .............................................................. 9


Figura 2: Primeira Missa no Brasil, 1860, Victor Meirelles de Lima.. .................................... 51
Figura 3: Foto da cena da primeira missa para filme O Descobrimento do Brasil .................. 55
Figura 4: Cidade baixa de Porto Seguro - árvores e canoas.. ................................................... 57
Figura 5: A travessia do Rio João de Tiba ................................................................................ 75
Figura 6: O canhão de Porto Seguro. ........................................................................................ 79
Figura 7: Edmar Morel montado a cavalo em Porto Seguro. ................................................... 80
Figura 8: Cidade baixa de Porto Seguro - casas e pessoas. ...................................................... 82
Figura 9: O tesouro da Santa. ................................................................................................... 83
Figura 10: Vista aérea da cidade alta de Porto Seguro. ............................................................ 84
Figura 11: Vista da barra a partir da cidade alta, com os arrecifes no horizonte. ..................... 87
Figura 12: Igreja de Nossa Senhora d'Ajuda. ........................................................................... 89
Figura 13: Casas em Barra Velha ............................................................................................. 96
Figura 14: Hasteamento das bandeiras no Monte Pascoal. ................................................... 100
Figura 15: As ruínas do forte dos canhões, com vista para a paisagem de Porto Seguro. ...... 119
Figura 16: Os primeiros aviões a chegar ao campo de aviação. ............................................. 147
Figura 17: Disparo do canhão em saudação à chegada de Gago Coutinho. ........................... 148
Figura 18: Gago Coutinho e o diretor de Cultura e Divulgação da Bahia em Porto Seguro. . 149
Figura 19: Os participantes do "Raid" em Porto Seguro. ....................................................... 154
Figura 20: Participantes do "Raid" seguram Primeira Missa no Brasil. ................................ 155
Figura 21: Celebração da missa. ............................................................................................. 157
Figura 22: Aviões do "Raid" em revoada sobre o cruzeiro da primeira missa. ...................... 160
6

RESUMO

A problemática central desta dissertação é oriunda da investigação do “Raid” a Porto Seguro,


evento ocorrido no dia 3 de maio de 1939 e que se constituiu de uma atividade da aviação
civil que iria aterrissar na cidade considerada como o lugar de origem da civilização
brasileira. O “Raid” foi um acontecimento aeronáutico-jornalístico que visava comemorar o
aniversário do “Descobrimento do Brasil”, por meio de uma viagem de resgate ao berço da
nação, que emergiria em uma série de reportagens de jornais e revistas pertencentes aos
Diários Associados, o conglomerado de imprensa comandado por Assis Chateaubriand. A
comemoração das “Asas do Brasil Novo” promoveria atividades celebrativas que iriam desde
a anunciação da revoada, passando pela narrativa da Caravana que reconfigura a paisagem do
descobrimento em sua missão de hastear as bandeiras do Brasil e da Cruz de Cristo no Monte
Pascoal, até chegar ao dia da realização do evento com suas cerimônias e performances que se
constituiriam nas alegorias do descobrimento que marcaram presença em Sob os céus de
Porto Seguro (1940). Os dispositivos de emolduramento, oriundos da análise dos
desdobramentos da carta de Caminha que estariam presentes nos processos de invenção do
descobrimento, seriam reativados pela teatralização alegórica que a festa de brasilidade
agencia como forma de por em marcha as máscaras da civilização que transfiguram a
rusticidade em uma virtude civilizatória. Toda essa problemática estaria entremeada pelas
ordens do tempo – cultura histórica, comemoração e patrimônio – que configurariam o
horizonte de atuação destes que buscaram celebrar os 439 anos do Brasil por meio desta
viagem de redescobrimento durante o Estado Novo.

Palavras-chave: Descobrimento, alegoria, comemoração, patrimônio, “Raid”, Porto Seguro.


7

ABSTRACT

The central problem of this dissertation comes from the investigation of the "Raid" to Porto
Seguro, an event that occurred on May 3, 1939 and that constituted an activity of civil
aviation that would land in the city considered as the place of origin of Brazilian civilization.
The “Raid” was an aeronautical-journalistic event that aimed to celebrate the anniversary of
the “Discovery of Brazil”, through a rescue trip to the birthplace of the nation, which would
emerge in a series of newspaper and magazine reports belonging to the Diários Associados,
the press conglomerate led by Assis Chateaubriand. The celebration of “Asas do Brasil Novo”
would promote celebratory activities that went from the announcement of the flight, through
the narrative of the Caravan that reconfigures the landscape of discovery in its mission to raise
the flags of Brazil and the Cross of Christ on Monte Pascoal, until arrive at the day of the
event with its ceremonies and performances that would constitute the allegories of the
discovery that were present in Sob os céus de Porto Seguro (1940). The framing devices,
derived from the analysis of the unfolding of Caminha's letter that would be present in the
processes of invention of the discovery, would be reactivated by the allegorical
theatricalization that the festival of Brazilianness acts as a way to set in motion the masks of
civilization that transfigure the rusticity into a civilizing virtue. This whole problem would be
interspersed with the orders of time - historical culture, celebration and heritage - that would
shape the horizon of action for those who sought to celebrate Brazil's 439 years through this
journey of rediscovery during the Estado Novo.

Keyword: Discovery, Allegory, Celebration, Heritage, “Raid”, Porto Seguro.


8

SUMÁRIO

LISTA DE FIGURAS 5

RESUMO 6

INTRODUÇÃO: AS ORDENS DO TEMPO SOB OS CÉUS DE PORTO SEGURO. 10

CAPÍTULO 1: AS INVENÇÕES DO DESCOBRIMENTO DO BRASIL: DISPOSITIVOS DE


EMOLDURAMENTO. 23

1.1. As Invenções do Descobrimento: Ciência e Arte como Dispositivos de Emolduramento. 25

1.2. O Redescobrimento da Carta de Caminha: Mito Fundador, Historiografia e Viagens. 32

1.3. A Visualidade do Descobrimento: a Carta, a Missa e o Imaginário de Fundação do Brasil. 42

CAPÍTULO 2: O REDESCOBRIMENTO NAS ASAS DO BRASIL NOVO: SINAIS DA


MODERNA CIVILIZAÇÃO, CARAVANA E PAISAGEM. 57

2.1. O Novo Descobrimento do Brasil: em busca dos Sinais da Moderna Civilização. 58

2.2. A Paisagem do Descobrimento: a Caravana dos Diários Associados ao Monte Pascoal. 67

CAPÍTULO 3: ALEGORIAS DO DESCOBRIMENTO NO “RAID” A PORTO SEGURO. 101

3.1. O Descobrimento e as Máscaras da Civilização: Raízes, Rusticidade e Marcha de Brasilidade. 102

3.2. Alegorias do Descobrimento: Teatro das Ruínas, Mystica e Revoada das Asas. 119

3.3. O “Raid” a Porto Seguro foi uma Festa de Brasilidade: Descobrimento, Comemoração e
Patrimônio. 135

CONCLUSÃO: MOLDURA HISTÓRICA, PAISAGEM CIVILIZATÓRIA, ALEGORIA


PERFORMÁTICA. 168

BIBLIOGRAFIA 172
9

Figura 1: Capa de Sob os céus de Porto Seguro, 1940.


10

INTRODUÇÃO: AS ORDENS DO TEMPO SOB OS CÉUS DE PORTO SEGURO.

Reide. [Do inglês. raid.] S. m. 1. Militar. Rápida incursão de tropas em território inimigo.
2. Longa excursão a pé, a cavalo, de automóvel, avião, etc.1.

Sob os céus de Porto Seguro: o “Raid” e as ordens do tempo

O ano é 1939, no contexto nacional vigora o Estado Novo (1937-1945), no plano


internacional precipita-se a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e na escala local um grande
evento está sendo preparado para acontecer no município de Porto Seguro, Bahia. Antes da
realização deste acontecimento com data marcada, seus promotores já alardeiam e propagam
os motivos de tal festividade: “A comemoração das Asas do Brasil Novo à data do
Descobrimento”. O “Raid” a Porto Seguro, como é denominado o evento, estava promovendo
“sensacional revoada” ao município e pretendia reunir mais de “60 aparelhos [aviões] rumo
ao berço da pátria brasileira”. Este acontecimento é enunciado da seguinte forma nas palavras
que abrem o livro editado e publicado em 1940 pela Impressa Oficial do Estado da Bahia,
livro que teve por finalidade selecionar e organizar o registro do “memorável” evento que
emergiu nos jornais e revistas do conglomerado de imprensa e comunicação dos Diários
Associados comandados pelo jornalista Assis Chateaubriand:
Este livro, intitulado ‘Sob os céus de Porto Seguro’, foi organizado pelo dr. R.
Berberte de Castro, e é agora publicado pela Diretoria de Cultura e Divulgação do
Estado da Bahia, por determinação do Interventor Landulpho Alves de Almeida, que
quis, assim, deixar registrada a memorável revoada de 3 de Maio de 1939,
promovida pelo brilhante jornalista Assis Chateaubriand, diretor dos ‘Diários
Associados’, às regiões primevas do Brasil e que tantos benefícios trouxe àquelas
2
paragens históricas, até então esquecidas.

O tema geral que perpassa toda a publicação é a comemoração do “Descobrimento do


Brasil” por meio da realização e cobertura jornalística do “Raid a Porto Seguro” (ou ainda,
“Revoada das Asas”, “Revoada de 3 de Maio”, “Asas para Porto Seguro”, “Deem Asas ao
Brasil” dentre outras nomenclaturas impressas nas manchetes sobre o evento), onde a história
de fundação do país se encontraria com a atualidade do novo presente que se buscava
instaurar. A configuração de Sob os céus de Porto Seguro será analisada e problematizada
levando-se em consideração sua especificidade enquanto registro de um evento que celebrava

1
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI: O dicionário da língua portuguesa.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p.1733.
2
CASTRO, Ramiro Berbert de (org.). Sob os céus de Porto Seguro. Diretoria de Cultura e Divulgação do
Estado da Bahia, Impressa Oficial do Estado, Bahia, 1940, p. I. Doravante citado de forma abreviada.
11

as origens da nação a partir deste retorno “as regiões primevas do Brasil”. Nesse sentido, a
construção de sua memória se fez pela interpretação e uso de um acontecimento que é
valorizado e difundido por meio dos Diários Associados. Como livro que visava ser o registro
da memória celebrativa destes acontecimentos, sua constituição será entendida como um
lugar de memória3 do Brasil novo que era então propagandeado.
Tanto a necessidade de “deixar registrada a memorável revoada” como os “benefícios”
que o “Raid” teria produzido se justificaria pelo contraste com um suposto esquecimento. Um
esquecimento do lugar “onde o Brasil nasceu” entendido também como um abandono de seus
habitantes, desligados do Brasil moderno representado pelo dinamismo dos “pássaros
metálicos” pilotados pelos aviadores do sudeste. Assim, o lugar do esquecimento seria o lugar
do atraso aonde os benefícios da vida moderna ainda não teriam chegado. Desta forma,
perceber nas paragens históricas até então esquecidas o lugar do antigo, será compreendê-lo a
partir da relação com o novo. É a partir dessa retórica do velho e do novo e contra o
“abandono” do lugar de origem que a “Revoada das Asas” se levantaria em nome do
progresso. Estes elementos se tornam centrais para as justificativas de realização do “Raid”,
como também servem de mote para a legitimação das ações empreendidas. Esse horizonte de
perspectivas aliaria às razões históricas o imperativo da ação dos poderes públicos e da
iniciativa privada no sentido da integração nacional, por meio da modernização simbolizada
pelo avião em contrate com as caravelas.
Sob os Céus de Porto Seguro é uma compilação de artigos, notícias, reportagens
especiais, telegramas, poemas, fotografias e ilustrações que foram publicados entre 1938 e
1940 e que o configuram material e discursivamente como uma espécie de cápsula do tempo
destinada a ser o registro destes acontecimentos e o viático portador dessas memórias para a
posteridade. Sua análise nos permitirá reconfigurar, expor e problematizar as razões e os
contextos daqueles que visaram produz uma unidade de sentido e significação à obra e que a
transformaram, com isso, num lugar de memória legitimador do presente projetado para o
futuro por meio da celebração do passado. Nesse sentido, compreenderemos que as
circunstâncias que regeriam a produção do acontecimento e do livro confeririam à referida
obra o valor de cápsula do tempo. Ao propormos o entendimento do livro-fonte como uma
capsula do tempo, buscamos salientar a singularidade destes acontecimentos de modo a que

3
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. PROJETO HISTÓRIA: Revista do
programa de pós-graduação em História do Departamento de História da PUC-SP. São Paulo, 1991.
12

nos permita compreender os processos de configuração narrativa do evento “Raid” a Porto


Seguro por meio de seu emolduramento sob a forma livro.
Dos 53 textos presentes num livro de 232 páginas a maioria se constitui de reportagens
que foram publicadas em uma série de jornais e revistas com circulação periódica e de
abrangência estadual e nacional. Dentre eles podemos citar os jornais Estado da Bahia e
Diário da Noite no Rio de Janeiro e a revista O Cruzeiro. Dos textos que compõem o livro a
reportagem mais antiga que antecede o “Raid de 3 de Maio” é datada de 10 de abril de 1939
(cabe ressaltar que em 30 de dezembro de 1938 já há reportagens tratando de anunciar e
promover a “Revoada a Porto Seguro” com o intuito de comemorar o descobrimento do Brasil
- “Ali onde primeiro desembarcaram os portugueses nas suas caravelas audazes” - mas que
não entraram no livro4) e a última reportagem que seria posterior ao evento é datada de 7 de
agosto de 1940. Portanto são quase dois anos onde diversas reportagens e notícias foram
veiculadas em diferentes periódicos.
O livro está organizado em cinco partes diferentes que são precedidas de dois artigos
produzidos pelo governo baiano e que servem de textos de abertura da obra. Cada uma dessas
partes carrega um bloco de reportagens, artigos e fotografias que guardariam alguma relação
ao título da parte a que pertencem. Essa forma de organizar os textos daria coerência e lógica
à unidade de significação que o livro busca representar e que a fragmentação e dispersão das
reportagens nos periódicos não permitiria visualizar no seu todo de forma imediata. A
trajetória desses escritos constitui, como diz Roger Chartier, a aventura do livro que vai desde
o trabalho intelectual e manuscrito passando por um processo de estruturação do texto através
da organização e distribuição de seus temas e autores, da editoração com a seleção da
tipologia e das formas de diagramação, e dos materiais escolhidos para a impressão, até a sua
publicação e distribuição na qual o leitor reaparece como agente do diálogo onde seu papel de
intérprete emerge das apropriações e usos que realiza.5
O uso da metáfora da capsula do tempo, como forma de compreender Sob os céus de
Porto Seguro, foi inspirado em Valdei Araujo, quando este, ao trabalhar os conceitos e
narrativas da formação nacional brasileira, busca problematizar a atividade de registro do
tempo que permearia o trabalho da escrita por meio da literatura. E de como esta última
acreditava ter adquirido, em determinado momento, a capacidade de construção da memória

4
Jornal Diário da Noite – Rio de Janeiro – Edição das 15 horas – 30 de dezembro de 1938, p.3.
5
CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo, Imprensa Oficial do Estado,
Editora UNESP, 1998.
13

histórica do Brasil ao visar dar testemunho à posteridade do grau de civilização de um povo


ou geração.6 Hans Ulrich Gumbretcht, no prefácio ao trabalho de Araujo, salienta que com
essa metáfora o autor teria descrito a função da literatura como capaz de prover uma “imagem
da identidade nacional”. E completa afirmando que o “movimento para a ‘monumentalização’
na promoção da história nacional” seria semelhante ao efeito “cápsula do tempo”.7
De modo geral é à monumentalização da história que encontraremos nas narrativas
contidas nas reportagens que compõem Sob os céus de Porto Seguro. A imagem da identidade
nacional que será promovida se alicerçará nas alegorias que configurariam a história do
“Descobrimento do Brasil” como uma origem a ser celebrada. Em nosso caso, essa função e
poder que a escrita exerceria se somará ao uso das imagens impressas, por meio do discurso
jornalístico que produz o acontecimento e o reverbera.
A realização do “Raid a Porto Seguro” é um empreendimento levado a cabo por alguns
atores, seu principal articulador é o jornalista Assis Chateaubriand, diretor-proprietário dos
“Diários Associados”, um dos maiores impérios de comunicação e imprensa das Américas na
época.8 Nesse sentido, a Revoada das Asas seria, antes de tudo, um evento que mesmo ligado
à aviação, pode ser compreendido como um acontecimento jornalístico. O jornalismo
entendido através da sua capacidade de configuração narrativa da história do presente. Em
Sob os céus de Porto Seguro a notícia da revoada em comemoração ao descobrimento do
Brasil ganha a notoriedade das reportagens especiais, onde a periodicidade da repetição das
manchetes influi na construção de uma narrativa sobre determinado assunto fazendo com que
a notícia se transforme em acontecimento. A construção narrativa do acontecimento
jornalístico se dá pelo processo de emolduramento da história que se quer expor à visibilidade
como um recorte da realidade.

Cultura histórica e redescobrimento do passado brasileiro

“Em novembro de 1937 instaura-se no país um regime político que afirma inaugurar
uma experiência única na história do Brasil.” 9 Com estas palavras Ângela de Castro Gomes

6
ARAUJO, Valdei Lopes de. A Experiência do Tempo: conceitos e narrativas na formação nacional
brasileira (1813-1845). São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2008, p.120.
7
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Prefácio. In. ARAUJO, Valdei Lopes de. Op. Cit. p.14. Grifo nosso.
8
MORAIS, Fernando. Chatô, O Rei do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p.8.
9
GOMES, Ângela de Castro. O Redescobrimento do Brasil. In. OLIVEIRA, Lúcia Lippi; VELLOSO, Mônica
Pimenta; GOMES, Ângela de Castro. Estado Novo: ideologia e poder. Rio de Janeiro: Zahar Ed. 1982, p.109.
14

inicia o texto “O Redescobrimento do Brasil” onde analisa aspectos do regime no que


concerne às formas como este concebe a história ao relacionar passado, presente e futuro. Esta
perspectiva nos possibilita estabelecer alguns caminhos para as problematizações que este
trabalho pretende percorrer. Seja pela escolha do tema que coloca em perspectiva a
compreensão que a sociedade daquele momento acreditava possuir frente à realidade: a
concepção de um “redescobrimento do Brasil” fundada na ideia de um novo tempo da nação
pela ação do Estado. Seja pela forma como aborda a problemática, através do questionamento
dos modos como o regime se produzia enquanto experiência histórica única.
De acordo com Gomes, “o Estado Novo, ou o novo Estado Nacional, procura articular
uma política ideológica que assinale toda a grandeza de sua inovação e que legitime seu
formato político-institucional perante todos os atores relevantes do sistema.” Para alcançar
estes fins “mobiliza uma série de recursos específicos que asseguram a produção e a
divulgação de um certo conjunto de ideias que conformam o seu projeto político.” Aliando
esses objetivos com “o estabelecimento de mecanismos para a obtenção do consentimento dos
mais amplos setores sociais.” E mesmo adotando a perspectiva de que o Estado Novo não
seria portador de uma única “doutrina oficial”, a historiadora reconhece que é “possível
encontrar, no seio destas propostas, um conjunto de ideias central capaz de caracterizar um
determinado projeto político-ideológico.”10
Nesse sentido, a projeção do projeto político do Estado Novo implicava a construção de
um modelo de país no qual a interpretação da história de suas origens, conjuntamente com as
dinâmicas da temporalidade, se torna fundamental:
Projetar um novo Estado é buscar sua legitimidade, isto é, incursionar por sua
origem, por seus inícios revolucionários. Um novo princípio não se faz sem história,
pois o traçado da origem é também uma valia para o passado. Por isso, construir um
novo modelo de Estado é também reescrever a história do país, é debruçar-se sobre
o passado naquele sentido mais profundo em que ele significa tradição e
suspensão/permanência do tempo. Projetar o futuro é escrever o que deve acontecer
através daquilo que já aconteceu. O presente é um ponto de interseção em que a
11
história é constituída pela seleção da presença do passado no futuro.

Em outro artigo a historiadora analisa como estes elementos se entrelaçam no processo


de produção de uma cultura histórica no Estado Novo. Com este trabalho Gomes buscou
“delimitar, dentro das várias iniciativas de política cultura do Estado Novo, um certo número
de medidas voltado para o que se chamou na época de ‘a recuperação do passado

10
Idem, p. 109-110.
11
Idem, p. 111.
15

brasileiro’”.12 Ao recortar esse espaço específico de “representação da nacionalidade”,


procurou salientar o papel do passado como fator de leitura e valorização da história. Nessa
seleção de “uma dimensão especifica de política pública num sentido amplo [...], destinada ao
campo da cultura” seria possível perceber “um esforço político explícito que se destina à
conformação e divulgação de normas e valores identitários da nacionalidade”.13
A utilização do conceito de cultura histórica serve para caracterizar, de acordo com
Gomes citando Le Goff, “a relação que uma sociedade mantém com seu passado”,
possibilitando-nos “compreender o que essa sociedade entende ser seu passado e que lugar
(espaço-valor) lhe destina em determinado momento do tempo”. A amplitude do conceito vai
“além da historiografia definida como a história dos historiadores e suas obras”, já que os
historiadores “não detêm o monopólio do processo de propagação de uma ‘cultura histórica’”.
O conceito permitiria ou mesmo exigiria a análise de um “conjunto de iniciativas que abarca
não só o conhecimento histórico em sentido mais estrito, como o ultrapassa, abarcando outras
formas de expressão cultural que têm como referência o ‘passado’”.14
A construção de uma 'cultura histórica', vincula-se fortemente a políticas públicas de
regimes que investem em sua legitimidade, mobilizando com destaque valores
culturais da sociedade, neles inclusos os que se referem a uma herança, tradição e
15
passado histórico comuns.

É dentro desse quadro das “políticas culturais de recuperação do passado brasileiro” que
se localizam as análises aqui empreendidas. No caso do Estado Novo percebe-se um “esforço
evidente para articular iniciativas estatais de política cultural com a conformação de uma
cultura política nacional, na qual a leitura do passado ganha espaços privilegiados: na qual a
'cultura histórica' é dimensão estratégica da cultura política.”16 Esse entrelaçamento da cultura
política com a cultura histórica marca uma série de iniciativas que tem curso durante o Estado
Novo. Diversas áreas de atuação do regime convergem para esse entrelaçamento.
Dentre as áreas de atuação do Estado Novo que perpassam pela construção de sua
cultura histórica, a autora ressalta algumas iniciativas que vão desde o apoio à produção
histórica que abarcaria tanto as publicações oficiais quanto aquelas resultantes de cooperação

12
GOMES, Ângela de Castro. A cultura histórica do Estado Novo. São Paulo, Projeto História, (16), fev. 1998,
p.122.
13
GOMES, Ângela de Castro. Op. Cit. p.122.
14
Idem, p.122-123.
15
Idem, p.124.
16
Idem, ibid.
16

privada; até a modernização e multiplicação pelo país das sedes do Instituto Histórico e
Geográfico; passando pela restruturação da disciplina de História do Brasil com as reformas
Campos (1931) e Capanema (1942) na área educacional 17; ou ainda a produção e circulação
de obras cinematográficas que abordam questões históricas. Além destas ações podemos
destacar para os fins deste trabalho as iniciativas ligadas às comemorações e ao patrimônio.
"A recuperação do passado histórico passara a integrar também um verdadeiro calendário de
comemorações de centenário de acontecimentos, de nascimento ou morte dos mais notáveis
vultos e instituições da História do Brasil."18 Já o patrimônio ganha destaque com a
implantação da política de preservação a partir da criação do Serviço do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional (SPHAN) em 1937.
Todas essas iniciativas faziam parte do “redescobrimento do passado brasileiro” ao qual
o Estado Novo, juntamente com instituições da sociedade civil, grupos empresariais e a
imprensa estavam empenhados em promover. A produção de um sentido e lugar para a
história nacional envolviam relações complexas entre as dimensões políticas e temporais.
Como forma de instituir o novo fez-se do passado a fonte da nacionalidade que era então
construída. Tradição, presente e legitimidade tornaram-se elementos que deveriam conviver
juntos, mas que também guardam tensões que precisam ser solucionadas para alcançar a
produção do consentimento entre os múltiplos agentes e instituições presentes no contexto do
Estado Novo.

Comemoração e experiência histórica

No artigo “Imaginário Histórico e Poder Cultural: as Comemorações do


Descobrimento” Lucia Lippi Oliveira, no contexto dos “500 anos do Brasil”, apresenta
algumas questões que coadunam com os problemas elencados por esta dissertação:
“Comemorar tem a ver com o passado ou, principalmente, tem a ver com o futuro? Retorna-se
ao passado para não deixa-lo no esquecimento ou para se assegurar o que está por vir?” Diz
ainda que essas comemorações nos “dão a oportunidade de acompanhar esse trabalho
permanente de construção da memória nacional”. Para tanto ela nos apresenta outro contexto
de uma comemoração semelhante (dos “400 anos do Brasil”) no final do século XIX.19 A

17
Idem, p.131-141.
18
Idem, p.132.
19
OLIVEIRA, Lucia Lippi. Imaginário Histórico e Poder Cultural: as Comemorações do Descobrimento.
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 14, n. 26, 2000, p.185.
17

partir desses dois casos a autora pôde realizar uma comparação e traçar as linhas gerais das
ações que englobam os ritos e celebrações cívicas que foram levadas a cabo pelo Estado ou
por outros grupos da sociedade no sentido de comemorar o “Descobrimento do Brasil”. É
nesse ínterim temporal, entre o passado de 1900 e o futuro do ano 2000, que está localizado o
acontecimento que é objeto deste trabalho: o “Raid” de 3 de maio de 1939 ao município de
Porto Seguro como comemoração das Asas do Brasil Novo à data do “Descobrimento”.
A transição do século XIX para o XX teria sido marcado por uma série de celebrações
de datas históricas. Essas comemorações dariam “oportunidade aos povos do Ocidente de
celebrar seus feitos do passado segundo as questões daquele presente. [...] essas
comemorações permitiram que cada povo, ao olhar para traz, afirmasse sua modernidade e
seu papel na escala evolutiva do ser humano, da barbárie à civilização”.20
Para a historiadora, “se a virada do século XX pode ser caracterizada pela consciência
da globalização e da velocidade do tempo, a virada do século XIX foi marcada pelo processo
de criação ou reestruturação dos Estados nacionais. Esse processo envolveu rupturas com os
laços locais que até então predominavam”. Nesse contexto “era preciso [primeiro desfazer os
vínculos dos grupos, para] transformar os indivíduos em cidadãos” e para tanto foram
utilizados diversos “meios simbólicos à disposição visando a produzir a integração de
populações, em sua maioria não-alfabetizadas, em um todo chamado nação”. 21
As estradas de ferro, as comunicações via telefone, via ondas de rádio, tinham
alargado o horizonte dos indivíduos e forneciam a dimensão espacial da integração
nacional. Hinos, bandeiras, festas, feriados, cartilhas, foram produzidos como rituais
que reafirmavam a identidade. Escola, jornais, partidos políticos, igrejas, sindicatos,
rádio e televisão também fazem parte dessa longa história da construção de
22
modernas identidades nacionais nos séculos XIX e XX.

Essa longa e complexa história constitui o espaço de experiência e o horizonte de


expectativas na qual emergem as ações de “Comemoração” promovidas no processo de
construção do Estado nacional moderno (o mesmo vale para os processos de
patrimonialização, que trataremos mais a frente). Nesse processo, as ideias de nação e de
memória nacional seriam constituídas pelos “valores simbólicos relacionados aos mitos de
origem e às construções de identidade. Mito, memória e identidade são vitais à vida social e
são também áreas de poder e de confronto”. Todos esses elementos fariam parte dos atos de

20
Idem, p.183.
21
Idem, Ibid.
22
Idem, p. 185.
18

comemoração que recorreriam a “antigas tradições, reais ou inventadas, lançando-se mão


tanto de fatos históricos quanto de episódios acontecidos em tempos imemoriais”.23
Os artefatos e ritos de produção da memória e identidade nacional, os quais implicam
“as atividades de produção, circulação e consumo de sentidos e valores”, se transformaram
em objeto e objetivo das narrativas de legitimação da nação e do fortalecimento do Estado.
Essas atividades se pautariam pelas estratégias e ferramentas de produção de sentidos e
valores que estavam relacionados ao regime de historicidade que se estabelecia. De acordo
com Lucia Lippi Oliveira a experiência histórica no Brasil e no mundo, durante o século XX,
teria sido marcada:
[...] pelas ideias de progresso e de modernidade. A modernidade lida como a noção
de um tempo progressivo, linear, capaz de ser cronometrado, e que valoriza o
presente e a expectativa do futuro. Entretanto, a modernidade também se ocupa do
passado ao marcar eventos fundadores que devem ser conhecidos e reconhecidos
24
pelos habitantes do território e que fazem parte da memória nacional.

A historiadora também considera que existam outras formas de experiência do tempo


que teriam a ver com aspectos dos ritos e celebrações da vida cotidiana:
Paralelamente ao tempo progressivo, há uma outra memória mais sentimental, mais
afetiva, que está ligada à noção de ciclo, de retorno. Essa noção, mais próxima da
percepção do senso comum, parece confirmada pela alternância entre dia e noite,
chuva e seca, frio e calor nas estações do ano, morte e vida. Esse tempo cíclico,
afetivo, também tem suas festas e comemorações. Os anos de cada um, os
aniversários de casamento, a festa da primavera, o ano novo, permitem uma
reconstrução simbólica do recomeço: fazem-se planos e promessas que, agora, serão
25
cumpridas.

Fator fundamental para a compreensão dessas experiências é a importância que as


comemorações podem adquirir através da sua capacidade de reconstrução simbólica do
recomeço, ou seja, sua possibilidade, através dos atos, ritos e discursos rememorativos, de
instauração de um novo começo que se produz pela atualização de um evento fundador e que
está alicerçado na memória histórica e nas tradições. As comemorações das “datas alusivas a
episódios considerados notáveis da história, permitem refundar, reatualizar identidades, sejam
elas nacionais ou locais, oficiais ou privadas, públicas ou pessoais”. Grosso modo, as
“comemorações de datas nacionais” seguiriam uma trajetória semelhante: “a organização de
comissões executivas nacionais, campanhas de esclarecimento patriótico, organização de

23
Idem, p. 184.
24
Idem. Ibid.
25
Idem. Ibid.
19

eventos cívicos, cortejos fluviais e marítimos, montagem de exposições, inauguração de


monumentos, confecção de selos, medalhas, bandeiras e hinos”. 26

Patrimônio e monumentalização

Das ações de comemoração do Descobrimento, passamos agora, aos processos de


patrimonialização dessa história. A nosso ver, as ações de comemoração precedem e geram a
necessidade dos processos de patrimonialização de Porto Seguro no que tange ao seu vínculo
com os acontecimentos e a narrativa do “Descobrimento do Brasil”. Pretendemos demostrar
que a patrimonialização (e a monumentalização) do município e região seriam justificadas
pela atribuição de valor histórico gerado pela interpretação da história das origens do Brasil. E
de como esse processo teria sido projetado a partir das ações de comemoração das “Asas do
Brasil Novo” em 1939.
Antes de procedermos a essa passagem é preciso esclarecer as relações entre esses dois
conceitos e suas práticas. A comemoração será entendida aqui como acontecimento, enquanto
o patrimônio será compreendido como processo. Tem-se em mente, claro, que essas
perspectivas se entrelaçam, pois nos atos comemorativos o rito cívico-histórico também é
processo, assim como o processo de patrimonialização é constituído por acontecimentos
diversos que marcam os momentos de sua constituição. Como acontecimento as
comemorações tornam-se amalgama das diferentes temporalidades. Na ritualização dos atos
comemorativos estão presentes tanto a longa, a média e a curta duração como um tipo de
acontecimento onde os sujeitos da situação conjuntural pretendem modificar certas estruturas
ao mesmo tempo em que as mantém pela repetição criativa das sucessivas formas de
instauração do evento de refundação. Essa dinâmica pode ser compreendida como estruturas
diacrônicas.27
O patrimônio também se configura nessa dinâmica e sua especificidade se dá enquanto
processo que teria a capacidade de produção de sentidos pela seleção e valoração de um
conjunto de elementos recortados da realidade histórica. Esses elementos são organizados em
um todo abarcando procedimentos que vão desde a identificação dos bens culturais passando

26
Idem, p. 3.
27
Essa perspectiva se fundamenta nas interconexões entre as obras de Ferdinand Braudel (2009) e o pensamento
da longa, média e curta duração, com a teoria das experiências históricas da temporalidade de Reinhart
Koselleck (2006 e 2014), e a antropologia histórica elaborada por Marshall Sahlins (2006 e 2008) ao questionar
as relações entre estrutura, conjuntura e evento.
20

pela atribuição de valor histórico até a sua institucionalização enquanto políticas de Estado
nos processos de tombamento e monumentalização.
Erigir monumentos e constituir patrimônios históricos e artísticos nacionais é uma
prática característica dos Estados modernos. A instituição destes remete a uma seleção das
histórias possíveis de um determinado povo. Para Márcia Regina Romeiro Chuva “é possível
pensar a invenção do ‘patrimônio nacional’ como parte essencial da sociogênese do Estado no
mundo moderno”. A noção de patrimônio estaria atrelada “ao surgimento dos Estados
nacionais modernos e ao processo de construção da nação a ele inerente, em que se verificava
um enorme investimento na invenção do passado nacional”. 28
Ao investigar a emergência das práticas de preservação do patrimônio no Brasil nas
décadas de 1930-1940, a historiadora nos diz que o patrimônio foi utilizado como uma
estratégia de construção da nação a partir da materialização da história por meio das ações do
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN (atual IPHAN), criado em
1937. Segundo Chuva “as práticas de preservação cultural no Brasil” podem ser consideradas
como “dispositivos de integração de segmentos da população.” Essa modalidade de
integração cultural e territorial seria “acionada pelo exercício do poder de definição do
patrimônio histórico e artístico nacional.” Com essa noção buscou-se dar “profundidade
histórica” à nação que se pretendia construir.29 Tais práticas consagrariam Porto Seguro como
“berço da nacionalidade brasileira” a partir da repetição do mito fundador que a tem como
lugar de origem da nação. 30
Para Márcia Chuva “o tema da ‘criação da nação’ – ou ‘redescobrimento do Brasil’ – é
recorrente na historiografia brasileira que investiga o primeiro Governo Vargas, especialmente
o regime autoritário instaurado no Estado Novo.” Nesse sentido seria fundamental “identificar
os grupos cujas representações se tornaram hegemônicas nesse processo de construção do
patrimônio, como um processo de invenção” que está relacionado, em nosso caso, com os
usos da história do Descobrimento. A implementação das ações de proteção do “patrimônio

28
CHUVA, Márcia Regina Romeiro. Os arquitetos da memória: sociogênese das práticas de preservação do
patrimônio cultural no Brasil (anos 1930-1940). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2017, p. 27 e 24.
29
Idem, ibid.
30
Cabe destacar que o processo de tombamento só se efetiva em 1968, quando o “Conjunto arquitetônico e
paisagístico da Cidade Alta de Porto Seguro” é inscrito nos Livros do Tombo Histórico e Livros do Tombo
Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico; e em 1973 todo o município, em especial o Monte Pascoal, foi
convertido em Monumento Nacional. AGUIAR, Leila Bianchi. Porto Seguro: “berço da nacionalidade
brasileira”: patrimônio, memória e história. Rio de Janeiro: UFRJ/PPGHIS, 2001, p.67-68.
21

nacional”, promovidas pelo SPHAN “foi estratégica para a construção do sentimento de


pertencimento a uma comunidade nacional imaginada, na medida em que essas ações geraram
uma territorialização particular da nação, garantido a permanência no tempo e no espaço, de
objetos monumentalizados”. 31
Ao colocar em evidência as estratégias de construção da nação do Estado brasileiro, a
partir dessa “nova prática social de atribuição de valor a objetos e bens que se transmutam
simbolicamente em elos de identidade” 32, a autora ressalta que as relações entre modernidade
e tradição, pensadas por intelectuais ligadas ao Estado Novo, estão na base da noção de
patrimônio, haja vista que os intelectuais que gestaram as formas do patrimônio no Brasil
estão vinculados, em sua maioria, ao modernismo e sua busca por uma brasilidade própria. Ao
mesmo tempo em que se pretendia projetar uma imagem de país novo voltado para o futuro
era preciso reaver um passado e ressignificá-lo, dando-lhes novos valores a partir do
inventário dos sentidos concebido nas viagens de redescoberta do Brasil.33
O “Raid” a Porto Seguro, agenciado pelas Asas do Brasil Novo, vai mobilizar por meio
do discurso jornalístico que produz o acontecimento e o reverbera, uma cultura histórica de
redescobrimento do passado brasileiro a partir da atividade aeronáutica de resgate do lugar de
origem. Este resgate será promovido como um evento de comemoração dos 439 anos do
“Descobrimento do Brasil”, entremeado por uma retorica da perda ligada à emergência de
práticas institucionais de preservação histórica durante o Estado Novo, que se desdobrará no
processo de patrimonialização dos monumentos que serviram de cenário para a teatralização
das alegorias do descobrimento durante a festa de brasilidade promovida por Assis
Chateaubriand. Estas seriam as ordens do tempo “Sob os céus de Porto Seguro”.

Resumo dos capítulos.

No primeiro capítulo, buscamos problematizar as invenções do “Descobrimento do


Brasil” por meio de uma análise dos dispositivos de emolduramento gerados por este
processo. E de como estas invenções estariam na base dos argumentos que promoveram a
instituição do “descobrimento” como uma origem a ser celebrada. A consolidação de uma

31
CHUVA, Márcia Regina Romeiro, Op. Cit., p.24-25.
32
Idem, p.23.
33
NOGUEIRA, Antônio Gilberto Ramos. Por um inventário dos sentidos: Mário de Andrade e a concepção
de patrimônio e inventário. São Paulo, Hucitec: Fapesp. 2005.
22

história de fundação do país que estabeleceria o descobrimento como o mito de sua origem,
será trabalhada a partir de uma análise da ciência e a arte – historiografia, pintura de história e
cinema – como elementos geradores de uma narrativa histórica e de uma cultura visual que
estariam presentes no “Raid” a Porto Seguro. Esta problematização tem como fio condutor as
diversas apropriações da Carta de Caminha, compreendida como a matriz narrativa tanto de
uma tradição historiográfica que visa instituir uma História Nacional, como um imaginário do
mito de fundação. A historiografia e o imaginário oriundos do século XIX, que desdobram o
tema do descobrimento, seriam transfigurados pelas apropriações que se constituiriam por
meio dos dispositivos de emolduramento que seriam reativados durante a revoada de maio em
1939 no sul da Bahia.
No segundo capítulo, procuramos reconstruir a emergência de um horizonte de
redescobrimento do Brasil, por meio de uma problematização que contextualiza as ações do
“Raid” como uma busca pelos sinais da moderna civilização. A análise da Revoada das Assas
se dará por meio da reconfiguração deste momento de anunciação do evento de estava por vir.
Os caminhos e descaminhos da civilização brasileira vão emergir nas reportagens que vão
narrar à missão da Caravana dos Diários Associados de hastear as bandeiras do Brasil e da
Cruz de Cristo (representado a bandeira portuguesa) no Monte Pascoal. A partir da análise
desta série de reportagens, buscamos reconstituir uma paisagem do descobrimento que estaria
repleta de semióforos atestadores do valor histórico daquelas paragens que se constituiriam
nos cenários aonde os acontecimentos do “Raid” a Porto Seguro iriam se efetivar.
No terceiro capítulo, veremos as alegorias do descobrimento emergirem na efetivação
do “Raid” como um desdobramento das máscaras da civilização que transfigurará a
rusticidade de Porto Seguro em virtude civilizatória impulsionada por uma marcha de
brasilidade capitaneada pelos aviadores paulistas. Problematizaremos como a teatralização da
alegoria proclamará a morte e a ressureição de Porto Seguro, por meio de uma mystica
elaborada pelo discurso de Assis Chateaubriand. Por fim, reconstituiremos a festa de
brasilidade que teria sido o “Raid” a Porto Seguro, por meio da análise dos momentos aonde a
comemoração do descobrimento se desdobraria em processo de patrimonialização da cidade.
23

CAPÍTULO 1: AS INVENÇÕES DO DESCOBRIMENTO DO BRASIL: DISPOSITIVOS


DE EMOLDURAMENTO

Um dos objetivos desta dissertação é sondar os processos de invenção do


“Descobrimento do Brasil” como origem a ser celebrada. A problemática perpassará os modos
como esta invenção das origens é amalgamada na “Comemoração das Asas do Brasil Novo”,
durante o “Raid” a Porto Seguro em 1939, quando o tema do descobrimento será rememorado
por agentes que reativam aquilo que chamaremos de dispositivos de emolduramento ao
mobilizarem uma série de discursos e imagens que promoveriam uma alegorização
performática de refundação do Brasil no contexto do Estado Novo. Para tanto, neste capítulo,
se questiona os modos como o tema do “descobrimento” teria sido pensado, elaborado e
projetado por meio da historiografia e do imaginário produzidos no século XIX e de como
este processo de configuração do mito fundador para a construção da identidade nacional
chegará ao século XX como uma espécie de moldura que delineia as formas como o
“Descobrimento do Brasil” será compreendido e experimentado, narrado e visualizado.
Far-se-á esta reconstituição panorâmica por meio da análise de dois dos caminhos
percorridos pela Carta a el-rei D. Manoel, escrita por Pero Vaz de Caminha em 1500 no que
tange às interpretações e apropriações feitas ao texto epistolar que relata a “nova do
achamento” daquilo que viria a ser o Brasil. O tema “Descobrimento do Brasil”, por meio das
releituras da Carta, será compreendido como um dispositivo de invenção de molduras para a
experiência histórica brasileira que seria reativado de tempos em tempos.
Não iremos aqui nos aprofundar na investigação das causas da “era dos
descobrimentos”, como o contexto da expansão mercantil e das grandes navegações nos
séculos XV e XVI, e nem nos aventurar em uma história da conquista e colonização da
América portuguesa, etc. Busca-se, antes, construir, a partir da leitura inicial deste
“documento” que será por muitos considerada a “certidão de nascimento do Brasil”34, alguns
caminhos para a investigação do presente trabalho.
Nesse sentido, a Carta de Caminha será problematizada a partir de um duplo
movimento. No primeiro, investigamos a inscrição da narrativa do escrivão da frota cabralina
como um documento/monumento valorizado por ser o registro da origem da história do
Brasil. A Carta de Caminha, como relato de viagem inaugural, se transforma na narrativa

34
De acordo com João Pacheco de Oliveira teria sido Capistrano de Abreu quem cunhou a expressão “certidão de
nascimento do Brasil”. In. OLIVEIRA, João Pacheco. O Nascimento do Brasil e outros ensaios:
“pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016, p.16.
24

histórica de fundação que será canonizada pela historiografia do século XIX, que a
redescobre e que é “venerada” 35, por exemplo, pelo historiador e diplomata Francisco Adolfo
de Varnhagen (1816-1878), o Visconde de Porto Seguro, e considerada por Capistrano de
Abreu (1853-1927) como o “diploma natalício lavrado à beira de uma nacionalidade futura”.36
A consolidação dessa narrativa das origens pautada pelos elementos e interpretações da Carta
de Caminha, tratada como documento atestador da “verdade dos fatos” sobre a “História do
Descobrimento”, transformar-se-á no mito de fundação do Brasil a ser elaborado e difundido
por um saber histórico institucionalizado a partir da criação do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (IHGB) em 1838.
No segundo movimento, as interpretações e usos da Carta de Caminha serão
investigados no sentido da constituição de um imaginário do mito de fundação que encontra
nela a narrativa matriz para a produção de uma visualidade do descobrimento que permearia
as percepções da história do Brasil. Esta abordagem se dará por meio da análise da cultura
visual relativa às formas de ver e fazer ver as cenas de fundação presentes nos
acontecimentos da “descoberta”. O itinerário desta abordagem vai das análises do impacto
causado pelo quadro Primeira Missa no Brasil (1860) de Victor Meirelles, pintura de história
37
que se tornou, segundo Jorge Coli, “a verdade visual do episódio narrado na carta” , até o
filme Descobrimento do Brasil (1937) de Humberto Mauro, já no contexto do Estado Novo,
que também participaria da consolidação da imagem-cena do descobrimento.38 Argumenta-se
que a produção de um imaginário do descobrimento teria gerado formas e experiências de
visualização da história do Brasil que se desdobram no tempo.
Este duplo movimento, historiográfico e imaginário, que se inicia no século XIX,
atravessa o XX, transformado, ressurgindo em novas configurações que englobam discursos,
práticas e meios diversos, sejam eles simbólicos, materiais e/ou tecnológicos, mas que

35
“Não há notícia alguma da correspondência que dirigiu à corte Pedro Alvares Cabral; mas não é sensível a sua
falta, quando possuímos a venerável carta, que já o leitor conhece, de Pero Vaz de Caminha”. Francisco Adolfo
de Varnhagen. História Geral do Brasil, segunda edição, 1877, p.76. Grifo nosso.
36
Apud. In. COLI, Jorge. Primeira Missa e Invenção da Descoberta. In NOVAES, Adauto (org.). A descoberta
do homem e do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.109.
37
COLI, Jorge. A Pintura e o Olhar sobre Si: Victor Meirelles e a Invenção de uma História Visual no século
XIX Brasileiro. In. FREITAS, Marcos Cezar (org.). Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo:
Contexto, 1998, p.383.
38
MORETTIN, Eduardo Victorio. Produção e formas de circulação do tema do Descobrimento do Brasil: uma
análise de seu percurso e do filme Descobrimento do Brasil (1937), de Humberto Mauro. Revista Brasileira de
História. São Paulo, v.20, n°39, 2000, p.135-165.
25

mantêm uma referência comum à Carta de Caminha como lugar de origem do mito fundador e
narrativa matriz de visões da história do Brasil. A narrativa histórica e a cultura visual que se
alimentaram da Carta estarão presentes nos discursos e ações que têm lugar no “Raid” a Porto
Seguro em 1939. Elas se fazem presentes como elementos de um dispositivo a ser
operacionalizado pelas estratégias de invenção de molduras da experiência histórica
mobilizadas pela atividade promovida pelos Diários Associados, com o apoio do Interventor
do Estado da Bahia, dentre outros. Molduras que se revestem e são preenchidas por meio das
performances de reativação do “Descobrimento do Brasil”.

1.1. As Invenções do Descobrimento: Ciência e Arte como Dispositivos de Emolduramento

Cabe explicitar aqui o significado do que queremos dizer quando falamos de dispositivo
de invenção de molduras e de como o esboço desta perspectiva teórico-metodológica se liga
às problematizações do descobrimento que ora se coloca. Ao dizer que o mito de fundação
teria sido estabelecido e alimentado pelo trabalho da ciência e da arte – mais precisamente a
historiografia, a pintura de história e o cinema – buscamos enfatizar as capacidades produtivas
destes campos de saber-poder e de como estes produziriam a “verdade dos fatos” e a “verdade
visual” da história de fundação do Brasil. Para Jorge Coli “A ciência e a arte, dentro de um
processo intricado, fabricaram ‘realidades’ mitológicas’ que tiveram, e que ainda têm, vida
prolongada e persistente”.39 Dentre as realidades mitológicas fabricadas no Oitocentos que se
metamorfoseiam no século XX destaca-se a invenção do “Descobrimento do Brasil”. Segundo
Coli:
A descoberta do Brasil foi uma invenção do século XIX. Ela resultou das
solicitações feitas pelo romantismo nascente e pelo projeto de construção nacional
que se combinavam então. Como ato fundador, instaurou uma continuidade
necessária inscrita num vetor dos acontecimentos. Os responsáveis essenciais
encontravam-se, de um lado, no trabalho dos historiadores, que fundamentavam
cientificamente uma “verdade” desejada, e, de outro, na atividade dos artistas,
criadora de crenças que se encarnavam num corpo de convicções coletivas .40

Para além da questão do romantismo e do projeto de construção da identidade nacional


presente neste contexto41, ressalta-se a capacidade de instauração deste ato fundador como

39
COLI, Jorge. Primeira Missa e Invenção da Descoberta. In NOVAES, Adauto (org.). A descoberta do homem
e do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.107.
40
COLI, Jorge. Op. Cit. p.107.
41
Sobre essas questões podemos traçar uma circularidade que vai da Carta de Caminha passando por intelectuais
franceses dos séculos XVII e XVIII até a emergência do Romantismo no Brasil do século XIX por meio de uma
26

vetor de continuidade dos acontecimentos. Nesse sentido, as noções mais relevantes para a
compreensão da emergência dos trabalhos de invenção da descoberta no século XIX são:
verdade desejada e atividade criadora de crenças. Elas constituem-se em noções
fundamentais para a problematização dos fenômenos investigados e serão compreendidas
como elementos de um dispositivo de emolduramento que o trabalho de historiadores e
artistas elabora e desenvolve acerca do tema do descobrimento. As “verdades” e “crenças”
que se encarnariam num corpo de convicções coletivas, tornar-se-iam os elementos centrais a
mobilizar a atuação dos indivíduos e instituições no campo das relações de forças que tem
como núcleo as disputas pela produção dos sentidos e significados do “Descobrimento do
Brasil”.

Dispositivo

E o que seria o dispositivo? Segundo Michel Foucault, o dispositivo é:


[...] um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições,
organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas,
enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o
dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode
estabelecer entres estes elementos.42

“É isto, o dispositivo: estratégias de relações de forças sustentando tipos de saber e


sendo sustentadas por eles”. O dispositivo está sempre inscrito em um jogo de saber-poder e
sua natureza é eminentemente estratégica. Nesse tipo de jogo, onde novos campos de
racionalidade e práticas de interpretação tomam forma, as relações entre estes elementos, ou
seja, as “mudanças de posição, [e as] modificações de funções”, delineiam as possibilidades e

produção literária que buscava afirmar a “autonomia espiritual” através da projeção de uma identidade particular
que encontra no índio a sua origem. Segundo Coli: “De modo retrospectivo, é possível perceber na carta de
Caminha o núcleo primordial de uma percepção que Sério Buarque de Holanda chamaria de ‘Visão do Paraíso’ e
que de Lery a Montaigne e de Montaigne a Rousseau, daria origem ao tema do ‘bom selvagem’ instrumento
reflexivo capital para que a cultura do Ocidente pudesse pensar-se de modo crítico. Enfim, esse bom selvagem
francês, nascido da reflexão sobre o índio brasileiro dos primeiros tempos, finalmente no século XIX,
voltaria para seu lugar de origem através do Romantismo.” COLI, Jorge. Op. Cit. p.108. Nesse sentido, acerca do
contexto de emergência do romantismo e da busca por afirmação de uma identidade própria por meio da
produção literária, diz Antônio Candido: “Um elemento importante nos anos de 1820 e 1830 foi o desejo de
autonomia literária, tornado mais vivo depois da Independência. Então, o Romantismo apareceu aos poucos
como caminho favorável à expressão própria da nação recém-fundada, pois fornecia concepções e modelos que
permitiam afirmar o particularismo, e portanto a identidade, em oposição à Metrópole, identificada com a
tradição clássica. Assim surgiu algo novo: a noção de que no Brasil havia uma produção literária com
características própria, que agora seria definida e descrita como justificativa da reinvindicação de autonomia
espiritual.” CANDIDO, Antônio. O romantismo no Brasil. São Paulo: Humanitas/ FFLCH, 2002, p.20. Grifo
nosso.
42
FOUCAULT, Michel. Sobre a história da sexualidade. In. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1979, p.244. Grifo nosso.
27

os limites de funcionamento do “imperativo estratégico [...] como matriz de um dispositivo”43


que, em nosso caso, é produzido e se alimenta das narrativas e do imaginário do
“Descobrimento do Brasil” por meio das interpretações e usos da Carta de Caminha.
Para Foucault “trata-se de manipulações nas relações de forças” no sentido de
“desenvolvê-las em determinada direção, seja para bloqueá-las, seja para estabilizá-las,
utilizá-las, etc.”. Nesse sentido, o dispositivo teria uma “função estratégica dominante”, pois
responderia a uma “urgência” de um determinado momento histórico, emergindo como um
tipo de formação que consolida um “campo de racionalidade” ao mesmo tempo em que
estabelece a “matriz estratégica” que irá exercer poder no campo das relações de forças.44
De acordo com Paul Veyne a articulação entre saber, poder e dispositivo, a partir das
proposições de Foucault, nos permitiria projetar o campo de uma história sociológica das
verdades. Haja vista que “um regime de verdade e certas práticas formam assim um
dispositivo de saber-poder que inscreve no real o que não existe, submetendo-o à divisão do
verdadeiro e do falso”.45 O dispositivo é algo que faz daquilo que ele enuncia realidade. Mas
realidade que se exerce como um tipo de poder. Poder da verdade que se estabeleceu por meio
da configuração de determinados saberes que envolvem e estruturam certo conjunto de
elementos discursos e não-discursivos.
Desta forma, sustentamos que ciência e arte, enquanto campos de saber-poder
configurados por regimes de verdade46 e, por isso mesmo, produtores da verdade histórica e
visual do mito de fundação do Brasil, tornar-se-ão os laboratórios de elaboração dos

43
Idem, p.244-246.
44
Idem, p.244-246.
45
VEYNE, Paul. Uma história sociológica das verdades: saber, poder, dispositivo. In. Foucault: seu
pensamento sua pessoa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p.166.
46
Conforme Foucault: “A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz
efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade: isto
é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que
permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e
os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de
dizer o que funciona como verdadeiro. Em nossas sociedades, a ‘economia política’ da verdade tem cinco
características historicamente importantes: [1] a ‘verdade’ é centrada na forma do discurso científico e nas
instituições que o produzem; [2] está submetida a uma constante incitação econômica e política (necessidade de
verdade tanto para a produção econômica, quanto para o poder político); [3] é objeto, de várias formas, de uma
imensa difusão e de um imenso consumo (circula nos aparelhos de educação e de informação, cuja extensão no
corpo social é relativamente grande, não obstante algumas limitações rigorosas); [4] é produzida e transmitida
sob o controle, não exclusivo, mas dominante, de alguns grandes aparelhos políticos ou econômicos
(universidade, exército, escritura, meios de comunicação); [5] enfim, é objeto de debate político e de confronto
social (as lutas ‘ideológicas’)”. FOUCAULT, Michel. Verdade e poder. In. Microfísica do poder. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1979, p.12-13. Grifo nosso.
28

elementos que irão compor o dispositivo de emolduramento do descobrimento quando de sua


reativação em épocas distintas.

Invenção

Já a noção de invenção pode ser pensada por meio de duas perspectivas distintas. Por
um lado, numa perspectiva que desdobra o pensamento de Michel Foucault para a teoria da
história e a historiografia, Durval Muniz de Albuquerque Júnior compreende a História como
a arte de inventar o passado.47 O historiador, em uma entrevista, concebe o uso da noção de
invenção da seguinte forma:
A palavra invenção tem esse sentido de ressaltar, de remarcar que aquilo foi
construído em um dado momento, pelos homens, pelas relações sociais, que foi
construído no campo da cultura, no campo do pensamento, que emergiu a partir de
ações humanas, então uso a noção de invenção nesse sentido, para destacar o
acontecimento, para reforçar essa ideia de que as coisas surgem historicamente num
dado momento, a partir de um conjunto de fatores, um conjunto de relações; a
palavra invenção tem esse sentido de ressaltar a historicidade, tanto dos objetos
quanto dos sujeitos, de analisar como eles são construídos, como as identidades
espaciais, os recortes temporais, os conceitos, os objetos são produtos de um
processo histórico, produtos de uma construção que se dá no tempo. 48

Os termos grifados visam por em evidência, dentre os diversos aspectos desta extensa
definição, que o uso da palavra invenção comporta ao menos dois sentidos. Primeiro:
invenção como forma de “destacar o acontecimento”, ou seja, marcar a emergência de uma
singularidade; segundo: invenção como modo de “ressaltar a historicidade”, ou seja, marcar a
multiplicidade e os desdobramentos dessas singularidades. Nesse sentido, podemos pensar na
singularidade do acontecimento “Descobrimento do Brasil” por meio da multiplicidade de
acontecimentos que visam repetir a singularidade daquele. Evidencia-se, assim, a pertinência
da noção de invenção como forma de problematizar a historicidade de múltiplas
singularidades que tenham como referência uma singularidade comum. 49

47
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado: ensaios de teoria da
história.. Bauru: Edusc. 2007.
48
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Entrevista com o Professor Doutor Durval Muniz de
Albuquerque, em primeiro de junho de 2011. Revista de Teoria da História Ano 2, Número 5, junho/2011,
p.257. Grifo nosso.
49
Essa perspectiva se fundamenta em Foucault, quando este realiza uma leitura do conceito nietzschiano de
genealogia em relação às formas de pensar e escrever a história. O filosofo diz que: para o genealogista é
indispensável “marcar a singularidade dos acontecimentos, longe de toda finalidade monótona; [...] apreender
seu retorno não para traçar a curva lenta de uma evolução, mas para reencontrar as diferentes cenas onde eles
desempenharam papéis distintos, e até definir o ponto de sua lacuna, o momento em que eles não aconteceram.”
FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1979, p.15. Grifo nosso.
29

A partir desta noção de invenção, Durval Muniz pensa uma determinada forma de
conceber as relações existentes entre arte e ciência que nos será útil para precisar o modo
como estes campos de racionalidades e de práticas interpretativas alimentam, com elementos
heterogêneos, um tipo de saber-poder que engendra o dispositivo de emolduramento. Ciência
e arte serão compreendidas como linguagens que dotam o mundo de sentido e significado;
como formas de conhecimento que constroem o mundo a partir de regras de produção
próprias:
A arte é uma forma de conhecimento, a arte é uma forma de construção do mundo, a
arte é uma forma de conceitualizar o mundo, a arte é uma forma de construir formas
que ainda não existem no mundo, de dotar o mundo de sentido e significado, assim
como a ciência. A ciência é também tudo isso. A ciência é uma linguagem, a ciência
é uma forma de conhecimento assim como a arte é. A ciência dota o mundo de
objetos que ele não tem e formas que ele não tem, de matérias que ele não tinha, a
arte faz a mesma coisa. O que os diferencia são as regras de produção, existem
regras para a produção da arte e regras para a produção da ciência, que são
diferentes, que se modificam de épocas para épocas, de lugar para lugar. 50

Por outro lado, numa perspectiva cujo registro é a história social, Eric Hobsbawm se
questiona sobre o trabalho ideológico que institui a Invenção das Tradições. Nesse sentido,
compreende invenção como um campo específico de criação de tradições que inclui “tanto as
‘tradições’ realmente inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas, quanto as que
surgiram de maneira mais difícil de localizar num período limitado e determinado de
tempo.”51 Para Hobsbawm a invenção das tradições, que perpassa a “construção do
simbolismo” dos “cerimoniais oficialmente instituídos e planejados” 52, seria caracterizada por
um processo de formalização e ritualização que refere-se ao passado como a origem a ser
rememorada, lugar dos valores e normas que deveriam reger o comportamento por meio da
imposição da repetição. Podemos perceber a complexidade destes processos na definição dada
pelo historiador inglês ao que entende ser uma “tradição inventada”:
Por ‘tradição inventada’ entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas
por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas de natureza ritual ou
simbólica visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da
repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação com um
passado.53

50
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Op. Cit. 2011, p.258-9.
51
HOBSBAWM, Eric. Introdução: a invenção das tradições. In. HOBSBAWM, Eric. & RANGER. Terence
(org.). A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p.9.
52
Idem, p.13.
53
Idem, p.10.
30

Esta concepção de invenção se conecta às ações de elaboração, planejamento, promoção


e execução das atividades de comemoração do descobrimento do Brasil, como aquelas que
foram efetivadas no litoral sul da Bahia no contexto do Estado Novo. Nesse sentido, o Raid a
Porto Seguro pode ser considerado como um evento que visava ao emolduramento do
descobrimento por meio da repetição de uma tradição de comemoração que se utiliza da
ciência e da arte – narrativa histórica e cultura visual – para inventar a tradição de celebrar a
data de “nascimento” do Brasil (os 439 anos em 1939) ao viajar até o local aonde os
acontecimentos de 1500 teriam se dado. Soma-se a isto o culto cívico aos mortos e
personagens ligados a estes acontecimentos. As homenagens aos “descobridores” se tornam
um dos elementos centrais da Revoada das Asas em 3 de maio de 1939, donde resulta um
desdobramento desta tradição inventada e repetida: a tradição de utilizar as comemorações do
descobrimento como espaço de fabricação de heróis por meio da homenagem a determinadas
figuras.54

Moldura

O uso da metáfora da moldura, como forma de compreender o fenômeno do


enquadramento do “Descobrimento do Brasil” por meio da narrativa histórica e da cultura
visual, foi inspirado em um escrito de Georg Simmel, publicado em 1902, denominado A
Moldura: um ensaio estético55. Para Simmel “a função da moldura consiste na simbolização e
afirmação da dupla função do limite da obra de arte”. Ela recorta uma imagem e posiciona o
espectador a certa distância de onde este observa o recorte e a partir do qual reorganiza seu
campo de visão e de compreensão da realidade.
A moldura teria como recurso e característica a capacidade de simbolização da unidade
interna. Ela direciona o olhar para o centro, até o “ponto de interseção imaginário” onde a
figuração da unidade delineia os limites entre aquilo que a compõe internamente e aquilo que
lhe é exterior. Nesse sentido, a moldura seria para Simmel, nas palavras de Glaucia Villas
Bôas, “um elemento constituinte de uma modalidade específica de visualidade, que fomenta

54
Como veremos o principal homenageado do Raid a Porto Seguro em 1939 é o português Gago Coutinho.
55
SIMMEL, Georg. A Moldura: um ensaio estético. In. Arte e Vida: ensaios de estética sociológica. São Paulo:
Hucitec Editora.
31

um modo de ver contemplativo, o qual três décadas depois da publicação do ensaio, teria sido
chamada de aurática por Walter Benjamin”.56
Para Francisco Gouvea de Souza “A moldura faz ver que existem elementos que
conferem unidade, mas que não se confundem com a unidade que se destaca. A imagem
básica é a do quadro, que tem na moldura um limite para o olhar”. Ao analisar como os
eventos da “Revolta” e da “Proclamação” se transformaram, na virada do século XIX para o
XX, em tema da escrita da história e do olhar dos sócios do IHGB, o autor compreende que
estes nomes próprios açambarcaram os eventos e acabaram se configurando como molduras
de compreensão da experiência histórica. De acordo com este historiador, “o nome é a
moldura do evento” no sentido de que a moldura “produz uma sensação de reconhecimento”57
que o estabelecimento de determinada nomenclatura (como “Descobrimento do Brasil”) faz
destacar a cena de um evento singular que se produz como identidade do acontecimento.
Assim o autor define as relações entre moldura, evento/cena e nome/identidade: “Assim como
uma moldura destaca a pintura de tudo que o cerca, concentrando o olhar apenas em seu
interior, um evento é como uma cena, ele depende de algo que lhe é exterior e pelo qual se
destaca do passado assumindo uma identidade”. 58
Se a função da moldura consiste em posicionar o espectador frente a uma imagem
recortada, que centraliza o olhar ao estabelecer os limites do enquadramento visando produzir
a simbolização da unidade interna, como pensa Simmel, logo, os dispositivos de
emolduramento – como modalidade específica de visualidade e como nome-próprio da
história que produz a identidade do acontecimento ao destacar um evento do passado –
tornam-se um elemento fundamental do que estamos chamando de invenções do
“Descobrimento do Brasil”. Ao se desdobrar das questões estéticas ligadas à visualidade da
arte/paisagem para as formas de compreensão do evento histórico imaginado como cena e
sintetizado por um nome, a metáfora da moldura passa a significar o emolduramento da
história produzido pela ciência e pela arte, configurada na historiografia e no imaginário que
tem por tema a história de fundação do Brasil por meio das releituras da Carta de Pero Vaz de
Caminha.

56
VILLAS BÔAS, Glaucia. Como a arte (contemporânea) se apresenta? Sobre a atualidade de A Moldura de
Georg Simmel. Revista Novos Rumos Sociológicos. Vol.5, n°7, jan./jul. 2017, p.103. Grifo nosso.
57
SOUZA, Francisco Gouvea de. Proclamação e revolta: recepções da República pelo sócios do IHGB e a
vida da cidade (1880-1900). Tese (doutorado). Departamento de História: PUC Rio de Janeiro, 2012, p.22 e 15.
58
SOUZA, Francisco Gouvea de. Revolta e Proclamação como molduras da história: a escrita da história e
os olhares para a República entre os sócios do IHGB. Hist. Historiogr. Ouro Preto, n.18, agosto, 2015, p.215.
32

1.2. O Redescobrimento da Carta de Caminha: Mito Fundador, Historiografia e Viagens.

Uma terça-feira das Oitivas de Pascoal, 21 dias de abril. Os pilotos dizem que
topamos alguns sinais de terra. Na quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves
a que chamam fura-buxos. Neste dia houvemos vista de terra! Primeiramente de um
grande monte, mui alto e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele; e de terra
chã, com grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs o nome – o Monte Pascoal
e à terra – a Terra de Vera Cruz. Seguimos em direitos à terra, lançamos âncoras em
frente à boca de um rio. Dali avistámos homens que andavam pela praia, eram
pardos, todos nus, sem coisa que lhes cobrisse suas vergonhas, nas mãos traziam
arcos com suas setas. Ali não pôde deles haver fala, nem entendimento de proveito,
por o mar quebrar na costa. Fomos ao longo da costa para ver se achávamos alguma
abrigada e bom pouso onde nos demorássemos. A dez léguas do sítio acharam os
navios pequenos um recife com um porto, muito bom e muito seguro.
Nosso piloto, por mandado do Capitão, meteu-se logo no esquife a sondar o
porto dentro; e tomou dois daqueles homens, mancebos e de bons corpos. A feição
deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem
feitos. Trouxe-os logo, já de noite, ao Capitão, em cuja nau foram recebidos com
muito prazer e festas. Acenderam-se tochas. Entram. O Capitão, quando eles viram,
estava sentado em uma cadeira, bem vestido, com um colar de ouro mui grande ao
pescoço. Um deles pôs olho no colar do Capitão e começou a acenar para a terra e
depois para o colar, como que nos dizendo que ali havia ouro.
Ao domingo de Pascoa pela manhã, determinou o Capitão de ouvir missa e
pregação naquele ilhéu. A qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos
com muito prazer e devoção. Ali era com o Capitão a bandeira de Cristo a qual
estava sempre levantada. Acabada a missa, desvestiu-se o padre e subiu a uma
cadeira alta; conformando-se com o sinal da Cruz, sob cuja obediência viemos.
Neste ilhéu, onde fomos ouvir missa e pregação, a água espraia muito, deixando
muita areia e muito cascalho a descoberto.
À terça feira, depois de comer, fomos em terra dar guarda de lenha e lavar
roupa. Estávamos na praia, quando chegamos, obra de sessenta ou setenta sem arcos
e sem nada. Enquanto cortávamos lenha, faziam dois carpinteiros uma grande Cruz,
dum pau, que ontem para isso se cortou. Muitos deles vinham ali estar com os
carpinteiros. E creio que o faziam mais por ver a ferramenta de ferro com que a
faziam, do que por verem a Cruz. Enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha,
atravessaram alguns papagaios por essas árvores, deles verdes e outros pardos,
grandes e pequenos. Os arvoredos são muitos e grandes, e de infinitas madeiras.
E hoje, que é sexta feira, primeiro dia de maio, pela manhã, saímos em terra
com a nossa bandeira; e fomos desembarcar acima do rio contra o sul, onde nos
pareceu que seria melhor chantar a Cruz, para melhor ser vista. Ali assinalou o
Capitão o lugar, onde fizessem a cova para a chantar. Enquanto a ficaram fazendo,
ele com todos nós outros fomos pela Cruz abaixo do rio, onde ela estava. Dali
trouxeram com esses religiosos e sacerdotes diante cantando, em maneira de
procissão. Chantada a Cruz, com as armas e a divisa de Vossa Alteza, armaram
altar ao pé dela. Ali disse missa o padre frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada
por esses já ditos. Ali estiveram conosco a ela obra de uns cinquenta ou sessenta
deles, assentados todos de joelhos, assim como nós.
Esta terra, Senhor, me parece que da ponta que mais contra o sul viemos até
à outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será
tamanha que haverá nela bem umas vinte ou vinte cinco léguas. Tem, ao longo do
mar, grandes barreiras, delas vermelhas, delas brancas; e a terra por cima é toda chã
e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta é toda praia, muito chã e
muito formosa. Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que,
querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem. Porém, o
melhor fruto que nela se podem fazer me parece que será salvar essa gente. E deve
ser essa a principal semente que Vossa Alteza em nela deve lançar. O Capitão
perguntou a todos nós se parecia bom mandar a nova do achamento desta terra a
Vossa Alteza para mandar melhor descobrir e saber dela mais do que nós podíamos
saber. Para o bem contar e falar, não porei aqui mais do que aquilo que vi e me
33

pareceu. E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza do que nesta terra vi. E,
se de algum modo me alonguei, me perdoe, que o desejo que tinha, de Vos tudo
59
dizer, me fez assim pôr pelo miúdo.

Faço minhas as desculpas de Caminha, por causa da demasiadamente longa citação,


pois, se o desejo que tinha era de vos tudo dizer, foi para assim poder destacar o
acontecimento e ressaltar a historicidade. Foi para fazer ver/imaginar a singularidade deste
relato de viagem inaugural, narrativa histórica de fundação que se transforma na matriz
estratégica de invenção do descobrimento enquanto tema desdobrado pela historiografia
oitocentista a ser reativado no “Raid” a Porto Seguro em 1939. Nesse sentido, entenderemos o
“Raid” como uma viagem de redescobrimento do Brasil durante o Estado Novo
compreendendo-o como um tipo de acontecimento jornalístico de cunho histórico-cívico-
comemorativo que agencia uma série de discursos, ações, cerimônias, ritos e atos.
Se no princípio era o verbo, a razão de ser do envio da notícia relatando a “nova do
achamento da terra” é para que “Vossa Alteza” possa melhor desenvolver as ações de
descobrir, saber, mandar. Nesse sentido, tendo a Carta de Caminha como narrativa matriz das
cenas de fundação presentes nos dispositivos de emolduramento, pergunta-se: como as
reativações destas cerimônias de posse60 com suas interpretações, usos e performances serão
inscritas na história do Brasil em diferentes contextos e temporalidades? Mais precisamente:
como tais cerimônias serão lidas, interpretadas, projetadas e reencenadas durante o processo
de preparação, promoção e realização das diversas ações e atividades da “Comemoração das
Asas do Brasil Novo” quando das celebrações dos 439 anos do “Descobrimento” no “Raid” a

59
Trecho adaptado da Carta de Pero Vaz de Caminha. Ministério da Cultura. Fundação Biblioteca Nacional,
Departamento Nacional do Livro. In. http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/Livros_eletronicos/carta.pdf
Acessado em: 25/02/2019. Grifos nosso: a intenção é destacar da narrativa algumas palavras-chave que nos
remetam a ideias, noções, metáforas, traduções, modos de sentir, formas de ver e ouvir, perspectivas, à
experiência do tempo deste relato de viagem, enfim, é ressaltar as possibilidades de análise dos elementos do
dispositivo de emolduramento que de uma forma ou de outra estarão presentes neste trabalho como um todo.
60
Para Patricia Seed, ao analisar o período que ficou conhecido como “era das descobertas”, as cerimônias de
posse seriam as diferentes formas de legitimação da propriedade da terra no processo de conquista do Novo
Mundo pelos povos da Europa. A autora investiga como portugueses, espanhóis, ingleses, franceses e holandeses
conceberam de modos diversos os atos, discursos, ritos, requerimentos, obras, gestos e objetos envolvidos nas
cerimônias de posse da terra descoberta, ao buscarem validar e justificar os domínios conquistados. SEED,
Patricia. Cerimônias de Posse na Conquista do Novo Mundo (1492-1640). São Paulo: Editora UNESP, 1999.
Deste modo, compreendemos que algumas cerimônias seriam verdadeiros teatros de ritualização da posse por
meio dos atos, discursos e encenações presentes na Carta de Caminha, por exemplo, como nos acontecimentos
da liturgia católica: a confecção da grande cruz, a escolha do lugar mais visível para posicioná-la, a procissão até
o local da missa, a montagem do altar e as insígnias do soberano, os ritos da missa e a pregação do evangelho, os
lugares e posições sociais dos sujeitos envolvidos, o mimetismo dos gestos e posturas, os signos e sinais
evocados, os objetos da simbologia cristã, etc.
34

Porto Seguro? Estas questões nos acompanharão durante toda a jornada de investigação que
este trabalho pretende percorrer.

Discurso e mito fundador

Os usos da Carta nas interpretações e encenações da história do descobrimento podem


ser considerados como um tipo de busca das origens61 que acaba por se configurar em uma
espécie de discurso fundador. Uma das particularidades desse discurso seria, segundo Eni
Orlandi, que ele “cria uma nova tradição, ele re-significa o que veio antes e institui ai uma
memória outra [...]. Instala-se outra ‘tradição’ de sentidos nesse lugar [...]. Esse dizer irrompe
no processo significativo de tal modo que pelo seu próprio surgir produz sua memória”.62 Para
Orlandi, o discurso fundador tem a ver com a projeção de sentidos articulados pela memória e
tradição como lugar de reorganização dos gestos interpretativos e que teria por característica
o estabelecimento de uma relação entre o novo e a tradição:
Essa é também uma das características do discurso fundador: a sua relação particular
com a filiação. Cria tradição de sentidos projetando-se para frente e para trás,
trazendo o novo para o efeito do permanente. Instala-se irrevogavelmente. É talvez
esse efeito que o identifica como fundador: a eficácia em produzir o efeito do novo
que se arraiga, no entanto, na memória permanente. Produz desse modo o efeito do
familiar, do evidente, do que só pode ser assim [...]. O fundador busca a notoriedade
e a possibilidade de criar um lugar na história, um lugar particular. Lugar que rompe
63
no fio da história para reorganizar os gestos de interpretação.

A Carta de Caminha, com a narrativa dos acontecimentos e do contato com os povos


que aqui viviam, junto com a descrição da natureza exuberante e rica, povoa o imaginário de
fundação do Brasil. Nela aparecem as personagens que serão rememoradas com maior ou
menor intensidade a depender do papel e do valor que lhes atribuem os agentes nos contextos
de sua apropriação e reativação. Deste modo, compreende-se a Carta como uma narrativa que
propicia um lugar de memória a partir do qual se reorganizam os gestos de interpretação da
história por meio da repetição dos gestos dos acontecimentos narrados, quando das viagens de

61
Segundo Foucault, um dos postulados da origem é que “ela seria o lugar da verdade.” Para o filosofo, essa
busca parte de pressupostos metafísicos que encontram na origem uma essência, nesse sentido diz “A origem
está sempre antes da queda, antes do corpo, antes do mundo e do tempo; ela está do lado dos deuses, e para
narrá-la se canta sempre uma teogonia. [Já para a história genealógica] o começo histórico é baixo. Não no
sentido de modesto ou de discreto como o passo da pomba, mas de derrisório, de irônico, próprio a desfazer
todas as enfatuações. [...] A genealogia [...] se opõe ao desdobramento meta-histórico das significações ideais e
das indefinidas teleologias.” FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. Op. Cit. p.16-18.
62
ORLANDI, Eni P. Discurso fundador: a formação do país e a construção da identidade nacional. 2.ed.
Campinas: Pontes, 2001, p.13.
63
Idem, p.14-16.
35

redescobrimento e da reencenação das cerimônias de posse, transformando-a na matriz dos


elementos presentes nas atualizações do discurso do mito de fundação.
Quando falamos em mito nos referimos, de acordo com Marilena Chauí, não apenas
ao “sentido etimológico de narração pública de feitos lendários da comunidade”, como
também “no sentido antropológico, no qual essa narrativa é a solução imaginária para tensões,
conflitos e contradições”, e ainda ao “sentido psicanalítico, ou seja, como impulso à repetição
de algo imaginário”.64 Nesse sentido a ideia de mito fundador “impõe um vínculo interno com
o passado como origem”, isto é, como um passado que se conserva presente. O mito fundador
ofereceria um “repertório inicial de representações da realidade” que em cada momento da
história teria seus elementos reorganizados “tanto do ponto de vista de sua hierarquia interna
(isto é, qual o elemento principal que comanda os outros) como da ampliação do seu sentido
(isto é, novos elementos vêm se acrescentar ao significado primitivo)”. Para Marilena Chauí:
a fundação se refere a um momento passado imaginário, tido como instante
originário que se mantém vivo e presente no curso do tempo, isto é, a fundação visa
a algo tido como perene (quase eterno) que traveja e sustenta o curso temporal e lhe
dá sentido. A fundação pretende situar-se além do tempo, fora da história, num
presente que não cessa nunca sob a multiplicidade de formas ou aspectos que pode
65
tomar.

A filósofa diz ainda que “um mito fundador é aquele que não cessa de encontrar novos
meios para exprimir-se, novas linguagens, novos valores e ideias, de tal modo que, quanto
mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo.” Assim podemos considerar
algumas iniciativas que desde o final do século XIX em diante buscaram na história do
“Descobrimento do Brasil” a “força persuasiva dessa representação da nação” que, quando em
ação, “resolveria imaginativamente uma tensão social” ao mesmo tempo em que transforma
as contradições em índice dessas tensões estrategicamente obliteradas. Essas contradições são
frutos, por exemplo, das mesmas capacidades que os mitos da “democracia racial” e/ou de
“nação pacífica” teriam ao “permitir” a alguns dizer que o Brasil é um “país sem
preconceitos” e “inimigo da violência”, e que simultaneamente afirmam que “os índios são
ignorantes e os negros são indolentes” e que aplaudem os linchamentos e o “massacre dos
sem-terra”.66

64
CHAUI, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Editora Fundação Perseu
Abramo, 2000, p.5-7.
65
Idem, p. 6.
66
Idem, p.5-5.
36

Outra possibilidade de entrada nessa problemática é a partir da questão da natureza e do


imaginário do paraíso terrestre e suas ligações com as formas de perceber, significar e
produzir o mundo. Sergio Buarque de Holanda, em Visão do Paraíso, tinha como objeto de
pesquisa, de acordo com Lima, os mitos edênicos - “crenças inspiradas na teologia medieval
de que o Paraíso, longe de ser um conceito abstrato e inatingível, era um lugar distante, porém
ao alcance efetivo dos homens” - e buscava “compreender o papel destes mitos no processo
de descobrimento e colonização do Brasil”.67 Esse imaginário “povoava o universo mental de
portugueses e castelhanos na época das grandes navegações e conquista do Novo Mundo”.68
A busca pelo paraíso perdido como símbolo da trajetória dos motivos edênicos na
natureza estaria presente nas formas da experiência vivida por aqueles que de um modo ou de
outro viram no “descobrimento” um tema com força de mito. Reencontrar esse lugar da
origem primordial caminha junto com o “sonho de riquezas fabulosas”.69 Mistérios e fascínio
envolvem os elementos que constituiriam a experiência e a fantasia que ainda hoje revestem
os discursos que promovem essa visão mítica das origens do Brasil.
A partir dessas reflexões podemos pensar, junto com Ivana Tavares Muricy, as relações
entre essas visões e a construção histórico-social de Porto Seguro como “éden terrestre” no
sentido de sua transformação em objeto de consumo que toma a cidade como mito.70 A autora,
cuja pesquisa foi realizada no contexto dos “500 anos do Brasil”, investiga Porto Seguro com
base nas imagens que projetam a cidade, pelos meios de comunicação, a partir de estratégias
econômicas e políticas que saberiam se “alimentar da mitologia existente em torno do berço
do descobrimento”.71 As transformações pelas quais passaria a cidade durante o século XX
teria gerado “a consolidação de uma imagem-mito, que irá exercer profundas alterações na
identidade urbana e na forma de apropriação material e simbólica da cidade pelos diversos
grupos sociais”.72

67
LIMA, José Adil Blanco de. Entre a Crítica e a História: a construção de Visão do Paraíso de Sérgio
Buarque de Holanda. Dissertação (História). Juiz de Fora, 2013, p. 7.
68
HOLANDA, Sérgio Buarque. Visão do Paraíso: motivos edênicos no descobrimento e colonização do
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 35.
69
Idem, p. 35.
70
MURICY, Ivana Tavares. O Éden terrestre: a construção social de Porto Seguro como cidade turística.
Dissertação (Ciências Sociais). Salvador, UFBA, 2001.
71
MURICY, Ivana Tavares. Op. Cit. p.34.
72
Idem, p. 160.
37

IHGB, Historiografia e Descobrimento.

Cerimônia, discurso e mito são elementos presentes na instituição que irá pensar e
elaborar o projeto de uma História Nacional a ser viabilizado de forma sistematizada por meio
de um espaço elitista herdeiro de uma tradição acadêmica iluminista e que é fundada sob os
auspícios do Império brasileiro. De acordo com Manoel Luís Salgado Guimarães, a criação do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro - IHGB - em 1838 viria apontar em direção à
materialização do empreendimento de construção da história do Brasil que emerge “no bojo
do processo de consolidação do Estado Nacional”. Deste modo, os letrados reunidos em torno
do IHGB assumiriam como tarefa “pensar o Brasil segundo os postulados próprios de uma
história comprometida com o desenvolvimento do processo de gênese da Nação”.73
Para Manoel Guimarães, a “fisionomia esboçada para a Nação brasileira que a
historiografia do IHGB cuidará de reforçar visa a produzir uma homogeneização da visão do
Brasil no interior das elites brasileiras”. O ponto central da problemática envolveria as
discussões sobre a questão nacional e o papel da escrita da história como vetor de
propagação e consolidação da identidade que se definia para o Brasil. A posição de Varnhagen
frente a essas questões, por exemplo, seria característica de uma perspectiva de continuidade
em relação ao passado. Segundo Guimarães, o Visconde de Porto Seguro “explicitaria os
fundamentos definidores da identidade nacional brasileira enquanto herança da colonização
europeia”.74 Nesse sentido, como o tema do descobrimento será desdobrado neste contexto de
construção da nação por meio de um projeto de escrita da história que visava produzir uma
visão homogênea do Brasil?

73
GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Nação e Civilização nos Trópicos: O Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro e o projeto de uma História Nacional. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n,1, 1988,
p.6. Sobre mito e a escrita da História do Brasil, diz Guimarães: “Os primeiros passos concretizados no sentido
da elaboração de uma história do Brasil, que viria a ser publicada anos mais tarde por um homem ligado ao
IHGB – Francisco Adolfo de Varnhagen –, são dados por Januário da Cunha Barbosa em 1840, ao definir um
prêmio para o trabalho que melhor elaborasse um plano para se escrever a história do Brasil. O texto, premiado
em 1847, do alemão von Martius, cientista ocupado com as coisas brasileiras, já fora publicado na Revista em
1844 e se revestia de um caráter pragmático, como aliás o próprio título sugere [Como se deve escrever a
História do Brasil]. No artigo, von Martius define as linhas mestras de um projeto historiográfico capaz de
garantir a identidade específica à Nação em processo de construção. Essa identidade estaria assegurada, no seu
entender, se o historiador fosse capaz de mostrar a missão específica reservada ao Brasil enquanto Nação:
realizar a ideia da mescla das três raças, lançando os alicerces para a construção do nosso mito da democracia
racial.” p.19.
74
Idem, p.6. Grifo nosso. Acerca da perspectiva de continuidade em Varnhagen, eis o que diz o Visconde de
Porto Seguro: “A época do descobrimento, a origem delle, e o reinado em que teve logar, vieram a ser
perpetuados até no próprio escudo do paiz descoberto, que ainda se gloria de ter por brazão a esphera armilhar e
a cruz floreteada da ordem de Christo, que eram a divisa daquele soberano [de Portugal]”. VARNHAGEN,
Francisco Adolfo. História Geral do Brasil, segunda edição, 1877, p.75.
38

Para Eduardo Morettin, o tema do Descobrimento “possui especial significado, pois nos
remete a uma dupla e complementar fundação: a da nação e a da própria História”. 75 A
investigação e análise das formas de produção e circulação do tema do Descobrimento do
Brasil deve perscrutar uma determinada tradição historiográfica brasileira do século XIX que
buscou na Carta de Caminha um referencial documental de valorização do passado. A
construção do tema pela historiografia passava, inicialmente, por “lançar as bases sobre as
quais esta fundação pode ser rememorada”.76 A recuperação das fontes sobre o tema tornava-
se então fator crucial de elucidação do passado que se estava produzindo para a nação. Nesse
sentido, a trajetória “editorial” da carta de Pero Vaz de Caminha, entendida como um
documento/monumento77 produzido pela sociedade da época nos permitirá uma primeira
leitura dos desdobramentos que o tema produz:
Este documento somente foi disponibilizado para consulta no final do século XVIII
quando, em 1773, a carta foi copiada por ordem do guardar-mor da Torre do Tombo.
O primeiro historiador a publicá-lo, ainda que parcialmente, foi o castelhano João
Baptista Muñoz, em 1790, em História del Novo Mundo. A sua primeira edição no
Brasil ficou a cargo do padre Manuel Ayres de Casal em sua Corografia Brasílica,
de 1817, da qual retirou as passagens referentes à sexualidade. Em 1826 foi
publicado na íntegra do documento pela Academia de Ciência de Lisboa. Ainda nos
anos 20 daquele século, a carta foi traduzida para o alemão, o francês e o inglês,
sendo analisada por Ferdinand Denis e Robert Southey, entre outros. Somente em
1877 preparou-se uma nova edição brasileira, desta vez publicada pela Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Tomo 40, part. 2, ‘por insistência de
Varnhagen’, conforme nos informa Capistrano de Abreu. Novas publicações foram
preparadas em função de outras comemorações, celebradas nos anos de 1892 e
1900.78

75
MORETTIN, Eduardo Victorio de. Produção e formas de circulação do tema do Descobrimento do Brasil: uma
análise de seu percurso e do filme Descobrimento do Brasil (1937), de Humberto Mauro. Revista Brasileira de
História. São Paulo, v.20, n°39, 2000, p.138.
76
Idem, p.138.
77
Conforme Le Goff: “o que transforma o documento em monumento: a sua utilização pelo poder. [...] O
documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou
segundo relações de força que aí detinham poder. Só a análise do documento enquanto monumento permite à
memória coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é, com pleno conhecimento de causa.”
LE GOFF, Jacques. Documento/monumento. In. História e memória. Campinas: SP Editora da Unicamp, 1990,
p.546. Segundo Foucault: “O documento não é o feliz instrumento de uma história que seria em si mesma, e de
pleno direito, memória; a história é, para uma sociedade, uma certa maneira de dar status e elaboração à massa
documental de que ela não se separa. [...] a história, em sua forma tradicional, se dispunha a ‘memorizar’ os
monumentos do passado, transformá-los em documentos [...]; em nossos dias, a história é o que transforma os
documentos em monumentos e que desdobra, onde se decifravam rastros deixados pelos homens, onde se tentava
reconhecer em profundidade o que tinham sido, uma massa de elementos que devem ser isolados, agrupados,
tornados pertinentes, inter-relacionados, organizados em conjunto.” FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do
Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, p.8. Grifos do autor.
78
MORETTIN, Eduardo Victorio. Op. Cit. p.138-139.
39

Da constituição em documento de arquivo além-mar, passando pelo padre que lhe


recortou as partes sexuais, a Carta de Caminha circula o mundo por meio de outras línguas,
sendo fruto da publicação de Academias e Institutos e se transforma em uma narrativa a ser
reimpressa quando das comemorações dos 400 anos dos descobrimentos da América e do
Brasil. Destaca-se que o “Descobrimento do Brasil”, enquanto “relato minucioso e palpável
da veracidade do caso da descoberta” a circular por meio da leitura compartilhada de um
mesmo texto, só ganharia força de tema recorrente para a sociedade e a historiografia
nascente, somente após 1817 quando a Carta é publicada no Brasil como uma nota de roda pé
do livro de Casal.79 Para Morettin, as edições da Carta de Caminha:
[...] permitiram que o tema viesse a ser lapidado por historiadores, que se dedicam a
dirimir diversas questões sobre o assunto. Por intermédio da Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, muitas polêmicas acerca do Descobrimento serão
travadas. Tais discursões, juntamente com os livros de Francisco Adolfo de
Varnhagen e Capistrano de Abreu, possibilitaram a demarcação do tema e a
instituição de sua história.80

O redescobrimento da Carta de Caminha está na base da demarcação e


institucionalização da escrita da história do Descobrimento do Brasil, e, por conseguinte, está
na base do mito de fundação que este tema desdobra. Como elemento de lapidação do
trabalho dos historiadores do século XIX, a Carta será utilizada como eixo das argumentações
que se impõem com os debates de algumas questões polêmicas que irão fazer história.
De acordo com Morettin, essas discussões travadas por intermédio da Revista do
IHGB irão consolidar os tópicos do debate sobre o descobrimento por meio de três polêmicas:
1) “A partir de 1850, Joaquim Norberto de Souza Silva e Gonçalves Dias, iniciam um debate
sobre a teoria da casualidade ou não da descoberta”; 2) o debate entre o Visconde de Porto
Seguro e o Visconde de Beaurepaire-Rohan (1812-1894) que “procuraram definir com
precisão o local efetivo do desembarque da armada de Cabral e da realização da primeira
missa no território brasileiro”; 3) o outro problema que se colocava para os historiadores da

79
Reproduzo aqui o início da nota n°11 na qual Manoel Ayres de Casal apresenta as razões da inserção da Carta
de Caminha em sua obra: “Havendo relatado o descobrimento do Brasil com Barros, Góis e Osório à vista,
comuni-cando-se-me depois no Arquivo da Real Marinha do Rio de Janeiro a cópia duma carta escrita em Porto
Seguro pelo mencionado Pero Vaz de Caminha, companheiro de Pedro Alvares, que refere o caso em contrário
daqueles outros, não só com miudeza, mas até com veracidade palpável, me vi obrigado a dar-lhe preferência: e
estimei tanto este encontro, que escrupullzo (sic) faria injustiça aos meus leitores não lhes dando aqui dela a
cópia seguinte: [...]”. CASAL, Manoel Ayres de. Corografia Brasílica ou relação histórico-geográfica do
Reino do Brazil composta e dedicada a Sua Majestade fidelíssima por hum presbítero secular do Gram
Priorado do Crato. Tomo I, Rio de Janeiro, Imprensa Régia, 1817, p.21s.
80
MORETTIN, Eduardo Victorio. Op. Cit. p.139.
40

época é a questão sobre o dia em que o Brasil foi descoberto: se se deveria comemorar o
descobrimento no dia 22 de abril ou no dia 3 de maio.81

Presença e olhar nas viagens de história

Como veremos nos próximos capítulos, estas questões estarão presentes na


“Comemoração do Descobrimento do Brasil” promovida pelos Diários Associados com o
apoio dos governos dos Estados de São Paulo e da Bahia e de autoridades locais em 1939.
Elas irão compor o repertório de problemas ligados à temática que serão trabalhadas nas
reportagens publicadas. A narrativa histórica evocada visava relacionar os acontecimentos da
descoberta, ao rememorar os pontos polêmicos, com a experiência de produção da presença82
nos locais que a Carta de Caminha apresenta. Ir ao lugar “onde o Brasil nasceu” para
experimentar/ver/sentir a narrativa da Carta se materializar na paisagem histórica delineada
pelas descrições de Caminha, constituir-se-á em um dos elementos primordiais do
emolduramento e da justificação das atividades que a Revoada ao “berço da nação”
promoveria.
A presença no lugar dos acontecimentos narrados na Carta e emoldurados pelo
discurso historiográfico do século XIX será evocada enquanto condição de validação da
experiência como “testemunho ocular” a fornecer as “reais” perspectivas sobre o assunto.
Desta forma, a emergência do momento para se recolocar as polêmicas e tentar dirimi-las
perante um público de leitores de jornais e revistas, tem na presença a condição de perspectiva
situada a partir do qual emerge um modo próprio de ver, nomear, descrever e provar a
história. Nesse sentido, a presença se constituirá em elemento de autoridade que se

81
Idem, ibid. Grifo nosso. Sobre a questão do dia em que o Brasil teria sido “descoberto”, diz Morettin:
“Atualmente conhecemos e comemoramos o 22 de abril, porém o século XIX celebrava o fato no dia 3 de maio,
momento em que, supostamente, a primeira missa no novo território teria sido realizada. É curioso notar que em
1900 este foi o dia escolhido para dar início às festividades referentes ao quarto centenário. Esta escolha diz
muito também sobre o que deve ser comemorado dentro do tema, ao privilegiar a ação de alguns personagens em
detrimento de outras, dado que o 3 de maio evocava mais a participação da Igreja no momento da conquista da
colônia.” p.139.
82
Sobre produção de presença, diz Gumbrecht: “A palavra ‘presença’ não se refere (pelo menos, não
principalmente) a uma relação temporal. Antes, refere-se a uma relação espacial com o mundo e seus objetos.
Uma coisa ‘presente’ deve ser tangível por mãos humanas – o que implica, inversamente, que pode ter impacto
imediato com corpos humanos. Assim, uso ‘produção’ no sentido de sua raiz etimológica (do latim producere),
que se refere ao ato de ‘trazer para diante’ um objeto no espaço. Aqui, a palavra produção não está associada à
fabricação de artefatos ou de material industrial. Por isso, ‘produção de presença’ aponta para todos os tipos de
eventos e processos nos quais se inicia ou se intensifica o impacto dos objetos ‘presentes’ sobre corpos
humanos.” GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir.
Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2010, p.13.
41

fundamenta na capacidade de ver como forma de mediar às polêmicas oriundas do IHGB que
serão fomentadas pelos impressos do conglomerado de comunicação comandado por Assis
Chateaubriand. A autoridade dos historiadores também seria evocada, neste processo de busca
por respostas às polêmicas, revelando, assim, uma vontade de verdade como o modo próprio a
partir do qual o discurso jornalístico encontra no estilo historiográfico uma moldura para as
reportagens sobre os “439 anos do aniversário do Brasil” no lugar de seu descobrimento.
Ver realmente os lugares imaginados a partir da narrativa da Carta tornar-se-á, em
1939, uma oportunidade para se trabalhar o repertório de questões como pontos de destaque
do discurso jornalístico com vistas a atrair o público leitor a partir destas polêmicas, ou seja,
vai haver uma atualização e popularização das polêmicas surgidas no interior do IHGB a
partir da atuação da imprensa no Estado Novo. Desta forma, encontrar-se presente no lugar
onde o Brasil teria sido descoberto será tomado como uma condição que justificaria e
autorizaria a posição de arbitragem, in loco, dos jornalistas frente às polêmicas existentes, por
meio de uma pretensa visão atestadora da realidade dos lugares aos quais é atribuído o valor
de documentos históricos.
Essa predominância do olhar nas questões historiográficas também teria raízes,
segundo Janaína Zito Losada, nas experiências dos membros do IHGB que durante o século
XIX, ao realizarem viagens de história pelo Brasil, acabariam por produzir um “adestramento
do olhar” que enquadraria a prática da escrita da história por meio das ideias e imagens da
natureza enquanto cena a ser vista, sentida, narrada, descrita e analisada. 83 A viagem é um ir
que vem com um ver. Essas viagens por meio dos sentidos buscam na história uma paisagem
desejada e encontram na natureza, como narrada e descrita por Caminha, o cenário ideal onde
se desdobram os acontecimentos de fundação e de refundação do Brasil. Neste sentido, a
natureza se constituirá, enquanto paisagem-cenário da história, em mais um dos elementos
heterogêneos a compor os dispositivos de emolduramento a ser mobilizado pelas estratégias

83
Sobre viagens, IHGB e adestramento do olhar, conforme Losada: “Depositários de uma tradição científica e
objetiva, em busca do detalhamento e do diferente, os viajantes buscavam aquilo que seu olhar lhes impunha.
Não se observava qualquer coisa. O olhar estava inscrito em uma ordem maior ou em uma rede mais ampla de
determinações e de outros olhares. O homem não possui domínio da observação. Pelo menos não, se quisesse
fazer parte do seleto grupo de intelectuais que pertenciam ao IHGB e tinham seus relatos publicados em sua
revista. As publicações e, com maior força, os ideais da ciência histórica, impunham determinado tipo de
conduta aos homens que bebiam em suas águas. A conduta de que tratamos é referente à forma de entender a
natureza, coletar dados e escrever os relatos. Uma norma de fazer ciência. Colocada aos homens como forma de
unificar uma dada linguagem. Mas, se pensarmos em seu extremo, essa dita unificação da linguagem era mais
que uma norma de apresentação, era uma forma de pensamento, uma forma de olhar”. LOSADA, Janaína Zito.
Desejos e melancolias: uma história da ideia de natureza no Brasil (1839-1870). Dissertação: História,
Universidade Federal do Paraná, 1998, p.24. Grifo da autora.
42

de invenção do descobrimento. De diferentes maneiras o olhar, a natureza e a história estarão


presentes na viagem de redescobrimento do Brasil que o “Raid” a Porto Seguro agencia.
E com isto retornamos à perspectiva levantada por Manoel Guimarães, para quem o
delineamento do projeto de história da nação desenvolvido pelo IHGB visava produzir uma
homogeneização da visão da história do Brasil.84 Do discurso e mito fundador que se pautam
pela Carta de Caminha, passando pela problematização das formas de produção e circulação
do tema do Descobrimento por meio do trabalho de uma historiografia comprometida com a
construção da identidade nacional, até as polêmicas e debates sobre o tema que irão circular
na Revista do IHGB e que irão chegar às páginas do conglomerado de imprensa pertencente a
Assis Chateaubriand, chegamos às formas de produção de visualidades da fundação do Brasil
por meio da experiência da presença propiciada pelas viagens de redescobrimento da história.
Esses elementos compõem os dispositivos de emolduramento do “descobrimento” que o
“Raid” mobiliza ao produzir o acontecimento da refundação do Brasil nos tempos do Estado
Novo quando comemoram os 439 anos do Brasil no redescobrimento de suas origens.

1.3. A Visualidade do Descobrimento: a Carta, a Missa e o Imaginário de Fundação do Brasil.

Ao mesmo tempo em que o tema do “Descobrimento do Brasil” era instituído e


delimitado pela historiografia do século XIX, a arte delineava e emoldurava um imaginário de
referência para a História Nacional e, por isto mesmo, ela propiciava as bases para a produção
da experiência da visualidade do descobrimento em terras, mar e ar baianos. Seja por meio da
ciência, com o saber histórico institucionalizado no IHGB, seja por meio da arte, com a
pintura de história desenvolvida no seio da Academia Imperial de Belas Artes (AIBA), ou

84
Em outro artigo, Manoel Guimarães apresenta outras questões que envolveriam a mesma problemática
pertinente às estratégias para dar visibilidade ao passado, compreendendo-as como parte de um esforço de
culturalização do tempo. Diz Guimarães: “O que ver, quando podemos tudo ver em virtude dos meios postos a
serviço da escrita da história? Como refletir acerca dessa complexa relação entre o visível e o invisível, que está
na raiz mesma do trabalho do historiador, quando os meios de visibilidade do passado parecem infinitamente
alargados pela capacidade técnica de arquivamento do passado? [...] É importante termos claro que, no caso do
trabalho do historiador essa relação entre o visível e o invisível parece revestir-se de uma peculiaridade, pois não
se trata apenas de imaginar e visualizar o passado como algo irreal, fora da realidade presente à experiência
sensorial, mas como algo anterior ao nosso tempo, o que configura, portanto, uma especificidade a este ausente a
ser visualizado: o de ser anterior ao nosso tempo e que, por isso, mantem com ele certas relações. Esta discussão
implica necessariamente um cuidado, no sentido de precisar os termos com que operamos, que se torna evidente
já na definição do que seria a visualidade do passado, implicada tanto numa narrativa escrita sobre eventos
pretéritos (que supõe do leitor uma imaginação do que está sendo narrado) como também num projeto de
patrimonialização desse mesmo passado em instituições que dão suporte a esta visualização como, por exemplo,
os museus.” GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Vendo o passado: representação e escrita da história.
Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér.v.15. n.2. jul-dez.2007. p.12. Grifo nosso.
43

com o cinema já nos anos de 1930, o tema do descobrimento será interpretado e imaginado a
partir da Carta de Caminha entendida como a narrativa matriz do imaginário de fundação do
Brasil.

A matriz narrativa: o estilo de Caminha e o tema da primeira missa.

Para Jorge Coli a chegada dos portugueses foi acompanhada de um “documento


excepcional” que revelaria as qualidades do escrivão da frota cabralina e a força mítica que a
Carta adquiriria enquanto ato fundador:
O caráter documental, por si só, conferiria a esta Carta do achamento do Brasil um
alto valor. Mas ela adquire um caráter mítico de ‘ato fundador’ do país a partir de
duas das qualidades que Caminha possuía largamente: legítimo e elevado talento
85
literário vinculado à capacidade de observação.

As qualidades de bom observador e escritor, ao narrar a experiência do contato com um


mundo novo com “talento literário”, como será atribuído ao “estilo de Caminha”, conferem à
Carta, segundo Coli, “um poder definitivo de projetar-se no imaginário histórico que emerge e
atravessa o século XIX brasileiro. Imaginário investido pela fabricação de um mito
nacionalista cuja vida será longa”.86 Junto a isso podemos pensar na capacidade de
emolduramento que as qualidades da observação e do talento literário permitem desenvolver.
Saber observar, narrar e descrever a cena do mito de fundação constituir-se-á em elemento
chave do dispositivo de emolduramento que tem na Carta uma referência de fundamentação
para o desenvolvimento destas qualidades.
Para que a projeção de um imaginário histórico possa vir a se consolidar, torna-se
preceito a boa observação e descrição do acontecimento que se queira perpetuar. Com o mito
da nacionalidade que a Carta alimenta87, desdobra-se um modelo de construção do imaginário
que se pauta por meio de qualidades literárias, ou seja, ligadas à narrativa e descrição, e por
meio de qualidades visuais, ou seja, ligadas à sensação, elaboração, projeção e interpretação
de imagens. Ambas as qualidades, que se entrelaçam constituindo-se mutuamente, ligam-se à

85
COLI, Jorge. Primeira Missa e Invenção da Descoberta. In NOVAES, Adauto (org.). A descoberta do homem
e do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.108.
86
Idem, p.109.
87
Idem, p.108. Sobre a Carta de Caminha, a criação do mito de fundação e a produção literária, diz Jorge Coli:
“As imagens tão marcantes apresentadas pelo escrivão de bordo em 1500 perpassam pela produção literária de
um romantismo ‘indianista’, reforçando a crença na fusão das raças presentes em Iracema [autor: José de
Alencar, publicado em 1865], obra nuclear que preside a criação de uma consciência nacional das origens”.
Grifo nosso.
44

ciência e à arte, à historiografia e ao imaginário. Nesse sentido, o estilo de Caminha seria


acompanhando por uma espécie de “olhar antropológico” que, ao ver e descrever o que viu,
relata a si e ao outro por meio de referências estabelecidas com os artifícios da memória e da
imaginação, configuradas na narrativa oriunda da experiência da presença. Diz Jorge Coli:
Vista pela primeira vez, a terra brasileira foi descrita por meio de um olhar
interessado e atento, cujo caráter ‘antropológico’ nos parece tão moderno, mas que
guardava na memória o tema clássico das Ilhas Afortunadas, além de estabelecer de
imediato, um elo com o paraíso primordial da Bíblia.

A força mítica presente em sua narrativa vem de longa data. Força mítica cujo
imaginário ajudou a construir e que foi construída por este. Neste processo é condicionado um
determinado modo de olhar, que está presente em Caminha, e que se articula na junção da
observação atenta com a descrição minuciosa. Elementos fundamentais que irão inspirar a
elaboração de um imaginário de fundação a partir da pintura de história que encontrará no
tema da Primeira Missa a cena ideal de consolidação deste imaginário que será reforçado pelo
cinema. Este cenário representado pela Primeira Missa estará presente tanto nas reportagens
que fazem a enunciação e cobertura do evento “Raid a Porto Seguro”, como nas performances
de reativação do descobrimento que as cerimônias mobilizadas por este evento agenciam.

Imaginário e visualidade

Um dos pressupostos da análise é: a Carta, como discurso fundador, é interpretada e


imaginada e, assim, transformada, pela pintura de história, em narrativa matriz do imaginário
de fundação a ser atualizado pelo cinema no contexto do Estado Novo. Este imaginário
serviria de referência para a produção da visualidade do descobrimento que as ações e
atividades desenvolvidas no sul da Bahia em 1939 promoveriam. Entendendo esta produção
da visualidade como o momento em que o dispositivo de emolduramento é reativado como
forma de refundar uma determinada experiência histórica em andamento. Essa visualidade é
tanto sentida/percebida no presente da ação, quanto mobilizada a partir da instauração do mito
fundador por meio das repetições das cenas e cerimônias do descobrimento e pode ser
caracterizada como o momento em que a experiência sensível do olhar é projetada no mundo
como busca dos sinais e das significações pré-concebidas por um imaginário já consolidado.
Segundo Bronislaw Baczko, “o domínio do imaginário e do simbólico é um importante
lugar estratégico”. O imaginário está atrelado ao exercício do poder. O imaginário social seria
uma das forças reguladoras da vida coletiva que produzem referências simbólicas com as
quais uma coletividade designa sua identidade. Dentre as múltiplas e complexas funções que
45

competem ao imaginário na vida coletiva, ressaltam-se aquelas veiculadas pelo mito e que
visam assegurar a coesão social ao legitimar hierarquias sociais definidas. O imaginário social
também pode ser pensado como o lugar de expressão das expectativas e aspirações, das lutas
e dos conflitos. Ele se torna inteligível e comunicável por meio da produção dos “discursos”
nos quais e pelos quais se efetua a reunião das representações coletivas numa linguagem.88
Para José Murilo de Carvalho, “A manipulação do imaginário social é particularmente
importante em momentos de mudança política e social, em momentos de redefinição de
identidades coletivas”. O historiador, ao questionar sobre os instrumentos de legitimação dos
regimes políticos no mundo moderno, investiga o modo como o imaginário social é
construído e se expressa por meio dos símbolos, alegorias, rituais e mitos. Estes, por seu
caráter difuso, se tornam “elementos poderosos de projeção de interesses, aspirações e medos
coletivos”.89 Perceber a importância do uso dos símbolos na configuração de um novo
conjunto de valores sociais e políticos, por meio do imaginário que constrói o mito de origem
do novo regime, é fundamental para compreendermos as batalhas de versões da história que
se quer legitimar.
O imaginário é tanto o acervo de experiências imagéticas e imaginativas de uma
sociedade, como o repertório de referências simbólicas que esta mesma sociedade produz.
Estes elementos de composição do imaginário configuram aquilo que estamos chamando de
dispositivos de emolduramento. Em nosso caso, o exercício do poder que se expressa por
meio dos símbolos, alegorias e rituais se torna comunicável através da reprodução do discurso
do mito fundador que encontra na linguagem da arte, por meio da pintura e do cinema, os
elementos do imaginário que irão compor o dispositivo de emolduramento que a manipulação
deste imaginário, através do discurso jornalística, reativa ao fazer a “cobertura” do evento
“Raid” durante o Estado Novo no sul da Bahia.
É na reativação dos dispositivos de emolduramento que emerge a visualidade do
descobrimento. Para Ulpiano Bezerra de Meneses, a visualidade possui historicidade,
portanto, uma história visual constitui-se em “um campo de grande valor estratégico para o
conhecimento histórico da sociedade, na sua organização, funcionamento e transformação”.
De acordo com Meneses “as relações do historiador com o mundo visual se concentram, pois,

88
BACZKO, Bronislaw. A imaginação social. In. Leach, Edmund et Alii. Anthropos-Homem. Lisboa, Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, 1985, p.297-311.
89
CARVALHO, José Murilo. A Formação das Almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990, p.9-11.
46

na imagem”. Nesse sentido o autor adverte que as dificuldades em dar conta da


“especificidade visual da imagem”, muitas vezes “tratada como fornecedora de informação
redutível a um conteúdo verbal”, ou, ainda, “considerada como apta a desempenhar tão
somente função ilustrativa”,90 acarreta uma perda de experiência social historicamente situada
que reduz o campo de possibilidades de investigação histórica e da produção de seu
conhecimento.
Para o delineamento de um quadro historiográfico que passe de “uma história ainda
marcadamente iconográfica para uma história da visualidade” é preciso reconsiderar a
materialidade que a experiência da presença e sua sensibilidade propiciam. A problemática
visual não deve privilegiar o tratamento da imagem unicamente como “documento discursivo,
deixando de margem sua múltipla presença na vida social”, e, sim, de acordo com o autor,
deve-se “considerar a dimensão visual presente no todo social”. A dimensão visual participa
das dimensões sensoriais da vida social. “Afinal, é pela mediação dos cinco sentidos e seus
suportes que a vida social é viável”.91 É aqui que a experiência de produção da presença
singulariza a visualidade frente ao imaginário historicamente constituído.
Para que a visualidade seja incorporada como dimensão possível de ser explorada pelo
campo da história, seria preciso considerar três ordens de questões pertinentes à problemática
da experiência social atrelada às questões da imagem em relação ao tratamento dado pelo
historiador. 92 Estas ordens não devem ser tomadas como “classes estanques, sem interação,
mas tão somente [como] espaços gravitacionais”.93 São elas as dimensões do visual, do
visível/invisível e da visão.

90
MENESES, Ulpiano Bezerra de. Rumo a uma “História Visual”. Versão 2 (14.06.05) São Paulo, 2005, p.1-3
91
Idem, Ibid. Grifo nosso.
92
Segundo Manoel Luís Salgado Guimarães, ao trabalhar as observações propostas por Ulpiano Bezerra de
Meneses, este modo de compreender a visualidade visa ir além de uma perspectiva “apenas documentalista da
imagem”. Para Guimarães, Bezerra de Meneses nos adverte para a importância de diferenciar estas três ordens
de questões ao enfocarmos os problemas da imagem e de como este procedimento de articulação das dimensões
da visualidade podem ser enriquecedoras para o tratamento desta dimensão da experiência social: “Aí também
encontramos outra sugestão importante e complexificadora do trabalho do historiador com o universo das
imagens, que deixa de ser vista apenas como fonte para a história a ser narrada, e ganharia a dimensão de uma
experiência social particular, e como tal, dotada de historicidade. Isso significa assumir que a imagem não pode
ser tratada apenas a partir de sua dimensão documental, fonte de informação para a pesquisa. Assim como o
texto literário, a imagem não se esgota como documentação, o que significaria tratá-la segundo os procedimentos
que a crítica histórica definiu para as fontes escritas, perdendo, desta forma, sua dimensão de criação que permite
a experimentação, sob determinadas condições, de uma experiência do passado.” GUIMARÃES, Manoel Luís
Salgado. Vendo o passado: representação e escrita da história. Anais do Museu Paulista. São Paulo. N.
Sér.v.15. n.2. jul-dez.2007. p.13.
93
MENESES, Ulpiano Bezerra de. Op. Cit. p.1.
47

A dimensão visual, segundo Bezerra de Meneses, seria o nicho onde se localizam a


maior parte da bibliografia sobre o assunto, pois é onde se concentra as questões mais
relevantes associadas a imagens. Nesta ordem de questões esta circunscrita a iconosfera, ou
seja, “o conjunto de imagens-guia de um grupo social ou de uma sociedade num dado
momento e com o qual ela interage”. Em sua abordagem é preciso “procurar identificar os
sistemas de comunicação visual, os ambientes visuais das sociedades”. Buscando na rede de
imagens que circula no mundo social as “imagens de referência, recorrentes, catalizadoras,
identitárias” que estão presentes nas instituições visuais e nos “suportes institucionais dos
sistemas visuais”. E, nesse sentido, busca-se também identificar as “condições técnicas,
sociais, e culturais de produção, circulação, consumo e ação dos recursos e produtos
visuais”.94
Já a dimensão do visível e do invisível estaria atrelada ao “domínio do poder e do
controle, o ver/ser visto, dar-se/não dar-se a ver, os objetos de observação obrigatórios assim
como os tabus e segredos, as prescrições culturais e sociais e os critérios normativos de
ostensão, ostentação ou descrição”. O problema da visibilidade/invisibilidade integra a vida
social como um todo, seja sob a forma da etiqueta como sistema visual, da relação entre o
público e o privado, da teatralidade e observabilidade das práticas e interações sociais, em
suma, sob a forma da espetacularização da sociedade, entendendo “espetáculo não como uma
coleção de imagens, mas como uma relação social entre pessoas mediadas por imagens”. 95
A dimensão da visão, dentro das ordens de questões que compõem a problemática da
visualidade como propostas por Bezerra de Meneses, “compreende os instrumentos e técnicas
de observação, o observador e seus papeis, os modelos e modalidades do olhar”. Pressupõe-se
aqui “uma dupla mão de direção entre o olhar e seu objeto” donde se compreende o “olhar
como um mecanismo de interação e fixação das diferenças”. A visão é uma construção
histórica e está ligada ao sujeito que vê. O surgimento da figura do observador, por exemplo,
estaria acompanhada das “mudanças epistêmicas dos modelos clássicos de visualidade para as
negociações entre o observador e o mundo”. Os estudos da visão incluiriam ainda a
problemática histórica da transformação da paisagem, de fato geográfico em fato cultural,
“operada em grande parte pela colaboração da imagem”, com a investigação acerca dos

94
Idem, ibid.
95
Idem, p.2. Grifo nosso.
48

modos apropriados de ver e enquadrar a paisagem: como aqueles que encontramos em


quadros, fotografias, películas e em outras formas e modalidades do olhar.96
Estas ordens de questões – visual, visível/invisível e visão – que compõem a dimensão
da visualidade, entendida como dimensão da experiência social historicamente construída,
configuram o momento de produção da presença evocado pelos e nos dispositivos de
emolduramento que o trabalho de invenção do Descobrimento desdobra com o evento “Raid”
e às formas como este é visto e dado a ver.
O imaginário que alimenta o dispositivo de emolduramento, neste trabalho de invenção
promovido pela revoada ao lugar “onde nasceu o Brasil”, pode ser compreendido como o
fornecedor das imagens-guias que irão delinear as possibilidades de visualização referente aos
lugares até então somente enxergados com os olhos da imaginação que a leitura da carta e a
contemplação das telas haviam permitido.
A viagem de redescobrimento promovida pelos Diários Associados mobilizará de
diversas formas estas ordens de questões de modo a amalgamar esses olhos da imaginação
com a visualidade presente na paisagem histórica delineada por Caminha e que será
contrastada com a realidade dos lugares por onde os jornalistas irão passar. Esta viagem aérea
e jornalística que é o “Raid” a Porto Seguro, este tipo específico de atividade-intervenção
comemorativa realizada durante o Estado Novo, trará novos olhares para o “berço da
nacionalidade futura”.

O mito fundador entre a pintura de história e o cinema

O caminho de consolidação do imaginário do mito de fundação é longo e continua se


dando. Para os fins deste trabalho iremos destacar dois acontecimentos desta complexa
história. São eles: Primeira Missa no Brasil, tela de Victor Meirelles pintada e exposta em
Paris no ano de 1861 e Descobrimento do Brasil (1937), filme de Humberto Mauro. A
primeira por ter se tornado “um ícone da história nacional”97 e o segundo por ser a cena em
movimento a retratar o descobrimento, sendo um marco da produção cinematográfica de uma
pedagogia cívica do Estado Novo e que antecede o contexto do “Raid” a Porto Seguro. Nesse

96
Idem, p.2-3. Grifo nosso.
97
COLI, Jorge. Primeira Missa e Invenção da Descoberta. In NOVAES, Adauto (org.). A descoberta do homem
e do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.111.
49

sentido, o “Raid” pode ser considerado como um evento-simulacro98 pois agencia ao mesmo
tempo uma tripla repetição: da carta, do quadro e do filme. Repetição infinita, nesse jogo de
imagens espelhadas, que uma imitação criativa reativa no momento performático deste
imaginário de fundação, que é mobilizado na experiência de produção da presença evocado
nos locais dos acontecimentos geradores de uma visualidade emoldurada do descobrimento.
Dentre as imagens dos “acontecimentos quase míticos” que presidiriam à “criação de
uma consciência nacional das origens”, apresentadas pela Carta em 1500, segundo Jorge Coli,
destaca-se aquela que seria o “cerne do texto” de Caminha e que se concentra na sua
“cerimônia mais significante: a missa”. A Carta traria uma visão que permitiria a “associação
dos dois elementos humanos nobres, tomados no século XIX como ancestrais legítimos para a
recente nação: os índios e os portugueses. Mais do que isso, a carta juntou, amável e
harmoniosamente, pagãos e católicos”. Caminha tanto detalharia os preparativos para a
realização da missa e sua execução, como assinalaria as diferenças de cultura existentes
quando da efetivação da mesma. Ao mesmo tempo em que apresenta esta cerimônia como um
momento de fusão de culturas “sob a égide católica”, onde estas culturas se associariam
“numa cena de elevação espiritual” criando-se ai o “ato de batismo da nação brasileira”. A
Carta de Caminha teria o poder de tornar presentes os acontecimentos da missa como
cerimônia de fundação do Brasil.99
Jorge Coli considera que “o quadro de Victor Meirelles, retratando a Primeira Missa no
Brasil, tal como foi descrita na carta de Pero Vaz de Caminha é um episódio muito

98
Entendendo o “raid”, dentre algumas possibilidades interpretativas que evocamos durante este trabalho, como
um evento jornalístico engendrado a partir da repetição das imitações do acontecimento fundador. Nesse sentido
é que o evento “Raid” pode ser compreendido como um simulacro, como uma cópia da cópia. Sobre simulacro,
conforme Baudrillard para quem a “alegoria da simulação” constitui-se num “hiper-real”. Segundo o filósofo “a
era da simulação inicia-se, pois, com a liquidação de todos os referencias – pior: com a sua ressureição artificial
nos sistemas de signos, material mais dúctil que o sentido [...]. O real é produzido a partir de células
miniaturizadas, de matrizes e de memórias, de modelos de comando – e pode ser reproduzido um número
indefinido de vezes a partir daí. Já não tem de ser racional, pois já não se compara com nenhuma instância, ideal
ou negativa. É apenas operacional. [....] Já não se trata de imitação, nem de dobragem, nem mesmo de paródia.
Trata-se de uma substituição no real dos signos do real, isto é, de uma operação de dissuasão de todo o processo
real pelo seu duplo operatório [em nosso caso a tripla repetição – Carta, quadro, filme – evocada nas cerimônias
do evento “raid” e reproduzidas e difundidas pelos jornais e revistas dos Diários Associados], maquina sinalética
metaestável, programática, impecável, que oferece todos os signos do real e lhes curo-circuita todas as
peripécias. [...] Dissimular é fingir não ter o que se tem. Simular é fingir o que não se tem. O primeiro refere-se a
uma presença, o segundo a uma ausência. [...] a simulação põe em causa a diferença do ‘verdadeiro’ e do ‘falso’,
do ‘real’ e do ‘imaginário'. [...] Hiper-real, doravante ao abrigo do imaginário, não deixando lugar senão à
recorrência orbital dos modelos e à geração simulada das diferenças”. BAUDRILLARD, Jean. Simulacro e
simulação. p.8-10. Grifo nosso.
99
COLI, Jorge. Primeira Missa e Invenção da Descoberta. In NOVAES, Adauto (org.). A descoberta do homem
e do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.109.
50

expressivo” do processo de fabricação de realidades mitológicas oriundo das intrincadas


relações entre ciência e arte no século XIX que fez “com que o Descobrimento tomasse corpo
e se instalasse de modo definitivo no interior de nossa cultura”. O emolduramento da história
alcança sua realidade concreta e sensível com a tela que se tornará a verdade visual do
episódio narrado na Carta, revelando-se “um excelente objeto de análise para a compreensão
de procedimentos artísticos que dependem, em sua própria gênese, das contribuições
originadas no projeto ideológico mais geral, na própria natureza de uma história capaz de
engendrar o passado que se deseja”.100
O passado que se desejava se consubstancia na cerimônia da missa como evento de
refundação. O ato de batismo da nação seria, ainda de acordo com Jorge Coli, um “momento
prenhe de significados, que o projeto de construção de um passado histórico para o Brasil,
ocorrido no século XIX, saberia explorar”.101 Nesse sentido, Primeira Missa no Brasil, ao ter
sido gestada por intermédio da Academia Imperial de Belas Artes e por sugestão de seu
diretor Manuel José de Araujo Porto-Alegre (1806-1879) e concebida por Victor Meirelles de
Lima (1832-1903) a partir da leitura da Carta de Caminha, é um marco da pintura de história
no processo de invenção do Descobrimento do Brasil.102

100
COLI, Jorge. Primeira Missa e Invenção da Descoberta. In NOVAES, Adauto (org.). A descoberta do
homem e do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.107.
101
COLI, Jorge. Op. Cit. p.110.
102
Sobre a trajetória de Victor Meirelles ligada à produção da tela junto à Academia Imperial de Belas Artes e as
relações entre a Carta de Caminha, a arte e a história, diz Morettin: “O pintor matriculou-se na Academia
Imperial de Belas Artes em 1847, tendo como professores Félix Émile Taunay (Paisagem, Flores e Animais) e
Manoel de Araújo Porto-Alegre (Pintura Histórica). Em 1852, consegue o 7° prêmio da Viagem à Europa,
concedida pela Academia, desembarcando na Itália no ano seguinte. Permaneceu no continente até 1861,
trocando Roma e Milão por Paris em 1856. A estadia de Meirelles na Europa foi seguida de perto por Porto-
Alegre, principalmente 1854 a 1857, período em que foi diretor da AIBA. A correspondência entre os dois nestes
anos foi intensa. [...] esta indica o monitoramento que o Instituto fazia de seus discípulos durante a vigência da
bolsa, apontando o que e com quem o pintor estudaria, além dos museus, bibliotecas, liceus e sociedades
literárias que deveria frequentar e conhecer [...]. Foi de Porto-Alegre a sugestão para que o pintor buscasse
inspiração na leitura da carta de Pero Vaz de Caminha, sendo responsável também pela indicação do tema do
trabalho a ser realizado, a saber, a primeira missa feita no território na presença dos índios. O mesmo Porto-
Alegre que em 1856 reclamava da ausência de imagens que representassem nossa história e da falta de apego ao
passado por parte das gerações mais jovens, colaborou na construção de um dos mais importantes marcos
iconográficos da fundação do Brasil e da pintura de História do século XIX. Seguindo um trajeto similar ao da
historiografia, observamos nas artes plásticas do período a elaboração e a eleição de um conjunto de referenciais
para se entender o nascimento do país. No caso da pintura, trata-se de escolher e selecionar as imagens. No
entanto, e isto é fundamental, este processo ancora-se na História, como a indicação da carta de Caminha parece
ser suficiente para indicar. Nesse sentido, o processo de construção é duplo e com interfaces: da História nasce a
Arte e da Arte nasce a História.” MORETTIN, Eduardo Victorio. Op. Cit. p.147-148. Grifo nosso.
51

Figura 2: Primeira Missa no Brasil, 1860, Victor Meirelles de Lima. Óleo sobre tela. 268x356cm. Museu Nacional de Belas
Artes. Rio de Janeiro, RJ.

É a partir desta tela elaborada pelo pintor durante sua viagem à Europa que a invenção
da descoberta ganha sua imagem de nascimento, onde o descobrimento ganha as dimensões103
de um acontecimento fundador. Ela é fruto de um contexto de delineamento dos mitos da
nacionalidade por meio da projeção de um imaginário de fundação que será rememorado em
momentos de refundação da experiência histórica brasileira. Quando a missa será
transformada em nova cerimônia de posse e assim se converte em mais um dos elementos do
dispositivo de emolduramento que possibilitariam novas performances de reativação do
descobrimento, como no caso do “Raid” a Porto Seguro que o presente trabalho está a
delinear.
Ao tratar das “acusações de plágio” que foram feitas à tela de Meirelles, Jorge Coli nos
lembra de que “os pressupostos culturais sobre os quais repousava o gênero da pintura de
história revelavam-se tão constitutivos da imagem quanto cores e pinceladas. A arte do século
[XIX] mantinha um diálogo denso com a história da arte”. Dentro da pintura de história, o
procedimento de pintar por citações seria um instrumento legítimo no qual os “achados
insignes das obras ilustres”, os temas e motivos que circulavam como cânones, seriam
incorporados à cultura visual como elementos de referência, prestígio e autoridade. Nesse

103
Jogando com as palavras, poderíamos dizer que esta tela de grandes dimensões (268x356cm) é uma grande
moldura da experiência histórica brasileira. Seu tamanho é uma das características do gênero da pintura de
história e essa grandeza visa impactar o olhar do espectador cuja presença é afetada pela dimensão do quadro.
Haja vista que este tipo de pintura objetivava ser instrumento de uma pedagogia cívica por meio do
enaltecimento de determinados marcos para a história da nação.
52

sentido, a citação, como referência ao passado, seria um modo de demonstrar “como aquele
elemento preexistente ressurge numa outra inter-relação”.104 O quadro Primiere messe en
Kabilie de Horace Vernet (1789-1863) exposto em 1855, do qual Meirelles teria buscado
inspiração, constituiria um tipo de paradigma no qual o aspecto da experiência visual ligado à
presença torna-se um instrumento da vontade de verdade. Segundo Jorge Coli, a Primeira
Missa de Vernet:
[...] tornava-se um paradigma enquanto resultado de um testemunho ocular. O pintor
francês vira uma cena equivalente, do ponto de vista histórico, àquela que se passa
no Brasil de 1500. A analogia impunha-se como instrumento de rigor e de verdade.
[...] Esta situação, na qual um outro pintor, inda mais de grande prestígio, era
testemunha e participante do fato histórico, introduz um aspecto suplementar na
‘verdade’ que Meirelles buscava: além da carta de Caminha, além do estudo da
natureza local, havia uma experiência visual contemporânea análoga àquela passada
em 1500, que permitia um reforço na verossimilhança da imagem. 105

O imperativo da analogia é uma das estratégias da vontade de verdade que impunha


uma associação entre a carta de Caminha, a missa, o enquadramento da natureza e do indígena
e a questão da presença, enquanto experiência visual, como elementos do dispositivo de
emolduramento que buscava imprimir um caráter de testemunho histórico à cena-cerimônia
que retrataria as origens do Brasil.
Ao comparar as missas pintadas por Vernet e Meirelles, Coli destaca, também, as
grandes distâncias existentes entre estas telas e apresenta as características da Primeira Missa
no Brasil elaborada pelo pintor catarinense. De acordo com o historiador da arte, Meirelles
emoldura o “episódio numa horizontalidade quase onírica”, posicionando a cena principal (o
altar e a cruz, ou seja, a missa) num plano entre o índio e a natureza, “integrando-a numa
suavidade atmosférica, num clima espiritualizado”. A cruz “longilínea, traça o eixo condutor
que leva o olhar para o alto, enquanto o horizonte abre-se no fundo como instrumento da
serenidade”. Se por um lado “Meirelles trata seus índios de maneira pouco descritiva, numa
concepção abstrata, fazendo-os desenrolar uma cadência sucessiva de gestos”, por outro lado,
o cenário indicaria o valor atribuído à natureza como símbolo identitário. O monte ao fundo
sinaliza para a natureza histórica desta paisagem/cenário. Espiritualidade, natureza e história
se fundem na cerimônia ao ar livre onde comungariam “harmoniosamente” as raças, como em
um “templo natural” onde se daria a “construção de uma natureza nacional” que representaria

104
COLI, Jorge. Op. Cit. p.111-113.
105
Idem, ibid. Grifo nosso.
53

o triunfo da propagação do projeto católico. Assim, sob o signo da cruz, Meirelles emoldura
uma imagem para a origem e fundação da nação que se estava construindo.106
O futuro desta pintura, como a “verdade visual” de um dos episódios do
descobrimento, é ser convertida em uma imagem-referência que será amplamente difundida e
reinterpretada em diferentes momentos. Dentre as diversas reinterpretações que foram
efetivadas em relação a Primeira Missa no Brasil, destaca-se O Descobrimento do Brasil
(1937) filme de Humberto Mauro. É por intermédio deste múltiplo jogo de referências (a
historiografia, a tela e filme,) que a “verdade da história” oriunda da Carta de Caminha
encontrará a “verdade visual” nas invenções do descobrimento anos de 1930-1940:
Essa verdade perpetuar-se-á em outras obras relevantes de nossa cultura: quando
Humberto Mauro realiza seu filme O descobrimento do Brasil, em 1937, guiado
pelo roteiro oferecido por Caminha, não poderá evitar de reconstruir, diante da
câmera, a cena idealizada por Victor Meirelles. O nacionalismo dos tempos de
Getúlio Vargas vai continuar os mitos do século XIX numa prolongação ideológica
que se quer verdade da história.107

De acordo com Eduardo Morettin, o filme pretendia ser uma visualização da carta de
Caminha, além de recorrer a diversas pinturas para a composição de seus planos e sequências,
em especial o quadro de Meirelles para a cena da primeira missa.108 Exemplo de filme de
história, por ter colocado em primeiro plano o “documento” que a Carta representa O
Descobrimento do Brasil de Mauro “faz parte de um projeto que se julga portador da maneira
correta de tratar a história cinematograficamente, proporcionando a visualização do fato
histórico”.
Por diversas vezes a narrativa do filme colocaria em primeiro plano o “olhar do
escrivão”. Esta estratégia procuraria dar veracidade ao discurso fílmico, ao mostrar Caminha
no papel de testemunha ocular do fato. Nesse sentido, será o “olhar do viajante” que estará no
primeiro plano, estabelecendo visualmente o espaço onde ocorrerá o contato e o cenário onde
a história se desenrolará.109 Desta forma, podemos compreender esse “olhar” como uma
perspectiva a compor os elementos do dispositivo de emolduramento presentes na realização

106
Idem, p.113-115.
107
Idem, p.116.
108
MORETTIN, Eduardo Victorio. Produção e formas de circulação do tema do Descobrimento do Brasil: uma
análise de seu percurso e do filme Descobrimento do Brasil (1937), de Humberto Mauro. Revista Brasileira de
História. São Paulo, v.20, n°39, 2000, p.136.
109
MORETTIN, Eduardo Victorio. Op. Cit. p.156-157.
54

do “Raid” a Porto Seguro, quando os jornalistas em viagem ao local da “descoberta”


acabariam por adotar esse “olhar viajante”, como veremos nos próximos capítulos.
O filme se insere “em uma tradição já estabelecida, sendo apresentado pelos gestores do
projeto como seu portador e herdeiro”.110 Ele foi produzido pelo Instituto do Cacau da Bahia e
teria sido pensado inicialmente como um curta-metragem sobre a região cacaueira. Mas o
potencial desta história para a “educação cívica das massas” alavancou sua produção para o
patamar de uma obra de referência que se destinava a um projeto mais amplo de usos do
cinema para fins educativos.111 A recorrência à carta de Caminha, à tradição historiográfica e
à pintura de história foram utilizadas no sentido de conferir maior força à obra como forma de
reforçar o aspecto educativo preconizado pelos autores do projeto.
Morettin destaca o papel de outro elemento que também reforça esse aspecto. A música
que Villa-Lobos teria composto especialmente para o filme de Humberto Mauro, ofereceria
material complementar para atuar nas dimensões do sentimento, acentuando ou reforçando
determinados momentos da interpretação.112 Desta forma, lembramos que a experiência
histórico-social constitui-se dos outros sentidos da percepção humana. Não só a visualidade
estará presente no “Raid” em comemoração ao descobrimento, os elementos auditivos e os
efeitos sonoros comporão a paisagem dos sentidos que a Revoada mobilizará.
Para Tatyana de Alencar Jacques, a investigação da constituição da “versão audiovisual
do mito de fundação” deve levar em consideração a especificidade do momento em que o
filme é desenvolvido. O filme foi produzido e lançado no contexto daquilo que certa
historiografia convencionou chamar de Era Vargas. Nessa conjuntura, o que estava em jogo
era “o sentido e legitimação do Brasil enquanto unidade política, a articulação e constituição
da continuidade entre o presente e o passado e um mito fundador único para o país com
características discrepantes assumindo função estratégica”. A autora ressalta que “enquanto
mito, [a] cada vez que o episódio da Descoberta é retomado, ele é reelaborado. Sua estrutura é
atualizada e novos significados emergem”.113 Ao buscar compreender as referências

110
Idem, p. 136.
111
Idem, p.153 e 156. A cidade de Porto Seguro esta localizada ao sul da cidade de Ilhéus, centro econômico e
político da região produtora de cacau, distando em linha reta 184 km de uma cidade a outra e 307 km pela BR.
101 que não existia à época do “Raid”.
112
Idem, p.159-160.
113
JACQUES, Tatyana de Alencar. O “Descobrimento do Brasil” (1937): Villa Lobos e Humberto Mauro
nas dobras do tempo. Tese (Doutorado – Antropologia Social) Universidade Federal de Santa Cataria.
Florianópolis, 2014, p.46.
55

articuladas pelo filme, quando tematiza as técnicas de reprodução que a cadeia de traduções
mobiliza na narrativa cinematográfica, Jacques nos oferece uma perspectiva teórica que se
aproxima da forma como estamos compreendo a problemática da invenção do
“Descobrimento do Brasil” como dispositivo de emolduramento.

Figura 3: Foto da cena da primeira missa para o filme O Descobrimento do Brasil. 114

Articulando o pensamento de Lévi-Strauss, Marshall Sahlins e Gilles Deleuze, ela nos


diz que a narrativa de O Descobrimento do Brasil remontaria a inscrição do filme a um grupo
de narrativas que articularia mito, estrutura, evento e repetição diferenciada. Com Lévi-
Strauss, compreende a narrativa como um “sistema de transformações míticas”, onde o mito é
concebido como uma forma de criação de significado e ordem; já a estrutura seria um
mecanismo de construção de modelos. Com Sahlins, compreende que “o mito deve se
atualizar” já que “a ordem social só se reproduz na mudança”. Nesse sentido entende que “a
estrutura não consiste apenas de um esquema sincrônico. Ela se dobra no tempo”. Para
compreender a atualização dos esquemas culturais, Sahlins utiliza a noção de “estrutura da
conjuntura” onde o “evento” aparece como noção de mediação entre o acontecimento e a
estrutura. “O evento consiste naquilo que é dado como interpretação de um acontecimento”.
Com Deleuze, aponta para a “questão do domínio da repetição diferenciada, no qual, uma vez

114
Idem, p.43. Foto cedida à autora pelo Centro Técnico Audiovisual (CTAv.) ligado ao Ministério da Cultura.
56

que há falência do princípio da identidade, a repetição implica em singularidade e


movimento”.115
Retomando a questão dos desdobramentos da Carta de Caminha como narrativa matriz
do imaginário de fundação do Brasil, para fecharmos este capítulo, destaca-se a cena da
Primeira Missa no filme de Mauro e de como está imagem teve como referência a tela pintada
por Meirelles. O emolduramento da história do Brasil por meio do descobrimento encontra na
cerimônia da Primeira Missa seu elemento de origem para as imagens de refundação. Nesse
emaranhado de repetições diferenciadas, o tema do “Descobrimento do Brasil” foi sendo
consolidado como dispositivo de emolduramento cuja historicidade marca a singularidade de
suas atualizações. Estas atualizações do mito fundador mobilizam as imagens de referência
nas repetições diferenciadas que agenciam um tipo de evento articulador que estrutura o
acontecimento singular na conjuntura específica de sua atualidade.

115
Idem, p.44-45.
57

CAPÍTULO 2: O REDESCOBRIMENTO NAS ASAS DO BRASIL NOVO: SINAIS DA


MODERNA CIVILIZAÇÃO, CARAVANA E PAISAGEM.

Figura 4: Cidade baixa de Porto Seguro, árvores e canoas. 116

Sob o Império e a primeira Republica crescemos longitudinalmente, á orla das águas


atlânticas. O Brasil vivia voltado para fora, e o sentido de sua cultura era o da
evasão, ou retorno ao continente dos descobridores. Com a revolução de trinta, o
movimento de revigoração nacionalista, e o advento do Estado Novo, que veio dar
forma política a tendências profundas da nacionalidade, modificaram-se esses rumos
incertos e dispersivos, e a civilização brasileira tomou o caminho dos paralelos,
restaurada em suas raízes históricas.
Getúlio Vargas117

116
Fotografias Série Inventário – diversos bens em Porto Seguro, BA. Arquivo Central do IPHAN, Rio de
Janeiro. Essa foto foi feita pelo fotografo alemão Erich Joachim Hess (1911-1995) algum tempo após o término
do “Raid” a Porto Seguro e sua realização foi uma ação de desdobramento das festividades de 3 de maio. Sobre
essas ações veremos mais à frente no capítulo 3, quando tratarmos das questões da patrimonialização do
descobrimento.
117
In. Sob os céus de Porto Seguro, 1940, p.IX.
58

2.1. O Novo Descobrimento do Brasil: em busca dos Sinais da Moderna Civilização.

Neste tópico iremos analisar a perspectiva que é adotada em uma série de discursos e
práticas no período do Estado Novo que o compreendem como um momento de “Novo
Descobrimento o Brasil”. Como vimos, essa perspectiva de “redescobrimento do Brasil” foi
trabalhado por Ângela de Castro Gomes118 ao tratar do papel dos intelectuais na interpretação
da história do país e de como estes elaboravam o projeto do novo regime político a partir de
uma complexa articulação entre as dimensões da temporalidade e da memória social por meio
da configuração de uma narrativa histórica de fundação de um novo Brasil. Nesse sentido,
adentraremos agora nos significados que essa problemática adquire no contexto de realização
da “Revoada em Comemoração aos 439 anos do Descobrimento do Brasil”.

O “Raid” a Porto Seguro será um ato de relevo nacional

Dentre os inúmeros discursos que se coadunam com essa forma de ver e pensar a
realidade daquele momento e que estão presentes em Sob os céus de Porto Seguro destaca-se,
para as análises que se seguem, o artigo O novo descobrimento do Brasil de autoria de
Joaquim de Mello119 cujo título é a explicitação desse ponto de vista. Neste texto de seis
páginas são expostos alguns dos elementos com os quais poderemos problematizar e
desenvolver nosso argumento central de que o “Raid” e tudo o que ele significa estão na base
dessa perspectiva que promove as ações de comemoração das Asas do Brasil Novo ao
patamar de um redescobrimento do país a partir de uma busca pelos “sinais da moderna
civilização”. Seria esse o principal pano de fundo para a realização do empreendimento mais
significativo de festejos do descobrimento que será descrito pelo autor como “um ato de
relevo nacional”:
O ‘raid’ de avião a Porto Seguro vae ser a mais significativa comemoração da data
magna do nosso país, não só deste ano, como desde a sua independência. Se depois
de nação livre é que o Brasil poderia festejar condignamente sua máxima efeméride,
como afirmação de vontade própria ou expressão de espírito autônomo, a verdade é
que não o fez senão em seu 4° centenário, a 22 de abril de 1900. Fê-lo, porém,
apenas com intenso brilho literário, através de larga divulgação de trabalhos

118
GOMES, Ângela de Castro. O Redescobrimento do Brasil. In. OLIVEIRA, Lúcia Lippi; VELLOSO,
Mônica Pimenta; GOMES, Ângela de Castro. Estado Novo: ideologia e poder. Rio de Janeiro: Zahar Ed. 1982.
119
Até o presente momento não foi possível identificar de forma precisa quem seria Joaquim de Mello. Cabe
salientar que essa falta de nota biográfica não diminui a relevância do discurso presente neste trabalho e que,
portanto, sua análise será reveladora do espaço de experiências e do horizonte de expectativas que presidiam a
realização do “Raid” a Porto Seguro.
59

históricos, mas sem um ato de relevo nacional, como há de ser o ‘raid’ de 1° de maio
entrante, tamanha a sua riqueza de símbolos, sugestões e ensinamentos.120

Nas palavras de Joaquim de Mello é possível perceber como o ato de comemorar a


data magna do país adquire a significação de um ato a partir do qual se pôde afirmar uma
vontade própria enquanto nação livre e autônoma e que se pauta pela riqueza de símbolos e
ensinamentos que estariam presentes no seu acontecimento fundador, sendo este valorado
como a origem de sua história. Outro elemento digno de destaque e que se soma a esse tipo de
discurso é a leitura de que só no “4° centenário, a 22 de abril de 1900” é que o descobrimento
teria ganhado a devida relevância desde a Independência do Brasil em 1822. Só que
diferentemente do “Raid” a atuação no sentido de festejar a data naquele contexto teria se
restringido à divulgação de trabalhos históricos e científicos e celebrações no Rio de Janeiro.
Já a “Caravana aérea” que será realizada na primeira semana de maio para a cidade de Porto
Seguro representaria as “asas da Pátria Brasileira” que iriam sobrevoar “seu berço
humilde”.121
Como se pode notar, este artigo participa do topoi da “Anunciação do ‘Raid’” presente
na cobertura do acontecimento jornalístico e que faz parte da estruturação do livro-fonte. Mais
precisamente este artigo fecha a seleção de textos que são organizados sob aquele título. A
lembrança dessa localização na estrutura de Sob os céus de Porto Seguro serve para destacar a
questão da temporalidade que está presente na posição que o topoi imprime. Ou seja, sua
estratégia discursiva e narrativa toma forma a partir da projeção de um evento que irá
acontecer no futuro, ao mesmo tempo em que se fundamenta na interpretação e valorização de
uma experiência histórica passada. E é a partir dessa posição analítica em que situamos a
fonte que podemos compreender boa parte dos discursos que encontraremos neste tópico. Ao
que prossegue o autor anunciando o “Raid”:
Da gigantesca revoada participarão dezenas de aviadores civis do Rio, São Paulo,
Grande do Sul e Minas Gerais. Representarão eles, legitimamente, as asas da Pátria
Brasileira sobre o seu berço humilde. E, como patrícios de Bartholomeu de Gusmão
e de Santos Dumont, representarão, ainda, a própria aviação – o mais eficiente
veículo de paz e a mais poderosa arma de guerra dos nossos tempos, porque é o que
mais rapidamente aproxima e dizima os povos. 122

Entre o velho e o novo: os sinais da moderna civilização

120
MELLO, Joaquim. O novo descobrimento do Brasil. In. Sob os Céus de Porto Seguro, p.79.
121
MELLO, Joaquim. Op. Cit. p, 79-80.
122
Idem, p, 79-80.
60

Essa ambiguidade traduzida pela dupla significação que o avião adquire em suas
palavras deve ser compreendida dentro do contexto de realização da revoada. É preciso
lembrar que este evento que está sendo promovido foi realizado no ano de eclosão da Segunda
Guerra Mundial e que é durante a Grande Guerra dos anos de 1914-1918 que o avião é
utilizado pela primeira vez como arma.123 Por ora cabe destacar que sendo o avião o principal
instrumento desse tipo de atividade que é o “Raid” e sendo este o tipo de ação comemorativa
proposta, faz-se necessário questionar sobre quais teriam sido as motivações para a escolha do
avião como símbolo da modernidade dos novos tempos que se buscava.
Dessa primeira ambiguidade em que constitui ter o avião como símbolo do “Raid a
Porto Seguro” pode-se depreender a existência de outra tensão no espaço da experiência e no
horizonte de expectativas na qual estão imersos os agentes de promoção dessa atividade. A
tensão a que me refiro pode ser explicitada pela oposição entre o velho e o novo que marca
boa parte dos discursos presente nestes acontecimentos. Nesse sentido, cabe falar aqui de uma
investigação que se paute pela semântica histórico-política destes conceitos antitéticos
assimétricos, como nos ensina Koselleck124, no qual a análise das definições e usos dos
significados destes termos torna-se chave de interpretação da história que estamos
construindo. Essa tensão estruturante entre o novo e o velho aparece nas palavras de Joaquim
de Mello através das diferenças e semelhanças que existiriam entre os contextos dos
acontecimentos de 1500 e aqueles que estavam para se efetivar em 1939.
Não partirá a aérea caravana da metrópole do velho Reino, que há quatro séculos,
dominava a navegação marítima, e sim da capital da então colônia, transformada
hoje na maior nação da América Latina. Será constituída dos mais aperfeiçoados
aparelhos de comunicação entre os povos, contrastando flagrantemente com os
antigos navios a vela que formavam a frota de Cabral. Mas será comandada também
por um almirante português, o intrépido ancião Gago Coutinho, rijo como um
rebento genuíno do cerne luso, celebrizado com a primeira travessia pelos ares do
Atlântico Sul. E destina-se à nesga do litoral que, há 439 anos, pisada pelos
marinheiros de Cabral, nos revelou à surpresa do mundo. 125

“Entretanto”, constata Joaquim de Mello, “o que os aeronautas em festa vão encontrar


em Porto Seguro ainda é o Brasil colonial, pobre, abandonado, quase sem sinais da moderna
civilização”.126 Para a construção desse novo descobrimento do Brasil é preciso buscar os

123
OLIVEIRA. Tharles. (Org.) Asas a Porto Seguro: história e memória do antigo campo de aviação do
Arraial D’Ajuda. Jundiaí: Paco Editorial, 2019, p.29.
124
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006, p, 191-232.
125
MELLO, Joaquim. Op. Cit. p, 80.
126
Idem, p. 80. Grifo nosso.
61

sinais que indicariam o pertencimento ou não da nação brasileira ao concerto das civilizações
modernas. Isso significa que esses sinais foram buscados na cidade que representaria o
momento da fundação da história do país, mas que não teria sido encontrado em Porto Seguro
nada que lhe atestasse como cidade moderna, ao contrário, de acordo com o autor, ela estaria
ainda presa a um estágio anterior de nossa história.

Da carta de Caminha às reportagens impressionistas: a profecia do escrivão e os cronistas do


redescobrimento

Contudo, podemos questionar de que forma e a partir de quais referências Joaquim de


Mello fundamenta suas impressões sobre Porto Seguro? Como ele teria chegado a essas
conclusões? Haja vista que, ao que tudo indica, ele não teria participado do “Raid” no sentido
de que não estaria presente na cidade quando das ações de celebração do descobrimento em
maio daquele ano. Os sinais ou a sua falta em relação à percepção da modernidade ou não da
cidade teria se baseado nas impressões que o autor teve ao ler os jornais da época que estavam
circulando as notícias de preparação do próprio “Raid a Porto Seguro”.
Essa situação demonstra a capacidade de circulação das reportagens que estavam sendo
veiculadas e reforça nosso argumento de que o “Raid” foi construído como um tipo de
acontecimento jornalístico. Com isso percebe-se a força que os Diários Associados detinham
enquanto conglomerado de comunicação capaz de produzir e difundir essas histórias. Pois é
lendo jornais que Joaquim de Mello constrói as impressões que baseia as análises que faz e a
partir das quais emite sua visão sobre o grau de civilização do Brasil, tendo como referência a
série de reportagens que se configuraram a partir da “Caravana dos Diários Associados”:
É o que nos disse, numa série de reportagens impressionistas, um redator dos
DIÁRIOS ASSOCIADOS, encarregado de erguer sobre o Monte Paschoal, primeiro
ponto da nova terra visto pela gente de além-mar, as bandeiras do Brasil e da Cruz
de Cristo, a fim de serem saudadas pela esquadrilha aérea. E, como para a sua
escalada heroica teve de viajar pelas zonas circundantes, as suas impressões se
estenderam por toda a área onde assenta o que os descobridores batizaram como ilha
de Vera Cruz. Invertendo inteiramente o papel de Pero Vaz Caminha, Edmar Morel
antecipou a descrição do local histórico à chegada dos novos navegantes. E pintou-a
com cores tão diversas das do seu primeiro cronista que se percebe claramente a
diferença entre o sonho e a realidade. Lendo-se o jornalista carioca, conclui-se que
falhou a profecia do escrivão da esquadrilha cabralina. Se naquela terra, segundo o
seu dizer pitoresco, ‘querendo aproveitar, dar-se-á de tudo’, quase nada se
aproveitou, porque tudo lhe falta, no que concerne à vida civilizada, da qual só tem
noticia de 15 em 15 dias, quando recebe a mala postal. 127

127
Idem, p, 80-81. Caixa alta no original. Grifo nosso.
62

Interessam-nos dessa longa citação os elementos que dizem respeito às impressões


causadas por estes relatos a Joaquim de Mello e ao fato deste se basear nestas reportagens
para tratar daquilo que falta ou concerne “à vida civilizada.” Por exemplo, é a partir das
leituras desse “segundo cronista”, que teria descrito os locais históricos e pintado com cores
tão diversas das do “primeiro cronista” a realidade das “zonas circundantes” por onde
“passaram os descobridores” que ele pôde interpretar e “perceber claramente a diferença entre
o sonho e a realidade”. E é por concluir que teria “falhado a profecia do escrivão da esquadra
cabralina” que ele pôde dizer:
É comovente e revoltante, ao mesmo tempo, o atraso de Porto Seguro e das
localidades circunvizinhas. Não têm luz, calçamento, estradas, hospital, indústria,
comércio, instrução, que assegurem o trabalho, o conforto, o bem-estar, o progresso,
a cultura de suas populações. O grosso dessas vegeta no mais característico
primitivismo, vivendo quase que apenas de caça, pesca e pequena lavoura. E alguns
dos seus habitantes, descendentes de índios, nem conheciam a Bandeira Nacional. 128

Descaminhos da civilização brasileira: atraso, espetáculo de tristeza e progresso de fachada.

O atraso de Porto Seguro em relação às “conquistas do progresso” que o mundo


moderno prometia servirá de base para Joaquim de Mello questionar uma determinada forma
de compreender a história da civilização brasileira. A partir desse questionamento podemos
perceber como o autor se posiciona num debate que estava sendo feito à época. A perspectiva
de que a marcha evolutiva da história do Brasil teria se dado unicamente no litoral, quando
contrastada com o desenvolvimento de seu núcleo inicial, seria jogada por terra. O argumento
fundado no conceito de que a civilização brasileira só se manifestaria no litoral é criticado a
partir do questionamento dos significados do atraso da cidade onde o Brasil teria sido
descoberto:
Que significa esse estacionamento de Porto Seguro? Antes de tudo, um desmentido
vivo ao conceito esposado por sociólogos, economistas, historiadores e políticos de
que a civilização brasileira só se manifesta no litoral. Pois ali está o núcleo litorâneo
do Brasil, ponto de partida de sua evolução histórica, relegado a uma situação
deplorável, sem as grandes conquistas do progresso, que ostentam diversas cidades
centrais. Dir-se-ia que na sua marcha evolutiva o país nunca mais voltou os olhos
nem o pensamento para a estaca ‘0’ da estrada aberta pelos seus descobridores e
colonizadores.129

Porto Seguro se torna “um desmentido vivo” ao conceito de evolução da civilização


brasileira que Joaquim de Mello estaria combatendo e que o “Raid” de alguma forma

128
Idem, p, 81.
129
Idem, p, 81.
63

representa. Esse primeiro significado do estacionamento do ponto de partida da evolução


histórica do Brasil, que percebe nas localidades e em suas populações características do
“primitivismo”, leva o autor a percorrer, através das páginas dos jornais, a estrada aberta pelos
“descobridores”. Nos “caminhos da civilização brasileira” o que se veria “infelizmente” seria
um “espetáculo de tristeza e desolação”, em contraste com a “alegria e saúde de raros
núcleos” que o nosso “progresso de fachada” transformaria em alegorias para os olhares
estrangeiros.
O facto é que Porto Seguro, no seu abandono pelos governos de todos os regimes,
teve a mesma sorte que outros muitos municípios, tanto do litoral como do interior
do país. O nosso progresso é, efetivamente, de fachada nas grandes capitais, não só
para inglês, como para todos os estrangeiros veem. O que vae por este Brasil a
dentro e a fora é um espetáculo de tristeza e desolação, no aspecto rotineiro e
desleixado da maioria das suas cidades, vilas, aldeias, fazendas e sítios. Raros os
seus núcleos populosos, excetuados os dos três ou quatro Estados mais prósperos,
que apresentam sintomas de vitalidade, saúde, alegria e adiantamento.130

O autor traz mais exemplos desse “progresso de fachada” apresentando outro quadro
dos “espetáculos de tristeza” que se veria pelo Brasil. Cita uma das “últimas edições” de “O
Observador Econômico e Financeiro” que teria publicado um “magistral trabalho sobre o rio
São Francisco, estudando-o sob todos os pontos de vista.” Joaquim de Melo diz que naquela
“esplêndida monografia se resumem as condições das cidades ribeirinhas.” Ao mesmo tempo
em que elogia a perspectiva que o autor do estudo defende de que esse “formidável curso
d’água” seria o “grande caminho da civilização brasileira”, critica-o a partir da constatação de
que esse caminho “terá sido apenas no sentido da penetração das nossas selvas, pois que essas
continuam quase como as deixaram os bandeirantes e mineradores.” Cita dados sobre a renda
das populações da região e comenta que “parece ser essa autoridade [os juízes de paz] o
principal produto da vasta região, para mantê-la na paz dos pântanos, sob o julgo do
coronelismo conluiado com o cangaço”.131

Descortinar o panorama de um Brasil autêntico: pessimismo, ufanismo e ilhas de civilização.

Nessa busca pelos sinais da moderna civilização prossegue Joaquim de Mello dizendo
que não seria preciso ir tão longe: “Aqui bem perto, no Estado do Rio, não obstante o seu
desenvolvimento agrícola-industrial [...], ainda há municípios paupérrimos.” E pergunta “que
podem fazer as respectivas prefeituras?” Nada, de acordo o autor, a não ser distribuir

130
Idem, p, 81-82.
131
Idem, p. 82.
64

“‘caraminguás’ entre parentes, amigos e companheiros, através de pequenos empregos, obras


precárias e maus serviços.” E que por isso o “Departamento da Administração das
Municipalidades” não deveria exigir muito dos municípios “pois essas e outras míseras
comunas não são culpadas de sua existência, originária de erros seculares e nunca corrigidos
da divisão territorial do país”.132
Seria esse quadro “Pessimismo? Exagero?” questiona de forma irônica Joaquim de
Mello. Essas perguntas fazem parte da retórica adotada pelo autor e que lhe servem para
marcar as diferenças entre esse Brasil e o Brasil Novo que se acredita estar construindo. A
“eloquência dos números” seria convocada para “descortinar o panorama autêntico do Brasil,
sem as fantasias nem os ditirambos do ‘por que me ufanismo’”. Joaquim de Mello se opõe
aqui ao horizonte de expectativas predominante a uma determinada forma de interpretar a
história e conceber o futuro do país que se referiria ao livro de Afonso Celso denominado
“Porque me ufano do meu País”.133
Retomando o pessimismo aparente, o Joaquim de Mello afirma que “certamente, esse
panorama, concretizado em dados estatísticos, será pior que o descrito pelas palavras mais
amargas”. O uso de dados estatísticos resultantes dos “inquéritos procedidos pelo Conselho
Técnico de Economia e Finanças do Ministério da Fazendo em todos os municípios
brasileiros” servirá de base para os estudos da “Conferência Econômica Nacional” e que
seriam utilizados para “organizar o plano geral da solução dos nossos problemas”. 134
É a esse processo de “descortinar o panorama autêntico do Brasil” através do
levantamento e utilização de dados para o conhecimento e planejamento da realidade nacional
que será ovacionado por Joaquim de Mello como equivalente ao “Novo Descobrimento”. As
iniciativas do Estado Novo deveriam caminhar na direção da integração dos destinos da
jovem nação. Se em 1500 Pero Vaz de Caminha supôs que essa “imensa terra” era uma ilha,
em 1939 não teríamos mais que apenas algumas poucas “ilhas de civilização”. Esse
diagnóstico inicial traçado nas páginas de seu artigo estabelece a necessidade de que o Brasil
precisa conhecer a si mesmo para que haja a superação dos problemas existentes.

132
Idem, p. 82-83.
133
CELSO, Afonso. Por que me ufano do meu país! 1900. Afonso Celso proclama as grandezas e o futuro do
Brasil a partir de um otimismo que vai ser criticado por Joaquim de Mello. O livro de Afonso Celso também tem
relação com o tema do descobrimento do Brasil, segundo ele, “As páginas que ai vão – escrevi-as para vós, meus
filhos, ao celebrar a nossa Pátria o quarto centenário do seu descobrimento.” p. 8.
134
MELLO, Joaquim. Op. Cit. p. 83.
65

Essa é, sem duvida, uma das maiores e melhores iniciativas do Estado Novo. Virá
dar a conhecer ao Brasil o que o Brasil é. Equivalerá a novo descobrimento da terra
imensa que os nautas lusos supuseram ser uma ilha, mais que, até agora, tem apenas
algumas ilhas de civilização no oceano verde das suas matas. Acabará com as falsas
noções generalizadas das nossas riquezas fabulosas e das nossas possibilidades
inesgotáveis, para nos inspirar o conceito positivo dos nossos verdadeiros valores e
das nossas exatas reservas, porque a uma nação jovem e pujante de seiva vital é
preferível a consciência da realidade às miragens de grandezas. E norteará
doravante, a ação dos nossos dirigentes no sentido dos legítimos interesses e
necessidades nacionais, desviando-os dos empreendimentos vultosos e das obras
sumptuárias que as capitais cada vez mais deslumbrantes reclamam e que os sertões
até agora desprezados pagam.135

O processo de autoconhecimento pelo qual o Brasil precisava passar tinha como uma de
suas etapas a transformação das “falsas noções” em “verdadeiros valores”. Para tanto,
recomendava-se a inspiração em conceitos positivos no qual era preciso manter a sobriedade
frente às promessas de “riquezas fabulosas” e “possibilidades inesgotáveis”. Para aquele que
em 1939 está buscando os sinais da modernidade, 39 anos depois do lançamento do livro de
Afonso Celso, as “miragens de grandeza” que permeiam “nossas generalizações” não
serviriam mais para nortear os “interesses e necessidades nacionais” nem o sentido da ação
dos “nossos dirigentes”. Sendo assim o Brasil precisaria deixar para trás um passado de atraso
que permeia os espetáculos de tristeza espalhados por seu território e voltar suas energias para
a transformação destas realidades por meio da ação dos poderes instituídos. Portanto, para
cumprir com está etapa de transformação da civilização brasileira que se apresentava, o
principal valor que seria necessário era a “consciência da realidade” de nossas “ilhas de
civilização”.

O resgate da dívida de honra com a velha cidade: do menosprezo à monumentalização

O “Raid” ao local do “Descobrimento do Brasil” serve-lhe tanto para parabenizar as


iniciativas do Estado Novo, como também lhe proporciona elementos com os quais interpreta
a história do país a partir dessas ilhas de progresso dispersas pelo território. A tradução dessa
metáfora espacial do grau de desenvolvimento civilizacional para sua dimensão temporal
pode ser averiguada pela caracterização histórica da cidade de Porto Seguro como se
pertencendo ainda ao Brasil colonial. O modo como essa dispersão de sinais civilizatórios é
compreendida pelo autor, a partir do retorno ao seu núcleo original, leva-o a considerar a
Revoada das Asas como uma oportunidade impar de “resgatarmos a dívida de honra nacional
com a velha cidade”.

135
Idem, p. 83-84.
66

Ainda bem que a esses inquéritos reveladores do país antecede a soberba revoada a
Porto Seguro, pois os brasileiros que dela participarem, de regresso aos lugares em
que exercem as suas atividades, serão outras tantas vozes clamando que a nação
precisa integrar-se nos seus destinos, para que não continue indiferente ao ponto de
menosprezar o próprio berço, guardado apenas pelas caricias bravas das ondas. E
que voltam decididos a pleitear junto aos poderes públicos, como marco condigno
da nova era de nossa evolução, a ser iniciada pelo programa reconstrutor da
Conferência Econômica Nacional, a elevação de Porto Seguro a monumento
histórico, à semelhança do que se fez com Ouro Preto e os melhoramentos à altura
de suas tradições, para resgatarmos a divida de honra nacional com a velha cidade,
que já na terceira República ainda lembra o Brasil-colônia.136

Para revelar um Brasil novo era preciso antes inquirir sobre o estágio evolutivo de suas
origens e assim poder projetar o destino de sua integração à civilização moderna. Os
participantes do “Raid” teriam uma missão diferente após regressarem do acontecimento que
estava por vir. Para o Brasil chegar ao futuro daquele novo presente era preciso primeiro
pousar no “Brasil colônia” e trazê-lo para a “terceira República”. Se os sinais da modernidade
faltavam à cidade de Porto Seguro, ao menos caberia aos poderes públicos à iniciativa de
preservar-lhes os monumentos históricos. Essa dívida que a história nacional teria para com a
“velha cidade” seria fruto da indiferença e do menosprezo de diferentes regimes. Redescobrir
o Brasil significaria então valorizar suas origens e agir para transformá-la. Nesse sentido, a
missão de resgatar o berço da civilização brasileira teria se transformado no “marco condigno
da nova era de nossa evolução”.
Na próxima etapa de nossa investigação vamos acompanhar os relatos e descrições de
uma das missões de resgate histórico que vão ser promovidas pelo “Raid” nesse contexto de
redescobrimento do Brasil durante o Estado Novo. Para que a valorização das origens possa
se efetivar será preciso o “desbravamento” dessa primeira “ilha” onde foi fincada a Cruz de
Cristo em 1500 e que no presente da anunciação da revoada de 3 de maio de 1939 havia se
transformado no símbolo do atraso e do abandono. A narrativa da longa Caravana que está
por vir nos propiciará “ver e sentir” a paisagem do “oceano verde das matas” que esconderiam
as riquezas da história do Brasil ao relegarem seu lugar de fundação ao esquecimento.

136
MELLO, Joaquim. Op. Cit. p, 84.
67

2.2. A Paisagem do Descobrimento: a Caravana dos Diários Associados ao Monte Pascoal

Monte Paschoal.137

Como um bando de gaivotas


De asas gigantes, sobre o mar
Vencendo as noites e procelas
Transpondo pélagos sem termos
As caravellas gloriosas
Chegaram aqui...

E aos olhos dos marinheiros


Surgindo das próprias ondas
Apareceu, no poente,
O lindo e pomposo monte
Paschoal...

E ficou para sempre a sonora palavra


A relembrar o feito singular:
O Brasil entrou na História
Ganhou mais brilho Portugal...

A série de reportagens elaboradas por Edmar Morel (1912-1989)138, durante a


“Caravana dos Diários Associados” descreve o itinerário feito pelo jornalista, conjuntamente
com outros componentes que se organizam para a empreitada, quando estes percorreram a pé,
a cavalo ou de barco “180 quilômetros” do litoral e da mata do sul da Bahia entre abril e maio
de 1939. A Caravana tinha o objetivo de hastear as bandeiras do Brasil e da Cruz de Cristo
(representando no “Raid” a bandeira de Portugal) no Monte Pascoal, por sobre onde os aviões
da revoada iriam passar em direção a Porto Seguro no contexto da comemoração dos 439 anos
do “Descobrimento do Brasil”.
Ao todo são dez reportagens assinadas pelo “enviado especial dos ‘Diários Associados’
ao Monte Pascoal” que compõe Sob os céus de Porto Seguro. O jornalista só perde em
número de títulos de artigos selecionados para o diretor-proprietário da cadeia de jornais e

137
Antônio Figueira de Almeida. In. Sob os céus de Porto Seguro, p.232.
138
Edmar Morel nasceu em Fortaleza, Ceará, no ano de 1912. Segundo Nelson Werneck Sodré, no prefácio ao
livro histórias de vida escrito por Morel, este teria alcançado a posição de um dos grandes repórteres que o Brasil
já teve, tonando-se uma figura lendária que marcou uma época do desenvolvimento do jornalismo no país.
Livros escritos pelo repórter caravaneiro: Sob os céus de Porto Seguro, 1940; Gago Coutinho e sua vida
aventurosa, 1941; E Fawcett não voltou, 1943; O Brasil visto dos céus, 1946; Padre Cícero, o santo do juazeiro,
1946; Dragão do Mar, o jangadeiro da Abolição, 1949, depois republicada sob o nome de Vendaval da
liberdade, 1967; Moscou ida e volta, 1952; A Revolta da Chibata: Subsídios para a história da revolta na
Esquadra pelo marinheiro João Cândido em 1910, 1952; O golpe começou em Washington, 1965; O Pai da
Aviação, 1966; Reportagens que abalaram o Brasil, 1973; Getúlio Vargas, 1974; Amazônia saqueada, 1979; A
trincheira da liberdade – História da ABI, 1988; A Marcha da Liberdade – A vida do repórter da Coluna
Prestes, 1987. In. MOREL, Edmar. Histórias de um repórter. Rio de Janeiro: Record,1999.
68

rádios que é também o maior articulador do “Raid”, o jornalista Assis Chateaubriand com
quinze textos. Nas páginas escritas por Edmar Morel é possível encontrar uma série de
elementos que nos permitiriam compreender, a partir da reconstrução da trajetória da
“Caravana”, qual seria a paisagem desses lugares históricos para os quais se dirigia os
aviadores do “Raid”. Vale destacar que em alguns momentos a mesma situação aparece em
reportagens diferentes. O que só enriquece as possibilidades de investigação, pois a cada
narrativa diferente para um mesmo assunto surgem elementos novos que geram outras
perspectivas de análise.
O jornalista também faz uso de uma das principais estratégias narrativas adotadas para
projetar e cobrir os acontecimentos de comemoração das Asas do Brasil Novo, que é dizer que
“Tudo aqui é histórico” quando se refere não só à cidade de Porto Seguro, mas antes a todas
as localidades por onde passa. Dos mais de vinte dias de duração de viagem, ao percorrer os
municípios de Belmonte, Santa Cruz Cabrália e Porto Seguro, em direção à “histórica
montanha”, Morel extrai experiências com esses lugares a parti das quais relata e descreve
diversas situações que irão compor o imaginário simbólico coletivo139 daqueles que acessam
os jornais onde estão sendo veiculadas as reportagens. É preciso levar em consideração que
essa mediação foi promovida no campo da cultura visual140 pelo trabalho de diagramação dos
jornais e revistas por onde circularam as reportagens especiais. Esse imaginário tem como
conteúdo aquilo que é visível através das palavras de Edmar Morel e que é palmilhada de
semióforos distribuídos pela paisagem do descobrimento.

A paisagem do descobrimento: emoldurando semióforos

Antes de passarmos à análise da narrativa da Caravana dos Diários Associados


propriamente dita, onde Edmar Morel vai relatar e descrever o que foi visto e experimentado

139
SOUSA de Oliveira, Thamyres. O jornalismo e a consolidação da verdade e do poder durante o Estado
Novo. 10° Encontro Nacional de História da Mídia. UFRGS, Porto Alegre, 2015, p.1.
140
De acordo com Guimarães é possível investigar as estratégias que visam dar visibilidade ao passado como
parte de um esforço social de culturalização do tempo. GUIMARÃES, Manuel Luiz Salgado. Vendo o passado:
representação e escrita da história. Anais do Museu Paulista. São Paulo. N.Sér.v.15.n.2.p.11-30. Jul-dez. 2007.
Para Abreu e Ferreira, ao analisarem os mitos de calendário acionados por meio de fotorreportagens nas
comemorações promovidas pelo Estado Novo, “o uso da imprensa ilustrada na difusão de representações do
passado e do presente conformadas nos rituais cívicos [e] a escrita visual da história” fariam parte das
“estratégias de repercussão e reverberação” das comemorações dentro dos processos de “produção do
acontecimento através dos meios de comunicação.” ABREU, Marcelo. FERREIRA, Aline. Mitos de
Calendários: as comemorações do Estado Novo nas fotorreportagens da Ilustração Brasileira (1938-1945).
III Encontro Nacional de Estudos da Imagem. 03 a 06 de maio de 2011 – Londrina – PR, p.108-118.
69

em toda sua extensão, cabe destacar para fins analíticos que o reencontro do jornalista com a
história do lugar “onde nasceu o Brasil” será tomado como uma metáfora de compreensão
dessa experiência histórica. Se na Carta de Caminha o primeiro sinal da terra descoberta foi o
Monte Pascoal, para o jornalista, a primeira vista da cidade “fundada por Cabral” será o
“farol” de Porto Seguro. Com esse destaque dado ao “farol” enquanto primeiro sinal da “velha
cidade”, viso estabelecer algumas possibilidades de compreensão que o uso dessa metáfora
nos permitirá construir, enquanto analogia com a perspectiva que adotamos na abordagem
deste tópico. A aproximação dos conceitos de semióforo e paisagem que pretendemos esboçar,
aliado à leitura dessa metáfora que aproxima o sentido de “farol” ao sentido do Monte
Pascoal, coadunam com o símbolo da missão de redescobrimento e, nesse sentido, serão
ferramentas analíticas para acompanhar essa viagem. Haja vista as relações etimológicas que
existem entre farol e semióforo ao qual compreendemos como elementos constituidores da
paisagem do descobrimento que esta sendo analisada
Neste ponto faz-se necessário apresentar algumas definições conceituais para precisar
melhor aquilo que estamos compreendendo como semióforos configuradores da paisagem do
descobrimento e quais ferramentas analíticas essas metáforas nos proporcionaria. De antemão
cabe dizer que o farol, enquanto uma construção junto ao mar que sinaliza com um foco
luminoso a direção a ser seguida e que com isso orienta o caminho, é também um semióforo.
Para Krzysztof Pomian os semióforos são “objetos visíveis investidos de significações”.141 Já
François Hartog nos diz que, por conseguinte, o patrimônio seria a reunião de semióforos de
uma sociedade. 142
Semióforo é uma palavra grega composta de duas outras que significam tanto “sinal
ou signo” como “trazer para a rente, expor, carregar e ‘pegar’ no sentido da fecundidade de
alguma coisa.” De acordo com Marilena Chauí, um “semeion é um sinal distintivo que
diferencia uma coisa da outra, mas é também um rastro ou vestígio deixado por um animal ou
por alguém, permitindo segui-lo ou rastreá-lo, donde significar ainda as provas reunidas a
favor ou contra alguém.”143 Os semióforos são fecundos em gerar efeitos de significação.

141
POMIAN, Krzysztof. História cultural, história dos semióforos. In. RIOUX, Jean Pierre. Por uma história
cultural. Rio de Janeiro, Editora Estampa, 1998.
142
HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiência do tempo. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2013, p.197.
143
CHAUI, Marilena. Op. Cit. p. 8.
70

Como signos indicativos de acontecimentos naturais ou não eles podem ser de diversas
ordens.
Existem alguns objetos, animais, acontecimentos, pessoas e instituições que
podemos designar com o termo semióforo. São desse tipo as relíquias e oferendas, os
espólios de guerra, as aparições celestes, os meteoros, certos acidentes geográficos,
certos animais, os objetos de arte, os objetos antigos, os documentos raros, os heróis
e a nação.

O semióforo é um objeto/acontecimento provido de significação e valor simbólico,


que deslocado do circuito de uso e utilidade da vida cotidiana, seria capazes de relacionar o
visível com o invisível, o passado com o futuro distante e que é exposto à visibilidade, já que
é nessa exposição que realiza sua existência.144 No caso de Marilena Chauí é a Nação que é
trabalhada como semióforo, quando esta faz a crítica da sociedade autoritária no Brasil
através da análise de seu mito fundador. Em nosso caso é, também, a nação, mediada pela
história de sua fundação, que está investida nas coisas e nas ideias. A especificidade desta
pesquisa é que ela se dá através dos elementos presentes na história do Descobrimento do
Brasil quando da realização do “Raid”. Elementos que são encontrados e expostos durante
toda a jornada da Caravana aos lugares históricos por onde passa deixando os rastros da
anunciação da revoada em comemoração ao descobrimento.
Já a paisagem pode ser pensada como a interação material e simbólica que perpassa
pela relação do ser humano com a natureza. Segundo Ulpiano Bezerra de Meneses a
“paisagem” é o conjunto dessas formas que em um dado momento exprime a herança das
relações localizadas entre uma extensão da superfície da terra (e/ou do mar) e a ação humana
com a qual se estabelece processos de atribuição de valor a estes elementos. Como processo
cultural a paisagem deve ser considerada em sua historicidade e como um objeto passível de
“apropriação estética”. Nesse sentido, a “percepção visual” torna-se fundamental para a
“existência cultural da paisagem”, pois não há paisagem sem um observador que lhe
determine o ponto de vista.145 No caso dos usos da história do descobrimento existe um ponto
de observação ideal que é buscado e que está presente no discurso fundador a partir do
observador que primeiro “vê” o sinal da terra (re)descoberta e que tanto o “farol” como o
Monte Pascoal podem significar.

144
Idem, p. 9.
145
MENESES. Ulpiano Bezerra. A paisagem como fato cultural In. YÁZIGI, Eduardo. (Org.) Turismo e
paisagem. São Paulo: Editora Contexto, 2002.
71

As conexões entre essa metáfora do “farol-Monte Pascoal” como signo que indicaria o
caminho a ser seguido, com o semióforo, entendido como a coleção de objetos, monumentos,
sítios e demais ordens de coisas que possam vir a ser investidas de significação histórica, se
somam para configurar a paisagem do descobrimento enquanto grande emolduramento onde
os semióforos estão distribuídos sob uma unidade de significação que lhes dá sentido. É a
partir dessas premissas que retornamos ao rastro da Caravana, onde será possível averiguar a
existência das conexões que este tipo de abordagem pode proporcionar.

O povo de Belmonte e entusiasmo do sul da Bahia: o início da Caravana rumo à histórica


montanha

O início da jornada da “Caravana dos Diários Associados” se dá quando o avião


trazendo Edmar Morél pousa na cidade de Belmonte. Cidade litorânea localizada na foz do
Rio Jequitinhonha e distando cerca de 75 quilômetros ao norte da cidade de Porto Seguro,
Belmonte foi o lugar onde os trabalhos de organização, formação e preparação da equipe da
Caravana se deram. É a partir desse primeiro pouso que iremos reconstruir a trajetória da
Caravana que antecede e prepara a realização do “Raid a Porto Seguro” e que tem como
objetivo “desfraldar os pavilhões de Brasil e Portugal” no cume da “histórica montanha”.
Numa reportagem denominada “O povo de Belmonte”, Morel relata esse primeiro
contato com os lugares que irão fazer parte da narrativa da Caravana. Como parte das
atividades de preparação do “Raid”, a presença do “redator” dos Diários Associados na
Caravana acabava por fazer com que está assumisse um papel de agente de relações públicas
dos organizadores da revoada com as autoridades locais. Nesse sentido podemos compreender
as razões de um dos tópicos da reportagem: “A colaboração da cidade de Belmonte no
hasteamento dos pavilhões”. Nessa diplomacia observa-se a ação de um agente que, mesmo
não sendo diretamente ligado ao Estado Novo, representava o poder que este afirmava e a
partir do qual se estabeleciam diálogos com os poderes públicos das cidades percorridas pela
Caravana.
BELMONTE, Abril – a cidade está empolgada com o ‘raid’ a Porto Seguro.
Belmonte comparecerá aos festejos da revoada, representada por uma grande
comissão. A família belmontense enviou longo telegrama á comissão organizadora,
no sentido da esquadrilha evoluir sobre a cidade. Belmonte recebeu de braços
abertos a caravana dos ‘Diários Associados’. A cidade tem bons hotéis, mas as
autoridades exigiram que a caravana ficasse hospedada na residência do Sr. Arthur
Vieira. Foi um tratamento principesco. O prefeito Godofredo Mendes Bandeira,
acompanhado das autoridades locais, esteve no nosso desembarque. A colaboração
72

de Belmonte no hasteamento das bandeiras, no Monte Paschoal, foi deveras


valiosa.146

Essa “empolgação da cidade” para com os membros da Caravana, que os faz receber
“tratamento principesco”, está presente no “entusiasmo do prefeito Godofredo Bandeira”,
outro tópico da reportagem, quando este expressa o “entusiasmo do sul da Bahia pelo ‘raid’”:
“Uma população de milhares de pessoas aguarda com viva ansiedade o voo da esquadrilha,
sob o comando do almirante Gago Coutinho. Belmonte se sentirá honrada se os seus céus
fossem cortados pelas asas nacionais.”147 Através dessas declarações podemos compreender
de que forma as ações que antecedem à revoada de 3 de maio impactam no espaço de
experiência dessas localidades “esquecidas” e no modo como a anunciação do “Raid”
interfere no horizonte de expectativas dessas populações. A “viva ansiedade” presente nesses
discursos, além de pertencerem às estratégias de construção do acontecimento jornalístico,
fazem parte de um ambiente político que se apresentava como oportunidade de transformação
para a região.
Essas transformações da realidade local que de alguma forma a Caravana como
anunciação do “Raid” pretende expressar, já aparece na própria chegada do enviado dos
Diários Associados à cidade. Esse momento do “pouso” para o inicio da caravana demonstra,
ao menos, duas expectativas que a chegada do jornalista teria provocado. A primeira diz
respeito à inauguração, “no dia em que chegamos em Belmonte”, do Correio Aéreo Militar
cuja nova linha Caravelas-Ilhéus teria escalas em Belmonte e Canavieiras. A outra está ligada
ao horizonte da viagem que estava para ser empreendida. “Sonho de repórter”, é assim que
Edmar Morel sintetiza seu desconhecimento sobre o tamanho da tarefa que seria a realização
da missão de hastear as bandeias no Monte Pascoal. “Quando o repórter saltou do avião, em
Belmonte, estava certo de que o Monte Paschoal era nos fundos da cidade... A viagem foi
penosa e as autoridades colaboraram de maneira decisiva para o êxito da nossa jornada.”148
O povo de Belmonte “fretou um navio para tomar parte nos festejos do ‘Raid’ a Porto
Seguro”, destaca-se a notícia subtítulo da reportagem. “A população de Belmonte acaba de
fretar um navio, o ‘Empresa’, que partirá no próximo dia 30, conduzindo cerca de duzentas
pessoas para Porto Seguro. O navio é esperado no dia 29.”149 A participação da população de

146
MOREL, Edmar. O povo de Belmonte. In Sob os céus de Porto Seguro, p. 43-44.
147
MOREL. Edmar. Op. Cit. p. 46.
148
Idem, p. 44.
149
Idem, p. 45.
73

Belmonte não se restringiu ao envio do navio para presenciar os acontecimentos do “Raid”. A


colaboração dos escoteiros da cidade seria fundamental não só para a Caravana, como
também na participação dos atos de festejos das comemorações “Raid” na cidade de Porto
Seguro.
Pelo mesmo navio viajarão quarenta escoteiros, que, no secular edifício da
Prefeitura de Porto Seguro, farão subir à cena um drama indígena. Haverá uma
apoteose ao almirante Gago Coutinho. O drama, que tem o titulo de ‘Cativeiro de
Cecy’, é da autoria dos chefes Etelvino Flores e Waldeck Oliveira, dois abnegados
pela causa do escotismo no Brasil.150

Outra decorrência do desconhecimento do tamanho da tarefa que a Caravana


representava e que se liga à colaboração do povo de Belmonte com o cumprimento da missão
foi que estes “Emprestaram tudo. Quando o repórter hasteou as duas bandeiras no pico da
histórica montanha, estava todo emprestado...” Sob o tópico de “Roupa Alheia” Edmar Morél
descreve como a colaboração do “povo de Belmonte” estava presente no cume do Monte
Pascoal. “Os sapatos eram do prefeito Godofredo Bandeira e a roupa era do Sr. Etelvino
Flores. Uma das maquinas fotográficas pertencia ao Sr. Sebastião Ponho e as perneiras e o
chapéu foram cedidos pelo farmacêutico Arthur Vieira.” Este último teria cedido também
“excelentes animais e o professor Etelvino Flores emprestou os apetrechos necessários à
longa viagem.”151 Nesse sentido, o jornalista declara seu agradecimento à população através
das palavras de reconhecimento aos escoteiros que teriam facilitado a conquista do cume do
Monte Pascoal:
A caravana dos ‘Diários Associados’ teve nos escoteiros de Belmonte a melhor das
colaborações. O chefe, Etelvino Flores, tudo facilitou, mandando o chefe do grupo,
Lourival Silva Borges, até o cume do Monte Paschoal. Durante toda a viagem, o
escoteiro Lourival Silva Borges prestou excelentes serviços à caravana152.

Antes de partirmos de Belmonte no rastro da Caravana, podemos destacar a partir de


outra reportagem que é lá onde a Caravana se estrutura efetivamente: “Organizamos a
caravana que conduziria as bandeira do Brasil e da Cruz de Cristo no Monte Pascoal”; e onde
tem elencados os nomes de seus membros: “Eis os componentes: Edmar Morel, redator dos
‘Diários Associados’, Lourival Silva Borges, subchefe dos escoteiros de Belmonte; Carlos
Martins, prefeito de Porto Seguro e os guias Hugolino Silva e Bernardinho de Oliveira.”
Depois veremos como outros componentes serão integrados à Caravana. Já nos limites do

150
Idem, p.45.
151
Idem, p. 44-45.
152
Idem, p. 44.
74

município de Belmonte a Caravana teria ganhado sua “mascote”: “No povoado de


Mogiquiçaba, a família de Emilio Magno ofereceu uma arara á caravana. A ave foi batizada.
‘Arco-íris’ é a mascote da caravana. É uma linda ave, de tamanho regular e que tem o hábito
de viajar na garupa do cavalo.”153
Em outra reportagem o jornalista comenta uma situação reveladora da realidade que
subjaz à maioria das pequenas localidades por onde passa. A caminho do Monte Pascoal, após
deixar Mogiquiçaba, a Caravana chega ao povoado de Santo André que está localizado
próximo à travessia do rio João de Tiba, já no município de Santa Cruz Cabrália. Edmar
Morel exalta, novamente, o entusiasmo do povo ao dizer que “na zona sul da Bahia só se fala
no voo a Porto Seguro”. Em Santo André o jornalista relata uma situação deste “pedaço de
Brasil desconhecido” que revela, ao mesmo tempo, o contexto internacional da revoada,
expõe a falta dos “sinais da modernidade” e traduz uma realidade local na qual os “caboclos”
demonstrariam desinteresse pelas “notícias do mundo”. As ondas do rádio que chegam a estas
“longínquas povoações” trazem além das noticias, músicas que alegram o cotidiano. Entre
uma e outra vai se descortinando aos olhos do jornalista a realidade destes lugares.
O radio traz um punhado de noticias do mundo para este pedaço de Brasil
desconhecido. A população recebe a visita do correio uma vez por mês. Mas o radio
suprime tudo... Em Santo André soubemos da fuga do rei da Albânia. Os caboclos
não deram muita importância à nova vitória de Mussolini. Depois, foi irradiado um
154
samba. Os caboclos gostaram mais.

Na reportagem intitulada “Junto ao rio onde Cabral teria reabastecido sua esquadra”,
Edmar Morel relata seu encontro com a cidade de Santa Cruz Cabrália. Antes de expressar
suas impressões sobre a cidade, o jornalista comenta sobre como foi vencer a última etapa da
viagem e o quando ainda resta para o cumprimento da missão de hastear as bandeiras. “Desde
a madrugada que estamos no lombo de bestas de carga. A estrada é simples caminho aberto na
vegetação baixa. Deixamos Mogiquiçaba antes do raiar do sol e ainda faltam 180 quilômetros
para atingir o Monte Pascoal.” Após passarem por Santo André “à beira do rio João de Tiba, o
prefeito estava à nossa espera. Os animais atravessaram a nado e nós, no bojo de um
caiaque.”155

153
MOREL, Edmar. Sessão solene num prédio construído há 137 anos. In. Sob os céus de Porto Seguro, p. 39.
154
MOREL, Edmar. Toda zona sul da Bahia empolgada com o voo. In Sob os céus de Porto Seguro, p. 50.
155
MOREL, Edmar. Junto ao rio onde Cabral teria abastecido sua esquadra, In. Sob os céus de Porto
Seguro, p.61.
75

De Santa Cruz Cabrália a Coroa Vermelha: a famosa carta, polêmicas historiográficas e uma
cruz na mata verde.

A partir de um pequeno balanço da viagem até aquele momento, o enviado dos Diários
Associados relata, na terceira pessoa, o caminho percorrido desde o ponto de partida da
Caravana na cidade de Belmonte até chegar a Coroa Vermelha no município de Santa Cruz
Cabrália. Além dessa espécie de diário de campo que seu relato da viagem nos proporciona,
encontramos outras referências a questões que relacionam elementos da paisagem com
aspectos de cunho historiográfico, por exemplo, aquelas que dizem respeito à disputa entre as
cidades de Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália pelas “glórias” de ter sido o “verdadeiro local
do Descobrimento”. Ou ainda, as referências à Carta de Caminha como matriz dessa paisagem
histórica e elemento de mediação das polêmicas historiográficas.
O repórter saltou de um avião em Belmonte, pulou no lombo de um Cavallo, jantou
em Mogiquiçaba e amanheceu em Santo Cruz Cabrália, uma terra triste que disputa
a gloria de ter sido descoberta por Pedro Alvares Cabral. Marchamos pelo litoral e,
antes do meio dia, atingimos a Coroa Vermelha. O cruzeiro domina o pedaço de
praia. Os historiadores dizem que foi ali onde o frei Henrique de Coimbra celebrou a
primeira missa no Brasil, em maio de 1500. A cruz foi erguida pelos capuchinhos no
inicio do século XVII. Os animais beberam água no rio João de Tiba, onde Cabral
teria reabastecido a sua esquadra. Pero Vaz de Caminha, em sua famosa carta, fez
referência a um rio de água doce que corria paralelo ao mar. Será o João de Tiba? É
um ponto escuro da história do Brasil.156

Figura 5: A travessia do Rio João de Tiba, Caravana. 157

156
MOREL, Edmar. Op. Cit. p.27.
157
In. Sob os céus de Porto Seguro, p.64.
76

Na condição de discurso fundador que a “famosa carta” adquire, suas referências se


tornam os sinais que serão buscados para esclarecer pontos duvidosos da história do Brasil.
Aquilo que “os historiadores dizem” será utilizado para se referir tanto aos locais como às
questões que vão surgindo no decorrer da viagem. As referências à história do acontecimento
fundador são multiplicadas “ali onde” elas teriam ocorrido no passado e a partir dos quais são
associadas ao presente da Caravana. Na marcha pelo litoral são encontrados símbolos que
dominam pedaços de praia. O cruzeiro demarcaria o local da primeira missa no Brasil ao
mesmo tempo em que significa o símbolo da missão expressa por Pero Vaz Caminha para
com a terra de Santa Cruz.
“Santa Cruz Cabrália tem pouco mais de 1.000 habitantes. A vida na cidade é difícil.
Falta tudo. Até viveres. Tudo por falta de transporte.” Os sinais da moderna civilização
também são buscados na cidade que põe em causa um “ponto histórico”, qual seja o de
“disputar a glória de ter sido descoberta pelo almirante Pedro Alvares Cabral”.158 Este aspecto
se destaca em toda narrativa elaborada por Morel quando este trata sobre a cidade de Santa
Cruz Cabrália. Estas polêmicas historiográficas que envolvem a disputa entre as cidades
reaparecerão em momentos posteriores. Por ora, interessa-nos ressaltar os vínculos entre a
história do descobrimento e os lugares memória que configuram a paisagem relatada.
O rio João de Tiba se destaca entre os elementos que são utilizados como referência
para sustentar a defesa do ponto de vista dos moradores de Santa Cruz Cabrália. Seus
habitantes estão convictos de que “Cabral ancorou a esquadra do descobrimento em águas de
Santa Cruz.” O prefeito e outras autoridades mostram o curso do rio e outros documentos
citando fatos que comprovariam que teria sido lá o local do desembarque. “Alguns
historiadores sustentam a hipótese, baseados na carta de Pero Vaz Caminha que cita um rio de
água doce que corria paralelo ao mar. Estivemos às margens do rio João de Tiba, onde Cabral
teria reabastecido a esquadra” 159.
O subtítulo desta reportagem é “uma cruz na mata verde”, com ele Edmar Morél está se
referindo ao próximo destino da Caravana. Antes de partir rumo a este local, “os habitantes de
Santa Cruz crivam o repórter de interrogações. Olham para a baia Cabrália e falam: Sofremos
a maior injustiça histórica. Cabral ancorou a sua esquadra em Santa Cruz – mostram uma

158
MOREL, Edmar. Op. Cit. p. 62.
159
Idem, Ibid..
77

160
ponta de terra. É a Coroa Vermelha” . Este é outro elemento recorrente nas narrativas que
compõem Sob os céus de Porto Seguro e que podemos abordar pelo caráter visual que a força
da presença nos lugares adquire nas páginas de Morel. Para comprovar as ideias que
defendem, os habitantes e as autoridades “olham e mostram” os lugares históricos como se
documentos fossem. Esta visualidade que é utilizada como ferramenta de argumentação sobre
a história do “verdadeiro local do descobrimento” é um dos elementos que configuram a
paisagem histórica que vai sendo delineada pelo repórter que vê e experimenta aquelas
narrativas.
Anoitecia, quando chegamos à Coroa Vermelha, outro local discutido pelos
historiadores. Asseguram que foi naquele cruzeiro onde o frei Henrique de Coimbra
celebrou a primeira missa no Brasil. A grande cruz está na mata verde. Ao seu lado,
um abrigo que serve de pouso para os forasteiros. Inscrições ilegíveis estão gravadas
na madeira. A cruz ameaça cair. Foi erguida por uma missão de Capuchinhos, no
inicio do século que passou. Teria sido mesmo em Coroa Vermelha, onde o Frei
Henrique de Coimbra celebrou a primeira missa no Brasil? 161

A “Caravana dos Diários Associados” continuava “Percorrendo o litoral onde


desembarcou Pedro Alvares Cabral”, este último é outro dos títulos da série de reportagens
assinadas por Morel. Nela o jornalista reivindica certa autoridade em suas palavras por ter
percorrido esses lugares históricos na condição de testemunha ocular e por ter coletado
imagens fotográficas e conversado com historiadores locais. Donde poderia afirmar essa ou
aquela perspectiva sobre a história do “Descobrimento do Brasil”: “Durante a viagem, o
enviado especial do ‘Diário da Noite’ colheu farta documentação fotográfica e ouviu os
velhos historiadores das duas cidades [Santa Cruz Cabrália e Porto Seguro]. Esta reportagem
é uma contribuição de quem percorreu a pé o trecho do litoral onde Cabral ancorou a sua
esquadra”.162

O inventário dos sentidos na lendária Porto Seguro: a coleção de semióforos e os ritmos da


cidade na anunciação do “Raid”.

Se a Caravana propaga que sua principal missão é o hasteamento das bandeiras no cume
do Monte Pascoal, vale salientar que uma das tarefas de Edmar Morel é sondar as condições
de realização dos festejos que estão por vir e promover a anunciação do “Raid”. Estes
trabalhos se somam aos processos de configuração da paisagem do descobrimento que está

160
Idem, p. 63.
161
Idem, Ibid.
162
MOREL, Edmar. Percorrendo o litoral onde desembarcou Pedro Alvares Cabral, p. 72.
78

sendo delineada por meio das descrições da natureza, das localidades e de seus habitantes,
como cenário histórico onde se desdobrariam os acontecimentos de refundação do Brasil que
os festejos da Revoada das Asas representa. O modo como esta paisagem histórica vai sendo
demarcada, por meio de uma coleção de semióforos distribuídos pelas localidades por onde
passa a Caravana, ficará patente quando do encontro com a “lendária cidade” de Porto
Seguro. Neste processo, um inventário dos sentidos vai sendo elaborado por meio dos relatos
e descrições que elencam os elementos constituidores do ambiente que envolve a experiência
sensorial e perceptiva vinculada à presença.
Retomando os caminhos da Caravana na reportagem Onde Nasceu o Brasil, na qual o
jornalista relata algumas dificuldades do percurso ao narrar sua aproximação e estupefação
frente à cidade, poderemos observar a proliferação dos sinais que atestariam a antiguidade da
“cidade fundada por Cabral”. Os percalços da viagem são uma tônica da narrativa da
Caravana que seria recompensada pela oportunidade de experimentar, ver e sentir a realidade
destes lugares que até então eram mais imaginados do que conhecidos pelo grande público.
Na cidade onde “tudo é histórico” a valoração da paisagem que se desenha encontrará nos
objetos e na natureza os elementos de significação desta coleção de semióforos pertencentes a
estes lugares de memória do “descobrimento”.
A estrada é péssima. Avistamos o farol de Porto Seguro. Mais algumas horas e os
cavalos riscarão as patas no areal da cidade fundada por Cabral. Em Porto Seguro,
tudo é histórico. A gente olha para os arrecifes e se lembra da epopeia dos audazes
navegadores portugueses. Á beira mar, estão cinco canhões. São os canhões trazidos
pela expedição de Gonçalo Coelho, em 1503, para a defesa da terra de Santa Cruz. 163

Se na epopeia dos navegadores os arrecifes propiciaram proteção ao canal “onde Cabral


ancorou a sua esquadra” ao mesmo tempo em que seria um sinal de perigo para as caravelas e
por isso deveriam ser evitados, na epopeia da Caravana eles se transformam nos elementos a
serem buscados neste processo de emolduramento da história que está sendo valorizada. Os
canhões que outrora serviram como instrumentos de defesa, agora são elevados a objetos
significantes desta paisagem que se desdobra pelo caminho.
Mas Morel ainda não se encontra em Porto Seguro, essa atribuição de valor é oriunda da
expectativa que precede à chegada. Mesmo que as reportagens tenham sido escritas de
memória e a partir das anotações que serão recuperadas após o retorno ao Rio de Janeiro para
serem redigidas e publicadas, a perspectiva de que as expectativas precediam à presença nas
localidades é valida, haja vista que o trabalho jornalístico demandava uma pesquisa prévia dos

163
MOREL, Edmar. Onde Nasceu o Brasil, p. 27-28.
79

assuntos que seriam tratados. Sendo assim, o areal que ficaria marcado pelas patas dos
cavalos é tanto fruto de uma memória registrada quando de uma imaginação antecipadora.
Essa tensão constitutiva envolve toda a elaboração do discurso jornalístico presente nas
reportagens que compõem a Caravana dos Diários Associados que estamos analisando.

Figura 6: O canhão de Porto Seguro.164

Os cavalos usados pelos caravaneiros são o meio de transporte que neste momento
conduz as bandeiras pelo litoral. A travessia do trecho que vai de Coroa Vermelha até Porto
Seguro servirá de mote para que Morel trabalhe uma percepção que irá contrastar os meios de
transporte símbolos da modernidade com a precariedade desta zona rica, mas abandonada. As
patas que percorrem o litoral significarão o atraso atrelado ao esquecimento, em contraponto
com os “pássaros metálicos” que sobrevoarão a região no “Raid” que se anuncia. As horas
passam e ao longe o farol ilumina o caminho da Caravana indicando que a chegada à cidade
de Porto Seguro se aproxima. As autoridades locais estarão lá para receber a Caravana.
Alta noite, entramos em Porto Seguro. O prefeito Carlos Martins e as autoridades
aguardavam a caravana no rio da Villa. A cidade fundada por Cabral mergulhava nas
trevas. A viagem foi penosa, através de uma região onde milhares de brasileiros não
escutam o apito de uma locomotiva e o ronco do motor de um caminhão. São
brasileiros que moram à margem do Atlântico, numa zona rica e que só conhecem
um meio de transporte – o lombo do burro.165

164
In. Sob os céus de Porto Seguro, p.18.
165
MOREL, Edmar. Toda a zona sul da Bahia empolgada com o voo, p.50.
80

Em tom de denúncia ao abandono da “velha cidade”, elencam-se os sinais da


modernidade que faltariam à região. Brasileiros que moram à margem por não terem contato
com as máquinas símbolo dos tempos modernos. Contraste que é feito por meio da percepção
dos sons que faltam para o progresso dos meios de transporte. A natureza e a ambiência
predominantes foi ouvida/olvida como se fosse o atraso silencioso das matas que ainda não
tinham “escutado o apito da locomotiva”. Neste processo de anunciação do “Raid” projeta-se
até o sentimento que os “caboclos” vão ter quando presenciarem a Revoada das Asas que está
por vir: “Os caboclos vão descer das montanhas, e, no campo d’Ajuda, ficarão extasiados
diante do ronco de dezenas de motores de aviões”.166

Figura 7: Edmar Morel montado a cavalo em Porto Seguro em 1939.

Nesse sentido, podemos compreender este tipo de descrição perceptiva como parte dos
elementos sonoros que compõem a paisagem sensorial da “zona sul da Bahia” nos tempos da
Caravana. Essas narrativas dos sentimentos e da percepção dos sons que fariam parte destas
ou de outras experiências sensoriais ligadas à Caravana e ao “Raid” configuram um inventário
dos sentidos que também participa deste emolduramento da paisagem do descobrimento
promovida pelos Diários Associados. Como em outro momento, quando diante dos “templos
construídos no início do século XVI”, Edmar Morel constata a tristeza de uma paisagem onde
os sons, por inanição, não se propagam e que por isso acabariam morrendo sobre as ruínas em

166
Idem, p.50-51.
81

redor. Essa compreensão sinestésica dos espetáculos de tristeza pode ser percebida no relato
das impressões que o ecoar do sino da igreja dos jesuítas lhe causa: “O sino é um bronze
fendido em três pedaços. É triste o seu repique. O seu som não ecoa a cem metros. Morre
sobre os escombros do Collegio dos Jesuítas, levantado em 1572”.167
Outro elemento destas percepções da ambiência que está presente nas impressões que o
encontro com a cidade de Porto Seguro propícia a Edmar Morel, é que este vê a cidade imersa
na escuridão que domina a paisagem. A falta de eletricidade ainda não permitia a iluminação
destes cenários históricos. Um outro regime de visualidade regia o cotidiano destas
localidades na qual a noite impunha os limites e possibilidades do olhar. “Porto Seguro,
fundada há 439 anos, não tem iluminação elétrica. As suas ruas, nas noites sem estrelas,
mergulham nas trevas. Mas, nas noites de luar, é um pedaço do céu descansando sobre a
terra”. O conhecimento das fases da lua condicionava o calendário das atividades que
poderiam ser realizadas. A escolha da lua certa era fator fundamental para o sucesso dos
festejos que a Caravana estava promovendo no processo de anunciação do “Raid”: “A
população consulta os almanaques e lê: Dia 3, lua cheia. Asas de dezenas de aviões irão
brilhar à luz da lua”.168
A chegada da noite vai aproximar o jornalista de algumas “relíquias históricas” que
compõe aquilo que chamaremos de coleção de semióforos elencados durante sua passagem
pela cidade. Após a “viagem penosa” que o trouxe a Porto Seguro, faz-se necessário o
descanso restaurador e para isso Morel vai se hospedar na casa de um morador. As
autoridades que o receberam no rio da Villa o encaminham para a casa de uma “prestigiosa
família” local: “Somos hospedes da família Claudio. Em Porto Seguro a família Claudio
domina. O seu prestigio é a bondade” relata o repórter que já estaria “integrado na família
portosegurense”. Este prestígio será reforçado pelas demonstrações de poder nas ocasiões
onde os objetos, insígnias e documentos históricos pertencentes à família seriam utilizados
como fator de distinção social. “No almoço tomou vinho num copo que pertenceu a D. João
VI. No jantar comeu num prato colonial. Vimos as armas de Portugal e o nome do antigo
vice-rei do Brasil. À noite, com a luz de um carbureto, remexemos um arquivo secular”.
Como síntese deste encontro uma frase de Morel nos permite compreender a dimensão desta

167
MOREL, Edmar. Sessão solene num prédio construído há 137 anos, p.34-35.
168
Idem, p.34.
82

atribuição de valor histórico à cidade: “Em Porto Seguro, todo mundo tem uma relíquia
histórica”.169

Figura 8: Cidade baixa de Porto Seguro - casas e pessoas.170

No processo de constituição de uma coleção de semióforos que atestaria a validade do


mote editorial que repete a todo o momento que “Tudo aqui é histórico”, o discurso
jornalístico elaborado por Morel vai preenchendo a paisagem do descobrimento com
relíquias, tesouros e ruínas encontrados pela Caravana. “No arquivo do juiz Perpedigno
Ricaldi encontramos documentos e livros que deveriam figurar no Museu Histórico, sob a
guarda de milhares de soldados”.171 Prestígio e autoridade figuram como elementos centrais
de legitimação deste processo de atribuição de valor que coleciona na narrativa determinados
bens provenientes da sociedade portosegurense. Possuir livros que deveriam estar sob a
guarda de soldados seria um indicativo do status social que determinados indivíduos e suas
famílias deteriam. Convocar a autoridade dos museus, enquanto instituição do Estado
legitimada para a lida com os documentos e artefatos do passado, reforça o prestígio daqueles
que possuírem estas relíquias, aumentando, assim, a autoridade das famílias detentoras destes
tesouros da história.

169
MOREL, Edmar. A Vingança do Abaitara, In. Sob os céus de Porto Seguro, p.32.
170
Fotografias Série Inventário: Porto Seguro, BA. Arquivo Central do IPHAN, Rio de Janeiro, RJ. Eric Hess.
171
MOREL, Edmar. Sessão solene num prédio construído há 137 anos, p.35.
83

Na visita aos templos e ruínas da Cidade Alta172 Edmar Morel vai se deparar com a
igreja da padroeira da cidade e seu tesouro avaliado em “200 contos de réis”: “Estamos na
matriz. É o templo mais novo de Porto Seguro. Tem apenas 210 anos [...] A santa padroeira é
a Nossa Senhora da Pena, cujos milagres são contados, há 300 anos, nos sertões de Minas,
Bahia e Goyaz. O vigário fez questão de mostrar o tesouro da imagem”. Essa coleção de
semióforos que a narrativa vai selecionar e expor nas reportagens que alcançam todo o país
faria parte das tarefas de sondagem das condições de realização dos festejos que estava por
vir. Com estas visitas, Morel estava tanto configurando a paisagem do descobrimento, como
também estava avaliando as possibilidades de atividades e ações para compor a programação
do “Raid”. “O tesoureiro da irmandade vai fazer uma exposição do tesouro da Santa, por
ocasião da chegada dos aviadores”. Eis algumas peças do “tesouro da Santa”, visto a desfile:
Quando o coro terminou o De Angeles, o padre Emiliano Gomes Pereira acabou a
missa. Na sacristia, desfilamos pelo tesouro da Santa. Uma custodia toda de ouro
avaliada em 50 contos. Uma cruz de prata, com dois metros de altura. Quatro galeras
de prata, Uma grande Penna e um diadema. Tudo de ouro. Um bastão e uma dúzia
de colares de ouro e brilhantes. As joias, num calculo nada exagerado, são avaliadas
em 200 contos de réis.173

Figura 9: O tesouro da Santa. 174

172
Porto Seguro segue o modelo de urbanização da colonização portuguesa que separa topograficamente a
cidade em Alta e Baixa: onde a primeira, localizada no topo do tabuleiro do baixo planalto costeiro de frente para
o mar, recebe os equipamentos do poder (igrejas e Casa de Câmara e Cadeia - que no contexto do “Raid” era a
sede da prefeitura municipal) e a elite local; e a segunda, estabelecida às margens da planície fluvial na foz do rio
Buranhem, abrigaria a população, os pescadores e o comercio.
173
MOREL, Edmar. Op. Cit., p. 36-37.
174
Fotografias Série Inventário: Porto Seguro, BA. Arquivo Central do IPHAN, Rio de Janeiro, RJ. Eric Hess.
84

Nessa busca pelas relíquias históricas, o enviado especial dos Diários Associados vai
revelando os tesouros e ruínas desta “cidade secular, perdida no Sul da Bahia, [que] aparece
aos olhos do repórter como um pequeno labirinto cheio de casinhas construídas no Brasil-
Colônia”. Os olhos que percorrem esse recanto do Brasil do passado buscam nos vestígios das
ruínas, estes labirintos de uma temporalidade perdida, os tesouros guardados pela cidade,
também ela histórica. Ruínas, tesouros e relíquias funcionariam como signos atestadores de
um passado relevante. Ao mesmo tempo Morel transforma estes significantes visuais de um
passado colonial, que será rememorado para ser superado, em elementos da coleção que o
olhar adestrado do viajante busca configurar. “Na cidade alta, ruínas por todos os lados. São
os últimos vestígios das edificações de quatro séculos”.175

Figura 10: Vista aérea da cidade alta de Porto Seguro.176

Em seu percurso pela cidade secular, o jornalista se depara com outro destes lugares de
memória que estarão presentes na programação do “Raid”: “No edifício da Prefeitura [antiga
Casa de Câmara e Cadeia] haverá uma sessão cívica, em homenagem aos tripulantes e
passageiros da esquadrilha”. Já nas ruínas onde os “canhões vivem à sombra dos coqueiros da

175
MOREL, Edmar. Op. Cit., p.33.
176
Fotografias Série Inventário: Porto Seguro, BA. Arquivo Central do IPHAN, Rio de Janeiro, RJ. Eric Hess.
85

cidade”, as bandeiras, que a Caravana ainda precisa conduzir até o topo do Monte Pascoal,
serão hasteadas em homenagem as celebrações do “Descobrimento do Brasil” durante a
revoada: “Surgem, agora, as ruínas do reduto de Santa Cruz [...]. O Mar acabou de destruir os
escombros da fortaleza. Apenas dois alicerces resistem á ação do tempo. Nestes dois pedaços
de pedras serão colocadas flores e as bandeiras portuguesa e brasileira”.177
O emolduramento desta paisagem histórica alia a atribuição de valor às relíquias,
tesouros e ruínas ao trabalho de anunciação do “Raid” por meio da projeção de uma
programação repleta de atos rememorativos em homenagem as comemorações das Asas do
Brasil Novo. Esta programação contemplará uma série de atividades, dentre elas a visita aos
“templos mais antigos do Brasil”: “Estes templos, que ainda são iluminados a querosene,
ficarão abertos durante a noite de 3 de maio, dia em que chegará a esquadrilha”. A exposição
das relíquias também fará parte dos festejos: “Todas estas relíquias históricas serão visitadas
178
pelos aviadores e passageiros da esquadrilha, sob o comando de Gago Coutinho”. Nesta
projeção das atividades que iriam compor o mosaico celebrativo da Revoada das Asas, Morel
chega a antecipar a reação dos aviadores quando estes presenciarem o coro durante a missa
que será realizada, ao mesmo tempo em que relata a participação da comunidade de
pescadores nas atividades:
Os aviadores irão ficar emocionados com o espetáculo religioso. Cem crianças,
filhas de pescadores, num admirável coro, acompanharão a missa campal.
Assistimos o coro infantil cantar ‘De Angeles’. Maravilhoso! A gente tem a
impressão de estar ouvindo o gorjeio de centenas de pássaros, numa linda alvorada
de felicidade. São vozes inocentes, educadas pacientemente pelo vigário Emiliano.
Filhos de pescadores irão derramar melodia entre dezenas de aviadores, que estão
acostumados a ouvir o ronco de motores de centenas de H.P. Os meninos todos de
branco, conduzirão bandeiras brasileiras. 179

Neste processo, onde uma coleção de semióforos foi sendo constituída como forma de
expor e dar visibilidade à história que estaria em toda parte, Morel relata como estas ações de
preparação dos festejos em comemoração ao “Descobrimento do Brasil” vão alterando os
ritmos da cidade. Por onde a Caravana passa o espaço da experiência e o horizonte de
expectativas vai se reconfigurando por meio da anunciação do “Raid”. A expectativa com a
revoada estaria promovendo mudanças na dinâmica local que foram expressas por meio de
uma linguagem que estabelece diferenças de humor como forma de demonstrar as alterações

177
Idem, p.35.
178
Idem, p. 41 e 38.
179
Idem, p.37.
86

de ritmo causadas pelas ações preparativas. “A população aguarda com ansiedade a chegada
da esquadrilha”.180 Essas alterações seriam perceptíveis por meio de uma leitura que
expressaria os sentimentos da cidade e que podem ser compreendidos como uma tentativa de
alteração do quadro dos “espetáculos de tristeza” que dominaria a região. Da tristeza para o
entusiasmo com o acontecimento vindouro, essa será a tônica de valorização do próprio
evento que se estava promovendo:
A cidade, nestes últimos dias, está perdendo a tristeza de uma cidade em decadência.
Decadência porque faltam meios de transporte. Das cidades de Belmonte, Ilhéus,
Caravelas, Canavieiras e outras, são esperadas centenas de famílias. O Voo a Porto
Seguro será o acontecimento mais notável destes últimos cinquenta anos.181

Novamente os meios de transporte se transformam nos sinais da modernidade a pautar o


modo de compreensão desta realidade que está sendo exposta nas reportagens. A anunciação
deste “acontecimento notável” que mobilizará o deslocamento de centenas de pessoas
permitirá a Morel exemplificar o modo como a questão dos meios de transporte interferirá nas
dinâmicas das viagens daqueles que estarão presentes no “Raid”. As diferenças dos meios de
transporte daqueles que irão presenciar o desenrolar da programação do “Raid” são um dos
principais elementos contrastantes desta realidade. A diferença entre a forma como os
aviadores se deslocarão para a cidade em relação aos “forasteiros” da região que também se
farão presentes, marcará as diferenças das tecnologias empregadas e acentuará as disparidades
entre o Brasil do futuro representado pelos aviões e o Brasil do passado encontrado neste
lugar de origem perdido no sul da Bahia.
Os templos ficarão abertos para a visita dos aviadores e dos milhares de forasteiros
que terão de viajar dezenas de léguas. Os primeiros cobrirão os 950 quilômetros nas
asas dos pássaros metálicos. Os forasteiros percorrerão centenas de milhares de
metros no lombo de um cavalo. Aqui, no litoral da Bahia, só se conhece uma
condução – o cavalo.182

Tudo isso em meio aos preparativos do evento que está alterando os ritmos da região. A
expectativa da chegada dos aviadores e forasteiros vai mobilizar a cidade no sentido de
prepará-la para esta recepção. Se antes a dinâmica de alteração dos ritmos foi expressa pela
contraposição entre tristeza e entusiasmo, agora essa contraposição se dará entre a quietude do
lugar ermo e a vibração oriunda das ações de preparação do “Raid”. “A cidade de Porto
Seguro vibra de contentamento com o voo da grande esquadrilha. A cidade perdeu o seu ritmo

180
Idem, ibid.
181
MOREL, Edmar. Op. Cit., p.50.
182
Idem, p.35.
87

de quietude. Tudo aqui é vibração. As casinhas estão sendo pintadas de branco. As poucas
ruas de Porto Seguro estão sendo limpas pelos próprios habitantes”.183 A empolgação para
com o acontecimento que estava por vir vai transformar a cidade em uma espécie de “bibelô”
no momento auge destas alterações de ritmo. As roupas da cidade estão sendo trocadas para
recepcionar os “ilustres visitantes” que a visitarão em dias de festa, quando a população local
e toda a região estarão vibrando de entusiasmo com a comemoração das Asas do Brasil Novo:
Porto Seguro, com os seus 2.000 habitantes vibra de entusiasmo. O litoral sul baiano
está empolgado com o ‘raid’ a Porto Seguro, cujos céus serão rasgados por dezenas
de aviões brasileiros, no próximo dia 3 de maio, quando se comemora o 439°
aniversario do descobrimento do Brasil. As casinhas estão sendo caiadas. As lojas
vendem fazendas para os caboclos. O prefeito Carlos Martins está mudando a roupa
de Porto Seguro, vestes usadas desde 1500. A cidade vae perdendo, aos poucos, o
ritmo de uma cidade em plena decadência. Porto Seguro até parece uma boneca
enfeitada.184

Assim seguirá a Caravana enfeitando paisagens rumo à histórica montanha.

Figura 11: Vista da barra a partir da cidade alta, com os arrecifes no horizonte.185

183
MOREL, Edmar. Op. Cit., p.55.
184
MOREL, Edmar. Op. Cit., p.33-34.
185
Fotografias Série Inventário: Porto Seguro, BA. Arquivo Central do IPHAN, Rio de Janeiro, RJ. Eric Hess.
88

A Caravana visita o Arraial d’Ajuda: os artistas da promessa e a cerimônia da benção das


bandeiras

Na próxima etapa de sua jornada a Caravana irá realizar “a benção das bandeiras” que
irão ser fincadas no cume do Monte Pascoal. Para se chegar ao Arraial d’Ajuda, onde estava
localizada a igreja de Nossa Senhora d’Ajuda na qual se realizaria a cerimônia, era preciso
atravessar um rio e depois percorrer mais cinco quilômetros por uma estrada que estava sendo
aberta para o “Raid”, cuja pista de pouso também estava sendo construída nas proximidades
do “povoado da Santa”. O momento da travessia ao rio Buranhem é narrado como um
“préstito”, ou seja, um tipo de desfile solene onde se dá o cortejo de barcos em homenagem ao
que a Caravana e o “Raid” representariam.
Desde cedo, grande multidão estacionava na Praça Duque de Caxias. Debaixo de
grandes aclamações populares atravessamos o rio Buranhem, em canoas. Dezenas de
embarcações formavam o préstito. À frente, no bote em que viajava o prefeito
Carlos Martins, altas autoridades, iam desfraldados os pavilhões do Brasil e
Portugal. Das canoas, soltavam fogos. Atingimos o outro lado do rio e depois de
setenta minutos chegamos ao Arraial d’Ajuda, onde já se achavam o vigário
Emiliano Gomes Pereira, o delegado e grande número de moças e colonos. 186

Na passagem pelo Arraial d’Ajuda, o jornalista descreve sua visita à sala dos milagres
da “igreja fundada em 1553 pelos jesuítas, [que] será também visitada pelos participantes da
esquadrilha sob o comando do almirante Gago Coutinho, no próximo dia 3 de maio.” Esta
igreja pertenceria à Santa “milagrosa que nos meses de agosto, arrasta forasteiros de duas
centenas de léguas, 1.200 kilometros para pagar uma promessa”. 187 As palavras
impressionistas de Morel nas descrições que faz daquilo que teria presenciado na sala dos
milagres, quando caracterizará os “homens rudes” como artistas pagadores de promessas, nos
permitirá imaginar os objetos e imagens que comporiam este acervo de ex-votos a emoldurar
uma paisagem repleta de semióforos de devoção.
Estivemos na sala dos milagres e vimos 300 quadros. Os pintores são homens que
nunca cursaram uma escola, nem mesmo a primaria. Mas são artistas. Os desenhos
são rudes, mas expressivos. Aquele homem que teve uma congestão pulmonar está
derramando sangue. O menino que caiu do pé de cacau está olhando para um quadro
onde aparecem uns garotos brincando. A mãe do menino ferido fez uma promessa
para que a perna do filho não fosse cortada. Agora, é um naufrágio. Os homens estão
de joelhos e, nos céus, a estampa de Nossa Senhora. As figuras aparecem com
expressões.188

186
MOREL, Edmar. Op. Cit., p. 52-53.
187
MOREL, Edmar. Op. Cit., p.31.
188
Idem, p.31.
89

Figura 12: Igreja de Nossa Senhora d'Ajuda.189

189
Fotografias Série Inventário: Porto Seguro, BA. Arquivo Central do IPHAN, Rio de Janeiro, RJ. Eric Hess.
90

Um dos momentos mais significativos da Caravana se dá no Arraial d’Ajuda, quando a


apoteose celebrativa do “descobrimento” nos festejos de anunciação do “Raid” se efetiva nos
preparativos e na realização da cerimônia na qual as bandeiras de Brasil e Portugal seriam
abençoadas. A descrição feita por Edmar Morel desse momento nos dá a dimensão de como o
acontecimento “Raid”, por meio de sua Caravana, oportunizou a realização dessas cerimônias
e atos de cunho histórico-patrióticos. Os habitantes desse pequeno arraial, situado no planalto
de uma falésia cuja igreja fica de costas para o mar, começaram a chegar à praça. Convocados
pelo som dos sinos, eles se transformarão em espectadores destes acontecimentos cívicos que
perpassam toda a região e que agora vai se realizar na igreja de Nossa Senhora d’Ajuda.
Os sinos badalaram e, em seguida, a pequena praça ficou apinhada de gente. A igreja
foi aberta pelo prefeito Carlos Martins. O templo de Ajuda foi fundado em 1553,
pelos jesuítas. A igreja domina toda a baia de Porto Seguro. O padre Emiliano usou
da palavra e proferiu sentida oração. Foi um hino ao Brasil. Cujo pavilhão pela
primeira vez será içado no cume do Monte Paschoal. Uma criança, filha do pretor de
Porto Seguro, recitou uma poesia de Bilac. Pouco depois das 11 horas, teve inicio a
cerimonia da benção das bandeiras. As moças da localidade desfilaram com os
pavilhões, pelas duas únicas ruas do arraial, ao som do hino nacional, cantado pelos
caboclos e colonos. No cruzeiro em frente ao templo erguido por Anchieta, o vigário
benzeu as duas bandeiras. Foi uma cerimonia emocionante. Os homens tiraram o
chapéu e as mulheres beijaram os dois pavilhões. Os sinos bateram em regozijo e a
zeladora do templo ofereceu medalhas de Nossa Senhora d’Ajuda, à caravana. O
prefeito Carlos Martins falou em nome da cidade. Disse que no dia 3 de maio
dezenas de motores roncarão nos céus de Monte Paschoal, numa demonstração da
pujança das nossas asas, sob o comando do almirante Gago Coutinho.190

Sinos, templos, orações, hino, poesia, desfile, cantos, emoção, regozijo, medalhas,
motores, céus, pujança das nossas asas. Esse glossário das cerimônias e atos comemorativos
ligados aos festejos de 1939 que aparecem nas ações do “Raid” por meio da “Caravana dos
Diários Associados” é uma pequena amostra de como estes acontecimentos constituíram uma
cultura histórica do “Descobrimento do Brasil” que permeou a paisagem do sul da Bahia. A
multidão que presenciou estes e outros eventos cívicos de cunho histórico durante todo o
“Raid” pôde ver, ouvir e sentir, através das ações da Caravana, a história do Brasil
acontecendo ali em sua frente. Esse é o valor atribuído à missão de hastear a bandeira
nacional no Monte Pascoal e que é a tarefa que a Caravana pretende realizar.
A multidão conduziu os dois pavilhões à Sala de Milagres da igreja d’Ajuda e fez
uma prece para que as bandeiras sejam hasteadas no Monte Paschoal, a despeito de
toda sorte de obstáculos que oferece a viagem. Em seguida, foi rezada a missa de
São Benedito. Ás 12 horas, foi feito o embarque das bandeiras na canoa ‘Celeste’,
rumo a Caraiva. Mais uma vez falou o sr. Oswaldo Claudio, que, em emocionante
discurso enalteceu a obra de brasilidade dos ‘Diários Associados’, mandando hastear
a bandeira nacional no Monte Paschoal. As suas palavras emocionaram a multidão.

190
MOREL, Edmar. Op. Cit. p. 53-54.
91

Aos gritos de viva ao Brasil, as bandeiras foram colocadas numa caixa de madeira
oferecida pelas senhoras de Porto Seguro. O mar estava bravio e a maré enchendo.
Uma onda lavou a canoa e algumas pessoas ficaram completamente molhadas. Era
impossível deixar o canal. Uma nuvem escura ameaçava chuva. A partida está
marcada para às 18 horas, afim de ser aproveitada a viração. 191

A travessia do mar na canoa Celeste: a Caravana rumo à Caraiva

A visita à “Sala de Milagres” e a “prece” às bandeiras na igreja do Arraial d’Ajuda terão


a serventia, de acordo com Morel, de ajudar a Caravana frente os obstáculos que possam
surgir durante a longa viagem que ainda resta. Após anunciar o embarque rumo ao próximo
destino da Caravana, o jornalista trouxe o “emocionante discurso” do médico Osvaldo
Cláudio, que a partir daquele momento também passa a integrar a Caravana, quando este
enaltece a “obra de brasilidade dos ‘Diários Associados’”. A multidão que presenciou os atos
irá conduzir os dois pavilhões e se emocionar com as palavras proferidas no momento de
embarcar as bandeiras na canoa Celeste. Gritos de entusiasmo ao Brasil se propagarão no
mesmo ambiente onde o mar bravio e a ameaça de mau tempo condicionam o momento da
partida para Caraiva.
A viagem na canoa Celeste que partiu de Porto Seguro naquela noite precisou navegar
por mais de 32 milhas náuticas (60 quilômetros) para chegar a Caraiva. Ao narrar parte desta
viagem o jornalista comenta sobre alguns aspectos da navegação com embarcações a vela –
como a “Celeste” –, e descreve a paisagem a partir da perspectiva marítima. Do embarque até
a barra do “rio Camemoan” passa-se pelo “Apaga Fogo” cujo canal atravessaria o “arrecife
memorável” por ser aquele que daria porto seguro às embarcações da frota comandada por
Cabral e narrada por Caminha. A partir da canoa Celeste que estava conduzindo as bandeiras
nacionais, Edmar Morel observa e narra os elementos da natureza que constituiriam a
paisagem histórica deste “pedaço de litoral banhado pela lua”.
O vento batia de cheio na vela da ‘Celeste’. A canoa deixou Porto Seguro pouco
depois de meia noite, e, em minutos, passou pelo ‘Apaga Fogo’, um canal que
separa o Arraial d’Ajuda dos arrecifes. As embarcações à vela só viajam para o sul
tangidas pelo terral, um vento que começa a soprar pela madrugada. As bandeiras
foram guardadas numa caixa de madeira. O mar estava encapelado e as ondas
lavavam a proa da pequena canoa. O luar banhava todo aquele pedaço do litoral e as
areias monazíticas, no alto de Juacema, brilhavam à luz da lua. Passou um avião da
linha noturna Natal-Rio, e, muito ao longe, um navio rumava para o norte. Pouco
depois das 9 horas atingimos a barra do Camemoan, o rio que banha o povoado de
Caraiva.192

191
Idem, p. 54.
192
Idem, p. 58.
92

O jornalista tece alguns comentários sobre suas impressões deste porto da Caravana. Em
seu relato sobre o povoado, que está sob o tópico, dentre outros, de “Terra de caboclos
descendentes dos Aimorés”, Morel diz que “Caraiva é pequena. Tem duas ruas de casas e uma
serraria. A população é de 800 habitantes, na sua grande maioria constituída de caboclos,
descendentes dos Aimorés e Tupiniquins”.193 Na sequência comenta uma impressão que tem
do povoado e que podemos compreender como pertencente ao quadro dos “espetáculos de
tristeza” que se identifica pela falta dos sinais da modernidade: “O povoado é triste. Nenhum
café, nenhum bilhar.”
“Caraiva é um porto no mar”, assim define Edmar Morel esse pedaço do litoral que está
no caminho da Caravana. No entanto, continua o jornalista, “aqui só existe um pescador. É o
velho Anastácio do Pajehú.” Ao que prossegue o enviado especial dos Diários Associados
dizendo que “Os homens trabalham na indústria da madeira e as mulheres na fabricação de
chapéu de palha [...], os homens de Caraiva trabalham na serraria que exporta tacos de soalho
para todo o Brasil”.194 Algo lhe chama a atenção sobre as mulheres em relação aos homens no
que tange aos mundos do trabalho e das habilidades necessárias para o desempenho de certas
funções.
Um facto despertou a nossa curiosidade. As mulheres de Caraiva são eximias
remadoras. Cortam as águas do Camemoan em todas as direções. As caboclas
manejam o remo, com tanta facilidade e segurança, que o serviço de descarga
naquele rio é feito, unicamente, pelas mulheres. Poucos homens sabem remar em
Caraiva.195

A lenda de uma das mulheres de Caraiva se configurará como um dos principais


assuntos a ser rememorado nas páginas dos jornais que cobrem a Caravana e que estarão
presentes nas comemorações das Asas do Brasil Novo durante as festividades do “Raid”. A
lenda da índia Ynaiá será o principal vetor de apropriação da história das mulheres indígenas.
E que serão trabalhadas e projetadas pelo discurso jornalístico que promove e anuncia as
atividades do “Raid”, por meio dessa narrativa que celebra a memória dos “restos mortais da
selvagem que morreu por amor”:
Carahyva é a terra da romântica índia Ynaiá, que morreu apaixonada por um
tripulante da esquadra de Gonçalo Coelho. A morte de Ynaiá causou revolta na tribo
dos Aymorés, cujo chefe era seu irmão. As moças de porto Seguro em
confraternização com os pilotos brasileiros, depositarão flores sobre os escombros

193
Idem, p. 58.
194
Idem, p. 59.
195
Idem, p. 59.
93

da igreja de São Francisco, onde repousam os restos mortais da selvagem que


morreu por amor.196

Objetos bentos desbravando a mata virgem: o espetáculo da natureza e o tempo das viagens

Antes de partirem de Caraiva rumo ao Monte Pascoal as bandeiras foram expostas no


cruzeiro dos jesuítas. Os “pavilhões nacionais de Brasil e da Cruz de Cristo (Portugal)” serão
tratados como objetos “bentos”, conduzidos por um “juiz de paz” e com os quais a
“população cabocla” ira desfilar.197 Desta feita que podemos compreender as bandeiras como
o “farol” da Caravana enquanto semióforo das experiências históricas que estavam sendo
produzidas naquele contexto. O caráter de “desbravamento da mata virgem” que envolve as
ações da Caravana confere ainda mais valor a esses sinais dos tempos novos que as bandeiras
representariam nas comemorações do descobrimento. E que por isso tinham o papel de “farol”
a indicar-lhes o caminho até esse novo Brasil que o hasteamento das bandeiras no Monte
Pascoal buscava significar.
Não será uma tarefa fácil. Mesmo Edmar Morel podendo afirmar que a missão estaria
prestes a terminar, reconhece-se a dura jornada que ainda teriam pela frente. A Caravana envia
uma mensagem do povoado encaminhando notícias para Porto Seguro relatando as dimensões
da empreitada. Quando saem de Caraiva os caravaneiros ainda tinham um longo percurso
pelas matas, rios, praias e montanhas da região. De lá ainda se tinha vista para a histórica
montanha que foi o primeiro sinal de terras que a visão de Cabral teria conseguido enxergar.
Nesta mensagem Morel expõem e compara diferenças de experiências do tempo quando
comenta sobre viagens, duração e formas de cobrir distâncias.
No posto telephonico do povoado enviámos notícias para Porto Seguro. Faltam
ainda 84 quilômetros para a caravana atingir o Monte Paschoal. Foi a primeira visão
da terra desconhecida aos olhos de Pedro Alvares Cabral. O monte é avistado de
uma distancia de 15 léguas. Surgem outras montanhas. É a serra de Gatorama e o
monte do Pescoço. Sentimos que a nossa missão está prestes a terminar. Viajamos
950 quilômetros em cinco horas de voo. As 14 léguas serão vencidas em 28 horas.198

“De Caraiva até o Monte Pascoal a viagem será feita através da mata virgem.” Serão
oito dias de viagem até chegarem ao cume. Nesta sequência do relato em que um dos tópicos
da reportagem é “Na Mata Virgem”, teremos a oportunidade de observar como a Caravana se
relaciona com a natureza circundante. “Há seis horas que viajamos pela mata virgem. O

196
MOREL, Edmar. Op. Cit., p.59-60.
197
Idem, p. 59.
198
Idem, p. 60.
94

caminho é aberto pelos guias e os animais pulam os obstáculos com facilidade.” A fauna e a
flora que vão surgindo (ou que se imagina encontrar: “Até agora não encontramos uma só
onça, o que não seria de estranhar.”) no caminho até o Monte Pascoal são descritas por Edmar
Morél. É um caminho difícil, mas que seria recompensado pelo espetáculo da natureza
desconhecido pelo país. A diversidade e a imponência da natureza dariam maior significação à
jornada e faria o jornalista se lembrar de quando tinha acreditado que o Monte Pascoal era
“logo ali”. 199
É lindo o canto do Bastião. Nuvens de periquitos passam a cada instante. Agora é o
canto do Tucano. É a arara no alto de uma árvore com as suas asas multicolores
banhadas pelo sol. O grito da jacutinga chega aos nossos ouvidos. As mutucas vão
agarradas às orelhas dos animais. Árvores gigantescas dão maior imponência ao
espetáculo até então desconhecido pelo repórter, que saltou do avião em Belmonte,
pensando que o Monte Paschoal era nos fundos da cidade... Sonho de repórter. 200

Dentre as leituras possíveis a esse tipo de discurso, interessa-nos aqui destacar alguns
elementos que se ligam à forma e ao tempo da descrição na narrativa do jornalista. Já vimos
como as estratégias narrativas do jornalismo podem produzir acontecimentos jornalísticos;
dissemos ainda que as reportagens especiais que seguem a “Caravana dos Diários
Associados” elaboradas pelo repórter se constituem como uma espécie de diário de campo da
viagem; agora se analisa como as experiências do tempo aparecem nas palavras de Morel. A
descrição que faz localiza o seu presente ante aquilo que está sendo descrito (“a cada instante”
“Agora é” “chega aos nossos ouvidos”) e demarca uma posição diferente dentre as diversas
reportagens que produz.
Dizer que a viagem foi, está sendo ou será dessa ou daquela forma demarca pontos de
vista temporais que extrapolam a mera correção ou não da conjugação verbal. Estes pontos de
vista são patamares de onde se vê de determinada forma um acontecimento passado ou futuro.
No sentido de que a depender de quando as reportagens foram escritas, as mudanças de lugar
temporal também alteram e interferem na forma como as mesmas são produzidas: seja do
ponto de vista do passado: a reportagem que se coloca como posterior à Caravana tendo sido
elaborada de memória; seja do ponto de vista do presente: como a citação acima, onde o
caráter descritivo marca a presença do escritor no momento de sua produção; seja do ponto de
vista do futuro: textos publicados como anunciação tanto do “Raid” como da própria
Caravana e que projetam o acontecimento por vir.

199
Idem, p. 60.
200
Idem, p.56-58.
95

É quase noite. Todo o dia viajamos na mata onde frondosas arvores impediam a
penetração do sol. O Monte Paschoal, que avistamos em Caraiva, está desaparecido.
O industrial Moacyr Moura, que conhece parte da mata, aconselha o pernoite às
margens do Curumbal, o rio que nasce no alto da montanha e serpenteia o Monte
Paschoal.201

O acampamento da Caravana próximo ao rio Curumbal ficaria cerca de 50 quilômetros


de distância do Monte Pascoal. “Armamos uma barraca à proteção de um tronco de árvore.
Estamos às margens do rio Curumbal. O escoteiro faz uma fogueira. O fogo afasta os
mosquitos. Mas os carrapatos procuram abrigo na barraca.” A refeição daquela primeira noite
na mata foi um “gostoso tatú, presente de uma família de Caraiva.” Os cavalos são
desencilhados e os homens que compõem a caravana procuram ver estrelas naquela noite
escura, mas não conseguem: “A gente não sabe se os céus estão cheios de estrelas... O
arvoredo impede a visibilidade. É noite escura e a fogueira está sendo alimentada. Somos sete
homens no acampamento. Pela madrugada prosseguiremos a marcha”.

Em Barra Velha os caboclos desconheciam a bandeira nacional

Após levantar acampamento e retomarem a marcha o jornalista relata o encontro com a


aldeia de Barra Velha e sua população. Se o espetáculo da natureza aprazia aos sentidos, o
espetáculo de tristeza que se encontra nesse lugar seria lamentável e é denunciado. “Temos
vistos caboclos inteiramente abandoados. Caboclos doentes e analfabetos. Na aldeia Barra
velha, encontramos uma pequena população descendente dos Tupiniquins. Todo mundo é
doente.” Uns seriam atacados pelo “impaludismo, outros pela verminose”. Os “vizinhos” do
Monte Pascoal estariam morrendo de fome. “E a fome se encarrega de matar lentamente duas
dezenas de brasileiros, cem por cento brasileiros.” 202
Em um tópico denominado “Desconheciam o Pavilhão Nacional” Edmar Morél
prossegue o relato do encontro com o “mundo daqueles caboclos” que viviam “naquela parte
desconhecida do Brasil”. Esse mundo seria “a miserável Barra Velha. No povoado não passa o
correio.” Outro sinal da falta do mundo moderno que seria buscado e que não seria
encontrado. “Ninguém sabe ler e ninguém goza saúde.” Os caboclos seriam “indolentes”, de
acordo com o jornalista, pois viveriam da caça e “raramente atiram as suas redes ao mar, que
dista quatro quilômetros da aldeia.” A razão de ser desta notícia estampada nos jornais foi

201
Idem, p. 57.
202
Idem, p. 55.
96

revelar uma “surpresa” acerca do desconhecimento da bandeira do Brasil por parte dos
“caboclos”. A situação que é narrada por Morel é simbólica para a compreensão do papel
civilizador que a Caravana se atribuía. 203
Uma surpresa estava reservada à caravana dos ‘Diários Associados’, que há sete dias
viaja pelos sertões da Bahia, rumo ao Monte Paschoal onde será hasteada pela
primeira vez a bandeira brasileira. Na aldeia de Barra Velha ninguém conhecia o
pavilhão nacional. Desfraldamos a bandeira do Brasil e os caboclos ficaram olhando
uns para os outros. As mulheres, sujas e andrajosas, pegavam no pano. Os homens
não falavam. O médico Oswaldo Claudio, que acompanha a caravana desde Caraiva,
explicou que era a bandeira nacional. Os caboclos ficaram satisfeitos e o chefe da
aldeia declarou: - É a bandeira do ‘pae-grande’. ‘papae-grande’, na linguagem
rústica daquela gente, parece que quer dizer: - presidente da Republica.204

Figura 13: Casas em Barra Velha. 205

A narrativa dessa situação coloca em cena a questão do outro. Em A Conquista da


América, Tzvetan Todorov coloca essa questão no centro de seu estudo sobre as formas como
nos comportamos em relação ao outro. O tema de sua obra é a história da descoberta da
América na qual a compreensão de signos de mundos diferentes se torna ponto chave do

203
Idem, p. 56.
204
Idem, p. 56.
205
In. Sob os céus de Porto Seguro, p. 135.
97

processo de conquista e colonização do continente.206 O desconhecimento da bandeira


nacional, este semióforo que vai à frente da Caravana, é gerado pelo choque entre mundos
diferentes. A tentativa de traduzir a linguagem “rústica” em termos de uma forma de
tratamento aceita pela classe política estatal é apenas um dos aspectos onde a questão do outro
reaparece em toda a Caravana e no próprio “Raid”.

A última marcha rumo à histórica montanha: o hasteamento das bandeiras no Monte Pascoal

Estamos em plena mata virgem. Deixamos a aldeia de Barra Velha às primeiras


horas da madrugada. É desolador o aspecto de miséria do povoado onde passamos a
noite, depois que a ‘Celeste’ foi colhida pelo temporal. A canoa ficou em Caraiva
com o leme quebrado e a caravana partiu a cavalo, trazendo como guia o caboclo
Feliciano.207

O Monte Pascoal estava ficando mais próximo. A última marcha em direção à histórica
montanha é narrada pela reportagem cuja manchete é “Uma fogueira anunciou o hasteamento
das bandeiras no cume do Monte Pascoal.” Na primeira linha a notícia do êxito da Caravana:
“Estamos exaustos, no cume do famoso monte, avistado por Cabral, em 2 de maio de
1500.”208 Antes de chegarem à exaustão, os membros da Caravana vão atravessar o trecho
mais difícil de toda jornada. “Marchando em terreno abrupto, a caravana dos ‘Diários
Associados’, depois de oito dias de viagem, atingiu o pico da histórica montanha.” O relato de
como foi “vencida a última etapa” – um dos tópicos da reportagem – que antecede à escalada
é iniciado com uma narrativa de como o monte apareceu aos olhos dos presentes.
Pela madrugada levantamos o acampamento às margens do Curumbal. O guia
Sebastião do Benicio veio ao nosso encontro. Este caboclo esteve no monte há
quinze anos. Marchamos pelas matas virgens e pouco depois das 12 horas, atingimos
a fazenda Monte Paschoal, de propriedade do industrial Moacyr Moura. O monte
estava aos nossos olhos. Foi um momento de satisfação, depois de oito dias de
viagem através de uma zona paupérrima de meios de transporte, estávamos nas
fraldas da montanha. Fizemos rápida refeição e prosseguimos. 209

Na trilha para o Monte Pascoal fora encontrado um riacho que ainda não teria sido
denominado, donde “O Repórter Ganhou um Riacho”, sendo o referido riacho batizado com o
nome do enviado dos Diários Associados. “Encontramos um riacho perdido na mata. Os guias

206
TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Editora WMF Martins
Fontes, 2000.
207
MORÉL, Edmar. Op. Cit. p. 55.
208
MORÉL, Edmar. Uma fogueira anunciou o hasteamento das bandeiras no cume do Monte Pascoal. In.
Sob os céus de Porto Seguro, p. 65.
209
MORÉL, Edmar. Op. Cit. p. 66.
98

não o conheciam, nem mesmo o Sebastião do Benicio, o único homem da caravana que
estivera há quinze anos na montanha. Surgiu a ideia do baptismo. Foi feita uma sorte e o
repórter ganhou o riacho...”.210 A caravana que tinha se dividido, uma parte rumou pelo lado
sudeste e a outra parte pelo oeste, seria convocada a estar presente de forma completa no
batismo do riacho. A forma de comunicação que foi utilizada para essa convocação pode ser
compreendida como um revelador dos saberes locais daqueles que se embrenhavam pela
mata.
O escoteiro belmontense deu dois tiros e o sinal foi repetido. Quinze minutos depois
apareceu o medico Oswaldo Claudio, que havia tomado o rumo sudoeste. O medico
fez as vezes de padre e o industrial Moacyr Moura serviu de padrinho. O ‘padre’
pronunciou as seguintes palavras: - Riacho, eu te batizo em nome do Padre, do Filho
e do Espírito Santos com o nome riacho Morél...211

“Atravessamos a mata. Surgiu a histórica montanha, a montanha avistada por Cabral”.


O repórter descreve o Monte Pascoal: “O monte tem uma altura calculada em 750 metros. A
parte norte é desnuda. O lado noroeste é uma gigantesca rocha. O cume do monte tem a forma
de uma caçarola emborcada com ligeiro declínio para a frente. O pico tem cerca de cem
metros de comprimento e dois de largura.”212 As dificuldades da escalada resumida por Morél
quando relata a forma que se estava se dando a marcha até o cume é uma síntese da exaustão
de todo o percurso da Caravana.
A escalada foi penosa. Os facões abriam caminhos na floresta. O terreno acidentado
dificultava tudo. Marchávamos em terreno abrupto. Os nossos passos eram
vagarosos. Andávamos cinco minutos e descansávamos quinze. Estávamos
estropiados. Roupas rasgadas, sujos e o corpo cheio de arranhões e carrapatos. 213

Os 750 metros do monte foram vencidos em cinco horas de uma escalada que além de
difícil foi perigosa, haja vista os riscos que o terreno oferecia aos membros da Caravana: “Em
certos trechos, a extensão é de 70 centímetros. Foi num destes abismos que dois caravaneiros
quase rolaram.” Faltando poucos metros para atingir o cume e escalando na “rocha viva” as
bandeiras foram conduzidas pelo guia “Sinhôzinho”. “Finalmente chegamos ao cume.
Exaustos e sedentos”. “O nosso cansaço é tão grande, que só amanhã, às primeiras horas do

210
Idem, p. 66-67.
211
Idem, p. 67.
212
Idem, p. 68-69.
213
Idem, p. 66.
99

dia, faremos tremular as bandeiras do Brasil e da Cruz de Cristo, pavilhão que vinha
desfraldado na esquadra de Cabral.”214
Após percorrerem “180 quilômetros” em pouco mais de vinte dias a Caravana tinha
conquistado o cume do Monte Pascoal. Em uma jornada de proporções épicas a Caravana
chegava ao fim de sua missão. Ainda resta um último objetivo a ser cumprido, o mais
simbólico, diga-se, que é hastear as bandeiras do Brasil e da Cruz de Cristo no primeiro
pedaço de terra avistado pela frota cabralina. Como preparativo para o momento de
solenidade do hasteamento levou-se emprestado do destacamento policial de Caraiva um
clarim para ser tocado pelos escoteiros.215 A cerimônia final contou com o favorecimento dos
céus. Nela os expedicionários da Caravana realizaram a última tarefa da jornada.
Naquela noite tudo favoreceu aos expedicionários. Os céus estavam cheios de
estrelas e a temperatura era agradável. Dormimos em plena floresta e pela
madrugada iniciamos os preparativos para o hasteamento das bandeiras. Dois
mastros foram erguidos e às 5 horas, ao som do clarim, as bandeiras de Brasil e da
Cruz de Cristo tremularam nos céus do Monte Pascoal.216

Seria realmente a última tarefa se não se tratasse de um empreendimento levado a cabo


por um grupo jornalístico. Para que todo esse esforço fosse significativo era preciso
comunicar o êxito da missão. Sem rádios ou quaisquer outro meio de comunicação para
contato direto com qualquer outra pessoa fora daquele cume, os membros da Caravana
encontraram um meio de emitir o sinal que indicaria o hasteamento aos demais participantes
do “Raid”. Através de uma tecnologia de tempos passados sinais de fumaça foram lançados
aos céus como forma de comunicar o término da missão que a Caravana dos Diários
Associados tinha iniciado quando Edmar Morel aterrissou em Belmonte.
Naquela noite sem luar “Uma Fogueira Simbólica” foi acessa para sinalizar a presença
dos caravaneiros no cume do “famoso monte” e anunciar efetivamente o cumprimento do
objetivo da Caravana: “Acendemos uma fogueira e grossos rolos de fumo subiram do pico da
montanha, anunciando o desfraldar das bandeiras.” Essa fogueira simbólica que assinala o
hasteamento será sobrevoada na tarde do próximo dia 3 de maio pelos aviões da esquadrilha
comandada por Gago Coutinho. “Estava terminada a nossa missão. [...] Deixamos Porto
Seguro nas asas do avião da Aeronáutica Civil, sob o comando de Luiz Sampaio. Como é

214
Idem, p. 65-69.
215
Idem, p. 67.
216
Idem, p. 68.
100

217
triste Porto Seguro! Estão acabando com o lugar onde nasceu o Brasil!” Em tom de
denúncia Edmar Morel encerra sua participação na Caravana dos Diários Associados. É ao
retornar ao Rio de Janeiro que o repórter escreve e publica esta série de reportagens onde
narra e descreve os caminhos percorridos pela Caravana em sua missão de hastear as
bandeiras no cume do Monte Pascoal em 1939.
A longa Caravana que desbravou as matas e o litoral do sul da Bahia para promover o
redescobrimento do Brasil percorreu caminhos da história que foram emoldurados em uma
paisagem repleta de semióforos atestadores da relevância da missão de hastear as bandeiras. O
toque do clarim que ecoou o hino nacional na cerimônia de posse realizada no cume da
histórica montanha, sinalizou aos ventos que estava sendo demarcada no Monte Pascoal a
nova fronteira entre o Brasil do passado e o Brasil do futuro que se anunciava com a
aproximação da Revoada das Asas que iria sobrevoar o famoso monte. A Caravana acreditava
ser um marco civilizador neste processo de redescobrimento de um Brasil Novo.

Figura 14: Hasteamento das bandeiras no Monte Pascoal. 218

217
Idem, p. 68-69.
218
In. Sob os céus de Porto Seguro, p.70.
101

CAPÍTULO 3: ALEGORIAS DO DESCOBRIMENTO NO “RAID” A PORTO SEGURO.

Poema da Revoada das Asas... 219

Porto Seguro! Depois que Alvares Cabral


Te descobriu, achando que teu Porto
Era Seguro... faz tanto tempo já,
Que, a gente mesmo fica atrapalhado
Diante de ti, nesse segundo momento
Histórico da “Revoada das Asas!...”

Do Porto Seguro que fôste outrora


As Caravellas...
Passaste para o plano
Do Porto Mais duvidoso
Da América do Sul!...
As areias movediças da tua barra
Afastaram de ti
Todo o contacto marítimo civilizador...
Ficaste despovoada Porto Seguro!
Uma espécie de avozinha boa
Que os netos
Vendendo mocidade,
Às vezes visitam em dias de anniversário...
A História, sempre duvidosa.
Destruindo ancestralismos,
Chegou mesmo ao desplante
De colocar um ponto duvidoso
Na tua origem...
Santa Cruz anda também gritando
Que foi lá às margens do “João de Tiba”
Que frei Henrique
Disse a primeira missa!...

Mas nada importa Porto Seguro!


Os teus arrecifes imortais
Os teus canhões centenários
Todo esse montão de ruinas...
São atestados vivos
Da tua primitividade!...

Ergue-te na história Porto Seguro,


Agora, mais do que nunca
Agora que Gago Coutinho te confirmou
Na visão mágica
De Assis Chateaubriand!...

219
Fábio Amado. In. Sob os Céus de Porto Seguro, 1940, p.191-192.
102

3.1. O Descobrimento e as Máscaras da Civilização: Raízes, Rusticidade e Marcha de


Brasilidade.

Da busca pelos sinais da modernidade passando pela configuração da paisagem do


descobrimento, chegamos ao momento de problematizarmos as relações entre o
descobrimento e as raízes da civilização brasileira, a partir da alegorização de sua origem na
cidade de Porto Seguro que será considerada o lugar que guardaria o “fogo imortal de
brasilidade”. Os discursos que envolvem essa temática constituem-se em importantes
indicadores do valor atribuído às ações de comemoração durante a anunciação do “Raid” e da
efetivação do mesmo. Por meio desta problematização poderemos questionar tanto os sentidos
e significados do ato de rememorar o descobrimento, como também inquirir sobre o caráter de
processo civilizador impresso nos discursos e ações desenvolvidas. O itinerário desta
abordagem se dará por meio das questões que envolvem um movimento que vai da busca pela
origem, que encontrará no “gênio descobridor” um passado que se quer fonte legitimadora do
presente, até a anunciação de um futuro projetado sobre as “raízes da civilização” que seria
justificado como necessidade de progresso, a partir da produção de uma “marcha de
brasilidade” que transformará a “rusticidade” de Porto Seguro em uma virtude civilizatória.

Em busca das raízes do Brasil: civilização, origem e destino.

Neste momento uma breve digressão nos permitirá situar um debate sobre a busca pelas
raízes da civilização brasileira que era contemporâneo às ações do “Raid” a Porto Seguro e
assim esboçar uma perspectiva de análise com a qual problematizaremos as concepções que a
palavra civilização adquiriria no contexto da comemoração das Asas do Brasil Novo. Ao
mesmo tempo em que buscamos reconstituir panoramicamente um horizonte intelectual da
década de 1930 na qual estava imersa a questão das raízes, apresentaremos algumas noções do
conceito de civilização a partir dos quais poderemos problematizar as interpretações e usos
desta palavra pelos promotores do “Raid”. Essa apropriação do discurso jornalístico que
vinculará a busca pelas raízes do Brasil a um projeto de marcha para o futuro, encontra no
processo civilizador a razão fundante de um discurso que se esforça por compreender e
instaurar uma interpretação acerca da origem e do destino da experiência histórica brasileira.
Já vimos no capítulo anterior que a palavra civilização apareceu atrelada aos sinais da
modernidade como horizonte a ser buscado, em contraste com os sinais de decadência
presentes na paisagem onde jazem as ruínas da “lendária cidade”. Inicialmente, preferiu-se
explicitar o modo como o discurso da civilização emergiria no contexto do Novo
103

Descobrimento do Brasil, quando o “progresso de fachada” do país foi denunciado nas


palavras que emolduraram os espetáculos de tristeza do lugar de origem. Esse “grito de
socorro” visava demandar as providencias necessárias para regatar um Brasil do passado e
inseri-lo no rumo das civilizações modernas. Neste desenrolar das narrativas que permitiram o
emolduramento de uma paisagem do descobrimento, por intermédio da Caravana que
acreditava ser portadora de uma bandeira civilizatória, não havíamos buscado ainda uma
explicitação do conceito de civilização, preferimos, antes, reconfigurar os espaços das
experiências e os horizontes de expectativas daquela contemporaneidade. Isso foi feito por
meio da reconstituição dos significados atribuídos pelos agentes de promoção do “Raid”
àquilo que entendiam ser a civilização brasileira.
Veremos agora, em companhia do filósofo Jean Starobinski, como a palavra civilização
expressa um conjunto múltiplo e variado de significações oriundas de um processo de longa
duração que emergiria na modernidade ocidental como o “vocábulo sintético de um conceito
preexistente” que abrangeria: tanto o sentido de um elogio e laicização da religião,
desdobrada no policiamento da conduta civil da sociedade no contexto de surgimento dos
Estados-nações – “ao mesmo tempo como poder de repressão (‘freio’), de reunião fraterna
(‘confraternidade’) e de abrandamento [dos costumes]”; ou ainda, como um “conceito
unificador” proveniente do resultado cumulativo do processo que faz da “civilidade” uma
virtude social a ser cultivada pela “educação dos espíritos, desenvolvimento da polidez,
cultura das artes e das ciências, crescimento do comércio e da indústria, aquisição das
comodidades materiais e do luxo”.220 Esse conjunto múltiplo e variado de significações se
somará a outras concepções com as quais poderemos recompor o cenário onde as máscaras da
virtude civilizatória se farão presentes nos festejos da Revoada das Asas.
De acordo com Starobinski, desde o fim do século XVIII, inicialmente na Europa, que
escritores tomam a palavra “civilização” como objeto de reflexão que se impôs pelo poder de
síntese. Englobaria desde a etiqueta dos jantares da corte, até a capacidade de expressar uma
interpretação teleológica do sentido histórico de um conjunto de sociedades e que será
utilizada como um instrumento de mensuração do grau de aperfeiçoamento dos povos. Estes
intelectuais buscaram inicialmente discriminar as condições e os constituintes materiais e
morais da civilização, que lhes permitisse estabelecer um juízo de valor acerca do grau de
desenvolvimento da atividade individual, passando pelo aperfeiçoamento da sociedade até

220
STAROBINSKI, Jean. As máscaras da civilização: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p.11-
14.
104

chegar ao progresso da humanidade. A reflexão historiadora que se estabelece estava


preocupada em “distinguir os momentos sucessivos” e buscava “determinar com precisão as
etapas do processo civilizador, os estágios do progresso das sociedades”.221
No diagnóstico do atraso de Porto Seguro, enquanto origem emoldurada nos quadros de
uma paisagem em decadência, quando Joaquim de Mello interpreta o abandono do lugar onde
o Brasil teria nascido como um índice avaliativo dos estágios do progresso ou não da
civilização brasileira no contexto de redescobrimento no Estado Novo, fica patente uma
compreensão que considera importante determinar as etapas do processo civilizador e que
servirá como instrumento de análise para distinguir o novo do velho. As poucas “ilhas de
civilização” que estavam dispersas no “oceano da mata verde” relevariam um Brasil ainda
dominado pelo estado de natureza e que necessitava disseminar sinais da modernidade pelo
território, como forma de estabelecer uma marcha de progresso e assim favorecer o
“aperfeiçoamento” da sociedade pelo processo civilizador e unificador presentes nas ações do
regime político de então. Essa recapitulação é um parêntese que nos permitiu sintetizar um
modo de compreender o tópico 2.1 e relacionar o que já foi trabalhado com a explicitação das
noções que formam este conceito múltiplo e aglutinador que é civilização.
Retomando Starobinski, vemos que “A palavra civilização, que designa um processo,
sobrevém na história das ideias ao mesmo tempo em que a acepção moderna de progresso.
Civilização e progresso são termos destinados a manter as mais estreitas relações”. Estas
relações adviriam da dinâmica interpretativa que proclamaria a civilização como
aperfeiçoamento do gênero humano e do estado social. Distinguir e precisar os estágios e as
etapas dos “quadros dos progressos do espírito humano” significaria por “mãos à obra” ao
processo de “marcha da civilização por meio de diversos estados de aperfeiçoamento
sucessivos”.222
Nesse sentido, o processo de avaliação do estágio civilizatório promovido pelos agentes
da “Revoada das Asas” encontra em Porto Seguro, por meio da comemoração do
descobrimento, a origem que servirá de parâmetro para o estabelecimento do diagnóstico do
atraso ao mesmo tempo em que mobiliza o dispositivo que vincula a valorização deste
passado com a proclamação de sua superação. Esta proclamação atrela uma compreensão da
origem como modo de projetar um destino enraizado na história.

221
Idem, p.14-15.
222
Idem, p.15. Grifos do autor.
105

Para o filósofo, outro elemento que caracterizaria o conceito de civilização é que ele
faria parte da “família de conceitos a partir dos quais um oposto pode ser nomeado, ou que
começam a existir, eles próprios, a fim de se constituir como opostos”. Essa estruturação do
discurso da civilização por meio de uma lógica dos opostos estabelecerá um modo de
compreensão que hierarquiza categorias como forma de ressaltar essa mesma hierarquia. “É
preciso que existam cidades, e citadinos, para qualificar o rusticus e a rusticitas, em oposição
ao urbanus e à urbanitas. E é preciso ser habitante das cidades, seja para se gabar de uma
civilidade superior, seja para lamentar [...] a tranquilidade arcádica”. O descrédito do mundo
rural se daria devido à sua “rusticidade”, em contraposição à civilidade das cidades. A
reprovação e a apropriação da rusticidade seriam faces opostas das máscaras da civilização:
seja quando estabelece de forma conflitiva uma hierarquização entre os habitantes destes
mundos distintos, onde se dá a exaltação do urbano; seja quando o reverso da máscara zomba
de forma irônica os “finos encantos” destes “espíritos cultivados” tornados suspeitos, pois não
seriam capazes de afirmar uma “poesia selvagem” que valoriza a natureza rústica e fronteiriça
do mundo a ser desbravado.223
Civilização é, assim, um conceito de movimento e de interpretação deste mesmo
movimento da modernidade. A palavra civilização é um termo pelo qual se luta e contra o
qual se combate. Nas batalhas interpretativas sobre a constituição, origem e destino da
civilização brasileira uma obra se destacaria no debate que permeava o horizonte intelectual
do contexto de realização do “Raid” a Porto Seguro: Raízes do Brasil de Sério Buarque de
Holanda (1902-1982), cuja primeira edição é de 1936, é um “clássico de nascença” nas
palavras de Antonio Candido. Segundo o crítico literário que prefacia o livro de Sérgio
Buarque, indagando sobre o significado de Raízes do Brasil ao evocar os “impactos
intelectuais sobre os moços de entre 1933 e 1942”, este ensaio de interpretação da experiência
histórica brasileira, se somaria a Casa-grande e senzala (1933) de Gilberto Freyre (1900-
1987) e a Formação do Brasil contemporâneo (1942) de Caio Prado Júnior (1907-1990),
como livros considerados “chaves” para “exprimir a mentalidade ligada ao sopro de
radicalismo intelectual e análise social que eclodiu depois da Revolução de 1930 e não foi,
224
apesar de tudo, abafado pelo Estado Novo”. Este impacto intelectual causado por essas

223
Idem, p.20-22.
224
CANDIDO, Antonio. O significado de Raízes do Brasil. In. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.9-11.
106

obras constituiria um horizonte interpretativo a entremear a opinião pública que compreendia


o debate da época e que marcou aquela geração.
Para os fins deste trabalho vamos focar apenas nos aspectos atinentes a Raízes do
Brasil, a fim de estabelecer uma relação de problematização com as possibilidades
interpretativas evocadas durante o “Raid” que se expressam por meio desta busca pelas raízes.
Ainda segundo Candido, a “atmosfera intelectual” onde o livro teria aparecido e atuado foi
marcada por uma reflexão sobre a realidade social no pensamento latino-americano que se
fundamentava pelo senso e pela lógica dos contrários: apresentados como condições
antagônicas em função das quais se ordena a história dos homens e das instituições. Essa
“admirável metodologia dos contrários” estabelece diferentes níveis e tipos do real que se
aproveita do “critério topológico de Max Weber” para tratar de maneira dinâmica a interação
no processo histórico. Com este instrumental, Sérgio Buarque de Holanda analisaria os
“fundamentos do nosso destino histórico, as ‘raízes’, aludidas pela metáfora do título,
mostrando a sua manifestação nos aspectos mais diversos”.225
Dentre os diversos aspectos aludidos, que se fundamentam numa visão onde
determinadas tipologias da realidade histórica seriam obtidas pelo “enfoque simultâneo”
suscitado pelos pares opostos a engendrar uma “força de esclarecimento” que possibilitaria
antevê “nosso destino histórico”, destacaremos aqueles ligados a uma “herança rural” que
suscitaria conflitos e aproximações com a “mentalidade urbana”. As raízes ibéricas da
colonização da América são esmiuçadas num traçado que contempla a “visão do múltiplo no
seio do uno”. A aventura portuguesa que coloca em relação a descoberta de um “Mundo
novo” com a “velha Civilização”, desembocará numa dicotomia básica que marcaria a
fisionomia do Brasil: a relação rural-urbano. O português seria um “semeador de cidades
irregulares” que em virtude de seu interesse pelas “conquistas” teria se apegado a “um meio
de fazer fortuna rápida”, donde o predomínio das feitorias distribuídas pelo litoral que eram
acessadas pelo mar. Neste processo, o português teria manifestado uma “adaptabilidade
excepcional” onde o “espírito de aventura” seria o elemento orquestrador de “uma forma de
ocupação aventureira do espaço” que se desdobraria numa “civilização rústica, sendo os
próprios intelectuais e políticos um prolongamento dos pais fazendeiros e acabando por ‘dar-
se ao luxo’ de se oporem à tradição”.226

225
Idem, p.12-13.
226
Idem, p.13-16. Grifo nosso.
107

Esta civilização rústica seria oriunda de uma herança rural que estava, por sua vez,
ligada a um passado onde a ocupação aventureira do espaço, em conjunto com a exploração
do trabalho escravo teria gerado a estrutura de nossa sociedade colonial. Nas palavras de Sério
Buarque de Holanda, seria preciso considerar o fato de que essa estrutura teve sua base fora
dos meios urbanos. Se a rigor o que os portugueses instauraram no Brasil não teria sido uma
civilização propriamente agrícola, eles sem dúvida teriam instaurado uma “civilização de
raízes rurais”. “É efetivamente nas propriedades rústicas que toda a vida da colônia se
concentra durante os séculos iniciais da ocupação europeia: as cidades são virtualmente, se
não de fato, simples dependência delas”. Essa situação não teria se modificado até a Abolição
em 1888. Esta data representaria o “marco divisório entre duas épocas” de nossa “evolução
nacional”. 227
Desde a Monarquia que os fazendeiros escravocratas e seus filhos “educados nas
profissões liberais” monopolizariam a política ao assumirem cargos em “posições de mando”
e, assim, fundariam “a estabilidade das instituições nesse incontestado domínio”. Gerações
que se elegiam candidatos, dominavam parlamentos e se tornavam ministros. Esse domínio
seria tão incontestado que “muitos representantes da classe dos antigos senhores puderam,
com frequência, dar-se ao luxo de inclinações antitradicioanlistas e mesmo empreender [...]
importantes movimentos liberais”. As operações oriundas destes movimentos liberais, que
interfeririam no “curso de nossa história”, seriam promovidas por alguns destes representantes
filhos dos pais fazendeiros surgidos das propriedades rústicas que dominavam a paisagem
social da civilização brasileira. Serão estes, que se “darão ao luxo” de se oporem à tradição a
partir de dentro dela, que promoverão “o bom êxito de progressos materiais que tenderiam a
arruinar a situação tradicional, minando aos poucos o prestígio de sua classe e o principal
esteio em que descansava esse prestígio, ou seja, o trabalho escravo”. O contraste entre a
“pujança das terras de lavoura e a mesquinhes das cidades na era colonial” sofrerá uma
reviravolta a partir da “incompatibilidade do trabalho escravo com a civilização burguesa e o
capitalismo moderno”. 228
Nesse sentido, o espírito de aventura do português que influenciaria no modo de
estabelecimento de uma colonização litorânea, seria desdobrado pelo espirito das “bandeiras
paulistas” que desafiará “todas as leis e todos os perigos” para dar ao Brasil sua “atual

227
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.73. Grifo
nosso.
228
Idem, ibid.
108

silhueta geográfica”. Essa transferência do “espírito de aventura” do português para o paulista


teria feito nascer “em verdade um momento novo de nossa história nacional”. São Paulo seria
uma “terra de pouco contato com Portugal” e teria sido lá que “pela primeira vez, a inércia
difusa da população colonial adquire sua forma própria e encontra voz articulada”. No
desenrolar de sua metodologia dos contrários, Sérgio Buarque de Holanda vai estabelecer as
características que diferenciariam os portugueses, estes que “criavam todas as dificuldades às
entradas terra adentro, receosos de que com isso se despovoasse a marinha”, dos paulistas,
estes “audaciosos caçadores de índios, farejadores e exploradores de riquezas”.229 Se até o
“descobrimento de ouro nas minas” os paulistas não teriam assentado uma “obra
colonizadora”, é a partir deste movimento das bandeiras que ficaria mais bem demarcado que:
A expansão dos pioneers paulistas não tinha suas raízes do outro lado do oceano,
podia dispensar o estímulo da metrópole e fazia-se frequentemente contra a vontade
230
e contra os interesses imediatos desta.

A expansão bandeirante transformará a rusticidade em luxo exótico, quando esta mesma


rusticidade for elevada a um símbolo de conquista que transfigura a natureza selvagem em um
próximo-tornado-distante, ou seja, o mundo a ser desbravado é rústico e quando conquistado
é elevado a uma virtude civilizatória que imprime uma nova face de afirmação à civilização
rústica, em oposição às velhas máscaras coloniais que simbolizariam o atraso. As máscaras do
processo civilizador que emergirão desta marcha iriam proclamar uma “poesia” de domínio
da natureza, por meio do estabelecimento de um discurso que transforma a rusticidade em
uma virtude civilizatória, como forma de autovalorização a distinguir o desbravador brasileiro
que superaria o descobridor português. Essa problemática oriunda da lógica dos opostos que
presidiria às análises do processo civilizador em Raízes do Brasil nos permitirá analisar as
concepções que esta “marcha de brasilidade” adquiriria no horizonte interpretativo das ações
de redescobrimento do Brasil Novo, durante a Revoada das Asas em comemoração aos 439
anos do aniversário de fundação do país.
Antes, veremos como a “raça dos descobridores” será interpretada como sendo a origem
da “arvore branca” da civilização brasileira, neste contexto de busca pelas raízes do Brasil que
presidiam à realização do “Raid” nas palavras de seu principal articulador, Assis
Chateaubriand.

229
Idem, p.100-102.
230
Idem, p.102.
109

O gênio descobridor português: a árvore branca da civilização brasileira.

Em 12 de abril de 1939, ou seja, menos de um mês antes do “Raid”, em um artigo


assinado por Assis Chateaubriand, chamado Porto Seguro, este se questiona e questiona o
leitor em potencial sobre onde se encontrariam as “raízes da civilização brasileira”. Tanto a
necessidade/contexto de elaboração das questões relativas a este tema e seus significados,
como as respostas que lhes serão dadas fazem parte do repertório de problematizações deste
trabalho e que agora serão tratadas por meio da análise dos discursos sobre os elementos do
processo civilizador presentes no “Raid” em comemoração ao “Descobrimento do Brasil”.
Inicialmente esta abordagem ser dará por meio da explicitação dos valores atribuídos ao
“descobrimento”, quando o diretor proprietário dos Diários Associados retoricamente
questionar acerca da importância do “gênio descobridor português” para as raízes do Brasil:
Por ignorância, por incapacidade ou preguiça de raciocinar, falamos
habitualmente de Portugal como se fora terra estranha. Mas, donde são
os nossos avós, bisavós e tataravós? Onde se acham as raízes do Brasil
que prolonga aqui a seiva da civilização greco-latina? Qual o
patrimônio comum da nossa historia? As formas de vida que nos
cercam que representam senão as linhas do gênio do descobridor da
231
nossa gleba?

Nessa busca pelas raízes do Brasil o “Raid” a Porto Seguro oportunizará a


Chateaubriand expressar as concepções que o principal agente de comunicação e promoção da
revoada teria sobre as relações entre as ações de resgate das origens, atreladas a uma
significação destes atos como parte do diagnóstico do grau evolutivo da civilização brasileira
daquele momento. O “patrimônio comum da nossa história”, representado pela herança
portuguesa, se converterá no símbolo de uma raiz que se vincula ao legado greco-latino. Ao
anunciar o “Raid” o jornalista estabelece os laços entre a realização da revoada e a união das
“armas e bandeiras” de Brasil e Portugal, por meio da participação dos aviadores brasileiros
que seriam simbolicamente comandados por um português na “expedição celeste” ao “berço
da pátria”:
Vamos fazer a 3 de maio o maior ‘raid’ em massa que ainda se promoveu nesta parte
do continente. Do Rio e São Paulo, Rio Grande e Minas Gerais partirão mais de 60
aparelhos rumo do berço da pátria brasileira. No comando supremo dessa frota aérea
estará um almirante português. As armas e as bandeiras de Portugal e do Brasil
marcharão confundidas nessa expedição celeste.232

231
CHATEAUBRIAND, Assis. Porto Seguro. In. Sob os céus de Porto Seguro, p.6
232
CHATEAUBRIAND, Assis. Op. Cit. p.6-7
110

O “Raid”, aqui, como uma forma de por em marcha as bandeiras que unirão os Estados
Novos dos dois países. Prossegue Chateaubriand acerca da “inspiração” para a realização da
revoada: “A contextura mesma desse ‘raid’, a inspiração que o anima, favorecem a renascença
do espírito de fraternidade, que encontramos em tantos lances da historia luso brasileira.” Para
ele esse “espirito de fraternidade” significava “uma solidariedade cada vez mais forte, porque
mais consciente, [que] une portugueses e brasileiros, como almas que refletem a origem
comum”. Ele louva a atitude positiva das “novas gerações de intelectuais no Brasil” que
teriam a “lucida compreensão do papel da conquista lusitana na grandeza do Brasil”.233
A união entre Brasil e Portugal será reiteradamente evocada durante todo o evento como
laços de irmandade entre os povos. “Somos uma mesma família, porque temos o mesmo
sangue, a mesma língua, os mesmos deuses, dentro da mesma cidade.” O “apreço pela raça
dos descobridores” estaria presente na revoada através da escolha do almirante Gago
Coutinho como “comandante supremo” do “Raid” a Porto Seguro. Como principal convidado
e homenageado da revoada de maio ele personifica a presença dos valores que eram então
enaltecidos. “Um mesmo pensamento de admiração identifica toda a família da aviação pelo
navegador.” Toda essa homenagem se devia ao fato de Gago Coutinho ser identificado,
juntamente com o aviador Sacadura Cabral, como “o navegador que primeiro fez a travessia
[aérea] do Atlântico Meridional” no “Raid” Lisboa-Rio em 1922 no contexto das
comemorações do Centenário da Independência do Brasil, quando amerissaram na cidade de
Porto Seguro. Essa travessia será rememorada, em outro momento do “Raid”, como se
“secundando o glorioso feito de Pedro Alvares Cabral”.
No artigo já citado, Assis Chateaubriand diz que os aviadores “preparam-se para render
ao almirante as homenagens aos grandes serviços desse homem ilustre”.234 Enaltece “sua
coragem, seu talento, sua cultura de homem de ciência” dizendo que estas qualidades
“estreitaram o imenso lençol verde que nos separa da Europa”. Devido à façanha dos
aeronautas portugueses “somos mais vizinhos da Europa” e assim mais próximos das raízes
greco-latinas da civilização brasileira. Para Chateaubriand, graças aos feitos de Gago
Coutinho se antes “o mar nos punha a dez dias do antigo continente [...], essa distância hoje se
reduz praticamente a pouco mais de um dia”. Na exposição dos motivos que teriam levado os
promotores do “Raid” a convidar esse “homem ilustre”, o diretor dos Diários Associados

233
Idem, p.5-7.
234
Idem, p.5.
111

exprime sua visão sobre o papel da “raça dos descobridores” na formação da civilização
brasileira:
Convidando Gago Coutinho a assumir o comando em chefe do ‘raid’ a Porto Seguro,
seus promotores não quiseram, porém, traduzir apenas a confiança nos dotes do
piloto. Foram um pouco além, para exprimir, na significação do local e da data, o
apreço pela raça que descobriu a terra de Santa Cruz e nos elevou de bugres a
civilizados.235

Dessa forma eram anunciados o “Raid” e seus homenageados, como também eram
expressos os valores e significados da própria revoada. Fica caracterizado um modo de
interpretar o processo de formação nacional que coloca na “raça dos descobridores” a fonte de
sua civilização. Ao mesmo tempo se condena um passado anterior à chegada da “Santa Cruz”
relegando os povos que aqui viviam (“bugres”) ao atraso e não reconhecendo as contribuições
destes para com o “nascimento do Brasil”. O “Descobrimento” se torna então a marca da
dominação colonial que acaba por fundamentar toda uma tradição interpretativa sobre a
história do país. João Pacheco de Oliveira, ao buscar empreender a revisão do paradigma
historiográfico brasileiro, salienta a necessidade de se fazer uma “outra leitura da história de
236
nosso país”. Muitas dessas “cenas de fundação” esconderiam um personagem central: o
índio. Mesmo que este apareça, sua participação é reduzida ao estereótipo do “índio do
passado”, preso numa forma idealizada e “pacificada”. Nessas cenas os papeis estão postos e
não se dá ouvido às vozes dos outros que não os autorizados pelo discurso fundador. Esse
silenciamento é uma das marcas da produção do esquecimento e do massacre desses povos no
processo de formação da civilização brasileira.
Num artigo intitulado Uma Missa em Porto Seguro, também assinado por Assis
Chateaubriand, a irmandade entre portugueses e brasileiros é apregoada de modo apologético
e por outro lado fica demostrado de forma categórica a perspectiva que o principal articulador
do evento teria sobre os povos indígenas e a (não) presença destes no concerto da civilização
brasileira. É uma longa citação, mas que se faz necessária, pois esclarecedora da perspectiva
daquele que detinha o poder “editorial” frente ao conglomerado de comunicação que
comandava. Diz Chateaubriand:
Em face de Porto Seguro existe uma unidade espontânea entre portugueses e
brasileiros. Ali foi plantada a arvore da civilização branca no Brasil, e essa arvore
quem a mergulhou na terra da Santa Cruz foram possantes braços lusitanos. Na sua
grandeza, como na sua urbanidade, esse tronco é tudo o que somos hoje e o que

235
Idem, p. 5-6.
236
OLIVEIRA, João Pacheco de. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e
formação de alteridades. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016, p.45.
112

poderemos vir a ser amanhã. Graças a ele, emergimos da barbaria e fomos


assimilados a uma outra substância humana e espiritual. Portugal significou, neste
pedaço do novo continente, ordem, justiça, civilização e humanidade. Houve
minutos de demência em que se tentou aqui regredir ao índio. Mas que era o íncola
entre nós senão o botocudismo e a ignorância? O brasileiro que ai existe é, na
humanização das suas faculdades do espírito, um processo de cultura cem por cento
lusitano. Com a molécula selvícola, qual a contribuição do Brasil no quadro das
atividades espirituais? Que é o que produzimos antes do aparecimento de Cristo em
Porto Seguro? A riqueza da nossa vida material, moral e espiritual resulta das
categorias lusitanas na formação e na definição do nosso homem. Ele começa a
adquirir um valor universal quando nessa arena deserta e pobre, surge o portador da
civilização europeia. Se o índio aqui houvesse logrado eliminar o português, não
passaríamos das miseráveis malocas, que o progresso não conseguiu ainda atingir
nos sertões amazônicos, mato-grossense e goiano.237

Destaca-se que está reportagem é do dia mais importante de todo o “Raid”. O dia 3 de
maio de 1939 é o momento da apoteose das cerimônias de posse que são reativadas a partir
dos acontecimentos de refundação agenciados pela revoada. Apoteose de dominação por meio
de performances celebrativas e que estão ligadas ao discurso do mito fundador que alicerçaria
o processo de marcha civilizatória mascarada de festa de brasilidade. Das perguntas
inicialmente feitas por Chateaubriand, chegamos a algumas “respostas” dadas pelo maior
articulador do “Raid”. As “raízes da civilização brasileira” foram buscadas na sua “árvore
branca”. Nos “minutos de demência” em que se tentou “regredir ao índio” o progresso teria
sido convocado para combater as “miseráveis malocas”. Para o diretor-proprietário dos
Diários Associados, o “portador da civilização europeia” seria o único responsável pelo
“processo cultural” de “humanização do brasileiro”. “Ordem, justiça, civilização e
humanidade” se tornam, assim, as bandeiras que serão fincadas pelos atos/discursos das
alegorias do descobrimento durante a marcha de brasilidade que aterrissará em Porto Seguro.

Rusticidade como virtude civilizatória: fogo imortal, aviadores fáusticos e marcha de


brasilidade.

“As notícias que nos chegam de Porto Seguro são esplêndidas”, assim Assis
Chateaubriand inicia outro artigo de sua autoria, denominado Rusticidade, publicado no dia
18 de abril de 1939, onde o jornalista expressará, a partir de elementos da anunciação do
“Raid” e seus preparativos, que “As condições de vida em Porto Seguro são despidas de
conforto”.238 Se com relação ao indígena, Chateaubriand teria sido categórico em afirmar a
superioridade do português frente à “molécula selvícola”, o mesmo não aconteceria frente à

237
CHATEAUBRIAND, Assis. Op. Cit. p. 19-20.
238
CHATEAUBRIAND, Assis. Rusticidade. Op. Cit. p.21.
113

relação do desbravador aéreo com a natureza rústica do lugar onde o Brasil teria nascido. A
rusticidade (ou seja, a “falta de conforto” e o “impenetrável da jungle”) seria transformada em
uma virtude de Porto Seguro, quando da explanação das condições de vida da cidade durante
as ações de preparação da revoada, como aquilo que os aviadores encontrariam na terra do
descobrimento.
Nesse processo, o jornalista irá proclamar a “superioridade” daqueles que iriam chegar
nos “pássaros metálicos” em contraposição àqueles que teriam chegado ao porto seguro nas
embarcações comandadas por Cabral. Os jovens aviadores que participarão do “Raid” seriam
aqueles que dariam marcha à brasilidade. Ao mesmo tempo, se mantêm o “espírito de
fraternidade” entre Brasil e Portugal por meio do comando simbólico da revoada pelo
almirante português Gago Coutinho, como forma de render homenagens a este “homem
ilustre” que personificaria o “gênio descobridor”. O aeronauta lusitano seria o representante
desta “raça” que com seu espírito de aventura teria levado a “luz branca da civilização” a
Porto Seguro. O comandante da Revoada das Asas seria um “boêmio dionisíaco” que faria
parte dos “anéis da cadeia imensa de aventuras e sonhos do gênio português e da sua força
sobrenatural”.239 Este espírito de aventura será apropriado pelo discurso que estabelecerá os
aviadores paulistas como aqueles que carregariam a bandeira da marcha de brasilidade no
processo civilizador instaurado pelas viagens de redescobrimento.
Voltemos às palavras de Assis Chateaubriand sobre as ações de preparação e anunciação
do “Raid”, pois será por meio delas que chegaremos a uma concepção de rusticidade como
modo de compreensão das condições onde se constituiriam a herança da civilização rústica
desdobrada na busca pelas raízes do Brasil. As notícias que chegariam da cidade seriam as
informações sobre as condições de realização do evento e as ações necessárias para sua
efetivação. No processo de exposição das tarefas e ações para realização do “Raid”, surge a
oportunidade de se fazer a apologia do espírito de aventura que presidiria a força destes
“conquistadores do ar”. Neste discurso, que proclama a anunciação do “Raid” a partir da
valorização das condições de “desconforto” oriundas da conquista de uma natureza selvagem
que configuraria a paisagem local, a rusticidade será transfigurada em um elemento de
afirmação de uma superioridade que encontrará em Porto Seguro os “heroicos compatriotas,

239
Idem, p.23. Grifo nosso.
114

guardas de um fogo imortal de brasilidade”.240 Diz o diretor dos Diários Associados que as
notícias que chegam de Porto Seguro são que:
Entre o campo de aviação e a cidade distam sete quilômetros, e o único caminho que
existe é um trilho através do qual não poderemos sequer transportar gasolina para os
nossos aviões. Temos que nos abastecer, para ir e voltar, em Caravelas, e conduzir,
por via aérea, a essência indispensável aos pequenos aparelhos que não têm
autonomia de voo para esse percurso.241

A construção da pista de pouso e decolagem e a logística necessária para a realização


dos voos e da manutenção dos aviões faria parte dos elementos anunciativos da revoada, haja
vista que o “Raid” é um tipo de evento eminentemente aéreo, no sentido de uma incursão a
um território ainda sem bases definidas. Por meio deste discurso que relata os desafios de se
empreender a revoada, podemos tanto depreender a existência e a precariedade de uma
incipiente estrutura para a consecução da aviação, como também perceber, a partir da
problematização da apresentação das condições de vida da cidade feitas pelo jornalista, uma
transformação da forma de visualizar e compreender o espaço onde estaria localizado o
“berço da nação”. A paisagem outrora repleta de semióforos será compreendida por meio de
outra categoria, que também compreende a paisagem, que visa perscrutar o espaço a partir de
uma visualidade que buscará os sinais da modernidade e que não encontrará comunicação que
englobe o “hinterland” e a cidade aos pontos de maior progresso do país, deixando-a, assim,
distante da civilização moderna. O esquecimento do lugar onde o Brasil teria nascido será
lembrado como um distanciamento oriundo dos descaminhos da civilização que não mais
teria “navegado” até o lugar de origem desta mesma civilização.
As condições de vida em Porto Seguro são despidas de conforto, até porque a cidade
só tem um pulmão: o que respira para o mar. Entre Porto Seguro e o ‘hinterland’ não
existe nenhuma via de comunicação. Para além da povoação, a floresta. Diante dela
o oceano, por onde a navegação, quase toda, passa de largo. As correntes que outrora
conduziram Cabral, até aquele ponto, mostram-se agora esquivas. Homens e deuses
esqueceram esse Porto Seguro, que viu primeiro a luz branca da civilização. 242

O mar e a floresta que antes configuraram a paisagem do descobrimento, agora são


interpretados como condicionantes do atraso diagnosticado por meio de uma compreensão da
natureza como elemento de isolamento da cidade. Esse isolamento seria devido a não
existência de vias de comunicação, provocado pelo não estabelecimento de uma rede de
transportes que ligasse a cidade ao resto do país, e que foi metaforizado pelo descaminho das

240
Idem, p.22. Grifo nosso.
241
Idem, p.21.
242
Idem, ibid.
115

“correntes” que conduziram ao descobrimento. Se por um lado, o mar que outrora teria sido
navegado pelos descobridores e que no presente do “Raid” teriam suas correstes esquivas a
produzir o esquecimento da cidade gerando seu abandono, por outro lado este mesmo oceano
seria seu único pulmão, por onde ela faria algum contato com a civilização e de onde a
população retiraria seu sustento. Da mesma forma a floresta, que se por um lado seria o
obstáculo que impediria o avanço do progresso, por outro, seria também o elemento a ser
valorizado quando a rusticidade for elevada a uma virtude civilizatória na marcha deste
mesmo progresso. O discurso de Chateaubriand adquire aqui as características das máscaras
do processo civilizador ao jogar com uma lógica dos opostos que duplica, no teatro das
performances anunciativas, a rusticidade como elemento de composição dos festejos da
Revoada das Asas. Nas palavras de “Chatô”:
A primeira virtude que nos depara Porto Seguro é precisamente essa rusticidade.
Somos todos, o da nossa equipe de aviadores, contra a vida doce. Não modelamos o
nosso caráter na comodidade e no conforto. Para Goethe o mundo não é feito de
‘cozidos’ e ‘marmelada’. Há duros pedaços que mastigar, e é preciso que os
digiramos, acrescentava o poeta. Que oprobrioso não seria para nós outros galgar o
céu de Porto Seguro, para encontrar ali relvas e gramados de parques opulentos?
Não se fizeram para nós o luxo e o bem estar. Amamos a existência inconfortável, a
vida bruta do homem do campo, o impenetrável da jungle, por isso mesmo que as
nossas fórmulas se saturam de um sentimento de libertação dos quadros pacíficos da
vida de pacotilha. Se a natureza de Porto Seguro é desumana, é com esse belo
desumano que pretendemos envolver-nos. Se o homem civilizado abandona Porto
Seguro á própria sorte, como quereis que a jungle haja desertado das
circunvizinhanças daquele grupo de heroicos compatriotas, guardas de um fogo
imortal de brasilidade?243

Quando o diretor-proprietário de um dos maiores conglomerados de imprensa do


continente americano à época, diz que é “contra a vida doce” citando Goethe, um expoente do
romantismo europeu do século XVIII e uma das figuras mais importantes da literatura alemã,
a impressão que se tem é de que a “marmelada” se constituiria em uma metáfora para
compreender a ironia que mascara a transfiguração da rusticidade em uma virtude
civilizatória. Ao se deparar com as informações que projetariam as condições de vida de Porto
Seguro, Chateaubriand eleva as dificuldades oriundas deste lugar abandonado pelos homens
civilizados a uma virtude de modelamento do caráter dos aviadores que participam destes
voos de reconhecimento. A rusticidade seria uma “poesia selvagem” que proclama a
“saturação de um sentimento de libertação dos quadros pacíficos” como atributo destes que
amariam a “existência inconfortável”. 244 E que é expressa por meio de uma linguagem que

243
Idem, p.21-22.
244
Lembremos que em poucos meses eclodiria a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
116

transfigura a natureza “desumana” em um “belo”, com o qual os aviadores deveriam se


envolver neste processo de aperfeiçoamento e afirmação da marcha de brasilidade.
Para visitar a cidade que guardaria o “fogo imortal de brasilidade” seria preciso amar a
“vida bruta do homem do campo”. A rusticidade emergiria aqui da lógica dos opostos
enquanto herança de uma relação entre o rural e o urbano, que trabalhamos ao explicitar
algumas noções que conformariam o conceito de civilização a partir da busca pelas raízes do
Brasil. O descrédito do mundo rural será interpretado em uma nova chave de compreensão
que valorizará o “belo desumano” da rusticidade do lugar de fundação, por meio de uma
expressão em língua inglesa: a jungle. A dupla face da máscara da rusticidade nos permitiria
problematizar essa emergência a partir dos significados que a “selva” adquiriria enquanto
termo expresso por meio de um linguajar que demonstraria o lugar de onde se fala. A jungle
que teria sido a responsável por manter o fogo imortal, não é a mesma selva que representaria
o fator de isolamento e atraso que manteria Porto Seguro sem comunicação com a civilização
moderna. A jungle é um distintivo de requinte traduzido pelo uso de uma língua estrangeira.
O impenetrável da jungle já teria sido desbravado pela Caravana dos Diários
Associados, quando as bandeiras deram o rumo da civilização ao anunciar o “Raid”. Estes
relatos configuraram a paisagem que agora está sendo compreendida por Chateaubriand como
um elemento que mesmo não contendo os “confortos e luxos” da vida moderna, serve-lhe de
mote para a exaltação da virtude civilizatória do evento que estão promovendo. Se não há o
luxo dos “gramados dos parques opulentos”, a rusticidade da cidade que os participantes da
revoada encontrariam seria convertida no luxo que valoriza o desbravamento, já que a vida
não seria feita de “cozidos” e haveria “duros pedaços” para se mastigar. A primeira virtude de
Porto Seguro nasceria da constatação de que mesmo não tendo o luxo da civilização urbana, a
guarda do fogo imortal teria mantido acessa a chama da civilização oriunda do espírito de
aventura. É precisamente este espírito de aventura que será evocado como uma herança a ser
reativada pela ação dos aviadores que redescobririam o lugar de origem do Brasil. Retornar às
origens significará, então, uma forma de superação do diagnóstico do atraso por meio da
revaloração dos signos de desconforto, transfigurados no luxo exótico do rústico feito
civilizado.
Assis Chateaubriand não teria ficado só na marmelada com relação a Goethe (1749-
1832), o autor da tragédia Fausto245, que foi utilizado para o processo de “digestão” da

245
Segundo Koneski, ao lançar um “olhar” para a obra de Goethe, ler, executar ou interpretar Fausto seria
realizar a aventura de uma abordagem que entrelaça as imagens literárias e as experiências do leitor. Fausto, o
117

rusticidade da jungle, será apropriado pelo principal promotor do “Raid” como forma de
evocar com grandiloquência a valorização do evento e de seus realizadores. Nesse sentido,
perguntamos: citar Goethe já não seria a busca por um fator de distinção social que revelaria o
grau de civilização daquele que cita? Já que a civilidade é uma virtude social a ser cultivada
pela educação dos espíritos, cultura das artes e das ciências, etc., a forma como estas
aquisições do espírito emergiriam nas palavras do jornalista, nos permitiria compreender
como o cultivar desta virtude é exposta nas cenas de uma aparência construída que se
transfigura na máscara desta mesma virtude. Vale ressaltar que a tragédia elaborada pelo autor
alemão se estrutura como uma peça teatral. A civilidade que se autoproclamaria pela
referência a um autor como este, emergiria, assim, como a demonstração de uma virtude
cultivada que se expõe por meio de citações que atestariam o patamar de esclarecimento
alcançado por aquele que cita e que assim se exibe como um ser dotado de civilização.
A outra menção a Goethe aparecerá no parágrafo seguinte de Rusticidade, quando
Chateaubriand estabelecerá um vínculo entre a marcha de brasilidade que estaria sendo
produzida por intermédio da realização do “Raid”, com o “sentido do titanesco” presente nos
“aviadores fáusticos” que conduziriam a revoada. A superioridade daqueles que visitariam a
“terra do descobrimento” será propagada por meio da transferência do espírito de aventura do
“gênio descobridor” para os aviadores, que não iriam deixar Porto Seguro abandonada às
margens da civilização. Esse resgate do lugar de origem ganharia as dimensões de um
“romance do Atlântico”, quando interpretado pelas palavras do proprietário dos Diários
Associados a partir desta chave de leitura que se utiliza de um famoso escritor para realizar a
projeção do evento que estava por vir.
Visitando a terra do descobrimento, em sólidos aviões, com que superioridade ali
chegamos em comparação com os nossos avós! Não temos quase nenhum
romanesco cotejando a nossa posição com o seu penacho. Os homens que
desembarcaram em Porto Seguro, através de rotas desconhecidas, tinham o sentido
do titanesco. Eles traziam o amor do obstáculo, a paixão das dificuldades, a crença
ascética no dever, a aptidão para mandar um sim enérgico á vida, na totalidade dos
seus desafios. Eram fáusticos. ‘Solche Muche hat Gott dem Menschne gegehan’. O
maior romance do Atlântico foi escripto pelos navegadores lusitanos, e são seus
filhos brasileiros que vamos romanticamente visitar agora em Porto Seguro. 246

personagem de Goethe, refaria o percurso do pensamento humano da Idade Média à modernidade, e teria
instituído a aventura da diferença ao realizar-se na “chance” aberta pelo vazio da metafísica nos moldes
clássicos, para desenvolver os novos paradigmas do homem moderno. Com Fausto, Goethe relataria o drama
humano de insatisfação e descontentamento frente ao destino do homem. KONESKI, Anita Prado. Um olhar
para o Fausto de Goethe. Universidade Federal de Santa Cataria: dissertação (Literatura); Florianópolis, SC,
1999.
246
CHATEAUBRIAND, Assis. Op. Cit., p.22. Grifo nosso. A tradução do trecho em alemão (“Solche Muche hat
Gott dem Menschne gegehan”) pelo tradutor do Google seria: “Deus deu ao homem essa busca”.
118

Em sua busca por reescrever o maior romance do Atlântico, Chateaubriand visitaria em


“sólidos aviões” e em conjunto com os demais participantes do “Raid” a cidade de fundação
do país que teria perdido a rota da modernidade nos descaminhos da civilização brasileira. O
“sentido do titanesco” daria rumo ao destino que se faz pela busca da origem. Dando
continuidade ao argumento de que a rusticidade se imporia como um desafio a se superar e
que assim seria revalorizada, vemos emergir os elementos da virtude que condicionariam a
conduta por meio de preceitos morais e éticos: “o amor do obstáculo, a paixão das
dificuldades, a crença ascética no dever, a aptidão para mandar um sim enérgico á vida”. Ao
mesmo tempo em que se proclama a superioridade dos aviadores fáusticos, se estabelece os
valores que guiariam a marcha de brasilidade. Se o diagnóstico acerca da “terra mater” é o de
que a rusticidade impera, então o que resta é afirmar a “força selvagem” da cidade “fundada
por Cabral”. A partir da mesma lógica que compreendia que se não há sinais da modernidade,
portanto, o que se deveria fazer é salvar os monumentos que atestariam a antiguidade deste
lugar de origem; vemos o jornalista exaltar a rusticidade desta natureza selvagem como uma
virtude civilizatória que teria uma “energia” revigorante para fazer voar as máscaras da
civilização sob os céus de Porto Seguro. O “amor à rusticidade” será assim anunciado:
O diagnostico é que não há conforto em Porto Seguro. Mas se não é outro o ritmo da
nossa ascensão. Os jovens paulistas e cariocas que fazem esses ‘raids’ de aviação
conosco, que gostam de se internar no Brasil a dentro, são moços que vivem em uma
continua marcha de brasilidade, em uma inquietação fecunda diante da terra mater e
dos segredos que Ella encerra. Os que vão vê-la aqui do sul amam-lhe a rusticidade,
sentem-se atraídos pelo imã desta força selvagem. Resistir a quatro séculos de
abandono. Que energia interior!247

O “ritmo da ascensão” destes aviadores mesclará a épica do romantismo que exalta o


gênio e o caráter desbravador daquele que conquista e usufrui a natureza, com o discurso de
marcha da brasilidade que promove uma espécie de “bandeirantismo” aéreo que visa impor
um novo ritmo à ascensão do Brasil. Ritmos de um Brasil de cadências diversas que a
realização do “Raid” faz mobilizar como o ritmo do progresso em aceleração. Para tanto seria
necessário que os “moços” se internassem no Brasil profundo e abandonado em busca dos
segredos que poderiam ser encontrados no lugar que guardaria o fogo imortal de brasilidade.
O sentido titanesco da marcha de brasilidade promovida pela Revoada das Assas encontrará
em Porto Seguro o desafio originário a partir do qual um novo destino para o futuro da
nacionalidade poderia ser evocado. Esta é a máscara rústica da virtude civilizatória!

247
Idem, p.22-23. Grifo nosso.
119

3.2. Alegorias do Descobrimento: Teatro das Ruínas, Mystica e Revoada das Asas.

Figura 15: As ruínas do forte onde estariam os canhões, com vista para a paisagem de Porto Seguro.248

José Reginaldo Santos Gonçalves, ao tratar das “modalidades de invenção discursiva do


Brasil”, tendo como referência o campo do patrimônio cultural, identifica nos
“empreendimentos de construção da nação” uma tensão constitutiva entre uma retórica da
perda e a apropriação enquanto objetificação cultural da história nacional. A retórica da perda
seria a caracterização do presente histórico como ruína e idealização do passado, ou seja,
englobando ao mesmo tempo tanto o seu desaparecimento quanto a sua reconstrução
imaginativa. Por objetificação cultural o autor entende “os processos de invenção de ‘culturas’
e ‘tradições’ em modernos contextos nacionais”.249 Buscando interpretar as estratégias
narrativas adotadas nestes processos, Gonçalves nos apresenta o seguinte conceito de
alegoria:
O sentido da palavra alegoria está associado a uma forma de representação onde
recursos dramáticos, literários ou pictóricos são usados para ilustrar concretamente
uma ideia ou princípios morais e religiosos. Além disso, a alegoria, como sugere a
própria etimologia, representa uma coisa com o propósito de significar outra. [...] a
alegoria [...] pode ser entendida como uma estória narrada sobre uma situação
histórica presente, na qual existe um forte sentimento de perda, transitoriedade, ao

248
Fotografias Série Inventário: Porto Seguro, BA. Arquivo Central do IPHAN, Rio de Janeiro, RJ. Eric Hess.
249
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no
Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; IPHAN, 1996, p.11-13.
120

mesmo tempo em que existe um desejo permanente e insaciável pelo resgate de um


passado histórico ou mítico, além de uma permanente esperança de um futuro
250
redimido.

O autor entende “as narrativas sobre o patrimônio cultural como alegorias da formação
nacional”.251 Deste mesmo modo compreenderemos as ações de comemoração do
descobrimento, ou seja, as atividades e cerimônias celebrativas em conjunto com os discursos
ligados aos festejos da revoada também se configurariam como alegorias da formação
nacional, inseridas no processo histórico no qual vimos emergir as máscaras da civilização. A
dimensão alegórica das narrativas nacionais estava imersa em uma política oficial de
preservação histórica, por meio da criação do SPHAN em 1937 e permeava o horizonte
intelectual daquela geração que buscou as raízes do Brasil.
Essas narrativas apresentariam dimensão alegórica quando “ilustrassem concretamente,
por meio de objetos, princípios abstratos”. No caso das alegorias do descobrimento, os objetos
seriam tanto a coleção de semióforos distribuídos pela paisagem narrada e descrita por Edmar
Morel, como a própria cidade que seria convertida em lugar de origem neste emolduramento
da história de fundação do país, ou ainda, estes objetos seriam a própria materialidade da
experiência de produção da presença expressa de modo performático, onde corpo, gesto e voz
constituiriam a “objetividade” das relações intersubjetivas. E os princípios abstratos seriam os
valores atribuídos a esta origem, como forma de refundação da experiência histórica
brasileira.
Nesse sentido, depreende-se que a narrativa alegórica de formação nacional, que é a
Revoada das Asas, pressupõe uma “situação primordial” que expressa uma mensagem moral e
política. A interpretação destes “eventos históricos” e sua ordenação teria por base a
construção de um sentido para a nação. Sentido que seria produzido pela historicidade própria
à dimensão alegórica. Deste modo, a oposição estruturante entre a transitoriedade presente
nos processos de desaparecimento e a permanência articulada com os processos de
reconstrução, torna a alegoria um conceito analiticamente produtivo para se problematizar as
comemorações do “Descobrimento do Brasil” durante o “Raid” a Porto Seguro.
Uma das possibilidades de emergência da dimensão alegórica estaria relacionada a
“períodos em que uma autoridade [...] é ameaçada de desaparecimento. A alegoria emerge,

250
Idem, p.26-27.
251
Idem, p.28-32.
121

assim, a partir da ausência dolorosa daquilo que ela pretende recuperar”.252 Em nosso caso,
ela emergiria, também, como elemento das reativações do mito fundador. A alegorização seria
uma espécie de resgate histórico que se funda na nostalgia de um futuro passado. Busca-se no
passado a reabilitação de um futuro prometido como condição de possibilidade e legitimação
do presente. No passado residiria a autoridade que se constrói como tradição. Nesse sentido,
de acordo com Hanna Arendt: “O passado torna-se referência com a condição de que seja
transmitido como tradição; por sua vez, a autoridade torna-se tradição com a condição de
apresentar-se historicamente”.253 A alegorização expressaria, assim, a forma de apresentação
histórica dessa autoridade que utiliza o passado para transmitir-se como aquele que falaria em
nome da tradição, nem que seja em nome da tradição que visa fundar o novo.
De acordo com Walter Benjamin, a compreensão histórico-filosófica da alegoria,
enquanto forma de expressão que encontrará na ruína um elemento chave de sua significação,
revelaria a “facies hippocratica” (face hipócrita) da história, que se apresenta aos olhos
daquele que contempla uma “paisagem arcaica petrificada”, como uma experiência temporal
de enaltecimento dos fragmentos das civilizações passadas que atestariam as “etapas de sua
decadência”. A alegoria entraria em cena por meio de uma dramatização barroca, sob a forma
de uma escrita que se expressa no imbricamento singular entre a natureza e a história. A
decadência seria inerente ao processo de caducidade da natureza vista pelos olhos da história
em chave alegórica. Com a contemplação da decadência, a ruína transfigura-se em um
elemento que permitiria ressaltar o valor do acontecimento histórico por meio de um gesto de
resgate desta mesma ruína. Aquilo que estaria reduzido a ruínas será transmutado em um
fragmento altamente significativo deste legado que se encontra em decadência, já que a
história, em perspectiva alegórica “se configura não como o processo de uma vida eterna, mas
[como] uma decadência inevitável”. A transitoriedade da história que é visível por meio das
ruínas seria o emblema de uma natureza que tem por destino a decadência. Dialeticamente, a
permanência residiria no atributo de significação que esta mesma ruína deixaria ver enquanto
expressão pretensa de uma duração perene. E assim a ruína se configuraria como um emblema
das coisas do passado que subjaz à corrosão do tempo e da história. A “fisionomia alegórica
da Natureza-História”, representada no palco da dramaticidade, que estaria configurada sob a
forma da ruína no presente de contemplação da paisagem em decadência, fundiria a história

252
Idem, p. 27.
253
Apud: ARENDT, Hanna. In. POULOT, Dominique. Uma história do patrimônio no ocidente. São Paulo:
Estação Liberdade, 2009, p.97.
122

com o cenário da natureza de forma a nos levar a compreender que: “As alegorias são, no
reino do pensamento, o que são as ruínas no reino das coisas”.254
Neste teatro das ruínas as cerimônias de redescobrimento do Brasil Novo seriam as
alegorias históricas da narrativa de um novo tempo que estava sendo fundado e que
necessitava reencontrar uma origem. Na busca pelo berço da nacionalidade, as máscaras da
civilização se encontrariam com a dramaticidade da alegoria. A marcha de brasilidade que
condicionaria a realização do “Raid” seria expressa por meio de uma linguagem que se
reveste de um desejo de resgate do passado, ao mesmo tempo em que proclama sua superação
em um futuro buscado nas ruínas que guardariam o fogo imortal de brasilidade. O “Raid”
seria o palco onde a busca pelas raízes seria dramatizada em diversas cenas que narrariam à
origem da civilização brasileira.
A partir destes acontecimentos de refundação, um tempo novo seria agenciado pelas
ações de comemoração a serem desdobradas na atribuição de valor histórico ligado ao
processo de patrimonialização do descobrimento. A Revoada das Asas se constituiria, assim,
como uma experiência que visava o estabelecimento de um marco histórico que teria nos
discursos, atos e ritos ligados às comemorações e à patrimonialização, os elementos
constituintes da alegorização que ritualiza a narrativa histórica de fundação do Brasil. Nesse
sentido, as alegorias do descobrimento se configurariam em novas cerimônias de posse,
enquanto metáforas de refundação que se apropriariam do mito de origem para a invenção de
uma mystica de Porto Seguro.

A mystica de Porto Seguro e a teatralização da alegoria: da necrópole à ressureição.

A “Comemoração das Asas do Brasil Novo” é uma teatralização das alegorias do


descobrimento. As cerimônias e discursos que lhe constituiriam seriam como cenas de um
teatro que agencia os dispositivos de emolduramento ligados à invenção da descoberta do
Brasil e que estão vinculados à marcha de brasilidade promovida pelos Diários Associados.
Teatralização entendida como um modo de compreender a relação da modernidade com o
passado por meio do exame das “operações de ritualização cultural” que, segundo Canclini,
nos permitiria problematizar “o papel dos ritos e comemorações na renovação da hegemonia
política”. Tanto as comemorações como o patrimônio existiriam como força política na

254
BENJAMIN, Walter. Alegoria e Drama Barroco. In. Documentos de cultura, documentos de barbárie:
escritos escolhidos. São Paulo: Cultrix: Editora da Universidade de São Paulo, 1986, p.19 e 31. Grifo do autor.
123

medida em que a teatralização do poder lhes permitiria “simular que há uma origem, uma
substância fundadora” a partir da qual uma autoridade ritualiza a história. 255 Nesse sentido, o
mundo seria um palco onde cultura e poder se vinculariam neste processo de teatralização
que dramatizaria a busca pelas raízes do Brasil. Se as narrativas e discursos de anunciação do
“Raid” já haviam transformado a decadência e a natureza em espetáculos, na efetivação da
revoada o teatro das ruínas se constituiria na espetacularização da história do descobrimento
do Brasil por meio das reativações das cenas de fundação.
Em um artigo denominado A Mystica de Porto Seguro, publicado no dia 4 de maio de
1939 como uma despedida do “Raid” um dia após as solenidades e festejos, Assis
Chateaubriand, expressando o sentimento de “infidelidade do Brasil ao próprio berço”,
pergunta: “Como um berço, que deve ter a imortalidade da própria criação
[permanência/fogo], pode acabar nesse odor de cemitério, nesse fim de decrepitude
[transitoriedade/ruína], a que a nossa ingratidão relegou o local do nascimento da
nacionalidade?”.256 Mais uma vez, aquele que Fernando Morais biografou chamando-o de
“Chatô o Rei do Brasil e um dos brasileiros mais poderosos do século” será o personagem
principal a atuar na alegorização do descobrimento.257 Essa teatralização da alegoria
produziria e se alimentaria da espetacularização da história nas performances258 discursivas e
gestuais que foram postas em marcha nas ações e atividades celebrativas ligadas ao “Raid”.
Este artigo de Chateaubriand é do dia posterior ao principal dia dos festejos da revoada.
Por meio dele o jornalista iria “pôr-se a meditar sobre o triunfo” que teria sido a realização do
“Raid” no dia anterior. Começando a problematização e análise pelo pós-evento, poderemos

255
CANCLINI, Nestor García. O porvir do passado. In. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da
modernidade. 3° Ed.- São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000, p.160-161.
256
CHATEAUBRIAND, Assis. A Mystica de Porto Seguro. In. Sob os céus de Porto Seguro, 1940, p.142.
257
MORAIS, Fernando. Chatô, O Rei do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p.7.
258
Cf. LOPES, Antonio Herculano. Performance e história (ou como a onça, de um salto foi ao Rio do
princípio do século e ainda voltou para contar a história). Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa. “O uso
da ideia-força de performance nas análises de história da cultura permite um olhar novo sobre certos fenômenos
que já foram esquadrinhados através de prismas diversos. Em cada situação histórica concreta, indivíduos e
grupos projetam anseios, marcam posições e constroem imagens de si e de seus ‘outros’ e da sociedade
envolvente através de formas pelas quais se apresentam e atuam publicamente, dentro de estruturas mais ou
menos ritualizadas. O uso de linguagens corporais, técnicas retóricas, expressões faciais, manipulação de
emoções, regras de procedimento coletivo, decoração visual do corpo e do espaço - só para citar alguns
elementos performáticos - em manifestações públicas contribuem para a construção de identidades coletivas que
ao mesmo tempo refletem e influenciam o curso dos eventos”. Acessado em:
http://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/artigos/kn/FCRB_AntonioHerculano_Perfomance%20e_historia.p
df 19/06/2020, p.7.
124

reconstituir de forma panorâmica os significados e sentidos que a revoada teria tido para seu
principal agente de promoção. Portanto, este salto temporal que sai da anunciação para
aterrissar no pós-evento tem por intuito tanto, explicitar o modo como Chateaubriand
conceberia uma avaliação do evento como um todo, como nos propiciar uma perspectiva de
problematização acerca da invenção de uma mystica de Porto Seguro. Essa mystica teria como
elementos de invenção a teatralização da alegoria e a espetacularização da história. A
performance de “Chatô”, nesse papel de proclamador do resgate da origem que inventa uma
mystica da cidade guarda do fogo imortal de brasilidade, ficaria exposta por meio das palavras
que ele irá tecer sobre a “melancolia daquelas ruínas sagradas”.259
A recuperação desse passado histórico que se encontraria em ruínas, mas que teria o
potencial de representar a grandiosidade será utilizado por Chateaubriand, enquanto um
discurso alicerçado na retórica da perda, em uma narrativa do abandono que expõe na “ruína
melancólica” uma história de “nobreza”. Os aviadores fáusticos que visitaram a cidade, teriam
se deparado com uma paisagem histórica decadente, petrificada na melancolia das “pedras
estoicas” que superariam em “grandeza” outras cidades históricas brasileiras já reconhecidas
como tais. A “meditação” do jornalista diria respeito também à conclamação das autoridades
governamentais para a consecução desta missão de resgate do berço da nação. A mesma
retórica que se utiliza da dimensão alegórica configurada por uma experiência da
temporalidade que lhe caracteriza, servirá para o diálogo e a cobrança das autoridades, no
sentido do estabelecimento de uma politica vinculada a um discurso que monumentaliza a
história do descobrimento do Brasil. A ruína que guardaria o fogo imortal, teria o potencial de
“ostentação” de um passado perdido que seria a outra face das máscaras utilizadas pelos
promotores da revoada. Neste processo, Chateaubriand retoricamente conclamaria Getúlio
Vargas a utilizar o seu “poder criador” para “ressuscitar os mortos” por meio da referência a
uma “visão profética”. No dia seguinte à apoteose celebrativa do “Raid”, neste artigo assinado
em uma cidade localizada (141 km em linha reta) ao sul de Porto Seguro chamada Caravelas,
diria o jornalista desbravador dos ares.
Enquanto o aviador Luiz Sampaio abastece o tanque do nosso aparelho, ponho-me a
meditar no triumpho que seria para Porto Seguro o acto de um governo decidido a
restituir-lhe os foros de nobreza política e material que ela ostentou no passado.
Ouro Preto, São João d’El Rei, Olinda, o Cabo não igualam em grandeza e em
melancolia essas pedras estoicas. Um frêmito sacudiu-nos ao avistar do outro lado
do Buranhem a modesta rua que borda o rio. Por que a autoridade federal, como na

259
CHATEAUBRIAND, Assim. Op. Cit., p.142.
125

visão de Ezequiel, não ressuscita a os ossos dessa grande morta para reencarna-los
com um sopro do seu formidável poder criador? 260

O outro lado do rio Buranhem a que se refere Chateaubriand, teria sido visto da margem
na qual se inicia a estrada que vai até o Arraial d’Ajuda, onde está localizado o campo de
pouso aberto para o “Raid”. No caminho inverso ao percorrido pelo “préstito” narrado por
Edmar Morel, o “chefe” deste último teria visto na travessia do rio uma cidade onde a
percepção da melancolia se fez por meio de um olhar que compreende a ruína como nobreza
perdida. Mas essa “perda” vai além de uma retórica dos títulos nobiliários. Em seu processo
de aprofundamento das performances que inventaria a mystica da cidade, “Chatô” estabelece
uma relação de Porto Seguro com a morte que caracterizaria o discurso alegórico como forma
de demarcar a significação do corpo em decadência. Segundo Walter Benjamin, “se a natureza
deste sempre esteve sujeita à morte, também desde sempre ela foi alegórica”. O “cerne da
visão alegórica” seria que ela é “significativa apenas nas etapas de sua decadência”.261 Nesse
sentido, o vínculo que se estabelece com a morte seria uma forma de significação da ruína,
como metáfora de um corpo social decadente que só poderia ser “ressuscitado” por um
“governo decidido”.
O “sentimento de nacionalidade” em relação à “morte” de Porto Seguro que seria
evocado neste processo de ressureição do lugar de origem, se constituiria em um elemento
discursivo que tanto demonstraria as máscaras do “luto” por aqueles que a visitaram, como
ainda serviria de mote editorial para pressionar as autoridades políticas. Essa mystica de
transfiguração de uma paisagem em ruínas para um lugar de “esperança”, que perpassaria
pelo sopro do poder criador dos governantes, seria instituída por um "gesto de consolo” que as
Asas de um Brasil Novo buscavam resgatar por meio da realização do “Raid” a Porto Seguro.
Nas palavras de Chateaubriand, a Revoada das Asas, por meio da marcha de brasilidade dos
aviadores fáusticos, teria produzido “algumas horas de poesia” no coração da civilidade
melancólica de uma cidade que, apesar de ser a guarda do fogo imortal, estaria
“amortalhada”:
Fora uma traição ao nosso próprio sentimento de nacionalidade deixar Porto Seguro
amortalhada nesse abandono de necrópole, que a aniquila. Nas asas dos aviadores
paulistas, mineiros, gaúchos, cariocas, baianos e amazonenses, que foram visita-la,
ontem havia um gesto de consolo e de esperança. Essa mocidade lhe estendia os
braços, convidando-a a viver algumas horas de poesias dentro do seu coração. Eu
tinha ainda na manhã de hoje o sentimento de que no contacto do ímpeto juvenil de

260
Idem, p.141.
261
BENJAMIN, Walter. Op. Cit., p.22.
126

tantos corações moços como que se transfigurava a desolação da paisagem de Porto


Seguro. A Civitas, dentro das vestes fúnebres, que a amortalham, readquiria sua
égide de prestígio e de luz espiritual. 262

Para restituir a vida que outrora Porto Seguro teria ostentado, seria preciso “estender os
braços” à cidade como forma de resgata-la das “mortalhas” deste “abandono de necrópole”. A
mystica de Porto Seguro seria, então, que ela é a necrópole que guardaria o fogo imortal de
brasilidade. A teatralização das alegorias do descobrimento significaria, desta forma, um
“gesto” que transfiguraria a “desolação da paisagem” pelo reestabelecimento da “luz
espiritual” que guiaria a ressureição da cidade. A performance de Chateaubriand
espetaculariza a história do descobrimento por meio de um discurso que compreende Porto
Seguro como uma ruína em estado de decomposição. Só uma “rica poesia” proclamada por
aqueles que seriam fáusticos seria capaz de restituir o “prestígio” desta cidade de fundação
que se encontrava amortalhada. Se durante a Caravana as roupas da cidade haviam sido
trocadas no processo de alteração dos ritmos ligados aos preparativos para receber os ilustres
visitantes, agora, as “vestes fúnebres” adquiririam o significado de um obstáculo que
impediria o avanço da marcha de brasilidade que proclamaria a rusticidade como virtude
civilizatória no desbravamento daquelas paragens abandonadas.
A visita à “cidade evanescente” que já estaria quase “submergindo na lenda e na
tradição”, teria permitido a Chateaubriand dizer que “um duro inverno de morte pesa sobre o
coração da terra que nasceu em uma manhã dourada, entre caravelas e alegria”. Do mesmo
modo como as roupas viraram vestes amortalhadas, o sol que castigou a Caravana
transfigurar-se-ia em um inverno de morte. A melancolia das ruínas expressa por estas
alegorias, também configuraria aquilo que chamamos de inventário dos sentidos da “lendária
cidade”, quando Morel relatou a ambiência perceptiva da paisagem do descobrimento. A
tristeza que dominaria os espetáculos daquela narrativa seria desdobrada por meio desta
dramatização que mobiliza imagens de sentimento e emoção relativas à melancolia e à morte
do lugar de origem. O “coração da terra” seria o modo de expressão agenciador de emoções a
significar o lugar que guardaria o fogo imortal. A “manhã dourada” seria o horizonte onde a
alegria da descoberta ainda teria o frescor de uma novidade, antes da corrosão da noite que
promoveria a decadência do berço da civilização brasileira. Mas o horizonte dramático da
morte que rondaria o lugar de origem não deixaria esquecer que a necrópole necessitaria de
uma missão de resgate. A “culpa” que os brasileiros teriam, agenciada pelo pagamento da

262
CHATEAUBRIAND, Assis. Op. Cit., p.141-142.
127

dívida de honra da história nacional para com a velha cidade, adviria desta “infidelidade” que
“relegou o local de nascimento da nacionalidade”. 263
A infidelidade do Brasil ao próprio berço é um dos delitos menos desculpáveis da
brasilea gente. Não era mais possível que a nossa geração continuasse a ver Porto
Seguro envolvido em crepe e com rosas mortas no caminho. A melancolia daquelas
ruínas sagradas era um incentivo aos moços da aviação brasileira para que eles
abandonassem os espetáculos frívolos do Rio de Janeiro e de São Paulo, para ir
mergulhar na poesia daquela solidão, na graça daquele golfo e no perfume daquelas
colinas inspiradas. Há dois séculos, Porto Seguro se extingue como uma flama sem
ar. 264

O sufocamento da cidade só poderia ser combatido por aqueles que abandonassem os


espetáculos frívolos. Nesse sentido, a mystica de Porto Seguro também geraria elementos
discursivos que alimentariam os preceitos morais e éticos da virtude civilizatória caracterizada
pelo “amor à rusticidade”. Para pagar a dívida só uma moeda de transfiguração que elevasse a
aventura de realização do “Raid” à graça de respirar o perfume daquelas colinas. Abandonar
os “espetáculos frívolos” seria a senha para a espetacularização da história que só surgiria por
meio desta abnegação propagada. O delito do esquecimento que geraria a decadência, não
seria desculpável para aquela geração: se a “flama” se apaga sem ar, só uma poesia dos
“conquistadores do ar” para resgatar-lhes daquela solidão na qual estaria mergulhada. Sendo
assim, podemos afirmar que as alegorias do descobrimento se alimentariam de uma “rica
poesia” que inventa a mystica de Porto Seguro como forma de justificar a produção da marcha
de brasilidade.
A reinterpretação do mito de origem por meio destas metáforas originaria os elementos
constituintes da teatralização que proclamaria que: “Tudo quanto fizemos nestes três dias em
Porto Seguro foi santificado por uma harmonia completa entre o nosso amor pelo Brasil e as
grandes sombras tutelares que constituem a sua Vida e a sua História”.265 Aqui é possível
perceber o impacto que o regime político do Estado Novo imprimiria ao trabalho da imprensa.
As “sombras tutelares” poderiam ser compreendidas em várias chaves interpretativas, mas
ressalvaremos aquelas que a compreenderiam como o poder centralizador que controlaria as
iniciativas inerentes às atividades em sociedade. Ao mesmo tempo em que Chateaubriand
conclama Vargas a assumir a missão de resgate da nação por meio do apoio à revoada, fica
patente que as ações promovidas pelos Diários Associados estavam condicionadas à atuação

263
Idem, p.142.
264
Idem, ibid.
265
Idem, p.142. Grifo Nosso.
128

do regime político de então. A relação entre os agentes do novo “Estado Nacional” com os
grupos da sociedade civil capitaneados pela imprensa constitui-se em um dos elementos da
problematização que vem sendo desdobrada por esta dissertação.
Como dissemos, este artigo de Chateaubriand estaria sendo analisado neste momento do
trabalho devido a sua característica de ser a publicação que agregaria um resumo avaliativo
das ações da revoada pelo seu principal articulador. Os momentos de “santificação e
harmonia” que teriam presidido à realização das festividades de comemoração do
descobrimento, nos três primeiros dias de maio de 1939, teria propiciado ao jornalista a
oportunidade de fazer uma síntese da principal cerimônia de reativação das alegorias a serem
evocadas durante o “Raid” a Porto Seguro: “A missa constituiu o espetáculo de uma beleza
estelar. Portugueses, brasileiros, ameríndios, pretos, cafuzos, mulatos, espalhados no adro da
cidade, ali se davam encontro para um casamento espiritual de almas, em face do sacrifício
religioso”. A missa teria sido conduzida por Dom Eduardo José Herberhold ([Alemanha]
1872-1939 [Bahia]), bispo de Ilhéus convidado para celebrar este momento de sacrifício, fruto
da superação das dificuldades de realização do evento. De sua voz teria emanado um “eflúvio
amor, embalsamando os corações uma felicidade infinita”.266
A atuação de Chateaubriand em relação à missa configura um momento fundamental
destas alegorias mascaradas de festa de brasilidade. Esta proclamação de uma unidade
espiritual que abarcaria as diversas raças e elementos característicos da civilização brasileira
como um “espetáculo de beleza estelar” por meio da realização da missa, visava ao
estabelecimento de um marco para dirimir os conflitos interestaduais oriundos da “Revolução
de 30”. As forças em relação ainda estavam ativas quando da realização do “Raid”. Nesse
sentido, a revoada teria sido utilizada como um evento capaz de promover a exaltação de uma
unidade por meio desta busca pelas raízes do Brasil. Mais à frente veremos como a atuação do
principal promotor da revoada teria se dado no dia de realização da cerimônia de posse que
constituiu tema fundamental dos dispositivos de emolduramento. A participação de
Chateaubriand nos acontecimentos relativos à missa vincula-se à problematização acerca das
máscaras do processo civilizador que vimos anteriormente e à qual voltaremos quando
reconfigurarmos a festa de brasilidade que teria sido a comemoração das Asas do Brasil Novo.
Antes, problematizamos o modo como a invenção da mystica de Porto Seguro se
efetivaria nas palavras de Chateaubriand. Palavras que expressaram a “comunhão” dos

266
Idem, p.141-142.
129

brasileiros que resgataram do esquecimento de séculos esta cidade que seria uma “janela”
para as raízes do Brasil. As performances do jornalista que já havia citado Goethe se
dramatizam mais uma vez para expressar a “rica poesia” deste lugar de origem. Se a
realização do “Raid” só teria sido possível devido ao desempenho dos aviadores fáusticos, a
teatralização das alegorias proclamaria o cumprimento do “dever” de resgatar a cidade de
Porto Seguro como um atributo da virtude civilizatória. A mystica do lugar do descobrimento
seria a capacidade de amalgamar a melancolia das ruínas com a “alegria interior” oriunda da
ação de “heróis magníficos” que teriam presenciado a abertura de um novo tempo para Porto
Seguro e para o Brasil. A mystica visava ressuscitar os “mortos sagrados” do lugar de origem:
As noites de esquecimento, que vive, há séculos, Porto Seguro, eram resgatadas por
essa comunhão fluida dos brasileiros de outras terras, ricas e prosperas, com aquele
vale de sombras queridas e de mortos sagrados. Acabamos de cumprir um dever, que
enche de alegria as alamedas do nosso jardim interior. Porto Seguro é uma janela
sobre o nosso berço. E foi com os corações límpidos de jovens aviadores, de homens
desinteressados, conduzidos por um herói magnífico, que acabamos de abrir essa
janela azul, coberta apenas pela poeira do abandono, mas rica de poesia.267

Para Chateaubriand, os jovens aviadores imbuídos de virtude civilizatória teriam


regatado o berço do Brasil, nesta marcha de brasilidade que se traduziu em uma teatralização
alegórica que espetaculariza a história no processo de invenção da mystica de Porto Seguro.

A Revoada das Asas: ao invés de caravelas, aviões moderníssimos.

O “Raid” a Porto Seguro seria, antes de tudo, um evento aeronáutico que teria como
desafio a utilização de aviões para a realização de voos de reconhecimento a localidades
aonde as condições necessárias para tal façanha tornariam esta empreitada um evento de risco.
Ou seja, o “Raid” seria uma oportunidade de superar os obstáculos que alimentariam os
preceitos constituidores da virtude civilizatória oriunda da mentalidade do desbravador, que a
marcha de brasilidade fez emergir no discurso de exaltação do aviador fáustico. Por isso que
a realização da revoada se constituiria em um indicador de que o espírito de aventura,
desdobrado nestas ações de resgate histórico promovidos em linguagem e gesto alegóricos,
dominaria um imaginário bandeirante de conquista dos céus do Brasil. A marcha de
brasilidade que sobrevoaria a paisagem do descobrimento em sólidos aviões pilotados por
jovens aviadores, ao aterrissar na cidade berço da nação também se constituiria como um

267
Idem, p.143.
130

acontecimento fundador para a aviação nacional. A história da Revoada das Asas se


entrelaçaria com os primórdios da história da aviação no Brasil.268
Segundo Raquel França, a história da aviação no Brasil teria sido marcada pela atuação
de articuladores que durante o Estado Novo promoveriam uma Campanha Nacional da
Aviação, que teve vários nomes e lemas (como “Deem Asas ao Brasil”, “Dê asas à
Juventude”, “o avião conduz mais alto a Bandeira do Brasil”, etc.,) e que emergiram nas
“manchetes” dos jornais e revistas pertencentes à cadeia dos Diários Associados. A campanha
que daria asas à marcha de brasilidade teria como principal articuladores nomes como o
próprio presidente Getúlio Vargas, Salgado Filho, um dos criadores do Correio Aéreo Militar
e que seria o primeiro Ministro da Aeronáutica no ano de 1941, e Assis Chateaubriand, com
quem estamos reconfigurando estas alegorias do descobrimento. Os Diários Associados
funcionariam como um veículo de propaganda do Estado Novo neste processo de dar
visibilidade à campanha que teria por razão de Estado uma preocupação com a segurança
nacional em tempos de guerra.269
Os argumentos nacionalistas que proclamavam a necessidade de fortalecer e reerguer a
estrutura política e econômica do Brasil encontraria no avião um elemento símbolo da
possibilidade de progresso. De acordo com a autora, um projeto de integração nacional estaria
na base de utilização deste meio de transporte. Este projeto audacioso tencionaria angariar
recursos privados para fomentar a aviação nacional. A Campanha teria produzido um apelo
popular para a construção de aviões e a formação de pilotos. A preocupação com o transporte
aéreo brasileiro que apareceu após a Primeira Guerra Mundial se desdobraria na consecução
destes empreendimentos que tomam forma durante o Estado Novo.
A formação de uma “Doutrina Aérea Brasileira” compreendia que além de desenvolver
a indústria aérea seguindo a tendência internacional de criação e incentivo estatal a aeroclubes
e aeródromos, seria “crucial que se criasse uma cultura da aviação nacional, cultivando em
brasileiros um sentimento de zelo e identificação com o assunto”.270 Cultivar o sentimento dos
brasileiros em relação à aviação, configuraria outro dos elementos formadores da virtude
civilizatória que permearia a ação fáustica de instituir o zelo e a identificação para com este

268
OLIVEIRA. Tharles. (Org.) Asas a Porto Seguro: história e memória do antigo campo de aviação do
Arraial D’Ajuda. Jundiaí: Paco Editorial, 2019.
269
FERREIRA, Raquel França dos Santos. Uma história da Campanha Nacional de Aviação (1940-1949): o
Brasil em busca do seu “Brevêt”. Dossiê Guerras, Conflitos e Tensões. Revista Cantareira – edição 17/jul-dez.
2012.
270
Idem, p.78.
131

símbolo da modernidade que é o avião. E a utilização de elementos discursivos que apelam


para o sentimento pode ser compreendida, também, como parte dos recursos performáticos
que teatralizaram as alegorias do descobrimento.
A participação de Chateaubriand para o nascimento da campanha que daria Asas ao
Brasil teria sido por meio do “incentivo cobrado” à iniciativa privada para que adquirissem
aviões a serem doados aos aeroclubes para servirem de instrumento de formação dos jovens
pilotos. De acordo com Fernando Morais, a receita de “Chatô” seria “simples”:
[...] pedia-se a um milionário (ou a um grupo deles) que doasse um avião de
treinamento. Os Associados se encarregariam de cobrir de elogios (e reportagens e
fotos) e cada avião seria batizado [...] em uma cerimônia pública, com champanhe,
banda de música, discursos [...]. O rico que se recusasse a contribuir entrava para a
temida lista negra dos inimigos de Chateaubriand. 271

Segundo Morais, o diretor-proprietário dos Diários Associados teria organizado em


1938 um “Raid” no interior do Estado do Rio de Janeiro que seria o “evento piloto” para a
realização deste tipo de atividade aérea produzido como um acontecimento jornalístico. Este
primeiro “raid” teria contado com a participação de vários repórteres cobrindo os preparativos
do evento e entrevistando pilotos. A cobertura desta viagem renderia páginas e mais páginas
nos jornais e revistas pertencentes a Chateaubriand. Os “Raid” passariam a eletrizar a opinião
pública. O sucesso desta iniciativa teria levado o jornalista a querer repetir este tipo de evento.
A partir destas iniciativas, os Diários Associados passaram a ter um repórter especializado em
aviação. Este repórter seria o jovem cearense Edmar Morel escolhido pessoalmente por
“Chatô” e que foi o narrador da Caravana dos Diários Associados ao Monte Pascoal em sua
primeira viagem como repórter especializado para cobrir as atividades da aviação. No ano
seguinte ao primeiro “Raid”, Chateaubriand empreenderia a “aventura arriscada” de “festejar
o aniversário do descobrimento do Brasil” a partir desta expedição aérea que estamos
investigando. A realização do “Raid” a Porto Seguro é fruto destes empreendimentos que
tiveram na aviação um negócio estratégico que era altamente reverberado pela imprensa e que
tinha por justificativa um discurso de integração nacional.272
Em um artigo denominado Beau Geste publicado no dia 10 de abril de 1939, ou seja, no
contexto da anunciação do “Raid”, Chateaubriand relata a visita que teria feito ao interventor
federal de São Paulo, Sr. Adhemar de Barros, quando foi convida-lo para participar desta
iniciativa de resgate do berço da nação por vias aéreas. A “Comissão Geral” de organização

271
MORAIS, Fernando. Chatô, O Rei do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p p.285.
272
Idem, p.284.
132

da revoada teria ouvido as seguintes palavras do interventor: “o governo estadual resolveu


distribuir 150 contos de réis por seis Aero-Clubs do Interior”. Esta iniciativa faria parte das
ações de “ajuda” para a constituição de escolas de instrução e pilotagem. Tomar parte do
“Raid” a Porto Seguro significava participar desta Campanha em favor da aviação nacional. A
reação de “Chatô” a estas palavras do interventor será de louvor: “Que bela e fecunda
iniciativa. Como é grato registrar esse desvelo de um homem público pela aviação civil!”
Nesse sentido, o belo gesto de Adhemar de Barros seria assemelhado ao gesto da autoridade
federal. “O gesto do chefe do executivo bandeirante se casa ao do Sr. Getúlio Vargas, o qual
deu, por sua vez, 15 aparelhos” para os aeroclubes estaduais “desenvolverem as escolas de
voo e de piloto”.273
Chateaubriand iria agradecer o “gesto simpático” do interventor paulista por meio das
palavras que demonstrariam a capacidade e a iniciativa daquele governo estadual. “Em
palestra com o Sr. Adhemar de Barros, tive ocasião de lhe dizer que um dos maiores
incentivos à aviação no Brasil, quem o dava era seu próprio exemplo”. O governo de São
Paulo teria o “único dirigente deste país, que adquiriu para o Estado um avião com a
naturalidade de quem compra um automóvel”. Além de terem criado o “posto de piloto do
avião oficial”. Estas iniciativas do interventor Adhemar de Barros levariam o jornalista a dizer
que teria certeza de que “jamais o seu governo [empregaria] tão utilmente uma parcela da
economia popular, como aquela que ele vem destinar à aviação”. Ao mesmo tempo em que se
resgata o berço se vende o avião. O estimulo do “interventor bandeirante” aos pequenos
aeroclubes por meio desta ação “encantadora” e “espontânea”, se constituiria em um “gesto”
que os outros interventores estariam “no dever de imita-lo. Ele é de resto tanto pela aviação
quanto pelo Brasil”. Nesse sentido, os paulistas se constituiriam como os “pioneiros da
aviação civil no Brasil”, pois teriam tomado a vanguarda dos cariocas com “entusiasmo e
valor”, mostrando-se “herdeiros de ouro de Bartolomeu de Gusmão”, que teria vivido no
século XVII e seria o inventor do balão.274
Essa gestualidade inerente às performances das alegorias do descobrimento estaria a
serviço do projeto de Chateaubriand para dar Asas ao Brasil. O avião já foi considerado pelo
jornalista como o instrumento que estreitou o “imenso lençol verde” que nos separaria de
nossas raízes greco-latinas quando vimos emergir a figura do “gênio descobridor”. Agora,

273
CHATEAUBRIAND, Assis. Beau Geste. In. Sob os céus de Porto Seguro, 1940, p.3. A tradução de Beau
Geste do francês pelo tradutor do Google seria: “Gesto Simpático”.
274
Idem, p.4.
133

veremos como a teatralização que envolve este jogo de poder e cultura seria evocada por
“Chatô” a partir desta marcha de brasilidade que se expressaria pela imagem de progresso
atrelada ao avião. Progresso representado pela máquina e progresso civilizacional oriundo de
uma “aspiração de unidade espiritual e moral” que a tecnologia do avião permitiria aspirar.
A metáfora das Asas do Brasil Novo torna-se verbo pela ação que põe em marcha a
aviação como signo da modernidade. A aviação seria proclamada como instrumento da
integração nacional. O resgate do berço da nação se daria por meio do instrumento que
demonstraria “facilidade e rapidez” para a realização deste processo de integração tão
necessária. O avião que transporta a marcha de brasilidade pousaria no lugar das ruínas
melancólicas para ressuscita a cidade origem do Brasil. Contraste entre a origem e a
vanguarda tecnológica, ou seja, alegorização por meio da transfiguração dos sinais da
decadência, representados pelos espetáculos de tristeza das ruínas amortalhadas, em sinais de
entusiasmo, representados pela vibração da modernidade do avião. A aviação seria o
instrumento para resgatar a origem e integra-la à unidade espiritual que as Asas de um Brasil
Novo promoveriam:
A aviação é o instrumento fácil e barato para ligar o Brasil e faze-lo conhecido entre
si. Como não há distâncias para o avião, e nós temos a fortuna de possuir um
território imenso, é só com a navegação pelo ar que poderemos articular, mais cedo,
esse organismo disperso. As asas de que carece o Brasil não são para ele voar, mas
sim para que lhe seja dado unir-se e realizar a sua veemente aspiração de unidade
espiritual e moral.275

Para Chateaubriand, Porto Seguro seria o destino desta aviação de que tem por missão
“articular esse organismo disperso” que seria o Brasil. A fortuna de possuir um imenso
território poderia se configurar em uma tragédia, caso as distâncias que nos separariam não
fossem superadas neste processo de aspiração da unidade nacional. “Estaria tudo muito bem
se não fosse um problema: Porto Seguro não tinha aeroporto. Acionado pelo jornalista Getúlio
Vargas entusiasmou-se com a viagem, e sessenta dias depois o aeroporto estava pronto”.276
Assim Fernando Morais narra a aventura de “Chatô” para conseguir realizar o “Raid”. A
construção do aeroporto é uma obra que vai mobilizar o governo do Estado da Bahia nas
ações de preparação da revoada e que veremos mais à frente. Por ora vamos continuar
acompanhando as performances de Chateaubriand neste processo de espetacularização da
história que põe em marcha as máscaras da civilização.

275
Idem, ibid.
276
MORAIS, Fernando. Op. Cit., p.284.
134

Este entusiasmo de Vargas que teria mobilizado a construção da pista de pouso e


decolagem no campo do Arraial d’Ajuda em tão pouco tempo, seria lembrado pelo principal
promotor da Revoada das Asas em outro artigo de sua autoria denominado Sentinella do Ar,
publicado após a realização do evento. Neste artigo, Chateaubriand relata como a “mystica da
brasilidade” teria unido os “diabos espiritados”, que seriam os rapazes da aeronáutica civil,
neste trabalho em que “se puseram, numa embriagues frenética, [para] dar em 60 dias uma
estação e um campo de aterrisagem, em Porto Seguro”. Se a marcha de brasilidade seria
puxada pelos aviadores fáusticos, aqueles que dariam condições para a realização desta
marcha seriam estes “diabos espiritados”, metaforizados como Mefistófeles a propiciarem as
condições de realização desta busca pelas raízes do Brasil. Os obstáculos e dificuldades desta
empreitada teriam sido vencidos pela “tempera dos rapazes” que num “esforço totalitário”
conseguiram preparar a pista que era tão fundamental para a realização do “Raid”. 277 Nesse
sentido, Chateaubriand lembraria que:
Quando pedi em Porto Seguro que levantássemos os nossos copos em homenagem
ao chefe da nação, pelo aeroporto que nos dera o seu governo, não tivemos um gesto
excessivo. Nosso ambiente era de tal modo discreto e de louvor apenas a mortos de
439 anos, que a saudação ao Sr. Getúlio Vargas pareceu um derramado de nortista.
E, entretanto não foi. Jamais ouro governo demostrou mais boa vontade na execução
de um serviço público, como teve o atual para com o campo de pouso de Porto
Seguro. Nossa revoada dependia 100% desse aeroporto. Era preciso que ele fosse
construído depressa; e ele o foi em condições as mais duras. 278

Segue Chateaubriand em seu discurso de louvor a este esforço de realização do evento


que estava promovendo, onde, ao mesmo tempo, podemos perceber tanto um ambiente no
qual seria preciso justificar estas ações para além de uma saudação de nortistas, quando
depreender as condições de precariedade que fariam parte deste processo de dar início a uma
aviação nacional. A ousadia do espirito de aventura seria evocada nesta marcha de brasilidade
na qual o homem civilizado precisaria resgatar o berço da nação pela conquista dos céus do
Brasil. “Poucas vezes homens civilizados mandaram ao sertão bruto um canto de desafio mais
ousado”. Para o paraibano que já havia transformado os paulistas em expoentes da marcha
que o “Raid” representaria; a saudação a Vargas teria o intuito de sinalizar que este seria a
grande sentinela do Brasil a permitir o desenvolvimento destas ações civilizatórias que iriam
levar o progresso aquela região. Já vimos que o “sopro do poder criador” seria utilizado na
mystica de ressureição de Porto Seguro, agora este sopro oriundo do “espírito de Deus”

277
CHATEAUBRIAND, Assis. Sentinella do Ar. In. Sob os céus de Porto Seguro, 1940, p.169.
278
Idem, ibid.
135

responsável por abater “vetustas árvores” e “terraplanar o solo irregular” neste trabalho de
construção do aeroporto que receberia os jovens aviadores na visita à terra do
descobrimento.279
O progresso que as Asas do Brasil Novo trariam para a cidade de Porto Seguro não
poderia ser o mesmo que já teria sido denunciado por Edmar Morel, a partir de um “crime”
que derrubou o colégio dos jesuítas para erguer uma madeireira em 1917.280 O sopro emanado
por estes “espíritos” que derrubam árvores, deveria se constituir em um progresso que
valoriza a história como forma de dinamizar a transformação da paisagem. Está seria a
retórica adotada por Chateaubriand. “É preciso lembrar que em Porto Seguro não há recursos
tecnológicos de qualidade alguma para a realização de empreendimento desta envergadura”,
dirá “Chatô” antes de relatar que “Não há ali caminhões, material de destocamento nem de
socar a terra. Tudo teve que vir de fora, de ser embarcado da Bahia e do rio de Janeiro”.281
Nesse sentido, a realização do “Raid” lhe permitiria elencar outros elementos do diagnostico
do atraso a partir das ações de construção do campo de aviação, ao mesmo tempo em que
anuncia por meio destas obras a possibilidade de superação deste atraso pela junção da
modernidade do avião com a valoração histórica de Porto Seguro. Para que o Revoada das
asas acontecesse seria preciso por mãos à obra a esta marcha de brasilidade que, para
aterrissar no lugar de origem, se esforça por construir as estruturas inicias de uma Campanha
que teria dado Asas ao Brasil.

3.3. O “Raid” a Porto Seguro foi uma Festa de Brasilidade: Descobrimento, Comemoração e
Patrimônio.

Até este momento do capítulo, vimos como, num primeiro movimento, as máscaras da
civilização foram desdobradas por uma marcha de brasilidade que transfigurou a natureza
selvagem do lugar guarda do fogo imortal em uma rusticidade elevada à virtude civilizatória.
No segundo movimento, trabalhamos o conceito de alegoria e o modo como esta forma de
expressão compreenderia uma concepção de temporalidade, onde a ruína significa tanto a
melancólica decadência de um legado em decomposição, como a possibilidade da alegria

279
Idem, p.170.
280
MOREL, Edmar. Sessão solene num prédio construído há 147 anos. In. Sob os céus de Porto Seguro, 1940,
p.35.
281
CHATEAUBRIAND, Assis. Op. Cit., p.170.
136

entusiasmada que evocaria de forma performática a ressureição de Porto Seguro. O sopro do


progresso teria sido teatralizado por meio de uma dramatização que recorreria às alegorias do
descobrimento como modo de expressão deste pretenso movimento de aperfeiçoamento da
sociedade. A invenção de uma mystica foi problematizada neste processo que espetaculariza a
história de fundação do Brasil, por meio destes discursos e gestos que configurariam as ações
e atividades ligadas ao “Raid”. Vimos alçar voo uma perspectiva que problematizou a
aviação, como outra destas alegorias que metaforizaram a superação do passado por meio do
uso do avião como sinal da modernidade.
Neste momento, buscaremos problematizar a festa de brasilidade que teria sido o
“Raid” a Porto Seguro por meio da reconstrução e análise dos acontecimentos que
constituiriam este evento de resgate do lugar de origem do Brasil. Por meio desta
reconstituição poderemos estabelecer as relações entre as principais questões que guiaram este
trabalho e que estariam na base de sua problematização, quais sejam: (1) os desdobramentos
da problemática relativa aos dispositivos de emolduramento, que encontrariam no tema da
invenção do descobrimento uma moldura de compreensão e refundação da experiência
histórica que seria reativada de tempos em tempos; (2) este emolduramento do descobrimento
se efetivaria por meio de uma comemoração que agencia uma teatralização alegórica de
celebração do descobrimento do Brasil, a partir de uma atividade que se utiliza do avião como
meio de realização deste evento rememorativo; (3) estes elementos se somariam à atribuição
de valor histórico a esta paisagem do descobrimento que guardaria o berço da nacionalidade e
que desdobraria no processo que transformará Porto Seguro em um patrimônio histórico
nacional. Este conjunto de questões toma forma a partir desta problemática que encontra nas
alegorias do descobrimento uma metáfora que se fez verbo pelas ações da Revoada das Asas.

O governo da Bahia e a Revoada a Porto Seguro: dos melhoramentos urbanos para a festa
cívica ao culto do passado pelo progresso.

O “Raid” a Porto Seguro foi um empreendimento levado a cabo por uma série de atores
que participaram de diversas formas para que a sua realização se efetivasse: seja na esfera
nacional com a articulação da Campanha que envolveria Getúlio Vargas, Salgado Filho e
Assis Chateaubriand e que transformaria o avião em uma alegoria da integração nacional; seja
a marcha de brasilidade capitaneada pelo bandeirantismo aéreo que buscava dominar os céus
do Brasil, para assim estabelecerem o ritmo da ascensão do país; seja por meio das ações de
preparação para receber os ilustres visitantes que pousariam na cidade. A participação do
governo do Estado da Bahia na Revoada das Asas se daria justamente no tocante a esta
137

preparação e aos “melhoramentos urbanos” que teriam sido realizados para a consecução do
“Raid”. Nas palavras do artigo O Governo Bahiano e a Revoada a Porto Seguro que abre Sob
os céus de Porto Seguro, e, pelo que tudo indica, não teria sido publicado anteriormente em
nenhum jornal sendo elaborado como abertura para este livro-cápsula do tempo, fica explicita
a demanda que teria mobilizado a participação do governo baiano e as providências que foram
tomadas.
Quando, em princípios do ano de 1939, cogitou-se da revoada a Porto Seguro,
empreendimento levado a efeito por iniciativa do jornalista Assis Chateaubriand,
diretor dos ‘Diários Associados’, e que teve desde logo a colaboração do
Departamento de Aeronáutica Civil, do Aero Club do Brasil e do Touring Club do
Brasil, o dr. Carlos Martins, prefeito de Porto Seguro, veio solicitar o auxilio
necessário ao governo do Estado, para que fosse dado melhor aspecto á cidade, bem
como se iniciasse a construção de duas pequenas estradas de rodagem e limpeza de
alguns edifícios históricos, desde quando, pela premência de tempo, era impossível a
restauração perfeita dessas obras. O Interventor Landulpho Alves de Almeida
recebeu a sugestão com aplausos e autorizou imediatamente ao seu dinâmico
Secretario da Viação e Obras Públicas, engenheiro civil Delsuc Moscoso de
Oliveira, a mandar um engenheiro estudar e orçar essas obras e que fossem elas
imediatamente atacadas.282

O “Raid” se constituiria como um evento que articulou as mais diversas autoridades e


esferas da administração pública e da sociedade civil brasileira. Capitaneados por
Chateaubriand, sua realização envolveu a participação dos governos federal, estadual (São
Paulo com o apoio à aviação e Bahia com as obras de infraestrutura da cidade) e municipal. O
interventor federal da Bahia que aplaudiu a iniciativa mobilizaria a máquina administrativa
para “in loco” estudarem as possibilidades de melhoria da cidade para assim poderem realizar
em um prazo de algumas semanas as obras necessárias. Os “melhoramentos de Porto seguro”
seriam feitos para poder “apresentar a tão distintos visitantes” que visitariam a cidade
“durante os dias de festejo”, um aspecto mais condizente com a história que este lugar
guardaria. As dificuldades para tal empreitada foram diversas: “porque forçoso é dizer, não foi
possível encontrarem-se ali pessoal e material capazes de atender às necessidade do serviço
reclamado, sendo preciso que tudo fosse remetido desta Capital no insignificante prazo de
vinte e cinco dias”.283
A partir destes estudos chegou-se à conclusão que seria “impossível” tomar as
providencias para a realização de todas as obras necessárias. “Num esforço supremo, devia a
Secretária de Viação e Obras Públicas realizar, pelo menos, os trabalhos realmente

282
Autor não identificado. O Governo Bahiano e a Revoada a Porto Seguro. In. Sob os céus de Porto Seguro,
1940, p. III.
283
Idem, p. IV.
138

indispensáveis”. Percebam que o órgão da administração pública estadual que é destacado


para a realização destes trabalhos é um setor que tem por finalidade, primeiro, a questão da
viação e dos transportes, ou seja, a racionalidade da administração que atacaria as obras
públicas demandas para os melhoramentos de Porto Seguro estava atrelada à questão das vias
de desenvolvimento e progresso por meio da abertura de estradas. Nesse sentido, destaca-se
que algumas das principais obras realizadas foram efetivamente a abertura de estradas. Após
trabalharem “durante muitas noites” eles teriam conseguido executar a abertura de duas destas
estradas.
O perímetro urbano de Porto Seguro divide-se em cidades alta e baixa, uma distando
da oura cerca de 2 quilômetros, num penosíssimo caminho de areia solta até
encontrar a ladeira de acesso que se desenvolve em terreno argiloso, cobrindo uma
rampa de cerca de 10% em linha reta. As condições desfavoráveis dos terrenos dessa
estrada real, fizeram com que o dirigente dos serviços, designado por esta
Secretaria, buscasse uma variante que, partindo da rua do Pacatá, fosse contornando
o morro onde está a cidade alta ate encontrar a ladeira, aumentando, porém, a estrada
para cerca de 3 quilômetros, Era mais fácil fazer-se uma roçagem em capoeira e o
destocamento do que abrir-se caixão e encascalhar a parte silicosa já citada. A outra
estrada, muito mais extensa, pois mede cerca de 6 quilômetros, é a que partindo da
margem direito do rio Buranhem, na sua foz, vai até o campo de aviação, situado no
planalto do arraial de N. S. da Ajuda. Como a outra, a construção desta estrada foi
bem dificultosa, visto como, além de terminar numa ladeira de aclividade fortíssima,
passa quase toda em terreno silicoso, não havendo, nas imediações, cascalho ou
outro material capaz de atenuar as dificuldades oriundas de uma estrada arenosa para
trafego de automóveis. Um caminhão da Diretoria de Estada de Rodagem e
combustível necessário foi mandado para lá, facilitando o trabalho na rodovia. Duas
caminhonetes, mandadas pelo governo do Estado, prestaram bons serviços no
transporte de passageiros.284

As duas estradas abertas foram: uma que ligaria a cidade baixa à cidade alta de Porto
Seguro, a outra, a que ligaria a margem do rio Buranhem ao campo de aviação do Arraial
d’Ajuda. A partir destas estradas é possível perceber a formação de um circuito que remeteria
aos caminhos percorridos pela programação celebrativa do “Raid” e que conectaria o
moderno ao antigo, o novo ao velho. A formação deste circuito se validaria caso tomemos
estas aberturas como metáforas de compreensão das dinâmicas que estas ações produziram.
As obras de abertura serviriam tanto para recepcionar os aviadores no campo de aviação,
lugar onde pousaria o avião sinal da modernidade, e assim conectariam os jovens aviadores
representantes de um Brasil Novo, que após atravessarem o rio em canoas se deparariam com
a cidade baixa de onde partiriam para ter acesso aos locais históricos da cidade alta por meio
da nova estrada que substituiria a “estrada real”, que mesmo sendo valorizada pelo atributo

284
Idem, p. IV-V.
139

“real” seria substituída por outra nova. Estes circuitos seriam feitos por estes automóveis que
chegariam embarcados e que foram enviados para servirem de apoio à realização das obras e
para o transporte dos participantes da revoada. Vale destacar que este caminhão e as
caminhonetes seriam ao que tudo indica os primeiros automóveis a trafegar pelas estradas de
areia do município.
As ações do governo do Estado da Bahia não teriam se limitado a estas obras relativas à
abertura de estradas no perímetro urbano. Atendendo aos pedidos feitos pelo prefeito de Porto
Seguro:
[...] foram instalados serviços sanitários em 16 prédios que serviram de
acantonamento para os visitantes; construído o altar onde se realizou a Missa
campal; um arco de triunfo medindo 12 metros de largura por 7,5 na parte mais alta;
mesas para o churrasco; iluminação provisória e tantos outros pequenos serviços
necessários á boa apresentação da cidade a tão distintos visitantes, como foram os
componentes da Revoada de 3 de Maio de 1939.285

Foi preciso instalar sanitários para recepcionar os distintos visitantes. Além desta ação
que atestaria o atraso da cidade, as outras obras providenciadas para a “boa apresentação” de
Porto Seguro se fizeram mediante as atividades de decoração relativas às cerimônias e
festividades. A construção do altar e do arco do triunfo para as comemorações do
descobrimento do Brasil marcam esta preocupação em vincular a imagem da cidade com a
alegria de celebrar as Asas do Brasil Novo. A iluminação provisória viria a dar luz a estes
cenários que um inventário dos sentidos já havia problematizado por meio das palavras de
Edmar Morel. Estas ações do governo baiano teriam sido feitas “para dar melhor feição à
histórica cidade de Porto Seguro, proporcionando, também, um relativo conforto aos ilustres
hospedes”.286
Para que tudo isso pudesse ser feito seria preciso primeiro que o governo da Bahia
conseguisse enviar para este lugar remoto as pessoas e materiais necessários para realizar
estas obras. Se os primeiros técnicos do governo que foram estudar as condições e as obras
necessárias, teriam ido para Porto Seguro no dia 6 de março, a grande comitiva com
trabalhadores e insumos só seria enviada da capital do Estado no mês de abril. Como não
havia estradas de rodagem, o principal meio de transporte da região ainda era a navegação.
Dois navios seriam enviados a Porto Seguro neste processo de preparação e realização da
Revoada das Asas.

285
Idem, p. VII.
286
Idem, p. VIII.
140

Não se limitou somente a essas obras de ação do Governo do Estado. Determinou


ainda o Interventor Landulpho Alves, que o Secretario da Viação também
providenciasse a ida a Porto Seguro, de dois navios da Companhia de Navegação
Bahiana, sendo que o primeiro, o ‘Porto Seguro’, deveria partir da Bahia no dia 28
de Abril, sob a chefia do dr. Ramiro Berbert de Castro, diretor de Cultura e
Divulgação, conduzindo o material alimentício, medicamentoso e de hospedagem,
uma estação de radiotelegráfica, que foi mandada instalar na Prefeitura Municipal
pela Secretaria de Segurança Publica, e que tocasse em Ilhéus esse navio, onde
embarcariam o Prefeito, dr. Mario Pessôa e exma. senhora, o saudoso D. Eduardo,
Bispo de Ilhéus, da mesma ordem do frei Henrique de Coimbra, para que celebrasse
a missa campal, de acordo com o programa traçado pelos organizadores da revoada.
O dr. Ramiro Berbert de Castro chegou no dia 30 de Abril em Porto Seguro,
providenciando, então, com o Prefeito Carlos Martins os detalhes de recepção e
hospedagem a tão ilustres visitantes. E mais, que partisse outro navio da ‘Navegação
Bahiana’ o ‘Ilhéus’, a 1° de Maio, conduzindo o operoso Secretario da Viação e
Obras Publicas, engenheiro Delsuc Moscoso, que deveria representar o Governo do
Estado naquela festa cívica.287

A instalação da estação radiotelegráfica seria mais um dos sinais da modernidade que


seriam levados para Porto Seguro durante o “Raid”. A participação do governo da Bahia nos
preparativos desta “festa cívica” que teria sido o “Raid” a Porto Seguro envolveu desde o
envio dos navios Porto Seguro e Ilhéus até o detalhamento das atividades da programação e a
hospedagem dos participantes da revoada. O Ilhéus teria zarpado no dia determinado levando
“luzida comitiva de jornalistas cinematografistas, photographos, banda de música da Polícia
Militar, um medico operoso e um clínico, além de diversas famílias”.288 A luzida comitiva
chefiada pelo diretor de Cultura e Divulgação do Estado seria composta por membros do
governo e por outras autoridades e contaria ainda com famílias que viriam de toda a região.
A preparação desta festa cívica compreendia ações que visavam demonstrar que os
espetáculos de tristeza que vimos anteriormente seriam transfigurados e superados por meio
destes melhoramentos que visavam embelezar a cidade. Para receber os participantes que
iriam contemplar as ações de comemoração do descobrimento seria preciso, antes de tudo,
regatar a história da cidade por meio da recuperação de sua fachada urbana. O diagnóstico do
atraso também preside este discurso do governo estadual que, para valorizar seus próprios
feitos, evidencia a precariedade da situação anterior à sua ação.
Está evidenciado que o aspecto urbano da cidade era o pior possível. Cidade pobre,
construída, na sua grande maioria, de propriedades de gente humilde, incapaz de,
repentinamente, dispensar avultadas soma para asseio das fachadas de suas casas e
construção de passeios, tais serviços foram atacados com a maior presteza,
chegando-se a atender á necessidade, nesse particular, de mais de uma centena de
prédios, fazendo-se a caiação de cerca de 5.000 m2, enquanto se construía perto de
600 m2 de passeios. Por outro lado, existindo na rua do Pacatá uma ponte

287
Idem, p. VII-VIII.
288
Idem, p. VIII.
141

antiquíssima, bastante arruinada, foi totalmente restaurada, segundo seu feitio e por
informações de pessoas antigas do local.289

O embelezamento da cidade por meio da recuperação desta fachada de urbanidade não


estaria completo, sem a demonstração de preocupação e ação para com os prédios históricos
de Porto Seguro. Se todos estão a caminho da cidade, é para exaltar a história que estas ruínas
melancólicas guardariam. Para que a teatralização das alegorias do descobrimento possam se
efetivar, seria preciso restaurar o cenário histórico onde as performances aconteceriam.
Dentro das ações de melhoramentos urbanos que o governo da Bahia teria promovido em
Porto Seguro, as ações ligadas à restauração dos prédios históricos são as que melhor
simbolizam o grau de atribuição de valor histórico à cidade que teria sido dado por estes
agentes. Como temos percebido, a questão do patrimônio se fez presente nas ações da revoada
por meio de diversas atividades que valoraram a cidade como histórica, por a considerarem o
berço da nacionalidade, ou ainda, o lugar de origem do Brasil. A restauração dos prédios
históricos de Porto Seguro seria mais um destes elementos que consolidariam este
acontecimento como sendo o início do processo de patrimonialização do descobrimento.
Porto Seguro, como é sabido, é um grande repositório de prédios históricos. Para
não se falar em outros, o da Prefeitura, á cidade alta, datando do século XVII,
construído por doações das diversas Capitanias, encontrava-se em lastimável estado
de desprezo. Sujo, arruinado em vários pontos, não fosse sua solida estrutura, talvez
há muito não mais existisse. Convinha ser reparado e asseado, respeitando-se o
estilo, conservando-lhe suas linhas arquitetônicas. E assim fio que, dentro do maior
cuidado, algumas peças do telhado, escada e esquadrias foram substituídas, realizada
a limpeza externa e interna, restauração de alguns motivos arquitetônicos, reparos no
forro (este que não data da época da construção), idem no assoalho e tudo mais
quanto preciso se tornava para o fim. Quanto aos prédios históricos, os estragos
eram tamanhos que constituiria um fracasso providencia em tão pouco tempo. 290

A premência do tempo não teria permitido a recuperação da maioria dos “prédios


históricos”, sendo possível apenas a reparação daqueles que foram considerados os mais
significativos. Este “grande repositório” que Porto Seguro significaria, seria “melhorado”
como forma de produzir uma visualidade mais condizente com as expectativas daqueles que a
visitariam. Uma cidade produzida para ser dada a ver para os ilustres visitantes, dentre eles
jornalistas que fariam a cobertura do evento. O cuidado com os prédios históricos seria
também o cuidado com a imagem da cidade. Restituir à cidade guarda do fogo imortal a
nobreza perdida seria, nesse sentido, restituir-lhe a imagem de uma cidade viva que estaria a
caminho da união nacional por meio deste resgate histórico. As ações do governo do Estado

289
Idem, p, VI.
290
Idem, p. VI.
142

da Bahia para os preparativos da Revoada das Asas se constituiriam em uma destas missões
de resgate que visavam redescobrir um Brasil Novo.
Em Os problemas máximos de Porto Seguro, artigo de autoria de Ramiro Berbert de
Castro (1894-1966), diretor de Cultura e Divulgação do Estado da Bahia, este elabora uma
das principais perspectivas acerca dos significados do “Raid” que sintetizariam a visão do
governo baiano sobre estes acontecimentos. Este artigo vem logo após o texto que vimos
anteriormente e também se constituiria em um texto de abertura de Sob os céus de Porto
Seguro onde o governo da Bahia apresenta suas iniciativas. Nesse artigo, um dos chefes da
“luzida comitiva” composta pelas autoridades do governo estadual que desembarcaram na
cidade, expressaria os valores políticos que nortearam as ações empreendidas. Suas palavras
nos revelariam uma visão estratégica da revoada e seu papel para o desenvolvimento da
região.291
Foi neste artigo que apareceu a citação de Getúlio Vargas que figurou como epígrafe do
segundo capítulo. Na referida citação, vimos que “Sob o Império e a primeira Republica
crescemos longitudinalmente, à orla das águas atlânticas. O Brasil vivia voltado para fora, e o
sentido de sua cultura era o da evasão, ou retorno ao continente dos descobridores” e que,
com a “Revolução de 30” e o advento do “Estado Novo”, o país teria dado formas políticas a
“tendências profundas da nacionalidade” que o levariam a restaurar suas “raízes históricas” a
partir da modificação dos rumos da civilização brasileira que teria retomado o caminho dos
paralelos.292 Ou seja, era preciso reverter o caminho de ocupação colonial litorânea que se
transformaria no símbolo do atraso a partir do diagnóstico feito em Porto Seguro. Essas
questões foram trabalhadas quando problematizamos a perspectiva d’O Novo Descobrimento
do Brasil que retornaria à cidade para transforma-la em um “desmentido vivo ao conceito” de
que a civilização brasileira teria se fundado em uma ocupação litorânea de sucesso.
Essa problemática reapareceria por meio das palavras do diretor de Cultura e
Divulgação do Bahia, quando este apresentará sua compreensão dos significados e sentidos da
Revoada das Asas. Segundo Ramiro Berbert de Castro a revoada, que teria “ensejado o
contato dos responsáveis pela coisa pública com a zona de Porto Seguro, evidenciou umas
tantas necessidades do Município histórico”. Foi então que se teria cogitado as “várias obras

291
CASTRO, Ramiro Berbert de. Os problemas máximos de Porto Seguro. In. Sob os céus de Porto Seguro,
1940, p. IX.
292
VARGAS, Getúlio. Apud. In. CASTRO, Ramiro Berbert de. Os problemas máximos de Porto Seguro. In.
Sob os céus de Porto Seguro, 1940, p. IX.
143

na sua sede e no seu vasto hinterland”. O “Raid” teria oportunizado ao governo baiano
realizar uma visita de campo, organizada e que contaria com as autoridades de secretarias da
administração pública estadual. Esse contato dos responsáveis pela coisa pública que teria se
dado por meio da realização de uma festa cívica que mobilizaria todo este esforço, serviria
para a projeção de grandes obras que deveriam se efetivar para o desenvolvimento do vasto
hinterland de Porto Seguro. Para que o “município histórico” reencontre o caminho da
civilização, o progresso se fará presente enquanto uma bandeira discursiva para a projeção do
futuro da terra do descobrimento. Nesse sentido, veremos, por meio das palavras de um dos
principais agentes de organização e produção da Revoada, a manifestação das alegorias do
descobrimento que tem emergido nas performances inerentes à comemoração das Asas do
Brasil Novo.
A sensacional revoada a Porto Seguro, realizada com tanto brilho e entusiasmo, não
teve somente como consequência o reavivamento do nosso culto ao passado. A
comemoração das azas do Brasil novo á data do Descobrimento, trouxe também
resultados práticos para o futuro daquelas paragens históricas, cheias de
reminiscências de antanho, mas necessitadas da boa vontade dos poderes públicos
para a solução de urgentes problemas locais. 293

Se no primeiro artigo, onde o governo baiano se expressaria quanto às suas ações, o


foco teria sido em elencar as obras pontuais que conformariam estas “soluções urgentes” de
que fala o diretor de Cultura e Divulgação; nas palavras de Ramiro Berbert de Castro
veríamos emergir uma perspectiva que, para além da urgência, considera importante projetar
um futuro para a cidade que representa a paisagem do descobrimento. Para além do que era
possível fazer em relação à restauração dos monumentos históricos, os pontos chaves deste
resgate do lugar de origem seriam aqueles que pudessem lhe trazer de volta à vida, ou seja,
que lhe encaminhassem para um rumo de progresso duradouro. A ressureição que a mystica
evocou, reapareceria como o progresso que possibilitaria o reavivamento de Porto Seguro por
meio do culto ao passado. Este culto teria por fim resgatar uma cidade que necessitaria ser
integrada ao futuro daquele presente de redescobrimento.
A projeção da construção de uma estrada de rodagem que ligasse esta região ao resto do
Brasil para lhe conectar as vias do progresso, seria uma das principais ações de infraestrutura
que teriam emergido das comemorações do descobrimento em 1939. “A referida rodovia é a
aspiração maior de Porto Seguro. Sua construção se impõe como um dos grandes fatores do
seu desenvolvimento econômico”. Esta estrada de rodagem projetada a partir das ações do

293
CASTRO, Ramiro Berbert de. Op. Cit., p. X.
144

“Raid” teria o seguinte caminho: ela deveria cortar o vale do rio dos frades até o “futuroso
distrito de Buranhem à sede do município, com uma variante para o Monte Pascoal, onde se
pretende levantar o Parque Nacional”. Aqui, paisagem e hinterland se encontram. A estrada
que deveria cortar a região teria uma variante que se conectaria à histórica montanha da
Caravana com a qual reconfiguramos a paisagem do descobrimento, mas o rumo em direção
ao futuro seria oriundo da conquista do hinterland pela construção das vias do
desenvolvimento atrelado ao progresso econômico. As “estradas de penetração”, como
nomenclatura destacada pelo próprio artigo, seriam os caminhos encontrados pelo processo
civilizador para alcançar o lugar de origem que jazia perdido no sul da Bahia. O vasto
hinterland seria esquadrinhando enquanto possibilidade de desenvolvimento de atividades
econômicas que gerariam o progresso da região. O desbravamento seria novamente a energia
que colocaria em marcha o progresso, como sopro do poder criador que proclamaria o
desenvolvimento como rumo civilizatório. As matas virgens da paisagem se transformariam
em madeira de lei no desbravamento do vasto hinterland.
No interior de Porto Seguro encontram-se terras ubérrimas, gigantescas matas
virgens com as mais variadas madeiras de lei. Prestam-se ao cultivo de cacau, café,
cereais, além da possibilidade do desenvolvimento da pecuária. O desbravamento
dessa zona de assombrosa fertilidade, do litoral para o centro, dos baixios da costa
para os altiplanos das terras mineiras, favoreceria o desenvolvimento econômico da
região.294

Desbravar a zona fértil nos remeteria à carta de Caminha e sua profecia de que em se
plantando tudo dá. Mas, marca também que somente o estabelecimento de uma ocupação
litorânea não bastaria para desenvolver o Brasil. Seria preciso que o sopro do progresso
avançasse como o vento que adentra o sertão, do litoral para o centro. Os caminhos e
descaminhos da civilização brasileira se constituiriam em um destes temas importantes que
seriam intertextualizados nos diversos discursos dos promotores do “Raid” a Porto Seguro.
Mas o litoral não seria desprezado, os portos na beira mar ainda se constituiriam em
importantes vias de conexão entres estes mundos distintos, que se encontrariam na cidade
guarda do fogo imortal. Além das estradas de penetração, outra obra que se destacaria neste
processo de projeção de uma infraestrutura que pudesse desenvolver a região seriam as “obras
portuárias”. “Em frente a Porto Seguro, paralelo á costa, existe uma linha de arrecifes com
cerca de dois quilômetros de extensão, formando um quebra-mar natural, nas marés baixas”.
Os “arrecifes imortais”, que teriam dado porto seguro à esquadra de Cabral na reconfiguração

294
Idem, p. X.
145

da paisagem, transfiguram-se em uma possibilidade de estabelecimento de um ancoradouro. O


arrecife emerge, assim, como um objeto da natureza destituído de valor histórico. A
racionalidade do progresso não necessita se justificar mediante uma valoração oriunda do
passado, ela se autojustificaria por razões econômicas. Em alguns momentos este passado é
ressaltado como sendo de grande valor, em outros momentos a racionalidade técnica inerente
ao discurso do progresso somente veria matéria prima na natureza onde antes havia história.
Mas a razão predominante teria sido aquela da projeção de um futuro por meio das obras que
proclamam o progresso e que se faria mediante a construção de vias de acesso para esse Brasil
que era então propagado.
A participação do governo baiano nesta festa cívica que visava promover as Asas do
Brasil Novo, durante os preparativos, melhoramentos e projeções de futuro ligadas à
realização do “Raid”, teria levado o diretor de Cultura e Divulgação do Estado da Bahia a
dizer que: “Com os melhoramentos citados, Porto Seguro, libertando-se de uma situação de
atraso, de esquecimento e abandono, contribuiria para o engrandecimento de nossa terra,
como um grande centro de atividade produtiva, de riqueza e de progresso”.295 As celebrações
e festividades promovidas pelas autoridades governamentais que tiveram lugar nesta terra
engrandecida por esta missão de resgate, transfigurariam a paisagem do descobrimento em um
vasto hinterland que deveria ser aberto pelas estradas de penetração para a chegada do
progresso. A festa de brasilidade que seria o “Raid” a Porto Seguro, como forma de celebrar o
aniversário do descobrimento do Brasil, estaria inserida neste contexto de reavivamento do
culto ao passado que proclama o futuro por meio de ações comemorativas.

A comemoração das Asas do Brasil Novo.

“Completamos a segunda etapa do nosso voo a Porto Seguro, com uma viagem
esplêndida até a capital do Estado do Espírito Santo. De uma regularidade absoluta, o salto de
Campos a Victoria se fez sem o menor acidente”. Assis Chateaubriand inicia, assim, o
telégrafo que foi enviado da capital capixaba e publicado no dia 2 de maio de 1939. O
principal promotor da revoada, que já estaria no ar, relata pelos meios de comunicação que
possui a conclusão desta etapa que teria se iniciado no Estado do Rio de Janeiro. Neste pouso
em direção ao destino do “Raid”, ele agradece tanto “o gesto do interventor paulista” que faria
São Paulo presente “às comemorações cívicas de amanhã”, como agradeceria também à

295
Idem, p. XI.
146

“hospitalidade fidalga” do interventor do Espírito Santo. Por onde o “Raid” passa vão
surgindo “oradores” que acentuariam os “sentimentos de brasilidade do sr. Adhemar de
Barros”. Os aviadores estariam “cheios de entusiasmo”. Não seria para menos, já que “Nunca
se realizou no Brasil uma comemoração cívica como a que estamos levando a cabo”. Os
“bravos pilotos” mostrar-se-iam “imensamente satisfeitos com a recepção que lhes vem sendo
feita em toda parte”. O velho e destemido almirante Gago Coutinho que comandaria “a nossa
fortilha”, este “herói do primeiro voo de travessia do Atlântico Sul”, teria declarado em uma
palestra durante um jantar em Vitoria que estaria “encantado com a companhia dos aviadores
paulistas”.296
A marcha de brasilidade que decolou de São Paulo e do Rio de Janeiro rumo ao berço
da nacionalidade na Bahia, estava a caminho de Porto Seguro nas asas dos aviadores fáusticos
que iriam realizar esta comemoração cívica que tem por tema o “Descobrimento do Brasil”.
Toda a ação preparativa e os melhoramentos urbanos feitos pelo governo baiano, que teria
produzido uma fachada de embelezamento da cidade por meio das obras e dos reparos nos
prédios históricos, seriam colocados à prova dos ilustres visitantes que se aproximavam. Porto
Seguro iria receber “entre festas a esquadrilha organizada pelos ‘Diários Associados’”. O
enviado especial do Estado da Bahia, jornal que estaria cobrindo a realização do “Raid”, dirá
que a revoada promovida por Assis Chateaubriand em homenagem ao descobrimento do
Brasil estaria “empolgando a cidade” que seria “pequena para conter a multidão que aqui se
encontrava”.297 A festa cívica que se aproxima com a chegada dos aviões, a mesma que
mobilizou expectativas que alteraram os ritmos da cidade em seus momentos de anunciação,
iria receber “comitivas” de vários municípios de Estados diferentes que viriam por vias
diversas e utilizando meios de transporte como cavalos, navios e aeroplanos.
Do interior do município, há vários dias, chegam pessoas que vêm participar das
grandes festas da descoberta do Brasil. De Belmonte, Canavieiras, Ilhéus e de
diversos municípios mineiros chegam por diversas vias inúmeros visitantes. No
porto estavam o ‘Murtinho’, o ‘Empreza’ e o ‘Porto Seguro’, quando, às 10 horas,
chegou o ‘Cannavieiras’ com a comitiva oficial recebida pelo prefeito, autoridades
locais e grande massa popular. Porto Seguro apresenta um aspecto jamais visto
aqui.298

296
CHATEAUBRIAND, Assis. O “raid” a Porto Seguro. Victória, 2 – (Pelo telegrapho). In. Sob os céus de
Porto Seguro, 1940, p. 25-26. Grifo nosso.
297
NOGUEIRA, José. Porto Seguro recebeu entre festas a esquadrilha organizada pelos ‘Diários
Associados’. Enviado especial do Estado da Bahia. In. Sob os céus de Porto Seguro, 1940, p.119.
298
Idem, ibid.
147

Mais de “cinco mil forasteiros” teriam comparecido à cidade para as comemorações do


descobrimento ligadas ao “Raid”. “Ainda há pouco chegaram 8 aviões inclusive o em que
viaja o sr. Assis Chateaubriand, diretor dos ‘Diários Associados’. Gago Coutinho ainda não
chegou, estando a cidade ansiosa por aplaudir o grande az português, que repetiu nos ares a
proeza dos descobridores”. Os aviões e hydro-aviões seriam recebidos “sob os maiores
aplausos da população”. Relatando os ocorridos do dia 2 de maio, o enviado especial dirá que
“ontem foi inaugurada a estação de rádio da Polícia” e que “hoje haverá um churrasco
oferecido aos visitantes, ativando-se os preparativos para a solemnissima missa que será dita
amanhã na velha igreja da cidade”. A população que aguardaria com ansiedade a chegada dos
aeronautas que vinham celebrar o aniversário do Brasil em seu lugar de origem, se somaria a
estes “forasteiros” que vinham de toda a região. A chegada dos aviões já era em si um dos
momentos altos da programação das festividades do “Raid” a Porto Seguro.299

Figura 16: Os primeiros aviões a chegar ao campo de aviação.300

A passagem dos aviadores pelas cidades constituiria um “grande acontecimento”. Em


Caravelas uma “incalculável multidão” teria comparecido ao campo de aviação “dando
vibrantes vivas aos promotores e componentes do ‘raid’”. Ao relatar os impactos causados por
este “Raid” à cidade de Caravelas, quando os aviadores lá passariam em direção a Porto

299
Idem, p.119-120. Grifo nosso.
300
In. Sob os céus de Porto Seguro, p.99.
148

Seguro, o jornalista escreverá que “Não é exagero dizer-se que a passagem dos aviões foi o
maior espetáculo que esta cidade já assistiu até hoje”.301 Também em Porto Seguro, como
principal palco destes espetáculos proporcionados pelas Assas do Brasil Novo, a chegada
destes “conquistadores do ar” seria motivo de emoção e aplausos. Dentre estes homens um se
destacaria como sendo o representante da “raça dos descobridores” e que por isso seria
também o principal homenageado do evento. A chegada de Gago Coutinho à cidade de Porto
Seguro é um destes grandes acontecimentos da revoada e seria marcada por um discurso da
emoção e do enaltecimento das ações que estavam sendo realizadas. A recepção ao aeronauta
lusitano seria saldada por tiros disparados pelos canhões históricos que comporiam a
paisagem do descobrimento.

Figura 17: Disparo do canhão em saudação à chegada de Gago Coutinho.302

“GAGO COUTINHO CHOROU!” Exclama em letras maiúsculas o relato do jornalista


que cobria o “Raid” e que entrevistou o velho almirante. “Disse terem sido favoráveis as
condições athmosphericas para os aeroplanos durante toda a travessia, tendo ficado mais uma
vez patenteada a pericia dos pilotos brasileiros”. Neste discurso da chegada, Coutinho irá
dizer que: “Desembarcando em Porto Seguro, senti grande emoção. Saltei nos braços da

301
Idem, p.120-121.
302
In. Sob os céus de Porto Seguro, p.21.
149

multidão, que cantava o hino português enquanto os índios tupiniquins me atiravam flores.
Chorei de emoção”. Mas o “espetáculo mais emocionante” teria sido a “salva dada pelos
canhões para aqui trazidos em 1503, pela expedição Gonçalo Coelho”. O principal
homenageado da revoada, que personificaria os valores exaltados pelas ações de
comemoração do descobrimento, verá no “Raid” a Porto Seguro, esta “grande iniciativa dos
‘Diários Associados’”, uma “aproximação dos povos do Brasil e Portugal. Estou nos braços
de Porto Seguro. Viva o Brasil! Viva Portugal!”. As declarações iniciais de Gago Coutinho
amplificariam o coro daqueles que atribuem valor histórico à cidade mediante sua vinculação
com o descobrimento do Brasil. As bandeiras hasteadas pela Caravana no cume do famoso
monte seriam enfim sobrevoadas.
Sinto que a população se encontra empolgada, pois desde 1922, quando por aqui
passei pela primeira vez, nunca mais assisti a um espetáculo tão grandioso. Vivo
hoje um dos maiores dias da minha vida. Voei sobre os céus do Monte Pascoal em
cujo cume tremulam as bandeiras do Brasil e da Cruz de Christo, desfraldadas pelos
‘Diários Associados’, me ufanando em rever a primeira terra avistada por Cabral.
Tudo aqui de Porto Seguro é histórico.303

Figura 18: Gago Coutinho e Ramiro Berberte de Castro em Porto Seguro.304

303
Idem, p.122.
304
In. Sob os céus de Porto Seguro, p.111.
150

A expressão dos sentimentos para com este “espetáculo grandioso” aliava a exaltação
das habilidades e virtudes dos aviadores com o ufanismo evocado pelas comemorações que
dariam orgulho aos participantes. A empolgação da população seria retribuída por este
sentimento de agradecimento que reconheceria neste dia um dos “maiores” da vida do
almirante português. O enviado especial do Estado da Bahia também iria colher as
impressões de outros participantes da revoada. Dentre elas, destacaremos as declarações de
Anésia Pinheiro Machado (1904-1999). Esta que teria sido a segunda mulher brasileira a
conseguir um brevê para pilotar aviões em 1922 e que a consideraremos como uma das
representantes desta marcha de brasilidade capitaneada pelos aviadores paulistas.305 Suas
declarações também estariam imersas neste discurso que atribuiriam ao “Raid” uma missão de
resgate ao lugar de origem por meio do agenciamento dos sentimentos de amor à história do
Brasil. Além de promover a exaltação da figura do almirante que representaria o que de
melhor o espirito de aventura português teria produzido. Sobre os significados do “Raid” a
aviadora paulista dirá que:
A realização do voo a Porto Seguro encerra um profundo sentimento de civismo e
brasilidade, de cultura à tradição e amor à história pátria; vem por em relevo o valor
da aviação civil brasileira. Este voo se torna mais significativo em virtude da
presença do almirante Gago Coutinho, o primeiro navegador que pelos ares cruzou o
Atlântico em demanda da terra descoberta por Cabral. Sinto-me feliz em dele
participar.306

Os demais aviadores também foram ouvidos e iriam relatar suas impressões sobre estes
acontecimentos. Na reportagem Os aviadores ficaram encantados com a hospitalidade dos
bahianos, as falas dos “pilotos que participaram do voo aos céus de Porto Seguro”
constituiriam um mosaico de impressões a partir dos quais poderíamos compreender qual
seria o significado do “Raid” para seus membros. “Procurando conhecer a significação do
‘raid’ a Porto Seguro para as asas brasileiras, os ‘Diários Associados’ ouviram os aviadores
paulistas que participaram da grande revoada”. O primeiro “raidmen” a ser ouvido declarou:
“O sr. Assis Chateaubriand organizou a revoada da melhor maneira possível, e desde o Campo

305
Segundo o artigo Mulheres na aviação, de responsabilidade do Instituto Embraer de Educação e de seu
Centro Histórico, Anésia teria nascido em 5 de junho de 1904, em Itapetininga, interior paulista e teria
ingressado no setor aeronáutico aos 17 anos, quando começou seus treinamentos. “Após a conquista do brevê em
1922, passou a voar com o transporte de passageiros. No mesmo ano, concretizou voo histórico entre as capitais
de São Paulo e Rio de Janeiro, compondo as comemorações do centenário da independência brasileira. Foi a
primeira mulher a realizar um voo interestadual no país. Anésia também foi uma pioneira política. Ainda muito
jovem participou da chamada Revolução de 1924, quando foi presa e mais tarde libertada pelos revolucionários.
Entre outras missões, sobrevoou o navio Minas Gerais, jogando flores e um bilhete dizendo ‘E se fosse uma
bomba?’. Por conta disso, ficou proibida de voar até o ano de 1939 – quando retomou suas atividades”. p.8.

306
Idem, p.123.
151

de Marte fomos cumulados das maiores gentilezas. Na Bahia recebemos grandes


manifestações”. Já o vencedor do Circuito Aéreo de São Paulo teria declarado o seguinte:
“Tudo o que se possa dizer da revoada a Porto Seguro é pouco, não existindo no dicionário
palavras capazes de exprimir o valor do grande ‘raid’. Desejo dizer que o êxito deste
grandioso empreendimento se deve ao mágico da amizade” que seria o sr. Assis
Chateaubriand. A capacidade de organização e hospitalidade seriam elementos de destaque
destas falar.307 Esta “fidalguia” no tratamento voaria lado a lado com a certeza de que as Asas
do Brasil Novo seriam alçadas aos céus pelo avião.
Neste ‘raid’ constatamos a hospitalidade do povo da região. Fomos recebidos
carinhosamente, quer no Espirito Santo quer na Bahia, pelas autoridades e pelo
povo. Concluindo, devo declarar que precisamos de novos ‘raids’, iguais a esse que
se efetuou com grande brilho, porque o Brasil será desbravado pelas asas. 308

A conclusão a que chegará outro aviador, ouvido após a realização da revoada, é de que
“Esse ‘raid’ veio provar de um modo formal que já existe no Brasil uma aviação civil: que os
nossos pilotos estão hoje aptos para qualquer emergência”. Novamente a preeminência da
Segunda Guerra marcaria esta buscar por constituir a aviação nacional. O relato do médico e
aviador paulista José Martins Costa, nos proporcionará refazer os momentos da aterrissagem
no campo de avião no Arraial d’Ajuda até a chegada à cidade. Para este aviador, o campo
d’Ajuda seria “superior ao esperado e que demonstrava, pelo seu estado, o trabalho e o zelo
dos engenheiros do Departamento de Aeronáutica Civil”.309 Estes trabalhos só provariam que
a aviação civil brasileira estava alçando voo com esta revoada em comemoração ao
descobrimento. O “Raid” seria tanto um evento que demonstraria a capacidade e a eficiência
da aviação brasileira, como um ato rememorativo de evocação e culto ao passado que teria
sido um “móvito de orgulho para todos os brasileiros”. O “acolhimento fidalgo e carinhoso”,
que estes pilotos teriam recebido após o desembarque, se repetiria em diversos momentos da
revoada e se somaria à apologia da aviação que estava sendo promovida. Após aterrissarem no
Arraial d’Ajuda os aviadores precisariam caminhar até à margem do rio Buranhem para de lá
atravessarem rumo à cidade de Porto Seguro.
Do Aeroporto da Ajuda até Porto Seguro, fizemos a viagem de 8 kilometros [em
verdade, são 4 km] a pé, tendo o sr. Assis Chateaubriand demostrado qualidades de
andarilho, pois foi o único que não lamentou a caminhada feita sob um sol

307
Autor não identificado. Os aviadores ficaram encantados com a hospitalidade dos bahianos. In. Sob os
céus de Porto Seguro, 1940, p.125.
308
Idem, p.126.
309
Idem, p.128.
152

abrasador. Depois de atravessar a bahia em canoas, chegamos finalmente a Porto


Seguro. A cidade é das mais pitorescas, conservando todos os traços da época
colonial. Os moradores receberam-nos carinhosamente e fomos hospedados pela
Prefeitura local. À tarde visitamos uma velha igreja. À noite, o prefeito ofereceu-nos
um banquete, no qual falaram o almirante Gago Coutinho, o senhor Izidro
310
Gonçalves e o representante do governo da Bahia.

Vamos acompanhar os passos deste “andarilho” que seria Chateaubriand. No caminho


do campo de aviação até a margem de onde se atravessaria o rio para se chegar aos locais das
principais solenidades, cerimônias e festejos, o diretor-proprietário dos Diários Associados
iria descrever uma situação com a qual estabelecerá um discurso de definição dos tipos
estaduais que estariam presentes na revoada e que contemplaria a problemática dos “quadros
do espírito nacional”. Chateaubriand narraria este encontro com um morador local que lhe
proporcionará avaliar e estabelecer estas impressões que envolviam a experiência da presença
nestes lugares e que formariam a diversidade dos tipos que seriam unificados por meio da
brasilidade dos paulistas. É esta família de “aviadores bandeirantes” que caminharia junto a
Chateaubriand que presenciará este encontro com a “galanteria dos baianos”.
Viajávamos a pé, seis aviadores paulistas, entro o campo da Ajuda e Porto Seguro.
Não havíamos ainda almoçado, e tínhamos sede. Castigava-nos o sol tropical. O
modelo da urbanidade baiano nol-o trouxe um modesto carpinteiro, que
encontramos na estrada. Ele trazia consigo uma bela cana, e Anesito Amaral
demostrou o desejo de lhe sorver o suco. Um dos companheiros tirou 20$000 do
bolso e se dispôs a recompensa-lo. Manoel Vinhas recusou terminantemente o
dinheiro. Dava aquele caldo com prazer, para regalo dos hospedes da cidade. Mas
que não lhe azinhavrassem a singeleza do gesto. Era um homem pobre, que não
deveria receber mais de ... 8$000 pelo seu trabalho diário. Entretanto, colocado entre
o dinheiro e o dever de polidez, este sobrepujava àquele. Sua alma era livre e
despregada de qualquer sentimento material. Caminhamos juntos, a pé, mais de
quatro quilômetros. Aquele coração se abriu a mim, na sua intimidade, como um
cálice de flor à abelha que iria sorver lhe o pólen dourado. Sua alegria era que
estivéssemos contentes com Porto Seguro, enquanto ali nos encontrássemos.
Convidei-o a vir ver-nos à noite, durante o jantar. Naquela delicadeza daquele
humilde carpinteiro estavam os reflexos da gentileza baiana. O que ele fez conosco
não era nenhuma novidade. Envolve um milagre quotidiano da urbanidade local.
Educado socialmente em princípios de razão e de tolerância, ele não compreendia
que o objetivo de lucro inspirasse o homem de Porto Seguro diante dos aviadores
que vinham participar das festas cívicas. Porto Seguro nos agasalha com a
galanteria, a qual só poderá existir nas cidades de uma civilização antiga, portadoras
311
de padrões de cultura e bem estar, e que entraram na gloria pelo sofrimento.

Em Galanteria dos bahianos e brasilidade dos paulistas, publicado no dia 4 de maio, o


jornalista iria estabelecer as características do tipo baiano e paulista e o modo como estas
características formariam um “quadro do espírito nacional” que estaria presente neste “Raid”

310
Idem, p. 129.
311
CHATEAUBRIAND, Assis. Galanteria dos bahianos e brasilidade dos paulistas. In. Sob os céus de Porto
Seguro, 1940, p.107.
153

e que comporiam a festa de brasilidade. Ele dirá que os aviadores paulistas seriam os
“missionários por excelência do espirito de brasilidade” e que eles estariam empenhados nesta
“cruzada de boa vizinhança entre brasileiros”. A presença de um “delegado do interventor” na
equipe paulista com os “poderes para representa-lo” teria feito “vibrar ainda mais as cordas da
brasilidade”. Neste contexto, a realização do “Raid” encontraria na família dos aviadores
paulistas os melhores traços da “fraternidade brasileira, da ligação espiritual com os irmãos do
sul, do norte e do centro”. Estas ações seriam oriundas da vontade do interventor de São Paulo
que incentivaria a “juventude dos dominadores do ar” a cumprir a sua missão de resgatar o
lugar de origem e assim se constituírem como as asas da integração nacional.
Quis o sr. Adhemar de Barros que São Paulo estivesse oficialmente presente em
Porto Seguro. Não bastava só a família dos aviadores bandeirantes. Era preciso que
também o poder público paulista ligasse ao ‘meeting’ de Porto Seguro o apreço que
ele despertava entre a juventude dos dominadores do ar. O talismã da brasilidade
tem um magnetismo capaz de empolgar governante e governados paulistas. Cumpre
dizer que é pelo Brasil e a nação, graças a esse incomparável privilégio do seu gênio
unificador.312

Se os aviadores paulistas seriam os responsáveis por carregar a bandeira da brasilidade


por causa de seu “gênio unificador”, por outro lado, os baianos seriam aqueles que
demonstrariam na “singeleza do gesto” a galanteria de um povo que só poderia existir nestes
lugares de uma “civilização antiga”. “Completando o quadro do espírito nacional paulista,
vemos o sentimento de urbanidade dessa aristocracia do gosto, que é a sociedade da Bahia”.
A polidez constituiria “um bem comum de todo baiano”. Seu “código de vida coletiva” seria a
“amabilidade, ele modela a sua existência dentro de regras essencialmente sociáveis”. Se os
paulistas são “retraídos e distantes”, os baianos teriam recebido “um mandato especial da
Providência para polir os costumes e afinar as maneiras dos filhos das outras províncias do
Brasil”. Os baianos percorreriam, “como conquistadores das boas maneiras, todos os pontos
do quadrante nacional”. A caracterização gerada por estas palavras de Assis Chateaubriand
sobre os baianos se vincularia à “antiguidade do gosto” dessa gente, já que “Eles não tem só
os 400 anos do sr. Alcântara Machado, porém mais 39 de Pedro Alvares Cabral”. 313 A
tipificação emolduraria virtudes que seriam postas lado a lado e depois hierarquizadas neste
processo da marcha de brasilidade pilotada pelos paulistas que idealizaram o “Raid”. A
galanteria e a brasilidade emergiriam das máscaras da civilização, trabalhadas anteriormente,
por meio destas incursões que colocariam em marcha estas formas de virtude representativas.

312
Idem, p. 108.
313
Idem, ibid.
154

Figura 19: Os participantes do "Raid" a Porto Seguro.314

O “Raid” foi uma festa de brasilidade: a missa e a busca pelo sentido histórico.

A comemoração dos 439 anos do “Descobrimento do Brasil” que se efetivou no “Raid”


a Porto Seguro, promovido pelos Diários Associados e que contou com o apoio dos
interventores federais de São Paulo e da Bahia, ao reunir estes “representantes” que
constituiriam os quadros do espírito nacional, formaria, assim, esta “festa de brasilidade” que
encontrará na reencenação da Primeira Missa o momento da apoteose cerimonial que elevaria
aos céus as Asas do Brasil Novo. Vimos no primeiro capítulo como a constituição dos
dispositivos de emolduramento teria gerado e se alimentado a partir do tema da primeira
missa. Da carta de Caminha passando pela tela de Victor Meirelles até o filme de Humberto
Mauro, o tema da primeira missa se fez presente nos momentos mais significativos de
evocação da história do descobrimento do Brasil, nas diversas situações onde esta história
estivesse sendo rememorada. Nesse sentido, após os membros da revoada chegarem a Porto
Seguro, veremos como este tema seria reativado por meio desta evocação cerimonial que
reencenaria a missa de fundação do Brasil.

314
In. Sob os céus de Porto Seguro, p.131.
155

Assis Chateaubriand em Uma missa em Porto Seguro, escrito no dia anterior à missa
das festividades do “Raid” e que já trabalhamos, em parte, quando problematizamos a
emergência do “gênio descobridor”, dirá que o grupo de aviadores civis brasileiros sob o
comando do almirante português Gago Coutinho que viajaram até Porto Seguro teriam ido
“ali ouvir simplesmente uma missa, pela alma dos marinheiros imortais que descobriram o
Brasil para a civilização branca e a humanidade”. Se “Henrique IV ainda protestante, achava
que Paris valia uma missa. Porto Seguro vale outra”. Tomar o “caminho do céu para atingir o
palco, onde há 439 anos Cabral aportava com uma equipe daqueles indivíduos que, para
empregar a linguagem de Valéry, são os ‘homens d’universa’”, significaria, para o maior
articulador da revoada, fazer reviver esta cerimônia de fundação do Brasil.315 Após evocar o
progresso como o caminho de superação das “miseráveis malocas”, Chateaubriand
expressaria as razões desta comemoração do descobrimento e o porquê da reencenação da
missa. A referência às imagens de fundação que já seriam canônicas será explicita.
Comemorar, pois, os gênios da ação do descobrimento equivale a remontar ás
origens da nossa própria criação histórica. Porto Seguro vale, desse modo, a missa
que pretendemos ali ouvir, em intenção dos soldados e marinheiros que nos
arrebataram do estado de natureza, do primitivismo do aborígene, para essa luz
mediterrânea, que nos alumia e nos dá poesia, história e verdade.316

Figura 20: Participantes do "Raid" seguram Primeira Missa no Brasil.317

315
CHATEAUBRIAND, Assis. Uma missa em Porto Seguro. In. Sob os céus de Porto Seguro, 1940, p.19.
316
Idem, p.20.
317
In. Sob os céus de Porto Seguro, p.79.
156

Esta teatralização alegórica, por meio da reativação dos dispositivos de emolduramento,


encontra na missa o seu momento ápice. Pousar para fotos com o quadro de Victor Meirelles
que retrataria a primeira missa no Brasil, antes de realizar uma missa que visava evocar a
memória deste mesmo acontecimento já retratado pela pintura, será o ponto alto deste
simulacro produzido por estas performances que iriam emoldurar uma experiência histórica
de refundação do país durante o “Raid” a Porto Seguro. O uso do quadro como fator de
“alusão” ao fato histórico, por meio de uma imprensa de massas, é significativo para a
compreensão das dimensões que estas alegorias adquiririam durante a Revoada das Asas. Para
remontar as origens históricas fez-se necessário aludir à verdade visual já estabelecida para
este acontecimento. Nesta busca por um emolduramento que se assemelhasse ao que era
convencionalmente aceito como a imagem desta cerimônia, o recurso à tela canônica de
Meirelles seria fundamental.
Pensando a partir de Fernando Catroga, poderíamos considerar o “Raid” a Porto Seguro,
enquanto uma festa de brasilidade que promoveu uma cerimônia de refundação, como um rito
de recordação coletivo por meio desta liturgia já emoldurada. A missa proclamada durante o
“Raid” se configuraria como uma liturgia de recordação de uma origem a ser resgatada. Um
ritualismo memorial expresso publicamente que acarretaria a construção mítico-simbólica da
ideia de um Brasil Novo, por meio da reencenação litúrgica que recorda uma imagem oriunda
da narrativa da carta de Caminha e de seus desdobramentos emoldurados pela ciência e pela
arte. A visita à necrópole seria um ato memorial de re-presentificação suscitado a partir destes
sinais de reavivamento do culto ao passado que já vimos. Os ritos parariam o tempo, de modo
a reviverem-se, simbolicamente, os momentos modelares do seu transcurso. O simbolismo
funerário que vimos antes seria como uma poética da ausência que agora seria preenchida
pela vitalidade da missa. O rito comemorativo seria uma sacralização cívica do tempo e do
espaço. O rito que atualiza a memória cria o elo social. Assim, as cerimônias da missa seriam
como ritos de ressureição da mystica de Porto Seguro. A memória desta cerimônia seria uma
ação recriadora e a recordação comemorativa destes fatos articularia passado, presente e
futuro. As cerimônias do descobrimento seriam, então, ritos coletivos de recordação que
encontrariam na reencenação da primeira missa em Porto Seguro o ponto máximo desta
vontade de repetir o acontecimento fundador. O “Raid” enquanto festa de brasilidade e rito
comemorativo teria sido uma espécie de viagem recordativa a estes lugares de memória.318

318
CATROGA, Fernando. Memória, história e historiografia. Coimbra, Portugal: Quarteto Editora, 2001.
157

Figura 21: Celebração da missa.319

319
In. Sob os céus de Porto Seguro, p.113.
158

Se a comemoração do descobrimento significava para Chateaubriand esta remontagem


das origens de nossa criação histórica, que nos iluminaria com “poesia, história e verdade”,
por de trás das cenas, as máscaras da civilização que estabeleceram o protagonismo da
“árvore branca” não permitiria que a missa de refundação promovida no contexto do “Raid”
fosse ministrada por um padre negro. Como dissemos, Edmar Morel tinha por uma de suas
tarefas, durante a Caravana que hasteou as bandeiras no Monte Pascoal, organizar e preparar a
programação dos festejos da revoada. Dentre estes atos que configurariam a programação, a
missa seria um dos pontos mais importantes. Nesse sentido, a postura de Chateaubriand frente
à fala de Morel de que o padre Emiliano Gomes José, que celebraria a missa, seria um “negro
descendente de escravos”320, revelaria outra das faces do principal articulador do “Raid” a
Porto Seguro. Segundo Fernando Morais, ao ouvir que o padre que rezaria a missa em Porto
Seguro seria um negro, Chateaubriand teria chamado Morel em um canto e dito:
Seu Morel, demita esse preto da minha festa. Um preto rezar a nossa missa? De
modo algum! Dê um jeito de chamar com urgência o bispo de Ilhéus, que é ariano.
Em missa de branco eu atuo até como coroinha, seu Morel, mas missa rezada por
padre preto vai nos trazer uma urucubaca sem tamanho. 321

Ainda de acordo com Morais, “A missa e os convidados tiveram de esperar a chegada


do bispo de Ilhéus, d. Eduardo José, que, por ser branco, afastava os preconceituosos temores
de Chateaubriand de que o padre iria ‘trazer má sorte aos aviadores’”.322 Mas para os
jornalistas que cobriam a Revoada das Asas o racismo explícito do diretor proprietário dos
Diários Associados não ofuscavam em nada a magnitude e a relevância das ações que este
empresário da comunicação estava levando a cabo nesta missão de regate do berço da nação.
O racismo de Chateaubriand, em verdade, era fator estrutural do modo como este enxergava
as ações que estavam sendo realizadas. O enfoque principal destes promotores era valorizar o
“Raid” como um momento festivo que desse orgulho ao país, mediante o resgate e a
comemoração desta origem que estaria perdida no sul da Bahia.
Em uma reportagem intitulada O ‘raid’ a Porto Seguro, foi uma festa de brasilidade,
José Nogueira, enviado especial do Estado da Bahia, apresenta uma narrativa que seria a
síntese de toda está problemática, qual seja, a de projetar o “Raid” como uma festa de
brasilidade que se caracterizaria por uma atividade da aviação que buscou resgatar o berço da

320
MOREL, Edmar. Histórias de um repórter. Rio de Janeiro: Record, 1999, p.84.
321
MORAIS, Fernando. Op. Cit., p.284-285.
322
Idem, p.285.
159

nacionalidade, numa ação comemorativa que tem como um de seus fundamentos a atribuição
de valor histórico a esta paisagem que será patrimonializada mediante estes discursos
celebrativos. Este reporte resume bem o que teria sido esta festa em comemoração ao
descobrimento do Brasil. Sobre a missa ele dirá:
A missa campal foi também outra cena tocante. Oficiou-a D. Eduardo Herberhold,
pertence à mesma ordem do nosso primeiro celebrante, frei Henrique de Coimbra.
Cerca de mil pessoas assistiram aquele ato religioso, enquanto dois aviões evoluíam
no céu plúmbeo daquela manhã frienta. E a predica do bispo de Ilhéus foi um hino
de fé e uma afirmação grandiosa daqueles festejos comemorativos de 439
aniversário do nascimento do Brasil. Assis Chateaubriand também falou,
emocionado, dizendo viver um dos seus maiores dias naquela festa que era uma
lição de civismo e um capitulo de fé nos destinos do Brasil. Ambos ouvidos pelo
almirante Gago Coutinho encarnando ali a figura de Pedro Alvares Cabral, por
autoridades outras, aviadores e selvícolas, estes com aquela mesma expressão dos
seus avós que receberam, em 1500, as caravelas lusas: misto de curiosidade e
satisfação.323

Com e para além da missa, teria havido “em todos os festejos, o sentido histórico”.
Sendo assim, esta “cena tocante”, celebrada pelo bispo da “mesma ordem” de 1500 e que teria
contado com a “encarnação” do descobridor, emolduraria a origem e os destinos do Brasil por
meio deste ato de fé que a Revoada das Asas buscava significar enquanto uma missão de
resgate do berço da nação. Os significados desta busca pelo “sentido histórico” nas atividades
e cerimônias ligadas à festa de brasilidade que tiveram lugar em Porto Seguro, seriam a de
uma busca por uma “aproximação perfeita” com os acontecimentos narrados pela Carta de
Caminha e desdobrados pelos dispositivos de invenção de molduras. Este misto de
“curiosidade e satisfação” que os “selvícolas” teriam demonstrado por meio da “mesma
expressão dos seus avós”, é a mesma que teria sido instituída pelo impacto causado pela tela
de Victor Meirelles. Nesse sentido, o hino que afirmou a grandiosidade dos festejos
comemorativos de 1939 durante a missa celebrada em Porto Seguro, seria uma proclamação
de que as Asas do Brasil Novo reconheciam o valor da história por meio destas reativações da
cerimônia de posse que a festa de brasilidade buscava evocar.
“Procurou-se assim uma mais perfeita e uma mais significativa aproximação com os
atos desenrolados no ano de 1500”, continua o enviado especial que vai relembrar a chegada
de Gago Coutinho por meio desta compreensão que buscava a semelhança nos
acontecimentos da descoberta. “Cabral desembarcou num batel. O mesmo aconteceu com o
grande aviador lusitano [...]. E, se o nosso descobridor foi recebido por selvícolas, reviveu-se

323
NOGUEIRA, José. O “raid” a Porto Seguro, foi uma festa de brasilidade. In. Sob os céus de Porto
Seguro, 1940, p.117.
160

400 anos depois, o mesmo espetáculos”. A busca pelo sentido histórico era traduzida por uma
tentativa de reprodução “a mais perfeita possível” daquilo que se entendia ser a interpretação
correta sobre a história do descobrimento do Brasil. Essa tentativa de reproduzir as cenas de
fundação, a partir desta busca pelo “mesmo” que espetaculariza a história, estaria presente
tanto na chegada do grande homenageado do evento: “índios tupiniquins vindos de 20 leguas
ofereceram flores a Gago Coutinho, e o almirante chorou. Ali se recordava com absoluta
fidelidade uma das paginas mais gloriosas da história de Portugal”; como também estaria
presente nas demais ações e atividades que aconteceram em Porto Seguro, como a própria
missa que acabamos de ver.324 A festa de brasilidade que seria o “Raid” deveria reproduzir
com “absoluta fidelidade” todos os aspectos rememorativos ligados à história do
descobrimento.

Figura 22: Montagem com aviões do "Raid" fazendo acrobacias sobre o cruzeiro da primeira missa. 325

324
Idem, p.117.
325
In. Sob os céus de Porto Seguro, p.90.
161

Essa busca por fidelidade a uma história que diria respeito à origem do Brasil, que
estaria presente nas ações comemorativas do “Raid”, seria também a base da retórica que
alicerçaria o discurso que institui o processo de patrimonialização do descobrimento. Segundo
a mesma reportagem, “Ainda existem muitos outros aspectos, todos eles rememorativos da
primeira década do século XVI. Há história em tudo. Felizmente, ainda há estes monumentos
e estes locais”. A razão desta felicidade que proclama a existência dos monumentos históricos
seria devido a que: “o aluvião do progresso só conseguiu, num golpe estranho e terrível,
derrubar o colégio dos jesuítas. Tudo o mais ficou. Tudo o mais ali está, cristalizado, como
página viva, como monumento histórico, como recordação dos tempos idos, do nosso
nascimento, da nossa descoberta”.326
A cristalização deste discurso monumentalizante de atribuição de valor histórico à
cidade de Porto Seguro teria se constituído nestes acontecimentos ligados à revoada. Os
semióforos da paisagem do descobrimento seriam retomados neste processo de
patrimonialização da cidade, que se alimentaria dos elementos emoldurados pelas reportagens
que cobriram a festa de brasilidade promovida pela Revoada das Asas.
Imperdoavelmente, Porto Seguro não é ainda um monumento nacional. Tudo ali fala
de um Brasil-criança. Cada lugar é um capitulo vivo da história pátria. O marco
padrão que Cabral plantou ali está na cidade Alta, corroído pelo tempo e fronteiro à
antiga intendência municipal e à igreja de N. Senhora, construção do século XVIII.
Mais para a esquerda, existem as ruinas do Colégio dos Jesuítas, que mãos
impiedosas destruíram, em 1916, para erguer uma serraria... Adiante, o reduto de
Santa Cruz, que sustentou fogo contra os franceses, se utilizando dos canhões que
Gonçalo Coelho trouxe em 1503, os mesmos que saudaram 4 séculos após, asas
brasileiras, quando em revoada garbosa rememoravam o feito de Pedro Alvares
Cabral. Em sentido contrario, vamos encontrar o local onde existiu a primeira igreja
do Brasil, obra dos franciscanos, em 1503. Já na cidade baixa, meio quilometro, se
tanto, dos arrecifes, uma bandeira rubra desfraldada, indica ao visitante, que ali foi
celebrada por frei Henrique de Coimbra, a primeira missa do Brasil. Ali é Coroa
Vermelha. As águas porém devoraram o ilhéu. Somente quando há vasante, aparece
por algumas horas, a areia encharcada e encardida do lugar onde foi plantada pela
vez primeira no continente, a Cruz de Cristo.327

O mote editorial que estabeleceria que tudo na cidade de Porto Seguro seria investido de
significação histórica, reaparecerá na festa de brasilidade como um imperativo e um dever de
reconhecimento para com este “monumento nacional”. O pagamento da dívida de honra da
história nacional com a cidade se constituiria por meio destes investimentos discursos que a
monumentalizam. As ruínas que jaziam na necrópole, transfigurar-se-iam em sinais de

326
Idem, p.116.
327
Idem, p.115-116.
162

exclamações nas páginas deste “capítulo vivo da história pátria”. A festa de brasilidade
celebrada neste lugar que representaria um “Brasil-criança” seria levada a cabo por aqueles
que teriam a maioridade para conduzir este resgate.
A comemoração das Asas do Brasil Novo, como um evento de refundação que se
estabelece por meio da ressureição do berço da nacionalidade, geraria, assim, o processo de
reconhecimento do valor histórico destes lugares e semióforos ligados à paisagem do
descobrimento e que seriam transformados em objetos de interesse do patrimônio histórico e
artístico nacional. A cristalização da história do descobrimento se daria por meio do processo
de patrimonialização desta história, que teria na Revoada das Assas um de seus momentos
mais significativos. Nesse sentido, poderíamos compreender a fala do jornalista, quando este
expressar a importância do “Raid” após sua realização, como parte dos discursos que fariam
desdobrar a comemoração em patrimonialização, por meio da “festa de brasilidade” que
promoveria um “espetáculo de civismo” que faria ressurgir a cidade de Porto Seguro:
O Brasil está a necessitar de comemorações idênticas à que se processou em 3 de
Maio último em Porto Seguro. Graças ao ‘Diários Associados’, tivemos na cidade
mais velha do país, no porto que abrigou Cabral, uma esplendida festa de
brasilidade, um espetáculo tão raro entre nós, de civismo. Vinte e dois pássaros
metálicos, vindos de São Paulo, Mato Grosso e Rio de Janeiro, sobrevoaram o
Monte Pascoal e, em continência, rasgaram o céu de Porto Seguro. Uma vitória
magnifica da aviação civil brasileira, que teve em cada tripulante um orgulhoso do
êxito conquistado.328

Ressurge Porto Seguro, berço da Brasil, verdadeiro tesouro do patrimônio histórico e


artístico nacional.

Essa vitória da aviação civil brasileira que teria dado Asas ao Brasil Novo, só ficaria
completa após o “ressurgimento” de Porto Seguro. Quando os últimos forasteiros deixaram a
cidade que teria vibrado de entusiasmo durante os 3 dias de festejos que comemorou os 439
anos do descobrimento do Brasil, ou seja, findado o “Raid” após o retorno dos aviadores aos
seus Estados, se dariam os desdobramentos da comemoração que se vinculariam ao início do
processo de patrimonialização do descobrimento. Processo que teria se iniciado por meio de
um movimento de apelo à restauração dos monumentos de Porto Seguro. Para fazer ressurgir
a lendária cidade seria preciso primeiro promover a restauração de seus monumentos. Este
movimento em favor da restauração histórica seria uma demonstração do “espetáculo de
civismo” oriundo das comemorações e que faria parte das ações e desdobramentos do “Raid”.

328
Idem,
163

Nesse sentido, Ramiro Berberte de Castro, o diretor de Cultura e Divulgação da Bahia, dirá
que:
O vibrante e patriótico apelo do jornalista Assis Chateaubriand, para que fosse
encabeçado um movimento no sentido da restauração dos seculares e históricos
monumentos de Porto Seguro, repercutiu de modo especial no seio daqueles que
sabem compreender o elevado sentido desta iniciativa. Assim é que, vários
capitalistas, de logo, se prontificaram a contribuir, com ofertas valiosas, afim de,
iniciando-se a reconstrução de obras antiquíssimas, se prestar uma justa homenagem
ao passado, que aqueles monumentos simbolizam. 329

Estes capitalistas que contribuiriam com esta “justa homenagem ao passado” foram:
Othon Lynch Bezerra de Mello, industrial e membro do Instituto Histórico de Pernambuco,
que ofertou 20 contos de réis; Samuel Ribeiro, Presidente da Caixa Econômica Federal de São
Paulo, doando também 20 contos de réis; e Raphael Chrisostomo, em nome da Companhia
Assucareira Vieria Martins, que doou 10 contos de réis. Por causa destas contribuições,
segundo Ramiro Berberte de Castro, os nomes destes brasileiros, “pelo gesto de nobreza e
civismo”, permaneceriam “bem vivos na gratidão do povo de Porto Seguro e da Bahia”.330
O valor ofertado teria sido utilizado em algumas obras de restauração que seriam
vistoriadas por Rodrigo Mello Franco de Andrade, quando este visitaria a cidade por meio
desta ação de desdobramento da comemoração das Asas do Brasil Novo. Antes de
analisarmos esta visita do diretor do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
vamos problematizar a transfiguração da necrópole agenciada pela mystica, em um
“ressurgimento” de Porto Seguro por meio destes discursos de enaltecimento do movimento
de restauração dos monumentos da cidade. Numa reportagem para O Cruzeiro do dia 6 de
julho de 1940, denominada Ressurge Porto Seguro, o jornalista Júlio Prestes dirá que:
Está vitorioso o movimento inspirado pelos ‘Diários Associados’, no sentido de
restaurar as relíquias históricas da cidade fundada por Pedro Alvares Cabral. Por
ocasião da linda revoada de pássaros metálicos aos céus do Monte Pascoal,
jornalistas e escritores que fizeram parte da esquadrilha sob o comando do velho
aeronauta lusitano Gago Coutinho, constataram o estado de abandono em que se
encontravam os monumentos, edificados há quarto séculos. Tudo estava em ruínas.
Até o marco trazido por Pedro Alvares Cabral ameaçava cair do alto de seu pedestal.
Os templos e o Paço Municipal ofereciam aspecto desolador. Era preciso restaurar
aquelas obras de arte. O Sr. Assis Chateaubriand, diretor dos ‘Diários Associados’,
fez um apelo aos homens de boa vontade. E em poucos dias reuniu vultosa quantia
331
para iniciar a restauração dos monumentos de Porto Seguro .

329
CASTRO, Ramiro Berbert de. Pela restauração dos monumentos de Porto Seguro. In. Sob os céus de
Porto Seguro, 1940, p.181.
330
Idem, p.181-182.
331
PRESTES, Júlio. Ressurge Porto Seguro. In. Sob os céus de Porto Seguro, 1940, p.183.
164

Nesta reportagem foram utilizadas as fotografias de Eric Hess que ilustraram a


paisagem do descobrimento que trabalhamos nesta dissertação e que constam no Inventário
fotográfico do atual IPHAN como o momento de identificação dos bens que seriam objeto de
uma avaliação patrimonial. Ou seja, estas fotografias de identificação do patrimônio de Porto
Seguro foram uma decorrência do movimento pela restauração dos monumentos da cidade,
promovido por Assis Chateaubriand, como um desdobramento das comemorações do
descobrimento que tiveram lugar na Revoada das Asas de 3 de maio de 1939. “Ninguém
melhor do que o ‘Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional’ poderia arcar com a
responsabilidade dos trabalhos de restauração dos monumentos de Porto Seguro”, prosseguirá
a reportagem. Para fazer ressurgir Porto Seguro seria preciso realizar os trabalhos de
restauração que ficariam sobe o controle do órgão do patrimônio.
Dos trabalhos a serem realizados, sob o controle do “Serviço”, figuram as
restaurações do Paço Municipal, construído pelo Ouvidor José Xavier Machado
Monteiro, em 1772; a Matriz, reconstruída pelo mesmo em 1773; a Igreja da
Misericórdia, o Collegio dos Jesuitas; a Igreja de N. S. da Glória e a Igreja N. S.
d’Ajuda, construída em 1551 pelo Padre Francisco Pires, superior, e Padre Vicente
Rodrigues, irmão do descobridor da famosa fonte, junto à qual foi edificada a
igreja.332

De acordo com Márcia Regina Romeiro Chuva, os arquitetos da memória, que


formariam a intelectualidade e os técnicos em redor da “sociogênese” do SPHAN,
conceberam o “patrimônio nacional” como um “elo de integração do Brasil ao mundo
civilizado” por meio da identificação de valores universais na produção artística e
arquitetônica colonial, como uma herança da nação brasileira. A ritualização das práticas de
preservação instauradas, a partir da escolha dos bens culturais a serem restaurados, buscaria
uma continuidade em relação a este passado elevado a berço da civilização. “No Brasil,
designou-se como patrimônio histórico e artístico nacional, basicamente, aquilo que foi
classificado como arquitetura tradicional do período colonial, representante ‘genuína’ das
origens da nação".333 Mas, lembremos que é a dimensão alegórica presente na retórica da
perda que institui o patrimônio, portanto, este passado que guardaria a origem seria também a
imagem dos espetáculos de decadência teatralizada por meio das ruínas. Sendo assim, as
ordens do tempo que presidiam à emergência da noção de “patrimônio nacional” estariam

332
Idem, p.184.
333
CHUVA, Márcia Regina Romeiro. Os arquitetos da memória: sociogênese das práticas de preservação do
patrimônio cultural no Brasil (anos 1930-1940). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2017, p.42.
165

inseridas numa problemática que envolvia uma “consciência da historicização” da ruptura


com o passado pela instauração de um novo tempo.
Construíam-se histórias nacionais que se materializavam em ‘patrimônios nacionais’
a serem protegidos da destruição, como legado de um outro tempo – passado – às
gerações futuras. A noção de patrimônio pressupunha uma consciência de
historicização e de ruptura com o passado. Embora a pretensão fosse de preservar a
continuidade do tempo percorrido, somente um sentimento de pertencimento a um
novo tempo possibilitaria a formulação da noção de conservação de algo precioso e
ameaçado de perda.334

A história do descobrimento por meio do “Raid” a Porto Seguro foi uma destas histórias
que se materializaram em patrimônios nacionais e que encontramos na mystica de Porto
Seguro, enquanto a expressão desta problemática da “consciência da historicização” que
lamenta o “abandono da necrópole” que teria deixado para traz as ruínas do lugar de origem
após o término da revoada. De acordo com Júlio Prestes, foi o “espirito empreendedor” de
Assis Chateaubriand, “que canalizou para as autoridades competentes a semente que devia dar
tão maravilhosos frutos”, que teria feito ressurgir Porto Seguro. Este “espírito”, que
promoveria a ressureição do lugar de origem do Brasil, deveria ser conhecido pela população.
Isso aconteceria por meio destes “breves relatos que temos feito no presente” onde “os nossos
leitores”, poderiam apreciar o “esforço desenvolvido para ser reerguida e levada ao esplendor
primitivo a vila de Porto Seguro, primeira cidade e berço de nossa civilização”. O Brasil do
passado ressurgiria, assim, pelo “impulso de um verdadeiro brasileiro” que teria dado Asas a
um Brasil Novo. Após esse impulso inicial promovido pela Revoada das Asas, a questão do
patrimônio e da monumentalização de Porto Seguro seria entregue ao “Serviço Histórico” que
deveria restaurar os monumentos celebrados pela comemoração do descobrimento do Brasil
em maio de 1939.335
Regressou há pouco de Porto Seguro o sr. Rodrigo Mello Franco de Andrade, diretor
do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Sua viagem teve por
principal objetivo examinar pessoalmente os preciosos monumentos históricos e
artísticos da velha cidade, onde primeiro aportaram as caravelas descobridoras,
monumentos para cuja conservação e restauração os ‘Diários Associados’ obtiveram
valiosos donativos particulares.336

Assim inicia a reportagem Porto Seguro, berço do Brasil, verdadeiro thesouro do


patrimônio histórico e artístico nacional que relataria uma entrevista com o diretor do

334
Idem, p.37.
335
PRESTES, Júlio. Op. Cit., p.186.
336
Autor não identificado. Porto Seguro, berço do Brasil, verdadeiro therouro do patrimônio histórico e
artístico nacional. In. Sob os céus de Porto Seguro, 1940, p.173.
166

SPHAN, após seu regresso desta viagem de inspeção aos trabalhos de restauração dos
monumentos da cidade. A proposito dos objetivos da viagem, dirá Rodrigo Mello Franco de
Andrade: “Não fui somente ver Porto Seguro, mas realizar também uma viagem de inspeção
que durou mais de um mês”. Ele teria visitado quatro “Estados do Norte – Bahia, Sergipe,
Pernambuco e Parayba”. Mas o principal objetivo de sua viagem, teria sido “ver Porto Seguro,
em favor de cujos monumentos, de tanto valor histórico e também artístico, os ‘Diários
Associados’ levantaram uma subscripção entre particulares que, coisa única no Brasil,
acudiram generosamente ao seu apelo”.337
Em Porto Seguro, o diretor do SPHAN teria verificado “pessoalmente os magníficos
efeitos da revoada de maio, organizada pelos ‘Diários Associados’, pois a cidade foi muito
beneficiada, tendo remodelado suas construções que encontrei pintadas de novo, com cores
alegre e bizarras”. Os recursos que os Diários Associados “coligiram para reparação,
conservação e restauração dos monumentos históricos e artísticos de Porto Seguro”, teriam
estimulado Rodrigo Mello Franco de Andrade a ir pessoalmente à cidade. Os elementos
ligados à história do descobrimento que existiriam “naquela cidade tem tanta importância
histórica” que demandaria a “atenção dos poderes públicos”.338 A visita a Porto Seguro, deste
que foi um dos principais nomes do processo de institucionalização do patrimônio no Brasil,
“a fim de colher impressões” sobre o berço da nacionalidade, o levará a exprimir suas
considerações sobre a cidade e seus monumentos:
Observei que todas as autoridades municipais e a própria população possuem
perfeita consciência do valor dos bem de que são depositários. Porto Seguro oferece
enorme interesse aos estudiosos de nosso passado. Entre os principais monumentos
que examinei ali, quero destacar os vestígios da igreja da Glória e os reductos de
Santa Cruz, cuja construção é atribuída ao ano de 1503. Se for exacta essa data, pois
não tenho elementos precisos para apurar isto, no momento, trata-se das primeiras
edificações feitas no Brasil. Seja como for, o interesse de Porto Seguro é enorme
para o nosso serviço. Independentemente, porém, desses marcos iniciais da
civilização europeia, encontrei ali outros monumentos de valor histórico e artístico.
Entre eles, a igreja da Misericórdia, a matriz, a igreja jesuíta do collegio e a Ermida
famosa de Nossa Senhora d’Ajuda. A esta última construção jesuíta, está ligada uma
das mais belas lendas poéticas da história jesuítica no Brasil.339

O encontro de Porto Seguro com o patrimônio se fez pela observação atenta do olhar
institucionalizado, misto de apuração técnica entremeada pela erudição histórica, cujo regime
de visualidade confluiria para a contemplação de “belas lendas poéticas da história”. Se por

337
Idem, p.175-176.
338
Idem, ibid.
339
Idem, p. 177.
167

um lado, olhar poético do diretor do SPHAN verá beleza na lenda que ronda esta paisagem,
por outro, o olhar institucionalizado enxergará a decadência que ronda os monumentos
históricos. E, assim, dirá que “infelizmente a igreja de Nossa Senhora d´Ajuda teve o seu
interior completamente remodelado, o que impossibilita de qualquer tentativa de
restauração”.340
O espirito empreendedor de Chateaubriand, ao organizar e realizar o “Raid” a Porto
Seguro viabilizou o movimento de restauração dos monumentos da cidade e, por conseguinte,
lhe instituiu no inicio do processo de patrimonialização que tem seu marco fundamento nestes
acontecimentos de 1939. Este espírito empreendedor que promoveu a Revoada das Asas teria
tanto o potencial de fazer ressurgir a cidade, como também carregaria em si os sinais do sopro
de destruição do progresso que se anunciava. O poder criador emanado destas ações instituiria
uma ordem do tempo que romperia com o isolamento do lugar de origem da civilização
brasileira, para restituir-lhe seu esplendor, por meio da teatralização das alegorias do
descobrimento, com suas performances que transfigurariam as ruínas e monumentos desta
história em um sinal da modernidade que estava por vir. A paisagem do descobrimento, como
cenário destes acontecimentos que buscaram resgatar o fogo imortal no processo de marcha
da brasilidade, seria afetada por meio de uma série de ações desdobradas a partir da
comemoração das Asas do Brasil Novo, como o próprio processo de patrimonialização do
“Descobrimento do Brasil”. O tombamento só se efetivaria em 1968, mas essa já é outra
história...

340
Idem, p.178.
168

CONCLUSÃO: MOLDURA HISTÓRICA, PAISAGEM CIVILIZATÓRIA, ALEGORIA


PERFORMÁTICA.

Esta dissertação buscou problematizar e compreender uma ação comemorativa que se


deu por meio de uma atividade que utilizou a aviação como forma de estabelecer uma missão
de resgate da origem do Brasil e que foi produzido como um acontecimento jornalístico
repercutido por seu principal agente produtor, os Diários Associados comandados por Assis
Chateaubriand. O “Raid” a Porto Seguro foi um acontecimento aeronáutico-jornalístico,
desenvolvido como uma ação de comemoração dos 439 anos do aniversário do
“Descobrimento do Brasil”, discursivamente justificado como um resgate do berço da
nacionalidade. Ele foi promovido por meio da exaltação de uma história espetacularizada que
se efetivou em uma “festa de brasilidade”, desdobrada por uma marcha que buscou instituir
um rumo para o destino da civilização brasileira. Esta espetacularização se deu a partir da
teatralização da alegoria que faria ressurgir da necrópole o lugar de origem, por meio de uma
retórica que visava restaurar os monumentos históricos como forma de receber ilustres
visitantes. Essa ação comemorativa do descobrimento, que teria feito desdobrar o início do
processo de patrimonialização da cidade e que se efetiva por meio da atribuição de valor
histórico que coleciona semióforos em sua narrativa de reconfiguração da paisagem, se
alimentou dos dispositivos de emolduramento que emergiram da fortuna crítica da carta de
Caminha.
As ordens do tempo – cultura histórica, comemoração, patrimônio – constituíram-se nos
eixos que atravessaram, de um modo ou de outro, seja explicitamente ou implicitamente, toda
a problematização deste trabalho. O contexto de busca institucionalizada pelo
redescobrimento do passado brasileiro fez-se presente nas atividades da revoada: seja como
pretexto e justificação de uma ação que pôs em marcha uma brasilidade comandada por
aviadores paulistas, com o intuito de desenvolver a aviação civil nacional; seja como
apropriação de uma narrativa histórica que buscou afirmar uma identidade a partir de uma
origem a ser resgatada; seja como problemática desdobrada das polêmicas oriundas do IHGB
que apareceram nas páginas dos jornais e revistas que fizeram a cobertura da Revoada das
Asas.
A constituição de uma cultura história vinculada ao tema do descobrimento, oriunda das
“realidades mitológicas” fruto do trabalho da historiografia e do imaginário produzidos no
século XIX e metamorfoseados pelo XX, foi inicialmente desdobrada de uma
problematização sobre os processos de invenção do “Descobrimento do Brasil”. E foi ai que a
169

comemoração emergiu como fator de celebração de uma história que já havia gerado toda
uma elaboração e que permitia por em causa uma série de questões por aqueles que pudessem
vir a utiliza-las. Redescobrir o passado brasileiro e valoriza-lo significará comemora-lo por
meio de ações que afirmaram uma história de fundação. Essa afirmação visava constituir uma
identidade comum à diversidade de tipos estaduais que estavam dispersos no organismo
disforme que o Brasil tinha se transformada e que precisava retomar o caminho da unidade e
da integração nacional. Celebrar a origem do país por meio desta comemoração do aniversário
do descobrimento, que foi amplamente repercutida pelo maquinário de impressão pertencente
a Chateaubriand, significará por em marcha um processo civilizatório que se empenhou em
definir um rumo para esta mesma civilização.
A preocupação com os monumentos e o patrimônio presente na revoada emerge
inicialmente como uma retórica que justificaria as ações empreendidas. A razão da
comemoração já estaria contida, por origem, na valorização desta história que possuía a
potencialidade e a grandeza de permitir uma monumentalização da nação. O resgate do lugar
de origem por meio das Asas do Brasil Novo se autovalorizaria por meio da valorização que
era atribuída ao lugar no qual a ação de resgate se efetivaria. No lugar onde tudo seria
histórico, seja pelas relíquias, tesouros ou ruínas que estariam perdidas em Porto Seguro a
questão do patrimônio e de seus monumentos seria premente na consecução da revoada que
estava redescobrindo o lugar do descobrimento. A atribuição de valor histórico, o principal,
mas não o único valor atribuído, estaria presente em todos os discursos e ações pertinentes à
efetivação do “Raid”. Desde as primeiras reportagens de anunciação da revoada que estas
questões relativas à história e ao patrimônio foram exploradas como mote editorial. E assim o
foram durante toda a promoção e realização do evento. E após sua realização a questão do
patrimônio ganhou ainda mais força por meio do movimento de restauração dos monumentos
históricos alavancado por Chateaubriand. Nesse sentido, podemos afirmar que a
patrimonialização de Porto Seguro, que só se efetivará em 1968 por meio do tombamento, foi
oriunda desta ação de comemoração. Portanto, a atividade de resgate e celebração da origem
que foi o “Raid” pode ser considerada como um momento fundamental de atribuição de valor
histórico que teria desdobrado das ações de comemoração ao processo de patrimonialização
do descobrimento.
No primeiro movimento deste trabalho buscamos problematizar os processos de
invenção do “Descobrimento do Brasil” por meio de uma reconstrução panorâmica que
perseguiu os caminhos percorridos pela carta de Caminha. Estes caminhos desembocaram
tanto no IGHB, com seus objetivos de constituírem os fundamentos de uma História Nacional
170

pautada na legitimação dos grupos dominantes quanto à instauração de uma visão hegemônica
das origens do Brasil; como na pintura de história que encontrou na tela Primeira Missa no
Brasil de Victor Meirelles a “verdade visual” da narrativa de fundação contida no texto do
escrivão da frota cabralina. A conceituação dos dispositivos de invenção de molduras nos
permitiu estabelecer uma fundamentação para as problematizações posteriores. As invenções
do descobrimento encontrariam nos dispositivos de emolduramento sua chave interpretativa,
que já traria uma narrativa histórica e uma cultura visual pré-estabelecidas pela historiografia
e pelo imaginário presente na virada para o século XX. Nesse sentido, o “Descobrimento do
Brasil” se constituiria numa moldura histórica de compreensão da experiência civilizatória
brasileira.
No segundo movimento, a investigação se desenvolveu no sentido de buscar
compreender o contexto de redescobrimento do Brasil existente durante o Estado Novo. Esta
reconfiguração foi realizada como forma de estabelecer os horizontes daqueles que
propunham o “Raid” como uma viagem de redescobrimento do lugar de origem. A busca
pelos sinais da modernidade se fez como horizonte de expectativas que fundamentariam esta
ação de resgate. Os espetáculos de tristeza e decadência que fariam parte da paisagem do
descobrimento foram contrastados com outras fachadas de progresso que constituiriam a
fisionomia do Brasil. Esta paisagem foi reconfigurada por meio do acompanhamento e da
análise da Caravana dos Diários Associados. Esta que foi uma das principais ações que
antecederam o “Raid” a Porto Seguro e que se caracterizou como o momento onde o
imaginário da narrativa da carta de Caminha encontraria a realidade do lugar do
descobrimento. O olhar do viajante que perscrutou a história encontrará na natureza o cenário
onde as narrativas do descobrimento teriam se dado e onde as performances ligadas à
teatralização alegórica das cerimônias da revoada se efetivariam. Uma coleção de semióforos
elencada por uma narrativa que também constituiriam um inventário dos sentidos da lendária
cidade se formou e se tornou visível pelas palavras de Edmar Morel. O hasteamento das
bandeias no cume da histórica montanha foi um dos momentos ápice de todos estes
acontecimentos ligados à revoada e que se constituiriam em uma das maiores alegorias destas
reativações das cerimônias de posse que tiveram lugar no sul da Bahia no ano de 1939.
No terceiro movimento, buscamos problematizar a emergência de uma virtude
civilizatória que encontrará na rusticidade um elemento de transfiguração da natureza
selvagem e do desconforto em elementos de enaltecimento do caráter desbravador oriundo do
espírito de aventura bandeirante. As máscaras da civilização estiveram presentes nos festejos
de comemoração do descobrimento. A arvore branca da civilização foi exaltada como sendo a
171

raiz que teria trazido “ordem, justiça e humanidade” ao que viria a ser o Brasil. Neste
processo de marcha de brasilidade que estabeleceria o rumo de progresso, este teria sido
convocado para aniquilar o indígena. Neste contexto emergiriam as performances que
teatralizaram as alegorias do descobrimento. As ruínas melancólicas da mystica de Porto
Seguro constituíram o cenário desta teatralização que buscava fazer ressurgir o berço da
nação. Vimos, também, que o “Raid” foi uma alegoria que se fundamentava no contraste entre
os aviões moderníssimos e as caravelas como forma de estabelecer a distinção entre o novo e
o velho. A marcha de brasilidade, protagonizada pelos aviadores fáusticos que visitaram a
cidade fundada por Cabral, foi o momento da emergência da aviação civil brasileira naquele
contexto que antecedia a Segunda Guerra Mundial. A participação dos governos dos Estados
foi fundamental para a consecução do evento. O governo da Bahia desenvolveu ações de
melhoramento da cidade para receber os hospedes ilustres que viriam dignificar com sua
presença esta cidade baiana que figurava como o lugar da origem. A presença dos aviadores
na cidade para as comemorações das Asas do Brasil Novo, para além de sua anunciação que
teria dominado grande parte das reportagens, será um dos momentos auge dos festejos. A festa
de brasilidade chegaria à apoteose por meio da reencenação da missa. A teatralização da
alegoria alcança o apogeu por meio da consumação desta cerimônia de posse festejada.
O “Raid” a Porto Seguro, enquanto alegoria do descobrimento foi uma destas metáforas
de interpretação do Brasil que se fizeram verbo pela ação que colocou em marcha a
comemoração das Asas do Brasil Novo. As ações da revoada, seja durante a anunciação, seja
com a Caravana, ou propriamente durante os festejos de maio, promoveram uma
transfiguração da paisagem que foi enfeitada e que antes jazia na necrópole. Os resultados
práticos e os benefícios que o “Raid” teria trazido para a região foram mais propagados do
que efetivados. Mas ao mesmo tempo podemos considerar estes acontecimentos como um
marco de transformação que viria a proclamar o progresso como a bandeira a ser fincada pelo
discurso do redescobrimento. As alegorias do descobrimento estiveram presentes na Revoada
das Asas por meio desta busca que visava resgatar uma origem pretensamente perdida e que
serviria de legitimação para o estabelecimento de uma marcha de brasilidade. As ordens do
tempo com as quais iniciamos este trabalho se consubstanciariam nas performances que
instauraram as alegorias como forma de regatar o passado para legitimar o presente e projetar
o futuro. Esta mystica que teria proporcionado a teatralização das alegorias continua em
marcha e se refaz em todo momento em que os dispositivos de emolduramento são reativados
neste processo incessante de invenção e reinvenção do “Descobrimento do Brasil”.
172

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